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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ UNIOESTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA EVANDRO JOSÉ MACHADO LIBERDADE E MOVIMENTO EM THOMAS HOBBES TOLEDO 2011

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ – UNIOESTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA

EVANDRO JOSÉ MACHADO

LIBERDADE E MOVIMENTO EM THOMAS HOBBES

TOLEDO

2011

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EVANDRO JOSÉ MACHADO

LIBERDADE E MOVIMENTO EM THOMAS HOBBES

Dissertação de mestrado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em Filosofia

do CCHS/UNIOESTE, Campus de Toledo,

como requisito final à obtenção do título de

Mestre em Filosofia, sob a orientação do

professor Dr. Jadir Antunes.

TOLEDO

2011

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Catalogação na Publicação elaborada pela Biblioteca Universitária

UNIOESTE/Campus de Toledo.

Bibliotecária: Marilene de Fátima Donadel - CRB – 9/924

Machado, Evandro José

M149L Liberdade e movimento emThomas Hobbes / Evandro

José Machado. -- Toledo, PR : [s. n.], 2011

141 f.

Orientador: Dr. Jadir Antunes

Dissertação (Mestrado em Filosofia) - Universidade

Estadual do Oeste do Paraná. Campus de Toledo. Centro de

Ciências Humanas e Sociais.

1. Filosofia inglesa 2. Hobbes, Thomas 1588-1679 3.

Filosofia política 4. Liberdade 5. Mecanicismo (Filosofia) 5.

Natureza 6. Ciência (Filosofia) I. Antunes, Jadir, Or. II. T.

CDD 20. ed. 192

320.01

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EVANDRO JOSÉ MACHADO

LIBERDADE E MOVIMENTO EM THOMAS HOBBES

Dissertação de mestrado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em Filosofia

do CCHS/UNIOESTE, Campus de Toledo,

como requisito final à obtenção do título de

Mestre em Filosofia, sob a orientação do

professor Dr. Jadir Antunes.

COMISSÃO EXAMINADORA

____________________________________

Prof. Dr. Jadir Antunes – Orientador

Universidade Estadual do Oeste do Paraná

____________________________________

Prof. Dr. José Luiz Ames – Membro

Universidade Estadual do Oeste do Paraná

____________________________________

Prof. Dr. Aylton Barbieri Durão – Membro

Universidade Federal de Santa Catarina

Toledo, dezembro de 2011

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À Andréia Peiter, pelo carinho e dedicação

direcionados a mim, e sem a qual nada

disso teria se tornado realidade! Amo você!

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AGRADECIMENTOS

Ao Pai Eterno pelo grandioso dom da vida.

À família, de modo especial à minha mãe – Vitória Rodrigues Machado – e ao

meu pai – Arnaldo José Machado (in memoriam), por deixarem-se tocar pelo

ato divino da criação.

Ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia do CCHS/UNIOESTE, Campus

de Toledo, pela oportunidade de pesquisar com esmero e ao lado de

profissionais idôneos.

Aos professores do Programa de Mestrado em Filosofia da UNIOESTE pela

partilha amistosa de seus conhecimentos filosóficos e existenciais.

Aos companheiros de turma que, através do diálogo e da discussão,

ajudaram um sonho se tornar realidade.

Ao professor Dr. Jadir Antunes, orientador e amigo, obrigado pela confiança

e pela liberdade depositadas em minha labuta filosófica.

À Andréia Peiter, inspiradora e fiel incentivadora da minha pesquisa, AMO

VOCÊ!

Termino meu agradecimento citando fragmentos do Menestrel:

“E o que importa não é o que você tem na vida, mas quem você tem na vida.

E que bons amigos são a família que nos permitiram escolher. Aprende que

não temos de mudar de amigos se compreendemos que os amigos mudam…

Percebe que seu melhor amigo e você podem fazer qualquer coisa, ou nada, e

terem bons momentos juntos. Descobre que as pessoas com quem você mais

se importa na vida são tomadas de você muito depressa… por isso sempre

devemos deixar as pessoas que amamos com palavras amorosas; pode ser a

última vez que as vejamos” (William Shakespeare).

A todos, muito obrigado!

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“Ao homem é impossível viver quando seus desejos

chegam ao fim, tal como quando seus sentidos e

imaginação ficam paralisados. A felicidade é um

contínuo progresso do desejo, de um objeto para

outro, não sendo a obtenção do primeiro outra coisa

senão o caminho para conseguir o segundo. Sendo a

causa disso que o objeto do desejo do homem não é

gozar apenas uma vez, e só por um momento, mas

garantir para sempre os caminhos de seu desejo

futuro. [...]. Assinalo assim, em primeiro lugar,

como tendência geral de todos os homens, um

perpétuo e irrequieto desejo de poder e mais poder,

que cessa apenas com a morte” (LEVIATÃ, I. XI, p. 60).

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MACHADO, Evandro José. Liberdade e Movimento em Thomas Hobbes. 2011. 142 f.

Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Toledo,

2011.

RESUMO

Na ausência de impedimento externo à ação livre dos homens, que tipo de sociedade existiria?

Será verdade que os homens se reúnem em sociedade por pura gratuidade? Um poder forte e

soberano, capaz de lidar com todas as necessidades e paixões é o mais adequado? Se os

homens sempre procuraram ser livres, por que organizaram um meio capaz de controlá-los?

Thomas Hobbes, em função de interjeições similares, procurou respostas no seu contexto,

totalmente imbuído de inovadoras idéias científicas. Este processo científico surgiu na

tentativa de legitimar o sistema copernicano do universo, que tinha por base estudar

matematicamente os movimentos dos corpos físicos. Em decorrência disso, houve um brusco

rompimento com a cosmofísica tradicional e a ênfase focou-se na relação de causa e de efeito

dos fenômenos físicos. Hobbes aplicou essa nova metodologia na filosofia política e afirmou

que o mundo é uma junção de corpos em movimento. Essa forma mecanicista foi estendida

também ao homem e ao Estado, que como máquinas perfeitas podem ter seus movimentos

conhecidos e controlados pela ciência que fez deles o seu objeto de estudo. Enquanto o Estado

era descrito como um homem artificial, que imita o homem natural, a mecânica do homem era

delineada de forma análoga a de um relógio. Contudo, Hobbes evidenciou que os homens,

quando inseridos no estado natural, agiam de acordo com as próprias paixões e sempre

buscando o próprio bem: o princípio do benefício próprio. Uma esfera imprópria à

preservação da vida. Por conta da reta razão, os homens chegaram à conclusão de que a

instituição do Leviatã é a saída mais eficaz, a fim de que a vida prazerosa e paz sejam

garantidas. Com base neste cenário, a presente dissertação, que tem como título “Liberdade e

Movimento em Thomas Hobbes”, pretende demonstrar a aplicação do movimento – legado da

ciência – ao conceito de liberdade, até então compreendido e disseminado como a liberdade

da vontade e dos seres racionais e, por isso, um atributo metafísico. A partir de Hobbes, a

liberdade é puramente corpórea e aplicada a todo corpo, racional ou não, desde que esteja em

movimento. É neste sentido que a definição de liberdade hobbesiana, ausência de

impedimento externo ao movimento do corpo, ganha veracidade e se torna incompatível com

a ordem natural, que é a de manter a paz. Visando a preservação do movimento vital e uma

vida confortável, os homens, portanto, limitam a liberdade e passam a viver sob a lei civil.

PALAVRAS – CHAVE: Movimento, Liberdade, Hobbes.

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MACHADO, Evandro José. Freedom and movement in Thomas Hobbes. 2011. 142 f.

Dissertation (Master´s Degree in Philosophy) – Universidade Estadual do Oeste do Paraná,

Toledo, 2011.

ABSTRACT

In the absence of external impediments the free action of men, what kind of society exist? Is it

true that men get together in society as a pure gratuity? A strong and sovereign power, able to

handle all the needs and passions in right? If men have always sought to be free, why an

organized able to control them? Thomas Hobbes, on the basis of similar interjections, sought

answers in context, fully imbued with innovative scientific ideas. This scientific process

emerged in an attempt to legitimize the Copernican system of the universe, which was based

on mathematically study the movements of physical bodies. As a result, there was a sharp

break with traditional cosmofisica and the emphasis focused on the relation of cause and

effect of physical phenomena. Hobbes applied this new methodology in political philosophy

and said that the world is a joining of bodies in motion. This was a mechanical man, and also

extended to the state, that as perfect machines can have their movements controlled and

known by science that made them the object of his study. While the state was described as an

artificial man, who mimics the natural man, the mechanics of man was drafted in a way

analogous to a clock. However, Hobbes showed that men, when inserted in the natural state,

they acted according to his own passions and always looking for its own sake: the principle of

benefit. A sphere improper to preserve life. Because of right reason, men came to the

conclusion that the institution of the Leviathan is the most effective output, so that the

pleasant life and peace are guaranteed. Based on the scenario, the present paper, which is

entitled “Freedom and Movement in Thomas Hobbes”, seeks to demonstrate the application

of the movement – a legacy of science – the concept of freedom, understood and disseminated

so far as freedom of the will and rational beings, and therefore, a metaphysical attribute. From

Hobbes, liberty is merely applied to the whole body and body, rational or not, since it is

moving. It is this sense that the hobbesian definition of freedom, the absence of external

restraint to the movement, the truth wins and becomes incompatible with the natural order,

which is to keep the peace. In order to preserve the vital movement and a comfortable life,

men, therefore, limit the freedom and start living under civil law.

KEYWORDS: Movement, Freedom, Hobbes.

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SUMÁRIO

CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES ............................................................................... 11

1 A FÍSICA HOBBESIANA .................................................................................................. 20

1.1 O MOVIMENTO: LEGADO DA CIÊNCIA NASCENTE AO PENSAMENTO DE

THOMAS HOBBES ................................................................................................................ 22

1.2 MOVIMENTO: O PRINCÍPIO DA FILOSOFIA DE THOMAS HOBBES .................... 26

1.3 A PRIMEIRA LEI DE NATUREZA COMO DECORRÊNCIA DO MOVIMENTO

VITAL DO HOMEM ............................................................................................................... 35

1.4 A LEI BÁSICA DA VIDA HUMANA É O MOVIMENTO ............................................ 42

2 ANTROPOLOGIA DE HOBBES: CORPO FÍSICO E LIVRE ..................................... 58

2.1 ESTADO NATURAL COMO UMA SITUAÇÃO POSSÍVEL ..................................................... 58

2.2 DESCRIÇÃO DA NATUREZA HUMANA A PARTIR DA PRIMEIRA LEI DE NATUREZA

EM HOBBES ........................................................................................................................................ 65

2.3 A FUNÇÃO DA LINGUAGEM E DA RAZÃO EM HOBBES .................................................... 79

2.3.1 A Utilidade Da Linguagem No Processo De Construção Do Estado ........................................... 80

2.3.2 A Razão Humana Como Cálculo ................................................................................................. 85

2.4 DA IMPOSSIBILIDADE DO HOMEM MANTER O DIREITO NATURAL .............................. 90

3 OS EFEITOS DA CONCEPÇÃO DE LIBERDADE NA RELAÇÃO ENTRE O

ESTADO DE NATUREZA E O ESTADO CIVIL EM THOMAS HOBBES .................. 98

3.1 A INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO MECÂNICO NO CONCEITO DE LIBERDADE .................. 98

3.2 O DEBATE SOBRE A LIBERDADE E O LIVRE-ARBÍTRIO EM HOBBES ......................... .109

3.3 A PROBLEMÁTICA DA LIBERDADE E DA NECESSIDADE HOBBESSIANA ................. .120

CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. .132

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................. .140

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CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

Se os homens sempre procuraram ser livres, por que organizaram um meio capaz de

controlá-los? Instigados à compreensão e à resposta a esta intrigante dúvida, queremos

percorrer o caminho já trilhado e o posterior legado de Thomas Hobbes (1588-1679) à

humanidade acerca desta desconfiança. Cremos que esta questão de cunho filosófico e,

sobretudo, existencial, ainda hoje é importante, pois nos remonta a uma suspeita ainda mais

pertinente, a saber, o que faríamos se não estivéssemos de algum modo obrigados a respeitar

as leis civis? Como seria se cada um de nós pudesse agir livremente, como bem

entendêssemos, conforme apenas a nossa própria vontade e segundo o nosso próprio juízo?

Como realmente os homens se comportariam na ausência de leis universais, em estado

natural? A criação de mecanismo fictício, capaz de nortear as ações humanas, é a solução?

Buscando amparo teórico no filósofo político de Malmesbury, temos como pretensão

para este trabalho a demonstração e a análise da concepção de liberdade, pontualmente no que

concerne à obra Leviatã (1640). A liberdade é compreendida, conforme o capítulo XIV e o

XXI do Leviatã, como a ausência de oposição ou impedimento externo, que tiram parte do

poder de ação de determinado corpo, seja ele racional ou não. Esta compreensão é estendida e

suscetível de aplicabilidade somente aos corpos em movimento. Antes disso, especificamente

no capítulo XIII e XIV da mesma obra, notamos que a preservação da vida e a paz surgem

como leis absolutas a todo corpo. A única função do corpo em movimento, em especial o

homem, é não se eximir de esforços possíveis e necessários para continuar o movimento

vital1. Para tanto, o homem deve e pode agir de forma totalmente livre e descomprometida

com o outro homem, pois é a sua preservação que está em risco. Entretanto, o outro homem

também agirá da mesma forma e com base no mesmo direito natural, o que se configurará em

uma situação generalizada de guerra.

No Leviatã, Thomas Hobbes reflete sobre a impossibilidade do retorno dos homens ao

estado de natureza, quando, entre outras coisas, afirma que os homens foram feitos iguais.

Argumenta, ainda, que a natureza humana leva à discórdia (competição, desconfiança e desejo

de glória) na ausência de um poder comum, de maneira que os homens estarão sempre em

desavença uns com os outros. No referido estado os homens vivem em situação constante de

guerra geral, havendo, dessa forma, a necessidade de um poder comum que os ordene, pois

não existe um equilíbrio entre atritos e a estabilidade – sempre que não houver a paz,

1 Cf. LEVIATÃ, I, XIV, p. 79.

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necessariamente se travará a guerra2. Nessa guerra de todos contra todos, nada pode ser

injusto. Não existe distinção entre bem e mal, justiça e injustiça. Não há lei positiva, e onde

esta não existe, certamente não haverá justiça. No estado de guerra, força e fraude são

consideradas virtudes. É de fundamental importância, também, destacar que nesse estado não

há definição de propriedade. Consequentemente pertencerá a cada homem somente o que seus

próprios esforços adquirirem e só clamará direitos sobre isso enquanto puder mantê-lo.

O direito natural do homem é uma forma de liberdade – a liberdade de fazer ou

empregar todo poder, da maneira que quiser e julgar necessário para a preservação da própria

vida. É um contra-senso o homem ferir-se deixar de esforçar-se pela própria preservação. Em

outras palavras, o único direito que o homem tem – a preservação da vida – não restringe e

não é circunscrito à liberdade, mas, ao contrário, afirma o próprio direito ou a própria

liberdade de usar o poder da maneira que bem entender e achar conveniente; mesmo quando

essa forma entrar em conflito direto com os outros. O conflito é justificável e se configura

como um ato livre porque tem como finalidade a nossa própria sobrevivência. Portanto,

somos totalmente livres para buscarmos a preservação do nosso movimento vital. A

transmissão da liberdade natural – liberdade é igual ao direito de desfrutar daquilo que a

natureza cede gratuitamente – à figura de um terceiro dará origem ao Estado civil. O Leviatã

(ou Estado civil) assumirá os poderes particulares e da autorização dos indivíduos constituirá

uma força inabalável, superior a todos os súditos juntos. Tamanho poder e grandiosidade

servirão para preservar a vida e a paz dos súditos. Ou seja, o poder soberano emana da

autorização dos indivíduos e não da somas dos mesmos.

Para evidenciar o que acabamos de mencionar, temos como objetivo a apresentação da

temática da liberdade, em Thomas Hobbes, em três capítulos. No primeiro capítulo, intitulado

“A física hobbesiana”, a nossa intenção é de mostrar que o movimento do corpo, herança da

ciência nascente, é a condição fundamental para se entender a liberdade humana, ou seja, todo

corpo existe para o movimento e está em constante movimento. Isso se justifica porque o

movimento do corpo humano é igual à vida e a paralisação do movimento vital é igual à

morte. O homem não pode deixar seu movimento vital parar, de maneira que ele é totalmente

livre para desenvolver o que pensar ser conveniente e necessário para a preservação de seu

movimento vital. O movimento pode ser tanto o vital como o animal, o que distingue um do

outro é a imaginação, enquanto que este segue uma cadeia de dependência para ocorrer,

aquele é natural e involuntário. Contudo, ambos apenas reforçam a ideia de que o homem é

2 Cf. LEVIATÃ, I, XIII, p. 76.

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um corpo em movimento e para o movimento. Além do mais, é evidente que a imaginação é

igual ao conatus (conatus em latim e endeavor em inglês), de sorte que caracteriza o

empenho, o esforço do homem para manter a vida, tanto no sentido aversivo como apetitoso.

No segundo capítulo, que tem como título “A antropologia de Hobbes: corpo físico e

livre”, descreveremos a natureza humana a partir da primeira lei de natureza, quando a lei

única e fundamental é a busca da paz, apenas na inexistência de qualquer alternativa o homem

poderá ancorar-se nos benefícios oriundos da guerra. Cabe notar que a primeira lei de

natureza se divide em duas: uma lei (lex) e um direito (jus). No que tange à lei, notamos uma

obrigação (determinação) nítida, isto é, o homem deve procurar a paz e segui-la a qualquer

custo, ao passo que, no que concerne ao direito natural (liberdade), percebemos a

configuração da liberdade sem limites, o homem pode usar todos os meios possíveis para a

preservação do seu movimento vital, mas não necessariamente que deva fazê-lo3. No instante

que o homem percebe que o seu maior desejo é a preservação da sua própria vida – lembrando

que as leis de natureza nada mais são do que ditames da reta razão e não algo inato à

composição do homem – além da busca incessante da paz, ele também entende que a sua

liberdade para desempenhar tal função não tem limites, pois seria incorreto a natureza nutri-lo

a buscar o cumprimento de uma lei se não o amparasse também com um direito. Nesta

medida, a liberdade é ilimitada e gera o horizonte da impossibilidade do homem manter os

direitos naturais no estado natural, pois as buscas particulares e isoladas certamente entrarão

em confronto direto com o outro homem.

Consoante a Hobbes, no estado generalizado de guerra todo homem é igualmente livre

e com direito a todas as coisas. Esta combinação entre direito e liberdade, uma vez em

confronto com a do outro homem, cujo principal objetivo é a sustentação do movimento vital,

configura o estado natural, estado de confronto e de medo exagerado. “A oposição com que

começa a filosofia política de Hobbes é, então, a oposição entre, por um lado, a vaidade como

raiz do apetite natural e, por outro, o medo de uma morte violenta como a paixão que faz

racional o homem” (STRAUSS, 2006, p. 42). O estado natural é definido pela antecipação do

ataque do homem ao outro, o que originará a guerra de todos contra todos.

Pois, se o apetite natural do homem é a vaidade, isto significa que por

natureza o homem se esforça para superar a todos seus companheiros e ver

sua superioridade reconhecida por todos os outros, de modo de encontrar

prazer em si mesmo; assim, deseja naturalmente que o mundo em seu

conjunto lhe tema e obedeça (STRAUSS, 2006, p. 42).

3 Cf. LEVIATÃ, I, XIV, p. 78.

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Neste estado os homens gozam de liberdade absoluta, porém, de proporção egoísta,

tornando a vida humana frágil e suscetível de ataques arrebatadores. Raciocinando e fazendo

uso da linguagem, os homens chegam à conclusão de que a liberdade absoluta não é nada se

comparada à incerteza do viver. Para solucionar esta questão, a liberdade ganha limites e a

vida e a paz passam a ser asseguradas pelo Estado civil. Do surgimento do Estado civil nasce

a lei positiva e essa só é possível pela conciliação da liberdade com a necessidade. Portanto, a

liberdade dos súditos consiste em abdicar da própria liberdade absoluta em troca da paz e da

segurança e agir conforme a intenção da lei.

No terceiro capítulo, que tem como título “Os efeitos da concepção de liberdade na

relação entre o estado de natureza e o estado civil em Thomas Hobbes”, percebemos que

para entendermos a noção de liberdade de Hobbes, precisamos compreender a cisão

estabelecida entre a concepção de liberdade tradicional (como uma realidade ontológica e

metafísica) e a sua maneira de pensar a liberdade, que é materialista e mecanicista.

Materialista porque tudo o que se apresenta aos sentidos do homem, inclusive o próprio

homem, não passa de matéria ponderável e apreensível à mente humana. A noção mecânica

decorre da própria composição do movimento da matéria, isto é, delineada por movimentos

exatos e precisos assim como o produto matemático. Este entendimento de Hobbes acerca da

natureza humana é legado da ciência nascente que, sobretudo com Galileu Galilei, segue duas

diretrizes: a primeira afirma que todo homem tende a buscar somente o que lhe traz benefício

e a segunda assegura que todo homem deve fazer todo o esforço possível e necessário para

evitar a morte violenta.

A liberdade em Hobbes ao mesmo tempo em que está no rol de um tema inquietante,

também é de uma complexidade imensa. Se por um lado constatamos que “a liberdade dos

súditos está apenas naquelas coisas que, ao regular suas ações, o soberano permitiu [...]. Não

devemos todavia concluir que com essa liberdade fica abolido ou limitado o poder soberano

da vida e de morte” (LEVIATÃ, II, XXI, p. 131), por outro lado visualizamos que “em todas

as espécies de ações não previstas pelas leis os homens têm a liberdade de fazer o que a razão

de cada um sugerir favorável a seu interesse” (LEVIATÃ, II, XXI, p. 130). Eis um grande

problema conceitual em Hobbes, de sorte que os súditos são livres para agirem tanto em

consonância à lei bem como no seu silêncio. Este problema pode ser resolvido se bem

analisado, de sorte que “todo súdito tem liberdade em todas aquelas coisas cujo direito não

pode ser transferido por um pacto” (LEVIATÃ, II, XXI, p. 131), ou seja, o súdito é livre

quando age de acordo com a lei, pois a lei nada mais é do que conseqüência de uma

convenção de vontades e direitos particulares e, da mesma forma, o súdito é livre porque

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“ninguém fica obrigado pelas próprias palavras a matar-se a si mesmo ou a outrem”

(LEVIATÃ, II, XXI, p. 133). Esta visível contradição se esclarece quando Hobbes afirma que

“portanto, quando nossa recusa de obedecer prejudica o fim em vista do qual foi criado, não

há liberdade de recusar; mas caso contrário há essa liberdade” (LEVIATÃ, II, XXI, p. 133).

Portanto, a ação livre do homem não está limitada à lei, pois, desde que a finalidade pela qual

a lei civil foi criada não esteja sido cumprida (preservação da vida), o homem pode e deve

encontrar meios para retornar à situação natural e fazer a sua própria defesa.

Não podemos nos esquecer que a natureza fez os homens iguais em liberdade e

direitos, contudo, no anseio de manter o movimento vital a situação bélica se instaura de

forma acentuada. Entre perder a liberdade ilimitada e a própria vida, o homem opta por viver

com uma liberdade limitada, a fim de que a vida e a paz sejam mantidas. “Por outro lado, o

consentimento de um súdito ao poder soberano está contido nas palavras eu autorizo, ou

assumo como minhas, todas as suas ações, nas quais não há qualquer espécie de restrição a

sua antiga liberdade natural” (LEVIATÃ, II, XXI, p. 133). Fica evidenciado que o homem

pode negar-se a cumprir a ordem proveniente do soberano, usufruindo novamente da

liberdade ilimitada, a qualquer momento, basta que a finalidade pela qual a soberania foi

instaurada não esteja sendo cumprida4. Por fim, da mesma maneira que a liberdade do súdito

está sendo mantida, também a liberdade do Estado estará ocorrendo, porquanto “se um

monarca renunciar à soberania, tanto para si mesmo como para seus herdeiros, os súditos

voltam à absoluta liberdade da natureza” (LEVIATÃ, II, XXI, p. 135).

Esta nova concepção de liberdade apresentada por Hobbes tem origem no contexto

histórico e científico que ele viveu. Tal maneira de pensar a filosofia e a política lhe rendeu

vários olhares desconfiados, principalmente por parte dos estudiosos eclesiásticos5. Mas não

foi só isso. A nova interpretação mecânica de liberdade também trouxe problemas intelectuais

para o autor do Leviatã resolver. Como, por exemplo, a interpretação de que o livre-arbítrio

não passa de um exagero lingüístico, pois a vontade não é um corpo em movimento e se não

está em movimento também não pode ser paralisada, fugindo, assim, da definição de

4 Cf. LEVIATÃ, II, XXI, p. 133.

5 “Hobbes pretendia claramente que o Leviatã ofendesse sensibilidades contemporâneas, anglicanas em

particular; chegou a acrescentar uma “Revisão e conclusão” na qual alinhava explicitamente seu livro com a

recente literatura dos panfletos que defendia na Inglaterra o novo regime com base no fato de sua posse real do

poder. Por que, então, Hobbes o escreveu? A explicação de Payne era a de que ele tinha sido ofendido de alguma

maneira pelo clero anglicano reunido na corte no exílio em Paris, e pode ter havido alguma coisa dessa natureza.

Hobbes parece ter sido para o clero uma fonte constante de irritação. Essa irritação encontrou expressão

relativamente honrada numa controvérsia entre Hobbes e o bispo John Bramhall, em 1645, acerca do livre-

arbítrio e do determinismo, mas pode ter tido um lado menos honrado – Hobbes parece ter pensado que as

maquinações do clero o tinham impedido de receber o pagamento integral por seu trabalho de tutor do príncipe”

(TUCK, 2001, p. 46-47).

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liberdade corpórea de Hobbes. Apontar a existência do livre-arbítrio é a mesma coisa que

afirmar a existência de um ‘eu’ separado do meu ‘eu’. Como se eu fosse a soma de dois “eu”,

um que decide – livre-arbítrio (que geralmente tem esta conotação, ou seja, a categoria da

liberdade responsável por deliberar sobre a ação a ser tomada ou não) – e outro que acata a

decisão – o ‘eu mesmo’. Lembrando que a decisão tomada pelo homem, seja ela boa ou ruim,

trará conseqüência somente àquele que a deliberou e a efetivou e, principalmente se for

negativa (pecaminosa), a tendência é não culpar Deus como responsável. Isso tudo para livrar

Deus da culpa de ter causado o pecado original para a humanidade.

Outro problema decorrente do conceito de liberdade de Hobbes é a compatibilidade

que a liberdade tem com a necessidade, dado que as ações humanas derivam de alguma causa

externa a eles, de alguma causa necessária à preservação de sua vida6. Assim como o homem

é livre para se mover sem nenhum obstáculo externo a sua ação, ele também, voluntariamente,

pratica aquilo que o seu desejo e inclinação apontam para fazer. O desejo e a inclinação do

homem são despertados por objetos externos ao homem, de maneira que tal ‘despertar’ do

desejo humano nada mais é do que a própria necessidade que o homem tem para continuar

seu movimento vital. A liberdade e a necessidade são compatíveis na medida em que a

liberdade é necessária ao homem a fim de que ele se movimente no sentido de conquistar ou

refutar coisas da natureza para se preservar. O filósofo de Malmesbury faz uma comparação

entre as águas que correm livremente com a ação voluntária dos homens, justamente para que

possamos compreender esta correlação que existe entre a liberdade e a necessidade, tanto nos

elementos da natureza bem como no próprio homem.

Diante disso, entendemos porque a passagem do estado natural ao estado civil ainda

hoje é elemento de muita investigação para quem pretende entender a concepção de liberdade

em Hobbes, já que no estado natural o homem é totalmente livre, mas a sua vida fica inviável,

sem condição de manter o movimento do seu corpo. A única alternativa encontrada por todos

os homens é o pacto que visa proteger a vida e a paz de todos. Portanto, o Estado civil surge

como alternativa artificial dos homens, embasado em leis e normas, para a autopreservação.

Neste estado, a incumbência de manter o movimento vital é transferida ao representante desta

entidade, sob o pretexto de verdadeiramente garantir as possibilidades necessárias para a vida

e a paz. Os homens aceitam privar-se de sua liberdade ilimitada em vista da continuidade e

segurança das suas vidas e para desfrutar dos prazeres obtidos com o trabalho. Contudo, a lei

é sempre coativa, porque ela é garantida pelo poder da espada. A força coercitiva se configura

6 Cf. LEVIATÃ, II, XXI, p. 130.

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em um elemento externo à vontade do homem, limitando, assim, a liberdade humana.

Contudo, como pretendemos mostrar, limitar a liberdade é algo necessário para que o homem

continue ou tenha mais esperança de viver.

A guerra surge como um subterfúgio para se alcançar a preservação do movimento

vital. Por isso, é também em virtude do desejo de conforto e esperança de uma boa vida,

através do trabalho, que o homem tende à paz. Assim surgiram as leis, as normas

estabelecidas para chegar-se a esse fim. Os homens renunciam aos seus direitos em troca de

estabilidade e boas condições de vida e, uma vez feita essa troca, em forma de pacto,

encontram-se suscetíveis às leis estabelecidas pelo soberano. Voltar ao estado e à condição

natural em que primeiramente se encontravam, é uma questão de insatisfação com o

cumprimento do preestabelecido durante o pacto, ou seja, caso o Leviatã não esteja atingindo

a sua finalidade: a vida confortável e em paz7. “A nutrição de um Estado consiste na

abundância e na distribuição dos materiais necessários à vida; em seu acondicionamento e

preparação e, uma vez acondicionados, em sua entrega para uso público, através de canais

adequados” (LEVIATÃ, II, XXIV, p. 150). Assim sendo, em um Estado instaurado pelos

súditos não se disporá a renunciar a todas as regalias previstas por ele e voltar a um estado

primitivo de vida repleto de inseguranças. O Estado não é certeza absoluta de segurança à

vida e à paz, contudo, é o meio racional mais viável e mais seguro aos homens.

A fim de estabelecerem-se a paz e a segurança, Thomas Hobbes diz que os homens

devem, absoluta e simultaneamente, renunciar ao direito de natureza (uso individual e privado

da força) e transferi-lo a alguém externo ao pacto. Destaca-se, porém, que esse “alguém” não

poderia ser um corpo humano, já que todos desta espécie são vinculados ao pacto. O meio

encontrado para concentrar esse poder centralizado foi o estabelecimento do Estado político,

cujos interesses são defendidos pelo soberano. O Estado político ou Leviatã é considerado um

corpo artificial que, a partir do momento de sua criação, tem vontade e autoridade próprias

para desempenhar função, cobrar por elas, fazer leis etc. Portanto, todos os seus atos

constituem, necessariamente, a supremacia dentro do Estado. O soberano não só é o detentor

do poder, como é o próprio poder. E como são os homens que instituem o Leviatã, ser

contrário à vontade soberano é a mesma coisa que se opor a si mesmo.

Por ser externo ao pacto, o soberano possui poder ilimitado e não contrai, portanto,

obrigações. Concentra todas as forças a que renunciaram os homens. Mediante isso, podem-se

destacar os direitos do soberano: feito um pacto, qualquer fato ou contrato anterior que o

7 “Portanto, quando nossa recusa de obedecer prejudica o fim em vista do qual foi criada a soberania, não há

liberdade de recusar; mas caso contrário há essa liberdade” (LEVIATÃ, II, XXI, p. 133).

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contrarie deve ser suprimido; nenhum súdito pode libertar-se da sujeição ao soberano – o

soberano é a vontade geral do início ao fim e renunciar a ele seria uma contradição; se a

maioria, por voto de consentimento, escolher um soberano, os que tiverem discordado devem

passar a consentir juntamente com os restantes; nada que o soberano faça pode ser

considerado injurioso contra qualquer um de seus súditos; aquele que detém o poder soberano

não pode ser punido por seus súditos; compete à soberania ser juiz de quais as opiniões e

doutrinas que são contrárias à paz, e quais as que lhe são propícias; pertence à soberania do

poder a prescrição de regras de propriedade; a autoridade judicial; direito de fazer guerra e

paz com outras nações e Estados; escolher os conselheiros, ministros, magistrados e

funcionários, tanto na paz como na guerra; e direito de recompensar com riquezas e honras, e

o de punir com castigos corporais ou pecuniários, ou com a ignomínia, a qualquer súdito, de

acordo com a lei que previamente estabeleceu8.

A verdadeira liberdade dos súditos está tanto em agir no silêncio da lei bem como no

agir consoante àquilo que a lei prevê. De maneira que:

Sem levar mais em consideração as limitações factuais do agir humano,

resultantes da constituição física de cada indivíduo, os limites da obediência

civil coincidem, na obra-prima do teórico político inglês, com os limites de

um contrato cuja racionalidade obedece à imaginação que move

imperceptivelmente os atos voluntários do indivíduo (HECK, 2002, p. 544).

No mesmo sentido, Heck continua:

À luz dessa teoria do surgimento das ações humanas, a verdadeira liberdade

do súdito faz com que a promessa de não resistir à força fique sem efeito.

“Um pacto, assegura Hobbes lapidarmente, “em que eu me comprometa a

não me defender da força pela força é sempre nulo” (2002, p. 544).

O pactuante é obrigado a cumprir a ordem do pacto somente se a finalidade pela qual

ele tenha sido instaurado esteja sendo cumprido, a saber, a preservação da vida. Nenhum

homem é obrigado a se mutilar ou a se matar por ordem expressa do soberano, por mais que

ele tenha quebrado qualquer espécie de lei civil. A preservação da vida sempre está em

primeiro lugar. Para defendê-la o homem pode “reassumir” a sua liberdade natural e lutar com

toda a sua força e empenho pela sua preservação. O ato de não aceitar a lei do soberano e se

ferir está na mesma dimensão interpretativa do suicídio, ou seja, ambos os casos são

desautorizados pelo autor do Leviatã e compreendidos como um desvio de comportamento

mental sadio. A teoria do movimento vital de Hobbes é categórica no que tange à preservação

da vida em todos os sentidos e circunstâncias. “Pois, natural e necessariamente, a intenção de

8 Cf. LEVIATÃ, II, XXVI.

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um homem visa alguma coisa que é boa para si mesmo e tende a preservá-la. E, portanto,

creio eu, se ele se mata, deve-se supor que não está compos mentis (mentalmente sadio), mas

fora de si por algum tormento interior ou pelo terror de algo pior do que a morte” (HECK,

2002, p. 544). Conforme Heck, supondo a teoria do movimento vital de Hobbes, “o suicida

teria por natureza que agir necessariamente de outra maneira, vale dizer, o suicídio não

invalida a teoria do movimento vital” (2002, p. 544). Frente essa interpretação, concluímos

que o súdito é livre para agir conforme a lei e igualmente no silêncio dela. Assim sendo,

“avaliada com as premissas de sua obra-prima, resta à teoria do movimento vital assumir tanto

conduta daqueles que evitam a morte violenta como naturalmente correta, quanto o

comportamento de quem a provoca como naturalmente incorreta” (HECK, 2002, p. 544). E

como a vida não é pactuada, o homem pode negar-se a obedecer à lei e novamente ser o

responsável por sua defesa. Portanto, a verdadeira liberdade do súdito está em se proteger dos

elementos externos que possam prejudicam à sua ação livre e, principalmente, a vida. O

homem pode agir assim tanto no estado natural bem como no estado civil, justificando-se

assim o agir livre conforme a lei e no silêncio da lei.

Diante dos pontos mencionados acima, chega-se à conclusão da infinidade de

vantagens (em relação às desvantagens do estado natural) da vida em sociedade. Renunciar a

essa convivência pacífica com os outros corpos seria como renunciar à liberdade e segurança,

asseguradas pela lei, e voltar a um mundo primitivo em que o nascer de um novo dia constitui

sempre um novo e inesperado desafio. É frente a este esquema de conflitos naturais e saídas

artificiais que se compreende o motivo pelo qual os homens optam por limitar sua liberdade

natural e a viver conforme um esquema de liberdade limitada por leis, regras e normas. “O

fim último, causa final e desígnio dos homens (que amam naturalmente a liberdade e o

domínio sobre os outros), ao introduzir aquela restrição sobre si mesmos sob a qual o vemos

viver nos Estados, é o cuidado com sua própria conservação e com uma vida mais satisfeita”

(LEVIATÃ, II, XVII, p. 103). A preservação da vida e a esperança de uma vida em paz

bastam para responder esta intrigante questão.

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1 A FÍSICA HOBBESIANA

A análise do termo ‘física’ remete ao significado de ciência que tem como objeto o

estudo dos corpos, suas leis e suas propriedades. E é justamente com esta fundamentação que

estamos pensando a física de Thomas Hobbes, ou seja, o conhecimento que se ocupa de

investigar o estatuto dos corpos em movimento, seja o humano ou o Estado civil. Hobbes

torna a concepção física extremamente presente e importante à sua obra; um elemento

maximizado de seu pensamento, inserindo-o tanto na compreensão do homem como na do

Estado. Tudo é corpo e movimento, melhor do que isso, corpo em movimento. Para dar

respaldo à importância do movimento à sua maneira de pensar, Hobbes associa a própria

existência do corpo ao movimento, a tal ponto de só conseguirmos perceber um determinado

corpo quando este estiver em movimento.

Podemos dizer que dois elementos foram primordiais e definitivos à construção desta

postura intelectual de Thomas Hobbes, e isso se estende e pode ser averiguado em todas as

suas produções, são elas: “espanto com as verdades a priori da geometria de Euclides e a

física de Galileu” (BERNARDES, 2002, p. 12). Não temos como pretensão investigar a

geometria de Euclides senão apenas a demonstração e a análise teórica do surgimento da

ciência do século XVII com Galileu Galilei e o seu posterior legado à filosofia política de

Thomas Hobbes, pontualmente no que concerne à compreensão do conceito de liberdade

vinculado ao movimento9. É o movimento que instiga o homem a agir de forma totalmente

livre, no estado natural, seja para manter a sua vida, seja para buscar o objeto desejado ou

para se esquivar dele. Da mesma forma, é a vontade de se manter em movimento que leva o

homem a deixar o estado natural, limitando sua liberdade, e a pactuar com os outros homens e

instaurar o Estado civil.

9 Quando falamos em movimento dentro da concepção de Galileu, não há como descartar a teoria de Aristóteles

e a de Newton, afim de que um paralelo seja feito e uma posição seja tomada. Para Aristóteles todos os corpos

celestes possuem almas e movem-se no sentido de uma última e imutável divindade, aquela que move todos os

corpos e que não é movida por ninguém. Foi com Galileu que o estudo acerca do movimento ganhou

rigorosidade, pois introduziu o método experimental. Por meio do método experimental, formulam-se hipóteses,

as quais estão sujeitas à experimentação e, a partir daí, à observação e à análise cuidadosa. Por influência de

Galileu, Newton traçou algumas linhas gerais sobre a teoria do movimento. Primeira, também conhecida como

Lei da Inércia, enuncia que: "Todo corpo continua no estado de repouso ou de movimento retilíneo uniforme, a

menos que seja obrigado a mudá-lo por forças a ele aplicadas”. Segunda, também conhecida como Lei

Fundamental da Dinâmica, enuncia que: "A resultante das forças que agem num corpo é igual à variação da

quantidade de movimento em relação ao tempo". Terceira, também conhecida como Lei de Ação-Reação,

enuncia que: "Se um corpo A aplicar uma força sobre um corpo B, receberá deste uma força de mesma

intensidade, mesma direção e sentido oposto à força que aplicou em B". (Artigo encontrado em:

http://universitariodefisica.blogspot.com/2011/04/definicao-de-movimento-por-aristoteles.html). Acesso em 26

de dezembro de 2011. Vamos continuar a pesquisa com a teoria do movimento de Galileu, justamente por crer

no valor da experimentação e não da rigorosidade científica.

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O estatuto do conhecimento humano para o mundo moderno, mundo que Hobbes está

inserido como um dos protagonistas, é construído a partir da ciência natural. As bases de um

novo arquétipo epistêmico são decorrências de um entendimento da natureza infinita e

inteligível àqueles que procuram entendê-la a partir dos signos das manifestações

matemáticas. Essa novidade, capaz de mostrar a natureza dos corpos de maneira diversa da

tradição, suscita, em muitos pensadores e entre eles Thomas Hobbes, uma busca incessante

por um método que permita o encontro do homem com a verdade dos corpos. A física-

matemática nascente, com sua nova compreensão sobre o movimento, é o solo sobre o qual

Hobbes constitui sua filosofia. Contudo, a época de Hobbes não merece totalmente o mérito

de despertar o homem para a linguagem matemática, de maneira que Euclides, na antigüidade,

é quem primeiro ‘abre os olhos’ para o encadeamento lógico das descobertas, postulados e

axiomas matemáticos. Com Hobbes a discussão ganhou reconhecimento e consistência

justamente pelo posicionamento contrário à cosmofísica aristotélica e neo-aristotélica

(escolástica). Não apenas Hobbes, mas a maioria dos pensadores desta época passa em revista

o conhecimento e a capacidade do homem de conhecer os corpos10

.

Otimista em relação à ciência que está se levantando, Hobbes combate a física, a

filosofia e a metafísica tradicionais, submetendo-as à nova condição do saber, conseqüência

da revolução científica moderna. A postura de Hobbes é de crédito total à ciência do século

XVII, por esta razão, é inquestionável sua tentativa de aproximar a filosofia de um caráter

científico, a tal ponto de crer que filosofia é ciência, e ciência é o conhecimento dos efeitos

dos acidentes dos corpos, isto é, das relações de causa e efeito, seja nos corpos naturais, seja

nos corpos políticos que estão em constante movimento. Essa assimilação da ciência nascente

como promissora desperta em Hobbes a necessidade imediata do estabelecimento de um

10

Nesta época surgem homens como Nicolau Copérnico (1453-1543), Galileu Galilei (1564-1642), René

Descartes (1596-1650) dentre outros, que postulam os novos moldes da ciência que ainda ‘geme em dores de

parto’. Graças a esta gama de pensadores, que tem por objetivo a inovação do pensamento científico, a ciência se

enquadra em parâmetros matemáticos e essencialmente físicos. Os valores morais, políticos e, sobretudo,

religiosos são agitados demasiadamente. Na Igreja, centro do poder nesta época, acontece a Reforma como uma

tentativa interna de reconstrução da Igreja e denúncia dos abusos por parte do clero. Neste sentido, “num mundo

fragmentado, sem um centro de referência, o pensamento ocidental agarra-se na razão como o último refúgio.

Nascem a filosofia e a ciência modernas. Doravante a razão será o único centro e assume a função de reordenar o

mundo” (ZILLES, 2006, p. 126). Podemos dizer que o modelo do racionalismo que está surgindo é o

matemático, isto é, a busca da exatidão e da perfeição que somente a matemática pode auferir. Esta busca traçada

com o método matemático se embasa na tentativa de evitar erros. Como a obra Discurso do método, René

Descartes instaura de uma vez a incansável busca de um método ideal, capaz de evitar erros grotescos, pois “a

razão perdeu todo o apoio fora de si mesma. Por isso esta precisa criar um método seguro para si mesma para

ordenar o mundo. Ela é sujeito, o fundamento do mundo transformado em objeto” (ZILLES, 2006, p. 127). A

partir daqui poderemos falar de sujeito e objeto do conhecimento. Ora, se por um lado existe uma corrente de

pensadores que afirma ser a especulação matemática fonte de todo conhecimento, por outro lado existe o viés

responsável por acentuar em demasia a observação dos dados puramente empíricos. Assim sendo, de um lado

temos o racionalismo e de outro o empirismo. Hobbes se posiciona entre ambos.

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método seguro. O pensador político inglês acredita que, somente embasado em um novo

método, a filosofia pode se tornar um raciocínio seguro e se caracterizar como uma ciência

prática que investiga o que a vida humana necessita para sua perpetuação e conforto11

.

1.1 O MOVIMENTO: LEGADO DA CIÊNCIA NASCENTE AO PENSAMENTO DE

THOMAS HOBBES

Ainda quando professor da Universidade Italiana de Pádua, Galileu Galilei12

(1564-

1642) teve conhecimento de que na Holanda havia sido inventado um instrumento que iria dar

novas diretrizes à ciência, a saber, o telescópio. A arquitetura deste engenhoso instrumento de

observação universal remonta ao ano 1609. Instigado por sua curiosidade científica,

imediatamente Galileu procurou maiores informações sobre o poder de alcance do telescópio.

“A partir de então pôs-se a aperfeiçoar o instrumento; duplicou sua capacidade de aumento e

começou a fazer observações astronômicas” (GALILEU, 2004, p. 05)13

. Um ano depois da

sua investigação astronômica ter iniciado, Galileu publicou um livro chamado “O Mensageiro

Celeste”. Esta obra apresenta aspectos de como realmente a superfície lunar é constituída, a

existência de inúmeras estrelas que eram desconhecidas pelos homens e, por fim, a presença

de quatro satélites na orla de Júpiter. Tempos depois, Galileu descobriu as fases do planeta

Vênus, as formas de Saturno e as manchas solares14

.

11

“La teoría hobbesiana intenta ofrecer una respuesta a un problema acuciante de la época: cómo construir la

unidad del Estado. Los enfrentamientos entre distintos grupos religiosos y las discrepâncias entre la Corona y el

Parlamento provocan el la Inglaterra del siglo XVII la disolución de la autoridad gubernamental, que trae como

consecuencia una sangrienta guerra civil [...]. Es indudable que Hobbes no sólo está interessado em realizar una

demostración teórica, científica, acerca de cómo debe ser el Estado para que sea posible una vida “civilizada” y

pacífica. También le preocupa una cuestión práctica, la de persuadir a sus contemporâneos para que sean

“racionales” y busquen un acuerdo que termine con la guerra, a la que considera el peor mal social” (COSTA,

1997, p. 35). 12

“Galileo no nació copernicano. Ni siquera fue educado en el copernicanismo como Kepler. Tuvo que llegar a

él, y no sabemos cuáles fueron sus pasos. Aunque sus primeras declaraciones de adhesión al copernicanismo son

explícitas, no aclaran en absoluto su proceso. Se trata de dos cartas de 1597. En la primera, a Jacopo Mazzoni, le

dice que la opinión de Copérnico respecto al movimiento y colocación de la Tierra, le parece ‘bastante más

probable que la outra de Aristóteles y Ptolomeo’ pero que no va a decirle lo que se le ha ocurrido en su defensa.

En la segunda, dirigida a Kepler, le agradece que le haya enviada un ejemplar de El secreto del universo, que se

alegra de saber que es copernicano” (Introdução à obra de Galileu Galilei: Diálogos sobre los máximos

sistemas del mundo ptolemaico y copernicano. Tradução de Antonio Beltrán Marí. Madrid: Alianza Editorial,

1994. p. XXXI). 13

Esta citação não é do próprio Galileu Galilei, mas está contida no prólogo da obra do autor, intitulada “O

ensaiador”. O prólogo foi escrito por José Américo Motta Pessanha. 14

“A descoberta das manchas solares foi criticada violentamente pelos teólogos, que viam na tese de Galileu

uma destruição da perfeição do céu e uma negação dos textos bíblicos. Galileu escreveu, então, uma carta para

seu aluno Benedetto Castelli, afirmando que as passagens bíblicas não possuíam qualquer autoridade no que diz

respeito a controvérsias de cunho científico; a linguagem da Bíblia deveria ser interpretada à luz dos

conhecimentos da ciência natural. A carta começou a circular em inúmeras cópias manuscritas e a oposição ao

autor cresceu progressivamente. As autoridades, contudo, limitavam-se a instruí-lo para que não defendesse mais

as idéias copernicanas do movimento da Terra e estabilidade do Sol, por serem contrárias às Sagradas Escrituras.

Durante alguns anos Galileu permaneceu em silencio. Mas, em 1623, depois de polemizar com um jesuíta sobre

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Todas essas descobertas de Galileu configuraram o panorama da inovação científica

da sua época, isso porque a filosofia da natureza era definida pelos teólogos da Igreja,

embasada na física e na astronomia aristotélica. Enquanto os cientistas de envergadura

aristotélica explicavam os fenômenos por meio da pura especulação, Galileu passou a

observar e a explicar os fenômenos tais como ocorrem e não como a pura especulação é capaz

de explicar15

.

A oposição de Galileu ao espírito teológico e metafísico da sua época começou em

tenra idade. Em 1584 abandonou o curso de medicina para se dedicar exclusivamente ao

estudo da matemática. Quatro anos mais tarde passou a lecionar a disciplina na Universidade

de Pádua. Foi nesta época que fez as primeiras investigações no campo da física, sobretudo na

mecânica, tentando descrever os fenômenos com linguagem essencialmente matemática.

