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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE DANÇA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DANÇA FÁBIO LUÍS OLIVEIRA MONTEIRO COREOGRAFIA DA BUROCRACIA: IMPLICAÇÕES POLÍTICAS NOS PROCESSOS CRIATIVOS EM DANÇA Salvador 2014

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

ESCOLA DE DANÇA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DANÇA

FÁBIO LUÍS OLIVEIRA MONTEIRO

COREOGRAFIA DA BUROCRACIA: IMPLICAÇÕES POLÍTICAS NOS PROCESSOS CRIATIVOS EM DANÇA

Salvador 2014

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FÁBIO LUIS OLIVEIRA MONTEIRO

COREOGRAFIA DA BUROCRACIA: IMPLICAÇÕES POLÍTICAS NOS PROCESSOS CRIATIVOS EM DANÇA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Dança, Escola de Dança, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Dança.

Orientadora: Profa. Dra. Gilsamara Moura

Salvador 2014

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Sistema de Bibliotecas da UFBA

Monteiro, Fábio Luís Oliveira. Coreografia da burocracia : implicações políticas nos processos criativos em dança / Fábio Luís Oliveira Monteiro. - 2015. 122 f.: il. Inclui anexos. Orientadora: Profª. Drª. Gilsamara Moura Robert Pires. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Escola de Dança, Salvador, 2014. 1. Dança. 2. Política pública. 3. Política cultural. I. Pires, Gilsamara Moura Robert. II. Universidade Federal da Bahia. Escola de Dança. III. Título. CDD - 792.8 CDU - 793.3

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TERMO DE APROVAÇÃO

FÁBIO LUIS OLIVEIRA MONTEIRO

COREOGRAFIA DA BUROCRACIA: IMPLICAÇÕES POLÍTICAS NOS PROCESSOS CRIATIVOS EM DANÇA

Aprovada em 09 de setembro de 2014

Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Dança, Universidade Federal da Bahia, pela seguinte banca

examinadora:

Gilsamara Moura – Orientadora _______________________________________ Doutora em Comunicação e Semiótica, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) Universidade Federal da Bahia (UFBA) Lúcia Helena Alfredi de Matos _________________________________________ Doutora em Artes Cênicas, Universidade Federal da Bahia (UFBA) Universidade Federal da Bahia (UFBA) Isaura Botelho ___________________________________________ Doutora em Ciências da Comunicação, Universidade de São Paulo (USP) Fundação Biblioteca Nacional

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Dedico este trabalho a meus pais Raimundo e Vera,

que nunca me cercearam do acesso ao conhecimento;

A meus irmãos Carlos e Marcelo, dos quais estarei sempre perto;

A minha orientadora Gilsamara Moura, por saber ouvir e

falar de forma tão generosa;

E a meus filhos, que ainda estão por vir,

mas que já são o meu maior projeto.

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AGRADECIMENTOS

A Lucas Valentim e Lia Lordelo, por chegarem junto

no momento em que eu mais precisei. Obrigado!

A Edu O., por ter feito esse caminho

mais leve. Obrigado!

Aos professores e colegas de turma,

que tanto contribuíram com suas palavras e ensinamentos. Obrigado!

A Alexandre Molina, Clara Trigo, Helena Katz, Nayse Lopez, Sérgio Andrade, Sérgio

Sobreira, Sônia Sobral e Suki Vilas Boas, por aceitarem participar desta pesquisa.

Obrigado!

A Matias Santiago, Carlos Paiva e Lúcia Matos, pela generosidade

no acesso às informações que construíram este trabalho. Obrigado!

Aos companheiros Jorge Alencar, Ellen Mello, Leonardo França e Neto Machado,

pelas mentes brilhantes, e palavras de incentivo. Obrigado!

E em especial Gabriel Pedreira, pelo companheirismo e apoio irrestrito

a essa empreitada. A você, Gabriel, o meu muito, muito, muito obrigado!

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“A editalização tornou-se uma lógica, um

modo de pensar, que permeia tudo. As implicações são profundas e extensas.

Passam pelo fazer artístico, mas o ultrapassam, atingindo as relações entre as

pessoas e os entendimentos de mundo”. Helena Katz

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MONTEIRO, Fábio Luís Oliveira. Coreografia da burocracia: implicações políticas nos processos criativos em dança. 121f. 2014. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Dança, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014.

RESUMO

Este estudo reflete sobre o trânsito entre gestão cultural, políticas públicas e criação artística. O objetivo é refletir sobre as implicações dos editais, enquanto instrumento de aplicação de uma política cultural, nos processos criativos em dança. Será observada, para tanto, a gestão da Secretaria de Cultura da Bahia, no período de 2007 a 2010. Este período marcou o fortalecimento dos editais como mecanismos de distribuição dos recursos públicos para a cultura. Para tanto, avançaremos no entendimento de cultura e suas dimensões através de reflexões propostas por Raymond Williams, José Joaquín Brunner e Isaura Botelho. Após apresentado o arcabouço teórico inicial, será apresentado um panorama da evolução das políticas públicas para a cultura no Brasil, para logo em seguida aprofundar no contexto da Bahia. Para o desenvolvimento desta argumentação foram ouvidos artistas que realizaram processos criativos sem a subvenção através de editais e com a subvenção através de editais. Fazem parte desta discussão autores como Michael Foucault, Eneida Leal Cunha, Helena Katz, Gisele Nussbaumer, Rosa Hércoles, Lúcia Matos, Peter Pál Perbart, Jussara Setenta e Albino Rubim. A partir desses autores, analisarei duas obras de dança: “A Projetista”, de Dudude Herrmann, e “Edital”, de minha autoria. Ambos os trabalhos trazem a burocracia como matéria de criação. Defendo que é necessária a atenção e contínua observação na implementação dessas políticas públicas, a fim de evitar impactos danosos à criação artística.

Palavras-chave: Dança. Gestão cultural. Políticas públicas. Edital.

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MONTEIRO, Fábio Luís Oliveira. Choreography of bureaucracy: policy implications in the creative process in dance. 129f. 2014. Masters Thesis – Post-Graduation Program of Dance, Federal University of Bahia, Salvador, 2014.

ABSTRACT

This study reflects on transit between cultural management, public policy and artistic creation. The aim is to reflect on the implications of the aplications as a means of implementing a cultural policy in the creative process in dance. Will be observed, therefore, the management of the Secretariat of Culture of Bahia, in the period 2007 to 2010. Period that marked the strengthening of the notices as mechanisms for distribution of public funds for culture. To do so, we will advance the understanding of culture and its dimensions through reflections proposed by Raymond Williams, José Joaquín Brunner and Isaura Botelho. Presented after the initial theoretical framework will be presented an overview of the evolution of public policies for culture in Brazil, to then delve into the context of Bahia. To develop this argument artists who performed creative processes without the subsidy through aplications and the grant through aplications were heard. Are Included in this discussion authors as Michael Foucault, Eneida Cunha Leal, Helena Katz, Gisele Nussbaumer, Hércoles Rosa, Lucia Matos, Peter Pál Perbart, Jussara Seventy Albino Rubim. From these authors analyze two works of dance: "A Projetista" by Herrmann and Dudude "Edital" of my authorship. Both works, bring the bureaucracy as regards creationI argue that continuous observation and attention in the implementation of these policies is necessary in order to avoid harmful impacts to artistic creation.

Key-words: Dance. Cultural management. Public policies. Aplication.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................... 12

1 GESTÃO CULTURAL – PARA A ARTE, A POLÍTICA...................... 18

1.1 Dimensões da cultura ......................................................................... 20

1.2 De Vargas a Lula – apanhado histórico das políticas culturais no

Brasil ...................................................................................................

24

1.3 Políticas culturais – deveres e responsabilidades compartilhadas...... 29

2 CONTEXTO BAHIA ............................................................................ 35

2.1 Bahia: once upon a time... .................................................................. 36

2.2 A gestão SECULT 2007 – 2010 ......................................................... 40

2.3 Os editais e a criação artística ............................................................ 48

3 A DANÇA NA ESTÉTICA DA BUROCRACIA ................................... 57

3.1 A Projetista – Do nada ao vazio ......................................................... 58

3.2 Edital – O artista montado de produtor, ou vice-e-versa .................... 65

3.3 Um novo lugar na autoria: a necessidade de um discurso ................. 67

3.4 O problema como solução: a convocatória pública ............................ 70

3.5 A composição da organização ............................................................ 75

4 CONSIDERAÇÕES PROVISÓRIAS .................................................. 81

5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................

84

6 ANEXOS ............................................................................................. 88

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INTRODUÇÃO

As reflexões propostas nesta dissertação partem das minhas experiências

profissionais, em princípio. Sou um profissional das artes cênicas há 16 anos e ao longo

dos últimos dez anos, venho dedicando atenção e interesse maior pela dança. Paralelo à

carreira de artista, também atuo como produtor cultural e cumpro essa função também em

projetos nos quais eu não esteja envolvido artisticamente. E, por exercer diariamente

essas duas funções, de artista e de produtor, meu olhar começou a se direcionar para

algumas questões que permeiam a relação entre os fazeres artísticos e suas formas de

subvenção, em especial os editais.

Um edital é um instrumento de distribuição de recursos, adotado por algumas

esferas e instituições públicas para a seleção de projetos que receberão apoio financeiro.

Nos últimos anos, este mecanismo vem sendo adotado cada vez mais pelos agentes

distribuidores de recursos, por serem entendidos como a ferramenta mais democrática de

distribuição financeira, já que se trata de uma chamada pública na qual os interessados

têm o mesmo prazo e condições para pleitear verba para seus projetos.

Uma vez que um artista tem o seu projeto aprovado em um edital e subsidiado por

recursos públicos, alguns procedimentos deverão, necessariamente, ser obedecidos. Por

exemplo: um dado número de apresentações deverá ser cumprido, alguns bens e

insumos não poderão ser adquiridos, mesmo que sejam pertinentes à realização da sua

obra, e o artista terá de obedecer a um cronograma que, por sua vez, tem um prazo limite,

imposto pelas regras dos editais, para que a sua obra esteja pronta, dentre outras

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restrições.

Nos últimos dez anos, criar uma obra de dança, no Brasil, dentro deste contexto

vem sendo muito comum. Desde 2003, quando da posse do presidente Luís Inácio Lula

da Silva em seu primeiro mandato e da consequente entrada do cantor e compositor

Gilberto Gil, como Ministro da Cultura, o Ministério passou a entender o significado da

palavra cultura de forma mais abrangente, que se aproxima ao entendimento proposto

pelo sociólogo chileno José Joaquín Brunner (1993). Trata-se de entender as dimensões

da cultura, especificamente a dimensão sociológica e a antropológica. Conceito que

tratarei no primeiro capítulo, a partir de estudos de Isaura Botelho. Ressalto aqui que

Brunner desenvolve pesquisas ligadas aos estudos culturais ingleses. Quem primeiro

apresenta essa distinção, de forma diferenciada de Brunner, é Raymond Williams no seu

livro Cultura (1992). Essa forma de pensar cultura implicou na mudança, no Ministério da

Cultura, no modo de entender a responsabilidade do Estado enquanto propositor de

políticas públicas para a cultura. Essa mudança de entendimento e de postura, por parte

do Ministério da Cultura, ecoou de forma contundente na produção artística, e nos seus

atores. E, neste contexto, obviamente a dança também se insere.

O interesse desta pesquisa é perceber, registrar e analisar quais as implicações

desta mudança de perspectiva no fazer artístico em dança. Entender se, e de que forma,

os processos criativos em dança sofreram mudanças em consequência da política cultural

aplicada desde 2003. Perceber, apontar e investigar de que forma o artista da dança está

lidando com as condições postas e impostas.

Desta forma, apresento, no primeiro capítulo, duas dimensões de entendimento

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para a palavra cultura. Para que, a partir da apresentação desse referencial teórico, possa

me debruçar sobre o entendimento e analise dos contextos a serem observados.

Uma vez apresentados os entendimentos de cultura e política cultural, compartilho

um breve apanhado histórico sobre as políticas públicas para o setor cultural realizadas

no Brasil, mesmo quando ainda não eram entendidas como políticas culturais. Para tanto,

farei uso de estudos feitos por Lia Calabre (2006). Período este que compreende do

primeiro mandato do Presidente Getúlio Vargas, a partir de 1930, até o primeiro mandato

do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Finalizo o primeiro capítulo falando da importância da participação de todos os

agentes da cadeia produtiva da cultura, na elaboração de uma política cultural. A

responsabilidade da elaboração e implantação de uma política cultural, não deve estar

apenas a cargo do Estado. A sociedade civil, entidades privadas, representações de

classe e grupos comunitários devem compartilhar dos deveres e responsabilidades dessa

elaboração.

No segundo capítulo, farei uma imersão no contexto baiano da elaboração e

aplicação da política cultural pelo Governo do Estado. Como o recorte temático e temporal

desta pesquisa é a elaboração e aplicação da política cultural na Bahia de 2007 a 2010 e

suas possíveis implicações nos processos criativos, começarei apresentando qual era o

panorama pré 2007 e como se deu a construção do pensamento para a gestão da cultura

de 2007 a 2010. Observaremos como funcionou a subvenção do Governo do Estado,

através da sua Secretaria de Cultura (SECULT) e instituições agentes para financiamento

de projetos na dança de 2007 a 2010. Trataremos da estrutura e de alguns mecanismos

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de fomentos adotados pela secretaria.

Para finalizar o segundo capítulo, falarei especificamente sobre os editais. Os

editais foram o principal instrumento de aplicação da política cultural pelo Governo da

Bahia. Com os editais, a gestão estadual conseguiu ampliar os recursos destinados a

projetos artístico-culturais, descentralizar e a democratizar a distribuição destes recursos,

bem como dar uma maior transparência ao processo de seleção de projetos. Contudo, os

editais foram adotados de forma tão hegemônica que começaram a apresentar possíveis

implicações nos processos criativos.

Para entender melhor essas implicações na forma de pensar e de criar em dança,

darei ouvido à fala de artistas da área que, ao responder um questionário elaborado para

a realização desta pesquisa, apresentaram suas impressões sobre a gestão da cultura

realizada na Bahia de 2007 a 2010 e também em comparação à gestão anterior. Os

artistas também falarão sobre a sua forma de trabalhar diante da lógica que atribui aos

editais o protagonismo no acesso aos recursos públicos. Para responder aos

questionários convidei artistas que criaram seus trabalhos dentro destes dois contextos,

até 2006 e a partir de 2007.

No terceiro capítulo apresentarei duas criações em dança que têm a burocracia e

as questões que permeiam a distribuição de recursos públicos, como matéria de sua

criação artística. Neste capítulo analisarei os espetáculos “A Projetista”, da dançarina

diretora e coreógrafa mineira Dudude Herrmann, e “Edital”, espetáculo em forma de

palestra, que criei em parceria com os artistas Leonardo França e Neto Machado.

O espetáculo “A Projetista” estreou em 2011 e com ele Dudude Herrmann celebrou

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seus 40 anos de carreira. Neste espetáculo-manifesto, a coreógrafa discursa sobre a

obrigatoriedade da elaboração de um projeto e submissão a um edital, para que se

consiga recursos públicos que viabilizem a sua realização.

Já “Edital” é uma obra que apresenta a minha narrativa, enquanto artista e

produtor, numa situação de criação artística buscando entender e problematizar de que

forma estes fazeres estão implicados. Com “Edital”, uso a burocracia como tema do

espetáculo e faço uma crítica política. Apresento a obra como exposição de um problema

social, no qual, nós, sujeitos da dança, podemos estar condicionados a tal dita “política de

editais”, que não pode ser entendida como sinônimo de política pública. Embora a

adoção, cada vez mais frequente, de editais como instrumento de distribuição de recursos

públicos para a cultura, seja popularmente nomeada de “política de editais”, preciso

ratificar que os editais são apenas instrumentos utilizados para a aplicação de algumas

metas de uma política pública. Os editais são ferramentas da política e não a própria

política. Entender que os editais públicos são a própria política pública para a cultura,

infere no erro de limitar a política pública apenas à distribuição de recursos para a

realização de projetos culturais.

No espetáculo “Edital”, busco apresentar uma visão crítica a partir dessa

experiência sobre o fazer artístico e político em dança. Pretendo, com isso, indicar aos

artistas que transitam entre produção e fazer artístico, uma reflexão sobre as possíveis

relações entre a criação em dança, e os editais enquanto instrumentos de aplicação de

uma política pública para a área da dança.

Para analisar “Edital”, vou apresentar o contexto no qual ele foi criado, o novo

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lugar da criação que fui constrangido a estar, mediante a aprovação em dois editais.

Tratarei também sobre a publicação do edital em si. Edital este que foi lançado para a

aquisição de uma obra autoral, afim de que eu pudesse desenvolver o meu processo

criativo. E por fim, falarei sobre a composição do espetáculo enquanto uma criação em

dança configurada a partir de outras criações.

Nas considerações finais, que penso não como finais mas como contribuições

temporárias, uma vez que este é um processo que não apresenta a um quadro definitivo,

procuro disparar ou provocar reflexões sobre o constrangimento, no sentido de imposição,

que as criações artísticas vinculadas à subvenção através de editais, passam a ter a

necessidade de obedecer. Finalizo esta etapa do trabalho defendendo que, em

determinadas circunstâncias, as políticas culturais podem limitar e/ou restringir o trabalho

de criação dos artistas comprometendo os processos criativos. Haja visto que todo

mecanismo de fomento, é, por natureza, restritivo. Se a criação do artista está vinculada a

algo fora da criação em si, como por exemplo um edital, isso, por si só, já implica em

limitações na criação.

Contudo, a falta de outro mecanismo que o substitua, o edital, continua sendo

identificado como a ferramenta mais eficiente e transparente na partilha dos recursos

públicos para projetos artístico-culturais.

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CAPÍTULO 1

GESTÃO CULTURAL – PARA A ARTE, A POLÍTICA

Este primeiro capítulo tem por finalidade contextualizar o campo que proponho

como discussão nesta dissertação. Para isso, apontarei alguns caminhos para o

entendimento de Cultura e Política Cultural, atualizando-os.

Segundo Gilberto Gil1 (2003), “quando falamos de saúde, superávit primário,

preservação ambiental ou obras de infraestrutura, todos sabem a que estamos nos

referindo. Mas quando empregamos a palavra cultura, não é bem isso o que acontece”.

Para que possamos minorar este problema apresentado por Gil e avançar nas discussões

propostas neste trabalho, proponho que comecemos apontando uma direção para a

compreensão da palavra cultura.

Tradicionalmente, quando nos deparamos com a palavra cultura, o senso comum a

associa imediatamente a um conjunto de fazeres artísticos como o teatro, balé, música

clássica, literatura, ou seja, ele endossa o coro que entende a cultura como essas práticas

desenvolvidas na cultura ocidental europeia, dita “cultura superior”, deixando

subentendido que as práticas que não cabem neste universo são chamadas de “cultura

de massa”, ou como “folclore”.

1 Cantor, compositor, multi-instrumentista e intelectual brasileiro que foi Ministro da Cultura do Brasil de 2003 a 2008.

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Raymond Williams (1992), acadêmico e crítico inglês, se apropriou da noção

antropológica de cultura como um modo de vida, com o objetivo de mostrar que é algo

comum a toda a sociedade. Nesse sentido, ele estaria rompendo com a ideia de que a

cultura era cultura de elite, ainda presente no contexto em que escrevia. Essa concepção

apropriada da antropologia ajuda a mostrar como diferentes significados e valores

organizam a vida social comum. Nesse sentido, a cultura deixa de ser um resultado ou

reflexo de uma determinada base, mas passa a ser encarada como aspecto importante,

isto é, ativo na organização social. Ou seja, a cultura se torna elemento constitutivo do

processo social.

Nussbaumer2 (2012) remonta que, fundamentado em Williams, Eagleton3 (2005)

reflete sobre três sentidos distintos, atribuídos à palavra cultura, que foram sistematizados

pelo pesquisador inglês. O primeiro seria a cultura como “civilidade ou civilização”, uma

noção francesa que remonta aos costumes e à moral do século XVIII; o segundo sentido

seria o de “modo de vida característico”, oriundo do idealismo alemão, que abraça a

romantização da cultura popular; e o terceiro, como “especialização às artes”, que

direciona para a atividade intelectual ligada à ciência e à filosofia e às artes canônicas

como as artes plásticas, literatura, música clássica etc. Gisele Nussbaumer destaca a fala

de Eagleton, quando ele diz que o problema em relação a essa variante é que “[...] tão

logo cultura venha a significar erudição e as artes atividades restritas a uma pequena

proporção de homens e mulheres, a ideia é ao mesmo tempo intensificada e

2 Gisele Nussbaumer dedica-se a estudos e projetos na área de cultura, com ênfase em políticas culturais, gestão e produção cultural, públicos da cultura e cibercultura. Possui mestrado em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo/USP (1997) e doutorado em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia/UFBA (2004). Foi Diretora Geral da Fundação Cultural do Estado da Bahia/FUNCEB, instituição responsável pelas políticas públicas para as linguagens artísticas no estado, de janeiro de 2007 a março de 2011. 3 Terry Eagleton é filósofo e crítico literário britânico com vasta publicação sobre cultura.

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empobrecida”. (EAGLETON, 2005, p.29). Para ela, “os três sentidos da palavra cultura,

sistematizados por Williams e retomados por vários outros autores, como Eagleton, não

são facilmente separáveis e persistem até os dias atuais”. (NUSSBAUMER, 2012, p. 91)

A visão de Cultura que será desenvolvida neste capítulo (antropológica e

sociológica), sistematizada por Brunner4 (1993), contribui para que possamos dar acesso

à multiplicidade cultural brasileira dos bens de produção e de serviços simbólicos.

Perceber cultura, a partir deste prisma, colabora também para que possamos entender

política cultural de uma forma não restritiva. Para pensar políticas públicas para a Cultura,

é necessário entender este ambiente como um espaço de realização da cidadania.

1.1 – SOCIOLÓGICA E ANTROPOLÓGICA: PERCEBENDO A CULTURA EM DUAS

DIMENSÕES.

Antes de apresentar uma possível delimitação para a palavra cultura numa única

definição, vale ressaltar de início que, tal tentativa, segundo Eneida Leal Cunha5 (2009.

p.74), em seu texto “A emergência da cultura”, “corresponde sempre a um ato de

restrição”, pois “já não somos capazes de enunciar um conceito de cultura que dê conta

de todas as suas dimensões”.

4 Pesquisador e sociólogo chileno. 5 Eneida Leal Cunha tem doutorado em Literaturas de Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1993). Professora Titular de Literatura Brasileira da Universidade Federal da Bahia. Atualmente é Professora Associada no Departamento de Letras PUC-RIO onde, desde 2011, é coordenadora adjunta do Programa de Pós-Graduação em Literatura, cultura e contemporaneidade.

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Porém, para que possamos avançar para um entendimento que nos possibilite

pensar estrategicamente as políticas culturais, utilizarei, a seguir, a proposta do sociólogo

chileno José Joaquín Brunner (1993, apud BOTELHO, 2001) que categorizou a cultura

em duas dimensões: a antropológica e a sociológica e essa categorização foi

sistematizada e retrabalhada pela pesquisadora Isaura Botelho6.

