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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA CURSO DE GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA OTTÁVIO DE AZEVEDO OLIVEIRA RODRIGUES ACERCA DAS RELAÇÕES ENTRE A FILOSOFIA E A SOFÍSTICA: UM OLHAR A PARTIR DO PROTÁGORAS DE PLATÃO Niterói 2017

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E FILOSOFIA

    CURSO DE GRADUAO EM FILOSOFIA

    OTTVIO DE AZEVEDO OLIVEIRA RODRIGUES

    ACERCA DAS RELAES ENTRE A FILOSOFIA E A SOFSTICA: UM OLHAR A PARTIR DO PROTGORAS DE PLATO

    Niteri 2017

  • OTTVIO DE AZEVEDO OLIVEIRA RODRIGUES

    ACERCA DAS RELAES ENTRE A FILOSOFIA E A SOFSTICA: UM OLHAR A PARTIR DO PROTGORAS DE PLATO

    Monografia apresentada ao Departamento de Filosofia da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obteno do grau de Licenciado em Filosofia.

    Orientador: Prof. Dr. Marcus Reis Pinheiro

    Niteri 2017

  • UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E FILOSOFIA

    CURSO DE GRADUAO EM FILOSOFIA

    OTTVIO DE AZEVEDO OLIVEIRA RODRIGUES

    ACERCA DAS RELAES ENTRE A FILOSOFIA E A SOFSTICA: UM OLHAR A PARTIR DO PROTGORAS DE PLATO

    BANCA EXAMINADORA

    _________________________________ Prof. Dr. Marcus Reis Pinheiro (Orientador)

    Universidade Federal Fluminense

    _________________________________ Prof. Dr. Luis Felipe Bellintani Ribeiro

    Universidade Federal Fluminense

    _________________________________ Prof. Dr. Alexandre da Silva Costa Universidade Federal Fluminense

    Niteri 2017

  • Dedico este trabalho ao meu pai, Sebastio (in

    memorian ), e minha me, Maria Aparecida, pelo empenho que depositaram na minha formao e por terem possibilitado que eu chegasse onde eles nunca

    puderam chegar.

  • Agradecimentos

    Ao meus pais, Sebastio (in memorian ) e Maria Aparecida, pelo esforo em me manter em uma universidade distante de minha cidade de origem, com todas as dificuldades decorrentes

    disso. Vocs so o modelo de dedicao e empenho que eu emprego a cada dia em minha vida. s minhas irms, Ellana e Lucille, pelo carinho e pelo apoio que me direcionam desde a

    poca que eu no entendia o valor disso. Vocs foram fundamentais na minha formao.

    Aos 13 anos de governos transformadores de Lula e Dilma que possibilitaram que pessoas como eu pudessem ingressar na universidade. Nenhum golpe de estado apagar das nossas

    memrias as conquistas do povo preto e pobre!

    Ao meu namorado Thiago Selem pelo companheirismo, sem o seu apoio essa jornada seria muito mais difcil. A Nelma Ferreira, minha companheira de vida, fundamental em cada

    deciso que eu tomo. Estar ao lado de vocs que torna isso tudo possvel.

    Aos amigos, fundamentais nesse perodo aqui em Niteri. Arthur, Gabriela, Felipe Gabriel, Kate Soares e Youssef, pela recepo na Repblica do Ratn, minha primeira casa em

    Niteri. J, Marcus, Sandro, Valdeir e Walace que ingressaram comigo na turma de 2013.1, e Bianca, Gabriela, Gianluca e Thiago Silva, amizades que eu tive o prazer de cultivar na

    Filosofia. Todos vocs foram fundamentais para tornar meus dias em Niteri mais felizes.

    Aos amigos e amigas que carrego de outras jornadas, Paula, Camile e Marcelo Puertas.

    Ao Transporte Social Universitrio da Prefeitura de Maca, sem o qual teria sido muito difcil estudar em Niteri.

    CAPES pelo Programa de Iniciao Docncia (PIBID) e UFF e FE-SSE pela bolsa de

    Monitoria, fundamental para minha permanncia na universidade.

    Ao professor Marcus Reis Pinheiro por ter acolhido a orientao da minha monografia. Suas contribuies foram fundamentais para que esse trabalho encontrasse um termo.

    Aos Professores, Lus Felipe Bellintani Ribeiro e Alexandre Costa, por aceitarem gentilmente

    fazer parte desta banca.

    Aos demais professores do GFL pela dedicao que imprimem em suas aulas.

    E, por fim, ao professor Richard Fonseca, prezado orientador de monitoria, que tornou o caminho para a experincia do ensino de Filosofia um pouco menos tortuoso.

  • () enquanto [Plato] se preparava para participar de um concurso de tragdias, passou a ouvir

    Scrates em frente ao teatro de Dinisos, e ento jogou s chamas seus poemas (). Dizem que a

    partir de ento, aos vinte anos, tornou-se discpulo de Scrates. Digenes Laertios, Vidas e doutrinas

    dos filsofos ilustres . III. 5.

    () se a tragdia havia absorvido em si todos os gneros de arte anteriores, cabe dizer o mesmo, por

    sua vez, do dilogo platnico, o qual, nascido por mistura, de todos os estilos e formas precedentes,

    paira no meio, entre narrativa, lrica e drama, entre prosa e poesia, (). NIETZSCHE, O Nascimento

    da Tragdia , p.86.

  • , , , .

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    ,

    Scrates! interrompeu Adimanto ningum seria capaz de contraditar os teus argumentos. Mas de facto, a

    impresso que experimentam aqueles que de tempos a tempos ouvem o que acabas de expor mais ou menos esta: supem que, pela sua inexperincia em interrogar e responder, a cada

    pergunta a discusso os desvia um pouco, e que, depois de terem acumulado esses pequenos desvios, ao chegarem ao fim da argumentao, surge um erro grande e contrrio posio

    inicial; e, tal como, no gamo, os jogadores hbeis cercam as pedras dos outros e no os deixam chegar ao fim, nem ter para

    onde mover as pedras, tambm eles acabam por ficar cercados e sem ter que dizer nesta outra espcie de jogo, feito no com

    pedras, mas com argumentos.

    (Repblica, VI, 487b-c)

    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  • RESUMO

    Caracterizar a filosofia em oposio sofstica tarefa que persegue quase a totalidade dos

    dilogos de Plato. A grande maioria deles traz, tcita ou explicitamente, alguma discusso

    com esse movimento, seja atravs do personagem Scrates ou no. O esforo de Plato parece

    ser o de promover uma distino entre dois gneros que para a maioria de seus

    contemporneos, de uma forma ou de outra, confundiam-se. Nesse sentido, nosso trabalho

    pretende se inserir no contexto da antiga discusso das relaes entre a filosofia e a sofstica

    ocupando-se do dilogo Protgoras . Analisaremos, a partir desse dilogo, o modo com que o

    filsofo ateniense caracteriza, por um lado, Scrates, seu modelo de filsofo por excelncia,

    e, por outro, o sofista Protgoras, principal interlocutor de Scrates nessa obra.

    Palavras-chave: Plato, Scrates, Protgoras, sofistica.

  • Abstract

  • Sumrio

    Introduo.1 1) Entre o filsofo e os sofistas.5

    1.1) Scrates: a criao do filsofo e a negao do sofista....5 1.2) Os sofistas e o seu aspecto profissional13

    2) As imagens de Scrates e Protgoras no Protgoras ...17

    2.1) Scrates e a necessidade do mdico da alma.17 2.2) Protgoras, professor da aret humana..24

    2.2.1) O programa de ensino de Protgoras e as objees de Scrates.24 2.2.2) Resposta primeira objeo: mito de Prometeu e comentrio...31 2.2.3) Resposta segunda objeo: logos .36 2.2.4) Scrates frente ao encanto do Orfeu sofstico39

    3) Quem Scrates para seus interlocutores no Protgoras ?.............................................41 Concluso.53 Referncias Bibliogrficas..55

  • Introduo

    Caracterizar a filosofia em oposio sofstica tarefa que persegue quase a

    totalidade dos dilogos de Plato. A grande maioria deles traz, tcita ou explicitamente,

    alguma discusso com esse movimento, seja atravs do personagem Scrates ou no. O

    esforo de Plato parece ser o de promover uma distino entre dois gneros que para a

    maioria de seus contemporneos, de uma forma ou de outra, confundiam-se. A respeito disso,

    o dilogo Protgoras parece ocupar um lugar de destaque. Nele, Plato no nos traz Scrates

    discutindo doutrinas sofsticas ou suas prticas de modo abstrato, mas insere-o em um teatral

    encontro com Protgoras de Abdera, precursor do movimento sofsta, que empresta seu nome

    ao dilogo, em plena demonstrao de seus pressupostos e de seu programa de ensino, em que

    ambos, tanto Scrates, quanto o sofista, parecem nos apresentar, como chamou Jos Amrico

    Pessanha, uma coreografia das ideias (PESSANHA, 1997, p. 21)

    Entre os comentadores de Plato que dividem a obra do filsofo em trs fases, a saber,

    juventude, maturidade e velhice, h um considervel consenso em incluir o Protgoras entre

    as obras da sua juventude. Alguns pesquisadores, observa Guthrie (1998, p. 210), chegaram a

    classific-la como a mais juvenil entre os dilogos de Plato . Guthrie afirmar que 1

    considerando o carter mais elaborado da argumentao, a inferncia mais natural que esta

    obra foi escrita depois que aquelas outras peas mais breves e limitadas (GUTHRIE, 1998, p.