Pontualmente neste período Galileu suscitou a oposição dos que faziam a ciência oficial,

representada por seguidores de Aristóteles16

. Estes discordavam da aplicação da matemática

aos domínios da física para explicar os fenômenos naturais. Para Pessanha, “essa nova

orientação metodológica seria a maior contribuição de Galileu à história das idéias”

(GALILEU, 2004, p. 06).

Ao apresentar para o mundo as leis fundamentais do movimento dos corpos, Galileu

tornou-se o criador da física moderna17

. Além desta grande contribuição à ciência, o professor

a natureza dos cometas, voltou a ridicularizar as teorias aristotélicas no livro O Ensaiador e começa a redigir o

Diálogo sobre os Dois Maiores Sistemas. Neste livro confronta as idéias de Ptolomeu – segundo a qual a Terra

seria estática e o Sol giraria em torno dela – e de Copérnico, que afirmava exatamente o contrário. Porque

nenhum editor desejava correr maiores riscos, a obra só seria publicada em 1632. Foi quando o perigo se

declarou: em outubro do mesmo ano, o autor foi convocado para enfrentar um tribunal do Santo Ofício”

(GALILEU, 2004, p. 06-07). 15

A explicação dos fenômenos, tais como ocorrem, é o elemento fundamentalmente inovador no sistema

científico de Galileu. Adjacente a este elemento, o professor de Pádua somou a experimentação e a matemática,

justamente por crer que esta é a verdadeira linguagem da natureza. 16

“Em 1604, Galileu elabora a lei da queda livre dos corpos, fundamental para todo o desenvolvimento posterior

da mecânica racional. Seis anos depois, começa a fazer observações astronômicas, passando a trabalhar em

Florença, junto a Cosimo II de Médici. Em 1612, publica o Discurso sobre as Coisas que Estão sobre a Água,

no qual ridiculariza a teoria aristotélica dos quatro elementos sublunares do éter, suposto componente único dos

corpos celestes e responsável por sua “perfeição”. Ao mesmo tempo adota o atomismo de Demócrito na

explicação do universo físico. Mais uma manifestação antiaristotélica viria, em 1613, na História e

Demonstração sobre as Manchas Solares, onde apóia a teoria de Copérnico e mostra o erro da concepção

segundo a qual o Sol, como os demais astros, seria um corpo composto de um único elemento, o éter”

(GALILEU, 2004, p. 06). 17

O método científico de Galileu segue alguns passos que são, ainda hoje, fundamentais para a ciência. O

primeiro passo do método é a própria observação dos fenômenos, tais como ocorrem, sem interferência alguma

de pressupostos filosóficos, teológicos ou científicos. Os fenômenos devem ser analisados enquanto fenômenos

mesmos, livres de possíveis interferências que tendam a forjar a interpretação. O segundo passo do método

consiste na experimentação do fenômeno, cuja cientificidade não pode prescindir da verificação das

circunstâncias que norteiam determinado fenômeno. O terceiro e último passo da metodologia de Galileu aponta

que o correto conhecimento dos fenômenos da natureza é visível na sua regularidade matemática. “Formulando

esses princípios, Galileu estruturou todo o conhecimento científico da natureza e abalou os alicerces que

fundamentavam a concepção medieval do mundo” (GALILEU, 2004, p. 08).

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da Universidade de Pádua foi um dos maiores astrônomos de sua época bem como um dos

propedeutas na observação telescópica. Essas descobertas caracterizaram uma nova forma de

abordagem dos fenômenos da natureza e nisso residiu sua importância dentro da história da

filosofia, a tal ponto de Thomas Hobbes servir-se de tais parâmetros para sua análise

filosófica política. Diante deste quadro teórico, Pessanha afirma: “no campo das idéias

filosóficas, Galileu é mais importante pelas contribuições que fez ao método científico do que

propriamente pelas revelações físicas e astronômicas encontradas em suas obras” (2004, p.

07). Galileu indicou que o mundo não é constituído por duas partes, uma superior (céu) e

outra inferior (terra), mas que ambas devem ser consideradas originárias da mesma natureza e

tratadas de modo idêntico. Com estas reformulações no método científico, Galileu almejou

findar o finalismo aristotélico e escolástico18

, segundo o qual tudo o que existe tem uma

função a ser cumprida, a mando de alguma entidade superior. Com isso, Galileu

Mostrou que a natureza é fundamentalmente um conjunto de fenômenos

mecânicos, tal como afirmara Demócrito na Antiguidade e, mais do que isso,

assoalhou que o livro da natureza está escrito em caracteres matemáticos e

que, sem um conhecimento dos mesmos, os homens não poderão

compreendê-los (2004, p. 09).

Por estes motivos, em fins do século XVI até meados do século XVII, Galileu Galilei

deu à ciência novo molde e caracterização diversa. O novo processo científico, adotado por

Galileu, surgiu na tentativa de legitimar o sistema copernicano19

do universo, que tinha por

base estudar matematicamente os movimentos dos corpos físicos. Em decorrência disso,

houve um brusco rompimento com a cosmofísica tradicional20

e a ênfase focou-se na relação

de causa e efeito dos corpos físicos.

18

No tempo de Galileu, a autoridade católica, baseada na tradição aristotélica, se expandia claramente do campo

da teologia à cultura em geral e da filosofia à ciência particular. "Isso significa que poderiam ser considerados

‘erros’ e poderia facilmente tornar-se ‘heresias’, o qual, naturalmente, poderia ter tido consequências fatais"

(GALILEU, 1994, p. XXV). Foi neste cenário que surgiu o gérmen do ódio que resultou na grande aversão

professada por alguns jesuítas com relação a Galileu e à sua nova teoria. 19

“Os séculos XV e XVI ergueram-se com Nicolau Copérnico (1473-1543) contrapondo-se à teoria geocêntrica

aristotélico-ptolomaica, fato que será decisivo para a ciência e para a filosofia posteriores. Estabelece-se uma

tendência racional sensualista e anti-espiritualista. Ora, a terra é retirada de sua posição privilegiada de centro do

universo e a partir de então o próprio homem exige mais de si mesmo em termos de conhecimento. A razão

unida à experimentação cobra o desapego ao testemunho da crença mítico-religiosa. A evidência opõe-se à

mentalidade religiosa tradicional e a antiga concepção de mundo perde a validade de outrora. Doravante, a terra

será um planeta que gira em torno do seu eixo e em volta do sol. Com esta teoria Copérnico acaba por mudar

também o lugar do homem no cosmos. Isto significa dizer que a revolução astronômica implicou também numa

revolução filosófica” (Maria Eliane R. de Souza, http://professor.ucg.br). 20

“Copérnico abogava en favor dele status de la Tierra como planeta apelando a argumentos tomados de la parte

matemática de la astronomia. Al hacerlo así, desprezaba el peso de la evidencia para ele status de la Tierra

planetária a la disciplina inferior de la geometría, violando por tanto la tradicional jerarquía de las disciplinas. Si

algo puede ser llamado revolucionario en el trabajo de Copérnico es este modo de argumentar – este modo de

desafiar la proposición central de la física aristotélica” (GALILEU, 1994, p. XXVII).

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25

Com Galileu, a ordem matemática já presente em Copérnico21

, se junta a um novo

método e a ciência se inova. A ciência é projetada a partir da natureza e não passa de um

simples sistema ordenado com procedimentos regulares e necessários. Agindo por meio de

leis preestabelecidas e jamais infringidas, os fenômenos naturais acontecem sem se

importarem se são compreensíveis ou não ao homem. Desse modo, o universo está totalmente

submisso à nova maneira científica, com embasamento matemático, como espólio de Galileu.

Diante disso, Galileu assevera:

Com este fim tomei na argumentação o partido da teoria copernicana,

considerando-a como pura hipótese matemática, tratando por qualquer meio

artificial de apresentá-la como superior à tese da quietude da Terra, não

absolutamente mas dependendo da forma como é defendida por alguns que,

peripatéticos de profissão, o são só de nome, conformando-se, sem

caminhar, com culto às sombras, filosofando não a partir da própria

capacidade de reflexão, mas apenas com a recordação de quatro princípios

mal entendidos (1994, p. 05-06).22

Esta revolução científica, operada por Galileu e com base copernicana, revela uma

nova estrutura metodológica para o século XVII, na qual Hobbes estava inserido e se

apropria. A firme crença na estrutura matemática do universo leva os pensadores a buscarem

na natureza o fundamento da ciência. Nasceu, assim, um racionalismo e um empirismo que

coagiu o mundo científico a se expedir do senso comum e da autoridade empírica tradicional.

Contudo, a produção intelectual de Hobbes não foi uma síntese de seu encontro com Galileu,

Bacon ou com o Padre Mersenne. Thomas é original quanto à sua forma de fazer filosofia,

pois soube assimilar e filtrar o excesso, ficando apenas com o suficiente para inovar o olhar

científico-filosófico acerca do homem e do Estado23

.

21

Interessante notar que até 1630, houve na história poucos astrônomos copernicanos. Giordano Bruno foi um

destes. Com um copernicanismo mágico e naturalista, Bruno defendeu uma linha copernicana metafísica e

religiosa. "Bruno escreve audazmente o heliocentrismo copernicano em um universo infinito, mas critica esse

‘brincar com a geometria’ que, na sua opinião, constitui uma grande limitação de Copérnico’” (GALILEU, 1994,

p. XXVI). Galileu se sente muito distante desta linha apologética de Bruno, pois, consoante a Galileu, “o

matematismo não se remonta às alturas místicas, mas leva a estrutura do nosso mundo que, na sua construção de

uma nova física, a investiga experimentalmente” (GALILEU, 1994, p. XXVI). 22

“Con este fin he tomado en la argumentación el partido de la teoría copernicana, considerándola como pura

hipótesis matemática, tratando por cualquier médio artificioso de presentarla como superior a la tesis de la

quietud de la Tierra, no absolutamente sino según el modo en que es defendida por algunos que, peripatéticos de

profesión, lo son solo de nombre, conformándose, sin paseo, com adorar las sombras, filosofando no a partir de

la propia capacidad de reflexión, sino solo con el recuerdo de cuatro principios mal entendidos”. 23

“Hobbes dedicou ao menos metade de sua vida e de sua energia à tentativa de compreender a ciência moderna,

no momento em que ela dava seus primeiros balbucios; seu entendimento da ciência moderna foi por certo tão

percuciente quanto o de seus contemporâneos; contudo, como suas idéias a esse respeito não são plenamente

discutidas no Leviatã, suas teorias não são levadas em conta. As obras nas quais ele registrou essas idéias mal

são lidas hoje, e algumas nem sequer foram traduzidas do original latino. Ainda que o Leviatã seja notável em

muitos aspectos, Hobbes não pretendia que ele fosse o corpo principal de suas idéias mesmo em questões

políticas e morais, e nossa concentração exclusiva nessa obra distorceu muitos relatos daquilo que ele se

empenhava em fazer” (TUCK, 2001, p. 9-10).

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26

1.2 MOVIMENTO: O PRINCÍPIO DA FILOSOFIA DE THOMAS HOBBES

Hobbes instaura seu sistema filosófico na compreensão do movimento, legado dos

inovadores moldes da ciência de sua época. O movimento é o elemento fundamental herdado

por Hobbes da ciência nascente além de ser o ponto fulcral para o entendimento em torno da

concepção de liberdade. O corpo humano é uma máquina construída para o movimento e em

função do próprio movimento24

. Analogicamente podemos dizer que o coração é o motor

responsável pelo andamento e funcionamento dos outros membros. O conjunto dos membros

em harmonia caracteriza o movimento vital. É neste panorama que entendemos a liberdade

humana, ou seja, como o corpo, seja ele qual for, que está em movimento e não pode

encontrar impedimento ao seu agir.

Para Thomas Hobbes, “a liberdade se define retamente assim: Liberdade é a ausência

de qualquer impedimento para a ação que não está contida na natureza e na qualidade

intrínseca do agente” (LIBERTAD Y NECESIDAD, 1991, p. 165). De outra maneira,

liberdade é compreendida, essencialmente, como ausência de qualquer espécie de entrave

externo, seja para o corpo racional ou não racional. A única função destes corpos, em especial

o corpo humano, é cumprir apenas uma ordem, a saber, não se eximir de esforços possíveis e

necessários para continuar o movimento vital e viver em paz. Para dar continuidade ao

movimento vital, o homem deve e pode agir de forma totalmente livre e descomprometida

com o outro homem. Entretanto, o outro homem também agirá da mesma maneira, o que se

configurará em uma situação generalizada de guerra.

A percepção de movimento adotada por Hobbes é legado da nova visão científica, que,

especialmente com Galileu Galilei, caracteriza-se como materialista e mecanicista.

Materialista porque tudo o que se apresenta aos sentidos do homem, inclusive o próprio

homem, não passa de matéria ponderável e apreensível à mente humana. A noção mecânica

decorre da própria composição do movimento da matéria, isto é, delineada por movimentos

exatos e precisos assim como o produto matemático. Por este motivo a natureza humana, para

o filósofo de Malmesbury, segue esta diretriz e se subdivide em duas ordens: a primeira

afirma que todo homem busca constante da própria realização e a segunda assegura que todo

homem deve fazer todo o esforço possível e necessário para evitar a morte violenta e

continuar o movimento vital.

24

Isso fica muito claro na Introdução ao Leviatã, quando Hobbes afirma ser a vida uma junção dos membros em

movimento, cujo início acontece internamente ao corpo (Cf. 1983, p. 05).

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27

O movimento é a grande novidade empregada pelo pensador inglês ao seu sistema

filosófico político, justamente para dar respaldo do motivo pelo qual os homens insistem em

manter suas vidas. O movimento e a vida humana, em certa medida e em determinados

contextos, quase se confundem e podem ser tomados como uma e mesma coisa25

. O homem,

calculando as circunstâncias, sejam elas quais forem, apresentadas pelo contexto em que está

inserido, chega à conclusão que a vida é o maior bem e mantê-la, independentemente das

dificuldades externas apresentadas, é a finalidade da própria existência.

O que eles procuram, portanto, é a continuidade do desejo, na passagem de

um objeto a outro, sejam eles quais forem, e uma relativa satisfação, isto é, a

possibilidade de gozarem desses objetos, sejam eles quais forem. Não se

especificam quais objetos são esses. Tudo depende das circunstâncias que os

determinam (LIMONGI, 2009, p. 28).

Ora, o que é a vida humana senão o movimento dos órgãos do corpo em sincronia?

Portanto, estar vivo, é estar com o corpo em movimento, ao contrário, estar morto, é a

paralisação total do movimento vital. Buscar a preservação do movimento vital pode ser

arriscado demais. A própria tentativa de preservação pode culminar na morte, uma vez que

todo homem está em busca da própria manutenção do movimento vital. Contudo, o homem

não pode se eximir e deixar com que a sua vida termine. Como conseqüência desse mútuo

conflito, o estado de natureza é definido como uma guerra de todos contra todos.

Neste estado, o homem é totalmente livre, mas a sua vida fica inviável, pois não se

sente em condição de manter o movimento do seu corpo. A única alternativa encontrada por

todos os homens, para manter o movimento vital, é o pacto que visa proteger a vida e a paz de

todos; a esperança de uma vida melhor. O Estado civil surge como uma alternativa dos

homens, embasado em leis e normas para a preservação do movimento vital. No Estado civil,

a incumbência de manter o movimento vital é transferida ao representante desta entidade, sob

o pretexto de verdadeiramente garantir as possibilidades necessárias para a vida e a paz. Os

homens aceitam privar-se de sua liberdade ilimitada em vista da continuidade e segurança das

suas vidas. A lei é sempre coativa, porque é garantida pelo poder da espada. A força

coercitiva se configura em um elemento externo à vontade do homem, limitando, assim, a

liberdade humana.

É precisamente porque os homens visam acima de tudo conservar a própria

vida que se poderá escapar da lógica instável das relações naturais de poder e

passar ao plano racional das relações jurídicas, instituídas voluntariamente,

ou seja, por uma vontade de autoconservação (LIMONGI, 2009, p. 27).

25

Cf. LEVIATÃ, p. 05; LIMONGI, 2009, p. 55-56.

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28

Diante disso, podemos dizer que o fundamento da vida livre dos homens é o

movimento. O mesmo movimento que é iniciado em quase todo corpo por qualquer outro

corpo externo a ele. A partir do início do movimento no corpo, a única lei é a de não deixar

esse movimento paralisar. O homem age de forma totalmente livre, no estado natural, para

manter a sua vida, seja para buscar o objeto desejado ou para se esquivar dele. Da mesma

forma, é a vontade de se manter em movimento, último apetite da deliberação, que leva o

homem a deixar o estado natural, limitando sua liberdade, e a pactuar com os outros homens.

Por este motivo, a liberdade humana, natural e civil, em Thomas Hobbes, ganha a sua

consistência no movimento. A vida é movimento. Estar vivo é estar em movimento.

O filósofo de Malmesbury não fala tanto de paixão em seus escritos, pois prefere falar

em movimento da mente ou afeto26

. Por esta razão, ousamos afirmar que a paixão é o mesmo

que Hobbes constantemente chama de movimento. A mesma compreensão pode ser

encontrada na obra de Maria Isabel Limongi, quando ela afirma que: “A paixão parece não

ser senão o nome que normalmente se dá ao que Hobbes prefere no entanto conceituar em

termos de movimento” (p. 37, 2009). O movimento como herança da ciência causa em Hobbes

um estado de espanto e encantamento, a tal ponto de torná-lo o ponto de partida para o

entendimento do homem. Ora, se entendemos o movimento como vida – movimento vital –

percebemos, então, que o homem hobbesiano é um corpo em movimento e para o movimento.

Este movimento acontece tanto na condição do apetite (quando o homem se movimenta para

conquistar o objeto almejado e necessário para sua vida), quanto na condição aversiva

(quando o homem empreende movimento para fugir daquilo que não é necessário e almejado

para sua vida).

O movimento é um processo causal, pois é ele quem causa nos corpos o segmento do

movimento. Quando um corpo está em repouso, ele exige, necessariamente, a ação de outro

corpo, para que inicie nele o movimento. Assim, é o processo de movimento que opera sobre

os corpos e não os corpos que se movimentam por si. Os corpos não causam movimento, eles

apenas são movidos por outros corpos que também estão sendo movidos. É como um jogo de

bilhar, isto é, as bolas carecem do movimento externo a elas para se movimentarem e darem

movimento às outras bolas. Enfim, para Hobbes, toda mudança é movimento e todo

movimento gera movimento vinculado à mudança. “Nada pode causar alguma coisa em si

mesmo: o badalo não possui som nele mesmo, mas apenas movimento, e causa movimento

26

Cf. LIMONGI, Maria Isabel. O homem excêntrico – Paixões e virtudes em Thomas Hobbes. São Paulo:

Edições Loyola, 2009. p. 36.

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29

nas partes externas do sino, de maneira que o sino tem movimento, e não som.”

(ELEMENTOS, I, I, p.25).

O que muda nos corpos é tudo aquilo que aparece aos nossos sentidos. Nesta altura, o

ponto de partida da física de Hobbes, a aparência sensível, através do movimento, ganha

sentido e embasamento, uma vez que tudo o que é gerado ou transformado é perceptível aos

sentidos humanos. Se não fosse assim, não seríamos capazes de dizer que algo mudou, foi

gerado ou que está em movimento27

. O que é o movimento senão uma mudança sensível que

ocorre nos corpos, racionais ou não, perceptíveis aos nossos sentidos? E o que é a mudança

senão um processo de geração ou destruição nos mesmos corpos? Tudo isso é notado pelos

nossos sentidos. Quando Limongi cita Hobbes no que concerne à questão da mudança,

encontramos a seguinte passagem: “por geração e corrupção deve-se entender mudança

(mutatio), definida anteriormente como ‘movimento das partes ou o movimento que faz o

corpo aparecer distinto do que era antes’” (2009, p. 46)28

. Por geração e corrupção devemos

entender aquelas mudanças sensíveis que os corpos sofrem. Toda e qualquer mudança é

perceptível à sensibilidade humana, uma vez que esta opera no nível dos acidentes nos corpos.

Os acidentes nos corpos podem tanto gerar novidades aos mesmos, como podem privá-los de

algum elemento, modificando-os visivelmente. Não são os corpos, segundo suas

potencialidades, que produzem e explicam o processo de mudança, mas seus acidentes postos

em relação e na medida em que produzem efeito. Dessa maneira:

A potência ativa é, assim, a potência ou a capacidade de produção de um

movimento e não de um corpo. Ela não é um movimento em potência num

corpo agente ou paciente, mas é o movimento mesmo pensado em relação ao

seu produto, ou o movimento ao qual se atribui uma capacidade de

produção. Essa capacidade não precede o movimento e nem se atualiza com

ele; é a capacidade do próprio movimento, em ato. [...]. Daí, talvez, ser

preferível falar das ações e paixões simplesmente em termos de movimento

(LIMONGI, 2009, p. 42).

27

Cf. LIMONGI, Maria Isabel. O homem excêntrico – Paixões e virtudes em Thomas Hobbes. São Paulo:

Edições Loyola, 2009. p. 38. 28

A frase que se encontra entre aspas simples refere-se a uma citação feita por Maria Isabel Limongi da obra de

Thomas Hobbes chamada de “Crítica do De mundo de Thomas White”. A história desta obra é a seguinte: “En

1642 aparece una obra del sacerdote católico inglés Thomas White titulada De Mundo Dialogi Tres que pretende

continuar las reflexiones expuestas por Galileo en sus obras, especialmente en el Dialogo sopra i dui massimi

sistemi Del mondo. White acepta en general la exposición galileana, pero la concepción filosófica y metafísica

desde la que argumenta provoca en Hobbes el deseo de probar la firmeza y coherencia de su pensamiento

mediante la crítica al libro de su paisano, con quien más tarde, por cierto, le unirá una larga amistad. La Crítica

al “De Mundo”, redactada en 1643, no será publicada y sólo em 1973 Jean Jacquot la rescatará de los archivos

de la Biblioteca Nacional de París. [...]. Se trata de una exposición de la doctrina empirista del proceso

cognoscitivo y del consiguiente carácter lingüístico de los procesos mentales” (Introdução ao livro Libertad e

Necesidad y otros escritos de Thomas Hobbes, escrita por Bartomeu Forteza Pujol, 1991, p. 18-19).

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A potencialidade acontece na matéria suscetível de acidentes e, jamais, na essência29

mesma do corpo. Cada coisa se esforça da maneira que as circunstâncias externas,

apresentadas pelo contexto, determinam para preservar o seu corpo, a sua identidade

específica. Hobbes se apropria das categorias aristotélicas-tomistas, fazendo delas não mais

categorias do ser30

, mas apenas qualidades dos nomes. É pelo movimento de percepção

(externo) que partimos para o entendimento segundo o qual as coisas são nomeadas por sua

essência. “A essência é, portanto, o nome que se dá a uma determinada aparência de um

corpo, entendida como um movimento atual nele presente” (LIMONGI, 2009, p. 47). Ou seja,

a essência não passa de uma categoria puramente nominal, uma qualidade dos nomes que

atribuímos aos corpos, mas que não sejam, necessariamente, dos corpos mesmos –

compreensão meramente nominal. Nesse caso, a individuação e a diferenciação dos corpos

estão tão e somente na matéria, avessa à compreensão aristotélica.

O movimento é a causa primeira que determina todas as categorias de um corpo,

fugindo, assim, ao entendimento tradicional segundo o qual a substância do corpo é

responsável pela identidade propriamente dita de um determinado corpo. Hobbes se posiciona

29

“A essência de um corpo não corresponde para Hobbes a uma certa equação de seus movimentos internos, a

qual se pudesse dizer que o corpo se esforça por preservar. Ela é um certo movimento interno do corpo, entre

outros, através do qual quem o percebe o especifique, e em relação ao qual se diz que foi gerada” (LIMONGI,

2009, p. 45). 30

A metafísica de Santo Tomás é essencialmente metafísica do ser. Mas a metafísica do ser de Santo Tomás não

é uma simples reedição da metafísica de Parmênides, o grande filósofo do ser, e isto porque o conceito que o

Aquinate tem de ser é todo diferente daquele do filósofo de Eléia. Às vezes, Santo Tomás tem um conceito

analógico e pluralístico, que reconhece a criação e a participação. Assim como Aristóteles, Santo Tomás observa

que o ser é um termo plurisemântico. Dessa forma, destacam-se as seguintes noções: 1. Chama-se ser a essência

mesma da coisa – aquilo que a coisa é: homem, cavalo, planta. 2. O ser se aplica para exprimir o ato da essência.

Por exemplo: ‘viver’, que é o ser próprio do vivente. Este termo é adotado para exprimir o ato da alma. Diante

dessas duas conotações acerca do ser, Santo Tomás propõe uma distinção que na sua metafísica julga ter um

papel de extrema importância: a distinção entre o ser comum (ser universal) e ser absoluto (ser divino). Na

primeira noção, o ser é o mínimo de realidade, aquele mínimo indispensável a todas as coisas, o mínimo que

limita entre a tenebrosidade do nada e a participação da ordem dos entes. Na segunda noção, o ser exprime a

intensidade máxima de realidade, intensidade de perfeição contida em cada ser. Em palavras simples, pode-se

asseverar que a primeira noção concerne ao fato do ser simplesmente ser, ao passo que, na segunda noção, nota-

se a participação do simples ser na existência do ser absoluto. Isto porque Deus é uma realidade que não existe

só na mente do homem, mas que está na natureza de todas as coisas. Além de estar na natureza de todas as

coisas, o ser absoluto (Deus) é um ser por si só, porque não pode ser somente o ser comum de todas as coisas,

mas o ser profundamente infinito, o ser sem confins. Para o Aquinate, a noção do ser está além de ser sinônimo

de essência, antes, sinônimo de ente. Por sua vez, o ente assume uma dupla noção: o ente comum que é o simples

fato das coisas serem (ato de ser universal) e o ente divino que é Deus mesmo (ato de ser singular). O ente em

sua estrutura fundamental segue a seguinte ordem: 1. O ente que subsiste em si mesmo. 2. O ente que se insere

em qualquer sujeito. 3. O ente lógico (ente que guarda a verdade e a falsidade das proposições). 4. O ente real (o

mensurável). 5. O ente em potência e ato. Em suma, a metafísica tomista não tem outro objeto senão o ente

enquanto ente e a qualidade que o acompanha (Cf. AQUINO, Tomás. O Ente e a Essência. Questões discutidas

sobre a verdade. Súmula contra os gentios. São Paulo: Editora Nova Cultura, 2004. MONDIN, Battista.

Dizionario Enciclopedico del pensiero di San Tommaso D’Aquino. Edizioni Studio Domenicano: Bologna –

Italia, 1991).

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severamente à tradição metafísica, cuja compreensão do movimento e da identidade do ser é

conseqüência de uma noção ontológica, onde a essência delimita a própria formação deste ser.

É, portanto, no interior de uma teoria que faz do movimento a causa primeira

de todas as determinações dos corpos, mesmo as ditas essenciais, e não no de

uma ontologia que procura na substância a razão de suas determinações, que

se deve entender a noção hobbesiana de essência (LIMONGI, 2009, p. 47).

O movimento é a condição própria da individuação e da identidade do corpo. A

mesma interpretação vale para o conceito de conatus, ou seja, como uma realidade universal e

princípio de identificação e de ação dos corpos. Sendo que o movimento (conatus) é o

princípio identificador e de individuação dos corpos (e não a realidade ontológica), a filosofia

de Hobbes ganha corolários de filosofia do movimento e não mais da ação ou da paixão31

.

A pergunta feita por Maria Isabel Limongi, em sua obra “O homem excêntrico –

Paixões e virtudes em Thomas Hobbes”, é essencialmente pertinente e instigadora para os

leitores mais atentos de Hobbes, ou seja, o conatus é uma paixão ou um movimento da mente

humana? Para compreendermos o significado de paixão ou movimento da mente, devemos

recorrer ao conceito de conatus postulado por Hobbes, segundo o qual, conatus é:

Esse movimento, que consiste de prazer ou de dor, é também uma

solicitação ou provocação, seja para se aproximar da coisa que deseja, ou

para afastar-se da coisa que lhe desagrada. E esta solicitação é o esforço

(endeavour) ou impulso interior (internal beginning)32

do movimento

animal, que é chamado apetite (appetite) quando o objeto deleita, e é

chamado aversão (aversion) acerca do desprazer presente. Mas com respeito

ao desprazer expectado, chama-se medo (fear). Portanto, prazer (pleasure),

amor (Love) e apetite, o qual também se chama desejo (desire), são diversos

nomes para diversas considerações da mesma coisa (ELEMENTOS, I, VII,

p. 48).

Ao utilizar pela primeira vez o termo conatus, em 1640, nos “Elementos da Lei”,

provavelmente Thomas Hobbes não tinha consciência da amplitude semântica que mais tarde

despertaria tal termo. Quiçá, três anos fossem necessários para o estabelecimento

epistemológico do termo conatus se alicerçar e ganhar reconhecimento, pois “certamente a

partir de 1643, com o Anti-White, pode-se dizer que Hobbes tem consciência de que, ao falar

em conatus, ele está empregando um conceito cujo sentido deve ser relativamente uniforme

em suas diversas ocorrências” (LIMONGI, 2009, p. 49). A uniformidade que o termo conatus

comporta e que estamos defendendo é aquele que pode ser tomado por movimento também,

sem perder e nem tirar elemento algum. Dessa maneira, tornando o conatus um termo

hobbesiano, entendemos que ele seja “o princípio ou o início do movimento” (LIMONGI,

31

Cf. LIMONGI, 2009, p. 48. 32

O conatus segundo Hobbes. (NT)

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32

2009, p. 51) ou, ainda, o conatus “é uma parte do movimento, e ‘toda parte do movimento é

movimento (unde sequitur conatum omnem esse motum)’”33

. O conatus é, portanto, “o

substituto da noção de inclinação, entendida como um princípio ou uma determinação do

movimento que lhe é distinta, isto é, que não é ela mesma movimento” (LIMONGI, 2009, p.

51). O conatus é um movimento cuja presença nas partes de um corpo serve para explicar o

seu início bem como as suas determinações.

Para Hobbes, o movimento carrega uma distinção entre o ser movido e o movimento

em si. Ou seja, aquilo que chamamos de inclinação a determinado objeto a ser conquistado,

isso atende pela conotação de ser movido. Por outro lado, a ação própria de busca e conquista

do objeto, que a tendência mostra ser bom, é o próprio movimento. Segundo Limongi, “toda

determinação do movimento, incluindo sua direção, é uma determinação do próprio

movimento” (2009, p. 50). Não existe nenhum causa diferente ao movimento que determine a

sua própria ação. A direção do movimento é ocasionada pelo próprio movimento, eliminando,

assim, qualquer causa intrínseca ao corpo que vise condicioná-lo.

O movimento de um corpo é composto de uma série de conatus, que permanece no

corpo movido até que um conatus contrário se oponha àquele. O conatus depende da

incidência do movimento de outros corpos sobre ele, pois não encontra sua origem no corpo

mesmo. O conatus serve para explicar o início dos movimentos voluntários e, portanto, a

conversão do movimento em ação. O apetite é o conatus do qual se origina a ação voluntária.

Os objetos sensíveis são causa de apetite e de fuga. Dessa maneira, compreendemos que nem

o apetite e nem a fuga originam o movimento no corpo, mas sim o objeto sensível externo ao

corpo, que é o causador da sensação, bem como da aproximação e do afastamento de um

corpo em relação a outro corpo. Assim sendo:

Ao insistir na tese de que a vontade não é livre posto ter sempre uma causa

determinante, Hobbes quer dizer que ela é sempre determinada a partir das

circunstâncias ou do modo como os objetos externos afetam nossa

imaginação. Neste sentido, a vontade não se distingue do apetite ou das

paixões (LIMONGI, 2009, p. 27).

O apetite e a aversão são nomes distintos, porém, designam a mesma coisa, a saber, a

ação no corpo. Esta ação pode ser tanto de prazer (apetite) como de desprazer (aversão). “As

palavras apetite e aversão vêm do latim, e ambas designam movimentos, um de aproximação

e o outro de afastamento” (LEVIATÃ, I, VI, p. 32). A tendência do corpo é buscar aquilo que

lhe dá prazer e fugir daquilo que lhe dá desprazer, dado que tanto as atitudes de prazer e de

33

Esta citação de Thomas Hobbes, feita por Maria Isabel Limongi, encontra-se na obra: “Crítica do De mundo

de Thomas White”, (XIII, 2).

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33

desprazer estão diretamente ligadas ao movimento vital. Diante disso, poderíamos nos

perguntar: de onde provém a tendência a procurar o que favorece o movimento vital e a se

afastar daquilo que desfavorece? Para Limongi, “não há dúvida de que o movimento vital

desempenha um papel de mediação dos corpos exteriores e a ação voluntária” (2009, p. 55).

Contudo, o que é mesmo o movimento vital? Para responder a esta importante interrogação,

continua Limongi acerca da definição dada por Hobbes no “De Corpore”, o qual apresenta a

seguinte definição para movimento vital: “o movimento do sangue perpetuamente circulando

nas veias e artérias” (2009, p. 55). No “Leviatã”, encontramos uma definição diversa para

movimento vital, entretanto, herdeira de uma postura símile. “Há nos animais dois tipos de

movimento que lhe são peculiares. Um deles chama-se vital; começa com a geração, e

continua sem interrupção durante toda a vida. Deste tipo são a circulação do sangue, o pulso,

a respiração, a digestão, a nutrição, a excreção, etc”. (LEVIATÃ, I, VI, p. 32). O movimento

vital é o primeiro dos movimentos apresentados por Hobbes, o segundo é o animal.

O movimento vital se torna um princípio de ação se estabelecer uma relação de meios

e de fins entre o movimento vital propriamente dito e o movimento animal. Por movimentos

animais ou movimentos voluntários, Hobbes entende o ato de “andar, falar, mover qualquer

dos membros, da maneira como anteriormente foi imaginado pela mente” (LEVIATÃ, I, VI,

p. 32). Desta maneira, o movimento vital não é uma expressão da estrutura interna do corpo e

nem um princípio de ação, mas é a soma do movimento vital e animal que gera a

subordinação de nossas ações para a preservação das características biológicas fundamentais.

Ou seja, um movimento existe apenas para salvaguardar outro movimento e assim manter o

corpo vivo, em movimento vital.

Enquanto o movimento animal é o princípio das ações voluntárias, o movimento vital

carrega em seu bojo a função biológica. O que distingue um movimento do outro é a

imaginação. Para o movimento vital a imaginação não é necessária, ao passo que, a

“imaginação é a primeira origem interna de todos os movimentos voluntários” (LEVIATÃ, I,

VI, p. 32). Assim sendo, a “imaginação é o ponto de interseção entre o movimento animal e o

movimento vital” (LIMONGI, 2009, p. 57). Em suma, a imaginação é o conteúdo mesmo de

nossas tendências, nos esforçamos em buscar ou nos afastar aquilo ou daquilo que está

predisposto em nossa mente, porém, despertado pelo objeto externo.

A esta altura parece ser coerente a seguinte interpelação: a imaginação é igual ao

conatus? Como ambos podem se configurar em princípio interno dos movimentos

voluntários? Na tentativa de responder a esta questão, percebemos que Thomas Hobbes passa

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34

da linguagem física34

– a paixão como um conatus – para a linguagem psicológica – a paixão

como um conceito ou um modo de pensar o valor dos objetos35

. Mais do que isso:

A imaginação é o princípio dos movimentos voluntários, se ela é o seu

conatus, é precisamente porque, do ponto de vista da geração dos

movimentos, a imaginação – que, como vimos, é afetiva, isto é, seus

conteúdos envolvem sensação de prazer e desprazer – é o ponto de

interseção entre o movimento animal e o movimento vital: é através dela ou

por ela que o primeiro se articula ao segundo. Pois este último não é senão o

que permite explicar fisiologicamente aquilo que já é parte do conteúdo da

imaginação, ou, mais precisamente, das sensações de prazer e desprazer

(LIMONGI, 2009, p. 57).

Movimentos e aparências consistem em uma e mesma realidade, de forma que os

primeiros não são senão aquilo que supomos existir no momento que tentamos explicar as

realidades sensíveis (aparências). Para Hobbes:

Este movimento a que se chama apetite, notadamente em sua manifestação

como deleite e prazer, parece constituir uma corroboração do movimento

vital, e uma ajuda prestada a este. Portanto as coisas que provocam deleite

eram, como toda propriedade, chamada jucunda (à juvando), porque

ajudavam e fortaleciam; e eram chamadas molesta, ofensivas, as que

impediam e perturbavam o movimento vital (LEVIATÃ, I, VI, p. 34).

O conceito de conatus permite Hobbes resolver o problema do início do movimento

voluntário sem buscar compreensão no conceito de inclinação (esquema proposto pela

Tradição). Cada paixão é um conatus e ao mesmo tempo um pensamento ou conceito que

exprime um determinado valor. Cada fantasma equivale a um objeto sensível. A ação pode ser

de composição ou decomposição. Nem todo conatus é perceptível. A percepção depende da

predominância de um conatus sobre outros. Portanto, a imaginação e a consciência formam o

princípio interno de todos os movimentos voluntários. O simples ato de andar para frente,

bem como a ação de comer foram previamente deliberados pelo sujeito agente.

Poderíamos questionar o sistema filosófico de Thomas Hobbes, a partir do qual o

movimento ganha lugar de destaque e iniciador de todos os outros movimentos, afirmando

que nem todos os corpos humanos imaginam conscientemente a sua posterior ação. Nem

todos os homens calculam suas atitudes, muitos agem sem o mínimo de reflexão. Esta

interpelação pode ser verdadeira, ainda mais quando o sujeito da ação for uma criança,

contudo, o sistema filosófico de Hobbes não é destruído. Mesmo que uma criança não

delibere sobre suas ações em uma primeira tentativa, provavelmente, na segunda vez que esta

ação for acontecer, a criança deliberará. Tal realidade se tornará verídica se a conseqüência da

34

Por linguagem física podemos dizer que são os movimentos que se encontram em nós. 35

Por linguagem psicológica enfatizamos que são as aparências ou a consciência que temos deles.

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35

ação da criança for danosa para ela. “Isto é, uma ação é não liberada apenas na medida em

que ainda não foi feita a experiência que permite contrapor à primeira avaliação do objeto

uma outra avaliação” (LIMONGI, 2009, p. 69).

A dinâmica do conatus corresponde a um conteúdo atual da consciência, pela qual

toda ação se forma e se justifica. É preciso que o agente tenha consciência dos motivos e dos

resultados de ação, mesmo onde sua deliberação for mínima. Para Hobbes, a razão deixa de

ser o elemento primordial para identificar o homem, e passa a assumir a simples compreensão

de instrumento de deliberação: apetite (quando a ação for favorável ao movimento vital) e

aversão (quando a ação for desfavorável ao movimento vital). Diante disso, fica esclarecido

que o movimento ou o conatus é o princípio interno que desencadeia outra série de

movimentos em outros corpos distintos e externos.

1.3 A PRIMEIRA LEI DE NATUREZA COMO DECORRÊNCIA DO MOVIMENTO

VITAL DO HOMEM

As leis de natureza são decorrentes do bom uso da razão humana36

. Além do mais, “as

leis de natureza obrigam in foro interno, quer dizer, impõem o desejo de que sejam

cumpridas; mas in foro externo, isto é, impondo um desejo de pô-las em prática, nem sempre

obrigam” (LEVIATÃ, I, XV, p. 94). O homem, quando preocupado em manter o seu

movimento vital, age da melhor maneira possível para mantê-lo. As conclusões encontradas

pelo homem para cumprir tal finalidade são comumente conhecidas como leis de natureza.

Nas palavras de nosso autor: “E a razão sugere adequadas normas de paz, em torno das quais

os homens podem chegar a acordo. Essas normas são aquelas a que por outro lado se chama

leis de natureza” (LEVIATÃ, I, XIII, p. 77). Assim, as leis de natureza são sugeridas pela

razão e, a partir delas, os homens podem chegar a um acordo em torno da paz e da

preservação do próprio movimento vital.

Todo corpo está para o movimento e, de alguma forma, em movimento. A origem do

movimento vital do homem, o sangue correndo por suas veias e artérias, está como

conseqüente de outro corpo em movimento e assim sucessivamente até que a paralisação

ocorra. Um homem em movimento perpétuo é livre a buscar o necessário e possível para a

preservação da sua vida, da mesma maneira que todos os outros homens. O afrontamento,

como antecipação ao ataque do outro, em estado natural, é quase que inevitável. Evitando este

caminho e buscando a tranqüilidade e a comodidade de uma vida promissora, a razão humana

36

Cf. LEVIATÃ, I, XV, p. 95.

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36

sugere a paz como o fim para suas vidas e ações. Um homem em paz com seus semelhantes

tem maior chance de manter-se vivo (em movimento vital) do que outro homem em constante

conflito. É neste contexto que entendemos a definição de Hobbes para lei de natureza (lex

naturalis): “é um preceito ou regra geral, estabelecido pela razão, mediante o qual se proíbe a

um homem fazer tudo o que possa destruir a sua vida ou privá-lo dos meios necessários para

preservá-la, ou omitir aquilo que pense poder contribuir melhor para preservá-la” (LEVIATÃ,

I, XIV, p. 78).

A afirmação de Hobbes acerca da lei natural, quando desmembrada, possibilita duas

constatações, a saber, de um lado temos uma lei e de outro um direito (que é igual à ação livre

do homem). Hobbes, no Leviatã, alerta que a lei é diferente de direito, embora muitos autores

as confundam37

. Enquanto a lei (lex) determina, obriga o homem a ação, o direito (jus) dá ao

homem a liberdade de escolha. Notamos isso de maneira incisiva na primeira lei de

natureza38

, embora a lei seja efeito do bom uso da razão humana: “todo homem deve esforçar-

se pela paz” (LEVIATÃ, I, XIV, p. 78). Com isso, Hobbes está eliminando a interpretação de

que dentro do estado de natureza exista um valor moral, intrínseco a todo homem, cuja função

humana seria apenas escutá-lo e segui-lo. O que existe, seja no estado de natureza ou no civil,

é o cálculo racional e frio do homem diante dos diversos segmentos que se apresentam a sua

frente e, dentre os muitos males possíveis, a escolha pelo menor é o mais plausível – o mais

racional – para que o movimento permaneça.

A primeira parte, da primeira lei de natureza, ainda não provê ao homem a liberdade

de ação, senão que este deve esforçar-se em procurar a paz e é uma completa contradição não

agir desta maneira, na medida em que a paz facilita a vida do homem. Portanto, a primeira

parte da primeira lei de natureza, que é um efeito da razão humana, mostra a busca pela paz

como a maior de todas as leis39

. A segunda parte da primeira lei de natureza, por sua vez,

“encerra a suma do direito de natureza, isto é, por todos os meios que pudermos, defendermo-

nos a nós mesmos” (LEVIATÃ, I, XIV, p. 78). A segunda parte da primeira lei de natureza

dota o homem de liberdade ilimitada e de possibilidade de angariação de elementos possíveis

37

Cf. LEVIATÃ, I, XIV, p. 78 38

Thomas Hobbes enumerou dezenove leis de natureza que, na verdade, são o resultado de convenções racionais

entre os homens livres. As principais leis são: 1 Todo homem deve se esforçar em buscar a paz; 2 Todo homem

deve renunciar aos direitos do estado natural; 3 Todos os acordos feitos devem ser cumpridos; 4 Os benefícios

devem ser restituídos; 5 Todos devem tender a se adaptar aos outros; 6 Deve-se perdoar aos que mostrem

arrependimento; 7 Deve-se esquecer o mal passado e vislumbrar o bem futuro; 8 Não se deve declarar ódio ou

desprezo com palavras ou gestos; 9 Todo homem deve ser reconhecido como igual; 10 Não se deve exigir do

outro, o que não se deseja a si próprio; 11 Quem exercer o cargo de julgador, deve fazê-lo com eqüidade. Cf.

HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Tradução de João

Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. 3.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. Capítulo XIV e XV. 39

Cf. LEVIATÃ, I, XIV, p. 78.

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e necessários para o estabelecimento do movimento vital. Posterior a esta dupla constatação

que afirmamos que a lei de natureza não passa de “um preceito ou regra geral da razão”

(LEVIATÃ, I, XIV, p. 78), afirmando, em definitivo, que a lei de natureza é um produto

posterior à ação do homem. O homem não age movido por ela, senão que a partir de sua ação

a constrói, fundamentado no bom uso de sua própria razão. Assim sendo, Hobbes distingue

minuciosamente a lei do direito, justamente para evitar equívocos interpretativos.

O direito natural, a que os autores geralmente chamam de jus naturale, é a

liberdade que cada homem possui de usar seu próprio poder, da maneira que

quiser, para a preservação de sua própria natureza, ou seja, de sua vida; e

consequentemente de fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e razão

lhe indiquem como meios adequados a esse fim (LEVIATÃ, I, XIV, p. 78).

O direito natural dá ao homem a liberdade de ação a fim de que sua vida seja mantida.

Dizer que a liberdade é direito de ação do homem é a mesma coisa que afirmar que a

liberdade é o poder que o homem tem de escolher tudo aquilo que, por natureza, é seu. Nesta

dimensão, Hobbes qualifica a liberdade como poder que o homem tem de usufruir das coisas

que a natureza providencia.

Por liberdade entende-se, conforme significação própria da palavra, a

ausência de impedimentos externos, impedimentos que muitas vezes tiram

parte do poder que cada um tem de fazer o que quer, mas não podem obstar a

que use o poder que lhe resta, conforme o que seu julgamento e razão lhe

ditam (LEVIATÃ, I, XIV, p. 78).

Nosso autor não vê nesta condição humana nenhuma ação divina ou efeito da essência

mesma do homem, senão que uma ação estritamente mecânica. Neste estado o homem disputa

todas as coisas por direito natural e absoluto, o próprio homem é senhor de sua vida. O

homem tem direito e poder (liberdade) sobre todas as coisas. Ele não deve submissão a

ninguém, a não ser à própria consciência de que deve buscar a paz e manter a sua vida, de

maneira que o direito de natureza é a liberdade de cada um para usar todo o seu poder, da

maneira que quiser e puder, para preservar a sua natureza e satisfazer os seus desejos, a fim de

que o seu movimento vital seja mantido.

A lei de natureza é uma regra geral, ditada pela razão, que instrui a cada homem a

preservar a sua própria vida e, em todas as instâncias, o proíbe de destruí-la. A única

finalidade da existência humana é a sua autopreservação, fugir aos possíveis entraves ao tão

almejado movimento vital. O movimento vital só terá efetividade se o conteúdo da primeira

lei de natureza for mantido, ou seja, todo homem deve esforçar-se para que a paz exista e seja

sustentada, desde que haja expectativas reais de consegui-la. Caso contrário, se não houver

condições reais de conquistar a paz, os homens estão livres para entrar em situação de guerra,

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de sorte que a guerra é justificável pela observação de seu fim, a saber, manter-se em

movimento vital, embora na guerra exista maior probabilidade de paralisação do movimento

vital. Entretanto, o homem não pode desistir da sua vida.

O movimento, como já apresentamos, é o grande legado da ciência moderna ao

pensamento político de Hobbes. Fiel ao seu tempo e às inovações científicas que emergiam,

Hobbes aproveitou a nova concepção de ciência, com base matemática, para a provável

compreensão do homem e do Estado Civil. Enfim, saber o que motiva o homem a agir desta

maneira específica. Hobbes, amparando-se nos moldes da nova ciência natural, afirmou o

mundo físico como o mundo dos corpos em movimento e o descreve como uma máquina.

“Hobbes, portanto, investiga as paixões humanas à luz do alicerce de sua concepção da

natureza humana, o princípio do benefício próprio, que formula como uma aplicação

particular de sua filosofia mecanicista em geral” (FRATESCHI, 2008, p. 82). O mundo que

Hobbes está inserido é o mundo das novas descobertas científicas, cuja prevalência do

benefício próprio é uma condição normatizante das ações humanas. Ora, se a vida é

movimento e a única função do homem é manter o movimento vital, segue-se, logicamente,

que os homens buscam de forma desordenada e compulsiva a manutenção da própria vida. A

efervescência de novas idéias é abundante e profícua, o que configura uma época de um

decisivo enriquecimento do conhecimento científico. Por todas as partes do mundo surgem

descobertas científicas que vão destronando a noção tradicional, de cunho aristotélico, de

ciência e de universo. A ciência está buscando o novo, pensando criticamente e livremente,

avançando decididamente em linha reta, sem lugar para retrocessos e anacronismos.

