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10 UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO JESIEL FERNANDES VALE A EXPERIÊNCIA ALEMÃ E ITALIANA: EXPERIMENTAÇÃO IDEOLÓGICA E POLÍTICA DO ESPETÁCULO NO ESTADO FASCISTA SÃO LUÍS-MA 2007

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO

JESIEL FERNANDES VALE

A EXPERIÊNCIA ALEMÃ E ITALIANA:

EXPERIMENTAÇÃO IDEOLÓGICA E POLÍTICA DO ESPETÁCULO NO ESTADO FASCISTA

SÃO LUÍS-MA 2007

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JESIEL FERNANDES VALE

A EXPERIÊNCIA ALEMÃ E ITALIANA:

EXPERIMENTAÇÃO IDEOLÓGICA E POLÍTICA DO ESPETÁCULO NO ESTADO FASCISTA

Monografia apresentada a Universidade Estadual do Maranhão como pré-requisito para obtenção do grau de licenciado em História.

Orientadora: Profª. Drª Adriana Maria de Souza Zierer

SÃO LUÍS-MA 2007

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JESIEL FERNANDES VALE

A EXPERIÊNCIA ALEMÃ E ITALIANA:

EXPERIMENTAÇÃO IDEOLÓGICA E POLÍTICA DO ESPETÁCULO NO ESTADO FASCISTA

Monografia apresentada como exigência parcial para obtenção do grau de licenciado em História, à banca examinadora da Universidade Estadual do Maranhão.

Aprovada em ______/___________/________

BANCA EXAMINADORA __________________________________________________

Profª. Drª Adriana Maria de Souza Zierer (Orientadora) Universidade Federal do Maranhão

__________________________________________________

Universidade Estadual do Maranhão __________________________________________________

Universidade Estadual do Maranhão

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RESUMO

O presente trabalho adentra aos portais da História política para estudar o fascismo. Ao fazer isso não se contenta em narrar os fatos pelo uso exclusivo dos cânones da História marxista. Ao contrário, busca-se uma fusão das contribuições das teorias marxistas com as da História Cultural, a fim de produzir uma narrativa analítica e discursiva do tema. Inicialmente, se faz uma abordagem do contexto europeu no início do século XX, tentando entender o surgimento do fascismo. A seguir, o tema é discutido pela compreensão do fascismo através dos contatos entre as ideologias existentes, bem como das movimentações dos principais partidos políticos envolvidos.A partir daí, traça-se um percurso em que o fascismo é visto como “política do espetáculo”, e aqui são utilizados os parâmetros mais recentes da História Cultural para tratar de questões como as formas pelas quais o fascismo toma proporções extensas, os métodos operados pelo Estado fascista para trazer o regime político para o centro da vida das pessoas. Finalmente, dedica-se um capítulo em separado para rastrear o cinema como uma das formas encontradas pelos líderes fascistas para criar a imagética do poder e garantir, junto com os demais meios a eficácia do regime, juntando assim métodos da política tradicional e artifícios da moderna política de massas muito bem explorada na Itália e Alemanha que viram crescer um fenômeno ainda hoje estudado.

PALAVRAS-CHAVE POLÍTICA. IDEOLOGIA. FASCISMO

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RESUME

Ce travail dépasse les portails de l’Histoire politique pour étudier le fascisme. En ce faisant il ne se borne pas à raconter les faits par l’utilisation exclusive des canons de l’Histoire marxiste. Bien au contraire, on cherche la fusion des contributiosn des théories marxistes avec celles de l’Histoire Culturelle, afin d’en produire une narrative analytique et discursive du thème. Au tout début, on fait un abordage du contexte européen au commencement du XX siècele, en essayant de comprendre la naissance du fascisme. Ensuite, le thème est abordé par la compréhension du fascisme à travers des contacts entre les idéologies existantes, bien que des actions des principaux partis politiques impliqués. A partir de ce point-là, on établit un parcours dans lequel le fascisme est vu comme “politique du spetacle”, et c’est ici qui sont utilisés les paramètres les plus récents de l’Histoire Culturelle pour traiter de questions comme les moyens par lesquels le fascisme atteint des proportions considérables, les méthodes operes par l’Etat fasciste pour amener le régime politique au centre de la vie des personnes. Finalement, on dédie un chapitre à part pour investiguer le cinéma comme un des outils choisis par les leaders fascistes pour créer l’imagétique du pouvoir et garantir, avec les autres moyens l’efficacité du régime, en rassemblant ainsi des méthodes de la politique traditionnelle et des artifices de la moderne politique de masses très bien exploitée en Italie et en Allemagne qui ont vu grandir un phénomene étudié jusqu’aujourd’hui. MOTS-CLEFF: POLITIQUE. IDÉOLOGIE. FASCISME.

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À Deus que me ajudou até aqui À minha família e amigos, grandes inspiradores Aos meus professores pelos sábios ensinamentos

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AGRADECIMENTOS

Eu tenho uma viva gratidão a todos aqueles que contribuíram de forma direta ou indireta pra que eu lograsse êxito até este momento especial de minha vida.

Agradeço a Deus, Sustentador da vida. Agradeço a minha mãe e meu pai, fiéis e laboriosos companheiros de todas as

horas, por seu amor infinito. Agradeço a meu irmão pela camaradagem Agradeço aos meus amigos e professores, que me auxiliaram no desafio de

pensar historicamente.

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“A dúvida é o sal do espírito, sem uma pitada de dúvida, todos os conhecimentos em breve apodreceriam.”

Emile Auguste Chartier

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO................................................................................................................. 10

1 UMA EUROPA EM CRISE: para uma definição inicial do fascismo .......................... 13

2 CALEIDOSCÓPIO DE IDÉIAS: contatos entre ideologias no Estado fascista....... .... 34

2.1 Itália e Alemanha: partidos políticos e trincheiras de batalha no Estado fascista.. 36

2.2 Ideologia: um laboratório de ensaios para o fascismo ............................................ 44

3 A POLÍTICA COMO ESPETÁCULO: o deslocamento para uma tática de massas... 55

3.1 A imagética do espetáculo: mitos e legitimação do Estado fascista ......................... 56

3.2 O poder rouba a cena: métodos de operacionalização da política do espetáculo.... 65

4 Cinema no regime fascista: a sétima arte e seu impacto sobre o público...................... 78

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................... 99

REFERÊNCIAS............................................................................................................... 100

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INTRODUÇÃO

A imagem do trabalho de um ferreiro. Eis uma idéia plausível na caracterização da

tarefa da História. Nem tanto por se admitir aí uma missão puramente comprometida com a

construção de uma linearidade evolutiva de compreensões, mas, sobretudo porque tal como o

ferreiro o historiador precisa trabalhar com materiais que merecem um lento esforço a fim de

se chegar a um resultado apreciável e, mesmo toda diligência pode não implicar

necessariamente no objetivo almejado. As ferramentas postas à disposição de um e outro em

sua faina diária podem lhe auxiliar, porém, como o ferro e a bigorna, nem sempre as matérias

com as quais o historiador trabalha lhe darão um ideal definitivo e intocável.

Ei-los aparentemente paralelos em seus ofícios: o ferreiro e o historiador. Este,

manipulando fontes textuais expostas ao tempo e às múltiplas interpretações. Aquele,

trabalhando não menos arduamente em sua bigorna tentando obter dali um a ferramenta ou

um objeto útil às futuras gerações ou a seus contemporâneos. Ambos parecem defrontar-se

com uma sina inglória na qual um ou outro auxílio permanentemente lhe causa a sensação de

descontentamento ante a constante presença de obstáculos quase intransponíveis por razões

não completamente controladas pelas suas habilidades internas e pelas técnicas aplicadas.

Por outro lado, tanto um como outro, em regra, chega a um trabalho que após sua

conclusão desligar-se-á da figura de seu autor. Este é paradoxalmente o momento mais

significativo de toda a operação engendrada por estes artesãos em suas oficinas. O exato

instante em que uma vez dada por finda, a produção estará exposta à crítica de seus

companheiros de profissão e aos olhares mais diversificados que se possa imaginar.

Pode-se mesmo dizer que tal metaforização apresenta-se como indicativa também do

trabalho dos historiadores mais especificamente ocupados em estudar o fascismo. Entretanto,

alguns outros ingredientes devem ser incluídos para melhor dimensionar o desafio que é

adentrar o terreno das pesquisas sobre o Estado Fascista. E deste ponto se pode também traçar

algumas diretrizes a fim de atender à necessidade de seleção de aspectos que serão vistos.

Com efeito, na teia do que muito se tem escrito sobre a História do fascismo, os

pesquisadores - por não poucas vezes - se acham mais enredados pelos fios da narrativa que

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provocados a transpor os mesmos e passar a outros caminhos de análise. Isso porque em

diversos momentos o estudioso caminha por um percurso metodológico perigoso que é o de

envolver-se tanto na descrição dos fatos, que a crítica e os questionamentos que deveriam

nortear primordialmente o seu labor, ficam relegados a um plano secundário. Importante é

então retomar as pesquisas.

Uma vez que os percalços de uma narrativa assim tecida são perceptíveis, não se

pode deixar de reestudar a experiência fascista cujas pistas teimam em provocar o mundo

contemporâneo despertando perplexidades a serem respondidas ou pelo menos, discutidas.

Nomeadamente seria de se perguntar: afinal, por que o fascismo? A aparente superficialidade

da pergunta logo se desfaz quando a ela se juntam suas decorrências, diga-se, não poucas.

Ao se perguntar “por que” o fascismo, o historiador precisa ter em mente que não se

trata só de uma das experiências traumáticas das muitas presentes no século XX, ou mesmo,

um tema classificado entre os “pontos quentes”, dada a multiplicidade dos escritos. Para além

disso se deve questionar sim a diversidade de escritos tanto de fontes contemporâneas aos

fatos como de autores que não viveram, mas estudaram a fundo o estado Fascista.

Também, nessa empreitada, o estudioso se depara com a preocupação que ocupa a

presente pesquisa. Ora, a pretensão seria explicar o fascismo numa abordagem dupla: a

marxista e a da História Cultural. No tecido explicativo já construído parece ter havido uma

insistência em priorizar uma ou outra abordagem. Todavia, as leituras direcionadas à pesquisa

da experimentação ideológica presente na Itália e Alemanha dos anos vinte e trinta do século

XX, apontam noutra direção. Se por um momento, marxistas e liberais construíram

argumentações dignas de consideração, atualmente, chega-se a um estágio da pesquisa em que

o Estado Fascista precisa ser projetado numa perspectiva cultural de indagação.

Não por acaso se compreende aqui que o fascismo em suas manifestações naqueles

dois Estados então recentemente unificados, foi possível entre outras razões, principalmente a

partir da experimentação ideológica anterior ao Reich alemão e mesmo ao governo do Duce.

Foi corolário desta experimentação anterior, a viabilidade do que se pode denominar política

do espetáculo. Um trabalho sistemático envolvendo estas duas variáveis de estudo pode ser

produzido com o recurso aos parâmetros teóricos fornecidos tanto pelo marxismo quanto

pelos contributos da recente História Cultural. Exercício desafiador e também instigante.

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Diz-se não ser fortuita esta preferência e justifica-se: a definição do fascismo foi

buscada das mais diversas formas nos escritos de marxistas e outros não marxistas envolvidos

cada um com determinados pressupostos e condicionamentos. Mas, cotejando os escritos

ainda a serem analisados nesta pesquisa aparece a efetividade de todo um arcabouço

ideológico que serviria de matéria-prima a estabilização de um projeto e as movimentações

políticas construídas nos Estados fascistas. Trata-se de pontos dignos de relevo nas pesquisas.

Importa lembrar: ambas as nações estavam ainda em pleno desafio de

nacionalização. Poder-se-ia dizer: um trabalho ainda em curso. Por isso mesmo faz-se

necessário encarar que os anos que antecederam os governos de Hitler e Mussolini não

fizeram menos que propiciar aquele panorama ziguezagueante notável nas esferas política e

ideológica. De fato, é impossível dissociar o fascismo do nacionalismo mencionado antes.

Quando se fala em idas e voltas no prisma político, se destaca aquela política dita

“espetacular”. Uma política que se pretendia una, mas que teve que conviver com constantes

mudanças de posicionamentos, eliminações físicas e concessões a figuras oriundas de prismas

intelectuais até mesmo divergentes do ideário fascista. Neste ponto, a fantasia da unidade da

nação se concretizava através de uma política urdida nos bastidores palacianos tradicionais e

ainda na praça pública enquanto espaço privilegiado de encenação e de coesão social.

Some-se a tudo isso o cenário histórico delicado vivido por uma Europa suspensa por

uma atmosfera crítica onde a paz ofuscava-se por uma corrida armamentista iniciada desde

fins do século XIX. Posteriormente, as tratativas de paz daquele que havia sido o primeiro

conflito mundial pareciam mostrar ao mundo serem acertadas as palavras de Wiston Churchill

ao referir-se a Segunda Guerra Mundial e avaliar da seguinte maneira: “Esta guerra não é

senão uma continuidade da primeira”.1 Uma paz armada, uma paz de tênue tranqüilidade.

Em contrapartida, ao dar vozes aos atores da época, deve-se sempre ter em vista que

suas falas são de um lugar determinado e, obviamente, não podem ser tomadas de modo

passivo. O desafio do historiador do fascismo será não desprezar estes personagens, seu

ambiente e, ao mesmo tempo discutir o que se tem escrito sobre os Estados Fascistas com as

implicações e os limites impostos por este esforço intelectual.

Como conectar os fios dessa concha retalhada? Ao manipular esse material delicado,

o estudioso se depara com a mutabilidade decorrente do próprio objeto do estudo da História 1Discurso feito por Wiston Churchill no parlamento inglês em 21/08/1941.

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que é aventura do homem ao longo do tempo. Felizmente o arsenal científico tem sido

produzido nos últimos tempos através da compreensão de saberes socialmente partilhados.

E não poderia ser de outra maneira, sob pena de infligir ao estudioso uma missão

hercúlea da qual não poderá se ver bem sucedido a menos que saia do isolacionismo e busque

um trabalho interdisciplinar. Um trabalho de pesquisa dos escaninhos das ciências humanas e

que nem por isso relegará a especificidade da historicização que o tema do fascismo imprime.

Tal como o ferreiro, ressalte-se, o historiador necessita de paciência e tempo para lapidar seu

material e quem sabe ao fim da criação não se incomodar em expô-lo a crítica dos curiosos

que se atrevam a adentrar os portais da História.

1. UMA EUROPA EM CRISE: para uma definição inicial do fascismo

É de praxe que os historiadores iniciem sua discussão sobre um determinado tema

tentando demonstrar contextualmente como este pode ser apreendido levando-se em conta os

aspectos sócio-econômicos e culturais a fim de delimitar o tempo e o lugar investigado. Uma

explicação deste tipo pode ser realmente bastante útil no que toca ao envolvimento do leitor

ou de quem quer que pesquise o interior da narrativa. Entretanto, ela não satisfaz de todo.

Quando se fala em situar os fascismos em seu tempo pode-se ter, em uma apreciação

rápida do enunciado, a impressão de que a seguir se fará previsivelmente a apresentação

factual da época selecionada para o presente estudo. Claro que alguns elementos constituintes

daquela realidade não podem ser prescindidos. A maneira de apresentá-los é que pode

incrementar a pesquisa, acrescentando-lhe esclarecimentos cruciais ao entendimento do tema.

Seria o eterno mito das origens a importunar a persistência dos laboriosos estudiosos

das ciências humanas? Mesmo que se prefira a resposta afirmativa, ainda assim pode-se fugir

ao risco de ficar preso a habitual estratégia assinalada acima. De antemão é preciso esclarecer

que não se compreende aqui o nazismo como a forma mais acabada de todo o fenômeno que

estruturou a História da Alemanha e Itália durante o período entre-guerras e após ele.

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Dada a sistematicidade da política externa cujos efeitos são lembrados até os dias

atuais no holocausto, na violência de Auschwitz, nas mortandades impostas das formas mais

inumanas, o nazismo é comumente tido como a excelência do estado fascista. Esse olhar tem

bloqueado às análises o fato de que não se pode conceituar o fascismo univocamente e nesse

conceito querer classificar igualmente todas as ações, independente de quem ou de onde se

trata. Por isso é que situar o fascismo em seu tempo deve ser um esforço de historicização.

A compreensão deste objetivo de historicização é bem específica. Ela se coaduna

com a premissa de que as investidas dos Estados e as ações dos homens nestes corpos

institucionais não são produzidas aleatoriamente. O fascismo não pode ser tomado por uma a-

história em que brotam pensamentos e as intenções são efetivadas ao mero talante de uma

vontade filosófica pura. Os acontecimentos nem sempre resultam de forma natural das

intenções planejadas. Por isso mesmo, o exame histórico não pode ser rejeitado.

Ao se historicizar o fascismo é preciso integrar sua evolução no marulho de uma

corrente mais profunda que é a da História contemporânea. Assim é que se pode falar em uma

Europa em crise. Uma crise tanto ideológica quanto político-econômica. Ambos os aspectos

ficarão mais esclarecidos em capítulos próprios. Por enquanto podem ser anunciados alguns

destes fatores atendendo a contextualização aqui proposta. Neste sentido destaque-se:

A conjuntura de crise também deve ser levada em conta, a fim de se explicar como parte significativa dos trabalhadores se deixou mistificar pelo nazismo. (…) Com a crise e o desemprego sua organização sindical também perdia muita força, tornando mais difícil conter a arrancada nazista. (LENHARO, 2001, p.16)

A cisão em que se encontra o continente europeu é também perceptível quando se

observam os paradoxos da política implementada. A conjuntura de crise leva os líderes

políticos de grande audiência ao recurso da guerra como válvula de escape para as tensões

sociais. Mirabolante estratégia: a de tentar ver numa atividade eminentemente destruidora

como a guerra, a resposta criadora às demandas sociais que se apresentavam àquela massa

trabalhadora reivindicante de melhores condições de vida. Por isso, Alcir Lenharo enxerga a

crise da própria classe trabalhadora como componente de sua adesão ao regime hitleriano.

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Mais do que um sinal da crise, o fascismo foi mesmo a lógica em que se insere a

relação moderna de coesão entre os estratos sociais. Mas, no interior do panorama fascista o

consenso era demanda permanente. Por isso, a articulação entre os estratos se transporta para

uma lógica específica que permite entender a genética funcional do Estado fascista.

O leste europeu havia dado em 1917 uma prova de que as demandas populares

imprimiam uma nova estratégia discursiva e prática por parte das classes dominantes. Com

efeito, havia que se modernizar o modo de fazer política e para, além disso, havia que se

estruturar uma forma de vencer o paradoxo das direitas européias.

Aqui inicia o aspecto ideológico da crise. Em verdade, indissociável do aspecto

político. O fascismo pode ser encarado como a forma encontrada para solucionar estes fatores

de crise. Se em um período estável a política direitista pôde servir de suporte para a

continuidade da obtenção da mais-valia e da produtividade capitalista, a crise instalada em

nível europeu pedia novas estratégias de arregimentação dos estratos sociais.

Observando esse caráter crítico, a obra O fascismo italiano, destaca:

Totalitarismo: sistema de governo segundo o qual um grupo político centraliza todos os poderes, não permitindo a existência de outros partidos e sobrepondo teoricamente os interesses coletivos aos individuais. Mesmo não sendo rigidamente necessário, requer um consenso amplo. (TRENTO, 1993, p. 91)

Mais uma vez a busca por conceituar fica patente. Para este autor, evidencia-se o

fascismo enquanto regime de uma semiótica da coesão. Evidentemente, buscavam-se

respostas para as experiências dilacerantes do primeiro conflito mundial recente. Afora isso,

em termos geopolíticos havia uma Itália descontente com os louros insuficientes de uma

vitória que muito contou com seu auxílio; uma Alemanha subjugada por pesadas reparações

de guerra para um conflito que havia sido apresentado como soerguimento econômico através

de uma economia de cunho bélico-armamentista.

O consenso era necessário e, lembre-se que o consenso numa situação de crise parece

ser um norte salutar ainda que este não esconda as hierarquias que lhe dão sustentação.

Paralelamente não se pode esconder a contraditoriedade no seio das hierarquias. As esquerdas

baseadas no referencial teórico marxista pareciam apresentar uma base sólida de compreensão

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da realidade histórica. Este contexto descortina o descompasso no interior das alas liberais

burguesas com que o fascismo teve que se defrontar desde seus primeiros passos.

Uma nova forma de política e de articulação entre os segmentos sociais se

avizinhava. Por outro lado, o consenso perseguido não visaria uma obtenção de meros

indivíduos cordatos, desmobilizados. Por isso não se tratava de um labor simples. Ainda mais

porque, se observa na obra Introdução ao Fascismo:

(…) Essa contradição interna do pensamento da direita tornava extremamente problemática a coordenação do seu trabalho de resolução de problemas teóricos com o seu trabalho de resolução de problemas práticos. Os ideólogos especulativamente melhor aparelhados da direita (…) não assumiam funções significativas na direção de organizações conservadoras especificamente políticas. (KONDER, 1979, p. 7)

Leandro Konder percebe uma característica que anuncia um obstáculo a ser

trabalhado pelas lideranças fascistas. Neste caso, uma construção teórica em descompasso

com uma ação prática tem como corolário toda uma experimentação ideológica em que as

enunciações dos matizes mais distintas convivem lado a lado: ora aproximando-se, ora

distanciando-se conforme o momento que se viva. Teóricos não engajados e políticos pouco

especulativos: eis uma marca do ideário do fascista que era gerado paulatinamente.

Nada obstante estes paradoxos, é nestes primeiros anos do século XX que se devem

buscar as principais vertentes de ação do fascismo. Isto porque é precisamente neste momento

que os fascistas se deparam com contradições a que precisam responder e o fazem de maneira

cirúrgica, contornando bem ou mal os referidos paradoxos de uma maneira que garanta ao

movimento de um partido, de um pequeno grupo de pessoas se tornar um regime vigoroso a

arrebatar multidões, como ocorreria mais tarde nos anos 30 e 40.

Conforme os meios interpretativos utilizados sobre essas respostas, pode-se ver o

fascismo de formas diferenciadas. Ao analisar a Europa tendo por mote o estudo da resolução

destes paradoxos, tentou-se responder a questão mais profunda do porquê o fascismo eclodira

naqueles anos destacados, naquelas nações. Em linhas gerais se tem: a interpretação marxista,

o enfoque “liberal-totalitário” e o identificado com a social-democracia, ou “modernização”.

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Essas três linhas foram escolhidas por uma identificação com o que poderá ser visto

mais claramente no quadro das experimentações ideológicas presentes nos partidos políticos

contemporâneos ao fascismo. Tendo-se em conta as clivagens políticas, esta parece ser a

classificação mais flexível para perceber as interações entre os posicionamentos assumidos.

Daí a importância de se observar tais vertentes, percebendo seus contributos e seus limites.

A teoria marxista procura estudar o fascismo, tomando por premissas uma meta-

história. Trata-se de uma explicação cuja divisa é ser uma historiografia total dos

acontecimentos; além disso, o marxismo tenta explicar o fascismo tomando por base

pressupostos de uma teoria que se julga revolucionária. Em resumo: explicar o modo de

funcionamento da História e, a partir desse arcabouço teórico, produzir a condição para

viragem desta História. Uma dialética entre infra-estrutura e superestrutura: eis o motor da

História. As condições materiais determinando a ideologia: aí uma marca do marxismo.

Sabe-se que se trata de uma teoria que vai passando por revisões que tentam ser

menos radicais quanto à determinação da infra-estrutura sobre a superestrutura. Quando

analisa o fascismo, a teoria marxista privilegia o diálogo entre as duas esferas citadas. Nesse

percurso o que importa são as contradições do sistema capitalista. O fascismo respondeu

então a estas contradições de um sistema econômico e, não por acaso, são as condições

materiais que dizem os “porquês” do fascismo neste ou naquele país com umas e não outras

características.

O entendimento das variáveis da sistemática capitalista acaba comprometendo o

estudo marxista porque a História, assim demonstrada, denota um fenômeno complexo como

o fascista à moda de um devir inelutável. As ações das classes, dos agentes envolvidos só

podem ser compreendidas levando em conta que eles cumprem um desígnio implacável do

tempo já que a disposição das peças no quebra-cabeça não poderia levar a outra conseqüência.

A discussão marcante dos estudos sob a perspectiva da modernização não se

distancia muito do trajeto marxista. Nesta segunda linha de análise, encontra-se o problema do

fascismo como uma forma de modificação das estruturas, uma vertente de amenização ou

humanização das marcas exploradoras do sistema capitalista. Enquanto o flanco marxista

enxerga a necessidade de eliminação do sistema, a vertente social-democrata vislumbra uma

estratégia de reformas que acomodasse de forma menos traumática os agentes históricos e o

sistema capitalista. Nessa linha, o fascismo atuou justamente nessa direção.

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A perspectiva de reforma e não de eliminação, promove o confronto destas duas vias.

Como observa um estudioso:

O fato de durante a maior parte do tempo de existência do seu partido os comunistas alemães terem considerado a social-democracia como inimigo muito mais perigoso do que o nacional-socialismo e terem-na hostilizado por vezes com enorme virulência não impediu que todos eles, comunistas e social-democratas, sofressem, depois de 1933 iguais ignomínias e partilhassem os mesmos campos de concentração. (BERNARDO, 1998, p.192)

Neste instante, o autor situa um pouco do que será detalhado no capítulo referente

aos partidos políticos, as inversões e posicionamentos da ideologia presente no caldo cultural

do Estado fascista. Isto não impede que se proceda ao acompanhamento da forma como o

fascismo é apresentado nesta via da modernização já que esta via explicativa aproxima-se

bastante da forma como o fascismo era encarado naquelas agremiações políticas da época.

O determinismo economicista presente nas análises marxistas cede lugar aqui a

outros componentes. O problema é a falta de modernidade; por este fato, a segunda linha de

análise exemplificada em alguns de seus representantes 2 mostra que era necessário fazer

reformas no sistema; mesmo que estas reformas não levassem em consideração de maneira

obediente as ideologias e os agentes potencialmente identificados com as mesmas. Mas, se

sabe que a ideologia desempenhou um papel fundante para instalação dos fascismos e os

líderes argutos do regime acabaram mesclando um pouco das duas vertentes anteriormente

referidas. Passe-se então ao mapeamento da terceira via relacionada.

O esquema identificado como “liberal-totalitário” ocupa diversos autores cuja

principal marca é verem o fascismo como sistema ou fenômeno que é fruto de um

desenvolvimento irregular da história. Neste sentido, o fascismo, nas linhas de estudiosos

como Hannah Arendt, Erich Fromm e o próprio Norberto Bobbio, foi não mais que um desvio

da História dos Estados liberais. Seria um produto indigesto de componentes isolados,

relacionados ou com a natureza humana, ou com a política internacional. Trata-se de discurso

útil a defesa das criações democráticas. Um balizamento à estratégia de apologia das

engrenagens da democracia.

2 ORGANSKI, A. F. K. Fascism and Modernization. IN: WOLF, S. J. The Nature of Fascism. Londres: 1968, p.19-41.

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O fascismo, assim apresentado, teria sido um problema das instituições democráticas

exacerbado por caracteres inatos das massas humanas. Sabe-se que o regime fascista travou

uma relação estreita com as massas e, mais do que isso, procurou a elas dirigir-se através do

que se pode identificar como política do espetáculo. Seria o problema das massas o fator de

impulso dos traumas do fascismo ou, ainda, o fascismo seria a face nociva do Estado liberal.

Não se pode negar o caráter de crise presente na Europa em análise. Por outro lado,

os autores aqui identificados parecem reiterar a compreensão dos partidos de direita para os

quais a crise necessitava de uma alternativa que restaurasse a ordem de uma sistemática

liberal cuja estabilidade era a meta e a razão de ser. Nas palavras de um estudioso do tema:

Como bons liberais e conservadores frente ao desafio da democracia, muitos destes autores viram nas massas o inimigo fundamental dos equilíbrios e virtudes próprios do liberalismo realmente existente (…) Em suma, conseguia-se assim que o fascismo e o comunismo pudessem aparecer como aspectos de um mesmo processo ou fenômeno; ao mesmo tempo, reivindica-se a democracia liberal, situando-a, por definição nas antípodas daqueles. (CAMPOS, 2007, p. 2)

A citada interpretação coaduna-se com a natureza das respostas dadas pelo fascismo

e ajuda a melhor percepção do contexto que se está tentando caracterizar no presente capítulo.