    210) A posio mais natural, defendem Guthrie (1998, p. 210) e Jaeger ( 2001, p. 620-621),

    seria no fim desse conjunto de dilogos em que Scrates investiga uma srie de virtudes

    particulares como a piedade, a coragem, por exemplo, mesmo que ainda seja um dilogo da

    fase socrtica, ou seja, da juventude de Plato. No entanto, Taylor, tambm considerando a

    riqueza da tcnica artstica empregada na composio desse dilogo, ir ainda mais longe na

    sua afirmao, alm de repudiar que o Protgoras fosse uma das obras iniciais de Plato

    (TAYLOR, 2013, p. 235), defender que ele deveria ser aproximado das obras de maturidade,

    a saber, Fdon , Banquete e Repblica (TAYLOR, 2013, p. 20).

    No Protgoras , Plato nos traz seu mestre Scrates, principal personagem em muitas

    de suas obras, contracenando com uma srie de sofistas, em especial com o famoso

    1 Guthrie, no Volume IV de sua Historia de la Filosofa Griega (1998, p. 210), destaca que Ritter e Wilamowitz colocavam o Protgoras entre os primeiros dilogos, escrito, inclusive, antes da morte de Scrates, e Arnim considerava-a a obra mais jovem de todas.

    1

  • Protgoras de Abdera, principal interlocutor de Scrates e que, por isso, empresta seu nome

    ao dilogo, bem como Hpias de lias e Pdicos de Quios, dois sofistas que tem uma

    participao menos destacada ao longo do dilogo, e seus discpulos em um cenrio

    fortemente vinculado ao movimento sofista: Scrates vai ao encontro dessas eminentes

    figuras na casa de um rico ateniense, Clias de Hipnico, com o objetivo de apresentar a

    Protgoras um aspirante a aluno, Hipcrates, jovem amigo do filsofo.

    Segundo Taylor, se considerarmos as consideraes sobre a idade de Alcebades no

    Prlogo (Prot . 309a-b), podemos concluir que a data dramtica do Protgoras no deve

    passar do ano de 433 a.C ., isso o localizaria no perodo final da era de Pricles, momento de 2

    maior opulncia e glria de Atenas (TAYLOR, 2010, p. 236). Scrates, portanto, ainda

    segundo o autor, deve ser pensado como um homem com seus trinta e cinco anos, enquanto

    Protgoras, principal interlocutor do filsofo no dilogo, j seria um homem velho, se

    considerarmos as indicaes que o prprio personagem faz ao longo do dilogo (cf. Prot .

    317c e 320c).

    Qualquer trabalho que envolva uma considerao a respeito do movimento sofista do

    sculo V a.C. uma tarefa que, de incio, esbarra em muitos empecilhos. Pois, como afirma

    Kerferd no seu O Movimento Sofista , no nos restaram escritos de nenhum dos sofistas

    [destes do sculo V. a.C.] e temos de depender de fragmentos insignificantes e de sumrios

    muitas vezes obscuros, ou discutveis, de suas doutrinas, nos vemos, muitas vezes,

    dependentes dos escritos daqueles que se colocavam como seus adversrios como o prprio

    Plato (KERFERD, 2003, p. 9). Mesmo sendo evidente a hostilidade com que Plato trata os

    sofistas, a tradio nos legou uma interpretao carregada de uma certa m vontade, que

    no condiz com o teor do conflito que, ao que parece, teria ocorrido naquele perodo. Plato

    nunca os considerou simplesmente pensadores de segunda ordem, como uma srie de

    comentadores fariam posteriormente . De fato, Plato considerava os sofistas os adversrios 3

    2 Guthrie concorda com a datao dramtica proposta por Taylor e ainda sugere que a referncia pea Os Selvagens do poeta cmico Fracles, encenada em 420 a.C., s poderia ser um anacronismo intencional de Plato. (GUTHRIE, 1998, p. 211).

    3 Kerferd no seu O Movimento Sofista nos traz um esboo da concepo que triunfou a respeito desses pensadores que rivalizaram com os filsofos naquele perodo. A viso tradicional dos sofistas, ele exemplifica com a citao de um trecho de um artigo, era a de que (...) eles eram um bando de charlates que surgiu na Grcia do sculo V e ganhou amplamente o seu sustento impondo-se credulidade pblica: professando ensinar a virtude, eles, na realidade, ensinavam a arte do discurso falacioso e, enquanto isso, propagavam doutrinas prticas imorais. Dirigiam-se para Atenas como ao Pythaneu da Grcia; l encontraram com Scrates e foram derrotados por ele, que exps a inanidade de sua retrica, revirou do avesso seus ensinamentos capciosos e vitoriosamente defendeu slidos princpios ticos contra seus plausveis sofismas perniciosos.

    2

  • mais perigosos da filosofia, tal como ele a compreendia, devendo, por isso, ser combatidos,

    no entanto, a centralidade dessa rivalidade na sua obra j pode ser considerada um indcio de

    que no poderamos de maneira alguma menosprezar a importncia desse movimento no s

    do ponto de vista histrico, mas tambm do ponto de vista filosfico.

    O trabalho que se seguir ser composto por trs captulos. O primeiro deles est

    dividido em dois momentos. No primeiro deles, analisaremos, a partir da constatao da

    disputa de sentido que os termos filsofo e sofista protagonizaram nos sculos V e IV

    a.C, como Scrates, assumido como personagem do projeto platnico, ser fundamental para

    Plato situar-se nessa disputa, de tal modo que produzir uma excluso que se perpetuar pela

    histria da filosofia. No segundo momento deste captulo, discorreremos sobre o carter

    profissional da prtica sofstica, em que o pagamento pelo ensino uma das caractersticas, de

    modo que, por meio da sua constituio, buscaremos discorrer sobre alguns aspectos da

    sofstica do sculo V a. C.

    No segundo captulo, partiremos para uma anlise do modo como Plato constri, no

    Protgoras , tanto o personagem Scrates, quanto o sofista de Abdera. Em primeiro lugar,

    analisaremos o papel de Scrates no dilogo entre ele e Hipcrates, jovem ateniense

    entusiasmado com a chegada do sofista de abdera, preparatrio para o encontro com o sofista

    de Abdera. E, em seguida, analisaremos toda a primeira seo em que Protgoras colocado

    em dilogo com Scrates. Nesse momento, os personagens investigam o programa de ensino

    defendido pelo sofista, o que d ensejo discusso sobre a ensinabilidade da virtude (aret ).

    Para justificar esse ensino contra as objees de Scrates, Plato faz Protgoras narrar a

    clebre verso do mito de Prometeu, produto da genialidade platnica com elementos das

    doutrinas associadas ao sofista.

    No terceiro e ltimo captulo, discorreremos sobre a divergncia existente entre a

    inteno que o personagem Scrates, reiteradas vezes no Protgoras , afirma gui-lo no

    movimento de perguntas e respostas e aquela que os muitos de seus interlocutores o atribuem.

    Observaremos essa discordncia quanto compreenso do encontro a partir da segunda parte

    do dilogo entre Scrates e Protgoras, que se inicia aps o sofista narrar o mito de Prometeu

    e o discurso que o complementa (Prot. 328d e ss.), permanecendo, mesmo com uma srie de

    Assim, eles, depois de um breve sucesso, caram num bem merecido desprezo. E seu nome se tornou objeto de zombaria para as sucessivas geraes. (SIDWICK, H. The Sophists, Journal of Philology 4 (1872) p. 289 apud KERFERD, 2003, p. 17)

    3

  • interldios, at o trmino do dilogo, em que tanto Scrates, quanto Protgoras acabam em

    um estado de terrvel confuso (kto tarattmena deinn , Prot. 362c).

    guisa de concluso, discorreremos sobre a importncia da leitura dos dilogos de

    Plato como peas dramticas, na esteira de uma tradio de comentadores, por considerar

    que apenas a partir de uma perspectiva que no prioriza um personagem em detrimento de

    outros, por exemplo, que podemos captar mais precisamente as intenes que moveriam

    Plato ao escrever suas obras, em especial, o prprio Protgoras .

    4

  • Captulo 1 Entre o filsofo e os Sofistas

    1.1) Scrates: a criao do filsofo e a negao do sofista

    Em Atenas dos Sculos V e IV a.C., os tipos de intelectuais que representavam o

    filsofo (philsophos ) e o sofista (sophists ) encontravam-se em situao de relativa

    indistino e eram objeto de disputas de significados, diferentemente do que poderia indicar

    uma leitura descuidada dos dilogos platnicos. Nesse sentido, Marina McCoy, no seu livro

    Plato e a Retrica de Filsofos e Sofistas , afirma que:

    O problema, ento, de distinguir a natureza da retrica e da sofstica um projeto ao mesmo tempo normativo e descritivo para Plato. Ou seja, assumir o ttulo de filsofo j significa ter certa concepo em mente sobre o que constitui um melhor ou pior entendimento da linguagem e sua relao com a razo e a realidade. Retrico , filsofo , sofista e poeta no so simplesmente termos que descrevem um conjunto de prticas, como mdico ou pintor . Ao contrrio, os termos ainda esto em desenvolvimento e so disputados com palavras na batalha sobre o que o lgos pode ou deve fazer (McCOY, 2010, p. 27).