Estas descobertas foram possíveis, em grande escala, por causa do novo método

utilizado: o método matemático e mecânico40

. O mecanicismo de Hobbes se estendeu também

ao homem e ao Estado, que como máquinas perfeitas podem ter seus movimentos conhecidos

40

“Hobbes, como também Descartes, quer reduzir toda sua pesquisa ao uso do método matemático. Persegue a

generalização ilimitada da explicação matemática, isto é, mediante movimentos locais. Ambos os filósofos,

Hobbes e Descartes, querem aplicar os métodos da nova ciência ao estudo do próprio homem: Descartes, no que

se refere à Fisiologia e à Medicina; Hobbes quer aplicar o novo método à Psicologia, Ética e Política. Hobbes

fica perplexo com o progresso da Física. Esse progresso dá-se de modo especial pelo método matemático usado

nas suas pesquisas. O objetivo de Hobbes é estender este mesmo método infalível às questões morais. A

matemática, por seu conteúdo e forma, mantém relações profundas com as investigações dos filósofos modernos.

Através da matemática esses orientam o pensamento para o estudo da natureza da sensação, para a psicologia. O

uso da matemática nas investigações também se deve a sua forma: o método ideal. Traçar figuras, medir,

calcular, conduz sempre a um resultado certo e preciso. Galileu, rechaçando a idéia dos escolásticos,

fundamentando o método matemático na filosofia, afirma que a filosofia está escrita em um grande livro aberto a

nossos olhos: o universo. E para lê-lo é preciso entender a linguagem em que está escrito, sendo a sua escrita em

linguagem matemática. Seus signos são triângulos, círculos e outras formas geométricas. Hobbes imagina um

sistema de rigor total, inteiramente fechado, que explica tudo a partir do movimento: o mundo psicológico, o

mundo moral, o mundo político como o físico. A ciência óptica, por sua vez, o conduz para o estudo da natureza

da percepção. O método, para natureza do pensamento. Ambos para uma relação profunda entre conhecimento e

realidade” (WOLLMANN, 1993, p. 19-20).

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e controlados pela ciência que faz deles o seu objeto de estudo. O Estado Civil é descrito

como um homem artificial que imita o homem natural, a mecânica do homem é delineada de

forma análoga a um relógio, que nada mais é do que a projeção da ciência nascente. Desse

modo, “a teoria política é apresentada por nosso autor como a parte de um sistema geral de

filosofia, de orientação mecanicista, que tenta explicar a partir de princípios científicos todos

os feitos naturais, incluindo entre eles a conduta humana individual e coletiva” (COSTA,

1997, p. 33).

Para Hobbes, o movimento é apenas mudança de lugar, os homens simplesmente se

movem, não na direção da atualização de suas potencialidades inerentes (como preconizou

Aristóteles), mas na direção dos benefícios almejados, exclusivamente por efeito de causas

eficientes. “Naturalmente, não se trata do movimento concebido aristotelicamente, mas sim

do movimento quantitativamente determinado, ou seja, medido matemática e

geometricamente (o movimento galileano)”. (REALE, 2005, p. 493). O movimento já não é

atualização do que está em potencialidade, senão que é puro e simplesmente mudança de

lugar. Pensar em movimento em Hobbes é pensar em mudança de lugar. Ocupação de

determinado espaço físico. O corpo deixa este espaço e passa para aquele outro. Essa ação de

sair daqui e ir ali é a liberdade, quando na ausência de impedimento. O movimento é a

liberdade que o corpo tem de se deslocar, mudar de lugar, ocupar outro espaço físico. Quem é

livre, é o corpo e não a vontade do corpo.

O homem é livre para agir no sentido daquilo que pode lhe trazer mais prazer e

benefício e contra aquilo que lhe traz menos prazer e benefício. O homem calcula justamente

o que lhe é mais útil e aquilo que lhe é menos útil – obviamente que sempre tende a se mover

no sentido daquilo que lhe é mais conveniente. O cálculo feito pelo homem hobbesiano é

extremamente utilitarista e sempre em benefício próprio. Com base nos atributos

matemáticos, a saber, o que é mais e o que é menos útil para a preservação do movimento

vital, o homem segue livremente. A ação livre (movimento) de um corpo só se altera pela

ação de outro corpo, pois “quando uma coisa está imóvel, permanecerá imóvel para sempre, a

menos que algo a agite. Mas não é fácil aceitar esta outra, que quando uma coisa está em

movimento, permanecerá eternamente em movimento, a menos que algo a pare” (LEVIATÃ,

I, II, p. 11). Assim, a natureza teleológica é substituída pela natureza mecânica que dá

dinamismo e movimento aos diversos corpos existentes dentro do espaço e do tempo.

O movimento de um corpo, do ponto de vista da mecânica, é causado por outro corpo

exterior a ele. Uma vez iniciado o movimento, o corpo em movimento só encontrará seu fim

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se algo o fizer parar. Caso contrário, esse movimento continuará permanentemente. Nas

palavras de Hobbes, isso acontece da seguinte maneira:

Quando um corpo está em movimento, move-se eternamente (a menos que

algo o impeça), e seja o que for que o faça, não o pode extinguir totalmente

num só instante, mas apenas com o tempo e gradualmente, como vemos que

acontece com a água, pois, muito embora o vento deixe de soprar, as ondas

continuam a rolar durante muito tempo ainda. O mesmo acontece naquele

movimento que se observa nas partes internas do homem, quando ele vê,

sonha, etc., pois após a desaparição do objeto, ou quando os olhos estão

fechados, conservamos ainda a imagem da coisa vista, embora mais obscura

do que a vemos” (LEVIATÃ, I, II, p. 11).

O que gera o movimento em um determinado corpo é o movimento de outro corpo

externo àquele, da mesma maneira, a ruptura do movimento de um corpo só encontrará seu

fim caso outro corpo se coloque como obstáculo. Disso se deriva que o movimento de um

corpo é explicado tão e somente pela causa eficiente (aquele que gerou o movimento) e a

estagnação de algo exterior a si. Ora, se o movimento não termina com a atualização do que

está em potência no corpo, mas sim com a ação de algo externo a este corpo, disso se conclui

que a característica básica do movimento é a persistência, a continuação. “Assim, Hobbes

adere decididamente ao novo modelo cosmológico inercial que substitui o modelo teleológico

tradicional, de origem aristotélica” (FRATESCHI, 2008, p. 65). Aplicando este novo molde

científico ao corpo humano, notamos que enquanto houver vida haverá movimento (o

contrário também é válido). O movimento vai durar porque se configura na ordem calculada e

apresentada pela primeira lei de natureza, isto é, os homens estarão continuamente em busca

da paz e da vida prazerosa. O cálculo41

constitui o cerne desse pensamento, pois:

Quando alguém raciocina, nada mais faz do que conceber uma soma total, a

partir da adição de parcelas, ou conceber um resto a partir da subtração de

uma por outra; [...]. Os escritores de política adicionam em conjunto pactos

para descobrir os deveres dos homens, e os juristas leis e fatos para descobrir

o que é certo ou errado nas ações dos homens privados. Em suma, seja em

que matéria for que houver lugar para a adição e para a subtração, há

também lugar para a razão, e onde aquelas não tiverem o seu lugar, também

a razão nada tem a fazer (LEVIATÃ, I, V, p. 27).

41

Galileu cuidou de tornar os elementos da natureza suscetíveis da análise matemática, colocando-a sob os

critérios de um novo método científico. Da mesma maneira, e, à sua maneira, Hobbes também se ocupou de tal

tarefa. O saber é analítico e tem por objetivo fundamental a ordenação das idéias, pensamentos e representações.

Por ele, surge uma infinidade de possibilidades. A ordem, a conexão, a articulação e a cadeia de pensamentos

obrigam a obediência à relação causa/efeito, antecedente/consequente de sorte que o conhecimento adquirido

pode ser submetido a apreciações pela análise, decomposição e recomposição. Caso a cadeia de raciocínio seja

articulada corretamente, a hipótese para pensamento errôneo torna-se remota. Dessa maneira Hobbes assumiu

que a razão é sinônima do cálculo no sentido da adição e subtração de nomes gerais criados para marcar,

significar e representar os pensamentos humanos.

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41

Para Hobbes, o isolamento entre sujeito/objeto é possível porque existem dois

elementos principais em análise: movimento e matéria. Nem mesmo a vida moral escapa

desses dois elementos. Sensações como ódio, prazer, desejos não são mais que indícios dos

movimentos de inclinação e repulsão. Eis uma concepção que entende os corpos humanos

como máquinas sofisticadas com funções e atividades que podem ser descritas em termos

mecanicistas.42

Consoante a Hobbes, o corpo humano é uma instância de operações físicas, que recebe

impulsos exteriores que têm por objetivo desencadear a luta pela vida e o desejo de uma vida

prazerosa e pacífica. Existe no homem uma faculdade motriz interna que produz movimentos

externos e uma faculdade motriz do espírito que produz movimentos internos. Estes

movimentos internos e externos explicam o que Hobbes denominou de conatus43

, esforço

(endeavour) ou movimento direcionado rumo àquilo que o provoca, que não é outra coisa

senão o desejo ou apetite. O conatus leva consigo toda a capacidade passional do homem e

produz o esforço para alcançar o objeto desejado, caracterizando-se como responsável por

provocar uma cadeia de desejos. Essa cadeia de desejos aos quais os corpos humanos

encontram-se naturalmente submetidos demonstra a insatisfação e a insaciabilidade constante

à qual os homens estão submetidos e define a vida humana como um movimento infinito.

Os movimentos de busca pela preservação da vida e fuga da morte originados no

conatus dão sentido à compreensão da condição humana pelo princípio mecanicista. Isso

porque a vida é movimento, estar vivo é estar em movimento (vital) e “não existe uma

perpétua tranquilidade de espírito enquanto aqui vivemos, porque a própria vida não passa de

movimento, e jamais pode deixar de haver desejo, ou modo, tal como não pode deixar de

haver sensação” (FRATESCHI, 2008, p. 78). Todo o universo, inclusive o homem e a sua

vida em sociedade estão interconectados por um sistema mecânico; nada escapa a esta

articulação do movimento. O corpo humano funciona a partir de movimentos regulares como

peças interdependentes em relação ao todo.44

42

“O comportamento humano pode ser compreendido por meio da aplicação do mesmo modelo utilizado pra

compreender o comportamento dos corpos naturais em geral, isto é, por meio da teoria do movimento inercial –

a peculiaridade do homem residindo na posse da razão, ou seja, na capacidade de cálculo e previsão de eventos

futuros” (FRATESCHI, 2008, p. 70). 43

“O CONATUS (esforço) quando se dirige ou aponta para algo que é suposto como incremento das condições

de manutenção do movimento vital, é designado por Hobbes como apetite ou desejo. O oposto disso – quando o

conatus tende a se afastar do objeto – é denominado aversão” (FRATESCHI, 2008, p. 32). 44

“O princípio de inércia postula que, independentemente da natureza dos corpos, estes se movem do mesmo

modo segundo algo que não lhes é inerente nem lhes pertence como qualidade, mas que neles atua como força”

(BERNARDES, 2002, p. 13).

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Os desejos estão divididos entre aqueles que são inatos (ligados às necessidades

biológicas, independente da presença ou não do objeto desejado) e aqueles que advêm da

experiência em relação ao objeto desejado. Neste último caso, apresenta-se um acréscimo em

sua quantidade na proporção que aumenta a experiência com os objetos. Grande parte dos

desejos está ligada ao armazenamento de imagens pela memória que, por sua vez, é dada pela

experiência diversificada que o homem possui dos diversos objetos e pelas diferenças

oriundas do espaço e do tempo a que estão sujeitos os homens.

Neste cenário, a cadeia que liga sensação, conhecimento, imaginação e desejos fixa

uma nova relação entre sujeito e objeto, segundo a qual o objeto recebe as qualidades do

sujeito, que lhe impõe em conformidade com sua própria constituição fisiológica. Desse

modo, as qualidades que se percebem nos objetos, por meio dos sentidos, estão nos sujeitos e

não nos próprios objetos, ou seja, sujeito e objeto existem isoladamente e as qualidades dadas

ao objeto são, de forma efetiva, a maneira de sentir do sujeito. Tudo isso decorre pela pressão

dos objetos nos órgãos dos sentidos que ativam os nervos e o cérebro, causando

representações e aparências que não são senão ilusões causadas pelo movimento da matéria

no sujeito.

Os novos parâmetros da ciência nascente são absorvidos por Thomas Hobbes e

projetados na sua maneira de fazer filosofia e política. O homem não é mais visto como uma

criatura de Deus, com finalidade teleológica específica e sim como uma máquina ordenada,

cuja única pretensão é a permanência do movimento vital. Para que o homem consiga manter

seu movimento vital e alcançar o fim almejado pela primeira lei de natureza – a paz – é de

extrema necessidade a inexistência de obstáculos externos aos corpos, configurando assim, a

verdadeira e ilimitada liberdade humana. A natureza ampara e subsidia o homem, na sua luta

cotidiana, em busca da conservação do movimento vital. É diante desta realidade que

podemos afirmar que o homem hobbesiano é totalmente livre para procurar, de uma maneira

ou de outra, a defesa e a permanência do seu próprio movimento em paz.

1.4 A LEI BÁSICA DA VIDA HUMANA É O MOVIMENTO

Na introdução ao Leviatã, Thomas Hobbes enfatiza que “a vida não é mais do que um

movimento dos membros, cujo início ocorre em alguma parte principal interna” (1983, p. 05).

Esta maneira de Hobbes entender a vida não assinala apenas para os corpos providos de razão,

senão que para todo corpo que se movimenta. Frisamos, ainda, que todo corpo que se

movimenta não está na mesma ordem conceitual de todo corpo que está em movimento.

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43

Existem corpos que se movimentam e corpos que estão em movimento, de maneira que o

corpo que se movimenta é autônomo em sua ação, se move porque sente vontade e

necessidade de assim agir. Ao passo que, o corpo que está em movimento, se não iniciou o

movimento por sua própria capacidade, isto é indício de que algum outro corpo agiu sobre ele.

Há nos animais dois tipos de movimento que lhe são peculiares. Um deles

chama-se vital; começa com a geração, e continua sem interrupção durante

toda vida. Deste tipo a circulação do sangue, o pulso, a respiração, a

digestão, a nutrição, a excreção, etc. Para estes movimentos não é

necessário a ajuda da imaginação. O outro tipo é o dos movimentos animais

voluntários, como andar, falar, mover qualquer dos membros, da maneira

como anteriormente foi imaginado pela mente (LEVIATÃ, I, VI, p. 32).

A lei básica da vida humana é o movimento que posteriormente é dividido em dois

tipos presentes nos corpos vivos. Estes movimentos permanecem e são perceptíveis desde o

início até o fim do ciclo vital dos seres. Enquanto o primeiro – o vital – é o mais evidente,

pois enquanto a vida do corpo durar, seu coração vai pulsar, o seu sangue vai circular, o

segundo, também chamado de movimento animal, é menos notado, provavelmente, pois tem

origem na imaginação. Para saber que um ser está vivo, não precisamos abrir o seu peito e ver

o seu coração pulsar ou, então, enxergar o seu sangue correr por suas veias e artérias. Nada

disso é necessário. Basta que verifiquemos os efeitos de tais ações. Não é necessário que o

movimento seja visível para que constatemos a sua existência e ação, pois “embora os homens

sem instrução não concebam que haja movimento quando a coisa movida é invisível, ou

quando o espaço onde ela é movida (devido a sua pequenez) é insensível, não obstante estes

movimentos existem” (LEVIATÃ, I, VI, p. 32).

O movimento vital é a forma de movimento mais perceptível pelo homem porque

dispensa qualquer condição demonstrativa. Seja o corpo vivo que for, a manifestação vital

sempre será a mesma; a saber, a soma dos órgãos internos que colocam o corpo em

movimento. Neste caso, nem mesmo a imaginação é útil para a ratificação da veracidade do

movimento. Um homem em estado vegetativo está com suas partes internas em movimento,

as partes externas, por sua vez, com movimentos fragilizados. Nós não estamos vendo o

movimento interno do homem, dado que a sua externalidade representa imobilidade. Contudo,

não podemos negar que neste homem exista movimento vital, embora limitado.

O movimento animal, assim como o movimento vital, é comum a todo corpo vivente.

Enquanto o movimento vital exclui a ajuda da imaginação, a imaginação torna-se elemento

imprescindível no movimento animal, de sorte que, qual o princípio interno da fala senão a

imaginação daquilo que queremos tornar vocalmente conhecido aos outros? Qual o princípio

interno do ato de andar senão a própria imaginação de como e aonde queremos chegar com a

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nossa ação de andar? Qual o princípio interno do movimentar membros de nosso corpo senão

a própria imaginação anterior de como fazê-lo? A imaginação é comparada por Hobbes como

um resquício da visão, pois uma vez que vejo o pôr do sol, não preciso todos os dias vê-lo

novamente para saber da sua existência. Até podemos perder a visão e saber como o pôr do

sol acontece, basta imaginá-lo. Quando um corpo está em movimento, a sua tendência natural

é a preservação deste movimento pela eternidade. Se por ventura algum outro corpo vir a

obstruir o movimento deste corpo, a paralisação não será súbita, mas paulatina.

O mesmo acontece naquele movimento que se observa nas partes internas do

homem, quando ele vê, sonha, etc., pois após a desaparição do objeto, ou

quando os olhos estão fechados, conservamos ainda a imagem da coisa vista,

embora mais obscura do que quando a vemos. E é isto que os latinos

chamam imaginação [...]. A imaginação nada mais é portanto senão uma

sensação diminuída, e encontra-se nos homens, tal como em muitos outros

seres vivos, quer estejam adormecidos, quer estejam despertos (LEVIATÃ,

I, II, p. 11).

Por esta razão, o filósofo de Malmesbury é categórico ao afirmar que “e dado que

andar, falar e outros movimentos voluntários dependem sempre de um pensamento anterior

de como, onde e o que, é evidente que a imaginação é a primeira origem interna de todos os

movimentos voluntários” (LEVIATÃ, I, X, p. 53). Estes movimentos também são

conhecidos, além de animais, de voluntários, justamente porque dependem da vontade e do

esforço do homem. “Estes pequenos inícios do movimento, no interior do corpo do homem,

antes de se manifestarem no andar, na fala, na luta e outras ações visíveis, chamam-se

geralmente esforço” (LEVIATÃ, I, VI, p. 32).

O conatus, ou seja, o esforço ou empenho do homem para alcançar ou para se afastar

de determinado fim é o ponto de partida da ação humana e, posteriormente, da ação moral e

política. Podemos afirmar que o conatus é o esforço ou empenho do homem para se

aproximar daquilo que lhe agrada e é necessário para a sua vida ou, então, para se afastar

daqueles elementos que não são apreciados e úteis para o homem. A aproximação ou o

afastamento do homem em relação a qualquer objeto vai depender de seu grau de interesse no

cultivo do movimento vital. Se o objeto desejado é profícuo para a continuação do movimento

vital, o homem vai se esforçar, se empenhar para obtê-lo. Do contrário, se o objeto não for

idôneo de ajudar na preservação do movimento vital do homem, o esforço, o empenho será de

regressão, de afastamento do objeto em questão.

A partir deste movimento inicial, de empenho e de afastamento, Hobbes afirma que

toda ação humana é radicalmente determinada. Observemos o exemplo seguinte:

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45

A causa da sensação é o corpo exterior, ou objeto, que pressiona o órgão

próprio de cada sentido, ou de forma imediata, como na vista, no ouvido, e

no cheiro; a qual pressão, pela mediação dos mesmos, e outras cordas e

membranas do corpo, prolongada para dentro em direção ao cérebro e

coração, causa ali uma resistência, ou contrapressão, ou esforço do coração,

para se transmitir; cujo esforço, porque para fora, parece ser de algum modo

exterior (LEVIATÃ, I, I, p. 09).

Nesta mesma ótica interpretativa, em que o movimento inicial gera toda uma corrente

de conseqüências, não estranhamos que a felicidade, para Hobbes, se resuma ao ato do

homem alcançar o objeto desejado. Assim, a conquista do objeto desejado “é aquele a que

cada um chama bom; ao objeto de seu ódio e aversão chama mau, e ao de seu desprezo chama

vil e indigno. Pois as palavras ‘bom’, ‘mau’ e ‘desprezível’ são sempre usadas em relação à

pessoa que as usa” (LEVIATÃ, I, VI, p. 33).

Para o autor do Leviatã, a vida é compatível a uma corrida, cuja única pretensão é a

vitória. Não existe espaço para perdedores. É preciso vencer sempre. Após o esforço inicial, o

conatus, o homem deve fazer tudo que puder e tiver vontade para não ser ultrapassado, pois a

ultrapassagem é igual à miséria. Estar em constante ultrapassagem é vencer. Abandonar a

corrida é sinônimo de fim de movimento, é morrer. Quando um corpo está em movimento, a

sua tendência natural é a preservação deste movimento pela eternidade, ao menos que algo o

interrompa. Para Hobbes, a mesma realidade de movimento permanente é notada no

movimento que acontece nas partes internas dos corpos humanos, quando, na mente humana a

imagem da coisa ainda permanece, embora na ausência do objeto, a figura imaginada do

objeto está em movimento contínuo, embora mais obscura do que quando o homem a viu.

Portanto, “a imaginação nada mais é do que uma sensação diminuída, e encontra-se nos

homens, tal como em muitos outros corpos vivos, quer estejam adormecidos, quer estejam

despertos” (LEVIATÃ, I, II, p. 11). É na sequência desta dimensão de movimento que

começamos a compreender a natureza humana para o filósofo de Malmesbury, pois ela é

focada a partir de dois postulados.

O primeiro postulado afirma que a cobiça é característica inerente à natureza humana,

por meio desta, cada homem deseja fazer somente de sua propriedade tudo aquilo que é

comum a todos. O segundo postulado aponta para a razão natural, consoante a qual todo

homem deseja evitar a morte violenta como o maior de todos os males da natureza. Ambas

têm uma única finalidade, a saber, manter o movimento vital. A razão da natureza humana se

concretiza no fato de todo homem lutar, com todas as forças e possibilidades, com extrema

veemência, pela vida como o maior de todos os bens existentes na natureza. Ou seja, o

homem deve fazer todo esforço necessário e possível para manter o movimento vital. Esta é

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uma realidade que todo corpo humano tem consciência e é justamente por este motivo que a

natureza humana é particular e bélica. Particular porque cada qual busca proteger a sua vida

como a maior de todas as realidades encontradas na natureza. Bélica porque tal atitude é

natural a todos os singulares, tendo como conseqüência a luta de todos contra todos.

Desta guerra de todos os homens contra todos os homens também isto é

conseqüência: que nada pode ser injusto. As noções de bem e de mal, de

justiça e injustiça, não podem aí ter lugar. Onde não há poder comum não há

lei, e onde não há lei não há injustiça. Na guerra, a força e a fraude são as

duas maiores virtudes cardeais. A justiça e a injustiça não fazem parte das

faculdades do corpo ou do espírito. Se assim fosse, poderiam existir num

homem que estivesse sozinho no mundo, do mesmo modo que seus sentidos

e paixões. São qualidades que pertencem aos homens em sociedade, não na

solidão. Outra conseqüência da mesma condição é que não há propriedade,

nem domínio, nem distinção entre o meu e o teu; só pertence a cada homem

aquilo que é capaz de conseguir, e apenas enquanto for capaz de conservá-lo.

É pois esta miserável condição em que o homem realmente se encontra, por

obra da simples natureza. Embora com uma possibilidade de escapar a ela,

que em parte reside nas paixões, e em parte em sua razão (LEVIATÃ, I,

XIII, p. 77).

Além disso, o primeiro postulado permite apresentar o homem a partir de sua

tendência ao desregramento. O homem não nasce para obedecer a regras e para viver em paz

dentro da comunidade. São as regras externas que determinam ao homem a dinâmica do

cumprimento da lei. Neste estado natural do homem, o “meu” e o “teu” nada mais são do que

formas de exercício de poder, da potência indiscriminada de cada um em relação a todas as

coisas que existem na natureza.

O segundo postulado apregoa que por via deste desregramento natural, o homem

acaba contornando a situação e se regrando. O estabelecimento de regras surge na medida em

que ele raciocina, isto é, calcula o modo como usufruirá ou se apropriará do “meu” em função

do que o outro coloca como “teu”. Agindo desta maneira, o homem tende a resistir ou a ceder

ao ataque violento anunciado pelo outro. Por conseqüência, atuando neste ritmo o movimento

da vida humana está se mantendo e do mesmo modo a liberdade natural. Se por via do cálculo

o homem pressente que vai angariar conquistas para o bem de sua vida, a tendência é de

prosseguir no seu anseio. Ao contrário, se calculando os fatores externos que os circundam, o

homem percebe que não existe chance contra seu adversário, a ação mais racional é a fuga. A

motivação subjetiva torna-se a razão fulcral de estruturação de uma relação político-racional

entre os homens. Como isso é possível se a natureza humana é individualista?

Consoante a Hobbes, o homem não tem em sua natureza a tendência à ação social. Ao

contrário, o homem, seguindo os passos estabelecidos por natureza, e isso é categórico para o

filósofo político de Malmesbury, procura a própria satisfação e o próprio benefício e nunca o

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do outro. Esta interpretação de Hobbes inverte o sentido apresentado pelos gregos acerca da

polis. Os homens não estão mais para servir a cidade/estado, mas o inverso, a cidade/estado

está para servir aos homens. A coletividade é substituída pela individualidade.

O caráter ficcional do status naturalis hobbesiano reverte em benefício do

indivíduo o clássico primado da polis, isto é, não se trata mais de considerar

os humanos como membros da cidade, mas de ver o que os leva a renunciar

à prevalência natural exercida sobre a coletividade (HECK, 2002, p. 544).

O homem tende a fugir do outro e se isolar em seus próprios anseios, isso porque

todos tendem a manter o movimento vital e, diante da figura externa do outro, que é um

presságio de perigo, o homem inclina-se à solidão e ao isolamento. Essa é a possível resposta

para a prevalência da individualidade sobre a coletividade. Mesmo após a instauração do

Leviatã a prevalência será a da individualidade, pois os homens só aceitam pactuar porque,

por meio do cálculo, percebem mais chances de se manter vivos com a presença das leis do

que na ausência delas. Vale ressaltar, novamente, que a sociedade não é congênita à natureza

do homem, mas ele, visando preservar-se, aproxima-se do outro.

E uma coisa é certa: queremos o que contribui melhor para garantir a

satisfação do desejo, seja ele qual for, e não podemos querer o que leva à

aniquilação do movimento do desejo, por meio do qual certos bens, sejam

eles quais forem, são determinados. A noção de autoconservação não

designa, portanto, um objeto privilegiado do desejo, mas representa o desejo

juridicamente, sejam quais forem os desejos (LIMONGI, 2009, p. 29).

Os homens não se unem porque se amam ou se gostam. Eles apenas se aturam, pois

percebem na relação pacífica com o outro a maior possibilidade de garantia e de satisfação

dos próprios desejos. Portanto, o que segura os homens em uma relação entre si é o medo

mútuo da paralisação do movimento vital (morte). O medo de paralisar a cadeia de desejos

subjetivos e, pior do que isso, o medo de nunca mais usufruir dos prazeres da vida, sejam eles

quais forem. O medo, em Hobbes, parece assumir uma conotação bilateral: ao mesmo tempo

em que condiciona o homem a pactuar com o outro homem e viver em paz, ele também é a

fonte de um encadeamento de conflitos. Contudo, o que os homens buscam, em última

instância, é a permanência do movimento vital. O movimento vital não pode acontecer de

qualquer maneira, pois, se assim fosse, os homens poderiam permanecer em estado natural,

mas como os homens visualizam a vida prazerosa e pacífica, eles aceitam pactuar.

O raciocínio político de Hobbes é: sejam quais forem os bens visados pelos

indivíduos, o Estado é manifestamente a melhor forma de obtê-los na

medida em que aumenta nosso poder de autoconservação, isto é, nosso poder

de desejar e satisfazer nossos desejos, sejam eles quais forem (LIMONGI,

2009, p. 29).

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48

Ao contrário da vida regrada que é apresentada pelo Estado civil, existe uma condição

de direito indiscriminado de todos a todas as coisas. Este estado é denominado por Hobbes de

estado natural. Pois:

Em meio aos perigos que a natureza cobiça traz todos os dias para cada um,

não há como condenar ninguém por tomar suas precauções; ao contrário, não

é possível agir de outro modo. Todo indivíduo é levado por uma força da

natureza, não menor do que a que impele a pedra para baixo, a desejar o que

é um bem para si e a evitar o que é um mal, sobretudo o maior de todos os

males naturais, a morte. Não é, portanto, absurdo nem condenável nem

contra a reta razão fazer-se todo esforço para preservar e defender da morte e

dos sofrimentos o próprio corpo e os membros. E o que não é contrário à

razão todos consideram conforme com a justiça e com o direito. A palavra

direito não significa nada mais do que a liberdade que o indivíduo tem para

usar suas capacidades naturais segundo a reta razão. (DE CIVE, I, I, p. 53).

Importante perceber que o direito humano é indiscriminado porque ainda se ignora a

existência da concepção de crime, da mesma maneira que o homem continua alheio ao

significado de certo e errado, legalidade e ilegalidade, moralidade e imoralidade. A concepção

de liberdade concebida por Hobbes no estado natural é compreendida como uma liberdade

selvagem, de sorte que os homens livres se movimentam a mercê dos fundamentos da

política, simplesmente guiados por sua paixão e razão. Hobbes configura o homem como um

corpo provido de liberdade sem limites e de amplitude exorbitante, muito aquém de ser

considerada uma liberdade política, de modo que os homens exercem seu direito natural a

todas as coisas, buscando vorazmente os elementos necessários para a perpetuação do

movimento da vida. Conforme Hobbes: “o primeiro fundamento do direito natural é, portanto,

que todo homem proteja quando possível sua vida e os membros do corpo” (DE CIVE, I, I, p.

53). Todo homem está autorizado a fazer tudo o que for possível e necessário para manter a

sua vida em movimento.

O direito natural é categórico com relação ao homem, ou seja, todo homem tem direito

alienável à sua vida. A vida do homem não entra como cláusula ou condição em nenhum

pacto ou contrato45

, pois ela é o maior de todos os bens do homem. Para Hobbes, “seria inútil,

porém ter direito aos fins sem ter direito aos meios necessários. Assim, já que todos têm o

direito de preservar-se, é lógico que tenha também o direito de usar todos os meios e de

efetuar todas as operações sem as quais não pode preservar-se a si mesmo” (DE CIVE, I, I, p.

54). Isso equivale a dizer que todo homem é protagonista da sua existência e o único

45

“Segurança é o fim que faz os homens se submeterem uns aos outros. Não havendo segurança, compreende-se

que ninguém se submete a ninguém nem renuncia ao direito de defender-se como bem lhe parecer. Mas, ao

contrário, não se compreende que o indivíduo esteja obrigado a prestar algo ou tenha renunciado a seu direito a

todas as coisas antes de serem tomadas providências para sua segurança contra o medo” (DE CIVE, II, VI, p.

103).

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responsável por manter o movimento da sua vida. Ele faz uso da sua razão e das condições

externas a ele a fim de poder manter-se em movimento livre. Poder usufruir e fazer o que bem

entender com os elementos que a natureza disponibiliza é viver verdadeiramente livre.

Quando os homens pactuam, fazendo o uso da reta razão, eles transferem o direito sobre as

coisas, limitando assim a sua condição de donos dos bens da natureza.

O estado natural é, para Hobbes, um estado pautado na razão humana. A “razão [...]

nada mais é do que cálculo (isto é, adição e subtração) das conseqüências de nomes gerais

estabelecidos para marcar e significar nossos pensamentos” (LEVIATÃ, I, V, p. 27). Longe

de afirmar uma soberania da razão como sistema político dominante, senão que um estado

guiado e normatizado pelos preceitos da razão subjetiva, entendemos que cada homem se vale

da própria razão (cálculo) para ponderar os elementos a favor e os contrários ao seu

movimento vital46

. Cada homem, impulsionado pelo seu desejo de viver, raciocina os meios

mais viáveis para alcançar o fim almejado e os propõem no coletivo, pois “digo marcar

quando calculamos para nós próprios, e significar quando demonstramos ou aprovamos

nossos cálculos para os outros homens” (LEVIATÃ, I, V, p. 27). É no interior do estado

natural que Hobbes encontra o gérmen da instituição estatal. Eis porque Thomas se posiciona

severamente contra Aristóteles, cuja compreensão acenava para o Estado como uma condição

necessária e indispensável da natureza humana.

A maior parte dos autores que escreveram sobre república partem do

pressuposto ou do postulado de que o homem é um animal que já nasce apto

para a sociedade. Os gregos chamam-no de Zôon politikón. Sobre esta base

tais autores constituíram uma ampla doutrina da sociedade civil, a ponto de

se concluir dela que nada mais seria preciso para a preservação da paz e do

governo de todo gênero humano que os homens adotarem que em conjunto

pactos e certas condições, a que em seguida tais autores dão o nome de leis.

Entretanto, este axioma, embora aceito por muitos, é falso; seu erro

originou-se de uma visão demasiada superficial da natureza humana. Pois,

para quem quiser ver mais de perto as causas que fazem os homens se

juntarem e quererem a companhia dos outros, aparecerá com clareza que isso

acontece, não porque não possa ser de outro modo naturalmente, mas sim de

modo acidental (DE CIVE, I, I, p. 50).

Conforme Hobbes, Aristóteles partiu de um axioma equivocado e parcial em relação à

natureza humana, no momento que deduziu ser o Estado uma necessidade intrínseca à vida do

homem. Para Hobbes, o homem não precisaria gerar acordos da magnitude que pensou

Aristóteles, se acordos semelhantes, de proporções inferiores, trariam os mesmos efeitos para

o homem em comunidade. Nenhum acordo engendra leis que sirvam para normatizar em

46

“A razão hobbesiana é exclusivamente uma faculdade que calcula meios para a realização de fins postos pelos

desejos e não tem, por si mesma, eficácia natural para conformá-los” (FRATESCHI, 2008, p. 15).

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absoluto. Ora, sem laços de obediência absoluta, nenhuma sociedade seria possível,

conseqüentemente, a instabilidade seria produzida até a manifestação extrema; que se

configura em guerra de todos contra todos.

O motivo pelo qual os homens se reúnem para viver em sociedade é essencialmente

diferente do motivo que conduz os animais. Os mais diversos desvios de comportamento

animal, sempre conduzem para um fim comum. Ao passo que, “comparados com os seres

políticos da tradição, os humanos parecem entes que destoam da ordem natural” (HECK,

2002, p. 537). De fato, a sociedade não é natural ao homem. A sociedade animal é natural, a

humana, ao contrário, é artificial, de modo que a sua construção e manutenção é uma tarefa

perene de todos os homens envolvidos. Em outros termos, os homens se unem por acidente e

não por uma disposição necessária da natureza inerente a eles.

Na compreensão de Hobbes, as paixões humanas não conduzem os homens ao

convívio social e pacífico, e sim a condições de sedição, cálculos relativos, egoísmo, vivência

individualizada. Os principais sentimentos que emanam da natureza humana são: o ciúme, a

inveja e o ódio e as virtudes são apenas duas: força e astúcia.

A natureza fez os homens tão iguais, quanto às faculdades do corpo e do

espírito que, embora por vezes se encontre um homem manifestamente mais

forte do corpo, ou de espírito mais vivo do que outro, mesmo assim, quando

se considera tudo isto em conjunto, a diferença entre um e outro homem não

é suficientemente considerável para que qualquer um possa também aspirar,

tal como ele. Porque quanto à força corporal o mais fraco tem força

suficiente para matar o mais forte, que por secreta maquinação, quer aliando-

se com outros que se encontrem ameaçados pelo mesmo perigo (LEVIATÃ,

I, XIII, p. 74).

Por meio destas características concernentes à natureza humana, o homem vê na

pessoa do outro um inimigo em potencial constante. Interessante notar que a razão humana,

neste caso específico, não atua como moderadora das ações humanas violentas. A sua função

é justamente a de potencializar a estratégia a ser adotada pelo homem frente às diversas

situações. Na mesma direção atua a linguagem do homem, ou seja, ele não age consoante à

verdade de suas proposições, de modo que visa apenas comportamentos performativos,

consoantes à sua intenção subjetiva, em prol de um movimento vital. Tal atitude alimenta um

estado de guerra geral. Portanto, a conclusão de Hobbes é de que a sociabilidade não é um

elemento intrínseco à natureza do homem, mas um ato puramente político.

Ato puramente político porque exige que os homens criem leis e as cumpram a fim de

que a permanência de suas vidas, em condição pacífica, seja exercida. Desta união entre os

homens, o cotidiano é caracterizado por normas e leis, cada qual com sua devida

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conseqüência jurídica. Isso porque o homem é um corpo inconstante, movido por paixões

singulares e interesses subjetivos. Para frear esta motivação bélica, em estado pacífico, o

homem necessita de uma instância de poder que assegure e mantenha os laços sociais. Para

Hobbes não há diferença de essência entre um homem e outro. Todos agem impulsionados

pelo mesmo motivo: a permanência do movimento vital livre e não só nisso que eles se

igualam, mas também no direito a todas as coisas e, por extensão, na liberdade ilimitada. São

iguais, na mesma medida, no medo que paira sobre suas cabeças da morte violenta.

Por via do ciúme e da inveja particular a reunião dos homens fica inconsistente. A

inconsistência sugere que não é da natureza do homem a paz comum e sim o contrário. Diante

deste cenário, Hobbes exclama o seguinte:

Ninguém deve duvidar que os homens, caso não existisse o medo, seriam

levados por sua natureza mais sofregamente para dominação do que para

sociedade. Devemos, portanto, estabelecer que a origem das sociedades

amplas e duradouras não foi a boa vontade de uns para com os outros, mas o

medo recíproco entre os homens (DE CIVE, I, I, p. 52).

O medo é um elemento intrínseco à natureza do homem. Se for natural, é pertencente a

todos os indivíduos de maneira equitativa. Se pertencer a todos, isso se configura como um

elemento central na identidade igualitária do homem. “Logo, os homens são por natureza

iguais entre si. A desigualdade que atualmente existe foi introduzida entre eles pela lei civil”

(DE CIVE, I, I, p. 52). Uma leitura desatenta sobre as teorias de Hobbes e poderíamos afirmar

que o homem, por natureza, tem vontade de causar danos ao outro homem (e isso poderia ser

um elemento equitativo entre eles, de maneira que todos os particulares buscam maltratar o

outro). Entretanto, não se trata propriamente da vontade de causar danos ao outro (vale

ressaltar que o homem hobbesiano não é mal, ele apenas busca o benefício próprio. Entre eu e

ele, melhor que eu viva), mas sim de uma atitude anterior e prudente que o homem adota

diante do outro homem. O ataque ao outro acontece quando ambos desejam o mesmo objeto.

Este desejo acontece de duas maneiras: A primeira forma, a mais moderada, é perceptível

àquele homem que deseja para o outro a mesma proporção que deseja para si. A segunda

forma, em grau mais elevado, é notável naquele homem que vive de uma pseudo noção de

suas próprias potencialidades. Enquanto o primeiro, com vista na igualdade natural, permite

para o outro aquilo que seria suficiente para si, o segundo sugere a necessidade subjetiva.

A causa mais freqüente de quererem os homens fazer mal uns aos outros está

em que muitos têm ao mesmo tempo desejo da mesma coisa, quando o mais

das vezes não a podem consumir em comum repartir. Segue-se então que

deve ser entregue ao mais forte; e quem é o mais forte, há que se decidir com

a luta (DE CIVE, I, I, p. 53).

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A natureza predicou todos os homens de direitos iguais. Desde que a batalha travada

com o outro seja legítima, isto é, em função da utilidade que o elemento desejado e causador

da briga trará ao vencedor, não há entrave algum da isenção de ambas as partes. A natureza

possibilitou e forneceu os meios necessários para o conflito no momento que determinou a

todos os homens a liberdade ilimitada de fazer tudo o que for necessário para salvaguardar a

vida. Não existe fuga, o homem é obrigado pela natureza e, portanto, totalmente coagido a

fazer o que for necessário e possível para sua vida. Ora, se o instinto de preservação natural

do homem for somado ao direito natural de todo homem a todas as coisas, isso se configura

em um cenário legítimo de guerra de todos contra todos. Neste estado, uns homens, providos

de todo direito e movidos por seus desejos, atacam e, outros, com igualdade de direito e

desejo, defendem. Conforme Hobbes:

Não se pode negar que o estado natural dos homens, antes de entrarem em

sociedade, era a guerra, e isso não de qualquer modo, mas uma guerra de

todos contra todos. E o que é guerra, senão aquele tempo em que se

manifesta inequivocamente a vontade de lutar com a força, por palavras e

atos? Chama-se PAZ o tempo restante (DE CIVE, I, I, p. 55).

Os homens, imbuídos no estado de guerra e com direitos naturais equitativos, não

podem esperar o gozo da velhice pacífica. Neste estado, aqueles que alcançam mais tempo de

vida vivem como verdadeiros heróis. Por este motivo, “é ditame da reta razão, isto é, da lei

natural, buscar a paz, enquanto houver alguma esperança de alcançá-la; e que quando não

possível alcançá-la, prepara a guerra, isto é, adquirindo os meios auxiliares da guerra” (DE

CIVE, I, I, p. 56). É a natureza que autoriza o homem à guerra, a fim de manter o movimento

vital, contudo, a guerra deve ser buscada em última instância, somente quando o homem não

tiver mais nenhuma possibilidade de viver em paz e harmonia.

A lei natural é o seguimento da reta razão acerca daquilo que o homem deve fazer ou

omitir para manter a sua vida.

Mas como todos concedem ser legítimo o que não for contra a reta razão,

devemos julgar injustas as ações que repugnam à reta razão, isto é,

contradizem alguma verdade deduzida de princípios verdadeiros pelo correto

raciocínio. Dizemos, então, que é contra alguma lei a ação injusta, feita

contra algum direito. Por isso, reta razão é uma certa lei que sendo parte da

natureza humana não menos do que qualquer outra capacidade ou potência

da alma, também é designada natural. Definindo, portanto, lei natural é um

ditame da reta razão sobre as coisas a fazer ou omitir para garantir-se, quanto

possível, a preservação da vida e das partes do corpo (DE CIVE, I, II, p. 58-

59).

Diante deste cenário que retrata a essência do homem, Hobbes conclui que o Estado

não passa de um produto da razão humana, embora ninguém esteja preocupado com o

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movimento vital do outro, mas apenas com o próprio47

. Os homens se toleram porque, via

raciocínio (cálculo), auferiram maiores condições de preservação do movimento vital quando

estiverem vivendo em paz com os outros48

. Contudo, o egoísmo e a cobiça subjetivos

mantêm-se em um plano potencial, sendo, às vezes, reprimidos em nome da ‘boa relação’

com os outros, mas que em última instância está para embasar o princípio do benefício

próprio49

. Para Hobbes, os homens continuam a vislumbrar o horizonte da guerra de todos

contra todos como uma probabilidade, mas é dever do homem viver em sociedade com o

intuito de evitar a morte violenta. É do encargo do homem, enquanto cidadão, renunciar o seu

poder indiscriminado e arbitrário sobre todas as coisas e assim viver sob o jugo do Estado.

Hobbes trava uma árdua batalha para aprimorar o poder civil. Entre a liberdade abusiva e a

autoridade despótica, Hobbes postula um Estado soberano, de liberdade condicionada, mas

comprometido com a preservação da vida, de certa maneira, é um poder absoluto em

consonância como o pacto social. Por este motivo, a concepção de Thomas Hobbes é

puramente dedutível da natureza humana e da sociedade organizada.

A concepção de natureza humana de Thomas Hobbes segue os parâmetros da nova

ciência, obedecendo a um conjunto de determinados elementos “como consistindo nas

faculdades naturais do seu corpo e mente, e podem ser todas compreendidas nestas quatro, a

força do corpo, a experiência, a razão e a paixão” (ELEMENTOS, I, XIV, p. 93). A natureza

se produz mecanicamente e se explica por movimentos contínuos e, uma vez iniciados, desde

que não haja a interrupção por parte de outro corpo, tal movimento dura pela eternidade.

Hobbes vislumbra a natureza à sua volta como uma grande máquina, onde os corpos estão em

movimentos contínuos, transversalmente determinados por leis mecânicas. O sistema

filosófico político de Hobbes está embasado na noção de que tudo o que existe é corporal e

elucidado pelo movimento externo a este corpo, isso se evidencia na Introdução ao Leviatã,

“pois vendo que a vida não é mais do que um movimento dos membros, cujo início ocorre em

alguma parte principal interna, por que não poderíamos dizer que todos os autômatos [...]

possuem uma vida artificial?” (1983, p. 05). Dois elementos caracterizam esta visão da

47

“Segundo Hobbes, a tendência natural do homem é a busca de benefícios para si mesmo, e não a associação

com outros homens” (FRATESCHI, 2008, p. 14). 48

“Para Hobbes a aptidão para vida social é uma característica adquirida, e não natural; a sociedade é fruto de

uma escolha e não de obra da natureza” (FRATESCHI, 2008, p. 15). 49

“Para Hobbes, os homens têm um impulso natural não para vida em comunidade, mas para preservação de si

mesmos e para obtenção de benefícios próprios” (FRATESCHI, 2008, p. 13).

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filosofia materialista e mecanicista de Thomas Hobbes, são eles: as verdades a priori da

geometria de Euclides e a física de Galileu50

.

Além desses dois elementos influentes do pensamento de Hobbes, existe a inegável

presença do pensamento de Bacon no que concerne ao interesse e ao compromisso teórico

com o empirismo. É a partir dessa miscelânea ordenada de características que se configura o

novo modelo de ciência do século XVI e XVII. Hobbes se torna um pensador expoente dentro

desta nova corrente científica e a sua filosofia passa a ser notadamento materialista e

mecanicista, e isso se estende aos vários segmentos do pensamento do filósofo político ingles:

assim como a percepção é explicada mecanicamente a partir das excitações transmitidas pelo

cérebro, também a moral se reduz ao interesse e à paixão, ambos despertados pelos

movimentos externos ao homem. Na fonte de todos os valores humanos há o que Hobbes

denomina endeavour, em inglês, e conatus, em latim, isto é, o instinto de conservação ou,

mais exatamente, de afirmação e de crescimento de si próprio; esforço próprio a todos os

corpos para unir-se ao que lhes agrada e fugir do que lhes desagrada.

Imbuído e dominado pelos novos princípios mecanicistas e matemáticos, Hobbes leva

seu materialismo às últimas consequências, afirmando que tudo o que existe é corpo e

movimento. O corpo é sensível e experimentável, pode ser dividido ou somado, os corpos são

reais e o movimento é a única explicação para tais fenômenos naturais. Para Hobbes, os

corpos51

e os movimentos bastam para explicar todos os acontecimentos e fenômenos

existentes na realidade que circunda o homem; justamente por esta razão que não existe nada

além da corporeidade e do movimento que dá dinamismo à matéria corpórea. O princípio de

tudo é o movimento, o mesmo que gera e dá dinamismo às coisas. O homem individual é um

mecanismo, uma máquina a ser analisada, pois “há um ditado que ultimamente tem sido

muito usado: a sabedoria não se adquire pela leitura dos livros, mas do homem” (LEVIATÃ,

I, III, p. 16). Dessa forma, os corpos são reduzidos à extensão e as qualidades em

movimentos. Exterior ao homem existe apenas corpo e movimento.

Este movimento atenderá pelo nome de matematização da natureza52

. Basicamente, a

matematização da natureza consiste na substituição do espaço concreto das experiências

50

“O respeito pela física de Galileu deveu-se ao contato anterior de Hobbes com as verdades a priori da

geometria. Ou seja, Hobbes admirava Galileu e sua obra em virtude da relação que tanto quanto Galileu, e suas

respectivas obras, mantinham com a geometria euclidiana. Diga-se de passagem, uma relação de dependência

para ambas as teorias” (BERNARDES, 2002, p. 12). 51

Na medida que não admite outra realidade senão a corpórea, Hobbes considera os movimentos dos corpos no

espaço e em tempos sucessivos como o princípio universal no qual tudo se gera como também se explica, tanto o

mundo físico como também o humano (religião, moral, política). Sendo assim, é o movimento o princípio da

formação do conhecimento e do agir” (WOLLMANN, 1993, p. 21). 52

Cf. BERNARDES, Julio. Hobbes e a Liberdade. Rio de Janeiro: Zahar, 2002, p. 12 e 13.

