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1 UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE HUMANIDADES PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUÍSTICA APLICADA - POSLA BENEDITA FRANÇA SIPRIANO VOZES SOCIAIS E PRODUÇÃO DE SENTIDOS: A REPRESENTAÇÃO DO BEATO JOSÉ LOURENÇO E DO MOVIMENTO CALDEIRÃO NA COBERTURA DO JORNAL O POVO (1934-1938) FORTALEZA CEARÁ 2014

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ

CENTRO DE HUMANIDADES

PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUÍSTICA APLICADA - POSLA

BENEDITA FRANÇA SIPRIANO

VOZES SOCIAIS E PRODUÇÃO DE SENTIDOS:

A REPRESENTAÇÃO DO BEATO JOSÉ LOURENÇO E DO MOVIMENTO

CALDEIRÃO NA COBERTURA DO JORNAL O POVO (1934-1938)

FORTALEZA – CEARÁ

2014

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BENEDITA FRANÇA SIPRIANO

VOZES SOCIAIS E PRODUÇÃO DE SENTIDOS:

A REPRESENTAÇÃO DO BEATO JOSÉ LOURENÇO E DO MOVIMENTO

CALDEIRÃO NA COBERTURA DO JORNAL O POVO (1934-1938)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Linguística Aplicada do Centro

de Humanidades da Universidade Estadual do

Ceará, como requisito parcial para obtenção do

grau de Mestre em Linguística Aplicada.

Área de Concentração: Linguagem e Interação

Orientador: Prof. Dr. João Batista Costa

Gonçalves.

FORTALEZA – CEARÁ

2014

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação

Universidade Estadual do Ceará

Biblioteca Central do Centro de Humanidades

Bibliotecário Responsável – Doris Day Eliano França – CRB-3/726

S618v Sipriano, Benedita França.

Vozes sociais e produção de sentidos: a representação do beato

José Lourenço e do movimento Caldeirão na cobertura do jornal O

Povo (1934-1938) / Benedita França Sipriano. – 2014.

CD-ROM. 196 f.; il. (algumas color.) : 4 ¾ pol.

―CD-ROM contendo o arquivo no formato PDF do trabalho

acadêmico, acondicionado em caixa de DVD Slim (19 x 14 cm x 7

mm)‖.

Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual do Ceará, Centro

de Humanidades, Programa de Pós-Graduação em Linguística

Aplicada, Fortaleza, 2014.

Área de Concentração: Linguagem e Interação.

Orientação: Prof. Dr. João Batista Costa Gonçalves.

1. Vozes sociais. 2. Discurso citado. 3. Entonação. 4. Jornalismo. 5.

Caldeirão. I. Título.

CDD: 418

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AGRADECIMENTOS

A todas as forças divinas, que tantas graças nos dão.

A meus pais, meus irmãos e irmãs, pela fortaleza e por todo o apoio que sempre deram

à minha ―vida de estudante‖.

Ao João Gabriel Krisnha, meu filho, companheiro de todas as horas. Ao Sidarta

Guimarães, pela serenidade, companheirismo e compreensão.

À irmandade do Céu da Flor do Cajueiro, pela força de hoje e sempre.

Aos amigos de longas datas que me acompanham e torcem por mim; neste momento,

em especial, Carla Sales, Cellina Muniz, José Erivan, Mônica Silva e Renata Torquato. Aos

amigos ―cratenses‖, Claudio Reis, Anna Karine e Luana Lanzana. Aos amigos da AL/CE,

―companheiros de jornada‖, André Queiroz, Airton Paula e Alberto Barros. Aos amigos do

PosLA, pelo carinho e apoio, em especial, Ismael Fabrício, Indira Guedes, Laryssa Queiroz,

Janaina Lisboa e Marco Antonio.

Ao pesquisador Leandro Freire, do Projeto ―Caldeirão Vivo‖, pela atenção e por ter

disponibilizado material fotográfico que ilustra este trabalho.

Ao professor Domingos Sávio Cordeiro, pela disponibilidade e pelas informações

compartilhadas.

Ao professor Gilmar de Carvalho, com quem comecei a pesquisar sobre o Caldeirão e

que é inspiração e referência para tantos pesquisadores, pela disponibilidade em fazer parte da

banca.

À professora Claudiana de Alencar, por sua força, sabedoria e por ter me

acompanhado desde a banca da monografia de Especialização, sempre trazendo contribuições

valiosas.

Ao professor Ruberval Ferreira, meu professor desde a graduação, a quem muito

admiro e que trouxe orientações fundamentais na minha banca de qualificação.

Ao estimado professor João Batista Costa Gonçalves, meu orientador desde a

Especialização, pela disponibilidade, atenção e competência com a qual acompanhou a

realização deste trabalho.

Agradeço, ainda, por todos os ensinos, às professoras Catarina Farias, Dina Ferreira e

Helenice Costa.

Agradecimentos, também, à equipe da coordenação do PosLA, especialmente, à

Keiliane Dantas, por ser sempre tão prestativa e atenciosa. Aos bibliotecários Welton Rios e

Thelma Marylanda, da Biblioteca Central do Campus do Itaperi - UECE, e aos funcionários

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da Biblioteca do Centro de Humanidades da UFC; da Biblioteca do Centro de Humanidades

da UECE; do Banco de Dados do jornal O Povo e do Setor de Microfilmagem da Biblioteca

Pública Governador Menezes Pimentel.

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BEATO ZÉ LOURENÇO

Sempre digo, julgo e penso

Que o beato Zé Lourenço

Foi um líder brasileiro

Que fez os mesmos estudos

Do grande herói de Canudos

Nosso Antônio Conselheiro

Tiveram o mesmo sonho

De um horizonte risonho

Dentro de uma mesma intenção,

Criando um sistema novo

Para defender o povo

Da maldita escravidão.

Em Caldeirão trabalhava

E boa assistência dava

A todos os operários,

Com a sua boa mente

Lutava pacificamente

Contra os latifundiários.

Naquele tempo passado

Canudos foi derrotado

Sem dó e sem compaixão,

Com a mesma atrocidade

E maior facilidade

Destruíram Caldeirão

Por ordem dos militares

Avião cruzou os ares

Com raiva, ódio e guerra,

Na grande carnificina

Contra a justiça divina

O sangue molhou a terra

Porém, por vários caminhos,

Pisando sobre os espinhos,

Com um sacrifício imenso,

Seguindo o mesmo roteiro

Sempre haverá Conselheiro

E beato Zé Lourenço.

Patativa do Assaré

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RESUMO

Este trabalho situa-se no campo das pesquisas em Linguística Aplicada (LA)

contemporânea e toma como referencial teórico-metodológico a Análise Dialógica do

Discurso (ADD), fundamentada a partir dos escritos do Círculo de Bakhtin, Bakhtin (2006,

2010, 2013); Volochínov (2011), Bakhtin/Volochínov (1990); e de estudiosos da teoria

bakhtiniana, como Brait (2006, 2010) e Faraco (2009). Nessa perspectiva, objetivamos

analisar, a partir da concepção de vozes sociais, a construção das representações do

movimento Caldeirão e do beato José Lourenço em textos jornalísticos publicados no jornal O

Povo, no período de 1934 a 1938. O Caldeirão foi uma experiência de organização social

comunitária, ocorrida na década de 1930, no Cariri cearense. Sob acusações como heresia,

fanatismo e comunismo, o movimento foi reprimido, em 1936 e 1937, pelas forças do

Governo, com o apoio da Igreja Católica e das elites da região. Na abordagem bakhtiniana, o

conceito de vozes sociais está relacionado a posturas ideológicas, visões de mundo e

posicionamentos axiológicos, produzidos a partir de diferentes horizontes sociais de valor. Os

discursos são atravessados por múltiplas e heterogêneas vozes sociais, que se entrecruzam e

são permeadas pelo embate entre forças centralizadoras (tendem à reprodução dos sentidos

dominantes) e forças descentralizadoras (tendem à abertura para novos sentidos). A partir da

discussão sobre vozes sociais, trabalhamos o conceito de heteroglossia, compreendido como

uma expressão das relações dialógicas, que se manifesta por meio de mecanismos como o

discurso citado e o acento apreciativo. Assim, neste trabalho, objetivamos também: a)

analisar o discurso citado, como espaço de confrontos entre diversas vozes sociais, que

marcam posições sócio-ideológicas conflitantes, diferentes horizontes sociais de valor,

observando os efeitos de sentidos produzidos; b) analisar, a partir da entonação (dos acentos

apreciativos), que recursos linguístico-discursivos contribuem para marcar posicionamentos

avaliativos na luta pela produção dos sentidos; c) discutir acerca das condições históricas de

produção e circulação do discurso jornalístico sobre o movimento Caldeirão. Como resultados

da análise, destacamos que, na cobertura do jornal O Povo, ficam evidenciadas as tensas

relações entre forças centralizadoras, que tentam legitimar as vozes oficiais; e forças

descentralizadoras, que questionam essas vozes. Entretanto, ao longo da cobertura do O Povo,

apesar de emergirem vozes questionadoras dos sentidos dominantes, predominam acentos

apreciativos e posicionamentos que vão construindo a representação do beato José Lourenço e

do movimento Caldeirão como ―fanáticos‖, ―perigosos à ordem‖. Assim, vão se constituindo

sentidos hegemônicos, legitimadores da repressão ao Caldeirão.

Palavras-chave: Vozes sociais. Discurso citado. Entonação. Caldeirão. Jornalismo.

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ABSTRACT

This work lies in the field of research in Applied Linguistics (LA) contemporary and

takes as a theoretical and methodological reference the Dialogic Discourse Analysis (DDA),

based on the writings of Bakhtin‘s Circle , such as Bakhtin (2006 , 2011, 2013 ); Volochínov

(2011 ) , Bakhtin / Volochínov (1990), and authors such as Brait (2006, 2010) and Faraco

(2009 ). In this perspective, we aimed to analyze, parting from the concept of social voices,

the construction of the representations of Caldeirão movement and devotee José Lourenço in

articles published in the newspaper O Povo , between 1934 and 1938. The Caldeirão was an

experience of community social organization that occurred in the 1930s, in Ceará, Cariri.

Under charges of heresy, fanaticism and communism, the movement was suppressed in 1936

and 1937 years by the forces of the Government, with the support of the Catholic Church and

the elites of the region. In Bakhtin's approach, the concept of social voices is related to

ideological positions, worldviews and axiological positions, produced from the different

horizons of social value. The discourses are crossed by multiple and heterogeneous social

voices that intertwine and are permeated by the clash between centralizing forces (that tends

to reproduce the meanings of a dominant ideology) and decentralizing forces (that tends to the

opening of new meanings). From the discussion of social voices, we deal with the concept of

heteroglossia, here understood as an expression of dialogical relations, manifested through

mechanisms such as the reported speech and the evaluative accent. Thus, in this work, we also

aim to: a) analyze the reported speech as an area of conflict between different social voices

that marks socio-ideological positions, different social horizons of value, observing the effects

of meanings produced; b) analyze, parting from the intonation (of the evaluative accents),

which linguistic and discursive resources contributes to mark evaluative positions in the

dispute for the production of meanings; c) discuss about the historical conditions of

production and circulation of the journalistic discourse about Caldeirão movement. As results

of the analysis, we point out that, on the covering of events of the newspaper O Povo, are

highlighted the strained relations between centralizing forces that try to legitimate the official

voices; and decentralizing forces, that question these voices . However, along the covering of

O Povo, despite the emergence of questioning voices of the dominant meanings, the

appreciative accents and positions that builds the representation of devotee José Lourenço and

the Caldeirão movement as "fanatics" and "dangerous to the order‖ still remain. Therefore,

hegemonic meanings are constituted as a way of legitimizing the repression of the Caldeirão.

Keywords: Social Voices. Reported speech. Intonation. Caldeirão. Journalism.

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LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1- Logotipo do jornal O Povo nos seus primeiros anos de publicação ................ 74

FIGURA 2- José Lourenço .................................................................................................. 96

FIGURA 3- Sítio Caldeirão ................................................................................................. 100

FIGURA 4- Beato José Lourenço ....................................................................................... 104

FIGURA 5- Capa do livro A Ordem dos Penitentes ........................................................... 112

FIGURA 6- Moradoras do Caldeirão .................................................................................. 115

FIGURA 7- Manchete matéria O Povo ............................................................................... 135

FIGURA 8- Manchete matéria O Povo ............................................................................... 143

FIGURA 9- Manchete matéria O Povo ............................................................................... 148

FIGURA 10- Beato José Lourenço com sua afilhada Maria de Maio................................. 150

FIGURA 11- Manchete matéria O Povo ............................................................................. 151

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LISTA DE QUADROS

QUADRO 1- Elementos da comunicação ........................................................................... 62

QUADRO 2 - Textos sobre o movimento Caldeirão publicados no jornal O Povo (1934-

1938) ................................................................................................................................... 123

QUADRO 3 – Síntese: Referencial teórico-metodológico/ procedimentos de análise de

dados .................................................................................................................................... 127

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 14

2 RELAÇÕES DIALÓGICAS E PRODUÇÃO DE SENTIDOS .................................. 20

2.1 Análise Dialógica do Discurso no âmbito da Linguística Aplicada ........................ 20

2.1.1 Sobre o Círculo de Bakhtin ........................................................................................ 23

2.1.2 Análise Dialógica do Discurso: questões teórico-metodológicas............................... 25

2.2 Dialogismo .................................................................................................................... 28

2.3 Signo Ideológico: linguagem e relações de poder ..................................................... 32

2.4 Vozes Sociais e Heteroglossia ...................................................................................... 37

2.4.1 O discurso citado na teoria bakhtiniana. ..................................................................... 44

2.4.2 Acento apreciativo/ Estilo .......................................................................................... 48

2.5 Políticas de Representação .......................................................................................... 54

3 DISCURSO JORNALÍSTICO ...................................................................................... 60

3.1 A construção do discurso jornalístico ........................................................................ 60

3.1.1 Comunicação x informação ....................................................................................... 62

3.2 Sobre as origens da atividade jornalística no Brasil e a emergência do

jornalismo “informativo” ................................................................................................. 64

3. 3 O jornalismo cearense nas décadas de 1920 e 1930 ................................................. 67

3.3.1 O jornal O Povo .......................................................................................................... 71

4 CONTEXTO HISTÓRICO DO MOVIMENTO CALDEIRÃO ............................... 77

4.1 Movimentos sociorreligiosos: Canudos, Contestado, Pau de Colher ...................... 77

4.2 Catolicismo popular .................................................................................................... 82

4.2.1 Beatos ......................................................................................................................... 85

4.2.2 Sobre a concepção de ―fanatismo‖ ............................................................................. 89

4.3 Juazeiro do Padre Cícero ............................................................................................ 93

4.3.1 O beato José Lourenço ............................................................................................... 95

4.4 A experiência comunitária do sítio Caldeirão da Santa Cruz do deserto .............. 99

4.4.1 A invasão ao Caldeirão ............................................................................................... 106

4.4.2 O confronto na Serra do Araripe ................................................................................ 108

4.5 A voz oficial: o Relatório de Polícia ........................................................................... 111

4.6 Anos 30: a conjuntura política no Brasil e no Ceará ............................................... 116

5 ANÁLISE DIALÓGICA DO DISCURSO JORNALÍSTICO SOBRE O

MOVIMENTO CALDEIRÃO ......................................................................................... 122

5.1 Percurso metodológico ................................................................................................ 122

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5.1.1 Corpus ......................................................................................................................... 123

5.1.2 Procedimento de análise de dados .............................................................................. 125

5.2 PARTE I - Textos publicados antes da invasão ao sítio Caldeirão ......................... 127

5.3 PARTE II- Textos publicados depois da invasão ao sítio Caldeirão/ Antes do

confronto na Serra do Araripe ......................................................................................... 131

5.4 PARTE III – Textos publicados depois do confronto na Serra do Araripe ........... 134

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 154

REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 159

ANEXOS ............................................................................................................................ 171

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1 INTRODUÇÃO

O Caldeirão foi uma experiência de organização social, ocorrida na década de 1930,

no município do Crato, no Cariri cearense. O movimento teve a liderança do beato José

Lourenço, agricultor negro, paraibano, que chegou ao Cariri no cortejo das romarias a

Juazeiro do Norte, no final do século XIX. Sob acusações como heresia, fanatismo e

comunismo, o Caldeirão foi reprimido, em 1936 e 1937, pelas forças do Governo, com o

apoio da Igreja Católica e das elites da região.

Esse movimento teve grande repercussão na imprensa da época. As tensas relações e

os conflitos entre esses vários agentes sociais se materializaram nas páginas dos jornais.

Assim, alguns questionamentos iniciais são motivadores desta pesquisa: na cobertura da

imprensa sobre o Caldeirão, havia espaço para vozes dissonantes, questionadoras das vozes

oficiais que justificaram a destruição do movimento, ou predominavam sentidos

hegemônicos, ligados aos grupos de poder? Como é construída a representação do Caldeirão e

do beato José Lourenço na imprensa? É possível analisar a presença dessas vozes em

conflito?1.

Para mobilizarmos essa discussão, neste trabalho, tomamos como referencial teórico-

metodológico a Análise Dialógica do Discurso, cujo fundamento é a teoria bakhtiniana.

Assim, objetivamos investigar, a partir da concepção de vozes sociais, a construção das

representações do movimento Caldeirão e do beato José Lourenço em textos publicados no

jornal O Povo, no período de 1934 a 1938. Bakhtin e o Círculo compreendem a linguagem

como prática social que se efetiva a partir da interação entre sujeitos históricos, portanto

estudar linguagem nessa perspectiva, significa, também, estudar história, cultura e sociedade.

1 Meu primeiro contato com a temática do Caldeirão aconteceu nas aulas de História, no Ensino Médio, no final

dos anos 1990. O movimento foi apresentado como uma ―comunidade igualitária‖, a ―Canudos do Ceará‖. Já

tinha interesse pela história dos movimentos sociais e pelas manifestações da chamada ―cultura popular‖, assim

causaram-me boa impressão e curiosidade as narrativas sobre aquela experiência comunitária, ocorrida no Ceará

e liderada por um religioso popular, o beato José Lourenço. Na faculdade, o interesse pela história do Caldeirão

resultou em um trabalho na disciplina ―Ética e Legislação no Jornalismo‖, no ano de 2000, no Curso de

Comunicação Social da UFC (Universidade Federal do Ceará). A partir do desenvolvimento desse trabalho, em

2003, defendi monografia de conclusão de Curso, na qual analisei o discurso jornalístico sobre o Caldeirão,

tomando como referencial a Análise do Discurso Francesa. Em 2007, em continuidade à pesquisa sobre o

Caldeirão, produzi o trabalho de conclusão do Curso de Letras da UECE (Universidade Estadual do Ceará),

intitulado ―A Irmandade da Santa Cruz do Deserto: o dramático como denúncia do conflito social‖, no qual

analisei uma peça teatral do escritor cearense Oswald Barroso, que trata do movimento liderado pelo beato José

Lourenço. Em 2011, no Curso de Especialização em Ensino de Língua Portuguesa da UECE, apresentei

monografia que discute acerca da heterogeneidade discursiva em textos jornalísticos sobre o movimento

Caldeirão. Em 2012, esse trabalho foi premiado no I Concurso de Monografias de Especialização da UECE, o

que resultou na publicação do capítulo de um livro (SIPRIANO; GONÇALVES, 2013). Na presente pesquisa,

procuro aprofundar a discussão sobre o movimento Caldeirão na imprensa cearense, tomando como referencial

teórico-metodológico a teoria bakhtiniana.

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No que se refere à História, trabalhamos com a historiografia sobre o movimento

Caldeirão e outros movimentos sociorreligiosos, o catolicismo popular e o contexto político

dos anos 1930, em autores como Della Cava (1976), Barros (1988) Souza (1994, 2007),

Ramos (1990), Hoornaert (1984,1990, 1994) e Cordeiro (2004). Com relação aos estudos do

campo do jornalismo, trabalhamos com autores, tais como Nobre (1974), Sodré (1999),

Mariani (1999), Rüdiger (2003) e Barbosa (2007).

Nessa perspectiva, este trabalho situa-se no campo das pesquisas em Linguística

Aplicada (LA) contemporânea, abordagem dos estudos da linguagem que vem passando por

uma renovação quanto às suas problemáticas e objetos. A teoria bakhtiniana considera a

linguagem como uma atividade dialógica que se efetiva em situações concretas de

comunicação verbal. As formas linguísticas, nessa abordagem, não são neutras e desprovidas

de intencionalidades, pois correspondem a diferentes perspectivas ideológicas. Assim, as

representações são compreendidas como construções sociais que emergem a partir da relação

com o outro, portanto não são um mero ―reflexo da realidade‖. Nesse sentido, a concepção de

representação abordada neste trabalho articula os pressupostos da teoria bakhtiniana com a

discussão sobre políticas de representação, desenvolvida por Rajagopalan (2002, 2003).

Na abordagem bakhtiniana, o conceito de vozes sociais está relacionado a diferentes

visões de mundo, pontos de vista, posturas ideológicas. Assim, a construção dos sentidos é

marcada por lutas e tensões que se materializam na linguagem. A partir da discussão sobre

vozes sociais, trabalhamos o conceito de heteroglossia, compreendida como a multiplicidade

e heterogeneidade de vozes sociais que se inter-relacionam no universo das relações

dialógicas. O diálogo entre a diversidade de vozes sociais vai constituindo a cadeia da

comunicação verbal. Assim, a heteroglossia é uma expressão do dialogismo e se manifesta

por meio de mecanismos como o discurso citado e o acento apreciativo.

Neste percurso, objetivamos, também: a) analisar o discurso citado como espaço de

confrontos entre diversas vozes sociais, que marcam posições sócio-ideológicas conflitantes,

diferentes horizontes sociais de valor, observando os efeitos de sentidos produzidos; b)

analisar, a partir da entonação (dos acentos apreciativos), recursos linguístico-discursivos que

contribuem para marcar posicionamentos avaliativos na luta pela produção dos sentidos; c)

discutir acerca das condições históricas de produção e circulação do discurso jornalístico

sobre o movimento Caldeirão.

Quanto à sua estrutura, o trabalho está dividido em quatro capítulos. No capítulo 1,

discutimos sobre a Análise Dialógica do Discurso (ADD) no âmbito na Linguística Aplicada

contemporânea e sobre o Círculo de Bakhtin. Trabalhamos, também, com algumas das

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concepções fundantes da teoria bakhtiniana, as quais elegemos como fio condutor para nossa

discussão: a) relações dialógicas e produção de sentidos; b) signo ideológico: linguagem e

relações de poder; c) vozes sociais e Heteroglossia ( o confronto entre a diversidade de vozes

sociais, no âmbito das relações dialógicas); d) discurso citado; e) estilo/ acento apreciativo.

Articulando com a discussão sobre relações dialógicas, trazemos, ainda, neste capítulo, o

debate sobre políticas de representação, desenvolvido por Rajagopalan (2002, 2003). Assim,

não objetivamos analisar se o jornal O Povo constrói uma representação ―verdadeira‖ ou

―adequada‖ de José Lourenço e do movimento Caldeirão, interessa-nos investigar os sentidos

que emergem a partir dos confrontos entre diferentes vozes sociais (diversas perspectivas

sócio-ideológicas).

O discurso jornalístico está situado historicamente e é palco de embates ideológicos,

da tensa relação dominação x resistência dos vários agentes sociais. Entretanto, os jornais são

vistos, muitas vezes, como fontes de uma ―verdade histórica‖. Assim, ao pesquisador que

utiliza os jornais como fonte documental é necessária uma postura crítica, reflexiva, tendo em

vista que os textos jornalísticos não podem ser compreendidos como simples ―espelhos da

realidade‖. Além disso, é preciso considerar as condições de produção da atividade

jornalística no contexto histórico em análise, que podem ser bem diferentes das práticas do

jornalismo atual. Assim, por exemplo, princípios como a objetividade e imparcialidade do

jornalismo são construções históricas, consolidadas, no Brasil, apenas na segunda metade do

século XX.

Nessa perspectiva, analisar a cobertura da imprensa sobre o Caldeirão requer debater

sobre discurso jornalístico e relações de poder. Dessa forma, no capítulo 2, discutimos sobre a

construção do discurso jornalístico e sobre o percurso histórico de configuração do jornalismo

no Brasil e no Ceará, enfatizando o debate em torno da relação opinativo x informativo.

Assim, discutimos, também, sobre as condições de produção e circulação do jornalismo

cearense nas décadas de 1920 e 1930 e sobre a história do jornal O Povo, procurando

contextualizá-la no âmbito dos confrontos políticos e ideológicos em cena na época.

Considerando as condições de produção do discurso jornalístico sobre o Caldeirão, no

capítulo 3, apresentamos o contexto histórico em que ocorreu esse movimento, reportando-

nos à história de outros movimentos sociorreligiosos (Canudos, Contestado e Pau de Colher),

ao catolicismo popular, à historiografia do Caldeirão e à conjuntura política no Brasil e no

Ceará nos anos 1930. As formas de nomeação também indicam posturas apreciativas,

posicionamentos. Nos textos em análise é frequentemente atribuída a adjetivação ―fanático‖

ao beato José Lourenço e ao povo do Caldeirão. Assim, discutimos, ainda, sobre o processo

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de construção dos signos ―beato‖ e ―fanático‖ no horizonte social de valores das camadas

letradas da sociedade. Também desenvolvemos, neste capítulo, uma análise do relatório

policial produzido após a invasão ao Caldeirão. Esse relatório representa as vozes oficiais

sobre o movimento.

No capítulo 4, a partir dos referenciais teórico-metodológicos, realizamos a análise do

discurso jornalístico sobre o Caldeirão. Apresentamos o percurso metodológico da nossa

pesquisa, o corpus, os dados e os procedimentos de análise dos dados. A nossa análise está

dividida em três partes: I- Textos publicados antes da invasão ao Caldeirão; II - Textos

publicados após a invasão ao Caldeirão, antes do confronto na Serra do Araripe; III - Textos

publicados após o confronto na Serra do Araripe.

Na última parte do trabalho, apresentamos os resultados da análise e também

discutimos sobre como as representações sobre o Caldeirão e o beato José Lourenço foram

sendo reconstruídas nas últimas décadas.

No que se refere à produção acadêmica sobre o movimento Caldeirão, cabe destacar o

trabalho pioneiro do historiador Régis Lopes Ramos, que publicou, em 1991, o livro

Caldeirão2. A partir da história oral, o autor traz a voz dos remanescentes do movimento, as

quais haviam sido silenciadas pela historiografia tradicional e pela imprensa da década de

1930. O autor destaca que, até então, uma das poucas fontes de pesquisa sobre o Caldeirão

eram os jornais da época, que representavam a versão oficial dos acontecimentos.

Ao analisar a experiência comunitária liderada pelo beato José Lourenço, Ramos

(1991) lança questionamentos sobre tradicionais concepções acerca dos movimentos

religiosos populares e contribui para a compreensão dos processos de construção da memória

histórica oficial sobre o Caldeirão.

Acerca da cobertura da imprensa cearense sobre o Caldeirão, há o trabalho de Gustavo

Adolfo D‘Almeida Lobo, apresentado em 2000, no Mestrado em História da Universidade

Federal de Pernambuco3. O autor busca referências na Análise do Discurso Francesa para

fazer uma leitura de matérias publicadas sobre o Caldeirão na imprensa cearense da década de

1930.

Outro trabalho sobre o Caldeirão que merece destaque é o livro Um beato líder:

narrativas memoráveis do Caldeirão, do sociólogo Domingos Sávio Cordeiro, publicado em

2 Em comemoração aos 20 anos de sua publicação, o livro Caldeirão, de Régis Lopes Ramos, ganhou uma 2ª

edição (revista e ampliada), em 2011, publicada pelo Instituto Frei Tito de Alencar/ Núcleo de Documentação

Cultural – NUDOC/ UFC. 3 A dissertação é intitulada A imprensa cearense e o Caldeirão: O discurso da imprensa em relação ao

movimento popular camponês do Caldeirão.

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2004, pelas Edições UFC. A pesquisa é fruto da dissertação de mestrado intitulada Memórias

e narrativas na construção de um líder, defendida no ano de 2002, no Programa de Pós-

Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará, UFC. No trabalho, por meio de

pesquisa de campo, o autor colheu relatos de remanescentes do Caldeirão e de pessoas que

viveram na época do movimento, com o intuito de refletir sobre a construção das diversas

narrativas existentes sobre o beato José Lourenço4.

Na área de Letras, também vêm sendo desenvolvidos trabalhos sobre o Caldeirão, em

especial no campo da Literatura. No Programa de Pós-Graduação em Letras, da Universidade

Federal do Ceará, já foram produzidas três dissertações sobre a temática. Em 2006, foi

defendido o trabalho intitulado Caldeirão, de Cláudio Aguiar: o narrador se faz memória de

um povo, de Samarkandra Pereira dos Santos, no qual a autora estuda o romance Caldeirão,

do escritor cearense Cláudio Aguiar, analisando a confluência entre história e literatura. A

obra do escritor cearense é classificada como representante do novo romance histórico latino-

americano. Em 2009, ocorreu a defesa da dissertação intitulada Caldeirão: resíduos do

medievo na guerra dos beatos, de Silvana Bento Andrade, que analisa as remanescências da

mentalidade e da cultura medievais, também a partir do romance Caldeirão, de Cláudio

Aguiar. Em 2012, Ana Claudia Veras Santos apresentou dissertação sobre o Caldeirão na

literatura de cordel, intitulado: Representações do Caldeirão do Beato José Lourenço na

Literatura de Cordel: um estudo comparativo.

No Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Federal do Ceará, em

2013, Célia Camelo de Sousa defendeu dissertação que aborda os saberes e as práticas

educativas do Caldeirão5.

Fizemos aqui breves apontamentos acerca de trabalhos desenvolvidos sobre o

Caldeirão e pôde-se observar que há um crescente interesse sobre esse movimento por parte

de pesquisadores das mais diversas áreas, como História, Sociologia, Literatura e Educação.

Não encontramos, porém, registros de trabalhos acerca dessa temática na área da Linguística.

Nossa pesquisa pretende trazer uma contribuição para esse debate, por meio de uma

leitura crítica do discurso jornalístico, a partir de uma perspectiva que considera a relação

linguagem e contexto sócio-histórico-ideológico. Assim, analisar, a partir da imprensa

cearense, as representações do Caldeirão e do beato José Lourenço significa levar em conta as

4 Os trabalhos de Ramos (1991) e Cordeiro (2004) são nossa principal referência para o acesso às narrativas

sobre a experiência comunitária do Caldeirão, em especial por trazerem diversos depoimentos de pessoas que

viveram na comunidade. 5 Essa pesquisa foi publicada em livro, em 2012, pelas Edições UFC, sob o título Caldeirão: saberes e práticas

educativas (SOUSA; CARVALHO, 2012).

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condições históricas e as relações de poder em cena na sociedade da época, os diversos

conflitos – representativos de diferentes posições sociais - que se materializam nas páginas

dos jornais.

A presente pesquisa pode também contribuir com as discussões acerca dos

movimentos dos trabalhadores rurais na contemporaneidade, pois discute a história de uma

experiência que se tornou um referencial e um símbolo da luta do homem pela terra.

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2 RELAÇÕES DIALÓGICAS E PRODUÇÃO DE SENTIDOS

2.1 Análise Dialógica do Discurso no âmbito da Linguística Aplicada

Este trabalho situa-se no campo das pesquisas em Linguística Aplicada (LA), numa

abordagem que compreende a linguagem a partir das práticas sociais de sujeitos

historicamente situados. Nessa perspectiva, tomamos como base teórico-metodológica a

Análise Dialógica do Discurso, fundamentada no pensamento bakhtiniano, cujo pilar são as

relações dialógicas, as quais são permeadas pela historicidade e pelas relações de poder em

cena no processo de interação verbal6.

A Linguística Aplicada (LA) contemporânea vem atravessando uma série de

mudanças quanto a seus objetos de investigação e suas bases epistemológicas e teórico-

metodológicas. A LA consolidou-se como um campo voltado, em especial, para o

ensino/aprendizagem de línguas estrangeiras, entretanto vem expandido seu campo de atuação

para além desse contexto7, renovando suas problemáticas e posicionamentos. Superando a

restrição à mera aplicação de teorias linguísticas nas questões de linguagem, ―a tendência de

muitos estudos contemporâneos em LA é focalizar a linguagem como prática social e

observá-la em uso, imbricada em ampla amalgamação de fatores contextuais‖ (FABRÍCIO,

2006, p. 48).

Assim, emerge um campo que se configura como uma Linguística Aplicada

―Indisciplinar‖8 (MOITA LOPES, 1998, 2006, 2011), ―crítica‖, ―antidisciplinar/

transgressiva‖ (PENNYCOOK, 1998, 2006), (RAJAGOPALAN, 2003, 2006) ou, ainda,

como ―espaço de desaprendizagem‖ (FABRÍCIO, 2006). Em síntese, essa abordagem

contemporânea da LA está voltada para práticas problematizadoras, para a ruptura com modos

de investigação que desconsiderem os aspectos sociais, políticos e históricos que permeiam

toda atividade de linguagem. Nesse sentido, o foco é em estudos voltados para a diversidade

de problemáticas da vida contemporânea, enredadas por relações de poder, tais como questões

de gênero, identidade e violência. Para dar conta dessa ampliação do seu horizonte de atuação,

6 As contribuições da teoria bakhtiniana para a Linguística Aplicada são trabalhadas por autores como Molon e

Vianna (2012) e Acosta-Pereira (2012). 7 Moita Lopes (2011) aponta quatro momentos no percurso de constituição dos estudos em LA: a) Linguística

Aplicada como aplicação de Linguística; b) Da aplicação de Linguística à Linguística Aplicada; c) Linguística

Aplicada em contextos institucionais diferentes de escolares; d) Linguística Aplicada ―Indisciplinar‖. 8 ―Ela é indisciplinar tanto no sentido de que reconhece a necessidade de não se constituir como disciplina, mas

como uma área mestiça, nômade, e principalmente porque deseja ousar, pensar de forma diferente, para além de

paradigmas consagrados [...]‖ (MOITA LOPES, 2011, p. 19).

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a LA apresenta-se como um campo híbrido, tanto teórico quanto metodológico, ou seja, se

situa na fronteira entre várias áreas do conhecimento.

Essa diversificação de enfoques, temas, objetos e, decorrentemente, de teorias,

descrições e metodologias, própria dos anos 1990, contribui fortemente hoje para se

recolocar a discussão da identidade da área de LA como um todo e para aprofundar

as discussões sobre o seu caráter transdisciplinar. Se, no passado, a questão da

identidade da área de LA tinha a ver com suas fronteiras em relação à linguística,

hoje se reconhece a natureza transdisciplinar da LA em suas relações com a

educação, a psicologia, a etnografia da comunicação, a sociologia etc. (ROJO, 2006,

p. 256).

Assim, ao pesquisador, é necessária uma postura crítica, questionadora, sobre sua

própria prática e sobre a relevância e responsabilidade social do conhecimento que está

produzindo. A LA, portanto, trabalha a partir de uma abordagem crítico-reflexiva, voltada

para a linguagem a partir de sua historicidade e realização efetiva nas práticas sociais.

Rajagopalan (2003, p.125) destaca que uma postura crítica requer a compreensão de que

―trabalhar com a linguagem é necessariamente agir politicamente, com toda a

responsabilidade ética que isso acarreta‖.

Fabrício (2006), por sua vez, esclarece que os sentidos do termo ―crítico‖, nos estudos

de LA, não podem ser reduzidos à crença na possibilidade de desvendar para os ―leigos‖

―operações ideológicas de poder ocultas‖ nas práticas de linguagem. Esse tipo de crença

fundamenta-se em uma concepção de linguagem representacionista, segundo a qual seria

possível ter acesso direto à realidade, ―à verdade dos fatos‖. Entretanto, a abordagem da LA

contemporânea considera que as práticas de linguagem são construções sociais, portanto não

são mero reflexo ou ocultamento de uma realidade. Nesse sentido, Pennycook (1998)

esclarece que a palavra ―crítica‖ 9 é usada no intuito de incluir uma postura transformadora

nos estudos de Linguística Aplicada. ―Isso requer que rompamos com modos de investigação

que sejam associais, apolíticos e a-históricos‖ (PENNYCOOK, 1998, p.43). Assim, ―visões

de linguagem e da produção do conhecimento que colocam o sujeito em um vácuo social, no

qual sua sócio-história é apagada, são inadequadas para dar conta da visão de LA

contemporânea‖ (MOITA LOPES, 2006, p. 103).

