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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE DIREITO CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO MARCO ANTONIO SANTOS MORAES AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA: MOTIVAÇÃO DECISÓRIA E ENCARCERAMENTO PROVISÓRIO INDEVIDO Salvador 2018

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE DIREITO

CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO

MARCO ANTONIO SANTOS MORAES

AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA:

MOTIVAÇÃO DECISÓRIA E ENCARCERAMENTO PROVISÓRIO INDEVIDO

Salvador

2018

MARCO ANTONIO SANTOS MORAES

AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA: MOTIVAÇÃO DECISÓRIA E ENCARCERAMENTO PROVISÓRIO

INDEVIDO

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao

Curso de Direito da Universidade Federal da Bahia

como requisito obrigatório para obtenção do título de

bacharel em Direito. Direito Penal e Processual

Penal.

Orientadora: Professora Doutora Daniela Carvalho

Portugal.

Salvador

2018

MARCO ANTONIO SANTOS MORAES

AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA: MOTIVAÇÃO DECISÓRIA E ENCARCERAMENTO

PROVISÓRIO INDEVIDO

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Graduação da

Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia como requisito para a

obtenção do grau de Bacharel em Direito.

Aprovado em ____ de março de 2018.

Banca Examinadora

________________________________________________

Profª Daniela Carvalho Portugal - Orientadora Professora da Universidade Federal da Bahia Doutora em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia

________________________________________________

Profª Thais Bandeira Oliveira Passos Professora da Universidade Federal da Bahia Doutora em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia

________________________________________________

Prof. Fabiano Cavalcante Pimentel Professor da Universidade Federal da Bahia Doutor em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia

MORAES, Marco Antonio Santos. Audiência de custódia: motivação decisória e

encarceramento provisório indevido. Monografia (Graduação em Direito) –

Faculdade de Direito, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2018.

RESUMO

O presente estudo pretende analisar a importância da fundamentação das decisões

judiciais em audiência de custódia e seus reflexos no encarceramento provisório.

Para tanto, examina-se, de início, o histórico da audiência de custódia, desde a sua

previsão em Tratados Internacionais anteriores a Constituição Federal de 1988,

perpassando por todo arcabouço legislativo existente, com o fito de obter subsídio

para melhor compreensão do sistema adotado na atualidade. Em seguida, passa-se

a análise dos princípios inerentes a audiência de custódia, permitindo melhor

compreensão da medida cautelares pessoais cabível ao caso apresentado na

audiência. Neste cenário, analisa-se de que forma a audiência de custódia humaniza

o processo penal em sua fase pré processual. Após, procede-se ao exame das

disposições sobre a audiência de custódia na legislação alienígena e suas

influências na implantação desse procedimento no Brasil. Seguidamente, irão se

abordar os principais aspectos inerentes a motivação das decisões judiciais e,

derradeiramente, a sua importância na audiência de custódia, com o fim de dar

conformidade constitucional ao trato das prisões cautelares. Por fim, estudar-se-á as

consequências da fundamentação das decisões em audiência de custódia em

relação ao encarceramento provisório indevido, traçando um paralelo entre a

finalidade da audiência de custódia e a atividade judicante nesse procedimento pré

processual.

PALAVRAS-CHAVE: Audiência de custódia; Fundamentação das decisões judiciais;

Encarceramento provisório.

MORAES, Marco Antonio Santos. Custody hearing: decision motivation and

undue provisional incarceration. Monography (Law Degree) - Faculty of Law,

Federal University of Bahia, Salvador, 2018.

ABSTRACT

The present study intends to analyze the importance of the reasoning of the judicial

decisions in custody hearing and its reflexes in the provisional incarceration. In order

to do so, we first examine the history of the custody hearing, from its prediction in

previous international treaties to the Federal Constitution of 1988, going through any

existing legislative framework, in order to obtain a subsidy for a better understanding

of the system adopted nowadays. Next, the analysis of the principles inherent to the

custody hearing is carried out, allowing a better understanding of the personal

precautionary measure applicable to the case presented at the hearing. In this

scenario, it is analyzed how the custody hearing humanizes the criminal process in

its pre-procedural phase. Afterwards, the provisions on custody hearing in alien

legislation and their influence on the implementation of this procedure in Brazil are

examined. Subsequently, the main aspects inherent in the motivation of judicial

decisions will be discussed and, finally, their importance in the custody hearing, in

order to give constitutional conformity to the treatment of the precautionary prisons.

Finally, we will study the consequences of the reasoning of custody hearing

decisions in relation to undue provisional incarceration, drawing a parallel between

the purpose of the custody hearing and the judicial activity in this pre-procedural

procedure.

KEY WORDS: custody hearing; Rationale of judicial decisions; Interim incarceration

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 6

2 AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA ................................................................................... 8

2.1 HISTÓRICO .................................................................................................... 8

2.2 PREVISÃO EM OUTROS ORDENAMENTOS JURÍDICOS .......................... 18

2.3 PRINCÍPIOS DA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA ............................................... 20

2.3.1 Dignidade da pessoa humana ............................................................. 21

2.3.2 Contraditório e ampla defesa ............................................................... 26

2.3.3 Presunção de inocência ....................................................................... 32

2.4 CONCEITO E FINALIDADES ........................................................................ 34

3 A MOTIVAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS EM AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA . 38

3.1 ANTECEDENTES HISTÓRICOS DA OBRIGATORIEDADE DE MOTIVAÇÃO

DAS DECISÕES JUDICIAIS ................................................................................ 38

3.2 A NATUREZA JURÍDICA DA MOTIVAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS ..... 44

3.3 PREVISÃO CONSTITUCIONAL E INFRACONSTITUCIONAL ...................... 47

3.4 A IMPORTÂNCIA DA FUNDAMENTAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS EM

AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA ................................................................................ 51

4 MOTIVAÇÃO DECISÓRIA NA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA E

ENCARCERAMENTO INDEVIDO ........................................................................... 59

4.1 A FUNDAMENTAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS EM AUDIÊNCIA DE

CUSTÓDIA E SEUS REFLEXOS NO ENCARCERAMENTO PROVISÓRIO ...... 59

5. CONCLUSÃO ...................................................................................................... 66

6. REFERÊNCIAS .................................................................................................... 69

6

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho objetiva analisar a relação entre a fundamentação das

decisões judiciais em audiência de custódia ou de apresentação e o encarceramento

indevido, bem como reforçar o papel da audiência de custódia como importante

ferramenta para amenização do quadro carcerário brasileiro. Para tanto, pretende-se

desenvolver um estudo acerca dos principais aspectos atinentes a audiência de

custódia e a motivação das decisões judiciais para, a partir de então, delimitar de

que forma a atividade judicante na audiência de apresentação influencia no

encarceramento indevido.

Tal avaliação mostra-se extremamente relevante, ante a recente

determinação da obrigatoriedade de realizar audiência de custódia em todo o

território nacional, procedimento pré processual que, muito embora possua

regulamentação, invariavelmente em alguns aspectos relativos ao seu

desenvolvimento poderão surgir lacunas e, dentre estas, o presente trabalho se

debruça especificamente sobre as questões inerentes a genérica ou inexistente

fundamentação das decisões judiciais que decretam ou mantém a prisão provisória

nesse procedimento, mesmo com o contato direto das partes (preso, defensor,

representante do Ministério Público) com o juiz em um curto espaço de tempo.

A relevância do tema é especialmente ressaltada quando se observa a

escassez de pesquisa mais aprofundada sobre a matéria, bem como a ausência de

consenso doutrinário e jurisprudencial sobre a relevância de motivar devidamente a

decisão judicial nesta fase pré processual.

Com o escopo de atender o desígnio investigativo, este trabalho monográfico

foi organizado em três capítulos. No primeiro, buscar-se-á examinar o histórico da

audiência de custódia, desde disposições semelhantes já existentes no

ordenamento jurídico, até o seu robustecimento com a internalização pelo Brasil de

tratados internacionais e o atual panorama legal referente a audiência de custódia.

Será abordado também os mais relevantes princípios inerentes a audiência de

apresentação e, por fim, o conceito e as finalidades desse procedimento pré

processual.

No segundo capítulo, será abordada a fundamentação das decisões judiciais

em audiência de custódia, fazendo-se um estudo acerca dos antecedentes históricos

7

da obrigatoriedade de fundamentação das decisões judiciais, a sua natureza

jurídica, previsão na Constituição Federal e em dispositivos infralegais e, por fim, a

importância da motivação dos pronunciamentos judiciais em audiência de custódia,

tópico em que se tecerão críticas acerca das decisões genéricas que decretam

prisões provisórias em audiência de apresentação.

No terceiro capítulo, será realizado um estudo acerca da relevância da

fundamentação das decisões judiciais em audiência de custódia em face a atual

situação carcerária do país, para reforçar a necessidade do juiz cumprir com a

determinação constitucional de motivação de suas decisões nesse procedimento,

conferindo à audiência de custódia expressivo papel no combate ao encarceramento

provisório indevido.

8

2 A AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA

2.1 HISTÓRICO

A origem da audiência de custódia ou audiência de apresentação no

ordenamento jurídico pátrio necessariamente está atrelada ao fato do Brasil ser

signatário de Tratados Internacionais de resguardo aos Direitos Humanos, como o

Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana de

Direitos Humanos (CADH) ou, como ficou popularizada, o Pacto de São José da

Costa Rica, na década de 1990.

Os mencionados acordos internacionais são, inegavelmente, a maior

contribuição jurídica para o amadurecimento e efetivação da audiência de custódia

no Brasil, conforme adiante será aprofundado. Contudo, elucida Eugênio Pacelli1 que

já existiam à época dispositivos legais no ordenamento jurídico brasileiro dispondo

acerca da necessidade de apresentação do preso à uma autoridade pública, como

se vê do art. 236, §2º do Código Eleitoral (Lei nº 4.737/65) e no Estatuto da Criança

e do Adolescente. Não se trata, como salienta o autor, de uma regra absolutamente

estranha ao direito pátrio.

Acrescenta Daniel Nicory do Prado2, em relação a apresentação de

adolescente por ato infracional, os arts. 174 e 175 do Estatuto da Criança e do

Adolescente (ECA) já dispõe de procedimento semelhante à audiência de custódia,

mas com direcionamento do apreendido ao membro do Ministério Público e não à

uma autoridade judicial.

Desde 1992, através da promulgação do Decreto nº 592/92, o Pacto

Internacional sobre Direitos Civis e Políticos adotado em 19 de dezembro de 1966

pela Assembleia Geral das Nações Unidas adentrou no ordenamento jurídico

brasileiro. O seu texto tem como principal viés a proteção das garantias

fundamentais do ser humano, como, por exemplo, a vida, igualdade, liberdade e

proibição à tortura ou tratamento degradante. Mostram-se nítidos os reflexos do

referido Pacto no conteúdo da Constituição Federal da República Brasileira de 1988,

1

PACELLI, Eugênio. Curso de processo penal. 21. Ed. rev., atual. E ampl. – São Paulo: Atlas, 2017. p. 555 2

PRADO, Daniel Nicory do. A prática da audiência de custódia. – Salvador: Faculdade Baiana de Direito, 2017. p. 24.

9

sobretudo pelo fato de estar num momento político de redemocratização, após

odiosos vinte anos de um regime ditatorial militar.

O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, conforme preleciona

Fábio Konder Comparato, citado por Daniel Nicory do Prado3, serviu para

operacionalizar a Declaração Universal de Direitos Humanos das Nações Unidas,

transformando-a de uma carta de intenções em um instrumento com força

normativa.

É manifesta, sem dúvida, a relevante influência do Pacto Internacional sobre

Direitos Civis e Políticos para o desenvolvimento da audiência de custódia no Brasil,

mormente quanto ao conteúdo inserto no art. 9º, 3 que expressa a necessidade de

toda pessoa presa ser apresentada, no mais breve prazo, a um juiz ou funcionário

autorizado por lei para exercer funções judiciais.

Reconhecida a importante contribuição do Pacto Internacional sobre Direitos

Civis e Políticos para o direito nacional, bem como para o amadurecimento da ideia

de uma audiência de custódia, temos que, no mesmo sentido, o conteúdo do Pacto

de São José da Costa Rica, aprovado no ano de 1969, inegavelmente traçou

importantes diretrizes para a implantação da audiência de apresentação no Brasil.

Leciona Eugênio Pacelli4 que existe no sistema jurídico brasileiro, desde o

ano de 1992, o Decreto nº 678/92 que determina o cumprimento pelo país das

disposições constantes do Pacto de São José da Costa Rica. O referido acordo traz,

em seu art. 7º, item 5 que toda pessoa presa deve ser conduzida, “sem demora”, à

presença de um juiz (ou autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais).

Contudo, muito embora esteja expresso no art. 1º do mencionado Decreto

que as disposições do Pacto de São José da Costa Rica deverão ser cumpridas

inteiramente como nela se contém, a implantação da audiência de custódia não se

deu de forma imediata e sim após mais de vinte anos da incorporação do Pacto no

ordenamento jurídico brasileiro. Infelizmente, essa reprovável tardança pode ter

ensejado, ao longo desses anos, diversas violações aos direitos humanos,

sobretudo quanto aos presos provisórios.

Uma das grandes celeumas para a obstaculização e consequentemente o

atraso na vigência da audiência de custódia na realidade brasileira se deu em

3

PRADO, Daniel Nicory do. Op. cit. p. 22. 4

PACELLI, Eugênio. Op. cit. p. 554.

10

relação à fonte legislativa que emanava a exigência de realização da audiência de

apresentação, ou seja, os Tratados Internacionais. Nem a Constituição Federal de

1988 ou as leis vigentes traziam uma solução para essa questão, muito menos um

procedimento de audiência de custódia.

A jurisdição internacional já caminhava a alguns anos no sentido de

resguardo aos direitos das pessoas presas, como se vê dos casos Tibi vs. Ecuador

e Chaparro Álvarez y Lapo Íñiguez vs. Ecuador apreciados pela Corte

Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) criada pela Convenção Americana de

Direitos Humanos. No primeiro caso (Tibi vs. Ecuador)5, julgado em 2004, o

indivíduo teria sido preso sem ordem judicial, transportado para outra cidade e

permanecido ilegalmente encarcerado por vinte e oito meses, bem como submetido

à tortura e maus tratos. Colhe-se do julgado que o estado equatoriano foi condenado

a reparação de danos materiais e imateriais por violação dos direitos a liberdade

pessoal, integridade e propriedade privada, todos assegurados pelo Pacto de São

José da Costa Rica.

O caso Chaparro Álvarez y Lapo Íñiguez vs. Ecuador (2007)6 é emblemático

para o entendimento dos precedentes da audiência de custódia. Os fatos,

resumidamente, expressam que houve uma operação policial em que alguns

produtos apreendidos com entorpecentes assemelhavam aos que eram fabricados

pelos acusados e, tão somente com base nisso, foram presos. Salienta-se que a

prisão do Sr. Íñiguez não foi precedida de ordem judicial e nenhum dos detidos

soube o motivo da segregação. Ambos permaneceram incomunicáveis por cinco

dias e suas defesas pré processuais não foram adequadas e, já com o processo em

curso, permaneceram presos provisoriamente por mais de um ano. A defesa dos

acusados aduziu que houve manifesta violação ao direito de apresentação sem

demora ao juiz. Lê-se do dispositivo da referida sentença que o estado do Equador

violou, dentre outros direitos, o inserto no art. 7.5 do Pacto de São José da Costa

Rica, que determina a apresentação da pessoa presa, sem demora, a um juiz.

5

ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS (OEA). Caso Tibi vs. Ecuador. Sentença de 07.07.2004. Disponível em : [http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_114_esp.pdf]. Acesso em: 08 de novembro de 2017. 6

ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS (OEA). Caso Chaparro Álvarez y Lapo Íñiguez vs. Ecuador. Sentença de 21.11.2007. Disponível em: [http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_170_esp.pdf]. Acesso em: 08 de novembro de 2017.

11

A sentença prolatada no caso Acosta Calderón Vs. Equador é de extrema

relevância pois sedimenta o entendimento da CADH acerca da obrigatoriedade de

apresentação do preso à autoridade judiciária e não apenas o conhecimento dessa

prisão em flagrante pelo juiz, algo refutado pela corte, conforme elucida Luciano

Rostirolla7. Esse entendimento da Corte mostra o atraso da disposição do CPP

acerca da prisão em flagrante em seu art. 306, o qual determina apenas o envio do

auto de prisão em flagrante ao juiz.

É curial destacar a relevância desses julgados para a realidade jurídica

brasileira, pois, conforme elucidam Rafael Osvaldo Machado Moura e Marcela

Busnardo dos Santos8, ao ser signatário do Pacto de São José da Costa Rica, o

Brasil reconheceu a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos e

necessariamente deve considerar a influência dos precedentes da referida Corte no

ordenamento jurídico. Os autores expressam que a interpretação dada por este

órgão internacional deve ser sopesada pelo sistema jurídico doméstico,

incrementando suas decisões pelos parâmetros expressos nos julgados.

Em 2004, com o advento da Emenda Constitucional nº 45 (EC nº 45/04),

conhecida como Reforma do Judiciário, o ordenamento jurídico brasileiro dispôs

acerca da natureza jurídica dos tratados e convenções internacionais que

versassem sobre direitos humanos. Assim, caso fossem aprovados em cada Casa

do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos

membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.

Conquanto fosse predominante o entendimento no Brasil de que os tratados

internacionais ratificados pelo país teriam natureza jurídica de lei ordinária, devido

ao forte viés jurídico positivista da época, não era possível afastar o caráter

vinculante dos tratados, dada a importância de seu conteúdo. Tal problemática não

escapou da apreciação do Supremo Tribunal Federal, à partir do julgamento do

leading case Recurso Extraordinário 466.343/2008, em que foi firmado o

entendimento da suprema corte, seguindo a interpretação dada pelo Min. Gilmar

7

ROSTIROLLA, Luciano. Aspectos práticos e jurídicos das audiências de custódia no processo penal brasileiro. In: Efetividade da tutela jurisdicional & técnicas processuais. Estefânia Viveiros, Tarsis Barreto Oliveira, Enio Walcácer de Oliveira Filho, (organizadores); prefácio de Estefânia Viveiros. 1. ed. São Paulo: PerSe, 2016. p. 337. 8

MOURA, Rafael Osvaldo Machado; SANTOS, Marcela Busnardo dos. Audiência de custódia: ato processual juridicamente aceitável e útil? In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. Vol. 131. Ano 25. P. 367-399. São Paulo: Ed. RT, maio 2017. P. 374.