Embora sejam distintas, as duas abordagens – antropológica e sociológica –

ambas não são excludentes e são igualmente importantes. A abordagem sociológica da

cultura considera uma rede organizada e complexa que estimula a produção cultural

através de demandas profissionais, institucionais, políticas e econômicas. Segundo

Botelho, “...trata-se de um circuito organizacional que estimula, por diversos meios, a

produção, circulação e o consumo de bens simbólicos.” (BOTELHO, 2001, p.5)

Trata-se de uma produção concebida com o objetivo de elaborar significados

específicos para públicos igualmente específicos. Essa perspectiva se aproxima de uma

noção para compreender a cultura como algo restrito a apenas alguns indivíduos de

determinada sociedade. É sob esta dimensão da cultura que as artes se inserem. Esta é a

dimensão organizacional da cultura. Sendo assim, distancia o conceito de cultura das

experiências cotidianas e das dimensões políticas e disputas sociais, já que seria uma

ação deliberada, ou seja, seria uma ação pensada com um objetivo específico e

direcionado para um público pré-determinado. Pensar cultura desta forma pode incorrer

6 Pesquisadora e atuante na área de gestão e política cultural há quase trinta anos. Possui graduação em Português Literaturas de Língua Vernácula pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Mestrado profissionalizante em Politiques Culturelles at Action Artistique pela Université de Bourgogne, Mestrado em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo, Pós-doutorado pelo Département des Éstudes et de la Perspective du Ministère de la Culture. Atualmente, presta serviços de consultoria a instituições como o Ministério da Cultura, Fundação Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, SESC SP, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, nas áreas de formação de gestores e de pesquisa.

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no erro de não tratá-la sob uma perspectiva política, pertencente a um jogo de poder e

acabar por isolá-la perante as outras áreas como saúde, educação, infraestrutura etc.

Tendo esse viés mais atrelado à produção artística, a dimensão sociológica

demanda um “conjunto de fatores que propiciem ao indivíduo, condições de

desenvolvimento e aperfeiçoamento de seus talentos, da mesma forma que depende de

canais que lhe permitam expressá-los” (BOTELHO, I. 2001, p.5). Essa característica

permite que a elaboração de ações para a execução de uma política pública para a

Cultura possa ganhar uma “concretude” maior, já que possibilita ao setor um aspecto mais

mensurável. Permite que a cultura possa ser mais facilmente observada, analisada e

passível de interferência. Contexto diferente da dimensão antropológica, conforme

Botelho:

Em outras palavras, a dimensão sociológica da cultura refere-se a um conjunto diversificado de demandas profissionais, institucionais, políticas e econômicas, tendo, portanto, visibilidade em si própria. Ele compõe um universo que gere (ou interfere em) um circuito organizacional, cuja complexidade faz dela, geralmente, o foco de atenção das políticas culturais, deixando o plano antropológico relegado simplesmente ao discurso. (BOTELHO, 2001, p. 5)

Na dimensão antropológica, cultura é todo o bem simbólico produzido por

determinado grupo de indivíduos. A cultura seria fruto da interação social, da construção

de valores. É o conjunto de atitudes, crenças e sentimentos de determinado coletivo.

[...]aqui se fala de hábitos e costumes arraigados, pequenos mundos que envolvem as relações familiares, as relações de vizinhança e a sociabilidade num sentido mais amplo, a organização diversos espaços por onde se circula habitualmente, o trabalho, o uso do tempo livre, etc. Dito de outra forma, a cultura é tudo que o ser humano elabora e produz, simbólica e materialmente falando. (BOTELHO, 2001, p. 4)

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A partir da citação acima, podemos entender que seria a “articulação de padrões

de comportamentos apreendidos socialmente através do processo de transmissão de

tradições e ideias” (BENEDICT7, 1934: 14-16). De acordo com Gilberto Gil8, quando ainda

Ministro da Cultura, em discurso na solenidade de transmissão de cargo e também em

pronunciamento para parlamentares brasileiros na Comissão de Educação, Cultura e

Desporto da Câmara dos Deputados, a cultura no contexto brasileiro deve ser entendida

“da forma mais ampla e realista possível, levando em conta tanto a unidade quanto a

multiplicidade cultural brasileira” (GIL, 2003, p. 45).

[...] Cultura como aquilo que, no uso de qualquer coisa, se manifesta para além do mero valor de uso. Cultura como aquilo que, em cada objeto que produzimos, transcende o meramente técnico. Cultura como usinas de símbolos de um povo. Cultura como conjunto de signos de cada comunidade e de toda uma nação. Cultura como o sentido de nossos atos, a soma de nossos gestos, o senso de nossos jeitos. (GIL, 2003, p. 10)

Embora as duas dimensões para a Cultura não devam ser trabalhadas

separadamente, e nem de forma dicotômica, o discernimento entre a dimensão

antropológica e a sociológica é importante para pensar estrategicamente as políticas

culturais. A dimensão sociológica seria o aspecto operacional da cultura e, na dimensão

antropológica, cultura é todo o conjunto de bens simbólicos produzidos por determinado

grupo de indivíduos.

Desta forma, torna-se um grande desafio para os gestores públicos da cultura

construir uma política no imprevisível campo da dimensão antropológica da cultura. A

7 Ruth Benedict foi uma antropóloga amaricana autora de “Padrões de Cultura” (1934). 8 Vale ressaltar a importância de Gilberto Gil para este estudo, enquanto Ministro da Cultura, haja visto que foi com o início da sua gestão que se configurou a atual estrutura e contexto da política cultural adotada em esfera nacional, através no Ministério da Cultura, que repercutiu na Bahia e, posteriormente, no Governo do Estado da Bahia, por meio da Secretaria de Cultura.

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ausência de mecanismos de mensuração dos meios de expressão e difusão e, por

conseguinte, visibilidade inerente à dimensão sociológica da cultura, deixa quase sempre

“o plano antropológico relegado simplesmente ao discurso” (BOTELHO, I. 2001, p.74)

1.2 – DE VARGAS A LULA – APANHADO HISTÓRICO DAS POLÍTICAS CULTURAIS

NO BRASIL.

Antes de falar da política cultural existente hoje, farei uso de estudos feitos por Lia

Calabre9 (2006) e apresentarei um breve histórico de como esse contexto foi

desenvolvido no Brasil, até chegar na entrada de Gilberto Gil no Ministério da Cultura em

2003.

As primeiras políticas públicas de cultura no Brasil foram propostas durante o

governo de Getúlio Vargas (1930-1945). Neste período, foi adotada uma série de medidas

que tinha por objetivo dar uma maior formalidade ao setor cultural. As principais ações

neste sentido foram: a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

(SPHAN), em 1937, a criação do Instituto Nacional do Livro (INL) e do Instituto Nacional

de Cinema Educativo (INCE), em 1938. Neste mesmo ano, também foi criado o primeiro

Conselho Nacional de Cultura.

9 Possui doutorado em História pela Universidade Federal Fluminense (2002). Atualmente é pesquisadora e chefe do Setor de Estudos de Política Cultural da Fundação Casa de Rui Barbosa. Tem experiência na área de história cultural e política, com ênfase em Políticas Públicas de Cultura, atuando principalmente nos seguintes temas: política cultural, gestão cultural, rádio, Brasil-história, cultura, meios de comunicação de massa e rádio nacional.

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No período seguinte (1945–1964), foi a iniciativa privada quem deu o maior salto e,

por parte do Estado, em 1953, o Ministério da Educação e Saúde foi desmembrado,

surgindo o Ministério da Saúde (MS) e o Ministério da Educação e Cultura (MEC).

Instituições privadas como o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e o Museu de

Arte de São Paulo, por serem, naquele momento declaradas instituições de utilidade

pública, passaram a receber recursos do governo, mesmo que de forma descontinuada.

O então Presidente da República, Jânio Quadros, recriou em 1961 o Conselho

Nacional de Cultura que, neste período, era subordinado à Presidência da República; o

conselho era formado por comissões de áreas artísticas, que tinham por objetivo elaborar

planos nacionais de cultura.

Com o início do Governo Militar, em 1964, o estado retomou o projeto de

institucionalização do campo da produção artística no país e, por consequência, da

elaboração de uma política para a cultura. No ano de 1966, foi formada uma comissão

para estudar e reformular o Conselho Nacional de Cultura, de forma a “dotá-lo de

estrutura que possibilitasse assumir o papel de elaborador de uma política cultural de

alcance nacional” (CALABRE, 2006). Esta ação resultou na criação do Conselho Federal

de Cultura (CFC), composto por membros indicados pelo Presidente da República.

Durante o Governo Militar, embora o período tenha sido marcado pela censura,

repressão e perseguição a muitos artistas, principalmente àqueles que, com suas obras,

apresentavam um posicionamento de embate à conjuntura política completamente

castradora da ditadura brasileira, algumas ações contribuíram, de alguma forma, com

uma parcela dos agentes culturais.

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A intervenção do governo militar na área cultural envolve motivos diversos e

bastante complexos, os quais devem ser rigorosamente tratados, em um estudo

específico sobre o tema, através de uma rede de relações políticas, econômicas e

socioculturais. Portanto, se os militares visavam ocultar a face autoritária do Regime

Militar com o intuito de refazerem a sua base de sustentação via o apoio de setores da

classe média urbana e de outros grupos sociais, bem como do meio artístico e intelectual,

ou se o interesse estava centrado em promover uma reorganização geral da sociedade

baseada na internacionalização de valores e de padrões de comportamento, bem como

na identidade nacional, tomando a cultura como mero instrumento dos seus objetivos, é

algo difícil de mensurar, posto que todos esses fatores concorreram para delimitar os

interesses dos militares, assim como dos opositores ao regime.

Através de apoio financeiro, pelo Estado, eventos e projetos nas áreas da música,

teatro, circo, folclore e cinema circulavam pelo país. A dança ainda não estava

contemplada dentro das metas do governo. Neste período, a atuação do estado não se

restringiu à esfera federal. Algumas secretarias de cultura e conselhos de cultura foram

criados em alguns estados e municípios, contribuindo, desta forma, para a criação de um

Ministério independente.

Com o fim da ditadura e início do Governo Sarney, em 1985, foi criado o Ministério

da Cultura, o qual, com sua recente criação, passou por sérios problemas, como falta de

verba e de pessoal. Na tentativa de criar novas fontes de recursos, foi criada a primeira

Lei de Isenção Fiscal (Lei n 7.505, de 02 de junho de 1986, conhecida como Lei Sarney).

De 1990 a 1991, o Governo Federal, sob a Presidência de Fernando Collor de

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Mello, pouco fez para fortalecer e fomentar a área cultural, o que acabou enfraquecendo

ainda mais o Ministério e, por consequência, a Lei Sarney foi revogada. Em 23 dezembro

de 1991, este mesmo governo promulgou a Lei 8.313, que instituiu o Programa Nacional

de Apoio à Cultura. Esta lei, que ficou conhecida como Lei Rouanet, também se baseava

na renúncia fiscal para injetar recursos no campo cultural. No Governo de Itamar Franco,

foi “recriada” a FUNARTE (Fundação Nacional das Artes). A criação da FUNARTE data

de 1975, ainda durante o regime militar; porém, em março de 1990, ao assumir o governo,

o então presidente Fernando Collor de Mello extinguiu a FUNARTE e criou o IBAC

(Instituto Brasileiro de Arte e Cultura). Esta instituição, em 1994, durante o governo de

Itamar Franco, passou a ser chamada novamente pela sigla FUNARTE. Também no

governo Itamar Franco, foi criada a Lei de Incentivo específica para o Audiovisual.

Ficou claro, nessas primeiras seis décadas de tentativas de pensar e aplicar as

ações para a organização de uma possível política pública, o quão essa área – como

muitas outras áreas de interesse da atuação estatal – fica à mercê de cada gestão

governamental. Esse contexto mostra o quanto a cultura, com a criação, desmanche,

extinção e renomeação de suas instituições e agentes públicos sempre sofreu com um

pensamento estratégico para o setor que não ultrapassavam suas ações para além de

interesses partidários e de jogos de poder, uma vez que pouco se pensava na

continuidade de programas e instituições desenvolvidos em gestões anteriores.

Contudo, foi nos dois mandatos do Presidente Fernando Henrique Cardoso,

período que compreendeu de 1995 a 1998 e de 1999 a 2002, que essa forma de

distribuição de recurso público (através de lei de incentivo) ganhou mais força e o Estado

delegou à iniciativa privada o poder de decisão sobre o destino da verba pública. A

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distribuição dos recursos públicos era feita pelos departamentos de marketing das

grandes empresas, que passaram a utilizar a lei como um instrumento para a

implementação do seu marketing cultural.

A Lei Rouanet funciona da seguinte forma: o proponente apresenta uma proposta

cultural ao Ministério da Cultura (MinC) e, caso esta seja aprovada, é autorizado a captar

recursos junto a pessoas físicas pagadoras de Imposto de Renda (IR) ou empresas

tributadas com base no lucro real, visando à execução do projeto. Ou seja, as grandes

empresas, que são as principais utilizadoras deste mecanismo, utilizam a verba pública

dos seus Impostos de Renda para realizar patrocínios culturais. Sendo assim, são os

departamentos de marketing dessas empresas que elegem quais projetos são

merecedores de receber o montante financeiro destinado pelo Governo Federal para a

área cultural, através deste mecanismo de fomento, de acordo com o público alvo e perfil

de atuação de cada empresa, que, obviamente, tem suas marcas atreladas aos projetos

culturais que patrocinam.

Com o fortalecimento da Lei Rouanet, o Estado se isentou do seu papel de

propositor de políticas culturais, o que acabou por enfraquecer ainda mais o Ministério da

Cultura. Este foi o panorama encontrado pelo Ministro Gilberto Gil, quando do início do

Governo do Presidente Lula. Este panorama sofreu uma sensível mudança quando do

enfoque dado à dimensão antropológica da cultura, por parte desta nova gestão.

Esse conceito amplo acrescentou que as ações do Ministério da Cultura seriam

compreendidas como exercícios de antropologia aplicada e que, mesmo com a ressalva

de que não cabe ao Estado fazer cultura, afirmou que o acesso à cultura é um direito

básico de cidadania e que, ao Estado, cabe retomar a sua função específica e inevitável,

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baseada na compreensão de que formular políticas públicas para a cultura é, também,

produzir cultura.

Neste sentido, seguirei apresentando alguns aspectos importantes da gestão de Gil

no Minc no próximo subcapítulo.

1.3 – POLÍTICAS CULTURAIS: DEVERES E RESPONSABILIDADES

COMPARTILHADAS.

Para apresentar o entendimento de política cultural, proponho, como recorte inicial,

a definição dada pelo pesquisador da área, Teixeira Coelho10 (1997, p.293), como sendo

um "programa de intervenções realizadas pelo Estado, por instituições civis, entidades

privadas ou grupos comunitários com o objetivo de satisfazer as necessidades culturais

da população e promover o desenvolvimento de suas representações simbólicas". Tal

perspectiva já nos aponta para as políticas públicas para a Cultura como não sendo

exclusivamente de responsabilidade do poder público.

É, sobretudo neste sentido, que compartilho a definição proposta por Coelho. Não

podemos supor que a responsabilidade quanto à proposição e implementação das

políticas públicas para a Cultura – e no contexto que nos interessa, para a Dança – seja

de exclusiva responsabilidade do Estado, através de suas instituições e seus agentes. A

sociedade civil tem grande poder de contribuição para a criação de estratégias mais

10 Teixeira Coelho é museólogo, acadêmico e professor universitário autor do livro “Dicionário Crítico da Política Cultural” (1999).

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eficazes para o desenvolvimento de políticas que atendam suas metas e objetivos.

Enfoque também defendido pela pesquisadora e professora Lúcia Matos11, conforme

citação abaixo:

[...] Não dá mais para entender políticas públicas como atos de intervenção apenas do Estado; isso tem que ser cada vez mais descentralizado, proposto por diferentes grupos sociais e instituições, o que poderá contribuir para a construção de políticas públicas mais descentralizadas e polifônicas.(MATOS, 2013, p. 18)

Esta perspectiva de corresponsabilidade entre Estado e sociedade civil também é

partilhada por Isaura Botelho:

O Estado fomentador é aquele que vê com clareza os problemas que afetam a área cultural em todos os elos da cadeia de criação – produção, difusão, consumo – e sabe se posicionar, dividir responsabilidades com potenciais parceiros governamentais em todas as instâncias administrativas e, finalmente, conclamar a sociedade a assumir a sua parte. (BOTELHO, 2001, p.14)

Por conta do perfil institucionalizado, a abordagem sociológica acaba se tornando o

centro das políticas culturais, já que, dentro desse contexto, as ações em políticas

públicas são mais visíveis e exequíveis de aplicação, uma vez que se trata de uma

matéria passível de previsão e diagnósticos mais mensuráveis, como, por exemplo, dados

quantitativos quanto ao número de peças de dança ou teatro, exposições, shows

musicais, público atingido etc. O grande problema em relação à proposição de políticas

públicas norteadas apenas por essa abordagem de cultura decorre da possível restrição e

pouca complexidade das suas atuações, confinando-se à cultura “produzida”.

11 Pesquisadora, Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em dança da Universidade Federal da Bahia e Diretori de Dança da Fundação Cultural do Estado da Bahia (2007 – 2009).

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A dimensão antropológica que, por sua vez, considera a produção de cultura a

partir da interação social dos indivíduos, a partir do que o ser humano elabora e produz,

simbolicamente e materialmente, acaba por tornar mais complexa a execução de uma

política cultural. Já que sua matéria é tudo que é construído por determinada sociedade,

seja enquanto bem simbólico ou material, uma política cultural, por essa perspectiva de

cultura, passa por ações que não só seriam destinadas ao atendimento das demandas do

fazer artístico, mas, também, a outros aspectos sociais e econômicos, como por exemplo,

a saúde, o trabalho, a mobilidade urbana, demais aspectos que dizem respeito à

qualidade de vida de determinado grupo.

A questão mais importante da dimensão antropológica é o fato dela passar também

por outras áreas de ação do governo. Ao pensarmos cultura pelo prisma antropológico,

precisamos relacioná-la a outras esferas de responsabilidade do Estado, independente

dessas áreas terem sua contraface cultural. É por isso que as políticas culturais sozinhas

não conseguem atingir a complexidade do plano da cultura no cotidiano; são de fato

políticas transversais que amparam este tecido tornando-o lógico e possível. Isso se dá

porque o entendimento de cultura passa por uma questão de qualidade de vida; neste

sentido, as políticas culturais precisam vir amalgamadas pelas ações ligadas ao

transporte, saúde, trabalho, infraestrutura e demais campos de atuação do Estado, para

que tenham alguma eficácia.

Outro fator marcante da abordagem antropológica diz respeito ao seu perfil

democrático, o qual considera todos os indivíduos como produtores de cultura.

Embora uma das principais limitações políticas culturais seja o fato de nunca alcançarem, por si mesmas, a cultura em sua dimensão antropológica, esta dimensão é, no entanto,

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geralmente eleita como a mais nobre, já que é identificada como a mais democrática, em que todos são produtores de cultura, pois ela é a expressão dos sentidos gerados interativamente pelos indivíduos, funcionando como reguladora dessas relações e como base da ordem social. Por isso mesmo, ela acaba sendo privilegiada pelo discurso político, principalmente nos países do Terceiro Mundo, onde os problemas sociais são gritantes e suas economias dependentes. (BOTELHO, 2001, p. 7)

Por mais que meu objeto de estudo, que é o fazer artístico-político, se aproxime

mais da dimensão sociológica, por se tratar de criação artística, acredito que o

entendimento de cultura, enquanto produto da interação social dos indivíduos, seja mais

potente porque, além de não excluir a produção artística “sistematizada”, também

contempla aspectos identitários dos variados grupos sociais, por exemplo.

Foi com um discurso balizado pela dimensão antropológica da cultura que, Gilberto

Gil, ainda no seu primeiro ano, no comando do Ministério da Cultura, posicionou o

Governo Federal como principal responsável pela proposição de uma efetiva política

pública para a Cultura e o faz retomar sua função perante a sociedade:

[...]Assim compreendida, a cultura se impõe, desde logo, no âmbito dos deveres estatais. É um espaço onde o Estado deve intervir. Não segundo a velha cartilha estatizante, mas mais distante ainda do modelo neoliberal que faliu. Vemos o Governo como um estimulador da produção cultural. Mas também, através do MinC, como formulador e executor de políticas públicas e de projetos para a cultura. Ou seja: pensamos o Ministério da Cultura, no contexto em que o Estado começa a retomar o seu papel na sociedade brasileira. (GIL, 2003, p. 10)

Desde o início da gestão de Gilberto Gil no Ministério da Cultura, dentro do primeiro

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mandato do presidente Lula, o Governo Federal, através de suas instituições

encarregadas de pensar e implementar uma política para a cultura, tem adotado o que

vem sendo chamado pelos agentes culturais de “política de editais” como forma de

fomento e dinamização democrática e transparente, a curto prazo, dos recursos públicos.

Vale salientar que os editais não são políticas públicas, mas sim instrumentos de

realização dessas políticas. Neste ponto, encontramos o que vai ser desenvolvido no

segundo capítulo, onde refletiremos sobre essa dita “política de editais” por meio de um

fazer artístico, uma obra.

Para além do fazer artístico, os editais não foram adotados exclusivamente para a

distribuição de recursos ligados à produção e difusão de ações ligadas estritamente a

alguma linguagem artística como a dança, ou o teatro, por exemplo. Talvez a ação mais

contundente do Ministério da Cultura, na citada gestão, esteja ligada aos editais dos

Pontos de Cultura12. Criado em 2004, este edital visava contemplar os Pontos que

desenvolvem ações de impacto sociocultural em suas comunidades, o que não só

dissemina as práticas culturais, como também aproxima o público de um mundo que até

pouco tempo atrás era privilégio de poucos. A valorização dos Pontos de Cultura

descentralizou a política cultural em favor de diversas comunidades e grupos sociais, os

quais passaram a ser representados e incluídos de certa forma por esses espaços.

O modelo de gestão da cultura e política cultural, adotado pelo Governo Federal,

desde 2003, só foi adotado no Governo da Bahia, em 2007, quando houve o alinhamento

12 Os Pontos de Cultura são um Programa do Governo Federal que promove o estímulo às iniciativas culturais da sociedade civil já existentes, por meio da consecução de convênios celebrados após a realização de chamada pública.

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partidário da gestão local. Naquele ano, com a eleição de Jaques Wagner como

Governador do Estado da Bahia, a esfera estadual passou a ser comandada pelo mesmo

partido político que atuava na esfera federal, o Partido dos Trabalhadores (PT). Este

alinhamento partidário introduziu a Bahia neste contexto das políticas públicas,

executadas prioritariamente através de editais.

No segundo capítulo, será apresentada a gestão cultural no contexto baiano. Como

se deu esse alinhamento com o governo federal, no âmbito cultural e de que forma a

política pública para a cultura passou a ser implementada.

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CAPÍTULO 2

CONTEXTO BAHIA

Neste segundo capítulo, abordarei o contexto da gestão da cultura na Bahia. Nele,

serão apresentados alguns aspectos da gestão política cultural adotada pelo Governo da

Bahia, através da Secretaria de Cultura, desde o ano da sua criação em 2007, até o ano

de 2010, quando se encerrou a gestão que tinha à frente o então secretário Márcio

Meirelles. Serão observados também os dispositivos de fomento mais aplicados no

período e principalmente os editais, que passaram a ser as ferramentas mais utilizadas na

distribuição de recursos para apoios a projetos culturais.

Para colaborar e problematizar as observações propostas por mim, darei ouvido à

fala de artistas da dança e gestores do estado, que viveram os dois momentos – pré e

pós 2007 – a fim de entender como eles percebiam esses contextos tão diferentes. Para

que se possa ter um melhor parâmetro para a observação da gestão (2007/2010) que é o

foco desta pesquisa, farei uma breve introdução sobre qual era o modelo de gestão

adotado pelo Governo da Bahia no mandato imediatamente anterior ao que se iniciou em

2007.