9 Pennycook (2006) aponta que há, pelo menos, quatro significados para o termo ―crítico‖: 1) crítico no sentido

de desenvolver distância crítica e objetividade; 2) crítico no sentido de ser relevante socialmente; 3) crítico no

bojo da tradição neomarxista de pesquisa; 4) crítico como uma prática pós-moderna problematizadora. Esse

autor enfatiza que uma abordagem crítica em Linguística Aplicada ―possibilita todo um novo conjunto de

questões e interesses, tópicos tais como identidade, sexualidade, acesso, ética, desigualdade, desejo ou a

reprodução de alteridade, que até então não tinham sido considerados como de interesse em LA‖

(PENNYCOOK, 2006, p. 68).

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Nessa perspectivava, o modo de fazer transdisciplinar10

em LA se constitui a partir de

um diálogo com diversas áreas, tais como Sociologia, História, Educação, Comunicação e, no

âmbito dos estudos da linguagem, com as várias Análises do Discurso11

, entre essas a Análise

Dialógica do Discurso, cujo fundamento é a teoria bakhtiniana12

.

Moita Lopes (2011) destaca que a abordagem sociocultural de Bakhtin foi uma das

teorias que contribuiu com a expansão do horizonte de atuação da LA para outros contextos

institucionais diferentes do escolar. Rojo (2007) enfatiza que a teoria bakhtiniana ganha

destaque no campo da LA, em especial, a partir dos estudos dos gêneros discursivos, pois essa

abordagem traz questões relevantes acerca da relação entre as práticas escolares e o

funcionamento efetivo dos discursos em sociedade. Segundo essa autora, a teoria bakhtiniana,

―faz sua primeira entrada na discussão, quando a pesquisa e elaboração acadêmica em LA que

impacta os referenciais curriculares vêm propor os gêneros do discurso como objetos de

ensino da língua materna (LP)‖ (ROJO, 2007, p. 1762).

Nesse sentido, algumas das concepções basilares da teoria bakhtiniana, tais como o

caráter sócio-histórico das práticas de linguagem, fundamentam os estudos desenvolvidos no

percurso de constituição da LA contemporânea. Fabrício (2006) aponta como algumas das

características desse momento de revisão das bases epistemológicas da LA a compreensão de

que estudar a linguagem, como prática social, implica estudar a sociedade e a cultura das

quais ela é parte ―constituinte e constitutiva‖, e, ainda, a compreensão de que ―nossas práticas

discursivas não são neutras e envolvem escolhas (intencionais ou não) ideológicas e políticas,

atravessadas por relações de poder, que provocam diferentes efeitos no mundo social‖

(FABRÍCIO, 2006, p. 48).

A teoria bakhtiniana trabalha a natureza social da linguagem e tem como pilares

questões como relações dialógicas, enunciação/interação, signo ideológico e acento de valor.

Assim, é possível estabelecer um fértil diálogo entre essas características da LA

contemporânea, apontadas por Fabrício (2006), e algumas das concepções basilares do

pensamento bakhtiniano.

As práticas sociais, que se efetivam por meio da linguagem, são permeadas por

ideologias13

e pelos confrontos de força em jogo na sociedade, assim, as formas linguísticas

10

―Transdisciplinar no sentido de que deseja atravessar as fronteiras disciplinares, continuamente se

transformando‖ (MOITA LOPES, 2006, p. 19). 11

Conforme Paula (2013, p. 241), ―A Análise do Discurso (AD) no Brasil é, na verdade, as Análises de

Discursos (ADs), no plural, dada a diversidade de influências e amplitude de abordagens aqui desenvolvidas‖,

tais como a AD francesa, a ACD (Análise Crítica do Discurso) e a ADD (Análise Dialógica do Discurso). 12

Discutimos sobre a Análise Dialógica do Discurso ao longo deste capítulo. 13

A concepção de ideologia na teoria bakhtiniana é discutida no item 2.3 deste trabalho.

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correspondem a diferentes posicionamentos, portanto não são neutras. ―Um enunciado

absolutamente neutro é impossível‖ (BAKHTIN, 2006, p.289), ou seja, não há neutralidade

nas práticas discursivas, inclusive na relação do pesquisador com seu objeto de investigação.

A recepção e interpretação dos textos de Bakhtin e o Círculo no Brasil criou condições

para que sua concepção sócio-histórica da linguagem influenciasse os estudos na área da

linguagem e em outras áreas das Ciências Humanas. Assim, a Análise Dialógica do Discurso

tem muito a dizer e a contribuir no contexto das novas abordagens da LA contemporânea.

2.1.1 Sobre o Círculo de Bakhtin

O pensamento bakhtiniano é constituído não apenas pelos escritos de Mikhail M.

Bakhtin (1895-1975), mas também pela produção de estudiosos de diferentes áreas que

participaram, no contexto histórico e intelectual das ―Rússias, entre os anos 1920 e 1970, de

vários e produtivos Círculos de discussão e construção de uma postura singular em relação à

linguagem e seus estudos‖ (BRAIT, 2009, p. 9).

Faraco (2009) destaca que a denominação ―Círculo de Bakhtin‖ é a expressão utilizada

para designar o conjunto da obra de um grupo de intelectuais que se reunia com regularidade,

de 1919 a 1929, na Rússia, nas cidades de Nevel, Vitebsk e São Petersburgo (Leningrado).

Era constituído por pessoas de diversas formações, interesses intelectuais, e atuações

profissionais (um grupo multidisciplinar, portanto), incluindo, entre vários outros, o

filósofo Matvei I. Kagan, o biólogo Ivan I. Kanaev, a pianista Maria Yudina, o

professor e estudioso de literatura Lev V. Pupianski e [...] Mikhail M. Bakhtin,

Valentin N. Voloshinov e Pavel N. Medvedev (FARACO, 2009, p. 13).

Faraco (2009) esclarece, ainda, que essa denominação foi atribuída posteriormente

pelos estudiosos das obras desses pensadores russos e que a escolha do nome de Bakhtin se

justifica, pois, de todos, ele foi quem produziu a ―obra de maior envergadura‖ 14

. A produção

do Círculo de Bakhtin ganhou visibilidade no Ocidente a partir dos anos 1960 e exerce, ainda

hoje, forte influência nos estudos da linguagem e nas Ciências Humanas em geral. Entretanto,

Cunha (2011) destaca que há diferentes ―Bakhtins‖ e diferentes desenvolvimentos de suas

ideias nos diversos contextos de recepção.

Sériot (2005) refere-se à diversidade de pensamentos sobre Bakhtin no Ocidente e

no Leste Europeu: o ―francês‖ dos anos 1970, considerado o iniciador da teoria da

14

Cunha (2011, p. 119) ressalta, entretanto, que ―autores como Sériot (2010)‖ negam ―a ideia de Círculo de

Bakhtin, ‗uma invenção tardia e apócrifa‘, em razão de a expressão nunca ter sido usada na época em que eles se

reuniam. Encontra-se um registro, em 1967, do psicolinguista Leontev, e na forma de discurso reportado, numa

entrevista dada por Bakhtin a Duvakin nos anos 1970. Círculo de Bakhtin dá a idéia de que Bakhtin foi o líder‖.

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enunciação, como se fosse um aluno de Benveniste antes dele, ou um renovador da

teoria marxista das ideologias; o Bakhtin ―americano‖ dos anos oitenta, um pensador

liberal, adversário do totalitarismo stalinista; o ―russo‖ dos anos 1990, um pensador

moralista e religioso ortodoxo, personalista e conservador. De um lado, Bakhtin era

inscrito no movimento da morte do autor, e até do sujeito, atravessado por um

discurso feito de alteridade e heterogeneidade. Do outro, ou seja, no Leste, tratava-se

de afirmar sua identidade, a fonte de seus escritos, a personificação (CUNHA,

2011, p. 118).

Nesse sentido, os diferentes contextos de recepção possibilitaram leituras e

interpretações diversas (muitas vezes, divergentes) acerca dos escritos desses pesquisadores

russos. Conforme Faraco (2009), a partir dos anos 1970, teve início a polêmica acerca da

autoria de muitos dos escritos desses pensadores, em especial das obras ―Freudismo”,

“Marxismo e Filosofia da Linguagem”, originalmente atribuídos a N. Volochínov, e “O

método Formal nos estudos literários”, atribuído a N. Medvedev.

Molon e Vianna (2012, p.14) apontam três grandes vertentes no debate sobre a autoria

das obras do chamado Círculo de Bakhtin: a primeira defende a onipaternidade de Bakhtin, ou

seja, a autoria de todos os textos é creditada a Bakhtin; a segunda atribui cada obra à autoria

impressa nas primeiras edições, defendendo a existência de um profundo diálogo entre seus

autores; a terceira advoga um papel secundário, ou mesmo desprezível, a Bakhtin nas

principais formulações teóricas do Círculo. Faraco (2009) acrescenta que há, ainda, nesse

debate, uma vertente que inclui o nome dos dois teóricos na autoria; é o caso da edição

utilizada neste trabalho que atribui a autoria de Marxismo e Filosofia da Linguagem aos dois

pensadores: M. Bakhtin e V. N.Volochínov15

.

Originalmente publicada em Leningrado, no ano de 1929, e republicada no ano

subsequente, a obra é primeiramente lançada sob a autoria de Valentin Nikolaevitch

Volosinov. Após longo tempo no esquecimento, MFL foi exumada em 1973 por

Roman Jakobson, nos Estados Unidos, que fez a sua primeira tradução para o inglês,

ainda sob o reconhecimento da autoria de Volosinov. Somente após a publicação da

tradução de Marina Yaguello na França, quatro anos mais tarde, é que o nome de

Mikhaïl Bakhtin aparece em destaque na capa da edição. O nome de Volosinov

ocorre com menor destaque, entre parênteses. A partir de então, várias traduções

adotaram o mesmo protocolo ao longo dos anos (FERRAZ, 2011, p.210).

Cunha (2012) destaca que a recepção dos autores russos no Brasil, nos últimos 40

anos, tem sido bastante produtiva. Conforme essa autora, ainda nos anos 1960, o pensamento

15

Assim, ao longo desta pesquisa, quando nos referimos à obra Marxismo e Filosofia da Linguagem, utilizamos

a expressão Bakhtin/Volochínov, tendo em vista que a edição adotada atribui a autoria a esses dois pensadores.

Também é controversa a escrita do nome de Volochínov. Neste trabalho, adotamos a grafia utilizada em

Bakhtin/ Volochínov (1990). Vale ressaltar que a mais recente tradução francesa dessa obra, a partir do original

russo, atribui a autoria somente a V. N. Volochínov. (FERRAZ, 2011).

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bakhtiniano surgiu como uma referência nos estudos de literatura16

. Já nos anos 1980, a

tradução brasileira de Marxismo e Filosofia da Linguagem influenciou os estudos linguísticos

na crítica ao estruturalismo hegemônico. Nos anos 1990, o pensamento bakhtiniano ganha

destaque nos estudos da língua, inclusive, nos documentos oficiais como os Parâmetros

Curriculares Nacionais (PCNs), que adotam as concepções de linguagem e gêneros de

discurso a partir da teoria bakhtiniana. Cunha (2012) enfatiza, ainda que, nos anos 2000,

multiplicam-se os estudos que fazem uso de conceitos dos autores russos e emerge uma série

de pesquisas que têm como norte as propostas teóricas de Bakhtin e do Círculo. Paula (2013)

destaca que há uma diversidade de leituras dos escritos desses teóricos, nos vários países em

que eles foram traduzidos, assim, é possível, segundo essa autora, pensarmos na leitura que o

Brasil faz das obras do Círculo de Bakhtin como um tipo de Análise do Discurso, a qual Brait

(2006, 2010) denomina Análise Dialógica do Discurso (ADD).

2.1.2 Análise Dialógica do Discurso: questões teórico-metodológicas

A Análise Dialógica do Discurso não é uma abordagem fechada e não se configura

como um campo delimitado de análise do discurso, entretanto é fruto do trabalho sério de

estudiosos que vêm desenvolvendo pesquisas cujo fico condutor é a concepção sócio-

histórico-ideológica de linguagem empreendida pelo Círculo de Bakhtin17

. A ADD ―origina-

se sem a historicidade consagrada à Análise de Discurso Francesa, por exemplo, instaura-se a

partir das obras escritas por Bakhtin e seu Círculo e, mais especificamente, pela maneira

como essas obras foram sendo conhecidas, lidas e interpretadas nas últimas décadas (BRAIT,

2008, p. 117).

Nesse sentido, Brait (2006, 2008, 2010) postula que o conjunto da produção teórica do

Círculo de Bakhtin motivou o nascimento de uma teoria/análise dialógica do discurso, cujo

embasamento constitutivo reside na ―indissolúvel relação existente entre língua, linguagens,

história e sujeitos que instaura os estudos da linguagem como lugares de produção de

conhecimento de forma comprometida, responsável, e não apenas como procedimento

submetido a teorias e metodologias dominantes em determinadas épocas‖ (BRAIT, 2010, p.

10).

16

Cunha (2012, p. 249) destaca, nesse contexto dos anos 1960, a atuação pioneira do estudioso Boris

Schnaiderman, que ―publicou artigos e ensaios sobre Dostoievski e Bakhtin, o qual se tornou referência nas suas

aulas de literatura da graduação e pós-graduação‖. 17

A abordagem da Análise Dialógica do Discurso (ADD) emerge nos escritos dos teóricos do Círculo de

Bakhtin e é desenvolvida por estudiosos, tais como Brait (2006, 2008, 2010); Cunha (2011, 2012); Faraco

(2009); Ponzio (2008) e Paula (2013).

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Essa abordagem considera, portanto, que os sentidos são construídos a partir da

interação de sujeitos históricos, em contextos culturais específicos. Brait (2010) enfatiza que

Bakhtin e o Círculo não propuseram formalmente uma teoria e/ou análise do discurso, mas, ao

longo de suas obras, são desenvolvidas concepções fundamentais para uma abordagem da

linguagem a partir das relações dialógicas. Em Problemas da Poética de Dostoiévski, Bakhtin

(2013) propõe a criação da Metalinguística18

, disciplina necessária para que os estudos do

discurso se voltem para os aspectos abstraídos pela linguística.

Nessa perspectiva, o discurso é compreendido como ―a língua em sua integridade

concreta e viva, e não a língua como objeto específico da linguística‖ (BAKHTIN, 2013,

p.207), ou seja, a concepção de discurso da teoria bakhtiniana trabalha a língua a partir de seu

contexto sócio-histórico-ideológico.

[...] nossas análises subsequentes não são linguísticas no sentido rigoroso do termo.

Podem ser situadas na metalinguística, submetendo-a como um estudo – ainda não

construído em disciplinas particulares definidas – daqueles aspectos da vida do

discurso que ultrapassam – de modo absolutamente legítimo os limites da

linguística. As pesquisas metalinguísticas, evidentemente, não podem ignorar a

linguística e devem aplicar seus resultados (BAKHTIN, 2013, p.207).

Nesse sentido, Bakhtin (2013) destaca que os estudos da Metalinguística devem

ultrapassar os limites da linguística, mas não devem ignorá-la, pois as duas áreas estudam o

mesmo fenômeno concreto, o discurso, sob diferentes ângulos de visão, assim, ―devem

completar-se mutuamente, e não se fundir. Na prática, os limites entre elas são violados com

muita frequência‖ (BAKHTIN, 2013, p. 207). Esse autor enfatiza, ainda, que o objeto da

Metalinguística são as relações dialógicas, as quais expressam, por meio da linguagem, as

posições de diferentes sujeitos e não se reduzem às relações lógicas ou concreto-semânticas.

―Assim as relações dialógicas são extralinguísticas. Ao mesmo tempo, porém, não podem ser

separadas do campo do discurso, ou seja, da língua como fenômeno integral concreto. A

linguagem só vive na comunicação dialógica daqueles que a usam‖ (BAKHTIN, 2013, p.

209).

Os estudos discurso, na perspectiva da teoria dialógica, consideram os aspectos

linguísticos tomando como ponto de partida a situação da interação verbal. Assim, conforme

destaca Brait (2006), um dos traços fundantes dessa abordagem é o fato de ela não poder ser

trabalhada apenas de um ponto de vista interno ou, ao contrário, externo à linguagem, pois é a

18

Conforme Brait (2010), essa discussão sobre Metalinguística é o primeiro momento, na teoria bakhtiniana, em

que uma abordagem de análise/ teoria dialógica do discurso é proposta. Faraco (2009) destaca que a designação

metalinguística, frequentemente, é traduzida como translinguistica para evitar confusões com o uso mais

corrente do termo: a linguagem utilizada para descrever/ analisar a própria linguagem.

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partir da relação indissociável entre o linguístico e o extralinguístico que se constituem as

relações dialógicas. Esse ponto traz implicações teórico-metodológicas importantes para as

pesquisas que trabalham nessa abordagem.

O trabalho metodológico, analítico e interpretativo com textos/discursos se dá [...]

herdando da linguística a possibilidade de esmiuçar campos semânticos, descrever e

analisar micro e macro organizações sintáticas, reconhecer, recuperar e interpretar

marcas e articulações enunciativas que caracterizam o(s) discurso(s) e indiciam sua

heterogeneidade constitutiva assim como a dos sujeitos aí instalados. (BRAIT, 2006,

p. 60).

Nessa perspectiva, a proposta de estudo da linguagem a partir das relações dialógicas

não exclui os elementos linguísticos, pelo contrário considera que é na interação verbal que se

materializa a historicidade dos discursos. Bakhtin/ Volochínov (1990) trabalham a linguagem

a partir da interação verbal entre sujeitos históricos, que se materializa por meio da

enunciação. O estudo da língua se dá a partir das relações entre a situação concreta de troca

linguística e os elementos extralinguísticos, o contexto social mais amplo. Assim, nesta

pesquisa, estudamos, também, aspectos como as condições históricas de produção do discurso

jornalístico sobre o Caldeirão e o contexto político dos anos 1930.

Cabe destacar, conforme enfatiza Brait (2006, 2010), que, no caminho metodológico

bakhtiniano, não há categorias de análise a priori aplicáveis mecanicamente a textos e

discursos, assim, é a partir da análise de um corpus discursivo, dos sujeitos e das relações que

ele instaura que se pode chegar a uma categoria ou conceito. Segundo essa autora, os estudos

que recorrem ao pensamento bakhtiniano se constituem de movimentos teórico-

metodológicos que se desenvolvem em diferentes perspectivas, todas, porém, compreendem

as relações discursivas como empreendidas por sujeitos historicamente situados.

As contribuições teórico-metodológicas do pensamento bakhtiniano não configuram,

efetivamente, uma proposta fechada e linearmente organizada. Constituem, no

entanto, um corpo de conceitos, noções e categorias que especificam a postura

dialógica diante de corpus discursivo, da metodologia e do pesquisador. A

pertinência de uma perspectiva dialógica se dá pela análise das especificidades

discursivas constitutivas de situações em que a linguagem e determinadas atividades

se interpenetram e se interdefinem e do compromisso ético do pesquisador com o

objeto que, dessa perspectiva, é um sujeito histórico (BRAIT, 2006, p. 60).

Procurando firmar essa postura dialógica na nossa pesquisa, vamos mobilizar

conceitos basilares do pensamento bakhtiniano, que serão os pilares teóricos e demarcarão o

lugar a partir do qual lançamos o olhar sobre a construção das representações do beato José

Lourenço e do movimento Caldeirão no discurso jornalístico.

Importante destacar que, nos escritos do Círculo de Bakhtin, os sentidos de termos

como ―língua‖, ―linguagem‖, ―discurso‖, ―enunciado/enunciação‖, muitas vezes, aparecem

como equivalentes; outras vezes, ganham especificidades. Ressaltamos que as possíveis

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fronteiras entre essas categorias são muito tênues. Assim, neste trabalho, utilizamos,

indistintamente, os signos ―língua‖ e ―linguagem‖. No que se refere à concepção de

―discurso‖ cabe lembrar que Bakhtin (2013) o define como ―a língua em sua integridade

concreta e viva‖, o que coloca o conceito de ―discurso‖ como equivalente a

―enunciado/enunciação‖ (a unidade concreta, real, da comunicação discursiva) ou mesmo a

linguagem (compreendida a partir de sua realização concreta nas práticas sociais).

O conceito de ―vozes sociais‖ também aparece, em especial na leitura crítica das obras

do Círculo, como equivalente a ―enunciado/ enunciação‖ ou ―discurso‖. Entretanto, neste

trabalho, consideramos adequado destacar especificidades com relação aos termos ―discurso‖

e ―vozes sociais‖. Os ―discursos‖ (assim como a linguagem e os enunciados) se constroem a

partir das situações concretas de uso da língua e são atravessados e constituídos por uma

diversidade de ―vozes sociais‖, que assinalam diferentes perspectivas e posicionamentos

ideológicos de sujeitos históricos. Nos ―discursos‖, portanto, há uma multiplicidade de ―vozes

sociais‖. Assim, nesta pesquisa, lançamos nosso olhar sobre as múltiplas e heterogêneas

―vozes sociais‖ que emergem e dialogam no discurso jornalístico.

2.2 Dialogismo

A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros.

(Bakhtin/Volochínov)

A concepção de linguagem como uma atividade dialógica, construída a partir da

interação com o outro é um princípio que norteia e fundamenta a produção teórica do Círculo

de Bakhtin. Nessa perspectiva, questiona-se a ideia do ―Adão mítico‖ (o qual, utopicamente,

teria sido o primeiro a designar o mundo), pois tudo que é dito relaciona-se ao já dito. Todo

discurso é construído a partir do diálogo com outros discursos.

A orientação dialógica é naturalmente um fenômeno próprio a todo o discurso.

Trata-se da orientação natural de qualquer discurso vivo. Em todos os seus caminhos

até o objeto, em todas as direções, o discurso se encontra com o discurso de outrem

e não pode deixar de participar, com ele, de uma interação viva e tensa. Apenas o

Adão mítico que chegou com a primeira palavra num mundo virgem, ainda não

desacreditado, somente este Adão podia realmente evitar por completo esta mútua-

orientação dialógica do discurso alheio para o objeto. Para o discurso humano,

concreto e histórico, isso não é possível: só em certa medida e convencionalmente é

que pode dela se afastar (BAKHTIN, 2010, p 88).

Assim, toda fala dialoga com falas que a precedem e a sucedem, formando um elo da

cadeia da comunicação verbal. Toda fala, portanto, se configura a partir de sua relação com o

outro, pois está repleta de ―ecos e ressonâncias de outros enunciados com os quais está ligado

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pela identidade da esfera de comunicação discursiva‖ (BAKHTIN, 2006, p. 297). O

dialogismo é considerado ―um princípio constitutivo da linguagem e a condição de sentido do

discurso‖ (BARROS, 2011, p.2).

A enunciação monológica, fechada, constitui, de fato uma abstração. A

concretização da palavra só é possível com a inclusão dessa palavra no contexto

histórico real de sua realização primitiva. Na enunciação monológica, os fios que

ligam a palavra a toda a evolução histórica foram cortados

(BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1990, p. 104).

Nesse sentido, o tema da alteridade19

, a relação eu-outro, é uma das bases do

pensamento bakhtiniano. Tomando como princípio a concepção dialógica da linguagem,

pode-se afirmar que o ―eu‖ só pode realizar-se a partir do ―nós‖, pois a nossa fala não

pertence só a nós, ―nela ecoam muitos discursos, muitas vozes, às vezes explícitas, às vezes

silenciadas‖. ―Eu vivo no universo das palavras do outro. E toda a minha vida é uma

orientação nesse mundo; é reação às palavras do outro (uma reação infinitamente

diversificada)‖ (BAKHTIN, 2006, p. 379).

A linguagem, portanto, é o principal meio de presença da alteridade, assim o problema

da ―palavra alheia‖ possui importância central no pensamento bakhtiniano, conforme será

discutido quando tratarmos do discurso citado. Os indivíduos se constituem a partir da relação

com o outro. Dessa forma, a alteridade é fundamento da construção da identidade dos sujeitos,

―cujos pensamentos, opiniões, visões de mundo, consciência etc. se constituem e se

colaboram a partir de relações dialógicas e valorativas com outros sujeitos, opiniões e

dizeres‖ (GEGe, 2009, p. 13). Sobre esse aspecto, Faraco (2009, p. 21) destaca:

O eu e o outro são cada um universo de valores. O mesmo mundo, quando

correlacionado comigo e com o outro, recebe valorações diferentes, é determinado

por diferentes quadros axiológicos. E essas diferenças são arquitetonicamente ativas,

no sentido de que elas são constitutivas dos nossos atos (inclusive de nossos

enunciados): é na contraposição de valores que os atos concretos se realizam; é no

plano dessa contraposição axiológica (é no plano da alteridade, portanto) que cada

um orienta seus atos.

A alteridade está relacionada também com a heteroglossia (a inter-relação entre a

diversidade de vozes sociais, no âmbito das relações dialógicas) e os posicionamentos

axiológicos dos sujeitos, questões sobre as quais discutiremos mais adiante. O conceito de

―outro‖ é desenvolvido na obra bakhtiniana, a partir das reflexões sobre as relações dialógicas

que caracterizam a interação verbal. ―Através da palavra, defino-me em relação ao outro, em

19

Conforme Faraco (2009, p. 157), diferentes abordagens da temática filosófica da intersubjetividade (que

envolve a questão da alteridade) estão presentes no horizonte do pensamento de Bakhtin e do Círculo, que pode

ser visto ―como parte de uma linhagem intelectual que tomou forma a partir da percepção básica de que o si não

é sem o outro‖.

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última análise, em relação à coletividade. [...] A palavra é o território comum do locutor e do

interlocutor (BAKHTIN/ VOLOCHÍNOV, 1990, p.113).

Nesse sentido, tomando como referência o debate sobre as relações dialógicas,

podemos compreender que o ―outro‖, na teoria bakhtiniana, pode ter, pelo menos, duas

acepções básicas: a) O ―outro‖: interlocutor, ouvinte, ―auditório social‖20

, ―superdestinatário‖

(um ouvinte presumido); b) O ―outro‖: ―já-dito‖, discursos anteriores e posteriores, vozes

sociais, vozes outras, sujeitos outros. Essas dimensões são inter-relacionadas e se configuram

a partir das relações dialógicas. Assim, dialogismo e alteridade definem o ser humano e são

constitutivos do processo de construção dos sentidos.

Conforme já destacado, as relações dialógicas, segundo Bakhtin (2013), não

pertencem a um campo puramente linguístico e devem ser estudadas pela Metalinguística (ou

Translinguística). ―A linguagem só vive na comunicação dialógica daqueles que a usam [...].

Toda a vida da linguagem, seja qual for o seu campo de emprego (a linguagem cotidiana, a

prática, a científica, a artística, etc.) está impregnada de relações dialógicas‖ (BAKHTIN,

2013, p. 209).

Na teoria bakhtiniana, a comunicação dialógica é o campo em que emerge a vida

autêntica da palavra. As relações dialógicas devem ―personificar-se na linguagem, tornar-se

enunciados, convertendo-se em posições de diferentes sujeitos expressas na linguagem para

que entre eles possam surgir relações dialógicas‖ (BAKHTIN, 2013, p. 209). Faraco (2009)

aponta, a partir dos escritos da teoria bakhtiniana, três dimensões do dialogismo.

a) Todo dizer não pode deixar de se orientar para o “já dito”. Nesse sentido, todo

enunciado é uma réplica, ou seja, não se constitui fora daquilo que chamamos hoje

de memória discursiva.

b) Todo dizer é orientado para a resposta. Nesse sentido, todo enunciado espera uma

réplica e - mais – não pode esquivar-se à influência profunda da resposta antecipada.

Neste sentido, possíveis réplicas de outrem, no contexto da consciência

socioaxiológica, têm papel constitutivo, condicionante, do dizer, do enunciado.

Assim, é intrínseco ao enunciado o receptor presumido, qualquer que seja ele: o

receptor empírico entendido em sua heterogeneidade verbo-axiológica, o ―auditório

social‖ [...], ou o ―superdestinatário‖ [...].

c) Todo dizer é internamente dialogizado: é heterogêneo, é uma articulação de

múltiplas vozes sociais (no sentido em que hoje dizemos ser todo discurso

heterogeneamente constituído), é o ponto de encontro e confronto dessas múltiplas

vozes. Essa dialogização interna será ou não claramente mostrada, isto é, o dizer

alheio será ou não destacado como tal no enunciado – ou, para usar uma figura

recorrente em Bakhtin, será aspeado ou não, em escalas infinitas de graus de

alteridade ou assimilação da palavra alheia (FARACO, 2009, p. 59).

20

Conforme Bakhtin/ Volochínov (1990), auditório social é um ―interlocutor ideal‖, que se constitui a partir da

realidade da língua em seus aspectos sócio-ideológicos.

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A primeira dimensão apontada remete à interdiscursividade, tendo em vista que todo

enunciado se configura como resposta a enunciados anteriores. A segunda dimensão diz

respeito à postura ativa do enunciador em função do seu público, do seu ―auditório social‖,

tendo em vista que todo enunciado espera uma resposta. A terceira dimensão está relacionada

ao caráter heterogêneo da linguagem, a qual é constituída por uma multiplicidade de vozes

sociais. Essa heterogeneidade pode aparecer claramente marcada, por exemplo, por meio do

uso do discurso direto, ou não marcada, como ocorre no uso da ironia.

A concepção de linguagem dialógica rompe com uma visão de língua como sistema

abstrato de normas ou como mera expressão da consciência individual do falante. ―A língua,

portanto, não é constituída por um sistema abstrato de formas linguísticas nem pela

enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo

fenômeno da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações‖

(BAKHTIN/ VOLOCHÍNOV, 1990, p.112).

Assim, o conceito de enunciação, na teoria bakhtiniana, é marcado por sua realização

concreta nas práticas sociais. A enunciação é a unidade real da comunicação discursiva e se

efetiva nas atividades de uso da linguagem e na interação entre falantes21

.

Bakhtin/Volochínov (1990) destacam que as reflexões da linguística tradicional se

limitam à enunciação monológica, ao estudo das formas linguísticas isoladas. Entretanto, os

enunciados não se constituem como atos isolados, abstratos, mas como uma resposta a outros

enunciados que tecem os fios da comunicação verbal. ―Cada enunciado deve ser visto antes

de tudo como uma resposta aos enunciados precedentes de um determinado campo [...] ela os

rejeita, confirma, completa, baseia-se neles [...]‖ (BAKHTIN, 2006, p.297). O dialogismo,

portanto, é caraterizado por uma postura ativa (responsiva) entre os enunciados. A interação

entre os falantes é marcada por uma atitude responsiva na construção dos sentidos.

Toda enunciação, mesmo na forma imobilizada da escrita, é uma resposta a alguma

coisa e é construída como tal. Não passa de um elo da cadeia dos atos de fala. Toda

inscrição prolonga aquelas que a precederam, trava uma polêmica com elas, conta

com as reações ativas da compreensão, antecipa-as (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV,

1990, p. 98).

Dessa forma, as relações dialógicas se efetivam a partir da historicidade das

manifestações linguísticas, portanto são relações de sentido entre os enunciados. Não se

21

Vale ressaltar que o tradutor Paulo Bezerra destaca, em nota, no livro Estética da Criação Verbal, que, nesta

obra, ―Bakhtin não faz distinção entre enunciado e enunciação, ou melhor, emprega o termo viskázivanie quer

para o ato de produção do discurso oral, quer para o discurso escrito, o discurso da cultura, um romance já

publicado e absorvido por uma cultura, etc.‖ (BAKHTIN, 2006, p. 261).

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limitam a questões de ordem lógica e nem se restringem ao sistema formal da língua, pois se

realizam no grande ―diálogo da comunicação verbal‖.

A imagem do diálogo é utilizada, nos textos dos teóricos do Círculo de Bakhtin, para

metaforizar as relações dialógicas constitutivas da linguagem. Entretanto, cabe destacar que,

nessa abordagem, o termo diálogo não se restringe à interação face a face, tampouco ao

diálogo entre as personagens na narrativa literária. Essas seriam, apenas, algumas das

manifestações mais evidentes das relações dialógicas.

O diálogo no sentido estreito do tema, não constitui, é claro, senão uma das formas,

é verdade que das mais importantes, da interação verbal. Mas pode-se compreender

a palavra ―diálogo‖ num sentido amplo, isto é, não apenas a comunicação em voz

alta, de pessoas colocadas face a face, mas toda comunicação verbal de qualquer tipo

que seja (BAKHTIN/ VOLOCHÍNOV, 1990, p. 123)

A unidade real da língua, desse modo, é o enunciado posto em diálogo, é a interação

verbal. Os enunciados, por sua vez, são atravessados e constituídos por uma diversidade de

vozes sociais. O diálogo face a face é um dos muitos eventos em que se manifestam as

relações dialógicas – que são mais amplas, mais variadas e mais complexas do que a relação

existente entre as réplicas de uma conversa face a face. O objeto efetivo do dialogismo é

constituído, portanto, pelas relações dialógicas nesse sentido lato (―mais amplas, mais

variadas e mais complexas‖). Sobre esse aspecto, Bakhtin (2006) destaca:

[...] as relações dialógicas não coincidem, de maneira nenhuma, com as relações

entre as réplicas do diálogo real; são bem mais amplas, diversificadas e complexas.

Dois enunciados distantes um do outro, tanto no tempo quanto no espaço, que nada

sabem um sobre o outro, revelam relações dialógicas se entre eles há ao menos

alguma convergência de sentidos (BAKHTIN, 2006, p. 355).

Vale ressaltar, ainda, que, embora a metáfora do diálogo possa remeter a uma ideia de

―consenso‖ e ―entendimento‖, as relações dialógicas não se constroem de maneira harmoniosa

e cooperativa, pois, na ótica bakhtiniana, a língua é o espaço de materialização das forças

sociais em embate. Conforme adverte Faraco (2009, p.69): ―[...] O Círculo de Bakhtin entende

as relações dialógicas como espaços de tensão entre enunciados. Estes, portanto, não penas

coexistem, mas se tencionam nas relações dialógicas‖.

2.3 Signo ideológico: linguagem e relações de poder

Bakhtin e o Círculo colocam a linguagem no centro do estudo das ideologias22

, pois

consideram que ―a palavra23

é fenômeno ideológico por excelência‖ (BAKHTIN/

22

Conforme destaca Ponzio (2008, p. 113), a teoria bakhtiniana realiza um estudo marxista das ideologias,

atrelado ao estudo de uma ciência geral dos signos sociais. ―O termo ideologia que Bakhtin usa não se identifica

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VOLOCHÍNOV, 1990, p. 36). Assim, Bakhtin/ Volochínov (1990) defendem que a filosofia

da linguagem deve ser concebida como uma filosofia do signo ideológico24

. Esses autores

destacam que o ideológico identifica-se com o semiótico; tudo que é ideológico é um signo,

portanto sem signo não há ideologia.

Os signos ideológicos, na perspectiva bakhtiniana, se constituem nos processos de

interação verbal, portanto são fenômenos do mundo exterior e sempre remetem a algo situado

fora de si mesmo. Os signos são uma realização concreta, social, histórica e não devem ser

compreendidos apenas como um reflexo ou uma sombra da realidade, pois estão sujeitos a

critérios de avaliação ideológica.

O domínio do ideológico coincide com o domínio dos signos; são mutuamente

correspondentes. Ali onde um signo se encontra, encontra-se também ideologia. [...]

Um signo não existe apenas como parte de uma realidade; ele também reflete e

refrata uma outra. Ele pode distorcer essa realidade; ser-lhe fiel ou apreendê-la de

um ponto de vista específico, etc. Todo signo está sujeito aos critérios de avaliação

ideológica (isto é; se é verdadeiro, falso, correto, justificado, bom, etc.) [...] O lugar

do ideológico é o material social dos signos criados pelo homem (BAKHTIN/

VOLOCHÍNOV, 1990, p. 32, 35).

Na perspectiva bakhtiniana, a realidade não pode ser apreendida e reproduzida de

forma objetiva, pois os signos refletem e refratam o real, na interação sócio-verbal, a partir de

diferentes critérios de avaliação ideológica. Assim, cada signo é um fragmento material da

realidade, é a realização concreta do ideológico, que está ligado às condições e às formas da

comunicação social, a aspectos sociais e econômicos. A materialização do fenômeno

ideológico ocorre, dessa forma, a partir da interação verbal, que se efetiva em situações

concretas de comunicação.