Numa Europa repleta de tantos variantes, a exemplo dos problemas econômicos e das diversas

vias de análise, as habituais formas encontradas para definir os contatos entre as esferas

sociais, abrem espaço para umas realizações específicas dos fascismos.

Logicamente, não foram essas respostas - em todos os momentos - fruto de uma

intencionalidade. O fato é que os grupos políticos em geral procuram ter um controle mínimo

sobre os resultados que julgam ser os mais adequados. E, deliberadamente ou não,

influenciam em determinados aspectos do curso da história. Assim, deve-se analisar como

naquela Europa dos anos 20 e 30 houve a conexão específica entre os segmentos sociais que

marcou o fascismo. Aqui se destaca especialmente o papel da tecnocracia como interlocutora.

Como se disse anteriormente, as nações européias assistiam a uma crescente

mobilização das classes trabalhadoras. Os ecos disso eram sentidos no inter-relacionamento

entre patrões, empregados e a própria tecnocracia. Esta última, desempenharia uma atividade

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imprescindível a fim de que a relação trabalhadores versus empregadores não fugisse ao

controle, de tal forma a produzir a preponderância dos primeiros em detrimento dos segundos.

Sabe-se que a fórmula de ordem dessa relação contraditória normalmente pendia para

o lado dos empregadores. A radicalização gradativa da luta social compõe um elemento da

Europa que está sendo retratada. A despeito do arrefecimento da luta - devido a circunstâncias

de crise econômica e política - os reflexos da Revolução Russa de 1917 e o aprofundamento

das teorias marxistas por uma tomada de consciência por parte da classe trabalhadora, eram

elementos que ganhavam um terreno expressivo no panorama dos embates sociais.

Paralelamente a essas mudanças, a forma de solução dos conflitos vai se alterando. A

classe dos gestores vai inserir-se na topografia deste solo espinhoso de uma maneira bastante

útil, compondo o que se pode designar como tecnocracia fascista. Anteriormente à atuação da

nova tecnocracia, a disputa se dava entre trabalhadores e capitalistas num envolvimento

direto. O corporativismo é o responsável pelas acomodações distintas tecidas posteriormente.

O corporativismo inaugura a possibilidade de que os gestores pudessem dar as cartas

no jogo político e social do Estado fascista. Os gestores apareceriam como terceiro

“desinteressado”, um agente que não pertencia nem diretamente a classe dos capitalistas e

muito menos a classe dos empregados. Por isso azeitava-se a engrenagem capitalista que

poderia assim funcionar mais confortavelmente. O Estado é dito corporativista quando

consegue tomar as reivindicações sociais e resolvê-las de uma forma até então não imaginada.

A cooptação seria a tônica desta estratégia em que, desmobilizando-se a luta social,

conseguia-se atender algumas de suas demandas sem permitir que a lógica tomasse

proporções indesejadas, principalmente para os capitalistas. É de se perguntar: seriam só estes

fatores suficientes para explicar a originalidade da dita tecnocracia existente no fascismo? As

implicações do processo fornecem outras variáveis para compreensão maior do fascismo e

também do panorama político-social dos Estados fascistas em formação na Europa.

Pode-se notar uma correspondência muito interessante entre a posição eqüidistante

dos pólos burguesia e proletariado e a ação dos gestores. De início, pensa-se que ao promover

a continuidade do sistema capitalista, os gestores atuaram sistematicamente em favor da

burguesia e contra os trabalhadores. Pensar historicamente é um desafio que não se contenta

com estas respostas semi-automáticas. Há que se questionar compreensões desta natureza.

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O fato de os gestores estarem posicionados da maneira especificada permitiu-lhes

simultaneamente cooptar a classe trabalhadora e conter a burguesia em seu afã lucrativo. Em

outras palavras, a classe dos gestores constrói o espaço de sua atuação em consonância com as

concepções táticas do próprio nacional-socialismo alemão ou do corporativismo italiano.

Volta-se aqui ao problema delicado da saga unificante, do projeto nacionalizador

com que se deparam os líderes do Estado fascista. Neste sentido, ao atendimento das

demandas sociais, se junta a preparação para um “Estado da Ordem”. Trata-se de um Estado

em que as reivindicações existem e podem até ser atendidas, desde que fixadas no lócus das

instituições. E não apenas isso: no processo de cooptação referido consegue-se notar o

potencial explosivo que adquiririam as massas enquanto futuro sustentáculo do regime.

A probabilidade da revolta parece constantemente contida pela ordem

institucionalizada. Esta, por sua vez, não é mera representante de uma classe capitalista, mas

se torna autônoma e porta realizações peculiares. Este fato acompanha o circuito primordial

de existência do Estado fascista. A ordem não se constrói no esquema da burguesia mais

classe gestora. Isso pode ser verificado se for aplicada um pouco mais de atenção.

É um movimento que está tomando corpo até se tornar um regime. Trata-se de uma

reviravolta que age nas fímbrias da paisagem histórica. Percorrendo as arestas dessa

geometria, continuamente vai se perceber uma complexidade a envolver igreja, partidos

políticos, sindicatos, exército, milícias armadas. Atores imprescindíveis para a permanente

tensão dos eixos da ordem e da revolta que se destaca como item inerente ao Estado fascista.

Novamente aparece aquela posição de eqüidistância observada na classe dos

gestores. Apesar deste caráter original, a figura do líder infalível - o Füher e o Duce - não foi

prescindida. Após a tomada do poder ela se tornaria muito mais evidente. Isso não quer dizer

que não houvesse divergências ou posicionamentos políticos contraditórios na dominação

fascista. Aqui reside a própria diferença entre a tecnocracia fascista e a tecnocracia liberal.

Enquanto a liberal transmuda-se historicamente com a sofisticação de seus aparatos

dominadores recentemente identificados na diluição da autoridade empresarial, a tecnocracia

fascista aprofunda a estatolatria, isto é, o culto à infalibilidade de um líder. Este aspecto não

pode ser entendido se não forem conectados os segmentos sociais, a paisagem do embate

interno do Estado, e os elementos potencialmente revolucionários e reacionários.

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Se o ângulo de apreciação for direcionado à Igreja, podem-se perceber marcas

específicas que diferenciam a Itália da Alemanha. Ora, tanto uma como outra nação, haviam

sido berços importantes da cristandade e, por via de conseqüência a Igreja era uma força

social destacada. Sabe-se da Itália tradicionalmente católica e do território que compunha a

Alemanha muito dele abrangido pelo SIRG (Sacro Império Romano-Germânico).

Uma atenção ao peso social da Igreja ocupa também o estudo da história do

fascismo. Nesta direção, Wilhelm faz questão de destacar:

a) Os eclesiásticos eram considerados funcionários do Estado; b) com base na lista de contribuintes civis, a Igreja tinha o direito de cobrar impostos; c) o Estado garantia o ensino da religião nas escolas primárias; d) A Igreja gozava de ampla liberdade no exercício das suas atividades religiosas, comerciais e industriais (fabricação de livros, cerveja e aguardente), etc. (REICH, 1974 apud WATRIN, 2007, p.111-112)

Nesta parte de sua obra, o autor refere-se ao apoio nazista dado a Igreja. Já havia sido

instalado o governo hitleriano e tal política bem atendia aos intentos iniciais do partido

nazista, desde os anos vinte. Não só não se deveria fazer uma dizimação massiva dos clérigos

- veja-se a Rússia stalinista - como em dados momentos houve até o estímulo observado pelo

autor. O estudioso destaca que a educação tem forte contribuição da Igreja, a futura grande

nação era cimentada também com o apelo do controle da mentalidade, o que não deve ser

desprezado.

Nem a experiência de um certo neopaganismo impediu que essa relação contígua se

definisse. Com efeito, o neopaganismo tentava restaurar uma ordem secular no governo de um

regime que não precisaria tomar as bênçãos nem mesmo de uma instituição tão poderosa

como a Igreja. Sabe-se, porém, que tal instituição não poderia ser totalmente relegada, diga-

se, pela sua influência no centro das questões inerentes à unidade dos agrupamentos sociais.

Na Itália a assinatura de concordata entre a Igreja e o Estado garantiu um raio de

ação também bastante confortável. Assim como na nação alemã, houve entre os italianos uma

abertura para a instituição dos clérigos, os quais não tiveram que enfrentar tantas perseguições

quanto outros grupamentos humanos, a exemplo de judeus e grupos do leste europeu.

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Outro grupo de peso envolvido no palco histórico do surgimento do fascismo foi o

exército. Aliás, uma sistemática de guerra dialoga com a instituição que por excelência lhe

representa que é o exército. Porém, a relação dos corpos militares organizados pelos Estados e

as diretrizes do nacional-socialismo nem sempre é tão facilitada quanto se possa pensar.

Nem sempre os sinais desta matemática funcionam simetricamente numa

correspondência sem atritos. Pelo menos os altos corpos militares estão acostumados a ocupar

posições estratégicas e essa busca de poder denota uma certa disputa que precisa ser

acomodada consoante ocorre em quaisquer espaços onde surgem fricções no poder.

A despeito dos nacos de poder serem almejados pela guarda formada pelos nazistas

alemães e o exército, isto não impediu sua aproximação. De fato, a viabilidade das SS

(Esquadrões de proteção) bem como das SA (Seções de Assalto) só pode ser entendida a

partir do exército. As SS foram as milícias armadas que acabaram servindo de guarda pessoal

para Hitler no governo do Reich. As SA foram milícias privadas que compuseram o que se

pode chamar de ferramenta da revolta nazista. Foram bastante úteis como corpo armado

desligado do exército e pronto a mostrar seu trabalho em ações rápidas a serviço dos nazi.

Esses grupos armados se alimentaram do ideário hierárquico de autoridade e

violência já existente nos exércitos estatais. Estes possuem uma formação militarizada, isto é,

a obediência à hierarquia, a ação armada, a obediência conseguida por meios pacíficos ou não.

Além disso, as milícias revolucionárias na Alemanha e Itália acabaram recebendo apoio com

armamento e até treinamento. Não é difícil perceber este fator uma vez que já se disse serem

tanto as SS quanto as SA grupos que não pertenciam originariamente ao Exército, por sinal

muito utilizado na I Guerra mundial. Daí a necessidade de aclimatação à vida militar.

O papel desempenhado pelos altos comandos após a chegada ao poder foi exercido

pelos SS, num trajeto gradativo onde o exército, enquanto corpo estatal militar, cede lugar à

atuação daqueles grupos armados. Nota-se, nesse particular, novamente um agir tático do

fascismo, colocando-se como terreno em que os atores envolvidos são próximos, mas, sua

proximidade harmoniza-se na medida proporcional em que participam do poder fascista.

Ainda outro segmento implicado na forma de interação promovida pelo fascismo

tem-se nos sindicatos. Já foi destacado que este setor foi importantíssimo na elaboração de

uma política de atendimento a algumas das demandas sociais. Cabe esclarecer aqui apenas

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que este atendimento de demandas via sindicatos cumpria a função de amortecedor da própria

lógica de apropriação capitalista e, simultaneamente, um canal negociador pela via legal.

Os interesses intrinsecamente contraditórios são postos em pauta por meio da

existência do sindicato. Os contatos possíveis ao trabalhador na rede de relações inaugurada

com a existência dos sindicatos produzem novamente a potencialidade da revolta no interior

da ordem fascista. E diz-se “no interior” para denotar algo específico, ou seja, ao

circunscreverem-se as lutas no quadro de institucionalidade, se tem um caráter inovador que

não nega drasticamente a luta figurativizada pelos proletários, mas, a normatiza, também.

Não se deve perder de vista que a Itália pensada na Carta de lavoro previa um

espaço considerável de mobilização desses proletários, segmento importante das massas que

foram trabalhadas pelo partido. O partido é outro segmento significativo no painel da História

do Estado fascista. No capítulo dedicado a falar do quadro político serão tecidos comentários

mais detalhados no tocante à obra dos partidos, sob o ponto de vista das ideologias.

Por hora, cumpre ressaltar sua preponderância, posto que é aí no partido onde se

assentam as diretrizes básicas para os principais modelos mentais a serem adotados. Lógico

que o partido não tece sozinho essas diretrizes, mas, ao construí-las, no conjunto dos demais

pólos envolvidos na lógica fascista (Igreja, exército, milícias, sindicatos), o partido trata de

enunciar aquilo que é tido como promissor para a sociedade que se queria ver construída.

Os posicionamentos do movimento que se tornava regime são encontrados em sua

maioria no programa partidário. Quanto à questão das confissões religiosas, pode-se citar um

trecho do programa do partido nazista a título de exemplificação:

Exigimos liberdade para todas as confissões no Estado, desde que não ameacem sua existência, ou não atentem contra o sentido ético e moral da raça germânica. O partido como tal representa o ponto de vista de um cristianismo saudável sem se ligar confessionalmente a um determinado credo. Ele combate o espírito materialista judeu dentro e fora de nós e está convencido de que um saneamento permanente do nosso povo só pode vir de dentro e com base em interesse coletivo antes do interesse individual. (SZNITER, 1996, p.18)

O trecho do programa partidário destacado pela autora é emblemático no sentido de

trazer à tona a compreensão do partido para anunciar a ação do Estado fascista no tocante à

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religião. O que interessa não é perseguir um credo, ao contrário permitir que ele exista como

símbolo de um relacionamento com o transcendental que é tido como saudável, aceitável.

O que sobressai neste ponto é que a atitude prosseguida em relação ao estado fascista

é justamente aquela já assinalada quando se citou a colaboração dos partidos nazi-fascistas em

relação à Igreja. Evidencia-se assim que o partido não foi uma ferramenta esporádica dos

fascismos; ao contrário, muito contribuiu para sua realimentação através do estabelecimento

de diretivas a serem seguidas pela nação grandiosa que se supunha estar realizando à época.

Como se pode observar, o fascismo é uma temática complexa. Estudá-la apenas

pontuando os acontecimentos tidos como importantes é uma estratégia insuficiente. É preciso

complementar a apresentação dos fatos com a percepção da dinamicidade imposta pela série

de mudanças por que passa a Europa e, sobretudo os países aqui selecionados para estudo.

Uma crise social, dadas as circunstâncias da hiperinflação, reparações de guerra,

descontentamentos com a vitória frustrada (aqui especificamente no caso italiano), etc. E uma

crise especialmente nos blocos de poder, como assinala Ernesto Laclau3, analisando obra de

Poulantzas. Neste ponto, há que se deter no que o autor pretende em sua hipótese de trabalho

para que se situe mais ainda a Europa que viu nascer o fascismo nos primeiros anos do século

passado. A crise vista sob tal ótica é o que se passa, então, a destacar nas linhas seguintes.

A dinamicidade da tênue textura observada entre os diversos segmentos já é parte de

uma demanda com a qual se deparam os grupos da direita liberal que se revitaliza com o

fascismo. Ao enxergar este elemento, o autor destaca a categoria utilizada por Poulantzas:

O método de neutralizar a contradição bloco de poder/povo (…) pode ser sintetizado no nome que este procedimento recebeu na tradição política Italiana do tempo de Gilliotti: transformismo. Por transformismo entendia-se a neutralização política da possível oposição de novos grupos sociais através da cooptação de suas organizações políticas representativas ao bloco de poder. (LACLAU, 1979, p.121)

O autor destaca justamente um ponto tático intrínseco com o qual o fascismo lidou

constantemente. Percebe-se que a leitura marxista é a tônica dos enunciados do mesmo, e ele

observa o surgimento do fascismo por esta via. Nesse passo, vê-se o fascismo surgindo em 3 LACLAU, Ernesto. Política e ideologia na teoria marxista: Capitalismo, fascismo e populismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra: 1979.

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meio às contradições da passagem à fase monopolista do capitalismo. Possíveis elementos de

contestação àquela burguesia em ascensão eram paulatinamente mobilizados não

especificamente para o sistema capitalista, mas, por via reflexa, através de sua neutralização.

A passagem ao capitalismo monopolista - mote do estudo investigado pelo autor

citado - se fez de modo diferente na Itália e na Alemanha. Nesta, ocorrera uma tentativa de

unificação por parte de Bismarck em que se tentava por meio do Zollverein promover a

unificação econômica, sendo uma manobra que abriria um espaço bastante confortável para os

capitalistas, uma vez levada a cabo a proposta. Mas a Alemanha não assistiu isso.

A tão esperada unificação não ocorrera de forma tão completa. A nobreza junker não

se comunicava tão bem com esta ousada maquinaria capitalista e a natureza inacabada deste

capitalismo no momento da passagem à fase monopolista, foi sentida como crise a demandar

a estratégia destacada na citação acima. Na Itália a situação não era menos complexa.

Ao contrário, a sofisticação do capitalismo neste país se fez por meio da meta de

união de setores identificados com a lógica industrialista do capital e outros ainda arraigados

às marcas da nobreza feudal. É no centro dessas contradições que aparecem as práticas de

uma experiência ainda em gestação naquela Europa, ou seja, o Estado fascista.

Em meio a um contexto de crise hegemônica da direita liberal burguesa em nível

continental, a disputa ideológica paralela poderia operar uma mudança completamente

desconfortável para os setores envolvidos com a passagem ao capitalismo monopolista. O

fascismo não deve ser identificado exclusivamente como um regime representativo desses

grupos. Deve ser considerada toda a especificidade com que o regime se posiciona frente aos

diversos segmentos para não estabelecer a confusão do fascismo com o monopólio do capital.

Por outro lado, o fascismo trabalhou a probabilidade de haver uma identificação do

discurso ideológico popular democrático com as demandas por melhores condições de vida

presentes no socialismo. Impedir que o potencial revolucionário popular se acercasse de uma

ideologia capaz de desencadear mudanças estruturais sob o ponto vista político e econômico

foi o desafio vivido pelo fascismo ao concretizar seu ideário de eficácia junto à sociedade.

Nos meios urbanos, a presença de um proletariado mais ou menos organizado

poderia mesmo equacionar as contradições existentes por meio da elaboração do discurso das

demandas populares frente ao bloco de poder. Porém, a luta operada pelo fascismo não se

satisfez em causar uma reviravolta nos núcleos tradicionais de poder, mobilizando inclusive

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as massas. O ciclo fascista se fecha quando há a constatação do desvirtuamento do conteúdo

político existente na chamada luta de classes. Como conseguir isso num palco complexo?

A criação de um sujeito que fosse interpelado sem que se fizesse alusão àquele

conteúdo político foi feita apelando-se à idéia de raça ou a mito da nação proletária. Ambos

são criações analisadas com mais vagar no capítulo dedicado à política como espetáculo. Aqui

apenas se destaca que foram saídas úteis à leniência com que era encarado um regime cujos

efeitos mal se imaginariam nos começos do século repleto de transformações, o século XX.

Neste ponto cabe fazer uma distinção importante para que não se confundam termos.

Já se disse que o nazismo não se confunde com a experiência da Itália, nem mesmo pode ser

encarado como um ponto limite, espécie de paradigma a servir de critério de aferição para os

fascismos que atingiram os países europeus. A diferença não é meramente terminológica. Por

isso, cabe focalizar a origem dos termos concatenando-se isso à atuação dos líderes e ao

quadro de complexidades que vem se delineando ao longo desta parte inicial do trabalho.

O termo fascismo deriva de fascio, feixe. Foi a Itália de Mussolini a primeira nação

onde se pôde observar o uso do termo. É Leandro Konder quem fornece algo sobre o tema:

No século XIX, o termo fascio foi adotado por uniões ou organizações populares, formadas na luta em defesa dos interesses de determinadas comunidades. Na Sicília, de 1891 a 1894, constituírem-se, por exemplo, vários fasci de camponeses, em geral liderados por socialistas, para reivindicar melhores contratos agrários. (KONDER, 1979, p.30)

O termo feixe tem tradição desde os tempos da Roma antiga, por significar

etimologicamente união. Parece muito apropriado ao tema da unificação nacional. Mussolini

o utilizou num momento em que há a adesão ao movimento de entrada na I Guerra mundial.

Seus seguidores seriam identificados a parti dali como os fasci. Baseado nessas considerações

se pode inferir de onde surge o termo fascismo. O termo nazista também pode ser explicado.

A chegada de Hitler a chancelaria da Alemanha em 1933, acontece após todo um

momento de fermentação das idéias que vieram a constituir o teor do partido nazista fundado

em 1919 por Anton Drexler. É após a chefia do partido por Hitler que a agremiação muda o

nome de Partido Operário Alemão para Partido Operário Alemão Nacional Socialista.

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A linha política adotada por tal agremiação deveria ser coadunada com um conjunto

de idéias assimiladas dos socialistas, identificados como sozi. Já que a idéia era identificar-se

programaticamente com os socialistas, os nacional-socialistas foram identificados como nazi.

Como se destacou, essas alterações não eram apenas terminológicas. Elas acompanhavam a

série de mudanças mais profundas. Essas transformações podem ser buscadas também na

articulação dos líderes fascistas diante da necessidade de financiamento dos partidos.

Acompanhar esses esforços é necessário. Neste instante o estudioso tem acesso ao

dado de que houve a transferência de fundos provenientes do capital financeiro representado

pelos donos de empresas e bancos para as contabilidades dos partidos fascistas. Esse fato

isolado não pode servir para maiores inferências. Tem-se que aprofundar a discussão neste

ponto. Até mesmo para entender as fronteiras possíveis entre capitalismo e fascismo.

Sabe-se que os camisas negras italianos não abriram caminho desligados de uma

dimensão partidária. É o partido por sua vez, que se encarrega de produzir o material impresso

para divulgação do propósito político, além de organizar congressos que demandam

atendimento a questões de ordem logística. É o partido que veicula enfim, junto aos populares

e aos estratos sociais mais abastados, uma alternativa a solucionar problemas práticos.

Toda essa atividade demanda um aporte de capital que vai se avolumando à medida

que o partido vai galgando posições no xadrez político de um determinado país.

Proporcionalmente a tomada de poder, o partido de Mussolini vai assistindo o alargamento da

base financiadora com a participação do auxílio de capitalistas de peso naquele país. Podem

ser citados como financiadores do jornal do partido: Anelli, da Fiat, Esterle, da empresa

Edison, Pio Perrone, entre outros, que disponibilizaram parcelas significativas de dinheiro.

Os acólitos do partido nazista também se beneficiaram com auxílios provenientes do

grande capital. Destaca-se de logo que, como em qualquer momento inicial de fundação de

um partido, o grupamento político recém-criado enfrentou dificuldades na obtenção de

grandes somas que fossem capazes de operacionalizar ações de maior vulto. Hitler precisaria

apresentar um projeto econômico capaz de capitanear o apoio de empresários de peso, caso

quisesse mesmo obter mais cadeiras no parlamento e ser o líder inconteste da Alemanha.

Neste sentido é que se torna importante estudar o aspecto do financiamento dos

partidos fascistas. Não se trata de provar o fascismo como agente do capitalismo em

desenvolvimento através da hipótese de crescimento do partido fascista com o capital tomado

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aos grandes capitalistas. Este é um dado que conduz a investigação acerca do rol de contatos

estabelecidos e do grau de aceitabilidade das idéias pronunciadas por aquele grupamento

político. Neste percurso se pode vislumbrar um duplo movimento de obtenção de dinheiro e

do êxito na obtenção de apoio político na teia estratégica urdida pelo partido nazista.

Pelo caráter eminentemente tático explorado nas manobras nazistas sobressai outro

aspecto a causar espécie a maioria dos estudiosos do fascismo. É que nem sempre os

apoiadores iniciais dos partidos fascistas foram os que receberam maiores benesses nos

quadros institucionais após o fim da República de Weimar. De fato, a chegada dos nazistas ao

poder não significou uma correspondência entre apoio político recebido e devolução por meio

do contingenciamento de cargos na política governada pelo partido nacional-socialista.

Ainda assim, o financiamento do partido continua sendo um dado importante para

compreensão do fascismo e da Europa fascista. Veja-se, por exemplo, que o momento em que

Hitler busca apresentar seu partido é um instante importante em que, verificando-se os demais

países da Europa Ocidental, se pode notar um enfraquecimento da direita tradicional e a

derrota de uma política econômica liberal que havia posto os países em crise.

Inicialmente, Hitler tentou conseguir apoio no meio artístico que lhe cercava mais

proximamente. A seguir, sua rede de contatos foi se ampliando. Figuras como Dietrich Eckart,

jornalista e literato, colocou Adolf Hitler entre pessoas mais abastadas e, esses contatos

também o apresentaram a outros setores da burguesia teuta. Segundo Bullock4 um editor de

Munique, chamado Hugo Bruckman foi bastante útil a inserir Hitler nestes meios.

Nestas oportunidades, o chefe político apresentava em privado - e com calma - seus

principais métodos para a Alemanha que pretendia construir. Foi seguindo esta estratégia de

apresentação de seu ideário político que se pôde chegar ao auxílio de um Emil Kirdorf,

magnata do carvão da Região do Ruhr, bem como de um Fritz Thyssen, administrador do

cartel do aço. Tais dados são buscados tanto nos arquivos das grandes empresas como nos

anais políticos da época. Claro que nem sempre estes arquivos são abertos facilmente.

Após 1933, os ecos de uma Itália que havia saído derrotada da guerra, mas que se

recuperava industrialmente, soavam bem agradavelmente naqueles grupos políticos. As alas

simpatizantes dos sozi, dentro da Alemanha não deixaram de explorar este argumento na sua

4 BULLOCK, Alan. Hitler: a study in tyranny. Harmondsworth: Penguin, 1972.

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batalha imediata que era angariar recursos e adesões para a causa que julgavam ser a mais

adequada para um futuro promissor, digno da Alemanha, berço do puro sangue nórdico.

A operação da busca por financiamento, volte-se a ressaltar, era paralela a uma

situação potencialmente revolucionária. Neste aspecto é preciso destacar o descontentamento

no meio operário e nos círculos militares a ser observado daqui em diante neste trabalho.

O momento histórico ao qual é preciso voltar é o da I Guerra mundial. Conforme já

foi destacado, a Europa vivia nos primeiros anos do século XX uma espécie de “paz armada”.

A ausência de conflitos oficialmente declarados, não escondia a existência de confrontos

existentes na política imperialista empreendida pelos países europeus os quais se mantinham

numa situação de ofensiva para conseguirem maiores porções territoriais que pudessem servir

de válvula de escape para transferência de capitais e formação de áreas de influência.

A deflagração do conflito em 1914 mobilizou esforços humanos os mais diversos.

Pessoas que eram militares de carreira, além de muitos dos populares que faziam parte da

massa trabalhadora urbana e até mesmo pessoas que viviam no meio rural. Ao mesmo tempo,

já nos estertores do conflito, a situação no Leste europeu desafiava as lideranças político-

econômicas do continente. Era a guerra civil entre brancos e vermelhos em curso na Rússia.

Não bastasse a situação de descontentamento agudo daquelas massas trabalhadoras

ocupantes das linhas de combate, a isto se juntavam os levantes de militares os quais

complicavam a situação do conflito envolvendo brancos e vermelhos na Rússia. Sabe-se que a

guerra oferecia por meio de um incremento na produção industrial a melhoria das

possibilidades econômicas em médio prazo. E em longo prazo, o conflito deveria responder

positivamente às demandas da corrida imperialista. Só que há sempre um ou outro lado que

não se contente com os resultados obtidos e funcione como incômodo “calcanhar de Aquiles”.

Isso só explica parte da problemática. Sabe-se que os trabalhadores no campo

reivindicavam a urgente reforma-agrária. A guerra civil russa que envolvera nações ocidentais

capitalistas dando claro apoio aos brancos também assistia a desmobilização de soldados

amotinados, desobedecendo a ordens de superiores hierárquicos e na Europa em guerra, os

soldados alemães engrossavam as fileiras de combatentes apoiadores das greves maciças de

trabalhadores urbanas e movimentos de pessoas do meio rural desejosas de melhorais.