Serão observados também os dispositivos de fomento mais aplicados na ação da

Secretaria de Cultura de 2007 a 2010 e, em especial, com atenção aos editais, que

passaram a ser as ferramentas mais utilizadas na distribuição de recursos para os apoios

a projetos culturais, nas mais diversas linguagens, inclusive para a dança.

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2.1 – BAHIA: ONCE UPON A TIME...

Como o objetivo deste subcapítulo é apresentar de que forma eram realizadas as

ações de fomento, pelo Governo da Bahia, observaremos apenas o ano de 2006, que é o

ano imediatamente anterior à mudança da gestão.

Até o ano de 2006, a criação do pensamento para a política pública, não contava

com a participação da classe artística, enquanto sujeitos agentes. Nenhuma consulta

prévia, para que fossem apresentadas demandas, sugestões, ou qualquer outra forma da

participação da sociedade civil era adotada. Todas as decisões sobre os caminhos da

política pública para a cultura eram tomadas dentro dos gabinetes do próprio governo do

estado. De acordo com a dançarina e coreógrafa Clara Trigo13, “não havia diálogo,

sondagem ou qualquer tipo de mapeamento de demandas com a classe artística”.

Como em 2006 não existia uma secretaria de governo exclusiva, o pensamento

para a cultura era formado dentro do contexto da Secretaria de Cultura e Turismo.

Durante todo o tempo em que a Cultura partilhava da mesma pasta do Turismo, ela foi

gerida por Paulo Gaudenzi, período que durou os três mandatos (1995 a 2006), do

governo do extinto PFL (Partido da Frente Liberal), atual Partido Democratas.

Sobre a união da cultura e turismo em uma única pasta, observa-se que a fusão

das áreas conferiu especificidade ao modo de gestão da cultura e possibilitou o

atrelamento do cumprimento de suas políticas culturais a uma estratégia que lança mão 13 Clara Trigo é Mestra em Artes Cênicas – PPGAC – UFBA, Graduada em Licenciatura e Bacharelado em Dança pela Escola de Dança – UFBA; dançarina, coreógrafa e professora; Inventora do Flymoon®, equipamento e sistema de movimento; dirige e produz o programa independente sobre dança SUA DANÇA, exibido online e na TVE-Ba.

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de um discurso que reinventa a identidade baiana, tentando, desse modo, promover a

modernização cultural e turística do Estado com o propósito de transformar a Bahia em

lugar identificado ao consumo cultural, inserido-a, assim, no mercado global de bens

simbólicos.

A Cultura, antes de ser pensada como um fator de melhoria e transformação social,

foi sempre colocada como uma área predominantemente econômica para o fortalecimento

do Turismo. Rubim14 (2007) esclarece que, durante todo o período em que a cultura

esteve subordinada aos interesses do turismo, algumas graves distorções ocorreram, a

exemplo do desconhecimento de temas atuais como “cultural digital, economia criativa,

redes culturais, estudos da cultura, formação de organizadores da cultura e sistema

nacional de cultura”, trazendo, assim, grande prejuízo para a atualização necessária da

cultura na Bahia. O autor também critica a quebra das relações plurais e democráticas

com a diversidade da sociedade na Bahia, além da imposição de uma identidade única

para o Estado.

De acordo com relatórios da SECULT, no ano de 2006, a Secretaria de Cultura e

Turismo, através da Fundação Cultural do Estado da Bahia (FUNCEB), destinou um total

de R$ 3.864.732,00 para a área da dança. Neste montante está incluída a verba para a

manutenção do Balé do Teatro Castro Alves, que levava aproximadamente 65,6% deste

total; a da Escola de Dança da FUNCEB, que entre proventos e reformas ficava com, com

aproximadamente, 21,8%. Desta forma, apenas 12,6% do orçamento destinado à dança

14 Albino Canelas Rubim é formado em Comunicação pela Universidade Federal da Bahia (1975) e em Medicina pela Escola Baiana de Medicina (1977), mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia (1979), doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (1987) e pós-doutor em Políticas Culturais pela Universidade de Buenos Aires e Universidade San Martin (2006). Professor titular da Universidade Federal da Bahia; docente do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade e do Programa de Artes Cênicas, ambos da UFBA. É o atual Secretário de Cultura da Bahia, com gestão iniciada em 2011.

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pelo governo do estado eram reservados para a classe artística. Esta distribuição para a

classe era feita através de editais de montagem e circulação (R$ 197.000,00), Projeto

Quarta Que Dança (R$ 120.000,00), apoios diretos e intercâmbios (R$ 166.292,00).

(Fonte: Fundação Cultural do Estado da Bahia)

Uma constatação é que, do valor que era destinado à classe da dança, quase 35%

do montante ficavam destinados diretamente para os executores dos projetos, prática que

vulgarmente é conhecida como “apoio de balcão”. Esta forma de distribuição não atendia

critérios claros e transparentes e sempre criava um desconforto e descontentamento de

grande parcela da classe da dança, que não conseguia apoio financeiro para a realização

dos seus projetos. Sobre a gestão que finalizou em 2006, vejamos o que diz o dançarino

Edu O. 15 (2014):

O que acontecia bastante era o “apoio de balcão” que acabava sendo privilégio de conhecidos, amigos ou artistas renomados que poderiam dar maior visibilidade ao apoio do governo... Lembro que criei Judite em 2006, sem nenhum apoio, sem possibilidade de patrocínio por não ser um artista daqueles que se favoreciam com o “apoio de balcão.

Podemos ver, de acordo com os dados acima, que embora a prática de distribuição

de recursos através de editais tenha ganhado força, no âmbito estadual, a partir de 2007,

por conta de este já ser um formato adotado pelo governo federal com início em 2003, a

Fundação Cultural do Estado da Bahia, ainda que de forma bem tímida e sem

continuidade, começara a adotar os editais como forma de recurso antes do início da

gestão petista. Para Clara Trigo, “esses editais eram esperados uma vez por ano, mas

15 Mestre em Dança, pela Universidade Federal da Bahia, Edu O. também é Edu O. é dançarino, artista plástico e arteterapeuta.

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não podíamos contar com essa regularidade. Podiam ser lançados ou não, sem maiores

explicações”. Este discurso é endossado por outros artistas, como Jorge Alencar16(2014):

Na gestão anterior ao ano de 2007, em geral, as ações voltadas para dança eram escassas, pontuais e descontinuadas, a exemplo de raros editais voltados ao apoio de montagens coreográficas e à circulação de obras artísticas. Como exceção, vale ressaltar a existência do projeto Quarta que Dança gerido pelo Estado da Bahia, enquanto uma das poucas iniciativas continuadas para o campo da dança, que há alguns anos vem criando espaços de apresentação e visibilidade para os artistas locais.

Além dos mecanismos já citados, havia o patrocínio através do Fazcultura, que foi

estabelecido pela Lei 7.015 de 09/12/1996 e que tinha por objetivo promover atividades

culturais através da parceria entre o poder público e a iniciativa privada. O Fazcultura

visava estabelecer relações entre o Estado e a iniciativa privada, usando o mecanismo de

renúncia fiscal, que prevê o abatimento de até 5% do ICMS, no limite de até 80% do valor

total do projeto cultural. Para receber o abatimento, é necessário que a empresa

patrocinadora contribua com recursos próprios equivalentes a, no mínimo, 20% dos

recursos totais transferidos ao produtor. Ao ter seu projeto aprovado pela Comissão

Gerenciadora do programa, o proponente deve buscar uma empresa patrocinadora que

receberá abatimento no imposto. Ainda que sendo uma lógica neoliberal perversa, por

colocar a distribuição da verba pública sob a responsabilidade dos departamentos de

marketings das empresas, a dança pouco conseguia captar recursos através do

16 Graduado em Comunicação Social (UCSAL) e em Dança (UFBA) com Mestrado em Artes Cênicas (UFBA) e um intenso trajeto como criador, curador e educador. Jorge Alencar também é membro fundador do Dimenti. (Dimenti foi um grupo artístico fundado em 1998, que funcionou como grupo até 2012 e desde então adotou um formato que se aproxima mais com um ambiente de artistas associados, do qual faço parte desde a fundação. O Dimenti também é uma produtora cultural.

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Fazcultura. À exceção do projeto Ateliê de Coreógrafos Brasileiros17, quase nenhum

projeto de dança obteve verba oriunda de lei de incentivo. Os projetos comumente

aprovados eram de outras áreas, como música e teatro.

Foi neste contexto de pouco, ou nenhum, diálogo entre os agentes governamentais

e a classe artística e sociedade civil, quando a distribuição de recurso, em muitos

momentos, não atendia a critérios claros e também não contava com a transparência

devida, que se iniciou a transição de governo e do modo de pensar a política pública para

a cultura.

2.2 – GESTÃO SECULT-BA 2007 A 2010

Com a eleição, para o Governo da Bahia, do então candidato do Partido dos

Trabalhadores, Jacques Wagner, o Governo do Estado teve seu alinhamento partidário

com o Governo Federal, que já estava no segundo mandato do então presidente Luiz

Inácio Lula da Silva, ou seja, a partir de 2007.

Na fase de transição entre os governos de Paulo Souto e Jacques Wagner, a

Secretaria de Cultura, a pedido do governador eleito, foi separada do Turismo, através da

Lei 10.549 de 28 de dezembro de 2006. Com a mudança no governo do estado em 2007,

Márcio Meirelles assume a pasta da cultura e cinco linhas de ação são definidas para

17 De 2002 a 2006 o Ateliê de Coreógrafos Brasileiros consolidou-se como uma importante iniciativa cultural não só na Bahia, mas em âmbito nacional. O projeto previa anualmente a estreia de cinco espetáculos de dança contemporânea.

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guiar as atividades: “diversidade, desenvolvimento, descentralização, democratização e

diálogo e transparência”. Segundo informações do site da secretaria18, são estes

conceitos que vão permear todas as ações do órgão, além de seus programas e políticas.

Tomando como princípio a ideia de descentralizar as ações culturais e

democratizar o processo de planejamento, execução e avaliação dos programas e

projetos culturais, o governo criou o Programa Integrado de Desenvolvimento Territorial

da Cultura, que tem como objetivo promover o desenvolvimento sociocultural dos 26

territórios baianos, de maneira integrada, através da participação das comunidades

beneficiadas e da articulação dos poderes públicos com a sociedade civil organizada e a

iniciativa privada. Rubim (2007) lembra, ainda, que esta lógica de realizar um diálogo com

a sociedade para a aplicação das políticas culturais é uma iniciativa que está diretamente

sintonizada com o governo federal, numa tentativa de enfrentar o autoritarismo e elitismo,

presentes na política cultural brasileira durante muitos anos.

O programa mostra diversas peculiaridades; primeiro, porque reconhece a

diversidade cultural do Estado e depois, porque não tenta manter a linha dos governos

anteriores, quando a cultura baiana era concebida de maneira singular:

A cara da Bahia não pode ser apenas a cara do Recôncavo. A cara da Bahia tem que ser a cara da Bahia inteira: do Recôncavo, do Oeste, do São Francisco, do Sertão, do Sul, da Chapada e de todas as outras regiões do estado. Temos que assumir “ao mesmo tempo agora” toda diversidade baiana, as diferenças que, combinadas e recombinadas, misturadas, mestiças, fazem do povo baiano o que ele é. (http://www.cultura.ba.gov.br/linhasdeacao/diversidade)

18 http://www.cultura.ba.gov.br/

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A configuração deste novo contexto político no Estado promoveu uma mudança

significativa na forma de conceber e gerir a administração pública na Bahia. Pela primeira

vez, na esfera estadual, a Cultura, entendida como toda criação simbólica do ser humano,

passou a ser um valor em si e, por consequência, demandou a criação de uma secretaria

específica para a área.

Até a criação da Secretaria de Cultura, na estrutura administrativa do Governo do

Estado da Bahia, a cultura ainda era vista, predominantemente, como um conjunto de

espetáculos ou eventos artísticos e instrumento de atração turística por meio da venda de

uma imagem específica da Bahia.

Pensar a Cultura, também com a sua dimensão antropológica, acarretou mudanças

significativas no setor cultural do Estado. Ao tratar a Cultura como essencial ao

desenvolvimento e como uma necessidade básica, a SECULT foi criada, considerando a

cultura como um elemento estratégico para o desenvolvimento da Bahia, pela adoção de

um novo paradigma na implementação de políticas públicas para a área.

De acordo com o Relatório de Atividades da SECULT, para o período de 2007 a

2009:

Este novo paradigma, por um lado, baseia-se numa concepção contemporânea da cultura, entendida como construção histórica multidimensional e transformadora, abarcando o simbólico, o territorial, o econômico e o fortalecimento da cidadania e, por outro, numa nova prática de gestão e de atuação pautada na descentralização e na participação. (RELATÓRIO…, 2010)

Em pronunciamento, na II Conferência Estadual de Cultura da Bahia, em Feira de

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Santana/ BA, em outubro de 2007, o então Ministro da Cultura, Gilberto Gil, fala sobre a

importância da criação da SECULT no Estado:

[…]a criação da Secretaria Estadual de Cultura é uma demonstração inequívoca da decisão de dar à cultura o protagonismo que ela tem que ter na construção de um processo de desenvolvimento com qualidade de vida, com promoção da felicidade pública, com a valorização das identidades, da imensa diversidade cultural que existe aqui nessa nossa terra”. (RELATÓRIO…, 2010)

Desde a sua criação, a SECULT abriu canais de diálogo com a sociedade civil e

teve sua estrutura pensada para fortalecer os organismos estaduais, que eram

considerados prioritários para o Sistema Estadual de Cultura na condução da política

cultural. Talvez este tenha sido uma das mudanças mais importantes. Segundo o

dançarino e coreógrafo Edu O.(2014), “um dos pontos principais...foi a aproximação entre

Estado e a classe de dança, com diálogos e escuta para as nossas demandas.

O diálogo entre a classe artística e o governo do estado para a construção de um

pensamento para a gestão da cultura contribuiu também para uma mudança de postura

do próprio artista, que passou a perceber a sua importância enquanto agente político,

como mostra o depoimento de Clara Trigo (2014):

Para mim, pessoalmente, a partir das mudanças propostas pela gestão cultural em 2007, iniciou-se a construção da minha consciência sobre a importância da cultura no desenvolvimento social, na produção de riquezas, na construção simbólica de um povo e, a partir desse horizonte que foi se abrindo pela possibilidade de participar das decisões e responsabilizar-me pelas mudanças desejadas, fui desenvolvendo uma consciência cidadã antes não exercitada.

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Essa mudança de postura começou a ser engrenada a partir de uma nova forma de

organização da SECULT. A seguir, apresentarei alguns gráficos, dados e reflexões acerca

da secretaria que foi criada a partir do seguinte organograma:

Figura 01: Organograma SecultBA

Fonte: Secretaria da Cultura da Bahia

O Conselho Estadual de Cultura (CEC), a Superintendência de Cultura

(SUDECULT) e a Superintendência de Promoção Cultural (SUPROCULT) foram

pensados para serem órgãos articuladores da formulação de políticas gerais, juntamente

com o Gabinete do Secretário e a Diretoria Geral. O Escritório de Referência do Centro

Antigo de Salvador (ERCAS) foi criado para a coordenar e articular a estratégia de

desenvolvimento sustentável desta região da capital. A Fundação Pedro Calmon – Centro

de Memória da Bahia (FPC) tem a responsabilidade de gerir o sistema de bibliotecas e o

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sistema de arquivos públicos e executar a política referente a livros, leitura e literatura. O

Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (IPAC) tem por função proteger,

avaliar e manter o patrimônio material e imaterial da Bahia, dinamizar as unidades

museológicas do estado e consolidar o Sistema Estadual de Museus. Já a Fundação

Cultural do Estado da Bahia (FUNCEB) e o Instituto de Rádiodifusão Educativa da Bahia

(IRDEB) têm como missão criar e implementar políticas e programas públicos de Cultura

que promovam a formação, a produção, a pesquisa, a difusão e a memória das artes em

suas linguagens, sendo que o IRDEB delibera apenas sobre a linguagem audiovisual.

(RELATÓRIO…, 2010).

Como a intenção da SECULT era retomar o papel do estado enquanto propositor de

uma política cultural, assim como fez o Ministério da Cultura em nível nacional, foi natural

a diminuição da força e representatividade do Fazcultura na distribuição de recursos a

projetos culturais. A lei de incentivo, que também é uma importante modalidade de

financiamento a projetos artístico-culturais, passa a ter um caráter complementar, pois é

orientada por interesses de mercado e de marketing cultural.

Isso fica muito claro, quando observamos os gráficos que apontam os

investimentos em projetos artístico-culturais utilizados através da lei de incentivo fiscal do

governo do estado. O gráfico a seguir apresenta o panorama quantitativo, do número de

projetos inscritos, aprovados e patrocinados, através do Fazcultura, do ano de 2005 a

2010.

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Gráfico 01

Fonte: Secretaria de Cultura da Bahia

Este segundo gráfico apresenta o volume total investido em projetos culturais,

através do Fazcultura, de 2005 a 2010.

Gráfico 02

Fonte: Secretaria de Cultura da Bahia

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O principal meio de distribuição de recursos para projetos artístico-culturais por

parte da SECULT passou a ser o Fundo de Cultura da Bahia, o qual, embora tivesse sido

criado em 2005, era utilizado apenas para patrocinar projetos, do próprio governo do

estado, que eram ligados à cultura, ou também para repasses diretos, caracterizando a

“política de balcão”. Em 2007, os critérios para a seleção de projetos no Fundo de Cultura

foram reformulados, de modo a garantir uma maior democratização ao acesso, bem como

a interiorização dos recursos, e não ficarem concentrados na capital (Salvador). Essa

reformulação do Fundo de Cultura resultou em um impacto profundo na quantidade de

projetos aprovados e também no volume de recursos distribuídos.

O gráfico abaixo apresenta um panorama do número de projetos inscritos e

apoiados, através do Fundo de Cultura, de 2005 (ano da sua criação), até 2010.

Gráfico 03

Fonte: Secretaria da Cultura da Bahia

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O próximo gráfico vai apresentar o investimento e o orçamento disponível pelo

Fundo de Cultura, de 2005 a 2010, bem como um panorama dos editais lançados e das

áreas apoiadas neste período.

Gráfico 04

Fonte: Secretaria da Cultura da Bahia

Nestes primeiros quatro anos (2007-2010) de existência e gestão das políticas

públicas para a cultura da Bahia por parte da SECULT, a FUNCEB teve importante papel,

ao alinhar as diretrizes da secretaria com as do Ministério da Cultura, e adotou os editais

públicos como principais instrumentos de fomento para as linguagens artísticas. Em 2008,

os editais passaram a ser geridos, conjuntamente, pela FUNCEB e pelo Fundo de Cultura

da Bahia (FCBA).

2.3 – OS EDITAIS E A CRIAÇÃO ARTÍSTICA

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Certamente, nestes quatro anos em alinhamento com as políticas do Ministério da

Cultura (Minc), os editais representam o principal instrumento de fomento a artistas e

grupos artístico-culturais da Bahia. Neste período (2007 a 2010), apenas através da

FUNCEB e do Fundo de Cultura da Bahia, foram lançados 72 editais, que distribuíram

mais de vinte milhões de reais. Além de serem um instrumento de democratização e

transparência na destinação destes recursos, por proporcionarem aos interessados as

mesmas condições de acesso e critérios para cada edital, a SECULT consegue, com

eles, garantir uma maior descentralização da distribuição dos projetos aprovados em

todos os territórios de identidade do estado. Desta forma, mais de 40% dos projetos

contemplados foram de proponentes residentes no interior do estado e áreas pouco

contempladas foram incluídas, como as manifestações de cultura popular, cultura

indígena e cultura digital.

Outro mecanismo adotado, via edital, pela SECULT, através da FUNCEB, foi o

Calendário de Apoio a Projetos Culturais. Esta ação priorizava projetos do interior do

estado, em áreas de maior risco social, para atividades de formação. Houve também

editais usados para projetos de ocupação de espaços culturais de FUNCEB, através de

cessão de pautas gratuitas, incentivos a espetáculos infanto-juvenis e residências

artísticas temporárias.

No gráfico abaixo, publicado no Relatório de Atividades da FUNCEB 2009/2010, é

apresentado o montante financeiro distribuído pela instituição, em parceria com o Fundo

de Cultura da Bahia, através de editais.

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Gráfico 05

Fonte: Secretaria da Cultura da Bahia

De acordo com o gráfico acima, podemos acompanhar a distribuição de recurso

através de editais, no período de 2007 a 2010. O primeiro e no último ano de mandato, ou

seja, 2007 e 2010, respectivamente, foram os anos que apresentaram os menores

investimentos, principalmente o ano de 2007, quando o orçamento do estado ainda foi

cumprido, de acordo com o planejamento do governo anterior.

Do montante de recursos que foram repassados através de editais, a distribuição

entre as linguagens teve a seguinte proporção.

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Gráfico 06

Fonte: Secretaria da Cultura da Bahia

Para a dança, foram disponibilizados editais de apoio à pesquisa e projetos

artísticos-educativos em dança, edital de apoio a grupos artísticos, edital do Quarta Que

Dança19 e os dois principais: edital de apoio à montagem de espetáculos de dança (Edital

Yanka Rudzka) e edital de apoio à circulação de espetáculos de dança (Edital Ninho

Reis). Muito consequentemente, entre 2007 e 2010, por conta dessa escuta das

demandas da classe artística, a linguagem da dança ficou como a segunda linguagem

artística a receber apoio financeiro por parte do estado, nestes quatro primeiros anos,

ficando apenas atrás da linguagem de teatro. No primeiro biênio (2007/2008), em

especial, a dança liderou, enquanto linguagem, o recebimento de recursos. A adoção dos

19 Constitui objeto deste edital a seleção de propostas para compor a programação do Projeto Quarta que Dança, que reúne espetáculos de dança, sempre às quartas-feiras, em espaços culturais diversos. No ano de 2013, O projeto chegou à sua décima quinta edição.

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editais como mecanismo de distribuição de recursos públicos para a cultura foi um ponto

positivo desta gestão, como destaca Jorge Alencar (2014):

No citado período foram criados dispositivos mais claros de fomento à produção artística, ampliando a natureza dos projetos apoiados até então e aumentando significativamente o volume de verba investido nas ações culturais.

Para que uma política cultural tenha, de fato, uma pertinência política, é

imprescindível a participação da sociedade civil, entidades privadas ou grupos

comunitários de forma que possa garantir a escuta, por parte do governo, das demandas

e do setor artístico-cultural. Ainda não existem dados (qualitativos e quantitativos)

suficientes que apresentem um diagnóstico sobre todos os elos da cadeia produtiva da

dança. Neste sentido, a participação de representações como o Fórum Nacional de

Dança, o Colegiado Setorial de Dança e demais agrupamentos que tenham como

propósito refletir e fazer a representação da classe da dança são de suma importância

para a contribuição de uma política para a área.

Foi inspirado por este contexto, sob as normas e regras que regem os projetos que

contam com o apoio financeiro do Estado através de editais, que foi criada a peça “Edital”.

“Edital” foi criado dentro do projeto “CADA”, contemplado pelo Edital 03/2010 – Yanka

Rudska, na Categoria 4 (prêmios de até R$ 150.000,00) e que teve por proponente a

Dimenti Produções Culturais Ltda, empresa e ambiente de criação no qual desenvolvo os

meus fazeres artísticos e de produção cultural. Sobre “Edital” e o seu contexto de criação,

farei uma análise e descrição no terceiro capítulo.