Os signos, portanto, emergem a partir de um terreno interindividual, em um meio

ideológico e social. Bakhtin/ Volochínov (1990) questionam as abordagens idealista e

psicologista, que consideram os fenômenos ideológicos uma mera expressão da consciência

individual. ―A ideologia não pode derivar da consciência, como pretendem o idealismo e o

positivismo psicologista. A consciência adquire forma e existência nos signos criados por um

completamente como ‗falsa consciência‘, com ‗pensamento distorcido‘; falso [...]. O significado de ‗ideologia‘

para Bakhtin é, portanto, diferente do significado que esse termo adquire em Marx e Engels em seus escritos

juvenis, começando por Ideologia Alemã até Ludwig Feuebach, nos quais o termo ‗ideologia‘ identifica-se com

ou aproxima-se de ‗falsa consciência‘. Marx e Engels consideram a Ideologia como falsa consciência,

certamente não no sentido de que possa servir como definição de uma ideologia, mas referindo-se a uma

ideologia especial, a ideologia burguesa e ao seu valor com relação ao conhecimento objetivo‖. 23

O termo palavra, nesse contexto, pode ser compreendido como linguagem verbal. ―No pensamento

bakhtiniano, a palavra reposiciona-se em relação às concepções tradicionais, passando a ser encarada como um

elemento concreto de feitura ideológica‖ (STELLA, 2012, p. 178). 24

A discussão aqui desenvolvida sobre a concepção de ideologia na teoria bakhtiniana tem como principal

referência a obra Marxismo e Filosofia da Linguagem (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1990).

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grupo organizado no curso de suas relações sociais‖ (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1990, p.

35).

Bakhtin/ Volochínov (1990) consideram que a palavra é o indicador mais sensível de

todas as transformações sociais. ―As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios

ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais, em todos os domínios‖

(BAKHTIN/ VOLOCHÍNOV, 1990, p.41). Daí a centralidade da linguagem (da palavra) no

estudo dos fenômenos ideológicos, pois é na palavra que se materializam os embates entre

diferentes valores sociais e se revelam as formas ideológicas gerais da comunicação

semiótica. ―Palavra é produto ideológico vivo, funcionando em qualquer situação (leia-se

aqui ideológica), tornando-se signo ideológico porque acumula as entoações do diálogo vivo

dos interlocutores com os valores sociais [...]‖ (STELLA, 2012, p. 178).

Nesse sentido, o ideológico está ligado a uma dimensão avaliativa, a posicionamentos

sociais valorativos. Conforme Ponzio (2008, p. 113), ―no signo ideológico está sempre

presente uma ‗acentuação valorativa‘, que faz com que o mesmo não seja simplesmente a

expressão de uma ‗ideia‘, mas a expressão de uma tomada de posição determinada‖. A

linguagem, portanto, sempre se expressa em uma esfera ideológica e expressa um ponto de

vista, uma posição avaliativa.

Na realidade não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou

mentiras, coisas boas ou coisas más, importantes ou triviais, agradáveis ou

desagradáveis, etc. A palavra está sempre carregada de um conteúdo, ou de um

sentido ideológico ou vivencial. É assim que compreendemos as palavras e somente

reagimos àquelas que despertam em nós ressonâncias ideológicas ou concernentes à

vida. (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1990, p.96).

Essa postura avaliativa dos sujeitos frente à realidade é construída sócio-

historicamente, a partir das situações concretas de comunicação. Bakhtin/Volochínov (1990)

questionam a abordagem tradicional marxista, que considera uma relação de causalidade

mecanicista entre a infraestrutura econômica e as superestruturas. Na perspectiva

bakhtiniana, a relação entre a base econômica e as esferas ideológicas não se dá de forma

mecânica e unilateral.

Nesse sentido, ao propor o estudo das ideologias no âmbito da ciência geral dos signos

sociais, Bakhtin/ Volochínov (1990, p.47) destacam que ―é no terreno da filosofia da

linguagem que se torna mais fácil extirpar pela raiz a explicação pela causalidade mecanicista

dos fenômenos ideológicos‖. Segundo esses autores, não é possível considerar que toda esfera

ideológica, sem exceção, se apresenta como um conjunto homogêneo constituído a partir de

uma reação a transformações na infraestrutura econômica. A complexa relação entre

infraestrutura e superestrutura é marcada por confrontos e contradições que caracterizam a

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dinâmica da interação entre os mais diversos grupos sociais. E tal relação, segundo esses

autores, pode ser esclarecida pelo estudo do material verbal. ―De fato, a essência desse

problema, naquilo que nos interessa, liga-se à questão de saber como a realidade (a

infraestrutura) determina o signo, como o signo reflete e refrata a realidade em

transformação‖ (BAKHTIN/ VOLOCHÍNOV, 1990, p.41).

Esses autores destacam que o estudo dos fenômenos ideológicos deve observar alguns

procedimentos metodológicos, tais como: não separar a ideologia da realidade material do

signo; não dissociar o signo das formas concretas da comunicação social; e não dissociar a

comunicação e suas formas de sua base material (a infraestrutura).

A superestrutura não existe a não ser em jogo e relação constante com a

infraestrutura, defende Bakhtin, e essa relação é estabelecida e intermediada pelos

signos e por sua capacidade de estar presente necessariamente em todas as relações

sociais. E, em cada uma delas, os signos se revestem de sentidos próprios,

produzidos a serviço dos interesses daquele grupo (MIOTELLO, 2012, p. 171).

Assim, todo signo linguístico é marcado pelo horizonte social da época e de um grupo

determinado. O horizonte social (horizonte apreciativo) diz respeito a valores, axiologias,

construídos na dinâmica da história e compartilhados por diferentes grupos humanos. Nesse

sentido, para que um objeto torne-se signo ideológico é necessário que esteja ligado às

condições socioeconômicas de determinado grupo e entre no horizonte social de valor daquele

grupo. Dessa forma, a construção dos sentidos é marcada pelo horizonte social de valor dos

mais diversos grupos sociais. Sobre esse aspecto, neste trabalho, mais adiante, discutimos

sobre a construção histórica dos sentidos dos signos ideológicos ―beato‖ e ―fanático‖.

Nessa perspectiva, no signo ocorre o entrecruzamento de diversos índices sociais de

valor25

, representativos das tensões da luta social. ―Em todo signo ideológico confrontam-se

índices de valor contraditórios. O signo se torna a arena onde se desenvolve a luta de classes‖

(BAKHTIN/ VOLOCHÍNOV, 1990, p. 46). Esses autores advertem que a ideologia

dominante procura negar esses embates, conferindo ao signo ideológico um caráter inatingível

e acima das diferenças de classe. ―A manutenção da divisão social e a perpetuação da

hegemonia da classe dominante exige que os sinais contraditórios ocultos em todo signo

ideológico seja mantidos apagados‖ (MIOTELLO, 2012, p. 173).

Cabe ressaltar que, na perspectiva bakhtiniana, o ideológico não é visto apenas como

simples ―inversão da realidade‖. Bakhtin/ Volochínov (1990) defendem que, ao lado dos

sistemas ideológicos constituídos (ligados a ciência, arte, moral, direito, religião, etc.), existe

25 Índice social de valor diz respeito a diferentes perspectivas sócio-ideológicas, que marcam as intenções,

posturas e pontos de vista de sujeitos históricos.

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a ideologia do cotidiano (ligada à comunicação na vida cotidiana e diretamente vinculada às

condições de produção). Os sistemas ideológicos constituídos tendem à estabilidade e são

legitimados pela ordem político-econômica, constituem a chamada ideologia oficial (ou

ideologia dominante). A ideologia do cotidiano emerge como contraponto a esses sistemas

oficiais.

A ―ideologia cotidiana‖ é constituída do discurso, seja interno, seja externo, que

permeia todo o comportamento humano que diz respeito seja à consciência oficial,

seja à consciência não oficial. Os estratos da ideologia cotidiana mais próximos à

consciência não oficial são mais flexíveis, polissemânticos, dialógicos, em relação à

ideologia oficial. À ideologia não oficial concerne tudo aquilo que é o outro em

relação à dominante, oficial [...] (PONZIO, 2008, p. 277).

Nesse sentido, na perspectiva bakhtiniana, as ideologias possuem uma ―dupla face‖:

tanto podem reproduzir a ordem social dominante, quanto podem subverter as condições de

produção da sociedade capitalista. Ou seja, na linguagem, materializam-se os confrontos

ideológicos na luta pela hegemonia de determinados sentidos. Compreende-se, assim, que a

ideologia se constitui a partir de uma dinâmica que envolve estabilidade e instabilidade,

confronto e jogo de forças que se efetiva na concretude da comunicação verbal.

Assim, conforme adverte Miotello (2012), a ideologia dominante dá o tom

hegemônico nas relações sociais, exerce forte influência no jogo social, mas as contradições

sociais, que ainda persistem nas bases econômicas daquele grupo social, ―destroem

cotidianamente a ideologia oficial; basta olhar para a História. A durabilidade da ideologia

oficial não é maior que o tempo de duração da ideologia do cotidiano‖ (MIOTELLO, 2012, p.

174). Na teoria bakhtiniana, a ideologia do cotidiano é, portanto, o elo entre a infraestrutura

econômica e os sistemas ideológicos constituídos e essa ligação se constitui por meio da

interação verbal.

Os fenômenos ideológicos, nessa perspectiva, não são compreendidos como simples

imposição dos valores de determinados grupos sociais ou ―ocultamento do real‖, mas como

espaços em que se dão acirrados conflitos, marcados por negociações, resistências e

consentimentos. Assim, a concepção de ideologia na teoria bakhtiniana aproxima-se do

conceito de hegemonia, do teórico italiano Antonio Gramsci, segundo o qual as relações de

dominação não devem ser pensadas apenas como imposição, mas também a partir de

processos de resistência e negociação.

O conceito de "hegemonia" é o centro organizador do pensamento de Gramsci sobre

a política e a ideologia, e seu uso característico transformou-o no marco da

abordagem gramsciana em geral. A melhor maneira de entender a hegemonia é

como a organização do consentimento: os processos pelos quais se constroem

formas subordinadas de consciência, sem recurso à violência ou à coerção. O bloco

dominante, segundo Gramsci, atua não apenas na esfera politica, mas em toda a

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37

sociedade. Gramsci enfatizou os níveis "inferiores" - menos sistemáticos – de

consciência e apreensão do mundo e, em particular, interessou-se pelos modos como

o conhecimento e a cultura "populares" desenvolveram-se de maneira a assegurar a

participação das massas no projeto do bloco dominante (BARRET, 1996, p.

238).

A ideia de hegemonia como ―organização do consentimento‖ pode fazer crer que as

relações entre os diversos grupos sociais se efetivam de maneira harmoniosa, entretanto

Barret (1996) destaca que Gramsci fala de "guerra de posições" e "guerra de movimento",

conceitos que ilustram a batalha pela conquista da hegemonia política. Além disso, a

hegemonia possui um caráter dinâmico, está sempre ligada a uma ideia de luta e ―equilíbrio

instável‖. Nesse sentido, Barret (1996, p. 197) esclarece que o conceito de hegemonia amplia

e enriquece a noção de ideologia: ―É com Gramsci que se efetua a transição crucial da

ideologia como ‗sistema de ideias‘ para a ideologia como prática social vivida e costumeira‖.

Sobre esse aspecto, Hall (2010) enfatiza que Gramsci e Volochínov (Bakhtin)

reintroduziram, no domínio da ideologia e da linguagem, a noção de ―luta pelo sentido‖.

O sentido, uma vez problematizado, deve ser o resultado, não de uma reprodução

funcional do mundo na linguagem, mas de uma luta social – uma luta pelo domínio

no discurso – por qual tipo de acento deve permanecer e ganhar credibilidade. Isso

reintroduziu tanto a noção de ―interesses sociais de diferentes tendências‖, quanto

uma concepção do signo como uma ‗arena de luta‘ na reflexão sobre a linguagem e a

―tarefa‖ de significação (HALL, 2010, p. 211).

Hall (2010) destaca, ainda, que Volochínov (Bakhtin) comprovou teoricamente essa

―luta pelo sentido‖ por meio do argumento da multiacentualidade do signo linguístico. Ou

seja, os signos podem ter diferentes acentos26

, que marcam os interesses e valores dos mais

diversos grupos sociais, portanto o ideológico não se restringe à reprodução da ideologia

dominante. Os signos são o espaço de confronto de diferentes tendências e interesses sociais.

Esses diferentes acentos marcam a diversidade de vozes sociais em embate nas

práticas de linguagem. Nesse sentido, pensar o discursivo a partir do ideológico e das

relações de poder não significa reafirmar a supremacia das classes dominantes que subjugam

as subalternas, mas refletir sobre os confrontos que se materializam na linguagem.

2.4 Vozes sociais e Heteroglossia

Conforme Bubnova (2011), Bakhtin, ao longo de sua produção teórica, utiliza

amplamente um vocabulário ligado à oralidade e à escuta (vozes, tom, polifonia, acento, etc.).

26

A questão do acento apreciativo é discutida no item 2.4.2 deste capítulo.

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38

Na perspectiva bakhtiniana, os sentidos são ―gerados e transmitidos pelas vozes

personalizadas, que representam posições éticas e ideológicas diferenciadas em uma união e

intercâmbio contínuo com as demais vozes‖ (BUBNOVA, 2011, p. 270). Essa autora adverte,

com base em Dahlet (1997), que o termo voz, em Bakhtin, tem um sentido metafórico, pois

não se trata de uma emissão vocal, mas da ―maneira semântico-social depositada na palavra‖,

assim, segundo Bubnova (2011, p. 276) ‖voz se identifica com opinião, ponto de vista,

postura ideológica‖.

De acordo com essa autora, até mesmo o conceito de enunciado na teoria bakhtiniana

é uma metáfora da oralidade codificada na escrita (o enunciado é a unidade mínima de sentido

que pode ser respondida no processo de comunicação dialógica). Assim, as vozes sociais, em

confronto no horizonte dialógico, se constituem a partir da relação com vozes anteriores e, por

sua vez, dirigem-se a outras vozes, ou seja, suscitam uma resposta. Nesse sentido, em nosso

corpus, as vozes sociais que criminalizaram movimentos como Canudos e Contestado são

retomadas no processo de construção das representações sobre o Caldeirão27

.

O sentido é, então, uma resposta a algo dito antes, e, é algo que pode ser respondido.

A voz é, assim, a fonte de um sentido personalizado; atrás dela há um sujeito pessoa;

mas não se trata de uma ―metafísica da presença‖, dos sentidos pré-existentes e

imóveis, nem de algo fantasmagórico, mas de um constante devir do sentido

permanentemente gerado pelo ato-resposta, que vai sendo modificado no tempo ao

ser retomado por outros participantes no diálogo (BUBNOVA, 2011, p. 272).

Nesse sentido, as vozes sociais se materializam através da interação verbal entre

indivíduos socialmente organizados. Assim, importante destacar que, na perspectiva

bakhtiniana, o ―social‖ não é uma mera oposição ao ―individual‖, tendo em vista que os

sentidos são produzidos a partir da interação entre os indivíduos (sujeitos históricos), num

contexto sócio-histórico-ideológico: ―Todo produto da ideologia leva consigo o selo de

individualidade do seu ou dos seus criadores, mas este próprio selo é tão social quanto todas

as outras particularidades e signos distintivos das manifestações ideológicas. Assim, todo

signo, inclusive o da individualidade, é social‖ (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1990, p.58)28

.

27

Diversos estudiosos, tomando como referência o dialogismo bakhtiniano, trabalham essa retomada ao ―já-

dito‖ a partir do desenvolvimento de categorias como interdiscurso/ interdiscursividade/ intertextualidade. Nesta

pesquisa, não trabalhamos com tais categorias, pois consideramos que, a partir da discussão aqui desenvolvida

sobre vozes sociais, é possível analisar essa retomada do ―já-dito‖, tendo em vista que, no âmbito das relações

dialógicas, as vozes sociais se configuram como resposta a vozes anteriores e se dirigem a outras vozes, de quem

esperam resposta. 28

Em sua discussão sobre as ―vozes da sociedade‖, Mey (2001) destaca que o termo ―voz‖ é uma metáfora para

a atividade social e que essas ―vozes‖ são utilizadas pelas pessoas em interação: ―as vozes dos humanos são os

instrumentos constitutivos sobre os quais se funda, em última instância, a orquestração da sociedade‖ (MEY,

2001, p. 27).

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39

Considerando a caráter dialógico de todo e qualquer discurso, no ensaio ―O Discurso

no Romance‖ 29

, Bakhtin (2010) volta seu olhar para a estratificação social e ideológica da

linguagem e toma o romance como um ―microcosmo‖ dessa realidade saturada. Conforme

esse autor, o contexto social concreto, no qual a prosa romanesca é construída, ressoa dentro

do próprio discurso do romance, compreendido como uma diversidade social de linguagens

organizadas artisticamente. Nessa obra, Bakhtin trabalha os problemas estilísticos no discurso

literário a partir de uma abordagem filosófica e sociológica, que questiona uma concepção de

língua como unidade neutra, homogênea e monológica. Conforme Bakhtin (2010), a língua

não deve ser compreendida como um sistema linguístico de categorias gramaticais abstratas,

mas como uma realidade, estratificada ideologicamente e socialmente, em que se confrontam

diferentes concepções de mundo.

A estratificação da linguagem, nesse sentido, se constrói a partir de relações dialógicas

entre diversas vozes sociais, que são empreendidas por sujeitos históricos e expressam

diferentes horizontes sociais de valor, os quais são construídos em um terreno interindividual

e estão relacionados, conforme já destacado, a valores compartilhados por determinados

grupo sociais, a partir da dinâmica da história. Nesse sentido, a estratificação assinala o

caráter heterogêneo da linguagem, compreendida como espaço em que se confronta uma

multiplicidade de vozes sociais, que materializam diferentes visões de mundo,

posicionamentos individuais e de grupos sociais.

Deste modo, em cada momento da sua existência histórica, a linguagem é

grandemente pluridiscursiva. Deve-se isso à coexistência de contradições

sócioideológicas entre presente e passado, entre diferentes épocas do passado, entre

diversos grupos sócio-ideológicos, entre correntes, escolas, círculos, etc., etc. Estes

"falares" do plurilingüismo entrecruzam-se de maneira multiforme, formando novos

"falares" socialmente típicos (BAKHTIN, 2010, p.98).

Nesse sentido, Bakhtin trabalha o caráter heterogêneo da língua não apenas do ponto

de vista linguístico, restrito a questões dialetológicas, mas em uma abordagem discursiva,

segundo a qual, em uma enunciação concreta, confrontam-se diferentes perspectivas sócio-

ideológicas. Nesse sentido, a linguagem/ os discursos/ os enunciados são permeados por uma

29

O ensaio ―O Discurso no Romance‖ (DR) foi escrito nos anos de 1934-35, período em que Mikhail Bakhtin

estava no exílio em Kustanai, Cazaquistão. O ―Discurso no Romance‖ foi apresentado como conferência no

Instituto de Literatura Universal da Academia de Ciências da URSS em 1940, entretanto, só teve sua primeira

publicação em 1975, em uma edição póstuma, que reúne ensaios escritos entre décadas de 1920 a 1970. A

coletânea foi traduzida para o português, em 1988, com o título ―Questões de Literatura e de Estética: a teoria do

romance‖ (Cf. CAMPOS, 2012). Lahteenmäki (2005) destaca que dois capítulos do ensaio haviam sido

publicados em 1972, no periódico russo ―Voprosyliteratury‖. Esse autor ressalta, ainda, que ―é possível

pressupor que os manuscritos de DR não tenham sido publicados na sua íntegra, mas com ‗cortes‘. Certas

passagens foram editorialmente retiradas do manuscrito antes da sua publicação e esse fato é revelado nos

comentários do editorial sobre as notas de trabalho que datam dos primórdios de 1950‖ (LAHTEENMÄKI,

2005, p. 46).

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multiplicidade de vozes sociais, por diferentes posicionamentos, intenções, posturas e pontos

de vistas de sujeitos históricos.

A língua, portanto, é trabalhada a partir de sua orientação dialógica, que, segundo

Bakhtin, é um fenômeno próprio a todo discurso. Assim, de acordo com Bakhtin, a concepção

de linguagem monológica, única e homogênea é construída historicamente e expressa os

processos de unificação e centralização das forças linguísticas, as quais Bakhtin denomina

forças centrípetas30

. Em contraponto a esse processo de centralização, existem forças que

promovem a descentralização e desunificação, as forças centrífugas. A enunciação concreta é

compreendida como uma unidade contraditória dessas duas tendências opostas da vida verbal:

as forças centralizadoras (centrípetas) e as descentralizadoras (centrífugas).

Em cada momento da sua formação a linguagem diferencia-se não apenas em

dialetos linguísticos, no sentido exato da palavra (formalmente por indícios

linguísticos, basicamente por fonéticos), mas, o que é essencial, em línguas sócio-

ideológicas: sócio-grupais, "profissionais", "de gêneros", de gerações, etc. A própria

língua literária, sob este ponto de vista, constitui somente uma das línguas do

plurilinguismo e ela mesma por sua vez estratifica-se em linguagens (de gêneros, de

tendências, etc.). E esta estratificação e contradição reais não são apenas a estática

da vida da língua, mas também a sua dinâmica: a estratificação e o plurilinguismo

ampliam-se e aprofundam-se na medida em que a língua está viva e desenvolvendo-

se; ao lado das forças centrípetas caminha o trabalho contínuo das forças centrífugas

da língua, ao lado da centralização verbo-ideológica e da união caminham

ininterruptos os processos de descentralização e desunificação (BAKHTIN, 2010,

p.82).

Em confronto com as forças centralizadoras, há uma multiplicidade de vozes sociais

que expressam as forças da pluralidade e da descentralização. Fiorin (2006, p. 31) destaca

que, a partir do conceito de forças centrípetas e centrífugas, ―Bakhtin desvela o fato de que a

circulação das vozes numa formação social está submetida ao poder. Não há neutralidade no

jogo das vozes‖.

É no âmbito dessa discussão que Bakhtin desenvolve o conceito de heteroglossia

(plurilinguismo/ pluridiscurso)31

. Bakhtin (2010) enfatiza que o verdadeiro meio da

30

Importante destacar o contexto em que o ensaio O discurso no romance foi produzido. Conforme Clark e

Holquist (2004, p.287), ―termos como ‗linguagem unificada‘, ‗centralização‘, ‗gêneros oficiais‘, ‗canonização do

sistema ideológico‘ e ‗linguagem correta‘ não poderiam ser escolhidos, em 1934, de maneira inocente e

fortuita‖. O regime político da Rússia nos anos 1930 implementava políticas com vistas a unificação e

padronização de vários aspectos da vida social, inclusive no que se refere à língua e à diversidade étnica, entre

elas, a exigência de que a produção literária seguisse um método canônico, que ficou conhecido como ―realismo

socialista‖. 31

Importante destacar que o conceito de plurilinguismo, na perspectiva bakhtiniana, não deve ser confundido

com a concepção de diversidade de línguas, trabalhada, por exemplo, nos estudos de Política Linguística. Sobre

o plurilinguismo no Brasil, em uma abordagem no campo das políticas linguísticas, ver Oliveira (2008).

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enunciação é o confronto entre as diversas vozes sociais, é a heteroglossia, que se efetiva no

universo das relações dialógicas32

.

A língua, enquanto meio vivo e concreto onde vive a consciência do artista da

palavra, nunca é única. Ela é única somente como sistema gramatical abstrato de

formas normativas, abstraída das percepções ideológicas concretas que a preenche e

da contínua evolução histórica da linguagem viva. A vida social viva e a evolução

histórica criam, nos limites de uma língua nacional abstratamente única, uma

pluralidade de mundos concretos, de perspectivas literárias, ideológicas e sociais,

fechadas; os elementos abstratos da língua, idênticos entre si, carregam-se de

diferentes conteúdos semânticos e axiológicos, ressoando de diversas maneiras no

interior, destas diferentes perspectivas (BAKHTIN 2010, p. 96).

Faraco (2009) esclarece que o termo heteroglossia designa a realidade heterogênea da

linguagem, permeada pelos confrontos entre uma multiplicidade de vozes sociais.

Ressaltamos que termos como heteroglossia/ plurilinguismo/ pluridiscurso são trabalhados

como equivalentes em diversos estudos que tomam como referencial a teoria bakhtiniana,

mas, não raro, essa utilização gera certa controvérsia na literatura crítica sobre o tema.

A principal polêmica ocorre porque, com frequência, o termo heteroglossia (ou

plurilinguismo) é compreendido apenas como diversidade de dialetos e formas linguísticas.

Campos (2012) ressalta que autores como Brandist (2006) e Lahteenmäki (2005) discutem

sobre as implicações e dificuldades de interpretação desse conceito, as quais são decorrentes

das diferentes traduções e formas de recepção dos escritos do Círculo de Bakhtin.

Brandist33

(2006) enfatiza que a discussão sobre a estratificação social da linguagem,

desenvolvida por Bakhtin, fica, muitas vezes, obscurecida por questões de tradução, tendo em

vista que os termos russos raznoiazychie e raznorechie foram traduzidos como equivalentes,

entretanto possuem uma distinção bem definida no texto original russo. Na tradução norte-

americana, por exemplo, ―Discourse in the novel‖, de 1981, os termos foram traduzidos como

heteroglossia. Já na tradução brasileira de ―Discurso no Romance‖, publicada em 1988, os

termos aparecem traduzidos, em geral, como plurilinguismo34

. Em nota, os tradutores da

edição brasileira ressaltam que o termo russo rasnoriétchie e sua forma abstrata

rasnorietchívost foram traduzidos por pluridiscurso, pluridiscursividade, respectivamente,

quando foi necessário destacar a diferença com rasnoiazítchie (conjunto de línguas

32

Bakhtin (2010) apresenta especificidades entre os termos heteroglossia e heteroglossia dialogizada. O

primeiro diz respeito à diversidade de vozes sociais e o segundo está ligado ao confronto entre essa diversidade

de vozes sociais no universo das relações dialógicas. Entretanto, neste trabalho, utilizamos esses termos como

equivalentes, tendo em vista que essa diversidade de vozes sociais sempre se efetiva no âmbito das relações

dialógicas. 33

Craig Brandist, estudioso da teoria bakhtiniana, é professor do Departamento de Russo e Estudos Eslavos da

Universidade de Sheffield, no Reino Unido. 34

No francês, esses termos aparecem como heterologie ou plurilinguisme.

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diferentes). Assim, em muitos trabalhos, os termos heteroglossia, plurilinguismo e

pluridiscurso são tomados como equivalentes.

Conforme Lahteenmäki (2005), Bakhtin introduz os conceitos de raznoiazychie e

raznorechie a partir da discussão sobre a dinâmica da linguagem e a estratificação ideológica

e social de uma língua nacional. Segundo o autor, raznorechie refere-se à pluralidade

discursiva, ou seja, à ―coexistência de uma multiplicidade de várias formas linguísticas que

competem entre si, por exemplo, registros sociais, profissionais e assim por diante, associados

a certos pontos de vista ideológicos‖ (LAHTEENMÄKI, 2005, p. 43). Raznoiazychie refere-

se à pluralidade linguística, ou seja, à presença de muitos dialetos e línguas (que se

diferenciam por determinados traços lexicais, gramaticais e fonéticos) dentro de uma dada

comunidade linguística.

Nesse sentido, Lahteenmäki (2005) enfatiza que a estratificação social, na perspectiva

bakhtiniana, é considerada não apenas um fenômeno linguístico, mas, principalmente, um

fenômeno sócio-ideológico, que está ligado a uma multiplicidade de visões de mundo dentro

de uma mesma comunidade linguística. Nessa abordagem, o linguístico e o social não se

excluem, estão inter-relacionados. Dessa maneira, Bakhtin ―identifica raznorechie como a

diversidade de visões de mundo representadas pelas diferentes formas linguísticas e, portanto,

a estratificação social de uma língua vem a significar a coexistência de diferentes perspectivas

ideológicas dentro de uma única língua nacional‖ (LAHTEENMÄKI, 2005, p. 49).

Essa distinção entre os termos raznoiazychie e raznorechie é significativa, na medida

em que contribui para esclarecer que a concepção de estratificação da realidade trabalhada por

Bakhtin não se restringe a questões como marcas dialetais. Assim, as formas linguísticas

correspondem a diferentes perspectivas ideológicas. Sobre essa questão, Faraco (2009)

destaca:

Aquilo que chamamos de língua não é só um conjunto difuso de variedades

geográficas temporais e sociais (como nos ensinam a dialetologia, a linguística

histórica e a sociolinguística). Todo esse universo está também atravessado por outra

estratificação, que é dada pelos índices sociais de valor oriundos da diversificada

experiência sócio-histórica dos grupos sociais. Aquilo que chamamos de língua é

também e principalmente um conjunto indefinido de vozes sociais (FARACO, 2009,

p. 57).

A língua, portanto, é vista como um conglomerado de perspectivas ideológicas que

competem entre si, uma diversidade de posições sociais avaliativas. Neste sentido, a

heteroglossia está relacionada à tessitura entre diferentes vozes sociais em confronto no

processo de enunciação, no horizonte das relações dialógicas. Conforme Bakhtin (2010)

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Todas as palavras e formas que povoam a linguagem são vozes sociais e históricas,

que lhe dão determinadas significações concretas e que se organizam no romance

em um sistema estilístico harmonioso, expressando a posição sócio-ideológica

diferenciada do autor no seio dos diferentes discursos da sua época (BAKHTIN,

2010, p. 106).

A partir da discussão sobre o embate de forças contraditórias no processo de

comunicação verbal (centralizadoras e descentralizadoras), fica claro que o jogo de vozes se

dá a partir de tensas relações de poder. No corpus da nossa pesquisa, pode-se observar uma

constante tensão entre vozes que reproduzem os sentidos hegemônicos, legitimadores da

destruição do movimento Caldeirão, e vozes questionadoras desses sentidos.

Cabe destacar, ainda, que a heteroglossia, muitas vezes, é tomada como equivalente a

outra categoria bakhtiniana, polifonia, entretanto, no âmbito da teoria bakhtiniana,

heteroglossia e polifonia possuem especificidades que as distinguem. O termo polifonia é

utilizado por Bakhtin (2013) para caracterizar o gênero romanesco criado por Dostoievski: o

romance polifônico35

. Assim, nos escritos bakhtinianos, ―a polifonia se define pela

convivência, em um mesmo romance, de uma multiplicidade de vozes e consciências

independentes e imiscíveis, vozes plenivalentes e consciências equipolentes‖ (BEZERRA,

2009, p. 194). No romance polifônico, o autor orquestra as várias vozes que interagem na

narrativa, mas todas elas estão em igualdade de posição, uma não se submete às outras.

Assim, a polifonia é caracterizada como espaço de consenso, já que nenhuma voz se impõe à

outra.

Faraco (2009, p.78) adverte que é inadequado não distinguir polifonia e heteroglossia,

pois ―polifonia não é, para Bakhtin, um universo de muitas vozes, mas um universo em que

todas as vozes são equipolentes‖ 36

. A multiplicidade de vozes sociais que caracterizam a

estratificação da língua não gera, necessariamente, uma realidade polifônica (em que todas as

vozes seriam equivalentes) 37

.

35

Vale ressaltar que o conceito de polifonia é trabalhado, em outras perspectivas, por diversos autores. Em uma

abordagem enunciativa, Oswald Ducrot (1987), tomando como referência o princípio do dialogismo bakhtiniano,

procurou aplicar o conceito de polifonia, a partir da análise da presença de diversas vozes em enunciados

isolados. O autor faz esse estudo com o intuito de questionar o pressuposto da unicidade do sujeito falante.

Ducrot considera que essa pluralidade de vozes presentes na enunciação pode ser analisada a partir de marcas

linguísticas. 36

Faraco (2009) destaca, ainda, que o termo polifonia possui pouca produtividade analítica, pois, no pensamento

bakhtiniano, é mais uma categoria ética e filosófica do que propriamente literária. Assim, esse autor destaca que

o termo polifonia, em Bakhtin, pode ser compreendido como uma ―metáfora‖ da ―utopia‖ de um ―mundo

polifônico‖, que seria radicalmente democrático, pluralista e onde nenhuma voz social subjugaria outra. 37

Cabe destacar, também, que polifonia difere de dialogismo, pois as relações dialógicas são um princípio

constitutivo da linguagem, já as manifestações da polifonia referem-se a uma relação dialógica bem específica,

na qual há uma equivalência de vozes, pois nenhuma se sobrepõe à outra. Nessa perspectiva, nem sempre que há

dialogismo, há polifonia.

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Assim confundir esses termos limita, por exemplo, a percepção de que os discursos

que circulam socialmente têm peso político diferenciado; e de que, no jogo dos

poderes sociais, há [...] um contínuo esforço centrípeto (monologizante) dos

discursos que ambicionam se impor como um centro, buscando reduzir e impor a

heteroglossia (FARACO, 2009, p. 78).

Dessa forma, nesta pesquisa, trabalhamos com a categoria da heteroglossia, que diz

respeito à multiplicidade de vozes sociais conflitantes, no horizonte das relações dialógicas,

em disputa por posições de controle e hegemonia. Nessa perspectiva, o dialogismo se

manifesta na heteroglossia, que é palco de um jogo dialógico de valores antagônicos. Essa

diversidade de vozes sociais se expressa, de um ponto de vista linguístico-discursivo, por

meio de mecanismos como o discurso citado e o acento apreciativo, os quais discutiremos a

seguir.

2.4.1 O discurso citado na teoria bakhtiniana

Na abordagem bakhtiniana, a língua não é compreendida desvinculada do seu exterior,

pois é constituída a partir do fenômeno social da interação verbal, do diálogo entre os sujeitos

e o contexto histórico-social. A língua, portanto, é heterogênea: o ―outro‖, o exterior, está

inscrito no discursivo e dele é constitutivo. O discurso citado (discurso direto, indireto e

indireto livre) 38

, nesta perspectiva, representa um campo fértil para análise da presença do

―outro‖, do caráter heterogêneo da linguagem.

Bakhtin/Volochínov (1990) contrapõem a concepção interacionista da linguagem a

duas orientações tradicionais de estudo dos fenômenos da linguagem: o subjetivismo idealista

e o objetivismo abstrato. A primeira toma o ato de fala individual como fundamento da

língua, a qual é compreendida como uma expressão da subjetividade do falante. A segunda

orientação, que tem como principal representante Ferdinand de Saussure, trabalha a língua

como um sistema fechado e imutável de formas linguísticas. A partir de uma visão

mecanicista e racionalista, o objetivismo abstrato considera que não há relação entre o sistema

linguístico e o contexto histórico ou os valores ideológicos.

Entretanto, conforme já dito, Bakhtin/ Volochínov (1990) enfatizam que a enunciação

monológica, fechada, constitui uma abstração, tendo em vista que a ―enunciação é de natureza

social [...], a concretização de uma palavra só é possível com a inclusão dessa palavra no

contexto histórico real de sua realização‖ (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, p.107). Há, portanto,

38

Nesse contexto, o termo ―discurso‖ também pode ser compreendido como ―enunciado/enunciação‖. A

remissão à palavra do outro recebe diferentes designações nos estudos da linguagem, tais como: discurso citado,

discurso reportado, discurso de outrem, palavra outra.

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uma crítica à linguística estrutural, que trata a língua como entidade abstrata, sem qualquer

vínculo com a prática social concreta.

A terceira parte do livro Marxismo e Filosofia da Linguagem (1990) apresenta uma

discussão sobre as ―formas da enunciação nas construções sintáticas‖. Na obra, Bakhtin/

Volochínov desenvolvem um rico estudo sobre o ―discurso de outrem‖, a partir de uma

proposta de ―aplicação do método sociológico aos problemas sintáticos‖, numa clara ruptura

com as práticas tradicionais da linguística, que trabalhava os fenômenos da linguagem por

meio de categorias fonéticas e morfológicas, restritas a um sistema abstrato da língua. Os

autores destacam que objetivam traçar os ―caminhos do método sociológico em linguística‖,

assim o estudo da sintaxe só seria possível a partir da elaboração de uma teoria da enunciação.

Bakhtin/Volochínov (1990) afirmam que a análise sintática dos discursos constitui

uma análise do corpo vivo da enunciação, ou seja, as formas sintáticas são as que mais se

aproximam das formas concretas de enunciação. Sobre esse aspecto Ponzio (2008) destaca:

Reportando a palavra outra, a palavra tem necessariamente que realizar ligações,

conexões, tem de se combinar com a palavra outra, enfrentar os problemas da

sintaxe. É justamente na sintaxe que se evidencia em grau máximo o encontro da

palavra própria com a palavra outra, a sua relação de interação; e é, sobretudo, na

sintaxe do discurso reportado, direto, indireto e indireto livre, que se evidencia o

modo no qual se orienta a recepção e a transmissão da palavra outra, que se

manifesta a disposição para a escuta e a dialogicidade constitutiva da enunciação

(PONZIO, 2008, p. 22).

Dessa forma, o discurso citado, na teoria bakhtiniana, conforme já destacado, é

trabalhado em uma perspectiva enunciativa, não se restringe, portanto, à análise frasal,

desvinculada de relação com o outro, com a exterioridade. Nesse sentido, Bakhtin/

Volochínov (1990) dedicam-se ao estudo dos esquemas de apreensão do discurso citado

(discurso direto, discurso indireto e discurso indireto livre) e das variantes desses esquemas.