Pelo que se vê, a questão agrária, o descontentamento militar dos soldados

envolvidos no conflito mundial e na guerra civil russa, compunham parte do afloramento de

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fissões que manifestavam a situação crítica em que se encontrava o continente Europeu.

Como exemplificação de um episódio pertencente a este momento específico entre 1914 e

1921, pode-se destacar a subversão de marinheiros franceses que lutavam contra o exército

vermelho da guerra civil russa e atuavam no mar Negro. Estes marinheiros colocaram

bandeiras vermelhas em seus navios, como sinal de sua recusa em continuar lutando numa

causa que não viam mais razão em continuar, dadas os autoritarismos a que eram submetidos.

Esses fatores, que normalmente são analisados separadamente, precisam ser

conectados. A dinâmica que os rodeia não é apenas temporal. A história européia dessa época

é constituída de todos esses elementos. Os descontentamentos existentes no interior dos

exércitos italianos após o fim da I Guerra Mundial foram resgatados nos discursos de

Mussolini e também nas formulações teóricas mais sofisticadas encontradas pelos estudiosos

e ideólogos da direita liberal como marcas traumáticas de um país atraiçoado na guerra.

Enquanto isso, a Alemanha se via às voltas com um armistício que lhe atribuíra toda

a responsabilidade pela guerra. A perda de territórios e a obrigação em desmilitarizar-se eram

imposições cujo peso pendia negativamente no sentido de criar um movimento muito bem

explorado pelos líderes nazistas que foi o sentimento de revanchismo latente naquele país.

Não se está aqui a demarcar todos os pontos de instabilidade existentes na Europa

para com isso querer incluí-los na mesma lógica que desencadeou o fascismo por mera

estratégia de narrativa. Todavia, não se pode prescindir de incursionar pelas implicações

envolvidas no conflito mundial e na guerra civil russa porque nestes dois fatos resgatam-se

aspectos que participaram dos elementos que estiveram presentes na ideologia fascista.

Entre esses fatores: a possibilidade do espírito bélico como diluidor de diferenças de

classes sociais, o espírito de violência como porta-voz de anseios patrióticos, e a busca por

posições geopolíticas condizentes com a história do país, entre outros elementos que ficarão

mais clarificados na discussão envolvendo partidos políticos, suas orientações e as viragens

ideológicas ocorridas conforme o momento vivido pelos agentes históricos implicados.

Pelo teor das complexidades que se tentou inventariar apenas neste primeiro capítulo,

se tem uma noção aproximada da dificuldade de se caracterizar o fascismo, ou o momento

histórico dos fascismos. Tal dificuldade não foi obstáculo para lição concisa de Leandro

Konder, para quem o fascismo pode ser acompanhado compreendendo-se que:

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Seu crescimento num país pressupõe condições históricas especiais, pressupõe uma preparação reacionária que tenha sido capaz de minar as bases das forças potencialmente antifascistas (enfraquecendo-lhes a influência junto às massas); e pressupõe também (…) a existência do capital financeiro. (KONDER, 1979, p.21)

Como destaca este autor, o fascismo não pode ser compreendido historicamente se

não forem percebidas as condições especiais por ele requeridas. O fato do descolamento da

influência das camadas capazes de efetivar uma frenagem no avanço do fascismo junto às

massas foi um elemento que imprimiu a eficácia social do movimento e também a segurança

de que o sistema capitalista não seria estruturalmente alterado naqueles tempos.

O autoritarismo foi característica verificada em outros momentos da História. E não

só o autoritarismo fez parte tanto do fascismo como de outros momentos da História mundial.

As clivagens sociais presentes no fascismo foram usadas por Marx como ponto de explicação

do próprio devir humano. Enfim diversos aspectos presentes no fascismo podem ser

observados noutros instantes da aventura humana localizada em momentos outros da História.

Mais uma vez chame-se atenção: é preciso abordar o fascismo levando-se em

consideração suas especificidades. As conclusões extraídas de uma análise que tem os

caracteres geopolíticos e sociais em foco tornam o fascismo uma temática interessante de

estudo. Até para que não sejam cometidos anacronismos e confusões epistemológicas.

De fato, a desatenção a estas questões leva a tocar num último aspecto ainda neste

capítulo. Trata-se da utilização indevida do termo totalitarismo para caracterizar toda e

qualquer experiência fascista, sem levar em conta as especificidades de cada país. Neste ponto

cabe refutar essa postura que pode comprometer o caráter heurístico da explicação e promove

uma confusão entre o fascismo e a política stalinista aplicada no Leste europeu.

A tentativa de inserir o termo totalitarismo foi empregada primeiramente por Hannah

Arendt5. Ao analisar os regimes fascista e stalinista, a autora utiliza-se da categoria

totalitarismo tentando caracterizar a veracidade de uma cena em que as sociedades analisadas

eram supostamente controladas de maneira total pelos instrumentos repressores do Estado.

Logicamente não se pode negar o valor metodológico do uso deste termo. Mas,

devem-se fazer as devidas reparações a fim de que não se defenda uma identidade tão

5 ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo: anti-semitismo, imperialismo, totalitarismo. São Paulo: Cia. Das Letras, 1991.

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inflexível entre paisagens históricas distintas. Essa crítica já foi empreendida com o escopo de

destacar que houve contestações ou instabilidades dentro das sociedades que viveram o

fascismo, o que compromete a utilização do termo totalitarismo como foi utilizado

inicialmente na análise que se está referindo.

Por outro lado, destaca-se que não se pode negar completamente o uso da política

dos Estados fascistas que muito fizeram a fim de manter sob um grau agudo de controle os

segmentos da sociedade. Neste sentido, ressalta-se a assertiva segundo a qual:

Independentemente do rótulo, existe nos regimes fascistas, determinada característica que necessita de descrição teórica. Trata-se exatamente desta tendência do Estado fascista de tentar controlar, da maneira mais ampla possível (idealmente de modo total) sua sociedade, evitando diversas formas de discordâncias, pluralismo ideológico, comportamento desviante, etc. (SEGRILLO, 2006, p. 5)

Muito bem utilizada a assertiva do autor. Ela nos faz perceber que a despeito da

vontade de controle total da vida das pessoas, o fascismo teve que confrontar sempre

discordâncias e, inclusive apelar para formas de legitimação que tornassem esse desígnio mais

fácil. Por isso, o acerto da palavra tentativa. Nem sempre a vontade de controle sobre a

imprensa, religião, política e demais esferas da vida social daquelas nações, logrou êxito.

Os horrores da violência aplicada nos campos de concentração fizeram parte

posteriormente deste eterno embate entre o necessário controle e suas reais possibilidades de

sucesso. O laboratório da desgraça humana que foi a experiência daqueles campos, dava um

exemplo de uma violência que extrapolara seus intentos iniciais em controlar todos.

Esse mergulho do Estado na vida social tenta então seguir a lógica de interferência

na vida cotidiana. O ensaio foi abafar quaisquer movimentos que viessem de encontro à

ordem fascista ou que tentassem opor argumentos contrários ao controle estatal. Além disso,

tentou-se efetivar o domínio ideológico, buscando a manutenção da tática de controle.

Isto não quer dizer que os fascistas não dialogaram com correntes ideológicas

diversificadas. O movimento que buscou mobilizar as massas foi também capaz de seduzir

setores do capitalismo com suas propostas de mudança, dentro de uma ordem que não

radicalizaria na direção de reviravoltas estruturais no sistema econômico. Foi ainda este, que

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transplantou muitos dos temas do socialismo como parte de um programa de atendimento a

demandas sociais, simultâneo a uma estratégia de auto-referenciação.

Quando o fascismo dialogava com esferas aparentemente tão díspares, não buscava

mais que direcionar as atenções para sua lógica própria: a lógica do controle. Neste sentido é

especialmente importante analisar este quadro de ensaios ideológicos operado pelo fascismo,

tentando perceber suas nuances em relação aos partidos políticos e movimentos sociais.

2. CALEIDOSCÓPIO DE IDÉIAS: contatos entre ideologias no Estado fascista

A continuidade dos estudos sobre o Estado fascista tem contribuído para a busca de

uma narrativa mais centrada na inserção dos sujeitos imersos no fascismo. Estes têm uma

importância outrora evitada em nome das explicações macro-históricas. Neste caminho, abre-

se o horizonte da discussão para a importância do quadro ideológico presente no fascismo.

As hipóteses do debate referentes à diplomacia da política internacional coexistem

agora com a preocupação com a tessitura interna do fascismo. Neste sentido, estuda-se aqui a

principiologia das principais agremiações políticas existentes no fascismo e seus impactos nos

movimentos sociais, a partir do destaque para a ideologia como ponto programático

significativo. A contextualização inicial do fascismo se completa com esta pesquisa

ideológica. E ao objetivá-la, o estudioso depara-se com uma rede de mitos criada no fascismo.

Como foco principal destacam-se dois grandes blocos digladiando-se na Itália e na

Alemanha nas primeiras décadas do século XX. Um que propugnava pela revolução

socialista, tida como uma etapa a ser implementada em nível internacional. O outro,

pretendendo uma revolução nos limites nacionais, através do restabelecimento do poder

nacional e a eliminação dos inimigos da nação. Este grupo de idéias animava as agremiações

políticas em disputa, tanto dentro como fora dos limites dos estados-nações.

Ao se ver estes duelos ideológicos pode-se pensar desavisadamente que havia uma

separação bem definida entre partidos e uma identificação clara entre as idéias defendidas e os

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partidos políticos, bem como uma sintonia completa entre os pensamentos predominantes e as

pessoas participantes destes partidos. Admitir tal identificação pode comprometer a análise da

complexidade interna do fascismo. Preferível admitir a argumentação defendida por outro

estudioso marxista que busca compreender o fascismo. Dê-se a palavra a Laclau:

Aceitar que os elementos ideológicos considerados isoladamente não têm uma conotação de classes necessária e que esta conotação é apenas o resultado da articulação daqueles elementos em um discurso ideológico concreto. Isto significa que a precondição para analisar a natureza de classe de uma ideologia é conduzir a pesquisa através a daquilo que constitui a unidade distintiva de um discurso ideológico. (LACLAU, 1979, p. 105)

Esta é a premissa metodológica adotada pelo autor. Uma via bastante plausível. De

fato, o discurso ideológico, na ótica aqui definida, não é encarado como uma entificação,

como se ele existisse anteriormente aos próprios enunciadores. É preciso esclarecer, como faz

Ernesto Laclau, que se deve preferir uma não identificação rigorosa entre os elementos do

discurso ideológico e as conotações de classe. Assim, buscam-se outras possíveis variáveis.

Posto isso, o estudioso está mais apto a não se enredar na teia ideológica verificada

no fascismo. Pode ser uma armadilha encarar um discurso ideológico como artefato político

usado única e exclusivamente por um determinado grupo político. Até porque o entendimento

da presente pesquisa é o de que foi justamente a multiplicidade de aproximações e

reorganizações dos paradigmas ideológicos, uma das mais características formas tomadas pelo

fascismo. Neste ponto cabe encontrar um ponto de contato significativo entre os partidos

políticos e perceber as reviravoltas de discursos não como anomalia, mas como peculiaridade.

Este quebra-cabeça não pode ser satisfatoriamente destrinchado se não se mergulhar

nas filigranas da sociedade italiana e alemã. Esta penetração conduz a leitura para o tabuleiro

partidário e mesmo para os movimentos sociais existentes nesses países abalados pela crise

apresentada anteriormente, os quais buscavam sempre se reconstruir dessa crise. Após a busca

das combinações desses elementos, caminha-se para a captura mais assentada dos seus

pressupostos e mitificações ideológicas, e a maneira como essas criações foram manejadas.

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2.1 Itália e Alemanha: partidos políticos e trincheiras de batalha no Estado fascista

A Itália que viu Mussolini chegar ao poder, foi uma nação que assistira vários

momentos significativos anteriores a marcha dos camisas negras até Roma. Os resquícios de

uma sociedade infestada por insatisfações, ainda sob os ecos da grande guerra, faziam-se

presentes na topografia político-social italiana. Pode-se identificar aqui uma verdadeira

batalha em que o poder liberal parlamentarista conduzia-se num equilíbrio tenso.

Nessa trincheira, houve progressiva ampliação de movimentos de base social

alicerçados nas massas. Uma abertura gradativa que foi fruto tanto da luta de manutenção do

poder por parte dos liberais, como do quadro de forçosas mudanças na relação entre o norte

industrial e o sul agrícola que compunham o território da Itália. Os choques advindos de uma

guerra de mega proporções mergulharam a jovem nação Italiana numa situação sui generis.

A burguesia industrial nortista via com bons olhos uma sociedade economicamente

organizada para a realidade bélica. Os lucros dos mesmos aumentavam à medida que a

demanda produtiva crescia e os quadros das empresas pediam mais funcionários para atender

aos imperativos das linhas de combate tanto italianas como dos seus aliados. Esta, todavia é

apenas uma face da moeda. Ao lado disso, ao sul da península, a realidade era outra.

A concentração de um dinamismo econômico impulsionado no norte contrastava-se

com as contradições do sul rural que testemunhava a decadência de uma economia

concentradora de riquezas. A preparação de uma fase política onde a participação popular

afigurava-se cada vez maior era refletida no surgimento de novas rubricas partidárias e,

juntamente com elas, proposições diferenciadas. Como destaca estudioso do tema:

Neste aumento do corpo eleitoral, encontramos uma das razões da transformação da vida política da Itália do pós-guerra quando comparada ao período imediatamente posterior à unificação, (…) este alargamento do sufrágio veio a contribuir não só para a formação de novos partidos, como o Popular e o Nacional Fascista, mas, também, para as mudanças programáticas dos já existentes: o Liberal e o Socialista. (CARMO, 1999, p.35)

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Este autor ressalta que simultaneamente ao aumento do número de eleitores, houve o

surgimento de novas propostas político-partidárias. Além disso, ele enxerga as mudanças

programáticas no seio dos partidos. A nova conformação política espelhava problemas até no

Norte, onde o crescimento do parque industrial eliminou os pequenos negócios a par do

empobrecimento de setores da população. Frente a essa ambiência nova, o Partido Liberal

propôs-se a buscar alternativas, uma vez que até as eleições de 1919, não defrontara-se com

uma disputa que pendesse para o lado do Partido Popular nas cadeiras no Parlamento.

A saída encetada pelo Partido Liberal foi a busca de medidas cosméticas que

passavam pela renovação institucional. Em outras palavras, o Partido Liberal não propugnava

uma mudança radicalizante. Ao contrário, tentava uma reestruturação destacada por outro

estudioso do tema, assim: “Nitti dava continuidade à política de fazer concessões a

determinados grupos com a intenção de corrompê-los, mas procurava ampliar esta política,

procurava nela incluir forças mais avançadas”.(TOGLIATTI, 1978, p.16)

O autor destaca aqui o governo de Francesco Nitti que foi o primeiro lance dos

liberais em centrifugar as mudanças que atormentavam a seqüência política até então vigente.

Mas o mesmo autor6 esquadrinha um segundo momento que foi o governo de Giovanni

Giolliti. Aqui a medida tomada foi mero reconhecimento oficial das organizações sindicais já

organizadas, além da ampliação do sufrágio universal na via democratizante que o liberalismo

italiano tentava imprimir com o fim de levar a cabo a tarefa de continuar dando às cartas.

Mussolini, por sua vez, organizava sub-repticiamente uma outra frente: o chamado

Partido Fascista. Sua obra caminhou pela inserção da juventude nos chamados fasci di

combattimento e nos squadri. Foi através destes movimentos que tomava corpo o que viria a

ser o Partido liderado por Benitto Mussolini. Eram grupos constituídos de antigos

combatentes e jovens ligados a vanguarda artística do futurismo. Quiçá o embrião da política

de massas mais tarde posta em ação no governo fascista já estava sendo formatado aqui.

O momento em que isso ocorria era paralelo ao já destacado pronunciar de formas de

participação popular que confrontavam o parlamentarismo liberal. Tanto o Partido Socialista

Italiano (PSI) como o Partido Popular Italiano (PPI) introduziram esses aspectos distintivos. O

primeiro, com a organização dos sindicatos e associações e o segundo através de organizações

6 TOGLIATTI, P. Lições sobre o fascismo. São Paulo: Ed. Ciências Humanas, 1978.

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de caráter assistencial. A movimentação de Mussolini em 1920 vai ser tentar atrair a ala

socialista para um governo em que houvesse a colaboração desta na reconstrução do país.

Os enfrentamentos ideológicos diante das acomodações por que passava a Itália

extravasaram as enunciações políticas na direção do que se pretendia como modelo para a

nação futura. Em torno desses debates, os partidos que outrora figuraram como aliados no

combate ao liberalismo italiano, diferenciavam-se no que dizia respeito a outros pontos, como

por exemplo, a organização do sistema educacional a ser implementado nacionalmente.

O circuito ideológico em que ocorre a intervenção dos partidos políticos é

caracterizado por este jogo de encontros e separações. A questão educacional parece bastante

emblemática da comunicação fluida dos esteios ideológicos. No âmbito de uma regeneração

moral da Itália, os liberais formatavam a sua visão do que seria a boa educação naquele país.

Os liberais julgam ser a união nacional possível através deste programa educacional

gerenciado pelo Estado. Já para o PPI a escola teria que ter a direção da Igreja, com o

magistério sobre o espírito do povo italiano. A educação livre seria aquela que não sofresse a

interferência estatal. A função da escola na Itália não animou apenas esses dois partidos. A

partir deste debate, o PSI e o Partido Fascista também discutiram e propuseram dentro de seus

moldes ideológicos aquilo que poderia ser a melhor alternativa para o controle educacional. O

debate sobre educação servia de pano de fundo às disputas interpartidárias do pós-guerra.

O Partido Socialista, por exemplo, pugnava por uma educação que resguardasse o

posto vanguardístico reservado a classe operária. É esta função de direção que os socialistas

atribuíam ao operariado que circundou a ideação educacional socialista. O Partido Fascista,

por seu turno, buscou uma projeção distinta. A sociedade formatada para o anseio nacionalista

do fascismo buscou uma elaboração educacional específica e precursora.

O Partido Fascista, que aparecera aos olhos dos italianos em meio aos duelos e

debates do soerguimento de uma nação em mudança (tanto pela guerra como pelas

implicações do industrialismo), tentou atingir, no debate sobre a escola, não só uma

alternativa para o problema educacional como um direcionamento do ideário nacionalista.

Neste afã, a nação italiana teria que lutar com as armas de que dispunha. Segundo a visão do

Partido Fascista, tais armas eram a economia baseada no industrialismo e uma educação que

plasmasse consciências em volta de ideais como o patriotismo, o homem digno de sua pátria

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por sua valentia e virilidade, um homem capaz porque industrioso e competente do ponto de

vista técnico. Mais do que um cidadão, um servidor da nação sob a égide do industrialismo.

O projeto partidário não parava por aqui. Um aspecto da ideologia fascista que o

aproximava do Partido Socialista era a intermediação com as massas. Tangenciando conflitos

existentes entre patrões e empregados, os fascistas acabaram por reconhecer nos problemas

envolvendo as massas, a matéria-prima para o seu programa político. Claro que o PSI e o

Partido Fascista tiravam conclusões distintas sobre como viam a mediação que as massas

exerceriam em seus programas de governo. Entretanto, ambos viam nas massas o ponto de

partida para criação de uma nova Itália. Se no corporativismo fascista o partido se comunica

com todos indistintamente e com cada um particularmente, sem que isso significasse uma

mudança estrutural em termos estatais, no socialismo as massas eram o ator revolucionário.

Por esta concepção, a educação no olhar do PSI deveria ser transformadora. Não

bastava que a educação fosse acessível a todos, mas que a educação pudesse fazer parte dos

locais freqüentados pelos educandos. Desse modo, a educação revolucionária seria possível

através da fábrica, lugar de encontro das massas trabalhadoras. Segundo Gramsci, um dos

ideólogos do PSI, analisado por estudioso do tema: “A fábrica é entendida, nesse período,

como o germe do futuro Estado operário, na medida em que é a célula dos Conselhos de

Fábrica” (Ibid, p. 43). Aqui, o ponto em que a educação das massas distingue o PSI do Partido

Fascista. Este vê não apenas na escola o futuro nacional, mas nas corporações. Isto tudo,

dentro da visão de negociação e não de conflito presente no ideário fascista de nação.

Um dos defensores desse entendimento, que fora posteriormente Ministro da

Educação do governo Fascista, foi Emílio Gentile. Para ele a educação teria que formar uma

classe dirigente, oriunda do aprimoramento anterior das massas. Conforme o próprio Gentile:

(…) Por isso, a política de massa fascista teve uma intrínseca atitude pedagógica voltada à socialização das idéias e os comportamentos da massa segundo os próprios “valores” (…) esse posicionamento em relação à política às massas torna-se explícito e consciente, à medida que o fascismo desenvolvia a sua ideologia e a sua organização, e esteve na origem de grande parte das manifestações do fascismo no poder. (GENTILE, 1988, p. 31)

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Este autor, que esteve envolvido no próprio governo fascista, acentua que o partido

fascista não deixou de atentar para o controle das massas, seus valores seriam capturados pelo

partido. A potencialização desse trabalho contribuiria para a criação da idéia de nação coesa.

O jogo político entre os partidos na Alemanha dos inícios do século XX, também não

foi menos intenso. O NSDAP (Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães), o

KPD (Partido Comunista Alemão) e o SPD (Partido Social Democrata Alemão) ocuparam

posições importantes na correlação de forças produzida no fascismo. Conforme os tons que

davam as cores dos discursos políticos de cada grupo, são alcançados resultados

diferenciados. Este conjunto de enunciações provoca uma aproximação interpartidária em

torno do prisma nacionalista, como também fissões internas aos partidos e distanciamentos,

conforme se propugnasse por uma revolução internacionalista ou um itinerário de resolução

dos problemas internos, para a seguir, se pensar em extrapolar as fronteiras nacionais.

Interessante, no caso alemão, destacar as divisões internas na esquerda alemã no que

dizia respeito em como encarar o nascente movimento nacional-socialista. Neste quesito, o

KPD e o SPD muitas vezes produziram concepções ideológicas que os distanciavam enquanto

repositórios da política dita de esquerda. Além disso, o posicionamento da esquerda em

relação ao movimento fascista provocou divisões até dentro do próprio partido comunista.

O primeiro aspecto dos choques entre KPD e SPD só pode ser devidamente abordado

se forem consideradas as ocasiões de flerte entre essas facções de esquerda e o nacional

socialismo do NSDAP. O segundo tópico, o das divisões do partido comunista, será mais

adiante detalhado. Por hora vejam-se as aventuras da social-democracia e do comunismo.

A social-democracia alemã adquire uma feição mais nítida numa elaboração de

Robert Michels. Tratava-se de um exercício em que o citado estudioso tentava analisar o

modelo de burocracia webberiano, para aplicá-lo ao SPD e perceber suas nuances. O autor

observou o tom elitista presente naquela modelagem institucional. Todavia, não conseguiu

sair desta constatação e produzir uma crítica do modelo estrutural do partido. O caráter

burocrático do partido o acompanhou muito proximamente ao longo de sua existência, o que

fazia muitos dos adeptos do comunismo defensores do ataque a social-democracia, entendida

na visão do KPD, como partido social-fascista. Por isso um traidor a ser combatido.

Por via reflexa, o NSDAP avolumava essa querela. A pavimentação de uma via entre

o KPD e o Partido Nacional-socialista se viabilizava conforme a atração entre alas da

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esquerda revolucionária do Partido Comunista e alas da direita radical populista do NSDAP.

Neste diapasão, a social-democracia sofria ataques: por um lado, do partido comunista e, por

outro, do próprio partido nacional-socialista, sendo as alas em aproximação do KPD e do

próprio NSDAP, responsáveis por boa parte desses ataques perpetrados contra o SPD.

O paradoxo da divisão entre partidos de esquerda, refletia, por exemplo, situações

internas no partido comunista. Em começos dos anos vinte, sobem à direção do partido

comunista Ruth Fischer e Arendi Maslow.7 Estes líderes defendiam que o KPD viesse a

pautar sua trajetória na direção de uma abertura cada vez maior para a ala da direita radical do

NSDAP. Foram secundados por diversos membros do partido e no entendimento deles a

estratégia a ser adotada incluía até mesmo a defesa do anti-semitismo da direita radical.

Por que esta operação tão inusitada? Pode-se explicá-la por dois caminhos. Primeiro:

a proximidade de tomada de poder dos nazistas levava ao entendimento de que em vez de se

preferir a ética reformista dos social-democratas, se tendesse a apoiar mudanças

possivelmente mais radicais que, através de um governo nazista, apressariam a revolução

socialista. Segundo: a subida ao poder de líderes que aceitavam inclusive o anti-semitismo na

sintaxe de uma aproximação com a direita radical, significou o distanciamento cada vez mais

acentuado da posição de uma possível frente de esquerda contra o nacional-socialismo.

Esta resposta põe em causa o esclarecimento de uma outra matéria que é justamente

a existência ou não desta frente que reunisse KPD e SPD na luta pela revolução socialista

contra o avanço do fascismo, que seria, a princípio, o caminho mais plausível a ser imaginado.

Tradicionalmente o fascismo é apresentado como um baluarte de defesa que as

democracias parlamentaristas tiveram contra o perigo do comunismo soviético. Nesta

interpretação se tem como bastante delineado: partidos de esquerda reunidos lutando contra

partidos de direita. A movimentação anteriormente discorrida indica não ser este o caso.

Isso não quer dizer que não se tentou costurar uma aliança entre os partidos de

esquerda na Alemanha. Antes da chegada de Ruth Fischer, a unidade entre as facções

políticas esquerdistas foi pensada no cerne da viragem de desmobilização e transformação das

forças armadas envolvidas na guerra em 1918-1919 e sua transmutação em exército

revolucionário. A proximidade entre KPD e SPD então passaria por um progressivo percurso

7 Cf. FLECHTHEIM, Ossip. Le Parti Communiste Allemand (KPD) sous la République de Weimar. Paris: Francois Maspero. 1972.

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de afastamento das bases operárias em favor de um comitê representativo dos partidos. Tal

tentativa não lograra sucesso. E é João Bernardo que nos dá essa pista:

Para compreender essas aventuras do comunismo alemão (…) é necessário não esquecer que a política de frente comum com a social-democracia implicava obrigatoriamente uma aceitação genérica do quadro institucional promulgado em Weimar, enquanto uma orientação insurrecional, voltada antes de mais contra o Tratado de Versailles, significava uma recusa do sistema parlamentar e permitia uma abertura às forças políticas de extrema-direita, que se opunham à república pelos mesmos motivos nacionalistas. (BERNARDO, 1998, p. 198)

Este autor esclarece que a aproximação entre o KPD e NSDAP era uma tendência

que se avizinhava muito mais forte do que a ação para unir os partidos de esquerda. Plausível

o argumento do estudioso, quando afirma os passeios do comunismo numa dicotomia. A

possibilidade de unir-se à social-democracia coexistia com as circunstâncias internas da

Alemanha, as quais punham diante do KPD a abertura à direita como alternativa catalisadora

das metas inerentes à revolução socialista e da eliminação das classes sociais.

Ainda, as inépcias do Partido Social-democrata mostraram-se claras quando sua

política socialista de atendimento a anseios populares, não obteve êxito mesmo tendo tido o

populismo do partido a oportunidade de fazer valer seus intentos. Foi o que ocorreu quando

do governo de Kurt Von Schleicher em inícios dos anos trinta. As aventuras políticas deste

personagem em se aproximar do operariado e formar uma base de governo forte poderiam

efetivar uma aceitação mais pacífica do SPD no país. As manobras de Hitler dentro do

NSDAP, mostraram uma força capaz de mobilizar milícias eficientes que muito auxiliariam

na eliminação dos obstáculos que Hitler tinha para chegar à chancelaria do Reich.