Para a dança especificamente, além de editais para a montagem e circulação de

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espetáculos de dança, foi lançado também um edital inédito para a manutenção de

grupos artísticos, além do projeto Quarta Que Dança. É claro que nem todas as ações

que envolvem a política cultural da SECULT para a dança passam por editais, como por

exemplo, a Escola de Dança da FUNCEB e o Balé do Teatro Castro Alves, que são

instituições que, embora tenham tido suas atuações e dimensões reformuladas, são

ações contínuas que têm recursos próprios para o seu funcionamento.

É natural que essa mudança no perfil de ação por parte do governo do estado para

com a área artístico-cultural refletisse em mudança também no perfil do pensamento e na

forma de agir dos artistas. Apesar de acreditar que os editais tenham a seu favor aspectos

positivos quanto à democratização e clareza no acesso aos recursos públicos, a lógica

instaurada por eles constrange (aqui o constranger está aplicado no sentido de levar

alguém a fazer algo) a criação artística.

No Governo da Bahia, os editais estão sob a o aparato legal da Lei 9.433 de 2005,

conhecida como a Lei de licitação, que dispõe sobre as licitações e contratos

administrativos pertinentes a obras, serviços, compras, alienações e locações no âmbito

dos Poderes do Estado da Bahia. Ou seja, para que haja um controle legal por parte do

estado sobre os repasses, e execução dos recursos destinados à cultura, é aplicada a “lei

da licitação”. A lógica que rege o controle dos recursos destinados à cultura é a mesma

que rege a compra de materiais e insumos por parte do estado. Na prática, as imposições

que valem para o controle de R$ 100.000,00 destinados pelo estado para a compra de

papel higiênico são as mesmas que valem para a destinação de R$ 100.000,00 para a

execução de um projeto artístico de dança, por exemplo.

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A burocratização na execução dos recursos públicos é importante, à medida que

tenta prevenir a ingerência e estimular o correto emprego dos recursos; porém, outras

formas de controle precisam ser criadas de forma que atendam às especificidades de

projetos culturais. A necessidade de uma mensuração prévia na elaboração de projetos

culturais pode trazer limitações ao trabalho do artista, conforme destaca Jorge Alencar

(2014):

A criação artística tornou-se sinônimo de elaboração de projeto, com um nível de mensuração e previsibilidade que constrange, em muitos aspectos, o fluxo imprevisível de descobertas de um processo de criação. Isso atravessa o jeito como eu elaboro as minhas ideias artísticas iniciais, o jeito que eu desenvolvo a criação propriamente e o jeito que essa criação precisa condizer com as previsões de orçamento e cronograma que eu apontei em meu projeto.

Tal situação acaba por enquadrar a criação artística em um contexto que muitas

vezes prejudica o processo criativo, seja quanto à forma - como o tempo dispensado para

a sua execução, seja nas escolhas estéticas para a cena. Neste sentido, a adoção dos

editais como o principal instrumento de aplicação dos recursos públicos pode implicar na

restrição da liberdade de criação em um processo artístico, principalmente por conta da

adoção da “lei de licitação”, como aponta Edu O.(2014):

[...]consigo ver diferenças na criação entre Judite e O Corpo Perturbador, por exemplo. Se em Judite eu não tinha apoio nenhum, eu tinha maior liberdade no tempo para a criação e total liberdade para experimentar e errar. Já n’O Corpo Perturbador que foi produzido graças ao edital de montagem, tínhamos limitações na criação por causa da rigidez da prestação de contas que dificulta uma pesquisa mais aberta aos fluxos que vão surgindo no processo de criação. De certa forma, acho que ficamos reféns das notas fiscais que precisamos apresentar, mesmo se o que surge na criação solicita outro material, outra elaboração do que havia sido previsto. Sinto que não temos abertura para o erro que, ao meu ver, é tão necessário num processo criativo.

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Neste sentido, estamos caminhando na direção em que um mecanismo de

aplicação de uma política pública, no caso os editais, está atuando de forma decisiva na

construção dramatúrgica das criações em dança. Uma vez inserido neste contexto, o

artista da dança, durante o seu processo criativo, precisa levar em consideração que

haverá uma restrição quanto aos materiais que poderão ser utilizados em cena, bem

como a sua forma de aquisição. Assim, os editais estão pautando a construção

dramatúrgica, por serem critérios no processo de tomada de decisão para a escolha dos

materiais que constituem a cena.

Partilho portanto, as reflexões propostas por Rosa Hercoles20, quando a

pesquisadora, em sua tese de doutorado, elenca alguns “Tópicos da Dramaturgia”, para a

partir deles, pensarmos a construção dramatúrgica na dança. Neste sentido, eu destaco

dois desses tópicos:

• A dramaturgia na dança se relaciona à instância da composição coreográfica que cuida das relações que se estabelecem durante o processo de construção e organização da cena, sendo que suas propriedades constitutivas se encontram inseparavelmente conectadas e não simplesmente agrupadas. Para isso, se faz necessária tanto a definição de um campo temático específico quanto a busca de precisão em relação ao objeto a ser investigado. • Identificar a dramaturgia em uma peça coreográfica implica na discriminação do tipo de pensamento que está sendo implementado tanto no movimento quanto no ambiente cênico, observando-se quais relações que foram estabelecidas entre todos os seus materiais constitutivos. (HERCOLES, 2005, p. 126-127)

20Eutonista e dramaturgista. Professora do Curso de Comunicação nas Artes do Corpo – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e doutora em Comunicação e Semiótica por esta mesma instituição.

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Outra situação que a hegemonia dos editais está causando é uma padronização na

construção e escritas de projetos artísticos que pleiteiem recursos públicos. Como, para

ter o acesso ao recurso, é necessário ter o projeto aprovado, os artistas estão

caminhando para a especialização de uma forma específica de apresentação de projeto.

Segundo Jorge Alencar (2014), com a “reificação do formato edital passou a existir um

jeito de produzir pensamento sobre arte muito atrelado ao tipo de demanda discursiva

operada pelos formulários dos editais”.

Este entendimento do que passou a se constituir uma forma de escrita, logo, de

acesso aos recursos através de editais, também é partilhada pelo diretor e coreógrafo

Sérgio Andrade21(2014):

Aprendi muito cedo também que edital é uma linguagem, tem seus rituais performativos de eficácia. Aqueles que pretendem participar do Edital têm que, antes mesmo de desejar participar, estar sob tais critérios de eficácia. É preciso saber escrever projeto, é preciso poder saber escrever... ter o que inscrever, inclusive.

Mesmo em maior quantidade, os editais na Bahia ainda estão mais ligados a ações

pontuais e menos a ações continuadas, com exceção dos editais de manutenção a

grupos e companhias e, mais recentemente, editais específicos voltados a projetos

calendarizados.

21Sérgio Andrade tem experiências como diretor, criador, bailarino, produtor e pesquisador em Dança e Performance. É Professor Assistente do Departamento de Arte Corporal da Universidade Federal do Rio de Janeiro, cursos de Bacharelado em Teoria da Dança, Licenciatura em Dança e Bacharelado em Dança. Doutorando em Filosofia pelo Departamento de Filosofia da PUC-Rio.

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CAPÍTULO 3

A DANÇA DA BUROCRACIA

A dança há muito vem flertando com o seu próprio contexto de subvenção. Ela tem

tratado, como matéria de criação, aspectos relacionados à sua gestão e produção

executiva. Além das possíveis leituras antropológicas, históricas, educacionais da dança,

ela pode ser analisada pelo tipo de relação que estabelece com o contexto no qual está

inserida. Alguns trabalhos em dança vêm problematizando a burocracia que envolve o

fazer dança ou arte em geral e transformando o tema ou crítica em objeto de criação.

Mais do que ser um “programa de intervenções realizadas pelo Estado, instituições civis e

entidades privadas ou grupos comunitários com o objetivo de satisfazer as necessidades

culturais da população e promover o desenvolvimento de seus bens simbólicos”

(COELHO, 1997, p. 292), a dança tem feito da política cultural a sua reflexão artística.

Como exemplo dessa situação, analisarei, neste terceiro capítulo, duas peças de

dança contemporânea, que têm por finalidade propor questionamentos quanto a alguns

aspectos que permeiam a forma de subvenção da própria dança. São elas: “A Projetista”,

da coreógrafa mineira Dudude Herrmann22, e “Edital”, um solo criado por mim, em

parceria com os artistas Leonardo França e Mário Machado Neto. As obras são

22Bailarina, improvisadora, coreógrafa, diretora de espetáculos e professora de dança. Estuda e trabalha desde a década de 70 a pedagogia de ensino da dança contemporânea.

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contemporâneas, estrearam com seis meses de diferença entre elas, isso nos mostra o

quanto a burocratização da arte tem estado cada vez mais na pauta do artista.

Ambos os trabalhos têm em comum o interesse de falar sobre o atual panorama

da subvenção da criação em dança: os editais, que, como vimos no capítulo anterior, se

tornaram o principal instrumento de distribuição de recursos para projetos artísticos

culturais. Os editais também contribuíram para a descentralização dos recursos e

transparência na seleção de projetos.

No caso de “A Projetista”, a artista Dudude Herrmann apresenta uma reflexão

sobre a necessidade de se elaborar um projeto para pleitear recursos públicos que

viabilizem a criação de uma obra.

No caso de “Edital”, aspectos como a burocracia, a relação do artista e do produtor

de dança diante dos editais, enquanto instrumentos de aplicação de uma política pública

também serão abordados.

3.1 – “A PROJETISTA” – DO NADA AO VAZIO

“A projetista usa do nada para preencher o vazio do mundo”. Dudude Herrmann

Depois de ter fundado e dirigido a Benvinda Cia de Dança, de 1992 até meados de

2007, a dançarina e coreógrafa mineira Dudude Herrmann se desfez da companhia que

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dirigia e, sob a direção de Cristiane Paoli Quito,23 criou “A Projetista”, um solo de dança

contemporânea que marcou os 40 anos de “insistência, persistência e resistência”,

segundo a própria artista, no campo das artes.

“A Projetista”, que estreou em setembro de 2011 em Belo Horizonte (MG), é um

espetáculo-manifesto que mistura linguagens para criticar o sistema cultural imperante no

país e, acima de tudo, externar a transformação da própria vida da artista. Em cena, a

intérprete disserta todo o tempo sobre o seu possível e próximo projeto artístico. Para

Dudude (2011), (tratarei a artista pelo primeiro nome, porque assim ela é conhecida na

classe artística) “este novo trabalho talvez seja um desafio, um manifesto, de mais um

artista criador de nosso tempo, frente aos mecanismos para se viabilizar a cultura e a

arte”.

Neste espetáculo, Dudude disserta sobre o verbo projetar, utilizando

primordialmente a oratória. Com a obra, ela apresenta a mudança na sua atuação,

enquanto artista, em decorrência da forma vigente de obtenção de recursos para a

criação artística. De acordo com Dudude (2011):

“Ao longo da minha atuação, pude perceber que o único caminho para manter uma companhia é se adequar aos editais e às leis de incentivo vigentes no país, o que acaba tornando o artista um refém da arte obediente. E o mais importante: nessa estrutura, ele acaba se deslocando para funções tão distintas que coloca em segundo plano a criação. Falo de um artista fazedor de suas urgências, frágil no quesito de suporte técnico e administrativo capaz e competente. Foi aí que resolvi trazer A Projetista, para dançar sobre essa transformação. Eu mesma fui me tornando uma projetista, aprendendo na pressão coisas para as quais me considero incompetente. Esse sintoma não é

23Diretora teatral paulistana que se projeta na cena teatral paulista nos anos 1990, através de seus espetáculos recheados de técnicas e referências da commedia dell'arte.

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pessoal. Existimos em uma sociedade que vive para projetar além do espaço”.

Figura 02: Dudude Herrmann em “A Projetista” (2011). Foto: Alexandre Muniz

Para Dudude, o “artista-projetista” tornou-se um sintoma contemporâneo que

começou nos anos 1990, quando toda uma geração criadora passou a mudar hábitos e

posturas em relação ao mercado, organizando-se frente às exigências solicitadas,

suprindo demandas, mas ao mesmo tempo tornando-se refém delas.

Hoje, no Brasil, há uma grande quantidade de editais disponíveis para o subsídio à

criação artística, e esta é uma realidade que vem se fortalecendo ano a ano, em todo o

país. Contudo, isso não quer dizer que existam recursos suficientes que atendam à

demanda e às necessidades artísticas. Porém, como esta tem sido a ferramenta de

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acesso à captação de recursos públicos, artistas e criadores em dança estão cada vez

mais mobilizados em atender aos editais, do que os editais em atender às suas

demandas. Essa inversão de valores traz à tona o jogo de poder existente entre a criação

artística e os editais, uma vez que o edital, enquanto instrumento da aplicação de uma

política pública, passou a ser o deflagrador de projetos culturais. Em muitos casos, é a

partir de um edital que nasce um projeto, uma proposta de criação artística.

Esse jogo de poder me remete à relação entre biopoder e biopotência, derivados

dos estudos de biopolítica propostos por Michael Foucault24 (1984). Em linhas gerais,

biopoder para Foucault refere-se ao poder que o Estado tem sobre a população, o poder

de fazer normas e a submeter a elas, o poder de controlar não só a economia, mas sim a

vida de todos, sendo ele o poder soberano. Diferente da biopolítica imperial que seria o

poder sobre a vida, a biopotência é o poder da vida. Na inversão de sentido do termo

biopolítica, esta deixa de ser o poder sobre a vida, e passa a ser o poder da vida.

Eu trabalhei, por três anos, na produção do projeto Quarta Que Dança (QQD),

realizado pela FUNCEB. Este projeto selecionava propostas para compor uma

programação de dança, que acontecia sempre às quartas-feiras, durante determinado

período. Em um dos anos, para mim, uma situação ficou bem clara. Na categoria

“Trabalhos em Processo de Criação”, que, como o próprio nome já diz, selecionava

trabalhos ainda não estreados e que ainda estavam em criação, e algumas das propostas

selecionadas só existiram enquanto processos mesmo. Ou seja, não visavam à

montagem ou configuração de qualquer resultado em dança. Alguns dos processos

24 Michael Foucault é filósofo, historiador, teórico social e crítico literário francês.

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criativos apresentados durante a programação do Quarta Que Dança (QQD) não

apresentavam qualquer evolução frente aos projetos apresentados quando da inscrição

das propostas no edital do QQD. Para mim, tal situação configurava a criação de uma

proposta artística apenas para atender à demanda de um edital e obter o recurso

oferecido. Ou seja, o edital pautando a criação artística. Dessa forma, estava posto o jogo

de poder entre o poder do estado frente à população (biopoder) e a potência da criação

artística frente ao estado (biopotência).

Está começando a acontecer a inversão da relação de oferta e demanda, em se

tratando dos editais e os projetos artístico-culturais. Quando o Estado, buscando a

execução de uma política cultural, lança um edital, em primeira instância ele estaria

atendendo a uma demanda de um setor da sociedade que produz arte. Porém, quando

este setor da sociedade que produz arte passa a responder aos editais, de forma apenas

a atender à demanda de projetos culturais estabelecida por eles, a inversão se concretiza

e os proponentes de projetos se colocam no lugar de reféns da situação.

Desta forma, o artista que propõe um projeto em um determinado edital apenas

para responder a este edital e para tentar emplacar mais um projeto assume a sua

postura passiva diante da política que está sendo aplicada. Ele limita-se apenas a existir

dentro de um sistema onde o poder do estado, sobre a potência da vida, gera a produção

de sobrevida. O artista passa a ser um sobrevivente no sistema.

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Peter Pál Pelbart25 contribui para o entendimento deste jogo de poder entre os

editais e a criação artística, quando explica que “tínhamos a ilusão de preservar nessas

esferas alguma autonomia em relação aos poderes”.

Para resumi-lo numa frase simples: o poder já não exerce desde fora, desde cima, mas sim como que por dentro, ele pilota nossa vitalidade social de cabo a rabo. Já não estamos às voltas com um poder transcendente, ou mesmo com um poder apenas repressivo, trata-se de um poder imanente, um poder produtivo... Daí também a extrema dificuldade em resistir. Já mal sabemos onde está o poder e onde estamos nós. Onde ele nos dita e o que dele queremos. Nunca o biopoder chegou tão longe e tão fundo no cerne da subjetividade e da própria vida, como esta modalidade contemporânea de biopoder. (PELBART, 2007, p.58)

No artigo “Por uma economia das generosidades”, a pesquisadora Christine

Greiner26 ajuda a entender porque é preciso reinventar os padrões que emergem dos

processos de implementação (de ideias, movimentos, treinamentos):

Durante a participação em bancas de editais e teses, os sintomas que envolvem o processo de descoberta de tudo isso são claros. Institui-se um jogo (quase sempre não deliberado) que visa a aprovação dos projetos, seguindo padrões e modelos que muitas vezes sacrificam o próprio projeto. Ou seja, para adequá-lo a regras (nem sempre deliberadas), o artista busca em primeiro lugar atender às expectativas de uma comissão que ele ainda não sabe qual será. Para tanto, nem sempre consegue efetivamente se colocar no texto que escreve. A comissão, por sua vez, muitas vezes, é integrada por artistas premiados em outras edições que, ao se

25 Peter Pál Perbart é um filósofo, ensaísta, professor e tradutor húngaro, residente no Brasil. É doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo e Professor na PUC-SP. 26 Possui graduação em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero(1981), mestrado em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo(1991), doutorado em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo(1997), pós-doutorado pela Universidade de Tóquio(2003), pós-doutorado pela International Research Center for Japanese Studies (2006) e pós-doutorado pela New York University (2007). Atua principalmente nos seguintes temas: arte, cultura e semiótica.

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encontrarem no papel de júri (e não mais de avaliados), lidam com as regras de avaliação de forma surpreendentemente radical. Cria-se o que Primo Levi identificava como zona cinzenta, ou seja, uma zona. (GREINER, 2012, p.17)

Como, atualmente, quase todos os recursos públicos para a cultura, em sua

diversidade de setores e linguagens artísticas, são distribuídos através de editais, o artista

que queira viver do seu trabalho enquanto artista pouco provavelmente escapará da

necessidade de submeter um projeto para a apreciação de uma banca de edital, sendo

este projeto criado para o edital, ou um projeto já existente.

Para Dudude (2014), “por enquanto estamos todos reféns destes mecanismos,

dependentes por uma simples questão de sobrevivência. E infelizmente isso não é só

comigo”.

Foi essa inquietação quanto ao modelo de aplicação das políticas públicas através

de editais que trouxe a burocracia para cena em “A Projetista”. Esta burocracia também é

o discurso apresentado em “Edital”, obra sobre a qual falaremos a seguir.

Em linhas gerais, a burocracia permite que as normas proferidas pelas autoridades

sejam executadas de forma precisa e em conformidade com procedimentos previamente

estipulados. Desta forma, é reduzido o erro humano e o processo das ações é

transparente.

A visão negativa da burocracia deve-se à rigidez destes mesmos processos, os

quais podem tornar excessivamente lento qualquer tipo de trâmite. Por outro lado, a

burocracia não tem em conta as alterações que possam surgir posteriormente no

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cotidiano e que exijam novas soluções para problemas inéditos. E é neste sentido que ela

pode ser danosa para a criação artística.

3.2 – “EDITAL” – O ARTISTA MONTADO DE PRODUTOR, OU VICE-E-VERSA.

Em 2012, depois de 14 anos de trabalhos artísticos desenvolvidos em colaboração

no Dimenti, criei o meu primeiro trabalho autoral. “Edital” foi criado dentro do contexto do

“Manutenção Dimenti”, projeto contemplado com o patrocínio para manutenção de grupos

do Programa Petrobras Cultural, e também do projeto CADA, contemplado pelo Prêmio

Yanka Rudzka – prêmio de apoio à montagem de espetáculos de dança do Estado da

Bahia. A necessidade de criar um trabalho autoral para a realização do projeto, e também

a de sobreviver no atual panorama da cena contemporânea me fizeram lançar o Edital

09/2011 – Para Aquisição de uma Obra Autoral.

Nos 14 anos de existência do Dimenti até então, era a primeira vez que trabalhos

solos seriam produzidos no grupo. De 1999 a 2012, já haviam sido produzidos nove

espetáculos, sendo que, em sete deles, todos os performers do grupo participavam. Em

todos os trabalhos do repertório do grupo, eu havia participado como intérprete e em

cinco deles também como produtor. Porém, seguindo um comportamento da produção em

dança, acabamos por caminhar para a criação de trabalhos solos, mesmo ainda fazendo

parte de um grupo artístico.

Este “comportamento” da produção em dança de criar espetáculos solos tem vários

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motivadores. Citaria entre eles uma maior facilidade de circulação dos espetáculos, uma

vez que tem equipes reduzidas e favorecem a sobrevivência da obra. Outro fator que

pode estar contribuindo para a criação de trabalhos solos é uma necessidade de

afirmação de uma pesquisa de linguagem artística. A legitimação artística tem passado

pela necessidade de defesa de um discurso e pela autoralidade. Ser apenas intérprete e

não ter um trabalho autoral não vem atendendo aos anseios da dança contemporânea.

Em “Edital”, o artista e também produtor se confunde, concorda e diverge de si

mesmo e acaba propondo reflexões sobre o fazer arte hoje sob a lógica de financiamento

à produção cultural vigente. Um dos interesses é problematizar o lugar do artista na

contemporaneidade e perceber como se organizam algumas relações na cadeia criativa e

produtiva da arte.

Numa estética caótica entre laptop, impressora, fios e projetor, elementos que

mais remetem ao trabalho realizado em escritório, “Edital” traz a produção executiva para

dentro da caixa preta e a transforma em produção artística. Entre projetos arquivados,

suplentes na espera e um proponente contemplado, o palco vira escritório e a produção

vira cena. Assim, depois de 10 anos de trabalho com produção cultural, o produtor/artista

lança o seu próprio edital e tenta discutir sobre o fazer na dança.

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Figura 03: Fábio Osório Monteiro em “Edital” (2011)/ Foto: João Meirelles

3.3 – UM NOVO LUGAR NA AUTORIA – A NECESSIDADE DE UM DISCURSO

“Edital” surgiu a partir de dois editais. Em 2010, o Dimenti foi contemplado no Edital

de Manutenção de Grupos da Petrobras com o projeto “Manutenção Dimenti” e também

com o Prêmio Yanka Rudzka – Prêmio de apoio à montagem de espetáculos de dança na

Bahia, do Governo da Bahia, através do Fundo de Cultura, com o projeto CADA.

No projeto proposto ao Edital de Manutenção de Grupos do Programa Petrobrás

Cultural (PPC), que previa a manutenção de grupos e companhias de dança ou teatro

durante dois anos, cada um dos artistas integrantes do Dimenti – que naquela ocasião era

composto por seis artistas - deveria desenvolver um processo de criação de um trabalho

autoral.

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Cada um dos artistas deveria ser autor e propositor de uma obra coreográfica. Ou

seja, cada intérprete deveria agora propor um trabalho de sua autoria. Para isso,

receberia uma “bolsa de pesquisa” que envolvia desde gastos com pagamento pelo seu

trabalho de artista, até pequenos custos com a compra de materiais e contratação de

prestadores de serviços para colaborar na criação. Ao final de um ano, o trabalho seria

exibido em caráter de “trabalho em processo de criação”, por se tratar de uma criação que

ainda não tinha sua configuração definitiva.