    Plato, defende a autora, ao descrever Scrates como um filsofo e caracteriz-lo em

    oposio s figuras de destaque de seu tempo, em especial aos sofistas, promove um

    movimento que possui uma dimenso normativa, em vez de meramente descritiva dos tipos

    intelectuais presentes na poca, como podemos ser levados a crer. Essa possibilidade ganha

    ainda mais fora se levarmos em considerao que Scrates, antes de ser representado por

    Plato em seus dilogos, feito personagem j pelo teatro cmico de seu tempo. A comdia

    grega fonte mais antiga de informao sobre Scrates , sendo As Nuvens de Aristfanes, a

    nica dentre elas que nos restou integralmente, a nica das fontes primrias que data do

    perodo em que Scrates vivia (PRIOR, 2011, p. 40). 4

    O poeta cmico Aristfanes, em As Nuvens , retrata um Scrates indistinto daqueles

    sofistas representados por Plato. Nela, Scrates caracterizado como mestre do Pensatrio

    (phrontistrion ), sendo capaz, desde que pago para isso, de ensinar seus discpulos a vencer

    4 A data de apresentao de As Nuvens estimada em 423 a. C. (PRIOR, 2011, p. 40)

    5

  • com discursos tanto as causas justas quanto as injustas (vv. 94-99). O Scrates de Aristfanes

    se encaixa muito bem na imagem do sofista, professor de retrica, aquele que ensina quem os

    paga sem qualquer preocupao de ordem moral, ou seja, sem se preocupar se seu discpulo se

    valer dessa habilidade em situaes justas ou injustas.

    O Scrates de Aristfanes um tipo hbrido com traos tanto dos membros do

    movimento sofista, quanto de Scrates tal como foi apresentado por Plato em seus dilogos.

    Por um lado, no contedo do ensino, cujo currculo objetiva fundamentalmente as disputas

    oratrias e judiciais, e no hbito da cobrana por esse ensino (vv. 97-9 e 246) encontramos

    ntidas relaes com os traos atribudos aos sofistas pela tradio. A referncia maiutica

    (vv. 135-6), ao mtodo de perguntas e respostas (v. 344) e a meno ao hbito de andar

    descalo (vv.102-4), por outro lado, so caractersticas fortemente relacionadas s de Scrates

    se considerarmos a figura legada pelos dilogos de Plato.

    A crtica que Aristfanes empreende nessa pea, devemos destacar, direcionada no

    apenas ao possuidor do nome prprio do personagem mas tambm a todo esse grupo que tem

    introduzindo novas prticas antiga educao tradicional, cujos representantes notrios so os

    sofistas (vv.895-8). Por mais que Scrates faa parte desse movimento de poca que pretende

    introduzir novas prticas e costumes, constru-lo como um membro do movimento sofista,

    como faz Aristfanes, o que nos soa estranho quando nos ocupamos dessa fonte. Ser essa

    vinculao que inclui Scrates no movimento sofista que Plato se ocupar de refutar em

    diversos momentos de sua obra.

    A fora de tal representao fica evidente se levarmos em considerao a meno que

    Plato faz desta pea na sua representao do julgamento que levaria seu mestre

    condenao. Na sua verso da Apologia de Scrates, Plato faz seu mestre defender-se

    daqueles que ele chama de primeiros acusadores (Apol . 18a), entre os quais inclui

    nominalmente Aristfanes (Apol . 19c). Segundo o relato, Scrates considera essa classe de

    acusadores mais temvel que aqueles que efetivamente apresentaram a petio justia uma

    vez que eles estiveram encarregados da educao de muitos de seus juzes desde meninos,

    perodo em que eram mais crdulos (Apol . 18c), fazendo-os crer na existncia de um certo

    6

  • Scrates, homem instrudo, que estuda os fenmenos celestes, que investigou tudo o que h

    debaixo da terra e que faz prevalecer a razo mais fraca (Apol . 18b). 5

    Plato refuta a imagem aristofnica de Scrates porque necessita combater a

    indistino entre Scrates e os sofistas, parte integrante de suas acusaes, e garantir que seu

    mestre no seja lembrado como pertencente a esse movimento. Dir Scrates no momento de

    sua defesa:

    Na realidade, no tem fundamento nenhum essas balelas; tampouco falar a verdade quem vos disser que ganho dinheiro lecionando. Sem embargo, acho bonito ser capaz de ensinar, como Grgias de Leontino, Prdico de Ceos e Hpias de lis. Cada um deles, senhores, capaz de ir de cidade em cidade, persuadindo moos que podem frequentar um de seus concidados a sua escolha e de graa a deixarem essa companhia e virem para a sua, pagando e ficando-lhes, ainda, agradecidos. (Apol . 19d-20a)

    Seria preciso pr Scrates no momento de seu julgamento, como faz Plato,

    reafirmando aquilo que persegue quase a totalidade dos seus dilogos, Scrates no um

    sofista mas um filsofo. Por mais que o gnero filosfico e o sofstico se assemelhem tal

    como o lobo se assemelha a um co, como afirma Plato no Sofista, devemos nos acautelar

    dessa semelhana para no confundirmos os sofistas, esse gnero mais selvagem, com o

    filsofo, que domesticado (Sof . 231a).

    Plato no foi o nico dos discpulos de Scrates a escrever dilogos que traziam o

    mestre como protagonista. Depois da morte de Scrates, diversos seguidores do filsofo se

    engajaram na escritura desses dilogos, cuja origem, nos diz Guthrie, deveu-se ao hbito de

    seus companheiros tomarem nota de suas conversaes para, depois de redigidas, serem

    levadas para Scrates com fins de confrontao (GUTHRIE, 2003, p. 320). Como Scrates

    no havia deixado nada escrito, esses dilogos passariam a exercer importante papel de

    divulgao de sua figura, seu modo de vida e sua filosofia. Aristteles, na sua Potica , nos

    relata que esses dilogos consistiriam um gnero literrio estabelecido no mbito das

    composies imitativas, colocando-as, inclusive, ao lado dos mimos de Sfron. (Pot. 1447b).

    Da vasta literatura que correspondia aos sokrtikoi lgoi , s nos restaram obras intactas, alm

    das de Plato, as de Xenofonte . 6

    5 Utilizamos como referncia para a traduo da Apologia Scrates a traduo de Jaime Bruna (1972) , contida na coleo Os Pensadores , optamos por chamar a obra de Apologia de Scrates e no Defesa de Scrates, como faz a traduo, por considerar o primeiro ttulo j muito consagrado. 6 Como nos informa Kahn (1998, p. 1) em seu importante Plato and the socratic dialogue foram conservados at ns fragmentos de outros quatro discpulos, Antstenes, squines, Fdon e Euclides. O Primeiro Captulo de sua

    7

  • Se a disputa pela imagem de Scrates e pelo legado de seu modo de vida um ponto

    to importante da literatura do sculo IV a.C., a disputa pelo sentido do termo filosofia

    (philosopha ) tambm ter um lugar de considervel destaque. Em Atenas, no incio do sculo

    IV a.C., Iscrates funda uma escola que rivalizar com a Academia de Plato pelo sentido do

    que viria a ser a filosofia, opondo-se, a seu modo, sofstica. No discurso Contra os sofistas ,

    que teria sido escrito no incio de seu trabalho como professor, Iscrates estabelece as bases

    de sua educao (paideia ), o que leva a muitos intrpretes a considerarem esse discurso uma

    espcie de carta de intenes de sua escola (LACERDA, 2011. p. 7). A filosofia como

    entende Iscrates est vinculada educao (paideia ) e ao aprendizado com discursos, ou

    seja, retrica e a uma educao moral que no deve ser confundida com a pretenso de

    ensinar a justia dos sofistas (Cont. Sof. 21). McCoy, ao comentar a noo que Iscrates

    possui de filosofia, dir:

    para ele [Iscrates], philosofia no concerne ideias abstratas, mas sim os discursos que se destinam a fazer as pessoas agirem em situaes polticas concretas e especficas. A filosofia deve se preocupar com projetos nobres, enquanto a sofstica se debrua ostensivamente sobre discusses abstratas a respeito de questes sem serventia (McCOY, 2010. p. 17, grifo da autora).

    Iscrates e Plato, no entanto, apesar de discordarem a respeito da natureza da

    filosofia, concordam quanto ao ataque aos sofistas. Se Iscrates levado a escrever, por

    exemplo, Contra os Sofistas para demarcar sua paideia daquela praticada pelos sofistas, como

    foi dito, Plato se vale de quase a totalidade de seus dilogos para demarcar a diferena de seu

    mestre, Scrates, seu modelo filosfico por excelncia, dos sofistas, .

    verdade que, nem sempre, o termo sophists usado por Plato de modo

    depreciativo. No Banquete , por exemplo, Diotima, aquela que teria doutrinado Scrates sobre

    as questes do amor (t erotik , 201d) descrita pelo filsofo como a mais consumada

    sofista (hoi tleoi sophista , 208c). Em uma passagem do Protgoras , curiosamente, Plato 7

    tambm utiliza o termo sophists em um sentido que difere do que estamos habituados. No

    momento em que Scrates comenta o poema de Simnides aps a provocao de Protgoras

    (Prot. 342a e ss), o filsofo, guisa de introduo ao seu comentrio, promove o que alguns

    obra, Sokratikoi logoi : the literary and intellectual background of Platos work, uma boa introduo para a compreenso do conjunto da literatura socrtica daquele perodo. 7 Utilizamos a traduo de Carlos Alberto Nunes (2011) como referncia para a citao do Banquete .