No tocante ao nível internacionalista, o SPD adota uma linha cujas pilastras denotam

uma timidez, algo pacifista em demasia para quem pretendia a melhoria das condições de vida

frente ao poderio do sistema capitalista mundial. Em outras palavras a busca de uma

internacionalização passava pela abertura econômica com a formação de mecanismos de

maleabilidade da circulação capitalista. Não se tratava de fincar posição de confronto aberto

ao sistema, mas de encontrar meios em que o funcionamento do sistema convivesse com as

medidas ou intentos de uma sociedade pelo menos próxima da social-democracia.

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Toda essa fragilidade de ligação entre as esquerdas na Alemanha, se refletia dentro

do partido comunista. Aqui se chega ao segundo aspecto anunciado anteriormente: a divisão

interna do partido comunista. Sabe-se que havia uma indefinição no interior do KPD no que

tocava a emitir pontos de vista oficiais em relação ao nascente fascismo.

Em alguns discursos não foi possível perceber qual o posicionamento do KPD

porque não se conseguia extraí-lo das enunciações provenientes das tendências distintas

abrigadas naquele partido. João Bernardo em Labirintos do Fascismo, mostra que alguns

agentes importantes do partido faziam elucubrações que queriam parecer táticas, mas

representaram apenas instantes num trajeto provisório até que se tentasse uma definição.

Tal definição é destacada em Leandro Konder, em sua obra Introdução ao Fascismo,

quando faz referência a G. Dimítrov. Era ele uma das figuras do KPD, que se pronunciou

acerca do fascismo e definiu-o como: “ditadura terrorista aberta dos elementos mais

reacionários, mais chauvinistas e mais imperialistas do capital financeiro” (Ibid. p. 50).

Entretanto, entre as figuras importantes a que alude João Bernardo, está o próprio Dimítrov.

Em momento anterior, a enunciação do mesmo Dimítrov defendia uma idéia que era um tanto

distinta da citada acima: “o maior obstáculo no caminho da revolução proletária é o Partido

Social-Democrata. A nossa única tarefa consiste em destruir a sua influência - e depois disso

lançaremos Hitler com sua escumalha da ralé no lixo da História.”(Ibid, p. 204)

Assim, pode-se perceber uma teia de relações envolvendo os diversos

pronunciamentos da esquerda. Uma reviravolta que não fazia menos que atestar as

circunstâncias em que os agentes se encontravam e as cisões existentes nesses partidos.

Quanto ao Partido Nacional-Socialista, sabe-se que tais divisões também ocorriam.

Neste caso específico, as cisões intrapartidárias obstaculizavam as investidas de captura do

poder por parte de Hitler e seu grupo. Duas alas bem nítidas podem ser distinguidas. Uma

liderada por Adolf Hitler e outra liderada por Otto Strasser. É importante discorrer sobre elas.

A ala liderada por Otto Strasser sintonizada com um nacional-socialismo de matiz

mais populista, disputava com a ala liderada por Adolf Hitler que, pelo menos até 1933,

quando chega à chancelaria do Reich, trabalhava numa linha mais legalista na Alemanha.

Estes grupos diferenciavam-se ainda, quanto a sua relação com bases sociais

distintas. Neste passo, a ala populista do NSDAP alentava o operariado, agitando movimentos

urbanos e trazendo para o cotidiano daqueles considerados “raia miúda” do país, a expectativa

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de que seu grupo pudesse tomar as rédeas do nacional-socialismo e propiciar - caso tomasse o

poder - o acolhimento de uma política direcionada àquela base anteriormente auxiliar.

A secção encabeçada por Adolf Hitler secundava-se pelos grupos de milícias SS e

dialogava com setores do exército, buscando uma ascensão que uma vez no poder mostrou-se

bastante eficiente. Essa ala vitoriosa aplicou um programa eugenista do qual a ala populista

não compartilhava. O ideal de raça na ala vitoriosa do NSDAP foi perseguido. A idéia era

construir uma sociedade de senhores, por isso mesmo constituída dos mais selecionados. O

exército e as milícias funcionavam como amostras onde poderiam ser pinçados os mais aptos

ou treinados para os objetivos que eventualmente precisassem desse tipo de figura.

Ao se mapear um pouco da atuação dos partidos políticos é possível a constatação de

que a vitalidade do fascismo não pode ser conferida a apenas uma sigla partidária. Muito

menos um grupo dentro de um determinado partido. A despeito de na Alemanha e na Itália

terem os grupos liderados por Hitler e Mussolini predominado no governo daqueles países,

não se pode ignorar que houve uma profusão de debates oriundos daqueles partidos cujos

impactos tinham na própria sociedade uma poderosa caixa de ressonância.

Mais que a tomada do poder, este intrincado círculo de grupos políticos conseguiu

uma nova trincheira de batalha. O território partidário não pode ser considerado uma

trincheira comum de combate porque ele foi complementado com uma vigorosa operação

com armas ideológicas que compuseram as coalizões e atritos que toldaram o fascismo.

As próximas páginas tentarão deslindar precisamente estes confrontos existentes nas

ideologias. A variabilidade das ações dos partidos incidiu em nível ideológico num gradativo

estabelecimento de relações entre a esquerda revolucionária e a direita radical. O nacional-

bolchevismo foi resultado deste conjunto de contatos recíprocos entre extremos que à

primeira vista nada tinham em comum. Faz-se necessário tentar compreender estes pontos.

2.2 Ideologia: um laboratório de ensaios para o fascismo

O estudo da atuação dos agentes políticos reunidos nos partidos sinaliza a

possibilidade de uma performance que não era rigorosamente seguida em todos os momentos.

Isso significa que o fascismo foi possível, em boa medida, por meio de um partido pelo qual

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se veiculavam interpelações que serviam para invocar os agentes. Atraí-los a um conjunto de

diretrizes que se destacassem das demais e indicassem uma interação recíproca entre aqueles

que adotassem esta ou aquela ideologia. Cumpre aqui dizer a pauta conceitual do termo.

Adota-se aqui a visão de ideologia presente principalmente em Louis Althusser8. Só

que esta concepção precisa ser matizada, conforme destaca Laclau, estudioso do tema:

(…) o mecanismo da interpelação como constitutivo da ideologia opera do mesmo modo nas ideologias das classes dominantes e nas ideologias revolucionárias (…) Em certos casos a interpelação dos “sujeitos” será a forma disfarçada de realmente obter uma sujeição; em outros, ao contrário, como no Manifesto, assumira a forma de um “slogan” político que conclama a criação de condições para a emancipação dos explorados. (LACLAU, 1979, p. 107)

A expressão do conceito de ideologia preconizada em Louis Althusser, sinaliza para

a formação de um sujeito que se identifica com os demais, pelo compartilhamento de

determinados aspectos da vida que os convence a adotarem comportamentos adequados às

suas histórias e ao seu cotidiano. Esta concepção inicial que confere uma identidade aos

sujeitos, deve ser matizada com a argumentação do autor acima citado. É preciso ir além e

perceber que a ideologia pode também servir de campo onde os próprios trabalhadores

conscientizem-se de uma condição social desfavorável e adotem uma postura crítica a esta.

Em se tratando de estudar o fascismo pode-se perceber que os conteúdos ideológicos

assumiram uma importância ainda maior. Além de passar por estas duas concepções: a inicial

de Louis Althusser e a matização posterior de Laclau, a ideologia no Estado fascista assumiu

papel estrutural tanto na sinergia dos partidos políticos como na criação da coerência interna

do Estado fascista. A ideologia seguiu bem proximamente os passos tomados neste cenário.

Neste primeiro momento, deve-se mencionar a inversão semântica dos termos como

recurso ordinariamente utilizado pelos ideólogos fascistas. Em seus cortes transversais ou

paralelos nos terrenos ideológicos de direita ou de esquerda, a ideologia produzida no

fascismo podia aproximar-se ou afastar-se das demais sem confundir-se com elas; ao

contrário, gerava uma marca própria. Nesta tarefa, o habitual emprego de termos tomados ao

socialismo, por exemplo, serviu à deturpação de algumas de suas categorias de forma a pôr

em realce aqueles pontos que julgavam ser as fraquezas da ideologia de massa do socialismo. 8 ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. Lisboa: Presença, 1974.

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Desse modo, foi que o fascismo adentrou o arsenal ideológico socialista e aí tomou a

categoria do materialismo em oposição ao idealismo fascista. Os ideólogos do fascismo

cuidaram de distorcer de tal forma o materialismo marxista que compunha o arsenal do

socialismo, que ao combatê-lo tinham um termo completamente novo. Tudo como forma de

atração de uma sociedade arrimada em uma utopia que era apresentada como uma panacéia,

se comparado com o materialismo da maneira como era apresentado pelos fascistas.

Por meio desta estratégia, o fascismo identificava o marxismo com uma ideologia

egoísta. Estranha conclusão. Mas não poderia ser diferente uma vez que o termo idealismo

fora deturpado pela oposição com um materialismo desconectado da dimensão histórica. O

materialismo é dialético porque tenta analisar o motor da história com a consideração das

condições materiais que a condicionaram em cada modo de produção vivido pelo homem.

O materialismo na ideologia fascista é não mais que o ornato de um homem

eminentemente egoísta no sentido moral da palavra. Materialista, assim, não é aquele que

analisa a história humana balizado no prisma referido acima. Ao contrário, materialista é

aquele que se contenta com a manutenção e o atendimento das necessidades primárias e

individuais. Em uma palavra: materialista é apenas aquele que está apegado à matéria.

Uma vez que o termo marxista era maculado e representava o oposto do idealismo

fascista, este aparecia como ideologia mais aceitável tendo em vista que buscava não só o

bem-estar “material”. Esta foi uma operação realizada pela ideologia fascista. Mas não foi a

única porque a ela se seguiriam outras não menos elaboradas e até mesmo sedutoras.

Neste sentido, cabe destacar outra criação dos ideólogos fascistas. Entre eles, o

próprio Enrico Corradini. Foi este intelectual que moldou o termo da “nação proletária” para a

Itália dos primeiros anos do século XX. Uma nação que era identificada em separado das

demais e o que lhe reservava o státus digno de apreço era justamente o ser nação proletária.

Trata-se de um binômio em que cada termo tem uma função específica. Corradini foi

um pensador e político defensor do nacionalismo. Ao proferir a sua construção teórica a

respeito desta quimera nacionalista, o intelectual transportava um termo que se referia a uma

classe para falar de um país. A meta subjacente não era outra senão chegar a um resultado

muito bem-vindo nos círculos fascistas: a homogeneização do estudo da conjuntura social. De

fato, se não era mais apenas uma classe a ser identificada como proletária, e sim a nação

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inteira, os conflitos internos da nação italiana deveriam ser solucionados não numa dimensão

classista, mas no terreno mais amplo da luta entre as nações do continente europeu.

Além disso, o que se conseguia era a criação de um sujeito grupal em lugar do

indivíduo carente de emprego e melhores condições para sua vida e de sua família. O

fascismo também trabalharia muito primorosamente a referida substituição do “eu” pelo

“nós”, o indivíduo pelo todo. Não era mais apenas o indivíduo que devia ser chamado

proletário, e sim a nação inteira. E porque esta nação era desta feita a que ocupava a situação

de explorada, era ela mesma a se lançar à conquista de um território digno e aceitável.

Outra inferência que pode ser extraída desta criação do ideólogo italiano, é que por

serem os problemas da nação prioritários em relação às problemáticas individuais, a busca da

solução dos problemas nacionais seria a saída para as demandas dos proletários. Essa solução

não poderia ser outra que não o imperialismo, dada a situação desfavorável no quadro

internacional a que estava relegada a Itália. As diferenças internas entre as classes sociais

deviam ser esquecidas em nome de uma finalidade mais ampla que era exatamente a nação.

Claro que as divergências e antagonismos de classe continuaram a existir. Apesar

disto, a idealização proposta por Enrico Corradini, muito de útil teria até mesmo para que este

intelectual pudesse mais confortavelmente promover as conversações entre extremos políticos

inconciliáveis como a direita radical e a esquerda revolucionária. Firmado numa idéia de

nação ter-se-ia chegado a uma realidade homogênea cujas diferenças não podiam mais

impedir a conciliação de todos em torno do desafio de construir uma pátria para os italianos.

Toda essa preparação ideológica serviria justamente para permitir o consórcio das

alas contraditórias da direita e da esquerda que poderiam causar atritos indesejados já que a

idéia era ensaiar dentro deste laboratório de teorias o diálogo que o regime fascista travaria

com os múltiplos setores da nação italiana. Sim, porque embora teoricamente se admitisse um

país homogêneo, nos bastidores do confronto entre líderes e liderados, teria que haver um

campo mínimo que pudesse ser compartilhado também por aqueles que seriam utilizados na

concretização do ideário imperialista. Neste ponto, é crucial a observação de João Bernardo:

Corradini assumiu as conseqüências políticas que decorriam da junção daqueles dois vocábulos, e nos anos que precederam a primeira guerra mundial, esforçou-se por consolidar uma aliança entre os seus nacionalistas radicais e os sindicalistas revolucionários, que transportasse a luta do proletariado do interior da Itália para o exterior, convertendo uma nação proletária numa nação imperial. (BERNARDO, 1998, p. 169)

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Este autor aponta a forma como foi engendrado o pacto político ao qual aderiram as

massas conduzidas pelo arcabouço ideológico fascista. A elaboração de Corradini surgia

como chamamento daquelas massas a seguirem a uma proposta nacionalista e, a adesão da

classe trabalhadora que era chamada a uma luta internacionalista pela ideologia marxista só

foi possível pela imaginação de um país desafiado pelas demandas da luta imperialista.

O operário passou, assim, de uma peça secundária nas movimentações entre países a

ser uma alavanca chave na engrenagem fascista. Desde que a vitória da Itália na luta entre as

nações dependia do apoio do operariado, nada melhor do que transformar esse setor em

importante agente de aglutinação. A pátria italiana era mais que um conglomerado de pessoas.

Por ser mais que a soma dos grupos sociais, a nação italiana, segundo a concepção

fascista, era um campo profícuo para o fermentar de um caldo ideológico peculiar. Esta

fermentação de idéias pode bem ser metaforizada na imagem de um cientista incansável na

arte de misturar substâncias que apesar de terem conteúdo distinto, podem ser combinadas e,

mesmo sem se confundirem resultam num composto novo, de utilidades até ali impensadas.

Tal combinação tornou mais fácil ao futuro Duce bem como aos nazistas, a tarefa de

atrair a militância já acostumada às quimeras coletivistas. A diferença é que aqui se mudavam

os meios em busca de um fim alvissareiro. Este fim era a conquista da coesão nacional em

prol de um futuro promissor para todos. Os meios inovadores passavam pela reorganização

dos contatos entre as ideologias de esquerda e de direita existentes no país.

Se tradicionalmente esquerda e direita tem uma arena de ação e um grupo a quem

endereçar especificamente seus enunciados, com o fascismo é justamente esse campo que é

alterado. Não que possa se confundir completamente uma ideologia de esquerda com uma

política dirigida pela direita. A despeito de manterem seus antagonismos históricos, os grupos

políticos no fascismo passaram a estabelecer cruzamentos diferenciados em que até mesmo as

divergências serviam para inspirar uma e outra referência ideológica e partidária.

Georges Sorel é outro ideólogo que muito contribuiu para fundamentação ideológica

do fascismo. Ele escreveu a obra Reflexões sobre a violência, que inspirou muito dos ideais

cultuados no fascismo. O título do escrito já é bem sugestivo de sua relação com um regime,

no mínimo, autoritário. Isto porque a violência foi tema recorrente assim que o fascismo se

instalou no governo e ganhou státus de regime. A violência tratava-se de uma ferramenta da

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qual os líderes fascistas não hesitaram em lançar mão quando da necessidade de expurgar

figuras indesejadas.Também utilizada sempre que era necessário garantir a estabilidade de

seus pressupostos, caso eles fossem questionados em vez de serem seguidos incontestemente.

Obviamente, a violência não foi um recurso que os fascistas buscaram implantar

sempre em sua versão de eliminação física. A violência dizia respeito também à postura

ousada daqueles que arrogavam para si o direito de serem os guias da nação. Mas em Sorel

não se quer definir uma violência pura e simples. É necessária uma violência dosada e tática.

Georges Sorel pretendia um sindicalismo revolucionário, que criticasse o sistema da

dominação burocratizada. Esse elitismo dos burocratas muito incomodou o autor. Sorel

escreve sobre a terceira república francesa, mas boa parte do que ele construiu ao criticar a

burocratização dos governos, acabou por via reflexa conduzindo a uma noção de revolução

que muito se concatenava com o tipo de líder com o qual o regime fascista se identificou.

Ainda assim, a organização mínima deveria existir. A reformulação a ser feita tinha

que ser direcionada a evitar que as lideranças ignorassem completamente o poder de

organização que as massas possuíam. Como se disse o tipo de líder revolucionário que a obra

Reflexões sobre a violência anunciou, tinha uma característica especial que se adaptava a

remodelagem da direita. Em se tratando do parlamentarismo liberal vigente no continente

europeu, o distanciamento de uma perspectiva de mudança derivava do próprio elitismo.

Isso significa que o movimento de massas revolucionárias estava sintonizado com a

substituição dos moldes e práticas políticas vigentes. Não se tratava de meramente produzir a

desocupação de postos políticos para apenas trocar os nomes ocupantes das pastas e dos

gabinetes ministeriais. Mais urgente era passar a uma mudança de práticas políticas que só

fazia perpetuar sistemas econômicos e lógicas opressoras, pouco afeitas a transformações.

Neste sentido, cabe destacar um momento em que Georges Sorel deixa bem

transparecer sua ideologia para uma revolução. Dando a palavra ao próprio autor, destaca-se :

Necessita-se muita sutileza, tato e uma calma audácia para conduzir semelhante diplomacia: fazer crer aos operários que se ergue a bandeira da revolução, à burguesia que se põe termo ao perigo que a ameaça, ao país que se representa uma corrente de opinião irresistível. (SOREL, 1936, p. 177)

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Aqui o autor, observa que as transformações que teriam de ser feitas no Estado

italiano, necessitavam de uma ética em que o líder procurasse de uma certa forma dialogar

com as diversidades de setores da sociedade daquele país, fazendo-lhes acreditar que havia

uma conexão direta entre os desejos dos grupos e a sintaxe do regime fascista.

Esta concepção de diálogo ideológico entre grupos até mesmo antagonistas, foi

muito bem explorada no fascismo, se se pensar que este regime lograra êxito na conquista do

poder ao promover aquela interação nova de forças que punha a realidade social na demanda

de um tênue balanceamento entre as forças potencialmente reacionárias, isto é, a ordem, e

aquelas que poderiam desencadear uma mudança mais abrupta, ou seja, a revolta.

O que se realça, nessa direção, é que se a violência representada pela eliminação

física tão sistemática quando se pensa nas operações dos campos de concentração, foi uma

realidade própria do regime fascista, esta violência foi precedida por uma metodologia

específica. Especificamente a violência pede uma política que faz o regime se acercar de seus

alvos. Por outro lado, a conquista do poder solicita do regime que este tente pairar por sobre

os diferentes atores do corpo social. Aqui o distanciamento é promovido por meio de toda

esse trabalho que coloca a ideologia no centro das atuações políticas.

Ao fazer “parecer”, a ideologia ao mesmo tempo em que torna possível a captura da

atenção de atores opostos, não conduz a um rígido entrelaçamento de compromissos. Esta

fluidez do discurso permite que o regime se distancie mesmo aparentando estar aderindo a

este ou aquele anseio de determinados políticos ou movimentos sociais. Por essas marcas se

pode perceber um pouco do quanto a chamada experimentação ideológica se tornou crucial.

Pode-se averiguar isto com mais precisão se for considerada a efetividade do

nacional-bolchevismo. É plausível encarar o fenômeno do nacional-bolchevismo na

contextura do fascismo como um resultado mais sofisticado desta que foi a trajetória fascista

de ensaio e erro no tocante à ideologia. Nas próximas linhas é importante, deter o foco da

pesquisa com a finalidade de esclarecer o que teria representado o nacional-bolchevismo para

a consolidação do regime fascista. Aqui se estará dando mais um passo na investigação dos

partidos políticos, agora dando ênfase para a faceta ideológica que está neles presente.

Já tendo sido postas as condições terminológicas de uma nação proletária desde

1908, com as teses de Corradini, o nacional-bolchevismo funcionou como terreno onde

aquelas idéias iniciais abraçadas pelos nacionalistas radicais da direita, pudessem ser incluídas

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na terminologia dos partidos de esquerda. Essa viragem ideológica pode ser entendida de

forma mais clara, se contextualizada no meio dos acontecimentos de Brest-Litovsk.

Trata-se de um acordo de não-agressão assinado entre Alemanha e Inglaterra em

1918. A hipótese geralmente apresentada para tentar explicar a assinatura deste tratado é a de

que Hitler, tendo em mente a dificuldade de travar uma guerra em duas frentes, já estaria

planejando deflagrar o conflito e não queria preocupar-se, pelo menos inicialmente, com o

leste europeu encabeçado pela Rússia. Contudo, Brest-Litovsk tem um sentido mais amplo.

A defesa de uma perspectiva revolucionária dentro do partido comunista soviético

debatia-se com as novas idéias de Corradini que gradativamente tornavam mais evidente a

rixa entre uma revolução restrita às fronteiras nacionais ou a antiga proposição de uma

revolução que se espalhasse pelo continente, tendo como ponto de partida o operariado.

A perspectiva de uma revolução internacionalista vinha sendo acalentada desde que

os primeiros ensaios da revolução russa foram realizados. A assinatura do acordo teuto-russo

demarcava uma conversão que facilitava a reprodução dos temas socialistas sob um ângulo

especificamente nacional-bolchevista. Dito de um outro modo: os temas do socialismo eram

retomados, mas apenas para que a ideologia nacional-socialista se viabilizasse, ou seja, para

que a revolução que poderia tomar proporções supranacionais, pudesse ser colocada no lugar

de uma rejeição ao capital cosmopolita, na revolta contra o capital externo dentro do país.

Também, pode-se apreciar o nacional-bolchevismo como na fala de João Bernardo:

Tratava-se de uma concepção corrente nos meios da extrema-direita, um fundo ideológico comum às suas várias táticas, e que a extrema-esquerda recuperou em termos próprios. Nada mais natural, então, do que transportar para o âmbito nacional as preocupações sociais (…) e confundir o socialismo com a libertação do país relativamente às cláusulas impostas pelos vencedores. Mediante esta redução da dialética (…) o socialismo cumprir-se-ia na nação quando esta tivesse sido de novo transformada em imperialismo. (BERNARDO, 1998, p. 194)

Este estudioso demonstra que o nacional-bolchevismo não ocupou apenas à direita,

mas conduziu a esquerda a também participar do plano de suprimento das problemáticas

sociais concomitantemente a libertação nacional ante as investidas do capital externo.

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Este ardil de dissolver a luta de classes na luta nacional possibilitou que os lados da

direita radical e da esquerda revolucionária fossem interlocutores na cena nacional-

bolchevista. Os líderes comunistas, assim, tinham o sinal verde para aplicarem uma política

que combinava elementos do nacionalismo e do bolchevismo. O período é o da assinatura do

tratado entre Alemanha e os soviéticos e perdura na luta contra a República de Weimar.

Partindo desta combinação poderia ser implementada também uma política que

representasse aqueles diálogos de extremos radicais. A economia, por exemplo, pôde ser

conduzida baseando-se em pressupostos da NEP (Nova Política Econômica) de Lênin e o

corporativismo da Itália mussoliniana. Uma experimentação bastante original essa que

compunha a ideologia nacional-bolchevista. Todavia, ela viabilizou-se numa conjuntura clara.

Primeiro, todas aquelas dualidades do movimento marxista e, depois as

circunstâncias da República de Weimar bem como da assinatura do Tratado de Brest-Litovsk.

Quanto aos dilemas dos marxistas, não se pode esquecer que havia sempre a dúvida entre

travar uma revolução internacionalista e, ao mesmo tempo, produzir uma teoria que

respondesse aos jogos das ocorrências localizadas dos países. A dificuldade em resolver estes

impasses mostrou-se tanto nas cisões internas do KPD - conforme se destacou - quanto nas

atitudes tomadas pelos líderes daquela agremiação em dialogarem com a direita do NSDAP.

Concomitantemente, a direita radical nacionalista tomou lugar nesta confabulação. A

necessidade de oposição à república de Weimar contribuiu num esforço que aproximou direita

e esquerda, ambas preocupadas em desestabilizar ou mesmo finalizar um governo que

desagradava à direita porque o constitucionalismo e reformismo governante não se

coadunavam com a mudança arrojada que os nacional-socialistas queriam para a Alemanha.

Desagradava à esquerda por manter o quadro das necessidades operárias apenas dentro de

uma institucionalidade que não estava rigorosamente em consonância com o anseio popular.

Além disso, já se destacou a necessidade de convencionar uma não-agressão entre

alemães e soviéticos no limiar de um período em que a Segunda Guerra era uma

possibilidade. Apresentando a situação nestes termos parece que a conversação entre os

setores envolvidos no cenário nacional-bolchevista foi sempre pacífica e tudo teria decorrido

de uma rede de condições propícias para que aqueles grupos díspares repentinamente se

aproximassem. Lógico que alguns dos militantes comunistas poderiam ser contrários às

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premissas do nacionalismo da direita, e também representantes desse nacionalismo não

vissem com bons olhos o atendimento das necessidades básicas dos trabalhadores.

A dificuldade de fazer uma análise de conjuntura, então, fica patente. Todavia,

mesmo com esses ecos contrários cada grupo reforçava-se ao outro e contribuía para que se

tenha a delimitação de suas feições. Eles estavam envolvidos, mas nem por isso se

confundiam. Aqui, recorre-se novamente a uma assertiva fundamental de estudioso do tema:

A ala populista do nazismo só se pôde sustentar enquanto existiu um Partido Comunista que lhe serviu de inimigo, e ao mesmo tempo, de interlocutor. Durante toda a República de Weimar, (…) a classe trabalhadora na Alemanha (…) balançou entre o desejo de aproximar os comunistas de uma social-democracia reformista e cosmopolita, sob o pretexto da unidade das forças de esquerda, e a sedução por fazê-los convergir com a ala populista do nacional-socialismo, invocando o argumento da unidade contra o capital estrangeiro. (BERNARDO, 1998, p. 210)

A assertiva é bastante elucidativa porque faz alusão a alas um tanto simétricas nos

dois partidos. O comunista agitava uma classe trabalhadora que se dividia sob a influência de

um populismo albergado no partido nazista. A convergência de forças de esquerda aparecia

no tom de reformas do SPD e, ainda a divisão dessas forças repelia os partidos esquerdistas

jogando-os num percurso de aproximação com o nacionalismo que havia no NSDAP.

Em nível exemplificativo, o Partido Comunista Alemão mostra a passagem de alguns

representantes políticos que faziam o caminho direto do Partido Nazista para o KPD. Foi o

caso de Richard Scheringer, seu ideário nacionalista não foi abandonado ao sair do partido de

Hitler, por discordar de sua via legalista, para propor transformações antes de instalado no

poder. Desse modo, silenciosamente o comunismo ia abrigando antigos representantes da

direita que uma vez inseridos na esquerda, cuidaram de reproduzir lá os temas que os

inquietavam antes, nos partidos de direita. Assim surgia o nacional-bolchevismo.

Com essa possibilidade de diálogos recíprocos, a partir da direita e da esquerda, aos

trabalhadores era apresentada uma espécie de miragem de um oásis em que havia uma porta

aberta para que os explorados pudessem ter um espaço maior de barganha. Isso porque o tema

nacionalista estava - pelo menos nas teorias - em convivência com a preservação da dignidade

trabalhadora. A chegada de Hitler ao poder, todavia, traria outros temas. Sobretudo o apelo às

massas seria uma forma de buscar energias para uma revolução que o alquebrado

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conservadorismo não poderia construir com seus métodos tradicionais de estabilização

política. Ainda que a empregabilidade aumentasse, a dominação de Hitler não era voltada para

uma emancipação da classe operária, senão para uma expansão da própria nação alemã.

Com a ascensão de Hitler, a política foi bem menos revolucionária do que se creu

quando nos inícios da ideologia nacional-bolchevista. De todo modo, já estavam lançados os

pilares da ideologia do estado fascista. Podia-se diferenciar: “uma atuação política baseada na

classe trabalhadora, mas (…) ao serviço de um nacionalismo agressivo - tínhamos ali os

ingredientes principais do fascismo” (Ibid, p.211). Mesmo antes da chegada do nazismo a seu

estágio consolidado em que funcionou como regime, já se viam divisar estas particularidades.