Já no projeto aprovado no Prêmio Yanka Rudzka, do Governo do Estado da Bahia,

o trabalho iniciado com a pesquisa do “Manutenção Dimenti” pôde ganhar uma

configuração definitiva e cada intérprete conseguiu montar e estrear o seu trabalho. Para

isso, cada qual teve direito a uma verba para gerir entre execução do trabalho e formação

de equipe.

Eu, que até então havia participado de todos os espetáculos do repertório do

Dimenti como intérprete, sempre sob a direção de Jorge Alencar, desta vez deveria ser

autor de uma obra, condição que eu, enquanto artista, nunca havia exercitado; pelo

menos, não enquanto propositor de um trabalho para a cena. Nos processos criativos no

grupo, nós, intérpretes, sempre fomos convocados a participar da criação das cenas, das

escolhas estéticas de cada trabalho. Neste sentido, sempre fui um cocriador das obras

das quais participei. Pela primeira vez, porém, eu me vi convocado a ser autor de uma

obra.

Este novo lugar na criação, ao mesmo tempo em que era motivador perante novas

expectativas de um processo criativo, também era detonador de uma situação de risco, na

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qual eu saía da minha zona de conforto, de ser intérprete sob uma direção e passava a

ter a necessidade de construir e defender um discurso. Foi neste instante em que me dei

conta da falta de prática no exercício da proposição que se instaurou o primeiro problema

no processo criativo: o que dizer?

O artista na dança contemporânea vem sendo solicitado, cada vez mais, a

desenvolver a sua pesquisa, o seu discurso, apresentar as suas questões nos seus

trabalhos e em suas obras. Não à toa, nas últimas duas décadas, os trabalhos solos em

dança contemporânea são cada vez mais frequentes. Certamente, a necessidade que o

artista da dança contemporânea tem de apresentar a sua fala tem contribuído diretamente

para a proliferação de trabalhos solos e pesquisas individuais. Como se cada fala fosse

única, individual e intransferível, embora, como apresentado pela pesquisadora Jussara

Setenta27 (2006, p.90), "os fazedores de dança contemporânea performativa trabalham a

partir da compreensão de que as ideias estão no mundo e, portanto, são compartilháveis

por diversos sujeitos e sociedades”.

Outras questões podem ser apontadas como possíveis causadoras da proliferação

da produção de trabalhos solos, dentre elas, está a dificuldade da produção e gestão de

grupos artísticos. A manutenção de uma ficha técnica mais cheia, custo logístico em

viagens e turnês e o incipiente trabalho continuado de grupos artísticos acabam por

contribuir para que alguns artistas prefiram o trabalho solo e autoral ao trabalho em grupo.

27 Jussara Setenta é Professora Permanente do Programa de Pós-Graduação em Dança da Universidade Federal da Bahia e professora do Curso de Graduação em dança na mesma Instituição de Ensino Superior. Possui doutorado em Comunicação e Semiótica pela Pontificia Universidade Catolica de Sao Paulo (2006), mestrado em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia (2002), especialização em Coreografia pela Universidade Federal da Bahia (1996), graduação em Licenciatura em Dança pela Universidade Federal da Bahia (1992).

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Para que sejam viáveis economicamente, os projetos artísticos precisam ser enxutos, de

forma a possibilitar a sustentabilidade dos fazedores da arte.

Para que, dentro de um contexto de trabalho de grupo, pudessem ser criados seis

trabalhos autorais, o Dimenti desmembrou esse processo em dois projetos. Um primeiro,

que previa apenas o financiamento para o processo de criação para os trabalhos autorais

de cada integrante; e um segundo projeto que previa o financiamento da montagem e a

primeira temporada de cada um.

Então, o Dimenti, que propôs e aprovou dois projetos encadeados, em editais

diferentes, um para custear o processo de pesquisa e criação e outro para custear a

montagem de seis trabalhos autorais inéditos (um para cada intérprete), tinha agora um

intérprete que, mesmo depois de ter captado recursos públicos para a sua criação, não

sabia o que propor para a cena. Eu, intérprete, estava constrangido a criar um discurso

que pudesse legitimar o meu trabalho enquanto artista da dança contemporânea, embora

não tivesse nenhuma proposta autoral para seguir com o processo criativo.

Diante desse impasse, a solução encontrada foi obter os direitos autorais de

alguma ideia que eu, enquanto artista, julgasse oportuna e, como mecanismo para uso

desta ideia e também para divulgar aos possíveis autores, lancei o “Edital 09/2011 – Para

aquisição de uma obra autoral”.

3.4 – O PROBLEMA COMO SOLUÇÃO - A CONVOCATÓRIA PÚBLICA

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Como forma de ter acesso a ideias que pudessem se transformar em um processo

criativo e, futuramente, ganhar uma configuração de uma criação artística, lancei o “Edital

09/2011 – Para aquisição de uma obra autoral”. O edital proposto por mim foi lançado em

abril de 2011, com divulgação do resultado em maio deste mesmo ano. Para Jorge

Alencar (2014), ao sucumbir ao desespero capitalista de comprar uma ideia de outrem

para responder às demandas geradas pelo contexto, produz-se uma performance

absurda que se infiltra nos meandros da estética da burocracia para legitimar um exitoso -

e já arquetípico - “artista de edital”.

Para melhor entendimento, citarei abaixo os itens, que julgo ter maior relevância no

texto do edital, lançado por mim:

“EDITAL 09/2011 - PARA AQUISIÇÃO DE OBRA AUTORAL Fábio Osório Monteiro, no uso das atribuições que lhe confere a Dimenti Produções Culturais LTDA, torna público o presente edital do EDITAL 09/2011 - PARA AQUISIÇÃO DE OBRA AUTORAL, válido em todo o território nacional. DO OBJETO 1.1 Constitui objeto do presente Edital a seleção, em todo o território nacional, de 01 (uma) única proposta de obra autoral de texto, coreografia, tema, ideia ou projeto de criação cênica performática, que, depois de selecionada, poderá ser desenvolvida de forma autônoma pelo performer Fábio Osório Monteiro, do Grupo Dimenti, de Salvador, Bahia, em trabalho solo de teatro e/ou dança. (VER COMO COLOCAR ABNT) DAS CONDIÇÕES 2.4 O prêmio se destina à seleção de uma ideia cênica, que tanto pode ser apresentada como questão ou assunto inicial, a ser integralmente desenvolvida pelo performer Fábio Osório Monteiro, (Dimenti-BA); como pode vir acompanhada de uma sugestão formal, como texto escrito, coreografia, trilha musical, projeto de encenação. Ainda que estruturada sob uma proposta formal (texto, coreografia, música, ambiência visual etc.), a ideia poderá ser aproveitada em outra concepção estética pelo

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performer. O texto, coreografia, etc, poderá ser desconstruído, rearranjado, mixado a outros materiais ou editado, segundo a concepção cênica do performer e de seus colaboradores diretos. Parágrafo Segundo – O resultado cênico será de propriedade autoral e intelectual de Fábio Osório Monteiro, cabendo só a ele decidir sobre a liberação e negociação da obra DA PREMIAÇÃO 7.1 O EDITAL 09/2011 - PARA AQUISIÇÃO DE OBRA AUTORAL irá contemplar um único proponente, pela ideia selecionada, no valor de R$ 1.000,00 (mil reais), valor líquido, pagos em uma única parcela, em até 15 (quinze) dias úteis depois da divulgação do resultado. (MONTEIRO, F, 2011, p. 1-2)

Desde o início, fica claro que o objetivo do edital é conseguir uma ideia que possa

servir como ponto de partida para um processo criativo. Independente de obedecer, ou

não, às sugestões e caminhos apresentados nas possíveis propostas, o edital tem por

objetivo oferecer um estímulo que possibilitasse a mim a criação do meu primeiro trabalho

autoral.

Este trecho do edital citado acima já aponta para uma problematização em relação

à definição de autoria de uma criação artística. O fato de o edital apontar para a

possibilidade de que as propostas fossem mescladas, misturadas e editadas de alguma

forma e que o fruto dessa edição é que seria considerado o meu trabalho autoral tensiona

a relação entre autoria e originalidade. Isso se dá a partir do momento em que a autoria

da configuração de determinado processo criativo possa ser atribuído a determinado

artista, sendo que as ideias, que já estão no mundo e que o artista acessa de alguma

forma, não são consideradas originais. A origem delas não está no criador.

É nesses termos que Foucault se questiona sobre o caráter necessário ou não da

função autor, respondendo que tal figura não lhe parece indispensável e chegando a

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imaginar uma sociedade sem autores:

Podemos imaginar uma cultura em que os discursos circulassem e fossem recebidos sem que a função autor jamais aparecesse. Todos os discursos, qualquer que fosse o seu estatuto, a sua forma, o seu valor, e qualquer que fosse o tratamento que se lhes desse, desenrolar-se-iam no anonimato do murmúrio. (FOUCAULT, 1992, p.70)

O mesmo tipo de consideração fez Foucault, quando do início de sua carreira como

professor no Collège de France. Em sua aula inaugural de 2 de dezembro de 1970,

Foucault inicia sua fala indicando como gostaria que a mesma fosse tomada pelo público,

sem o exercício tirânico e unificador da função autor e negando a si mesmo a condição de

origem do discurso e fonte privilegiada de sua compreensibilidade. Assim inicia Foucault:

Ao invés de tomar a palavra, gostaria de ser envolvido por ela e levado bem além de todo começo possível. Gostaria de perceber que no momento de falar uma voz sem nome me precedia há muito tempo: bastaria, então, que eu encadeasse, prosseguisse a frase, me alojasse, sem ser percebido, em seus interstícios, como se ela me houvesse dado um sinal, mantendo-me, por um instante, suspensa. Não haveria, portanto, começo; e em vez de ser aquele de quem parte o discurso, eu seria, antes, ao acaso de seu desenrolar, uma estreita lacuna, o ponto de seu desaparecimento possível. (FOUCAULT,1996, p.5-6).

Outro ponto importante no Edital 09/2011 diz respeito aos critérios de avaliação

que seriam levados em consideração no momento da seleção das propostas. Neste

sentido, direcionei um dos critérios para pautar a escolha artística e o outro critério

pautando questões que fossem relativas à operacionalização da proposta como

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necessidades técnicas e de produção.

DA AVALIAÇÃO 6.1 São critérios gerais norteadores da avaliação da proposta a ser contemplada pelo presente Edital: a) Excelência artística do projeto: qualidade de conteúdo da proposta apresentada, bem como seu valor intrínseco. Avaliam-se também aspectos como originalidade e criatividade do projeto; b) Viabilidade prática do projeto: exequibilidade em relação ao orçamento global. (MONTEIRO, F. 2011, p. 3-4)

Embora tenham sido apenas dois critérios, e ainda sim sem nenhuma restrição a

priori, as propostas enviadas, tendiam, em sua maioria, a atrelarem a obra a aspectos

pessoais meus. Desde a indicação de imagens minhas em uma exposição urbana, até

uma dança feita a partir de confissões pessoais. De alguma forma, as propostas que

foram enviadas – e ao todo foram 11 propostas – tinham a minha pessoa como ponto de

partida para a configuração do trabalho.

Isso poderia apresentar dois problemas. O primeiro é que poderia estar havendo,

sim, uma pasteurização das criações em dança, à medida que os projetos enviados eram

declaradamente ou tangenciavam a autobiografia. O segundo é que, neste caso, ficava

claro que as propostas, em sua maioria, tinham sido criadas para atender à demanda

deste edital. Tal procedimento vem acontecendo de forma habitual nos editais que

distribuem recursos públicos para a criação artístico-cultural. Os projetos apresentados

nestes editais oficiais também tendem a atender à demanda do edital.

A pesquisadora Lúcia Matos atribui uma possível pasteurização a um tipo de

produção, que ela chama de fast-cult, que imbrica os dois problemas citados acima:

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Hoje, no campo da produção artística da Dança, tem-se fomentado um tipo de produção que tenho chamado de fast-cult (em alusão ao fast food) – com tempo determinado para a produção (quando também não direciona sua abordagem) e de tempo de “digestão” pelo público (uma temporada?), contribuindo muito para uma possível pasteurização da produção contemporânea da Dança (me refiro a todas as configurações da Dança) e baixo impacto na formação de público, por exemplo. Ao mesmo tempo, tem muito artista tratando as verbas que recebe do edital como salário (quase uma bolsa família para os artistas) e pouco se mobiliza para buscar outras estratégias para sua sustentabilidade e para sair da informalidade no campo econômico. Sei que não são coisas simples de serem resolvidas, mas precisamos continuar a questionar (e se questionar) e encontrar novas estratégias. (MATOS, 2013, p. 18).

Neste sentido, torna-se necessário dedicar uma especial atenção para saber sob

quais parâmetros os projetos apresentados em editais são elaborados.

3.5 – A ORGANIZAÇÃO COMO COMPOSIÇÃO

“Edital” fala bem de dentro de toda essa situação por ser performado por um artista e produtor que se confessa, ao mesmo tempo, mobilizado, estimulado e

assustado com esse panorama. Jorge Alencar (2014)

Após a finalização do edital, seleção e divulgação da proposta, optei pela

improvisação, para, a partir deste procedimento, compor a obra. Porém, nesse processo

de improvisação, as propostas que não foram selecionadas no “Edital 09/2011 – Para

Aquisição de uma Obra Autoral” acabaram por chegar à cena, o que tensionava a questão

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sobre a autoria da obra.

O espetáculo “Edital” é organizado sobre forma de uma palestra-performática, onde

o performer vai narrando todo o processo de seleção das propostas apresentadas quando

do lançamento do edital. As propostas são apresentadas na obra de formas diferentes:

uma citação formal explicando ou lendo um trecho do projeto enviado; simulação cênica

do que foi proposto no projeto; ou, de forma mais útil, apenas utilizando algum elemento

de determinado projeto, como uma música, por exemplo, sem identificar de qual proposta

era oriunda.

Contudo, mesmo “Edital” sendo uma obra construída a partir de onze propostas

enviadas por onze proponentes/artistas diferentes, fica aparente que a forma como a obra

é configurada é também uma assinatura autoral. Tanto pela forma como me apresento,

um artista/produtor falando na primeira pessoa, como na organização das cenas. A

dramaturgia do espetáculo, enquanto forma de organização dos elementos da cena e

suas relações, é coerente com a formação e com o perfil artístico do performer e o coloca

de forma muito potente no lugar da autoria em “Edital”, mesmo ele não sendo o autor de

nenhuma das propostas que compõem a obra. Para entender melhor o que chamo por

dramaturgia, recorro a Rosa Hércoles:

[...] Identificar a dramaturgia em uma peça coreográfica implica na discriminação do tipo de pensamento que está sendo implementado tanto no movimento quanto no ambiente cênico, observando-se quais relações que foram estabelecidas entre todos os seus materiais constitutivos. (HERCOLES, 2005, p. 126)

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Figura 04: Fábio Osório Monteiro em “Edital” (2011)/ Foto: João Meirelles

Uma teórica que também contribui para que possamos entender tal situação é a

pesquisadora Jussara Sobreira Setenta. Em seu livro O fazer-dizer do corpo – dança e

performatividade, a autora levanta a seguinte proposição sobre autoria:

[...] O corpo da dança contemporânea performativa é um corpo-agente, agenciador, socialmente inscrito, voltado para negociações com que o investiga. É um corpo que não se entende como sendo um constituidor de um sujeito isolado, mergulhado somente em sua criatividade. Essa concepção de sujeito articula um outro entendimento do conceito de autoria. Ao invés de associada a algo que se fundamenta na existência de um original, uma propriedade particular de um dono único, questiona a necessidade de sustentar a existência desse original para legitimar o que, de fato, é único – mas único na forma como organiza informações que são compartilhadas com muitos outros sujeitos. E se são compartilhadas, tais informações caem fora da moldura do “original”, uma vez que se tornam origens múltiplas. [...] É um sujeito constituído por muitos outros – aqueles provenientes de encontros, colaborações, cooperações. (SETENTA, 2008, p. 89)

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Para Setenta, o sujeito, neste caso o artista, é um compartilhador de outros

sujeitos; porém, isso não compromete a ação da autoria por este sujeito, o que se propõe

é uma espécie de coautoria. “O sujeito passa a entender suas ações como sendo de um

reorganizador. O resultado da reorganização é autoral, mas não no sentido original. É

autoral a partir de compartilhamentos, de processos de contaminação”. (SETENTA, 2008:

p. 92)

A ideia de que não existe o “original”, já que as informações postas no mundo

seriam compartilhadas por todos, remete-nos a uma ideia de rede, na qual as relações se

dão de formas múltiplas, com pontos diversos de origem e derivações. Desta forma, na

arte contemporânea não temos mais uma obra como sendo criação de um único autor,

como era entendida a obra de arte na modernidade, mas como resultante de processos

de apropriação e reorganização de ideias. “Quando falamos e pensamos, nossas falas e

pensamentos já não exprimem mais uma essência que nele se exterioriza: eles são como

que colagens que apenas indicam os padrões das redes que nossas articulações tecem”

(PARENTE, 2004, p. 103) .

Em “Edital”, a organização dos elementos da cena é o mecanismo pelo qual o

performer deixa a sua assinatura enquanto artista. Tanto no “Edital 09/2011 – Para

Aquisição de uma Obra Autoral”, quanto na obra coreográfica “Edital”, fica problematizada

a questão referente à autoria da obra.

A apropriação por reorganização não é a única estratégia de criação na arte

contemporânea. Embora o entendimento de autoria, enquanto uma reorganização de

elementos partilhados por vários e distintos sujeitos, seja uma corrente defendida por

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muitos artistas e pesquisadores, esta ainda é uma corrente de pensamento que levanta

muita discussão e polêmica sobre a detenção de direitos autorais, por exemplo.

Nessa perspectiva, o que interessa não é apenas a apropriação, mas a rede de

relações e construção de pensamentos que ela revela. A noção de rede aparece como

uma possível metáfora para a consciência coletiva, que vai desmontando lentamente a

concepção de individualidade na criação. Toda criação parte do pressuposto de uma

coautoria entre o sujeito propositor e os diversos sujeitos que o cruzaram. Nesse sentido,

aproveito para incluir neste processo de autoria o espectador, que atribui os seus

significados quando tem acesso à obra.

A criação artística é sempre uma experiência – para o artista e para o seu público.

Uma experiência impossível de ser descrita com exatidão – tão sutil e íntima. O processo

criador deveria, assim, ser descrito como um procedimento de transferência ou projeção

de imagens da mente do artista para a percepção do espectador. Procedimento, este,

pleno de surpresas e de modo algum automático.

Em 2003, a pesquisadora Helena Katz28, no artigo “O espectador da arte

contemporânea”, reforça a necessidade de implicação do espectador ao acessar uma

criação artística. Ela apresenta como argumento a limitação que o corpo humano tem em

perceber tudo o que existe no mundo. E a nossa percepção trabalha com o que o corpo

está fisiologicamente capacitado para perceber. Desta forma, o mundo, tal qual nós

observamos, nada mais é do que uma construção individual feita por cada um de nós,

dentro dos limites da nossa percepção. Katz conclui que:

28 Jornalista, crítica de arte e professora do Programa de Pós Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC São Paulo

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A partir daí, ao menos uma consequência se impõe: aceitar que aquilo o que a nossa percepção capta, não é o mundo tal e qual, mas o mundo que ela está apta a perceber. Nossa percepção, portanto, funciona como um sistema de mediação com o que nos cerca. ...O espectador, portanto, é esse sujeito construtor daquilo que percebe. Uma espécie de coautor em tempo integral da realidade. (KATZ, 2003, p. 1-2)

Nas culturas e artes contemporâneas, precisa-se, então, não somente de artistas

inventivos mas, principalmente de espectadores criativos – capazes de decodificar as

mensagens artísticas expressas.

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CONSIDERAÇÕES PROVISÓRIAS

Embora a problematização levantada sobre a dança e a sua relação com os editais

enquanto mecanismo de financiamento tenha partido de inquietações bem pessoais, elas

refletem a preocupação de uma classe artística, ou pelo menos de uma parte dela, sobre

as suas implicações nos processos criativos.

Quando aponto possíveis problemas na adoção dos editais como instrumento

quase exclusivo de acesso aos recursos públicos, não estou atribuindo a eles o lugar de

vilões neste conflito. Pelo contrário, acredito que, até o momento, a adoção dos editais

enquanto ferramentas para a implementação de uma política pública e distribuição de

recursos para a cultura é a forma mais democrática e transparente para a realização

deste processo. Contudo, não pode ser a única forma.

Depois da utilização dos editais no processo de execução de uma política pública,

onde o Estado tenta assumir o seu lugar de propositor de uma política, em parceria com a

sociedade civil, muitos avanços puderam ser percebidos. São exemplos disso uma

distribuição mais equânime dos recursos e o aumento do volume financeiro ofertado.

Entretanto, a excessiva adoção de editais está implicando em mudanças no fazer

artístico.

A lógica burocrática e engessada na gestão da verba pública acaba atravessando o

processo criativo. Para a apresentação de um projeto em um determinado edital, é

necessária a mensuração de recursos, insumos, tempo e outras variáveis que, em um

processo artístico, não são tão simples assim de serem mapeadas. A criação artística

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pressupõe experimentação e amadurecimento de ideias. Isso coloca a criação artística

sempre no lugar do risco. E é justamente o risco que a lógica burocrática e engessada na

gestão da verba pública tenta evitar.

Diante disso, fica indispensável a participação de todos os agentes da cadeia

produtiva da cultura, na elaboração de uma política cultural. A responsabilidade da

elaboração e aplicação de uma política cultural não deve estar apenas a cargo do Estado.

Nós, enquanto sociedade civil e classe artística, temos o dever de pensar, conjuntamente

com o Estado, em uma política que possa atender às especificidades da criação artística.

Os editais, do modo como estão sendo aplicados, não dão conta da complexidade da

criação em dança, e acredito que essa realidade se estenda às outras linguagens

artísticas.

Reposicionar o papel do Estado na proposição de uma política cultural já apresenta

um avanço significativo, frente à lógica neoliberal do financiamento de projetos artístico-

culturais através de lei de incentivo. O poder de decisão sobre a distribuição de recursos

não pode estar exclusivamente a cargo das empresas privadas e de seu marketing

cultural. Contudo, mesmo sendo as principais ferramentas neste importante processo de

mudança de postura do Estado, os editais acabam sendo ações pontuais, que não se

configuram como um programa de desenvolvimento para a cultura.

Embora estas sejam as considerações finais desta pesquisa, elas estão longe de

apontar uma solução para o problema. A problematização deste contexto que se

apresenta é um convite para que a sociedade civil, classe artística e Estado possam

pensar e dedicar uma maior atenção às consequências da implementação das políticas

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públicas para a cultura. Entender como elas atuam sobre a criação artística e de que

forma podemos conduzir esse processo é essencial para que nós, artistas, não fiquemos

imunes ao que, hoje, nos permite continuar criando a nossa arte e trazendo novas

questões para o mundo: os editais.

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ANEXOS

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ANEXO 1: ENTREVISTA COM OS ARTISTAS

Questionário

Este questionário é uma tentativa de estabelecer paralelos entre a criação artística e sua

forma de subvenção, tendo como recorte a gestão da Secretaria de Cultura do Governo

da Bahia, no período de 2007 a 2010. Trata-se da pesquisa de Mestrado, desenvolvida

por mim, no Programa de Pós-Graduação em Dança da UFBA, sob a orientação da Profa.