Segundo Bakhtin/ Volochínov (1990, p.144), o discurso citado é o ―discurso no

discurso a enunciação na enunciação, mas é, ao mesmo tempo, um discurso sobre o discurso,

uma enunciação sobre a enunciação‖. Assim, a retomada do discurso citado marca a interação

entre discursos, entre enunciações. O discurso reportado possui um sentido (construído em

dada enunciação) que é mobilizado e reelaborado e passa a fazer parte dos sentidos de outra

enunciação - aquela em que ocorre a retomada desse discurso. ―O discurso citado é

compreendido como fenômeno dialógico por meio do qual os sujeitos constroem o discurso

alheio e constroem o próprio para se posicionar em relação a um conteúdo ou temática, ao

outro, a ele mesmo, ao seu próprio discurso‖ (CUNHA, 2008, p.131).

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Conforme Bakhtin/ Volochínov (1990), as formas do discurso citado refletem

tendências sociais estáveis da recepção ativa do discurso de outrem. Há, portanto, uma inter-

relação dinâmica entre discurso citado e contexto narrativo (a enunciação que retoma o

discurso do outro). ―Essa dinâmica, por sua vez, reflete a dinâmica da inter-relação social dos

indivíduos na comunicação ideológica verbal‖ (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1990, p.148).

Assim, diferentes acentuações podem ser estabelecidas entre o narrador e o discurso

do outro, num processo interativo. O discurso citado e o contexto narrativo unem-se por

relações dinâmicas, complexas e tensas.

É impossível compreender qualquer forma de discurso citado sem levá-las em conta.

O erro fundamental dos pesquisadores que já se debruçaram sobre as formas de

transmissão do discurso de outrem, é tê-lo sistematicamente divorciado do contexto

narrativo. [...] O discurso citado e o contexto de transmissão são apenas os termos de

uma inter-relação dinâmica. [...] Essa dinâmica, por sua vez, reflete a dinâmica da

inter-relação social dos indivíduos na comunicação ideológica verbal

(BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1990, p.148).

A remissão ao discurso do outro, nesse sentido, não é uma atitude desinteressada, sem

propósito, pois há um confronto entre ―o discurso a transmitir e aquele que serve para

transmiti-lo‖. É nesse encontro de enunciações que se materializam os embates da dinâmica

social e ele deve ser o foco para a análise dos sentidos construídos a partir da remissão ao

discurso do outro. Não há como analisar o discurso citado desvinculado de sua relação com o

contexto narrativo.

Nesse sentido, a remissão à palavra do outro envolve uma postura ativa e apreciativa

daquele que a retoma. ―Aquele que apreende a enunciação de outrem não é um ser mudo,

privado de palavra, mas, ao contrário, um ser cheio de palavras interiores‖

(BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1990, p.147). Assim, Bakhtin/ Volochínov (1990) consideram

que encontramos no discurso citado um documento objetivo que esclarece os problemas

referentes à recepção ativa do discurso do outro.

Esse documento, quando sabemos lê-lo, dá-nos indicações, não sobre os processos

subjetivo-psicológicos passageiros e fortuitos que se passam na ―alma‖ do receptor,

mas sobre as tendências sociais estáveis características da apreensão ativa do

discurso de outrem que se manifestam na língua (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV,

1990, p.146).

Nessa perspectiva, a partir da dinâmica da inter-relação entre o discurso citado e

aquele que cita, Bakhtin/ Volochínov (1990) propõem duas tendências principais de retomada

do discurso do outro: o estilo linear e o estilo pictórico.

O estilo linear é caracterizado pela criação de fronteiras nítidas e estáveis à volta do

discurso citado. ―Nesse caso, os esquemas linguísticos e suas variantes têm a função de isolar

mais clara e mais estritamente o discurso citado, de protegê-lo de infiltração pelas entoações

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47

próprias do autor, de simplificar e consolidar suas características linguísticas individuais‖

(BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1990, p.148). Nessa tendência, predomina uma busca pela

objetividade e despersonalização, ou seja, há uma tentativa de marcar certo distanciamento

em relação à fala retomada. Assim, são estabelecidos ―contornos exteriores nítidos à volta do

discurso citado‖, em busca da manutenção da ―autenticidade‖ do discurso citado.

Tendo em vista que a linguagem é entendida como uma atividade de interação social,

as relações de poder se materializam no processo de retomada do discurso do outro. Assim,

por exemplo, no nosso corpus em análise, quando ocorre a remissão à fala de uma autoridade

policial, a delimitação de fronteiras entre o discurso citado e aquele que cita pode ser

justificada pela credibilidade e legitimidade que aquela fala possui.

[...] é importante levar sempre em conta a posição que um discurso a ser citado

ocupa na hierarquia social de valores. Quanto mais forte for o sentimento de

eminência hierárquica na enunciação de outrem, mais claramente definidas serão as

suas fronteiras, e menos acessível será ela à penetração por tendências exteriores à

replica e ao comentário ( (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1990, p.153).

No estilo pictórico, os contornos à volta do discurso citado são atenuados e é possível

a infiltração de réplicas e comentários do narrador no discurso de outrem. Há um esforço pelo

apagamento das fronteiras entre contexto narrativo e discurso citado. Uma das variedades

dessa orientação, segundo Bakhtin/ Volochínov (1990), ocorre quando é possível observar

que o narrador expressa diversos sentimentos (humor, ironia, desprezo, etc.) na retomada do

discurso citado. Bakhtin/Volochínov destacam que no estilo pictórico,

[...] o contexto narrativo esforça-se por desfazer a estrutura compacta e fechada do

discurso citado, por absorvê-lo e apagar as suas fronteiras. [...] Sua tendência é

atenuar os contornos exteriores nítidos da palavra de outrem. Além disso, o próprio

discurso é bem mais individualizado. Esta tendência encerra uma variedade de tipos.

O narrador pode deliberadamente apagar as fronteiras do discurso citado, a fim de

colori-lo com as suas entoações, o seu humor, a sua ironia, o seu ódio, com o seu

encantamento ou o seu desprezo. (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1990, p. 150).

Assim, a partir das acentuações e orientações estabelecidas entre contexto narrativo e

discurso citado, podem ser construídos diferentes efeitos de sentido39

. Segundo Bakhtin

(1997):

É necessário observar o seguinte: por maior que seja a precisão com que é

transmitido, o discurso de outrem incluído no contexto sempre está submetido a

notáveis transformações de significado. O contexto que avoluma a palavra de

outrem origina um fundo dialógico cuja influência pode ser muito grande.

Recorrendo a procedimentos de enquadramento apropriados, pode-se conseguir

transformações notáveis de um enunciado alheio, citado de maneira exata

(BAKHTIN, 2006, p.141).

39

Essas tendências de apreensão da palavra do outro (estilo linear e estilo pictórico) são tomadas como um

referencial na análise do discurso citado nos textos que compõem esta pesquisa.

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Nesse sentido, o discurso citado é compreendido como uma marca da presença do

outro na enunciação, um índice do caráter heterogêneo da língua e não apenas como um

problema gramatical, limitado ao nível da frase, desvinculado de relação com a exterioridade,

com as tensas relações da dinâmica social40

. Os estudos bakhtinianos, portanto, lançam um

novo olhar nas abordagens sobre o fenômeno de transmissão da palavra do outro, ainda hoje,

muitas vezes, restrito a uma questão gramatical e/ou estilística.

2.4.2 – Acento apreciativo/ Estilo

No universo das relações dialógicas, os enunciados expressam sempre uma postura

valorativa (axiológica) 41

, um horizonte social de valor; os discursos são marcados por

apreciações/entonações que manifestam diferentes posicionamentos. Assim, os sujeitos

estabelecem um diálogo com o discurso do outro – apoiando-o, questionando-o,

reacentuando-o, assumindo uma posição valorativa.

[...] todo discurso concreto (enunciação) encontra aquele objeto para o qual está

voltado sempre, por assim dizer, já desacreditado, contestado, avaliado, envolvido

por sua névoa escura ou, pelo contrário, iluminado pelos discursos de outrem que já

falaram sobre ele. O objeto está amarrado e penetrado por idéias gerais, por pontos

de vista, por apreciações de outros e por entonações. Orientado para o seu objeto, o

discurso penetra neste meio dialogicamente perturbado e tenso de discursos de

outrem, de julgamentos e de entonações. Ele se entrelaça com eles em interações

complexas, fundindo-se com uns, isolando-se de outros, cruzando com terceiros; e

tudo isso pode formar substancialmente o discurso, penetrar em todos os seus

estratos semânticos, tornar complexa a sua expressão, influenciar todo o seu aspecto

estilístico (BAKHTIN, 2010, p.86. grifo nosso).

Ao logo das obras do Círculo de Bakhtin, o debate sobre a dimensão apreciativa da

enunciação emerge a partir de diferentes conceitos como índice social de valor, entoação

expressiva, tom, estilo, tonalidade, entonação, apreciação, acento apreciativo, acento

avaliativo, posicionamento valorativo, julgamento de valor, avaliação. Aqui trataremos a

questão do acento apreciativo, sobretudo, a partir dos conceitos de entonação/ entoação

expressiva e estilo, trabalhados, em especial, em Marxismo e Filosofia da Linguagem

40

Essa perspectiva de estudos do discurso citado é retomada por teóricos como Authier-Revuz (1990, 2004) e

Dominique Maingueneau (1997). A linguista Authier-Revuz traz significativa contribuição para a análise do

―outro‖ na discursividade, a partir de seus estudos acerca das heterogeneidades enunciativas (1990). Authier-

Revuz parte de pressupostos teóricos que questionam uma concepção de linguagem ―monológica‖ (e

desvinculada de relação com a exterioridade) e de sujeito discursivo como ―fonte e senhor do seu dizer‖.

Maingueneau (1997) assinala que o discurso direto e o discurso indireto são as manifestações mais clássicas da

heterogeneidade da língua. 41

Conforme Flores (2009, p.45), na teoria bakhtiniana, a dimensão axiológica pode ser definida como o

―tratamento avaliativo que constitui todo enunciado‖. É equivalente a expressões como acento apreciativo,

acento de valor, posição avaliativa, valoração.

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49

(BAKHTIN/ VOLOCHÍNOV, 1990), A palavra na vida e na poesia (VOLOCHÍNOV, 2011),

Gêneros do Discurso (BAKHTIN, 2006) e O Discurso no Romance (BAKHTIN, 2010).

Conforme destaca Dionísio (2010, p.48) 42

, a entonação, para o Círculo de Bakhtin,

contempla aspectos próprios da comunicação oral, tais como ―‗tom‘, entendido como ‗padrão

de altura da voz‘; ou como prosódia: ‗variações de altura, volume, ritmo e tempo (velocidade

de emissão) durante a fala‘ e ‗diferentes variações do comportamento da voz‘‖. Entretanto,

cabe destacar que a entonação não se restringe à comunicação oral, tendo em vista que ―sua

concepção ampliada cobre a modalidade escrita, considerando, por exemplo, a seleção dos

vocábulos (menos dos dicionários e mais das falas dos outros como decorrência de

posicionamentos avaliativos e valorativos)‖ (DIONÍSIO, 2007, p. 57). Sobre esse aspecto,

Dahlet (1997) enfatiza que

A entonação é lugar de memória e lugar de encontro. Lugar de memória acústica e

social, pois tanto o autor quanto o leitor estão totalmente impregnados de entonações

desde a mais tenra infância, e sua entonação depositada no texto constitui-se da

sedimentação dessas diversas entonações ao mesmo tempo que reflete o grupo social

ao qual pertencem. Lugar de encontro, pois a entonação é o resultado, além do

enunciado, do cruzamento de sua entonação respectiva (DAHLET, 1997, p. 265).

Nessa perspectiva, Volochínov (2011, p.160) 43

trata a entonação como um aspecto

que estabelece um vínculo entre a palavra e o contexto extraverbal: ―Mediante a entonação, a

palavra se relaciona diretamente com a vida. E, antes de tudo, justamente na entonação o

falante se relaciona com os ouvintes: a entonação é social por excelência.‖ Esse autor destaca,

ainda, que uma das dimensões desse contexto extraverbal é o horizonte de valores

compartilhados pelos falantes no meio social.

Assim, a entonação é uma expressão das valorações sociais, portanto se apoia em

valores compartilhados por determinados grupos sociais. Essa valoração social não costuma

se enunciar, em geral, mantém-se subtendida. Conforme Volochínov (2011), a enunciação é

composta de duas partes: a) uma realizada verbalmente e b) uma subtendida. A entonação,

nesse sentido, surge como um elo entre o dito e o não dito. Os diferentes tons podem fazer a

palavra soar como ameaça, ironia, indignação, etc. A expressão dessas valorações, por meio

da entonação, não deve ser compreendida apenas como um ato da individualidade do falante,

42

Dionísio (2010) produziu um estudo sobre como a noção de ―valor‖ é trabalhada pelo Círculo de Bakhtin. A

autora aborda desde as primeiras reflexões do Círculo sobre a questão axiológica, presentes no texto Para uma

filosofia do Ato, passando pela discussão sobre entonação, nas obras Marxismo e Filosofia da Linguagem,

Discurso na Vida e Discurso na Poesia e Gêneros do Discurso (presente na coletânea Estética da Criação

Verbal), até a questão da axiologia e das relações dialógicas, a partir da obra Problemas da poética de

Dostoiévski. 43

Utilizamos a primeira versão para o português do texto de Volochínov (escrito em 1926), A palavra na Vida e

na poesia - Introdução aos problemas da poética sociológica, publicada em 2011. Na obra, o autor traz uma

abordagem sociológica do texto literário.

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pois se configura a partir de um horizonte social compartilhado, ―um eu somente pode

realizar-se na palavra se se apoia nos ‗outros‘‖ (VOLOCHÍNOV, 2011 p. 158).

De acordo com Volochínov (2011), a entonação - que se constrói a partir da

enunciação concreta - pressupõe um suposto ―coral de apoio‖, pois as avaliações são

realizadas e compartilhadas a partir de um ―chão comum‖. ―Onde não existe este apoio, a voz

se corta como em alguém que ri e logo se perde por ser um riso solitário: o riso se cala ou

degenera, volta afetado, perde a segurança e definição e já não é capaz de gerar palavras

alegres e burlescas‖ (VOLOCHÍNOV, 2011, p. 161). Nesse sentido, Volochínov (2011)

destaca que a entonação é vista como um produto da interação social do falante, do ouvinte e

daquele de quem ou do que se fala, que pode expressar acordos/ consensos ou

desacordos/dissensos. Conforme salienta Amorim (2004, p. 123), o tom de um enunciado

―pode ser identificável, por exemplo, pelo contraste de ideias heterogêneas no interior de um

mesmo texto – tom irônico, tom polêmico, etc. E o tom de um enunciado escrito, do mesmo

modo que a entonação oral, define-se precisamente pela relação locutor/interlocutor‖.

Assim, os julgamentos de valor determinam a seleção das palavras feitas pelo falante e

a compreensão/recepção dessa palavra feita pelo ouvinte. Esse caráter avaliativo se manifesta

por meio da entonação que se expressa na materialidade linguística, por exemplo, por meio da

escolha de determinados recursos lexicais e composicionais. Assim, algumas palavras podem

ser selecionadas, outras, rejeitadas, de acordo com a relação valorativa entre as vozes em

diálogo. ―A relação valorativa do falante com o objeto do seu discurso (seja qual for esse

objeto) também determina a escolha dos recursos lexicais, gramaticais e composicionais do

enunciado‖ (BAKHTIN, 2006, p.289).

No corpus da nossa pesquisa, por exemplo, a escolha do adjetivo ―fanático‖, atribuída

ao povo do Caldeirão e ao beato José Lourenço, expressa um posicionamento e ecoa vozes

que emergem a partir de um horizonte social valorativo que compreende as manifestações da

religiosidade popular como ―expressão de atraso e ignorância sertaneja‖. Assim, o povo do

Caldeirão, muitas vezes, é representado a partir de signo como ―jagunços‖ e ―fanáticos‖.

Esses sentidos são construídos, porque há um ―coral de apoio‖, há valores que são

compartilhados, naquele contexto histórico, sobretudo, pelas camadas letradas da sociedade.

Assim, os discursos, permeados por uma multiplicidade de vozes sociais, estão

carregados de intencionalidades. Essa postura apreciativa dos enunciadores também é

trabalhada na teoria bakhtiniana a partir da discussão sobre estilo, definido a partir de ―uma

relação criativa e substancial do discurso com o seu objeto, com o próprio falante e com o

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discurso de outrem‖ (BAKHTIN, 2010, p. 173) 44

. Assim, o estilo, no horizonte das relações

dialógicas, marca uma tomada de posição frente aos muitos recursos que a língua possui. No

texto Os gêneros do Discurso, Bakhtin (2006) enfatiza que as escolhas e o caráter responsivo

do enunciado são aspectos constitutivos do estilo, umas das dimensões dos gêneros

discursivos: ―tipos relativamente estáveis de enunciados‖, ligados aos mais diversos campos

da comunicação humana (Cf. BAKHTIN, 2006, p.262).

Esses enunciados se efetivam nas práticas sociais concretas, a partir da interação

verbal, e possuem três dimensões interligadas: conteúdo temático, estilo e construção

composicional. O estilo, ―seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da

língua‖, portanto, está ligado aos aspectos textuais e discursivos que caracterizam os diversos

gêneros que circulam nas esferas da comunicação humana. Assim, o estilo depende do tipo de

relação existente entre o locutor e os outros parceiros da comunicação verbal, portanto não se

restringe à individualidade do falante. Segundo Bakhtin (2006), alguns desses enunciados

podem expressar a individualidade de quem fala (ou escreve), mas nem todos são propícios ao

estilo individual. Os gêneros mais favoráveis seriam ao estilo individual seriam os literários e

os menos favoráveis, ―os gêneros do discurso que requerem uma forma padronizada, por

exemplo, em muitas modalidades de documentos oficiais, de ordens militares, nos sinais

verbalizados da produção, etc.‖ (BAKHTIN, 2006, p. 265).

O estilo, portanto, pode expressar uma individualidade, mas esse estilo individual

estará indissociavelmente ligado às outras dimensões que constituem os gêneros: a estrutura

temática e o conteúdo composicional. Assim, na teoria bakhtiniana, o estilo, conforme Flores

(2009, p. 114), é ―uma expressão individual que se constrói a partir de uma orientação social

de caráter apreciativo‖. Então, o estilo vai depender da relação entre os sujeitos da

comunicação verbal, das múltiplas vozes que circulam no horizonte dialógico, conforme já

preconizado por Volochínov, em texto escrito em 1926, A palavra na vida e na poesia.

―O estilo é o homem‖ e nós podemos dizer: o estilo são pelo menos dois homens, ou

mais exatamente, é o homem e seu grupo social na pessoa de seu representante

ativo- o ouvinte, que é o participante permanente do discurso interno e externo do

homem (VOLOCHÍNOV, 2011, p. 178).

Em Marxismo e Filosofia da Linguagem, Bakhtin/ Volochínov (1990, p.188), em sua

crítica ao objetivismo abstrato e ao subjetivismo idealista, destacam que as motivações

44

Conforme Flores (2009, p. 114) ―a noção de estilo, em Bakhtin, está entrelaçada à de alteridade, ambas

vinculadas ao princípio do dialogismo, assim permanecendo ao longo dos textos em que a noção é trabalhada:

―O autor e o herói na atividade estética‖ e ―Os gêneros do Discurso‖, ambos em Estética da Criação verbal,

assim como também nas obras Marxismo e Filosofia da Linguagem, Problemas da Poética de Dostoievski,

Questões de Literatura e de estética; a teoria do romance, A cultura popular da Idade Média e no

Renascimento: o contexto da obra de Francois Rabelais‖.

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subjetivas do falante, suas intenções individuais, ―seus desígnios conscientemente estilísticos,

não existem fora de sua materialização objetiva da língua‖, de sua efetivação em práticas

sociais concretas. Assim, o estilo não deve ser compreendido, simplesmente, como uma

expressão do psiquismo individual (subjetivismo individualista), nem como a expressão de

elementos linguísticos, estruturados em um sistema fechado e distante da realização concreta

em práticas sociais (objetivismo abstrato). ―O estilo é de natureza social porque a atividade

mental do falante se constitui em território social. A singularidade que se manifesta no estilo

é, então, decorrente das inúmeras vozes que participam da constituição da consciência

individual‖ (FLORES, 2009, p. 115).

Conforme já discutido, as formas de remissão ao discurso do outro são também uma

expressão de estilo, compreendido como um elemento constitutivo dos enunciados,

historicamente situados. Bakhtin/ Volochínov (1990), apontam duas grandes tendências da

apreensão ativa do discurso do outro: o estilo linear e o estilo pictórico. O estilo linear é

associado a um racionalismo dogmático (ou autoritarismo ideológico), com fronteiras bem

delimitadas entre o discurso citado e aquele que cita. Já no estilo pictórico, em lugar do

dogmatismo autoritário e racionalista, predomina um relativismo das apreciações sociais e é

possível ver um certo ―colorido‖ no tratamento do discurso citado, uma ruptura das fronteiras

entre discurso citado e discurso citante.

Toda palavra usada na fala real possui não apenas tema e significação no sentido

objetivo, de conteúdo, desses termos, mas também um acento de valor ou

apreciativo, isto é, quando um conteúdo objetivo é expresso (dito ou escrito) pela

fala viva, ele é sempre acompanhado por um acento apreciativo determinado. Sem

acento apreciativo, não há palavra (BAKHTIN/ VOLOCHÍNOV, 1990, p. 132).

No âmbito da discussão sobre as diversas formas de transmissão do discurso alheio,

Bakhtin/ Volochínov (1990) destacam que uma das formas de expressão dos acentos

valorativos é a entonação expressiva (entoação), que pode revelar diferentes tons (amistoso,

cômico, irônico, autoritário).

Nesse sentido, os sujeitos têm um papel ativo nesse jogo dialógico de posturas e

posições valorativas. Assim, a retomada da palavra do outro é compreendida como uma

atitude valorativa, que expressa determinados acentos apreciativos e não como uma atitude

desinteressada e isenta de intencionalidades. Esses acentos revelam um estilo, aqui

compreendido não apenas como expressão individual do enunciador, mas como uma réplica a

outros enunciados, uma expressão dos embates que se efetivam no horizonte das relações

dialógicas.

O significado linguístico de uma enunciação dada é conhecido sobre o fundo de uma

língua e o seu sentido atual, sobre o fundo de outras enunciações concretas do

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mesmo tema, sobre o fundo de opiniões contraditórias, de pontos de vista e de

apreciações, ou seja, justamente sobre o fundo daquilo que, conforme vimos,

complica o acesso de qualquer discurso a seu objeto. Entretanto, é somente agora

que este meio plurilíngüe de discursos de outrem é dado ao locutor não no objeto,

mas no âmago do ouvinte, como seu fundo aperceptivo, prenhe de respostas e

objeções. E é sobre este fundo aperceptivo da compreensão, que não é linguístico,

mas sim expressivo-objetal, que está orientada qualquer enunciação. Ocorre um

novo encontro da enunciação com o discurso alheio, resultando em uma nova

influência específica em seu estilo (BAKHTIN, 2010, p. 91).

Nesse sentido, a relação entre os sujeitos enunciadores se dá de maneira responsiva,

dialógica, tendo em vista que todo enunciado responde a um enunciado anterior e espera uma

resposta, é dirigida ao outro. De acordo com Flores (2009), ―enunciar, dessa forma, é atribuir

valor ao que se diz e aos outros dizeres, é se posicionar ideologicamente em relação ao outro‖

(FLORES, 2009, p.45) 45

.

Conforme Bakhtin/ Volochínov (1990), somente os elementos abstratos considerados

no sistema da língua e não na estrutura da enunciação se apresentam destituídos de qualquer

valor apreciativo. A estratificação social e ideológica da linguagem é, portanto, penetrada por

intenções, acentuada pelas diferentes vozes sociais que compõem o universo da heteroglossia.

Como resultado do trabalho de todas estas forças estratificadoras, a língua não

conserva mais formas e palavras neutras "que não, pertencem a ninguém"; ela torna-

se como que esparsa, penetrada de intenções, totalmente acentuada. Para a

consciência que vive nela, a língua não é um sistema abstrato de formas normativas,

porém uma opinião plurilíngüe concreta sobre o mundo. Todas as palavras evocam

uma profissão, um gênero, uma tendência, um partido, uma obra determinada, uma

pessoa definida, uma geração, uma idade, um dia, uma hora. Cada palavra evoca um

contexto ou contextos, nos quais ela viveu sua vida socialmente tensa; todas as

palavras e formas são povoadas de intenções (BAKHTN, 2010, p. 98).

No debate sobre a remissão à palavra do outro, Bakhtin/ Volochínov (1990) enfatizam

que toda enunciação tem uma orientação apreciativa. Ao tratar do problema da construção dos

sentidos, Bakhtin/ Volochínov (1990) distinguem tema e significação, duas partes

constitutivas dos sentidos dos enunciados. O tema diz respeito aos elementos concretos,

históricos, individuais e não reiteráveis, é determinado não apenas pelas formas linguísticas,

mas também pelos elementos não verbais. A significação não possui uma existência histórica

concreta, está ligada aos elementos linguísticos, abstratos, idênticos e reiteráveis. Podemos

dizer que é a palavra em seu sentido estável, ―dicionarizada‖. Bakhtin/Volochínov (1990)

enfatizam a inter-relação entre esses dois aspectos, ―não há tema sem significação e vice-

versa‖.

45

Nessa perspectiva, na teoria bakhtiniana, o enunciador é o sujeito histórico que, responsivamente, toma a

palavra no processo de enunciação.

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Assim, os sentidos são construídos a partir de um processo que envolve a dinâmica do

tema e a estabilidade da significação, ―o tema deve apoiar-se sobre uma certa estabilidade da

significação, caso contrário ele perderia seu elo com o que precede e o que segue, ou seja, ele

perderia, em suma, seu sentido‖ (BAKHTIN/ VOLOCHÍNOV, 1990, p. 129). No âmbito

dessa discussão, esses autores destacam que, além de tema e significação, toda palavra possui

um acento de valor ou apreciativo, ―sem acento apreciativo não há palavra‖. As apreciações

sociais dos interlocutores se exprimem por meio da entoação. ―Pode-se, é claro, pronunciar a

mesma palavrinha favorita com uma infinidade de entonações diferentes, conforme as

diferentes situações ou disposições que podem ocorrer na vida‖ (BAKHTIN/

VOLOCHÍNOV, 1990, p. 134).

As diferentes entoações expressam uma postura ativa dos interlocutores, a partir de

determinado horizonte social de valor, na corrente da comunicação verbal. Nesse sentido,

esses diversos horizontes de valores, axiologias, resultam em inúmeros discursos,

atravessador por vozes sociais, que são ―complexos semiótico-axiológicos com os quais

determinado grupo humano diz o mundo‖ (FARACO, 2009, p.51).

O estilo, os acentos apreciativos assinalam uma tomada de postura em relação à

multiplicidade de vozes sociais que caracterizam a heteroglossia. Nesse sentido, a escolha de

determinados recursos linguístico-discursivos (tais como as aspas e o uso de certos verbos e

adjetivos) não é neutra, pois exprime uma postura avaliativa e situa a enunciação

axiologicamente.

Considerando a diversidade de vozes em cena no discurso jornalístico e os processos

de retomada do discurso alheio, surgem alguns questionamentos: por que, em uma dada

situação de comunicação, o enunciador faz determinadas escolhas (lexicais, gramaticais,

composicionais, etc.)? Quais efeitos de sentidos são construídos a partir dessas escolhas,

desses acentos apreciativos?

2.5 Políticas de representação

Na perspectiva bakhtiniana, os sentidos não apenas ―refletem‖ a realidade, nem

emanam de um sistema linguístico abstrato, pois são construídos em um jogo dialógico de

intenções verbais, a partir de um processo de refração, que expressa diversas verdades e

formas de atribuir sentido ao mundo. Nesse sentido, os signos não apenas refletem o mundo,

mas também refratam o mundo, na dinâmica da história, a partir da ―diversidade de

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experiências dos grupos humanos, com suas inúmeras contradições e confrontos de

valorações e interesses sociais‖ (FARACO, 2009, p. 51).

A linguagem, portanto, não é compreendida como um meio transparente de

representação da realidade (concepção bastante difundida em algumas vertentes dos estudos

de comunicação). Assim, a teoria bakhtiniana não é uma abordagem representacional ou

designativa da realidade. ―Cada signo ideológico é não apenas um reflexo, mas uma sombra

da realidade. [...] Um signo é um fenômeno do mundo exterior. O próprio signo e todos os

seus efeitos (todas as ações e reações e novos signos que ele gera no meio social circundante)

aparecem na experiência exterior‖ (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1990, p. 33).

Vale destacar que a função designativa e representativa da linguagem é um dos

fundamentos de diversas teorias linguísticas. Fiorin (2008) enfatiza que, segundo a teoria

clássica da representação, a linguagem está no lugar de outra coisa, uma ―realidade‖

extralinguística.

A linguagem é considerada transparente, as palavras são análogas ao mundo, há uma

identidade entre a ordem do mundo e a ordem da linguagem. [...] A representação

não é entendida como uma produção do homem, como um sentido gerado por ele,

mas é vista como algo inscrito na própria natureza da relação entre linguagem e

mundo. Não tem ela um estatuto semântico, mas um estatuto ontológico (FIORIN,

2008, p.198).

No âmbito do debate sobre o problema da representação, Rajagopalan (2002, 2003)

trabalha a representação como uma questão política, que envolve, portanto, ―lutas por

representações‖ e pela hegemonia dos sentidos. Conforme Rajagopalan (2003) a tese do

representacionalismo constitui um dos pressupostos da maioria das abordagens de estudos da

linguagem. Nessa perspectiva, a função principal da linguagem seria representar o mundo.

Esse autor destaca que a tese da representação é, ao mesmo tempo, uma ―lamentação‖ e uma

―expressão de desejo‖. O que se lamenta é a incapacidade de os seres humanos apreenderem a

realidade sem o intermédio da linguagem. Assim, o mundo não é apreendido de maneira

direta. Por outro lado, essa tese também revela um desejo, pois ―elege como condição ideal

(embora confessadamente inatingível) da linguagem a total transparência, qualidade que

tornaria praticamente inconsequente o papel intermediador da linguagem‖ (RAJAGOPALAN,

2003, p.31). Esse autor destaca que a tese do representacionalismo fundamenta-se no que

Jacques Derrida chama de ―metafísica da presença‖.

[...] a tese do representacionalismo na verdade esconde o sonho de apresentação, de

uma espécie de ―epifania‖, do significado – o sonho, o desejo de, enfim,

desvencilhar-se da própria linguagem humana. Pois, o ideal mesmo seria que o

mundo pudesse mostrar (apresentar) sua face sem a intermediação da linguagem e

que as mentes humanas pudessem comunicar-se entre si sem ter que recorrer ao uso

da língua – uma ferramenta, afinal, tão imperfeita!(RAJAGOPALAN, 2003, p.31).

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Rajagopalan (2003) destaca que, longe de ser apenas um simples reflexo da realidade,

a representação é, sobretudo, uma questão política, tendo em vista que envolve escolhas e

julgamentos de valor. Toda atividade que envolve política envolve escolhas ―e a escolha

pressupõe a existência de uma escala de valores, uma hierarquia. A questão da representação

é uma questão política precisamente por envolver escolhas‖ (RAJAGOPALAN, 2003, p. 34).

Nessa perspectiva, esse autor desenvolve sua discussão sobre o que denomina políticas de

representação.

Rajagopalan (2003) estabelece um paralelo entre representação política e

representação linguística e destaca que a concepção de democracia representacional carrega a

crença de que é possível ter um acesso direto, transparente, à política democrática.

Há um paralelismo gritante entre o modo como pensamos a linguagem enquanto

meio representacional, e o modo como lamentamos com frequência que a prática

democrática nos dias de hoje está muito aquém da ―transparência‖ (qualidade essa

que é, supostamente, a sua virtude possível, e era, conforme se acredita em larga

escala, sua marca registrada no seu nascedouro, a Atenas da Antiguidade)

(RAJAGOPALAN, 2003, p. 32).

Nesse sentido, Rajagopalan (2003) defende que a representação é, ao mesmo tempo,

uma questão política e linguística, ou, ainda, ―política por ser linguística e linguística por ser

política‖.

Ao falar uma língua, ao nos engajarmos na atividade linguística, estaríamos todos

nós nos comprometendo politicamente e participando de uma atividade

eminentemente política. Por outro lado, [....] toda atividade política também passaria

pela questão da linguagem, seria uma atividade de ordem inescapavelmente

discursiva‖ (RAJAGOPALAN, 2003, p. 33).

Essa discussão sobre políticas de representação emerge no bojo da problematização

do conceito de identidade46

. Rajagopalan (2003) enfatiza que as identidades não se

apresentam como prontas e acabadas, pois estão sendo constantemente reconstruídas, ou seja,

estão em permanente estado de transformação e ebulição. Assim, não se pode falar em

identidades fora das relações estruturais que imperam em dado momento histórico. As

identidades, nessa perspectiva, são construídas socialmente e se configuram a partir do

confronto com o outro: ―a única maneira de definir uma identidade é em oposição a outras

identidades em jogo‖ (RAJAGOPALAN, 2003, p. 71).

Sobre esse aspecto, Hall (2000) destaca que as identidades são construídas por meio da

diferença e não fora dela e ―que é apenas por meio da relação com o Outro, da relação com

46

Nesta pesquisa, não nos aprofundaremos na discussão acerca de identidade. Essa problematização é trabalhada

em autores como Hall (2000) e Woddward (2000).

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aquilo que não é, com precisamente aquilo que falta, com aquilo que tem sido chamado seu

exterior constitutivo, que o significado ‗positivo‘ de qualquer termo – e, assim, sua identidade

– pode ser construído (Derrida, 1981, Laclau, 1990, Butler, 1993)‖, (HALL, 2000, p. 110).

Rajagopalan (2002) salienta que o nacionalismo e o ideal da ―raça superior‖,

empreendidos por Hitler, emergiram como elementos de uma nova identidade, em uma

Alemanha abalada após a derrota na Primeira Grande Guerra. Assim, essa nova identidade

ariana apresenta como contraponto, como o Outro, a figura do judeu, e foi o resultado de uma

―representação, de uma re-apresentação de uma identidade em estado de total desorientação‖

(RAJAGOPALAN, 2002, p.83 ). No nosso corpus, esse ―outro‖ é representado, entre outras

formas de nomear, como o ―fanático‖, ―comunista‖, ―bandido‖.

Ao estudar o Orientalismo47

, Edward Said também enfatiza ―a importância de

identificar um Outro para em seguida demonizá-lo como condição essencial para dar a si

próprio uma nova identidade e uma nova razão de ser‖ (RAJAGOPALAN, 2002, p. 84).

Nesse sentido, Said (1990) destaca que as representações não são ―descrições naturais‖ e se

configuram como uma re-presença, uma construção social.

É preciso esclarecer sobre o discurso cultural e o intercâmbio no interior de urna cultura

que o que costuma circular não é "verdade", mas representação. Não é necessário

demonstrar de novo que a própria linguagem é um sistema altamente organizado e

codificado, que emprega muitos dispositivos para exprimir, indicar, intercambiar

mensagens e informação, representar e assim por diante. Em qualquer exemplo, pelo

menos da linguagem escrita, não existe nada do gênero de uma presença recebida, mas

sim uma re-presença, ou uma representação [...]. E essas representações utilizam-se,

para os seus efeitos, de instituições, tradições, convenções e códigos consentidos

(SAID, 1990, p. 33).

Nesse sentido, a relação entre identidades e políticas de representação é de suma

importância, tendo em vista que, conforme enfatiza Rajagopalan (2002), é através da

representação que novas identidades são constantemente reafirmadas e reinventadas, ―só se

tem identidades quando há quem as reivindique com empenho e fervor contínuos‖

(RAJAGOPALAN, 2002, p. 86).

Identidade e representação também passam pela problemática da nomeação/

predicação, ou seja, a atribuição de nomes, valores e atributos. A representação envolve

escolhas conscientes, portanto, no âmbito da política de representação, nomear, identificar

algo, não é um ato neutro, pois envolve escolhas e posicionamentos. Conforme Rajagopalan

47

Em Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente, Edward W. Said (1990) discute, entre outros

aspectos, como as representações do Oriente são construídas a partir do olhar ocidental. Esse autor enfatiza que

―ideias, culturas e histórias não podem ser estudadas sem que sua força, ou mais precisamente, sua configuração

de poder seja também estudada [...]. A relação entre o Oriente e o Ocidente é uma relação de poder, de

dominação, de graus variados de uma complexa hegemonia‖ (SAID, 1990, p. 17).

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(2003) todo ato de nomear acontece no interior de uma política de representação, assim as

escolhas lexicais no ato de nomear possuem caráter político e ético. Por trás do ato de nomear

―há julgamentos de valores disfarçados de um ato de referência neutra‖ (RAJAGOPALAN,

2003, p. 87).