Um conglomerado de partidos e ideologias sendo esgrimadas como numa batalha.

Aqui se tem um pouco do que foi o regime fascista. Mais do que siglas partidárias

digladiando-se em uma arena, o regime fascista conseguiu produzir realizações específicas

que uniam atuação política dos partidos em igual nível de importância aos testes e

experimentos que tomavam tonalidades ideológicas diferentes em comunicação reflexiva.

Daí poder-se dizer que há partidos políticos como front de batalha e em nível

ideológico uma espécie de caleidoscópio em que se misturam cores chegando-se a resultados

novos em que é possível identificar simultaneamente os tons iniciais e os tons finais

produzidos com estes ajustes. A organicidade do regime fascista vinha mesmo desta

oxigenação que era conseguida com esta multiplicidade de agentes.

Vê-se que este todo complexo não pode ser encarado como tendo sido fruto das

intenções exclusivas de uma insígnia de partido, deste ou daquele movimento social, ou

apenas a ideologia de uma direita em processo de renovação. Não foi apenas isso. Nada

obstante terem sido os partidos e as ideologias componentes importantes, eles sozinhos não

conseguiriam dar sustentabilidade ao estado fascista, se se desconsiderar a interação desses

fatores reunidos. Neste jogo interativo as massas eram alvo importante da política fascista.

Aqui se chega a um novo tipo de inovação do fazer político que o fascismo trouxe à

tona. É a política de comunicação de massas. Tanto a massificação das idéias era importante,

como a criação de uma espécie de espetáculo onde se podia encenar aos assistentes a fim de

chamá-los a participar da comunidade nacional. A perseguição de uma conquista das massas

não foi apenas a luta por atingir o maior número possível de forças que desencadearia uma

gigantesca adesão de energias humanas. O caráter moderno da política fora dos gabinetes

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amarra-se a uma outra faceta de sustentação do estado fascista que complementa a

experimentação ideológica. Aqui se passa a uma abordagem culturalista do fascismo.

3. A POLÍTICA COMO ESPETÁCULO: o deslocamento para uma tática de massas

Até aqui se tentou discutir o fascismo fazendo uso de muito do que o referencial da

teoria marxista fornece aos estudiosos de assuntos como este. Por esse motivo, foi importante

destacar o desempenho dos partidos políticos, sua forma de relacionamento numa situação

crítica no interior do contexto de construção do Estado fascista. A ideologia aparece também

como ferramenta indispensável, espécie de critério de avaliação para entender a contra-

revolução levada a cabo pelo fascismo. Não se tratou de uma revolução aos moldes de

transformação completa da estrutura do Estado, já se disse, foi uma revolução na ordem.

É preciso fazer uma observação. O alvo aqui foi demonstrar que o uso da ideologia

foi preponderante na consolidação do Estado fascista. Em dados momentos a narrativa pode

até ter feito parecer que a ideologia teria funcionado como antecipadora perfeita das ações dos

partidos políticos e essas ações teriam necessariamente desembocado nas práticas do fascismo

enquanto regime de massas. O rigor científico, entretanto, não pode deixar que a explicação

passe aos olhos do leitor de uma maneira tão linearista. Fazem-se assim mais observações.

É preciso dizer que a ideologia norteia muitas ações humanas. Só que junto com o

elemento ideológico a história humana é feita do elemento dinâmico da própria intervenção

do homem que nem sempre é guiada perfeitamente por pressupostos que a ideologia por ele

supostamente seguida tentam indicar. De um outro modo, a ideologia nem sempre antecipa as

ações humanas, mas nem por isso deixa de ser importante analisá-la dentro do jogo político.

Por outro lado, a continuidade dos estudos do fascismo tem posto novos horizontes

na pauta das muitas variáveis sobre o tema que podem ser objeto de estudo. Nessa direção,

devem-se cotejar os contributos da teoria marxista com outros modos de pesquisa da temática.

Uma atividade complementar como esta, conduz às contribuições da História Cultural. É uma

recente possibilidade surgida após o advento da Escola francesa de historiadores: os Annales.

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Os novos estudos da História Cultural lançam seus focos para outros lugares da

averiguação científica. Se o marxismo propõe-se a destacar a relação entre economia,

ideologia e as implicações na realidade histórica, resultantes dessa relação, a história cultural

pretende perceber aspectos mais relacionados ao cotidiano dos sujeitos estudados.

Assim sendo, especificamente ao abordar o fascismo seguindo uma teoria que

busque as contribuições tanto da História Cultural como da marxista, chega-se a uma

complementação de ambas. Neste caso, no estudo do fascismo perfaz a característica que a

História Cultural adentra ao colocar em relevo a importância da realização de grandes

ajuntamentos populares em praça pública, bem como a realização de outros eventos de massa

como festivais de glorificação do regime, desfiles, paradas militares, enfim aqueles momentos

especiais em que era propagandeada uma coesão interna indestrutível no Estado. Por isso se

fará uma abordagem de uma política que pretendia mostrar uma realidade que em tudo se

assemelha a um espetáculo. Assim sendo cabe primeiro ver a coordenação da legitimidade do

regime e a seguir a metodologia empregada para garantir esse funcionamento.

3.1 A imagética do espetáculo: mitos e legitimação do Estado fascista

Conforme se tem afirmado, o regime implantado na Alemanha e na Itália a partir da

chegada dos partidos nazi-fascistas ao poder, foi se re-elaborando. Para acompanhar tal

incremento não se pode prescindir do entendimento de que gradualmente o regime vai se

capilarizando, ganhando terrenos que outros regimes político-sociais até ali não tinham

adentrado. Quer se chamar atenção aqui para o fato da penetração do regime na vida das

pessoas que o viveram. Para que o regime obtivesse sucesso em tal empreendimento, foi

construída uma legitimidade específica cujo detalhamento ocupará estas próximas linhas.

A obtenção de dimensões gigantes para o fascismo fez-se sentir primeiro num lance

útil à obtenção duma receptividade favorável do regime considerando o meio urbano e o meio

rural. Nesse sentido, a primeira faceta criativa do referencial imagético é esta: chegar a uma

atuação política que chamasse os camponeses e os citadinos a participar da arrancada

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expansionista e, ao fazer isto, que se conseguisse impregnar o sonho de uma sociedade de

dominadores. Esta sociedade foi pensada num státus imperialista e, portanto, continental.

O tom heróico e ao mesmo tempo sagrado foi o emblema deste fator de comunicação

do regime com as massas. Este simbolismo deita raízes nas minúcias dos mitos criados e

propalados no regime fascista. O primeiro deles foi o do resgate histórico e biológico da raça

nórdica. Por isso o Estado fascista não se limitou a dirigir-se apenas ao meio urbano. A pureza

do mundo camponês era exaltada como local onde se deveria encontrar também este caráter

de uma sociedade formada pos pessoas selecionadas. A seleção era a marca desta sociedade.

Tendo em vista estas premissas iniciais, o regime defendido por Hitler impetra uma

preferência baseada no sangue nórdico. A existência de um Departamento Central de Raça e

Colonização dos SS foi a medida prática no sentido de conseguir produzir um discurso

laudatório das qualidades da terra e do sujeito camponês através da colaboração de Himmler e

Valter Darré. A triagem baseada no sangue nórdico significou, assim, um elemento de face

militar e camponesa. Militar porque proveio do chefe destacado das milícias SS. E camponês

porque via na qualidade do solo alemão o tom sagrado do investimento a ser conseguido.

Subjacente a essa preocupação estava uma política de eugenia. Essa política

objetivou a valorização da expressão imperialista do estado nazi-fascista não só conquistando

territórios, mas contribuindo para a disseminação do sangue da raça ariana. As palavras do

Füher são sugestivas para compreensão mais acurada deste planejamento do Estado fascista:

Na sua forma final, o Grande Reich Alemão incluirá no interior das suas fronteiras entidades nacionais que desde o princípio se revelam desfavoráveis ao Reich. Só uma formação constituída desta maneira poderá resistir às influências desintegradoras, mesmo em épocas de crise. Uma formação deste tipo – orgulhosa de sua pureza racial.(…). (BERNARDO, 1998 p.699)

O máxime líder do Estado nazista deixa nítido em suas palavras a vontade de tratar

as pessoas submetidas à ordem estatal como receptáculos de um sangue que se propagava ao

longo dos séculos e deveria ser preservado, sob pena de se ter a negativa da perfeição do

regime. Fundamentando o regime nesta raça de senhores foi preciso reinventar aquilo que era

discursivo em um prisma pragmático de afirmação da raça pura. Esta pureza era garantida não

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só pela admissão da infalibilidade dos selecionados portadores daquele sangue. Era avalizada

pela não mistura com sangues de raças inferiores. Aqui se deve deter a análise um tanto mais.

A compreensão hitleriana para salvaguarda da edificação da pureza racial passava

por esta afirmação do “eu,” a partir da negação do “outro”. O eu, identificado como superior,

deve ser protegido em detrimento do outro, tido como inferior. Assim sendo, levando em

consideração as teorias raciais que na ciência do século XIX, enxergaram nos caracteres

físicos os critérios de exame das raças, poderia haver uma seleção de pessoas mais adaptadas.

Essa ordem social propunha então que até pessoas de outros países que tinham

marcas físicas ou intelectuais que pudessem apontar uma ascendência nórdica, desfrutariam

da chance de não ser eliminados. O importante em todo esse ideário era que a raça pudesse

promover a unidade nacional. Aqui se vê que a unidade nacional não se restringiria apenas a

acompanhar as fronteiras geográficas da Alemanha. Era preciso que a ordem de dominação

alcançasse espaços maiores não só sob o ponto de vista da quantidade de pessoas que foram

abrangidas, mas também pela típica exteriorização da conquista até fora da grande Alemanha.

A caracterização deste primeiro mito derivava de uma concepção cultural específica.

No conceito nazi-fascista, a cultura encontra uma aferição diferenciada da que se encontra nos

demais sistemas político-filosóficos. É que em geral a cultura é assimilada como atividade

criadora. A natureza seria transcendida através da edificação cultural do homem que, ao

subjugar as forças que se lhe opõem, conserva um espaço que garante a distinção da

humanidade sobre as demais espécies e acumula conquistas materiais sempre diversificadas.

Quando se trata da legitimação nazi-fascista, ocorre uma inversão de sinais. Isto

significa que em termos de cultura há a redução desta, apenas para a noção de coesão de um

povo. O nórdico ou ariano aparecia no contexto da exaltação heróica da morte nas linhas

combatentes. A cultura assim é vista como criação coletiva em que o indivíduo atomizado,

chega a produtos culturais apenas de modo coletivo e - o que parece mais paradoxal - o

produto cultural é corolário de algo destrutivo como a morte na guerra, o espetáculo maior.

Aqui novamente se pode observar a importância do sangue. Ao entregar-se à guerra

não se importando com as conseqüências possivelmente mortais, o pertencente à raça

escolhida, estaria contribuindo para um combate de uma raça superior cujo sangue teria que

ser conservado também batalhando-se contra as possíveis anomalias ao redor dos arianos.

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Aqui a segunda forma pela qual o regime procurava aparecer qual um arquétipo

cultural não só plausível como digno de ser defendido e consolidado. É o mito da existência

dos infra-homens. O primeiro referencial de imagens buscava admitir a existência de ma raça

superior. Uma melhor abordagem do mesmo, é feita quando se compara com a idéia de uma

civilização composta por homens inferiores. A aceitação de uma raça que se supõe em

posição de superioridade em relação às demais, pressupõe a conclusão lógica da vivência de

raças inferiores. Nessa visão, o nível civilizacional das raças inferiores acompanha sua

condição de inferioridade. Assim, os judeus e os eslavos foram classificados como inferiores.

A coerência interna destas referências, revela-se na atribuição de um nível maior ou

menor de desenvolvimento conforme a raça a que pertencia o indivíduo. Assim chegou-se a

uma hierarquia em que judeus e eslavos foram tidos como inferiores e incapazes de pertencer

à raça superior. Mais do que isso deviam ser alvos da dominação por parte da raça superior

ariana. É preciso detalhar um pouco mais essa hierarquização para se entender o

direcionamento das forças nazistas contra estes personagens. E a razão de ser desta mitologia

possibilita entender a própria eficiência do fascismo enquanto regime em franca consolidação.

Quanto aos judeus, estudioso do tema esclarece com propriedade a questão ao dizer:

Para que a raça superior fizesse triunfar aquela ordem estável e inaugurasse o Reich dos Mil Anos seria necessário aniquilar primeiro a raça privada de espírito de síntese, (…) os subversores que sempre ameaçam as hierarquias com os conflitos. E quem melhor os podia representar senão aquele povo que, há dois mil anos expulso da pátria de origem, se revelara incapaz, tanto de se deixar assimilar pelos Estados que o acolheram, como de fundar um Estado próprio? (BERNARDO, 1998, p. 310)

Nesta afirmativa o autor esclarece que o povo Judeu era tido como ator da

desintegração. Sua História seria a prova de uma gente incapaz de atingir um nível de

organização harmônico com o que se poderia classificar como civilizado. Mesmo tendo sido

espalhado não conseguiu até ali conquistar um Estado próprio, o que denotaria a completa

propensão do povo judeu a uma vida desorganizada. Era o judeu o ícone maior de tudo aquilo

que o regime fascista deveria extirpar na luta pela preservação da raça nórdica.

A marca dos degenerados que deveria ser também eliminada, estava presente entre os

povos eslavos. Hitler observava que era preciso fazer uma cruzada contra o espírito pan-

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eslavista 9: “A nossa missão é impedir que a estepe russa alastre pela Europa. Nada poderá

impedir o combate decisivo entre o espírito alemão e o espírito pan-eslavista, entre a raça e a

massa. É necessário que a hierarquia dos senhores subjugue a multiplicidade dos escravos”.

Nestes termos em que Hitler se expressa, fica bem clara a visão de estabelecer

através da legitimidade do regime nazista uma espécie de barreira de contenção contra o

possível fermentar da idéia de um pan-eslavismo que fosse capaz de congregar em si os povos

de origem eslava sob o mesmo ideário. Mesmo diante de um perigo de organização deste tipo,

o que finaliza as palavras do Füher é a afirmação de que tais povos eslavos não passavam de

uma massa de escravos, o que já denota a história a eles relegada nesses moldes.

Para a raça de escravos só restaria a prevalência do domínio do exército de senhores

sobre eles. Em contrapartida, ao se observar essas imagens que associavam povos inferiores e

superiores, conforme a raça a que pertenciam, ou seja, consoante a potencialidade de seus

traços biológicos, deve-se destacar um ponto específico da discussão. Afinal, a construção do

ideário de apreciação dos povos numa dimensão biológica, sob critérios da raça, foi uma

tarefa que dividia os seus defensores. Existiam basicamente duas alas na Alemanha, que

raciocinavam essa problemática. Uma liderada por Hitler e outra liderada por Otto Strasser.

A proposição de Strasser destoava um pouco do posicionamento de Hitler quanto ao

programa racial porque Strasser - líder da ala mais populista do NSDAP - percebia um

racismo um tanto menos exclusivista que o de Hitler. Este líder buscava adotar um

posicionamento que não negava a necessidade de admitir uma escala de superioridade e

inferioridade entre os povos, considerando elementos da biologia. Por outro lado, não

considerava ser tão premente a vontade de extinguir as populações exteriores àquela raça pura

preconizada por Hitler e seus seguidores. Na acepção exprimida pelas palavras de J. Droz:

(…) a imprensa de Strasser insiste cada vez mais na necessidade de uma aproximação à União Soviética, cujo sistema interno é no entanto condenado. Strasser combate absolutamente a idéia de uma superioridade dos povos germânicos sobre os povos eslavos. O tema (…) da superioridade dos Germanos sobre os Eslavos é combatido pela imprensa de Strasser. (DROZ, s.d, p. 14)

Ao delimitar este aspecto, o referido autor deixa claro que havia na ótica da ala

radical popular do NSDAP um maior otimismo no valor da raça superior. Por causa disso,

9 NOLTE, Ernst. La guerra civile europea, 1917-1941: nazionalsocialismo e bolcevismo. Florença: Sansoni 1989.

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este prisma de enunciação acredita não haver uma superioridade dos povos germanos,

conforme citado. Em vez do perigo da contaminação dos elementos nórdicos pelo sangue

eslavo, Strasser preferia o domínio do sangue ariano uma vez que por seu virtuosismo e seu

poder de absorção, o sangue ariano não corria o risco de se ver sobrepujado pelos eslavos.

A base do programa contrário ao de Hitler, ao mesmo tempo em que punha em

evidência os dissensos que pululavam no caldeirão de idéias sobre a problemática racial,

determinava uma atitude a ser tomada pela ala hitleriana. O modo de abafar qualquer

assimetria a este programa foi o assassinato de Otto Strasser em 1934. Aqui podemos apontar

uma espécie de contradição do mito da pureza racial como formatado por Hitler e seu grupo.

O racismo de Strasser e seus defensores diferia do defendido por figuras como

Himmler, Hitler e Gooblles. Aquele abrira a visão para o fato de que a raça ariana por ser a

genitora de uma nova ordem social, seria imune aos perigos da contaminação ou de uma

dominação pelos povos eslavos de nacionalidade polaca, tcheca ou russa. Já o racismo

hitleriano perseguia a realização de um domínio sistemático do leste temendo o perigo que

seria deixar esses povos se misturarem com o ariano e contaminar-lhe o sangue.

A contradição se afigura justamente nesse momento. Ora, se os povos que seriam

dominados não possuíam as marcas da superioridade, por que temer tanto uma contaminação

por causa do contato com os judeus, como também dos povos eslavos? Enquanto no racismo

strasseriano a inoculação dos caracteres benéficos se daria no sentido do ariano para o eslavo;

no outro prisma do racismo, o caminho era inverso: os eslavos podiam macular o ariano com

seus elementos de degeneração. Apesar destas divergências e da própria contradição do

racismo defendido por Hitler, foi a sua compreensão a utilizada para legitimar o regime.

Aos povos de nacionalidade eslava reservou-se, desde o início, um plano ortodoxo

que pretendia comprometer e inutilizar as potencialidades humanas daqueles povos bem como

sua capacidade de reprodução material. Por isso, foi importante até mesmo o fechamento das

escolas e o envio da intelectualidade dos países perseguidos nessa metodologia para os

campos de concentração. Em vez de fazer uso da capacidade intelectual destes povos, para

otimizar o regime, preferiu-se desenraizá-los e impedir de todas maneiras que a pureza do

sangue fosse posta em perigo. Esta era a visão defendida pela obra ditada por Hitler na prisão:

Só a perda da pureza do sangue é que destrói para sempre a felicidade interior, mergulha o homem definitivamente no abismo, e as conseqüências não podem mais ser eliminadas do corpo nem do espírito. Se analisarmos à

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luz desta questão todos os outros problemas da vida, e os compararmos com ela, veremos como perante este padrão eles são ridiculamente triviais. (HITLER, 1962, p. 297)

Este trecho da obra de Hitler, Minha luta, põe às claras os destinos que as

composições representativas da imagética do regime fascista, deixavam aos povos alcançados

pelo racismo excludente, um futuro nada animador. Já que a pureza do sangue definia os fins

e tais povos eram vistos como os portadores de um sangue inferior ou de um latente perigo de

contaminação dos demais, o fascismo permitiu a aplicação da violência ilimitada. E uma

violência especialmente destinada a judeus e eslavos, bem ao gosto da lógica pretendida.

A aplicação deste marco de violência, cujo modelo por excelência parece ter sido o

campo de concentração, funciona como desaguadouro da legitimação do regime através da

obediência. Mas funciona também para construir a imagem do inimigo, contra quem deveria

se direcionar a agressão. Assim, se percebe que a teia mitológica criada para legitimar o

regime era a mesma que conferia a justificação para a violência, tanto física como simbólica.

Por esse viés, tanto o mito da raça pura como o mito do judeu e do eslavo enquanto

inimigos produziram os alicerces da legitimidade para o regime. Nesse caminho, também

conseguiram o lugar para o espaço da política específica do nazi-fascismo em relação às

massas. Uma política que lhes seduzia a obediência e as chamava a participar do sentimento

nacional. Combater o inimigo era participar dessa comunidade de reificações então feitas.

Daqui se percebe a importância fundamental do mito inserido no contexto político.

Ao apontar o judeu ou eslavo como inimigo nacional, o regime admitia serem eles a

encarnação do próprio mal. Para além disso, a imagética criada para saldar a apoteose de um

regime supostamente indiviso, tinha outras implicações que trafegavam a violência simbólica.

O termo induz ao pensamento de que houve uma dicotomia perfeita entre os tipos de

violência aplicados. Como se pudesse rigorosamente definir violência física em contraposição

à violência simbólica. O que se pode observar com um olhar bem atento é que ambas as

violências funcionaram de maneira complementar. E, no tocante à violência dita simbólica,

algumas considerações adicionais precisam ser feitas com mais detalhamento.

A violência simbólica diferenciava-se da física não só por não atingir diretamente o

corpo do indivíduo. O que se entende por violência simbólica, diz respeito a fatores que

conseguem atingir o identificado como inimigo, internamente e externamente. Nesse sentido a

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violência simbólica caminha mesmo pari passu com a violência física. Ao criar toda uma

teoria racial e cultivar aquela rede mitológica, é preciso não perder de vista que os nazi-

fascistas comunicavam-se com a massa combatente e a massa combatida. Daí sua

especificidade. O mais importante era que o inimigo acabasse internalizando esse ideário.

Por isso se disse que a violência simbólica trabalha em complemento da violência

física e que atingia o inimigo interna e externamente. Externamente a violência era o próprio

corolário da teia de fatores que apresentavam a necessidade de promover a identidade

continental baseada num racismo excludente, num racismo que queria preservar o ariano.

Desse modo, externamente o inimigo era marcado pelo regime e pelas multidões que

ele pretendia seduzir e utilizar. E, internamente a violência simbólica cuidava de promover

uma outra mudança específica. Trata-se de uma violência que atinge a interioridade do objeto,

de vez que se insere numa superfície mais profunda, qual seja a da desumanização gradativa.

Ao desreferenciar os povos eslavos e também o judeu do seu lugar cultural ou de um

espaço mínimo em que se pudessem relacionar mutuamente, o regime fascista promovia quiçá

a violência mais eficaz. Lógico que tais sujeitos não eram completamente passivos a ponto de

aceitar sem resistência aquilo que era definido no rol das frias câmaras dos gabinetes

partidários. Mas, mesmo assim, não se pode ignorar a eficiência de uma lógica que

sistematicamente era aplicada para produzir mensagens ao judeu e ao eslavo, para comunicá-

los da sua inferioridade. Fazê-los admitir tal inferioridade e por fim desarticulá-los de suas

razões culturais, antropológicas e sociais. Ao admitir e analisar a receptividade destes mitos,

tem-se como bastante lúcida a afirmativa de um estudioso dos mitos políticos, para quem:

[...] uma certa situação de disponibilidade, um certo estado prévio de receptividade. O que significa, entre outras coisas, que em sua estrutura, em sua forma como em seu conteúdo, a mensagem a ser transmitida deve, para ter alguma possibilidade de eficácia, corresponder a um certo código já inscrito nas normas do imaginário (GIRARDET, 1987, p. 51)

Segundo este autor, o mito político é uma mensagem especifica e sistemática. O

conteúdo dessa mensagem atinge uma clara eficiência desde que o espaço de sua vinculação

seja também detentor de um imaginário aberto àqueles conteúdos. Assim a forma de

mensagem mitológica mencionada, trabalha sutilmente o estágio mais complexo: as

mentalidades. Considerando assim, há que se ver a relação entre violência simbólica e mito.

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Aqui se está tratando da exeqüibilidade do mito político. No caso do fascismo pode-

se dizer que violência simbólica e mito alimentam-se da mesma estratégia: a de atingir a

mentalidade das massas de inimigos e das massas de adeptos. Os primeiros, para que

internalizassem sua condição e, as massas, para que encarassem a violência como uma espécie

de mal necessário, uma parte da existência que teria que ocorrer na nascente ordem superior.

O que se observa então é um deslocamento do político para outras esferas que não

podem ser tão facilmente estudadas, caso se permaneça apenas nas contribuições dos escritos

marxistas. Os líderes da ordem fascista, anteriormente muito diligentes em estratégias de

chegada ao poder, agora mudavam um tanto sua política. Esta não mais se resumia a lances da

diplomacia entre nações ou mesmo aos bastidores da luta interpartidária nacional.

Tratava-se de um caminhar bem direcionado para as massas, a partir dali, mais do

que antes, alvo do regime tanto porque foram sua energia legitimadora, como os agentes a

serem colocados na linha de frente das mudanças a serem consolidadas. Ou seja, mesmo que

para trazer experiências traumáticas, os líderes do regime não mediam esforços para

transformar sua prática, como que anunciando uma fala de Vieira10 , arguto conhecedor dos

meandros da política, segundo o qual: “E para que a eleição seja boa, que parte hão de ter os

eleitos? Eu me contento com uma só. E qual? Que sejam ao longe o que prometem ao

perto”.(VIEIRA, 1976, p. 42). Hitler, após a chegada a chancelaria e o Duce, podem ser

identificados como os eleitos para dirigir o novo regime, os quais tudo fizeram em distanciar

um discurso anterior que sinalizava em atender e resolver uma crise e, uma vez instalados em

seus postos, abriram espaço para uma arquitetura obtusa que incluía guerras e mortes.

Ainda quanto à problemática de uma política que lança mão do mito, pode-se citar

um argumento de outro estudioso do tema, que ao enunciar-se sobre o mesmo, esclarece que:

Enquanto elemento de um discurso que se deseja eficaz, o mito político possui uma dupla origem. Ele é fruto, menos ou mais refletido, de uma estratégia política. O emissor do discurso o escolhe confiando em sua utilidade. Mas não é correto reduzi-lo à "demagogia", e não apenas porque não é necessário (embora seja possível) que seu veiculador o vivencie como "mistificação". O mito é também um produto coletivo; (…) O discurso mítico está inserido em um meio social no qual já existe. (MIGUEL, 1998, p. 16)

10 Pe. Antônio Vieira: Sermão da epifania. Coletânea de textos escolhidos. Núcleo de pesquisas em informática, literatura e lingüística, 1976.

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A referida assertiva torna bastante patente a função de um mito para a política que

dele faz uso. A mistificação, segundo o autor, deve ser admitida como produto coletivo, e

como produto individual. Além disso, o mito não é necessariamente um discurso do

falseamento, uma atitude sem reflexão. A estratégia política é que dá forma a esse mito.

Nesse sentido, o que o regime fascista produziu não deve ser visto como uma

ditadura dos discursos. Os discursos por si só não são úteis para nenhum objetivo político.

Eles não estão desarticulados de um contexto social. O fascismo não poderia ter alcançado os

sucessos que teve se não explorasse tecnicamente as possibilidades para uma moderna

propaganda política. O mito político adquire peso com essas técnicas novas do fazer político.

Faz-se necessário estudar além da superfície destes mitos para adentrar ao terreno

peculiar do que se quer caracterizar como política do espetáculo. Deve-se percorrer essa

inovação na forma de conduzir a atividade política que foi promovida pelo fascismo. Um

contato irrefletido com esse binômio que reúne política e espetáculo pode produzir uma

impressão equivocada do seu significado. No fascismo a marca do espetáculo permeia a

estrutura estatal. Isso se deve ao código comunicativo do regime que agora é o da propaganda

de massas, bem como às técnicas envolvendo cinema, e outras manifestações artísticas.

As páginas seguintes lançam uma investigação sobre esses métodos, a fim de

perceber a significância desta outra face tão eficaz como a experiência ideológica e partidária

existente no regime fascista. Nesse percurso tem-se o intento de melhor dimensionar o sentido

dessa referida política do espetáculo e assim chegar-se à etapa final - mas logicamente - nunca

definitiva a respeito do tema que ocupa esta pesquisa.