12

Mendes, no sentido de conferir aos tratados internacionais que versem sobre direitos

humanos a natureza jurídica de norma supralegal.9

Igualmente, acerca do tratamento dado pelo Supremo Tribunal Federal sobre

os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, pontue-se o

posicionamento do Min. Celso de Mello no HC 85-585-TO, ao atribuir status

constitucional para os acordos internacionais sobre direitos humanos.10

Desde a década de 1990, portanto, era vigente no ordenamento brasileiro

norma jurídica dotada de aplicação plena e redação clara acerca da necessidade de

apresentação sem demora do preso ao juiz, segundo observa Daniel Nicory do

Prado11. Critica o autor, acertadamente, o descumprimento pelo país, por muitos

anos, de uma obrigação internacional.

Sobre o tema, especificamente quanto a prisão em flagrante, acrescenta

Luciano Rostirolla12 que embora exista um aparente choque entre normas do

sistema jurídico brasileiro, pois, de acordo com o art. 306 do Código de Processo

Penal, deverá ser comunicada ao juiz a prisão em flagrante de qualquer pessoa e

encaminhado em até 24 (vinte e quatro) horas o respectivo auto de prisão em

flagrante e, por outro lado, como se vê do item 7.5 da Convenção Americana de

Direitos Humanos, o que deverá ser apresentado ao juiz é o preso e não o auto de

prisão em flagrante apenas, justamente pelo fato do referido acordo internacional ter

status supralegal, irá prevalecer sobre o CPP.

A interpretação sedimentada pela Egrégia suprema corte, apesar de

relativamente tardia, se mostrou de grande importância para firmar a compromisso

do Brasil na valorização dos direitos humanos. Além disso, o respeitável

posicionamento colaborou para a fortalecer a necessidade da audiência de custódia.

Desde o ano de 2011 tramita projeto de lei que visa alterar os dispositivos

acerca da prisão em flagrante previstos no Código de Processo Penal, no intuito de

positivar a audiência de custódia no cenário jurídico brasileiro. Trata-se do Projeto 9

Id. Ibid., p. 371-372. 10

LOPES JR., Aury; PAIVA, Caio. Audiência de custódia aponta para evolução civilizatória do processo penal. In: Revista de Liberdade, n. 17, set-dez. 2014. Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Disponível em: [http://www.revistaliberdades.org.br/site/outrasEdicoes/outrasEdicoesExibir.php?rcon_id=209]. Acesso em: novembro de 2017. 11

PRADO, Daniel Nicory do. Op. cit. p. 23. 12

ROSTIROLLA, Luciano. Op. cit. p. 337.

13

de Lei do Senado Federal nº 554/2011, de autoria do Senador Antonio Carlos

Valadares, aprovado em 30 de novembro de 2016 no plenário do Senado e remetido

para a Câmara dos Deputados em 06 de dezembro do mesmo ano.

Elucidativas são as considerações feitas por Aury Lopes Jr. e Caio Paiva13

sobre o referido PLS. Para os autores, o projeto apresenta um conteúdo

praticamente completo acerca da audiência de custódia, a reduzir ou até mesmo

eliminar quaisquer dúvidas acerca da autoridade a qual deve ser apresentada o

preso (o juiz) ou o prazo para a condução à audiência de custódia (em até vinte e

quatro horas da prisão), além de efetivar as garantias do contraditório e ampla

defesa ao exigir a presença da defesa técnica no ato.

Infelizmente, no mesmo ano de 2011, pontua Fauzi Hassan Choukr14, com o

advento da lei 12.403/11 não houve qualquer menção, em seus dispositivos

alteradores, acerca da longínqua necessidade de se efetivar a audiência de custódia

no Brasil,

Renato Brasileiro de Lima15

vai além, ao expressar que, não obstante tal

projeto ainda não ter sido aprovado pelo Congresso Nacional, o Conselho Nacional

de Justiça e alguns Tribunais de Justiça dos Estados já vêm adotando resoluções e

provimentos com o objetivo de implementá-la, porquanto se trata de garantia

convencional decorrente da própria Convenção Americana sobre Direitos Humanos

(Dec. 678/92), dotada de status normativo supralegal.

É um avanço legislativo, pois, sem dúvida, a positivação do correto

procedimento da audiência de custódia, em estrita observância às diretrizes

estabelecidas nos tratados internacionais sobre direitos humanos e sobretudo aos

ditames constitucionais irá contribuir para um processo penal menos violador de

garantias individuais, sobretudo quanto à liberdade.

Cada vez mais notória e reprovável é a crise do sistema penitenciário

brasileiro, o qual apresentou, no ano de 2014, a assustadora marca de 711.463

presos, sendo 41% destes presos provisórios, segundo dados do Conselho Nacional 13

LOPES JUNIOR, Aury; PAIVA, Caio. Op. cit. 14

CHOUKR, Fauzi Hassan. PL 554/2011 A necessária (e lenta) adaptação do processo penal brasileiro à Convenção Americana De Direitos Do Homem. Disponível em [https://fhchoukr.jusbrasil.com.br/artigos/161820782/a-denominada-audiencia-de-custodia]. Acesso em novembro de 2017. 15

LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal. 3ª edição. Revista, ampliada e atualizada. Editora Juspodivm, 2015. p. 927

14

de Justiça16

. Acrescentam Rafael Osvaldo Machado Moura e Marcela Busnardo dos

Santos17

que, atualmente no Brasil, com base nas informações do Departamento

Penitenciário Nacional (2016), fulcrado em dados dos Estados-membros de

dezembro de 2014, existem cerca de 250 mil presos provisórios no país.

Esse quadro explicita a histórica negligência do Estado brasileiro frente a

situação das pessoas encarceradas, submetidas a constantes violações aos direitos

alçados a patamar constitucional como vida, integridade física, liberdade e,

sobretudo, dignidade da pessoa humana.

Tal situação, mesmo que de forma tardia, não passou desapercebida e, no

ano de 2015, o Conselho Nacional de Justiça juntamente com o Tribunal de Justiça

de São Paulo, promoveram a criação do Provimento Conjunto 03/15 como forma de

atenuar o encarceramento provisório desmedido.

Nos recorda Daniel Nicory do Prado18

que, antes mesmo do movimento para

implantação da audiência de custódia no Brasil, já exisitia, na realidade da cidade de

Salvador, Bahia, medida adotada entre o Tribunal de Justiça do Estado da Bahia,

Secretarias de Justiça e Segurança Pública, Ministério Público, Defensoria Pública e

Ordem dos Advogados do Brasil, para a criação, implantação e funcionamento do

Núcleo de Prisão em Flagrante de Salvador, cujo marco institucional, no âmbito do

TJ-BA, foi a Resolução do Pleno nº 9, de 3 de agosto de 2011.

Para a doutrina, tal Provimento inseriu no ordenamento jurídico pátrio uma

primeira iniciativa de implantação da audiência de custódia no país, como bem

relembra Eugênio Pacelli19

. Aury Lopes Jr.20

entende que esse projeto piloto de

audiência de custódia serve para humanizar o processo penal, através do contato

pessoal do detido com o juiz, autoridade que terá melhores condições, segundo o

autor, de verificar a existência ou não, no caso concreto, do periculim libertatis, bem

como da possibilidade de aplicação das medidas cautelares alternativas constantes

do art. 319 do CPP. 16

CNJ divulga dados sobre nova população carcerária brasileira. Disponível em: [http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/61762-cnj-divulga-dados-sobre-nova-populacao-carceraria-brasileira]. Acesso em novembro de 2017. 17

MOURA, Rafael Osvaldo Machado; SANTOS, Marcela Busnardo dos. Op. cit. p. 392-393. 18

PRADO, Daniel Nicory do. Op. cit. p. 47. 19

PACELLI, Eugênio. Op. cit. p. 554 20

LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 13 ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

15

Acrescenta Renato Brasileiro de Lima21

que, antes mesmo da iniciativa

conjunta entre o Conselho Nacional de Justiça e o Tribunal de Justiça de São Paulo,

o estado do Maranhão, no dia 20 de novembro de 2014, através da Corregedoria do

Estado, estipulou a audiência de custódia na Capital São Luís (Provimento nº

21/2014 da CGMA).

Mesmo com os consideráveis avanços trazidos ao processo penal brasileiro,

além de uma resposta ao hodierno problema da massificação da população

carcerária, o Provimento Conjunto nº 03/15 não passou desapercebido e foi alvo de

críticas por parte de algumas entidades, como a Associação dos Delegados de

Polícia do Brasil.

A associação argumentava, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº

5340/SP a inviabilidade do Estado em cumprir o quanto estabelecido no referido

provimento, aduzindo a ausência de material humano e condições financeiras, além

da ilegitimidade do CNJ em legislar sobre a matéria, afeita à União (processo penal).

Assinala Eugênio Pacelli22

que o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a citada ADIN,

decidiu pela sua improcedência, pois a medida adotada pelo CNJ/TJSP estaria

amparada pela Convenção Americana de Direitos Humanos, que por sua vez tem

status supralegal, logo, não houve inovação jurídica, apenas concretização de

norma em vigência e cogente.

Louvável o entendimento adotado pelo STF, ao fundamentar tal interpretação

nos precedentes citados em linhas anteriores. Nessa linha, além de conferir maior

segurança jurídica aos posicionamentos da suprema corte, auxilia na sedimentação

do ideal de uma audiência de custódia para o país. Já não era sem tempo a

necessidade de uma medida, ainda que pontual e específica, para demonstrar o

quão obsoleto se mostrava o nosso sistema de apreciação das prisões cautelares

(preventiva, temporária e domiciliar) e pré cautelares23

(flagrante), não apenas

quanto a sua legalidade, mas também quanto a necessidade e conveniência do

encarceramento provisório, muitas vezes negligenciado pelo julgador, por somente

lidar com autos de prisão em flagrante ou requisição da autoridade policial ou

Ministério Público. Caminhou o STF para a maior humanização do processo penal,

21

LIMA, Renato Brasileiro de. Op. cit. p. 928. 22

PACELLI, Eugênio. Op. cit. p. 555. 23

Expressão cunhada pelo doutrinador Aury Lopes Jr.

16

ao afastar críticas inoportunas e infundadas, sem qualquer respaldo jurídico,

econômico ou social.

Por fim, arremata Eugênio Pacelli24

, ao vislumbrar significativo avanço, sem

deixar de salientar, contudo, a ausência de sua exigibilidade legal, já que a previsão

do quanto consta no Pacto de São José da Costa Rica não se revelava

suficientemente impositivo às autoridades brasileiras.

O Provimento Conjunto entre o TJSP e o CNJ se mostrou um importante

precedente na implantação das audiências de custódia no país. Com efeito, o

amadurecimento da ideia desse relevante ato pré processual culminou, no mesmo

ano de 2015, com a elaboração, pelo CNJ, da Resolução nº 213/2015, diploma

fortemente influenciado pela Convenção Americana de Direitos Humanos e que,

atualmente, traça as regras básicas da audiência de custódia a serem observadas

pelos estados. É digno de destaque da referida Resolução a abrangência da

audiência de custódia não apenas para os casos de prisão em flagrante, mas

também para prisões provisórias (preventiva, temporária e domiciliar), sentença

judicial transitada em julgado ou de prisão civil por inadimplemento de pensão

alimentícia (letra “c” do subitem 3.2), conforme salienta a doutrina25

. Nesse prisma,

acrescenta Gustavo Henrique Badaró, citado por Daniel Nicory do Prado26

, a

necessidade da audiência de custódia até mesmo para a prisão por débito alimentar,

momento ideal para o preso demonstrar ao juiz a quitação da dívida ou

impossibilidade de pagá-la, nos moldes do art. 528, §2º, do Código de Processo Civil

(CPC).

De acordo com Flávio da Silva Rodrigues27

, a imposição do prazo de 24 (vinte

e quatro) horas para apresentação do preso à autoridade judiciária competente

insculpida na referida Resolução já vinha também sido disposta no PLS 554/2011,

mais especificamente na inserção do §4º no art. 306 do Código de Processo Penal.

Como se vê, o referido PLS já dispunha sobre o prazo “sem demora” trazido pelos

textos internacionais ratificados pelo Brasil. Segundo o autor, tal prazo assegura a 24

PACELLI, Eugênio. Op. cit. p. 555. 25

MOURA, Rafael Osvaldo Machado; SANTOS, Marcela Busnardo dos. Op. cit. p. 382. 26

PRADO, Daniel Nicory do. Op. cit. p. 24. 27

ANDRADE, Flávio da Silva. Audiência de custódia ou de apresentação do preso: análise crítica da disciplina normativa prevista no Projeto de Lei do Senado 554/2011. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 137. ano 25. P. 223-252. São Paulo: Ed. RT, nov. 2017. p. 235.

17

rápida apresentação do flagranteado ao juiz, permite a prolação de uma decisão

acerca da liberdade do indivíduo pouco tempo após a prisão em flagrante e,

sobretudo, inibe a ocorrência de tortura ou maus tratos nesse intervalo entre a prisão

e a audiência de custódia, dada a maior possibilidade de identificação dessa

situação de tratamento desumano pelos atores da audiência de custódia (juiz,

defensor e promotor).

A extensa disciplina jurídica acerca da audiência de apresentação disposta no

citado diploma denota a função esclarecedora que pretendeu o CNJ quanto aos

aspectos mais relevantes e as especificidades da realização de uma audiência de

custódia idônea a resguardar, por um lado, os direitos da pessoa presa, como a

prevenção à tortura e presunção de inocência e, também, em caso de eventual ação

penal, o resultado útil do processo. Buscou o CNJ, também, ao delimitar

pormenorizadamente cada ato da audiência de apresentação, efetivar no

ordenamento jurídico brasileiro o antigo compromisso internacional firmado pelo

país, bem como a necessidade de tentar solucionar o problema da massificação das

prisões provisórias.

Não obstante os relevantes benefícios trazidos pela iniciativa do CNJ, ao que

parece, a busca por um processo penal mais democrático se revela uma árdua

batalha, pois, assim como o supracitado Provimento Conjunto do CNJ/TJSP, a

Resolução nº 213/2015 do CNJ também não se livrou das críticas, estas, em

síntese, com o mesmo fundamento das anteriores, ou seja, a reserva legal da União

para legislar sobre matéria de direito processual penal. Rememora Daniel Nicory do

Prado28

que, apesar das inequívocas manifestações do STF acerca da matéria,

como já explicitado em linhas anteriores, a questão voltou a ser objeto de

irresignação, através da propositura da ADIN nº 5448, interposta pela ANAMAGES

(Associação Nacional dos Magistrados Estaduais). Todavia, ressalta o mencionado

autor que o posicionamento adotado pelo CNJ é justamente supedaneado nas

manifestações do STF acerca da matéria, na ADI 5240 e na ADPF 347. Conclui que

no julgamento do caso, o relator negou liminarmente o seguimento da ação, por falta

de ilegitimidade da ANAMAGES, pois não é entidade de classe nacional da

magistratura.

28

PRADO, Daniel Nicory do. Op. cit. p.27.

18

Como se vê, a duras penas, a audiência de custódia foi um instituto que

penou para se sedimentar no sistema jurídico do Brasil, em decorrência, sobretudo,

conforme exposto, no descompromisso do Estado brasileiro em honrar os acordos

internacionais sobre direitos humanos, postura que resultou em anos de atraso na

formação de uma consciência humanizada de encarceramento provisório e

principalmente de um processo penal mais democrático.

Atualmente, a meritória Resolução nº 213 do CNJ permanece, ainda, como a

disposição regente do procedimento da audiência de custódia. Foram necessários

anos para o ordenamento jurídico internalizar a necessidade desse ato pré

processual, o qual, aos poucos, vai sendo cada vez mais estimado pela cultura

jurídica brasileira.

2.2 PREVISÃO EM OUTROS ORDENAMENTOS JURÍDICOS

Sobre a disposição alienígena acerca da audiência de custódia, é importante

mencionar o modelo europeu. Dispõe a Convenção Europeia de Direitos Humanos

em seu art. 5.3 que toda pessoa detida deverá ser levada a um juiz rapidamente

para ser julgada em tempo razoável bem como ser decidido acerca de sua

liberdade, ou, se for o caso, condicionar a soltura a medidas que obriguem o preso a

comparecer ao processo29

.

No Reino Unido, país de tradição jurídica baseada nos costumes e Atos do

Parlamento, embora não exista Constituição escrita, a Convenção Europeia de

Direitos Humanos foi internalizada naquele ordenamento jurídico através do Ato de

Direitos Humanos de 1988, o qual entrou em vigor em 2 de outubro de 2000. Os

arts. 5º e 6º do Anexo 1 do referido ato tratam das questões atinentes ao direito à

liberdade e à segurança, determinando a apresentação imediata do preso perante

um juiz ou autoridade competente e a necessidade de uma audiência justa em

tempo razoável30

.

29

CONVENÇÃO EUROPEIA DE DIREITOS DO HOMEM. Disponível em [http://www.echr.coe.int/Documents/Convention_POR.pdf]. Acesso em 11 de fevereiro de 2018. p. 8-9. 30

WEIS, Carlos; FRAGOSO, Nathalie. Apresentação do preso em juízo estudo de direito comparado para subsidiar o pls 554/2011. Disponível em [https://www.defensoria.sp.def.br/dpesp/Repositorio/31/Documentos/DIREITO%20COMPARADO%20-

19

Na França, país historicamente conhecido pela sua luta em defesa da

liberdade, foi consagrada na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão no

ano de 1793 a obrigatoriedade de verificar se a prisão de uma pessoa é necessária

e indispensável, sob pena de sofrer as sanções legais, pois no direito francês, a

prisão provisória é baseada na gravidade do delito e duração da sentença em

potencial, variando entre 24 (vinte e quatro) horas para delitos menos graves até 120

(cento e vinte) horas para infrações penais mais graves. Com isso, valoriza-se a

razoabilidade e proporcionalidade. Por fim, os motivos elencados na legislação

processual penal francesa para legitimar o tolhimento da liberdade do indivíduo

visam, apenas, acautelar o processo, não havendo menção a conceitos genéricos

como ordem pública ou econômica31

.