Assim, podemos estabelecer um diálogo entre a discussão empreendida por esse autor

sobre políticas de representação e fundamentos da teoria bakhtiniana, tais como a concepção

de acento apreciativo/estilo, que envolve uma postura ativa do enunciador ao fazer

determinadas escolhas lexicais, que não são neutras, pois expressam posicionamentos e

valorações. Além disso, as políticas de representação têm como pressuposto a relação com o

―outro‖, ou seja, as representações são construídas a partir de relações dialógicas e do

confronto entre diferentes vozes sociais.

Em suma, Rajagopalan (2002, 2003) compreende que a representação é uma questão

política, pois envolve escolhas, orientadas por valores construídos a partir de confrontos entre

diferentes tendências político-ideológicas. Assim, nesta pesquisa, a representação é

compreendida como uma atividade discursiva, construída nas práticas sociais, em um

contexto social, histórico e cultural.

Em nossa pesquisa, esse debate sobre políticas de representação tem papel

fundamental, já que analisamos como se dão as lutas por representações, a partir das várias

vozes sociais em confronto nos textos em análise. Essa concepção de que as representações se

constroem a partir da relação com o outro também é de suma importância em nossa análise,

tendo em vista que, quando as vozes oficiais constroem representações sobre o movimento

Caldeirão e sobre o beato José Lourenço, elas constroem seu próprio outro. Ou seja, construir

uma representação desse outro como ―fanático‖ é projetar sua própria representação ou

identidade como ―civilizado‖, ―racional‖, ―evoluído‖. Esses mecanismos discursivos

emergem a partir do embate entre forças que tendem à reprodução dos sentidos dominantes e

forças que abrem para a construção de novos sentidos. A construção da representação, assim,

dá-se no âmbito dos confrontos entre diferentes tendências, posicionamentos sócio-

ideológicos, no processo de produção dos sentidos.

Cabe destacar, ainda, que compreendermos a representação como atividade que

envolve política e poder implica em um questionamento à ideia de que os sentidos são um

simples reflexo das coisas do mundo ou que se resumem às intenções do enunciador. Assim,

neste trabalho, não objetivamos identificar, nos textos jornalísticos em análise, se há uma

―representação verdadeira‖ do movimento Caldeirão e do beato José Lourenço, a qual estaria

na exterioridade e seria refletida pela linguagem. Consideramos, portanto, que a representação

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é construída por sujeitos históricos, constituídos nas mais variadas práticas sociais, marcadas

por relações de poder.

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3 DISCURSO JORNALÍSTICO

3.1 A construção do discurso jornalístico

Segundo Bakhtin (2006, 2013), o discurso se realiza por meio de enunciados (orais ou

escritos) produzidos nas mais diversas esferas de atividade social humana. Assim, os

discursos são produzidos por sujeitos históricos, configuram-se a partir de sua realização

efetiva nas práticas sociais e são atravessados e constituídos por diferentes vozes sociais.

Nessa perspectiva, o discurso produzido no âmbito da atividade jornalística (que

envolve os processos de produção e circulação do jornalismo) é, primordialmente, construído

a partir do confronto entre diversas vozes sociais. Conforme Mariani (1999), o discurso

jornalístico é um ―discurso sobre outros discursos‖, assim nele estão evidenciadas uma

diversidade de vozes.

O discurso jornalístico tanto se comporta como uma prática social repetidora de

certa ideologia quanto, direta ou indiretamente, se deixa atravessar pelas muitas

vozes divergentes também constitutivas da história (MARIANI, 1999, p. 111).

Neste sentido, o discurso jornalístico produz múltiplos sentidos a partir das diversas

posições sociais em conflito em dado momento histórico. Entretanto os jornais, muitas vezes,

são lidos como ―espelhos da realidade‖. Porém, trabalhamos aqui em uma perspectiva

segundo a qual a linguagem não é transparente, tampouco é um mero instrumento transmissor

de informações. Os jornais, portanto, emitem interpretações sobre os acontecimentos a partir

de determinado horizonte social de valor. Conforme destaca Barbosa (2007, p. 17), ―há que se

perceber também o papel da imprensa como instituição de controle social, servindo à própria

estrutura de poder e agindo como veículo de manutenção da ordem vigente‖.

Os textos jornalísticos são, pois, produtos culturais carregados de sentidos ideológicos.

O jornal surge como instrumento de que o capitalismo necessitava para o trânsito de

informações e mercadorias.

Notícia é a informação transformada em mercadoria com todos os seus apelos

estéticos, emocionais e sensacionais; para isso a informação sofre um tratamento que

a adapta às normas mercadológicas de generalização, padronização, simplificação e

negação do subjetivismo (MARCONDES FILHO, 1989, p.13).

O apagamento de todo esse processo tem uma eficácia ideológica, pois garante a

legitimidade do discurso jornalístico como expressão da verdade. No que se refere à escrita da

história, o discurso jornalístico é palco de acirrados conflitos que contribuem para a

constituição da memória histórica oficial.

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Essa constituição da memória histórica se configura a partir da remissão a vários

outros discursos, permeados por diferentes vozes sociais. Ressaltamos que, no nosso caso em

estudo, não estudamos o discurso do Caldeirão, mas as representações do movimento

Caldeirão e do beato José Lourenço que emergem a partir do discurso jornalístico. Neste

discurso, estarão presentes várias vozes, convocadas para ressignificar o movimento

Caldeirão: as vozes da Igreja; dos latifundiários; da polícia; do Estado e até do povo do

Caldeirão. Enfim, são várias vozes em conflito, constitutivas do caráter heterogêneo da língua.

Essa diversidade de vozes é representativa de diferentes lugares sociais, de várias visões de

mundo.

O jornal, portanto, traz em suas páginas, as diferentes vozes sociais em conflito.

Supostamente, a presença dessa multiplicidade de vozes indicaria que o discurso jornalístico

seria neutro e imparcial. O discurso jornalístico seria, então, isento de juízos de valor: ―a voz

da verdade‖. Entretanto, lembremos que o jornalismo é uma atividade de linguagem, sendo,

assim, é constituído a partir de todas as implicações ideológicas em conflito na sociedade. As

empresas jornalísticas ocupam uma posição política e econômica na sociedade, dessa forma,

muitas vezes, interesses políticos e econômicos têm um papel predominante na construção do

discurso jornalístico. Conforme Nogueira (2002)

Desse modo, podemos entender que, muito embora veja-se atualmente a

independência das instituições jornalísticas diante do Estado – o que caracteriza a

democracia – essa independência, e sua consequente imparcialidade, vê-se ameaçada

pelo processo altamente competitivo e crescentemente global de acumulação do

capital, um processo que resultou num declínio constante do número de jornais e

numa concentração de recursos nas mãos de grandes empresários da multimídia.

Essas relações econômicas, relações de dependências causadas pelo crescimento

desenfreado das organizações da mídia no campo privado, funcionam de modo a

reger o discurso jornalístico mantendo determinadas ordens de discurso e, por

conseguinte, determinadas ordens sociais (NOGUEIRA, 2002, p. 224).

Nesse sentido, ainda que nesse tipo de discurso estejam presentes diversas vozes

sociais, ―as interpretações engendradas nos jornais fazem circular sentidos hegemônicos que

interessam às instâncias que os dominam‖ (MARIANI, 1999, p.112). No discurso jornalístico,

materializa-se essa tensão entre as vozes e sentidos hegemônicos e as vozes e sentidos

marginalizados.

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3.1.1 Comunicação x informação

Para mobilizarmos a discussão sobre o mito da transparência do discurso jornalístico,

tomemos como ponto de partida o conhecido modelo dos elementos básicos da comunicação,

elaborado por Roman Jakobson (1989), na década de 1960.

Quadro 1 – Elementos da comunicação

Fonte: Elaborado a partir de Jakobson (1989)

Segundo este modelo, todo processo de comunicação verbal se dá quando um

REMETENTE transmite uma MENSAGEM a um DESTINATÁRIO, através de um CANAL,

que seriam os meios técnicos ou uma conexão psicológica, que possibilitam o contato entre

REMETENTE e DESTINATÁRIO. Para que se estabeleça a comunicação, também é

necessário um código comum entre emissor e receptor, condição para que a mensagem seja

compreendida. Ainda de acordo com o esquema proposto por Jakobson, a MENSAGEM, para

ser operante, requer uma situação, um CONTEXTO ao qual ela remete, isto é, um referente.

Este modelo descritivo dos fatores constitutivos do processo de comunicação trouxe

uma importante contribuição para os estudos da comunicação ao colocar em cena os

protagonistas, sujeitos, do discurso (REMETENTE) e (DESTINATÁRIO), e, ao considerar o

contexto (REFERENTE) da mensagem. Entretanto, conforme destaca Charaudeau (2009), é

―um ponto de vista ingênuo‖ valorizar um modelo de comunicação social segundo o qual tudo

acontece como se houvesse entre uma fonte de informação e um receptor uma instância de

transmissão encarregada de fazer circular o saber. Esse autor enfatiza ainda que

A fonte de informação é definida como um lugar no qual haveria certa quantidade de

informações, sem que seja levantado o problema de saber qual é a sua natureza, nem

qual é a unidade de medida de sua quantidade. O receptor é considerado

implicitamente capaz de registrar e decodificar ―naturalmente‖ a informação que lhe

é transmitida, sem que seja levantado o problema da interpretação, nem o do efeito

produzido sobre o receptor (CHARAUDEAU, 2009, p.35).

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Nessa perspectiva, no processo de comunicação não há, simplesmente, transmissão de

mensagens e informação. Assim, linguagem nem sempre é sinônimo de comunicação.

Tampouco, comunicar quer dizer necessariamente informar.

Trabalhamos, aqui, em uma perspectiva que considera a natureza social da linguagem,

a qual se efetiva em situações de enunciação e está ligada às condições de comunicação e às

estruturas sociais. Mariani (1999, p.111) destaca que

O discurso jornalístico, como qualquer outro discurso, é produzido em condições

históricas de confrontos, alianças e adesões que gerenciam e constituem as

interpretações produzidas. Ao mesmo tempo, o processo através do qual isso se dá

fica apagado. [...] A eficácia ideológica da transparência da informação intervém na

construção, dentro do funcionamento discursivo dos jornais, de interpretações que se

apresentam para o leitor como expressão da realidade.

Os processos históricos que constituem os sentidos do discurso jornalístico nem

sempre são levados em conta e os jornais são lidos como fonte da ―verdade histórica‖. Os

textos jornalísticos, porém, não podem ser compreendidos, simplesmente, como uma fonte de

informação, como um meio para se revelar a ―verdade‖ dos fatos. O discurso jornalístico,

portanto, como atividade de linguagem, ―é fruto de determinadas práticas sociais de uma

época. A produção desse documento pressupõe um ato de poder no qual estão implícitas

relações a serem desvendadas‖ (CAPELATO, 1988, p. 24).

Cada jornal vai construindo uma visão de mundo específica e diferente [...] o

discurso jornalístico produz leituras do mundo, isto é, se temos consciência de que

ele interpreta (e, até mesmo produz) os acontecimentos, qual e como poderá ser o

gesto de leitura do pesquisador interessado em analisá-lo? (MARIANI, 1999, p. 103)

Nesse sentido, a utilização da imprensa como fonte documental exige do pesquisador

uma postura questionadora sobre o material utilizado, tendo em vista que os textos

jornalísticos são práticas de linguagem, são construídos a partir de um contexto histórico,

permeado por relações de poder, portanto não são registros transparentes e objetivos da

realidade. Conforme Capelato, ―o confronto das falas, que exprimem ideias e práticas, permite

ao pesquisador captar, com riqueza de detalhes, o significado da atuação de diferentes grupos

que se orientam por interesses específicos‖ (1988, p.34).

A utilização do jornalismo como fonte documental requer um questionamento à ideia

de que os textos jornalísticos são registros precisos, objetivos, pois o discurso jornalístico é

palco das relações de poder que se materializam na linguagem. O jornalismo é uma atividade

de linguagem. Nesse sentido, as práticas de linguagem devem ser compreendidas a partir de

sua historicidade, de sua efetivação nas mais diversas situações de interação verbal, conforme

preconizado no pensamento bakhtiniano. Assim, o olhar lançado pelo pesquisador sobre os

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textos da imprensa deve ser questionador e deve considerar fatores como as condições de

produção da atividade jornalística e as relações de confronto e poder em determinado

momento histórico.

Nessa perspectiva, cabe destacar, ainda, que o intuito deste trabalho não é analisar se o

jornal O Povo constrói uma representação ―adequada‖ ou ―verdadeira‖ do beato José

Lourenço e do movimento Caldeirão, mas, sim, discutir sobre o processo de construção dessas

representações a partir dos embates entre as diferentes vozes sociais que se materializam no

discurso jornalístico.

3.2 Sobre as origens da atividade jornalística no Brasil e a emergência do jornalismo

“informativo”

De acordo com Rüdiger (2003), a configuração do jornalismo como prática social

relativamente consistente está ligada à formação do mundo moderno, no final do século XVII.

As primeiras publicações da imprensa brasileira, porém, surgiram apenas em 1808, com a

vinda da família real portuguesa para a Colônia. Até essa data, a Metrópole proibira a

imprensa no Brasil. Conforme Sodré (1999), no período colonial

a arte Gráfica no Brasil era clandestina, Em 1706, a tentativa de fazer funcionar um

prelo em Pernambuco sofre bloqueio da autoridade colonial. No Rio, a tipografia de

Antônio Isidoro da Fonseca, aberta em 1746, é fechada em 1747 pela Carta Régia,

de 10 de maio, que proíbe a Impressão de livros e papéis avulsos (SODRÉ, 1999,

p.9).

Somente com a criação da Imprensa Régia, órgão oficial de publicação do governo, foi

possível o lançamento, em setembro de 1808, da Gazeta do Rio de Janeiro, primeiro jornal

produzido e publicado em terras brasileiras. Alguns meses antes da impressão da Gazeta do

Rio de Janeiro, Hipólito José da Costa lançara, em Londres, o Correio Braziliense. A

publicação mensal era enviada de forma clandestina ao Brasil e circulou até 1822. Conforme

Oliveira (2011), ―com a criação da tipografia oficial, começam a ser produzidos não apenas a

Gazeta e a documentação governamental, mas também outras obras populares como

folhinhas, almanaques e textos literários e de cunho científico‖ (OLIVEIRA, 2011, p. 132).

Nos primeiros anos da imprensa no Brasil, não houve uma atividade jornalística

periódica, pois proliferaram os pasquins, publicações sem periodicidade definida, geralmente,

anônimas, nas quais predominavam, muitas vezes, o insulto e o deboche48

. Conforme Sodré

(1999, p.155,157)

48

Rüdiger (2003) destaca que é importante distinguir jornalismo e imprensa. Segundo esse autor, o jornalismo é

―uma prática social componente do processo de formação da chamada opinião pública; prática que, dotada de

conceito histórico variável conforme o período, pode estruturar-se de modo regular nos mais diversos meios de

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O ambiente do país, na época em que surgiram e se multiplicaram os pasquins,

explica de forma nítida a fisionomia áspera assumida pela pequena imprensa,

comprovando que suas características eram ligadas diretamente às condições do

meio. [...] Eram vozes desconexas e desarmoniosas, bradando em altos termos e

combatendo desatinadamente pelo poder que lhes assegurasse condições de

existência compatíveis [...]. Não encontrando a linguagem precisa, o caminho certo,

a norma política adequada aos seus anseios, e a forma e a organização a necessárias,

derivavam para a vala da injúria, da difamação, do insulto repetido.

Rüdiger (2003) destaca que, após 1850, há um declínio na presença dos pasquins e o

início de uma atividade jornalística propriamente dita, com a predominância do jornalismo

político-partidário, que desenvolveu a concepção de que ―o papel dos jornais é essencialmente

opinativo, visa veicular organizadamente a doutrina e a opinião dos partidos na sociedade

civil‖ (RÜDIGER, 2003, p. 37). Segundo o autor, essa tendência predominou até a década de

1930, quando se consolida a hegemonia da grande imprensa, com os conceitos de jornalismo

informativo e indústria cultural49

.

Conforme Schudson (2010), a mudança do paradigma opinativo para o informativo no

jornalismo tem início no final do século XIX, nos Estados Unidos, e está ligada a fatores

como o advento do jornalismo empresarial, o processo de urbanização e industrialização, a

profissionalização da atividade jornalística e a criação de uma série de procedimentos e

parâmetros de conduta técnica no exercício do jornalismo, entre eles a busca pela

objetividade. Tuchman (2005) destaca que essa busca pela objetividade pode ser considerada

um ―ritual estratégico‖ utilizado pelos jornalistas para afirmar a legitimidade de sua prática

profissional. A estrutura padrão do gênero notícia foi criada nos EUA, por volta de 1840, e

surge no contexto dessa mudança de paradigmas, atrelada à modernização da imprensa, à

criação das agências de notícias e ao advento de tecnologias, como o telégrafo.

De acordo com Lage (2001), as empresas jornalísticas emergentes criaram

determinados procedimentos e uma linguagem adequada aos novos padrões industriais e às

necessidades da sociedade de consumo. Nesse sentido, valores como ―concisão‖,

―impessoalidade‖ e ―objetividade‖ vão se consolidado no campo do jornalismo ao longo da

primeira metade do século XX. Entretanto, conforme advertem Martins e Luca (2012),

comunicação, da imprensa à televisão‖ (RÜDIGER, 2003, p. 11). Nesse sentido, imprensa é um conceito mais

amplo: nem toda atividade de imprensa é uma atividade jornalística. 49

Nilson Lage (2001) considera que ―a história do jornalismo brasileiro pode ser dividida em quatro períodos

distintos: o de atividade sobretudo panfletária e polêmica, que corresponde ao Primeiro Reinado e às regências; o

de atividade dominantemente literária e mundana, que corresponde ao Segundo Reinado; o de formação

empresarial, na República Velha; e a fase mais recente, marcada por oposições aparentes do tipo

nacionalismo/dependência, populismo/autoritarismo, tanto quanto pelo uso intensivo na comunicação no

controle social‖ (LAGE, 2001, p.20). Outra proposta de periodização é a de Juarez Bahia (1964), que divide a

história do jornalismo brasileiro em três períodos: fase inicial, de 1808 a 1880; fase de consolidação, de 1880 até

1930; e fase moderna, de 1930 até os dias atuais (década de 1960).

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somente nos anos 1950 a imprensa brasileira encontrou as condições sociais, políticas,

econômicas e culturais necessárias para se desenvolver como uma imprensa de massa e o

jornalismo conseguiu se estabelecer como campo autônomo.

Assim, valores como ―objetividade‖ e ―imparcialidade‖ são construções históricas que

emergiram no processo de desenvolvimento da atividade jornalística. Conforme destaca

Barbosa (2007):

As bases para a construção do ideal de objetividade do jornalismo, que seriam

aprofundadas com as reformas porque passariam os jornais cinquenta anos mais

tarde, estão lançadas na virada do século XIX para o XX. A rigor, o mito da

objetividade deve ser percebido na longa duração, como um simbolismo construído

pelas próprias empresas jornalísticas e pelos jornalistas para assim cunhar uma

distinção [...], um lugar de fala (BARBOSA, 2007, p. 40).

Nesse sentido, Goulart (2002) adverte que o ideal da objetividade se desenvolveu no

Brasil como uma estratégia de legitimação da prática profissional jornalística, num contexto

em que o jornalismo lutava por uma maior autonomia frente à literatura e à política. Nesse

processo, a objetividade ―transformou-se em um valor fundamental para o exercício da

profissão e para a construção da identidade dos jornalistas. Exigia uma maior disciplina por

parte dos repórteres e editores, um maior rigor na apuração dos fatos e na redação dos textos e

fortalecia o senso de ética da profissão‖ (GOULART, 2002, p. 291).

Importante destacar que a prática de jornalismo tida como ―informativa‖ tem como um

dos princípios a suposta imparcialidade jornalística, segundo a qual o real deve ser descrito de

forma isenta e precisa, em busca da verdade dos fatos. Porém, longe de ser imparcial, mesmo

o jornalismo que se diz ―informativo‖ (em oposição ao ―opinativo‖), é marcado pelos embates

dos mais diversos grupos sociais. A objetividade, portanto, pode ser compreendida como um

efeito de sentido, construído a partir de determinados recursos discursivos. Conforme Benites

(2002, p.12)

Sendo a subjetividade uma característica inerente a toda atividade de linguagem,

pode-se afirmar que não existem textos objetivos, mas recursos discursivos que

constroem, tanto o efeito de objetividade como o de subjetividade. Cabe ao leitor,

depreender a subjetividade e a ideologia presentes no texto, a partir do

reconhecimento do conjunto de opções estilísticas utilizadas pelo locutor e da

própria organização do material verbal.

Com relação ao desenvolvimento do jornalismo no Nordeste, Sodré (1999, p.324)

destaca que, no início do século XX, a atividade jornalística estava em transição de uma fase

artesanal para uma fase industrial ―são raros os jornais de província com estrutura de empresa

[...], a matéria principal deles é também a política, e a luta política assume, neles, aspectos

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pessoais terríveis, que desembocam, quase sempre, na injúria mais vulgar‖ (SODRÉ, 1999, p.

324).

Nesse sentido, é importante enfatizar as especificidades do jornalismo produzido na

década de 1930. No contexto do jornalismo cearense dessa época, ainda não estão totalmente

configuradas as características dos gêneros jornalísticos (por exemplo, notícia50

e reportagem,

em geral, são tomadas como equivalentes) e as fronteiras entre ―informação‖ e ―opinião‖

ainda são muito tênues. Nesse sentido, designamos o material que compõe o corpus da nossa

pesquisa como ―textos‖51

, ―matérias‖ ou ―artigos‖ (quando assinados).

Assim, os textos jornalísticos que compõem nossa análise se encontram nesse processo

de transição entre o ―informativo‖ e o ―opinativo‖, portanto, muitas vezes, apresentam

algumas características próprias do emergente jornalismo informativo, tais como utilização de

depoimentos e fontes (cujas vozes aparecem por meio do discurso citado) e a busca por certa

isenção em relação aos acontecimentos, entretanto ainda predomina, sobretudo, uma

linguagem com tom emotivo e apelativo.

3.3 O jornalismo cearense nas décadas de 1920 e 1930

Pensarmos o jornalismo como atividade de linguagem, que se efetiva no âmbito das

relações dialógicas, como interação social, implica em observarmos as condições de produção

e circulação do discurso jornalístico no contexto em análise.

Nas décadas de 1920 e 1930, os jornais eram o principal meio de informação em

Fortaleza. A primeira emissora de rádio, a Ceará Rádio Clube (PRE-9), foi inaugurada em

1934, mas o rádio só se popularizou no estado a partir da década de 194052

.

Nas primeiras décadas do século XX, Fortalezava passava por um processo de

modernização e urbanização que contrastava com as precárias condições de vida das camadas

populares da capital e do interior. Em 1920, o Ceará possuía uma população de cerca de 1

milhão e meio de habitantes e, em 1940, pouco mais de 2 milhões. A capital possuía em torno

50

A utilização do lead (relato sintético do acontecimento, logo na introdução da notícia, com a resposta às

perguntas: O que aconteceu? Quando? Como? Onde? Por quê?), por exemplo, só se consolida no Brasil nos anos

1950. Até então, predominava o chamado ―nariz de cera‖, introduções com longas descrições e digressões

relacionadas com a linha editorial do veículo (Conforme discutido por Felipe Pena, 2010). 51

Ressaltamos que texto (oral ou escrito), na perspectiva bakhtiniana, não se restringe a aspectos linguísticos;

pode ser compreendido como uma unidade concreta de comunicação, produzida no universo das relações

dialógicas, no processo de enunciação. 52

Em 1941, a Ceará Rádio Clube passou a ser transmitida em ondas curtas, tecnologia que possibilitou um maior

alcance de público e a popularização do rádio cearense. Em 1944, a Ceará Rádio Clube foi incorporada aos

Diários Associados, de Assis Chateaubriand. Conforme Rodrigues e Silva (2009).

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de 80 mil habitantes, em 1920; número que passou de 180 mil, em 1940. No recenseamento

realizado nesse ano, mais de 50% da população de Fortaleza declarou saber ler e escrever,

entretanto, em todo o Estado, aproximadamente 80% da população era analfabeta.53

Nesse contexto, apesar dos altos índices de analfabetismo, os jornais alcançavam um

público significativo, em especial a classe média e a intelectualidade, e exerciam um papel

importante nos embates políticos da sociedade. A respeito das práticas de leitura dos jornais

no início do século XX, Barbosa (2007) destaca:

O jornal é lido nos bondes, nos trens, no horário do almoço, nas idas e vindas de

casa para o trabalho e vice-versa. É lido ao ar livre, nas ruas, preso nos muros e

postes. Essa leitura de pé, ao lado de outros leitores induz ao comentário. [...] Ao ler

ou tomar conhecimento do fato – por um outro que comenta o inusitado da trama,

transformando-o num leitor de segunda natureza – produz uma interpretação que é

transmitida soba forma de comentário. O jornal, nesta prática de leitura singular, de

certa forma, intima o leitor à ação. Por outro lado, a leitura realizada através de uma

apropriação coletiva se presta aos rituais de sociabilidade, a partir de um texto que é

decifrado em comum (BARBOSA, 2007, p. 62).

Sobre esse aspecto da leitura compartilhada e do alcance dos textos veiculados na

imprensa, Rachel de Queiroz (1989) relata que as crônicas diárias escritas por Demócrito

Rocha no jornal O Povo (intituladas Nota do Dia)54

, publicadas nos primeiros anos de

circulação do periódico, ―eram lidas avidamente pela cidade inteira, comentadas, repetidas,

glosadas. [...] Lembro-me de meu pai, quase toda tarde, a ler para a gente, na varanda do

casarão do Pici, a NOTA de DEMÓCRITO. Era um só jornal e, como todos queriam ler ao

mesmo tempo, o problema se resolvia com a leitura feita pelo mais velho‖ (QUEIROZ, 1989,

p. 8).

No que diz respeito ao desenvolvimento da leitura no Brasil, Márcia Abreu (2003)

destaca que, ainda no período colonial, apesar das restrições impostas pela metrópole à

produção e circulação de impressos, houve a formação de uma cultura letrada, muitas vezes,

por vias informais, como a audição de leituras, prática de sociabilidade que permitia a um

maior público o acesso ao mundo das letras.

Se a proibição da produção de impressos na Colônia retardou o desenvolvimento da

imprensa brasileira, no Ceará não foi diferente: o primeiro jornal impresso de que se tem

registro na província é o Diário do Governo do Ceará, publicado no ano de 1824. Assim, a

história do jornalismo cearense tem como referência inicial a publicação desse periódico,

editado pelo Padre Gonçalo Inácio de Loiola Albuquerque e Melo, o Padre Mororó, no

53

Conforme dados estatísticos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 1994, 2007). 54

As Notas do Dia já eram publicadas por Demócrito Rocha quando era colaborador do jornal O Ceará, no

início da década de 1920.

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contexto histórico do movimento da Confederação do Equador55

. Do Diário do Governo do

Ceará foram encontradas 19 edições, imprensas na Tipografia Nacional (do Ceará),

publicadas entre os meses de abril e novembro de 1824 (BRITO, 2006). Surgiu como

periódico oficial ligado à Junta Provisória que governava o Ceará no período pós-

Independência do Brasil, mas logo se tornou porta-voz dos ideais revolucionários da

Confederação do Equador56

. As páginas do periódico registram, em especial por meio da

publicação de ofícios, proclamações, avisos e correspondências, um pouco da articulação e do

desenrolar dos acontecimentos referentes a esse movimento republicano no Ceará.

No percurso da história do jornalismo cearense, Nobre (1974) destaca que, no

Segundo Império, ganha força o jornalismo partidário que, nesse período, teve como grandes

nomes os jornais: Pedro II (1840-1889), do Partido Conservador; e Cearense (1846-1891), do

Partido Liberal, os quais tiveram decisiva participação nos embates políticos da época.

A nossa análise se concentra em textos publicados pelo jornal O Povo sobre o

movimento Caldeirão, no período de 1934 a 1938. Conforme Geraldo Nobre (1974, p.128),

no começo do século XX, ―o jornalismo cearense ainda traz a notícia como um complemento

do debate político, que se expressa tanto na assembleia, como nas folhas, denominação mais

apropriada, para os jornais de então, com suas quatro páginas, das quais as duas últimas

geralmente tomadas por anúncios‖.

Assim, durante muito tempo, os jornais estiveram intimamente atrelados a partidos

políticos ou a grupos de opinião e deram ―pouca atenção ao caráter noticioso ou mesmo

comercial da imprensa‖ (NOBRE, 1974, p. 16). Geraldo Nobre (1974) enfatiza, ainda, que

uma linha mais informativa no jornalismo cearense tem início com a publicação do Correio

do Ceará, em 191557

, e a iniciativa de trazer edições maiores, de 8 a 16 páginas, coube ao

jornal O Ceará, que circulou de 1925 a 1930. Todavia, a respeito do caráter informativo dos

jornais, Girão (2006) destaca que, ainda nos anos 1940, o jornalismo cearense não tinha um

caráter noticioso, havia ―uma preocupação mais de opinar; o jornal era opinativo sobre

55

A Confederação do Equador foi um movimento liberal, separatista e republicano surgido em contestação à

política centralizadora e absolutista de D. Pedro I. Objetivava unir as províncias do norte e nordeste em uma

República Federativa. O movimento (que teve como estopim a dissolução da Assembleia Constituinte,

empreendida por D. Pedro I em novembro de 1823) iniciou em Pernambuco e teve participação decisiva da

província do Ceará. ―Essa rebelião propôs e concretizou, ainda que efemeramente, um governo republicano‖

(ARAÚJO, 1994, p. 145). O editor do Diário do Governo do Ceará, Padre Mororó, foi um dos ativistas da

Confederação do Equador no Ceará e, em 1825, foi condenado à morte por sua participação no movimento. 56

No jornal, era frequente a publicação de textos inflamados de Tristão Gonçalves de Alencar Araripe, que se

tornou o presidente da província do Ceará no efêmero período republicano decretado pelos confederados

cearenses, em agosto de 1824. O Diário do Governo do Ceará, portanto, foi o veículo oficial do governo

republicano, rebelde e insurgente instalado no Ceará, mas logo sufocado pelas forças do Imperador D. Pedro I. 57

O Correio do Ceará foi criado em 1915 por Álvaro da Cunha Mendes. Circulou até os anos 1970.

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política principalmente [...], os jornais da imprensa de 40 eram jornais partidários‖ (GIRÃO,

2006, p. 62). Blanchard Girão enfatiza, ainda, que esse tom opinativo da imprensa mudaria

com a chegada dos Diários Associados, de Assis Chateaubriand, que incorporou à sua rede os

jornais Correio do Ceará e Unitário58

, em 1937 e 1940, respectivamente.

Com relação à linguagem jornalística, Adísia Sá (2006) comenta que, até a década

1940, não havia normas de estilo ou uma padronização definida na elaboração dos textos. As

técnicas e os padrões de estilo surgiram por influência do jornalismo norte-americano, pela

emergência da profissionalização da atividade jornalística e a consequente criação das escolas

de jornalismo, no caso do Ceará, surgida na década de 1960. Sobre a questão do caráter

informativo da imprensa, Sá (2006) destaca que foi com a Segunda Guerra que o jornal

passou a ser noticioso ―na acepção da palavra. Tinha notícia, porque vinha de fora a notícia.

Então começamos a ter as agências de notícias‖ (SÁ, 2006, p. 19).

No que diz respeito aos aspectos gráficos e à distribuição das matérias, os jornais

cearenses, nas décadas de 1920 e 1930, não tinham ainda um trabalho de diagramação

propriamente e nem a divisão por editorias ou seções, assim assuntos os mais diversos

poderiam ser encontrados lado a lado na mesma página. As matérias que compõem o corpus

da nossa pesquisa, por exemplo, aparecem ao lado de noticiário internacional, de um

incipiente colunismo social ou de uma diversidade de anúncios (sobretudo de medicamentos).

Conforme Adísia Sá (2006), apenas com a publicação de O Jornal, em 195859

, é que o

jornalismo cearense passa por uma revolução em termos de diagramação, lay-out, e também

em termos de profissionalismo. Outro aspecto importante em relação a O Jornal era sua

divisão em ―editorias ou departamentos autônomos em que cada profissional era responsável

por uma série de atividades previamente definidas, o que ressalta seu caráter empresarial‖

(NÉRI, 1990 p. 48).

Nesse sentido, o jornalismo cearense das décadas de 1920 e 1930 vive um processo de

transição de uma linha político-partidária para uma linha mais informativa e empresarial.

Entretanto, predomina, ainda, uma atividade jornalística semiartesanal (no que diz respeito à

58

O jornal Unitário foi fundado por João Brígido, em 1903, com o objetivo de combater a administração de

Nogueira Acioli. Deixou de circular por alguns anos, e, em 1940, foi incorporado aos Diários Associados.

Circulou até os anos 1970. 59

O Jornal foi um diário vespertino que circulou, durante 9 meses, em Fortaleza, no ano de 1958. Apesar do

pouco tempo de circulação, trouxe novidades que influenciaram os rumos do jornalismo cearense, especialmente

no que se refere à diagramação e à divisão do jornal em editorias. Conforme Néri (1990, p. 2) O Jornal surgiu

como ―um instrumento de projeção e propaganda político-eleitoral de seus proprietários, os irmãos Pinheiro

Maia, jovens empresários, que fizeram fortuna durante o pós-Guerra e que buscavam poder político e aceitação

por parte da sociedade‖.

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impressão e aos aspectos gráficos), incipiente (com relação aos procedimentos de produção do

texto jornalístico) e diretamente atrelada aos interesses de grupos político-econômicos.

3.3.1 O jornal O Povo

Nas décadas de 1920 e 1930, o Brasil fervilhava com a repercussão de acontecimentos

políticos que culminaram; primeiro com a derrubada da República Velha, e, mais à frente,

com o golpe do Estado Novo. Todos esses conflitos estarão presentes nas páginas dos jornais.

Manter um jornal não era uma tarefa simples e, na grande imprensa, muitas

publicações tiveram duração efêmera60

. Em 1922, Juarez Távora – um dos articuladores do

movimento de 30 no Norte e Nordeste do país – fundou o jornal A Tribuna, que era porta-voz

do movimento tenentista. Também em 1922, a Diocese de Fortaleza criou seu órgão de

divulgação, o jornal O Nordeste, que circulou até 1967; de orientação conservadora, foi o

porta-voz da Liga Eleitoral Católica (LEC), que reergueu ao poder do Estado os grupos

ligados às antigas oligarquias agrárias ―decaídas‖ com o movimento de 30. Com as

consequências da declaração do estado de sítio, decretado pelo presidente Arthur Bernardes, o

jornal A Tribuna acabou sendo fechado, em 1925. Neste período surgiram ainda outros

jornais como o Jornal do Comércio, fundado em 1924 e fechado em 1930. Em 1927, foi

fundado o jornal Gazeta de Notícias61

, que, em 1972, foi incorporado ao O Povo, tornou-se

semanário e depois foi fechado. Em 1936, o jornal O Estado surgiu como mais um órgão

político; fundado por José Martins Rodrigues, secretário de estado do Governo de Menezes

Pimentel62

.

Na década de 1920, para chamar a atenção dos leitores, os principais jornais da capital

afixavam suas manchetes nos quiosques da Praça do Ferreira, onde o povo se juntava para ver

a chegada de mais um ―placar‖, que eram ―os títulos das matérias pregadas a bom grude em

uma tabuleta de madeira. Espécie de vitrine do que continha na edição‖ (GIRÃO, 1978, p.13).

Em momentos como esse, propagavam-se as notícias dos jornais para além do público-leitor,

a partir dos comentários e conversas sobre os assuntos em pauta. Conforme já destacado,

apesar dos altos índices de analfabetismo no Ceará nas primeiras décadas do século XX, havia

leitores ávidos pelas informações divulgadas pelos periódicos da época. Era comum a leitura

60

Sobre o percurso da história do jornalismo cearense até os anos 1970, ver Nobre (1974). 61

A Gazeta de Notícias foi fundada em 1927 por Antônio Drummond. 62

O fundador de O Estado também era ligado à Liga Eleitoral Católica (LEC). Na década de 1960, o jornal foi

comprado por Venelouis Xavier Pereira e, atualmente, continua em circulação.

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compartilhada, em voz alta, assim o que era publicado nos jornais poderia se propagar para

um maior número de pessoas.