3.2 O poder rouba a cena: métodos de operacionalização da política do espetáculo

Uma vez identificada a existência de uma política distinta engendrada no regime

fascista, resta investigar os métodos pelos quais ela se operacionalizava. Objetivamente o

regime fascista trabalhou com uma teia de mitos os quais dialogavam com as massas da forma

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que já se assinalou: tentar admitir uma comunidade nacional indivisa, através da correlação de

forças que propiciava um experimento ideológico diversificado. Também buscar criar uma

ordem de senhores a partir da concepção de hierarquias sociais. Há que se dizer que o

fascismo italiano não trabalhou na perspectiva anti-semita aberta como o fez o nazismo.

Apesar dessa distinção entre os Estados italiano e alemão, não se pode deixar de

enxergar que ambos os Estados trabalharam especialmente com as massas. Só estudando mais

detalhadamente o uso que o regime desses países fez de diversas ferramentas pode-se

entender a política do espetáculo. Assim sendo, destaca-se que os instrumentos de enunciação

que conclamavam os habitantes de seus países, faziam parte de uma política inovadora porque

até o fascismo a propaganda do regime, com tal ênfase e magnitude, ainda não tinha sido

tentada por nenhum governante. Isso poderá ficar mais claro depois dos comentários a seguir.

Claramente, o nível de propaganda do regime não poupou esforços em sua tarefa

legitimadora. Utilizou-se desde o rádio, até as artes plásticas, passando por manifestações

como a arquitetura, o cinema, a pintura, além dos discursos feitos em praça pública. Todo esse

aparato muito contribuiu para a criação de uma linguagem metalingüística sobre o regime.

Essa metalinguagem não mais fazia que produzir uma auto-referência sobre a

perfeição do regime, uma miragem tão bem cultivada que encarnava no líder supremo as

abstrações, que naquela figura tomaram a forma de ações e de uma encenação da própria

infalibilidade da nova ordem sob construção. Se o líder era apresentado como infalível, havia

que se criar uma aura espetacular em torno dos alicerces abstraídos daquela idealização.

Essa engenharia que trabalhava com as multidões, lançava mão de todas aquelas

ferramentas mencionadas e, por meio delas, trabalhava a imaginação de seu público. Essa

marca do regime torna-se uma característica inescapável desde que se veja a importância

assumida pelo cruzamento de imagens oriundas das diversas formas da produção cultural. De

uma concretude máxima corporificada na imagem das multidões reunidas, o regime

deformava a visão que as próprias pessoas tinham, fazendo-as ser um corpo só aos olhos dos

espectadores. Essa rede imaginativa11 muito contribuiu para atribuir um cânone magnífico ao

produto da relação do eu com o outro. No fim, nem um nem outro eram importantes, senão

apenas o todo. A totalidade aqui vista com o uma espécie de ente figurativo da ordem fascista.

11 BACHELARD, Gaston. O Ar e os sonhos: ensaios sobre a imaginação do movimento. São Paulo: Martins Fontes, 1990.

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Nas palavras de um estudioso: “(a imaginação) é antes a faculdade de deformar as

imagens fornecidas pela percepção, é sobretudo a faculdade de libertar-nos das imagens

primeiras, de mudar as imagens”. (BACHELARD, 1990, p. 01)

Ao trabalhar essa imaginação, a plêiade de pensadores, cineastas e líderes políticos

do nazi-fascismo não discursava no vazio. Como já se disse, havia um campo propício para o

emprego de uma linguagem do espetáculo. Tal peculiaridade pode ser muito bem esclarecida

com a constatação de que aquele seleto grupo de senhores que se queria figuratizar era obtido

por meio da apropriação de um capital simbólico. Segundo acurada lição acerca do tema:

O porta-voz autorizado consegue agir com palavras em relação a outros agentes (...) na medida em que sua fala concentra o capital simbólico acumulado pelo grupo que lhe conferiu o mandato e do qual ele é, por assim dizer, o procurador (…) o êxito destas operações de magia social que são os atos de autoridade (ou atos autorizados) está subordinado à confluência de um conjunto sistemático de condições interdependentes que compõem os ritos sociais (BOURDIEU, 1996, p. 89)

Vê-se que o autor dá enfoque proeminente ao chamados atos autorizados aos

detentores da palavra em determinada nação. Discute, nesse patamar, que a fala de um dado

grupo de líderes tem linhagens específicas. Suas raízes são fincadas no entorno em que se

desenvolvem. A eficiência desse discurso é proporcional a seu nível de autorização que é

dado pelo próprio círculo de liderados. Tal característica, portanto, não pode ser desprezada.

Assim sendo, pode-se afirmar que a apropriação do capital simbólico tipifica uma

fala autorizada. Autorizada porque absorve as influências sociais e as traduz num discurso

sistematicamente elaborado. Em relação ao Estado fascista, essa fala autorizada quer aparecer

diante da sua platéia como a reprodutora dos anseios essenciais do povo alemão ou italiano no

limiar do século XX. A função desse estado de coisas é perfeitamente percebida no

encadeamento da política de propagação e doutrinamento propugnada na exploração de um

instrumental poderoso e diversificado. Foi uma verdadeira maquinaria a serviço do regime.

As peripécias de uma política que pretende atingir seu público de maneira cirúrgica,

funcionam de modo a fazer de meros enunciados discursivos, leis a serem obedecidas

socialmente. Não foi por acaso que a trajetória de Hitler e Mussolini antes e depois de

galgarem o poder, fez-se acompanhar de um progressivo incremento de seu uso da imprensa

em favor do regime. A esquematização do aparato governativo vai refletindo as preocupações

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de seus gestores em dar prioridade a essa vigorosa ética de apelo as massas. O tratamento

dado à imprensa e propaganda dá conta disto. De um início aparentemente tímido, a

operacionalização do regime passa a uma veemente fase de destaque para a ideação da

arquitetura política nos moldes de uma sociedade de massas, sob a égide do capitalismo.

Inicialmente, destaca-se o uso da imprensa e da propaganda. Neste tópico é

importante observar na Alemanha, por exemplo, que antes da tomada do poder pelo partido

nazista, ainda havia uma série de dificuldades relacionadas à instalação de uma melhor

logística e a falta de capitais dificultava a infiltração da doutrina nacional-socialista. Nesse

momento, o grupo liderado por Hitler não dispunha de grandes instrumentos de comunicação,

e o meio difusor das idéias era basicamente o jornal Observador Popular. Os contatos travados

pelas lideranças nazistas mudaram essa realidade, abrindo canais importantíssimos.

O acesso à grande imprensa é bastante facilitado depois da união de Hitler com um

magnata das comunicações em 1929, chamado Hugenberg. Depois disso, ficou aberta a porta

da comunicação ao futuro poderio nazista para o doutrinamento através da impressão, em

larga escala, de escritos nazistas. Ainda assim, os propagadores do anti-semitismo não tinham

até ali acesso ao rádio, que foi um trunfo significativo da expansão do poderio fascista.

Por outro lado, deve-se notar desde há muito toda a estruturação básica da forma

como seria instrumentalizada a atuação midiática do regime hitleriano. Idealizada por Hitler,

aquela política seria efetivada principalmente por Goebbles. Após 1933, já terminada a

República de Weimar, o desenvolvimento daquela técnica de apresentação foi viabilizado por

uma composição operacional formada pelo Ministério da Propaganda. Encabeçado por Josehp

Goebbles, esse ministério possuía câmaras sobre teatro, literatura, imprensa, rádio, artes

plásticas, música e cinema. Cada uma delas contava com o apoio de vários funcionários.

Além disso, havia sub-secretarias que cuidavam de ser o contraponto à centralização

dos direcionamentos nacionais do partido nazista. O chefe do Ministério trabalhou para que

em cada uma das câmaras específicas houvesse um trabalho conjunto que ensejasse uma

ênfase maior na criação de símbolos, no uso de cores, enfim na aplicação de técnicas capazes

de estimular uma propaganda cujo signo lingüístico fosse ao mesmo tempo verbal e visual. O

forte deste braço importante do nazismo foi - para alguns líderes - a propaganda indireta, pelo

menos no que tocava à arte da grande tela. No próximo capítulo isso será detalhado.

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Vale dizer ainda que Goebbles dirigiu o Jornal O ataque. Aqui foi disseminada

grande parte das idéias que colocavam o judeu como inimigo nacional. A atribuição de um

estatuto especial de importância à mídia impressa também facilitou o apelo publicitário do

regime, sobretudo até a chegada ao rádio. Eram confeccionados cartazes, distribuídos nas

cidades onde transeuntes facilmente poderiam se deparar com os mesmos afixados nos muros.

A facilidade do custo baixo também impulsionou que o regime começasse por este veículo.

Na obra A sacralização da política, o autor menciona que: “o rádio permitia uma

encenação de caráter simbólico e envolvente, estratagemas de ilusão participativa e de criação

de um imaginário homogêneo de comunidade nacional”. (LENHARO, 1986, p. 40). Como

afirma este estudioso, o marco diferenciador do rádio era sua capacidade de propiciar o

envolvimento com a comunidade nacional pela audiência direta dos lideres políticos. A

simbologia explorada dava a idéia de um país homogêneo e uno. Todavia,isso não foi tudo.

O impacto trazido pelo rádio pode ser melhor dimensionado ao se observar que, em

inícios do século XX, a continuidade do processo de avanço tecnológico trouxe ao mundo

uma série de inventos cujo poder de atração não estava apenas no valor da novidade. Dentre

essas conquistas estava a exploração das ondas radiofônicas. Especialmente, em se tratando

do rádio, tinha-se mais que uma ferramenta de entretenimento, uma das últimas palavras em

matéria de tecnologia das comunicações. Ao lado do progresso dos transportes, da melhoria

das condições sanitárias, da diminuição das distâncias com o uso de vias de tráfego

aperfeiçoadas, o rádio seguiu o sinal da modernidade verificada nos meios de comunicação.

Para além do aparato técnico e do entretenimento, o rádio foi usado como arma da

guerra ideológica. Conforme autorizada preleção sobre o tema, destaca-se o fato de que:

a cisão ocorrida entre os partidos de esquerda repercutiu também no Rádio, onde os programas transmitidos pelos partidos, procuravam organizar a massa contra o programa “concorrente”, realizando eventos com a instalação de alto-falantes em locais públicos, onde fosse possível ouvir e discutir as notícias veiculadas. (NETO, 2003, p. 36)

O que se depreende da afirmação acima é que um dos meios de embate dos partidos

políticos era o uso do rádio. Através do espaço conseguido nesse veículo, os adversários

podiam atacar-se mutuamente e ao mesmo tempo apresentar sua ideologia a um grande

número de pessoas. Quando o partido nazista toma o controle da cena política, o rádio ganha

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uma outra característica que se liga diretamente ao fato de que o fascismo implantado tenha

sido o legítimo concentrador das energias nacionais e saída aos problemas da nação. Itália e

Alemanha viveram a comunicação do rádio como ardil da unidade nacional.

O culto ao líder constatado naqueles países, pôde ser levado a bom termo com o

auxílio do rádio. A fala do líder veiculada por um modo mais dinâmico e penetrante atingiu a

faceta de “último veredicto” sobre as principais questões que envolviam os ouvintes atentos.

O que a população tinha acesso via rádio era um verdadeiro argumento de autoridade. Não se

deve esquecer que o supremo chefe nesses Estados era reverenciado como sendo detentor de

uma infalibilidade. Era ele quem detinha as respostas crucias para a nação. E o veículo por

excelência dessas informações era o rádio, pelo menos até o advento da arte cinematográfica.

Meio de comunicação social, aparato técnico fruto da Revolução Industrial, arena de

debate ideológico, ou canal de diálogo pessoalizado, o rádio foi uma ferramenta que serviu de

maneira bastante eficaz para operacionalizar a estrutura de domínio na Alemanha e na Itália,

até porque o poderoso bombardeio de informação ouvida era uma forma a que o sistema

recorreu para mostrar quais os valores erigidos pelos líderes como os mais adequados.

O controle exercido sobre a programação era sutilmente percebido na influência

desses valores. Lógico que o rádio como produto cultural de um tempo também reflete os

anseios sociais de um determinado espaço geográfico. Só que no regime fascista o rádio

espelhava de forma bem nítida o pensamento do chefe, suas decisões para a nação e aquilo

que deveria ser evitado como símbolo da ignomínia a ser combatida por cada popular. Nesses

anos anteriores ao cinema não havia uma inovação tão útil a esses interesses, como o rádio.

Como que anunciando aquele contato que veio posteriormente entre as multidões e o

seu supremo governante, a radiofonia foi apenas um ensaio do espetáculo maior alcançado

com o cinema e as paradas militares. Porém foi o rádio que inaugurou a tomada de um espaço

diário de atenção do povo alemão e italiano. Nesse aspecto é que se deve reconhecer o

pioneirismo do rádio como forma de atingir a audiência do grande público daqueles países.

No núcleo do vanguardismo do Estado fascista na forma de atuar junto a sua platéia,

está o uso do rádio por todos esses argumentos já apresentados. Foi uma forma adicional e

moderna de apresentar ao povo uma forma de comunicar-se que seduzia e parecia distinguir o

futuro desejado para a nação. Um tempo arrojado, marcadamente novo em que todos podiam

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contar com a palavra acertada de um governo que tudo fazia para o bem-estar e a expansão do

domínio da nação sob seu comando. Havia assim a recriação de símbolos.

Esses sinais simbólicos têm contornos muito bem definidos através da realização de

paradas militares e festas das quais participavam multidões. A política entendida como uma

espécie de tática atrativa de multidões, ou seja, uma política que funciona por uma

engrenagem complexa que não se resolve apenas pelas formas tradicionais, mas ao contrário,

uma atividade que envolve os pólos da relação, transferindo influências de um ao outro,

tornou-se bastante potencializada com esse uso do corpo uno da multidão agrupada na praça.

Uma tese a respeito do tema mostra a importância desse fator aglutinativo:

(…) persistindo é que as escolhas por uma forma estética que enalteça ideais nacionalistas, que motive para o pertencimento à nação e atice o ódio ao forasteiro passam a ter o poder de legitimar os anseios políticos do III Reich e, para além dele, dos regimes totalitários em geral. Dessa forma, suas imagens fílmicas tornam-se imagens fantásticas, daquelas produzidas para não mais serem esquecidas.(RIGOTTI, 2006, p. 18)

Essa estudiosa do tema já fala neste trecho de uma das implicações do uso

performático das multidões enfileiradas. Ao discorrer sobre um filme de uma famosa cineasta

do regime hitleriano, a autora constata que aquela disposição foi muito vantajosa: a das

pessoas colocadas em uma formação que falava a quem a visse de um aparato gigantesco que

quer se eternizar por imagens fantásticas. E fazendo isso, conseguiu-se chamar o povo ao

clamor da Pátria, bem como à xenofobia. Dois estágios atingidos num mesmo ato.

Disposta assim, a política do espetáculo chega à condição de um ambiente estatal que

busca algo mais sofisticado que a mera adesão a uma causa. O elemento estético da política

foi trabalhado no fascismo. A idéia de uma sociedade de senhores que fossem superiores,

porque escolhidos pela deusa clio para essa missão, foi arquitetada de modo a causar

impressão aos sentidos de quem quer que tomasse contato com o que tenha sido a Alemanha

ou a Itália da primeira metade do século XX. A estética no político convidou o espectador a

continuar absorto, quase que hipnotizado pela grandiosidade do espetáculo construído.

Seria de se perguntar então: se a multidão fora atraída dessa maneira pelo regime

será que o fascismo não passou de uma anomalia do comportamento humano, fruto de uma

psicologia doentia que a História apenas revelou? A despeito de ser aparentemente tentadora a

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afirmativa, o fascismo não pode ser visto partindo-se da premissa de que a política do

espetáculo só foi possível porque o arregimentar das multidões não passou de uma fórmula

encontrada pelos políticos para basear-se em variáveis psicológicas do homem e, com isso

produzir o consenso de todos em torno daquele intento. Este é um caminho anticientífico.

Admitir que houve o apelo emocional na atividade partidária dos grupos políticos

dentro da Alemanha e da Itália não significa dizer que o fascismo foi apenas uma política

ancorada nos traços da psicologia das massas. A disposição do público em multidão era

apenas uma das formas comunicacionais estabelecidas pelo regime fascista.

Cada detalhe daqueles mega-encontros comunicava a vontade de pertencimento que

deveria envolver seus espectadores. O senso de extrema organização, a harmonia dos passos,

as cores fortes das bandeiras, enfim uma atmosfera efusiva onde a ousadia e a energia dos

jovens produziu uma forte rede de solicitações como que convidando cada um dos alemães e

dos italianos a fazerem parte daquele espetáculo. Aqui uma marca importante é a fala do líder.

As fotos das aparições dos chefes supremos nessas grandes reuniões realizadas em

público são bastante sugestivas da maneira como se deu importância à palavra do chefe

político. O lugar central para onde convergiam os olhares era o púlpito onde ficava Hitler ou

mesmo o Duce. Esse local foi estrategicamente montado de forma a que todos se voltassem

para lá e vissem aquilo que o chefe tinha a dizer. Estando um patamar acima, postado naquela

plataforma o chefe saudava a multidão e com ela se comunicava diretamente.

Além disso, o aparato circundante dava a idéia de uma ordem perfeita fruto de uma

liderança irrefutável. O símbolo abstrato de uma perfeição a ser cultuada ficava bem presente,

mais próximo diante daquele contato em que líder e massas se encontravam e se saudavam. O

ser de cada um complementava-se com esse sentido de pertencer a uma ambição original: a da

grande história destinada aos alemães. Nas palavras da estudiosa já citada, ressalta-se que:

Se assim o for, então aqueles rostos são a imagem da auto-estima engrandecida pelo pertencimento; pertencimento este engrandecido pela força de vontade daqueles homens; vontade esta engrandecida pela auto-estima da massa; e, assim, sucessivamente, num ciclo nacionalista baseado no pertencimento de uns e no aniquilamento de todo o resto - já daquelas massas só participam os puros, os escolhidos, as tropas nazistas de SAs e SSs. (RIGOTTI, 2006, p. 30)

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O texto da autora citado acima observa a comunicação da idéia de superiores baseada

na participação das tropas SS e SA. O ciclo nacionalista constatado em sua fala, diz respeito à

parte do trabalho político do regime fascista. A política, vista tal qual uma conquista das

massas, passa pelo esquadrinhamento da vontade dos homens e da sedução desses anseios em

favor do pertencimento, em favor da melhoria da auto-estima. Mas isso não era um fim em si

mesmo. O tratamento dado a essa matéria era possibilitado por outro dos instrumentos da

política do espetacular. Esse outro método da política era o uso ordenado da arquitetura.

A preocupação de organizar os espaços dando-lhes uma funcionalidade foi recorrente

no Estado fascista. Em geral, os edifícios e prédios eram idealizados no estilo neoclássico,

sendo as edificações construídas, um tipo de alusão visual às antigas ruínas da Roma e Grécia

dos primeiros séculos. Não era necessariamente o gosto pessoal de Hitler ou Mussolini que

ditavam essa estilística no modo de dispor do espaço público. Há outras nuances destacáveis.

O regime fascista perseguiu a obsessão de criar uma atmosfera heróica. Inicialmente,

a figura do herói era encontrada nos populares dispostos a entregar seu sangue pela causa da

guerra. A seguir, o herói é visto na figura do articulador político capaz de dobrar as

fragilidades do conservadorismo das franjas da direita, que não mais davam conta de tecer

decisões garantidoras da governabilidade e da estabilidade econômica no cenário da crise

européia. E finalmente o herói era apresentado numa ótica retrospectiva pela arquitetura.

As passarelas ornamentadas com colunas à moda que lembrava os tempos gloriosos

da história do império antigo eram a moldura de um espaço público programado para conferir

um tom heróico a quem participasse daqueles grandes eventos ao ar livre. O conceito de uma

“super nação” que esteve presente nos grandes impérios os quais não se contentavam em

dominar pela força mas também pela opulência que ostentaram, também esteve presente no

regime nazi-fascista. A arquitetura dos grandes espaços abertos, por outro lado, guarda

diálogo com uma especificidade do regime fascista que se relaciona à política do espetáculo.

A arquitetura do Estado fascista foi elaborada para projetar espaços que

comunicavam o heróico, o magnífico e também que dessem aos líderes locais apropriados

para suas apresentações frente às multidões. Os mega-discursos políticos, normalmente eram

seguidos por desfiles das tropas cadenciadas em marcha, e o contingente de pessoas reunidas

era bastante expressivo. Daí que a arquitetura organizou o espaço e chegou a moldar lugares

especialmente preparados para atender a essa demanda do regime: grandes espaços para

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encontros espetaculares. O ambiente do espetáculo foi em boa medida bastante palpável

nestes instantes. Por essas razões se constata o desafio de Albert Speer, o principal arquiteto

de Hitler, em dar conta de responder as expectativas destinadas à arquitetura da época.

A arquitetura teve impactos mais diretos, sentidos no meio urbano. Mas o regime

fascista também precisava dos camponeses, afinal eram eles componentes nacionais. A

atividade integradora também os alcançou por meio da propaganda. A receptividade do

programa político atingiu o campo e as pequenas cidades por uma estratégia interessante.

Foram usados agentes que atuavam diretamente difundindo as idéias do regime em meio à

população desses locais. Essas pessoas eram chamadas pelo nome sugestivo de

propagandistas. E sua função era atingir os populares falando-lhes do projeto fascista. Uma

verdadeira propaganda “corpo a corpo”. Como se percebe na concepção sobre Hitler:

Hitler considerava que a propaganda sempre deveria ser popular, dirigida às massas, desenvolvida de modo a levar em conta um nível de compreensão dos mais baixos (…) a propaganda deveria restringir-se a pouquíssimos pontos, repetidos incessantemente (…). O essencial da propaganda era atingir o coração das grandes massas, compreender seu mundo maniqueísta, representar seus sentimentos (LENHARO, 2001, p 39-41).

Nesse trecho, Alcir Lenharo demonstra que o conteúdo da mensagem das

propagandas deveria ser acessível a todos, e, além disso, deveria trabalhar a repetição de

idéias. A conquista do fascismo, então, foi perceber a propaganda de massas como ferramenta

imprescindível para ampliar os planos do regime no sentido de ser entendido e assimilado por

pessoas detentoras dos níveis mais variados de instrução acadêmico-científica e cultural.

Se o regime propalava a existência de um corpo social homogêneo, ele também pôde

apreender, nessa aparente coesão, especificidades que não podiam ser ignoradas na tarefa de

conseguir o encantamento de todos os potenciais defensores do sistema, estivessem eles

habitando o campo ou as médias e grandes cidades. Pode-se mesmo constatar que o

cosmopolitismo do Estado fascista percorre esses detalhes perceptíveis na operacionalização

da política especial do regime fascista. Foi um regime que passou por ambos os lados, o

urbano e o rural. Só com essa atuação interna se conseguiria impregnar ambições externas.

A música foi outro fator de cimentação do regime fascista. Mesmo que houvesse um

ou outro compositor ou poeta que se colocasse contra o regime, isso não impediu as

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lideranças italiana e alemã de fazerem uso de mais essa ferramenta para fins políticos. Assim

sendo, quando se arrolam as manifestações apropriadas pelo regime, a música aparece com

um aspecto importante nesse catálogo. Sabe-se que a linguagem musical foi muito cultivada

pela população européia, muito grandes compositores e nomes famosos da expressão musical

em nível internacional saíram do solo europeu. O gosto pelo clássico também era cultivado.

Não só na arquitetura esse tom de clássico era destacado. O regime fascista serviu-se

de muito do que a música podia oferecer tanto em termos de letras como em termos de

melodia. É certo que alguns temas foram preferidos pelo regime. Nomeadamente, as letras

que passeavam pela exaltação da pátria, por exemplo. Ainda, em relação a esse uso da música,

deve-se acentuar que o ardor patriótico da juventude foi incentivado pela composição de hinos

a serem entoados quando dos desfiles e paradas militares realizados pelos soldados das SSs.

A música - pelo que se pode notar - não ficou excluída do prisma artístico fomentado

pelo regime fascista. Na Itália, o envolvimento desses produtores culturais que são os artistas,

poetas, literatos, foi patenteado com o aval dos futuristas liderados por Marinetti. A relação

estreita da arte futurista com o regime fascista não pode ser desconsiderada. A precisão do

comentário seguinte sobre o tema, é útil para que se observe, segundo João Bernardo, que:

Já na proclamação fundadora do futurismo Marinetti confundira sob as mesmas apóstrofes exaltadas a excitação das multidões, percorridas pelo prazer ou na fúria da revolução, e a violência da luz elétrica nas noites cosmopolitas, o faiscar dos motores, a estridência das máquinas. (…) se o futurismo teve como razão de ser a descoberta artística de uma idade industrial, não espanta que as máquinas militares se encarregassem directamente de escrever o louvor e a celebração da morte. (BERNARDO, 1998, p. 402)

Eis o que o autor consegue vislumbrar na proximidade do futurismo com o Estado

fascista: a admiração pelas multidões, bem como a modernidade em confronto cotidiano com

o perigo da morte. A idade industrial, que foi enaltecida pelos futuristas, era uma idade ao

mesmo tempo encantadora pelo efeito das luzes das grandes cidades, e ainda pela exponencial

capacidade de pôr o ser humano em rota de colisão direta com a morte, o festival exaltado.

A sedução da morte torna-se, dessa forma, um dos temas corriqueiros dos futuristas.

O aparente estranhamento que pode se ter com uma temática dessa natureza era driblado na

visão dos futuristas porque para eles a morte não precisava ser o desfecho inalterável do

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homem. Mas, essa experiência muitas vezes evitada por todos, de todas as maneiras foi usada

pelos apologistas do Duce. Nada mais cômodo para um regime que tinha na guerra a saída

para o intento expansionista. A guerra como ocasião em que a morte é uma presença

constante a rondar os combatentes das linhas de frente e até os mais distantes destas.

A invenção do automóvel, um dos resultados da idade industrial, bastante exaltado

pelos futuristas foi uma oportunidade de eles virem no perigo da velocidade um misto de

encantamento com o perigo e admiração pelo desconhecido. Aquela máquina admirável, que

ganhava lugares em pouco espaço de tempo, trazia ao homem a possibilidade da aventura e,

com ela a ocasião de andar a poucos centímetros de distância da morte, a experiência fatal.

Todo esse culto não era em nada fortuito. Como se assinalou, a morte foi exaltada

como um valor importante do regime. Os fascistas viam nela a justificativa para a glorificação

do heroísmo daqueles que puderam dispor até mesmo da própria vida em nome da mitificação

de um regime digno de toda essa doação. Operação política admirável de sedução das massas!

Enfim, essa metodologia completa vista internamente nos meios pelos quais foi

viabilizada a política de massas, desenha para o pesquisador um caminho multilateral que vai

desde os momentos iniciais de conquista da adesão do grande público, ainda na época de

soerguimento da crise, e desemboca num culto a morte, entendida como exaltação a coragem

dos heróis da nação, já nos anos em que vigorou o segundo grande conflito mundial.

Conforme sublinha um estudo sobre o caráter cênico do poder, pode-se observar que:

O poder estabelecido unicamente sobre a força ou sobre a violência não controlada teria uma existência constantemente ameaçada; o poder exposto debaixo da iluminação exclusiva da razão teria pouca credibilidade. Ele não consegue manter-se nem pelo domínio brutal e nem pela justificação racional. Ele só se realiza e se conserva pela transposição, pela produção de imagens, pela manipulação de símbolos e sua organização em um quadro cerimonial. (BALANDIER, 1982, p.7)

Nesta parte de seu texto, o autor apreende algo fundamental para compreender o

fascismo. Segundo ele, nem a razão - como na perspectiva iluminista - nem paixão irracional

conseguiriam dar conta de sustentar o poder, já que o esteio principal seria a manipulação

simbólica operada pelos regimes políticos. A matriz dessa operação acaba sendo um tipo de

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cerimonial em que a política rouba a cena para conquistar o maior número de adeptos

possível. E, de fato, o caráter cênico do poder se constata. No regime fascista com mais força.