    8

  • chamaram de elogio da filosofia, exaltando a antiguidade do cultivo do amor sabedoria, que

    teria nos cretenses e nos lacedemnios o local de maior destaque (Prot. 342a) . Nessa 8

    passagem, Plato faz Scrates se utilizar dos termos filosofia, (philosopha , 342a7;

    philosophan , 342d5; philosophen , 342e6) e sofistas (sophistai , 342b; sophistais , 342c5) sem

    qualquer precauo ou advertncia, tratando-os para se referir a uma mesma coisa, a prtica

    da sabedoria (sopha , 342b3).

    O doxgrafo Diogenes Lartius em seu Vidas e doutrinas dos filsofos ilustres , a

    respeito dos usos do termo sophists , nos diz que ele tambm j fora empregado para designar

    um outro nome para os sbios (sopho , DL. 1, 12). Isto indica que em determinado 9

    momento do registro da lngua grega esses termos eram tratados como intercambiveis, no

    havendo nada de depreciativo seu uso, como observa Kerferd (2003, p. 46), o que permitiria o

    seu emprego para se referir mulher da Mantineia e no discurso de Scrates no Protgoras . 10

    No entanto, o que estamos chamando de uso positivo do termo sophists no seu o

    emprego mais comum no conjunto do corpus platonicum . 11

    No dilogo Sofista , j rapidamente referido, Plato faz o Estrangeiro de Elia buscar, a

    partir do mtodo de dicotomias, a definio daquele que eles chamam comumente de sofista.

    Procurando uma definio que desse conta da pluralidade de formas que esse gnero aparece,

    Plato far o Estrangeiro de Elia encontrar sete definies at o fim do dilogo, sendo

    somente a ltima aparentemente satisfatria. O gnero sofista aparecer como um caador

    interesseiro de jovens ricos (1, 223b), mercador no atacado de ensinamentos, discursos e

    virtude (2, 224c), mercador no varejo desses mesmos ensinamentos que ele no produz (3),

    ou dos ensinamentos que ele mesmo produz (4, 224d-e), controversista erstico que adquire

    8 Essa passagem parece uma pardia de uma outra que ser comentada oportunamente nesse trabalho em que Protgoras exalta a antiguidade da arte sofstica (Prot. 316d-e). Essa passagem de muito difcil compreenso, alguns enxergaram nessa vinculao da filosofia creta e a lacedemnia como um caso de ironia por parte de Scrates (TAYLOR, 1991, p. 144) 9 Outro nome para os sbios era sofista, e no somente para filsofos mas tambm para poetas - Cratinos, ao elogiar Homero e Hesodos em sua pea Arqulocos , d-lhes esse nome. (DL, 1. 12). 10 Neto tambm identifica na passagem do Protgoras referida uma meno a um uso positivo do termo sophistes (NETO, 2012, p. 183). 11 Na Repblica , L.X, 596d, no momento em que Scrates se refere s habilidades criadoras de um demiourgos que seria capaz de produzir todas as coisas, seu interlocutor, Glucon, diz admirado: um sbio (sophistn ) de espantar, esse a que te referes. Como observa a tradutora para a lngua portuguesa, Maria Helena da Rocha Pereira (2001), esse contexto guarda uma ambiguidade intencional no emprego de sophistes . Por um lado, esse demiourgos que Scrates se refere produz todas as coisas por imitao da realidade (596d-e) como o sofista (Sof. 268c-d), por outro, possvel identificar uma relao com o uso tradicional desse termo, em que ele aparece desprovido de qualquer sentido pejorativo. Sobre os variados usos do termo sophists , conferir a sua entrada em LIDELL & SCOTT, 1883, p. 1410.

    9

  • dinheiro com disputas privadas (5, 225e-226a), refutador que purifica as almas das opinies

    que impedem a aprendizagem (6, 231b) e, finalmente, depois de uma longa discusso,

    chegando definio que daria conta da multiplicidade desse gnero, dir o Estrangeiro que o

    sofista imitador do sbio, produtor de simulacro (7, 268b-d).

    De todas as definies a sexta aquela em que tanto o Estrangeiro como Teeteto, seu

    interlocutor no dilogo, mais relutam em enunciar. Isso ocorre devido o receio em atribuir tal

    honra aos sofistas (Sof. 231a), uma vez que tal definio aparece como sendo a nica dentre

    as at ento encontradas que revelam um bom aspecto do gnero sofstico, nada mais, como

    dir o Estrangeiro, do que a estirpe da genuna sofstica (Sof . 231b). 12

    Hspede. - Interrogam sobre as coisas que algum julga que diz, sem nada dizer; questionam com facilidade as opinies assim errticas e, conduzindo-as com argumentos para o mesmo alvo, comparam umas com as outras e demonstram que se acham em contradio consigo mesmas. Ora, vendo isso, os questionados irritam-se contra si prprios e amansam-se em relao aos outros; desse modo, liberam-se das suas prprias opinies, grandiosas e obstinadas, e esta liberao de todas a mais agradvel de ouvir e a mais segura para quem experimenta. (Sof. 230b-c)

    Essa descrio relativa ao membro da nobre sofstica surpreendente no s pelo

    carter positivo que ela conserva, no que diz respeito refutao que capaz de purificar as

    almas daqueles que so refutados (230c-d), mas, principalmente, por guardar uma descrio

    estranhamente semelhante vida levada por Scrates. Essa definio do gnero sofstico

    parece perfeitamente atribuvel ao paradigma platnico do filsofo.

    Um movimento muito recorrente nos dilogos de Plato a demonstrao da

    necessidade de levantar uma definio que d conta de uma certa multiplicidade. No Mnon ,

    Scrates pede ao personagem que nomeia o dilogo que lhe d uma definio da virtude

    (aret , 71b). O Mnon, no entanto, enumera-lhe as virtudes do homem e da mulher (71e-72b).

    No Teeteto , Scrates pede que Teeteto lhe apresente uma definio de conhecimento

    (epistem , 146a), ele no entanto, como no caso anterior, traz-lhe uma srie de exemplos de

    conhecimentos como a geometria, a arte do sapateiro (146c-d), por exemplo. Nos dois casos

    Scrates, ironicamente, elogia o fato de ao pedir uma nica definio, seus interlocutores

    apresentarem uma variedade delas (Teet . 146d-e; Mn. 72a-b). Scrates no discordaria que

    12 Como referncia para a traduo dO Sofista utilizamos a traduo de Henrique Murachco, Juvino Maia Jr. e Jos Trindade dos Santos (2011).

    10

  • cada uma delas sejam casos especficos da coisa por ele pedida, a objeo residiria no fato de

    Scrates estar procura da unidade na multiplicidade, do carter nico que permite que todos

    sejam predicveis por virtude (Mn . 72c), no primeiro caso, ou por conhecimento, no segundo

    (Teet. 146e).

    O Sofista , em alguma medida, a despeito da mudana de mtodo de argumentao , 13

    apresenta um movimento similar a esses dois elencados. Esse gnero, constatam o Estrangeiro

    e Teeteto, apresenta-se de uma forma muito variada, no sendo apreensvel com apenas uma

    mo, mas apenas com duas (Sof. 226a), tamanha a multiplicidade com que esse gnero se

    manifestou (Sof. 231c). Desse modo, a nobre sofstica que foi encontrada, apesar de no dar

    conta do gnero como um todo, como tambm no do todas as outras definies reveladas,

    ao menos diriam respeito a um aspecto existente da sofstica, mesmo que particular. Essa,

    parece, aproximar-se-ia consideravelmente da figura de Scrates.

    No entanto, ser que a stima, e ltima, definio, aquela que pretenderia dar conta da

    multiplicidade das definies reveladas, tambm compreenderia a nobre sofstica? Se Plato

    aproxima Scrates da sofstica ao encontrar a sexta definio, seria possvel admitir que

    Plato ainda quer aproximar Scrates da sofstica considerando a definio mais definitiva?

    No nosso interesse nesse momento investigar de maneira mais profunda relao da nobre

    sofstica com as outras definies e, em particular, com a ltima, nem investigar de mais

    detido o dilogo Sofista . De modo que suficiente para a discusso proposta considerar que,

    mesmo no momento em que Plato parece inclinado a ceder aproximao de Scrates com a

    sofstica por meio da sexta definio, o seu movimento o de, imediatamente, promover o seu

    afastamento desse gnero. Scrates no produtor de simulacro, distinguir Plato, mas

    efetivamente filsofo por estar inclinado busca pelas Formas e pela verdade . 14

    Marina McCoy, na introduo de seu livro j referido, reconhecendo a dificuldade de

    distino entre os filsofos e sofistas, explorada pelo prprio Plato em seus dilogos, afirma:

    Os significados dos termos filsofo e sofista eram discutidos na poca que Plato escreveu; para ele, a afirmao de que Scrates um filsofo em vez de um sofista uma declarao normativa em vez de meramente descritiva. s vezes, os dilogos de Plato expressam alguma ambivalncia sobre se a distino pode ser feita to claramente como o prprio personagem de

    13 O mtodo por dicotomias utilizado aqui pelo Estrangeiro difere bastante daquele utilizado por Scrates nos dilogos referidos. 14 a partir da inclinao s Formas e verdade que Plato definir o filsofo nos Livros V e VI da Repblica , a respeito disso conferir 475e e 485a, por exemplo.