Em Portugal, as disposições sobre a apresentação da pessoa detida à

autoridade judicial estão inseridas no Texto Constitucional, tratando do prazo e da

observância da prisão processual ser encarada como última medida32

. A

determinação da lei é que se apresente a pessoa detida em até 48 (quarenta e oito)

horas para realização do interrogatório pelo juiz e não pela autoridade policial, logo,

no ordenamento português, a oitiva da pessoa presa é privativa do juiz e o delegado

não participa, e, caso não seja possível se proceder dessa forma, esse indivíduo

será ouvido sumariamente pelo representante do Ministério Público e logo depois

pelo juiz33

.

A Lei Fundamental da Alemanha (Grundgesetz) determina que toda pessoa

presa deve ser apresentada até o final do dia seguinte a sua prisão ao juiz

competente, para que a autoridade judicial aprecie e lhe esclareça as circunstâncias

da prisão, permita oferecer objeções e decida de forma fundamentada acerca da

manutenção da segregação ou soltura34

.

%20Prazo%20para%20apresenta%C3%A7%C3%A3o%20do%20preso%20em%20ju%C3%ADzo.pdf]. acesso em 11 de fevereiro de 2018. p. 6-7. 31

Idem ibdem p. 9-11. 32

Idem ibdem p. 14. 33

ÁVILA, Thiago André Pierobom de. Audiência de custódia: avanços e desafios. Disponível em [https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/53/211/ril_v53_n211_p301.pdf]. Acesso em 12 de fevereiro de 2018. P. 306-307. 34

Idem ibdem, p. 308.

20

A realidade da América Latina revela a efetivação da audiência de custódia

antes mesmo do Brasil. Na Argentina, o prazo para a apresentação do indivíduo

preso sem ordem judicial é de 06 (seis) horas após a prisão, conforme se lê do art.

286 do Código de Processo Penal Argentino35

. No Chile, a determinação do Código

de Processo Penal Chileno é de apresentação imediata do preso, para as prisões

decorrentes de ordem judicial ou de 24 (vinte e quatro) horas, caso ainda não seja

horário de serviço (hora de despacho) e o preso ficará no recinto policial, não

podendo em nenhuma hipótese exceder tal prazo. Quando se tratar de prisão em

flagrante, dispõe o art. 131 do referido Código que o fiscal deverá comunicar a

prisão ao Ministério Público dentro de um prazo de 12 (doze) horas e, pontue-se, o

representante do parquet poderá tornar sem efeito a prisão ou ordenar que o preso

seja apresentado ao juiz no prazo máximo de 24 (vinte e quatro) horas, bem como

comunicar a prisão ao advogado de confiança do preso ou à Defensoria Pública. Se

o Ministério Público nada requerer, deverá a autoridade policial assegurar a

apresentação do preso no prazo indicado36

.

2.3 PRINCÍPIOS DA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA

Os princípios fornecem aos aplicadores do direito relevantes ferramentas para

a compreensão e efetivação dos mais diversos institutos jurídicos. É inegável a

influência dos princípios na formação de qualquer ordenamento jurídico, dado o seu

caráter norteador para o desenvolvimento de uma sociedade, elaboração das

normas e solução dos conflitos.

Nos dizeres de Geraldo Ataliba37

:

Princípios são linhas-mestras, os grandes nortes, as diretrizes magnas do sistema jurídico. Apontam os rumos a serem seguidos por toda a sociedade e obrigatoriamente perseguidos pelos órgãos do governo (poderes constituídos). Eles expressam a substância última do querer popular, seus objetivos e desígnios, as linhas-mestras da legislação, da administração e

35

LEY 23.984 - CÓDIGO PROCESAL PENAL DE LA NACIÓN ARGENTINA, art. 286. Disponível em [http://www.oas.org/juridico/pdfs/arg_ley23984.pdf]. Acesso em 12 de fevereiro de 2018. 36

CODIGO PROCESAL PENAL, art. 131. Disponível em [https://www.leychile.cl/Navegar?idNorma=176595]. Acesso em 12 de fevereiro de 2018. 37

ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985. p. 6-7.

21

da jurisdição. Por estas não podem ser contrariados; têm que ser prestigiados até as últimas consequências.

A incidência dos princípios ganha maior relevância quando se está diante de

institutos recentemente introduzidos no ordenamento jurídico, como a audiência de

custódia. Por óbvio os sujeitos envolvidos no ato, ante a o exíguo tempo de sua

implantação no Brasil e a regulação fornecida pelo CNJ, a qual, muito embora

busque exaurir o tratamento da audiência de custódia, certamente, pela novidade do

instituto, surgirão eventuais dúvidas acerca de um ou outro dispositivo e recorrer aos

princípios invariavelmente será o meio mais confiável na elucidação dessas

questões.

Os princípios norteadores da audiência de custódia invariavelmente estão

atrelados, em maior ou menor grau, aos princípios atinentes às medidas cautelares

previstas no Código de Processo Penal, como a dignidade da pessoa humana,

presunção de inocência, jurisdicionalidade, contraditório e ampla defesa, acusatório,

proporcionalidade, etc.

Essa necessária correlação entre tais institutos decorre da finalidade precípua

da audiência de apresentação, ou seja, a avaliação pela autoridade policial das

peculiaridades que circundam a prisão bem como o julgamento pela necessidade de

aplicação ou manutenção da segregação cautelar.

Por óbvio que alguns princípios irão preponderar mais do que outros (como

vedação à tortura e contraditório), haja vista a peculiaridade deste ato pré

processual. Todavia, considerando a recente introdução da audiência de custódia no

nosso ordenamento jurídico, embora a atual regulamentação dada pelo CNJ com a

Resolução nº 213/2015 seja exaustiva, é inegável a possibilidade de ocorrência de

questões específicas sem resposta no referido dispositivo e, portanto, os atores da

audiência de apresentação (juiz, defensor e promotor de justiça) deverão recorrer

aos princípios regentes das medidas cautelares pessoais.

2.3.1 Dignidade da pessoa humana

O princípio da dignidade da pessoa humana, inserto no art. 1º, inciso III da

Constituição Federal de 1988 revela-se um dos principais alicerces para a

compreensão de uma das finalidades da audiência de custódia, sobretudo por ser

22

um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. Tendo como referência os

Tratados Internacionais sobre direitos humanos já mencionados, sobretudo o Pacto

de São José da Costa Rica, a audiência de apresentação efetiva o dever do Estado

brasileiro em assegurar à toda pessoa presa provisoriamente um tratamento

necessário ao resguardo àqueles direitos mínimos essenciais a todo ser humano,

como liberdade, vida, integridade física e psicológica. Para José Afonso da Silva “é,

inegavelmente, valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos

fundamentais do homem, desde o direito à vida”38

.

Nas palavras de Dirley da Cunha Júnior39

, a dignidade da pessoa humana

assume relevo como valor supremo de toda sociedade para o qual se reconduzem

todos os direitos fundamentais da pessoa humana. Segundo Ingo Wolfgang Sarlet,

citado por Dirley da Cunha Jr.40

, trata-se de uma qualidade intrínseca e distintiva de

cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte

do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e

deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de

cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições

existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua

participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em

comunhão com os demais seres humanos.

A necessidade de proteger a liberdade do indivíduo preso provisoriamente é

um dos motivos para a implantação da audiência de custódia. Demonstrar ao preso

as razões de sua prisão e, eventualmente, porque deve ser cautelarmente

segregado ou restaurada sua liberdade nos revela um compromisso do Estado

brasileiro na concretização da dignidade da pessoa humana. Ao ser posto perante

um juiz, promotor e lhe ser assegurada uma defesa durante a audiência de custódia,

ao preso é conferido tratamento digno em um momento que sequer existe processo,

diferentemente do que se via antes da implantação da audiência de apresentação,

em que não raras vezes o indivíduo era posto no cárcere sem sequer saber os

motivos dessa segregação cautelar. O tratamento digno de informação ao preso de

38

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 23 ed. São Paulo, Malheiros, 2005. p. 105. 39

CUNHA JÚNIOR, Dirley da Cunha. Curso de direito constitucional. 7ª Edição, revista, ampliada e atualizada. Editora Juspodivm, 2013, p. 536. 40

Idem ibidem, p. 536-537.

23

todas as circunstâncias relacionadas à sua prisão é um importante traço da

dignidade da pessoa humana para a liberdade ambulatória.

Conforme preleciona Flávio da Silva Andrade41

, interessante disposição pode

ser encontrada nesse sentido no PLS 554/2011, que incluiria os §§4º e 5º no art. 306

do Código de Processo Penal, assegurando ao preso em flagrante a sua oitiva pelo

juiz presidente da audiência de custódia (§4º) a assistência por advogado ou

defensor público, bem como permite a autoridade policial nomear defensor dativo,

na ausência de defensoria pública na comarca (§5º). Segundo o autor, além de

tornar mais humana e precisa a apreciação do caso pelo julgador, trata-se de

providências legislativas garantidoras dos direitos fundamentais da pessoa presa em

flagrante delito.

Característica marcante para a implantação da audiência de custódia no

Brasil é, sem dúvida, o mandamento constitucional trazido no art. 5º, inciso III da

Constituição Federal de vedação à tortura ou tratamento desumano ou degradante.

A razão de ser desse dispositivo constitucional foi o reconhecimento pelo

constituinte ordinário das gravíssimas violações aos direitos humanos ocorridas

durante o período de vinte anos de ditadura militar. É de notória sabença as

constantes transgressões perpetradas durante esse odioso período da história

brasileira, como perseguições políticas, censura, prisões e desaparecimentos

forçados, tortura e morte.

Infelizmente, passados trinta anos da redemocratização do país e advento da

Constituição Cidadã, ainda permanece, não raro, o abjeto tratamento dado aos

presos provisórios no Brasil. A mentalidade inquisitiva e discriminatória presente em

nossa sociedade nos faz testemunhar rotineiramente severas violações a dignidade

da pessoa humana, sobretudo quanto a ocorrência de tortura e maus tratos às

pessoas encarceradas provisoriamente. Deve-se pontuar que essas condutas de

desrespeito aos direitos humanos muitas vezes são perpetradas por agentes de

segurança pública, como policiais civis, militares e agentes penitenciários, ou seja,

paradoxalmente aqueles que deveriam rechaçar e combater toda e qualquer

violação de direitos humanos acabam por cometer transgressões dessa natureza.

Acerca do PLS 554/2011, há importante alteração legislativa no §6º do art.

306 do Código de Processo Penal, que determina a submissão do preso em

41

ANDRADE, Flávio da Silva. Op. cit. p. 232.

24

flagrante a exame de corpo de delito cautelar. Na visão de Flávio da Silva Andrade42

,

essa mudança será preponderante para inibição de casos de violência policial e

maus tratos aos presos em flagrante, além de estimular a responsabilização de

agentes públicos que perpetrem tais condutas.

Sobre a temática, Daniel Bonatti, Diogo Paiva Brunatti e Leandro Castro Silva,

citados por Daniel Nicory do Prado43

nos revelam que, em estudo anterior à

implementação das audiências de custódia, projetando o impacto da sua realização

sob a perspectiva da gestão das políticas públicas, sustentaram que “a expectativa

da realização de audiência de custódia em 24 horas se justifica pela lembrança

recente do acusado e das testemunhas, por inibir possíveis pressões e torturas

físicas e psicológicas possivelmente realizadas por policiais”.

Nas palavras de Vinícius de Assis Romão44

, persistem em nosso sistema

penal resquícios de uma tradição inquisitorial e de um direito penal privado no poder

punitivo brasileiro. O modelo brasileiro de segurança pública, marcadamente

militarizado, voltado belicosamente ao combate do inimigo interno, produz

justiçamentos, execuções, torturas e superencarceramento.

Foi buscando combater esse quadro de malferimento a dignidade da pessoa

humana e concretização do dever do Estado brasileiro, inserido no art. 5º, inciso III

da Constituição Federal é que o CNJ, na louvável Resolução nº 213/2015,

determinou como deveres do juiz na audiência de custódia, averiguar a ocorrência

de tortura ou maus tratos, como se lê do art. 8º, nos seus incisos II, VI, VII. Dispõe o

inciso II do art. 8º acerca da necessidade de algemas durante a audiência, seguindo

a interpretação dada pelo STF na Súmula Vinculante nº 11, ou seja, apenas quando

indispensável para resguardar a integridade física do preso e das pessoas presentes

na audiência de custódia.

Os incisos VI e VII são mais pontuais quanto ao combate a tortura e maus

tratos, dispondo o inciso VI que o julgador deverá inquirir o preso acerca do

tratamento recebido em todos os locais por onde passou, bem como se foi

submetido a tortura ou maus tratos. O inciso VII determina a verificação acerca da 42

ANDRADE, Flávio da Silva. Op. cit. p. 232 e 234. 43

PRADO, Daniel Nicory do. Op. cit. p. 41. 44

ROMÃO, Vinícius de Assis. A violência estatal contra pessoas presas em flagrante e a observação de audiências de custódia em Salvador. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. Vol. 128. Ano 25. P. 307-345. São Paulo: Ed. RT, fevereiro 2017.. p. 310.

25

realização de exame de corpo de delito e, em caso negativo, que este seja realizado

para identificar a ocorrência de tortura e maus tratos, fatores idôneos a ensejar o

relaxamento de prisão. No ponto, Daniel Nicory do Prado45

acrescenta que um dos

anexos da Resolução estabelece um protocolo pormenorizado para a atuação

nesses casos, inclusive com uma relação bastante detalhada de indícios de prática

de tortura, de tratamento cruel, desumano ou degradante, que de fato correspondem

a hipóteses que, na vida prática, são frequentemente mencionadas pelos presos,

como por exemplo, “quando a pessoa custodiada tiver sido mantida em veículos

oficiais ou de escolta policial por um período maior do que o necessário para o seu

transporte direto entre instituições” (Item 1, Parágrafo Segundo, III, do Protocolo II

da Resolução nº 213 do CNJ).

Após um ano de funcionamento das audiências de custódia no Brasil foi

realizado um levantamento acerca das denúncias de maus tratos e tortura relatados

em audiência de apresentação e, conforme dados do Conselho Nacional de Justiça

e do STF, foram identificados 2,7 mil denúncias de tortura e maus tratos a pessoas

presas em todo o país. Publicado em janeiro, o relatório da organização não

governamental Human Rights Watch revelou que as audiências de custódia

representam uma tentativa do Brasil de combater a violação dos direitos humanos, a

submissão dos detentos a uma prisão superlotada e o combate também às torturas

e aos maus-tratos no ato da apreensão46

.

Contudo, muito embora o inegável prestígio dado pela audiência de custódia

ao postulado da dignidade da pessoa humana, a característica punitivista e de

encarceramento ainda permanecem enraizadas nas instituições a serviço da justiça,

como se depreende de algumas decisões judiciais em sede de audiência de

custódia totalmente apartadas da sua finalidade, ao motivar uma segregação

cautelar na inadequada tentativa de assegurar a “paz social”. Contra esse tipo de

pronunciamento judicial, ensina Paulo Rangel47

que não podemos confundir prisão

cautelar com política pública séria de combate a violência, ou seja, nada tem a ver

com a prisão cautelar os altos índices de violência urbana que assolam nosso país.

45

PRADO, Daniel Nicory do. Op. cit. p. 41. 46

Audiência de custódia aponta quase 3 mil casos de tortura, revela presidente. Disponível em: [http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/81646-audiencia-de-custodia-aponta-quase-3-mil-casos-de-tortura-revela-presidente]. Acesso em 23 de novembro de 2017. 47

RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 24. ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2016.

26

Luciano Rostirolla48

nos dá um interessante ponto de vista acerca da

dignidade da pessoa humana do preso submetido a audiência de custódia,

especificamente quanto a questões sobre tortura e maus tratos. Para o autor, a

obrigatoriedade de o julgador averiguar a incolumidade do preso tão somente na

audiência de apresentação é inócua, pois, caso seja decretada a prisão do indivíduo,

este será posto no cárcere brasileiro, notória e publicamente conhecido como um

ambiente desumano e tortuoso. Sem dúvida, é um posicionamento relevante do

autor, pois escancara a necessidade de maior cautela dos julgadores quando for

decretar prisões preventivas em audiência de custódia, além de rememorar a falha

do Estado brasileiro em relação ao sistema prisional. Todavia, respeitosamente

entendo em sentido diverso do autor, vislumbrando como mais do que bem vinda a

imposição de combate a tortura e maus tratos em audiência de custódia, dada a

histórica negligência do Estado nessas situações, corrigindo em boa hora a omissão

legislativa, pois não havia, até a Resolução do CNJ, dispositivo de lei determinando

essa cautela com o preso em flagrante. Não se pode, assim, diminuir as louváveis

medidas trazidas com a regulamentação da audiência de custódia tão somente pelo

fato do Estado ter, infelizmente, virado as costas para sistema carcerário.

2.3.2 Contraditório e ampla defesa

O princípio do contraditório e ampla defesa, assegurado no art. 5º, inciso LV

da Constituição Federal, desponta, sem dúvidas, como o mais relevante para a

compreensão dos motivos os quais ensejaram a introdução da audiência de custódia

no Brasil. Busca-se garantir com esse princípio, em linhas gerais, a prévia oitiva das

partes, seja no processo ou fora dele, para que o julgador, ciente das manifestações,

tenha melhores condições de julgar o caso.

Para o doutrinador Dirley da Cunha Júnior49

as garantias do contraditório e

ampla defesa completam e dão sentido e conteúdo à garantia do devido processo

legal, pois seria demasiado desatino garantir a regular instauração formal de

processo e não se assegurar o contraditório e a ampla defesa àquele que poderá ter

sua liberdade ou o seu bem cerceado. O contraditório, na visão do autor, é garantia

48

ROSTIROLLA, Luciano. Op. cit. p. 352. 49

CUNHA JÚNIOR, Dirley da Cunha. Op. Cit. p.