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55

sensíveis pelo espaço geométrico, efeito da noção materialista e mecanicista proporcionados

pelo novo modelo de ciência. A geometrização do espaço real é substituída pelo espaço

abstrato da geometria. Isso faz com que a natureza passe a ser explicada por meio da noção de

movimento e as qualidades sensíveis das coisas a partir dos movimentos transmitidos ao

organismo pelos corpos externos (causa e efeito). Mais do que isso, a natureza (entendida

como o todo, o universo) ganha proporções infinitas, contrapondo-se à antiga concepção de

cosmo53

pensada pela ciência de matriz aristotélica. Tanto a substituição do espaço sensível

pelo espaço geométrico como a contraposição da natureza do cosmo limitada com o universo

infinito “acabam por proporcionar a invenção da lei de inércia – princípio geral da natureza

que sepulta a idéia de um cosmo cindido em domínios distintos e orientado por diferentes

princípios” (BERNARDES, 2002, p. 13). A partir desta jovem concepção de ciência, o mundo

é pensado e caracterizado como uma generalização perfeita, indivisível. Não existe mais a

noção de perfeição imutável e a corrupção da realidade, o que existe é uma realidade

determinada por um único princípio. “A geometrização do espaço advém da necessidade

pitagórica de apresentar as formas ou leis do mundo pela gramática da matemática”

(BERNARDES, 2002, p. 13). Neste prisma, o mundo é compreendido como um espaço

homogêneo, sem distinção de dominantes e dominados, como um universo infinito e regido

de forma unívoca por uma força externa a qualquer corpo.

Para os teóricos da nova ciência, esta força externa ao corpo é o princípio de inércia54

.

Consoante a Bernardes, “o princípio de inércia postula que, independentemente da natureza

dos corpos, estes se movem do mesmo modo segundo algo que não lhes é inerente nem lhes

pertence como qualidade, mas que neles atua como força” (2002, p. 13). Hobbes toma o

movimento (lei de inércia) como o princípio de sua filosofia, aceita que tudo o que existe

consiste em corpos em movimento e a prevalência da geometria às demais ciências, e dela

dependem a física, a moral e a política. Disso tudo se deriva que Hobbes assume para sua

filosofia política uma relação de causalidade, cujas categorias de causalidade adotadas são a

de causa eficiente e a de causa material. Para Hobbes todas as coisas existem (corpos) e se

encontram em um estado cinético55

, isto é, se o estado de um determinado corpo não é

53

Cosmo ou cosmos para os gregos antigos (do grego antigo κόσμος, transl. kósmos, "ordem", "organização") é

um termo que designa o universo em seu conjunto, toda a estrutura universal em sua totalidade, desde o

microcosmo ao macrocosmo. O cosmo é a totalidade de todas as coisas deste Universo ordenado, desde as

estrelas, até as partículas subatômicas. 54

“A concepção da natureza humana é apresentada por Hobbes como uma aplicação particular de uma nova

concepção da natureza em geral, mecanicista e fundada na lei da inércia” (FRATESCHI, 2008, p. 14). 55

Importante salientar que o termo “cinético” designa uma parte da mecânica que estuda os movimentos sem se

referir às forças que os produzem ou às massas dos corpos em movimento.

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decorrência da sua natureza específica, então, alguma força nele atuou como causadora desse

movimento.

Para Júlio Bernardes, o conceito de liberdade, em Thomas Hobbes, é assinalado pelo

seu comprometimento intelectual com as cláusulas que configuram a nova ciência, isso gera a

certeza de que “a concepção hobbesiana é tributária da teoria mecanicista e materialista, que

defende a tese de que a realidade é constituída por matéria e movimento e condicionada pela

lei de inércia” (2002, p. 19). A terminologia em torno da liberdade hobbesiana é comumente

conhecida e disseminada como ausência de todo e qualquer impedimento externo ao

movimento que não é intrínseco ao corpo. Se fosse efetivada uma análise acurada do princípio

de inércia, perceber-se-ia uma confluência com a definição de liberdade postulada por

Hobbes, certo que “o princípio de inércia pressupõe um estado ideal de ausência absoluta de

impedimentos (o vácuo) para que possamos, então, conceber a idéia de permanência

indefinida de um corpo em um estado cinético qualquer” (BERNARDES, 2002, p. 19). A

ausência de impedimento externo para que o homem possa fazer aquilo que quiser e aquilo

que puder é o mesmo pressuposto do princípio de inércia (vácuo), onde os corpos podem se

movimentar de forma livre e sem obstáculo algum. À medida que Hobbes naturaliza a

liberdade e a condiciona ao princípio soberano de toda natureza (inércia), ele a generaliza e a

torna condição de todo corpo e não apenas dos racionais. Tudo o que existe está submetido ao

movimento natural.

A aplicação da idéia de movimento dos corpos e da realidade materialista, que

caracteriza o estatuto epistemológico da ciência nascente, é o que Hobbes aplica à sua teoria

política filosófica. O que é o corpo humano senão composição material bem ordenada? O que

é a vida humana senão movimento ao encontro daquilo que é necessário ou repúdio diante

daquilo que não é necessário para mantê-la em constante movimento? O que é a morte senão

a paralisação total deste movimento gerador de vida? Portanto, o que é a liberdade humana

senão o próprio movimento que visa recolher elementos úteis à vida? Para que isso ocorra, o

corpo livre, seja o homem ou não, não pode encontrar impedimento externo. Ora, a ação

normal da vida humana, conforme a lei de natureza, é que ela se mantenha

independentemente dos fatores externos que estão à sua volta. Por este motivo que Hobbes é

taxativo ao afirmar que o homem é livre no silêncio da lei, de modo que a lei é um fator

externo coercitivo ao movimento livre e voluntário do homem. Por outro lado, Hobbes

também afirma que o homem encontra sua liberdade e age livremente dentro dos parâmetros

estipulados pelo soberano. Parece ser uma concepção contraditória postulada pelo filósofo de

Malmesbury, contudo, antes de demonstrar uma contradição interna do pensamento de

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Hobbes, acredita-se que seja uma artimanha retórica, cuja origem de cada qual está embasada

em um contexto específico. “Pois não existe uma perpétua tranqüilidade de espírito, enquanto

aqui vivemos, porque a própria vida não passa de movimento, e jamais pode deixar de haver

desejo, ou medo, tal como não pode deixar de haver sensação” (LEVIATÃ, I, VI, p. 39).

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2 ANTROPOLOGIA DE HOBBES: CORPO FÍSICO E LIVRE

Neste capítulo intitulado “Antropologia de Hobbes: corpo físico e livre”, pretendemos

mostrar que os aspectos da natureza humana postulados pelo filósofo inglês transcendem a

compreensão tradicional no instante que caracterizam um ‘novo paradigma de homem’.

Iniciando pela concepção natural que o homem hobbesiano está inserido em uma categoria

peculiar, apolítica, cuja noção não passa de uma situação possível para posterior descrição do

sentido pelo qual o Estado foi criado, seguiremos o pensamento de Hobbes em torno da

natureza humana a partir da primeira lei de natureza. Neste espaço, é de fundamental

importância o bom uso da razão e da linguagem como condição de externalização da vontade

do indivíduo frente o ato nocivo à sua vida. O homem raciocina (calcula), impelido pelo

movimento dos corpos externos a ele, e comunica a sentença decidida, com vistas à

preservação da sua vida. A conclusão que o homem hobbesiano alcança é a da

impossibilidade de manter o seu movimento vital, de maneira que ele é um corpo em

movimento e para o movimento.

2.1 O ESTADO NATURAL COMO UMA SITUAÇÃO POSSÍVEL

O estado natural como uma situação possível, dá margem à compreensão que ele não

tem ou teve uma existência histórica (portanto o estado de natureza não é encontrado na

história real e concreta do homem) e que é mais do que uma mera hipótese (hipótese

entendida como raciocínio preliminar suscetível de desconstrução). O estado natural como

uma situação possível é a possibilidade de vir a ser determinada forma de ação do homem na

ausência de um poder forte e centralizado. Melhor dizendo, como seria ou como agiria o

homem na inexistência da lei civil. A questão central que está sendo aqui discutida é a relação

dos homens, sem a lei civil e a relação dos homens, na presença da lei civil. Quando Heck cita

Macpherson essa questão se demonstra com mais nitidez:

O estado natural hobbesiano resulta da interferência de um tipo de paixão

que molda o homem civilizado na ausência de um poder comum, ou seja,

refere-se àquele comportamento que homens assumiriam quando ninguém

mais exigisse a observância das leis e daquilo que está devidamente

acordado entre eles. Para chegar ao estado de natureza, “Hobbes

desconsidera a lei, mas não as condutas e os desejos humanos socialmente

adquiridos” (2002, p. 534).

O estado natural é um dos significativos lados da ‘dialética política’ do pensamento de

Hobbes. Seguida da própria constituição do Estado e todo seu aparato executivo, legislativo e

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59

judiciário. Em última instância, este método didático, próprio dos pensadores contratualistas,

não passa de uma maneira elucidativa e possível de apontar indícios ligados à natureza

humana, propriamente à ação do homem, quando da ausência de um poder externo coercitivo,

capaz de conduzir os homens à aceitação e ao cumprimento de um determinado regime. Com

este contexto literário – longe de ser o mais agradável – Hobbes quis justificar a presença de

um poder forte – soberano – no seio da sociedade. Este poder se caracteriza pela reunião dos

diversos e singulares poderes distanciados. Com a soma de todos, o Leviatã encontra o seu

sentido de ser e a sua grandeza frente ao pequeno e mísero súdito.

Outros pensadores, além de Hobbes, adotaram esta nomenclatura para explicar o

motivo pelo qual o homem, vivendo absolutamente livre, pactua com os outros homens e

instaura o Estado civil56

. Ao instaurar o Estado civil o homem limita seu direito natural às

coisas e segue sua vida com possibilidades reais de preservação, tanto no âmbito cultural,

artístico, lingüístico, agrário e outros. Dizer que o homem limita seu direito natural às coisas,

é igualmente afirmar que o homem se isenta de usufruir dos bens que ele tem poder de

possuir, de maneira que “o poder de um homem (universalmente considerado) consiste nos

meios de que presentemente dispõe para obter qualquer visível bem futuro” (LEVIATÃ, I, X,

53). Outra interpretação plausível diante do fato do homem não estar usufruindo dos bens que

ele tem direito, é dizer que o homem está sendo impedido de agir com a liberdade que a

própria natureza lhe conferiu.

O autor do Leviatã apresenta duas maneiras do poder humano se mostrar. O poder

pode ser original – natural – ou instrumental. Para o primeiro significado, Hobbes entende a

junção e a exacerbação das faculdades do corpo e do espírito humano, tais como força, beleza,

prudência, liberalidade. No que concerne ao segundo sentido de poder, lembramos todos os

instrumentos que são adquiridos pelos homens, portanto meios, para se alcançar determinada

finalidade, tendo como antecedente o poder natural. São eles: a riqueza, os amigos, a

reputação. Além dos mais, o poder não é um meio que pertence somente a uma parcela ou a

outra da humanidade, senão que à universalidade humana. Frente a esta constatação natural,

começa-se a delinear a dificuldade do convívio humano. Ora, se todos os homens têm poder

56

Para Noberto Bobbio: “Com certa aproximação, pode-se falar (e se tem frequentemente falado) de um ‘modelo

jusnaturalista’ sobre a origem e o fundamento do Estado e da sociedade política (ou civil), que, partindo de

Hobbes (sua figura mais alta), chega até Hegel incluído-excluído, modelo utilizado, ainda que com notáveis

variações de conteúdo, que de resto não modificam seus elementos estruturais, por todos os maiores filósofos

políticos da época moderna. (Falo propositalmente não de ‘escritores’ políticos em sentido lato, mas de

‘filósofos’ políticos pretendendo referir-me a escritores de política que visam à construção de uma teoria geral

do homem e da sociedade, ou de qualquer modo articulada com esta teoria, de Spinoza a Locke, de Pufendorf a

Rousseua, de Kant ao primeiro Fichte e à miríade de kantianos menores que acompanham o fim da escola do

direito natural” (1991, p. 01).

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(direito) a todas as coisas – lembremos que o direito é tomado como liberdade – a situação de

desconforto que se instalará é iminente.

Por esta razão, antes de qualquer conclusão sobre a identidade do estado de natureza é

imprescindível entendê-lo como uma das partes de uma dicotomia. Ora, se por um lado temos

o estado de natureza, que é avesso ao convívio humano pacífico (e que não passa de uma

situação possível), de outro lado, necessariamente, temos um estado mais profícuo à

realização da vida agradável e mais aprazível ao convívio humano em grupo, porém, o

homem está preocupado somente com a sua própria preservação e, de maneira alguma com a

atualização de sua potencialidade coletiva e social, como pensava Aristóteles.

Se, com efeito, o homem amasse naturalmente, isto é, enquanto homem, não

se encontraria nenhuma razão plausível para o fato de que cada indivíduo

não ama o outro por igual, sendo homem por igual; ou ainda por que prefira

freqüentar mais aqueles em cuja companhia lhe são reconhecidas, mais do

que a outros, honra e vantagem. Por causa de nossa natureza, não buscamos

a sociedade por si mesma; o que queremos é receber dela honras e

vantagens; estas em primeiro lugar, aquelas, depois (DE CIVE, I, I, p. 50).

Do outro lado da dicotomia encontramos o chamado Estado civil. O primeiro se

caracteriza pela condição apolítica, com ausência de leis comuns, ao passo que o segundo tem

como essência a presença de leis comuns e, por este motivo, político. Enquanto o estado de

natureza é constituído por indivíduos singulares, não associados uns em relação aos outros,

totalmente livres e providos de igualdade, no Estado civil os homens se reúnem sob o pretexto

da preservação da própria vida, porém, amparados pela lei civil.

O modelo dicotômico de estado – natural e civil – apresentado por Hobbes, na

interpretação de Norberto Bobbio ganha seis elementos norteadores, são eles: 1 o estado

natural é antipolítico, 2 o estado político surge como uma antítese ao estado antipolítico, 3 os

indivíduos em estado natural não são associados, 4 os indivíduos no estado natural são livres

(liberdade ilimitada) e iguais, 5 a passagem do estado natural para o estado civil não acontece

por força física, mas por convenção – geralmente. Esta convenção é enraizada no processo

deliberativo sob a promessa de uma vida melhor e mais prazerosa. Assim o estado político é

artificial, produto da cultura e não da natureza e, por fim, 6 a legitimidade deste estado

artificial está no consenso existente entre seus habitantes57

.

57

A citação de Norberto Bobbio, na íntegra, referente às características do estado natural de Thomas Hobbes é a

seguinte: “1 o ponto de partida da análise da origem e do fundamento do Estado é estado de natureza, ou seja,

um estado não político e antipolítico; 2 entre o estado de natureza e o estado político, há uma relação de

contraposição, no sentido de que o estado político surge como antítese ao estado de natureza (do qual é chamado

a corrigir ou eliminar os defeitos); 3 o estado de natureza é um estado cujos elementos constitutivos são, primária

e principalmente, os indivíduos singulares não associados, embora associáveis (digo “principalmente”, e não

“exclusivamente”, porque podem ter lugar, mesmo no estado de natureza, sociedades naturais, como a família); 4

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A partir dos seis elementos norteadores apresentados por Bobbio e não obstante a

variante dos autores contratualistas, ao menos duas características perpassam a todos e podem

ser assim definidas. A primeira delas: o fornecimento de elementos que justificam a

necessidade do Contrato entre os homens como instrumento de transição do estado de

natureza para o estado civil. A segunda que se destaca pode ser assim dita: a dos homens e

seus comportamentos peculiares, em estado natural, não passarem de uma situação possível.

Ou seja, não existem registros históricos da existência real de um estado e nem de homens

como estes. São artifícios da linguagem e do pensamento humano para se entender o

fundamento do ato de viver em sociedade. O autor do Leviatã é incisivo ao refutar a

prerrogativa de que o estado natural tenha sido uma realidade histórica ou um ‘modelo’ de

sociedade que tenha existido em sua época. Mais incabível é pensar que nos dias atuais ainda

possa existir uma sociedade com tais características apolíticas como as descritas por Hobbes

em suas obras políticas. Por conta disso, não podemos remontar ao passado e apontar tal

sociedade como estereótipo histórico de como seria toda e qualquer sociedade na ausência de

poder coletivo e coercitivo.

Em relação a esta discussão, Norberto Bobbio refere-se da seguinte maneira:

Falo de “modelo” não por capricho ou para servir-me de uma palavra de

consumo fácil, mas unicamente para expressar de modo imediato a idéia de

que, na realidade, jamais existiu uma formação histórico-social tal como a

descrita. Na evolução das instituições que caracterizam o Estado moderno,

ocorreu a passagem do Estado feudal para o Estado dos estamentos, do

Estado dos estamentos para a monarquia absoluta, da monarquia absoluta

para o Estado representativo, etc. A imagem de um Estado que nasce do

consenso recíproco de indivíduos singulares, originalmente livres e iguais, é

uma pura construção do intelecto (1991, p. 02).

Bobbio esclarece esta discussão intelectual amparado na própria maneira de Hobbes

tratá-la, de forma que para Hobbes não há sentido em compreender o estado natural como

histórico e literal. Isso pode ser encontrado na seguinte passagem do Leviatã: “Poderá

porventura pensar-se que nunca existiu um tal tempo, nem uma condição de guerra como esta,

e acredito que jamais tenha sido geralmente assim, no mundo inteiro” (LEVIATÃ, I, XIII, p.

os elementos constitutivos do estado de natureza (ou seja, os indivíduos, bem como os grupos familiares para

aqueles que os admitem) são livres e iguais uns em relação aos outros, de modo que o estado de natureza é

sempre figurado como um estado no qual reinam a liberdade e a igualdade (ainda que com sensíveis variações,

que dependem das diferentes acepções com as quais os dois termos são empregados); 5 a passagem do estado de

natureza ao estado civil não ocorre necessariamente pela própria força das coisas, mas através de uma ou mais

convenções, ou seja, através de um ou mais atos voluntários e deliberados dos indivíduos interessados em sair do

estado de natureza, com a consequência de que o estado civil é concebido como um ente “artificial”, ou, com se

diria hoje, como um produto da “cultura” e não da “natureza” (de onde resulta a ambigüidade do termo “civil”,

que é adjetivo ao mesmo tempo de civitas e de civilitas); 6 o princípio de legitimação da sociedade política,

diferentemente de qualquer forma de sociedade natural, em particular da sociedade familiar e da sociedade

patronal, é o consenso” (BOBBIO, 1991, p. 02).

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76). Posterior a esta concepção de que o mundo não comportaria um estado com tais

características, Hobbes salienta que “há muitos lugares onde atualmente se vive assim”

(LEVIATÃ, I, XIII, p. 76). Buscando fundamentar a sua, no mínimo questionável afirmação,

fruto de uma mentalidade inglesa e burguesa, Hobbes salienta:

Porque os povos selvagens de muitos lugares da América, com exceção do

governo de pequenas famílias, cuja concórdia depende da concupiscência

natural, não possuem qualquer espécie de governo, e vivem em nossos dias

daquela maneira embrutecida que acima referi (LEVIATÃ, I, XIII, p. 76).

Ao descrever o estado de natureza como uma possibilidade e não como uma realidade

histórica, Hobbes está interessado em mostrar de que forma os homens, na ausência de leis

comuns e impelidos por suas paixões, agiriam. “Seja como for, é fácil conceber qual seria o

gênero de vida quando não havia poder comum a recear, através do gênero de vida em que os

homens que anteriormente viveram sob um governo pacífico costumam deixar-se cair, numa

guerra civil” (LEVIATÃ, I, XIII, p. 76). Hobbes chega a esta conclusão por conta da atitude

dos seus contemporâneos, que mesmo sob o jugo das leis civis, agiam de forma desregrada e,

em certa medida, como povos selvagens. Isso pode ser ratificado com a passagem seguinte:

Mas mesmo que jamais tivesse havido um tempo em que os indivíduos se

encontrassem numa condição de guerra de todos contra todos, de qualquer

modo em todos os tempos os reis, e as pessoas dotadas de autoridade

soberana, por sua independência vivem em constante rivalidade, e na

situação e na atitude dos gladiadores, com as armas assestadas, cada um de

olhos fixos no outro; isto é, seus fortes, guarnições e canhões guardando as

fronteiras de seus reinos, e constantemente com espiões no território de seus

vizinhos, o que constitui uma atitude de guerra. Mas como através disso

protegem a indústria de seus súditos, daí não vem como conseqüência aquela

miséria que acompanha a liberdade dos indivíduos isolados (LEVIATÃ, I,

XIII, p. 77).

Portanto, o estado de natureza hobbesiano expressa a própria condição da humanidade

avessa a uma lei comum: a guerra de todos contra todos. A guerra de todos contra todos não

necessita do conflito físico para acontecer, mas se efetiva com a simples intenção de não

manter a paz. Este ato já é considerado guerra. Quando uns homens invadem, embasados no

direito natural e outros com o mesmo direito resistem, ambos estão vivendo em condição

perpétua de guerra58

. O ato de atacar e de defender caracteriza a condição natural de guerra.

Thomas Hobbes define o estado de natureza da seguinte maneira:

O estado dos homens em sua liberdade natural é o estado de guerra. Pois a

guerra nada mais é do que o tempo no qual há vontade de disputar e

contestar por meio da força, seja com palavras ou com ações suficientemente

58

Cf. ELEMENTOS, I, XIV, p. 96.

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declaradas; e o tempo que não é guerra, este é de paz (ELEMENTOS, I,

XIV, p. 96).

O estado de natureza coloca o homem como um corpo provido de todo direito e,

especialmente, de liberdade ilimitada para alcançar o fim que seu direito lhe dá condição, a

saber, a preservação da própria vida. Acontece que o mesmo direito pertence a todos os

homens, tornando-os iguais, assim que é “um direito de natureza que todo homem possa

preservar a sua própria vida e membros, com toda a potência que possui” (ELEMENTOS, I,

XIV, p. 95). Esta discussão é inserida por Hobbes logo no início do capítulo XIII, cuja

identidade da natureza humana é caracterizada a partir das faculdades do corpo e do espírito59

.

A força e a astúcia são como que imperativos neste mundo natural. Ambas amparam a disputa

dos homens pela preservação da vida. Contudo:

Por vezes se encontre um homem manifestamente mais forte de corpo, ou de

espírito mais vivo do que outro, mesmo assim, quando se considera tudo isto

em conjunto, a diferença entre um e outro homem não é suficientemente

considerável para que um possa com base nela reclamar qualquer benefício a

que outro não possa também aspirar, tal como ele. Porque quanto à força

corporal o mais fraco tem força suficiente para matar o mais forte, quer por

secreta maquinação, quer aliando-se com outros que se encontram

ameaçados pelo mesmo perigo (LEVIATÃ, I, XIII, p. 74).

Com relação às faculdades do corpo, embasado no fragmento acima, notamos a não

supremacia, por assim dizer, do sujeito particular em relação ao outro. Até determinado limite

– o da particularidade – podemos entender a condição corporal e de espírito como algo

realmente vantajoso e relevante. Noutras palavras, em um conflito direto e particular, é mais

do que provável que o mais forte vença o mais fraco e não ao contrário.

Mas desde que se supõe, pela igualdade da força e outras faculdades naturais

dos homens, que nenhum homem sozinho possui força suficiente para

assegurar por muito tempo a sua própria preservação por meio dela,

enquanto ele permanece no estado de hostilidade e de guerra, a razão dita,

portanto, que cada homem, para o seu próprio bem, procure a paz à medida

que existir a esperança de consegui-la; também, que se fortaleça com toda a

ajuda que puder procurar, para a sua própria defesa contra aqueles com quem

a paz não pode ser obtida; e que faça todas as coisas que conduzirem

necessariamente à paz (ELEMENTOS, I, XIV, p. 97).

O mundo natural de Hobbes aceita a ‘secreta maquinação’, o que dá margem para que

o homem tenha total liberdade para entrar em comum acordo com o outro homem – quando o

fim almejado for semelhante – e ambos somem força e astúcia para abater o adversário. Além

do mais, vale pensar se tal maquinação – cálculo prudencial – seria um prelúdio do Estado

59

Cf. LEVIATÃ, I, XIII, p. 74.

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64

civil ou não? (Tendo em vista que o ‘pacto’ foi estabelecido para se chegar ao fim particular –

o da preservação da própria vida).

No que tange às faculdades do espírito, consoante Hobbes, “encontro entre os homens

uma igualdade ainda maior do que a igualdade de força” (LEVIATÃ, I, XIII, p. 74), isso

significa dizer que os homens igualam-se mais pela própria sabedoria do que por qualquer

outra coisa. A sabedoria é elemento extremamente apreciado a tal ponto de ser capaz de

inquietar o homem diante de outros homens. Alguns por se sentirem menosprezados frente

tanto conhecimento e eloqüência, outros, por sua vez, por se auto-reconhecerem superiores

aos outros. Interessante notar que, embora o homem consiga reconhecer que no outro homem

exista uma sabedoria semelhante à sua – geralmente considerável – o consolo reside na

concepção de que no mundo existem pouquíssimos com tamanha genialidade. Este é um

sentimento recorrente a todo gênero humano.

Dificilmente encontraremos homens subordinados a outros homens com menor

provimento intelectual do que o seu. Isso faz parte de uma condição natural humana, a saber,

o de não se prostrar diante de seres inferiores – a menos que a vida esteja em risco. “Mas isto

prova que os homens são iguais quanto a esse ponto, e não que sejam desiguais. Pois

geralmente não há sinal mais claro de uma distribuição equitativa de alguma coisa do que o

fato de todos estarem contentes com a parte que lhes coube” (LEVIATÃ, I, XIII, p. 74). As

faculdades do espírito, sobretudo a sabedoria, verdadeiramente, equiparam todos os homens.

Com base nesta expectativa generalizada da natureza humana, os homens estimulam-

se à ‘competição’. Na verdade não é uma competição, mas é a busca pela própria defesa de

seu movimento vital. Esta busca é sem limite quanto aos resultados, pois os homens procuram

estocar o maior número de bens possível para a manutenção de suas vidas, e sem regras

específicas para os meios que os conduzem. Quando os meios, não seguem diretrizes

comportamentais pré-estabelecidas e responsáveis com relação ao outro, o resultado mais

óbvio é guerra.

E a guerra, uma vez iniciada, tende à perpetuação e à escalada, levando os

indivíduos a “uma guerra que é de todos os homens contra todos os

homens.” (p. 79). Contudo, o fundamental, no raciocínio de Hobbes, não é a

guerra efetiva, mas o estado de guerra, isto é, a possibilidade constante da

eclosão da violência. Basta esta possibilidade para o homem se tornar o lobo

do homem. O estado de guerra, apesar da expectativa de êxito, é também a

experiência do medo diante da violência e da morte. A combinação do medo

com os desejos de conforto e deleite sensual, entre outros, inclinam os

homens a buscar a paz (KRITSCH, 2010, p. 91).

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65

O medo que o homem tem de morrer, o coloca em uma condição de antecipação em

relação ao outro homem. O que primeiro atacar, tenderá a viver por mais tempo. Contudo,

esta ainda não é uma maneira viável para manter a vida e a liberdade. O homem percebe,

então, que é na instituição de um poder único que reside toda possibilidade de vida

confortável e paz. É com a soma de todos os poderes singulares espalhados que o homem

pode projetar desejos e viver em melhores condições. “O maior dos poderes humanos é aquele

que é composto pelos poderes de vários homens, unidos por consentimento numa só pessoa,

natural ou civil, que tem o uso de todos os poderes na dependência de sua vontade”

(LEVIATÃ, I, X, p. 53). Para Hobbes, a soma de todos os poderes em apenas uma pessoa,

seja ela natural ou civil, é representada na figura do Estado. Esta solução artificial do homem

pode ser apresentada como se todos os homens, fazendo uso da razão e da linguagem de

maneira correta, tivessem concordado entre si e chegado a um acordo comum para encontrar a

paz60

. Contudo, a existência do outro lado da dicotomia, o estado natural, ainda que como

uma mera construção intelectual, nesta situação, é primordial.

2.2 DESCRIÇÃO DA NATUREZA HUMANA A PARTIR DA PRIMEIRA LEI DE

NATUREZA EM HOBBES

Segundo Hobbes, a lei de natureza primeira e fundamental de todo esquema

existencial humano é:

Buscar a paz quando for possível alcançá-la; quando não for possível,

preparar os meios auxiliares da guerra. Mostramos no último Artigo do

Capítulo anterior que este preceito é um ditame da reta razão. Que os

ditames da reta razão são leis naturais, acabamos de provar acima. Esta é a

primeira porque as outras derivam dela e nos ensinam os modos de adquirir a

paz ou preparar a defesa (DE CIVE, I, II, p. 57).

E é dando seguimento a esta concepção que Thomas Hobbes localiza no homem uma

máquina natural submetida a estrito encadeamento de causas e efeitos, o qual envolve apetites

e aversões. Seus desejos têm objetos distintos, variam de intensidade, e são sujeitos a

mudanças (podem perder sua importância). Nesse contexto, subjetivizam-se os conceitos de

bem e mal, afirmando-se ser o bem o que satisfaz os apetites de glória, dinheiro e poder, e o

mal, o que conteria os apetites e geraria aversões. Faz parte da natureza humana agir

deliberadamente, visar sempre a satisfação de seus desejos, e a ganância. Devido à

possibilidade de variação na intensidade dos seus desejos, uns almejam porções maiores que

os outros, o que não interfere no propósito comum a todos: o mantimento do movimento vital.

60

Cf. LEVIATÃ, I, XIII, p. 77.

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66

Por via de qualquer estudo aguçado em torno das obras políticas de Thomas Hobbes, é

possível perceber duas classes de orientações distintas. Uma primeira assevera que os

trabalhos conceituais de Hobbes recorrem a uma metodologia analítica e oferecem uma

reconstrução conceitual de sua filosofia, estabelecendo relações entre as suas obras e

discutindo em que medida elas são coerentes entre si. Uma segunda linha de pesquisa aponta

que as investigações hobbesianas adotam uma perspectiva histórica e, assim, interpretam o

pensamento do filósofo político inglês como fundamentalmente apoiado na consideração dos

problemas políticos de sua época. Desta maneira, é correto afirmar que:

A teoria política é apresentada por nosso autor como parte de um sistema

geral de filosofia, de orientação mecanicista, que tenta explicar a partir de

princípios científicos todos os feitos naturais, incluindo entre eles a conduta

humana individual e coletiva (COSTA, 1997, p. 33).

Tomando como ponto de partida o princípio de que o movimento é a característica

comum de todos os acontecimentos naturais, Hobbes deduz que pode explicar com uma

metodologia semelhante o comportamento dos corpos físicos (racionais ou não), a conduta

humana particular (sensação, sentimento e pensamento) e a conduta social. De acordo com

Costa, “esta última consiste no movimento de indivíduos que atuam tomando em conta aos

demais, movimento cujo mecanicismo convém reconhecer como a chave para a arte de

governar” (1997, p. 34). Tal noção pode ser percebida na introdução do “Leviatã”, quando

Hobbes compara a organização do Estado com o corpo humano, de maneira análoga a

soberania com a alma ou vida de um corpo, a sedição com a enfermidade e a guerra com a

morte.

O Estado é instituído pela utilização correta da razão e da linguagem dos corpos

humanos61

, como efeito de um contrato entre indivíduos racionais, livres e iguais. Ressaltar o

caráter artificial do Estado, não significa reduzi-lo a uma simples cópia da natureza, senão que

o resultado da articulação livre, igualitária e racional dos corpos humanos. Hobbes está

tratando de corpos humanos que são igualmente livres e providos dos mesmos direitos, isso

porque “a natureza fez os homens tão iguais, quanto às faculdades do corpo e do espírito”

(LEVIATÃ, I, XIII, p. 74). Estes homens vivem em um reino de liberdades sem limites e, por

esta razão, “o estado de natureza apresenta uma série de falências e inconvenientes, que

podem corrigir-se ou remediar-se instaurando o Estado civil” (COSTA, 1997, p. 38).

Hobbes se propõe a estudar o corpo humano e o corpo político (Estado) aplicando uma

metodologia de análise comparativa entre ambos. A inquirição inicia pelas sensações e segue

61

Cf. FRATESCHI, 2000, p. 75

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a sua trajetória pela imaginação, os desejos, a linguagem, a razão, as paixões, as virtudes e,

por fim, os vícios dos corpos humanos. Na investigação das sensações, o filósofo de

Malmesbury se alicerça na noção de movimento como causa das mesmas. A vida é um

movimento e, continuar vivo supõe uma série de movimentos contínuos, de sorte que “as

pessoas não só desejam satisfazer seus desejos senão também assegurar a satisfação futura.

No fim das contas, tentam conservar sua vida e adquirir satisfações [...] e, por outra parte,

procuram evitar o descontentamento, a dor e, sobretudo, a morte” (COSTA, 1997, p. 44).

Daqui se segue “que toda humanidade possui um perpétuo desejo de poder, que só termina

com a morte” (COSTA, 1997, p. 45). Alguns movimentos, denominados vitais, são

involuntários, como a circulação do sangue ou respiração; outros, chamados por Hobbes de

movimentos animais, são voluntários, como andar, falar ou mover alguma parte do corpo62

.

No que concerne ao movimento da deliberação, este não se ocupa daquilo que é

impossível de ser realizado, senão que o homem só tem a liberdade de fazer aquilo que está ao

alcance da possibilidade. Tal realidade supõe certo cálculo das prováveis conseqüências,

benévolas ou malévolas de determinado curso de ação. “O último apetite ou aversão de

deliberação, o que se encontra mais próximo à ação ou omissão, constitui a vontade ou o ato

de querer” (COSTA, 1997, p. 43). Dessa forma, Hobbes nega que a vontade seja um apetite

racional, porque se fosse o homem estaria impossibilitado de cometer atos voluntários

irracionais e, mesmo uma ação causada por incontinência, avareza, ou qualquer apetite ou

aversão é considerada voluntária.

Na descrição da natureza humana, Hobbes destaca uma série de semelhanças entre os

corpos humanos. Todos possuem as mesmas paixões e procuram continuamente satisfazer

seus desejos e evitar danos à sua condição corpórea. Todos são relativamente iguais em

sabedoria, já que esta é o resultado da experiência subjetiva, dentro do espaço e do tempo.

Além do mais, todos os homens são igualmente vaidosos com respeito ao valor de sua própria

opinião, isso pelo motivo que:

Todo homem tem por natureza direito a todas as coisas, ou seja, a fazer

qualquer coisa que lhe apraz e a quem lhe apraz, a possuir, a utilizar e

usufruir todas as coisas que quiser e puder. Considerando que todas as coisas

que ele deseja devem ser boas em sua própria natureza, porque ele as deseja,

e podem se inclinar à sua preservação uma vez ou outra, ou assim ele pode

julgá-las e nós o fizemos o juiz delas, [...], segue-se que todas as coisas

podem ser feitas por ele justamente [...]. E por esta causa é que se diz

justamente que [...] ‘a natureza deu todas as coisas a todos os homens’, de tal

62

“Para explicar o movimento voluntário, Hobbes faz referência aos apetites e às aversões, que originam um

esforço para obter ou evitar algo. As paixões que motivam o comportamento humano são também movimentos

que podem reduzir-se em última instância ao apetite ou amor, e ao ódio ou aversão” (COSTA, 1997, p. 42).

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maneira que o jus e o utile, o direito [...] e o útil [...], são a mesma coisa. Mas

aquele direito de todos os homens sobre todas as mesmas coisas não é, em

efeito, melhor do que se homem algum não tivesse direito a coisa alguma.

Pois é de pouco uso e proveito o direito que um homem tem quando um

outro mais forte, ou pelo menos mais forte do que ele, tem direito à mesma

coisa (ELEMENTOS, I, XIV, p. 95-96).

A partir desta noção da igualdade básica das faculdades dos corpos humanos, o

filósofo político inglês infere que todos os homens têm igual expectativa em satisfazer seus

desejos e em conservar suas vidas e, como se não bastasse, todos têm igual direito a tentar

ambas as coisas. Dessa maneira “a noção de igualdade natural hobbesiana, unida à de

liberdade absoluta (que equivale à ausência de um governo) é a que permite explicar a

situação de guerra do estado de natureza” (COSTA, 1997, p. 46). A lei de natureza

desempenha um papel fundamental na explicação da passagem do estado de natureza ao

Estado civil. Com efeito:

Com “leis de natureza” Hobbes não se refere às leis no sentido de

regularidades que explicam o comportamento dos corpos, senão que as

regras que indicam aos seres humanos como lhes convém comportar-se.

Estas leis ou regras são naturais porque todos os seres racionais as conhecem

“naturalmente”, ou seja que sua razão lhes indica (COSTA, 1997, p. 51).

A lei de natureza é um conjunto de preceitos razoáveis que guiam os homens a atingir

o que desejam, cujo fim seja para seu próprio bem e para sua própria preservação. Neste

sentido, “uma lei de natureza (lex naturalis) é um preceito ou regra geral, estabelecido pela

razão, mediante o qual se proíbe a um homem fazer tudo o que possa destruir sua vida ou

privá-la dos meios necessários para preservá-la, ou omitir aquilo que pense poder contribuir

melhor para preservá-la” (LEVIATÃ, XIV, p. 78). Neste estado de natureza os homens

possuem apenas um direito, garantido pela natureza, que se define como a liberdade de

utilizar todos os meios, tomados como necessários, para a própria sobrevivência.

No que tange ao problema da liberdade, no Leviatã, sobretudo no capítulo XXI, a

questão nuclear “se embasa, em primeiro lugar, em relação à sua concepção mecanicista de

mundo, ou seja, a ideia de que todos os sucessos – incluindo as ações humanas – são

provocados por causas prévias” (COSTA, 1997, p. 63). Diante disso, é intrigante a relação

conciliadora entre este suposto determinismo (todo movimento é provocado por causas

presumidas) e a afirmação de Hobbes de que todos os homens, no estado de natureza,

possuem liberdade plena. Talvez a saída para esta intrigante questão esteja na associação que

Hobbes faz entre liberdade e necessidade, visto que:

A liberdade e a necessidade são compatíveis: tal como as águas não tinham

apenas a liberdade, mas a necessidade de crescer pelo canal, assim também

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as ações que os homens voluntariamente praticam, dado que derivam de sua

vontade, derivam da liberdade; ao mesmo tempo que, dado que os atos da

vontade de todo homem, assim como todo desejo e inclinação, derivam de

alguma causa, numa cadeia contínua [...], elas derivam também da

necessidade (LEVIATÃ, II, XXI, p. 130).

Mais do que associação entre liberdade e necessidade, Hobbes toma-as como

sinônimas. Conciliar a liberdade à necessidade, não implica em “tirar a liberdade” da

liberdade, uma vez que o homem, provido de liberdade máxima, no estado natural,

efetivamente também é provido de necessidade, mas que a ação do agente livre possui causas

necessárias, que são as esperanças, os medos, os desejos e as aversões.

A liberdade não pode significar uma interpretação dos processos causais, não

pode ser a ausência de causas físicas. Talvez por este motivo Hobbes recorre

ao critério de ausência de impedimentos externos para oferecer um conceito

negativo da liberdade, segundo o qual sou livre na medida em que os outros

– coisas, animais ou seres humanos – não me impedem fazer o que desejo

(COSTA, 1997, p. 64).

A definição de liberdade como ausência de impedimento externo é aplicada para todo

corpo existente em movimento, o que vem a ratificar a herança do movimento, proposto pela

ciência nascente, adotado por Hobbes e aplicado ao seu sistema filosófico político. Dessa

maneira, um homem é livre quando não encontra impedimentos externos para as suas ações.

Contudo, se as suas limitações forem internas e derivadas das suas próprias incapacidades,

este indivíduo não carece de liberdade, mas sim de inteligência, força ou qualquer outra

habilidade. Assim mesmo o homem é livre quando atua motivado por fortes paixões, como

por exemplo, o medo, uma vez que “o medo e a liberdade são compatíveis” (LEVIATÃ, II,

XXI, p. 129).

Se um homem é livre para fazer tudo o que quer e que tem possibilidade de fazer,

parece que esta condição só ganha consistência no estado de natureza. Pois ali os homens

gozam de um direito natural que consiste na “liberdade que cada homem tem de usar seu

próprio poder, como ele quer, para a preservação de sua própria vida” (COSTA, 1997, p. 67),

tal atitude implica que o homem tenha direito a todas as coisas, justamente porque “as leis de

natureza não limitam essa liberdade natural porque são somente conselhos prudentes e

porque, [...], obrigam in foro interno mas não in foro externo” (COSTA, 1997, p. 67). Para

Hobbes, as leis civis não têm o poder de limitar a liberdade dos homens. “Tal liberdade não

resulta do silêncio das leis, mas do fato de que o estado natural continua relevante no estado

civil na medida em que é “evidente”, para Hobbes, “que todo súdito tem liberdade em todas

as coisas cujo direito não pode ser transferido por um pacto” (HECK, 2002, p. 537). Continua

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Heck, citando Macpherson, a demonstrar que o homem dentro dos meandros do estado

político ainda permanece livre: “o homem natural é o homem civilizado, apenas com a

restrição legal removida” (2002, p. 537). Essa inversão, do natural para o civil, serviu para

mostrar que o homem, dentro do estado político, pode negar-se a tomar certas atitudes, as

mesmas que podia tomar no estado natural, por exemplo, brigar pela sua vida, e assim

comprova-se que o Leviatã não limita totalmente o homem em relação à sua liberdade. Quem

cumpre as leis por temor ao castigo, é livre porque nada o impede a desobedecer. Quando um

indivíduo desobedece e é enviado à prisão, ainda assim continua a gozar da sua liberdade

(pode mexer uma sobrancelha, um dedo, ou qualquer outro órgão), porém, a sua ação livre

encontra certas restrições. “A lei civil constitui ao mesmo tempo uma ordem e uma ameaça de

coação da liberdade futura dos que são livres no presente para desobedecer. Por suposto, nos

recorda Hobbes, os homens também são sempre livres de fazer tudo o que a lei civil não

proíba” (COSTA, 1997, p. 67).

A passagem do estado de natureza ao civil, Hobbes a define como um ato livre e

voluntário dos homens, motivado pela paixão do medo e a esperança (medo da paralisação do

movimento vital – morte violenta – e a esperança de uma vida melhor – confortável e em

paz), em que se relacionam a liberdade absoluta (direito natural) e a segurança (direito civil).

A partir deste momento, o único que passa a gozar da liberdade absoluta é o soberano, visto

que está acima das leis civis63

. A diferença entre liberdade natural e liberdade civil:

Pode ser mais bem compreendida partindo do feito de que, no estado de

natureza, o termo ‘liberdade’ aparece geralmente no singular, como o direito

de todo homem a todas as coisas, enquanto que na República o súdito não

goza de liberdade absoluta senão de liberdades, que são instituídas e

apresentadas pela lei civil. Neste contexto, ‘liberdades’ significam os direitos

concedidos a todos os súditos pelas leis da República, que os obrigam e

protegem ao mesmo tempo (MARGARITA COSTA apud COSTA, 1997, p.

68).

Thomas Hobbes postulou uma teoria cuja essência do homem está embasada em uma

concepção mecânica da natureza. Isso se demonstra bastante evidente na introdução ao

Leviatã, pois “do mesmo modo que tantas outras coisas, a natureza (a arte mediante a qual

Deus fez e governa o mundo) é imitada pela arte dos homens também nisto: que lhe é

possível fazer um animal artificial” (LEVIATÃ, 1983, p. 05). Aqui observamos, ainda que

tácito às entrelinhas, a aplicação mecânica na natureza humana em dois momentos distintos, a

saber, nos homens enquanto corpos particulares:

63

“Mas essa limitação da liberdade natural abre a possibilidade de novas ações que eram impossíveis no estado

de natureza, como dedicar-se a cultivar as artes e as ciências” (COSTA, 1997, p. 68).

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71

Pois vendo que a vida não é mais do que um movimento dos membros, cujo

início ocorre em alguma parte principal interna, por que não poderíamos

dizer que todos os autômatos (máquinas que se movem a si mesmas por

meio de molas, tal como um relógio) possuem uma vida artificial? Pois o

que é o coração, senão uma mola; e os nervos, senão outras tantas cordas; e

as juntas, senão tantas outras rodas, imprimindo movimento ao corpo

inteiro, tal como foi projetado pelo Artífice? (LEVIATÃ, 1983, p. 05).

Hobbes descreve a mecânica da natureza humana análoga à mecânica de um relógio.

Assim como o construtor do relógio o fabricou e o colocou em movimento e, este já não

depende mais daquele, o homem é um corpo autômato, pois, posterior ao movimento iniciado

pelo Artífice, é capaz de se mover em uniformidade à autopreservação. E, no segundo

momento, no que concerne ao Estado:

A arte vai mais longe ainda, imitando aquela criatura racional, a mais

excelente obra da natureza, o Homem. Porque pela arte é criado aquele

grande Leviatã a que se chama Estado, ou Cidade (em latim Civitas), que

não é senão um homem artificial, embora de maior estatura e força do que o

homem natural, para cuja proteção e defesa foi projetado (LEVIATÃ, 1983,

p. 05).

No estado natural, pré-político, cuja diferenciação física e as faculdades do espírito

ainda são inexistentes, surge um direito amplo e irrestrito de cada homem livre. Esta condição

gera a tensão da possível guerra universal de todos contra todos. Primeiramente existe uma

igualdade baseada nas capacidades e, em segundo plano, uma igualdade com relação às

expectativas de satisfação dos desejos. Toda essa paridade de forças provoca a instabilidade.

Quando se incluem nessa igualdade as paixões e desejos particulares, somada à certeza de que

os bens naturais são escassos, os homens passam de iguais a inimigos mortais. Isso significa

que a igualdade natural em racionalidade, desejos e paixões constitui-se como fonte geradora

e instauradora da guerra geral.

Além disso, desde que os homens são, pela paixão natural, de diversas

maneiras ofensivos uns aos outros, e todo homem pensa bem acerca de si e

odeia constatar o mesmo nos demais, eles devem provocar uns aos outros

por meio das palavras e outros sinais de desprezo e ódio, que são incidentes

a toda comparação, até finalmente mostrarem a preeminência pela potência e

força do corpo (ELEMENTOS, I, XIV, p. 94).

Thomas Hobbes continua:

Considerando que os apetites de muitos homens levam-nos para um e o

mesmo fim, este fim algumas vezes nem pode ser usufruído em comum, nem

dividido, segue-se que o mais forte deve usufruí-lo sozinho, e que é decidido

por meio de batalhas em favor do mais forte. E portanto a maior parte dos

homens, sem assegurar-se enquanto maioria, entretanto por meio da vaidade,

ou comparação, ou apetite, provocam os demais, que de outra maneira

ficariam satisfeitos com a igualdade (ELEMENTOS, I, XIV, p. 94).

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Os conflitos físicos e sangrentos não precisam estar acontecendo para que a condição

de guerra de todos contra todos seja uma realidade efetiva. Basta que os homens tenham

consciência da igualdade de poder e da liberdade de fazer aquilo que quiserem e puderem. O

universo conceitual humano, delineado por Hobbes, a partir da mecanicidade da natureza,

manifesta toda a complexidade do homem racional e movido por paixões. A luta e o medo

que pulsam no interior subjetivo, em estado natural, sugerem a autodefesa e a busca de

proteção64

, podendo canalizar aquela reação primeira em defesa da vida, também conhecida

como egoísmo e individualismo naturais.

Desta guerra de todos os homens contra todos os homens também isto é

conseqüência: que nada pode ser injusto. As noções de bem e de mal, de

justiça e injustiça, não podem aí ter lugar. Onde não há poder comum não há

lei, e onde não há lei não há injustiça. [...] Outra conseqüência da mesma

condição é que não há propriedade, nem domínio, nem distinção entre o meu

e o teu; só pertence a cada homem aquilo que ele é capaz de conseguir, e

apenas enquanto for capaz de conservá-lo (LEVIATÃ, I, XIII, p. 81).

Desejo e poder caminham juntos e, unidos, definem grande parte do que é o homem.

Pelo desejo ele procura a felicidade não como fim último ou atualização de sua

potencialidade65

, mas como satisfação dos desejos imediatos, uma vez que a vida humana

nada mais é do que uma constante corrente de desejos. A felicidade não passa de uma

ininterrupta realização dos desejos particulares. Macpherson ressalta que, pelo postulado do

estado de natureza, Hobbes quer mostrar o modo pelo qual os homens sendo como são se

comportariam se não existisse o Estado e, por suposto, a ação das leis em suas vidas.

O estado de natureza retrata a maneira da qual os indivíduos, sendo o que

são, se comportariam inevitavelmente se não houvesse nenhuma autoridade

para obrigar ao cumprimento da lei ou do contrato. Dada a natureza apetitiva

e deliberativa dos homens [...] é desse modo que se comportariam

inevitavelmente se fosse completamente removida a obrigação ao

cumprimento da lei e dos contratos (MACPHERSON, 1979, p. 30).