    11

  • Scrates deseja fazer parecer. Um olhar atencioso s mltiplas camadas dos dilogos revela um Scrates que s vezes se parece mais com seus oponentes do que ele gostaria de admitir ou vice-versa. (McCOY, 2010, p. 11)

    No dilogo Protgoras , a confuso entre o filsofo e o sofista, aquilo que Jos

    Amrico Pessanha, chamou de a questo mais dramtica do platonismo (PESSANHA,

    1997, p. 22), ser tratado, em uma das passagens, de modo assaz cmico. Scrates e

    Hipcrates dirigem-se casa de Clias, onde os sofistas estavam reunidos com seus alunos,

    chegando sua porta, resolvem concluir um assunto que teria ocorrido no caminho cujo

    contedo no nos relatado . Aps isso, Scrates nos relata:

    Penso que o porteiro, um eunuco, ouviu nossa conversa, sendo de presumir que tivesse tomado ojeriza s visitas da casa, em virtude da grande afluncia de sofistas, pois, mal havamos batido, abriu a porta, e, vendo-nos, gritou para o nosso lado: PORT. - Ah! exclamou; mais sofistas! Ele est com todo o tempo tomado.

    Assim dizendo, fechou decidido com as duas mos a porta no nosso rosto. Tornamos a bater; mas, sem abrir a porta, falou-nos do lado de dentro: PORT. - Oh, senhores! No me ouviste dizer que ele no tem tempo? SOC. - Mas, meu caro, lhe respondi, no estamos procura de Clias, nem somos sofistas. Tranquiliza-te; viemos procurar Protgoras. Anuncia-nos. (Prot. 314c-e) 15

    Plato, nessa passagem, retrata comicamente a dificuldade de distino entre o sofista

    e o filsofo. O eunuco prestava ateno na conversa de Scrates e Hipcrates, cujo contedo

    no nos relatado e a expulso feita imediatamente, sem, ao menos, questionar as intenes

    que os levaram at l. Plato faz, mais uma vez, repetindo-se quase exausto, Scrates

    reafirmar a sua diferena com os sofistas, a despeito de alguma semelhana que poderiam

    observar, e observaram, aqueles que os cercaram, semelhana reconhecida por Plato mas

    rechaada pela necessidade da construo do filsofo.

    A respeito de Scrates podemos levar em conta, por um lado, a diversidade de

    imagens que nos chegaram pelas fontes que sobreviveram histria, seja de Aristfanes, seja

    de Xenofonte ou de Plato, por outro lado, podemos considerar tambm a diversidade de

    escolas e movimentos que foram gestadas no seio da companhia socrtica, Acadmicos,

    15 Para citaes do dilogo Protgoras usaremos de referncia a traduo de Carlos Alberto Nunes, qualquer indicao contrria apontaremos por nota. A incluso das iniciais daqueles que tomam a palavra a partir da narrao de Scrates (vale lembrar que o dilogo narrado a um amigo como indica o seu prlogo, 309a-d) foi feita para facilitar a compreenso das interposies das falas, elas no esto presentes na traduo utilizada.

    12

  • Cticos, Cnicos, Megricos e Cirenaicos, para ficarmos s com alguns. Podemos, alm disso,

    nos ater somente o Scrates tal como conhecemos pelos dilogos de Plato. Scrates seria um

    amigo das formas? Apenas um simulacro de sofista como parece querer Plato? Ou um sofista

    daqueles pertencentes sua forma mais nobre?

    Uma concluso advm imediatamente quase como necessria. Somente uma figura

    polimorfa, como parece ter sido Scrates, poderia ser a fonte de tamanha diversidade, uma

    figura, talvez, mais difcil de apreender do que o gnero sofista do dilogo Sofista . To

    variada e escorregadia que se mostra inapreensvel, talvez, at mesmo com duas mos.

    1.2) Os sofistas e o aspecto profissional No Protgoras , todos os grandes sofistas daquele perodo, Protgoras, Hpias e

    Prdico, com a nica ilustre exceo de Grgias, esto recm-chegados em Atenas (Prot .

    310c). Eles encontram-se hospedados na casa de Clias, um jovem proveniente de uma das

    famlias mais ricas da cidade, cujo patronato levou-o a ser conhecido por suas vultosas

    contribuies financeiras aos sofistas . Plato, inclusive, faz Scrates afirmar em sua 16

    Apologia que ele, sozinho, teria dado mais dinheiro aos sofistas que todos os outros atenienses

    juntos (Apol. 20a). A escolha pelo cenrio da casa de Clias fundamental para Plato nesse

    dilogo pois, com ele, refora a construo da atmosfera intelectual de Atenas da segunda

    metade do sculo V a. C., fundamental para as suas intenes no dilogo (GUTHRIE, 1988,

    p. 217). , tambm, por meio do patronato desses mecenas que os sofistas vindos de toda

    parte do mundo grego se estabelecero em Atenas. Kerferd, no seu O Movimento Sofista ,

    afirmar que, nesse perodo, no auge da Era de Pricles, Atenas se tornar um importante

    centro para onde os grandes sofistas daquele perodo convergiam (KERFERD, 2003, p. 32).

    Os sofistas vieram de toda parte do mundo grego e muitos, embora nem todos, continuaram a viajar por toda parte em funo de sua atividade profissional. Entretanto, todos vieram a Atenas, e claro que Atenas, por uns sessenta anos, na segunda metade do sculo V a.C., era o verdadeiro centro do movimento sofista. (KERFERD. 2003. p. 32).

    Atenas tornou-se especialmente atrativa para esses sbios, afirma Kerferd, devido a

    uma srie de mudanas gradativas que foram ocorrendo durante o comando de Pricles. Em

    16 Conferir o verbete Cllias III em SMITH, 1867, p. 567

    13

  • primeiro lugar, Kerferd destaca a pujana econmica alcanada por Atenas, caracterizada

    principalmente por um extenso programa de construo de prdios pblico, restaurando

    aqueles destrudos pelos Persas (KERFERD. 2003. p. 32). Jaeger, no Paideia , tambm atribui

    considervel importncia figura de Pricles para a construo do cenrio institucional que

    garantir o solo para o movimento sofista. Com Pricles , aps a vitria nas guerras contra os

    Persas, Atenas amplia os horizontes citadinos a partir da sua incluso na dinmica

    econmica, comercial e poltica das demais cidades gregas (JAEGER, 2001, p. 339).

    Por outro lado, destaca Kerferd, dois princpios da democracia ateniense, cujos

    principais contornos foram traados desde Slon, tambm foram fundamentais para o

    surgimento da demanda pelos servios dos sofistas especialmente na cidade de Atenas, a

    saber:

    (1) que o poder deveria estar com povo como um todo e no com uma pequena parte do conjunto dos cidados, e (2) que os cargos com direito de aconselhar e agir em nome do povo deveriam ser confiados aos mais competentes e mais capazes de desempenhar essas funes (KERFERD. 2003. p. 33).

    Os sofistas, desse modo, supririam uma demanda social e poltica da sociedade

    ateniense (KERFERD. 2003. p. 33). A educao desses chefes, que deveriam erguer-se dos

    demais em competncia, despontaria, assim, como a finalidade do movimento sofista no

    mbito da educao (JAEGER, 2001, p. 339) . Hipcrates, o jovem amigo de Scrates que no 17

    Protgoras pretende juntar-se ao sofista com o objetivo de tornar-se uma figura de relevo

    (ellgimos ) na cidade (Prot. 316b), como diz o filsofo ao apresent-lo a Protgoras, afirma

    que o sofista conhecedor do tornar hbil no falar (poisai deinn lgein , Prot. 312d) aqueles

    que a ele se juntam. A habilidade do falar, como evidenciam essas passagens, era um

    elemento fundamental do elevar-se frente aos outros cidados, uma relevncia que tem uma

    conotao especificamente poltica. A atividade poltica, tal como foi experimentada em

    Atenas, dependia dessa capacidade que os sofistas ofereciam queles que poderiam pag-los.

    Sobre o aspecto do lgos na atividade poltica, Jean Pierre Vernant nos diz que:

    17 J desde o comeo a finalidade do movimento educacional comandado pelos sofistas no era a educao do povo, mas a dos chefes. No fundo no era seno uma nova forma de educao dos nobres, dir Jaeger na passagem mencionada.

    14

  • o que implica o sistema da polis primeiramente uma extraordinria preeminncia da palavra sobre todos os outros instrumentos de poder. Torna-se o instrumento poltico por excelncia, a chave de toda autoridade no Estado, o meio de comando e de domnio sobre outrem. (VERNANT, 1998, p. 41)

    exatamente por conta da importncia que o domnio do logos , do discurso, adquire

    na poltica que os sofistas conquistam tamanha importncia principalmente na segunda

    metade do sculo V.