27

que assegura à pessoa sobre a qual pesa uma acusação o direito de ser ouvida

antes de qualquer decisão a respeito e a ampla defesa é garantia que proporciona a

pessoa contra quem se imputa uma acusação a possibilidade de se defender e

provar o contrário.

Para Tourinho Filho50

, tal princípio consubstancia-se na velha parêmia

auditatur et altera pars – a parte contrária deve ser ouvida. Traduz a ideia de que a

Defesa tem o direito de se pronunciar sobre tudo quanto for produzido em juízo pela

parte contrária. Embora o renomado autor fale “em juízo”, a perspectiva do princípio

do contraditório trazida é perfeitamente aplicável em audiência de custódia, ou seja,

o Ministério Público ou autoridade policial traria em seu petitório quais as razões

para, se for o caso, segregar cautelarmente o indivíduo, entendendo pelo

preenchimento, no caso, dos pressupostos e requisitos trazidos na lei, e, na mesma

assentada, seria assegurada a defesa a palavra, para demonstrar, também com

suas razões, a desnecessidade ou até ilegalidade de decretação ou manutenção da

medida cautelar requerida.

O contraditório e a ampla defesa cumprem, não apenas no processo penal, a

relevante função de fornecer à decisão judicial não apenas as peculiaridades do

caso, mas, sobretudo, dar as partes a oportunidade de serem ouvidas, concedendo

segurança jurídica e credibilidade aos pronunciamentos judiciais. Como bem

assevera Fredie Didier Jr.51

, o princípio do contraditório reflete o próprio princípio

democrático no processo, ao assegurar o indivíduo, o direito de participação

(audiência, comunicação, ciência) e possibilidade de influência na decisão.

Nos ensina Aury Lopes Jr.52

, antes mesmo da implantação da audiência de

custódia no Brasil, que o ideal seria o juiz, à luz do pedido de adoção de alguma

medida cautelar, intimar o imputado para uma audiência, na qual, sob a égide da

oralidade, efetivar-se-iam o contraditório e o direito de defesa, na medida em que o

acusador sustentaria os motivos de seu pedido e o réu, de outro lado, argumentaria

sobre a falta de necessidade da medida (seja por fragilidade do fumus comissi delicti

50

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 16 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 64. 51

DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 17 ed. Salvador: Ed. Juspodivm, 2015. 52

LOPES JR., Aury. Prisões Cautelares. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 33.

28

ou do periculum libertatis). Tal medida é muito importante e contribui para a melhor

decisão do juiz.

Mesmo após as reformas de 2008 e 2011 no Código de Processo Penal –

sendo esta última, inclusive, modificadora de diversos dispositivos acerca das

prisões cautelares – a análise das prisões provisórias (excluída a prisão em

flagrante) ainda não era precedida de regular contraditório, ou seja, ainda que o

quanto disposto no art. 282, §3º do CPP nos revelasse uma mudança para efetivar o

contraditório em sede de medidas cautelares, muitas vezes se legitimava uma

segregação cautelar tão somente com a provocação por parte do Ministério Público

ou autoridade policial e até mesmo de ofício, sem qualquer conhecimento por parte

do julgador acerca das circunstâncias da prisão ou condições pessoais do preso. Em

diversos casos, a mera ausência de contraditório prévio para apreciação das prisões

cautelares, ou até mesmo a decretação de ofício, não raro sem a devida motivação,

acabava por ensejar uma segregação arbitrária e ilegal, contribuindo para o aumento

da população carcerária.

Com o advento da audiência de custódia, o princípio do contraditório e ampla

defesa protagonizam o rol de mudanças trazidas ao processo penal, mormente no

trato das prisões cautelares. Ao trazer o debate entre as partes do processo penal

para avaliação de uma prisão provisória, a audiência de custódia não só assegura

uma garantia fundamental assegurada desde 1988, mas também traz (ou pretende

trazer) maior legalidade nas prisões processuais decretadas, pois é fornecido ao

julgador, após ouvida acusação e defesa, um arcabouço fático muito mais

abrangente do que se este analisasse, isoladamente, uma requisição de prisão

preventiva, por exemplo, ou um auto de prisão em flagrante. Corroborando com esse

fundamento Rafael Osvaldo Machado Moura e Marcela Busnardo dos Santos53

acrescentam que tudo indica que a audiência de custódia trata-se apenas de

oportunidade para que o julgador amplie seus horizontes de apreciação do caso,

ouvindo as partes necessárias e tendo contato com a pessoa diretamente afetada

por sua decisão.

53

MOURA, Rafael Osvaldo Machado; SANTOS, Marcela Busnardo dos. Op. cit. p. 394.

29

Para Flávio da Silva Andrade54

, o contraditório trazido pela audiência de

custódia permite as partes expressarem seus questionamentos e participarem,

ativamente, da construção do provimento jurisdicional acerca da medida cautelar a

ser adotada, o que antes não se vislumbrava.

Nesse sentido, como nos sugeria Aury Lopes Jr.55

, antes do advento da

audiência de apresentação, que o detido fosse desde logo conduzido ao juiz que

determinou a prisão, para que, após ouvi-lo (um interrogatório restrito à inquirição

sobre a necessidade ou não da prisão, já que o caso penal deve ser objeto de

interrogatório ao final do procedimento), decida fundamentadamente se mantém ou

não a prisão cautelar.

Por meio de um ato simples como esse, o contraditório realmente teria sua

eficácia de “direito à audiência” e, provavelmente, evitaria muitas prisões cautelares

injustas e desnecessárias decretadas pelo judiciário, o qual, com a audiência de

custódia, sendo um órgão de contenção do poder punitivo e zelador de garantias,

adquire ainda mais importância ao possibilitar o contraditório e a ampla defesa a

quem teve a liberdade cerceada, nas palavras de Vinícius de Assis Romão56

.

É salutar para o processo penal brasileiro o contraditório e ampla defesa em

sede de audiência de custódia, pois demonstra a necessidade de se efetivar tal

garantia já em fase pré processual, historicamente negligenciada em atos

procedimentais anteriores à ação penal, como o inquérito policial. Os resultados

benéficos de se assegurar o contraditório na audiência de custódia certamente

refletirão na obrigatoriedade de participação das partes em todo e qualquer ato

potencialmente apto a tolher um direito fundamental, inclusive na investigação

policial.

Nas palavras de Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar57

, a valorização

do contraditório em audiência de custódia efetiva o chamado "interrogatório de

garantia” que torna possível ao autuado informar ao juiz suas razões sobre o fato a

54

ANDRADE, Flávio da Silva. Op. cit. p. 237. 55

LOPES JR., Aury. Op. cit. p. 33 56

ROMÃO, Vinícius de Assis. Op. cit. p. 319. 57

TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 12. ed. rev. e atual. – Salvador: Ed. Juspodivm, 2017. p. 928.

30

ele atribuído. Para os autores, tal interrogatório é meio de controle judicial acerca da

licitude das prisões.

Faz-se necessário, por outro lado, alertar que, por se tratar de um momento

processual ligado a possível imposição de medidas cautelares, a espécie de

contraditório que irá se buscar na audiência de custódia se mostra mais restrita do

que se estivéssemos, por exemplo, numa audiência de instrução e julgamento. Com

isso, jamais poderá haver pelas partes um aprofundamento no mérito do caso, ou

seja, tratar, em linhas gerais, acerca de autoria ou materialidade delitiva, muito

menos abordar teses subsidiárias, antecipando julgamentos de eventual ação penal.

Consoante ensina Eugênio Pacelli58

, deve-se ter como finalidade única do

debate entre as partes na audiência de apresentação permitir ao aprisionado e ao

magistrado um exame mais direto a respeito da necessidade ou da desnecessidade

da imposição de cautelares a ele. Por fim, leciona o doutrinador que naturalmente

que as partes (Ministério Público e Defesa) devem também ser ouvidas, mas não

para fins de esclarecimento do crime e para a inquirição do preso sobre os fatos.

Para isso já é previsto o interrogatório, após regular instauração do inquérito. Não

fossem suficientes tais argumentos, é de se ver também que, ainda quando

realizada (a audiência) em contraditório e na presença do juiz, não será de processo

que se cuidará, mas apenas da fase inicial e nascedoura da investigação.

Não obstante o respeitável posicionamento dos ilustres doutrinadores, por

outro lado, na defesa de um contraditório mais aprofundado no mérito em sede de

audiência de apresentação, indaga Daniel Nicory do Prado59

“a que serve a

audiência de custódia? Como cumprir adequadamente as suas finalidades sem

enfrentar o mérito?”.

Para o referido autor, já que a audiência de custódia serve para analisar a

regularidade da prisão e a necessidade de sua manutenção, todas as questões que

interessem a esses fins devem ser formuladas, ainda que atinjam indireta ou

superficialmente o mérito.

Sem embargo das louváveis razões expendidas pelos respeitáveis autores

que defendem o tratamento do mérito em audiência de custódia, me parece estar

em maior consonância com o devido processo legal penal o posicionamento

58

PACELLI, Eugênio. Op. cit. p. 556. 59

PRADO, Daniel Nicory do. Op.cit. p. 32.

31

explicitado por Eugênio Pacelli, em que a restrição às questões de mérito na

audiência de apresentação deve nortear a conduta das partes no referido ato. Vejo

como plenamente possível a condução da audiência com a discussão apenas

quanto às circunstâncias da prisão e condições pessoais do preso, sem imersão no

mérito, através de uma análise objetiva acerca do preenchimento ou não dos

pressupostos da prisão preventiva, observação pelo juiz de possível submissão do

preso a tortura ou maus tratos, aplicação de medidas cautelares alternativas à prisão

e concessão de liberdade. O interrogatório em audiência de custódia, nos

ensinamentos de Aury Lopes Jr.60

, não deve se prestar para análise do mérito (leia-

se, autoria e materialidade), reservada para o interrogatório de eventual processo de

conhecimento. A rigor, limita-se a verificar a legalidade da prisão em flagrante e a

presença ou não dos requisitos da prisão preventiva, bem como permitir uma melhor

análise da(s) medida(s) cautelar(es) diversa(s) adequada(s) ao caso.

No mesmo sentido, Flávio da Silva Andrade61

, ao comentar o PLS 554/2011,

traz importante mudança acerca da oitiva do preso em audiência de custódia,

tratada no §7º do art. 306 do projeto, ao determinar que a oitiva do preso “(...)

versará exclusivamente sobre a legalidade e a necessidade da prisão, a ocorrência

de tortura ou de maus-tratos e os direitos assegurados ao preso e ao acusado”. O

autor entende que esse dispositivo deixa bem delimitada a forma como deve ser

regida a oitiva do preso e o objeto desta, adstrita a informar ao juiz, defensor e

representante do Ministério Público, as circunstâncias objetivas da prisão, sob pena

de estar antecipando o interrogatório, além disso, como sequer há acusação

formalizada, deve-se substituir o termo “acusado” do dispositivo alterador.

Embora seja assegurado ao preso o direito de ser levado à uma autoridade

judiciária e acompanhamento por um defensor, essa garantia, por si só, não supre a

necessidade de efetivação do devido processo legal penal, com a perfectibilização

da relação jurídica processual penal, após regular citação do réu em eventual

denúncia passada ao crivo do juiz competente, para os casos de prisão em

flagrante. Nesse ponto, veja-se que já existe por parte do Estado uma acusação

formal e o preso terá muito mais condições, ao se manifestar no processo, de tratar

de questões meritórias, do que se estivesse na audiência de custódia. Em relação

60

LOPES JR., Aury. Op. cit. p. 335. 61

ANDRADE, Flávio da Silva. Op. cit. p. 238-239.

32

às prisões processuais decretadas no curso da ação penal, ainda que o mérito do

caso possa estar mais claro, não se deve perder de vista a precípua finalidade da

prisão provisória a ser decretada, ou já decretada, qual seja, acautelar o processo e

assegurar o regular trâmite do feito, portanto, esse deve ser o norte do juiz e das

partes na audiência de custódia para tais casos.

Especificamente no âmbito da audiência de custódia nos é revelada uma

interessante faceta do princípio do contraditório e da ampla defesa qual seja o

imediato contato do preso com o juiz para que este possa literalmente visualizar as

condições pessoais do preso ou se foi submetido a tortura ou mais tratos, e, além

disso, da possibilidade do preso se manifestar acerca de sua prisão. O contraditório,

nesse sentido, é ampliado, fornecendo ao julgador elementos de convicção

decorrentes da oitiva das partes e, sobretudo, da visualização da situação do preso,

aspecto de extrema relevância para a correta decisão acerca da liberdade do

indivíduo. Ainda que a prisão se efetivasse, haveria um mínimo de humanidade no

tratamento dispensado ao detido, na medida em que, ao menos, teria sido “ouvido

pelo juiz”, conforme pontua Aury Lopes Jr62

.

2.3.3 Presunção de inocência

O princípio da presunção de inocência resguarda o indivíduo contra a

pretensão punitiva estatal ao determinar que ninguém poderá ser preso até o

trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Trata-se de garantia

fundamental insculpida na Constituição Federal de 1988, ao teor do art. 5º, LVII.

Nas brilhantes lições de Guilherme de Souza Nucci63

, o princípio da

presunção de inocência confirma a excepcionalidade e a necessidade das medidas

cautelares de prisão, já que indivíduos inocentes somente podem ser levados ao

cárcere quando realmente for útil à instrução e à ordem pública. E se aplica também

a outras restrições a liberdade individual, como quebra de sigilo telefônico e bancário

e violação de domicílio em virtude de mandado de busca.

62

LOPES JUNIOR, Aury. Op. cit. p. 33. 63

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 9. ed. rev., atual e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.

33

Em se tratando de audiência de custódia, o referido princípio ganha inegável

pujança, devido ao título prisional provisório que será decretado, mantido ou

revogado pela autoridade judiciária, ou seja, o fato do indivíduo poder ser

encarcerado provisoriamente reforça a necessidade de, em audiência de custódia,

dar relevo ao princípio da presunção de inocência. Como, na maioria das vezes,

sequer existe processo e, logicamente, não há conhecimento aprofundado do mérito

(e nem deve haver, conforme defendido em linhas pretéritas) e os elementos de

cognição ainda são ínfimos, os motivos do julgador para aplicar uma restrição da

liberdade do indivíduo jamais poderão ir de encontro com a presunção de inocência.

Como bem ressalta Tourinho Filho64

, sendo o homem presumidamente

inocente, sua prisão antes do trânsito em julgado da sentença condenatória

implicaria antecipação da pena, e ninguém pode ser punido antecipadamente, antes

de ser definitivamente condenado, a menos que a prisão seja indispensável a título

de cautela. No mesmo sentido, ao pontuar o posicionamento da Suprema Corte,

Dirley da Cunha Júnior65

assevera que o Supremo Tribunal Federal tem advertido

sobre a necessidade de estrita observância, pelos órgãos judiciários competentes,

de determinadas exigências, em especial a demonstração que evidencie a

imprescindibilidade, em cada situação ocorrente, da adoção da medida constritiva da

liberdade do indiciado/réu, sob pena de caracterização de ilegalidade ou de abuso

de poder na decretação da prisão meramente processual (HC 89.754, Rel. Min.

Celso de Mello, julgamento em 13-2-07, DJ de 27-4-07).

Não se pretende legitimar a impossibilidade de decretação ou manutenção da

segregação cautelar do indivíduo, até porque a essência do princípio relaciona-se

com o processo penal propriamente dito, em que a acusação deve demonstrar, além

da dúvida razoável, a culpabilidade do réu, presumidamente inocente. Trata-se

justamente de um efeito desse princípio, no sentido de reforçar a demonstração de

necessidade de antecipação da restrição da liberdade do indivíduo por uma medida

cautelar, a qual, ante ao princípio da presunção de inocência, deve ser considerada

residual e necessária, pois a liberdade é a regra, bem como proporcional aos fins

que pretende alcançar.

64

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Op. cit. p. 73. 65

CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Op. cit. p. 710-711.

34

Dito isso, o princípio da presunção de inocência, para além de assegurar (ou

pretender assegurar) ao réu a regra de seu status libertatis, revela importante

mandamento ao juiz e um dos nortes do presente trabalho, qual seja a necessidade

de motivação da decisão proferida em audiência de custódia, sobretudo nos casos

de manutenção ou decretação de medida cautelar. Para Aury Lopes Júnior66

, a

escolha ideológica de civilidade dada ao princípio da presunção de inocência, em se

tratando de prisões cautelares, é da maior relevância, visto que decorre da

consciência de que o preço a ser pago pela prisão prematura e desnecessária de

alguém inocente (pois ainda não existe sentença definitiva) é altíssimo, ainda mais

no medieval sistema carcerário brasileiro.

O julgador, ciente do seu papel de agente do Estado e garantidor das

liberdades individuais, principalmente a ambulatória, entendendo o preso lhe

apresentado na assentada como presumidamente inocente deverá de forma

exaustiva e pormenorizada apresentar, se for o caso, as razões pelas quais afasta a

regra (liberdade) e aplica a exceção (medida cautelar). Assim sendo, para afastar o

princípio em tela na audiência de custódia, aplicando a medida cautelar, a motivação

decisória deve ser idônea a decotar essa garantia constitucional.

2.4 CONCEITO E FINALIDADES

A audiência de custódia ou apresentação pode ser conceituada como um ato

pré processual de análise pelo magistrado acerca de alguma medida adotada pelo

Estado apta a restringir, em maior ou menor grau, o estado de liberdade do

indivíduo, regra no ordenamento jurídico pátrio, bem como de exame sobre possível

submissão do preso a tratamento desumano, a exemplo de tortura e maus tratos.

Nas palavras de Eugênio Pacelli67

, trata-se de audiência para averiguação possíveis

ilegalidades relativas à prisão em si ou ao tratamento sofrido pelo detido enquanto

em custódia da autoridade policial. Além disso, não deixa de ser uma primeira

oportunidade para que este manifeste a respeito do ocorrido, podendo a prisão ser

então mantida, relaxada ou até mesmo substituída por medidas cautelares diversas.

66

LOPES JÚNIOR, Aury. Op. cit. p. 23. 67

PACELLI, Eugênio. Op. cit. p. 554.