A condição natural da humanidade seria vistoriada não por oposição ao ser civilizado,

mas sim por uma transferência das características dos indivíduos civilizados para a condição

natural enquanto possibilidade. Nesse sentido, “o estado de natureza, de Hobbes, tal como é

geralmente reconhecido, é uma hipótese lógica, não histórica. É uma ‘Dedução oriunda das

Paixões’; relata ‘que maneira de vida haveria se não existisse um Poder comum a temer’”

64

“A aplicação da teoria mecânica do movimento ao homem resulta na constatação de que o homem tende a

persistir, isto é, a procurar os meios que lhe permitem continuar vivo, continuar em movimento” (FRATESCHI,

2008, p. 71). 65

Para Hobbes, a concepção de causa última em que o homem busca eternamente ou a busca de atualização de

suas potencialidades, dentro da sociedade, não existem. Isso acontece justamente porque a posição adotada por

Hobbes é substancialmente avessa a de Aristóteles.

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73

(MACPHERSON, 1979, p. 31). O caminho seguido por Hobbes é o da inversão: da sociedade

civilizada ao estado natural. Na verdade, em última instância, pode-se dizer que o homem

natural ou o estado de natureza foi sempre analisado sob o prisma do homem civilizado e sob

o domínio de uma força estatal coercitiva.

Desta análise do caminho civilizado ao natural, Hobbes postula que no estado natural

cada homem é inimigo do outro em potencial.

Considerando então a ofensiva da natureza dos homens uns com os outros,

deve-se acrescentar um direito de todos os homens a todas as coisas,

segundo a qual um homem invade com direito, e outro homem com direito

resiste, e os homens vivem assim em perpétua difidência, e estudam como

devem se preocupar uns com os outros. O estado dos homens em sua

liberdade natural é o estado de guerra. Pois a guerra nada mais é do que o

tempo no qual há vontade de disputar e constatar por meio da força, seja com

palavras ou com ações suficientemente declaradas; e o tempo que não é

guerra, este é paz (ELEMENTOS, I, XIV, p. 96).

Não há espaço para a harmonia e a concórdia, moral e ética, pois pelo desejo cada

indivíduo obedece a uma regra interna e particular de autopreservação e autodefesa, abrindo

espaço para o conflito genérico. A ilimitada condição dos desejos arquiteta a mecânica do

indivíduo e o mecanismo do poder e, assim, o estado natural surge como “o reino do instinto e

das paixões desenfreadas, da igualdade absoluta e ilimitada, da vontade arbitrária e irracional.

É um estado de uma multidão inorgânica, de força, de anarquia, onde a única regra de conduta

é a razão do próprio indivíduo” (WOLLMANN, 1993, p. 33).

Nesta compreensão da mecânica das paixões e dos desejos em sua relação com a

instituição do Estado, Hobbes tenta mostrar que não se trata mais de exaltar a supremacia da

razão. O medo da morte, o ímpeto das paixões e o desejo de uma vida mais confortável unidos

à razão prefiguram a condição de uma vida melhor. Assim:

Hobbes nega a existência da reta razão, como medida comum e natural do

valor e, portanto, como critério de justiça. Ao reduzir a razão a uma

faculdade calculadora, ele nega a possibilidade de que ela exerça o domínio

sobre as paixões: ao contrário, a razão calcula os meios de obter fins postos

pelo desejo (cuja origem é não racional) (FRATESCHI, 2008, p. 91).

O aspecto racional humano, por propender ao cálculo, unido ao desejo de

sobrevivência traça uma lógica das condições necessárias à manutenção da vida e uma delas é

o abandono da liberdade primitiva e ilimitada. Chega-se, então, às vantagens da sociabilidade,

suprindo as expectativas em torno da autopreservação e da paz. Em Hobbes encontramos a

idéia de homem submetido a essa lógica de movimentos naturais e instintivos, gerador de

paixões e desejos, fundamentados em aversões e atrações naturais que desencadeiam em

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posturas, por vezes, denominadas egoístas, mas que em nada diminuem a liberdade do homem

em condição natural, desde que realize ações consoantes à natureza.

A definição de liberdade, em Hobbes, é marcada pelo seu compromisso

intelectual com as cláusulas que, [...], caracterizam a nova ciência. A

concepção hobbesiana é tributária da teoria mecanicista e materialista, que

defende a tese de que a realidade é constituída por matéria e movimento e

condicionada pela lei da inércia (FRATESCHI, 2008, p. 19).

O egoísmo humano preconizado por Hobbes, não é senão o movimento natural próprio

do corpo, que pode ser fomentado em larga escala a depender da direção que o próprio

homem dá à sua história. O filósofo político inglês é taxativo no sentido de não aceitar uma

natureza humana de cada indivíduo como complacente ao desejo do outro. O mecanismo

físico-biológico a que o homem hobbesiano é submetido não é apaziguador e posto que este

homem pode criar novos e infinitos objetos de desejos, pode também aumentar em grande

escala os conflitos com seus semelhantes, a tal ponto da guerra se tornar de todos contra

todos. “Quando vários homens têm direito não apenas a todas as coisas, mas também às

coisas de outrem, por causa disso surgem então invasão de um lado e resistência do outro, o

que significa guerra, contrária, portanto, à lei de natureza, cuja síntese consiste em fazer a

paz” (ELEMENTOS, I, XV, p. 100). Contudo, o homem hobbesiano não está fadado à guerra

contínua e universal, posto que por conta da razão e da linguagem ele pode instaurar outra

realidade, totalmente avessa à natural e cuja característica seja a preservação da sua vida.

Com vistas à pertinência científica de sua ciência civil, o teórico político

inglês realça como “o maior benefício da linguagem o fato de podermos dar

comandos e entender comandos. Pois, na ausência deles não haveria

nenhuma sociedade entre os homens, nenhuma paz e, por conseguinte,

nenhuma disciplina, depois solidão e, em vez de lares, cavernas” (HOBBES

apud HECK, 2002, p. 548).

Apesar das leis naturais atuarem no homem, não há, segundo Hobbes, por natureza,

nenhum parâmetro de ação que designe algo como mau ou bom, justo ou injusto, certo ou

errado, legal ou ilegal, moral ou amoral. A força das instâncias fisiológicas carrega consigo

apenas o movimento e não existindo nenhuma conotação moral que qualifique positiva ou

negativamente as paixões e desejos. Toda e qualquer pressuposição valorativa encontra seu

elemento fundador na vida social. Portanto, em relação à condição natural delineado por

Hobbes não se encontra uma moralidade que seja inerente ao indivíduo66

.

66

“Assim, no lugar de confinar a moral ao plano interior da boa intenção, o esforço de Hobbes, inversamente, é

o de mostrar a todos aqueles que reduzem a moral a uma questão de limpidez da consciência que a consciência,

tal como passou a ser entendida, como o conjunto de nossas opiniões privadas e secretas, é vazia de valor moral

sempre que não se reverte em virtude, entendida como um ethos, uma disposição de caráter visível e calculável

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A condição natural do homem é delineada por Hobbes a partir do movimento,

sentimentos e desejos vividos para além de qualquer conotação transcendental.

Os desejos e outras paixões do homem não são em si mesmo um pecado.

Nem tampouco o são as ações que derivam dessas paixões, até o momento

em que se tome conhecimento de uma lei que as proíba, o que será

impossível até o momento em que sejam feitas leis, e nenhuma lei pode ser

feita antes de se ter acordado quanto à pessoa que deverá fazê-la (LEVIATÃ,

I, XII, p. 80).

O movimento que resulta na suscitação dos desejos compreende-se que estes estão

vinculados aos objetos em função dos efeitos produzidos por eles no indivíduo. Os efeitos

benéficos e maléficos são diferentes para cada homem, sendo que cada qual repudia aquilo

que considera ruim para si e busca o que lhe faz bem. Ademais, estando os corpos em

contínua mudança de lugar, é natural que os desejos e apetites também estejam sendo

alterados de acordo com a necessidade do homem. De acordo com a citação acima, as paixões

não são, em si mesmas um mal. As ações por elas guiadas se constituem em faltas ou erros

apenas quando passa a existir uma lei que as delimite ou proíba, fora disso não são nada mais

do que movimentos naturais. Ou seja, as paixões vistas de um prisma científico não podem

ser concebidas como males intrínsecos à natureza. A divisão entre razão e paixões representa

apenas o caos e a ordem a que a natureza humana está submetida, sendo que não há como

reabilitar nem modificar ou melhorar nada nesta natureza, assim como não é possível

reconstituí-la. A particularidade da condição humana é a existência dos movimentos, aos

quais não cabem, em princípio, nenhuma análise ou juízo de valor.

Partindo de um prisma fisiológico, Hobbes assevera que o homem age em função do

prazer e da dor, do desejo pessoal e da aversão. Tais sentimentos não são mais que sinais dos

movimentos de inclinação e repulsão, próprios da natureza humana. Por este motivo que as

paixões e os vícios não devem ser atribuídos às fraquezas de caráter do homem, senão que

fazem parte da própria constituição natural. Assim, apesar de todos os problemas provenientes

da natureza humana, esta não deve ser censurada, mas explicada a partir de sua própria

compreensão natural. O indivíduo apenas obedece ao império da natureza e é livre para fazer

tudo que julgar que lhe seja útil para sua preservação.

Com isso, Hobbes está claramente defendendo um relativismo moral, em que os

valores morais são provenientes de convenções estabelecidas pelo próprio homem, sendo que

nada pode ser medido por valores eternos ou absolutos.

na conduta. Seu esforço, pode-se dizer, é o de conformar as virtudes cristãs às virtudes civis e mostrar que as

primeiras nada valem sem as segundas, pois sem a mediação da política não se passa da boa intenção às boas

ações” (LIMONGI, 2009, p. 284)

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A justiça e a injustiça não fazem parte das faculdades do corpo e do espírito.

Se assim fosse, poderiam existir num homem que estivesse sozinho no

mundo, do mesmo modo que os seus sentidos e paixões. São qualidades que

pertencem aos homens em sociedade, não na solidão (LEVIATÃ, I, XII, p.

81).

Consoante a Hobbes, a inexistência de algo que revele ao homem, em sua consciência

moral, a presença de valores inatos e absolutos, é real. Pois a mecânica não hierarquizada dos

desejos, atrelada à subjetividade, determina a definição do bem e do mal em relação a cada

sujeito. Em contrapartida, apenas o Estado formalmente instituído é capaz de criar parâmetros

de justiça e moralidade que visem o bem de todos, que nada mais é do que a própria

preservação. Fora do Estado, argumenta Hobbes, “nada pode ser injusto. As noções de certo e

de errado, de justiça e injustiça, não podem aí ter lugar. Onde não há poder comum não há lei,

e onde não há lei não há injustiça” (LEVIATÃ, I, XIII, p. 81).

O homem natural não é um ‘corpo moral’ em si mesmo, capaz de atingir e praticar

ações boas por elas mesmas e, sobretudo, para o próprio benefício. A condição humana

conglomera uma gama de sentimentos contraditórios, impedindo que os indivíduos

transformem as leis naturais da razão em leis efetivas na ação. A abertura ao outro, o pacto e a

aceitação da vida em comum, pressupõem o abandono da liberdade natural e a adesão e

obediência a um esquema de moralidade convencional, instituída artificialmente.

É evidente, para quem observa com um pouco mais de atenção as coisas

humanas, que todas as nossas reuniões se realizam ou por necessidade ou por

desejo de promoção recíproca; por isso, os participantes se esforçam por tirar

algum proveito ou captar estima e honra uns dos outros. O raciocínio chega

às mesmas conclusões partindo das noções de vontade, bem, honra e

utilidade. Como a sociedade é estabelecida voluntariamente, procura-se em

todas o objetivo da vontade, isto é, algo que parece ser bom para cada

indivíduo. Mas tudo que parece bom é agradável e tem relação com os

sentidos orgânicos ou com o espírito. E todo prazer do espírito ou consiste

na honra, quer dizer, em gozar boa fama, ou, em última instância, reduz-se à

honra. Os demais são sensíveis, ou reduzem-se ao sentido, e podem ser

compreendidos no termo útil. Toda sociedade, portanto, é forjada pela honra

do útil ou pelo estímulo da honra, isto é, por amor a si e não aos sócios e

componentes (DE CIVE, I, I, p. 51).

Nesse sentido, os imperativos da moralidade humana são guiados por leis externas e

convenientes a cada indivíduo, já que internamente os indivíduos são apenas corpos em

movimento, condicionados pela atração ou repulsão. Diante disso, é fácil constatar que o

mundo dos valores não se encontra previamente bem reputado. O homem não nasce com as

noções de bem e mal, justo e injusto, legalidade e ilegalidade, certo e errado como se fossem

idéias inatas. Igualmente, elas não se encontram fora do sujeito, não são topadas, impressas

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nas coisas e não têm existência objetiva. Então, como elas surgem? O próprio Hobbes nos

responderá esta importante questão:

Mas como todos concedem não ser legítimo o que não for contra a reta

razão, devemos julgar injustas as ações que repugnam à reta razão, isto é,

contradizem alguma verdade deduzida de princípios verdadeiros pelo correto

uso do raciocínio. Dizemos, então, que é contra alguma lei a ação injusta,

feita contra algum direito. Por isso, reta razão é uma certa lei que sendo

parte da natureza humana não menos do que qualquer outra capacidade o

potência da alma, também é designada natural. Definindo, portanto, lei

natural é um ditame da reta razão sobre as coisas a fazer ou omitir para

garantir-se, quando possível, a preservação da vida e das partes do corpo

(DE CIVE, I, II, p. 58-59).

As leis brotam como possibilidades de ações dos homens no mundo, criadas para

nortear os atos humanos, por convenções e acordos. Com isso, Hobbes impõe aos valores uma

dinâmica subjetiva e relativa. Tendo em vista que tudo é representado e como o sujeito é a

medida dessa representação, não há nada que leve uma carga positiva ou negativa em si

mesmo, pois a natureza descarta qualquer regra moral universal. Sendo assim, não há

necessariamente uma harmonia, compatibilidade ou finalismo das afecções e desejos humanos

que possam traçar uma ética natural e universal.

Diante dos desejos e paixões individuais, o Estado elimina os excessos visando o

controle das mesmas, a ponto de assegurar a vida e a paz dos indivíduos.

Na tradição jusnaturalista, a começar por Hobbes, indivíduos são soberanos

apenas no estado de natureza, e por isso estão, tal como os Estados

soberanos do sistema internacional, em contínua guerra entre si. Para se

salvar, devem renunciar à própria independência, mesmo que nas repúblicas

ideais continuem a conservá-las (BOBBIO; VIROLI, 2002, p. 34).

O objetivo de Hobbes é claramente o de limitar o campo dos desejos, que derivam do

próprio movimento natural, diminuindo sua intensidade externa. Para isso ele sugere tratados

de paz que limitem a tendência à autodestruição, salvaguardando condições mínimas para a

vida pacífica e provida de condições profícuas para o desenvolvimento de elementos

necessários à preservação da espécie humana. Contudo, isso não caracteriza o homem

hobbesiano como naturalmente mau, visto que a natureza humana não oferece subsídios

necessários para o discernimento entre o bem e o mal. O resultado disso é a submissão do

homem ao movimento natural de autodefesa e autopreservação, o que o leva a experimentar,

acima de tudo, o conflito geral.

Sendo assim o estado de honestidade e de guerra, pelo qual a própria

natureza é destruída, com os homens matando-se uns aos outros [...], aquele

portanto que deseja viver num estado tal como é o estado de liberdade e

direito de todos sobre tudo [...], contradiz a si mesmo. Pois todo homem,

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pela necessidade natural, deseja o seu próprio bem, ao qual aquele estado é

contrário, no qual supomos haver disputa entre os homens que por natureza

são iguais e aptos a se destruírem uns aos outros (ELEMENTOS, I, XIV, p.

96).

A descrição da natureza humana de Hobbes, nada mais é do que a intuição gerada nele

por conta do impacto que a sociedade da sua época proporcionou. Por vezes poderíamos

pensar que ela se encaixa em uma via de interpretação bastante pessimista, pois na ausência

da lei o homem tende a viver conforme as suas vontades que geralmente não são as mesmas

do outro. Além do que o estado de natureza de Hobbes é a condição em que se encontram os

homens fora de uma comunidade política (ou sociedade), em que os homens disputam todas

as coisas por direito natural e absoluto. Nesse estado, possuem o chamado direito de natureza,

o qual consiste na liberdade dos homens de unirem-se a fim de preservar suas vidas e,

consequentemente, fazer tudo aquilo que seu julgamento e razão mostram adequar-se a isso.

Na medida em que o princípio construtivista hobbesiano se torna indistinto

do processo de abstração da incipiente sociedade capitalista, Macpherson é

forçado a conceber a ficção do estado natural como simples negação da

sociedade civilizada, a saber: sem indústria, nem cultivo da terra, nem

navegação, nem arquitetura, tampouco artes, letras e ciências (HECK, 2002,

p. 535).

O homem deve esforçar-se para que exista a paz e que esta seja mantida, mas não deve

renunciar aos seus direitos em favor dos outros – deve garantir a sua própria existência acima

de qualquer princípio. Se o estado de harmonia em que se encontrar for violado, é digno de

recorrer ao livre uso da força se não para aumentar seu poder, para impedir que ele seja

controlado. Um efeito do que foi acima descrito é a dificuldade do homem em gerar riqueza,

pois ocupa-se com a própria proteção. Tal maneira do homem agir é efeito de exercício

intelectual no desprovimento do poder comum para paralisar a paixão e o desejo subjetivos.

No estado natural o homem demonstra com mais intensidade a “esfera selvagem” de

sua vida, ao passo que, no Estado civil o homem não deixa de possuí-la, contudo, por conta

do poder e da ação do soberano, o homem tende a “controlar” as paixões que lhe são naturais.

Na concepção política de Thomas Hobbes, estado de natureza é sinônimo de estado de guerra

e na “passagem” deste estado para o Estado civil não há nenhuma espécie de modificação na

natureza do homem, de maneira que em ambos os estados o homem é o mesmo “selvagem” –

dominado por suas paixões particulares e utilizando-se da razão apenas para o próprio bem.

Assim sendo, “a hipótese do estado de natureza não é invalidada pela existência do status

civilis. Para Macpherson, a condição natural dos homens é ubíqua e não está isolada dos

homens no tempo e no espaço” (HECK, 2002, p. 534).

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Como já demonstramos, o homem natural de Hobbes é o mesmo homem civilizado,

apenas com algumas restrições legais. A restrição à ação livre do homem é uma característica

da lei civil, pois, se assim não fosse, em nada o Estado civil se diferenciaria do estado natural

e o homem continuaria a fazer a sua autodefesa e a encontrar atritos com os outros homens.

Remover ou simplesmente reduzir certos direitos que são naturais aos homens é uma atitude

proveniente e própria do Estado civil, além de ser sua forma de proceder e de ser manter. O

esquema do Estado civil é o de amparar e coagir o homem pela força que a lei civil é capaz de

exercer sobre as suas ações, contudo, as paixões humanas jamais desaparecerão. Estarão ali,

exatamente no mesmo lugar em que estavam no estado natural, agora, porém, ‘adormecidas’

pelo poder da lei civil, prontas a serem despertadas caso a vida não esteja sendo preservada.

Assim, o homem é moldado à vida em sociedade, embora seja uma dimensão artificial cujo

interesse particular sempre prevalecerá67

.

2.3 A FUNÇÃO DA LINGUAGEM E DA RAZÃO EM HOBBES68

O contrato social é uma maneira de retirar os homens da condição de sedição natural.

A sua fundamentação está no uso correto da razão e da linguagem humanas. Com efeito, ele é

67

“Tão somente o acréscimo de premissas sociais aos postulados fisiológicos possibilita, segundo Macpherson,

interpretar o poder como ter sempre mais poder sobre os outros homens. As supostas premissas são incrustadas

no modelo da sociedade de mercado possessivo do século XVII. Os resultados dessa fixação tipológica trazem à

superfície as relações de poder como relações de mercado (a market in Power). Como marca individual, o poder

tem a fisionomia privada do proprietário burguês e, como grandeza societária, o mesmo poder configura o

sistema mercadológico da permuta universal dos bens capitalistas. Em vez de caracteriza a prevalência

hobbesiana do indivíduo como individualismo-de-poder, o enquadramento do fenômeno do poder no circuito do

mercado leva Macpherson a caracterizá-lo como individualismo-de-posse. Limitada pela definição do respectivo

objeto, a posse de bens móveis ou imóveis implica, em relação ao poder individual, um reducionismo metódico.

Por ser apenas um dos meios disponíveis ao indivíduo para usufruir poder, o individualismo possessivo

macphersoniano disseca o poder do homem à moda capitalista, ou seja, reserva-lhe eficácia sob os auspício do

capital. Mesmo que a premissa histórica de Macpherson incida corretamente no capitalismo inglês nascente, o

fator econômico é, antes e depois do século XVII, apenas um dentre os vários fatores que articulam e efetivam a

consolidação do Power market humano. O interesse do indivíduo em ter poder e mais poder não se atém às

regras-de-fé do mercado, mas acolhe qualquer possibilidade interativa para acumular poder, seja ela de caráter

cultural, epistêmico, artístico, religioso, político ou armamentista” (HECK, 2002, p. 535-536). 68

“O interesse de Hobbes pela retórica manifesta-se na introdução da Guerra do Peloponeso. A escrita histórica

– vista por ele como um meio de instrução que torna os homens mais prudentes por meio do conhecimento das

ações passadas – é composta de verdade e elocução. A verdade é a sua alma. A elocução, o seu corpo. Elas são

indissociáveis (como a alma é, para Hobbes, indissociável do corpo), pois a verdade, sem a elocução, é inapta

para instruir. Tucídides, escolhido por Hobbes como o melhor escritor da história entre os antigos, é feliz na

aplicação dos dois componentes. Ele usa toda a diligência que um homem é capaz de usar na busca da verdade e

é eloqüente na exposição dos fatos. Em 1637, Hobbes publicou um resumo da Retórica de Aristóteles, sob o

título The Brief Art of Rhetoric (reimpresso em 1681 sob o título The Whole Art of Rhetoric). Em 1640,

começaram a circular as primeiras cópias do Elements of Law. O que chama a atenção do leitor é a manifesta

indisposição do filósofo em relação à retórica neste trabalho. Mais uma vez, a crítica é latente no Do Cidadão.

Nestas duas obras, Hobbes atribui utilidade alguma à retórica. Pelo contrário, ela é fonte de guerra e sedição.

Entretanto, a retórica volta a ser vista como uma coisa útil no Leviatã. Em 1651, tal como em 1628, ele constata

que a razão, sem a eloqüência, é inapta para instruir” (FRATESCHI, 2000, p. 75).

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puramente um artifício da soma da linguagem e da razão humanas. Hobbes compreendeu a

razão como capacidade de cálculo – adição ou subtração – sobre a decorrência de nomes

utilizados para marcar o nosso pensamento em relação a determinado fato69

. No que confere à

linguagem, na maneira hobbesiana de entendê-la, podemos dizer que ela é genuinamente

conexão de nomes e apelações pelas quais os homens registram seus pensamentos e os tornam

conhecidos aos outros70

.

2.3.1 A utilidade da linguagem no processo de construção do Estado

Hobbes abre o capítulo IV do Leviatã, sobre a linguagem, refletindo acerca do

surgimento e a finalidade das letras. Consoante o pensador político inglês, as letras servem

para prolongar a memória dos tempos que já se passaram, unir a humanidade em torno de

pontos comuns ou contraditórios e no estabelecimento de caracteres úteis para a recordação e

convenção de determinada coisa71

. Não obstante o surgimento e o uso das letras por parte da

humanidade, a mais nobre e útil invenção de todos os tempos é a linguagem, pois:

Consiste em nomes ou apelações e em suas conexões, pelas quais os homens

registram seus pensamentos, os recordam depois de passarem, e também os

usam entre si para utilidade e conversa recíprocas, sem o que não haveria

entre os homens nem Estado, nem sociedade, nem contrato, nem paz, tal

como não existem entre os leões, os ursos e os lobos (LEVIATÃ, I, IV, p.

20).

A linguagem ganha seu estatuto de importância junto à humanidade por conta do seu

efeito: a comunicação. Para haver comunicação, o homem deve transpor o conteúdo do

discurso mental para o discurso verbal – a linguagem – de modo que “sem palavras não há

qualquer possibilidade de reconhecer os números, e muito menos as grandezas, a velocidade,

a força, e outras coisas, cujo cálculo é necessário à existência, ou ao bem-estar da

humanidade” (LEVIATÃ, I, IV, p. 22-23). O discurso verbal é uma cadeia de pensamentos ou

de imaginações72

, ao passo que, “por conseqüência, ou cadeia de pensamentos, entendo

aquela sucessão de um pensamento a outro, que se denomina (para se distinguir do discurso

em palavras) discurso mental” (LEVIATÃ, I, III, p. 16). O discurso mental ocorre

excepcionalmente na esfera da imaginação, desenvolvendo uma forma de cálculo, sem

palavras, onde ocorre a passagem, através da adição ou subtração, de um pensamento a outro.

69

Cf. LEVIATÃ, I, V, p. 27. 70

Cf. LEVIATÃ, I, IV, p. 20. 71

Cf. LEVIATÃ, I, IV, p. 20. 72

Cf. LEVIATÃ, I, IV, p. 21.

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Por esta via, os homens tornam seus pensamentos acessíveis aos outros homens e

suscetíveis de refutação ou acolhimento. A linguagem é o meio que conduz a humanidade ao

progresso, de forma que, uma vez obtida uma ideia inovadora e profícua na mente alheia,

basta torná-la inteligível aos outros e, se plausível, a agregação desta na sociedade é uma

questão de tempo senão imediata. Assim, “o uso geral da linguagem consiste em passar nosso

discurso mental para um discurso verbal, ou a cadeia de nossos pensamentos para uma cadeia

de palavras” (LEVIATÃ, I, IV, p. 21) e desta maneira a comunicação acontece.

O uso geral da linguagem tem duas utilidades. A primeira tem por objetivo a fixação

de registros oriundos do pensamento, os quais são marcados com significados próprios. A

segunda utilidade denota ao significado mesmo da coisa, o qual, a fim de se evitar equívoco,

assume apenas uma identidade73

. De tal modo, que a primeira utilidade da linguagem permite

o homem a marcar ou fazer anotações de lembranças, evitando com que determinado discurso

mental não caia no esquecimento total. Para tanto o homem ‘marca’ ou transforma em ‘nota’

o produto de sua mente e, para fins de comunicação, serve-se deles apelando para a marca ou

para nota específicas. A segunda, por sua vez, permite a utilização dos chamados sinais, que

nada mais são do que a convenção para o processo de ‘rotulagem’ dos corpos existentes,

sendo eles contidos na mente humana ou em outros locais próprios.

Além destas duas utilidades da linguagem, Hobbes destaca quatro usos especiais:

Em primeiro lugar, registrar aquilo que por cogitação descobrimos ser a

causa de qualquer coisa, presente ou passada, e aquilo que achamos que as

coisas presentes ou passadas podem produzir, ou causar, o que em suma é

adquirir artes. Em segundo lugar, para mostrar aos outros aquele

conhecimento que atingimos, ou seja, aconselhar e ensinar uns aos outros.

Em terceiro lugar, para darmos a conhecer aos outros nossas vontades e

objetivos, a fim de podermos obter sua ajuda. Em quarto lugar, para agradar

e para nos deliciarmos, e aos outros, jogando com as palavras, por prazer e

ornamento, de maneira inocente (LEVIATÃ, I, IV, p. 21).

A linguagem foi convencionada e existe para tornar o nosso discurso mental

compreensível aos outros homens, para avaliação e aceitação ou refutação. Buscamos a

compreensão, o acolhimento, a glória, o reconhecimento diante da comunidade de homens. A

linguagem tem este poder justamente por ser a via de externalização entre aquilo que estamos

pensando e aquilo que queremos comunicar. Além disso, a “linguagem serve para a

recordação das conseqüências de causas e efeitos, através da imposição de nomes, e da

conexão destes” (LEVIATÃ, I, IV, p. 21). A linguagem facilita a vida do homem no instante

que subsidia a ação do outro homem com base na ação já efetivada por este. Nem todos os

73

Cf. LEVIATÃ, I, IV, p. 21.

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homens necessitam estudar química para saber que a composição da água é H2O, precisamos,

apenas, confiar na transposição do discurso mental para o discurso verbal de certos

indivíduos. Da mesma maneira, não precisamos colocar nossa mão ao fogo toda vez que

quisermos recordar que o fogo queima, basta lembrarmo-nos de experiências passadas, visto

que a linguagem tem a função de rememorar as conseqüências de causas e efeitos das

experiências sensíveis dos homens.

E assim a conseqüência descoberta num caso particular passa a ser registrada

e recordada, como uma regra universal, e alivia nosso cálculo mental do

espaço e do tempo, e liberta-nos de todo o trabalho do espírito,

economizando o primeiro, e faz que aquilo que se descobriu ser verdade aqui

e agora seja verdade em todos os tempos e lugares (LEVIATÃ, I, IV, p. 22).

Hobbes reconhece a importância da linguagem para as relações humanas justamente

por acreditar na autenticidade e no poder que ela possui. Exemplo disso é o valor de verdade

ou falsidade, ambos perceptíveis apenas na própria linguagem, ou seja, a compreensão

humana acerca da verdade ou da falsidade está intimamente ligada com a maneira que está

sendo utilizada para a comunicação. Aquilo que o locutor tem a pretensão de tornar suscetível

de assimilação (ou não) é digno de ser julgado como verdadeiro ou falso, mas isso porque a

significação está impressa na linguagem e não na coisa. “Pois o verdadeiro e o falso são

atributos da linguagem, e não das coisas. E onde não houver linguagem, não há nem verdade

nem falsidade” (LEVIATÃ, I, IV, p. 23).

A verdade é efeito da apropriada ordenação dos nomes em todas as nossas afirmações,

ao contrário, a mentira é a implicação da utilização desordenada dos nomes em nossas

afirmações verbais. Os homens que buscam a veracidade na argumentação devem esforçar-se

para a correta recordação do sentido de cada palavra, propriamente para evitar a falsidade.

Para o pensador de Malmesbury, a geometria é a ciência responsável pelo estabelecimento das

significações de suas palavras e a “esse estabelecimento de significações chamam de

definições, e colocam-nas no início de seu cálculo” (LEVIATÃ, I, IV, p. 23).

À medida que os homens vão incorporando conteúdo verdadeiro ou falso à sua

linguagem, eles vão se tornando mais sábios ou mais loucos do que costumeiramente são74

.

Assim como não é possível entendermos o valor semântico da verdade ou da falsidade sem o

uso da linguagem, da mesma maneira não é admissível o reconhecimento de um louco ou de

um sábio. “Pois as palavras são os calculadores dos sábios, que só com elas calculam; mas

constituem moeda de loucos” (LEVIATÃ, I, IV, p. 24). São as palavras as únicas coisas que

podem ser inseridas ou consideradas em um cálculo lingüístico, seja para fazer soma ou para

74

Cf. LEVIATÃ, I, IV, p. 23.

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subtração do sentido desejado pelo locutor. Não há raciocínio sem linguagem e o ato de

raciocinar é chamado de silogismo, “o que significa somar as consequências de uma

proposição a outra” (LEVIATÃ, I, IV, p. 24) para se tornar compreensível.

Quando um homem ao ouvir qualquer discurso tem aqueles pensamentos

para as quais as palavras desse discurso e a sua conexão foram ordenadas e

constituídas, então dizemos que ele o compreendeu, não sendo o

entendimento outra coisa senão a concepção causada pelo discurso. E

portanto se a linguagem é peculiar ao homem (como pelo que sei deve ser),

então também o entendimento lhe é peculiar. E portanto não pode haver

compreensão de afirmação absurdas e falsas, no caso de serem universais;

muito embora muitos julguem que compreendem, quando nada mais fazem

do que repetir tranquilamente as palavras, ou gravá-las em seu espírito

(LEVIATÃ, I, IV, p. 25).

Os nomes das coisas que nos afetam podem ser tanto agradáveis como desagradáveis,

o que mostra uma disparidade entre os homens em relação à assimilação dos efeitos

produzidos pela linguagem. Entretanto nenhum homem está alheio ao poder da linguagem.

Todos necessitam dela para tornar a sua linguagem mental conhecida aos outros homens e,

por conseqüência, tornarem-se reconhecidos uns aos outros. Assim, a linguagem é entendida

como uma característica peculiar do homem e como instrumento para manifestar seus

sentimentos e paixões.

Demonstrando um viés pragmático à linguagem, o filósofo político inglês denota-a

com função utilitária: registrar as descobertas das causas (podemos pensar na ciência),

mostrar conhecimento para os outros homens ou gerações futuras, ensinar e aconselhar, tornar

o interior subjetivo conhecido do outro, além de material lúdico ao alcance do prazer. Diante

de tudo isso, entendemos que a utilidade exímia da linguagem ao pensamento de Hobbes

resida na sua importância para a conservação do homem. O mesmo homem que deseja sair da

situação natural própria ao corpo movido pelas paixões. Entendemos, portanto, que a

linguagem viabiliza aos homens a formalização de um pacto cuja cláusula principal seja a

preservação do movimento vital livre do corpo humano.

A partir do momento que os homens vão se colocando em situações diferentes e

necessitando de soluções igualmente diversas, a linguagem vai sendo construída e se

desenvolvendo paulatinamente para devida solução dos problemas existenciais. Para Hobbes,

a mais importante e urgente necessidade da vida humana é a própria preservação, de maneira

que a linguagem ganha uma proeminente função na construção e na permanência do pacto

entre os homens com vistas a esta finalidade.

Dessa maneira, a linguagem evidencia o seu posto político ao ser hábil para reunir os

corpos humanos com medo da morte violenta.

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84

A concretização omitida é formulada por Hobbes alhures, quando constata:

“Assim todo homem deseja o que é bom para ele, e foge do que é mau,

principalmente daquilo que é o maior dentre os males naturais, a morte; e

isso é feito por um certo impulso da natureza, tão certeiro quanto uma pedra

que cai”. Levando em consideração essa assertiva, a requerida concretização

parece estar à mão. Uma vez que o homem por imposição natural – tal o

argumento – não pode deixar de resistir à morte que o ameaça, ele está

desobrigado da renúncia à luz do ultra posse nemo obligatur jurídico, pois a

morte que o ameaça parece ser o acontecimento que o coloca num estado de

medo em grau máximo (HECK, 2002, p, 539-540).

Desta união dos homens, percebemos a prevalência de uma paixão, a saber, a

esperança de livrar-se da morte violenta e alcançar a paz. Movido pelo medo da morte

violenta e a esperança de que isso pode ser erradicado, o homem procura a paz que só será

atingida com os demais homens, visto que também a procuram. Esse objetivo só poderá ser

conquistado se os homens expuserem uns para os outros, via linguagem, o anseio que os

motiva: a paz. Pela palavra os homens criam o Estado e igualmente o mantém, no sentido do

estabelecimento de leis promulgadas com intenção de seu cumprimento.

Os sinais de contrato podem ser expressos ou por inferência. Expressas são

as palavras proferidas com a compreensão do que significam. Essas palavras

são do tempo presente, ou do passado, como dou, adjudico, dei; adjudiquei,

quero que isto seja teu; ou do futuro, como darei, adjudicarei, palavras do

futuro a que se chama promessas (LEVIATÃ, I, XIV, p. 80).

Continua Hobbes:

Nos contratos, o direito não é transmitido apenas quando as palavras são do

tempo presente ou passado, mas também quando elas são do futuro, porque

todo contrato é uma translação ou troca mútua de direitos. [...]. É por esse

motivo que na compra e na venda, e em outros atos de contrato, uma

promessa é equivalente a um pacto, e portanto é obrigatória (LEVIATÃ, I,

XIV, p. 81).

Diante da possibilidade de abusos da linguagem por parte de alguns homens, pois “ao

raciocinar, o homem tem de tomar cautela com as palavras, que, além da significação daquilo

que imaginamos de sua natureza, também possuem uma significação da natureza, disposição,

e interesse do locutor” (LEVIATÃ, I, IV, p. 26), onde localizar um ponto fixo para a

extirpação da suspeita do outro? Como podemos notar frente esta dúvida, os homens ainda

estão inseridos em uma situação de medo e de desconfiança. O que é imprescindível, então,

para a linguagem desempenhar um papel de propriedade e confiança para com os homens que

desejam deixar o estado de guerra? A resposta a esta pergunta está no uso da razão – cálculo –

para edificação do Estado como mantenedor do movimento vital em paz.

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85

2.3.2 A razão75

humana como cálculo

Procurando a garantia e a coerência para o seu discurso, o homem, movido pela razão,

recorrerá e instaurará o Estado. Isso pode ser encontrado no capítulo V do Leviatã, intitulado

‘da razão e da ciência’, nestes termos:

Quando há uma controvérsia a propósito de um cálculo as partes têm de, por

acordo mútuo, recorrer a uma razão certa, à razão de algum árbitro, ou juiz, a

cuja sentença se submetem, a menos que sua controvérsia se desfaça e

permaneça indecisa por falta de uma razão certa constituída pela natureza, o

mesmo acontece em todos os debates, sejam de que natureza forem

(LEVIATÃ, I, V, p. 28).

O reto raciocínio leva os homens a buscarem a paz e a fugir da morte violenta. O

raciocínio é um artifício conseqüente do uso dos nomes76

. Uma criação humana oriunda de

outro artifício: a linguagem. Não há raciocínio sem linguagem77

, pois:

Quando alguém raciocina, nada mais faz do que conceber uma soma total, a

partir da adição de parcelas, ou conceber um resto a partir da subtração de

uma outra soma por outra; o que (se for feito com palavras) é conceber da

conseqüência dos nomes de todas as partes para o nome da totalidade, ou dos

nomes da totalidade e de uma parte, para o nome da outra parte. [...]. Em

suma, seja em que matéria for que houver lugar para adição e para a

subtração, há também lugar para a razão, e onde aquelas não tiverem o seu

lugar, também a razão nada tem a fazer (LEVIATÃ, I, V, p. 27).

Conforme Hobbes, da mesma maneira que os aritméticos ensinam a adicionar e a

subtrair com os mais diversos números – e onde não houver lugar para adição e para

subtração, também não há lugar para razão78

– “os lógicos ensinam o mesmo com

consequências de palavras, somando juntos dois nomes para fazer uma afirmação, e duas

afirmações para fazer um silogismo e muitos silogismos para fazer uma demonstração”

(LEVIATÃ, I, V, p. 27). Hobbes descaracteriza a razão como elemento ontológico e essencial

do gênero humano e a torna meramente um jogo de relações de acréscimos e de diminuição

ao agir. O homem não é mais estudado e compreendido por conta da sua razão, pois ela

deixou de ser o elemento ontológico responsável pela constituição da essência do homem,

para ser entendida como uma faculdade. Para Hobbes:

75

A razão, no sentido apresentado por Hobbes, não é unicamente prática, isto é, que aponta os caminhos mais

profícuos à ação do indivíduo. A razão também tem a função de explicar a origem das coisas, caso contrário, o

homem não seria capaz de fazer ciência. Não obstante essa dupla interpretação, nós optamos pela primeira

conotação justamente por acreditarmos ser a mais pontual à interpretação que queremos dar. 76

Cf. LEVIATÃ, I, IV, p. 27. 77

“Os gregos têm uma só palavra, lógos, para linguagem e razão, não que eles pensassem que não havia

linguagem sem razão, mas sim que não havia raciocínio sem linguagem” (LEVIATÃ, I, IV, p. 24). 78

Cf. LEVIATÃ, I, V, p. 27.

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O homem supera todos os outros animais nesta faculdade, que quando ele

concebe seja o que for é capaz de adquirir as conseqüências disso e que

efeitos pode obter com isso. E agora acrescendo este outro grau da mesma

faculdade, que ele sabe com as palavras reduzir as conseqüências que

descobre a regras gerais, chamadas teoremas, ou aforismos, isto é, sabe

raciocinar, ou calcular, não apenas com números, mas com todas as coisas

que podem adicionar ou subtrair umas às outras (LEVIATÃ, I, V, p. 29).

No Leviatã encontramos a razão definida como um cálculo a partir de nomes:

Pois razão, neste sentido, nada mais é do que cálculo (isto é, adição e

subtração) das conseqüências de nomes gerais estabelecidos para marcar e

significar nossos pensamentos. Digo marcar quando calculamos para nós

próprios, e significar quando demonstramos ou aprovamos nossos cálculos

para os outros homens (LEVIATÃ, I, V, p. 27).

A distinção existente entre a linguagem mental e a linguagem falada (efeito da

linguagem mental cuja pretensão pode ser tomada com o objetivo de comunicação) pode ser

pensada a partir do embasamento do cálculo. A prudência que o homem costuma adorar é

uma atividade oriunda do cálculo, entretanto, é um raciocínio meramente mental, o qual, ao

eximir-se do uso de nomes, não avaliza a universalidade e a necessidade de suas conclusões.

Por sua vez, o cálculo com nomes – a razão – ao abordar a necessidade e universalidade, será

o alicerce da ciência e viabilizará a organização da estrutura jurídica do Estado. Portanto, a

adequada ciência civil somente poderá ser executada a partir do cálculo racional, partindo de

certa atribuição de nomes, ou seja, de acepções evidentes por si mesmas, tais como as

definições apresentadas pelos aritméticos, de sorte que “a aritmética é uma arte infalível e

certa” (LEVIATÃ, I, V, p. 27).

O uso e a finalidade da razão, ao contrário da tradição aristotélica-tomista, não é

definir o homem enquanto homem ou criatura racional, muito menos encontrar a soma ou a

verdade das conseqüências efetivadas e sim “começar por estas e seguir de uma conseqüência

para outra. Pois não pode haver certeza da última conclusão sem a certeza de todas aquelas

afirmações e negações as quais se baseou e das quais foi inferida” (LEVIATÃ, I, V, p. 28). O

que Hobbes está propondo é a adoção de um espírito crítico e desconfiado diante de tudo

aquilo que tomamos ou somos levadas a tomar como exato. Tal atitude é inevitável para todo

homem que realmente deseja conhecer e saber determinado conteúdo79

.

O cálculo humano deve ser intimamente ligado ao uso da palavra, justamente para que

erros80

não ocorram e a ciência possa angariar seu progresso e percorrer por caminho seguro.

79

Cf. LEVIATÃ, I, V, p. 28. 80

“Pois o erro é apenas uma ilusão, ao presumir que algo aconteceu, ou está para acontecer, acerca do que, muito

embora não tivesse acontecido, não existe contudo nenhuma impossibilidade aparente. Mas quando fazemos uma

asserção geral, a menos que seja uma asserção verdadeira, sua possibilidade é inconcebível. E as palavras com as

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Quando alguém calcula sem o uso de palavras, o que pode ser feito em casos

especiais (como quando ao ver qualquer coisa conjecturamos o que

provavelmente a precedeu, ou o que provavelmente se lhe seguirá), se aquilo

que julgou provável que se seguisse não se seguir, ou se aquilo que julgou

provável que tivesse precedido, não tiver precedido, isso chama-se erro, ao

qual estão sujeitos mesmo os homens mais prudentes (LEVIATÃ, I, V, p.

28).

Exatamente neste contexto que Hobbes delineia a sua contraposição à interpretação

escolástica em torno do livre-arbítrio por acreditar que se trata de um equívoco lingüístico ou

simplesmente um absurdo da linguagem humana81

. Somente o que está em movimento pode

ser paralisado ou continuar em movimento. Para Hobbes, somente o corpo está em

movimento e, portanto suscetível de paralisação do próprio movimento. Falar em livre-

arbítrio seria a mesma coisa que falar em liberdade da liberdade, ou seja, do ponto de vista

lingüístico, algo sem sustentação.

Buscando dar sustentação à linguagem, Hobbes entende-a como um sistema de

tamanha coerência que o homem que dela se utilizar poderá, se souber dar o devido uso,

evitar equívoco tal como o da discussão do livre-arbítrio82

. A linguagem encontra sua

fundamentação quando tem por objetivo a facilitação da vida humana e, especialmente,

quando o alcança. A base de uma linguagem correta, por assim dizer, está intimamente ligada

ao bom uso do raciocínio ou ao raciocínio correto. Desta maneira:

Para aquele que sabe evitar estas coisas não é fácil cair em qualquer absurdo,

a menos que seja pela extensão do cálculo, no qual pode talvez esquecer o

que ficou para trás. Pois todos os homens por natureza raciocinam de forma

semelhante, e bem, quando têm bons princípios. Quem é tão estúpido a

ponto não só de cometer erros em geometria como também de persistir neles,

quando outra pessoa lhos aponta? (LEVIATÃ, I, V, p. 30).

Neste contexto Hobbes está mostrando que a razão não é algo congênito ao homem83

.

Não nascemos com ela, tão pouco nos definimos – essencialmente – a partir dela. O que nasce

conosco, que faz parte de nossa natureza, é a sensação e a memória, contudo, a razão é

adquirida no cotidiano, com o auxílio da experimentação sensível e, sobretudo, o esforço em

querer conquistá-la. Mais do que isso, nos tornamos seres racionais, embora antes disso já

quais nada mais concebemos senão o som são as que denominamos absurdas, insignificantes, e sem sentido”

(LEVIATÃ, I, V, p. 28). 81

Cf. LEVIATÃ, I, V, p. 29. 82

No Leviatã Hobbes apresenta sete pontos a serem seguidos para se evitar os absurdos lingüísticos. Cf.

LEVIATÃ, I, V, p. 29-30. 83

Para ratificar esta afirmação, basta continuarmos a leitura do capítulo V do Leviatã, cuja afirmação de Hobbes,

extremamente polêmica, mas não enganosa, nos apresenta em definitivo a prova cabal de que o homem não

nasce racional, ele se faz ser racional à medida que adquire o hábito lingüístico. Eis: “As crianças portanto não

são dotadas de nenhuma razão até que atinjam o uso da linguagem, mas são denominadas seres racionais devido

à aparente possibilidade de terem o uso da razão na sua devida altura” (LEVIATÃ, I, V, p. 30).

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possamos nos auto-intitular ou sermos reconhecidos como tais, por conta do uso adequado de

nossa linguagem. O uso adequado da linguagem é o que garante, na mesma medida, o uso

adequado do cálculo. Portanto:

Por aqui se vê que a razão não nasce conosco como a sensação e a memória,

nem é adquirida apenas pela experiência, como a prudência, mas obtida

como esforço, primeiro através de uma adequada imposição de nomes, e em

segundo lugar através de um método bom e ordenado de passar dos

elementos, que são nomes, a asserções feitas por conexão de um deles com o

outro, e daí para os silogismos, que são as conexões de uma asserção com

outra, até chegarmos a um conhecimento de todas as conseqüências de

nomes referentes ao assunto em questão, e é a isto que os homens chamam

ciência (LEVIATÃ, I, V, p. 30).

A linguagem, quando encarada com seriedade e pautada na severidade metódica, tende

a gerir nos homens, via cálculo, a compreensão adequada do assunto ou, então, à ciência. A

ciência, para Hobbes, é um conhecimento efetivo. Conhecimento este que é capaz de mostrar

o conseqüente de determinado assunto, além da dependência de um fato em relação a outro.

Conhecer uma causa específica que seja exata torna a nossa vida mais simples84

, pois toda vez

que determinada causa desencadear tal sistema, saberemos, com base nos fatos já ocorridos e

armazenados em nossa memória, como nos comportar para solucionar a referida questão85

.

Por esta razão que a linguagem ajuda os homens a construir o conhecimento – ciência – que é

um imenso processo e, para além disso, pretende conduzir os homens a um fim específico (a

instituição do Estado a fim de que o seu movimento vital seja preservado) e que só é possível

quando vinculada ao uso da razão.

O homem, via cálculo, entenderá que a condição natural não é favorável à preservação

da sua vida. Fazendo uso de sua razão e com base na estrutura mecanicista do mundo, o

homem postulará pela criação do Estado visando à fuga da ameaça constante à sua vida, de

maneira que na condição natural, a preservação da vida é uma inconstância.

Para o teórico político inglês, é irracional permanecer no estado de natureza.

Propor-se sair desse estado e, simultaneamente, querer renunciar às razões

que movem o propósito é impraticável, vale dizer, o ato de desistir da

autopreservação constitui o contraditório do contrato que funda o estado

civil (HECK, 2002, p. 543).

84

“Contudo, aqueles que não possuem qualquer ciência encontram-se numa condição melhor e mais nobre, com

sua natural prudência do que os homens que, por raciocinarem mal ou por confiarem na incorreta razão, caem

em regras gerais falsas e absurdas. Porque a ignorância das causas e das regras não afasta tanto os homens de seu

caminho como a confiança em falsas regras e o fato de tomarem, como causas daquilo a que aspiram, causas que

o não são, mas sim causas do contrário” (LEVIATÃ, I, V, p. 30-31). 85

Cf. LEVIATÃ, I, V, p. 30.