    Protgoras considerado o fundador do movimento sofista, tendo sido o primeiro,

    segundo Plato, a apresentar-se com o nome sofista (sophists ) e a cobrar pelo seu ensino

    (Prot. 317b; 349a). De fato, Plato faz Protgoras sustentar que a sua atividade descende de

    uma nobre tradio, vinculando Homero, Hesodo e Simnides, por um lado, e, por outro, at

    mesmo Orfeu e professores de ginstica e msica (Prot. 316d-e) sofstica, numa bela cena 18

    de apologia a essa ocupao. A vinculao de tais figuras sofstica faz-se possvel, por um

    lado, por conta dos variados usos que termo sophists possui na literatura grega, que,

    principalmente antes do tempo de Plato, eram fundamentalmente positivas, como nos

    referimos anteriormente. Por outro lado, e, talvez, mais significativamente, possvel atribuir

    essa nobre antecedncia porque, para Protgoras, ser sofista est estreitamente relacionado

    tarefa de educar homens, pois ele aquele que, sem esconder-se em alguma arte guisa de

    cobertura (parapetsmasin , Prot. 316e), declara ser sofista e educar homens (homolog te

    sophists enai ka paideein anthrpous , Prot. 317b). Todos esses homens, como sabemos,

    estavam vinculados, de uma forma ou de outra, tarefa educativa. Jaeger, numa passagem

    com explcita inspirao nessa fala de Protgoras, dir:

    Sem compreenderem nada desta investigao separada da vida, os sofistas vincularam-se tradio educativa dos poetas, a Homero e a Hesodo, a Tegnis, a Simnides e a Pndaro. S podemos compreender claramente a sua posio histrica se os situarmos no desenvolvimento da educao grega, cuja linha definida por aqueles nomes. (JAEGER, 2001, p. 345)

    18 Protgoras dir na passagem referida: Alis, sou de opinio que a arte do sofista muito antiga, mas que os homens das outras eras que a praticavam, com medo dos percalos da profisso, recorriam a subterfgios para escond-la, valendo-se alguns, como Homero, Hesodo e Simnides, da poesia; outros mais, como Orfeu e seus discpulos, dos mistrios e orculos. Sim, alguns, conforme observei, serviram-se at mesmo da arte da ginstica, tal como o tarentino Icos, e tambm esse sofista ainda vivo, que no cede a palma a nenhum outro, Herdico, o selembriano, primitivamente de Mgara. A msica serviu de pretexto para Agtocles, sofista eminentssimo; assim como Pitclides, de Ceos, e para muitos outros

    15

  • Com efeito, se esse vnculo de Protgoras com essa tradio to evidente, em que

    mbito residiria a originalidade da atividade desempenhada por ele? Protgoras pode ser

    considerado uma figura de ruptura na medida em que com ele que a atividade educativa

    comea a constituir-se em torno de uma ocupao efetivamente profissional, estabelecida

    entre tantas outras, cujo instituio da cobrana pelo ensino, iniciada por ele, apenas um

    indcio disso (Prot. 349a). O Protgoras a fonte fundamental, afirma Kerferd (2003, p.

    34-5), para identificarmos que, a partir de Protgoras, fica estabelecido no meio sofstico uma

    dupla atividade, alm de instruir esses jovens ricos que querem se destacar politicamente,

    caberia ao sofista formar, dentre seus discpulos, aqueles que se tornariam efetivamente

    sofistas profissionais. Isso o que indica, por exemplo, o dilogo entre Scrates e Hipcrates

    (Prot. 312a-b), que estudaremos oportunamente, e o comentrio feito pelo filsofo ao

    ingressar na casa de Clias, quando, ao nomear os presentes que escutavam Protgoras,

    refere-se a Antmeros de Mende como o mais famoso dos discpulos de Protgoras, que

    estudava com ele para seguir a profisso de sofista (Prot. 315a).

    Essa ocupao, no entanto, ao mesmo tempo que renderia reconhecimento e estima

    aos sofistas por parte de alguns contemporneos, outros, nutriro uma forte repulsa a esses

    pensadores . Sobre esses diferentes sentimentos direcionados aos sofistas, diz Kerferd: 19

    Eles [os sofistas] faziam parte do movimento que estava produzindo a Nova Atenas de Pricles, e era como tal que foram, ao mesmo tempo, bem-vindos e atacados. Eles atraam o entusiasmo e o dio que regularmente advm queles que esto profundamente envolvidos num processo de fundamental mudana social. A mudana que estava se realizando era, ao mesmo tempo, social e poltica, de um lado, e intelectual, de outro (KERFERD, 2003, p. 44).

    19 Talvez seja nito, feito personagem por Plato no dilogo Mnon (cf. 90b e ss.), o melhor exemplo do dio aos sofistas e ao que eles representavam naquele perodo. Curiosamente, ele um dos acusadores de Scrates no processo que levar a sua morte.

    16

  • Captulo 2 As imagens de Scrates e Protgoras no Protgoras

    2.1) Scrates e a necessidade do mdico da alma

    O personagem Hipcrates desempenha um papel fundamental no desenvolvimento

    dramtico do Protgoras , pois ele quem se dirige a Scrates impelindo-o a ir at a manso

    de Clias, onde os sofistas estavam hospedados proferindo suas lies. Quando Hipcrates

    acorda Scrates de seu sono, ainda durante a madrugada, e lhe conta que Protgoras

    encontra-se em Atenas, o filsofo no demonstra surpresa, uma vez que ele j sabia dessa

    notcia (Prot. 310b-c). Scrates, apesar de saber que Protgoras estaria em Atenas, no

    demonstra nenhum interesse especial nisso. O filsofo, no instante em que se segue ao

    discurso de Protgoras (328d-e), afirma estar agradecido com o fato de Hipcrates t-lo

    impelido a lev-lo at l, dando a entender que, caso ele assim no tivesse agido, Scrates no

    procuraria Protgoras por mais que ele estivesse em Atenas.

    O jovem amigo de Scrates, no entanto, diferentemente do filsofo, fica

    completamente eufrico com a descoberta da chegada de Protgoras Atenas, j que a ltima

    vez que o sofista estivera na cidade ele ainda era muito jovem (Prot. 310e). Tal euforia se

    converte em um verdadeiro afobamento, pois Hipcrates, assim que informado por seu

    irmo da estadia do sofista na cidade decide procur-lo imediatamente. O jovem apenas recua

    da deciso quando percebe que j era noite, sendo, por isso, melhor esperar at o dia seguinte

    para ir ao encontro do sofista. J no dia seguinte, Hipcrates no espera nem o despontar do

    sol para sair de casa, tamanha a sua pressa para encontrar o eminente estrangeiro (Prot.

    310b-c).

    A imediatez dessa deciso motivo, em alguns passos seguintes, de censura por parte

    de Scrates. Mesmo que Scrates tenha sido procurado aos berros (Prot. 310b) por Hipcrates

    antes deste ir ao sofista, sua inteno pedir que seu amigo apresente-o ao estrangeiro que

    est de passagem por Atenas, uma vez que ele ainda no o conhecera (Prot. 310e), e no para

    aconselhar-se com ele sobre a sua inteno. Hipcrates no teria, na verdade, ido

    aconselhar-se com qualquer outro sobre a deciso de procurar Protgoras, como afirma

    Scrates:

    17

  • () no te aconselhaste nem com teu pai, nem com teu irmo, nem com nenhum de ns, teus familiares, para decidirmos se deverias ou no confiar tua alma (epitrepton [...] tn sn psychn ) a esse estrangeiro recentemente chegado, mas tendo, como disseste, ouvido ontem noite falar dele, vieste at aqui de manhzinha, no para entabularmos conversao e te aconselhares comigo, sobre se deves entregar-te a ele ou no (epitrpein sautn aut ete m ), porm disposto a gastar tua fortuna e a dos amigos, visto j teres resolvido que preciso, a todo custo, frequentar (syneston ) Protgoras, que no conheces, conforme dizes, e com quem nunca conversaste (Prot . 313a-b).

    Apesar disso, Scrates se dispe a examinar dialeticamente a deciso de Hipcrates,

    colocando sua convico prova. Ele dir:

    - Ainda no, meu caro; muito cedo. Porm levantemo-nos e vamos para o ptio, onde ficaremos a passear e conversar at clarear o dia; depois iremos. (...). Depois de dizer isso, levantamo-nos e fomos para o ptio. Ento, para pr prova a resoluo de Hipcrates, pus-me a interrog-lo sem desviar dele a vista [test-lo, examin-lo, dieskpoun ]. (Prot . 311a-b).

    Ainda cedo para Scrates no s porque o dia ainda no havia raiado, mas porque a

    deciso no est devidamente refletida e analisada. Hipcrates jovem e a deciso por

    juntar-se (syneston ) a algum no qual no tem nenhuma experincia uma deciso muito

    perigosa, como advertir Scrates, j que ela envolve a entrega de sua alma (epitrepton tn

    sn psychn ) aos cuidados de algum desconhecido. Desse modo, o elemento luminoso,

    referido a partir da imagem do sol que clarear a cena, muito importante. Desse elemento

    dependem os movimentos fundamentais nesse incio de dilogo: se, por um lado, Scrates e

    Hipcrates precisam caminhar para esperar o sol despontar no horizonte iluminando toda a

    cena exterior, por outro lado, Scrates precisa lanar luz, a partir do mtodo dialtico, nas

    intenes que movem o jovem Hipcrates a procurar ansiosamente os ensinamentos de

    Protgoras. Como Jos Amrico Pessanha nos fala, o dia nasce dentro e fora da alma do

    interlocutor de Scrates, porque enquanto o sol ilumina a cena exterior, Scrates,

    interrogando, vai iluminando o interior de seu amigo (PESSANHA. 1997, p. 23).