Dra. Gilsamara Moura e que apresenta como título (ainda em estado provisório): Políticas culturais e mecanismos de fomento: implicações nos processos criativos em dança. A hipótese que vem sendo trabalhada é a de que a adoção dos editais como

instrumento predominante na implementação de políticas públicas, vem acarretando

mudanças no fazer artístico dos criadores em dança, tanto no processo criativo, quanto

no resultado artístico em si. Diante desta pequena apresentação, solicito sua colaboração

ao responder as questões abaixo enunciadas. Desde já, agradeço e me comprometo a

referenciar qualquer citação que, por ventura, seja feita na dissertação com as

informações contidas neste documento, assim como o envio da dissertação para leitura

de vocês antes de finalizá-la.

Fábio Luís Oliveira Monteiro

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DADOS PESSOAIS Nome: Clara Faria Trigo

Contato: [email protected]; 71-87854790

Formação (Pequeno parágrafo apresentando informações relevantes de sua formação

artística e/ou acadêmica):

Mestra em Artes Cênicas – PPGAC – UFBA, Graduada em Licenciatura e Bacharelado

em Dança pela Escola de Dança – UFBA; Dançarina, coreógrafa e professora; Inventora

do Flymoon®, equipamento e sistema de movimento; Dirige e produz o programa

independente sobre dança SUA DANÇA, exibido online e na TVE-Ba.

QUESTÕES: 1 – Como você vê a gestão da cultura, em especial para a dança, adotada pelo Governo do Estado da Bahia, na gestão imediatamente anterior a 2007? Antes de 2007, a gestão cultural do governo do Estado oferecia oportunidades pontuais a

artistas das artes cênicas, não distinguindo dança e teatro. As oportunidades eram

oferecidas através de editais que aconteciam uma vez por ano, para os quais apenas

empresas poderiam concorrer. Não havia diálogo, sondagem ou qualquer tipo de

mapeamento de demandas com a classe artística para a elaboração dos referidos editais,

que tinham como única linha de financiamento Montagem e Circulação. Esses editais

eram esperados 1 vez por ano, mas não podíamos contar com essa regularidade. Podiam

ser lançados ou não, sem maiores explicações, sem divulgação.

2 – Como você vê a gestão da cultura, em especial para a dança, adotado pela Secretaria de Cultura da Bahia, na gestão de 2007 a 2010? A partir de 2007, a política cultural passou a distinguir dança e teatro e implementou

instâncias de participação e diálogo entre classe artística e governo. Para mim,

pessoalmente, a partir das mudanças propostas pela gestão cultural em 2007, iniciou-se a

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construção da minha consciência sobre a importância da cultura no desenvolvimento

social, na produção de riquezas, na construção simbólica de um povo e, a partir desse

horizonte que foi se abrindo pela possibilidade de participar das decisões e

responsabilizar-me pelas mudanças desejadas, fui desenvolvendo uma consciência

cidadã antes não exercitada.

3 – Você percebe mudança em seu trabalho de criação, seja na forma ou no resultado, em decorrência dessa mudança na forma de implementar políticas públicas? O meu trabalho de criação continuou pautado em inquietações íntimas e pessoais, ainda

que estas possam ser “coletivizadas” comunicando-se com outras intimidades, mas a

minha produção cultural – em campos não artísticos – foi alterada e potencializada pelas

mudanças nas políticas culturais, que geraram, em grande parte, as mudanças na minha

consciência política sobre o fazer artístico-cultural. Passei a me perguntar e a buscar

entender o que precisamos enquanto coletividade, enquanto classe artística e direcionei

grande parte da minha capacidade produtiva na produção de experiências que dessem

conta das necessidades que ia encontrando. Isso me levou a um papel de articulação e

produção que não era o que eu tinha sonhado, mas me motivavam os resultados. Por

conta disso, me interessei muito pela difusão da produção artística e pela possibilidade de

gerar encontros e diálogos entre artistas, que pudessem fortalecer a consciência política e

todo o campo no qual eu tinha escolhido atuar. Levada por essa consciência, articulei o

Rumos Dança em Salvador, em 2008; Iniciei a produção de um programa de TV sobre

dança, em parceria com a TVE-Bahia; articulei e coordenei o 8º Encontro da Rede

Sulamericana de Dança em Salvador, em 2009, ambos produzidos pela Dimenti

Produções Culturais; idealizei e produzi a Plataforma Internacional de Dança da Bahia,

junto a Catarina Gramacho, em 2009 e junto a Nirlyn Seijas, Catarina Gramacho e

Jaqueline Vasconcellos em 2010, na qual articulamos diversas instâncias de diálogo,

encontro, produção de conhecimento, visibilidade e intercâmbios entre países latino-

americanos, Brasil e interior da Bahia, tais como: os primeiros Seminários sobre

Economia da Dança da Bahia (a exemplo do que vinha sendo produzido no Panorama de

Dança do Rio de Janeiro), as jornadas de estudo e capacitação em curadoria e o catálogo

virtual da dança baiana. Passei a participar ativamente das reuniões da classe da dança,

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estimuladas principalmente pelo Fórum de Dança da Bahia, através das suas principais

articuladoras então: Dulce Aquino, Suki Villas-boas e Lúcia Matos. Esta última cumprindo

a função de Diretora de Dança na FUNCEB, o que tornou o diálogo entre classe artística

e governo fluido e direto. Passei a entender a necessidade de continuidade de trabalho e

vislumbrei a possibilidade de viver do meu trabalho artístico, que até então não me

parecia real e eu nem sequer me perguntava porquê não, acostumada a ser a principal

financiadora dos meus próprios projetos, com o meu trabalho como professora de Pilates

e com o suporte estrutural da família.

Foi possível, a partir da consciência política emergente, fruto da política cultural pautada

na participação social, entender que era possível ter diferentes linhas de financiamento –

para além da montagem e circulação – e entender que o campo artístico-cultural deveria

pautar as ofertas de recursos e não o contrário. Ficou nítida a necessidade de linhas de

financiamento de manutenção de grupo e fui beneficiada duas vezes por essa linha com

meu grupo, o que nos permitiu seguir com atividades para as quais não tínhamos

qualquer outra chance de financiamento, como organização de acervo do grupo,

produção de vídeos e imagens, reflexão sobre o trabalho produzido e capacitação dos

integrantes. Uma das minhas batalhas políticas era não permitir a “descartabilidade” da

produção da dança. Me dediquei a circular e desdobrar meus trabalhos artísticos o

máximo que pude. Resumindo a resposta, entendo que as mudanças na política cultural

do Estado da Bahia transformaram minha compreensão de mundo, minha atuação

política, minha vida, mas não necessariamente minhas questões artísticas.

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DADOS PESSOAIS Nome: Eduardo Oliveira (Edu O.)

Contato: [email protected]

Formação (Pequeno parágrafo apresentando informações relevantes de sua formação

artística e/ou acadêmica):

QUESTÕES: 1 – Como você vê a gestão da cultura, em especial para a dança, adotada pelo Governo do Estado da Bahia, na gestão imediatamente anterior a 2007? Em âmbito nacional, a partir do Governo Sarney, tivemos o surgimento das leis de

incentivos fiscais que se tornaram o principal foco das políticas culturais, no Brasil. Isso

compreende também o pensamento de financiamento da cultura na Bahia até o

surgimento dos editais criados no governo Jacques Wagner.

No que se refere à dança, identifico problemas quanto aos apoios via lei de incentivo

porque os empresários privilegiam a música e sobretudo a música de carnaval, na Bahia.

Conheço poucos colegas que conseguiram captação por este meio de financiamento.

O que acontecia bastante era o “apoio de balcão” que acabava sendo privilégio de

conhecidos, amigos ou artistas renomados que poderiam dar maior visibilidade ao apoio

do governo.

Eu sempre soube do Fundo de Cultura do estado, mas não me recordo, nessa época, de

nenhum projeto financiado por esta via.

2 – Como você vê a gestão da cultura, em especial para a dança, adotado pela Secretaria de Cultura da Bahia, na gestão de 2007 a 2010? Eu acredito que nesse período houve maior incentivo à produção em Dança na Bahia,

quando surgiram diversos grupos e coletivos, e houve maior acesso aos trabalhos em

Dança, à pesquisa, descentralização da produção que ficava restrita a um pequeno grupo

de artistas.

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De certa forma, acredito também que a mudança no currículo da Escola de Dança da

UFBA favoreceu o artista criador/pesquisador, coincidindo com as demandas dos editais

que apareciam naquele momento.

Um dos pontos principais, ao meu ver, foi a aproximação entre Estado e a classe de

dança, com diálogos e escuta para as nossas demandas, nem sempre correspondidas,

mas sem dúvida, tivemos uma abertura maior para o diálogo.

3 – Você percebe mudança em seu trabalho de criação, seja na forma ou no resultado, em decorrência dessa mudança na forma de implementar políticas públicas? Sim. O meu trabalho como artista independente só foi possível graças aos editais. Lembro

que criei Judite em 2006, sem nenhum apoio, sem possibilidade de patrocínio por não ser

um artista daqueles que se favoreciam com o “apoio de balcão”. No ano seguinte, fui

selecionado, com este trabalho, para o Quarta que Dança. O próprio trabalho do Grupo X

de Improvisação em Dança, o qual eu faço parte do elenco, também foi alavancado pelos

projetos aprovados para circulação, montagem e oficinas.

Porém, consigo ver diferenças na criação entre Judite e O Corpo Perturbador, por

exemplo. Se em Judite eu não tinha apoio nenhum, eu tinha maior liberdade no tempo

para a criação e total liberdade para experimentar e errar. Já n’O Corpo perturbador que

produzido graças ao edital de montagem, tínhamos limitações na criação por causa da

rigidez da prestação de contas que dificulta uma pesquisa mais aberta aos fluxos que vão

surgindo no processo de criação. De certa forma, acho que ficamos reféns das notas

fiscais que precisamos apresentar, mesmo se o que surge na criação solicita outro

material, outra elaboração do que havia sido previsto. Sinto que não temos abertura para

o erro que, ao meu ver, é tão necessário num processo criativo.

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DADOS PESSOAIS Nome: Jorge Alencar (Jorge Luiz Alencar Sampaio)

Contato: [email protected] / +55 71 87115314

Formação (Pequeno parágrafo apresentando informações relevantes de sua formação

artística e/ou acadêmica):

Sou graduado em Comunicação Social (UCSAL) e em Dança (UFBA) com Mestrado em

Artes Cênicas (UFBA) e um intenso trajeto como criador, curador e educador. Com

minhas obras cênicas e fílmicas, tenho circulado por todas as regiões brasileiras e por

festivais como: Festival In-Presentable (Espanha), Festival du Film D’Animation de

Annecy (França), Move Berlim (Alemanha), Semana dos Realizadores (RJ), FIVU

(Uruguai) e Indie Lisboa (Portugal). Como curador, atuo em projetos como: com.posições

políticas (RJ), FIAC (BA) e, principalmente, o encontro anual de artes IC – Interação e

Conectividade (BA) realizado pela Dimenti Produções Culturais. Fui professor da Escola

de Dança da UFBA e do Balé do Teatro Castro Alves (BA), entre outros ambientes de

ensino. Junto a outros artistas, fundei o grupo pluriastístico Dimenti em 1998.

QUESTÕES: 1 – Como você vê a gestão da cultura, em especial para a dança, adotada pelo Governo do Estado da Bahia, na gestão imediatamente anterior a 2007? Na gestão anterior ao ano de 2007, em geral, as ações voltadas para dança eram

escassas, pontuais e descontinuadas, a exemplo de raros editais voltados ao apoio de

montagens coreográficas e à circulação de obras artísticas. Como exceção, vale ressaltar

a existência do projeto Quarta que Dança gerido pelo Estado da Bahia, enquanto uma das

poucas inciativas continuadas para o campo da dança, que há alguns anos vem criando

espaços de apresentação e visibilidade para os artistas locais.

2 – Como você vê a gestão da cultura, em especial para a dança, adotado pela Secretaria de Cultura da Bahia, na gestão de 2007 a 2010? No citado período foram criados dispositivos mais claros de fomento à produção artística,

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ampliando a natureza dos projetos apoiados até então e aumentando significativamente o

volume de verba investido nas ações culturais. A criação desses mecanismos de fomento,

ao passo que gerou uma maior transparências nos modos de distribuição dos apoios

operacionalizados pelo Estado da Bahia, gerou um caráter eminentemente protocolar na

relação artista-Estado, implicando na reificação do formato do edital (em vigência em

grande parte do país até o momento presente) como modelo de elaboração de

proposições artísticas muito baseado nos aparatos burocráticos do Estado.

3 – Você percebe mudança em seu trabalho de criação, seja na forma ou no resultado, em decorrência dessa mudança na forma de implementar políticas públicas? Percebo duas mudanças principais. Uma diz respeito a uma melhora nas condições

financeiras e estruturais de minha atuação artística, favorecendo uma maior continuidade

de meu trabalho. A outra está ligada a um jeito de produzir pensamento sobre arte muito

atrelado ao tipo de demanda discursiva operada pelos formulários dos editais.

A criação artística tornou-se sinônimo de elaboração de projeto, com um nível de

mensuração e previsibilidade que constrange, em muitos aspectos, o fluxo imprevisível de

descobertas de um processo de criação. Isso atravessa o jeito como eu elaboro as

minhas ideias artísticas iniciais, o jeito que eu desenvolvo a criação propriamente e o jeito

que essa criação precisa condizer com as previsões de orçamento e cronograma que eu

apontei em meu projeto.

Mesmo em maior quantidade, os editais na Bahia ainda estão mais ligados a ações

pontuais e menos a ações continuadas, com exceção dos editais de manutenção a

grupos e companhias e daquele voltado aos projetos calendarizados. (É também estranho

ver meus parceiros artistas comemorando o fato de serem contemplados num edital como

se estivessem participado de uma loteria e como se esse fosse o único meio de

viabilização de suas propostas). Mas em se tratando do fôlego na subvenção às artes por

parte do Estado, a realidade é bem positiva se comparada a anos anteriores,

principalmente porque, desde o governo Lula, começou-se a debater políticas públicas

para a cultura com mais seriedade e coletivamente.

4- Como você percebe as questões que permeiam esta discussão sobre edital x

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criação no solo criado por mim, "Edital", e o que você considera pertinente apontar nesta obra? “Edital” fala bem de dentro de toda essa situação por ser performado por um artista e

produtor que se confessa, ao mesmo tempo, mobilizado, estimulado e assustado com

esse panorama. Há tanto uma clara adesão aos dispositivos vigentes – por parte de quem

os domina e lida com eles em seu trabalho diário -, como um espanto de quem precisa

configurar uma ideia artística, sendo “autônomo”, “autoral” e “portátil” – três dos

controversos parâmetros de sobrevivência resultantes desse processo. Ao sucumbir ao

desespero capitalista de comprar uma ideia de outrem para responder às demandas

geradas pelo contexto, produz-se uma performance absurda que se infiltra nos meandros

da estética da burocracia para legitimar um exitoso - e já arquetípico - “artista de edital”.

DADOS PESSOAIS

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Nome: Sérgio Pereira Andrade

Contato: [email protected]

Formação (Pequeno parágrafo apresentando informações relevantes de sua formação

artística e/ou acadêmica):

Sérgio Andrade tem experiências como diretor, criador, bailarino, produtor e pesquisador

em Dança e Performance. É Professor Assistente do Departamento de Arte Corporal da

Universidade Federal do Rio de Janeiro, cursos de Bacharelado em Teoria da Dança,

Licenciatura em Dança e Bacharelado em Dança. Doutorando em Filosofia pelo

Departamento de Filosofia da PUC-Rio, com Bolsa Sanduíche CAPES (2014-2015) para

Visiting Scholar na New York University (EUA); Mestre em Filosofia pelo Departamento de

Filosofia da PUC-Rio (2013); Mestre em Artes-cênicas pelo Programa de Pós-Graduação

em Artes Cênicas da UFBA (2010) e graduado em Licenciatura em Dança pela Escola de

Dança da UFBA (2008). Em 2005, junto a outros artistas, fundou o Grupo CoMteMpu's

Linguagens do Corpo (Salvador-Ba), tendo sido seu diretor até o ano de 2014, realizando

trabalhos de pesquisa e criação em Dança, Performance, Intervenção e Vídeo. Atua

também no campo de consultoria, elaboração e gestão de projetos culturais, sobretudo,

projetos para Dança. Nos anos de 2009 e 2010 foi um dos articuladores do Fórum de

Dança da Bahia, juntamente com Suki Vilas Boas e Lúcia Matos. Integrou o Núcleo de

Estudos em Ética e Desconstrução da PUC-Rio (NEED) de 2011 até o encerramento de

suas atividades no ano de 2013.

QUESTÕES: 1 – Como você vê a gestão da cultura, em especial para a dança, adotada pelo Governo do Estado da Bahia, no gestão imediatamente anterior a 2007? Antes de iniciar, gostaria de declarar que tudo que puder escrever aqui será a partir de

uma memória esburacada, cheia de gaps, de algumas experiências de um artista

independente que desde sempre trabalhou em redes de cocriação entre pessoas, desejos

e lugares (em muitos atritos). Daí as citações de nomes, eventos, fatos por vezes

desviantes de uma unidade, serão incondicionais.

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Já se passaram alguns anos e talvez eu não me lembre muito bem como funcionava o

programa de políticas públicas na gestão anterior a 2007. Comecei a participar mais

ativamente dos encontros do Fórum de Dança da Bahia ainda em 2005, quando se

formavam as câmaras setoriais da cultura – diretriz vinda do Ministério da Cultura, na

época liderado por Gilberto Gil, do Governo Federal. Na Bahia, ainda não possuímos uma

plano de gestão discutido com artistas e agentes da cultura. Não me recordo de espaços

para diálogo, nem mesmo de um plano de acesso às elaborações de ações.

Do que eu me lembro, os acessos mais diretos aos recursos do Estado se centralizavam

em dois editais: Apoio a Montagem de Espetáculos do Estado da Bahia (não tenho

certeza se o nome era exatamente assim); e o Quarta que Dança. Eventualmente, tinha o

Circulador Cultural também. O montante dos recursos era bem reduzido... lembro que

selecionavam-se cerca de três projetos no Edital de Montagem, em duas categorias super

discrepantes, algo como uma no valor de R$ 30mil e outra no valor de R$ 8mil. Em geral

os prêmios ficavam com as montagens de Teatro, ou artistas que vinham dessa

formação, e quando havia algum espetáculo de Dança eu tinha impressão que estávamos

sempre girando nos nomes das mesmas pessoas.

Acredito que havia dois critérios nos editais que destruíam toda possibilidade de fomento

aos novos artistas naquele cenário: na inscrição, a obrigatoriedade do proponente ser

“Pessoa Jurídica”, e na avaliação, o “reconhecimento e notoriedade artística dos artistas

envolvidos no projeto”.

Para mim, naquele tempo, e ainda hoje, pensar em estratégias efetivas de fomento para

novas produções é essencial à manutenção de qualquer política pública cultural que

pense na arte e na cultura como um processo dinâmico.

Eleger “notoriedade” como critério, no entanto, dizia que interessava àquele mecanismo

apenas premiar, dar um “gift”, ou melhor, apenas marcar um selo sobre determinados

nomes que ecoavam dentro de circuito muito restrito na produção baiana. Nenhum projeto

do interior do Estado, por exemplo, poderia chegar tão facilmente a um patamar de

notoriedade que se fizesse notório (e aqui, perdão a redundância necessária) frente

àquelas bancas de avaliação da FUNCEB. Da mesma maneira, tendo em vista que se

hoje, com tantos editais e fomentos (níveis estadual e federal), manter uma empresa

apenas para inscrições de editais de um grupo de dança é difícil imagina dez anos atrás?

Empresas de produção cultural interessadas em trabalhar com artistas e grupos de dança

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quase não existiam.

Lembro que quando iniciei junto a outros artistas as atividades do Grupo CoMteMpu’s, em

2005, procurei produtores. Através de uma indicação de Beth Rangel, cheguei a iniciar

uma conversa com uma empresa de produção que também recém iniciava suas

atividades no Rio Vermelho. A conversa com o produtor foi até o encontro quando ele viu

o orçamento: “acho que não temos como trabalhar juntos, pois estou [a produtora, que

basicamente era ele] pensando em projetos maiores” – mais ou menos foi essa resposta

que ele me deu. Era um projeto para a Funarte, valor orçamentário de R$ 30mil (o

máximo que se pagava naquela época). Quando coloquei todos os gastos no papel,

sendo o mais coerente possível com os esforços laborais que viriam a ser investidos

naquele projeto, o produtor abandonou todo diálogo sem pestanejar. [Continuei

acompanhando esse cabra por ai, mirando à distância, confesso; vejo que ele conseguiu

o que buscava: tornou-se diretor de museu, faz exposições e curadorias para artes visuais

e música... Do que acompanho, a dança continua passando longe de sua trajetória]. Ou

seja, exigir Pessoa Jurídica naquele cenário era também cortar a maioria das produções

independentes. Apesar desse relato se referir a um episódio pontual de preparação de um

projeto para a FUNARTE, a coisa não se diferenciaria muito se fosse para o prêmio da

FUNCEB.

Das poucas reuniões que me lembro de ter participado com o gestor da DIMAC -

FUNCEB, que se não me engano, era Sérgio Sobrera, na época, cheguei a contestar

muito veementemente tais critérios. Para minha surpresa, tal contestação era

acompanhada por alguns artistas, mas lembro-me de ter ouvido claramente de um colega,

acompanhado por muitos outros, que era importante a manutenção de tais critérios para

que os editais não se enchessem de inscrições de estudantes da Escola de Dança da

UFBA, sendo que ele mesmo foi aluno da própria escola. Esse critério de exclusão

perdurou até o início da outra gestão, foi uma polêmica que se manteve nas reuniões do

Fórum e, talvez, porque o fórum se reunia quase sempre na Escola de Dança, e porque

também talvez, a Escola estivesse passando também por um período de efervescência de

novos grupos e artistas, tal critério foi cada vez mais pressionado até que caísse de vez

na gestão seguinte. Importa lembrar que antes de assumir a futura gestão de 2007, Lúcia

Matos era uma das grandes articuladoras do Fórum de Dança da Bahia. Ela conhecia as

demandas locais, além de acompanhar outros cenários de discussão das políticas

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públicas no país.

Da experiência com o “Quarta que Dança” antes da gestão de 2007, poderia destacar a

vez em que nos inscrevemos com o espetáculo “Obras de uma carta anônima”, no ano de

2006, e ficamos como um dos primeiros suplentes. O Edital havia anunciado um número

de vagas para selecionados e no entanto a programação durou mais do que o número de

selecionados. Em vez de convocar então os suplentes do edital, a FUNCEB optou em

convidar artistas eleitos sabe-se lá como. Recordo-me que um desses artistas foi o

Wagner Schwatz, se não me engano com o espetáculo “Transobjeto”, que havia se

inscrito no mesmo edital, mas também não fora selecionado e não era um dos suplentes.

Por alguma razão, Wagner Schwatz que tinha produção toda fora do Estado da Bahia, foi

convocado e os outros artistas suplentes não. Sem entrar no mérito sobre a obra de

Schwatz, tal episódio deixou vazar a fragilidade dos moldes de seleção de tais

mecanismos, tão escassos no Estado. Se já eram poucas as possibilidades para

participar dos selos de contemplados do estado, os gifts, por que o Quarta que Dança era

aberto a inscrições de artistas de outros estados?