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Este estado é dominado pelas paixões desenfreadas dos homens que nada mais buscam

do que a própria conquista do poder – pensemos no poder como a condição do homem

angariar meios para a sustentação da sua vida – seguindo apenas os seus impulsos naturais. Os

homens calculam os efeitos das suas ações tendo em vista somente os seus anseios

particulares e, acima de tudo, aquilo que lhe for bom. Os homens não estão preocupados com

a manutenção do movimento vital alheio. A ideia de coletividade escapa desta esfera natural,

cujo imperativo é a busca da realização particular e privada.

Hobbes admite o uso da razão no estado natural. Acompanhemos a citação seguinte:

As paixões que fazem os homens tender para a paz são o medo da morte, o

desejo daquelas coisas que são necessárias para uma vida confortável, e a

esperança de consegui-las através do trabalho. E a razão sugere adequadas

normas de paz, em torno das quais os homens podem chegar a acordo. Essas

normas são aquelas a que por outro lado se chama leis de natureza

(LEVIATÃ, I, XIII, p. 77).

Entretanto, apenas o cálculo prudencial86

– que dará origem ao Estado – regulamentará

as ações individuais isoladas em paixões naturais, verdadeiramente porque não existe uma

condição racional – objetivada em aspirações singulares – capaz de contornar todas as

vontades particulares a tal ponto de que a guerra seja evitada. Ora, se isso fosse possível, não

precisaríamos da instituição do Estado e todo o seu aparato legislativo, judiciário e executivo.

Bastava, apenas, apelar para a consciência particular. Portanto, alicerçado no mecanicismo de

seu contexto histórico, Hobbes conceberá que a única alternativa para paralisar a ação

particular é a instituição de uma esfera que tenha como objetivo a administração do poder

singular. Esta incumbência é direcionada ao Estado, produto do uso adequado da razão e da

linguagem humana, com objetivo da manutenção da vida em paz, pautada e garantida nas

relações de direito próprios da lei civil. Assim, “o fim último, causa final e desígnio dos

homens (que amam naturalmente a liberdade e o domínio sobre os outros), ao introduzir

restrições sobre si mesmos sob a qual vemos viver nos Estado, é o cuidado com sua própria

conservação e com uma vida mais satisfeita” (LEVIATÃ, II, XVII, p. 103).

O contrato que dará início ao Estado está no patamar da razão humana. Antes disso,

entretanto, a razão essencial para a extirpação do estado natural se embasa no medo que o

homem contém dentro de si da morte violenta. O medo é uma paixão fundamental do

86

Hobbes costuma vincular a prudência à experiência. Ao menos duas passagens do Leviatã nos dão esta noção,

a saber: “Assim como a muita experiência é prudência, também a muita ciência é sapiência. Pois muito embora

só tenhamos o nome de sabedoria para as duas, contudo os latinos efetivamente distinguiram entre prudência e

sapiência, ligando a primeira à experiência e a segunda à ciência” (LEVIATÃ, I, V, p. 31). A outra, ainda mais

pontual: “Porque a prudência nada mais é do que experiência, que um tempo igual igualmente oferece a todos os

homens, naquelas coisas a que igualmente se dedicam” (LEVIATÃ, I, XIII, p. 31).

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pensamento político de Thomas Hobbes e, antes de qualquer coisa, é o conatus que

movimenta o homem medroso a pactuar com os outros ‘medrosos’. Somado à paixão do

medo, existem outras duas paixões que conduzem o homem ao pacto, são elas: o desejo de

uma vida confortável e a esperança de consegui-la pelo trabalho87.

A própria natureza do homem grita constantemente por paz: “a lei primeira e fundamental

de natureza, isto é, procura a paz, e segui-la” (LEVIATÃ, I, XIV, p. 78), justamente para que a

vida seja preservada. Contudo, apenas a natureza humana não dá conta da busca pela

segurança e pela paz, justamente porque o homem, em situação natural, vive consoante às

suas paixões desregradas. Cabe à razão e à linguagem esta importante tarefa de apontar o

melhor caminho para a instituição deste estado de paz, porquanto que:

A luz dos espíritos humanos são as palavras perspícuas, mas primeiro limpas

por meio de exatas definições e purgadas de toda ambigüidade. A razão é o

passo, o aumento da ciência, o caminho e o benefício da humanidade o fim.

Pelo contrário, as metáforas e as palavras ambíguas e destituídas de sentido

são como ignes fatui, e raciocinar com elas é o mesmo que perambular entre

inúmeros absurdos, e o fim é a disputa, a sedição ou a desobediência

(LEVIATÃ, I, V, p. 31).

Portando, para Hobbes, é fazendo o uso adequado da razão e da linguagem que os

homens alcançam a conclusão de que a instituição do Estado é a única saída viável para se

manterem vivos e em paz. É somente dentro da esfera do Estado que o movimento vital livre

estará sendo preservado, livre dos ataques, com motivação passional particular, por conta dos

atributos que sustentam a lei civil. Entretanto, ainda assim, o homem é livre para agir no

silêncio da lei, pois “para Hobbes, o que impede o movimento deixa claro o contraditório da

definição de liberdade” (HECK, 2002, p. 546).

2.4 DA IMPOSSIBILIDADE DO HOMEM MANTER O DIREITO NATURAL

O conatus (movimento aversivo ou passional) é o elemento motriz da vida humana,

tanto pode conduzir o homem para nutrir o seu desejo aversivo bem como o sentimento de

paixão em conquistar bens para si. Ele inspira o homem a se mover em direção à conquista ou

ao repúdio de determinado corpo externo a ele, sempre para o seu benefício; se é para o bem,

busca-o até consumá-lo; se atende contra a sua natureza, repudia-o severamente. “Por um

lado, o ser humano não sente o que se passa no interior do organismo e, por outro lado,

percebe o incentivo ao movimento vital como deleite e o impedimento como dor” (HECK,

2002, p. 541). É nesta diretriz que o conceito de liberdade de Thomas Hobbes se apropria de

87

Cf. LEVIATÃ, I, XIII, p. 77.

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seu valor semântico e ganha consistência real e útil, ou seja, se o homem é um corpo que vive

em constante movimento, para que possa angariar bens e repudiar outros para sua

sobrevivência, ser livre, na mesma direção, só se concretiza se o homem obtiver tal êxito, sem

espécie alguma de impedimento extrínseco ao seu movimento livre e voluntário.

A liberdade é entendida como ausência de interferência externa ao movimento do

corpo, seja racional ou não, “porque de tudo o que estiver amarrado ou envolvido de modo a

não poder mover-se senão dentro de um certo espaço, sendo este espaço determinado pela

oposição de algum corpo externo, dizemos que não tem liberdade de ir mais além”

(LEVIATÃ, II, XXI, p. 129). Ser livre e agir livremente é estar em contínuo movimento,

avesso ao estado de inércia. Quando o homem estiver parado, tendo em vista que esta

paralisação não é ocasionada por um ato inerente à sua natureza, a possibilidade deste

sobreviver, manter a sua vida em movimento (fim último a ser almejado pelo gênero humano)

é praticamente remota. Neste sentido, o movimento livre e voluntário do homem, diante de

qualquer condição e contexto, deve ocorrer porque “(...) um homem livre é aquele que,

naquelas coisas que graças a sua força e engenho é capaz de fazer, não é impedido de fazer o

que tem vontade de fazer” (LEVIATÃ, II, XXI, p. 129). Definitivamente, para Thomas

Hobbes, a vida humana é semelhante ao movimento livre e voluntário.

Hobbes, com esta afirmação, se posiciona severamente contra a corrente de

pensamento tradicional, cuja noção de liberdade era preconizada por condição ontológica e

metafísica. A liberdade é mecânica e materialista e tem função pragmática e específica (a

sobrevivência). “Mas sempre que as palavras livre e liberdade são aplicadas a qualquer coisa

que não é um corpo, há um abuso de linguagem; porque o que não se encontra sujeito ao

movimento não se encontra sujeito a impedimento” (LEVIATÃ, II, XXI, p. 129). Esta

concepção de liberdade é claramente de influência científica, ou melhor, do novo modelo de

ciência que estava se configurando no patamar existencial do homem moderno. O filósofo

político inglês, quando esteve na Itália, conheceu Galileu Galilei, do mesmo modo, quando

esteve na França soube da importância e da aceitação do pensamento inovador de René

Descartes. Hobbes não viveu apático a essa nova forma de pensar e fazer ciência e tratou logo

de aplicar os fundamentos básicos (análise matemática e materialista) à sua filosofia política.

A definição de liberdade, entendida como ausência de impedimento externo ao

movimento do corpo, é aplicada por Hobbes a todas as criaturas existentes, independente de

sua condição de corpo racional ou não – racional. O que existe em comum a todos os corpos é

a possibilidade do movimento dos seus corpos; sejam movimentos intrínsecos a eles, como os

movimentos vitais; sejam movimentos extrínsecos a eles, como a água que corre livremente

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pelas montanhas. Com isso se consolidou ainda mais o rompimento com a tradição filosófica,

cuja noção de liberdade era uma propriedade metafísica tão e somente dos corpos racionais. A

liberdade deixa de pertencer somente aos corpos racionais, destronando, assim, a razão de

titular na definição própria do homem. O homem, para Hobbes, antes de tudo, é um corpo

mecânico, muito bem constituído e que está em movimento e para o movimento. A liberdade

que lhe cabe – definida como o poder natural do homem para se beneficiar das coisas

necessárias e possíveis para sua preservação – também o coloca em situação generalizada de

guerra e desconfiança um em relação aos outros. Não obstante a razão não ter mais o seu

sentido primordial defendido pelos pensadores medievais, em Hobbes ela encontra outro

sentido e outra função: a razão como capacidade de cálculo.

É em virtude da razão, atuando como capacidade de prever os benefícios ou malefícios

de uma determinada atitude, que o homem hobbesiano se dá conta da incapacidade de manter

a sua vida no estado natural. Portanto, o ônus atribuído a Hobbes não é ao acaso e sim como

conseqüência de um grande mérito, pois:

Ele foi o primeiro a construir uma teoria da razão como cálculo, visando

particularmente ao homem em sociedade, e como cálculo das utilidades, pelo

qual somos induzidos a nos unir com os outros através de um pacto, a

construir a sociedade civil, a colocar as condições para a transformação das

leis naturais – certamente boas, mas ineficazes – em leis positivas, boas, isto

é, vantajosas, pelo simples fato de serem pelo menos eficazes e de

garantirem a realização do valor supremo, ou seja, a paz. Hobbes foi o

primeiro que – sem se limitar a atribuir ao direito natural preceitos

generalíssimos, como o haviam feito todos os seus predecessores, incluindo

Grócio – pôs à prova, com seu longo elenco de leis naturais (extraídas em

grande parte do direito de guerra), a tese segundo a qual as leis naturais não

são nada mais do que o produto do cálculo das utilidades [...], expedientes

criados pela razão para tornar possível a coexistência pacífica (BOBBIO,

1991, p. 136).

A razão acusa ao homem que a vida em situação natural tem suas vantagens – viver

totalmente livre, fazendo tudo o que quiser e puder – mas que é impensável ao homem que

deseja uma vida longa e de qualidade. Pensando sobre a vida prática e cotidiana, o homem

refletido por Thomas Hobbes conclui que a existência de um poder supremo capaz de ordenar

e fazer com que leis e ensinamentos comuns sejam cumpridos é a melhor saída para se

alcançar a paz. Esta série de ensinamentos e normas que orientam o homem a procurar a paz é

o que Hobbes descreve demoradamente nos capítulos XIV e XV do Leviatã, ou seja, as leis

naturais como um produto do cálculo racional do homem. “Esses argumentos nascem de uma

análise tanto das condições objetivas que os homens se encontram no estado de natureza [...]

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quanto das paixões humanas” (BOBBIO, 1991, p. 33). As leis naturais, em última instância,

são produtos da convenção humana em torno de uma vida satisfatória e feliz88

.

No legado político de Thomas Hobbes é impossível pensar a liberdade do corpo

humano fora desta esfera interpretativa. Tal conclusão decorre da importância e do sentido do

homem ser e estar dentro do estado de natureza. Um homem que vive totalmente livre e em

perpétuo movimento, a não ser que outro corpo o interrompa. Todas as criaturas vivas estão

sendo analisadas a partir desta nova maneira de identificar a liberdade. Quando um homem é

aprisionado e impedido de desenvolver seu movimento vital, livre e voluntário, ele está sendo

arrebatado de sua condição natural. Da mesma forma, quando um rio é barrado por fronteiras

externas ao seu fluxo normal, este também está sendo impedido de agir livre e naturalmente;

pois, se assim não fosse, as águas poderiam correr e se espraiar por um espaço mais amplo e o

homem fazer tudo aquilo que tivesse vontade e possibilidade para se manter em movimento

vital. Diante destes dois casos, Hobbes afirma que ambos “não têm a liberdade de se mover da

maneira que fariam se não fossem esses impedimentos externos” (LEVIATÃ, II, XXI, p.

129).

Hobbes fez questão de enfatizar que o impedimento da ação do corpo deve se localizar

externo a ele, isso porque “quando o que impede o movimento faz parte da constituição da

própria coisa não costumamos dizer que ela não tem liberdade, mas que lhe falta o poder de se

mover” (LEVIATÃ, II, XXI, p. 129), semelhante a quando uma pedra está em estado de

inércia ou quando um homem está impossibilitado de se mover por causa de seu organismo

doentio. Aqui se alicerça uma importante interpretação do pensamento político de Hobbes,

pois a noção de que o homem é tolhido de sua liberdade, a exemplo de uma pedra, traz para

discussão a antítese entre opressão-liberdade e anarquia-unidade89

. Para Norberto Bobbio:

O ideal que ele defende não é a liberdade contra a opressão, mas a unidade

contra a anarquia. Hobbes é obcecado pela idéia da dissolução da autoridade,

pela desordem que resulta da liberdade de discordar sobre o justo e o injusto,

pela desagregação da unidade do poder, destinada a ocorrer quando se

começa a defender a idéia de que o poder deve ser limitado, ou, numa

palavra, obcecado pela anarquia que é o retorno do homem ao estado de

natureza (1991, p. 26).

Pôr barreiras à liberdade natural do homem, na forma de Hobbes entender o corpo

humano dentro do Estado, não é para oprimi-lo e nem impedi-lo de agir como gostaria de

agir. O Estado não alcança seu fim quando oprime ou quando aniquila seus habitantes –

cidadãos – senão que a finalidade pela qual foi instituído passa a acontecer quando os súditos

88

Cf. BOBBIO, 1991, p. 83. 89

Cf. BOBBIO, 1991, p. 26.

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conseguem manter seu movimento vital em paz, longe da anarquia, que se configura como um

retrocesso do homem ao estado de natureza.

Portanto, aqueles que estão submetidos a um monarca não podem sem

licença deste renunciar à monarquia, voltando à confusão de uma multidão

desunida, nem transferir sua pessoa daquele que dela é portador para outro

homem, ou outra assembléia de homens. Pois são obrigados, cada homem

perante cada homem, a reconhecer a ser considerados autores de tudo quanto

aquele que já é seu soberano fizer e considerar bom fazer (LEVIATÃ, II,

XVIII, p. 107).

O Estado tem a função de zelar pela ordem e pela harmonia de seus habitantes. Se para

concretizar tal objetivo o Estado precisar oprimir, assim deve proceder. O que estamos

defendendo é que o Estado não deve oprimir pelo simples fato de oprimir. Matar pelo fato de

matar. Tirar o direito do homem se defender simplesmente para deixá-lo indefeso. O Estado

não deve limitar a liberdade do homem pelo simples fato de limitar. O Estado pode e deve

oprimir e usar da força quando o objetivo pelo qual foi criado estiver em risco90

. Os homens

jamais criariam o Estado se não esperassem nada em troca, se, por meio da razão calculadora,

não encontrassem nele a solução para seus problemas existenciais. “Pois uma doutrina

contrária à paz não pode ser verdadeira, tal como a paz e a concórdia não podem ser

contrárias à lei da natureza” (LEVIATÃ, II, XVIII, p. 109).

Conforme o significado empregado por Hobbes ao termo liberdade, um homem é livre

quando não for impedido, por qualquer fator externo, de fazer aquilo que tiver vontade e

possibilidade de fazer. Costumeiramente, os termos livre e liberdade são empregados e

utilizados de maneira errônea. Tal erro se concretiza quando os termos são aplicados a

qualquer coisa que não seja um corpo, ocasionando um excesso de linguagem, uma espécie de

condicionamento e de inclinação do valor semântico e interpretativo da oração (quando

escrito) e do caso (quando efetivado), justamente porque o corpo que não se encontra em

movimento não tem como ser paralisado e somente o corpo que estiver em movimento é

propenso ao impedimento. Aqui se afirma a concepção hobbesiana de liberdade materialista

(corpórea), que tem por princípio o movimento iniciado por outro corpo externo a ele.

Embasado nesta discussão que Thomas Hobbes tratou do problema do livre arbítrio.

Quando alguém se utiliza dos termos livre e liberdade para argumentar, este deve tomar o

máximo de cuidado, pois as confusões em torno da linguagem são inúmeras. Ao afirmar que a

90

Para ratificar esta afirmação, basta remontarmos à seguinte afirmação de Hobbes “Pois ela deve obedecer a

quem a preservou porque, sendo a preservação da vida o fim em vista do qual um homem fica sujeito a outro,

supõe-se que todo homem prometa obediência àquele que tem o poder de salvá-lo ou de destruí-lo” (LEVIATÃ,

II, XX, p. 123). Neste mesmo sentido, podemos estender esta afirmação para ilustrar a relação entre o Estado e o

súdito, “porque o soberano de cada país tem direito de domínio sobre todos quantos lá residem” (LEVIATÃ, II,

XX, p. 124).

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doação de determinada coisa a alguém é livre, segundo Hobbes, não se está aplicando a

linguagem de forma adequada, de sorte que a doação em espécie alguma é livre, e sim o

homem que está fazendo, imune a qualquer quesito opressivo que o indique o que fazer ou

não. A liberdade é a ação de um corpo e não da vontade ou da intenção deste. Com isso, o

Uso da expressão livre arbítrio não é possível inferir qualquer liberdade da

vontade, do desejo ou da inclinação, uma apenas a liberdade do homem; a

qual consiste no fato de ele não deparar com entraves ao fazer aquilo que

tem vontade, desejo ou inclinação de fazer (LEVIATÃ, II, XXI, p. 129).

A expressão livre arbítrio não passa de um exagero lingüístico empregado pelos

homens, dado que a liberdade da ação não é da vontade ou do desejo, mas sim do homem que

é o corpo que sente vontade e desejo de ter as coisas para o movimento vital presente e futuro.

Esta liberdade versa no fato do homem, que é um corpo livre naturalmente, fazer o que tem

vontade e possibilidade sem nenhum percalço exterior ao seu corpo. No estado natural isso

nunca seria possível, mas apenas sob o ditame das leis civis, devido a isso “os pactos e

convenções mediante os quais as partes deste Corpo Político foram criadas, reunidas e

unificadas assemelham-se àquele Fiat, ao Façamos o homem proferido por Deus na Criação”

(LEVIATÃ, 1983, p. 05).

No estado natural o homem não tem condições aparentes de manter o seu movimento

vital, justamente por conta do outro homem que também busca a preservação do seu próprio

movimento vital. Considerando que ambos agem providos de direitos e de liberdade iguais,

Hobbes é levado a pensar em uma solução racional para enfrentamento, pois:

O mal que ele mais teme – e contra o qual se sente chamado a erigir o

supremo e insuperável dique de seu sistema filosófico – não é a opressão que

deriva do excesso de poder, mas a insegurança que resulta, ao contrário, da

escassez de poder. Insegurança, antes de mais nada, da vida, que é o primum

bonum, depois dos bens materiais e, finalmente, também daquela pouca ou

muita liberdade que a um homem vivendo em sociedade é consentido

desfrutar (BOBBIO, 1991, p. 26).

É diante desta discussão que entendemos Hobbes como um filósofo que pensa a

política com radicalidade e o Estado civil com bases racionais. Para tanto, o estado de

natureza hobbesiano segue algumas diretrizes basilares. A primeira é a competição que

acontece entre os homens, seja em dimensão psíquica ou material, de maneira que estar acima

da condição do outro é sinônimo de auto-afirmação. Hobbes costuma pensar o homem como

um ser que se previne dos meios necessários e possíveis para a manutenção do seu movimento

vital. Quanto maior o número de bens, maior a chance de viver melhor e por mais tempo. Esta

é uma ideia física da vida humana, embasada no desejo como uma marca principal do conflito

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ocorrido entre os homens, todos em igualdade e liberdade perfeita. “A situação é agravada

pelo fato de que os seres que a natureza colocou em tais condições são dominados por

paixões, [...], que lhes predispõem mais para a insociabilidade do que para a sociedade”

(BOBBIO, 1991, p. 34).

Podemos pensar o estado natural a partir de três pontos, são eles: está no ‘rol da

estranheza’, uma vez que os homens desejam o que nenhum homem ainda tem. No estado

natural tudo é de todos ou quase a mesma coisa que dizer: nada é de ninguém. Além disso,

aparecendo como a segunda diretriz do estado de natureza, um homem jamais sabe o que o

outro homem pensa sobre ele: se o teme, se o ama, se o estima, se o odeia. Por isso, a melhor

saída, quando a preservação da vida aparece como cláusula principal e inegociável, é a

antecipação ao ataque do outro, visto que jamais o homem saberá quando e onde será atacado

pelo outro homem. É um estado de desconfiança ilimitada. Por fim, surgindo como uma

terceira diretriz do estado de natureza, a agressão aos outros em função da conquista da honra.

Assim, a guerra de todos contra todos ganha consistência quando da impossibilidade do

homem ler o anseio, o desejo de cada homem. Nesta dimensão, “Hobbes distingue três

principais causas de luta: a competição que os homens travam entre si pelo ganho; a

desconfiança que os faz lutar pela segurança; e a glória que os faz combater pela reputação”

(BOBBIO, 1991, p. 35).

Este cenário de guerra, embora nunca tenha existido historicamente e concretamente,

pode ser resumido na célebre afirmação de Hobbes ‘a guerra de todos contra todos’. Para

Norberto Bobbio, mais do que uma expressão que perpassa o tempo e emerge a todo e

qualquer escrito sobre o pensador político inglês, ela tem um significado importante e egrégio

para a compreensão do pensamento político do autor do Leviatã. Eis:

“Guerra de todos contra todos” é uma expressão hiperbólica: retirada a

hipérbole, significa aquele estado no qual um grande número de homens,

singularmente ou em grupos, vive – por não haver um poder comum – no

temor recíproco e permanente da morte violenta. A hipérbole serve somente

para fazer compreender que se trata de um estado intolerável, do qual o

homem deve sair mais cedo ou mais tarde, se é que deseja salvar o que tem

de mais precioso, a vida (BOBBIO, 1991, p.38).

Tendo consciência da impossibilidade de manter o seu direito natural, no estado

natural, amparado pelo bom uso da razão e a linguagem, os homens instituem o Estado cuja

finalidade é a preservação da paz e a manutenção de suas vidas. “O fim último, causa final e

desígnio dos homens que amam naturalmente a liberdade e o domínio sobre os outros, ao

introduzir aquela restrição sobre si mesmos sob o qual os vemos viver nos Estados, é o

cuidado com sua própria conservação e com uma vida mais satisfeita” (LEVIATÃ, II, XVII,

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97

p. 103). De sorte que “a verdade que não se opõe aos interesses ou aos prazeres do homem é

bem recebida por todos” (LEVIATÃ, 1983, p. 410).

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3 OS EFEITOS DA CONCEPÇÃO DE LIBERDADE NA RELAÇÃO ENTRE O

ESTADO DE NATUREZA E O ESTADO CIVIL EM THOMAS HOBBES

O rompimento com a cosmovisão tradicional gerou em Hobbes uma maneira

diferenciada de entender o conceito de liberdade e o mundo no qual estava inserido. O mundo

e tudo o que existe é constituído de corpo e movimento. Com efeito, o próprio conceito de

liberdade é ‘mecanizado’, isto é, enquanto a liberdade era empregada ao homem como um

atributo ontológico, com Hobbes ela ganhou condições estritamente físicas, chegando à

conclusão de que a liberdade é apenas ausência de impedimento externo ao movimento

iniciado em determinado corpo. Frente esta inovação acerca da visão mecanicista de

liberdade, Hobbes projeta-se em um mundo de conflitos intelectuais com alguns de seus

contemporâneos, entre eles o bispo de Bramhall que defendia severamente a permanência do

livre-arbítrio no entendimento da ação livre do homem. Em contrapartida, para o filósofo de

Malmesbury o livre-arbítrio é apenas efeito de um equívoco lingüístico. Com isso, Hobbes

costuma atrelar a liberdade à necessidade, vendo-as como sinônimas, como necessárias à vida

de todo e qualquer ser que estiver em movimento.

3.1 A INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO MECÂNICO NO CONCEITO DE LIBERDADE

Thomas Hobbes, voltado aos interesses políticos de sua época91

, viveu em um período

de muitas guerras e acreditava que somente a figura de um Estado forte poderia acabar com

esses conflitos e gerar a paz comum. A mesma forma mecânica de ver a realidade do homem,

Hobbes aplicou à concepção do Estado. Para justificar a necessidade do Estado Soberano, o

teórico político inglês formulou uma teoria hipotética.

A doutrina hobbesiana da verdadeira liberdade dos súditos toma o estado

natural como início da scientia civilis. Cotejada com a interpretação

macphersoniana, a reconstrução hobbesiana não é nem histórica nem

circunstancial, mas sim fictícia, muito aquém de qualquer tipo societário

agregado ou dividido pelo meu/teu do capitalismo embrionário (HECK,

2002, p. 544).

91

“Thomas Hobbes inaugura o De Cive (1642) cumprindo a promessa, feita no Elements of law (1640), de

quebrar o silêncio que reinava há 2.500 anos diante da autoridade de Aristóteles. Desafiando os estatutos

laudianos, que proclamavam incontestável a palavra do filósofo grego, Hobbes pretende desmentir a teoria da

natureza política do homem. Junta-se, assim, aos seus contemporâneos, na tentativa de demolir a tradição que

dominava os diversos campos do conhecimento: na filosofia, Aristóteles, na medicina, Galeno, na geografia e na

astronomia, Ptolomeu. Hobbes propõe-se a contribuir banindo da filosofia política o preceito aristotélico do zoon

politikon e estabelecendo as bases da nova ciência da política” (FRATESCHI, 2008, p. 17-18)

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Diante disso, sem medo de cometer qualquer espécie de equívoco, é correto

afirmarmos que Hobbes desenvolveu uma teoria utilizando o método resolutivo92

-

compositivo93

. Ao justificar o método utilizado para a composição do De Cive, ainda no

prefácio, Hobbes compara o Estado a um relógio.

Com efeito, conhecemos muito melhor uma coisa através dos elementos de que ela se

constitui. Assim como não se pode saber, num relógio mecânico ou noutra máquina um pouco mais

complexa, qual a função de cada parte ou roda, se ele não for desmontado e separadamente

examinados o material, o desenho e o movimento: assim também, para estudar o direito da Cidade e os

deveres dos cidadãos, precisamos, sem desmontar a Cidade, considerá-la como desmontada: isto é,

para compreender corretamente a condição da natureza humana, com o uso de quais meios ela é capaz

ou incapaz de dar corpo à Cidade; de que modo hão de ajustar-se entre si os homens, se querem

alcançar a união (1993, p. 10).

O Estado é o objeto de análise do teórico político inglês e o elemento formador do

Estado é o homem, isso porque, “os homens pertencem à classe dos corpos vivos, animados e

finitos, sendo esses corpos que constituem a matéria do Estado” (BERNARDES, 2002, p. 28).

Analisando o Estado, Hobbes fez como um relojoeiro ao tentar conhecer a mecânica do

relógio: decompôs o Estado, analisou seus elementos, que são os homens (em condição

natural) e depois reformulou o Estado em ordem civil (dando a interpretação da república).

No primeiro momento, Hobbes está prescindindo o homem de toda e qualquer

possibilidade de relação social, visando, assim, um homem puro do ponto de vista do

particular, sem nenhuma possível influência proveniente das relações sociais. O filósofo

político inglês estudou o homem de acordo com a sua estrutura subjetiva e concluiu que todo

homem, naturalmente, é provido do mesmo direito. A conclusão obtida por Hobbes

estabeleceu uma cisão com a tradição política aristotélica, mais de 2500 anos são deixados de

lado. “Para se contrapor à tese aristotélica da naturalidade da cidade, Hobbes precisa antes

negar que o homem é um animal político” (FRATESCHI, 2008, p. 27). Para Aristóteles, todos

os homens94

possuem aptidão natural para viver em sociedade, os requisitos necessários para

a instituição e a manutenção da vida em comunidade95

. Diante disso, a intenção de Hobbes é

“desmentir que a capacidade para a vida política é uma necessidade e independe da escolha

92

Resolutio, termo latino que designa análise. 93

Compositio, termo latino que tem por significado síntese, a composição daquilo que foi detalhadamente

analisado. 94

Exceto os escravos, mulheres e artesãos. 95

“Para Aristóteles, a cidade é um fim porque é nela que o homem é plenamente homem. Por conseguinte, é

anterior aos indivíduos porque é nela que os homens realizam a sua essência” (FRATESCHI, 2008, p. 42).

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humana (sem o que será impossível fundamentar a teoria do contrato social)” (FRATESCHI,

2008, p. 27).

Hobbes defende que o Estado não foi fundado em nenhuma lei ontológica ou

metafísica e sim tendo como base o direito natural de cada indivíduo – a preservação do

movimento vital. Em decorrência disso, podemos dizer que a cidade é instituída a partir da

soma dos consentimentos singulares96

, colocando-se de uma vez por todas “contra a teoria

tradicional de que o homem é um animal que nasce apto para a sociedade, ele defende que

essa aptidão não advém da natureza, e sim da disciplina” (FRATESCHI, 2008, p. 27). A idéia

grega do zoon politikon97

é refutada e no seu lugar encontramos a noção de jus naturale que é

assim definida por Hobbes “é a liberdade que cada homem possui de usar seu próprio poder,

da maneira que quiser, para a preservação de sua própria natureza, ou seja, de sua vida; e

consequentemente de fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe indiquem

como meios adequados a esse fim” (LEVIATÃ, I, XIV, p. 78).

Ao decretar a sentença condenatória da tese política de Aristóteles, Hobbes vai além

ao afirmar que “é evidente, para quem observa com um pouco mais de atenção as coisas

humanas, que todas as nossas reuniões se realizam ou por necessidade ou por desejo de

promoção recíproca; por isso os participantes se esforçam por tirar algum proveito ou captar

estima e honra uns dos outros” (DE CIVE, I, I, p. 51). Para Hobbes a união e a reunião social

não existem por causa imanente ao corpo humano, mas sim por convenção e privilégios

pessoais. “Toda sociedade, portanto, é forjada pela força do útil ou pelo estímulo da honra,

isto é, por amor a si e não aos sócios e componentes” (DE CIVE, I, I, p. 51).

Hobbes mostra o estado de natureza como luta entre fracos e fortes, vigorando a lei da

selva ou o poder da força. No estado natural impera o acrescentamento próprio, “Hobbes,

portanto, investiga as paixões humanas à luz do alicerce de sua concepção da natureza

humana, o princípio do benefício próprio, que formula como uma aplicação particular de sua

filosofia mecanicista em geral” (FRATESCHI, 2008, p. 82). Para fazer cessar esse estado de

96

Para Hobbes, ao contrário de Aristóteles, “ela (a cidade) é escolhida como meio para a promoção da

autoconservação, ela é produto da criação humana. Portanto, há uma evidente anterioridade do artífice em

relação ao artifício” (FRATESCHI, 2008, p. 43). 97

“A maior parte dos autores que escreveram sobre a república partem do pressuposto ou do postulado de que o

homem é um animal que nasce apto para a sociedade. Os gregos chamam-no de Zôon politikón. Sobre esta base

tais autores construíram uma ampla doutrina da sociedade civil, a ponto de se concluir dela que nada mais seria

preciso para a preservação da paz e do governo de todo gênero humano que os homens adotarem em conjunto

pactos e certas condições, a que em seguida tais autores dão o nome de leis. Entretanto, este axioma, embora

aceito por muitos, é falso; seu erro originou-se de uma visão demasiada superficial da natureza humana. Pois,

para quem quiser ver mais de perto as causas que fazem os homens se juntarem e quererem a companhia dos

outros, aparecerá com clareza que isso acontece, não porque não possa ser de outro modo naturalmente, mas sim

de modo acidental” (DE CIVE, I, I, p. 50).

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vida ameaçador e ameaçado, os humanos decidem passar à sociedade civil, isto é, ao Estado

civil, criando o poder político e as leis. A passagem do estado de natureza à sociedade civil se

dá por meio de um contrato social, pelo qual os indivíduos renunciam à liberdade natural e à

posse natural de bens, riquezas e armas e concordam em transferir a um terceiro (soberano) o

poder para criar e aplicar as leis, tornando-se autoridade política.

Portanto as ações voluntárias e as inclinações dos homens não tendem

apenas para conseguir, mas também para garantir uma vida satisfeita, e

diferem apenas quanto ao modo como surgem, em parte da diversidade de

paixões em pessoas diversas, e em parte das diferenças no conhecimento e

opinião que cada um tem das causas que produzem os efeitos desejados

(LEVIATÃ, I, XI, p. 60).

Como é possível o contrato ou o pacto social? Qual sua legitimidade? Para legitimar a

teoria do contrato ou do pacto social, Hobbes parte do conceito de direito natural

(jusnaturalismo): por natureza, todo indivíduo tem direito à vida (sobrevivência e liberdade de

ação). Por natureza, todos os homens são livres, ainda que, por natureza, uns sejam mais

fortes e outros mais fracos. Todos os homens são igualmente livres e bonados dos mesmos

direitos, dado que “a natureza fez os homens tão iguais, quanto às faculdades do corpo e do

espírito ” (LEVIATÃ, I, XIII, p. 74). Um contrato ou um pacto, dizia a teoria jurídica romana,

só tem validade se as partes contratantes forem livres e iguais e se voluntária e livremente

derem seu consentimento ao que está sendo pactuado.

A teoria do direito natural garante essas duas condições para validar o contato social

ou o pacto político. Isso leva a afirmar que “o conceito de direito supõe a definição de

liberdade. O direito é a liberdade que cada homem possui de usar seu próprio poder segundo

sua vontade para a realização de um determinado fim, o qual o direito o anuncia como

legítimo” (BERNARDES, 2002, p. 59). Se as partes contratantes possuem os mesmos direitos

naturais e são livres, possuem o direito e o poder para transferir a liberdade a um terceiro, e se

consentem voluntária e livremente nisso, então dão ao soberano algo que possuem,

legitimando o poder da soberania. Assim, por direito natural, os indivíduos formam a vontade

livre da sociedade, voluntariamente fazem um pacto ou contrato e transferem ao soberano o

poder para dirigi-los.

Para Hobbes, os homens reunidos numa multidão de indivíduos, pelo pacto, passam a

constituir um corpo político, uma pessoa artificial criada pela ação humana e que se chama

Estado. A teoria do direito natural e do contrato evidencia uma inovação de grande

importância: o pensamento político já não fala em comunidade, mas em sociedade. A idéia de

comunidade pressupõe um grupo humano uno, homogêneo, indiviso, que compartilha os

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mesmos bens, as mesmas crenças e idéias, os mesmos costumes e que possui um destino

comum. Ao passo que, a idéia de sociedade supõe a existência de indivíduos independentes e

isolados, dotados de direitos naturais e individuais, que decidem, por um ato voluntário,

tornarem-se sócios ou associados para vantagem recíproca e por interesses recíprocos. A

comunidade é a idéia de uma coletividade natural ou divina, a sociedade, a de uma

coletividade voluntária, histórica e humana. Portanto, provenientes de aspectos

substancialmente diferentes.

A sociedade civil é o Estado propriamente dito. Trata-se da sociedade vivendo sob o

direito civil, sob as leis promulgadas e aplicadas pelo soberano. Feito o pacto ou o contrato,

os contratantes transferiram o direito natural (jus naturale) ao soberano e com isso o

autorizam a transformá-lo em direito civil ou direito positivo, garantindo a vida, a liberdade e

a propriedade privada dos governados. Estes transferiram ao soberano o direito exclusivo ao

uso da força e da violência, da vingança contra os crimes, da regulamentação dos contatos

econômicos, isto é, está instaurada a instituição jurídica da propriedade privada, e de outros

contratos sociais.

Hobbes emprega o método mecanicista, o mesmo aplicado para entender a natureza do

homem, para descrever a natureza do Estado civil. O filósofo político inglês obedeceu ao

modelo copernicano de Galileu, isto é, a divisão e recomposição em busca do conhecimento

claro e transparente. No Estado encontra-se presente o mesmo mecanismo humano, porém em

escala superior ao conhecimento sobre o homem.

Porque pela arte é criado aquele grande Leviatã a que se chama Estado, ou

Cidade (em latim Civitas), que não é senão um homem artificial, embora de

maior estatura e força do que o homem natural, para cuja proteção e defesa

foi projetado. E no qual a soberania é uma alma artificial, pois dá vida e

movimento ao corpo inteiro; os magistrados e outros funcionários judiciais

ou executivos, juntas artificiais [...] a concórdia é a saúde, a sedição é a

doença; a guerra civil é a morte (LEVIATÃ, 1983, p. 05).

A morte é o que primeiro o homem deseja evitar, por isso ele pactuou e instituiu o

Estado como instância convencional. Além disso, o Estado visa a manutenção da paz através

da lei positiva e da ordem. Sem estes dois pressupostos não pode haver, por parte do homem,

nenhum conhecimento, nenhuma propriedade. Contra Aristóteles, o ordenamento político não

é fruto da idéia do homem como um animal político por natureza, representa, ao contrário, um

artifício. O Leviatã98

é o deus mortal que surpreendentemente une o que há de mais

98

“Embora ele nunca tivesse escondido seu materialismo, que ficara particularmente óbvio em suas objeções

publicadas às Meditações de Descartes, ele nunca fora tão gratuitamente ofensivo à teologia ortodoxo quanto em

sua apresentação no Leviatã. O próprio título do livro era de gelar o coração: era uma referência ao capítulo 41

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contraditório no homem: força e mansidão, crueldade e benignidade, egoísmo e altruísmo

com o intento primeiro de preservação da própria vida. Nesta miríade de contrários, o Estado

estabelecido será dentre os males o menor e a única saída para amenizar os conflitos nos quais

os homens estão naturalmente inseridos. Por este motivo:

Hobbes é também o teórico da idéia de liberdade entendida como ausência

de interferência, a assim chamada liberdade negativa, que depois se tornou

um dos princípios do pensamento político liberal. Sua concepção de

liberdade como ausência de interferência o leva a sustentar que os cidadãos

de uma república, [...], não são mais livres do que os súditos de um soberano

absolutista, [...], uma vez que uns e outros estão submetidos às leis

(BOBBIO; VIROLI, 2002, p. 33).

Os desejos e as paixões, por serem o princípio da guerra, tornam-se alvo de ataque por

parte do Estado, que tem a obrigação de reformulá-los em níveis aceitáveis na tentativa de

enquadrar os indivíduos naquilo que necessitam para estabelecer a vida pacífica e prazerosa.

Institui-se um jogo que pretende estabelecer a paz e, para tanto, aproveitam-se nos homens

aquelas paixões e desejos que possibilitam a harmonia. O homem nasce com tendência à

guerra pela necessidade de preservação das vidas; desconfiando constantemente uns dos

outros porque vivem num estado de guerra potencial e desejam o poder em função de estarem

submetidos a movimentos ininterruptos enquanto vivem. Deixar de lado esta capacidade

ilimitada de poder desfrutar de todas as coisas – liberdade ilimitada – é o que caracteriza a

noção de liberdade negativa apresentada por Bobbio e Viroli, de espécie que a ação livre do

homem não o torna superior a um cão, pois a liberdade hobbesiana é a mesma para todo e

qualquer corpo, seja racional ou não, basta que esteja em movimento.

A definição de liberdade de Hobbes não agrega nada à constituição própria do homem,

ao contrário, ela limita a ação do corpo humano. Se prestarmos atenção ao conceito de

liberdade de Hobbes, notamos que este pode ser considerado utópico, pois para um corpo ser

verdadeiramente livre, seja ele qual for, não poderia encontrar nenhum impedimento externo

para sua ação. Isso jamais seria possível, de modo que sempre há, em qualquer momento ou

contexto, algo que impossibilitasse a ação própria do corpo. O próprio corpo é limitação para

a ação livre do corpo. Não posso, por exemplo, saltar de um abismo – mesmo querendo – e

ainda assim pretender continuar o movimento vital.

[versículo 25] do Livro de Jó bíblico; ali, o “Leviatã” (ou monstro marinho) é descrito em termos de sua força

absoluta e terrificante – “Sobre a terra, não há quem o domine. Intrépido, assim ele foi feito”. Tratava-se do

Estado tal como descrito por Hobbes, dotado de um poder absoluto mesmo sobre servos de Deus como Jó. A

mensagem era reforçada ainda mais por uma surpreendente capa (provavelmente feita pelo artista Wenceslas

Hollar) na qual uma figura gigantesca composta inteiramente por uma massa de figuras menores é retratada

assomando, de espada e bastão episcopal em punho, sobre uma cidade campestre dominada” (TUCK, 2001, p.

46).

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Apesar de tudo isso, o homem hobbesiano não pode ser caracterizado como um corpo

naturalmente mal, posto que não luta por prazer, mas por necessidade de sobrevivência. Na

possível guerra visualizada por Hobbes, não há gozo provocado pelo ato de derrotar o outro,

mas sim por instinto de conservação. A instauração do Estado, fruto da razão e da paixão

humana, não passa de uma superação da guerra universal que leva à morte, uma vez que a

vida do homem, submetida constantemente ao medo da morte, é demasiadamente miserável.

Importante destacar que em relação à representação do poder, Hobbes propõe um

método hipotético para assegurar a paz e não um método histórico para determinar a verdade.

O soberano ou governante representa a figura do árbitro que evita a guerra e não que procura

a verdade. Não sugere a falsidade ou a verdade de juízos, mas tão somente a paz como fim

último almejado por todos os homens.

Mas mesmo que um homem seja capaz de ler perfeitamente um outro através

de suas ações, isso servir-lhe-á apenas com seus conhecimentos, que são

muito poucos. Aquele que vai governar uma nação inteira deve ler, em si

mesmo, não este ou aquele indivíduo em particular, mas o gênero humano. O

que é coisa difícil, mais ainda do que aprender qualquer língua ou qualquer

ciência, mas ainda assim, depois de eu ter exposto claramente e de maneira

ordenada minha própria leitura, o trabalho que a outros caberá será apenas

verificar se não encontram o mesmo em si próprios. Pois esta espécie de

doutrina não admite outra demonstração (LEVIATÃ, 1983, p. 06).

Assim, a guerra é uma espécie de pano de fundo permanente até que algo fixe a

diferença pela força. O fruto da vontade do homem perseguido pelo medo da morte gera a

representação legítima por meio da autorização e da transferência do poder dos representados

ao soberano representante. É diante deste cenário que conseguimos entender a definição de

liberdade dos súditos dada por Hobbes. Normalmente, diz-se que alguém é livre na medida

em que nenhum outro homem ou nenhum outro grupo de homem ou coisa qualquer interfira

nas atividades que esse alguém tem capacidade e vontade de fazer. A liberdade política, nesta

dimensão, é simplesmente a área que um homem pode agir sem sofrer nenhuma espécie de

limitação ou impedimento. Se qualquer homem for impedido de fazer aquilo que pode e tem

vontade de fazer, este homem está deixando de exercer a sua liberdade frente à coação externa

ao seu corpo em movimento.

A liberdade hobbesiana é caracterizada como ausência de impedimento externo de

todo corpo que se encontra dentro do espaço e do tempo. Se a obstrução do movimento, por

um corpo externo a ele, não deve existir para que a liberdade do corpo se concretize, disso se

deriva que o corpo está em movimento contínuo, dado que se a paralisação do movimento

fosse ocasionada pelo próprio corpo, não se poderia conceituar a liberdade como ausência de

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impedimento externo, uma vez que o impedimento do movimento seria um elemento

intrínseco ao próprio corpo. Dessa maneira, quando o espaço livre para o movimento do

objeto é determinado por barreiras externas a ele, a essa realidade é empregada a

denominação de determinado corpo não ter liberdade para suas ações livres e voluntárias. Se

não fossem os impedimentos externos aos movimentos das criaturas, as criaturas se

espalhariam por um espaço maior. Portanto, as criaturas que são barradas de se mover de

acordo com sua vontade e possibilidade não têm a liberdade de se mover de maneira natural.

Para Hobbes, quando a barreira é externa ao movimento do corpo, essa realidade conforma a

ausência de liberdade. Ao passo que quando houver dificuldade de movimento intrínseco ao

corpo, esta realidade não se configura na definição célebre de liberdade: ausência de

impedimento e sim em carência de potência de se mover.

O homem livre é aquele que pode fazer aquilo que tem vontade e possibilidade e que

não é impedido de fazer, seja pela instância que for. Além disso, sempre que as palavras

“livre” e “liberdade” são aplicadas a qualquer coisa que não é um corpo, há um abuso de

linguagem do homem. Consoante a Hobbes, o que não se encontra sujeito ao movimento, não

se encontra sujeito a espécie alguma de impedimento externo. Impedimento é uma realidade

correlata ao movimento. Ora, se não existe movimento, não há como existir impedimento. O

movimento é próprio do corpo e o impedimento é externo a ele. Assim, a expressão livre

arbítrio, usada de forma inadequada, segundo Hobbes, não expressa nada. Não é possível

inferir qualquer liberdade da vontade, do desejo ou da inclinação, mas somente a liberdade do

homem que é o corpo que tem vontade, desejo, inclinação e, inclusive, a liberdade.

Hobbes, ao assumir o estatuto científico da nova ciência, reverte a reflexão em torno

da liberdade. Antes a liberdade era pensada como uma condição ontológica do ser, agora a

liberdade é assumida como movimento mecânico e natural de todo corpo. Além disso, a

liberdade é compatível ao medo, sendo que todos os atos praticados pelos homens no Estado,

por medo da lei, são ações que seus autores têm a liberdade de não praticar. A questão se

torna ainda mais pontual quando o homem, por qualquer força externa a ele, está sendo

obrigado a se ferir ou até mesmo a se matar. Para Hobbes:

Ninguém está obrigado por quaisquer pactos que sejam a não resistir a quem

lhe traz morte, ferimentos ou outros danos físicos. Em todo indivíduo existe

em alto grau o medo que o faz conceber como extremo o mal que lhe é

infligido, e por isso, por compulsão natural, evita-o de todas as maneiras, e

supõe-se que ele não tenha alternativa. Chegando a esse grau de medo, não

lhe resta senão procurar pôr-se a salvo através da fuga ou da resistência.

Como ninguém é obrigado a coisas impossíveis, não estão obrigados a não

resistir os que sofrem ameaça de morte, o maior mal natural, ou de

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ferimentos e outros danos corporais que não têm condições de suportar (DE

CIVE, I, II, p. 64).

A liberdade também é compatível com a necessidade, uma vez que o desejo e a

inclinação derivam da necessidade do homem e a liberdade de fazer. De um lado a boca do

soberano, que sintetiza o poder civil e o poder religioso, justamente para mostrar a soberania,

dando ordens a serem seguidas. De outro o ouvido do súdito, atento às ordens a fim de exercer

a sua liberdade naquilo que o soberano permitiu. Os laços, por sua própria natureza, são

fracos diante da ambição do homem. Contudo, não são possíveis de serem quebrados por

conta do medo que o homem guarda de retornar ao estado natural, que é um estado de guerra

permanente. Para Hobbes é em relação a esses laços que a liberdade dos súditos deve ser

compreendida e analisada, na esteira da estrita relação entre soberano e súdito.

Diante da liberdade do súdito, a liberdade, conforme Hobbes, em sentido genuíno que

é a liberdade corpórea, ou seja, aquela liberdade que o corpo em movimento está livre dos

grilhões, prisões e toda e qualquer espécie de obstáculo externo à sua ação, o filósofo político

de Malmesbury faz duas ressalvas que visam clarificar e aprimorar o conceito de liberdade. A

primeira assevera para a inutilidade do pensar e do clamor humano em relação à liberdade.