    A iluminao das intenes de Hipcrates dever, portanto, pressupor a demonstrao

    do perigo que Hipcrates se coloca ao se envolver com algum que desconhece. Ao interrogar

    seu jovem amigo, Scrates quer saber se ele conhece ou ignora que espcie de homem ele

    18

  • encontrar ao ir at o sofista de Abdera e se ele sabe o que ele se tornar ao instruir-se com

    ele. Se o procurado fosse Hipcrates de Cs, afirmam, ele seria procurado por ser mdico e o

    jovem Hipcrates, ao procurar instruir-se com seu homnimo, teria interesse em tornar-se

    tambm mdico. Da mesma forma que o mesmo ocorreria com Policlito de Argos ou Fdias

    de Atenas, no caso da escultura. Portanto:

    SOC. Imaginemos, agora, que algum nos perguntasse, ao perceber nosso empenho na consecuo desse projeto: Scrates e Hipcrates, dizei-me que espcie de homem esse Protgoras a quem tencionais oferecer dinheiro? Que lhe responderamos? (...) HIP. - Sofista, Scrates, respondeu; assim que lhe chamam. SOC. - na qualidade de sofista, por conseguinte, que lhe vamos dar dinheiro? HIP. - Perfeitamente SOC. - E se a mesma pessoa insistisse em perguntar-se: E que pretendes ser com os ensinamentos de Protgoras? Ao responder-me, enrubesceu - pois j estava ficando suficientemente claro para que eu pudesse ver-lhe o rosto: HIP. - Por consequncia com o que dissemos antes, claro que para ser sofista. SOC.. - Pelos deuses! lhe disse; e no te envergonhas (aischynoio ) de te apresentares aos helenos na qualidade de sofista? HIP. Muito, Scrates, por Zeus, se tiver de dizer o que penso. (Prot . 311d-312a)

    O dia, de fato, j comeava a despontar e, com o dia, Hipcrates tambm j comeava

    a se dar conta da importncia da deciso que est tomando. Scrates, mesmo sem ter sido

    incitado para isso pelo jovem Hipcrates, j comeara a lanar luz sobre as intenes de seu

    amigo que enrubescera, esse enrubescimento j uma indicao desse dar-se conta.

    Protgoras era um sofista e Hipcrates, ao juntar-se a ele, viria a se tornar tambm um sofista

    se esse caso se assemelhasse aos que Scrates enumerou, possibilidade de que o jovem

    Hipcrates se envergonha. No entanto, o interesse de Hipcrates ainda no estava

    inteiramente esclarecido, para tal, Scrates precisar, primeiro, investigar a natureza do ensino

    que seu amigo persegue ao procurar Protgoras, de modo a saber se seria, de fato, vergonhoso

    fazer parte de seu crculo.

    Hipcrates, afirmar Scrates, no conviver com Protgoras para adquirir uma

    tcnica (ouk ep tchne ), tal como ocorreria se ele fosse se tornar um profissional (demiurgs ).

    Seu interesse nos servios desses sbios itinerantes ser similar quele presente no contexto

    19

  • de sua aprendizagem com o mestre de letras, de msica e de ginstica, Hipcrates procurar

    Protgoras para adquirir cultura (paidea ), tal como convm a um homem livre (eletheron ,

    Prot. 312a-b). O jovem amigo de Scrates, portanto, no procura Protgoras para tornar-se

    sofista, mas para receber essa educao secundria seletiva, destinada aos jovens ricos que

    possuam anseios de ingressar na vida pblica, como dir Kerferd (2003, p. 34) inspirando-se

    nesse dilogo.

    Se Scrates j conseguiu esclarecer a natureza da educao que seu amigo receber

    por meio desses profissionais, uma outra questo segue em aberto: Hipcrates e Scrates

    ainda no investigaram a natureza desse profissional, a pergunta o que o sofista?, esse a

    que vais entregar a sua alma (epitrepton [...] tn sn psychn , 312c) ainda no foi feita e a

    isso que eles precisam se dedicar nesse momento.

    SOC. Pois resolveste entregar tua prpria alma aos cuidados de um homem que, conforme disseste, sofista; mas o que seja, de fato, sofista, muito me admiro se o souberes. Ora, se ignoras isso, tambm no poders saber a quem entregas a tua alma (paraddos tn psychn ), nem se para teu bem ou para o mal. HIP. Penso que sei, respondeu. SOC. Ento dize: na sua opinio, que um sofista? HIP. A meu parecer, disse, como o prprio nome indica (tonoma lgei ), um indivduo cheio de sabedoria (toton enai tn tn sophn epistmona ). (Prot. 312c).

    A resposta de Hipcrates no est errada, e Scrates sabe disso, o que o incomoda a

    sua falta de preciso. Hipcrates relaciona o nome sophists com o adjetivo sophs sabio

    com a raiz -ist de epistasthai , conhecer , da a sua resposta com tom de obviedade ao

    referir-se sobre a indicao produzida pelo prprio nome, ou seja, a aproximao garantida

    pela prpria etimologia da palavra, de modo que Hipcrates a entende em sua relao

    imediata com sophs , sentido anterior ao seu sentido pejorativo que foi se constituindo,

    principalmente, a partir dos sculos V e IV a.c . Para Scrates, no entanto, isso pouco, a 20

    resposta ainda est em termos demasiadamente gerais.

    Ser sbio em coisas sbias seria uma atribuio cabvel tambm a pintores ou

    carpinteiros, mas, para esses, identificamos facilmente o domnio dessa sapincia. E com

    relao ao sofista, sobre que tipo de coisas um sofista sbio? Ou de que tipo de produo ele

    20 Conferir a nota 8, p. 509, traduo do Protagoras de GUAL, RUIZ & INIGO (1985) e Kerferd, O sentido do termo sofista in : O movimento Sofista (KERFERD. 2003. p. 45-74).

    20

  • conhecedor? Dir Hipcrates, ingenuamente, que um sofista conhecedor do domnio de

    tornar hbil no falar (epistten to poisai deinn lgein , Prot. 312d). Essa resposta, mais 21

    uma vez, ser insuficiente para nosso filsofo, afinal um citarista tornaria algum hbil

    (deinn ) no falar a respeito do tocar ctara, ou seja, a respeito daquele domnio em que ele

    tambm hbil. Pergunta Scrates a seu amigo: Qual a coisa sobre a qual ele prprio sbio

    e torna sbio seu discpulo? (Prot. 312e). A essa pergunta crucial Hipcrates no mais

    capaz de responder.

    Essa dvida, que no ser resolvida positivamente no dilogo entre Scrates e

    Hipcrates, o que motivar o desenvolvimento de todo a discusso entre Scrates e

    Protgoras no momento seguinte do dilogo. Se o contedo da educao promovida pelos

    sofistas e, em especial, por Protgoras s reaparecer na discusso quando Scrates encontrar

    Protgoras na manso de Clias, por ora, Scrates se ocupar em discorrer com Hipcrates

    sobre a natureza desse tipo de viajante que vende seus servios de ensino. Ser pelo

    desconhecimento do que viria a ser esse tipo que o seu amigo pretende juntar-se, que Scrates

    elaborar a sua advertncia.

    Scrates dir que o sofista nada mais do que um comerciante (mporos ) de

    mercadorias para alimentar a alma (aph n psych trphetai , Prot. 313c), de modo que esses

    alimentos com os quais a alma se nutre seriam conhecimentos (mathmasini , Prot . 313c).

    Dessa forma, afirma Scrates, Hipcrates, ao ignorar a natureza deste a que pretende

    juntar-se, coloca em perigo (kndynon ) a sua alma, pois a compra de mercadorias relativas

    alma mais nociva que a compra relativa aos alimentos do corpo, uma vez que, com esses,

    possvel transport-los em vasilhas at um conhecedor do assunto antes de passarem para o

    corpo, ou seja, antes de serem ingeridas (Prot. 314a). Com relao aos alimentos de que a

    alma se nutre, ao contrrio, a ingesto das mercadorias ocorre no momento mesmo da

    compra e no podem, de forma alguma, ser transportados para uma conferncia posterior

    (Prot. 314b). Se os alimentos por acaso forem malficos, esse malefcio, forosamente,

    afetar o comprador no ato da compra, caso no sejam detectados anteriormente os seus

    efeitos.

    21 O termo grego deinon dotado de uma ambiguidade, pode designar tanto hbil, quanto terrvel, essa ambiguidade, inclusive, discutida no prprio Protgoras em um momento em que Scrates recorre cincia divina de Prdico (cf. 340e-341). Carlos Alberto Nunes possivelmente optou traduzir deinon nessa passagem por hbil, eliminando a ambiguidade, pelo seu uso para se referir ao citarista na fala que o segue.

    21

  • Como o sofista um mercador, ele no se furtar em tecer elogios sobre as

    mercadorias de que dispe para a venda, mesmo que ignore se seus efeitos sero benficos ou

    nocivos, tal como o faz tambm um comerciante de alimentos para o corpo (Prot. 313d). Os

    compradores desses produtos, afirma Scrates, caso tambm no sejam capazes de diferenciar

    a natureza vantajosa ou prejudicial dessas mercadorias, tornam a transao ainda mais

    perigosa.