No fim dos anos 1920, um novo diário chegou à praça: o jornal O Povo, fundado por

Demócrito Rocha63

, em 7 de janeiro de 1928, em plena efervescência do ―movimento

revolucionário‖, que contestava as oligarquias dominantes64

. A primeira edição do jornal O

Povo ―se constituía de 16 páginas, com as dimensões de 44 centímetros de altura por 31 de

largura, diagramado em seis colunas de 4,5 centímetros‖ (COSTA, 1988, p. 21).

As edições seguintes, na década de 1930, contavam, em sua maioria, com seis páginas.

O Povo circulava todos os dias, exceto os domingos65

. Para o lançamento do jornal, seu

proprietário realizou uma campanha de assinaturas, que ocorreu inclusive no interior e nos

estados vizinhos. Assim, apesar das tiragens pequenas e das dificuldades de transporte da

época, O Povo era distribuído para esses assinantes. Em janeiro de 1938, O Povo destaca, em

editorial, que expedia cerca de duas mil assinaturas para o interior, ―além das vendas avulsas

feita no percurso da Rede de Viação Cearense‖, e que a circulação e tiragem dos jornais de

Fortaleza ultrapassavam ―as folhas de todas as capitais do Norte, com exceção de Recife e

Belém‖ (O Povo, 11/1/1938).

Os anúncios66

e assinaturas eram uma fonte de renda para os jornais, entretanto ainda

não estava consolidada uma prática de jornalismo empresarial e o funcionamento dos

periódicos era muito dependente do poder econômico e prestígio político de seus

proprietários. A partir de janeiro de 1929, o expediente do jornal O Povo apresenta como

redator-secretário Paulo Sarasate, que, mais tarde, seria diretor do jornal e ocuparia diversos

cargos na política brasileira67

.

63

Demócrito Rocha nasceu em Caravelas, Bahia, em 1888. Veio para o Ceará na juventude para trabalhar como

telegrafista nos Correios e Telegráfos. Em 1921, formou-se em Odontologia pela Faculdade de Medicina e

Odontologia do Ceará. Faleceu, em Fortaleza, em 1943. 64

A primeira edição do jornal O Povo traz no expediente os seguintes nomes: Diretor-redator: Demócrito

Rocha/ Gerente: Adalgisa Cordeiro. 65

O Povo passou a circular aos domingos no ano de 1976. 66

As edições do O Povo desse período trazem impresso o aviso: ―Os anúncios do O Povo são pagos

adeantadamente‖. 67

Paulo Sarasate exerceu os cargos de Deputado Estadual (Constituinte) (PSD, 1935-1937), Deputado Federal

por quatro mandatos (UDN, 1946-1954/1951-1955/ 1959-1963/1963-1967), Governador do Estado (UDN, 1954-

1958) e Senador (ARENA, 1967-1968). Após a morte de Demócrito Rocha, em 1943, Paulo Sarasate assumiu a

direção do jornal O Povo até a sua morte, em 1968. Durante esse período, o jornal O Povo seguiu uma orientação

editorial que estava em consonância com as questões políticas que envolviam a sua diretoria. Assim, no contexto

do golpe militar de 1964, ―O Povo alinhava-se, incondicionalmente, com os postulados autoritários, por conta da

ligação de um dos fundadores do jornal, Paulo Sarasate, com Castelo Branco, o primeiro dos militares a governar

o país (1964-1968). Tal situação começou a se reverter, paulatina e timidamente, quando Demócrito Dummar

assumiu o controle da empresa e sacudiu o mofo acumulado em anos de convivência com o autoritarismo‖

(CARVALHO, 2006, p. II).

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73

Durante muitos anos, O Povo foi composto em velhas máquinas tipográficas. José

Raimundo Costa (2006, p. 270) conta que, em 1941, o jornal fez uma campanha de

assinaturas e, assim, pôde comprar maquinário de impressão mais moderno. A impressão em

offset só chegaria à redação do O Povo na década de 197068

. As matérias eram ilustradas com

clichês de madeira ou de zinco e, desde o primeiro ano de circulação do jornal, já havia

também, de maneira esparsa, a utilização de fotografias69

.

Nessa época, os jornalistas, em geral, produziam seus textos a mão, ―só havia uma

máquina de escrever na redação do Gazeta de Notícias na década de 1940‖ (GIRÃO, 2006,

p.63). Havia jornais vespertinos e matutinos, entre os matutinos destacavam-se O Ceará,

Unitário e Gazeta de Notícias; o jornal O Povo 70

nasceu como mais um diário vespertino, ao

lado de outros como o Correio do Ceará e O Nordeste.

Durante os primeiros anos, ―O Povo‖ não manteve uma estrutura noticiosa

racionalizada. Limitava-se a transcrever algo de ―O Globo‖, do Rio de Janeiro. A

Agência Havas, com informes em Francês e em código, traduzidos por um técnico

francês trazido por Demócrito, faria nascer na folha aquela estrutura ainda

incipiente. [...] Observe-se que ele não tinha noticioso a princípio. Nem mesmo no

referente ao crime. A partir de 38 é que abre espaço para os esportes. Notícias

políticas eram raras. (MONTENEGRO, 1989, p. 65).

O jornal O Povo, portanto, se pautava a partir de outros periódicos, o que era uma

prática comum na imprensa na época71

. Mais tarde, já na década de 1940, O Povo passa a

contar, também, com correspondentes, inclusive no Rio de Janeiro, e com os serviços das

Agências de Notícias internacionais, principalmente Havas e Reuters, as pioneiras e mais

importantes da época. Vale destacar, também, que as informações chegavam às redações dos

jornais principalmente por meio de telegramas. Nos textos que compõem o corpus desta

pesquisa é possível observar que muitas das informações chegaram à redação via telégrafo e

partiam, em especial, de fontes oficiais, sobretudo a Polícia. A utilização desse tipo de fonte,

conforme discutido no capítulo 4, contribui para a hegemonia de vozes oficiais na construção

das representações do movimento Caldeirão e do beato José Lourenço.

No Ceará, em meados da década de 1920, a classe média, a intelectualidade e militares

compunham o grupo dos chamados ―revolucionários‖, que lutavam contra a República Velha,

representativa do domínio das tradicionais oligarquias agrárias. O jornal O Povo aparece

como um dos porta-vozes da reação ao velho regime. É bastante significativo que

68

Conforme Costa (1988), O Povo trabalhou com processo de composição manual durante 13 anos, apenas em

1941 foram inauguradas ―uma máquina de compor linotipo e uma impressora rotoplana com capacidade para

imprimir oito páginas de uma só vez‖ (COSTA, 1988, p. 56). 69

Algumas das matérias que compõem o corpus da nossa pesquisa são ilustradas com fotografias. 70

O Povo passou a ser matutino em 1974. 71

Um dos textos que compõe o corpus desta pesquisa é a transcrição de uma reportagem que havia sido

publicada no jornal O Crato, conforme é discutido no capítulo 5.

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74

inicialmente, no logotipo do jornal, a letra ―P‖ formasse a imagem de um chicote72

, que

representaria a luta contra as injustiças, o poder dos coronéis, ―o chicote que iria ferir as

oligarquias dominantes‖.

Figura 1. Logotipo do jornal O Povo nos seus primeiros anos de publicação

Fonte: O Povo (7/1/1928)

.

O Povo criticava abertamente, em editorial do dia 12/07/1930, o governo do presidente

Matos Peixoto73

, acusando-o de fraude no processo eleitoral do ano de 1928.

Entre nós o sr. Matos Peixoto e seus servidores executam a mais escandalosa fraude

eleitoral de que há notícia na história dos vícios políticos do Ceará; Para termos uma

ideia da maneira escandalosa pela qual se praticava o regime, recordemos que, por

um conchavo concertado entre três ou quatro políticos aproveitadores, em janeiro de

1927, ficou desde logo (um ano e sete meses antes) deliberado que, a 12 de julho de

1928, o Governo do Ceará deveria cair, como caiu, nas mãos do Sr. Matos Peixoto.

Negociavam-se as pastas do Estado e do Congresso entre meia dúzia de parentes e

sócios da lucrativa empresa que vinha explorando o país (O POVO, 12/07/1930).

Conforme Souza (1994, p. 333), no Ceará, ―no período de 1914 a 1930, há poucos

casos de eleições competitivas. O que ocorre são ‗acordos‘ na indicação dos candidatos ao

governo do Estado‖. Matos Peixoto chegou a proibir a circulação do O Povo e de outros

periódicos, em outubro de 1930. Entretanto, essa censura não durou muito tempo, pois

Peixoto acabou tendo que renunciar com a vitória dos grupos opositores à República Velha.

Com o intuito de ressaltar o caráter democrático do novo periódico, o nome ―O Povo‖

foi escolhido por meio de um concurso realizado no jornal O Ceará, do qual Demócrito

Rocha era colaborador, e simboliza que o jornal seria porta-voz da luta democrática. O

editorial da primeira edição d‘O Povo, num tom panfletário, revela quais seriam os propósitos

do jornal.

O jornal é do vulgo. É no jornal que o povo encontra seu pão espiritual de cada dia.

O jornal descortina-lhe o mundo vencendo distâncias. É a lanterna mágica do

progresso.[...]

72

Esse logotipo ilustra a marca O Povo durante 8 anos. Um novo cabeçalho aparece na edição de 4 de novembro

de 1936. 73

Após a renúncia de José Moreira da Rocha, em 1928, José Carlos de Matos Peixoto foi eleito Presidente do

Estado, a partir de coligação dos partidos Democrata e Conservador. Deveria governar o Ceará até 1932, mas foi

deposto com o advento da ―Revolução de 30‖.

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75

O Povo necessita de mais gritos que o estimulem, de mais vozes que lhe falem ao

sentimento.

Eis porque surgimos. [...]

O POVO é, pois, uma bateria descoberta para os embates francos e leais, na arena da

imprensa (O POVO, 7 de janeiro de 1928).

Com um discurso em tom liberal, O Povo apresenta-se como um opositor das velhas

tradições políticas. Um ano antes da criação do jornal, o seu fundador, Demócrito Rocha,

envolvido nos movimentos de contestação às oligarquias dominantes, junto com outros

membros da classe média urbana cearense; jornalistas, intelectuais, estudantes, organizou o

Partido da Mocidade, que se proclamava contra o latifúndio e a favor da moralização do

processo eleitoral. Sua atividade jornalística iniciou-se com a publicação do semanário ―Ceará

Ilustrado‖, em 1924, espécie de ―folhetim cultural, pautado por produções literárias, por

comentários sobre a política, por matérias sobre o Ceará‖ (MONTENEGRO, 1989, p. 82).

Mais tarde, começa a colaborar no jornal O Ceará, onde foi redator e diretor literário. Em

1929, fundou o jornal literário Maracajá, que, conforme Rachel de Queiroz (1989, p. 8),

destinava-se ―a pregar o modernismo pelas terras nordestinas, e nele todos nós desferimos

voo, convencidos de que fazer modernismo era escrever regionalismo com grande gosto de

índios, antas, cocares e mais brasilidade em frases de três palavras‖.

Depois da derrubada da República Velha, quando, no Ceará, despontavam as disputas

políticas entre a LEC, Liga Eleitoral Católica – partido ligado à igreja Católica e às

tradicionais oligarquias- e o PSD, Partido Social Democrático74

, o jornal O Povo torna-se um

dos porta-vozes deste partido, de discurso modernizador e composto pelas elites cearenses

apoiadoras do movimento de 30.

Naquele tempo o jornal era político. O O Povo nasceu para apoiar a Revolução de

1930. Então, era aqui o Sarasate, o Demócrito fazendo política. Depois, o jornal se

engajou politicamente no PSD, que era o antigo Partido Social Democrático, contra

a Liga Eleitoral Católica, que era presidida pelo Andrade Furtado que era do jornal

O Nordeste, um jornal político. Sarasate foi eleito Deputado Estadual; e o Demócrito

Rocha, Deputado Federal. (COSTA, 2006, p. 270).

Importante destacar que os grupos opositores à República Velha, que tinham como um

dos aliados o jornal O Povo, não defendiam propostas de mudanças voltadas para as

necessidades dos setores populares, o que pretendiam era ―a reordenação do sistema

capitalista, se possível, sem a participação dos trabalhadores‖ (SOUZA, 2007, p.299).

74

Importante ressaltar que o PSD, Partido Social Democrático foi criado, no Ceará, em 1932, no contexto das

disputas entre as facções políticas no Governo Provisório de Getúlio Vargas. No Estado Novo (1937-1945),

todos os partidos políticos foram fechados. No chamado processo de reabertura política, com o fim do Estado

Novo, em 1945, destacam-se duas novas forças políticas: o PSD, Partido Social Democrático (que não possui

relação com o PSD dos anos 1930), e a UDN (União Democrática Nacional), à qual era filiado o diretor do

jornal O Povo na época, Paulo Sarasate, conforme já destacado.

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Nesse contexto, os jornais que ganham destaque nos anos 1930 são aqueles que

objetivam propagar os ideais progressistas, defender o rompimento com o passado,

considerado uma expressão de atraso. No Ceará, esse ―projeto modernizador‖ defende, em

especial, o fim de práticas como o poderio dos coronéis e o banditismo que assolava o interior

do Estado. Nesse sentido, a imprensa irradia esses ideais tidos como modernizadores,

defendendo ―mudanças de velhos hábitos, de costumes sediços, de práticas retrógadas que

respondiam pelo atraso da República Velha‖ (MONTENEGRO, 1989, p. 69).

No jornal O Povo, durante as décadas de 1920 e 1930, há diversas matérias acerca do

cangaceirismo e banditismo reinante nos sertões. Em editorial no dia 13 de janeiro de 1929,

intitulado ―Entre o juiz e o carrasco‖, O Povo trata do problema do banditismo no Interior do

estado e questiona execuções sumárias de presos, ocorridas no Cariri cearense. Nesse

contexto, as práticas da religiosidade popular, como o movimento Caldeirão, serão

compreendidas, muitas vezes, como uma expressão da ignorância sertaneja, como mais uma

manifestação de banditismo e como uma ameaça ao projeto modernizador emergente.

No cenário político, a LEC, que representava as alas mais conservadoras da política

cearense, saiu vitoriosa em sucessivos pleitos, inclusive com a eleição, em 1935, de Menezes

Pimentel para o Governo do Estado. Com a chegada de Getúlio Vargas ao poder, é adotada

uma série de medidas para manter a ―ordem pública‖ e a ―coesão nacional‖. A pretexto de

combater os ―inimigos da Pátria‖, o Governo tomou medidas repressivas, como a

promulgação, em 1935, da Lei de Segurança Nacional, que ―definia, com severidade, os

crimes contra a ordem social e política‖ (SCHWARTZMAN, 1983, p.104).

Estava decretado o clima de ―caça às bruxas‖, principalmente em perseguição aos

acusados de comunismo, mas, na verdade, contra todo aquele que pudesse representar uma

ameaça à ordem estabelecida. No que se refere à mídia e à propaganda, o Governo Vargas vai

dar ênfase à publicidade das ações do Estado, com a criação de órgãos específicos, que

buscavam formar uma imagem positiva do Governo junto à opinião pública, a exemplo do

Departamento Oficial de Propaganda (DOP) e do Departamento de Propaganda e Difusão

Cultural, criando em 1934. Essa preocupação do Estado com o controle dos meios de

comunicação culmina com o monopólio e censura à mídia de todo o País, por meio da

instalação do DIP, Departamento de Imprensa e Propaganda, em 1939.

O Caldeirão foi destruído nesse período (1936-1937), quando o Ceará estava sob a

administração de Menezes Pimentel e o Brasil vivia a iminência de um longo período

ditatorial no país, que se efetivou a partir do golpe do Estado Novo, em 1937.

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4 CONTEXTO HISTÓRICO DO MOVIMENTO CALDEIRÃO

4.1 Movimentos Sociorreligiosos: Canudos, Contestado e Pau de Colher

No final do século XIX e início do século XX despontam pelos sertões brasileiros

movimentos de trabalhadores que buscavam alternativas às condições de subserviência a que

eram submetidas as camadas populares do meio rural brasileiro. Assim surgiram experiências

como Canudos, Contestado, Caldeirão e Pau de Colher. A exclusão social do homem do

campo serve-nos como ponto de partida para a compreensão destes movimentos75

.

A República vai encontrar a propriedade fundiária constituída como o principal

instrumento de subjugação do trabalho livre. Os estados passaram a ter mais autonomia e, a

partir daí, desenvolveu-se o coronelismo, visto que cada lugar tinha o seu chefe local, grande

proprietário de terras, que influenciava a vida política, através da manutenção de currais

eleitorais. Os coronéis sempre tinham jagunços e agregados a seu serviço.

No sertão nordestino, submetidos ao poder dos coroneis e atingidos pelas frequentes

secas, os trabalhadores rurais continuaram a viver miseravelmente, além de terem que vender

sua força de trabalho para os oligarcas.

Donos de um poder ilimitado, os barões do açúcar, potentados e ―coroneis‖, através

do mandonismo e do compadrio, polos opostos de um mesmo mecanismo de

dominação, impunham aos não-proprietários total sujeição. Devido ao esquema

totalizante do latifúndio exportador, estes não tinham outra opção a não ser sujeitar-

se a outro fazendeiro, ou formar bandos de cangaceiros. A constituição de

comunidades religiosas será também uma nova opção para os não-proprietários

assegurarem a posse da terra dessa vez de forma coletiva, constituindo um modelo

alternativo ao latifúndio ( LIMA, 1994b, p. 137).

Exatamente em regiões sertanejas é que se desenvolveram movimentos religiosos

camponeses que representavam uma alternativa ao problema da questão agrária brasileira. No

final do século XIX, nos sertões da Bahia, aconteceu a saga de Canudos; de 1912 a 1916, uma

região entre Santa Catarina e Paraná foi palco da Guerra do Contestato; a partir de 1926, no

Cariri cearense, organizou-se a comunidade do Caldeirão, mais tarde, ocorreu o movimento

Pau de Colher, na Bahia.

75

Conforme Martins (1995), a partir do monopólio da terra é que, historicamente, constitui-se o problema da

questão agrária brasileira. As origens do latifúndio residem nos tempos coloniais com a concessão de sesmarias,

terras doadas pela Coroa Portuguesa a uma nobreza fundiária. Este esquema monopolista, atrelado aos interesses

do capitalismo internacional, vão desenhar, no Brasil, um cenário com uma minoria de senhores, legítimos

proprietários, em contraponto a uma grande maioria de excluídos de direitos.

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Todos esses movimentos populares, assim como tantos outros, foram reprimidos pelas

camadas dominantes, sendo simplificados como ―banditismo‖, ―misticismo‖, ―fanatismo‖ e

―desordem‖. Porém, tais atribuições objetivaram mascarar as reais motivações que geraram a

constituição dessas experiências de organização social.

No ano de 1893, a região de Canudos, no interior da Bahia, foi o pouso, o ponto de

chegada, de uma gente sertaneja seguidora do beato Antônio Conselheiro, que há cerca de 20

anos já peregrinava pelos sertões nordestinos. Em Canudos, Conselheiro e seus peregrinos

fundaram o povoado de Belo Monte, que chegou a ter mais de cinco mil casas e cerca de vinte

e cinco mil habitantes (SILVA, 1997).

Antônio Vicente Mendes Maciel (que, mais tarde, se tornaria Antônio Conselheiro)

era um cearense, do município de Quixeramobim, que largou tudo para tornar-se peregrino.

Andava pelos sertões pregando os ensinamentos do evangelho e condenando os maus

costumes. Suas pregações atraíam muitos sertanejos, que se tornaram seus seguidores nas

andanças pelos sertões. Antônio Conselheiro organizava também diversas obras comunitárias,

como a manutenção e construção de capelas, cemitérios e açudes. A aglutinação de sertanejos

em torno de Conselheiro logo começa a incomodar as elites e ele passa a sofrer perseguições e

ameaças. As autoridades clericais chegam a proibir suas pregações em algumas localidades.

Tal fato ilustra o choque entre as práticas da religiosidade e a alta hierarquia eclesiástica, que

não aceitava qualquer manifestação religiosa que fugisse do seu controle76

.

A Abolição da Escravatura e a Proclamação da República não melhoraram em nada as

condições de vida das camadas populares que continuaram, cada vez mais, submetidas aos

latifundiários. Com o novo Regime, o Estado se fortalece e ecoa pelo país um discurso de

desenvolvimento e progresso, em contraponto ao ―arcaísmo monarquista‖. Neste contexto, as

manifestações dos sertanejos são rotuladas como expressão de atraso, que devem ser saneadas

para a manutenção da ordem e do progresso.

Com a formação da comunidade de Canudos, sertanejos de todo o interior da Bahia e

de estados vizinhos abandonavam as fazendas onde eram explorados pelos senhores

latifundiários e juntavam-se ao povo de Belo Monte. A população cresceu e, em pouco tempo,

Canudos transformou-se numa verdadeira cidade. Entretanto, a experiência representava um

choque com os interesses das elites, pois era uma reação dos sertanejos à estrutura política e

econômica vigente. O início da guerra contra a comunidade ocorreu no final de 1896 e se deu

a pretexto de que o povo de Canudos ameaçava invadir a cidade de Juazeiro da Bahia. As

76

Sobre Canudos e a vida de Antônio Conselheiro, ver Silva (1997).

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autoridades políticas, judiciárias e clericais fizeram coro em nome da intervenção militar

contra o povoado de Belo Monte, acusado-o de ser um ―reduto monarquista‖, uma ameaça à

recém-instaurada República.

Quatro expedições militares foram lançadas contra os sertanejos. Com a derrota da 1ª

expedição, acentuou-se, na imprensa e entre as elites uma campanha de perseguição ao

povoado de Canudos. A 2ª expedição militar também foi derrotada pelos canudenses. As

elites sentiam-se desmoralizadas por terem sido vencidas por ―jagunços ignorantes‖. O

exército armou-se e preparou a 3ª expedição. Marcharam rumo ao arraial de Canudos mais de

mil homens, carregando forte arsenal bélico. Travou-se um violento combate, em que, mais

uma vez, as forças do exército foram derrotadas.

Galvão (1994) destaca que, com o fracasso da 3ª expedição, surgiram movimentos em

todo o país exigindo a destruição do ―reduto de fanáticos, assassinos e monarquistas‖. Assim,

no ―calor da hora‖, ou seja, no auge dos conflitos, houve uma mobilização geral da opinião

pública feita pela imprensa do país, que acompanhou as operações bélicas em Canudos,

inclusive com o envio de correspondentes especiais para o local dos acontecimentos77

.

Galvão (1994) enfatiza o papel desempenhado pela imprensa na repressão a Canudos:

Com essa mobilização geral da opinião feita pelos jornais, acompanhando as

operações bélicas, a Guerra de Canudos foi ganha, o arraial foi arrasado a dinamite e

querosene juntamente com quem não quis se render, os prisioneiros todos

degolados, restando apenas algumas poucas centenas de mulheres e crianças que

foram dadas de presente ou vendidas. A República estava salva (GALVÃO, 1994,

p.75).

Num primeiro momento, a 4ª expedição também foi derrotada, mas foi reforçada, o

que garantiu o esmagamento dos últimos resistentes do arraial de Canudos78

. As autoridades

destruíram a ―cidade santa‖, em nome da ordem e da civilização. Estava sufocada mais uma

experiência de luta popular.

Canudos foi assim um dos momentos culminantes da luta de libertação dos pobres

do campo. Sua resistência indomável mostra o formidável potencial revolucionário

existente no âmago das populações sertanejas e a enorme importância do movimento

camponês no Brasil [...]. A epopeia de Canudos ficará em nossa história como um

patrimônio das massas do campo e uma glória do movimento revolucionário pela

sua libertação (FACÓ, 1980, p.126).

Outra reação ao esquema do latifúndio culminou com a conhecida Guerra do

Contestado. Conforme Martins (1995), em 1908, uma empresa norte-americana foi

77

Na época da 4ª expedição militar, o engenheiro e tenente reformado do Exército, Euclides Rodrigues da

Cunha, foi enviado para a região de Canudos como correspondente do jornal O Estado de São Paulo. A partir

dessa viagem a Canudos, Euclides da Cunha publica, em 1902, o livro Os Sertões. 78

Conforme Moniz (1978, p. 157), ―Entre a preparação das expedições e as batalhas travadas, a campanha de

Canudos durou de 4 de novembro de 1896 a 6 de outubro de 1897. Não se tratava de uma simples insurreição de

sertanejos e sim de uma guerra civil‖.

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encarregada pelo Governo Federal de construir uma ferrovia que ligaria Rio Grande do Sul a

São Paulo. Nessa região, desenvolvia-se a criação de gado e a principal atividade dos

agricultores era o cultivo da erva mate. Os antigos posseiros começaram a ser expulsos de

suas terras em 1911. Estes fatos vão gerar grande clima de tensão, principalmente na região

limítrofe entre os estados de Paraná e Santa Catarina.

Os estados de Santa Catarina e Paraná travavam uma disputa territorial. Crescia no

campo a concentração de gente pobre e sem lar, inclusive posseiros e colonos

expulsos de suas casas para a construção de uma estrada de ferro. A crise alimentava

a forte religiosidade popular, criando comunidades autônomas, cuja mera existência

desafiava o coronelismo vigente (MACHADO, 2012, p. 18).

Neste cenário, surgiu a figura do monge79

José Maria, levando conselhos e consolo aos

aflitos e cura aos doentes. De acordo como Martins (1995), com suas peregrinações, ele

reunia gente miserável e de fé. A sua fama era tanta que até mesmo alguns coroneis da região

entendiam como sinal de prestígio a proximidade com o curandeiro.

Expropriados de seus direitos mais básicos, os excluídos encontram na liderança

espiritual do monge José Maria força para lutar por uma vida melhor e se organizam em uma

comunidade religiosa. O Estado, com sua postura repressiva, a Igreja, combatendo as

manifestações de religiosidade popular, tratadas como fanatismo, e os coroneis, preocupados

com a reação dos camponeses organizados, reprimem duramente o movimento do Contestado.

O monge José Maria e seus seguidores foram acusados de monarquistas, tiveram que sair de

Santa Catarina e foram para o Paraná. Como Santa Catarina e Paraná disputavam os limites

entre os estados, a entrada do povo do monge no Paraná foi considerada uma invasão.

Este foi o pretexto para a deflagração da ―maior guerra popular da história

contemporânea‖ (MARTINS, 1995, p. 26). A Guerra do Contestado durou quatro anos (1912

a 1916) e envolveu mais de 20 mil camponeses combatidos por metade dos efetivos do

Exército brasileiro em 1914 e mais uma tropa de caboclos contratados para a luta. No

primeiro combate o monge José Maria foi morto, mas os sertanejos continuaram a resistir a

contínuos ataques na luta entendida por eles como uma ―guerra santa‖. Depois de anos de

resistência, em 1916, os camponeses do Contestado, enfraquecidos pela fome e vítima de

epidemias de doenças, foram arrasados pelas forças repressivas. Mais tarde, as fronteiras entre

os estados foram demarcadas e os latifundiários consolidaram seu poderio na região. ―Ainda

hoje os descendentes dos sertanejos que lutaram no Contestado vivem em situação precária,

espremidos em pequenos lotes ou na periferia das grandes metrópoles‖ (MACHADO, 2012,

p.21).

79

Enquanto no Nordeste esses religiosos populares eram nomeados como beatos, no Sul, eram, geralmente,

chamados de monges.

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81

Mais tarde, na década de 1930, na Bahia, muitos trabalhadores rurais começaram a se

reunir na fazenda Pau de Colher80

, influenciados pelos conselhos do peregrino Severino

Tavares81

, que espalhava pelos sertões a boa nova que era a vida comunitária do povo do sítio

Caldeirão. A figura de Severino Tavares será o elo entre a experiência de Pau de Colher e o

Caldeirão82

. Conforme Pompa (1995), Severino Tavares, desde o início dos anos 1930,

iniciou suas viagens de pregação, principalmente pelos sertões de Pernambuco, Paraíba,

Alagoas e Bahia. Severino pregava padrões de conduta moral e religiosa e falava sobre temas

próprios do catolicismo sertanejo: a penitência, o arrependimento e a preparação para o fim

dos tempos. Assim, ele se torna o ―Conselheiro Severino‖, que teria andado pela região de

Pau de Colher por volta de 1934, quando conheceu um agricultor chamado José Senhorinho, o

qual se tornaria o líder dessa experiência religiosa. José Senhorinho era rezador, sabia ler e

pregava muito bem, assim adquiriu prestígio junto aos moradores daquela região. Além disso,

tinha boa condição econômica, pois possuía roças de mandioca, milho, feijão e plantações de

algodão e mamona, que eram produtos de grande valor comercial na época.

Conforme Brito (1998), após a passagem de Severino Tavares, Senhorinho começou a

reunir o povo em seu sítio para a leitura/audição de textos evangélicos, ocasião em que fazia

suas pregações. A partir de dezembro de 1937, o ritual das rezas começou a congregar grupos

familiares na propriedade de Senhorinho, onde diversos fieis se reuniram com o intuito de

fazer uma viagem para um outro lugar, onde encontrariam a ―salvação‖. Muitos estudiosos

destacam que Pau de Colher foi uma experiência de ―transitoriedade‖, pois o intuito do grupo

seria rumar para o Caldeirão83

. Inclusive, em 1937, teria chegado à Pau de Colher um ex-

morador do Caldeirão, chamado Quinzeiro, que teve um papel de liderança nessa experiência

religiosa.

80

Pau de Colher era o nome de um lugarejo localizado no interior da Bahia, bem próximo aos limites com os

estados de Piauí e Pernambuco. É uma região semiárida, no baixo médio São Francisco, a cerca de 90 km do

município de Casa Nova, Bahia. Sobre Pau de Colher, ver Brito (1998) e Pompa (1995). 81

Conforme Silva (2009, p. 61), Severino Tavares nasceu no município de Cabaceiras, Paraíba, em 1885; era

comboieiro, ―sendo por muito tempo responsável pelo transporte de insumos do porto de Recife/PE para João

Pessoa e Campina Grande na Paraíba [...] Por intermédio de Padre Cícero, conheceu o beato José Lourenço e a

comunidade do Caldeirão, vindo a se tornar um dos personagens principais dessa epopeia religiosa, tornando-se

o elo entre o Arraial do Caldeirão e a população sertaneja‖ 82

Nos corpus desta pesquisa, conforme veremos no capítulo 5, há matérias que chegam a fazer uma ligação

direta entre o beato José Lourenço e Pau de Colher, apontando-o como uma liderança do movimento: “Encontro

armado entre uma volante policial e o beato José Lourenço na Bahia” (O Povo, 26/1/1938). 83

Vale destacar que nem Severino Tavares, nem o beato José Lourenço participaram dos confrontos de Pau de

Colher. Conforme será apresentado neste capítulo, Severino morreu em confronto com a polícia cearense, na

Serra do Araripe, em 1937, e o beato José Lourenço estava no Cariri cearense, em janeiro de 1938, período em

que ocorreu a ―Guerra de Pau de Colher‖.

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82

Em Pau de Colher, não chegou a se formar uma comunidade propriamente. Antes de

1937, os fieis iam para as pregações na casa de Senhorinho, mas, em sua maioria, não ficavam

por lá. A reunião efetiva do grupo ocorreu apenas entre dezembro de 1937 e janeiro de 1938,

quando o local foi atacado por forças policiais. Antes da chegada dos efetivos policiais, houve

violentos confrontos entre o povo de Pau de Colher e moradores da região que marcam o

―estopim‖ do ataque àqueles que as autoridades consideravam como ―alucinados fanáticos‖.

Foram enviadas três investidas militares contra o povo de Pau de Colher. José

Senhorinho foi morto no primeiro ataque, mas o massacre de inúmeros fieis - entre homens,

mulheres e crianças - aconteceria na terceira investida, ocorrida entre os dias 19 e 21 de

janeiro de 1938. Na luta, os adeptos de Senhorinho usavam como principal arma cacetes, daí

o movimento também ter ficado conhecido como a ―guerra dos caceteiros‖.

Conforme Pompa (1995), o governo pernambucano, com a intenção de proteger a

cidade de Afrânio, supostamente sob a ameaça dos ―caceteiros‖, enviou uma coluna da polícia

militar, composta de noventa homens, sob a chefia do capitão Optato Gueiros, comandante

das forças volantes de combate a cangaceiros. Apesar das ordens de esperar os outros

contingentes militares (da Bahia e do Piauí), Optato Gueiros decidiu destruir o reduto e

iniciou o ataque que durou três dias, deixando cerca de 400 mortos. Muitos sobreviventes

foram presos, outros torturados, os pais perderam o poder pátrio sobre os filhos. A

perseguição aos fugitivos ainda durou algum tempo e repercutiu nas páginas dos jornais: ―Os

fanáticos rechaçados pela polícia, internam-se no Piauí‖ (O Povo, 26/1/1938)84

.

Cumpre destacar que, além do fator religioso, os movimentos camponeses aqui

destacados tiveram também motivações bem terrenas, a principal: a exclusão social do

homem do campo. A religiosidade popular surge como elemento aglutinador destes

trabalhadores em busca de novas formas de organização social.

4.2 Catolicismo popular

O processo de povoamento do Ceará está diretamente atrelado ao avanço do

capitalismo, neste momento em sua fase mercantil. E foi com os colonizadores que o

catolicismo chegou ao Ceará. Aqui viviam diversos povos indígenas, que tiveram suas terras

roubadas e seus valores culturais sufocados em nome da ―civilização‖.

84

Esta matéria compõe o corpus desta pesquisa.

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Conforme Hoornaert (1994), com o objetivo de dominar e converter os indígenas, os

missionários europeus criaram os aldeamentos, que eram instrumentos de violência onde

índios das mais diversas nações eram reunidos e sujeitos a uma rígida disciplina, impregnados

da fé cristã. Os índios eram forçados a deixar suas moradas, sua religião, para viver

submetidos à autoridade dos religiosos, que os utilizavam como mão de obra e, até mesmo,

como guerreiros contra outros índios que resistiam à dominação europeia. ―Os missionários

ensinaram que a religião nativa era feiticeira, expressão de ignorância e deveria ser combatida

em nome do Catolicismo‖ (HOORNAERT, 1994, p. 58).

Em especial nos séculos XVIII e XIX85

, ocorre uma intensificação de outro tipo de

trabalho missionário, as chamadas Santas Missões, peregrinações itinerantes que foram

determinantes na formação cultural do povo sertanejo.

Missionários cruzavam os sertões. Fazendas, povoações, vilas e cidades sertanejas

eram visitadas pelos incansáveis religiosos, cujo zelo ardente se manifesta pela

importância que davam ao sacramento da confissão, e consequentemente à

penitência. O povo, durante alguns dias, se aglomerava em torno dos missionários

ouvindo-lhes as prédicas reveladoras de um outro mundo e que lançavam o sertanejo

nas sendas do insodável mistério (MONTENEGRO, 1973, p.14).

Estiveram no sertão várias ordens de religiosos, dentre elas, jesuítas, oratorianos,

lazaristas e capuchinhos. Esses últimos tiveram uma importante atuação na difusão das

missões itinerantes, pois, ao contrário de outros missionários, tinham contato direto com a

população: ―se acostumaram a andar a pé e não viajar carregado por escravos em redes, como

faziam os missionários comumente, cavavam o chão com a enxada nos mutirões, carregavam

pedras com o povo nas construções e viviam pobremente‖ (HOORNAERT, 1990, p. 51). Eles

chegaram ao Nordeste no início do século XVII e andavam pelos sertões em missões

ambulantes confessando, pregando a penitência e a preparação para o fim dos tempos. Todo

esse espírito penitente pode ser observado no catolicismo sertanejo até os dias de hoje. ―Aliás,

o que os grandes líderes católicos como Antonio Conselheiro, Padre Ibiapina e padre Cícero

pregam ao povo não é senão este catolicismo impregnado de espírito de mortificação, de

sacrifício, de sofrimento pelos seus pecados‖ (HOORNAERT, 1994, p.56).

O catolicismo praticado pelo povo sertanejo será uma reelaboração, a partir de sua

realidade, dos preceitos cristãos. Seriam, então, interpretações e adaptações da teologia oficial

feitas pelo povo. Considerando o contexto histórico estudado, o catolicismo popular é, pois,

85

Importante enfatizar que, em 1759, os jesuítas, primeiros religiosos responsáveis pela catequese dos indígenas

cearenses, foram expulsos do Brasil por ordem da Coroa Portuguesa. Os aldeamentos fundados pelos jesuítas

foram convertidos em vilas.

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uma forma de adaptar a religiosidade às condições materiais e ao universo cultural das

camadas populares86

.

Importante destacar que o ―popular‖, neste trabalho, não é compreendido,

simplesmente, como ―autêntico‖, ―original‖ ―genuíno‖. A partir da abordagem aqui

desenvolvida, compreendemos que o catolicismo popular está ligado às formas de resistência

e negociação que caracterizaram o processo de formação do catolicismo no Brasil87

.