“Porque tomando a liberdade em seu sentido próprio, como liberdade corpórea, isto é, como

liberdade das cadeias e prisões, torna-se inteiramente absurdo que os homens clamem, como o

fazem, por uma liberdade de que tão manifestamente desfrutam” (LEVIATÃ, II, XXI, p. 130).

Reflexões acerca da liberdade que ultrapassam as medidas do sensível e do mecânico,

instaurando-se em patamares ontológicos. Definições equivocadas para um teórico que

concebe a liberdade como puramente mecânica e corpórea. Que adianta o homem clamar por

liberdade quando ele claramente já a desfruta, ao não se ver amarrado por espécie alguma de

entrave externo a ele? A segunda ressalva, tão absurda quanto a primeira, aponta para o

homem que exige aquela liberdade que o torne senhor de sua vida. “Por outro lado,

entendendo a liberdade no sentido de isenção das leis, não é menos absurdo que os homens

exijam, como fazem, aquela liberdade mediante a qual todos os outros homens podem tornar-

se senhores de suas vidas” (LEVIATÃ, II, XXI, p. 130). Senhores de suas vidas seriam os

homens autônomos às leis, aos mecanismos que os circundam e a quem tem por objetivo o

domínio das vontades particulares.

Dessa reflexão de Hobbes, se conclui que todo homem deve ter um governante para

sua vida. Não há como deixar o homem viver de maneira desenfreada, guiado apenas por suas

paixões. É imprescindível a existência de um poder comum, capaz de limitar e conduzir o

homem livre. Contudo, basta saber se esse senhor que Hobbes está preconizando para a vida

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dos súditos é uma alusão ao Leviatã, como o controlador de todas as vontades e inclinações

particulares ou qualquer outro, de maneira que o autor do Leviatã abre a possibilidade para

que pensemos acerca da incapacidade humana de se governar corretamente. Parece ser

evidente que sempre precisamos de alguém, de uma lei, ou qualquer coisa externa a nós para

apontar caminhos e assim segui-los. Caso contrário, quase sempre auferimos efeitos maléficos

ou não tão interessantes à preservação de nossas vidas. Isso se evidencia ainda mais quando

Hobbes salienta que: “as leis não têm poder algum para protegê-los, se não houver uma

espada nas mãos de um homem, ou homens, encarregados de pôr as leis em execução”

(LEVIATÃ, II, XXI, p. 131), a fim de que a paz e a vida dos homens sejam garantidas. Três

conclusões são derivadas desta afirmação de Hobbes.

A primeira conclusão remete à realidade de que o homem age por medo, não da lei,

mas da possível punição que a lei possa acarretar à sua vida. A segunda conclusão aponta para

a insignificância da lei pela lei, ou seja, necessariamente deve haver um poder coercitivo que

vise manter a ordem e o cumprimento da mesma. A terceira conclusão assinala para o fato de

que o homem não é civilizado por natureza, ele se faz um corpo social e político por medo e

necessidade. O homem não ama a lei por decreto natural, senão que a obedece por medo da

punição física que possa sofrer. Em outras palavras, por medo do impedimento que a lei possa

dar ao movimento livre e natural do homem.

Parece paradoxal, mas a mesma lei, aquela que enfatiza que para cada ação reprovável

do súdito existe uma punição pontual, que visa manter a liberdade e a garantia da vida do

homem, pode, em certa medida, tirá-la, seja por meio de cadeias artificiais, leis civis ou a

própria morte. Diante disso Hobbes conclui que “a liberdade dos súditos está apenas naquelas

coisas que, ao regular suas ações, o soberano permitiu” (LEVIATÃ, II, XXI, p. 131). O súdito

está agindo livremente quando a sua ação corresponde ao “espaço” previsto pela lei do

soberano. Tal ação não pode ultrapassar os limites prescritos pela lei. É uma liberdade

limitada, porém traz mais vantagens à preservação da vida do que a condição natural.

Podemos pensar nesta liberdade em termos de liberdade política.

Mas tal como os homens, tendo em vista conseguir a paz, e através disso sua

própria conservação, criaram um homem artificial, ao qual chamamos

Estado, assim também criaram cadeias artificiais, chamadas leis civis, as

quais eles mesmos, mediante pactos mútuos, prenderam numa das pontas à

boca daquele homem ou assembléia a quem confiaram o poder soberano, e

na outra ponta a seus próprios ouvidos. Embora esses laços por sua própria

natureza sejam fracos, é no entanto possível mantê-los, devido ao perigo, se

não pela dificuldade de rompê-los (LEVIATÃ, II, XXI, p. 130).

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Assim sendo, a liberdade dos súditos constitui-se em alguns destes seguintes itens:

submissão ao soberano em vista da própria preservação e da paz; não se matar, ferir ou

mutilar, em hipótese alguma, quando o soberano ordenar; não confessar crime que não tenha

cometido; defender seus direitos face ao soberano em questões de posse de terras ou bens

como se fosse contra outros súditos e perante os juízes que o soberano houver designado;

aceitar ser prisioneiro de guerra se sua vida e sua liberdade corpórea lhe forem oferecidas, de

maneira que obedecer ao soberano é obedecer ao povo, dado que o soberano é a soma das

vontades do povo. Convenhamos que esta noção de liberdade seja bem sensata, de maneira

que a vontade do súdito nada mais é do que a abstração das vontades particulares; melhor

dizendo a soma das vontades particulares e seus poderes e direitos transferidos à figura de um

terceiro é a própria essência do soberano. Ora, se o soberano é a vontade do povo, agir contra

a vontade do soberano é agir contra a própria vontade do povo.

Portanto a liberdade dos súditos está apenas naquelas coisas que, ao regular

as suas ações, o soberano permitiu; como a liberdade de comprar e vender,

ou de outro modo realizar contratos mútuos; de cada um escolher sua

residência, sua alimentação, sua profissão, e instruir seus filhos conforme

achar melhor, e coisas semelhantes (LEVIATÃ, II, XXI, p. 130).

De outro lado, notamos que a liberdade do súdito abrange somente o que não se refere

ao pacto e ao que a lei não se pronuncia, “segue-se necessariamente que em todas as espécies

de ações não previstas pelas leis os homens têm a liberdade de fazer o que a razão de cada um

sugerir, como o mais favorável a seu interesse” (LEVIATÃ, II, XXI, p. 130). Podemos dizer

que este é o princípio do direito privado, isto é, tudo que não é proibido é permitido. Esta

concepção de liberdade é o que Hobbes chama de:

“A verdadeira liberdade de um súdito” [...]. Tal liberdade não resulta do

silêncio das leis, mas do fato de que o estado natural continua relevante no

estado civil na medida em que é “evidente”, para Hobbes, “que todo súdito

tem liberdade em todas as coisas cujo direito não pode ser transferido por um

pacto” (HECK, 2002, p. 537).

Não obstante existam as leis civis para limitar a liberdade do homem e assim

conseguir uma vida mais confortável e com maior probabilidade de realização pessoal, ainda

permanece a possibilidade da ação livre do homem acontecer na ausência daquilo que a lei

prevê. Esta é a verdadeira liberdade do súdito. A verdadeira liberdade dos súditos reside “na

ausência de elementos ou determinações essenciais que possam explicar o movimento ou a

liberdade, cada situação presente ou ocorrência fortuita identifica o verdadeiro estado natural

dos homens” (HECK, 2002, P. 545). Se pensarmos na definição clássica de liberdade

apresentada por Hobbes, tanto no capítulo XIV bem como no XXI do Leviatã – liberdade

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como ausência de impedimento externo à ação livre do corpo – notamos que o ato de

movimentar-se somente dentro do espaço preestabelecido pelo soberano é um obstáculo à

própria liberdade e, sobretudo, uma contradição conceitual. Contudo, viver dentro dos limites

do Estado e da lei civil é mais confortável e seguro.

Thomas Hobbes diz que é importante observar, neste ponto, que se um monarca

renunciar à soberania, tanto para si mesmo como para seus herdeiros, os súditos voltam à

absoluta liberdade de natureza. Diante dos pontos já relatados e analisados, chega-se à

conclusão da infinidade de vantagens (em relação às desvantagens) da vida em sociedade.

Renunciar a essa convivência pacífica com os outros corpos seria como renunciar à liberdade

e segurança e voltar a um mundo primitivo em que o nascer de um novo dia constitui-se

sempre em um novo desafio.

3.2 O DEBATE SOBRE A LIBERDADE E O LIVRE-ARBÍTRIO EM HOBBES

Neste item pretendemos mostrar que um dos efeitos do novo significado do termo

liberdade, apresentado por Thomas Hobbes, gera uma problemática filosófica no campo na

linguagem. Uma vez que o autor do Leviatã nos apresenta a liberdade apenas no sentido físico

e aplicada a qualquer objeto existente no mundo, desde que esteja em movimento. O campo

de conversação em torno da suposta propriedade da liberdade – livre-arbítrio – é repudiado e

encaixa-se muito bem como uma reflexão exagerada, sem sentido algum. Hobbes preocupa-se

em discutir e supostamente refutar esta discussão, porque no seu tempo ou, quiçá, antes de sua

alvorada intelectual, a liberdade era aplicada também à vontade do homem – liberdade da

vontade – o que se caracteriza como um absurdo, justamente porque a vontade não é um

corpo e se não é um corpo, também não está em movimento. Esta noção de que a liberdade

não é corpo físico para estar em movimento e, se não está em movimento, também não pode

ser impedida de agir por um corpo externo, é a marca central da época em que Hobbes está

inserido. O autor do Leviatã não apenas presenciou a modificação científica de sua época,

senão que ajudou a moldar o novo panorama.

Nesta dimensão, Hobbes se sente impulsionado a afirmar que a expressão ‘livre-

arbítrio’ é um exagero lingüístico99

, porque se fundamenta na condição da liberdade de ação

que atribuímos a qualquer corpo e não apenas ao que está em movimento. Esta é uma situação

impensável quando se assume um conceito de liberdade decididamente mecânico. Além disso,

afirmar a liberdade da liberdade é a mesma coisa que afirmar a liberdade como uma condição

99

Cf. LEVIATÃ, I, V, p. 29.

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própria dos seres racionais, pois são os únicos que podem pensar e tomar uma decisão

favorável ou não em relação à determinada situação. Poderíamos pensar até em outro ‘eu’ que

habita o meu ‘eu’. Como se existissem dois ‘eu’ em constante conflito e maquinação dentro

do corpo humano. Estes, frente a situações questionáveis do contexto em que estão inseridos,

deliberam acerca da escolha a ser tomada. O livre-arbítrio é o ‘eu’ responsável por deliberar e

indicar ao outro ‘eu’ que pode prosseguir ou retroceder, pois a situação é favorável ou não. O

outro ‘eu’ é o responsável propriamente pela ação do corpo. Consoante o pensador político

inglês, esse é um grande equívoco, de maneira que a ação livre pertenceria somente aos

racionais. Afirma Hobbes: “esta sucessão alternada de apetites, aversões, esperanças e medos

não é maior no homem do que nas outras criaturas vivas, conseqüentemente os animais

também deliberam” (LEVIATÃ, I, VI, p. 37). Continua o autor do Leviatã:

Na deliberação, o último apetite ou aversão imediatamente anterior à ação ou

à omissão desta é o que se chama vontade, o ato (não a faculdade) de querer.

Os animais, dado que são capazes de deliberações, devem necessariamente

ter também vontade. A definição de vontade vulgarmente dada pelas

Escolas, como apetite racional, não é aceitável. Porque se assim fosse não

poderia haver atos voluntários contra a razão. Pois um ato voluntário é

aquele que deriva da vontade, e nenhum outro (LEVIATÃ, I, VI, p. 37).

A interpretação de Hobbes só é possível de aceitação quando acontece a

descaracterização da vontade como apetite racional, assim, existente somente nos seres

pensantes. Para o autor do Leviatã isso é um grande erro, basta analisar os atos voluntários

que atacam a própria razão, como, por exemplo, o suicídio. Se a vontade fosse apetite

racional, ela jamais poderia fazer mal ao racional. Contudo, conforme Hobbes, se pensamos

na vontade não como apetite racional, mas como o último apetite da deliberação, então é

extremamente aceitável a refutação do livre-arbítrio como próprio dos racionais.

Mas se, em vez de dizermos que é um apetite racional, dissermos que é um

apetite resultante de uma deliberação anterior, neste caso a definição será a

mesma coisa que aqui apresentei. Portanto, a vontade é o último apetite na

deliberação. Embora na linguagem comum se diga que um homem teve uma

vontade de fazer uma coisa, que não obstante evitou fazer, isto é

propriamente apenas uma inclinação, que não constitui uma ação voluntária,

pois a ação não depende dela, e sim da última inclinação ou apetite

(LEVIATÃ, I, VI, p. 37-38).

A vontade é o último apetite da deliberação, seja a vontade de obter tal objeto para a

preservação do movimento vital, seja na tentativa de repúdio frente aquilo que não é tão

conveniente. Com este pensamento, Hobbes manifestou que a deliberação é própria de todo

ser vivo e não apenas do racional. Mais do que isso, os seres vivos são providos de vontades,

paixões e outras faculdades do gênero. “Fica assim manifesto que as ações voluntárias não são

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apenas as ações que têm origem na cobiça, na ambição, na concupiscência e outros apetites

em relação à coisa proposta, mas também aqueles que têm origem na aversão, ou no medo das

conseqüências decorrentes da omissão da ação” (LEVIATÃ, I, VI, p. 38).

Assim sendo, o homem ou qualquer ser vivo é livre quando não encontra obstáculo

externo para sua ação. Esta ação está fundamentada no fazer o que quiser e o que puder para

que o movimento vital permaneça. Por outro lado, tal interpretação de Hobbes sobre a

liberdade se apresenta para nós como um conceito negativo. Negativo porque a liberdade não

acrescenta nada ao homem. Ela não é uma propriedade dele, mas apenas ausência de

obstáculo externo à ação que o homem tem vontade e poder de realizar que, por sua vez, foi

desencadeada por qualquer objeto externo ao homem que é livre. A liberdade hobbesiana é

totalmente corpórea e física. Está intimamente entrelaçada com a ação própria do corpo. Não

há possibilidade de pensar na liberdade e nem do corpo agir em liberdade se não existe o

movimento a ser impedido. A liberdade só se aplica ao corpo em movimento e nada que

ultrapasse esta barreira interpretativa.

Pensando paradoxalmente, os mesmos objetos que despertam e impulsionam a ação do

homem – objetos externos, sejam eles quais forem – também o impedem de agir da maneira

que gostariam. Salientamos que impedem de agir da maneira que o homem gostaria, mas que

não o impede de agir necessariamente, pois as coisas externas fazem com que os homens se

posicionem e raciocinem sobre uma suposta resposta ao evento externo, entretanto, elas não

determinam o querer dos homens em relação às coisas externas que os incitam à ação e, de

maneira alguma, a liberdade dos homens para realizarem a ação raciocinada. Em termos

simples, a única coisa que impede o homem verdadeiramente de ser livre e, ao mesmo tempo,

a única coisa que lhe tolhe definitivamente a liberdade é a morte. Enquanto esta não chegar,

inúmeros obstáculos externos à ação do homem surgirão, contudo, nenhuma será

definitivamente pontual a tal ponto de impedir o homem de toda e qualquer ação, seja ela

mínima ou significava. Buscando ilustrar o argumento exposto, pensemos em um homem

acorrentado pelas mãos e pelos pés. Tudo isso para se paralisar a sua ação que é julgada como

violenta e nociva às pessoas de bem. E, pensemos, ainda, que o motivo pelo qual este homem

foi impedido de agir é verdadeiro. Constatada a procedência de sua periculosidade, as

correntes que o impedem naquele instante de cometer qualquer ação hedionda, não impediram

o querer deste homem. Prova disso que a qualquer momento que seus entraves externos

vacilarem, ele executará a sua ação física desejada, isso porque a liberdade do corpo humano

não pode ser acorrentada em definitivo, a não ser pela via da morte; fim do movimento vital.

Tal homem está limitado no que confere à sua ação física: não pode mexer seus pés e suas

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mãos como desejados, porém, seus olhos, seu raciocínio, seus órgãos internos e muitas outras

partes de seu corpo continuam a se movimentar, sem nenhuma espécie de obstáculo externo e,

como se não bastasse, estariam sendo incentivados ao ódio e à vingança pelas atitudes

externas dos homens que o aprisionaram.

É frente esta esfera literária que entendemos a liberdade de Hobbes como negativa, de

maneira que ela não é a presença de algo para a ação do homem, ao contrário, a liberdade que

o filósofo político inglês emprega aos corpos em movimento é compreendida como a ausência

de obstáculos externos ao corpo humano, a fim de que sua ação aconteça e a liberdade deste

corpo ocorra. Para entender melhor a negatividade empregada ao conceito de liberdade de

Hobbes, leiamos o que Yara Frateschi escreveu sobre o tema:

A definição de liberdade é negativa: ser livre é não encontrar obstáculos para

mover-se. A liberdade não denota uma qualidade ou uma característica

intrínseca aos corpos, mas sim relacional; por isso, não indica a

determinação da vontade pela razão (como quer a tradição), podendo ser

aplicada em igual medida aos corpos racionais e aos irracionais. A liberdade

não é presença de algo, mas a ausência de impedimentos externos. Quando a

aplicamos ao homem, dizemos que um homem é livre se não é impedido de

fazer o que tem vontade de fazer (2008, p. 95-96).

Continua a autora do livro “A física da política”:

Em outras palavras, é livre o homem que não encontra obstáculos externos

para se mover na direção dos objetos por ele almejados ou para se afastar

dos que lhe causam medo ou aversão. Os movimentos que obstam a

liberdade de movimento de um corpo são sempre externos, quando são

internos e fazem parte da constituição do próprio corpo, não dizemos que

este não tem liberdade, mas que não tem poder para se mover. A expressão

‘livre-arbítrio’ carece de sentido, porque a vontade não é um corpo e não

está sujeita a movimento. E, se não está sujeita a movimento, não está sujeita

a impedimento (FRATESCHI, 2008, p. 95-96).

Nesta maneira de Hobbes entender a liberdade, a interpretação acerca do livre-arbítrio

não é válida, porque necessita de significação. Pensar no livre-arbítrio é atrelar a vontade à

razão, ou seja, algo possível somente ao homem por conta da sua racionalidade. Isso

aconteceria porque o homem sentiria vontade de fazer ou não fazer determinada coisa,

enquanto que a sua racionalidade deliberaria por fazer ou omitir tal ação. Como mostramos

acima, a deliberação e a vontade não pertencem apenas ao homem, mas a todo corpo que está

em movimento. Portanto, “sempre que as palavras livre e liberdade são aplicadas a qualquer

coisa que não é um corpo, há um abuso de linguagem; porque o que não se encontra sujeito ao

movimento não se encontra sujeito a impedimentos” (LEVIATÃ, II, XXI, p. 129). Quiçá, o

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maior equívoco dos pensadores que disseminam esta forma de entender a liberdade esteja na

determinação da vontade à racionalidade. Continua o autor do Leviatã:

Portanto, quando se diz, por exemplo, que o caminho está livre, não se está

indicando qualquer liberdade do caminho, e sim daqueles que por ele

caminham sem parar. E quando dizemos que uma doação é livre, não se está

indicando qualquer liberdade da doação, e sim do doador, que não é

obrigado a fazê-la por qualquer lei ou pacto. Assim, quando falamos

livremente, não se trata da liberdade da voz, ou da pronúncia, e sim do

homem ao qual nenhuma lei obrigou a falar de maneira diferente da que

usou. Por último, do uso da expressão livre-arbítrio não é possível inferir

qualquer liberdade da vontade, do desejo ou da inclinação, mas apenas a

liberdade do homem; a qual consiste no fato de ele não deparar com entraves

ao fazer aquilo que tem vontade, desejo ou inclinação de fazer (LEVIATÃ,

II, XXI, p. 129).

A leitura feita por Hobbes em torno da questão do livre-arbítrio, não passa de um

artifício lingüístico utilizado pelos homens de má fé em busca de uma possível isenção de

Deus na culpa do pecado original. Nesta dimensão, o problema da liberdade e do livre-arbítrio

ganha consistência para o bispo de Bramhall100

, já que o livre-arbítrio é a causa do pecado

humano e a ‘porta de saída’ para Deus quando a discussão está voltada em encontrar e

denominar o autor e responsável pela incidência do pecado original na humanidade.

Entretanto, para Hobbes, esta discussão não passa de uma questão, em si, sem sentido, pois o

livre-arbítrio é apenas um equívoco lingüístico, de forma que “Hobbes reduz o livre-arbítrio a

uma conjunção de palavras sem sentido” (FRATESCHI, 2008, p. 97). Talvez, então, a suposta

importância e a atenção dedicadas por Hobbes a esta laboriosa questão esteja no âmbito do

auxílio aos menos favorecidos do aspecto da reflexão filosófica. Portanto, enquanto Bramhall

está preocupado com a punição dos pecadores e a ‘isenção’ de Deus, Hobbes está

vislumbrando e discutindo o problema da responsabilização moral101

.

Para Bramhall, que identifica o livre-arbítrio como a causa do pecado, Deus

pune com justiça os pecadores porque eles escolheram livremente

desobedecer a sua vontade, fonte absoluta da justiça. Hobbes, por sua vez,

recusa o livre-arbítrio e se vê, então, obrigado a provar que é justa a punição

do pecador, mesmo que ele não seja livre para escolher a sua vontade, isto é,

para escolher entre pecar e não pecar (FRATESCHI, 2007, p. 109).

Para continuarmos a reflexão acerca da liberdade e do livre-arbítrio, a partir deste

momento pretendemos apontar alguns indícios do argumento dos personagens envolvidos: de

100

Conforme Yara Frateschi “A polêmica entre Hobbes a Bramhall acerca do livre-arbítrio e da liberdade

humana começou em 1645 e se estendeu até 1658, com a publicação de um texto de Bramhall que não recebeu

resposta de Hobbes (Castigations of Mr Hobbes). Este artigo se baseia em quatro textos: Discourse of liberty and

necessity e A defence of true liberty de Bramhall; Of liberty and necessity e Questions concerning liberty,

necessity and chance, de Hobbes” (2007, p. 109). 101

Cf. FRATESCHI, 2007, p. 109.

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um lado Thomas Hobbes recusando o livre-arbítrio e mesmo assim mostrando que o pecador

é culpado por seus atos, pois estes são efeitos de um processo que envolve o estímulo externo,

a deliberação e o ato livre em si e, do outro lado, o bispo Bramhall afirmando que o livre-

arbítrio é a causa da ação pecaminosa do homem, pretendendo, assim, salvaguardar Deus e

fazer do homem pecador um errante porque não soube administrar devidamente sua liberdade.

Para Hobbes a desobediência da ordem divina é chave de entendimento para punição

de todo aquele que não cumprir a lei civil. “Hobbes pode conciliar o que para o bispo é

irreconciliável, a saber, a negação da liberdade da vontade com a responsabilidade e a justa

punição do pecador e do súdito desobediente” (FRATESCHI, 2007, p. 110). O homem não

tem a liberdade da vontade, o homem é livre. É diferente dizer que o homem tem a liberdade

de dizer que o homem é livre. Se afirmarmos que o homem tem a liberdade, estamos

defendendo a noção de que a liberdade é uma dimensão própria na constituição do homem,

que ela é metafísica e, com isso, estamos ‘entificando’ a liberdade. A liberdade é um ser como

qualquer outro. Aqui, então, o livre-arbítrio tem sentido, pois ele é o responsável pela

administração desta liberdade ‘entificada’. Aplicando esta estrutura ao pensamento de

Hobbes, a fim de que o livre-arbítrio seja refutado, percebemos a sua coerência filosófica.

Quando o homem peca, sem recorrer ao mau uso da sua liberdade – livre arbítrio

(justamente porque para Hobbes isso se configura como um exagero lingüístico) – ele está

agindo conscientemente. Ele está agindo em sintonia com uma predisposição externa e

seguida de um processo de deliberação. A ação livre, seja ela pecaminosa ou não, é apenas

resposta a um estímulo que vem de fora. Da mesma maneira, o homem que vive dentro de um

Estado, sob a jurisdição de um soberano, quando agindo contrário a lei, está tocando na

questão da responsabilização moral. Este homem está rompendo com um pacto e, do ponto de

vista da moral já preestabelecido, tornando-se um irresponsável e, por isso ele pode e deve ser

punido com a devida consequência jurídica. Por esta razão, o ato do homem que não cumpre a

lei divina pode ser considerado pecado assim como ato do homem que não cumpre a lei civil

pode ser considerado imoral.

Para compreendermos a argumentação do autor do Leviatã, temos que ter em mente

que “a negação do livre-arbítrio por Hobbes está em harmonia com a sua concepção mecânica

de natureza e com seu determinismo” (FRATESCHI, 2007, p. 110), por conta da nova

interpretação de liberdade proposta por Hobbes. Esta novidade não dá margem para pensar e

muito menos para validar o livre-arbítrio, como queria o bispo Bramhall, porque somente um

corpo em movimento pode ser impedido de ação, coisa que a vontade do homem não se

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ostenta de possuir. Tendo em vista que a polêmica entre a liberdade e o livre-arbítrio só pode

ser compreendida diante da concepção mecânica, Hobbes salienta que:

A questão, portanto, não está em se um homem é um livre agente, ou seja, se

pode escrever ou abster-se, falar ou calar, segundo sua vontade, senão se a

vontade de escrever ou a vontade de abster-se depende da sua vontade ou de

alguma outra coisa que esteja em seu poder. Eu reconheço aquela liberdade

pela que eu possa fazer algo se quero, mas dizer: “eu posso querer se quero”

me parece uma expressão absurda (LIBERTAD Y NECESIDAD, 1991, p.

133).

Hobbes ridiculariza a noção de que o desejo esteja atrelado à deliberação. O querer do

querer é uma inconsistência lingüística e real. Não existe tal declinação para esta afirmação e,

muito menos, uma realidade compatível com isso. O desejo é no homem a última faculdade

da deliberação e nada diferente disso se pode auferir. A vontade e a deliberação não são

corpos e assim não podem escolher em seguir este ou aquele caminho a ser tomado. Somente

os corpos em movimento estão propensos a trocar o rumo de suas coordenadas, mudarem de

lugar ou paralisar o movimento. Apenas eles, por conta disso, são suscetíveis de

impedimentos externos, podem sugerir a interpretação hobbesiana de liberdade.

Falar em livre-arbítrio (liberdade da vontade) neste contexto, não passa de um

equívoco lingüístico, isso porque se está remetendo liberdade a algo – vontade – que não é um

corpo e, se não é um corpo, não tem como estar em movimento para supostamente ser barrado

ou continuar livre. “A palavra ‘liberdade’ pode ser aplicada apenas aos corpos, pois só os

corpos estão sujeitos à mudança de lugar, e pode ser aplicada em igual medida a todos os

corpos, sejam inanimados, animados, irracionais ou irracionais” (FRATESCHI, 2008, p. 95).

O homem livre de Hobbes apenas reage às ações extrínsecas a ele. Em momento algum este

homem delibera e age sem a presença de alguma ação externa que o pressione ou não para a

ação. A existência de um corpo extrínseco ao homem é determinante para sua ação. Assim,

quem é livre para agir em resposta favorável ao objeto ou em repúdio a tal objeto é o homem,

e nunca a vontade do homem. Em certo sentido, o homem de Hobbes é ‘determinado’, pois só

reage aos comandos dos objetos externos a ele.

Estas foram algumas linhas gerais da argumentação de Thomas Hobbes no que

confere ao livre-arbítrio, efeito do conceito de liberdade estritamente corpóreo e material. De

outro lado, notamos a incisiva aversão do bispo Bramhall no que compete a este argumento de

Hobbes, de maneira que para o bispo, o grande erro de Hobbes:

É tornar vã a razão, fazendo-a coincidir com um mero apetite ou imaginação

e, em conseqüência, não conceber a distinção entre ato livre e ato voluntário,

isto é, entre o ato que procede da livre escolha da vontade racional após a

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deliberação e aquele que decorre do apetite e é comum aos homens e aos

animais (FRATESCHI, 2007, p. 114).

Além desta forte crítica do bispo a Hobbes, com a intenção de definitivamente acabar

com a argumentação do autor do Leviatã, lemos:

Para Bramhall, o determinismo de Hobbes é “moralmente danoso” porque

retira dos homens a responsabilidade pelas suas ações. Para desbancar esse

homem que simplesmente reage à ação dos objetos externos, como “uma

bola de tênis reage à ação das raquetes”, Bramhall deverá recuperar o papel

da razão na determinação da vontade e mostrar que a liberdade não coexiste

com necessidade ou determinação extrínseca (FRATESCHI, 2007, p.112).

O centro da argumentação do bispo de Bramhall está na desconstrução do argumento

hobbesiano. Assim, para o bispo os homens não agem em resposta aos objetos externos a eles.

A vontade dos homens não pode ser naturalmente determinada pela presença das coisas de

fora, o único elemento externo que teria tal condição é Deus, mas Deus não poderia

determinar a ação do homem em hipótese alguma, caso contrário, o homem não seria livre e

sim determinado, o que seria um exagero afirmar quando se trata da suposta benevolência de

um ser tão soberano como Deus. Deste modo, “para Bramhall, que identifica o livre-arbítrio

como a causa do pecado, Deus pune com justiça os pecadores porque eles escolheram

livremente desobedecer a sua vontade, fonte absoluta da justiça” (FRATESCHI, 2007, p.

109). Além disso, Bramhall pretende dar continuidade à função que a razão tinha na

argumentação escolástica102

quando a questão em discussão é a ação livre do homem.

Para os escolásticos, a razão exercia um posto primordial ao se sobressair,

naturalmente, à vontade do homem. A última palavra para a ação livre de um corpo humano

ocorrer ou não seguia a diretriz da razão. A razão, imbuída ou atenta ao ensinamento divino,

orientava o homem à prática do bem – a vontade de Deus – quando isso não acontecia – eis a

argumentação do bispo – era porque o homem não deixava com que a razão o guiasse pelo

caminho ‘preestabelecido’ por Deus. Quando isso não ocorria era porque o homem não se

abria à graça de Deus (evidentemente que isso só procede quando a busca do homem tende

para o bem ou para aquilo que supostamente Deus quer). Quebrar este ensinamento, que tem

por objetivo a orientação e a exortação do homem, é prejudicar-se e cair na esfera do pecado.

102

A escolástica, por via de seu maior representante, Santo Tomás de Aquino, tem suas bases profundamente

fixadas no pensamento de Aristóteles. Urge, então, esta nota explicativa em torno da concepção de homem livre

para o estagirita. “O ser do homem é uma substância composta: corpo material e alma espiritual. Como o corpo é

sujeito às paixões, a alma deve desenvolver hábitos bons, uma vez que a virtude é sempre uma força adquirida,

um hábito, que não brota espontaneamente da natureza. Aristóteles valoriza, então, mais do que seu mestre, a

vontade humana, a deliberação e o esforço em busca de bons hábitos. O homem precisa converter suas melhores

disposições em hábitos, de acordo com a razão: virtudes intelectuais. Mas esta auto-educação supõe um esforço

voluntário, de modo que a virtude provém mesmo da liberdade, que delibera e elege inteligentemente. Virtude é

uma espécie de segunda natureza, adquirida pela razão livre” (VALLS, 2005, p. 33).

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Portanto, não seguir a razão – local onde Deus supostamente habitaria – é deixar de cumprir a

sua vontade e viver como um errante.

Thomas Hobbes compreende bem a argumentação dos escolásticos e é por esta razão

que percebe inconsistência nela. O autor do Leviatã não refuta a importância da razão para o

homem, ele apenas dá outra conotação literária em busca de argumentação mais responsável

da parte dos homens quando inseridos em um Estado. Por conta disso:

Hobbes sempre se empenhou em acentuar que essa distinção não implicava

que quem pensa racionalmente esteja “livre”, em algum sentido metafísico,

para ordenar seus pensamentos como lhe aprouver. Suas idéias acerca do

livre-arbítrio e do determinismo figuram entre as mais enigmáticas e

polêmicas de suas concepções aos olhos de seus contemporâneos

(testemunham-no seu prolongado debate com o bispo Bramhall), tendo

continuado a provocar consideráveis disputas (TUCK, 2001, p. 65).

Conforme Hobbes, o homem não tem dentro de si um ‘eu’ responsável pelo ato de

ponderar e deliberar sobre a ação livre a ser tomada (livre-arbítrio). O homem age livremente

porque pode e esse é seu direito. A própria ação é a liberdade (movimento). Muitas das ações

que determinados corpos desempenham, uma vez que todo e qualquer corpo é livre,

dispensam o raciocínio. Basta pensar na inexistência do ato de pensar para as águas que

correm livremente das montanhas, na pedra que é lançada, no pássaro que voa de galho em

galho. Que racionalidade existe em tais exemplos? Dessa maneira:

É claro que seu compromisso com as proposições de que não existe um “eu”

independente da atividade de pensar, e de que coisa alguma se move a si

mesma, descartava de imediato toda noção ortodoxa de livre-arbítrio: não há

coisa alguma capaz de ser livre e alterar as percepções e ações de um agente

à maneira ortodoxa. “Liberdade” ainda era para Hobbes palavra dotada de

sentido, mas significava tão-somente a condição de não ter nenhum

empecilho ao acesso àquilo que se deseja; a vontade propriamente dita, ou o

ato de querer, não poderia ser livre (TUCK, 2001, p. 65-66).

Continua Richard Tuck acerca da ideia do “eu livre” que Hobbes está desconstruindo:

A idéia do “eu livre” era tão imaginária quanto a do “eu”: “uma bola de

madeira que é atirada por um garoto, às vezes gira e outras vezes bate nas

pernas dos homens, pensaria, caso fosse sensível a seu próprio movimento,

que este procede de sua própria vontade, a não ser que sentisse aquilo que a

pôs em movimento [...]. Esse argumento metafísico conferia mais vigor ao

ataque à noção humanista tradicional de liberdade cívica, que, [...], Hobbes

empreendeu em suas obras políticas – porque, se se puder ser

verdadeiramente livre, não há sentido em proclamar que só se pode estar em

liberdade sob certo regime constitucional (2001, p. 65-66).

Visando responder as críticas de Brahmall, Hobbes fez uma distinção entre a vontade e

a razão; coisa que o bispo havia unido. “A vontade não é produto da razão e a prova disso é

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que ela muda na medida em que mudam as coisas” (FRATESCHI, 2007, p. 114). A vontade é

uma inclinação que todo ser vivo tem para determinada coisa. O último apetite anterior a ação

propriamente dita do corpo. Não é uma característica peculiar do homem, mas sim de todo ser

vivo. A razão é uma faculdade calculadora, responsável por perceber o que é melhor para o

homem a fim de que a sua vida seja mantida, pois, após o estímulo dos corpos externos ao

homem, ele tende a calcular – fazer uso da razão – e assumir uma posição de posse ou de

aversão em relação ao objeto que iniciou tal movimento. Ao contrário disso, para o bispo de

Bramhall a razão é a última instância da ação do homem. A vontade, os apetites e tudo o que

tende a direcionar a ação do homem, tem que, necessariamente, passar pelo crivo da razão103

,

pois é ali, na consciência do homem, que Deus faz a sua morada e ajuda o homem a discernir

entre o certo e o errado.

Evidentemente que esta argumentação de Bramhall para Hobbes não tem fundamento

algum104

, de maneira que a razão é apenas mais uma faculdade que o homem possui para

auxiliá-lo na busca da sua preservação105

e não qualquer faculdade e ligação do homem com o

Divino. É neste campo do absurdo lingüístico que o autor do Leviatã faz a seguinte

comparação, muito aquém dos princípios da lógica. Contudo, é um artifício lingüístico

necessário para explicar o quanto o homem que assume a expressão ‘livre-arbítrio’ se

equivoca ao fazer uso e transmitir tal ensinamento.

E portanto se alguém me falasse de um quadrângulo redondo, ou dos

acidentes do pão no queijo, ou de substâncias imateriais, ou de um sujeito

livre, livre arbítrio, ou qualquer coisa livre, mas livre de ser impedida por

oposição, não diria que estava em erro, mas que as suas palavras eram

destituídas de sentido, ou seja, absurdas (LEVIATÃ, I, V, p. 29).

Como podemos notar nesta afirmação de Hobbes, o conceito de liberdade, como

ausência de impedimento externo, requer, precisamente, a ação do corpo, de forma que o

impedimento está para a ação do corpo e não para a vontade do corpo. O conceito de

liberdade, com base materialista, só tem sentido em ser pensado se junto com ele

remontarmos a todo o legado implícito nele, ou seja, a noção de que a liberdade não é um

atributo do corpo, mas sim o próprio movimento dele quando na ausência de obstrução

externa. Deste modo, “para Hobbes, a liberdade se refere à ação e não à vontade: um homem

103

“Mas essa idéia de que a razão é faculdade superior que deve determinar a escolha não faz nenhum sentido

para Hobbes, pois não há, para ele, nenhuma hierarquia natural ou moral entre as faculdades. No que diz respeito

à ação humana, a razão é apenas uma faculdade que calcula meios para fins postos pelo desejo e não uma

faculdade que põe fins morais” (FRATESCHI, 2007, p. 115). 104

“A negação do livre-arbítrio feita por Hobbes significa a negação da possibilidade de que a razão ponha fins

para os homens e se imponha sobre os desejos e sobre a vontade” (FRATESCHI, 2008, p. 101). 105

Cf. LEVIATÃ, I, V, p. 27.

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pode ter liberdade para fazer o que quer, mas não está ao alcance do seu poder ou da sua

vontade escolher o que quer ou escolher a sua escolha” (FRATESCHI, 2008, p. 102). A

vontade do homem tem uma relação de causalidade com os objetos externos, isto é, ela só

pode ser despertada quando os objetos fora dela imprimirem um arrolamento de repulsão ou

de posse. Posterior a isso é que a razão tem a sua função, quando julgando – cálculo – o

benefício ou o malefício que este corpo externo pode trazer, instiga o homem a se aproximar e

possuir tal objeto ou a se distanciar por conta da sua periculosidade para a manutenção do

movimento vital.

Nesta nova acepção apontada por Hobbes em torno do conceito de liberdade, para

além da função da razão no corpo humano, notamos uma liberdade negativa no sentido de não

denotar um atributo ao corpo, mas apenas uma condição relacional com o outro corpo externo

aquele. Ser livre é igual a não encontrar obstáculo algum para se mover, portanto, a liberdade

como negatividade consiste na ausência, na nulidade, na inexistência de qualquer corpo fora

do corpo que está em movimento a fim de que o seu movimento não seja interrompido. Além

disso, podemos dizer que ela é negativa porque não agrega nenhuma característica ou

qualidade ao corpo, mas apenas necessita da ausência de outros corpos para acontecer. É neste

sentido que concluímos que a vontade não está determinada pela razão, de maneira que esta

concepção de liberdade pode ser aplicada a todo e qualquer corpo, seja racional ou não.

Muito aquém de finalizar a discussão do livre-arbítrio, apenas refletindo algumas

questões, finalizamos este ponto enfatizando que para o bispo Bramhall as leis que viriam do

soberano seriam injustas se houvesse a necessidade dos homens praticarem tal ação. Seria

como se o homem não tivesse oportunidade de escolha. Para Hobbes, ao contrário, a ação

certa ou errada, punitiva ou não, não caberia à sua capacidade de fazer ou omitir, mas somente

ao fazer e isso é o significado de ser livre, agir independentemente do impedimento externo.

Para o bispo isso seria um absurdo; uma forma de julgamento e condenação desmerecidos.

Conforme Frateschi, Hobbes responde essa questão da seguinte maneira:

Como um positivista jurídico de estrita observância: a lei é justa porque é lei,

ou seja, porque deriva do poder absoluto do soberano civil. A paz requer a

soberania absoluta e é em nome dela que os homens fazem o pacto. Portanto,

não cabe aos súditos julgar a justiça da lei ou do governante, assim como não

cabe aos homens julgar a justiça das ações divinas: a justiça do deus mortal,

analogamente à justiça do Deus imortal, deriva do seu poder (2007, p. 120).

Hobbes afirma que não cabe ao homem discutir com Deus e nem com as ordens do

Estado. A função do súdito é seguir a lei, pois as leis são feitas para serem seguidas e

obedecidas e não burladas. A função das leis é a permanência da ordem estatal pacífica e a

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preservação da vida. Enquanto que para o bispo Bramhall, se não houver liberdade da vontade

para o homem escolher, a punição se torna torpe e imerecida. Para Hobbes é o fato de o

homem ser determinado por corpos externos que torna a punição legítima, de forma que “o

que norteia toda ação e toda escolha é o princípio do benefício próprio, de modo que, quando

um homem delibera não faz mais do que “considerar se é melhor para ele fazer ou não fazer”

(FRATESCHI, 2007, p. 121). Eis que a liberdade em Thomas Hobbes é também educativa e

formadora da vontade dos homens106

.

A liberdade tende a educar justamente porque os homens agem sempre em benefício

próprio. Os homens sempre estarão buscando a sua proteção e projeção. Dessa maneira, no

Estado não se pode agir da maneira que se bem entende, o súdito é livre para agir somente nos

limites propostos pelo soberano – lei civil107

. Assim que a punição para aquele súdito que

romper com os limites propostos pelo pacto – lei – tende a mostrar para o súdito infrator que a

obediência à lei existe para o próprio benefício e não ao contrário. Como já afirmamos, as leis

servem para serem cumpridas e não burladas. O cumprimento das leis traz o progresso à

humanidade108

, ao contrário, a quebra delas conduz os homens diretamente para o estado

natural. Portanto, para Hobbes está decretado o fim do livre-arbítrio na ação livre do corpo

vivo, mostrando assim que o homem pode ser livre e responsável concomitantemente e, caso

sua ação transgrida o pactuado, ele poderá ser punido de maneira legítima – tanto pelo Estado

como por Deus.

3.3 A PROBLEMÁTICA DA LIBERDADE E DA NECESSIDADE HOBBESIANA

Com este ponto queremos mostrar que a liberdade é compatível com a necessidade109

,

no mesmo sentido em que o homem é absolutamente livre para agir em estado natural, a fim

106

“A punição é eficaz porque é exemplar e capaz de formar a vontade. Deste modo, é justo punir aquele que foi

contra a lei, não porque ele poderia ter feito de outro modo, mas porque o direito de punir deriva exclusivamente

do poder político do soberano civil; e a punição é eficaz porque ela tem em vista a correção e formação da

vontade a fim de evitar a transgressão futura” (FRATESCHI, 2007, p. 122). 107

“O soberano pode, portanto, punir um súdito que desobedeceu a lei, mesmo que ele não tenha sido capaz de

evitar o ato desobediente. É o caso, por exemplo, de alguém que, por medo da punição eterna – tão alardeada

pelos padres – acabou desobedecendo a uma ordem do governante. Nesse caso, o medo de arder no fogo do

inferno sobrepujou o medo da punição civil e determinou a sua vontade e, conseqüentemente, a ação. Tome-se

outro exemplo, o de Medéia. Embora ela tivesse muitas razões para não matar os seus filhos, vingar-se do seu

marido sobrepujou a todas. O desejo de vingança foi o último ditado do seu julgamento, e a ação criminosa

seguiu-se necessariamente. O fato de a ação ter sido necessitada pelo medo da danação eterna ou pelo desejo de

vingança, não impede que o desobediente ou a criminosa sejam responsabilizados e punidos, pois a

responsabilização seguida de punição visa evitar crimes” (FRATESCHI, 2007, p. 121). 108

Para Yara Frateschi, esta é “a solução de Hobbes para o problema de compatibilizar o determinismo e a

eficácia da punição: a punição passa a constituir a causa da vontade, da qual segue a ação obediente. Daí ele

dizer que fazer a lei é fazer a causa da justiça e necessitar a justiça” (2007, p. 121). 109

Cf. LEVIATÃ, II, XXI, p. 130.

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de que o seu movimento vital seja preservado, também ele necessita limitar a sua liberdade

pactuando com os outros homens em favor da instituição de um mecanismo capaz de

governá-los pelas leis – o Estado. Esta discussão que se desencadeia110

entre Hobbes e John

Bramhall111

é um seguimento lógico da discussão já apresentada por nós em torno da

liberdade e do livre-arbítrio. Quando Bramhall salienta que a vontade é subordinada da

deliberação, e por isso a razão é a faculdade mais importante do homem, Hobbes enfatiza o

oposto, deixando claro que a vontade não é escrava da razão, mas que é o último apetite da

deliberação. Para não deixar dúvida, Hobbes as define da seguinte maneira:

A deliberação é a consideração das boas e más conseqüências de uma ação

futura, que por espontaneidade ou se entende a ação precipitada ou não se

entende nada; que a vontade é o último ato de nossa deliberação; que um

livre agente é aquele que pode fazer se quiser e abster-se se quiser, e que a

liberdade é a ausência de impedimento externo (LIBERTAD Y

NECESIDAD, 1991, p. 168)112

.

A vontade é a última instância propriamente antes da ação do corpo, seja em função do

apetite ou da aversão. Ou seja, “a deliberação não é senão a alternância de desejos e paixões,

assim como de pensamentos – eis o que é a deliberação; e ela encontra um fim quando, nessa

sucessão alternada, o último apetite ou a última aversão predomina e se faz a causa imediata

da ação – eis o que é a vontade” (MALHERBE, 2002, 53-54). A deliberação, ainda, conforme

Hobbes, é a antecipação de determinada ação futura, seja ela boa ou ruim.

A problemática sobre a liberdade e a necessidade em Hobbes é produto da linguagem

humana113

, excluindo assim qualquer via interpretativa que remeta à dimensão metafísica.

Hobbes caracteriza-se por sistematizar a liberdade e a necessidade humanas nos meandros da

mensurabilidade, da linguagem genuinamente física. Esta desconfiança se torna verdadeira

quando recordamos a célebre definição hobbesiana acerca da liberdade, enraizada no capítulo

XXI do “Leviatã”, a saber, “um homem livre é aquele que, naquelas coisas que graças a sua

força e engenho é capaz de fazer, não é impedido de fazer o que tem vontade de fazer”

(LEVIATÃ, II, XXI, p. 129). Todo homem é provido do mesmo direito: fazer tudo o que for

110

“Los Cavendish, llevados por su inquietud intelectual, organizaron en 1646 una discusión en la que el filósofo

mecanicista y el teólogo armeniano defendieron sus pontos de vista sobre a libertad y la necesidad” (Libertad y

necesidad y otros escritos, 1991, p. 23). 111

John Bramhall “pertencía a la secta fundada por Jacobus Arminius en Holanda, la cual defendía una doctrina

relativa a la libertad y la gracia muy cercana a la que sostenía el pensamiento católico-tomista y alejada, por

tanto, de la doctrina sobre la irreversibilidad de la gracia sostenida por Lutero y Calvino” Libertad y necesidad

y otros escritos, 1991, p. 21). 112

“La deliberación es la consideración de las buenas y malas consecuencias de una acción futura, que por

espontaneidad o se entiende la acción precipitada o no se entiende nada; que la voluntad es el último acto de

nuestra deliberación; que un libre agente es aquel que puede obrar si quiere y abstenerse si quiere, y que la

libertad es ausencia de impedimentos externos”. 113

Cf. MALHERBE, 2002, p. 45.

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necessário e possível para se manter em movimento, de sorte que todo homem foi criado para

o movimento. Assim como o homem é livre, ele também necessita fazer uso dessa liberdade

para se preservar. A liberdade do homem é igual a sua necessidade de se manter vivo. O

homem é livre na medida em que abdica de tal liberdade ilimitada, por necessidade, para se

preservar e continuar vivo com uma liberdade limitada pelas leis civis; de forma que:

A liberdade e a necessidade são compatíveis: tal como as águas não tinham

apenas a liberdade, mas também a necessidade de descer pelo canal, assim

também as ações que os homens voluntariamente praticam, dado que

derivam de sua vontade, derivam da liberdade; ao mesmo tempo que, dado

que os atos da vontade de todo homem, assim como todo desejo e inclinação,

derivam de alguma causa, e essa de uma outra causa, numa cadeia contínua

(cujo primeiro elo está na mão de Deus, a primeira de todas as causas), elas

derivam também da necessidade. [...]. Portanto Deus, que vê e dispõe todas

as coisas, vê também que a liberdade que o homem tem de fazer o que quer é

acompanhada pela necessidade de fazer aquilo que Deus quer, e nem mais

nem menos do que isso (LEVIATÃ, II, XXI, p. 130).