35

Para Flávio da Silva Andrade68

, é procedimento pré processual que visa

garantir a oitiva do preso por um juiz num prazo de 24 (vinte e quatro) horas após a

sua prisão (em flagrante ou por força de mandado), permitindo uma maior

humanização no pronunciamento judicial, seja para conceder a liberdade ou manter

a segregação cautelar do indivíduo, além de averiguação de ocorrência de maus

tratos ou tortura.

A audiência de custódia expressa no Pacto de São José da Costa Rica é ato

em que autoridade judicial ou outra autoridade autorizada a exercer funções judiciais

tem conduzida a sua presença toda pessoa presa. Na Resolução nº 213 do CNJ,

conceitua-se audiência de custódia como apresentação de toda pessoa presa em

flagrante delito, independentemente da motivação ou natureza do ato, em até 24

horas da comunicação do flagrante, à autoridade judicial competente, e ouvida sobre

as circunstâncias em que se realizou sua prisão ou apreensão.

A generalidade do conceito apresentado – no que tange a variedade de

medidas aptas a restringir a liberdade de uma pessoa – se justifica pelo fato de a

audiência de custódia ser meio de averiguação da necessidade e proporcionalidade

das mais variadas providências admitidas na legislação brasileira, como salientado

em linhas pretéritas. Nesse sentido, determinações como prisão em flagrante, prisão

preventiva, prisão temporária, medidas cautelares alternativas à prisão preventiva e

prisão civil por dívida de alimentos devem ser, com exceção da prisão em flagrante,

precedidas da audiência de custódia. Em relação a prisão em flagrante, a audiência

de apresentação será em até 24 (vinte e quatro) horas após a segregação pré

cautelar.

Veja-se que o diploma de origem da audiência de custódia, o Pacto de São

José da Costa Rica, não traz em seus dispositivos absolutamente nenhuma restrição

acerca da natureza da prisão a ensejar apresentação do preso a autoridade policial

em tempo razoável e, além disso, embora o diploma regulamentador da audiência

de custódia, em seu art. 1º trate apenas da prisão em flagrante, em se tratando de

bem jurídico de vultosa relevância (liberdade), é plenamente possível a realização

de audiência de custódia para prisões ou medidas restritivas de liberdade individual

de qualquer natureza.

68

ANDRADE, Flávio da Silva. Op. cit. p. 249.

36

Sobre a prisão em flagrante, interessante notar a disposição do Código de

Processo Penal, em seu art. 310, que o juiz decidiria sobre o flagrante, ou seja, se

homologava, convertia em prisão preventiva ou aplicava outra medida cautelar. A

inovação agora é inserir, nesta fase, uma audiência, onde o preso seja – após a

formalização do auto de prisão em flagrante feito pela autoridade policial – ouvido

por um juiz, que decidirá nesta audiência se o flagrante será homologado ou não e,

ato contínuo, se a prisão preventiva é necessária ou se é caso de aplicação das

medidas cautelares diversas (art. 319), como bem salienta Aury Lopes Jr69

.

Felizmente a retrógrada disciplina do CPP para a prisão em flagrante foi

alterada com o advento da audiência de custódia ao aproximar o preso do juiz e

promotor, agora com mais condições de averiguar todas as especificidades

inerentes à prisão do indivíduo, não mais se limitando à meras folhas de papel de

um auto de prisão em flagrante. Acrescentam Aury Lopes Jr. e Caio Paiva70

a

importante missão da audiência de custódia de reduzir o encarceramento em massa

no país, porquanto através dela se promove um encontro do juiz com o preso,

superando-se, desta forma, a “fronteira do papel” estabelecida no art. 306, § 1º, do

CPP, que se satisfaz com o mero envio do auto de prisão em flagrante para o

magistrado. Os referidos autores arrematam, ensinando que a audiência de custódia

realiza a importante função de frear o Estado de Polícia, limitando o poder punitivo.

É louvável a finalidade da audiência de custódia na busca pela humanização

do processo penal, por revelar ao julgador diversas perspectivas acerca da prisão

submetida ao seu crivo. Esse escorço fático levado à assentada fornece ao juiz, ou

deveria fornecer, melhores condições para um pronunciamento bem fundamentado,

desvencilhando-se de argumentos superficiais e genéricos, como se vê em algumas

decisões judiciais proferidas em audiência de custódia, aspecto negativo desse ato a

ser analisado no presente trabalho. Como acertadamente pontua Ricardo

Lewandowski71

, as audiências de custódia surgiram justamente como um

enfrentamento do ordenamento jurídico brasileiro face a odiosa situação carcerária,

visando prevenir o encarceramento desnecessário, ao permitir ao julgador, em

69

LOPES JÚNIOR, Aury. Op. cit. p. 334. 70

LOPES JÚNIOR, Aury; PAIVA, Caio. Op. cit. 71

LEWANDOWSKI, Ricardo. Audiência de custódia e o direito de defesa. In: Revista jurídica LEX. Continuação de: LEX – Revista do direito brasileiro v. 1 (jan./fev/ 2003). São Paulo: LEX, 2003. Bimestral v. 76 (jul./ago. 2015). p. 364.

37

contato direto com o preso, fazer uma análise mais cautelosa acerca das

circunstâncias da prisão.

Permitir a apresentação do preso de forma imediata após a sua prisão em

flagrante permitirá ao juiz uma avaliação mais criteriosa acerca do cerceamento do

estado de liberdade do indivíduo, bem como assegurar ao preso a possibilidade de

levar ao juiz situações emergenciais, como por exemplo a necessidade de cuidados

médicos, antes demorados, apenas com intervenção do defensor do indivíduo,

conforme ensina Luciano Rostirolla72

.

Determinar ao magistrado, além disso, averiguar situações de maus tratos ou

tortura eventualmente sofridas pelo preso, bem como ordenar a investigação dos

fatos relacionados à esse tratamento desumano é concretizar a finalidade primeira

do Pacto de São José da Costa Rica, qual seja, resguardo aos direitos humanos.

Não raro são verificadas situações de tortura, muitas vezes policial, aos presos em

flagrante conduzidos à presença do juiz e a audiência de custódia se mostra

importante medida para o combate dessa rotineira, infelizmente, violação aos

direitos humanos.

72

ROSTIROLLA, Luciano. Op. cit. p. 347.

38

3 A MOTIVAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS EM AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA

3.1 ANTECEDENTES HISTÓRICOS DA OBRIGATORIEDADE DE MOTIVAÇÃO

DAS DECISÕES JUDICIAIS

A exigência de motivação das decisões judiciais não é um aspecto recente

nos diversos ordenamentos jurídicos ao redor do mundo. Desde aproximadamente o

séc. XVIII já se percebia a obrigação dos pronunciamentos feitos pelos magistrado

externarem quais os caminhos tomados pelo julgador e as razões pelas quais se

chegava a determinada conclusão. Certamente, o motivo comum nesses

ordenamentos jurídicos para a exigência de fundamentação das decisões judiciais

era necessidade de evitar cada vez mais a arbitrariedade dos juízes e, dessa forma,

contribuir para a resolução dos conflitos de forma mais justa. Nas lições de

Liebman73

:

A história do processo, nos últimos séculos, pode ser concebida como a história dos esforços feitos por legisladores e juristas, no sentido de limitar o âmbito de arbítrio do juiz, e fazer com que as operações que realiza submetam-se aos imperativos da Razão.

Para o supracitado autor, a fundamentação das decisões judiciais pode ser

encarada, como verdadeira garantia contra o arbítrio, reflexo de um Estado

Democrático de Direito, em que se pode afirmar que os casos submetidos ao crivo

do Judiciário foram julgados com imparcialidade, levando em conta os fatos

provados e, na decisão final, esses elementos poderem ser identificados com a

demonstração pelo julgador do caminho lógico que seguiu para tanto74

.

Luigi Ferrajoli75

, ao tratar dos precedentes do imperativo de motivar as

decisões judiciais expõe que o princípio da reddere rationem das decisões

judiciárias, e especificamente das sentenças, é francamente moderno. De acordo

com o autor, apoiada por Francis Bacon e depois pelo pensamento iluminista, a

73

LIEBMAN, Enrico Tullio. Do arbítrio à razão: reflexões sobre a motivação da sentença. Revista de Processo. Ano VIII, Janeiro-Março de 1983. Nº 29. p. 79. 74

Idem ibdem, p. 80. 75

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Prefácio da 1. ed. italiana, Norberto Bobbio. 4. ed. rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 573.

39

obrigação foi sancionada pela primeira vez pela Pragmática de Ferdinando IV, de 27

de setembro de 1774; sucessivamente pelo art. 3 da Ordonnance criminelle de Luís

XVI, de 1.º de maio de 1788; depois pelas leis revolucionárias de 24 de agosto e 27

de novembro de 1790 e, por fim, recebida, através da codificação napoleônica, em

quase todos os códigos oitocentistas europeus. Acrescenta, ainda, que essa regra

encontrou resistência no sistema anglo-saxão de tradição acusatória, pois, de

acordo com o autor, haveria a discutível ideia da incompatibilidade entre motivação

técnica e veredito dos jurados.

José Carlos Barbosa Moreira76

nos rememora que a partir da segunda metade

do século XVIII, é que se começou a generalizar, nas legislações ocidentais, a

exigência feita aos juízes de declarar, em seus pronunciamentos decisórios, as

razões em que se baseavam – imposição em regra qualificada pelo requisito da

publicidade. É relembrado pelo doutrinador que a regra foi consagrada na França,

após a Revolução Francesa e introduzida no art. 208 da Constituição do ano III, no

ano de 1790. Na mesma época, em 1793, essa exigência é adotada pela Prússia

(Allgemeine Gerichtsordnung), e, em anos anteriores (1774 e 1788), tal inovação é

introduzida na península itálica, em Nápoles e no Principado de Trento.

O autor pontua a relevância atribuída ao mandamento de motivação das

decisões judiciais quando em alguns países tal regra é insculpida na Constituição,

passando a guardar estabilidade jurídica e proteção contra as alterações legislativas

ordinárias. Além disso, permite-se visualização diversa da matéria, pela adequada

valoração de seu enquadramento num sistema articulado de garantias

fundamentais. Até mesmo para os ordenamentos jurídicos onde não se vislumbra

regra constitucional expressa, nos ensina o processualista que o imperativo de

fundamentação das decisões judiciais mostra-se resultado da análise dos princípios

constitucionais e norteadores do sistema jurídico, como a necessidade de ser ouvido

em juízo e da subordinação do juiz à lei, aspectos intrínsecos a República Federal

da Alemanha.

No cenário brasileiro, a obrigatoriedade de motivação das decisões judiciais

tem precedentes nas tradições luso-brasileiras, como salienta José Carlos Barbosa

76

MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de direito processual: segunda série. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1988. p. 83-84.

40

Moreira77

. No Código Filipino, o princípio estava albergado na Ordenação do Livro III,

Título LXVI, §7. Detalhe, para os magistrados que não obedecessem esse

mandamento, havia a cominação da penalidade de multa em favor da parte,

inclusive, uma portaria de 31 de março de 1824 relembrava aos juízes o dever que

estavam sujeitos. Tal princípio iria inspirar, anos depois, o Regulamento nº. 737 de

1850, expressando a necessidade do juiz motivar com precisão o julgado, bem como

declarar sob sua responsabilidade a lei, uso ou estilo em que se fundava. Esse

regulamento seria o primeiro diploma legal brasileiro a tratar de forma expressa a

necessidade de motivação das decisões judicais78.

Em termos de Constituição Federal, o princípio da fundamentação das

decisões judiciais não teve resguardo nas Cartas Maiores anteriores a 1988, muito

embora já houvesse um movimento doutrinário a entender pela necessidade de

resguardo constitucional desse princípio e, além disso, o fato de que a motivação

das decisões judiciais se revelaria uma manifestação e, portanto, garantia, do

Estado Democrático de Direito, mesmo sem regra constitucional expressa.

Para Zavarize79

, para compreender a obrigatoriedade de motivação das

decisões judiciais no ordenamento jurídico pátrio, faz-se necessário verificar os

antecedentes históricos da legislação processual brasileira. Nos primórdios,

vigoravam as normas emanadas da Coroa Portuguesa, que se aplicavam ao

território brasileiro e a garantia de fundamentação das decisões judiciais sempre

esteve presente, desde as ordenações portuguesas aqui aplicadas. O autor

enumera, como principais tópicos de análise histórica do princípio, as seguintes

normas: o direito lusitano e as ordenações; o Regulamento n. 737, de 25 de

novembro de 1850; a Constituição de 1891 e os Códigos Estaduais; o Código de

Processo Civil de 1939; o Código de Processo Civil de 1973 e o Regimento Interno

do Supremo Tribunal Federal e a arguição de relevância da questão federal.

Ao tempo das Ordenações Portuguesas a obrigação de fundamentar as

decisões judiciais já guardava extrema importância, sobretudo pelas razões que

justificavam essa exigência, até hoje presentes, como proporcionar às partes o

conhecimento das razões do pronunciamento judicial, assim como fazer com que os 77

Idem Ibidem, p. 85. 78 Idem Ibidem, p. 85 79

ZAVARIZE, Rogério Bellentani. A fundamentação das decisões judiciais. Millenium Editora, 2004. Campinas, SP. p. 29-30.

41

magistrados da instância superior apreciassem melhor os motivos elencados. Após,

com o advento do Regulamento 737 de 25 de novembro de 1850, que introduziu na

legislação brasileira a exigência de fundamentar as decisões judiciais e,

posteriormente, influenciou a confecção dos Códigos Estaduais, os quais, de forma

pioneira, trouxeram a pena de nulidade para pronunciamentos de magistrados

desprovidos das razões de decidir, segundo leciona Zavarize80.

Interessante notar, nesse sentido, as disposições dos Códigos de Processo

de Minas Gerais e de Pernambuco, em que “divagações científicas ou inúteis” não

deveriam constar das sentenças81

. Percebe-se, assim, desde aquela época, o

compromisso do ordenamento jurídico brasileiro em rechaçar a existência de

decisões judiciais no ordenamento jurídico que se utilizassem de fundamentação

genérica ou superficial.

Conforme expressa Zavarize82, em 1939, com a criação do primeiro Código

de Processo Civil brasileiro, era mandatório se externar no decisium os fundamentos

de fato e de direito (art. 280, inciso I a III). Posteriormente, com o advento do Código

de Processo Civil de 1973, a explicitação dos fundamentos da decisão judicial era

tratado como requisito essencial da sentença, nos termos do art. 458, inciso II,

expressando que a ausência desses motivos comprometeria o ato.

Nos ensina Paulo Alkmin da Costa Júnior83

que com a promulgação da

vigente Constituição Federal, o princípio da motivação das decisões judiciais

alcançou um novo status jurídico, pois passou expressamente a compor o extenso

arcabouço de direitos e garantias individuais instituído pelo legislador constituinte

originário de 1988. Portanto, muito embora apenas na década de 1980 com o

advento da Constituição Federal o princípio da obrigatoriedade de motivação das

decisões judiciais fosse positivado no texto constitucional, vê-se que muito antes

desse marco jurídico já existia a preocupação do legislador brasileiro em efetivar o

compromisso do Judiciário brasileiro com o seu jurisdicionado, ao determinar o

proferimento de decisões judiciais transparentes e fundamentadas, afastadas de

80 Op. cit. p. 29. 81

Idem Ibidem, p. 35. 82 Op. cit. p. 36-37. 83

JÚNIOR, Paulo Alkmin da Costa. Breves anotações acerca do princípio da motivação das decisões judiciais e de sua função garantista no direito penal. I Jornada de direito penal / Tribunal Regional Federal da 1ª Região, Escola de Magistratura Federal da 1ª Região. Brasília: ESMAF, 2012. p. 370.

42

qualquer arbítrio do julgador. Nesse sentido, Nelson Nery Júnior, citado por

Zavarize84

expressa que ao se entender o referido princípio como manifestação do

Estado Democrático de Direito, era possível vislumbrar a sua aplicação como uma

garantia individual antes mesmo de norma expressa da Constituição.

Ao introduzir o sistema de garantias individuais, a Constituição Federal de

1988 estabelece importantes diretrizes para o direito processual brasileiro,

mormente quanto a necessidade de respeito ao devido processo legal em situações

nas quais o Estado pretende tolher ou limitar o direito dos cidadãos, sobretudo a

liberdade. Ao determinar no art. 5º, LIV e LXI que ninguém será privado da liberdade

ou de seus bens sem o devido processo legal nem preso senão em flagrante delito

ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, a

Constituição Federal assegura ao indivíduo um processo justo, em que possa ouvir e

ser ouvido, produzir provas e tenha direito a uma decisão devidamente

fundamentada, ainda que contra seu interesse.

Segundo lições de Aury Lopes Júnior85

, adveio, em 2011, a Lei n.

12.403/2011, realizando uma profunda mudança no sistema de medidas cautelares

do processo penal. Não faltaram críticas à referida lei, sobretudo devido ao fato de

na época se estar discutindo a necessidade de renovação do Código de Processo

Penal, o qual tinha sofrido reformas no ano de 2008 com a promulgação das leis

11.689, 11.690 e 11.719. Sobre o tema, elucida o referido doutrinador que nem

havia entrado em vigor a profunda reforma de 2008 e, já no mesmo mês, foi

constituída uma comissão para elaborar um CPP novo, com a apresentação do PLS

n. 15686. Com isso, inicia-se o ano de 2011 e todas as atenções estão focadas na

tramitação desse PLS na Câmara dos Deputados e, então, para surpresa geral,

ressurge o PL n. 4.208, de 2001 (agora, Lei n. 12.403/2011), que seguia na sua

discreta e lenta tramitação para uma nova reforma parcial. A resposta para tal

surpresa não poderia ter sido outra, como a dificuldade para elaboração de um

código novo e, sobretudo, pelo fato da população carcerária atingir o patamar de 500

84

ZAVARIZE, Rogério Bellentani. Op. cit. p. 28. 85

LOPES JÚNIOR, Aury. Op. cit. p. 14. 86 Idem Ibidem, p. 14.

43

mil pessoas, sendo 200 mil presos provisórios. Esse é o estado de emergência que

pressionou mais essa reforma pontual87.

Contudo, de acordo com o supracitado doutrinador, embora tenha sido

promulgada às pressas a reforma operada no Código de Processo Penal através do

advento da lei 12.403/2011, efetivou o legislador brasileiro a necessidade de não

apenas jurisdicionalizar as medidas cautelares no processo penal, mas também

reforçar a necessidade de fundamentação da decisão judicial que a decrete,

mantenha ou afaste sua aplicação no caso88.