    () os que vendem e mercadejam, sem cessarem de enaltec-los, para os que se mostram desejosos de adquiri-los. Pode dar-se o caso, caro amigo, de haver muitos que no saibam quais sejam das mercadorias venda as teis ou as nocivas para a alma, como tambm no o sabem os que as adquirem, salvo se houver entre eles algum mdico da alma. No caso de conheceres o que neste particular vantajoso ou prejudicial para a alma, poders comprar conhecimentos sem perigo nenhum, no s de Protgoras como de qualquer outro sofista (Prot. 313d-e)

    Os comerciantes, portanto, sejam de quais alimentos forem, ocupam-se em elogiar

    seus produtos sejam eles nocivos ou benficos. Caso sejam nocivos, isso ocorreria no por

    uma m-f ou desvio moral, mas por uma ignorncia inerente queles que no so

    conhecedores das propriedades desses alimentos, mas apenas seus vendedores. Os

    compradores deveriam, portanto, resguardar-se, afirma, de compr-los apenas se estiver em

    companhia de algum mdico, seja do corpo, seja da alma, no caso dos mercadores como os

    sofistas.

    Jos Cavalcante de Souza, ao analisar essa passagem, afirma que os intrpretes

    apressam-se ao enxergar a incisivos termos de confirmao da venalidade dos sofistas.

    Scrates, segundo ele:

    fala to somente de venalidade das mercadorias espirituais e no dos que se atrevem a vend-las, e ao mximo que da se pode inferir o reconhecimento da grave responsabilidade, ou do risco temerrio, dos que assumem tal encargo. () Quanto aos sofistas do nosso dilogo, longe de arrolar em uma censura direta e pessoal, que de antemo tiraria todo interesse de uma conversa com eles, Scrates se prontifica a ser o porta-voz do jovem Hipcrates, e a consult-los sobre esse delicado problema. (SOUZA. 1969. p. 73-4)

    Os sofistas, portanto, nesse contexto, estariam parcialmente livres de uma crtica mais

    incisiva. No mximo, Scrates poderia dizer que os sofistas, ao lidarem com ensinamentos

    22

  • que incidiriam diretamente na alma dos aprendizes, no deveriam agir de maneira to

    negligente, desconhecendo a natureza desses produtos que vendem. Dessa afirmao Scrates

    no decorre, como ressalta o autor, uma interdio pura e simplesmente da sofstica. A prpria

    relao de Scrates com Prdico de Cs, mencionada em muitos dilogos, indica que o

    filsofo teria tornado-se em algum momento aluno do sofista, aprendendo com ele sobre a

    correo dos nomes (cf. Prot. 341a; Crt . 384b e Mn . 96d).

    Disso podemos depreender que, se os ensinamentos dos sofistas podem ser

    prejudiciais, eles tambm podem ser benficos, no entanto, faz-se necessrio ressaltar, se o

    forem, os sofistas seriam, tambm menos dignos de grandes elogios, pois seu benefcio

    decorreria de uma potncia que o sofista tambm no controlaria. Esse benefcio, poderamos

    dizer, seria uma decorrncia casustica do contedo que fora ensinado e no de uma relao

    necessria que se seguiria a seu ensino. O maior mrito, poderamos afirmar seguindo esse

    raciocnio, residiria no no sofista que seria um mercador desses conhecimentos, mas no

    mdico da alma que saberia identificar, dentre os alimentos para a alma ofertados pelo

    sofista, aqueles que causaro benefcios e aqueles malefcios.

    Por mais que Scrates afirme que no esse mdico da alma que analisar o benefcio

    ou malefcio dos ensinamentos dos sofistas, quando ele diz que depois de conversar com

    Protgoras, ambos devem examinar (skopmetha ) com os mais velhos (presbytron ) a

    respeito dessa questo, uma vez que eles so ainda jovens (ti neoi ), o desenvolvimento do

    dilogo parece querer nos indicar o contrrio. Scrates no se limita a apresentar Hipcrates a

    Protgoras como o jovem queria, mas pe prova as posies que o sofista assume ao longo

    do dilogo, tanto quando expe suas objees possibilidade do ensino da virtude, como nas

    perguntas que faz a respeito dos pontos do mito e do discurso que o sofista narrar (conf.

    Prot. 320d 328d).

    Alm disso, importante destacar, o dilogo narrado por Scrates a um amigo no

    nomeado instantes aps ele sair do encontro com Protgoras, como nos mostra o seu prlogo

    (Prot. 309a-d). Scrates no se limita a tecer elogios ao encontro, referindo-se a Protgoras

    como o mais sbio do nosso tempo (Prot. 309d), sapincia tamanha que teria ofuscado em

    beleza a presena de Alcebades, destacado por sua estonteante beleza, uma vez que quem

    mais sbio no poderia deixar de ser mais belo (Prot. 309c). Scrates no se censura de narrar

    este encontro imediatamente ao amigo, apesar de afirmar a necessidade de consultar-se com

    algum mais velho sobre o que eles teriam ouvido no dilogo (Prot. 314b).

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  • Considerando o que foi exposto, possvel afirmar que, a despeito da indicao

    contrria, Scrates desempenha o papel desse mdico da alma que capaz de identificar

    dentre os ensinamentos dos sofistas quais sero benficos e quais sero prejudiciais. Sob certo

    aspecto, esse o papel que Scrates imbui-se no dilogo que travar com Protgoras aps a

    exposio do mito e do discurso.

    2.2) Protgoras, professor da aret humana 2.2.1) O programa de ensino de Protgoras e as objees de Scrates

    O sofista Protgoras entra efetivamente em cena no dilogo que leva seu nome a partir

    da chegada de Scrates e Hipcrates na casa de Clias, local em que ele, Hpias e Prdico

    estavam hospedados para realizar as suas concorridas lies. Ao entrar, Plato desenvolve a

    partir do personagem Scrates uma precisa descrio da maneira com que esses ilustres

    hspedes estavam dispostos neste cenrio, em uma das passagens mais bonitas de todo o

    dilogo. Hpias descrito respondendo, aparentemente, algumas perguntas sobre astronomia e

    natureza dos corpos celestes, enquanto Prdico de Ceos representado ainda deitado, coberto

    por cobertores, j dissertando sobre algum assunto que no fora possvel discernir, devido a

    sua voz grave (Prot. 315b-316a).

    Protgoras, no entanto, aquele que ocupa o lugar de maior destaque na descrio

    dessa cena introdutria. Junto a ele reunia-se uma srie de cidados de Atenas, dentre os quais

    encontra-se o anfitrio, Clias, e os filhos de Pricles, Xantipo e Pralo, alm de muitos

    estrangeiros que Protgoras arrebanhara das cidades por onde passara, atraindo-os com sua

    voz, como fazia Orfeu, e eles, enfeitiados, o seguiam (Prot. 315a), que juntos formavam

    uma espcie de coro (315b), a mover-se de modo a nunca colocar-se na frente de Protgoras,

    que andava de um lado para o outro.

    Nesse coro o que mais me deleitou foi ver a deferncia com que todos se esforam para no incomodar Protgoras com lhe tomar a frente. Todas as vezes que ele e seus acompanhantes se voltavam, em perfeita ordem e preciso os ouvintes se apartavam para a direita e para a esquerda, e, formando um crculo, numa execuo admirvel, vinham colocar-se de novo por trs dele. (Prot. 315b)

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  • evidente a preciso quase teatral que tal descrio contm. Ao l-la somos

    imediatamente lanados formulao do cenrio que essas palavras procurar reproduzir.

    Taylor sugere, por conta disso, que essa descrio faz referncia s representaes dos sofistas

    na comdia desse tempo, talvez trazendo lembrana a pea Os Aduladores de upolis,

    representada em 421, que tem como cenrio a mesma casa de Clias e Protgoras e

    Alcebades como personagens ou a pea Knnos de Ameipsias, representada em 423, que

    .tem um coro de pensadores e Scrates como personagem (TAYLOR, 1996, p. 72. Apud

    NETO, 2011, p. 85, n.113).

    Sob um outro aspecto, a comparao de Protgoras com Orfeu igualmente

    interessante para ilustrar o magnetismo exercido pelo sofista nos lugares por onde passava.

    Orfeu um personagem mtico representante de uma fase originria da poesia grega, cuja lira,

    presente de Apolo, exercia poderes de encantamento. Tal poder teria possibilitado que os

    Argonautas atravessassem o oceano sem serem naufragados pelas sereias (SMITH, 1861, vol.

    III, p. 59). Orfeu ser novamente citado no dilogo, dessa vez pelo prprio Protgoras, um

    pouco mais adiante, quando ser includo entre os precursores ancestrais da arte do sofista

    (tn sophistikn tchnen ), numa passagem j referida (Prot. 316d).

    J estando no cenrio em que transcorrer o restante do dilogo, Scrates pe-se a

    chamar Protgoras, coloc-lo a par daquilo que teria o levado at ali. Ele viera com o intuito

    de apresentar-lhe o jovem Hipcrates, que intenciona tornar-se seu discpulo. Na conversa

    inicial entre Scrates e Hipcrates, o jovem afirmava a necessidade de ter seu amigo ao seu

    lado para apresent-lo a Protgoras. Como ele era ainda m