O catolicismo popular, nesse sentido, se configura como contraponto ao catolicismo

oficial. Entretanto, vale ressaltar que não há fronteiras delimitadas entre religião oficial e

religião dominada, tendo em vista que essa relação não é estanque, nem harmônica, pois

envolve arenas de disputas, embates e confrontos. Sobre esses processos de dominação e

resistência, Pompa (2004) enfatiza que a linguagem religiosa

não foi simplesmente imposta pelos catequizadores com o sequestro do patrimônio

religioso indígena. Essa linguagem se construiu ao longo de séculos, por meio de um

processo de negociação simbólica em que alguns elementos foram absorvidos e

replasmados, porque podiam conferir sentido ao mundo, e outros rejeitados, porque

sem sentido no mundo do sertão (POMPA, 2002, p.87) .

Nesse sentido, as manifestações do catolicismo sertanejo podem ser compreendidas

como uma expressão de resistência e não de total submissão ou ignorância. Percebe-se no

catolicismo sertanejo uma clara ambiguidade no que se refere às práticas religiosas. O

sertanejo procura respeitar a hierarquia eclesiástica, venera os santos católicos, submete-se às

imposições da Teologia Oficial, no entanto, é supersticioso, possui os beatos e a rezadeiras.

―De um lado, o sertanejo é muito católico, do outro, ele não rejeita a sabedoria ancestral,

conserva a arte de vida que lhe foi transmitida de geração em geração apesar da interferência

da igreja católica‖ (HOORNAERT, 1994, p.54)88

.

86

Hoornaert (1990, p. 18) chama de ―cristianismo moreno‖ o ―cristianismo mestiço que se manifesta no dia-a-

dia da vida neste país‖, ―nem branco nem preto, nem ocidental nem ameríndio nem africano‖. 87

Vale ressaltar que a concepção de popular é construída do ponto de vista da intelectualidade e não a partir da

perspectiva dos próprios sujeitos dessas práticas. Conforme destaca Chartier (1995, p.179), ―a cultura popular é

uma categoria erudita‖. 88

Ressaltamos que, neste trabalho, utilizamos, indistintamente, os termos catolicismo sertanejo, catolicismo

popular (ou, ainda, religiosidade popular). Vale destacar, porém, que o termo religiosidade popular abrange

outras formas de manifestações religiosas, não apenas ligadas ao catolicismo, ou seja, o catolicismo popular é

uma das formas de expressão de algo mais amplo: a religiosidade popular. Acerca da concepção de

religiosidade, consideramos que ―o homem possui religiões pelo fato de ser um animal simbólico, criador de

sentidos. [...] É no coletivo que a religiosidade ganha consistência, funcionando como linguagem, elemento de

coesão e estruturação de grupos sociais‖ (RAMOS, 2011a, p. 35).

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4.2.1 Beatos

No âmbito do direito canônico da Igreja Católica, o título de ―beato‖ 89

é atribuído a

pessoas aprovadas em um processo de beatificação, que constitui uma das etapas para a

canonização (santificação). Nesse sentido, a beatificação representa um reconhecimento

oficial da Igreja. Entretanto, no contexto do catolicismo popular, o termo ―beato‖ subverte

essa concepção tradicional. Assim, diversos sertanejos tornaram-se beatos, portadores da

mensagem cristã, a despeito do controle ou da fiscalização das autoridades eclesiásticas.

Hoornaert (1990) destaca que uma das características da beatice brasileira é o

―radicalismo itinerante‖, cujas matrizes residem nos primórdios da história do cristianismo.

Assim, os beatos, em geral, são peregrinos que abraçam a vida itinerante como uma missão,

um trabalho para ―instalar o paraíso na terra‖.

O beato tem que correr o sertão para reerguer capelas caídas cheias de morcegos,

construir cemitérios para que os cristãos sejam enterrados com dignidade e não

fiquem jogados ao relento depois de mortos que nem bichos do mato, tirar os terços,

puxar as novenas, instruir o povo (HOORNAERT, 1990, p. 106).

Muitos beatos encontraram pouso dessa vida peregrina a partir da constituição de

comunidades religiosas como Canudos e Caldeirão. Esses religiosos populares pregavam o

evangelho, o exemplo da caridade e da penitência e, além de sua vontade, eram as suas

práticas e sua conduta ético-moral que faziam com que o povo, a coletividade, o nomeasse

―beato‖.

Sobretudo no século XIX, a prática desses religiosos populares ganhou espaço em

regiões sertanejas, caracterizadas pelo isolamento e pela falta de assistência da Igreja. Della

Cava (1976, p.35) destaca que, em 1861, o Ceará, com uma população de cerca de 120 mil

habitantes, possuía apenas 33 padres, dos quais mais de dois terços possuía ―famílias

constituídas e cujo prestígio, entre os leigos, havia atingido, em consequência, seu ponto mais

baixo‖.

Diante de um clero distante, esporádico e sacramentalizante, o beato é presente,

contínuo e participante. A força dele não vem apenas de uma ‗ordenação‘ ou ‗curso‘

percorrido, mas de uma conversão. O beato passa a encarar toda a vida como uma

missão, e nisso encontra sua autoridade junto ao povo, autoridade essa que por vezes

chega a ser tão grande que a própria autoridade eclesiástica passa a reconhecê-la,

outorgando ao beato faculdades e direitos, como foi o caso do beato Antônio

Conselheiro, que receber do arcebispo da Bahia licença para abrir e fechar igrejas,

pregar desde os púlpitos delas, organizar rezas e novenas (HOORNAERT, 1984, p.

81)

89

A palavra provém do latim beatum, cujo significado é "feliz", "bem-aventurado", ―afortunado‖.

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Era comum entre esses religiosos populares a utilização da Missão Abreviada90

, que é

um livro de catequese, uma espécie de versão da Bíblia em linguagem popular, pautado pela

defesa de valores como penitência, obediência e conversão. A obra foi difundida no Nordeste

brasileiro pelos missionários oratorianos e capuchinhos, que a utilizavam nas Santas Missões,

e alcançou grande popularidade na cultura religiosa sertaneja, sendo frequentemente utilizado

pelos beatos, a exemplo de Antônio Conselheiro91

. Na contracapa do livro, há informações

que esclarecem a que se destina: ―obra utilíssima para os parochos, para os capelães, para

qualquer sacerdote que deseja salvar almas, e finalmente para qualquer pessoa que faz oração

pública‖. Na obra, inclusive, há a orientação de que qualquer ―pessoa de vida exemplar‖ pode

exercer a função de missionário e de difusor da mensagem cristã. ―Em qualquer povoação

deve haver um Missionário, deixem-me aqui dizer; este deve ser um Sacerdote de bom

exemplo e na falta d‘lle qualquer homem ou mulher que saiba ler bem e de uma vida

exemplar‖ (COUTO, 1868, p.7).

No entanto, a Igreja Católica reivindicava o monopólio sobre a difusão da ―palavra de

Deus‖ e condenava práticas que fugissem ao seu estrito controle eclesiástico. Lembremos que

a figura do beato não nega a igreja ortodoxa, muito pelo contrário, ele a respeita, apesar do

tratamento excludente dispensado pela Igreja, às manifestações de religiosidade popular.

A partir do contexto da religiosidade do Cariri cearense, Montenegro (1973) sintetiza

concepções recorrentes do termo ―beato‖.

Beato é um sujeito celibatário, que faz votos de castidade (real ou aparentemente),

que não tem profissão porque deixou de trabalhar e que vive da caridade dos bons.

[...] Passa o dia a rezar nas igrejas, a visitar os enfermos, a enterrar os mortos, a

ensinar orações aos crédulos, tudo de acordo com os preceitos do catecismo. [...] Há

beatos que pedem esmola, que são sustentados por outrem e que vivem por conta

própria, do trabalho nos sítios, sem auxílio de ninguém. Veste à maneira de um

frade: uma batina de algodão tinta de preto, uma cruz às costas, um cordão de S.

Francisco amarrado na cintura, uma dezena de rosários, uma centena de bentinhos

[...] (MONTENEGRO, 1973, p. 25).

Algumas dessas características destacadas podem ser observadas em diversos beatos

que proliferaram no ambiente místico de Juazeiro do Norte. Alguns autores apontam como

uma característica dos beatos o fato de não trabalharem e viverem de esmolas. Era comum

90

O livro Missão Abreviada apresenta como subtítulo a expressão ―para despertar os descuidados e converter os

pecadores e sustentar o fruto das Missões‖. A obra traz meditações, orações, a história de vida de santos e

ensinamentos para a vida diária. Foi escrito, em 1859, pelo padre português oratoriano Manoel José Gonçalves

Couto. 91

Em Os Sertões, Euclides da Cunha relata a chegada de Antônio Conselheiro aos sertões de Sergipe, no ano de

1874. Conselheiro trazia, entre seus livros de catequese, um exemplar da Missão Abreviada: ―Ali chegou, como

em toda a parte, desconhecido e suspeito, impressionando pelos trajes esquisitos — camisolão azul, sem cintura;

chapéu de abas largas, derrubadas; e sandálias. Às costas um surrão de couro em que trazia papel, pena e tinta, a

Missão Abreviada e as Horas Marianas‖ (CUNHA, 2002 [1902], p. 196.).

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entre os beatos a prática de pedir esmolas para auxílio em obras religiosas, entretanto muitos

beatos viviam do seu trabalho, sobretudo na agricultura, a exemplo do beato José Lourenço,

do Caldeirão. Também é função dos beatos orientar e aconselhar os fieis sobre as ―coisas de

Deus‖ e normas de conduta moral, assim, muitas vezes, eles também são chamados de

―conselheiros‖.

De acordo com Barros (1988), o beato é responsável pelo povo sertanejo aplicar na

prática a utopia cristã da igualdade entre os homens, como acontece na experiência do

Caldeirão, sob a liderança do beato José Lourenço92

. Entretanto, a igreja oficial condena tais

práticas por temer a perda de sua hegemonia e o controle sobre as massas de fieis. Igreja,

Estado e elites da sociedade veem nas práticas da religiosidade popular uma ameaça à ―ordem

social‖ e utilizam todos os seus aparelhos no intuito de reprimir estes movimentos.

Entretanto, houve até mesmo experiências em que membros do clero voltaram-se para

as práticas de uma religiosidade mais próxima das necessidades do povo, como exemplo do

Padre Ibiapina (religioso cearense muito popular no século XIX, cuja atuação missionária se

deu no Ceará, Paraíba, Pernambuco, Piauí e Rio Grande do Norte, onde, ao longo de trinta

anos, organizou grandes mutirões para a construção de obras públicas e criou as ―casas de

caridade‖, que eram hospitais, escola e orfanato)93

.

Conforme Barros (1988), o crescimento do trabalho e prestígio de padre Ibiapina

incomodou a hierarquia eclesiástica e o Bispo do Ceará, Dom Luiz dos Santos, proibiu as

pregações do missionário e as casas de caridade foram entregues à Diocese. Entretanto, o que

também despertou a atenção das autoridades da Igreja foi a instalação, por Padre Ibiapina, das

ordens de beatos e beatas.

Essas ordens de religiosos leigos recrutavam homens das camadas mais pobres de

trabalhadores do campo e moças órfãs e pobres. Muito raramente uma filha de

pessoas de pessoas de posses abandonava a família e seguia Ibiapina faziam voto de

castidade e pobreza, renunciavam aos ―prazeres do mundo‖ e se dedicavam ao

92

Tomando como referencial o pensamento do teórico italiano Antonio Gramsci, Barros (1988) considera os

beatos (sobretudo aqueles organizados em comunidades) intelectuais orgânicos, tendo em vista que esses

religiosos são produtores de ideologia, representantes das camadas subalternas. ―Nesse tipo de sociedade a

negação da ideologia dominante se faz a nível estrutural e superestrutural numa relação orgânica em que os

beatos aparecem como o elo entre estrutura e superestrutura – intelectuais orgânicos das baixas camadas que

emigram para as cidades santas‖ (BARROS, 1988, p. 157). 93

José Antônio Pereira Ibiapina nasceu em 5 de agosto de 1806, em Sobral, no Ceará, e morreu na Paraíba, em

19 de fevereiro de 1883. Seu pai, Francisco Miguel Pereira Ibiapina, foi morto fuzilado, em 1825, por sua

participação na Confederação do Equador. Antes de tornar-se padre, Antônio Ibiapina foi Juiz de Direito, Chefe

de Polícia e Deputado Geral. Posteriormente, abandonou a carreira jurídica e a política. Ordenou-se padre

Diocesano, em Recife, em 1853, aos 47 anos de idade, e logo iniciou seu trabalho missionário nos sertões

nordestinos. Diversos autores destacam que Padre Cícero e Antônio Conselheiro foram influenciados pelos

ensinos e pela atuação missionária de Padre Ibiapina. Sobre a trajetória de vida e obra missionária de Padre

Ibiapina, ver Mariz (1980).

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serviço de Deus, trabalhando, cuidando dos enfermos, órfãos e necessitados, além

dos serviços do culto religioso, como novenas, terços, encomendações de almas e

até pregações. [...] Esses homens, em suas comunidades ou correndo o mundo, se

encarregavam de difundir a nova concepção religiosa da prática do bem e da

cooperação (BARROS, 1988, p. 104).

Fragoso (1984) destaca que, em uma época na qual predominavam, no Brasil, ordens

religiosas e congregações europeias, as beatas do Padre Ibiapina lançavam suas raízes no

―chão nordestino‖ e estavam voltadas para as necessidades da gente sertaneja. Além disso,

essa ordem de beatas funcionava à mercê de autorização eclesiástica, em um momento em que

a Igreja exigia o controle de todas as manifestações da religiosidade do povo. Assim, as Casas

de Caridade não tiveram apoio das Dioceses às quais foram entregues e acabaram sendo

fechadas.

Hoornaert (1984,1990) enfatiza que é possível observar duas atitudes do sistema (dos

poderes constituídos) frente aos beatos: estes podem ser considerados ―úteis‖, quando se

enquadram na lógica das relações de dominação e não representam uma ameaça à ordem

instituída; ou considerados ―fanáticos‖, nos casos em que os beatos se tornam

―irrecuperáveis‖ por se comprometerem com um projeto popular e passam a ser considerados

―fanatizados‖ aos olhos dos organizadores da sociedade. ―A ação desses beatos passa a

apontar para uma nova sociedade ainda não existente e, por conseguinte, para a transformação

da atual sociedade, o que é considerado subversão da ordem estabelecida‖ (HOORNAERT,

1984, p. 82).

Nesse sentido, a Igreja, objetivando exercer absoluta autoridade sobre as práticas

religiosas do povo, vai tentar reprimir as manifestações de catolicismo popular

caracterizando-as como ―fanatismo‖ e ―expressão de ignorância e atraso‖. As práticas da

religiosidade popular serão reprimidas e sufocadas, segundo as classes dominantes, como uma

medida de ―limpeza‖ e ―ação pelo progresso‖. Sob esse pretexto, foram destruídos

movimentos sociais religiosos como Canudos, Contestado, Caldeirão e Pau de Colher.

Além disso, cabe destacar que a imagem dos beatos, na produção intelectual e cultural

brasileira, ao longo do século XX, frequentemente, é construída a partir de estereótipos e

esses religiosos são representados, muitas vezes, como ―insanos‖, ―amalucados‖ ou, ainda,

como exploradores da ignorância sertaneja94

.

94 Ao estudar o processo de construção histórica do conceito de ―Nordeste‖, Albuquerque Júnior (2006) destaca

que a seca, os beatos e os cangaceiros são algumas das imagens que ―impregnam o próprio Nordeste em

construção‖. Assim, essas imagens apontam para aquilo que o sulista não deveria ser, pois representavam o

oposto da civilização, da riqueza e do progresso.

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4.2.2 Sobre a concepção de “fanatismo”

O olhar lançado pelas camadas letradas da sociedade sobre as manifestações da

religiosidade popular, em especial no final do século XIX e início do século XX, é pautado,

sobretudo, por correntes de pensamento europeias cientificistas, sobretudo o evolucionismo e

o determinismo. Assim, o pensamento brasileiro tomará como principal referência às noções

de ―raça‖ e ―meio‖ para a compreensão da nossa realidade95

.

Nesse contexto, Euclides da Cunha, em Os Sertões (2002 [1902]), narra a experiência

da comunidade do arraial de Canudos, sob a ótica das teorias evolucionistas/deterministas e

defende que o latifúndio, o coronelismo e as condições climáticas tornam o sertanejo

―retrógrado‖ e ―primitivo‖96

. O autor considera os sertanejos uma sub-raça e assim descreve

Antônio Conselheiro: ―Todas as crenças ingênuas, do fetichismo bárbaro às aberrações

católicas, todas as tendências impulsivas das raças inferiores, livremente exercitadas na

indisciplina da vida sertaneja, se condensavam no seu misticismo feroz e extravagante‖

(CUNHA, 2002, p.183). As expressões do catolicismo popular são vistas como expressão de

uma patologia social e rotuladas como ―fanatismo‖.

Pompa (2004, p. 73) ressalta que Euclides da Cunha inaugurou uma tradição histórico-

literária que identifica o sertanejo no seu "fanatismo". ―De fato, Os sertões (1902) constitui o

protótipo da atitude contraditória com que a consciência urbana e civilizada se debruça sobre

o homem do sertão a fim de estudá-lo‖. Assim, os movimentos religiosos populares são

analisados, por diversos estudiosos, a partir de dicotomias litoral/sertão, moderno/arcaico,

barbárie/ civilização.

Das abordagens clínicas às sociológicas, da vertente autoritária à liberal-paternalista

e até à marxista, a terminologia e a interpretação não fazem se não definir um outro

bárbaro e incompreensível, atrasado, incapaz de utilizar a linguagem da razão e

condenado a se expressar em formas alienadas, às quais não é reconhecida

legitimidade sistema de leitura do mundo (POMPA, 2004, p. 75).

Também pautado pela antítese litoral/sertão, Lourenço Filho (2002 [1926]) entra nesse

coro de vozes que compreendem a religiosidade popular como expressão de fanatismo, atraso

95

Conforme Ortiz (1983, p.14), no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, o pensamento

intelectual brasileiro tomará como principais referenciais teorias como o positivismo de Comte, o darwinismo

social e o evolucionismo de Spencer. ―Elaboradas na Europa em meados do século XIX, essas teorias, distintas

entre si, podem ser consideradas sob um aspecto único: o da evolução histórica dos povos. Na verdade, o

evolucionismo se propunha a encontrar um nexo entre as diferentes sociedades humanas ao longo da história,

aceitando como postulado que o ‗simples‘ (povos primitivos) evolui naturalmente para o mais ‗complexo‘

(sociedades ocidentais)‖. 96

Euclides da Cunha destaca que o sertanejo ―está na fase religiosa de um monoteísmo incompreendido, eivado

de misticismo extravagante, em que se rebate o fetichismo do índio e do africano. É o homem primitivo,

audacioso e forte, mas ao mesmo tempo crédulo, deixando-se facilmente arrebatar pelas superstições mais

absurdas‖ (CUNHA, 2002, p.172).

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e ignorância sertaneja. A partir de uma visão cientificista, em seu livro Joaseiro do Padre

Cícero: Scenas e quadros do fanatismo no Nordeste, publicado em 1926, o autor define

Juazeiro do Norte como a ―Meca dos sertões cearenses‖ e compara o lugar a um grande

―hospício‖, em que ―todo o atraso dos sertões aí se condensou, para condicionar maior

retrocesso e estabelecer condições propícias de desajustamentos, em que repontam

mentalidades atrasadas por séculos‖ (FILHO, 2002 [1926], p.29). O autor destaca que, neste

ambiente, prolifera o ―fanatismo‖, que representa uma expressão de inferioridade de

consciência. Segundo Lourenço Filho (2002 [1926], p.54), os ―fanáticos‖ ―são semi-

autômatos. Seguem cegamente, sem se aperceberem do seu estado, os ditames de uma

tendência mórbida‖ 97

.

Antes da sua primeira edição, o texto de Lourenço Filho foi publicado, ao longo de

dez artigos, no jornal O Estado de São Paulo98

, entre novembro de 1925 e agosto de 1926. A

publicação do trabalho de Lourenço Filho sobre Juazeiro do Norte fez parte de uma série

artigos (entre eles, ―Impressões do Nordeste‖, de Paulo Moraes Barros99

, e ―Impressões de

São Paulo‖, de Oliveira Viana), que objetivavam pensar a ―questão nacional no plano de

reconstrução do Brasil idealizado pelo ―grupo do Estado‖ [...], concedendo privilégio aos

fatores raciais, mesológicos, psicológicos e culturais como determinantes do atraso ou do

desenvolvimento social‖ (MONARCHA, 2002, p.17).

Nesse sentido, há um esforço das camadas letradas em voltar-se para os estudos da

―realidade brasileira‖, em busca da construção de uma ―identidade nacional‖, mas ainda muito

pautada pelo cientificismo, em busca de explicação para as razões da causa do ―atraso

brasileiro‖ 100

. Nesse contexto, do ponto de vista da intelectualidade urbana, sulista, os

movimentos religiosos populares eram compreendidos como o ―outro‖, o exótico, a expressão

de atraso.

97

Manoel Bergstrom Lourenço Filho era um intelectual paulista que foi convidado pelo Governo do Ceará para

realizar uma reforma no ensino público do Estado. Conheceu Juazeiro do Norte e padre Cícero quando viajou

pelo interior do Ceará, em 1923, para execução de um cadastramento escolar. O livro de Lourenço Filho teve três

edições (1926,1929 e 1959) e um bom acolhimento da crítica. Conforme Monarcha (2002). 98

Conforme já destacado, nas páginas de O Estado de São Paulo, na época da Guerra de Canudos (1897),

também foram publicadas as reportagens de Euclides da Cunha que deram origem ao livro Os Sertões. 99

Paulo de Moraes Barros esteve em Juazeiro do Norte, em 1923, como membro da Inspetoria Federal de Obras

Contra a Seca (Ifocs). A partir dessa visita, publicou textos na imprensa sulista e proferiu palestras nas quais

apresentava Juazeiro como um ―antro de fanáticos‖ e o padre Cícero como um ―chefe complacente de

cangaceiros‖. Em 1923, Floro Bartolomeu da Costa, deputado federal pelo Ceará, pronunciou, na Câmara

Federal, discurso em resposta às colocações feitas por Paulo de Moraes. No mesmo ano, o discurso foi publicado

em livro, sob o título Juazeiro e o Padre Cícero. Ver Bartolomeu (2010). 100

Ortiz (1983) destaca que, na busca pela construção dessa identidade nacional, qualidades como ―indolência‖

e ―preguiça‖ são apontadas como inerentes à mestiçagem. Entretanto, nos anos 1930, essa concepção começa a

ser substituída por uma ideologia do trabalho, que será a ―pedra de toque do Estado Novo‖.

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Toda essa concepção reverbera, ao longo de anos, na visão que as camadas letradas

têm sobre as manifestações da religiosidade popular. Nessa perspectiva, Abelardo

Montenegro (1973) afirma:

As populações sertanejas são de inegável primarismo. Falta-lhes a capacidade de

refletir e assimilar princípios religiosos. A sua fé exime-se de modo infantil [...].

Assim sendo, de uma massa, em sua maioria esmagadora, ignorante e supersticiosa,

não se podia esperar cousa melhor do que o bronco fanatismo (MONTENEGRO,

1973, p. 13).

Entretanto esse mesmo autor destaca que o ―fanatismo‖ ―está ligado ao desejo de

melhoria de condições de vida do fanático que vê no caudilho a força capaz de operar tal

modificação. O fanatismo é, assim, a estratégia das populações famintas e ignorantes‖

(MONTENEGRO, 1973, p. 27).

As motivações socioeconômicas do ―fanatismo‖ e do cangaceirismo já haviam sido

trabalhadas por Rui Facó, na obra Cangaceiros e Fanáticos, publicado na década de 1960. Em

uma leitura marxista, esse autor considera que o ―fanatismo‖ e o cangaceirismo são uma

reação das camadas populares a um sistema de opressão a que eram submetidas as populações

do meio rural. Nesse sentido, a abordagem de Facó contribui para trazer à cena os fatores

sociais, políticos e econômicos que estão na base dessas manifestações, entretanto, a partir de

seu referencial marxista, esse autor considera a religiosidade popular como uma ―falsa

consciência‖, uma expressão do atraso dos sertanejos, que, naquele estágio, só poderiam ter

como ―único elemento congregador [...] as seitas semibárbaras que abraçam, como uma

réplica, à religião dominante‖ (FACÓ, 1980, p. 44). Rui Facó destaca, ainda, que

No nível cultural de desenvolvimento em que se encontravam as populações rurais,

mergulhadas no quase completo analfabetismo e no obscurantismo, a sua ideologia

só podia ter um cunho religioso, místico, que se convencionou chamar de fanatismo.

Sob esta denominação têm-se englobado os combatentes de Canudos ou do

Contestado, do Padre Cícero ou do Beato Lourenço: fanáticos. Quer dizer, adeptos

de uma seita, ou misto de seitas, que não a religião dominante (FACÓ, 1980, p.39).

Maria Isaura P. Queiroz (1965) classifica como ―movimentos messiânicos rústicos‖

experiências como Canudos, Contestado e Caldeirão. Pompa (2004) destaca que essa autora

coloca sob o rótulo do "messianismo" o que até então era chamado "misticismo" ou

"fanatismo". Nessa perspectiva, a concepção de ―movimento messiânico‖ está ligada a uma

visão escatológica de mundo, à crença na vinda de um messias, um salvador101

.

101

Arruda (1993, p. 16) destaca que ―o conceito de Messianismo está ligado à tradição judaico-cristã. No

sentido lato, todavia, o termo é usado para designar qualquer crença religiosa na vinda de um redentor, do qual

se espera o fim da ordem existente, caracterizada pelo mal e pela injustiça, e a instalação de uma nova era de

paz, justiça e felicidade‖.

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Entretanto, muitos autores refutam certa tendência de categorização dos mais diversos

movimentos religiosos populares sob o rótulo de ―messiânicos‖ e/ou ―milenaristas‖102

. No seu

estudo sobre Juazeiro do Norte, Della Cava (1976) enfatiza que

uma percepção a priori e demasiadamente rígida de todo e qualquer movimento

religioso de cunho popular como sendo necessariamente e exclusivamente

messiânico ou milenarista corre o risco de tornar-se tão restrita quanto as

interpretações [...] que tachavam quase todos esses movimentos de ‗fanáticos‘,

‗heréticos‘, ‗retrógrados‘, produtos de uma sociedade culturalmente atrasada.

(DELLA CAVA, 1976, p. 19).

Barros (1988) também refuta a ideia de que a espera pela vinda de um redentor seja a

característica primordial de movimentos que constituíram comunidades religiosas como

Canudos e Caldeirão.

É interessante que (as comunidades religiosas), esperando o ―fim do mundo‖, não se

quedam num imobilismo transcendental, mas, muito pelo contrário, partem para

uma ação de ―plantar‖ o novo mundo, de ―construir‖ a utopia do mundo do espírito

santo. Como se tivessem consciência teórica do papel histórico do homem na

construção material e espiritual de seu próprio mundo, não esperam a chegada de

Deus construtor dessa ―existência inefável‖, mas fazem eles mesmos as suas

―cidades santas‖, as cidades longe do pecado (BARROS, 1988, p. 144).

Em sua pesquisa sobre o Caldeirão, o historiador Régis Lopes Ramos (1991) ressalta

que o movimento Caldeirão não teve um caráter messiânico. ―Pelo que percebi nas várias

conversas tidas com remanescentes, [...] a ‗ideia fundamental do messianismo‘ não teve

importância na estruturação (e evolução) da comunidade. Esses sertanejos não estavam

reunidos com o objetivo de esperar a chegada de um redentor‖ (RAMOS, 1991, p. 183).

Nessa perspectiva, ainda que uma certa visão escatológica e messiânica esteja presente

em diversas manifestações do catolicismo popular, consideramos que a concepção corrente

do termo ―messiânico‖ não dá conta da complexidade de fatores envolvidos na constituição e

no desenvolvimento desses movimentos sociais. Além disso, em nossa cultura letrada, a ideia

de ―messianismo‖ frequentemente está atrelada à visão de ―fanatismo‖, à compreensão de que

esses movimentos são uma expressão do atraso e da ignorância das camadas populares rurais.

Por fim, consideramos que a designação ―messiânico‖ pode menosprezar os complexos

fatores sociais, políticos, econômicos e religiosos a partir dos quais emergiram e se

desenvolveram esses movimentos103

.

102

Guimarães (1979) aponta especificidades dos termos ―milenarismo‖ e ―messianismo‖. Segundo a autora, um

movimento será considerado milenarista se basear-se na crença de uma salvação coletiva total, iminente e final

a ocorrer aqui na Terra, salvação esta propiciada apenas ao grupo dos fiéis, únicos a escapar da completa

destruição do mundo. Por outro lado, será considerado messiânico quando entender-se que a salvação coletiva

será trazida por um messias, um redentor, um líder carismático. 103

Ressaltamos que a religiosidade, certamente, foi um elemento aglutinador na experiência comunitária do

Caldeirão, entretanto, tendo em vista a discussão levantada neste capítulo, não o designamos como um

―movimento messiânico‖. Vale destacar, ainda, que houve, de fato, outros movimentos religiosos nos quais os

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Nessa breve discussão sobre o desenvolvimento da concepção de fanatismo no

pensamento letrado brasileiro, pode-se destacar que esse é mais um conceito construído

historicamente, marcado pelo horizonte de valores das camadas letradas da sociedade. Nos

jornais que compõem o corpus da nossa pesquisa, é frequente a atribuição do termo ―fanático‖

em relação ao beato José Lourenço e sua gente. Assim, na concepção das camadas letradas da

época, o ―fanático‖ é o ―outro‖, é a representação daquilo que se opõe à ideia de civilização e

desenvolvimento e, portanto, deve ser combatido em nome do progresso.

4.3 Juazeiro do Padre Cícero

As prédicas e os ensinos missionários do Padre Ibiapina ainda ecoavam pelos sertões

quando surgiu, na região do Cariri cearense, a figura carismática do Padre Cícero Romão

Batista.

Em 1870, ano da ordenação de Padre Cícero, Juazeiro era um vilarejo, na paróquia do

Crato, com poucas casas reunidas em torno de uma pequena capela construída como devoção

a Nossa Senhora das Dores. Nessa capela, padre Cícero celebrou missa natalina, no ano de

1871. O jovem sacerdote estava voltando a sua terra natal, a cidade do Crato, onde nasceu em

1844. Aos 21 anos, Cícero Romão assumiu a vocação para o sacerdócio e entrou para o

seminário da Prainha, em Fortaleza.

Conforme Della Cava (1976), desde meados do século XIX, a Igreja passava por um

processo de reestruturação e tentativa de fortalecimento da doutrina católica. Segundo esse

autor, o objetivo desse processo era ―restaurar o prestígio da Igreja e a ortodoxia de sua fé e

remodelar o clero, tornando-o exemplar e virtuoso, de modo que as práticas e crenças

religiosas do Brasil pudessem ficar de acordo com a fé católica, apostólica e romana de que a

Europa se fazia então estandarte‖ (DELLA CAVA, 1976, p. 33).

Esse processo é conhecido como romanização e representou a submissão da igreja

brasileira a Roma, o monopólio da interpretação dos fenômenos religiosos restrito à alta

cúpula católica, total rigor e disciplina aos fieis e condenação das práticas mais populares de

catolicismo104

. O Seminário da Prainha, criado em 1864, era chefiado pelos lazaristas

franceses, ordem encarregada da doutrinação romanística dos novos sacerdotes.

aspectos messiânicos e/ou milenaristas foram preponderantes (tais como o movimento da Pedra Bonita, ocorrido

em Pernambuco, no início do século XIX, e, até mesmo, a experiência de Pau de Colher), porém, no Caldeirão,

tais aspectos não tiveram predominância. 104

Santirocchi (2010) discute o percurso histórico de constituição do conceito de romanização e defende a

necessidade de uma revisão dessa categoria.

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De acordo com Ramos (1991), no seminário, a religião popular era considerada

atrasada e, apenas, expressão de superstição e atraso. Mas, mesmo tendo recebido uma

formação que dizia que qualquer manifestação da religiosidade do povo, que fugisse ao

controle da alta hierarquia eclesiástica, deveria ser combatida, padre Cícero foi trabalhar com

o povo sertanejo, catequizando-o. E, para trabalhar ao lado do povo, padre Cícero resolve

fazer morada no lugarejo de Juazeiro.

Repositário dos princípios mais rígidos da moral sertaneja, falava aos valores mais

preciosos de sua gente, enfatizando ao mesmo tempo toda a tradição católica

moldadora daquela civilização. Relacionando os exemplos cristãos com a vida

rotineira do homem, vinculando os princípios de honradez, coragem, hospitalidade,

trabalho, resistência ao sofrimento, respeito aos mais fracos, às próprias palavras do

evangelho, à vida de Cristo e dos santos, estendia-se com os matutos horas infindas.

Dava-lhes conselhos ensinando-lhes métodos mais atualizados de agricultura,

orientando-os, numa linguagem clara, para uma forma mais agradável de

convivência (BARROS, 1988, p.174)

Com seu trabalho de evangelização, padre Cícero tornou-se uma pessoa respeitada e

estimada em toda a região. A vida simples levada pelo povo de Juazeiro atraiu muita gente e

logo novas moradias começaram a ser construídas ao redor da capela.

Neste ambiente de fé e devoção, teria ocorrido, em 1889, um fato que mudaria a vida

de Juazeiro: o milagre da hóstia sagrada. Era uma sexta-feira, mês de março, tempo da

quaresma. Segundo as narrativas em torno do milagre de Juazeiro; ainda antes do raiar do dia,

quando padre Cícero dava a comunhão a um grupo de beatas (que haviam passado a noite em

orações na capela do povoado), a hóstia sagrada se transformou em sangue na boca da beata

Maria do Araújo. O fenômeno se repetiu várias vezes, até o dia da ―Assunção de Nossa

Senhora‖, em agosto. Muitas pessoas testemunharam o fato e a notícia se espalhou. A

imprensa repercutiu o fato extraordinário. O milagre atraiu gente dos mais diversos lugares.

Iniciaram-se as romarias ao Juazeiro, ―a terra da Mãe de Deus‖.

Conforme Della Cava (1976), tais fatos acontecem sem que padre Cícero se pronuncie,

o que só ocorreu dez meses depois do primeiro milagre, através de uma carta escrita pelo

sacerdote ao bispo do Ceará, Dom Joaquim José Vieira. Como resposta, a alta hierarquia da

Igreja cobra obediência à autoridade eclesiástica e é ordenado o afastamento da beata Maria

de Araújo do povoado de Juazeiro. A ordem é desobedecida e o bispo do Ceará manda uma

comissão para averiguar os fatos. Após 34 dias de investigações, constata-se a

sobrenaturalidade dos fenômenos. Não satisfeito com o resultado, em setembro de 1891, D.

Joaquim enviou uma outra comissão encarregada de examinar o sangue derramado. Esta, em

4 dias de investigação, conclui que não havia sobrenaturalidade nos fatos.

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Nada disso diminuía as romarias ao Juazeiro. Para os sertanejos, o milagre era a

confirmação de algo que eles já sabiam: a santidade do sacerdote, que já tinha se tornado o

padrinho Cícero. Em 1892, padre Cícero foi suspenso das ordens e, em 1894, o Santo Ofício

declarou a falsidade do milagre, ordenando a destruição de todos os escritos sobre o fato,

proibindo visitas à beata, determinando que deveriam ser queimadas as relíquias do

milagre105

. A Igreja, com o intuito de reprimir as manifestações de religiosidade popular,

buscava a todo custo, denegrir a imagem do ―movimento de Juazeiro‖.

Para Padre Cícero era importante a legitimação por parte do clero, porém, para os seus

milhares de seguidores, sua santidade não dependia de leis terrenas. E Juazeiro cresceu...

Chegavam à terra do milagre famintos, doentes, desvalidos, toda a gente sofrida e de

fé, inclusive pessoas perseguidas, criminosos redimidos e cangaceiros. Conforme Barros

(1988), o povoado se expande, casas de taipa vão sendo construídas, os romeiros vão se

arranchando sem muita organização. A princípio, o destino da maioria é a rua. Como não

havia trabalho para todos em Juazeiro, o padre Cícero encaminhou peregrinos para os campos

inexplorados do Cariri, que foi se fortalecendo como um celeiro produtor.

Ao mesmo tempo em que humildes romeiros buscavam o auxílio material e espiritual

do padrinho, este também era procurado por membros das classes dominantes. Assim tem

início a rede de trocas de favores e jogos políticos caracterizaram a figura política de Padre

Cícero. Nesse sentido, Lima (1994b) enfatiza que, na experiência de Juazeiro, não houve uma

ruptura com o esquema do latifúndio. Houve, de fato, concessões e mediações feitas por padre

Cícero, que garantiram a sobrevivência do movimento de Juazeiro, mas que acarretaram na

sua captura pelas oligarquias, ao contrário de outros movimentos, como Canudos e Caldeirão.