Esse cuidado pode ser observado principalmente no art. 283, que além de

reproduzir parte do art. 5º, LXI da Constituição Federal, reforça a necessidade a sua

aplicação à prisão temporária e preventiva, no art. 310, ao tratar da obrigação do juiz

em fundamentar sua decisão ao apreciar e julgar o auto de prisão em flagrante, seja

para relaxar a prisão ilegal, convertê-la em preventiva ou conceder liberdade

provisória e no art. 315, ao determinar que a decisão que decretar, substituir ou

denegar a prisão preventiva será sempre fundamentada89.

Após o ano de 2011, não houve mais alterações legislativas no Código de

Processo Penal acerca da obrigatoriedade de fundamentação das decisões judiciais

no capítulo das medidas cautelares.

Atualmente, há importante dispositivo na legislação processual, mais

especificamente no Código de Processo Civil, alterado com o advento da Lei n.

13.015 de março de 2015, que nos traz verdadeiro norte na identificação de uma

decisão judicial desprovida de fundamentos. Trata-se do art. 489, §1º do CPC, com

um extenso rol de incisos que fornecem tanto ao julgador quanto as partes critérios

mínimos não considerar motivada determinada decisão judicial.

87 LOPES JUNIOR, Aury. Op. cit. p. 14-15. 88 Idem Ibidem, p. 32. 89 Idem Ibidem, p. 32.

44

3.2 A NATUREZA JURÍDICA DA MOTIVAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS

A motivação das decisões judiciais, outrora vista como regra, principalmente

nos ordenamentos jurídicos onde esse dever dos julgadores ainda estava em vias

introdutórias, passou a ganhar pujança e se desenvolveu nos diversos sistemas

jurídicos, ganhando, inclusive, dignidade constitucional.

O fato de se trazer na Constituição de um país, como o Brasil, expressa

previsão da necessidade dos magistrados fundamentarem seus julgados,

certamente faz com que a motivação das decisões judiciais seja verdadeiro princípio

de um Estado Democrático de Direito, pois revela o compromisso do constituinte

originário com um Judiciário transparente e ético.

Nas brilhantes lições de Luigi Ferrajoli90

, tal princípio:

Exprime e ao mesmo tempo garante a natureza congnitiva em vez da

natureza potestativa do juízo, vinculando-o, em direito, à estrita legalidade, e, de fato, à prova das hipóteses acusatórias. É por força da motivação que as decisões judiciárias resultam apoiadas, e, portanto, legitimadas, por asserções, enquanto tais verificáveis e falsificáveis ainda que de forma aproximada; que a “validade” das sentenças resulta condicionada à “verdade”, ainda que relativa, de seus argumentos; que, por fim, o poder jurisdicional não é o “poder desumano” puramente potestativo da justiça de cádi, mas é fundado no “saber”, ainda que só opinativo e provável, mas exatamente por isso refutável e controlável tanto pelo imputado e sua defesa como pela sociedade.

A necessidade de fundamentação das decisões judiciais, ao ser encarada

como princípio, norteia a atuação dos juízes em todo o território nacional e funciona

como elemento de identificação de uma prestação jurisdicional adequada, pois,

quanto mais um julgador se debruça sobre as questões lhe dirigidas, as analisa com

base no direito posto e sua consciência e mostra em seu pronunciamento a trajetória

percorrida para determinada conclusão, mais efetiva o princípio intrinsecamente

ligado à sua função. Por outro lado, ao desconsiderar esse princípio presente na

Constituição, o magistrado dá ensejo à um grave problema infelizmente cada vez

mais rotineiro, sobretudo no processo penal e nas audiências de custódia, qual seja

a proliferação de decisões genéricas, superficiais e sem fundamentação que, ao fim

90

FERRAJOLI, Luigi. Op cit. p. 573.

45

e ao cabo, trazem consequências imensuráveis ao destinatário do comando judicial,

muitas vezes parte mais frágil da relação processual.

A fundamentação das decisões judiciais pode ser entendida, assim, como

direito fundamental do cidadão, não apenas para que o juiz externe o dispositivo

legal que se funda o julgado, mas sobretudo para trazer ao cidadão razões e

argumentos de credibilidade jurídica. É um limite para as decisões judiciais e

resguardo do indivíduo contra o arbítrio do decisionismo, ao distanciar o

pronunciamento do magistrado de subjetividades, conforme lecionam Gilmar

Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco91

.

É nesse enfoque que a motivação das decisões judiciais deve ganhar

robustez e ser cada dia mais um princípio a verdadeiramente reger a conduta dos

julgadores. Se assim não fosse encarado, ou seja, caso fosse tratado como mera

regra processual, certamente ficaria ao alvedrio e particularidade de cada

magistrado a sua aplicação ou não, além de poder sofrer mudanças legislativas com

uma rigidez menor se comparada com uma norma de status constitucional. Em

reforço, ensina Rogério Bellentani Zavarize92

que a motivação das decisões judiciais,

justamente por ser um princípio e se aplicar a todas as esferas do Poder Judiciário,

não pode ser contrariado por legislação infraconstitucional, que eventualmente

dispense a fundamentação. É princípio de aplicação imediata e observância

obrigatória, dada a completude de seu mandamento e também pelo fato da sua

natureza de princípio, entendida como enunciações normativas as quais vinculam os

operadores do direito. Para o autor, tanto se destaca tal obrigatoriedade na

aplicação do princípio da fundamentação das decisões, que a própria Constituição

Federal define, como consequência de sua não observância, a nulidade do ato.

Além da natureza de princípio, a fundamentação das decisões judiciais é

também vista como garantia. Para José Carlos Barbosa Moreira93

, a motivação das

decisões judiciais entendida como garantia reforça o imperativo aos juízes de

externar, publicamente, as razões que alicerçam a decisão proferida e, sobretudo,

auxilia na aferição concreta da imparcialidade do juiz e legalidade da decisão, pois

91

MENDES, Gilmar Ferreira. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 12. Ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 862. 92

ZAVARIZE, Rogério Bellentani. Op. cit. p. 41. 93

Op. cit. p. 87.

46

apenas com a análise dos fundamentos da decisão se poderá afirmar que o julgador

apreciou o caso de forma objetiva e equidistante das partes, bem como se o

pronunciamento judicial está de acordo com a lei.

Efeito importante da obrigatoriedade de fundamentação das decisões judiciais

é o seu campo de incidência. Para a doutrina, motivar as decisões judiciais revela

uma dimensão endoprocessual e extraprocessual. Segundo ensina Paulo Alkmin da

Costa Júnior94

, o aspecto endoprocessual, de ordem técnica, permite aferir, se existe

uma relação entre as razões de decidir e as questões trazidas aos autos pelas

partes foram apreciadas, permitindo posterior impugnação, se for o caso, além de

revelar as partes qual o perfil do magistrado, pelos fundamentos trazidos em sua

decisão, ou seja, se é mais legalista ou valoriza uma interpretação mais

principiológica. Na dimensão extraprocessual, ensina o precitado autor que este

aspecto ganhou status de garantia constitucional pelo fato da motivação das

decisões judiciais estar correlacionada com o conjunto de princípios e garantias

trazidos na Constituição Federal. Assim permite-se o controle da atividade

jurisdicional pela sociedade e não mais apenas pelas partes do processo, conferindo

caráter político à todas as decisões judiciais, as quais são, derradeiramente,

manifestação da atividade estatal.

No mesmo sentido se posiciona Zavarize95

, para quem a dimensão

endoprocessual da motivação das decisões judiciais demonstra as partes que o

julgador levou em conta, para decidir, os fatos inerentes ao processo e o direito

aplicável ao caso, assegurando que a resposta estatal se efetivou com o devido

respeito às argumentações das partes e ao manancial probatório dos autos, sendo,

portanto, uma decisão transparente e imparcial. Sobre o aspecto extraprocessual, o

autor entende que fundamentação das decisões judiciais é meio de controle, pela

sociedade, da “independência, imparcialidade e da probidade dos membros do

Poder Judiciário” pois o exercício da jurisdição é uma manifestação dos Poderes da

república.

O entendimento acima exposto é curial para a compreensão da relevância

das situações em que o julgador deve decidir sobre a liberdade do indivíduo em

sede de audiência de custódia, considerando que por diversas vezes o princípio da

94

JÚNIOR, Paulo Alkmin da Costa. Op. cit. p. 372. 95

ZAVARIZE, Rogério Bellentani. Op. cit. p. 51, 56-57.

47

motivação das decisões judiciais não é respeitado e acarreta, cada vez mais, prisões

ilegais. Infelizmente o quadro que se apresenta é de ser uma faculdade para o

magistrado a observância desse princípio, esvaziando seu conteúdo com decisões

de decretação de alguma medida cautelar pessoal demasiadamente genéricas,

reforçadas, inclusive, pela legislação processual penal vigente, a qual autoriza,

ainda, a prisão preventiva com fulcro na ordem pública. Nesse sentido, conquanto

seja valioso o avanço trazido pela mencionada reforma de 2011 no Código de

Processo Penal, ao exigir por parte dos julgadores o respeito ao princípio da

fundamentação das decisões judiciais, dever esse imposto pelo constituinte

originário, por outro lado, remanescem resquícios da tradição punitivista brasileira,

ao manter no texto da referida lei a possibilidade de decretação da prisão preventiva

com base no confuso argumento de proteção da ordem pública ou econômica,

dando azo, assim a decisões judiciais completamente abstratas e destoantes do fato

concreto.

Não se pretende se imiscuir na livre atuação dos representantes do poder

judiciário, os quais detém legítima independência funcional e interpretativa, esta,

assim como a motivação de suas decisões, também deve ser resguardada pelo

nosso ordenamento jurídico. Intenciona-se demonstrar a importância do princípio,

seus efeitos benéficos ao Estado Democrático de Direito e a relevante função que

possui no justo apaziguamento de conflitos, bem como a problemática inerente nas

hipóteses em que o juiz o negligencia, mormente quando se está em sede de

audiência de custódia, momento pré processual curial para definir a submissão

legítima (caso motivada) ou não de um indivíduo às mazelas do cárcere.

3.3 PREVISÃO CONSTITUCIONAL E INFRACONSTITUCIONAL

Como registrado em linhas pretéritas, a Constituição Federal de 1988 foi a

primeira constituição do Brasil a trazer em seu texto a obrigatoriedade da

fundamentação das decisões judiciais, sedimentando essa exigência como um

direito fundamental insculpido no art. 5º especificamente em relação a prisão, inciso

LXI e princípio inerente a magistratura, conforme disposição do art. 93, inciso IX da

Constituição Federal. Acerca da importância do princípio da fundamentação das

decisões judiciais e a necessidade de seu conteúdo estar resguardado no Texto

48

Maior, José Carlos Barbosa Moreira96

já salientava antes do advento da Constituição

que, por espelhar garantia inerente ao Estado de Direito, o princípio da motivação

obrigatória das decisões judiciais mereceria consagração expressa em eventual

reformulação da Lei Maior. Para o doutrinador, sua significação transcende de muito

o nível da técnica processual e o único meio seguro de preserva-lhe a

invulnerabilidade é inseri-lo, expressis verbis, no texto constitucional.

O destaque para a previsão constitucional do princípio da fundamentação das

decisões judiciais não se limita apenas à nortear o transparente exercício da função

jurisdicional. Nesse sentido, conforme assinala Zavarize97

, não sem razão o

constituinte originário, entendendo pelo relevantíssimo papel desse princípio para o

Estado Democrático de Direito, o afastou de deliberações tendentes a alterá-lo ou

diminuir o seu significado ao posicioná-lo como cláusula pétrea, pela leitura do art.

60, §4º, inciso IV da Constituição Federal, que trata das limitações materiais, ou

seja, proteção a direitos e garantias individuais contra qualquer proposta tendente a

aboli-los.

Para Fredie Didier Jr98

, ainda que a motivação das decisões judiciais não

viesse expressamente no Texto Constitucional, por se tratar de uma manifestação

do devido processo legal, ou seja, direito fundamental assegurado ao jurisdicionado,

o dever de fundamentar as decisões também teria essa natureza.

Ao prever como direito fundamental a necessidade de fundamentação das

decisões judiciais que determinem a prisão de um indivíduo a Constituição expressa

ao cidadão que está lhe assegurando como direito básico o conhecimento das

razões pelas quais o Estado pretende tolher a sua liberdade. Portanto, além de dar a

esse direito fundamental a mais abrangente aplicabilidade possível, os juízes tem o

dever de resguardá-lo contra eventual violação praticada, seja revendo suas

decisões, seja em grau de recurso. Com efeito, dar azo ao manejo do remédio

constitucional do Habeas Corpus ante o desrespeito por parte dos magistrados

desse direito fundamental ainda é uma constante, mesmo com o advento da

audiência de custódia, momento propício a fornecer ao julgador aspectos relevantes 96

MOREIRA, José Carlos Barbosa. Op. cit. p. 94. 97

ZAVARIZE, Rogério Bellentani. Op. cit. p. 49. 98

DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, ações probatórias, decisão, precedente, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela. 10. ed. Salvador: Ed. Jus Podivm, 2015. v.2. p. 314.

49

acerca da prisão do indivíduo, muitas vezes desconsiderados, especialmente nos

casos de prisão em flagrante, pois, como o controle jurisdicional da prisão se dá em

momento posterior, segundo Aury Lopes Júnior99

, após apreciação do fato pelo juiz,

é de extrema relevância para o preso que haja elucidação das circunstâncias

inerentes à sua prisão, dada a precariedade do título prisional (flagrante).

Prevista no art. 93, IX da Constituição Federal, a obrigatoriedade de

motivação das decisões judiciais é trazida de forma expressa como princípio

inerente a magistratura brasileira. A importância dada ao princípio constitucional é

tamanha que o próprio dispositivo prevê como consequência da sua não

observância a nulidade do pronunciamento judicial desmotivado, consequência esta

caracterizada como nulidade absoluta, dado o prejuízo às partes e à sociedade pelo

exercício irregular e ilegítimo por parte do magistrado da atividade jurisdicional ao

violar tal princípio, segundo Rogério Bellentani Zavarize100

. Trata-se de verdadeiro

dever fundamental imposto aos juízes, o quais devem revelar no julgado as razões e

os caminhos levados em consideração para chegar a determinada conclusão, além

de ser corolário do Estado Democrático de Direito, conforme ensinam Gilmar

Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco101

.

No âmbito infraconstitucional, a obrigatoriedade de fundamentação das

decisões judiciais, no Código de Processo Penal, está presente em diversos

dispositivos, como, por exemplo, o art. 21, que determina a necessidade do juiz

fundamentar sobre o prolongamento da incomunicabilidade do preso por mais de

três dias, o art. 387, §1º, que trata da demonstração de motivos pelo julgador acerca

da manutenção ou não da prisão preventiva após prolação da sentença

condenatória.

Especificamente quanto às medidas cautelares, sobretudo a prisão

preventiva, o Código de Processo Penal nos traz importantes dispositivos legais

determinando a exposição de fundamentos pelo magistrado nos casos em que

decreta, mantém ou revoga alguma medida cautelar, como o art. 283, exigindo

ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente na hipótese de

decretação de prisão, o art. 310, o qual expõe as posturas do juiz ao receber o auto

99

LOPES JÚNIOR, Aury. Op. cit. p. 100

ZAVARIZE, Rogério Bellentani. Op. cit. p. 148. 101

MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Op. cit. p. 863-864.

50

de prisão em flagrante e estabelece, seja qual for o posicionamento adotado, a

necessidade de fundamentação da decisão. Acerca dos dispositivos relacionados às

medidas cautelares, segundo Eugênio Pacelli102

, houve verdadeira mudança de

paradigma em relação a decretação destas com o advento da reforma do CPP pela

lei 12.403/2011, pois, agora, não mais se prende tão somente referindo-se a lei,

antecipando a culpa (em sentido lato) do indivíduo, como anteriormente à reforma se

verificava. Atualmente, as razões do julgador para determinar alguma medida de

restrição da liberdade do indivíduo devem (ou deveriam) ser sempre norteadas pela

necessidade de acautelar o processo.

Não existe, para o processo penal, a cautelaridade inerente ao processo civil,

com os elementos de fumaça do bom direito (fumus bonis iuris) e perigo na demora

da prestação judicial (periculum in mora). No processo penal, as medidas cautelares

possuem caráter instrumental e só podem ser decretadas pelo magistrado após este

externar em sua decisão os motivos de estar presente no caso indícios mínimos do

cometimento de um delito (fumus comissi delicti) e o perigo da liberdade do indivíduo

(periculum libertatis) com o fim precípuo, sempre, de assegurar o desenvolvimento

regular do processo para se for o caso, ao final, garantir a aplicação da pena,

conforme leciona Aury Lopes Júnior103

.

Paulo Rangel104

, ao comentar a terminologia adotada acima por Aury Lopes

Júnior, esclarece que necessariamente o julgador deve mostrar no seu

pronunciamento porque entende existentes os pressupostos da prisão preventiva,

como indícios do cometimento de um crime e os motivos pelos quais a liberdade do

flagranteado é nociva à sociedade, arrematando que “Direito, por si só, já é bom,

incluindo aqui o conceito de direito justo”.

Afora o Código de Processo Penal, existe interessante dispositivo no Código

de Processo Civil que elenca elementos os quais, se presentes na decisão

prolatada, esta não poderá ser considerada fundamentada. Trata-se do art. 489, §1º

e seus incisos, balizador dos pronunciamentos judiciais, muitas vezes

demasiadamente genéricos ou irrisoriamente arrazoados. No entendimento de

102

PACELLI, Eugênio. Op. cit. p. 234. 103

LOPES JÚNIOR, Aury. Op. cit. p. 315. 104

RANGEL, Paulo. Op. cit. p. 776.

51

Fredie Didier Jr.105

, o dispositivo legal em comento traz importante inovação ao

ordenamento jurídico por eliminar o grau de subjetividade presente nas decisões

judiciais e permitir um melhor controle destas.