Hobbes defende que a controvérsia entre a liberdade e a necessidade é estritamente

verbal, bastando, apenas, a análise esmiuçada do termo liberdade e necessidade para se

constatar que “a ação humana pode ser livre, mesmo sendo necessária” (MALHERBE, 2002,

p. 46). No capítulo XXI do “Leviatã”, que versa sobre a liberdade dos súditos, encontramos

justamente a idéia de que liberdade e necessidade são compatíveis, ou seja, a natureza114

concede ao homem a liberdade absoluta a fim de que busque os fins necessários para a

manutenção da sua vida. Em virtude das vantagens oriundas do estado natural, o homem

percebe que de nada lhe adiante a liberdade sem limites se a sua vida corre risco permanente

de encontrar um fim e, frente a isso, via cálculo, o homem sente a necessidade de limitar tal

liberdade e viver com possibilidades e expectativas reais de vida.

Em continuidade a essa ideia, analisando os primeiros parágrafos do capítulo XXI do

Leviatã, notamos a autenticidade da afirmação de Malherbe, ou seja, que o problema da

liberdade e da necessidade não passa de um exercício lingüístico. Para defender esta

concepção, vamos seguir em partes. Em primeiro lugar, todo corpo é livre se o seu

movimento não se deparar com nenhum obstáculo externo. Em segundo lugar, esta definição

é tão geral que vale tanto para os corpos racionais como para os não racionais. “Diz-se que

um rio é livre quando seu curso não é impedido; que um animal é livre quando pode mover-se

como quer; que um homem é livre quando o poder que tem para realizar seus fins não é

contrariado” (MALHERBE, 2002, p. 47). Todos os corpos são colocados no mesmo patamar

114

A definição de natureza, conforme Thomas Hobbes escreveu na Introdução ao “Leviatã”, é “a arte mediante

a qual Deus fez e governa o mundo” (1983, p. 05).

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interpretativo, e para todos eles existe apenas a barreira externa, de maneira que quando a

limitação do movimento é inerente ao corpo, costumamos dizer que não lhe falta liberdade,

mas sim o poder de movimentação. Para o filósofo político de Malmesbury isso é um indício

de que a liberdade não é relativa ao interior do corpo, e apenas ao seu movimento, que é

externo ao seu corpo. O corpo não é o seu movimento, assim como seu movimento não é seu

corpo. Portanto, só conseguimos pensar em liberdade do corpo porque existe o movimento

que é fato real e mensurável, em contrapartida, o corpo não oferece toda essa postura de

verificabilidade.

Hobbes prende-se ao significado e ao uso da palavra liberdade, ao invés de assumir

uma dimensão ontológica. Esta atitude, para Malherbe, é normal, pois “cada um pode definir

as palavras como as entende” (MALHERBE, 2002, p. 47). A definição e o uso do termo

liberdade têm validade para todos os corpos desde que estes estejam em movimento, caso

contrário, existe apenas um abuso de linguagem115

. Portanto, a liberdade hobbesiana é a ação

livre do corpo e não a liberdade da vontade ou do desejo do corpo. Toda ação requer um

corpo em movimento. A liberdade não é um corpo que possa se movimentar. A liberdade não

passa de ausência de impedimentos externos de um corpo em movimento. Para existir ou não

existir a liberdade, conforme Hobbes, deve haver um corpo em movimento ou paralisado, mas

a liberdade em si nunca existirá. Aqui entendemos que o problema do abuso de linguagem,

denunciado por Hobbes, em relação ao problema da liberdade, está em atribuirmos à liberdade

uma condição que, conforme Hobbes, não existe, o livre-arbítrio. Não existe uma condição

administrativa para a liberdade. Como mostramos acima, o que existe é corpo em movimento

ou paralisado; uma concepção puramente mecânica e física. A concepção de liberdade de

Thomas Hobbes é puramente corpórea e muito distante, por iniciativa mesmo de Hobbes, da

concepção tradicional metafísica.

A compatibilidade, encontrada no capítulo XXI do “Leviatã”, entre liberdade e

necessidade é compreendida a partir da causa eficiente e do seu efeito. Poderíamos pensar em

um rio, quando na ausência de barragem externa, é livre para seguir seu caminho normal e

que, ao mesmo tempo, lhe é necessário seguir. O animal é livre para agir, mesmo que a causa

eficiente da sua ação seja a necessidade basilar da alimentação.

Diríamos assim que o rio, não havendo barragem, é livre para seguir seu

curso, e que lhe é ao mesmo tempo necessário segui-lo; que o animal vai

aonde lhe apraz, ainda que seu impulso seja dirigido pela fome que sente; ou

ainda, que um homem é livre para realizar a ação que projeta quando não se

depara com nenhum impedimento, ainda que sua vontade seja

115

Cf. LEVIATÃ, II, XXI, p. 129.

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necessariamente determinada por um conjunto complexo de causas, de

motivos, de móbeis, de condições, de circunstâncias. A definição dada de

liberdade é portanto compatível com a mais estrita necessidade

(MALHERBE, 2002, p. 48).

Neste sentido que podemos pensar na criação do Estado civil, pois o homem é livre e

necessita criá-lo para a preservação do seu movimento vital. O homem constata, via cálculo e

linguagem, que a liberdade que lhe é própria no estado natural não lhe convêm para aquele

momento, então, ele sente a necessidade de pactuar com os outros homens e viver em uma

situação mais privilegiada e com mais condições de preservação vital. A liberdade e a

necessidade são compatíveis no sentido de que assim como o homem é livre, ele também

necessita buscar melhores condições para a sua própria preservação. Com efeito, dado que a

instauração do Estado civil tem uma concepção natural em seu fundamento:

A concepção mecanicista de liberdade sustentada por Hobbes é suficiente

para dar conta deste ato? Ou seria necessário supor no homem uma

faculdade moral original, capaz de autonomia, agindo por escolha, apta a

representar o bem, e que transforme o ser humano em uma personalidade

moral, irredutível a sua existência corporal, antes de fazê-lo uma

personalidade jurídica ou um cidadão? (MALHERBE, 2002, p. 49).

A antropologia hobbesiana, que é mecânica, serve como sustentáculo para a sua

concepção de política. A transição do esquema natural para a criação de leis capazes de

nortear e limitar os direitos outorgados pela natureza ao homem gera o Estado civil. “Notemos

igualmente que, se tomarmos a letra dos primeiros capítulos do Leviathan, aparece claramente

que a antropologia é reportada a uma física do movimento e que Hobbes se aplica a traduzir

todas as suas partes em termos de necessidade mecânica” (MALHERBE, 2002, p. 49). Tudo

direciona para a compreensão de que o homem segue uma necessidade ligada à sua

constituição natural enquanto homem provido de liberdade absoluta. A ‘mortificação’ da

liberdade é absoluta e necessária para que o homem continue a pensar em termos de

construção, projeção, planos futuros, em todos os campos da vida humana.

Desta citação de Michel Malherbe extraímos duas constatações acerca da liberdade

hobbesiana. A primeira constatação é uma reclamação de sentido, de maneira que a liberdade

humana, que tem como base a compreensão mecânica, e por ser mecânica é composta de

movimento e movimento, conforme Thomas Hobbes, gera tão e somente movimento. Como

pode, então, pela liberdade humana, que é movimento, surgir o Estado civil dotado de leis e

normas capazes de organizar a vida social dos homens? A segunda constatação gira em torno

da identidade do Estado civil que é instaurado a partir da antropologia mecânica. Ora, se a

compreensão mecânica é a base do movimento causador do Estado civil, isso significa que o

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Estado não passa de uma máquina perfeita capaz de produzir finalidades específicas, assim

como uma fábrica de automóveis que gera apenas modelos preestabelecidos, mas, na

realidade do Estado civil isso não é verdadeiro. Basta analisar para verificar que até mesmo o

Estado civil carece de ordem para o seu bom funcionamento. Para responder a estas duas

interrogações é relevante levantar uma nova interjeição, a saber: a ordem política está

submetida aos mesmos princípios da ordem natural? A liberdade natural e civil configuram-se

essencialmente as mesmas? Ou devemos falar de uma liberdade natural e uma liberdade civil?

A antropologia de Hobbes fixa-se em uma dupla noção de movimento: o vital e o

animal. Conforme Heck: “a distinção entre um e outro não ancora sobre uma diversidade de

princípios, mas tem a ver com a maneira como cada um deles surge no organismo” (2002, p.

540). O movimento vital é a própria circulação sanguínea, respiração, todo movimento interno

que tem por objetivo manter o indivíduo com vida. Mais do que isso, o movimento vital tem

“lugar entre a concepção e a morte do ser humano, essa espécie de movimento ocorre no

interior do corpo e permanece infensa à vontade. Exemplos desse tipo de movimento são a

circulação do sangue, o pulso, a respiração, a digestão, e a excreção” (HECK, 2002, p. 540).

O movimento animal ou voluntário depende de uma ação externa, que cause pressão aos

sentidos, gerando, posteriormente, movimento interno, que pode ser tanto apetitoso como

aversivo. O movimento animal “se expressa na conduta externa do homem como andar, falar

e mover qualquer dos membros, da maneira como anteriormente foi imaginada pela mente”

(HECK, 2002, p. 540). O bem não é outra coisa senão aquilo que busca o desejo (apetite), o

mal, ao contrário, é aquilo que se desvia (aversão).

A vida do indivíduo é uma sucessão de busca, quando existe o desejo, e de fuga

quando não existe o desejo de contrair determinado objeto. O desejo é um movimento em

direção ao objeto almejado, a sensação, ao alcançar este objeto, é o prazer; o contrário se

configura em desprazer. Geralmente os homens tendem a agir em busca do prazer e em

repulsão ao desprazer. Todavia, o prazer para determinado homem não é o mesmo prazer que

o outro prefere e procura. Por sua vez, a finalidade que o homem busca com o prazer é a

sensação de bem para o seu próprio movimento vital e nisso os homens se igualam,

independentemente do objeto que possa acarretar essa sensação ao homem. Da mesma forma,

os homens fogem da sensação do mal ou, simplesmente, do desprazer ou desagrado.

Portanto, o prazer (ou deleite) é a aparência ou sensação do bem, e

desprazer ou desagrado é a aparência ou sensação do mal.

Conseqüentemente, todo apetite, desejo e amor é acompanhado por um

deleite maior ou menor, e todo ódio e aversão por um desprazer e ofensa

maior ou menor (LEVIATÃ, I, VI, p. 34).

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É frente esta afirmação de Hobbes que podemos entender a vida livre e prática do

homem, ou seja, um corpo livre preocupado com a manutenção do seu movimento vital, que

tanto pode se afastar como se aproximar do objeto em questão, tende a seguir sempre os

impulsos que ocasionam a sensação de bem e nunca a de mal. A aproximação ou o

afastamento do homem em relação ao objeto depende do seu desejo vinculado à deliberação.

Hobbes chama de deliberação “todo o conjunto de desejos, aversões, esperanças e medos, que

se vão desenrolando até que a ação seja praticada, ou considerada impossível” (LEVIATÃ, I,

VI, p. 37). Quando a vontade dá lugar à ação, melhor dizendo, quando a partir da vontade o

homem acaba agindo. Isso que caracteriza a deliberação.

Podemos, a partir desta caracterização de deliberação, pensar que a liberdade “finda

com a vontade; o último apetite, o último conatus, predominando sobre os outros

movimentos” (MALHERBE, 2002, p. 54). Dessa maneira, a liberdade “é, de alguma maneira,

o desejo inacabado ou o desejo contrariado pelo desejo, e o tempo da ação que se retarda”

(MALHERBE, 2002, p. 54). Isso gera a compreensão de que o homem é determinado a

buscar os seus fins quantas vezes forem necessárias e possíveis e o homem não tem como

negar-se a esta determinação natural, pois “o desejo de vida e de felicidade está inscrito na

natureza mesma dos homens, que não podem a ele se subtrair” (MALHERBE, 2002, p. 55). O

homem não pode recusar a sua própria vida, ele deve e tem total liberdade de buscar tudo o

que for urgente para seu movimento vital permanecer ativo. E é justamente neste ponto que

reside a interpretação central da liberdade como compatível com a necessidade. O homem não

pode se recusar de tentar se preservar. O homem é absolutamente livre e necessita fazer com

que esta realidade aconteça. Em relação a isso, portanto, não há maiores problemas, todo

homem, geralmente, se empenha no sentido de conquistar ou esquivar-se daquilo que lhe é

necessário para conservar a vida.

Quando os meios encontrados pelo indivíduo não alcançam obstáculos até a conquista

do objeto desejado, quando o homem realiza o fim que motivou seu movimento, podemos

dizer que a consciência que o indivíduo tem da sua liberdade é igual à consciência que o

indivíduo tem ao se movimentar para determinado fim. O que estamos afirmando é que para

além da liberdade humana existe no homem o conhecimento desta realidade. É frente esta

interpretação que entendemos a seguinte afirmação de Hobbes:

Por liberdade entende-se, conforme a significação própria da palavra, a

ausência de impedimentos externos, impedimentos que muitas vezes tiram

parte do poder que cada um tem de fazer o que quer, mas não podem obstar a

que use o poder que lhe resta, conforme o que seu julgamento e razão lhe

ditarem (LEVIATÃ, I, XIV, p. 78).

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Consoante a Malherbe, esta definição de liberdade apresentada por Hobbes “não

concerne ao fim, concerne ao meio” (2002, p. 56), ou seja, ela não está na escolha efetiva da

conquista dos fins e sim nos elementos intermediários que conduzem o homem até o fim

estimado. O fim estimado por todo homem é a vida pacífica e prazerosa. No estado natural,

esta realidade se torna muito remota e quase impossível de acontecer, já, por sua vez, com a

instituição do Estado civil, a probabilidade do homem conseguir desempenhar isso com êxito

é extremamente mais satisfatória e possível, de sorte que as leis existem justamente para que

isso aconteça. “A liberdade tem, assim, este triplo aspecto: a escolha dos meios a seu prazer, o

domínio efetivo dos meios, e, portanto, a capacidade efetiva de realizar seus fins”

(MALHERBE, 2002, p. 56).

Quando os corpos não vivos estão em movimento é necessário que existam outros

corpos em movimento para que aqueles ganhem movimento, mantenham ou mudem de

direção, ou paralisem seu movimento. Contudo, quando os corpos são vivos, tais ações e

reações mecânicas são acompanhadas de representação e desejo e é isso que os impulsiona ao

movimento vital. O efeito de um corpo em movimento é outro corpo em movimento. O

movimento gera movimento, “mas também a consciência ou a paixão vivenciada”

(MALHERBE, 2002, p. 57). Assim podemos dizer que o poder é a liberdade que o homem

tem de buscar meios para o fim tão visado (a permanência do movimento vital), ou seja, é

livre todo aquele corpo que pode e que não é impedido de encontrar seus fins. Como

afirmamos, o movimento gera movimento. O homem é um corpo em movimento, tal

movimento só permanecerá enquanto a busca de elementos, que tenham por finalidade a

alimentação e a preservação desse movimento, for real e constante.

Neste contexto, a razão humana surge como uma importante aliada. Não mais como

uma instância puramente humana e ontológica, senão que como um instrumento de cálculo.

Por meio das leituras das obras de Hobbes, notamos que a razão humana não passa de um

poder que a natureza destinou aos homens. A razão humana como fonte de potência dá

margem interpretativa para uma dupla liberdade: “a de se subtrair ao caráter imediato do

desejo de vida para pensar os bens como fins, os quais pode-se atingir ou não atingir; a de

comparar os meios e se esforçar por escolher o melhor” (MALHERBE, 2002, p. 58). O poder

da razão, como ferramenta de deliberação humana, é um poder singular de representação. É

importante salientar que tal representação não diz respeito aos fins, mas aos meios que

conduzem os homens aos fins almejados.

Tanto no estado natural como no Estado civil o fim não varia, o fim é sempre o

mesmo: escapar da morte violenta e viver uma vida pacífica e prazerosa. Este é o fim que toda

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humanidade se debate para alcançar. Todas as evoluções científicas, todos os avanços

tecnológicos, todas as pesquisas acadêmicas direcionam-se para este fim, apresentar respostas

convincentes à humanidade de como se deve agir para conquistar uma vida satisfeita e segura.

A lei civil legisla apenas sobre os meios. Ela proíbe tudo o que pode prejudicar a vida

prazerosa e pacífica do homem. A liberdade humana ganha consistência como meio neste

contexto, de maneira que no estado natural o homem é totalmente livre para manter sua vida

e, no Estado civil, vive a liberdade com certas restrições. Nesta condição o movimento vital é

garantido pelo Leviatã. Entretanto, quando a liberdade natural se coloca sem espécie alguma

de ressalva, ela é reduzida a nulidade. O que fica evidente é que o princípio da liberdade

hobbesiana deve procurar outro ponto de partida além da natureza, pois pactuar é um ato

contrário à natureza humana.

Hobbes deixou claro que a vida do homem em torno do bem comum é um acidente da

natureza e que os homens se procuram e aceitam a vida em sociedade por conveniência e por

maior probabilidade de preservação do movimento vital116

. Não existe um bem comum.

Existe apenas a preocupação com o próprio conforto e a própria preservação da vida.

Conforme Hobbes, a única maneira para se obter tais fins é a instituição de um poder comum,

capaz de agregar todas as vontades a uma só:

A única maneira de instituir um tal poder comum, capaz de defendê-los das

invasões dos estrangeiros e das injúrias uns dos outros, garantindo-lhes

assim uma segurança suficiente para que, mediante seu próprio labor e

graças aos frutos da terra, possam alimentar-se e viver satisfeitos, é conferir

toda sua força e poder a um homem ou a uma assembléia de homens, que

possa reduzir suas diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só

vontade (LEVIATÃ, II, XVII, p. 105).

Continua o autor do Leviatã a exprimir como acontece tal instituição:

O que equivale a dizer: designar um homem ou uma assembléia de homens

como representante de suas pessoas, considerando-se e reconhecendo-se

cada um como autor de todos os atos que aquele que representa sua pessoa

praticar ou levar a praticar, em tudo o que disser respeito à paz e segurança

comuns; todos submetendo assim suas vontades à vontade do representante,

e suas decisões a sua decisão. Isso é mais do que consentimento, ou

concórdia, é uma verdadeira unidade de todos eles, numa só e mesma

pessoa, realizada por um pacto de cada homem com todos os homens, de um

modo que é como se cada homem dissesse a cada homem: Cedo e transfiro

meu direito de governar-me a mim mesmo a este homem, ou a esta

116

“É certo que há algumas criaturas vivas, como as abelhas e as formigas, que vivem socialmente umas com as

outras (e por isso são contadas por Aristóteles entre as criaturas políticas), sem outra direção senão seus juízos e

apetites particulares, nem linguagem através da qual possam indicar umas às outras o que consideram adequado

para o benefício comum. Assim, talvez haja alguém interessado em saber por que a humanidade não pode fazer o

mesmo” (LEVIATÃ, II, XVII, p. 104). Thomas Hobbes apresenta seis razões pelas quais os homens não nascem

aptos para a vida em comum. Tais razões podem ser conferidas no capítulo XVII do Leviatã.

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assembléia de homens, com a condição de transferires a ele deu direito,

autorizando de maneira semelhante todas as suas ações (LEVIATÃ, II,

XVII, p. 105).

Em relação à identidade desse pacto, Hobbes salienta: “Feito isso, à multidão assim

unida numa só pessoa se chama Estado, em latim civitas. É esta a geração daquele grande

Leviatã, ou antes (falar em termos mais relevantes) daquele Deus Mortal, ao qual devemos,

abaixo do Deus Imortal, nossa paz e defesa” (LEVIATÃ, II, XVII, p. 105-106). Os homens

fazem isso conduzidos pelo desejo de vida satisfatória e pacífica. Mais do que um mero pacto,

mas uma verdadeira unidade humana, o Estado surge como um instrumento artificial na

tentativa de paralisação do poder ilimitado dos homens. Os homens o instituem porque

querem viver em paz e com esperança. A razão atuando como perfeito instrumento de

maquinação apresenta aos homens esta possibilidade como a mais viável. Os homens aceitam

o pacto e passam a viver sob o poder coercitivo da lei. “Portanto a justiça, isto é, o

cumprimento dos pactos, é uma regra da razão, pela qual somos proibidos de fazer todas as

coisas que destroem a nossa vida, e por conseguinte é uma lei de natureza” (LEVIATÃ, I,

XV, p. 88). Assim podemos procurar outros elementos que embasam o pacto:

Na vida civil, na cultura, de uma maneira geral no ato humano; mesmo

levando-se em conta que é própria à necessidade mecânica criar as

circunstâncias materiais indispensáveis e, de alguma forma, a urgência de

contratar, ela será totalmente ultrapassada por este ato não natural que é o

pacto (MALHERBE, 2002, p. 60).

A liberdade civil é aquela que acontece na presença da lei e nos limites propostos por

ela, de maneira que o homem é livre quando age segundo os limites impostos pelo Estado. De

que adianta a liberdade natural (ilimitada) se não há garantia de vida? O raciocínio mais

lógico e convincente que os homens chegam é a limitação da liberdade natural, gerando a

liberdade civil, em função da preservação do movimento vital, que caracteriza a liberdade do

súdito como compatível com a necessidade de pactuar. Por esta razão que Hobbes afirma ser

esta a única saída para o homem, ou seja, entre viver totalmente livre e com medo da morte

violenta, o homem opta por viver com suas ações limitadas, porém, com certeza de que pode

crer no amanhã e com fortes indícios de esperança em uma vida melhor e mais confortável,

amparada pelo Estado e suas leis. Este é o uso da razão que o homem faz.

A razão, poder de cálculo, procurando o meio de sair do estado de guerra,

encontrando-o enfim nela mesma, mas em seu poder de ficção (ou seja, de

representação eficaz): uma ficção não empírica, o pensamento de

autorização, é capaz de criar um novo poder, um deus mortal. Uma razão

artificiosa. Uma razão que não diminui em nada a necessidade natural (ela

prossegue ainda no estado civil, em outras condições), mas que foi capaz,

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precisamente, de mudar a condição dos homens. Uma razão não impedida e,

portanto, livre, sem ser incompatível com a necessidade. Liberdade e

necessidade permanecem compatíveis. Mas a liberdade de que se trata na

ordem civil é a de um ser racional (MALHERBE, 2002, p. 64).

O homem, que agora está inserido no Estado civil, vivendo sob os ensinamentos da lei

estabelecida pelo soberano, ainda tem medo de morrer. O medo é uma paixão natural e

mesmo nos limites do Estado civil continua a existir, porém com menos intensidade. O medo

permanece no homem, o mesmo medo que o motivou a pactuar com os outros homens –

medo da morte violenta – contudo, no Estado civil o medo foi parcialmente removido, pois

existe a presença forte do poder do soberano obrigando com que os súditos cumpram a lei. A

lei, por sua vez, está a favor da vida e da paz dos súditos “dado que todo súdito é por

instituição autor de todos os atos e decisões do soberano instituído, segue-se que nada do que

este faça pode ser considerado injúria para com qualquer de seus súditos, e que nenhum deles

pode acusá-lo de injustiça” (LEVIATÃ, II, XVII, p. 109). Caso o súdito quebre o pacto

estabelecido entre os homens – desde que a finalidade do Estado esteja sendo cumprida: a

preservação da vida confortável e pacífica – não poderíamos falar em termos de uma

contradição do Estado, mas sim no sentido de uma contradição entre os súditos.

Conforme afirmávamos acima, o medo ainda é uma realidade permanente e constante,

pois ainda o homem tem medo de morrer, mesmo dentro dos limites do Estado civil. O medo

é um elemento fundamental para que a vida, mesmo dentro dos limites da lei civil, e as leis

permaneçam e sejam preservadas. Faz parte, então, do Estado civil o homem ter medo do que

possa acontecer com a sua vida, mas ainda assim poder projetar e maquinar ações futuras, dar

atenção aos seus anseios, poder cultivar a lavoura e a ciência, pois o Estado está para garantir

e preservar a vida pacífica. A função do Estado civil, portanto, está para diminuir o medo no

homem da morte violenta e para promover a esperança de uma vida melhor.

Visto que o fim dessa instituição é a paz e a defesa de todos, e visto que

quem tem direito a um fim tem direito aos meios, constitui direito de

qualquer homem ou assembléia que detenha a soberania o de ser juiz tanto

dos meios para a paz e a defesa quanto de tudo o que possa perturbar ou

dificultar estas últimas (LEVIATÃ, II, XVII, p. 109).

Portanto, dentre os muitos males existentes, o menor mal é a única possibilidade de

fuga desta situação improvável e insuportável. Ora, se não fosse insuportável, os homens

poderiam permanecer nesta condição natural de vida: liberdade ilimitada, direito a todas as

coisas. Entretanto, isso tudo de nada adianta se a vida não for preservada. O poder a todas as

coisas – a liberdade ilimitada, natural – necessita ser podada pelas leis civis. O homem

necessita tomar esta decisão junto com os outros a fim de que possa continuar o movimento

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vital. A lei civil delimita a liberdade do homem, contudo, lhe dá maiores chances de vida. Do

surgimento do Estado civil nasce a lei, que são “essas regras da propriedade (ou meum e

teum), tal como o bom e o mau, ou o legítimo e o ilegítimo nas ações dos súditos, são as leis

civis” (LEVIATÃ, II, XVII, p. 110). O nascimento das leis civis só é possível pela

conciliação da liberdade com a necessidade dos homens. A liberdade dos súditos consiste em

abdicar da própria liberdade absoluta em troca da paz e da segurança e a esperança de uma

vida melhor e satisfeita, que são necessárias à preservação do movimento vital.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

As interpretações que se ocupam do problema da liberdade em Thomas Hobbes nos

apresentam um filósofo político pouco sistemático – basta pensar no fato de que ele não

escreveu nenhuma obra específica para tratar da questão da liberdade do corpo. Tudo o que

temos para embasar nosso estudo sobre a liberdade está espalhado nas suas diversas obras.

Reservando, no “Leviatã”, dois capítulos, o famoso XXI – sobre a liberdade dos súditos – e o

XIV – da primeira e segunda leis naturais, e dos contratos. No “De Cive” existe a primeira

seção com a incumbência de relatar sobre a questão da liberdade. Além de uma obra, cuja

característica principal já é a aplicabilidade da liberdade em outra determinada discussão, a

saber, “Liberdade e Necessidade”. Mas, por outro lado, encontramos um filósofo preocupado

com a originalidade da problemática. Tanto é que a sua maneira de interpretar a liberdade é

marco decisivo de rompimento com a tradição filosófica passada. Hobbes calça seu

pensamento político na matematização da natureza e aplica esta compreensão a todo corpo –

racional e não-racional – com tanto que este corpo esteja em movimento. Hobbes é um

pensador rigoroso e fiel ao modelo racional apresentado pelos seus contemporâneos. Não

apenas assistiu o desenvolvimento científico de sua época, senão que ajudou a construí-lo.

Aqui reside a originalidade do pensamento de Hobbes com relação à liberdade do corpo.

Hobbes decide espontaneamente a reformular a definição de liberdade que até então

somente os seres racionais gozavam. A liberdade não é um atributo pertencente somente aos

racionais, mas pertence a todo corpo em movimento, seja racional ou não. O que possibilita

essa extensão da condição de ser livre a todos, é a inovadora interpretação de ciência de sua

época, ou seja, tudo é corpo e movimento (corpo em movimento). Isso rompe de vez com a

noção de finalismo de Aristóteles, especificamente à dimensão teleológica do ser, que se

movimenta em direção à atualização de suas potencialidades inerentes a si. Este é o fim da

compreensão de liberdade que pertencia ao agente deliberativo; como se a liberdade fosse

uma faculdade pertencente somente àquele ser que age se quer ou não. Dessa maneira,

Hobbes se exprime no Leviatã acerca da deliberação do ser racional: “e o nome deliberação

vem de ela consistir em pôr fim à liberdade que antes tínhamos de praticar ou evitar a ação,

conformemente a nosso apetite ou aversão” (I, VI, p. 37).

Conforme Hobbes, essa interpretação de liberdade fundamentada na deliberação vai

encontrar inconsistências teóricas com a sua definição clássica de liberdade, citada no capítulo

XXI do Leviatã: “liberdade significa, em sentido próprio, a ausência de oposição (entendendo

por oposição os impedimentos externos ao movimento); e não se aplica menos às criaturas

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irracionais e inanimadas do que às racionais” (p. 129), ou seja, a liberdade não é uma

deliberação, a liberdade é ação. A liberdade é mais do que uma reflexão da própria liberdade

– alusão ao livre-arbítrio – a liberdade é a ação própria do corpo de movimentar sem entrave

externo à sua ação. Falar em livre-arbítrio é a mesma coisa que falar de um ‘eu’ existente

dentro de ‘eu’ mesmo, assim um ficaria responsável por deliberar (livre-arbítrio) e o outro por

agir. Conforme o filósofo político inglês, isso é um absurdo; um exagero lingüístico próprio

de homens providos de má fé.

Um corpo voluntário é livre quando não é impedido de fazer o que pode fazer,

justamente porque o poder de fazer, que antecede e a ação do corpo, não tem mais uma

ligação com a doutrina moral e política e muito menos com a dimensão ontológica-metafísica.

A compreensão hobessiana de liberdade segue outra diretriz interpretativa, aquela aplicada a

todos os corpos em movimento, a qual, analogicamente, será aplicada ao corpo humano e

livre nos meandros do Estado civil. A definição de liberdade como ausência de impedimento

externo ao corpo em movimento é encontrada em dois momentos distintos das obras de

Thomas Hobbes. A primeira vez está contida no capítulo sobre as leis de natureza117

, capítulo

XIV, e a segunda em um capítulo específico, a saber, no XXI, sobre a liberdade dos

súditos118

. É frente estas duas passagens que percebemos uma liberdade que se dá em dois

sentidos: a liberdade em estado natural e a liberdade dos súditos.

Em relação à liberdade em estado natural, o homem é totalmente livre e provido de

poder de uso dos meios necessários ao seu movimento vital. É um estado sem leis, normas ou

regras. Cada homem age da maneira mais conveniente para a sua preservação.

O relato das paixões dado por Hobbes as tratava, afinal, como amplamente

benéficas: aquilo que os homens sentem com ardor ou desejam ardentemente

é aquilo que os ajuda a sobreviver, e eles não podem desejar por muito

tempo um estado de coisas em que sua sobrevivência esteja em risco. Essa

concepção era terreno comum entre Hobbes e muitos de seus

contemporâneos, inclusive Descartes: todos afirmavam que idéia tradicional

de que a razão podia controlar as paixões era um erro, e que (adequadamente

compreendidas) nossas emoções nos guiam na direção correta. No relato de

117

“Por liberdade entende-se, conforme significação própria da palavra, a ausência de impedimentos externos,

impedimentos que muitas vezes tiram parte do poder que cada um tem de fazer o que quer, mas não podem

obstar a que use o poder que lhe resta, conforme o que seu julgamento e razão lhe indicam” (LEVIATÃ, I, XIV,

p. 78). 118

“Liberdade significa, em sentido próprio, a ausência de oposição (entendendo por oposição os impedimentos

externos do movimento); e não se aplica menos às criaturas irracionais e inanimadas do que às racionais. Porque

se tudo o que estiver amarrado ou envolvido de modo a não poder mover-se senão dentro de um certo espaço

determinado pela oposição de algum corpo externo, dizemos que não tem a liberdade de ir mais além. E o

mesmo se passa com todas as criaturas vivas, quando se encontram presas ou limitadas por paredes ou cadeias; e

também das águas, quando são contidas por diques ou canais, e se assim não fosse se espalhariam por um espaço

maior, costumamos dizer que não têm a liberdade de se mover da maneira que fariam se não fossem esses

impedimentos externos” (LEVIATÃ, II, XXI, p. 129).

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Hobbes, os homens não querem ferir os outros simplesmente por feri-los;

eles desejam ter poder sobre os outros, é certo, mas apenas para assegurar

sua própria preservação (TUCK, 2001, p. 75).

Podemos dizer que é uma liberdade em função do benefício próprio, pois o homem

não está preocupado com o movimento vital do outro. O que lhe interessa é a própria

conservação e melhores condições de vida para si próprio. As várias menções que Hobbes faz

do estado natural, em diversas de suas obras119

, caracterizam-se não pela frieza que o autor do

Leviatã descreve a natureza humana, mas pelo desdobramento original e próprio em que

apresenta a concepção de homem. O homem sempre foi mostrado pela história da

humanidade como um ser social, pronto para viver de bem o outro. Um homem aberto às

relações interpessoais, livre e consciente de sua condição. Contudo, com Hobbes, o caminho

sofre uma alteração substancial. O homem não é mais visto como um ser de relações sociais,

aberto às relações interpessoais, mas como um ser de interesse próprio e individual. Um ser

que vive à procura de benefícios para si mesmo. Podemos denominar o caminho que Hobbes

desenvolveu como: do natural ao civilizado.

Hobbes alcança tamanha genialidade no campo da política porque a sua maneira de

pensar a política, o homem na sua relação com si mesmo e com o outro, as leis na vida do

homem, o paradoxo entre liberdade e determinismo, tudo isso é muito inovador para o sistema

político da época e o atual. Na época de Hobbes a liberdade era pensada em termos da

liberdade da vontade – livre-arbítrio – e sempre subordinada à razão, por este motivo, a

liberdade pertencia exclusivamente ao homem, ser racional. Com Hobbes a liberdade era

pensada no sentido físico, pertencente a todo corpo, racional ou não, contanto que estivesse

em movimento. Assim como um homem é livre para agir em conformidade com a sua

necessidade, também uma pedra, um rio, um cão igualmente são. O homem não se ostenta

mais de ser o centro do mundo por conta da sua condição de racional e teológica – imagem e

semelhança do Criador. O que existe no mundo, conforme Hobbes e uma vasta gama de

pensadores que estipularam os parâmetros da ciência nascente120

, com base na linguagem

matemática, são corpos e movimento, melhor dizendo, corpos em movimento.

119

Cf. De Cive, a primeira seção que trata sobre a liberdade e os capítulos XIII, XIV e XV do Leviatã, todos com

considerações acerca da condição natural do homem. 120

“E quando Lord Cavendish enviou seu filho naquela que seria chamada a “Grande Viagem”, feita entre 1610

e 1615, Hobbes o acompanhou como tutor, embora apenas três anos separassem o pupilo do mestre – outra

relação encarada com inúmeras sutilezas e cheia de ambigüidade. Percorrer a Europa na qualidade daquilo que

um de seus amigos franceses mais tarde descreveriam como conducteur d’un Seigneur tornou-se uma das

principais atividades de Hobbes: além da jornada de 1610-1615, ele percorreu a Europa com o filho de outra

família em 1630 e, em 1634-1636, acompanhou o filho de seu pupilo de 1610 num tour similar ao que fizera

com o pai. Essas viagens deram a Hobbes uma oportunidade de conhecer políticos e intelectuais por todo o

continente europeu a que provavelmente nenhum outro pensador importante teve acesso; em 1636, ele já

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O nosso objetivo, com esta dissertação de mestrado, foi mostrar justamente essa

caminhada transitória do conceito e compreensão do termo liberdade, evidentemente, sem

adentrar propriamente na conceitualização da liberdade defendida pela tradição filosófica.

Assim, no primeiro capítulo, intitulado “A física hobbesiana”, mostramos como Hobbes

assumiu e, mais importante do que assumir, ajudou a construir o cenário científico do século

XVII. Um cenário profundamente materialista e físico. Desapegado às normas oriundas de

Deus e estritamente preocupada em colocar o homem no centro do mundo e das suas ações,

principalmente das ações livres dentro do commonwealth. Mostramos, ainda, que o maior de

todos os legados deste tempo à forma de Hobbes pensar o homem em sua relação pessoal –

seja natural ou política – é a noção de movimento. O movimento que acontece em todo corpo,

seja ele racional ou não.

O movimento pode ser tanto animal – quando acontece sem a intenção de que

aconteça: corrente sanguínea e respiração – e o movimento voluntário, que o próprio nome já

diz, ou seja, depende da vontade do corpo para acontecer. Ousamos afirmar que o movimento

é o princípio da filosofia de Hobbes, pois nenhum corpo vivo pode deixar de manter o

movimento, de sorte que o movimento é igual à vida e a paralisação deste movimento é igual

à morte. Que ser vivo, usufruindo da sua sanidade mental em condições perfeitas opta pela

morte ao invés da vida? Fechamos o capítulo mostrando que as leis de natureza – nos

prendemos mais na primeira, aquele que afirma que todo homem deve procurar a paz – são

conseqüências do uso correto da razão ou, em uma linguagem apropriada, as leis naturais são

efeitos da reta razão. Os homens agem conforme a sua maneira de entender que aquilo seria o

melhor para a preservação do seu movimento vital e justamente isso é buscado. A vida

pacífica e fundamentada na esperança é o fim de toda ação humana. Portanto, nenhum homem

pode deixar de buscar a paz e de preservar a própria vida, por mais complicada que ela seja de

ser vivida, mesmo no estado natural.

No estado natural há uma liberdade de tudo a todos. Neste estado é regra que todo

homem se preserve, seja da maneira que for, pois os homens, aqui, são totalmente livres para

agir da maneira mais conveniente e provável para que a sua vida se mantenha. Tendo em vista

que é regra que todo homem deve se preservar, a situação se torna uma generalização de

conflitos, seja em potência ou ato; o famoso estado de guerra, ou seja, ‘a guerra de todos

contra todos’. No que concerne a esta passagem, citamos Richard Tuck:

conhecera a maioria dos grandes filósofos de sua época, de Galileu (com quem provavelmente travou contato em

Florença na primavera de 1636) aos franceses Pierre Gassendi e Marin Mersenne – este último era o único canal

efetivo de comunicação com René Descartes (na época, virtualmente escondido nos Países Baixos) e foi quem

pôs Hobbes e Descartes em contato, ainda que eles só tenham se encontrado em 1648” (TUCK, 2001, p. 17).

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Mas Hobbes de fato acreditava que essas criaturas não poderiam fruir uma

existência social decente, a não ser que fossem capazes de usar linguagem

moral comum para descrever suas atividades. Essa é simplesmente uma

suposição profundamente arraigada de seu trabalho, suposição nunca

justificada de modo pleno, mas implicada de maneira constante pela forma

como ele descrevia o problema do conflito humano (2001, p. 75).

Deixamos claro, também, que neste estado o homem não age desta maneira

aparentemente ‘animalesca’ porque está disputando uma mulher em comum, o mesmo porco

que o outro também está querendo ou a posse da terra que o outro já está cultivando. A

questão aqui não é em termos de escassez de benefícios – meios – para a preservação do

movimento vital, mas a questão nuclear é pensar como agiria o homem na ausência de um

poder comum, capaz de educá-lo e puni-lo. Esta é a idéia fundamental do estado natural.

Dando seguimento a este pensamento, no capítulo segundo, denominado

“Antropologia de Hobbes: corpo físico e livre”, mostramos que os aspectos da vida humana

transcendem a idéia metafísica da realidade no instante que Hobbes se apropria de uma nova

semântica para seu pensamento em torno do homem e da política. Iniciamos pensando que o

homem está inserido em uma categoria totalmente original, a categoria de não ser um homem

político, mas de se fazer e se condicionar para política. Conseqüentemente, seguindo uma

esfera lógica, o estado natural também só pode ser avesso ao Estado civil, esse sim, político

porque é gerido e mantido por leis comuns e fortes, capazes de limitar as ações de todos os

súditos. Contudo, o estado natural, para o filósofo político inglês, não é uma realidade

histórica e sim um artifício lingüístico a fim de exemplificar o modo pelo qual os homens

viveriam na ausência de um poder comum. O estado natural não passa de uma condição

hipotética dentro do pensamento político de Hobbes. Está presente como um dos lados de

uma dicotomia. Uma necessidade correlata para facilitar a compreensão das pessoas quando

da busca por compreensão política. É como conseguir pensar no quente por conta no frio, no

seco por causa do molhado, na dor por saber o que é a ausência de dor, na saúde por já ter

ficado sem ela, enfim, o estado natural é um dos lados necessários de um produto intelectual

em torno do pensar político.

Posterior à demonstração que o estado natural é uma esfera possível do pensamento

político de Hobbes, demonstramos que o homem natural – também em condição provável –

vive constantemente em busca de paz – primeira lei de natureza. O homem busca a paz

porque no fundo ele anseia uma vida melhor e mais tranqüila, aliás, esse é um sentimento

presente em toda a humanidade e não apenas no homem natural ou no súdito de Hobbes.

Acontece que no estado natural não existe lei positiva, cuja submissão a ela traga benefício

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para todos. O que existe neste estado é o princípio do benefício próprio, cuja principal

característica é a busca incessante de cada homem por tudo aquilo que é melhor para o seu

movimento vital. Esta forma isolado do homem agir é o que caracteriza a ‘guerra de todos

contra todos’. Um espaço no qual não existe leis e normais. A única lei é a própria

preservação do movimento vital. Sendo que a preservação da vida é o fim último da própria

vida, o homem percebe que neste estado natural não há possibilidade de manter essa sua

certeza vital. Então, o homem começa a procurar uma saída viável para esta condição

paralisar, pois de nada adiante a liberdade ilimitada e a posse de tudo o que existe na natureza

se não existir a possibilidade de vida. Neste meio o medo da morte violenta entra como um

importante indicativo de que o homem deve procurar uma saída para sua condição natural.

Frente a esta constatação, o homem passa a utilizar da sua razão – não mais como um

elemento definidor da essência – e da sua linguagem para enfrentar o problema e encontrar

uma saída. A razão surge na situação desbancada de seu lugar de glória, mas como um

simples instrumento de cálculo, capaz de prever o que é mais favorável ou o que é menos

conveniente ao homem a fim de que a sua vida permaneça. Pela razão o homem é capaz de

‘prever’ o futuro e se precaver da possível situação ou reação vindoura. A razão dá ao homem

condições favoráveis para ele se acautelar daquilo que não é tão importante para sua vida. A

linguagem aparece na esfera estrita da comunicabilidade. A função que ela carrega é a de

externalizar aquilo que o homem, calculando, tem contido em sua cabeça. Portanto, podemos

falar de dois tipos de linguagem ou, melhor dizendo, de discursos, a saber, o mental e o

verbal. O verbal é o responsável por demonstrar aos outros homens aquilo que o homem tem

no seu pensamento. A função da linguagem, então, é tornar conhecido dos outros homens

aquilo que tanto o homem maquina em sua cabeça. E uma dessas maquinações, talvez a mais

importante que o homem possa ter tido, dentro do contexto político, pois tem como pretensão

a preservação do movimento vital, é a instituição do Leviatã.

O Leviatã é criado porque é impossível o homem manter a sua vida em paz dentro do

estado natural. Entretanto, dentro do Estado civil – Leviatã – a liberdade do homem se torna a

liberdade do súdito e isso tem alguns indicativos próprios. É visando justamente manter o

direito natural, mas de maneira dosada, que os homens criam o Estado. O estado tem a função

de manter a vida dos súditos livre de grandes riscos ou, ao menos os mais visíveis e

prováveis, e garantir a paz, a segurança e a esperança de uma vida produtiva.

Porque as leis de natureza (como a justiça, a equidade, a modéstia, a piedade,

ou, em resumo, fazer aos outros o que queremos que nos façam), por si

mesmas, na ausência do temor de algum poder capaz de levá-las a ser

respeitadas, são contrárias a nossas paixões, as quais nos fazem tender para a

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parcialidade, o orgulho, a vingança e coisas semelhantes. E os pactos sem a

espada não passam de palavras, sem força para dar qualquer segurança a

ninguém. Portanto, apesar das leis de natureza (que cada um respeita quando

tem vontade de respeitá-las e quando pode fazê-lo com segurança), se não

for instituído um poder suficientemente grande para nossa segurança, cada

um confiará, e poderá legitimamente confiar, apenas em sua própria força e

capacidade, como proteção contra todos os outros (LEVIATÃ, II, XVII, p.

103).

A instituição do Estado acontece para a preservação da paz. Basta lembrar que a busca

pela paz configura-se na primeira lei de natureza121

. O fim pelo qual todo homem se

movimenta. As leis naturais por elas mesmas não servem para nada, pois orientam o homem

somente em esfera individual e pessoal. Tem que haver, necessariamente, um poder

suficientemente grande para que ocorra a segurança dos homens e eles ganhem sentido em

existir. Mesmo com a instituição do Estado, o interesse do homem ainda se dará na esfera

privada, contudo, não caberá mais a ele cuidar do seu próprio direito, e sim ao soberano, o

qual ‘herdou’ todos os direitos privados e, por esta razão, é o poder supremo. “Do mesmo

modo que o pensar, assim também a honra do soberano deve ser maior do que a de qualquer

um, ou a de todos os seus súditos. Porque é na soberania que está a fonte da honra”

(LEVIATÃ, II, XVIII, p. 112).

O terceiro e último capítulo, que tem como título “Os efeitos da concepção de

liberdade na relação entre o estado de natureza e o Estado civil em Thomas Hobbes”,

demonstrou que o conceito de liberdade tradicional, aceito e disseminado como uma condição

ontológica, somente do ser racional, é questionado por Hobbes e em troca vê-se uma nova

interpretação em torno da liberdade surgindo no horizonte da política. Esta nova maneira de

pensar a liberdade tem raízes fixadas na ciência nascente de sua época, a qual Hobbes ajudou

a construir. A mesma ciência que tem caráter matemático e físico e que enxerga o mundo

como um local cheio de corpo e movimento. Imbuído nesta concepção científica, a liberdade

é entendida por Hobbes como puramente corpórea. Os efeitos que emanam desta nova visão

científica e política em torno da liberdade é a compatibilidade da mesma com a necessidade e

a visão de que o livre-arbítrio não passa de um equívoco lingüístico.

A discussão em torno da liberdade e do livre-arbítrio ganha forma quando Hobbes é

colocado em contato com o bispo Bramhall, árduo defensor da prevalência da razão sobre a

vontade do homem. Para o bispo, os homens sentem desejo e tendência por coisas

convenientes ou não ao seu movimento, contudo, a razão determina ao homem o que ele fará

ou não. Além disso, o livre-arbítrio tem um importante papel se considerado como um ser um

121

Cf. LEVIATÃ, I, XIV, p. 78.

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autônomo dentro da constituição do próprio homem. A vontade é a liberdade da própria

liberdade. É semelhante à constituição de um único homem composto por dois: um capaz de

discernir diante do elemento que lhe chama atenção – livre-arbítrio – outro para desempenhar

a ação propriamente dita. Tudo isso para livrar Deus de ser o criador ou o culpado do pecado

original, ou seja, o homem opta pelo pecado porque quer – eis a ação do livre-arbítrio, optar

por caminhos, até mesmo os desagradáveis aos ensinamentos de Deus – e não porque Deus

tenha determinado ou possibilitado ao homem tal condição. Portanto, com a prevalência da

razão sobre a vontade, o homem transfere para si mesmo toda culpa por determinada ação.

Para o pensador político inglês isso não acontece exatamente dessa maneira, de sorte

que a vontade é o último apetite que antecede a ação do homem. A vontade tem diretamente

uma incidência na ação livre do homem, pois ele é determinado pelos elementos externos a

ele. Tais elementos imprimem no homem uma reação apetitosa ou aversiva em direção ao

objeto desejado à preservação do movimento vital. Contudo, a vontade não é livre justamente

porque ela não é um corpo e se não é um corpo também não está em movimento a fim de que

encontre ou não encontre impedimentos externos à sua ação. Neste sentido, a liberdade e a

necessidade ganham significado como compatíveis, pois, da mesma maneira que o homem é

absolutamente livre para preservar sua vida, ele também necessita e não pode eximir-se de tal

tarefa. É por conta da liberdade e da necessidade que o homem pactua com os demais homens

e juntos instauram o Estado, cuja liberdade fica limitada, entretanto com maior possibilidade

de vida e paz122

. “Mas como através disso protegem a indústria de seus súditos, daí não vem

como conseqüência aquela miséria que acompanha a liberdade dos indivíduos isolados”

(LEVIATÃ, I, XIII, p. 77).

Portanto, visando responder a questão inicial – por que os homens, procurando sempre

ser livres, criaram um mecanismo capaz de limitar sua própria liberdade? – e ratificando o

título da presente dissertação, “A aplicabilidade do movimento na concepção de liberdade e

seus possíveis efeitos em Thomas Hobbes”, mostramos a transformação sofrida pelo conceito

de liberdade, herança da ciência nascente, e as possíveis implicações que isto angariou. A

liberdade é puramente corpórea e pertencente a todo corpo. Atento ao desejo de viver, o

homem a limita com a criação do Estado, espaço no qual o homem continua ser livre.

122

“As paixões que fazem os homens tender para a paz são o medo da morte, o desejo daquelas coisas que são

necessárias para uma vida confortável, e a esperança de consegui-las através do trabalho. E a razão sugere

adequadas normas de paz, em torno das quais os homens podem chegar a acordo” (LEVIATÃ, I, XIII, p. 77).

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