Recordo-me, outra vez, que esse ponto também foi debatido no Fórum, sobre qual seria a

prioridade daquele mecanismo; para além de repassar a verba e disponibilizar o espaço

para apresentação, o que pretendia o “Quarta que Dança” como mecanismo de acesso ao

pensamento de política pública do Estado? O que ele pretendia partilhar? Impossível

relatar todas as ruínas de memória que me ocorrem agora durante essa escrita, mas tal

discussão chegou de alguma maneira contribuiu para que as edições futuras da gestão de

2007 se fechassem entre as produções locais. Daí, claro, surgiu também como questão o

que fazer para garantir o intercâmbio entre artistas locais e nacionais como parte da

política pública do Estado. Essa foi sempre uma discussão sem solução. Lembro que no

início da gestão de 2007 foram rascunhadas algumas propostas de intercâmbio,

sugeridas pelo próprio Estado, que trouxeram alguns grupos internacionais para

apresentações no TCA, mas nada muito seriamente foi investido na expansão de tal

proposta.

Havia também o FazCultura. Algo “tão-tão” distante da minha realidade naquela época

que nem me arrisco em escrever muito sobre. Era um modelo de incentivo por isenção

fiscal que somente funcionaria para grandes projetos. Se até as pequenas produtoras

culturais já fugiam quando ouviam falar “Dança”, o que dizer sobre os grandes

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empresários? Cheguei ir até a Ellen Melo, na época produtora do Dimenti, para que ela

me ajudasse a desvendar como participar daquele “negócio”. Ela foi ótima nas dicas!

Entendi direitinho como fazer, mas ainda assim o FazCultura sempre me soou como algo

extremamente inacessível para as produções de um artista independente. Somente

projetos de grande visibilidade poderiam atrair esse tipo investidor, como era o caso do

memorável “Ateliê de Coreógrafos Brasileiros”, que investia pesado em divulgação entre

outdoors, TV, publicidade, etc.

Somado a isso tudo, ainda existia a Escola de Dança da Funceb e o Balé do Teatro

Castro Alves. Todas essas ações juntas conformavam um tipo de política pública do

Estado da Bahia para a Dança, mas pouco se discutia como o agenciamento dessas

ações delineavam um certo perfil da política que se esperava, ou melhor, de uma agenda

política, com planos, diretrizes e metas; e nesse sentido, poderia dizer que era uma

agenda política que pouco pensava sua ética, pois se não havia espaço de discussão e

avaliação entre os setores engendrados por essa política, não havia também espaço para

o outro, a chegada do outro, o que seria um primeiro traço da ética em qualquer política.

Arriscaria ainda mais: se não havia ética, não poderíamos falar de política. No máximo o

que se havia, tomando essa minha curta experiência que dei conta de relatar aqui como

referência, não passava de administração de bens. E uma mera agenda de gastos e

esforços do equipamento público [algumas vezes, bem sucedida e outras tantas, não],

porém muito distante do que poderíamos chamar de uma política pública cultural.

2 – Como você vê a gestão da cultura, em especial para a dança, adotado pela Secretaria de Cultura da Bahia, na gestão de 2007 a 2010? Houve uma tentativa de abertura ao diálogo, esse foi o grande ponto de diferença no

período de 2007 a 2010. Passou-se a perguntar: como podemos fazer e quais demandas

nós temos? Esse “nós” era então mais friccionado entre Estado e organizações da

sociedade civil. A entrada de Lúcia Matos para DIMAC marcou esse assertiva. Como já

disse, ela era um membro do Fórum de Dança da Bahia (FDB), do Fórum Nacional de

Dança e uma das representantes das Câmaras Setoriais. Seu plano de gestão, que se

não me engano se chamava “Pró-Dança” e que fazia referências ao plano de dança do

Estado de Pernambuco, tentou rascunhar de alguma maneira uma continuidade entre as

discussões geradas nesses espaços de diálogo que já ocorriam desde a gestão anterior,

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mas que pouco tinham inserção no pensamento das políticas de governo para cultura até

2007. Tenho retornado muito a participação do Fórum na construção dessas políticas,

porque foi ali que mais vi questões serem efetivamente debatidas e partilhadas. Não há

como não reconhecer os traços do Fórum de Dança da Bahia na elaboração das políticas

públicas do Estado para o setor; tanto que nos outros setores, onde os fóruns não eram

tão organizados, ou quase não existiam, os caminhos de elaboração para as políticas que

se iniciavam nesse período, seguiram lógicas muito distintas da área da dança.

Não sei avaliar se para melhor ou não, mas tal distinção deu à elaboração das políticas

para Dança outro agenciamento de tempo. Não sei se posso dizer isso com tanta certeza,

mas tinha a sensação que o setor da dança estava mais maduro nas discussões quando

nos víamos em reuniões que abarcavam todos os setores. Não maduros no sentido de

mais experientes, porém sim no sentido de sabermos mais claramente quais eram nossas

demandas e urgências, até porque, diferentes dos outros setores, a atenção que era dada

a Dança pelo Estado anteriormente era quase zero. Nesse sentido, me parece que

quando íamos às reuniões tínhamos que ser mais pontuais, com proposições diretivas e

assim o FDB tornou-se uma referência, temporal inclusive, pois as demandas que

apresentávamos tinha histórico de discussão e muitos pontos de conexão, como o as

discussões da Câmara Setorial de Dança, do Fórum Nacional de Dança, além do apoio

da Universidade, através da Escola de Dança da UFBA.

A maior lembrança do período inicial é essa: o diálogo. Lembro-me que no início da

gestão de 2007 eram tantas reuniões com os gestores da SeCult que alguns colegas

começaram a desistir dos encontros, pois ao mesmo tempo em que se via a importância

em tais encontros também se sentia que estávamos nos repetindo muito... havia uma

urgência! O buraco na atenção à Dança na gestão anterior era tão-tão imenso, que era

quase unânime tal necessidade de urgência. Os artistas e os agentes da cultura estavam

“sedentos”, queriam ver algumas daquelas discussões já contempladas. Assim o “Pró-

Dança” foi uma resposta que aliviou um pouco, ou quase que imediatamente, os corações

e as salivas.

Porém, apesar de reconhecer que havia um esforço para se produzir um pensamento da

política mais do que a execução imediata da ponta final, que era como se ter acesso, ou

melhor, como partilhar tal pensamento – o edital – foi essa última ponta que também mais

marcou ou despertou o interesse de muitos agentes da cultura nesse período.

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Não pude acompanhar muito os outros setores, mas lembro de que a sensação para

alguns da Dança é que, com a chegada dos editais, ou melhor, a massiva ampliação e

investimento no edital como principal método de acesso (inclusive com a queda da

exigência de pessoa jurídica), que era acompanhado com o discurso de “democracia”,

finalmente teríamos chegado a um ponto inicial de uma política pública para cultura

efetiva e participativa. Lembro que as minutas dos editais eram disponibilizadas para

consultas, e antes da publicação era reservado um tempo para envio de críticas e

sugestões, que poderiam ser atendidas pelos gestores, na medida do possível. Até

mesmo a eleição dos nomes de quem avaliaria os projetos entrava nessa discussão em

atrito governo e organizações da sociedade civil. Havia diferentes meios de participar: ou

através do FDB, ou através de Grupos e instituições que os artistas ou agentes da cultura

estivessem envolvidos (universidades, grupos de dança, escolas, associações, sindicato,

etc.); ou ainda diretamente, nas reuniões com os gestores abertas a toda comunidade.

Meio a toda conversação, somava-se ainda a ampliação de recursos, com a chegada do

Fundo de Cultura, além de um rascunho de diversidade de linhas. Digo rascunho porque

algumas dessas linhas depois foram desaparecendo, como foi o caso da linha de

“Pesquisa e Memória da dança” e “Residência Artística no Exterior” (para citar algumas

que lembro agora). Alguns dirão que essa última mudou de nome, e tornou-se parte do

programa de Difusão e Intercâmbio do Estado da Bahia, mas posso dizer que os dois

mecanismos são diferentes, abrem margem para proposições diferentes. Tive projetos

aprovados nos dois mecanismos e reconheço que o investimento direto em “Residência

Artística no Exterior” reserva especificidades que podem não ser contempladas do

Programa de Difusão de Intercâmbio, mas infelizmente não poderei discutir sobre isso

agora.

Durante muito tempo acreditei nos editais, na sua práxis. Porém sempre fiquei com um pé

atrás quando se dizia [diz] que esses mecanismos eram [são] em si democráticos. Venho

aprendendo cada vez mais que democracia nunca é nada em si; é sempre uma promessa

espectral (e aqui, fazendo ecos a Derrida, falo não somente no setor da cultura, mas é da

democracia o seu estado espectral: algo que achamos que já vivemos, que já passou, e

que está sempre porvir... a democracia nos assombra). Aprendi muito cedo também que

edital é uma linguagem, tem seus rituais performativos de eficácia. Aqueles que

pretendem participar do Edital têm que, antes mesmo de desejar participar, estar sob tais

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critérios de eficácia. É preciso saber escrever projeto, é preciso poder saber escrever... ter

o que inscrever, inclusive.

Lembro que a primeira leva de editais do Estado, o CoMteMpu’s foi contemplado com três

projetos, em mecanismos diferentes. Eram projetos bons, claro, tinham seu grau de

“interessância”. Mas tenho também plena consciência que eles foram aprovados porque

não haviam muitos outros que podiam participar daquele mecanismo, dentro daqueles

critérios e a tempo dos prazos. O CoMteMpu’s era um grupo que já existia há pouco mais

de dois anos, tinha já uma curta trajetória de trabalho, antes da ampliação dos editais.

Quem poderia se inscrever para circulação se não os grupos que tinham o que propor

para circular, por exemplo, no primeiro “Edital Ninho Reis – Circulação de Espetáculos de

Dança no Estado da Bahia”, lançado em 2007? Agora, quais grupos existiam, quantos,

antes dos editais se expandirem, mantendo um certo grau de continuidade, que poderiam

se inscrever nesses mecanismos? E depois de aprovado, quem conseguiu sobreviver ao

Edital (com todos seus problemas de atraso de repasse, burocracia extrema – que certa

vez, a tempo, chamei de “burrocracia” entre alguns posts no blog do CoMteMpu’s – falhas

diversas, etc)?

Avalio que com o passar do tempo toda aquela euforia inicial se estagnou ai, no edital. A

impressão que tenho sobre esse período é que em um dado momento a coisa de

estabilizou, com alguns pequenos aprimoramentos, mudança de nomes, algumas regras

e valores, mas pouco se mexeu estruturalmente. Chegou-se a uma fórmula de aplicação

da política e depois pouco se discutiu a política ou modos de execução da política. Os

rascunhos de uma ética-política que fizemos logo no início foram se enfraquecendo, pois

passamos a ter que atender a uma velocidade de produção que não nos dava tempo para

dedicarmos a pensar o porquê atendermos a esses editais dessa maneira. Para mim, que

participei engajadamente, apoiando inclusive a ampliação de tais mecanismos, ficou um

sentimento de que mesmo eu, que estive ali participando muito perto da elaboração

daquelas diretrizes, não posso dar conta dessa política que se encerra [centramente] no

Edital. Sei escrever, sei pré-produzir, produzir, planejar, prestar conta, sou totalmente

elegível (até fundei uma empresa com CNPJ, cheio de números e passaportes), mas não

tenho como sustentar os meus desejos como artista dentro dessa economia do edital.

De política, passamos a uma economia. Em um dado momento nesse período de 2007 a

2010, ser artista da Dança na Bahia tinha referência quais/ quantos editais você ganhou

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esse ano. Por essa referência se mediam quantos possivelmente você ainda poderia

ganhar. Vi grupos sendo acusados de monopolizar os editais; mas para mim, sempre

acreditei que o que acontecia era a afirmação daquilo que chamei agora pouco de

condições de eficácia da performatividade da coisa edital: em que medida você conhece

os rituais dessa linguagem e se és, portanto, elegível para executá-la. A [in]felicidade via

um edital se dá aí. Os ganhos e perdas, o engendramento de tal economia do edital,

pulverizou, outra vez, os rascunhos de nossa promessa espectral de política cultural.

Por outro lado, se viu nesse período também um boom de produções independentes.

Novos grupos, novos artistas, outras formas de articular se produziram. O medo dos

meninos da UFBA teve que ser reduzido, pois era incondicional que as produções

tivessem alguma relação com a universidade. Afinal, escrever projeto é parte do cotidiano

de qualquer aluno universitário.

Em 2010, o CoMteMpu’s foi contemplado no Edital de Apoio a Grupos Artísticos do

Estado da Bahia, na categoria 1, R$ 150 mil. Era a maior categoria do edital, destinada a

grupos com no mínimo 3 anos de continuidade de trabalho (além de exigências

burocráticas como CNPJ, registros dos profissionais na delegacia regional do trabalho, o

famoso e polêmico DRT, etc), que contemplaria apenas um grupo de dança e um grupo

de teatro. Desde que entrei nessa discussão sem fim sobre política pública para Dança,

sempre ouvi que a “manutenção” dos artistas e grupos era o auge de todas experiências

de política pública no Brasil, e fora, como no modelo gestado pela França nos anos 80.

Ou seja, inscrever uma proposta para esse edital, na minha experiência, era colocar a

prova tudo aqui que ajudei a gestar ativamente na política pública do estado, estando fora

do governo [Sempre fui artista independente. Nunca tive um espaço garantido por

nenhuma instituição para trabalhar com meu grupo. Tivemos apoios, mas todos

conquistados a duras penas, insistindo em vínculos que por vezes só existiam em nossos

imaginários]. Realizar o projeto de Manutenção apoiado pela política pública do Estado

tinha um valor histórico, simbólico, até porque era o primeiro ano de um edital com tal

perspectiva. No entanto, a experiência foi pavorosa, pois fomos vitimas da economia, ou

melhor, do comércio gerado pelos editais.

O “Pró-dança” com o passar do tempo foi esquecido... virou contabilização de edital. O

Estado virou uma máquina de produzi edital, mas pouco se dedicou a pensar como dar

conta da continuidade plena, ou em condições mínimas de plenitude, da máquina.

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Resumindo a longa história, foram quatro anos tentando encerrar um projeto de

manutenção. Infinitos atrasos de repasse e as burrocracias sem fim nos levaram a trocar

de projeto infinitas vezes. O projeto de manutenção, sem dúvida, contribuiu para o

desfazimento de muitos elos afetivos do Grupo CoMteMpu’s. Brigas internas foram

geradas pelo dinamismo da “manutenção”, que além de todos os problemas de ordem

institucional, ainda exigia de nós um tipo de organização que não era compatível com

nosso modo de trabalho. Nenhum grupo que trabalhe com redes de cocriação consegue

manter uma mesma proposta atividades que se iniciam e são interrompidas, seguindo

essa gagueira por quatro anos. Ao mesmo tempo, não podíamos desistir do projeto, pois

a existência do contrato e todo fator jurídico implicado daí nos colocava uma outra

responsabilidade que pouco poderíamos dar conta. Se o recurso não chegava, não havia

muito o quê fazer e com certeza cancelar o projeto nunca pareceu a melhor opção.

Arrastamos quatro anos esse projeto, terminamos agora há pouco, fazendo um esforço

para manter a qualidade de nossas proposições. O projeto aconteceu. Realizamos todas

as ações que nos comprometemos, salvo as devidas e incondicionais adaptações trazidas

pelo tempo (pra se ter uma ideia: quando nos inscrevemos o grupo tinha 5 anos de

trabalho continuado, hoje são nove anos e já nos perguntamos se afirmar “continuado”,

sem titubear, ainda faz sentido), mas a proposta de manutenção enquanto política pública

falhou.

A máquina pública é burra e lenta. Já é sabido por todos que ela não dá conta de

acompanhar o dinamismo da cultura. O edital, em algum momento nos cria uma ilusão de

que vamos conseguir dobrar “a coisa” toda, mas “a coisa resiste”.

3 – Você percebe mudança em seu trabalho de criação, seja na forma ou no resultado, em decorrência dessa mudança na forma de implementar políticas públicas.

São inevitáveis tais mudanças. Meu relato até aqui já disse muito sobre isso, mas preciso

ainda registrar que não me interesso em realizar processos que partam da iniciativa de

atender a um edital. Ou seja, não proponho trabalhos em determinados moldes apenas

para atender à economia do edital (a forma de implementar políticas nos últimos anos).

Acredito que perde-se muito aí; para todos os lados, inclusive para mim, que nessa

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“antipatia” ou “apatia” deixei de produzir muita nos últimos anos [mas o que é mesmo que

se quer dizer que “produzir” em dança? Tenho pensado sobre isso... tenho pensado

inclusive se essa palavra me interessa ou se preciso gastá-la um pouco mais]. Nunca fiz

um projeto para atender a um edital. Ao mesmo tempo entendo quando vejo alguns

artistas tratando sua criação desse jeito, sobretudo quando usam o argumento “tenho que

pagar minhas contas”; sim, há pessoas que vivem com orçamentos majoritariamente

alimentados por esses recursos, e se para pagar contas precisam inventar 10 projetos por

ano, então elas farão 11 projetos. Eu até acredito que algumas delas desenvolvem assim,

dessa necessidade, uma capacidade criativa singular em consonância ao atendimento a

tal economia, mas acredito também, e quero acreditar, que essa não pode ser a única

solução. Tenho ainda esperança que não nos relacionemos com a dança somente por

meios de tais objetos, tais mecanismos.

DADOS PESSOAIS Nome: Dudude Hermmann

Contato: [email protected]

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Formação (Pequeno parágrafo apresentando informações relevantes de sua formação

artística e/ou acadêmica):

QUESTÃO

Você percebe mudança em seu trabalho de criação, seja na forma ou no resultado, em decorrência da adoção dos editais enquanto instrumentos predominantes na implementação das políticas públicas?

Com certeza, os editais, acredito eu, modificaram e muito os modos operantes de se

trabalhar arte.

A Projetista é um trabalho construído em experiências adquiridas de fato.

Venho dos anos 70 e por assim dizer aprendi a fazer escutando as urgências que se

apresentavam juntadas no desejo de ter com o outro, de colocar coisas no campo da

expressão, de experimentar, de tentar e tentar de novo

Com o aparecimento deste modelo justo, objetivo, justificativa comecei a tropeçar, pois

qual poderá ser realmente um objetivo em arte e com realmente justifica o fazer arte.

Questões para minha pessoa muito difíceis de resposta.

A arte passou a pertencer a ciência exata, haja visto que tudo se resume na planilha

orçamentaria, e para não incomodar ela deve ser obediente, obedecendo todos os

critérios de um determinado Edital que se coloca determinante para seu desejo de

criação.

Tive um estudio de 94 a 2009 fechei com prazer, tive uma companhia de 92 a 2007

encerrei com prazer, se perguntam porque? Eu respondo : não tinha mais saúde para

tantos editais, tantos projetos lançados ao vento, e nenhuma certeza de apoio e

visibilização.

A receita do estudio : desapareceu, ninguém mais queria pagar as mensalidades, contra

partida social modificou também o aprendizado em dança.

Ainda não vi um Edital que preze pela confiança no artista, e pela liberdade do fazer

alterando os rumos pretendidos por entrar em um processo e encontrar questões mais

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potentes.

Tenho esperança, mas hoje em dia economizo minha imaginação, faço cada vez mais

simples.

Se perguntam o que vc quer ser quando crescer??? rsrsrs gostaria imensamente de

trabalhar com gente, de criar com gente, de gastar para nada, para o exercicio da

imaginação, criar mundos de potencia sensível.

Por enquanto estamos todos reféns destes mecanismos, dependentes por uma simples

questão de sobrevivência.

E infelizmente isso não é só comigo.

ANEXO 2: TEXTO DO EDITAL 09/2011 – PARA AQUISIÇÃO DE OBRA AUTORAL

   EDITAL  09/2011  -­‐  PARA  AQUISIÇÃO  DE  OBRA  AUTORAL  

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   Fábio   Osório  Monteiro,   no   uso   das   atribuições   que   lhe   confere   a   Dimenti   Produções   Culturais  LTDA,  torna  público  o  presente  edital  do  EDITAL  09/2011  -­‐  PARA  AQUISIÇÃO  DE  OBRA  AUTORAL,  válido  em  todo  o  território  nacional.      1. DO  OBJETO    1.1  Constitui  objeto  do  presente  Edital  a  seleção,  em  todo  o  território  nacional,  de  01  (uma)  única  proposta   de   obra   autoral   de   texto,   coreografia,   tema,   ideia   ou   projeto   de   criação   cênica  performática,   que,   depois   de   selecionada,   poderá   ser   desenvolvida   de   forma   autônoma   pelo  performer   Fábio   Osório   Monteiro   (vide   currículo   no   Anexo   I),   do   Grupo   Dimenti,   de   Salvador,  Bahia,  em  trabalho  solo  de  teatro  e/ou  dança.      

Agenda  do  Edital  

Inscrição   18  de  abril  até  o  dia  06  de  maio  de  2011  (o  prazo  da  inscrição  se  encerra  às  18  horas)  

Seleção   De  07  a  11  de  maio  de  2011  Divulgação  dos  resultados  da  seleção  

Até   12   de  maio   de   2011.  O   resultado   será   divulgado   através   do  site  www.dimenti.com.br/blog.  

   2. DAS  CONDIÇÕES    2.1   Estão   habilitados   a   participar   do   EDITAL   09/2011   -­‐   PARA   AQUISIÇÃO   DE   OBRA   AUTORAL  dramaturgos,   diretores   teatrais,   atores,   dançarinos,   coreógrafos,   artistas   plásticos,   músicos,  performers,  teóricos  e  criadores  em  geral,  na  qualidade  de  pessoas  físicas,  sem  distinção  de  credo,  cor,  religião,  raça,  estilo,  qualidade  estética;      Parágrafo   Único   –   Não   é   permitida   a   participação   de   integrantes   do   Dimenti,   parentes   em  qualquer  grau  de  membros  da  Comissão  de  Seleção,  nem  os  membros  da  referida  Comissão.    2.2  Os   participantes,   a   partir   de   agora   identificados   como   “proponentes”,   poderão   se   inscrever  apenas  como  pessoa  física.    2.3  Cada  proponente  poderá  inscrever  quantas  propostas  desejar.   Parágrafo  Primeiro  –  A  proposta  apresentada  neste  edital  poderá  ser   inscrita  em  qualquer  outro  edital  de  qualquer  outra  instância,  pública  ou  privada.  

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 Parágrafo   Segundo   –   Em   caso   de   apresentação,   por   um  mesmo   proponente,   de   mais   de   uma  proposta,  o  artista  performer  se  reserva  o  direito  de  fundir  as  ideias  desejadas.    2.4  O   prêmio   se   destina   à   seleção   de   uma   ideia   cênica,   que   tanto   pode   ser   apresentada   como  questão   ou   assunto   inicial,   a   ser   integralmente   desenvolvida   pelo   performer   Fábio   Osório  Monteiro,   (Dimenti-­‐BA);   como   pode   vir   acompanhada   de   uma   sugestão   formal,   como   texto  escrito,   coreografia,   trilha   musical,   projeto   de   encenação.   Ainda   que   estruturada   sob   uma  proposta  formal  (texto,  coreografia,  música,  ambiência  visual  etc.),  a  ideia  poderá  ser  aproveitada  em  outra  concepção  estética  pelo  performer.  O  texto,  coreografia,  etc,  poderá  ser  desconstruído,  rearranjado,  mixado  a  outros  materiais  ou  editado,  segundo  a  concepção  cênica  do  performer  e  de  seus  colaboradores  diretos.    Parágrafo   Primeiro   –   A   seleção   da   proposta   não   supõe   a   participação   direta   do   proponente   no  processo  de  montagem.    Parágrafo  Segundo  –  O  proponente  deverá  apresentar  carta  de  propriedade  e  liberação  total  dos  direitos   autorais,   ao   performer,   no   caso   a   escolha   da   sua   proposta   ao   edital.   (vide  modelo   no  anexo  II)    2.5  A  proposta  selecionada  será  desenvolvida  de  forma  cênica,  visando  apresentação  de  agosto  a  setembro  de  2011,  no  Teatro  do  ICBA  Goethe  Institut  –  Salvador/BA.    Parágrafo  Primeiro  –  O  resultado  cênico  deverá  ter  a  duração  de  até  35  (trinta  e  cinco)  minutos.    Parágrafo  Segundo  –  O  resultado  cênico  será  de  propriedade  autoral  e  intelectual  de  Fábio  Osório  Monteiro,  cabendo  só  a  ele  decidir  sobre  a  liberação  e  negociação  da  obra.      3. DA  EQUIPE    3.1  Além  de  Fábio  Osório  Monteiro,  performer  e   idealizador  do  projeto  farão  parte  da  equipe  os  seguintes  profissionais:    

a) Jacyan  Castilho  –  Cocriadora  (vide  currículo  no  anexo  I)  b) Gabriel  Pedreira  –  Registro  e  produção  (vide  currículo  no  anexo  I)  

 Parágrafo   Único   –   A   concepção   de   cenário,   figurino,   iluminação   e   demais   recursos   será   de  responsabilidade  do  performer  e  da  equipe  diretamente  envolvida.      4. DAS  INSCRIÇÕES    4.1  As  inscrições  serão  realizadas  no  período  de  18  de  abril  até  o  dia  06  de  maio  de  2011,  às  18h.    