3.4 A IMPORTÂNCIA DA FUNDAMENTAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS EM

AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA

A obediência aos ditames processuais penais e constitucionais ainda não é

uma constante em relação às medidas cautelares, sobretudo as de caráter pessoal.

Infelizmente ainda hoje no Brasil permanece o viés arbitrário e inquisitório no trato

das prisões cautelares, a segregar cada vez mais cidadãos pertencentes as

camadas socioeconomicamente desfavorecidas e contribuir para a estigmatização

dessas pessoas, em muitos casos submetidas ilegalmente aos mais odiosos

aspectos do cárcerce. Faz-se necessário, no presente tópico, realizar um

enfrentamento das razões pelais quais uma decisão sem fundamentos ou

exageradamente genérica sobre a decretação ou manutenção de uma medida

cautelar pessoal extrema como a prisão preventiva se revela mais grave quando

prolatada em audiência de custódia.

Na visão do julgador, para o indivíduo preso em flagrante ou com alguma

prisão provisória decretada e cumprida, o Estado deve dar uma resposta àquela

pessoa que supostamente praticou uma infração penal, e, essa resposta, em muitos

casos, é impregnada de subjetividades e preconceitos. Ocorre que o ordenamento

jurídico, ou seja, esse mesmo Estado, assegura ao preso o respeito às suas

garantias individuais, dentre elas, a de fundamentação da decisão judicial que

decretar uma prisão. Evidente, assim, a necessidade do juiz, em sede de audiência

de custódia, reforçar tal garantia.

A audiência de apresentação, como já ressaltado em outras linhas desse

trabalho, trouxe a necessária e urgente humanização ao processo penal, pois,

homenageando a presunção de inocência e a liberdade ambulatória como regra,

permitiu ao preso o contato direto com o juiz que decidirá sobre seu estado de

liberdade, restringindo-o em maior ou menor grau, ou mantendo solto o acusado.

Entretanto, muito embora sejam louváveis as melhoras trazidas pela audiência de

105

DIDIER JR., Fredie. Op. cit. p. 326.

52

custódia para o nosso país, certamente a arbitrariedade, insensibilidade e o viés

inquisitório de alguns juízes ainda mantém o processo penal brasileiro na contramão

de um tratamento digno às pessoas presas. Apresentar o preso ao juiz e permitir

que ele conheça, se for o caso, as razões do Ministério Público para pedir sua

prisão, bem como o seu acompanhamento por um defensor, além de efetivar a

ampla defesa e contraditório necessários em audiência de custódia, fornece ao

julgador muito mais elementos para fundamentar a sua decisão na referida

assentada, pois conhecerá, sem demora, as circunstâncias fáticas e jurídicas

inerentes a prisão do indivíduo e o mais importante, poderá ouvir diretamente do

acusado a sua versão dos fatos, os porquês de ter sido preso, se houve tortura,

maus tratos ou tratamento desumano ou degradante, além de conhecer as

condições pessoais desse indivíduo, como a situação com a família, se faz uso de

drogas, se está na condição de morador de rua, entre outros aspectos tão relevantes

quanto. Trata-se de um verdadeiro diálogo estabelecido entre o juiz e o preso.

Essa proximidade de sujeitos com condições de vida, na esmagadora maioria

das vezes, extremamente discrepantes, é a essência da audiência de custódia. Não

que se deva endeusar cargos públicos, ou encarar um servidor público como um ser

acima dos demais cidadãos em nossa sociedade, jamais. É pretender demonstrar

que a audiência de custódia retira o julgador de seu gabinete e o põe a efetivar o

múnus publico lhe atribuído na forma mais visceral possível, longe de meros papeis.

Elucidativas são as palavras de Caio Paiva106

, para quem a audiência de custódia

faz superar a fronteira do papel, em que o juiz não mais decidirá sobre a liberdade

do cidadão munido tão somente com folhas de papel, humanizando o processo

penal ao garantir o direito do preso em ser ouvido pelo juiz.

Contudo, ainda se vislumbra na legislação processual penal vigente

dispositivo que engloba, dentre um de seus incisos, a possibilidade de segregar

cautelarmente um indivíduo com fundamento na proteção da ordem pública e ordem

econômica. Trata-se do art. 312 do Código de Processo Penal107

, mantendo em seu

teor a menção à “garantia da ordem pública” e “ordem econômica” como motivos da

106

PAIVA, Caio. Audiência de custódia e o processo penal brasileiro. 2. ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2017. p. 66-67 e 139. 107

Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria.

53

prisão preventiva. Nesse sentido, impende destacar a crítica feita por Aury Lopes

Júnior108

acerca desse dispositivo, para quem se trata de um equívoco a sua

manutenção no sistema jurídico brasileiro, ante à pseudoconstitucionalidade de seu

conteúdo, além da porosidade conceitual ao permitir o julgador recorrer a conceitos

vagos, imprecisos e indeterminados.

A existência dos termos “ordem pública” e “ordem econômica” no dispositivo

em comento é, sem dúvida, a maior causa para a prolação indiscriminada de

decisões genéricas em audiência de custódia, não apenas pela própria vagueza e

superficialidade dos termos, mas, sobretudo, pelo fato desses motivos legitimarem

as subjetividades e preconceitos dos juízes em audiência de apresentação.

Ainda que com o advento da audiência de custódia o processo penal tenha

evoluído e trazido diversas benesses em relação às medidas cautelares, o julgador,

mesmo estando em contato direto com o preso, conhecendo num curto período de

tempo as circunstâncias da prisão, colhendo as alegações das partes e consciente

da sua necessidade de assegurar as garantias do flagranteado, entre elas a

motivação das decisões judiciais, ainda assim, munido de todos esses elementos

idôneos a lhe dar condições de efetivar uma decisão fundamentada, mesmo que

para decretação da prisão do indivíduo, resolve lançar mão de discursos genéricos e

ilações desarrazoadas, esvaziando por completo os fins da audiência de custódia,

quais sejam, humanizar o tratamento das prisões provisórias e tornar mais justas as

decisões que as decretam.

Para Renato Brasileiro de Lima109

não é possível a manutenção ou decretação

da prisão preventiva com fulcro na gravidade abstrata do delito, pelo fato da

gravidade da infração pela sua natureza já ser algo inerente ao tipo penal, bem

como é inadmissível fundamentar uma prisão cautelar com base no clamor social

provocado pela suposta prática de determinado delito, pois, além de também ser um

aspecto intrínseco ao tipo penal, não há, em tal motivo, a necessário propósito de

acautelar o processo. Seria a prisão preventiva com fulcro no clamor social ou

repercussão do delito, segundo o autor, desprovido de periculum libertatis, pois a

segregação cautelar não seria necessária ao processo, mas sim para anseios

108

LOPES JÚNIOR, Aury. Op. cit. p. 15. 109

LIMA, Renato Brasileiro de. Nova Prisão Cautelar: doutrina, jurisprudência e prática. Niterói, RJ: Impetus, 2011. P. 238.

54

midiáticos e da população. Embora o renomado autor entenda que para decretação

da prisão preventiva com fulcro na ordem pública o magistrado deva realizar um

juízo de periculosidade acerca do indivíduo, decretando a segregação cautelar com

base em dados concretos e não meras conjecturas e ilações indevidas, tem-se que,

muitas vezes, o juiz presidente da audiência de apresentação, seja por realizar uma

prévia leitura do auto de prisão em flagrante ou por observar as características do

preso já inconscientemente tomou uma decisão. Com isso, mais do que acertada

mostra-se a crítica feita por Aury Lopes Júnior e Alexandre Morais da Rosa110

, pois a

prisão preventiva com fulcro na ordem pública, pelo fato de não guardar nenhum

teor de cautelaridade para o processo penal, é flagrantemente inconstitucional.

A menção à ordem pública ou ordem econômica serve muitas vezes para

disfarçar opiniões do magistrado acerca do delito praticado, da pessoa presa ou até

mesmo sobre como o Estado deveria ou não se posicionar nessas situações, pois

não raro se observa em algumas decisões a decretação da prisão preventiva

baseada em argumentos como “gravidade do delito”, “flagranteado usuário de

drogas” ou “combate a alta taxa de criminalidade que assola o país”. Como bem

ressalta Giacomolli111

, a menção a ordem pública esta presente na maioria dos

decretos de prisão preventiva, justamente pela sua indeterminação, com extensão e

conteúdos inexatos no qual há espaço para inúmeros preconceitos e vontades de

prender, supedaneados seja pelo público ou pela mídia.

Em certos casos as decisões sequer explicitam o entendimento do

magistrado em relação aos motivos pelos quais se está prendendo preventivamente,

restringindo-se o julgador transcrever o dispositivo de lei e concluir pela presença

dos pressupostos e requisitos da prisão cautelar, postura inadmissível na atual

conjuntura jurídica brasileira, não demonstrando o magistrado os fatos que alicerçam

de seu pronunciamento, conforme preleciona Guilherme de Souza Nucci112

.

110

ROSA, Alexandre Morais da; LOPES JÚNIOR, Aury. Crise de identidade da "ordem pública" como fundamento da prisão preventiva. Disponível em [https://www.conjur.com.br/2015-fev-06/limite-penal-crise-identidade-ordem-publica-fundamento-prisao-preventiva]. Acesso em 12 de fevereiro de 2018. 111

GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal: abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. 3 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2016. p. 262. 112

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 14. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2017.

55

A crítica também é feita por Nereu José Giacomolli113

, para quem não há

justificação própria e, portanto, não há fundamentação, mas tão somente impulso

per relationem, nos casos em que o decisor se limita a transcrever o texto da lei no

intuito de decretar a medida de segregação cautelar extrema. Tais pronunciamentos,

nas lições do autor, estão impregnados do vício de nulidade.

Acerca do clamor público para a prisão do indivíduo, Renato Brasileiro de

Lima114

nos traz valioso entendimento do Min. Celso de Mello, para quem a prisão

preventiva não visa punir aquele que supostamente cometeu o delito, mas sim

resguardar a atividade estatal desenvolvida no processo penal e, portanto, não pode

ser decretada tão somente com base em indignação popular ou comoção social.

Sobre o tema, há outra decisão importante do Supremo Tribunal Federal115

se

posicionando no sentido da inadmissibilidade, para decretação da prisão preventiva,

de decisão judicial ter em seu conteúdo, apenas, menção a elementos como clamor

popular ao fato atribuído ao réu, sobretudo quando disseminado em veículos de

comunicação em massa; o fato do incriminado “não querer cooperar com a Justiça”,

quando, em verdade, lhe é garantido constitucionalmente o direito de não se

incriminar; não haver provas de que pretende o preso interferir na instrução criminal;

o fato do acusado subtrair-se a anterior decreto prisional. Asseveram Aury Lopes

Júnior e Alexandre Morais da Rosa116

que a prisão seria uma solução para as falhas

cometidas pela Polícia, Ministério Público e Poder Judiciário, ou seja, retirar um

indivíduo do meio social tão somente com base no clamor público tem como fim

reafirmar a “crença” nas instituições da justiça, quando, em verdade, só reforça a

crise de identidade da prisão com fundamento na ordem pública.

Brilhantes são as palavras de Paulo Rangel117

, ao entender pela

imprestabilidade de se decretar medidas cautelares como solução para o problema

113

GIACOMOLLI, Nereu José. Op. cit. p. 255. 114

Idem ibidem, p.240. 115

STF, HC nº 79.781/SP, 1ª Turma, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 09/06/2000. Disponível em [http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28HC+79781+SP%29&pagina=2&base=baseAcordaos&url=http://tinyurl.com/yd5ffqmn]. Acesso em 04 de fevereiro de 2018. 116

ROSA, Alexandre Morais da; LOPES JÚNIOR, Aury. Op. cit. 117

RANGEL, Paulo. Op. cit. p. 770.

56

da violência, dever este de atribuição do Poder Executivo, mediante implementação

de políticas públicas. Arremata o autor expressando que é inviável a substituição do

Executivo pelo Judiciário quando se trata de problemas afeitos a administração

pública e, portanto, a medida cautelar a ser adotada pelo juiz deve estar pautada na

garantia de um processo penal justo.

No mesmo sentido se posiciona Giacomolli118

, expressando que as

expressões como “clamor social”, “credibilidade da justiça” e “o crime é grave”

presentes em diversas decisões que decretam a prisão cautelar não guardam

qualquer teor de fundamentação, muito menos de constitucionalidade. O autor

entende que não cabe ao Poder Judiciário decidir acerca da liberdade do indivíduo

com base nesses elementos, pois estaria em flagrante violação da sua função

essencial e realizando o papel inerente a outros Poderes do Estado.

A manutenção da ordem pública como pressuposto para decretação da prisão

preventiva é criticada pela doutrina. Renato Brasileiro de Lima119

, sustentando a

extrema vagueza e indeterminação da expressão, ainda nos rememora acerca de

importante deliberação sobre o art. 312, caput do CPP durante a tramitação do

Projeto de Lei nº 4.208/01, haja vista na época ter se cogitado a mudança (que não

ocorreu) do termo ordem pública por prática de infrações penais relativas ao crime

organizado, à probidade administrativa ou à ordem econômica ou financeira

consideradas graves, ou mediante violência ou grave ameaça a pessoa. Para o

autor, essa redação deixaria mais claro o conceito de ordem pública, bem como

afastaria do arbítrio dos juízes decretar prisões preventivas com base no clamor

social ou repercussão do crime na mídia.

Contudo, em sentido contrário entende Paulo Rangel120

, para quem a vagueza

não está no conceito de ordem pública e sim na decisão do magistrado, ou seja,

quando se decreta uma prisão preventiva com esse fundamento e o julgador não

revela onde ou como a ordem pública estaria em perigo com a liberdade do

indivíduo. O autor arremata com a conclusão de que não há inconstitucionalidade

nesse pressuposto da prisão preventiva.

118

GIACOMOLLI, Nereu José. Op. cit. p. 261. 119

LIMA, Renato Brasileiro de. Op. cit. p. 235. 120

RANGEL, Paulo. Op. cit. p. 813.

57

À semelhante conclusão chega Nucci121

, para quem a menção a ordem

pública no decreto acautelatório está atrelada a questões de segurança pública.

Para o autor, deve o Judiciário estar atento aos crimes que provocam clamor público

e possam ensejar o descrédito com as instituições da justiça, impunidade e

insegurança e, como um dos braços do Estado, efetivar providências imediatas.

Todavia, com todas as licenças possíveis, ouso dissentir dos respeitáveis

doutrinadores, haja vista a impossibilidade de se manter, até os dias atuais, um

pressuposto com sentido absurdamente amplo, genérico e superficial. Creio que a

prisão preventiva deva ter como finalidade única a cautela do processo, visando

assegurar a resposta do Estado em face do suposto cometimento de uma infração

penal pelo acusado, assegurado para este o devido processo legal. Proteger a

ordem pública jamais deve ser a função do Judiciário, sobretudo no processo penal

em que a indeterminação do conceito desse pressuposto da prisão preventiva

facilmente gera prisões provisórias indevidas. Nos dizeres de Aury Lopes Júnior122

“a

prisão para garantia da ordem pública (ou econômica) serve a qualquer senhor, mas

não serve para um processo penal democrático e constitucional”.

Na mesma linha se direciona o entendimento de Maria Ignez Lanzelotti

Baldez Kato123

, expressando que a prisão preventiva com pressuposto na ordem

pública se mostra violadora da legalidade, pela indefinição, amplitude e vagueza de

seu conteúdo, sujeitando o acusado ao exercício arbitrário da prisão por um

magistrado, violando direitos fundamentais e impregnando a prisão preventiva de

ilegalidade.

Sem dúvida, a audiência de custódia beneficia a atividade judicial no que

tange a motivação das decisões, pois a procedimentalização da aplicação das

medidas cautelares nessa fase processual, em uma audiência em tempo razóavel

após a prisão, com a presença do preso, seu defensor e representante do Ministério

Público cria um ambiente propício ao julgador apreciar ao máximo todas as

especificidades inerentes àquela prisão, assim como as peculiaridades de cada

121

NUCCI, Guilherme de Souza Nucci. Prisão e liberdade: as reformas processuais penais introduzidas pela Lei 12.403, de 4 de maio de 2011. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 63-64. 122

LOPES JR., Aury. Op. cit. p. 15. 123

KATO, Maria Ignez Lanzelloti Baldez. A (Des) razão da prisão provisória. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 117.

58

preso. Estes aspectos da audiência de custódia servem para a decisão seja

prolatada de maneira mais transparente, imparcial e fundamentada possível, dando

qualidade e segurança jurídica ao pronunciamento judicial.

59

4 MOTIVAÇÃO DECISÓRIA NA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA E

ENCARCERAMENTO INDEVIDO

4.1 A FUNDAMENTAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS EM AUDIÊNCIA DE

CUSTÓDIA E SEUS REFLEXOS NO ENCARCERAMENTO PROVISÓRIO

Atualmente vive-se uma realidade de intenso intervencionismo estatal na

sociedade, mormente no campo criminal, com o constante receio causado pelo

autoritarismo, impondo medo aos cidadãos, bem como pela banalização da pena de

prisão, pois ainda se vê o Direito Penal como solucionador apriorístico de todas as

mazelas sociais e amenizador da opinião pública, a qual busca o resguardo de seus

direitos124

.

Como bem asseverado por Aury Lopes Jr., e Caio Paiva125

:

No teatro penal brasileiro, a prisão desponta, indiscutivelmente, como a protagonista, a atriz principal, que estreia um monólogo sem fim. Não divide o palco; no máximo, permite que algumas cautelares diversas dela façam uma figuração, um jogo de cena, e isso apenas para manter tudo como sempre esteve...

Ao analisar a relação entre a crescente obsessão securitária da sociedade

com as manobras estatais para aumentar a segurança dos cidadãos, pela

negligência do Estado em cuidar das áreas econômica e social, Debora Regina

Pastana126

aponta que as políticas públicas voltadas voltam-se para os transtornos

advindos dessa desídia estatal e, na tentativa de amenizar o dano, o estado

brasileiro restringe a sua atuação ao mero campo criminal, gerando, assim, anseio

generalizado por punição e procura desmedida pela repressão, mesmo que

simbolicamente. Segundo a autora, a consequência derradeira e lógica desse agir

do “Estado punitivo”, é o encarceramento em massa das classes populares.