Não que a política do regime fascista - a que se denominou nesta pesquisa de política

do espetáculo - fosse um ficcionismo puro. Ao se falar em caráter cênico do poder o objetivo

é mostrar que a enunciação do Estado fascista, que teve as massas como alvo, não desligou

seu olhar para a formatação de uma rede de elementos que comunicavam a obediência.

Quanto à política do espetáculo, pode-se mesmo dizer que ela decorreu dessa percepção: a

violência física alberga a face do poder balizada na esfera do medo. Mas a política de massas

do fascismo transcende em muito essa ação do poder pela violência.

Ao se observar os métodos dessa política se nota que ela seduzia tanto como um

teatro. A idéia de fazer ao espectador ter vontade de apreciar a apresentação e de ver-se

refletido na mesma. Essa identificação não teria sido possível sem que se lançasse mão da

música, dos festivais e paradas militares, dos grandes desfiles, entre as demais formas aqui

analisadas. Esse metamorfoseamento do político diferencia a lógica fascista das demais

políticas estatais baseadas em um autoritarismo puro. Alicerçados só no simples morticínio.

Optou-se aqui por analisar a arte do cinema em um capítulo separado, pela riqueza de

elementos que também oferece à compreensão do aperfeiçoamento dessa política. A política

do fascismo em relação ao cinema apresentou uma sistematicidade que pode ser observada na

Itália e na Alemanha no sentido de realizar aqueles efeitos de um público identificado com um

regime. E, além disso, conseguir um grupo dócil de pessoas, capazes de dizer ao restante do

continente e até do mundo - através de suas reações - que a nova ordem já estava em plena

implantação e era ela - a ordem fascista - que devia ser seguida para o benefício de todos.

Novamente é necessário afirmar que existiu sempre uma correlação entre a

magnitude de imagens e discursos a serem criados, e a política do Estado em relação às

demais questões que se precisou responder de modo a dar corpo àquela política. Os resultados

econômicos, o crescimento do emprego, a organização para uma economia de guerra eram

alguns dos fatores que oxigenaram essa política do espetáculo e contribuíram à sua eficácia.

Se de um lado a multidão em forma para saudar seu líder nas praças era uma pista da

citada eficiência; de outro, a consecução de finalidades ordenadoras como soerguimento

econômico, ainda que inicial a guerra, indicavam a dignidade para a política do Estado

fascista. Ao se passar à última parte do presente trabalho monográfico que versará sobre a

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utilização do cinema, tais elementos continuaram plausíveis. Mais a eleição de alguns temas

encontrou maior guarida, conforme se esteja falando do cinema italiano ou alemão. Este é

outro aspecto que convida a uma análise mais detida da importância desta ferramenta.

Tentará ser feita uma análise que possa não se distanciar da que foi projetada no

presente capítulo. Entende-se que a política do fascismo com relação ao cinema está nesse

intervalo da política cujos métodos foram aqui analisados. Entretanto, o desenvolvimento com

mais vagar de uma discussão sobre o tema dará conta de fornecer a justificativa para a

separação de um capítulo específico destinado a discutir a arte das grandes telas, bem como

de alguns tópicos que decorrerão desta estratégia de narrativa. Espera-se com isso que o

encerramento - nunca definitivo - desta pesquisa sobre o estado fascista, possa oferecer mais

caminhos para posteriores pesquisas, considerando as indicações aqui propostas.

4. Cinema no regime fascista: a sétima arte e seu impacto sobre o público

Por muito tempo, o conceito de fonte histórica se restringiu ao dado escrito. Por esse

motivo, a ciência histórica perdurou vários anos, condicionada a investigar manuscritos

antigos, julgando ter neles e em outras fontes escritas a resposta para suas indagações. Ocorre

que os estudos históricos paulatinamente tomaram contato com formas de explicação

transdisciplinares, isso já fazia parte de mudanças mais profundas.

Além de tangenciar outras formas que a ciência de um modo geral encontrava para

responder determinados temas, a demanda da História especificamente vai se ampliando

diante da permanência de questões que restavam sempre em aberto com o uso das fontes até

então utilizadas e dos métodos de cruzamento dessas fontes. Precisou-se avançar mais e mais.

A atuação da Escola dos Annales foi fundamental para a conversão que abrira mais

tarde a porta para a manipulação de diversos tipos de materiais que são hoje passíveis de dar à

explicação histórica um corpo teórico que jamais esta poderia ter se continuasse presa

exclusivamente às fontes escritas. Nesse processo de abertura do conceito de fontes é que se

insere a possibilidade de utilizar a filmografia de uma determinada época a fim de analisar seu

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contexto histórico. Atualmente até os silêncios de um determinado nicho, como a tradição oral

- para ficar apenas em um exemplo - podem funcionar como fonte para a historiografia.

Um historiador que trabalha essa fonte em seus estudos anuncia algo quanto ao

fascismo que demonstra a importância em se ter o cinema como fonte para o estudo. Diz ele:

Os soviéticos e os nazistas foram os primeiros a encarar o cinema em toda sua amplitude, analisando sua função, atribuindo-lhe um estatuto privilegiado no mundo do saber, da propaganda, da cultura. (...) O cinema não foi apenas um instrumento de propaganda para os nazistas. Ele também foi, por vezes, um meio de informação, dotando os nazistas de uma cultura paralela. (...) Os nazistas foram os únicos dirigentes do século XX cujo imaginário mergulhava, essencialmente, no mundo da imagem. (FERRO, 1992, p. 72-73)

Segundo esclarece o pesquisador, o Estado fascista foi pioneiro em promover um

mergulho no mundo da imagem e, nesse passo, o fascismo conseguiu imprimir uma

logicidade e coerência ao uso do cinema como arma de propaganda política. Mas ainda

sobressai para o autor, o sentido informacional que o cinema possui e que não deve ser

ignorado. De fato, aqui já se tem um primeiro argumento favorável ao cinema como fonte.

Deve-se lembrar que o cinema é também um produto cultural de uma determinada

época. Por representar interesse de determinados grupos sociais e empresariais, esses negócios

e as políticas tomadas em relação ao cinema dão conta de um conjunto rico de vestígios pra

compreender como se relaciona o governo de um país com essa indústria. Ao observar os

impactos que uma determinada temática tem sobre o público, bem como o tratamento político

que apresentou cosmovisões mais do que qualquer outra coisa, através das telas do cinema se

pode traçar o painel da cultura, da economia e da sociedade embebida pelos valores fascistas.

A observar que no século XX, o cinema ainda ganhava espaço e público batendo

constantes recordes de platéia, tem-se outro aspecto de importância para o estudo do fascismo

por via do cinema. É que a própria incipiência da arte das telas, trouxe consigo o ideal do

novo, do desconhecido. Esse fetiche acabou criando um lócus específico de atração das

massas em relação àquela manifestação artística, que tomou, assim, o estatuto de espaço de

sociabilidade, um local onde italianos e alemães encontravam-se consigo e com os demais.

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Já que o cinema tomou essa característica especial nesses países, a percepção da

política do Estado fascista foi que ali poderia ser ensaiada uma política que aliava

entretenimento e doutrinação política. Justamente por essa técnica, que o cinema no fascismo

pôde tomar basicamente duas vertentes diferentes em dados momentos. Ora, se tinham os

filmes de puro divertimento do público, ora aqueles em que o próprio título da peça

cinematográfica já indicava uma tentativa de incursão nos terrenos da política do Estado.

Obviamente, tal separação não deve ser levada às últimas conseqüências a ponto de

não poderem ser identificados momentos em que o filme destina-se a chamar atenção para

este ou aquele tema político-ideológico, e outros em que o mesmo filme puramente fazia o

público rir ou se emocionar. Fica-se assim diante de uma linha bastante tênue em que não se

sabe claramente onde começa o entretenimento e onde fica exatamente a doutrinação política.

Essa capacidade de evocar temas da propaganda fascista e não abandonar a atração

que necessitava ter o cinema em relação ao público que busca também a diversão, foi muito

bem viabilizada devido a outra especificidade do cinema. É que é o cinema que consegue

chegar a uma poderosa técnica que subverte a relação entre tempo e espaço. Os cortes e

edições de cinema constroem um universo completamente novo para o que o público estava

acostumado a ver. A grande arte conseguia capturar, do primeiro ao último minuto, as vistas

atentas dos que assistiam. Não se depreende, entretanto, daí que havia uma harmonia

completa entre o filme e seu público consumidor. Por esse fator, antes de adentrar mais

profundamente esses meandros do cinema na Itália e Alemanha durante o fascismo, deve-se

considerar a complexidade do objeto e atentar para algumas considerações teórico-

metodológicas.

Com efeito, adota-se aqui muito das premissas que Marc Ferro tem para orientar sua

análise do material audiovisual como fonte dos trabalhos históricos. Ao longo dos próximos

comentários, isto ficará mais esclarecido. Cabe também destacar que entre os franceses há

Pierre Sorlin. Sua contribuição caminha no sentido de reconhecer também o cinema como

fonte de História. Porém esse autor adentra outro terreno da teoria científica que está mais

ligado à semiótica e a semiologia, que enxergam no filme mais que uma produção da sétima

arte, um discurso cuja lógica pode ser desvendada num trabalho árduo. Esta tarefa,

promulgada numa visão semiologista, quer tratar os diversos signos que fazem parte do filme:

as falas do ator, as trilhas sonoras, as imagens e até os textos eventuais utilizados na película.

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Segundo essas premissas, deve-se estar atento para o fato de que o cinema é só mais

uma das possíveis tentativas de recuperar alguns dos aspectos de uma determinada sociedade.

E, diante disto, Sorlin12 não consegue ver um único método para trabalhar com o cinema na

sua relação com a História, o que não impede os historiadores de buscarem essa aproximação.

Esta pesquisa não trilhará este trajeto. Mas o presente estudo não se furta a se valer

dos contributos de Marc Ferro. Este historiador francês e realizador de cinema, não é

identificado claramente com a História das mentalidades, mas trabalha com uma visão nova

por admitir, assim como Le Goff, uma ampliação da noção de documento histórico, já que

Ferro trabalha com o material fílmico como documento. Segundo o historiador Le Goff:

O documento é monumento. Resulta do esforço das sociedades históricas para impor ao futuro - voluntária ou involuntariamente - determinada imagem de si próprias. No limite, não existe um documento verdade. Todo documento é mentira. Cabe ao historiador não fazer o papel de ingênuo (...). É preciso começar por demonstrar, demolir esta mensagem (a do monumento), desestruturar essa construção e analisar as condições de produção dos documentos-monumentos. (Le Goff, 1984, p. 102-103)

Conforme admite o citado historiador, o documento comunica-se com o futuro e ao

cientista da História, cabe verificar como essa comunicação se estabelece e, em que contexto.

Assim torna-se viável desmontar as supostas verdades ditas pelo documento e admitir que, em

última palavra não há uma verdade definitiva no documento, que não deve ser visto

passivamente. Daí o alargamento da noção de documento e o porquê do cinema ter um valor

documental nada desprezível pelo trabalho dos que se aventuram pela História humana.

Por outro lado, uma vez admitido o material cinematográfico uma fonte para a

História, como encará-lo? Seria a imagem concebida pelo cinema uma reflexão fiel do

contexto em que foi produzida ou apenas uma representação deste mesmo contexto? Esta

questão tem ocupado muitos historiadores. Para iniciar uma resposta segue-se uma orientação

que parece bastante pertinente, já que o desafio é saber de que forma tratar o material fílmico:

Os vários tipos de registro fílmico - ficção, documentário, cinejornal e atualidades, vistos como meio de representação da história, refletem contudo de forma particular sobre esses temas. Isto significa que o filme pode tornar-se um documento para a pesquisa histórica, na medida em que articula ao contexto histórico e social que o produziu um conjunto de elementos intrínsecos à própria expressão cinematográfica. (KORNIS, 1992, p. 3)

12 SORLIN, Pierre. Sociologie du cinema. Paris: Éditions Aubier Montaigne, 1977.

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Kornis está bastante atenta ao fato de que existem vários produtos que pertencem ao

universo da produção das telas. Além disso, observa que essa diversidade reflete mesmo uma

determinada cena de um tempo específico que intervém na expressão do cinema. Esta

observação apenas, ainda não satisfaz a indagação sobre a natureza do produto do cinema.

Precisa-se avançar mais. E nesse passo, destacar que o cinema a despeito da maior

versatilidade na reprodução das imagens - se comparado com o caráter estático da fotografia -

não pode ser considerado como reflexo e, o que é menos científico ainda, um reflexo mais

aperfeiçoado que a fotografia. Ambos os recursos trabalham com a imagem; porém são fontes

diferentes para um trabalho historiográfico, fontes que podem se complementar, mas nunca

disputar posição em classificações valorativas muito mais subjetivas que qualquer outra coisa.

A potencialidade do cinema também está no fato de que ele é uma peça cujo

conteúdo excede a si próprio. De fato, deve-se reconhecer que aquilo que é projetado nas telas

não se resume apenas a uma organizada parafernália eletrônica destinada a funcionar como

mais uma das versões da tecnologia contemporânea. Seja qual for o estilo adotado ou a

temática evidente, o filme projeta um conteúdo ideológico e os filmes produzidos na Itália e

na Alemanha fascistas atestam isso. Só atentando a esse aspecto pode-se ir mais longe.

Assim como os textos escritos possuem silêncios, pode-se encarar a linguagem do

cinema como um texto visual que possui suas ambigüidades, suas sinuosidades, enfim uma

zona que muito bem pode ser identificada como algo invisível, ou visível nas entrelinhas do

texto visual. É percorrendo estes silêncios do “não-visível”, que pode o historiador dar um

passo adiante e notar que o filme nem reflete nem reproduz fielmente um contexto histórico.

Mas tais deformações é que devem instigar o estudioso no árduo trabalho de reconstrução de

um determinado tempo, junto com os valores presentes e as idéias compartilhadas no espaço.

Postas estas considerações iniciais sobre a relação entre História e cinema, bem como

feitos estes esclarecimentos introdutórios sobre a metodologia própria de um trabalho com

este tipo de fonte, é necessário adentrar aos meandros do cinema italiano e compreender,

alguns tópicos importantes nessa produção ao longo dos primeiros anos do século XX até os

anos finais da Segunda Grande Guerra. Para fins didáticos, espera-se delimitar três momentos

específicos que se tentará esclarecer ao longo da explanação sobre o referido tema.

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Nos primeiros anos do século XX até a chegada de Mussolini ao poder e

posteriormente a deflagração do Segundo grande conflito mundial, observa-se um cinema de

feição mais amena em relação ao uso político do cinema como forma de legitimação de um

determinado quadro social e governativo. Em verdade, se observa uma evolução bastante

característica de uma indústria que ainda está dando os primeiros passos em termos

estruturais. O conteúdo das mensagens ainda está um tanto descolado de uma meta política.

Por outro lado, é nesta primeira fase que a produção cinematográfica italiana monta

as bases para um cinema de grande envergadura, tanto do ponto de vista material como sob o

formato conteudista. Alguns dados históricos dão conta da montagem do parque

cinematográfico da Itália, nos primeiros anos do século XX. É nessa época que são criados a

LUCE (L’Unione Cinematográfica Educativa), além da Federação Fascista das Indústrias do

Espetáculo 13 e da Cinecittà, que ocorreu dois anos antes da deflagração da Segunda Guerra.

Acredita-se que os primeiros anos do cinema italiano não foram propriamente o

momento de se valer do cinema como instrumento político, o que não pode servir como

credencial para afirmar que não houve então nenhum instante em que se pôde divisar a

infiltração da ideologia fascista nos produtos fílmicos. Só que ainda é tímida essa marca que

ficará mais clarificada na etapa seguinte do cinema. Por hora pode-se ver isso esparsamente.

E tal infiltração de idéias além de tímida quanto à qualidade de materiais que

falassem de valores do regime, é tímida no número de filmes que os exaltavam mais

diretamente. No caso, destacam-se os cinejornais e alguns cineastas pioneiros, sobre os quais

cabe fazer algumas considerações com a finalidade de dar maior identidade ao que se pode

extrair dessa fase de elaboração dos primeiros filmes que já anunciavam um caminhar para

uma fundamentação maior do cinema sobre bases mais marcadamente político-ideológicas.

Um professor da Universidade de Barcelona discorre sobre o tema afirmando que:

Apenas um personagem concreto, como o pitoresco diretor-roteirista-produtor Giovacchino Forzano, manteve, ao longo de sua obra cinematográfica, uma beligerante militância: de fato, a única película dedicada claramente a exaltar o fascismo, concretamente os vinte anos da "marcha sobre Roma", é a que Forzano produziu em 1933, por encargo do Instituto Luze, com o significativo título Camicia nera. (ESPAÑA, 2006, p. 3)

13 Apud GILI, J. L’Italie de Mussolini et son cinéma. Paris: Henri Veyrier, 1985. p. 103.

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Este autor destaca a tênue existência de uma cinematografia atiladamente preparada

para exaltação direta do Estado fascista. Segundo informa, apesar dessa constatação, a

militância mais aberta em favor do regime se verifica por pouquíssimas vezes nesta primeira

fase. O mesmo autor destaca um outro filme de Alessandro Blasetti, chamado Vecchia

guarda.

Quanto ao filme de Forzano, chamava-se Camicia Nera (Camisas negras), seu

enredo destaca-se como claramente político porque em 1930, o filme tinha um enredo que

comemorava o aniversário da famosa marcha sobre Roma. Assim sendo, contava o contexto

daqueles anos da História italiana e acaba situando muito dos acontecimentos ocorridos então.

Camicia nera tratava de mostrar a visão italiana sobre a Itália depois da Primeira

Guerra e também a ascensão dos fascistas até a tomada do poder por Mussolini. Em síntese, o

filme mostrou uma Itália que tanto participara dos esforços de guerra e, posteriormente se

deparara com um Tratado de Versalhes e uma leva de soldados voltando humilhados para a

sua pátria. Nesse sentido torna-se factível, diante da crise instalada, um apoio a propostas de

um líder carismático que prometia tirar a Itália de uma situação de somenos importância no

quadro geopolítico europeu. Assim, a marcha sobre Roma acabou sendo retratada nesse filme.

O filme de Alessandro Blasseti cuidava de exaltar o squadrismo em contraposição ao

perigo do exército vermelho. Este filme, produzido em 1934, focalizava um momento anterior

à chegada do Duce ao poder. Porém, o que sobressai neste primeiro momento, mais do que o

enredo dos filmes é que - como foi apontado - o filme dessa época não tem um mote político

explícito. Os poucos filmes que tomam um viés mais político, a exemplo dos dois citados, não

alcançam recordes de públicos ou não provocam um envolvimento tão grande das pessoas em

relação às mensagens por eles veiculadas. Resta agora falar sobre os cinejornais.

Nesse primeiro momento, de organização da infra-estrutura e do conteúdo do cinema

italiano, merece realce o uso dos cinejornais. Basicamente foram programas de noticiários que

eram assistidos pelas famílias italianas. O formato dessas produções seguiu um modelo de

noticiário, mas não só isso. Naturalmente, deixar a população informada dos fatos

relacionados ao cotidiano da Itália, parecia ser o maior objetivo dessa outra forma de cinema.

Só que essa manifestação, ainda que também não tão abertamente, veiculava notícias

que tinham muita proximidade com os valores que presidiram mais tarde a produção do

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cinema italiano. Por isso é que esses noticiários costumavam destacar temas como o esporte, o

vigor físico, o valor dos atletas. É sabido que o fascismo primou por atingir uma sociedade de

pessoas selecionadas, ou seja, uma sociedade em que houvesse valoração do corpo atlético, da

virilidade. Ora o esporte servia de via para enaltecer esses valores, e os noticiários veiculados

pelos cinejornais faziam questão de mostrar algo relacionado ao esporte, a saúde física.

Poder-se-ia argumentar que esses fatores não têm relação distintiva do fascismo em

relação às demais temáticas abordadas em outros locais onde o político invadiu as telas.

Entretanto, o que se quer realçar é que mesmo reconhecendo-se a presença dessa temática nas

telas de outras nacionalidades, no caso, da Itália fascista já estava se partindo para uma

segunda fase que exacerbaria a exploração de temáticas ligadas ao regime de forma mais

aberta do que nesta primeira fase. Não está incluído, dessa maneira, o fato de estar denotado

ainda que não explicitamente, a produção de um cinema com resquícios políticos.

Já durante a segunda guerra, o cinema italiano toma tons diferenciados,

comparativamente ao momento inicial. É que nesta segunda fase, os filmes exaltam sem

rodeios os valores que eram cultivados por aquele país em guerra, governado pelo ideário

fascista. Os filmes propõem-se a percorrer terrenos que dantes não figuravam na ambição da

maioria dos diretores e mesmo não alcançavam a repercussão que tomaram a partir do

agudizamento do belicismo no qual a Itália se envolvera mais fortemente com o

desenvolvimento do conflito mundial, o qual tomou esforços preponderantes daquele país.

Não que o belicismo nunca tivesse sido um valor que foi visitado anteriormente à

segunda Guerra Mundial. Só que a partir do desenrolar da guerra, os filmes italianos

gradativamente vão freqüentando as produções dos artistas, roteiristas, enfim os profissionais

que contribuíam direta ou indiretamente para que o cinema tivesse um respaldo bem

significativo na sociedade italiana daqueles anos da guerra. Daí a importância em tecer alguns

comentários a mais sobre esse instante da indústria de cinema presente na Itália fascista.

Diz-se indústria porque, apesar do incremento da sétima arte ter se dado com a

guerra, os primeiros requisitos infra-estruturais da cinematografia italiana já estavam

montados desde a primeira fase. Só que a partir desse segundo momento é que todo aquele

maquinário no Estado fascista vai ser usado para uma meta determinada.

Dado que este segundo momento foi justamente aquele em que se pode verificar a

influência do político no cinema com maior intensidade, cumpre ao analisar alguns

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exemplares de produção desta fase, tentar ver cada produção em termos de seu diálogo com a

atuação política do regime, dentro daquele quadro de aproximação com as massas típico do

regime fascista. Um aproximar que não se conteve em apontar para si diretamente ou não.

Mesmo nesta segunda fase de inserção mais aberta dos temas políticos, os primeiros

filmes compuseram-se não de uma exaltação direta do próprio fascismo italiano, a via

encontrada para introduzir a alusão a Itália e seu regime político foi aludir primeiro ao regime

espanhol de Francisco Franco. Mas não se pode negar que a localização do regime fascista já

podia ser vista mesmo se o objetivo ventilado fora focalizar o apoio dado às tropas do general

espanhol pela Itália de Mussolini. Neste marco, destaca-se conforme o último autor citado:

Ao se iniciarem as hostilidades, aparece um cinema mais abertamente propagandístico, se bem que, às vezes, a preparação bélica é apresentada de forma bem oblíqua, sobretudo através da Guerra Civil Espanhola. O curioso é que as alusões ao conflito ibérico não se apoiavam na exaltação da ajuda fascista à Espanha - senão em um alarde de generosidade (ou melhor, em um intento da indústria italiana de abrir mercados em uma época em que estes se haviam reduzido drasticamente) - mas promovem diretamente as vitórias das armas franquistas. (ESPAÑA, 2006, p.3)

Aqui, conforme analisa este autor, o cinema passa a ser uma arma que transcende as

próprias fronteiras da nação. Ele afirma que não foi propriamente um cinema que teve como

proposta engrandecer o auxílio italiano a Francisco Franco, mas, alardear as vitórias

franquistas e, dentro, desse objetivo fazer aparecer as conexões entre Franco e Mussolini.

Nesse mesmo texto, Rafael España, cuida de informar que nesse viés, não era

incomum encontrar participações conjuntas de realizadores de cinema de nacionalidade

espanhola e italiana. Como representativo desta fase há “O cerco de Alcaçar” (L’assedio

del’Alcazar). Trata-se de uma co-produção preparada dentro dos moldes aqui destacados:

falar da realidade da luta ibérica e, por via oblíqua apontar para o regime do Estado italiano.

O que se pode ver aqui, antes de tudo, é que se o fascismo procurava instalar uma

ordem internacional, um produto cultural tão significativo (o cinema) foi engendrado também

nesta perspectiva: extrapolar dos limites fronteiriços. Por isso, uma das formas de trabalhar o

cinema na via política mais aberta foi aludir a regimes que não estavam em funcionamento na

própria Itália, que tinham suas especificidades, mas guardavam um inter relacionamento com

as diretrizes do Estado fascista governado por Benito Mussolini na Itália.

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Como filme abertamente político, cita-se inicialmente, um datado de 1938, cujo

título é Luciano Serra, pilota. Trata-se de um produto de Goffredo Alessandrini e Vittorio

Mussolini. Como já sugere o próprio título da peça, o enredo trata de promover a glorificação

dos pilotos italianos por meio das arriscadas peripécias do aviador Luciano.

O encadeamento das cenas constrói a narrativa de um personagem que protagoniza

uma audácia capaz de vencer até os próprios instintos da proteção paterna. É que Luciano os

desobedece ao decidir-se por seguir a carreira de piloto. Ao adotar esta postura, o personagem

principal opta por participar de espetáculos onde eram apresentados shows que incluíam

acrobacias aéreas realizadas por aquele piloto, em uma temporada na América do sul.

A trama do filme mostra ainda que no fim, o aventureiro deixa aquela vida e passa a

ser combatente que luta na guerra da Etiópia e aí demonstra seu amor à pátria ao combater

contra o inimigo externo. Como gran finale, o filme mostra o filho do protagonista sendo

premiado pelo próprio pai, que o vê morto por ter combatido também contra os etíopes.

Vê-se que o filme além de tocar diretamente no ideal guerreiro que foi um valor

bastante exaltado na ambientação fascista, cruza com outras questões que de uma maneira ou

outra, foram muito caras aos defensores da ordem presente no Estado fascista. Não se pode

deixar de lembrar que ao descrever as aventuras do piloto, o filme chega a um resultado muito

bem arquitetado. É a apreensão deste resultado que parece mais significativo estudar.

É que, num primeiro momento, o destaque é para um complexo de formas em que o

tom audacioso é revelado pelas atitudes de um homem que não se importa em vencer

obstáculos e cuja própria vida é cercada de riscos vencidos pelo próprio personagem, o qual

por assim dizer, é o responsável pelas vitórias pessoais a que se propôs.

Já num segundo momento do Luciano Serra, pilota, o heroísmo solitário é

transferido para um heroísmo patriótico, quando as aventuras nas Américas dão lugar para o

sacrifício pelo país no combate da guerra contra a Etiópia. Aquele antigo aventureiro que

mesmo arriscando-se já era possuidor de inúmeras qualidades, agora se tornou um guerreiro

da nação italiana, este simples fato já granjearia méritos muito maiores a Luciano.

Por outro lado, ao narrar esse momento da guerra da qual Luciano participou, o filme

demonstra que ele foi habilidoso o bastante a ponto de ter sido de grande valor o seu auxílio

na guerra. O fato de o filho de o protagonista figurar também como combatente é sugestivo de

uma outra característica: a transmissão dos valores existentes na nação italiana.

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Essa transmissão se manifestou na projeção desse filme devido ao fato de que a

eficácia da valorização de uma vida comprometida com a guerra foi uma marca compartilhada

por pai e filho. Ambos foram até as linhas de combate, sendo que o pai sobrevive e o filho não

tem a mesma sorte. O simbolismo da vitória é visto até mesmo na morte do filho que é

medalhado pelo próprio pai em homenagem a bravura de ter entregado a vida naquela guerra.

Por esses elementos do enredo se pode notar que o filme acaba criando na ficção um

simbolismo do que era considerado uma vida digna de ser retratada. Ao mesmo tempo, se

fazia uma referência àquilo que os italianos deveriam cultivar ou seguir enquanto valores

culturais: a guerra para expansão, o destemor carismático de um soldado, o compromisso com

uma noção de felicidade não restrita a individualidade, mas conquistada e usufruída

coletivamente. Daí despontava a própria idéia de um poder mantido pelo país inteiro.