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4.2  Serão  desconsideradas  as  inscrições  feitas  após  a  data  e  horário  de  encerramento.    4.3  As  inscrições  acontecerão  única  e  exclusivamente  por  meio  eletrônico.  Os  projetos  deverão  ser  encaminhados  para  o  e-­‐mail:  [email protected]    4.4  Para  que  a  inscrição  seja  efetivada,  é  necessário  o  envio  de:    a)  Ficha  de  Inscrição  devidamente  preenchida  (anexo  III);   b)   Descrição   da   proposta   a   ser   desenvolvida   na   cena.   A   descrição   pode   ser   feita   em   texto,   em  fotos,  em  vídeo,  em  quadrinhos,  em  música  etc.    Parágrafo   Primeiro   -­‐   Recomendamos   o   envio   de   informações   adicionais   que   possam   colaborar  com   a   apresentação   da   sua   proposta   como:   indicação   de   links,   imagens,   músicas,   proposta  metodológica,   etc.  Os  arquivos  devem  estar  nos   formatos  pdf,  word,  excel,   jpeg,  mp3,  mp4,  ou  wave,  e  não  devem  ultrapassar  o  limite  de  25  MB.    Parágrafo   Segundo   -­‐   Não   é   preciso   apresentar   orçamento.   O   orçamento   para   montagem   do  espetáculo/performance,  a  gestão  financeira  e  a  prestação  de  contas  são  de  responsabilidade  da  Dimenti  Produções  Culturais  Ltda.    c) Currículo do proponente em formato de texto com as seguintes informações:

• Formações e experiências artísticas; • Interesses estético-políticos: em que tem investido enquanto pesquisa artística.

   5. DA  SELEÇÃO    5.1   A   seleção   da   proposta   que   será   contemplada   pelo   EDITAL   09/2011   -­‐   PARA   AQUISIÇÃO   DE  OBRA  AUTORAL  será  realizada  por  uma  comissão  composta  por  cinco  membros,  entre  integrantes  do  grupo  Dimenti  e  artistas  convidados.    5.2  A  Comissão  de  Seleção  é  soberana,  não  cabendo  veto  ou  recurso  às  suas  decisões.    5.3  O  resultado  final  será  divulgado  no  blog  do  Dimenti  (www.dimenti.com.br/blog)  até  o  dia  11  de  maio  de  2011  (quarta-­‐feira).    5.4  Caso  a  comissão  de  seleção  julgar  que  nenhuma  proposta  apresentada  atenda  aos  requisitos  da  avaliação,  poderá  se  reservar  no  direito  de  não  contemplar  nenhum  dos  projetos  inscritos.        Parágrafo  Único  –  Mesmo  havendo  a  seleção  e  de  uma  proposta,  o  performer  se  reserva  no  direito  de  não  utilizá-­‐la,  ou  utilizá-­‐la  quando  julgar  oportuno.    

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 6. DA  AVALIAÇÃO    6.1   São   critérios   gerais   norteadores   da   avaliação   da   proposta   a   ser   contemplada   pelo   presente  Edital:    a)  Excelência  artística  do  projeto:  qualidade  de  conteúdo  da  proposta  apresentada,  bem  como  seu  valor  intrínseco.  Avaliam-­‐se  também  aspectos  como  originalidade  e  criatividade  do  projeto;    b)  Viabilidade  prática  do  projeto:  exeqüibilidade  em  relação  ao  orçamento  global.    6.2  A  Comissão  de  Seleção  poderá  estabelecer  outros  critérios  de  avaliação  das  propostas  a  partir  destas  diretrizes  gerais.      7. DA  PREMIAÇÃO    7.1   O   EDITAL   09/2011   -­‐   PARA   AQUISIÇÃO   DE   OBRA   AUTORAL   irá   contemplar   um   único  proponente,  pela   ideia   selecionada,  no  valor  de  R$  1.000,00   (mil   reais),   valor   líquido,  pagos  em  uma  única  parcela,  em  até  15  (quinze)  dias  úteis  depois  da  divulgação  do  resultado;    7.2.   Ocorrendo   desistência   ou   impossibilidade   de   recebimento   do   prêmio   por   parte   do  proponente  selecionado,  os  recursos  poderão  ser  destinados  a  outros  proponentes,  observada  a  ordem  de  classificação  dos  suplentes  estabelecida  pela  Comissão  de  Seleção;    7.3   O   pagamento   do   prêmio   será   efetuado   em   parcela   única   depositada   diretamente   na   conta  bancária  (conta  corrente)  do  contemplado.      Parágrafo   Único   -­‐   O   prêmio   sofrerá   os   descontos   previstos   na   legislação   vigente   à   época   do  pagamento.  Atualmente  o  desconto  de  Pessoa  Física,  para  este  valor,  é  de  11%  (onze  por  cento)  referente  a  recolhimento  de  INSS  e  de  5%  (cinco  por  cento)  referente  a  recolhimento  de  ISS.    7.4  Para  a  realização  do  pagamento  é  necessário  que  o  proponente  apresente  cópia  do  RG,  CPF  e  número  do  PIS/NIT,  e  se  for  o  caso,  apresentar  a  cópia  da  ficha  cadastral  e  do  cartão  de  isenção  do  ISS.      8. DAS  OBRIGAÇÕES    8.1  O  proponente  selecionado  concorda,  automaticamente,  com  o  desenvolvimento  autônomo  e  independente  de  sua   ideia,   tema  ou  projeto  proposto,  por  Fábio  Osório  Monteiro  e  pela  equipe  diretamente   envolvida,   sem   objeções   quanto   à   forma   final,   linguagem   e   público   alvo   do  espetáculo  resultante  de  sua  ideia.    Parágrafo   Único   -­‐   Ao   proponente   não   será   dado   nenhum   crédito,   em   nenhum   material   de  

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divulgação  e  registro  do  espetáculo,  não  tendo  o  proponente  nenhuma  responsabilidade  sobre  o  conteúdo  moral,  vocabular,  estético,  filosófico  e  corpóreo  da  encenação  resultante.      9. DISPOSIÇÕES  FINAIS    9.1   O   performer   se   responsabilizará   civil   ou   penalmente   por   todo   conteúdo   constante   na   obra  decorrente  da  proposta  selecionada.    9.2  O  performer  se  responsabilizará  pelas  licenças  e  autorizações  (Ex.:  ECAD,  SBAT,  pagamento  de  direitos  autorais,  quando  for  o  caso,  de  texto  e/ou  música,  etc.)  necessárias  para  a  realização  das  atividades  previstas  nos  projetos  contemplados.    9.3  O  ato  da  inscrição  implica  a  plena  aceitação  das  normas  constantes  do  presente  Edital.   9.4  O  proponente  contemplado  autoriza,  desde  já,  Fábio  Osório  Monteiro  e  seus  patrocinadores  o  direito   de  mencionar   seu   nome,   quando   entenderem   oportuno,   sem   qualquer   ônus,   nas   peças  publicitárias,  fichas  técnicas,  material  audiovisual,  fotografias  e  os  relatórios  de  atividades.    9.5  Os   casos  omissos   serão  apreciados  e   resolvidos  diretamente  entre  o  performer   e   respectivo  interessado.    9.6   O   presente   Edital   ficará   à   disposição   os   interessados   através   do   blog   do   Dimenti  (www.dimenti.com.br/blog).    9.7   Outros   esclarecimentos   podem   ser   obtidos   pelo   e-­‐mail   [email protected]   ou   pelos  telefones  71  3336-­‐6331  e  71  9962-­‐5658.      Salvador  (BA),  18  de  abril  de  2011      Fábio  Osório  Monteiro                    

FICHA  DE  INSCRIÇÃO    EDITAL  09/2011  -­‐  PARA  AQUISIÇÃO  DE  OBRA  AUTORAL  

 

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1. DADOS DO PROJETO 1.1. Título do Projeto: 2. DADOS DO PROPONENTE 2.1. Nome do Proponente 2.2. CPF 2.3 RG

2.4. Endereço: 2.5. Cidade: 2.6. UF:

2.7. CEP:

2.8. E-mail:

2.9. Telefone:

2.10. Celular:

3. DECLARAÇÃO 3.1. A inscrição efetuada implica na minha plena aceitação de todas as condições estabelecidas no Edital. 3.2. As informações prestadas são verdadeiras e de minha inteira responsabilidade. 3.3. Local e Data:

3.4. Assinatura do proponente*:

* Assinatura obrigatória.

ANEXO 3: TEXTO ESPETÁCULO “EDITAL”

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EDITAL De Fábio Osório Monteiro

Boa noite, meu nome é Osório e eu deveria estar aqui para apresentar o meu trabalho

autoral, uma peça minha, mas aconteceram uns probleminhas que eu preciso deixar

vocês á par. Eu sou intérprete do Dimenti desde a formação do grupo em 1998. O Dimenti

é um grupo lá de Salvador que trabalha com dança, teatro e obras audiovisuais e em

2002 o Dimenti se constituiu enquanto empresa e passou a ser também a Dimenti

Produções Culturais Ltda, que realiza a produção das ações do Grupo Dimenti e também

a produção de outros artistas. Então, no Dimenti, eu trabalho tanto como intérprete, nos

trabalhos do repertório do grupo, quanto como produtor na Dimenti Produções Culturais.

Em 2010 o Dimenti foi contemplado com o Edital de Manutenção de Grupos da Petrobrás

com o Projeto Manutenção Dimenti. Neste projeto cada intérprete do Dimenti deveria

desenvolver um trabalho autoral. É assim, deferente de ser só interprete, ator, dançarino

eu deveria ser o autor, diretor do meu próprio trabalho. Bom, todo mundo muito

empolgado com a tão esperada manutenção, pensando e decidindo com maior ou menor

agilidade, maior ou menor certeza, sobre o que queria fazer. O que foi que eu fiz? Eu criei

os meus deadlines para decidir sobre o que seria o meu projeto, qual seria a minha

equipe. Mas, o que aconteceu? O prazo que eu me dei venceu e eu não tinha resolvido

nada. Então eu me dei um segundo prazo, um terceiro prazo, mas meus prazos sempre

venciam e meu projeto não vinha. Eu Pensava que era porque eu não estava me

dedicando muito a pensar sobre, mas sempre que eu pensava não conseguia decidir

nada.

[TOCA O CELULAR PARA PEGAR O PROJETOR. COMEÇA A MONTAR]

Esses prazos foram vencendo, vencendo, vencendo até que chegou o dia da reunião do

Dimenti onde cada um deveria apresentar o seu projeto e sua equipe, com maior ou

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menor certeza, e eu não tinha nada para apresentar. Eu não tinha o meu projeto autoral.

A minha proposta não veio. Aquilo detonou uma crise muito grande em mim. Porque eu vi

que era o único a não saber o que queria fazer, nesse momento onde eu tenho a

estrutura e que ganho para fazer isso. Logo, nesse momento em que eu sou pago por

você, porque sim, meu salário vem do dinheiro público eu não consigo decidir o que eu

quero fazer enquanto artista? Quando percebi que eu não tinha nada que achasse

interessante para levar à cena, eu me senti menos artista. Naquele momento eu achei

que o meu lado produtor estava ocupando o lado artista. Eu chorei. Me lembro de ter

falado chorando no final da reunião que, já que eu não tinha uma idéia eu iria lançar um

edital para comprar uma. Quer dizer: era o desespero do produtor tentando resolver uma

demanda do artista. Naquele momento eu não servia para a cena da dança

contemporânea. Eu não prestava para isso. Eu não era um artista legitimado porque eu

não tinha meu trabalho autoral.

Me deram a opção de não fazer, mas eu achei que se eu não fizesse nada estaria

endossando a minha condição de ser menos artista. De um artista menor. De um artista

medíocre. Na hora os meninos acharam graça, mas ninguém levou a sério e eu levei a

minha crise pra casa.

Bom, o tempo continuou passando e eu acabei comentando essa história da reunião com

um amigo meu, que me deu o maior incentivo: “Faça isso mesmo, Zófi. Pode ser super

legal. Pode detonar um monte de coisa e tal...”. Como ele já havia feito vários trabalhos

autorais e eu não tinha a menor noção do que fazer... É aquela história, né? Pra quem

não sabe pra que lado vai, qualquer direção serve.

[TOCA O TELEFONE PELA SEGUNDA VEZ. CONVERSA BREVE SOBRE TRABALHO]

Aí eu resolvi meter a mão na massa e lançar de fato o edital. Como um edital é uma

ferramenta que eu trabalho muito, e que também é comum à classe artística, achei que

seria uma boa forma de deixar bem claro como funcionaria o processo eu optei por ele.

Pra quem não conhece como funciona um edital em artes cênicas é assim: Sabe

concurso público? Quando o TRE, ou a Petrobrás abre um concurso público a gente se

mata de estudar, quando chega no dia da prova percebe que tem um montão de gente

concorrendo com a gente, depois da prova feita fica aguardando o resultado, depois que

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sai e vê que é o primeira vez que é aprovado depois de muitos concursos feitos, aguarda

a convocação pra só aí começar a trabalhar e ganhar o dinheirinho. Num edital de artes

cênicas é bem parecido, com uma pequena diferença do final. A Petrobrás abre o edital

pra projetos artísticos. A gente pensa, matuta, queima pestana durante um tempo, lê uns

livros que possam colaborar com a nossa ideia e cria um projeto. Depois dele criado a

gente inscreve ele nos editais. Quando sai a lista dos habilitados, você descobre que tem

um monte de gente concorrendo com você. Aí a gente aguarda de três a seis meses pra

sair o resultado, se você passar em um se dê por satisfeito. Em passando, você aguarda

mais um tempo pra ser convocado a assinar o contrato. Aguarda mais um tempo para a

liberação da primeira parcela (sim, porque a grana não sai toda de vez), pra só então

começar a executar seu trabalho. Sendo que esse projeto só vai te trazer grana por

alguns meses e antes dele terminar você tem que começar a elaborar o outro. O grande

diferencial entre eles é que o edital comum, pode garantir a sua sobrevivência por toda a

vida, já o de artes cênicas... Então enquanto você está executando um projeto, você está

prestando contas do projeto anterior e elaborando o próximo. Edital em artes cênicas é

isso. Como eu trabalho com esse mecanismo diariamente conheço muitos editais, que na

verdade mudam pouco entre eles, e então resolvi ler os principais e deles tirar a

linguagem e formato aplicado. Cheguei nisso aqui: Edital 09/2011 – Para Aquisição de

uma obra autoral.

[PROJETA EDITAL: LÊ OS ITENS, OBJETO, AGENDA, AVALIAÇÃO, CONDIÇÕES

(PROPONENTE E VIA E-MAIL)]

E tem outra coisa: se a gente parar para reparar em quem é convidado para os festivais,

quem é convidado para fazer uma residência, quem ganha edital, quem consegue

sobreviver da dança contemporânea hoje, é quem tem, é quem desenvolve o seu projeto

autoral. Intérprete só já era! E tem que ser trabalho simples, se não, não circula. Não

venha com trabalho em trio que tenha cenário que dependa de transporte que você não

viaja.

Depois de lançado o edital fiquei na expectativa das propostas. Na primeira semana

chegou uma. No final de segunda semana chegou outra. Aí pintou a preocupação porque

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estava se aproximando o prazo de encerramento e eu só tinha duas propostas.

Preocupação desnecessária. Porque, eu enquanto produtor, poderia imaginar que os

projetos só chegariam no talo. Resultado: nove das onze propostas chegaram no último

dia de inscrição.

[IMPRIME PROPOSTA KATIÚCIA]

Depois de receber as propostas, imprimi uma por uma e coloquei sobre a mesa. Fui

lendo, lendo, até chegar nessa aqui. É uma proposta que apresenta um texto base e me

oferece quatro opções de montagem.

[LEITURA DO TEXTO ATÉ A CENA DO MENDIGO]

Mas eu não sabia se era isso que eu queria. Eu não sabia se eu saberia fazer aquilo

direito. Eu não sabia que eu tinha gostado. Bom, deixei a proposta guardada para voltar a

ela depois.

[COLA PROPOSTA NA PAREDE. IMPRIMI TORMENTA E LIGA A CAMERA]

Me propuseram também um curta. É um projeto bacana. Bem grande, completo.

Apresentação, objetivos, cronograma. Gente tinha até um cronograma!!! É a proposta de

um cura metragem em 35 mm sobre uma jovem negra... (Se filma depois volta para o

texto. Apresenta até o orçamento e tira várias fotos). O problema é que eu não tinha esse

recurso. Aí esse projeto acabou sendo diligenciado.

[COLA TORMENTA NA PAREDE]

Aí começa a minha briga comigo mesmo, porque o meu lado artista até se interessou pelo

projeto, mas o meu lado produtor me diz que eu não tenho como executar isso. Eu tenho

em mim essa confusão que pode ser uma relação entre artista e produtor. Realmente já vi

muito muito muito ruido entre artista e produtor principalmente por conta de falta de noção

de nós artistas. Falo de cadeira porque ás vezes tenho esse mal estar de mim para

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comigo. Para nós, artistas, é bem claro que não somos responsáveis por tudo que é

artístico num projeto - luz, fotografia, música, video etc, mas é muito comum nós, artistas,

acharmos que nós, produtores, somos responsáveis por tudo - captação, logística, contra-

regragem, divulgação, sucesso de público etc. Quer dizer, nós queremos uma babá. E é

legítimo querer uma babá, eu só não posso achar quie o meu produtor sera a minha. Acho

que devemos cuidar disso com muito carinho. Já tive uns barraquinhos com artistas que

falavam que nunca haviam conseguido um produtor competente pra trabalhar. Aí eu, que

não sou a melhor pessoa do mundo, alfinetava dizendo que nunca havia trabalhado sem

um produtor competente, até porque, né? Eu sei que há produtor escroto no mundo, mas

também tem muitos muitos, de nós artistas, que acham que nós, produtores, somos

capacho. Äs vezes eu paro pra pensar sobre essa experiência estranha: lançar um edital

para comprar, na mão de alguém, uma ideia autoral. Mas, na verdade, o absurdo vem de

muito antes. Bem, eu me chamo Osório. Não! Eu não me chamo Osório. Eu me chamo

Fábio Luís Oliveira Monteiro e Osório foi um apelido, que me foi dado, e contra o qual eu

lutei durante muito tempo. Sou um artista graduado em Administração. Sou artista porque,

contra a minha vontade, colocaram o meu nome no elenco de um trabalho de escola e eu

acabei parando num grupo de teatro. E sou administrador porque quando eu prestei

vestibular eu não sabia o que queria fazer e meu irmão mais velho já estava perto de se

formar em administração, aí eu pensei em colar nele. Semanalmente eu replico várias

assinaturas que não são minhas. Por que sair correndo atrás de um monte de gente pra

ter a carta de anuência é difícil, né? Tudo com consentimento, é claro! Á exceção das

assinaturas de minha mãe, que na adolescência me autorizava a sair da escola para que

eu pudesse me apresentar com o Dimenti no meu horário de aula. Eu gosto de futebol e

sou frequentador assíduo de estádios porque meu tio, irmão da minha mãe, me levava

semanalmente quando criança e me entupia de comida, quer dizer, não tem criança que

não se apaixone por isso. [MOMENTO ASPAS] “Osório”, “artista”, “administrador”,

“apaixonado por futebol”, assina pelos outros... Eu gosto de camisas com listras e uso

barba porque sou fã de Los Hermanos. A minha risada é de Zacarias!!! Um cover. Eu sou

um cover. Quer dizer, eu sou um tipo de drag-frankstain e sub-loco meu próprio desejo.

[MUSICA EU TAMBÉM QUERO BEIJAR (PEPEU) - MONTAGEM DE DRAG]

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Á medida que eu fui lendo as propostas eu fui vendo que eu não sabia o que eu queria.

Não tinha certeza sobre que tipo de projeto eu tava procurando, mas eu sabia o que eu

não queria. Eu não queria vir pra cena falar de mim. Não queria vir pra cena dizer se eu

sou negro, gordo, careca, gay. Não queria dizer minha vida não fará sentido se eu tiver

pelo menos três filhos. Não queria vir aqui falar da minha relação com meus pais. Eu não

queria um trabalho autobiográfico. E tem uma proposta que era exatamente assim.

[IMPRIME PROPOSTA DE RICARDO. FALA O TEXTO ABAIXO. LÊ AS

RECOMENDAÇÕES ENQUANTO MONTA O SCANER]

[PROJETA A IMAGEM CRIADA E COMENTA]

Depois de muito pensar, eu resolvi olhar para as propostas como um todo, como sendo

uma coisa só e ver o que se apresentava. Cheguei no seguinte:

[COMEÇAM AS PIZZAS NA PAREDE]

64% São de homens / 36% São de mulheres

Dos 64%, 56% são gays assumidos / 44% se dizem heterossexuais

64% São da Bahia / 36% de outros estados

Desenha uma pizza errada

Dos 36%, 75% são do Paraná e 25% são de Santa Catarina

1 das 11 proposta eu escolhi

25% chegaram com documentação incompleta

90% dos proponentes eu conheço

A maior proposta tinha 2.400 palavras e 92 parágrafos distribuídas em 17 páginas

A menor proposta tinha 82 palavras e 3 parágrafos distribuídos em 01 página

As palavras que mais apareceram foram SER (72 vezes em 09 projetos), a Segunda

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palavra foi OTELO (ESCREVE VÁRIAS VEZES ANTES DE FALAR), que apareceu 52

vezes em 01 projeto. A terceira palavra foi CORPO, que apareceu 47 vezes em 10

projetos e a quarta palavra foi IAGO, que apareceu 39 vezes em 01 projeto.

O menor projeto, aquele de 82 palavras, ele me dava palavras-chaves para o

desenvolvimento do trabalho entre foram elas: [COMEÇA A TOCAR O CELULAR] Edital,

burocracia, corpo, religião e ser. Um poder de síntese absurdo porque duas das cinco

palavras indicadas estavam entre as mais recorrentes. Mas ele não me dizia o que

deveria ser feito.

[ATENDE O CELULAR, SAI CONVERSANDO. DÁ UM TEMPO E VOLTA]

Pessoal eu terei sair, mas podem ficar á vontade. Vou deixar a porta aberta pra vocês.