A superlotação do cárcere, muitas vezes entendido como um problema do

Estado, deve ser encarado como, na verdade, um descompasso entre as atuações

124

PASTANA, Debora Regina. Estado punitivo e encarceramento em massa: retratos do Brasil atual. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. ano 17, n. 77 (mar.- abr. 2009). p. 314. 125

LOPES JR., Aury; PAIVA, Caio. Op. cit. p. 463. 126

PASTANA, Debora Regina. Op. cit. p. 314-315.

60

dos Poderes desse Estado, nas lições de Bernardo Montalvão Varjão de Azevedo127

.

Para o autor, enquanto o Legislativo cria incessantemente novos tipos penais, o

Judiciário é demandado a produzir cada vez mais sentenças condenatórias – e,

também, decisões que decretam prisões provisórias – e o Executivo é

desencorajado, por diversos fatores, como o político, sobretudo, a não investir no

sistema prisional, em específico, nos estabelecimentos prisionais.

A situação calamitosa das prisões brasileiras é um problema de notórias

proporções, amplo conhecimento e que perdura, infelizmente, há décadas no país.

Dados recentes indicam o Brasil como possuidor da terceira maior população

carcerária do mundo, com 711.463 (setecentas e onze mil quatrocentas e sessenta

e três) pessoas presas, considerando presos em execução da pena, presos

provisórios e em prisão domiciliar. Desse absurdo número, 32% (trinta e dois por

cento) são referentes a presos provisórios, ou seja, com processo penal ainda não

finalizado por sentença penal transitada em julgado128

.

Tais números, sobretudo quanto aos presos provisórios, indicam o forte viés

de segregação e negligência em relação às pessoas submetidas a um processo

penal, em que a garantia constitucional da presunção de inocência é explicitamente

violada e, em muitos casos, são geradas diversas prisões ilegais. Essa cultura do

encarceramento presente no Judiciário brasileiro retrata fielmente a figura do inimigo

no direito penal trazida por Eugenio Raúl Zaffaroni129

, em que o crescimento do

poder punitivo estatal gerou a significativa redução da condição de pessoa para

alguns indivíduos, considerados nocivo à sociedade e, por isso, é legítima a sua

reclusão ilegal. Nas brilhantes lições do doutrinador, ao passo em que se passou a

admitir que alguns indivíduos podem ser considerados perigosos, lhes foi retirada a

condição de ser humano e estes foram coisificados.

127

AZEVEDO, Bernardo Montalvão Varjão de. Superlotação do cárcere: um problema para o Estado?. In: Revista do curso de direito da Unifacs. Porto Alegre: Síntese, v. 11, 2011. p. 12-17. 128

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. NOVO DIAGNÓSTICO DE PESSOAS PRESAS NO BRASIL. Disponível em [http://www.cnj.jus.br/images/imprensa/diagnostico_de_pessoas_presas_correcao.pdf]. Acesso em 07 de fevereiro de 2018. 129

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2ª Edição, 2007, p. 11 e 18.

61

Um dos pontos benéficos da audiência de custódia é justamente retirar esses

indivíduos da invisibilidade das instituições estatais, sobretudo o Judiciário, conforme

expressam Alexandre Morais da Rosa e Aury Lopes Júnior130

:

Aí reside o primeiro passo fundamental para o acolhimento da audiência de custódia. Não se tratará mais do “criminoso” que imaginamos, mas sim do sujeito de carne e osso, com nome, sobrenome, idade e rosto. O impacto humano proporcionado pelo agente, em suas primeiras manifestações, poderá modificar a compreensão imaginária dos envolvidos no Processo Penal. As decisões, portanto, poderão ser tomadas com maiores informações sobre o agente, a conduta e a motivação.

O Ministro Luiz Fux, relator de um caso131

no Supremo Tribunal Federal sobre

a morte de detento no estado do Rio Grande do Sul, teceu importantes

considerações acerca da situação prisional do país, expressando que o crescimento

elevado da população carcerária do Brasil, unido ao reduzido investimento estatal

nessa área, resultou em um aumento vertiginoso nos conflitos associados às prisões

brasileiras, submetidos a apreciação do Poder Judiciário. Em seu respeitável voto, o

ministro da suprema corte ressalta a necessidade do Estado em resguardar os

direitos fundamentais de os cidadãos, pois a Constituição Federal assim assegura,

sem qualquer distinção, mesmo que alguns indivíduos tenham violado bens jurídicos

relevantes para a sociedade, tutelados pelo Direito Penal, concluindo que o exercício

do poder punitivo estatal deve respeitar esses direitos assegurados aos acusados e

apenados, com destaque para os incisos III, XLVI, XLVII e XLIX do art. 5º da

Constituição Federal132

.

Com o advento da audiência de custódia, a mensagem transmitida pelo

Conselho Nacional de Justiça ao Poder Judiciário foi bem clara, ter mais cautela na 130

ROSA, Alexandre Morais da; LOPES JÚNIOR, Aury. Afinal, quem tem medo da audiência de custódia? (parte 1). Disponível em [https://www.conjur.com.br/2015-fev-13/limite-penal-afinal-quem-medo-audiencia-custodia-parte]. Acesso em 12 de fevereiro de 2018. 131

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 841526/RS. Relator Ministro Luiz Fux. Publicado no DJe em 01/08/2016. Disponível em [http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=11428494]. Acesso em 08 de fevereiro de 2018. 132

III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante; XLVI - a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos; XLVII - não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX; b) de caráter perpétuo; c) de trabalhos forçados; d) de banimento; e) cruéis; XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;

62

análise das prisões provisórias, considerando, sobretudo, o fato da Resolução nº

213 ter sido elaborada após a divulgação dos alarmantes números acerca da

população carcerária brasileira, mencionado em linhas anteriores. Um balanço133

feito pelo Conselho Nacional de Justiça até junho de 2017 apurou que das 258.485

(duzentas e cinquenta e oito mil quatrocentas e oitenta e cinco) audiências de

custódia realizadas, 55,32% resultaram em prisão preventiva e 44,68% resultaram

em liberdade. Por óbvio que a análise superficial dos números trazidos não permite

uma conclusão acerca das decisões proferidas na maioria das audiências de

custódia, variável caso a caso, porém tais informações são um indicativo que ainda

se prende muito em nosso país134

.

Nessa esteira, ao que parece, remanescem traços da cultura punitivista na

audiência de custódia, pois ainda se decreta uma prisão preventiva tão somente

com base no crime cometido ou se houve violência empregada135

, sem análise das

demais circunstâncias trazidas na audiência de apresentação, reforçando a postura

de alguns juízes em tratar a liberdade como exceção. Para agravar tais situações, a

par de se prender mal, se prende muito e, ao final do processo, praticamente na

metade dos casos não há sequer condenação, como se extrai do relatório feito pelo

IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) juntamente com o Ministério da

Justiça, concluindo que 37% dos réus que respondem processos penais presos

provisoriamente não tem sentença penal condenatória em seu desfavor, o que

“revela o sistemático, abusivo e desproporcional uso da prisão provisória pelo

sistema de justiça no país.”136

Esse quadro do encarceramento indevido é agravado ao se considerar o fato

de ser recente a determinação de realização de audiência de custódia pelo CNJ e,

133

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Dados Estatísticos / Mapa de Implantação. Disponível em [http://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario-e-execucao-penal/audiencia-de-custodia/mapa-da-implantacao-da-audiencia-de-custodia-no-brasil]. Acesso em 12 de fevereiro de 2018. 134

Audiências de custódia prendem mais do que soltam em 2/3 dos estados. Disponível em [https://g1.globo.com/politica/noticia/audiencias-de-custodia-prendem-mais-do-que-soltam-em-23-dos-estados.ghtml]. Acesso em 12 de fevereiro de 2018. 135

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Audiência de custódia: tipo de crime e violência pesam em decisões. Disponível em [http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/85989-audiencia-de-custodia-tipo-de-crime-e-violencia-pesam-em-decisoes]. Acesso em 08 de fevereiro de 2018. 136 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. A APLICAÇÃO DE PENAS E MEDIDAS ALTERNATIVAS. Disponível em [https://apublica.org/wp-content/uploads/2015/02/pesquisa-ipea-provisorios.pdf]. Acesso em 18 de fevereiro de 2018.

63

com isso, diversos entes federativos ainda não cumpriram com a determinação do

Supremo Tribunal Federal no sentido de implantar em todo território nacional a

audiência de custódia, no julgamento da ADPF 347, ainda em 2015. Ao apreciar o

pedido de medida cautelar na referida ADPF, protocolada pelo Partido Socialismo e

Liberdade (PSOL), o Relator Min. Marco Aurélio deu provimento a medida cautelar

para que, observados os ditames dos Tratados Internacionais assimilados pelo

Brasil com status de norma supralegal, todos os juízes e Tribunais realizassem, em

até noventa dias, a apresentação do preso a autoridade judiciária no prazo máximo

de 24 horas, contados do momento da prisão137.

Tal situação não passou despercebida e em maio de 2016 a ANADEP

(Associação Nacional dos Defensores Públicos) protocolou reclamação

constitucional (Rcl 23.872) arguindo justamente a inércia dos entes federativos no

cumprimento da decisão proferida pelo STF na ADPF supramencionada138. Na

reclamação, a associação pontua que poucos tribunais forneceram dados para

verificar a efetivação das audiências de custódia e que as providências

determinadas pelo STF dentro do prazo de 90 (noventa) dias estão longe de serem

tomadas, arrematando que ante a letargia dos entes federativos em implantar as

audiências de custódia em todo o país, pouco se mudará na realidade dos presos

brasileiros, tolhidos de seu direito de acesso imediato ao judiciário e sofrendo

violação das normas insculpidas nos tratados internacionais de direitos humanos

englobados pelo ordenamento jurídico pátrio139.

Uma das consequências dessa situação é a continuidade do simples envio de

cópia do auto de prisão em flagrante para o juiz, o qual não terá contato direto com o

preso sem demora, nem ouvirá os requerimentos, após oitiva do flagranteado, da

defesa e do representante do Ministério Público. Logo, o julgador, para casos tais,

estará a passos largos do contraditório inerente a audiência de custódia e terá um

arcabouço fático significativamente reduzido para decidir sobre a liberdade do

137 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADPF 347. Rel. Min. Marco Aurélio. Disponível em [http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10300665]. Acesso em 17 de fevereiro de 2018. 138 GALLI, Marcelo. Defensores pedem implantação das audiências de custódia em todo país. Disponível em [https://www.conjur.com.br/2016-mai-04/defensores-pedem-audiencias-custodia-todo-pais]. Acesso em 17 de fevereiro de 2018. 139 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Rcl 23872/DF - DISTRITO FEDERAL. Rel. Min. Dias Tóffoli. Disponível em [http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28Rcl%24%2ESCLA%2E+E+23872%2ENUME%2E%29+NAO+S%2EPRES%2E&base=baseMonocraticas&url=http://tinyurl.com/hk9mj75]. Acesso em 18 de fevereiro de 2018.

64

cidadão, circunstancia que, derradeiramente, afetará a fundamentação de sua

decisão. Ante a tardança do Estado em priorizar a implantação das audiências de

custódia em todo território nacional, o efeito prejudicial será juízes decidindo sobre

prisões provisórias munidos apenas de cópias de um auto e, consequentemente,

decretando inúmeras prisões ilegais.

Nos ensinamentos de Luiz Flávio Gomes, a prisão deve ser encarada como

excepcionalidade, jamais a regra, até porque nesse sentido determina a

Constituição. Tal ato, dado o seu caráter excepcional, pois retira do indivíduo um dos

seus mais importantes bens jurídicos (liberdade), deve guardar respeito com os

requisitos legais, constitucionais e internacionais, para, assim, evitar o abuso de se

prender muito e demasiadamente mal, em que a justiça morosa faz da prisão

cautelar medida de controle social140.

Ora, a audiência de custódia vem justamente para evitar um dos (vários)

abusos inerentes à prisão no Brasil, qual seja, a segregação cautelar de um

indíviduo baseada numa decisão judicial genérica, que se revela distante das

circunstâncias da prisão e condições pessoais do preso, bem como das alegações

das partes.

O advento da audiência de custódia, a par de humanizar o processo penal e o

trato das medidas cautelares, permitiu o encurtamento da distância outrora

imensurável entre o preso e o juiz. Certamente a diminuição do tempo entre a prisão

em flagrante e a apresentação do preso a autoridade judiciária foi (e ainda é) de

extrema importância para a amenização do grave problema carcerário que assola o

país, mormente quanto aos presos provisórios. Todavia, faz-se necessário o

cumprimento por alguns juízes de seu dever de fundamentar as decisões em

audiência de custódia, não se esquecendo de que também se trata de uma garantia

do preso, pois, se assim não ocorrer, haverá gradual e indesejada diminuição do

papel da audiência de custódia no Brasil, qual seja de, além dos objetivos já

explicados, também fornecer ao magistrado um manancial fático pelo contato com o

preso, seu defensor e o Ministério Público para prolação de uma decisão

devidamente fundamentada e, por derradeiro, justa.

140 GOMES, Luiz Flávio. Audiência de custódia e a resistência das almas inquisitoriais. Disponível em [http://luizflaviogomes.com/audiencia-de-custodia-e-a-resistencia-das-almas-inquisitoriais/]. Acesso em 18 de fevereiro de 2018.

65

66

5 CONCLUSÃO

Com base em tudo quanto exposto, formulam-se as seguintes conclusões:

1. No decorrer da história do Processo Penal o tratamento das medidas

cautelares, sobretudo a prisão provisória, não possuia uma disciplina normativa,

muito menos um procedimento específico para o juiz apreciar o cabimento,

necessidade e razoabilidade de aplicação de uma medida tendente a limitar o direito

à liberdade do indivíduo que guardasse a devida conformidade constitucional e

internacional.

2. Em seguida, observou-se que, após compromisso do Estado brasileiro ao

internalizar no ordenamento jurídico as disposições dos tratados internacionais de

direitos humanos, mormente quanto a apresentação em tempo razoável do preso à

autoridade judiciária, a legislação processual penal brasileira, mesmo que

tardiamente, efetivou, com a Resolução nº 213/2015 do CNJ a regulamentação da

audiência de custódia em todo país.

3. Tal regulamentação serviu – e ainda serve – como principal balizador para

os juízes e tribunais de todo país regerem a audiência de custódia. Ademais, com o

advento da audiência de apresentação, verificou-se a valorização do princípio

constitucional da dignidade da pessoa humana, pelo fato de se permitir ao julgador

inquirir o preso acerca de tortura e maus tratos na sua prisão, bem como determinar

a apuração dessa conduta. Valorizou-se, em muito, também, o princípio do

contraditório e da ampla defesa, antes inexistentes no âmbito das medidas

cautelares, fornecendo, assim, um amplo contexto fático e jurídico ao magistrado

para decidir sobre a liberdade do indivíduo. Por fim, observou-se que o princípio

constitucional da presunção de inocência ganhou notável relevância com a

audiência de custódia, garantindo ao cidadão preso a observância desse

procedimento e passando a tratar a prisão antes da sentença transitada em julgado

como exceção.

4. A audiência de custódia, ao permitir a apresentação do preso em tempo

razoável perante a autoridade judiciária competente, assegura a apuração de

condutas violadoras dos direitos humanos, rotineiramente associadas as prisões

provisórias, como tortura e maus tratos, além de garantir ao julgador um maior

67

conhecimento acerca de todas as questões inerentes à prisão, dando-lhe condições

de decidir de forma mais justa.

5. Contudo, embora a audiência de custódia conceda ao juiz esse arcabouço

fático e jurídico acerca das circunstâncias da prisão e as condições específicas

vividas pelo preso, permitindo a prolação de uma decisão bem fundamentada,

vislumbra-se ainda a permanência de decisões calcadas em elementos externos aos

trazidos na audiência, que não guardam nenhuma relação com a cautelaridade

exigida para a prisão processual, quando, não raro, se alicerçam em argumentos

exageradamente genéricos.

6. Examinou-se a natureza jurídica da obrigatoriedade de fundamentação das

decisões judiciais, caracterizada como princípio do Estado Democrático de Direito,

dada a sua função de combate ao arbítrio dos juizes, bem como tal obrigatoriedade

se mostra verdadeira garantia do réu para aferir a imparcialidade e legalidade da

atuação do juiz e garantia da sociedade, pois a atividade judicante é uma

manifestação de um dos poderes do Estado.

7. Observou-se que com a postura de julgador em basear o decreto da prisão

cautelar em termos superficiais e genéricos acaba por violar a garantia constitucional

do preso, qual seja de ter sua prisão decretada por ordem escrita e fundamentada

da autoridade judicial, inserta no art. 5º, LXI da Constituição Federal.

8. Sugeriu-se, que, na apreciação pelo juiz durante a audiência de custódia

sobre a liberdade do indivíduo, elementos como o clamor social, credibilidade das

instituições da justiça, gravidade abstrata do delito e reiteração delitiva, comumente

disfarçados como ordem pública, por não possuírem nenhuma função de acautelar o

processo penal, não se prestam para fundamentar um decreto de prisão preventiva.

9. Demonstrou-se, através de dados estatísticos, o quadro caótico das prisões

no Brasil, revelando que a cultura punitivista e inquisitória do país, sobretudo no

Judiciário, ainda se mostra um dos maiores entraves para a sedimentação da

audiência de custódia como ferramenta de enfrentamento do encarceramento

provisório em massa. Examinou-se, também, como a prolação indiscriminada de

decisões desprovidas de fundamentação em sede de audiência de custódia contribui

para o agravamento desse quadro.

10. Finalmente, concluiu-se que a audiência de custódia é um procedimento

pré processual de humanização e democratização do processo penal, permitindo a

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melhora na qualidade das decisões sobre prisões provisórias, sobretudo a

preventiva, bem como assegura àqueles indivíduos historicamente negligenciados

pelo Estado a possibilidade de, no mínimo, terem suas vozes ouvidas por esse

mesmo Estado e, com isso, demonstrar ao julgador não apenas a importância de

motivar corretamente seu pronunciamento, seja para prender ou soltar o cidadão,

mas também o seu papel como agente estatal que decida em compromisso contra o

encarceramento provisório ilegal, pois garantidor da liberdade.

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6 REFERÊNCIAS

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