Outro autor importante é Francesco Robertis. São dele os filmes Uomini sul fondo e

Marinai senza, nos quais o chefe do serviço cinematográfico da Marinha ovaciona os

combatentes daquela parcela das Forças Armadas italianas. Objetivo semelhante é buscado no

Squadrone bianco, (Esquadrão branco) de 1936. Aqui as honras são tributadas a soldados

italianos que combateram na Líbia, numa espécie de momento de preparação para a guerra

que estava a ponto de ser deflagrada. Augusto Genina, que foi responsável pela chegada do

filme às telas, não poupou esforços para deixar em foco aqueles soldados, agora numa ficção

bastante verossímil, de vez que baseada em fatos realmente ocorridos na História da Itália.

Cabe aqui destacar um outro dado analítico que pode ser depreendido da realização

destes filmes com tom político mais explícito. O que se observa é uma sistematicidade na

retratação de uma sociedade disciplinada para a guerra. Não foi fortuita a confecção de filmes

que tinham como protagonistas personagens que eram soldados, tanto atuando no ar como em

terra. Há a impregnação dessa idéia da guerra a partir de um cinema que era produzido por

iniciativas privadas com forte apoio logístico e financeiro governamental.

Deve-se lembrar que no caso do filme em que os marinheiros eram reverenciados, o

responsável pertencia à própria estrutura do governo. Sem falar no fato de que a estrutura da

LUCE fora muito bem utilizada como plataforma para realização de filmes. Esse

envolvimento estreito é mais um indício fortíssimo da penetração dos órgãos estatais na

formação das produções do cinema, obviamente com intentos políticos que iam além de uma

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mera oferta de entretenimento. Foi a formação de uma opção cultural mais ampla que se

projetava: a aglutinação em torno da guerra e o expurgo dos que obstaculizassem essa meta.

Um estudioso do tema destaca que a linha dos filmes bélicos, não foi a única:

No entanto, como ocorreu na Alemanha nazista, os filmes de propaganda direta não agradaram ao público italiano, o que acabou levando o governo a evitar a produção de novas “epopéias fascistas”. Assim, buscou- se relacionar as conquistas fascistas do presente com os grandes feitos da Roma Antiga. Essa temática se encaixava perfeitamente com os desejos imperialistas de Mussolini que conseguiram arrastar o país a uma série de lutas sem grandes benefícios. (PEREIRA, 2003, p. 107)

O autor refere que à medida que a reação do público não se mostrava tão animadora

quanto o esperado, os realizadores de cinema vão explorando a temática do passado glorioso

da história do povo da Itália. Esse foi outro veio explorado pelos estúdios de produção

cinematográfica. Assim, se podia novamente fazer referência ao caráter essencialmente

expansionista do país que guiava seus objetivos políticos muito na direção do esforço bélico.

Além disso, o cinema italiano na época da guerra, ocupou-se de um característico

tom de ataque ao bolchevismo. Na Alemanha, onde houve uma aproximação que gerou o que

se discutiu como nacional-bolchevismo, não se verifica essa tônica. Todavia, nem mesmo

entre as autoridades italianas ela ganhou tanto prestígio, dada a contradição de se querer

atacar um regime que - da forma como retratada no cinema - muito lembrou aos chefes de

gabinetes políticos, o que ocorria dentro da própria organização governativa do fascismo.

Foi o caso, a título de exemplo, do Addio Kira (Adeus Kira), sob a responsabilidade

de Goffredo Alessandrini que também dirigiu Já Noi Vivi (Nós que vivemos), ambos do ano

de 1942. Outro importante nome, considerado pioneiro em matéria de filmes que arremetiam

contra o país bolchevique foi Edgard Neville. É de sua lavra o Santa Maria, ou La Muchacha

de Moscú, este ainda é exemplo da cooperação de cineastas espanhóis, os quais - como já foi

dito - ajudaram a levar o cinema de cunho político usado pelo Estado fascista.

O que se observa é que o cinema italiano, na época da guerra, atravessou uma fase de

produção intensamente voltada para as matérias que eram julgadas de interesse nacional para

a totalidade da nação italiana. A tentativa de alastrar uma ética guerreira entre pessoas comuns

foi uma porta aberta através daqueles filmes cujo conteúdo era impregnado por esse teor de

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imagens heróicas. Imagens que eram feitas buscando causar impressão não só pela profusão

de sons e efeitos pictóricos, mas (e, principalmente) pela multiplicidade de remissões aos

temas constantemente revisitados naqueles anos em que a Itália esteve envolvida na guerra.

Chega-se com a proximidade do fim da guerra, a uma outra etapa. Esta é a fase da

República do Salò. Nela foram produzidos filmes numa época em que a lógica fascista

atravessava seus últimos estertores. Foi um tempo em que a realização de filmes toma outra

característica que a distingue da anterior, em que o próprio desenvolvimento do conflito era

também exibido nas salas de projeção. E, conforme visto, num trabalho que envolvia

diretamente pessoas pertencentes também à estrutura governamental da Itália fascista.

Durante a chamada República do Saló, Benitto Mussolini já havia sido deposto.

Após a deposição do Duce, foi instalado um governo controlado indiretamente por ele e que

contava com o apoio dos alemães. Não é difícil imaginar que pudesse criar-se uma situação

como essa. Aliás, foi plausível essa situação, considerando todo o poderio alcançado pelo

fascismo enquanto sistema político orgânico. A inversão desse cenário político influenciada

pela guerra, com o progressivo avanço das forças aliadas tornou bem mais difícil a prática

política encabeçada por Mussolini e o partido fascista que teve que buscar outro caminho.

Um governo títere que seguia à risca as ordens de um líder já deposto. Esse caminho

demonstrava a fragilidade política do regime que se podia perceber no cinema. De fato, não se

conseguia mais produzir filmes políticos no viés anterior, quando no auge da Segunda Guerra

se apresentava um exército ufanando-se da luta pela eliminação dos obstáculos ao

expansionismo italiano e a tentativa de conquista de outros países pelas armas.

O momento agora era outro. Na República de Saló, entre 1943 e 1945, assiste-se a

uma espécie de revival de temas e modas pouco atrativas agora que o regime se acha na

iminência da guerra que para a Itália mais uma vez não era favorável. Os poucos filmes que

foram rodados tiveram sua organização possível graças à organização de antigos defensores

do governo de Mussolini. Mesmo assim, sequer houve nesses filmes o apelo político que se

podia esperar dado que eram organizados por pessoas que viam com bons olhos o regime

liderado pelo líder deposto. Essa filmografia, entretanto, não mais atraiu o público.

A análise destes três momentos ajuda a compor a complexidade do cinema italiano e,

torna clara a riqueza de elementos que compuseram o uso político que o fascismo fez do

cinema naquele país. De fato, uma forma engenhosa de atingir um maior número de pessoas e

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que não foi sempre linear. Ao contrário, houve evoluções, adaptações e por isso mesmo um

jogo mútuo entre aqueles que eram os profissionais do cinema e aqueles que eram apenas

apreciadores dos filmes produzidos. De qualquer forma, essa dimensão de importância que

atingiu o cinema foi tal que um autor que estuda a cultura na Itália, chega a afirmar:

A conclusão que parece a mais certa é que na Itália fascista, mais do que em nenhum outro país, com exceção da Alemanha nazista, os espectadores de cinema navegavam adormecidos em um falso sentimento de seguridade e de orgulho nacional, ao não se ver confrontados no cinema com nenhum dos problemas sociais do mundo real (TANNENBAUM, 1975, p. 323)

Para esse estudioso, o impacto exercido pelo cinema italiano foi tal que conseguiu

obter o resultado de seduzir a multidão por um método aparentemente simples: o de não tocar

nos temas sociais da vida real, mas apenas produzir uma miragem de segurança na qual se

viam mergulhados os italianos. Envolvidos por ela os espectadores - na visão do autor -

estariam como que adormecidos tal foi o nível de impregnação do imaginário que se atingiu.

Talvez se possa dizer que em determinados momentos mesmo o cinema atuou numa

postura de “arte pela arte”, que ainda assim não impediu que o público se visse projetado em

suas telas. Todavia, o que fica patente é mesmo uma sistemática manifestação com fins

claramente políticos. Isto ficou bastante evidente também no caso do cinema alemão.

Em relação a esse outro país cumpre destacar muitos elementos também a fim de que

se compreenda a utilização do cinema pelos nazistas para que seu regime atingisse a dimensão

que atingiu. Inicialmente, deve-se salientar que o interesse pelo potencial do cinema foi

percebido pelos nazistas já desde a primeira guerra, quando foi organizada a Ufa (Universum

Aktien Gesellshaft). Este foi o primeiro passo para a incrementação do cinema nazista.

Tratou-se de um empreendimento de alto aporte de capitais, que recebeu

financiamento direto de setores do alto comando militar alemão. Com o passar do tempo, o

controle das ações passa a um rico empresário das comunicações na Alemanha o qual tinha

como característica sua boa relação com os nacionalistas, dentre eles o próprio Hitler.

Após a tomada do poder pelos nazistas, Alfred Hugenberg, o referido magnata que

passara ao controle acionário da Ufa, trata de utilizar sua estrutura para produzir uma imagem

cada vez mais atrativa do Füher, o chefe cujos seguidores eram multiplicados em razão

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geométrica com a ajuda deste poderoso veículo. Mais tarde, o próprio Hitler retribui dando a

pasta da economia a Hugenberg, sendo que a companhia Ufa passa a Joseph Goebbels.

Se na Itália a capilaridade atingida pelo cinema foi nada desprezível, na Alemanha a

construção de um referencial pictórico do regime político, através da utilização do cinema foi

bastante explícita, tendo havido um sistemático e cirúrgico cuidado por parte dos líderes

nazistas a fim de que estivesse esse instrumento na linha de frente em relação às demais

formas operacionalizadas pelo regime em seu afã de conquista propagandista de adeptos.

De acordo com um autor já citado, que estudou o cinema como arma política:

O cinema foi, indubitavelmente, o setor que recebeu maior atenção e investimentos do regime nazista. Desde o início de sua carreira política, Adolf Hitler já reconhecia o enorme potencial oferecido pelas imagens – em especial pelo cinema – na veiculação de ideologias e na conquista das massas. (PEREIRA, 2003, p. 110)

Como mostra Wagner Pereira no excerto acima citado, nos primeiros movimentos do

estrategista político que foi Hitler, o potencial a ser explorado no cinema era uma maneira

importante de fazer dessa arte uma força propulsora da efervescência das massas que eram o

alvo da política fascista. Esta perspicácia levou ao uso do cinema como fator de disseminação

da própria ideologia do nazismo, daí a liberdade para adentrar temas como o anti-semitismo e

a própria exaltação da magnitude dos grandes eventos realizados pelo regime.

Depois de chegados ao poder, os nazistas propuseram-se a investir, desde logo, nessa

idéia do judeu como inimigo nacional. Para isso os filmes projetados, ao atacarem os judeus,

o faziam de forma a mostrá-los como símbolos de tudo que pudesse ser identificado como

nocivo ao bom desenvolvimento da nação alemã. A idéia de anomalia presente entre os judeus

também posteriormente foi associada a eles, ainda que indiretamente, por meio do cinema.

Um emblemático filme dessa característica foi Der Ewige Jude (O judeu Eterno). Ao

falar da sorrateira penetração da presença judaica na Alemanha, Fritz Hippler, autor do filme,

apresenta uma visão em que o judeu é tido como verdadeiro ápice dos males que assolavam a

nação alemã. Ainda dando espaço a essa estigmatização, produziu-se um outro documentário

de nome O Führer doa uma cidade aos judeus. Aqui se tentou demonstrar que a vida do povo

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judeu nos campos de concentração nazistas, longe de ser um calvário, não passava de uma

benevolência do regime, já que o judeu é tido como um parasita que só usufrui a vida ali.

Observa-se que mesmo com a perpetração de diversas técnicas de morte e a inflição

de sofrimentos que iam desde o emocional ao físico propriamente dito, produziu-se uma

cinematografia que tentava mostrar o judeu como inimigo parasita da vida dos alemães. Nesse

sentido, a maneira de que se valeu o regime foi também através do cinema modelar a visão do

povo alemão a respeito do povo judeu, incitando sentimentos de aversão aos modos de vida e

a própria existência física judaica, considerada desprezível.

Ao analisar isto, uma autora que escreve sobre os campos de concentração, diz:

Meu argumento pode ser reforçado quando levamos em conta o lugar do inimigo nos discursos oficiais, mesmo quando este já perdeu sua relevância numérica ou política. Embora exilado, deportado, preso ou mesmo morto, continua sendo apresentado como um mal ameaçador, um perigo iminente. (MAGALHÃES, 2001, p. 68)

É perceptível neste excerto transcrito literalmente da autora a percepção - bastante

plausível - segundo a qual a lógica subjacente à boa parte da produção cinematográfica alemã

foi pintar o inimigo como um perigo sempre latente. Dito de um outro modo se deve lembrar

que o fascismo operou através das telas uma sociabilidade bastante peculiar em que se via o

inimigo (judeu, eslavo, e minorias a exemplo dos deficientes físicos) como um alvo constante

a ser perseguido independentemente de sua concreta condição no espaço público nacional.

A sociabilidade peculiar do fascismo ganha realce justamente em função de que se

sabe que a criação de espaços de sociabilidade não se dá - em regra - pela identificação de um

grupo que vise eliminar os outros que coexistam com ele.Via de regra, a sociabilidade implica

coexistência e não eliminação. No caso específico do cinema alemão da época da guerra, a

sociabilidade advinda do freqüentar as salas do cinema e apreciar a arte não se construiu na

direção da coexistência, ou pelo menos se deu numa coexistência limitada em que o objetivo

de identificar o inimigo era o alvo primordial que permeava a produção fílmica.

Isso não se constata de uma maneira fortuita. E para caracterizar de maneira mais

contundente o que se está formulando aqui, recorre-se a um segundo argumento: o filme

projetado garantia a energia de identificação com o carisma do chefe supremo. De fato, o

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chefe supremo necessita de pontos de apoio dos quais se possa valer para que seja criada uma

zona que serve de cenário para o diálogo entre líder e liderados. O cinema pode ser

identificado como essa arena viabilizada pelo combate ao inimigo.

Sem a presença do inimigo, ficaria bastante comprometida a eleição do tema que foi

veiculado nas telas: o tema privilegiado do expurgo pela violência física do sistema contra os

já citados males da nação. Desse modo transcreve-se novamente a autora citada:

Nesses casos, sabemos que a violência é sempre exercida contra um outro, outro desenhado, real ou imaginariamente, como inimigo. Outro que, mesmo tendo perdido sua importância (ou até desaparecido), continua a fornecer as energias afetivas ao regime. Outro que, quando denunciado, encontrado e aprisionado, serve de reforço ao entusiasmo nutrido pelo chefe carismático ou pela restauração da ordem, como é o caso das ditaduras militares latino-americanas. Outro que, inclusive, está presente nas origens dos movimentos que prefiguram a instauração de regimes totalitários ou autoritários. (MAGALHÃES, 2001, p. 67)

Analisando o fascismo sob o prisma utilizado por Marion, no trecho citado, torna-se

clara a percepção de que o referencial de imagens criado cinematograficamente, percorreu a

trajetória da crescente dinâmica de vilanização da figura dos judeus, eslavos e das minorias,

todos vistos como o ponto de apoio, nas palavras da autora um ponto de “reforço”.

Dizendo de um outro modo, a imagem do inimigo precisa ser explorada. Esta foi

uma das grandes percepções do regime fascista. A arte das telas evoluiu guiando-se pela

estratégia de apontar o inimigo, de explorar suas fraquezas e por fim mostrá-lo como ser

fulminado por uma implacável rede de defeitos. Nesta topografia é que o regime procura

adentrar a um terreno de relevo acidentado. As variações podem ser identificadas facilmente.

Elas estão presentes na atitude indistinta do regime para com o inimigo. Não importa

se ele é numericamente significativo ou se já se encontra em vigorosa desvantagem tanto em

termos de população como em termos mais amplos, da existência como um todo. Mesmo que

a capacidade mínima de resistência do inimigo esteja praticamente inviável ou resumida a

meros índices de reprodução, a filmografia continuava a sinalizar para o inimigo, afinal era

ele um ponto de retroalimentação da violência a ser perpetrada, da guerra a ser continuada.

Essa insistência em fazer predominar uma tendência no cinema alemão, isto é, a

opção em chamar o público para o aplauso aos ataques a personagens específicos traz a

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primeira vista a possibilidade de esvaziamento dessa insistência. Ocorre que mesmo tendo

sido feita uma profusão de filmes apontando para o perigo do inimigo, o cinema alemão

fascista não estacionou neste posicionamento. Isso pode ser afirmado porque apesar da

estratégia ter sido predominante linear na direção já apontada, há alguns detalhes que matizam

essa linearidade. Com efeito, a utilização de documentários foi o primeiro deles.

Isso se diz devido ao fato de que a operação do cinema que predomina no ataque já

referido, se desdobra na apologia e na auto-referenciação do sistema. De fato, se o inimigo

precisa ser combatido, as razões para esse ataque se multiplicam e ultrapassam a mera

sinalização das mazelas de outrem. De forma reversa, ao demonstrar suas próprias grandezas

o regime fascista comunicava a importância e a eficácia da estratégia para qual o povo alemão

era conclamado também através dos documentários que compunham a filmografia fascista.

Desse modo, o documentário aparece como outro ponto privilegiado da produção

cinematográfica da Alemanha no fascismo. Deve-se deter a análise acerca desse aspecto do

cinema de forma a perceber outros caminhos percorridos quando se trata de analisar o

funcionamento dessa outra forma de consolidação do regime fascista.

Em se tratando de documentário, o exemplo mais acabado desse gênero

cinematográfico pode ser encontrado no nome de Leni Riefenstahl. Sua ligação sempre forte

com a arte e sua trajetória na esquematização do cinema nazista torna necessário um breve

passeio sobre a produção dessa mulher que fora artista, cineasta, bailarina e fotógrafa.

Inicialmente, destaca-se o fato de que o documentário como o estilo de produção que

celebrizou a já premiada cineasta, lançou-a no quadro dos nomes mais importantes do cinema

nazista com o filme Triumph des Willens (O Triunfo da Vontade). Este filme - segundo versão

da própria criadora - fora encomendado pelo próprio Hitler que havia se agradado do filme A

Luz Azul. O filme-documentário O Triunfo da Vontade fora feito para imortalizar a

realização do 6º Congresso do Partido Nacional-Socialista em 5 de outubro de 1934.

O estilo documentário aparece como importante foco de exaltação do regime e é

muito bem trabalhado na obra de Leni Riefenstahl. Ao apresentar a peculiaridade de deixar

clara e diretamente caracterizada a glorificação de um regime de fortes e bem sucedidas

pessoas, o documentário nas mãos de Leni Riefenstahl, credenciou-se como importante

veículo de difusão da fama do regime nazista, sobretudo porque a cineasta era premiada em

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festivais internacionais de cinema, tanto pela qualidade técnica das filmagens como pela

audácia em sempre lançar novas formas de filmar que freqüentaram seus documentários.

Ao perceber esse marco, uma estudiosa do tema comenta o documentário célebre:

Cem, duzentos mil homens aglutinados pela lente de uma câmera: Riefenstahl apresenta em seu filme imagens que – como o próprio nome da película sugere – deveriam traduzir o triunfo da vontade, a vitória do desejo... Do desejo de ser nação, unidade. De ser coletivo, de ser massa. (RIGOTTI, 2006, p. 4)

Agora através do documentário, a exaltação do regime aparece de maneira bastante

aberta, o que era, aliás, objetivo privilegiado do regime, sobretudo a partir do momento que a

guerra vai se desenrolando. O que a autora percebe é o incremento dessa sensação de

pertencimento, ou seja, do sentimento de constituir um componente importante da grande

nação alemã que aparecia nas lentes da documentarista Leni Riefenstahl.

Paralelamente, ainda fica clara a exploração dos sentimentos de glorificação que

deveriam ser insidiosamente explorados nas massas inundadas pelo sentimento de

grandiosidade que deveria atrair a multidão envolvida. A câmera, no documentário, deve fazer

um enfoque de tal modo a deixar bastante claro que quem está sendo filmado apresenta-se em

conexão direta com o supremo líder enquanto concentrador do poder e da atenção dos que

estão diretamente sob seu comando, fazendo com que toda a nação se sentisse reflexamente

sob o supervisionamento do líder, numa sistemática perfeita de identificação.

É importante destacar que o sucesso de Leni Riefenstahl foi alcançado não só pelo

talento individual e pela repercussão de seus documentários em nível internacional na época

em que foram lançados. Pode-se citar um outro exemplo a pretexto de afirmar o argumento

sustentador do entendimento desse êxito. É o caso do documentário Sieg des Glaubens: der

film vom reichsparteitag der NSDAP (Vitória da Fé: o filme do congresso do partido

nacional-socialista). Esta peça enfocou a reunião do 1º Congresso dos nazistas após terem

chegado ao poder na Alemanha, o que já demonstra a importância deste documentário.

Nesse trabalho inicial, a famosa cineasta já mostrava seu talento na sustentação do

regime nazista. Sua técnica constituiu-se basicamente na utilização dos sons e das imagens já

que neste trabalho não há comentários ou mesmo o uso de títulos. O plano da filmagem usou

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a combinação da trilha sonora composta especialmente para o filme juntamente com o som

original dos discursos e dos hinos entoados pela multidão inflamada em praça pública.

Desde os primeiros trabalhos a cineasta já buscava destacar a autoridade dos líderes

ao utilizar o som original dos discursos feitos naquelas grandes reuniões. Por outro lado,

demonstrava a eficácia de conquista do regime na forma como mostrava o vigor das

multidões ao cantar os hinos comemorativos em uma reunião do partido eleito. O que se pode

dizer é que desde o início a autora já se mostrava bastante identificada com as opções

estéticas do regime nazista e denotava essa sintonia em cada uma das obras sob sua direção.

Nesse sentido, pode ser citado novamente um texto da última autora citada:

(…) persistindo é que as escolhas por uma forma estética que enalteça ideais nacionalistas, que motive para o pertencimento à nação e atice o ódio ao forasteiro passam a ter o poder de legitimar os anseios políticos do III Reich e, para além dele, dos regimes totalitários em geral. Dessa forma, suas imagens fílmicas tornam-se imagens fantásticas, daquelas produzidas para não mais serem esquecidas. (RIGOTTI, 2006, p. 9)

De fato, o que se observa, seguindo a lição da autora no excerto transcrito é que entre

as aludidas escolhas feitas pela estética nazista estavam a verborragia nacionalista, além da

preferência pela construção de imagens fantásticas. É preciso dizer: espetaculares. Eram

imagens que através do documentário precisariam ficar registradas não só nas lentes, mas na

memória do povo alemão e também dos demais povos para que servissem de exemplo.

A documentarista acabou contribuindo de forma decisiva para a viabilização dos

objetivos políticos do regime. Isso não significa, entretanto, que em todos os momentos Leni

Riefenstahl gozou de plena aceitação e reconhecimento de seu talento no interior dos círculos

do partido nazista. Neste sentido se pode citar a querela da cineasta com um dos principais

nomes do partido. Trata-se de Joseph Goebbels, ministro da propaganda do estado hitleriano.

Enquanto a cineasta do regime produzia filmes que não economizavam recursos para

exploração da técnica propagandística, o ministro da propaganda debatia-se contra a referida

tática. Pelo menos nos primeiros anos da guerra, Goebbels, pensava em um caminho não tão

alinhado com o que a cineasta acabou produzindo em suas peças cinematográficas.

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Isso se deve ao fato de que na visão daquele que se poderia chamar “braço direito”

do regime, a propaganda nos inícios da guerra deveria se resumir basicamente a exaltar a

superioridade racial e o culto ao líder. Há informações de que Goebbels tentou inclusive

sabotar alguns dos filmes de Leni, quando tinha interesse ele próprio em dirigir as películas.

Em outros casos, há indícios mesmo de que Goebbels esteve clandestinamente à

frente de operações de incêndios em salas de projeções que guardavam produções de Leni.

Esta, entretanto, gozava do apoio de Hitler o que por si só já garantia uma boa margem de

manobra para que a cineasta pudesse executar sua produção do modo por ela escolhido.

Além disso, pode-se dizer que as divergências internas advindas deste desconforto

entre duas figuras-chave do regime não foram impeditivas do transcurso da política cultural

mais ampla do nazismo. De fato, se nota que inicialmente há uma certa indecisão de Goebbels

em partir logo para os filmes mais diretamente doutrinários e coerentes com um bombardeio

aberto das massas no sentido de uma verdadeira filmografia de guerra, nota-se que com o

aproximar dos fins da guerra as coincidências de temas se verificaram.

Em outras palavras, com o fim da guerra há a necessidade de projetar para as telas os

anseios que o regime não conseguia atingir na realidade. Essa demanda fez com que não

houvesse mais dúvida de que temas escolher e de que caminho deveria ser tomado. A

Alemanha teria sim que ser exaltada e não era mais possível selecionar outros temas que não

os que dissessem respeito àquela exaltação, ou que fossem desdobramento disto.

Assim se nota a riqueza de detalhes com que se pode compor a história do nazismo e

fascismo através do cinema. Como se pode observar, não é um caminho tão simples. Seu

caráter desafiador continua a convidar outros estudiosos das diversas áreas do conhecimento

humanístico a adentrarem os portais da pesquisa sobre um tema tão múltiplo como o

fascismo. E esse é um percurso que se mostra promissor, pelo que foi visto aqui.

A busca pela percepção da lógica fascista, além da natural curiosidade, que é o

próprio agente indutor do trabalho histórico, atuam como grandes ferramentas que denotam a

permanente demanda por um mergulho mais demorado nas águas profundas da onda histórica

que inundou o mundo do século XX e trouxe tantos questionamentos aos contemporâneos ou

mesmo estudiosos que tomam até hoje contato com as fontes referentes àquele momento.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O caminho trilhado pela pesquisa do fascismo no intervalo entre as duas vertentes

mais comuns: o marxismo e a História cultural, mostrou ao longo deste desafio que embora a

maioria dos autores prefira a primeira ou a segunda vertente, é possível estender o olhar

através das possíveis inter-relações oferecidas pelo tema. À guisa de algo mais sintético a

dizer sobre esta opção, pode-se afirmar que é perfeitamente possível entremear a investigação

do fascismo através de um discurso que siga ao mesmo tempo as sendas do marxismo e da

História Cultural. Ao que se pôde observar a complexidade do tema é o próprio convite a isso.

Pode-se notar que os desvãos da história do fascismo se vão costurando sempre de

maneira sugestiva na diversidade de ruas e avenidas pelas quais poderão trafegar os futuros

estudos sobre o fascismo. A riqueza do tema faz com que se possa perceber que a própria

tessitura interna produziu um rosto para o regime que não pode ser vislumbrado caso se

permaneça nas análises frias dos ambientes tradicionais do fazer político.

De toda sorte, ao que se pode notar ao longo das linhas aqui postas, sinaliza para o

fato de que é possível ver uma força propulsora em toda a fermentação ideológica anterior a

instalação do fascismo nos quadros institucionais. Este vigor anterior mostrou-se de grande

valia quando, uma vez instalado no poder, o fascismo pudesse promover uma re-engenharia

de massas, tornando-se uma verdadeira máquina de aliciamento político muito eficiente.

Nada disso teria sido possível de se enxergar, caso não se encarasse a lógica do

Estado fascista sob a dupla égide da ideologia e da política junto ao grande público. Este fora

constantemente confrontado com uma técnica na qual o chefe supremo - imortalizado nas

imagens construídas para não serem esquecidas - se punha na posição de último porta-voz de

uma vida que havia chegado para ficar e cujos efeitos ainda não eram totalmente mostrados.

Os morticínios e o sangue das plagas dos campos de concentração ainda não haviam

sido examinados pelos historiadores. Mas é lógico que não havia dúvidas sobre o massacre de

judeus e a perseguição dos povos do leste europeu ou a dizimação de minorias. Pela lógica de

funcionamento do regime, estes eram passos necessários à consolidação da ordem fascista.

Essa lógica se agudiza à medida que o fascismo vê a demanda por sua continuidade ao longo

do segundo conflito mundial. Há uma verdadeira maquinaria de guerra em movimento

paralelo ao crescimento e consolidação do regime que retroalimentava-se desse conflito.