4.3.1 O Beato José Lourenço

Um dos romeiros que chega a Juazeiro do Norte no auge das peregrinações à ―Terra

Prometida‖ é o paraibano José Lourenço Gomes da Silva, futuro líder do movimento popular

do Caldeirão. José Lourenço nasceu no município de Pilões de Dentro, Paraíba, no ano de

1870, filho de Lourenço Gomes da Silva e Tereza Maria da Conceição. Faleceu em Exu,

Pernambuco, em 1946106

. A família era descendente de negros alforriados.

105

Padre Cícero faleceu, em 1934, suspenso de suas ordens eclesiásticas. Desde 2006, tramita no Vaticano um

processo de reabilitação histórico-eclesial do padre Cícero. O processo, impetrado pela Diocese do Crato, está

sendo analisado pela Congregação para a Doutrina da Fé. 106

Há controvérsias acerca do local e data de nascimento de José Lourenço. Alguns autores afirmam que José

Lourenço teria nascido em Alagoas, em 1872. Entretanto, conforme Cordeiro (2004, p. 33), ―com base em

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As narrativas em torno de José Lourenço dão conta de que ele teria saído muito cedo

de casa, ainda adolescente, fugindo do autoritarismo do pai, e teria ido viver trabalhando em

fazendas, cuidando de animais. Passou um bom tempo, trabalhou, ganhou algum dinheiro,

comprou um bom cavalo e resolveu voltar para casa. Quando chegou, recebeu a notícia de que

sua família tinha ido em romaria a Juazeiro do Padre Cícero. Da Paraíba, ele seguiu um grupo

de romeiros e, ao som de benditos107

, chegou à ―terra do milagre‖.

Figura 2 - José Lourenço108

Fonte: Disponível em < http://www.onordeste.com> Acesso em: 10 jan. 2013.

Em Juazeiro, José Lourenço encontrou sua família e um clima de fé, devoção e

misticismo. A cidade fervilhava com a repercussão do milagre. Gente de todos os recantos

rumava para a ―cidade santa‖.

Muitos vendem o que têm em suas terras e vão morar naquela ―terra abençoada‖. Lá

chega gente para receber as graças do milagre, para vender o que o povo das

romarias precise comprar, pedir perdão de seus pecados, se esconder de algum crime

praticado, trazer doentes para se curarem naquele lugar santo. Alguns autores se

referem à cidade naquele tempo como ―um immenso lazaretto de loucos, cegos,

aleijados morféticos, todos esperando o milagre da cura‖. O povoado se expande,

incha, de forma espantosa. Os que chegam se situam de qualquer jeito, em latadas,

ranchos de palha, casas de taipa. Juazeiro tem o mesmo aspecto dos arruados de

Canudos, que tanto impressionaram os observadores do sul; ruas sem alinhamento,

ajuntamentos de pessoas descansando sob as árvores, doentes e mendigos pelas

calçadas (BARROS, 1988, p. 183).

depoimentos dos que conviveram com ele, os ‗remanescentes‘, é mais provável que ele seja natural da Paraíba,

do Município de Pilões de Dentro, nascido em 1870‖. Essa informação também é confirmada pelo fotógrafo

Luiz Maia, autor de grande parte dos registros fotográficos de José Lourenço no Caldeirão (CARIRY, 1986). 107

Cânticos religiosos populares. 108

Conforme depoimento de remanescente do Caldeirão, colhido por Cordeiro (2004), José Lourenço é descrito

com um homem elegante, que sabia vestir-se adequadamente às ocasiões. Assim, usava desde seus trajes de

beato, até ternos de linho. ―Bom, o beato morava no Caldeirão e ele passava para o Crato, pela Santa Fé montado

em um cavalo, [vestido] no linho, chapéu madeira, desses prada. Negão, meu filho. Bacana. Ele falava com todo

mundo. Nego, alto, forte‖. Depoimento de um contemporâneo do movimento Caldeirão, concedido ao

pesquisador Sávio Cordeiro (2004, p. 161).

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Todo este ambiente de religiosidade popular vai influenciar José Lourenço, que se

identifica com as práticas do catolicismo popular e vai buscar a bênção e orientação espiritual

de padre Cícero. Logo ele ganha a confiança do padrinho que recomenda que José Lourenço

faça penitência por algum tempo e depois o encaminha para o campo.

Por volta de 1894, José Lourenço se dirige ao sítio Baixa Danta, na zona rural do

Crato, na condição de arrendatário. A princípio, ele vai apenas com sua família, mas logo

outros romeiros se juntam ao trabalho.

Sua casa começa a ficar rodeada de outras moradias feitas e habitadas por famílias

de camponeses vítimas da concentração fundiária, do coronelismo. Lá, encontram

um canto para viverem do cultivo da terra. É o início da formação de uma pequena

comunidade de camponeses (RAMOS, 1991, p. 43).

Com o trabalho coletivo, o local tornou-se bastante produtivo. E os trabalhadores que

chegavam à Baixa Danta para se unir à lida com a agricultura eram, em sua maioria, enviados

pelo padre Cícero. ―O padre mandava para Baixa Danta os romeiros mais desvalidos, os

fugitivos de perseguições, aqueles que precisavam ser reeducados no trabalho, ao lado de um

exemplo de mansidão e humildade‖ (BARROS, 1988, p. 300).

Em 1914, na época da Sedição de Juazeiro109

, José Lourenço abasteceu, com

alimentos, as tropas de Juazeiro. O sítio Baixa Danta foi invadido e saqueado por tropas do

governador Franco Rabelo. Depois do conflito, o beato retomou as atividades do sítio

procurando, por meio de muito trabalho, reparar os danos causados pela invasão.

José Lourenço era visto pelos que conviveram com ele como um homem trabalhador,

bondoso e humilde. Fazia pregações, dava conselhos, orientando o povo no caminho da

caridade e da fé católica, assim, logo ele se torna o líder espiritual da comunidade: o ―beato

Zélourenço‖.

O beato ensinava o bom caminho. Pra gente não brigar. Não beber, não jogar, nem

matar, nem destruir. Era todas essas coisas mesmo que ele ensinava, que ele

ensinava todo dia. Só dava bom conselho. Só dava os bons ensinamentos (RAMOS,

1991, p.93)110

.

109

A Sedição de Juazeiro foi uma guerra civil no Ceará que envolveu um conflito direto entre tropas formadas

pela população de Juazeiro e tropas formadas por camadas populares de Fortaleza, que culminou com a

derrubada do Governo Franco Rabelo. Longe de ter sido fruto de uma ação popular, esse movimento foi a ―luta

das oligarquias agrárias, dos ‗coronéis‘, ‗acciolistas‘ e do Partido Republicano Conservador (PCR), contra os

comerciantes, ‗coroneis‘, ‗dissidentes‘, ‗liberais‘ e classe média de Fortaleza‖ (LIMA, 1994b, p. 297). A Sedição

de Juazeiro foi caracterizada, durante muito tempo, na historiografia e na imprensa, como uma guerra de

―fanáticos‖ e ―jagunços‖, liderados pelo padre Cícero. Sobre a Sedição de Juazeiro, ver Lima (1994a, 1994b). 110

Depoimento de D. Maria Lourença, remanescente do Caldeirão, concedido ao historiador Régis Lopes

Ramos.

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Em sua trajetória religiosa, José Lourenço também fez parte de um grupo de

penitentes. Esses religiosos, ainda hoje, fazem rituais de autoflagelação, em que pedem

perdão pelos pecados, rezando pelas almas do purgatório. Rezam em cemitérios, em velórios,

nas ―cruzes do caminho‖, fazem sentinelas, cantando benditos e incelenças111

.

Além das ordens de penitentes, espalhavam-se por Juazeiro do Norte muitas práticas

de religiosidade popular consideradas estranhas e perigosas aos olhos das autoridades. O

político Floro Bartolomeu112

, que exercia o ―poder de mando‖ em Juazeiro, mandou reprimir

tais movimentos, pois não queria ser visto como um representante de ―fanáticos e bandidos‖.

Assim, por volta de 1920, Floro proíbe as práticas dos grupos de penitentes113

. Era a tentativa

das elites de sufocar as expressões de religiosidade popular, vistas como retardamento social.

Foi no sítio Baixa Danta em que ocorreu o famoso episódio do ―Boi Mansinho‖,

quando o beato José Lourenço e sua gente foram acusados de ―grosseiro fanatismo‖ por

estarem adorando um boi. O deputado Floro Bartolomeu, prontamente, resolveu a questão:

mandou matar o boi e prender José Lourenço. O beato foi solto e pôde voltar à Baixa Danta

por interferência do padre Cícero e de diversos proprietários de terras vizinhas ao sítio.

Em 1926, o proprietário do sítio Baixa Danta vendeu as terras e o beato José Lourenço

foi obrigado a deixar para trás anos de trabalho, sem qualquer indenização pelas benfeitorias

realizadas no terreno.

Sob a orientação do Padre Cícero, é para as terras do Caldeirão, no sopé da Chapada

do Araripe, que partem o beato José Lourenço e sua gente.

111

―As penitências se espalharam pelos sertões mais intensamente entre os séculos XVII e XIX. As ordens de

penitentes eram grupos formados por pessoas com a direção de um líder espiritual chamado decurião. Reuniam-

se para se martirizar nos cemitérios e estradas, em certas épocas do ano. [...] Durante as disciplinas, os penitentes

costumavam cantar benditos. Passavam várias horas da noite pedindo perdão pelos pecados dos pecados por

meio de orações, benditos e autoflagelação‖ (RAMOS, 2001, p.46). 112

O médico baiano Floro Bartolomeu chegou em Juazeiro por volta de 1908 e logo se aproximou de Padre

Cícero, sobre quem exerceu forte influência política. Teve decisiva atuação política em Juazeiro e em todo o

Estado. Foi eleito deputado estadual e federal em mais de um mandato. 113

Floro Bartolomeu mandou dissolver os grupos de penitentes, proibiu suas reuniões em qualquer parte de

Juazeiro, mandou queimar cruzes e prender beatos (Cf. MONTENEGRO, 1973, p. 59).

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4.4 A experiência comunitária do Sítio Caldeirão da Santa Cruz do deserto

O beato Zé Lourenço/ Seguidor do padre Cícero/ Fez seu sonho coletivo/ Com

coragem e devoção/ Tudo era de todos/ Na fazenda Caldeirão/ O beato sofredor/ O

beato penitente/ O beato resistente/ O beato acolhedor/ Que acolheu os retirantes/

De terras distantes/ Fugidos da dor (Amélia Coelho/ Beto Lemos) 114

O sítio Caldeirão possui cerca de 900 hectares e fica no sopé da chapada do Araripe,

Distrito de Santa Fé, município do Crato115

. O nome Caldeirão é uma referência às formações

rochosas, existentes no local, em forma de grandes caldeirões que acumulam a água da chuva

e que muito contribuíam para a formação da comunidade liderada pelo beato José

Lourenço116

. O local também era conhecido como Caldeirão dos Jesuítas, pois lá teriam se

refugiado dois padres jesuítas no tempo da perseguição empreendida por Marquês de

Pombal117

. O terreno não é plano, possui uma topografia bastante acidentada, há vários

morros e depressões.

É uma região semiárida, chove pouco e de sol escaldante. A vegetação predominante

é a caatinga, formada por vegetação pequena e, geralmente, espinhosa como os

próprios nomes de suas plantas: unha d‘gato, jurema, sabiá. Aqui e acolá uma

palmeira: carnaúba, catolé, marundongo ou árvore de porte mais avantajado: angico,

aroeira, baraúna, juazeiro e pau d‘arco (CORDEIRO, 2004, p. 70).

Essas terras foram desbravadas e cultivadas através do trabalho coletivo do beato José

Lourenço e de seus seguidores. Eles chegaram ao Caldeirão em 1926, prepararam o terreno

para o plantio e se reuniram para o trabalho comunitário. Com o tempo, os esforços

começaram a dar resultados e o Caldeirão começou a florescer, ficando cheio de plantações.

Através do trabalho, o sítio prosperou. Os agricultores construíram a casa do beato, um

engenho de madeira, fizeram roçados e cercados. Com a chegada de novos trabalhadores,

rapidamente, a casa do beato foi ficando cercada de diversas moradias.

114

Letra da música Santa Cruz do Deserto: banda Zabumbeiros Cariris, 2007. 115

O Caldeirão está localizado a cerca de 20 km da sede do município do Crato. 116

Ver imagem ANEXO A. 117

A respeito da origem do termo ―Caldeirão da Santa Cruz‖, contam as narrativas populares que esses jesuítas

teriam morrido de fome e sede ao pé de uma baraúna, árvore comum na região. Anos mais tarde, um morador do

local queimou a árvore, pois estava com fome e queria pegar um enxame de arapuá (espécie de abelha) que

estava na copa da baraúna. Cessado o fogo, no lugar em que ficava a árvore, apareceu uma cruz. ―Aquilo era

uma cruz bem feita. A gente comparava e já dava vendo. Nascia todo mato quando chegava o inverno. Mas

quando chegava no pé da Baraúna, tava essa cruz, que fica no chão por obra da natureza‖ (Depoimento de

Alípio Gomes da Rocha, contemporâneo do Caldeirão, concedido a Cordeiro( 2004, p.128) ). Cordeiro (2004)

destaca, ainda, que o termo ―Caldeirão da Santa Cruz‖ também pode ter outra simbologia, ligada ao sentimento

de pertença a uma ―irmandade‖ que cultivava a devoção à ―cruz‖, cuja significação está ligada à missão de Jesus

Cristo. A caracterização ―do Deserto‖ deve-se à aridez do lugar. Assim, o sítio também é conhecido como

―Caldeirão da Santa Cruz do Deserto‖.

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100

Figura 3 – Sítio Caldeirão (2012)

Fonte: Arquivo ―Projeto Caldeirão Vivo‖ 118

.

Em artigo publicado no jornal O Povo, em 7 de junho de 1934119

, um amigo do beato,

o farmacêutico e jornalista cratense José Alves de Figueiredo, fala da prosperidade do sítio.

Os morros, que podem ser vistos na imagem acima, ficaram carregados de plantações:

Vi ao longo das estreitas grutas que ficam abaixo de dois reservatórios (d'água),

alargados a picareta, um desenvolvido canavial, 400 pés de laranjeiras, 100 de

jaqueiras, limeiras, ateiras, bananeiras, jaboticabeiras, coqueiros, umbuseiros,

romeiras, fruta-pão, guabirabeiras, jambolões, mamoeiros, eucaliptos, plantação de

piteira, palmatória capins, tudo tratado com esmero. Aos lados, trepando pelos altos,

grande plantação de algodão (FIGUEREIDO, 1934, p.9).

A comunidade prospera e cresce tomando-se um refúgio para o povo necessitado.

Chegavam ao sítio muitos trabalhadores rurais e suas famílias, fugindo do esquema de

exploração a que eram submetidos nas fazendas da região.

Juazeiro, já cidade120

, continuava a fervilhar com a chegada de peregrinos em romaria.

Eles buscavam a orientação de padre Cícero e muitos eram encaminhados pelo padre ao sítio

Caldeirão.

118

Registro da XII Romaria ao Caldeirão do Beato José Lourenço. 119

Este artigo também compõe o corpus de textos de nossa análise. 120

Em 1911, Juazeiro do Norte havia adquirido sua emancipação política e teve como primeiro prefeito o Padre

Cícero Romão Batista.

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Meu Padim Cícero, todo mundo que chegava em Juazeiro que era trabalhador da

roça, ele botava pra trabalhar com ele (o beato José Lourenço), desde o tempo de

Baixa Dantas que o povo que trabalhava com ele, já era meu Padim Cícero que

botava..‖ (CORDEIRO, 2004, p 31).121

No Caldeirão, os sertanejos encontravam uma vida de trabalho e oração. Seguindo os

preceitos cristãos de igualdade, todos trabalhavam pelo bem comum: os meios de produção

eram coletivos e o resultado dos trabalhos era dividido entre todos. Os trabalhadores

elaboraram uma nova forma de organização social. Todos tinham suas tarefas, suas

obrigações, e, com muita reza e esforço, colhiam os frutos do trabalho.

A vida lá no Caldeirão era de penitente. Vida de penitente e trabalho. Tinha dia que

a gente rezava a noite inteirinha... durante o dia era pra trabalhar na agricultura. Os

homens trabalhava num canto e as mulher noutro.. tinha várias roça. Era de feijão,

algodão, arroz... No trabalho era tudo unido. O povo lá não tinha luxo, só vivia do

trabalho e da oração... Eu achava bom porque era um regime do meu Padim Cirço,

eu gostava demais. Tinha muita fartura, todo mundo comia bem. Vivia todo mundo

feliz. (RAMOS, 1991. p.12). 122

Importante destacar que o termo ―penitente‖, na concepção dos adeptos do catolicismo

popular, não possui um caráter negativo, pelo contrário, a penitência é vista como um

caminho para a salvação. A recompensa pelo trabalho era, além do alimento, a dignidade do

trabalhador, a certeza de estar garantindo como o seu suor e sua fé o suprimento de suas

necessidades materiais e espirituais. Uma das acusações empreendidas contra o beato era que

ele exploraria o trabalho dos ―crentes fanáticos‖, entretanto, nas memórias de remanescentes,

do Caldeirão, a comunidade é lembrada como um lugar onde o trabalho era coletivo e os

frutos divididos entre todos.

Ele (o beato) não era de dizer: fico ali olhando, não. Ele era trabalhador. Ele

trabalhava de foice, de machado, de enxada. Mas, ele não era pessoa de dizer assim:

eu quero o bom pra mim e ruim pro outro, não. Ele dizia mesmo: -Vocês trabalha

aqui. O que é de um, é de todos. Aqui não tem reserva. Não tem isso de um querer

ser melhor do que o outro, um querer ser mais merecido que outro. Se um é branco,

outro é preto, tudo é uma coisa só. Tudo é uma igualia só (RAMOS, 1991, p76)123

.

Sob a orientação do beato José Lourenço, logo foram se unindo aos trabalhos mais

vítimas da concentração fundiária e o sítio foi ganhando novas atividades produtivas. Para

somar forças, chegaram à comunidade sertanejos com os mais diversos ofícios: pedreiros,

carpinteiros, ferreiros, ceramistas, e, mais tarde, até mesmo, professoras.

Conforme Ramos (1991), no sítio, foram construídos dois açudes e um engenho, que

garantia a produção de mel e rapadura. Também havia as casas de farinha, onde o povo fazia

121

Entrevista com Marina Gurgel, remanescente do Caldeirão, concedida a pesquisadores do IPESC, Instituto de

Pesquisas Sócio-Culturais, de Juazeiro do Norte, em dezembro de 1990. 122

Depoimento de D. Maria Lourença, remanescente do Caldeirão, concedido ao historiador Régis Lopes

Ramos. 123

Depoimento de D. Maria de Maio, remanescente do Caldeirão, concedido ao historiador Régis Lopes Ramos.

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farinha, beiju e tapioca. Foram instaladas diversas oficinas, entre elas uma oficina de ferreiro,

assim as próprias ferramentas de trabalho, como enxadas e pás, eram produzidas na

comunidade. Objetos de cerâmica e barro também começaram a ser feitas no Caldeirão.

Além disso, havia pessoas especializadas em curtir o couro para fazer chinelos,

sapatos e arreios de animais e outras que faziam cestas e objetos utilitários de cipó. A

comunidade contava até com teares manuais, onde as mulheres produziam tecidos, com o

algodão plantado no Caldeirão, e faziam redes, mantas e toalhas. Também eram plantadas

ervas de uso medicinal, as quais eram utilizadas para o tratamento de doenças. Havia, ainda, a

criação de uma diversidade de animais.

Na palavra da literatura de cordel, a seguir, temos uma descrição da prosperidade da

comunidade.

O Caldeirão passa a ser

Uma terra produtiva

Comunidade bonita

Organizada e ativa

Sem nenhuma violência

Sendo bastante atrativa

Ali muito produzia:

Banana, manga, limão,

Milho, batata, café,

Laranja, arroz, algodão,

Mandioca, macaxeira,

Goiaba, cana e feijão.

Era quase independente

Tinha tudo que queria

Gente trabalhando em barro,

Outros em carpintaria

Os ferros para o cultivo

Também lá se produzia (GOMES, 1992, p.6)124

.

Quase tudo de que precisavam era produzido na própria comunidade e era distribuído

aos moradores, conforme as necessidades de cada um. O excedente da produção agrícola era

vendido para comprar o que não era produzido no sítio. O Caldeirão tornou-se uma

comunidade autossustentável, que chegou a reunir cerca de 1.500 trabalhadores, organizados

em torno do trabalho coletivo. Nas narrativas de quem viveu no Caldeirão, a comunidade é

lembrada como um lugar de fartura e abundância, em contraste com as privações vivenciadas

por grande parte dos sertanejos.

Lá era uma casa de barriga cheia, de fartura, lá não faltava nada pra ninguém, graças

a Deus. Era tudo de barriga cheia, todo dia matava boi. As panelas de comer eram

dois homens pra botar uma no chão, pra baixo; os cafés era uma chaleira de dez

litros de água (CARIRY, 1986)125

.

124

Folheto escrito pelo historiador e cordelista Paulo de Tarso B. Gomes. 125

Depoimento de remanescente do Caldeirão (CARIRY, 1986).

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Com o desenvolvimento da experiência comunitária, o povo do Caldeirão iniciou, em

1931, a construção de uma capela. O desejo do beato José Lourenço e de seus seguidores era

que viesse um padre para celebrar missas, casamentos e batizados na comunidade. Todos

ajudavam no serviço de construção da capela.

A construção da capela chamou a atenção da Igreja e será um dos motivos para, mais

tarde, o beato José Lourenço ser acusado de heresia, já que se espalhou o boato de que o beato

dirigiria as missas e os sacramentos, num claro desrespeito às autoridades eclesiásticas. Essa

capela, que existe ainda hoje no sítio Caldeirão (ver Figura 3), é consagrada a Santo Ignácio

de Loiola, fundador da Ordem dos Jesuítas. Em relatório produzido após a invasão policial ao

Caldeirão, o Tenente José Góes de Campos Barros, assim descreve a construção da capela que

estava sendo erguida pela gente do Caldeirão126

.

A nossa visita interrompeu, em meio, a construção de um templo; nos ombros de um

negro fanatismo, as suas paredes se erguiam vertiginosas, como por força de um

milagre; é que o trabalho raramente se interrompia, mesmo durante a noite:

penitentes infatigáveis, sacrificando as horas do repouso, aliviavam a consciência

sob o peso de caixões de areia ou blocos de granito. Deveria ser um espetáculo

comovedor (BARROS, 1937, p.31).

Na descrição do militar, ficam evidenciadas algumas das acusações empreendidas

contra a comunidade, que era vista como lugar de exploração da mão de obra de ―fanáticos‖,

adeptos de práticas de ritos fetichistas.

Entretanto, no seu dia a dia, o povo do Caldeirão vivia as práticas do catolicismo

próprias do universo sertanejo, com orações, procissões, novenas, ladainhas, sentinelas e dias

santos. A religiosidade era um fator de união entre os membros da comunidade. Assim como

o trabalho, as rezas eram diárias. A casa do beato José Lourenço tinha um cômodo com uma

parede cheia de imagens de santos; era o quarto de oração, onde os caldeirenses faziam suas

preces. Em outras ocasiões, aconteciam as procissões: o beato botava a Santa Cruz no ombro

e saía em cortejo cantando benditos e o povo o acompanhava cantando e rezando.

Conforme relatos dos remanescentes do Caldeirão, o beato ensinava que ninguém era

obrigado a trabalhar nem a rezar, porque a penitência só servia se feita de coração. E todos

trabalhavam e rezavam para buscarem proteção para a luta aqui na Terra e para alcançarem a

salvação. No Caldeirão, o povo vivia a prática dos preceitos cristãos, ao contrário da igreja

oficial que estava distante da realidade das camadas populares.

126

O relatório de polícia sobre a invasão ao Caldeirão, que representa as vozes oficiais sobre esse movimento, é

tratado no item 4.5 deste capítulo.

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Figura 4 – Beato José Lourenço

Fonte: Disponível em < http://culturacrato.blogspot.com.br> Acesso em 12 jun.2013.

Era também um costume os habitantes do Caldeirão usarem um rosário pendurado no

pescoço para dar proteção. Após, a morte de Padre Cícero, em 1934, o povo do Caldeirão

passou a utilizar preto em sinal de luto pela morte do patriarca de Juazeiro.

Sob a liderança do beato José Lourenço, a lida com a roça continuava. Foram

construídos grandes armazéns, onde os alimentos eram guardados. Tudo corria bem na

comunidade, até que, com a Revolução de 30, o beato José Lourenço foi apontado como um

elemento perigoso à ordem. Ele teve que se ausentar do sítio, que foi invadido e saqueado.

Depois de convencidos da improcedência das acusações, as tropas getulistas cessaram a

perseguição ao beato, que voltou para o Caldeirão e, com muito trabalho, reconstituiu os

danos sofridos127

.

No ano de 1932, uma seca castigou o Nordeste. Levas de retirantes saíam à procura de

sobrevivência. Sob o pretexto de ajudar os sertanejos, o governo criou frentes de serviço, que,

na realidade, tinham a função de controlar possíveis revoltas dos flagelados, que poderiam

127

Nessa ocasião, os tenentistas receberam a denúncia de que o beato José Lourenço obtivera armas importadas

da Alemanha e preparavam seu povo para uma ação violenta. Entretanto, as ditas armas, em verdade, eram três

imagens de santos (Santo Inácio, Nossa Senhora da Conceição e São José) que haviam sido encomendadas por

José Lourenço.

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invadir as cidades e saquear o comércio. Estas frentes ficaram conhecidas como ―campos de

concentração‖ ou ―currais‖.

De acordo com Ramos (1991), no Ceará, foram criados seis campos de concentração:

Fortaleza, Patu, Quixeramobim, Cariús, Ipu e Crato (Buriti). Os sertanejos eram enviados para

os campos e muitos acabavam morrendo por doenças, que se espalhavam pelas precárias

condições de higiene do lugar, e por subnutrição, já que, se o governo enviava alimentos,

estes eram desviados e só chegava aos flagelados uma farinha de péssimo valor nutritivo.

Em contraponto a estes crimes praticados pelo governo em forma de

―assistencialismo‖, na seca de 1932, muitos flagelados buscaram ajuda no sítio Caldeirão.

Seguindo o preceito cristão da fraternidade, o beato José Lourenço e sua gente acolheram e

alimentaram diversos retirantes.

O Beato José Lourenço sustentou durante os 23 meses da seca última, além do

pessoal que vive com ele de ordinário e a que já me referi, mais de 500 pessoas que

recorreram a sua munificente ação. Pra levar a cabo esta tarefa, de um filantropismo

tão fora do comum, de uma invulgar benemerência, ele gastou grandes depósitos de

cereais que tinha em Caldeirão e toda a farinha produzida em 600 tarefas de

mandioca de sua cultura na Serra do Araripe, a qual, vendida daria uma bela fortuna.

Fornecia uma única refeição diária, mas, somente nesse jantar, eram empregadas 5

quartas de farinha, ou sejam, 400 litros. Quem seria, em nosso meio, capaz de tão

desusado, tão estupendo gesto de caridade? (FIGUEIREDO, 1934, p.9).

Conforme Ramos (1991), depois da seca, muitos dos retirantes, vendo a vida levada

pelo povo do Caldeirão, se uniram aos trabalhos comunitários e resolveram fazer morada no

sítio. Assim, a população do Caldeirão cresceu consideravelmente. Com o crescimento

demográfico e o progresso agrícola do Caldeirão, as perseguições à comunidade se

intensificaram. Cada vez mais trabalhadores rurais chegavam ao Caldeirão, muitos atraídos

pelas prédicas de Severino Tavares, que andava pelos sertões, pregando o evangelho, o final

dos tempos e exortando os sertanejos a irem ao Caldeirão da Santa Cruz do Deserto: um lugar

de trabalho e oração. Conforme já destacado, Severino era comboieiro e vivia peregrinando

pelas cidades do sertão. Passava algum tempo no Caldeirão, depois, saía para suas longas

andanças128

.

Levas de trabalhadores rumavam para o Caldeirão. O crescimento do movimento

assustou Igreja, Estado e os proprietários de terras. Os latifundiários viam perder sua mão de

obra barata, pois os sertanejos, ao invés de se submeterem à exploração servil nas fazendas da

região, iam trabalhar no Caldeirão, onde o sistema econômico era coletivo e igualitário. Para o

Estado, a comunidade poderia representar um foco de insurreição, uma ―célula comunista‖. A

128

Lembremos que o movimento Pau de Colher, na Bahia, teve sua origem ligada às peregrinações de Severino

Tavares, conforme discutido no item 4.1.

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igreja, em sua perseguição às práticas do catolicismo popular, via a experiência do Caldeirão

como um ultraje, um ato de fanatismo que fugia ao seu controle e deveria ser combatido.

A partir da década de 1930, intensificam-se as investidas contra o Caldeirão, através

de uma campanha de difamação da imagem do beato José Lourenço, que era acusado, dentre

outras coisas, de feitiçaria, heresia, fanatismo, promiscuidade - diziam que ele possuía um

harém e era molestador de moças. Também acusavam o beato de explorar a ―ignorância‖ e o

―retardamento‖ dos camponeses, usando-os para enriquecimento próprio.

No dia 20 de julho de 1934, morre o padre Cícero. O Cariri cobre-se de luto. Em

testamento, o padrinho não deixou as terras do sítio Caldeirão para o beato José Lourenço e

seus seguidores, mas sim, para a Ordem de São Francisco de Sales, os Salesianos. A situação

se agravou para o povo do Caldeirão, pois os herdeiros resolveram tomar as terras que lhes

eram de ―direito‖.

Norões Milfont, deputado estadual pela Liga Eleitoral Católica (LEC), contratado

como advogado dos Salesianos, é apontando em diversos estudos como articulador de uma

―campanha‖ empreendida no intuito de denegrir a imagem do movimento Caldeirão. A

comunidade foi comparada a uma ―nova Canudos‖ e apontada como um perigo ao Estado e à

ordem estabelecida, pela sua ―tendência comunista‖. Nas missas do Cariri, os padres

alertavam para o perigo daquele ajuntamento de ―fanáticos e hereges‖ e conclamavam os fieis

a se protegerem do ―comunismo ateu‖.

4.4.1 A invasão ao Caldeirão

As acusações contra José Lourenço objetivavam criar um clima que justificasse a

destruição do Caldeirão. A polícia, então, decidiu enviar um militar, o Capitão José Gonçalves

Bezerra, para espionar o sítio Caldeirão129

. José Bezerra chegou disfarçado de industrial

interessado em investir na cultura da oiticica da região. O policial foi bem recebido pelo beato

José Lourenço e seu povo, que lhe mostraram a experiência comunitária desenvolvida no

sítio. Após conhecer o Caldeirão, o capitão José Bezerra alertou os seus superiores sobre o

perigo que representava aquele ―ajuntamento de fanáticos‖. Segundo o Capitão Cordeiro

Neto, Chefe de Polícia do Estado à época, após a visita ao Caldeirão, José Gonçalves Bezerra

concluiu: ―ou o governo toma uma providência imediata, ou teremos um novo Canudos‖

129

Conforme Alves (1994, p. 135), o capitão José Gonçalves Bezerra era um dos ―maiores bandidos-autoridade‖

de que se tem notícia no estado do Ceará. ―Conhecido na região como um implacável caçador de cangaceiros,

sendo na verdade um deles só que escondido por trás da farda policial.‖

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(CARIRY, 1986).

Conforme Holanda (1983), em 1936, numa reunião, em Fortaleza, da qual

participaram o Governador Menezes Pimentel, o Secretário de Estado, Andrade Furtado130

, o

deputado estadual, Norões Milfont, o Chefe de Polícia, Cordeiro Neto, o Delegado da Ordem

Pública e Social, José Góes de Campos Barros, e o Bispo do Crato, Dom Francisco de Assis

Pires, ficou decidida a invasão policial e a destruição da comunidade do Caldeirão.

Lembremos que essa decisão era respaldada por dispositivos legais do Governo Vargas, os

quais legitimavam ações de combate a supostos ―focos de ameaças à ordem‖.

Na noite do dia 9 de setembro de 1936, saiu de Fortaleza rumo ao Crato uma tropa de

militares, armados de fuzis e metralhadoras, com a missão de destruir o "foco de fanatismo e

ameaça comunista" que, segundo as autoridades, desenvolvia-se no sítio Caldeirão. A tropa

era chefiada pelo Capitão Cordeiro Neto e pelo Capitão José Gonçalves Bezerra.

Ao raiar do dia 10, os militares chegavam a seu destino. O beato José Lourenço já

tinha sido avisado da invasão e se embrenhou pelas matas da Chapada do Araripe. O povo do

beato, pacificamente, recebeu os invasores.

Os camponeses entregaram as únicas armas que tinham: foices, enxadas, machados,

seus instrumentos da luta diária com a terra. Os caldeirenses reconheceram chefiando os

militares aquele homem que, há poucos dias, havia sido recebido no sítio, o capitão José

Bezerra. Conforme o relatório da polícia, o secretário do beato, Isaías, cordialmente recebeu

os militares e, até mesmo, ofereceu-lhes um almoço.

Num rápido recenseamento feito pelos militares constatou-se que 75% dos moradores

do Caldeirão eram naturais do Rio Grande do Norte, 20% eram de Alagoas, Pernambuco,

Paraíba, Maranhão e Piauí e apenas 5% eram cearenses. Alguns jornais chegaram a levantar a

suspeita de que o fato de a maioria dos habitantes do Caldeirão ser potiguar poderia ser um

indício de que no sítio escondiam-se comunistas, que teriam vindo do vizinho estado, onde,

em 1935, tinha sido deflagrado o movimento revolucionário da Intentona Comunista.

De acordo com Barros (1937), o Capitão Cordeiro Neto mandou reunir todos na casa

do beato e disse que o Estado não poderia permitir aquele agrupamento perigoso. Ordenou

que cada um voltasse para o seu lugar de origem, levando o que lhe pertencia. As famílias

teriam cinco dias para abandonar a região e os solteiros, três. O capitão ofereceu passagens de

trem ou de navio, o que foi prontamente rejeitado pelos trabalhadores. E, segundo o relatório

do tenente José Góes de C. Barros, os moradores do Caldeirão afirmavam que não podiam

130

Andrade Furtado era redator do jornal O Nordeste, porta-voz da Liga Eleitoral Católica (LEC).

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conduzir bens porque tudo que estava ali era de todos, mas não tinha dono. Barros (1937,

p.33) destaca, também que, no Caldeirão ―o dinheiro não tinha expressão, porque ninguém

precisava dele‖.

Segundo depoimento de remanescentes, o Caldeirão era um zelo: jardins floridos, as

plantações verdejantes, os animais bem cuidados, armazéns carregados de mantimentos, cerca

de quatrocentas casas, uma capela em construção, um engenho, dois açudes, uma casa de

farinha, oficinas de trabalho, enfim, os 10 anos de luta com a terra já tinham construído um

patrimônio coletivo. Diante da pacífica resistência dos moradores, os militares resolveram

destruir as casas e se apropriar dos bens da comunidade.

Os caldeirenses foram expulsos do sítio, outros foram torturados e presos, levados para

Fortaleza. Grande parte dos moradores do Caldeirão se dispersou e teve que buscar auxílio de

parentes e amigos, outra parte se refugiou na chapada do Araripe. No Caldeirão, a polícia

deixou um destacamento militar, comandado pelo capitão José Gonçalves Bezerra, para

"manter a ordem" e impedir a reorganização da comunidade religiosa.

Muitos camponeses se refugiaram entre as regiões conhecidas como Mata dos Cavalos

e Curral do Meio, na Serra do Araripe. Eles acamparam, em meio à floresta, e se abrigaram

em improvisadas latadas. O beato também ficou na serra, mas, por segurança, não se fixava

em um só lugar.

4.4.2 O confronto na Serra do Araripe

Severino Tavares, considerado "profeta do Caldeirão", ainda antes da destruição do

sítio, tinha sido preso quando fazia suas pregações religiosas pelo interior do Ceará. Severino

foi levado para Fortaleza, onde foi encarcerado, ao lado de presos acusados de comunistas,

conspiradores contra o governo. Ele também foi acusado de comunismo131

.

Depois da destruição do Caldeirão, Severino Tavares foi posto em liberdade e foi

juntar-se aos camponeses refugiados na Serra do Araripe. O novo agrupamento de

camponeses também começa a chamar a atenção das autoridades. No mês de abril de 1937, o

jornal O Crato publicou uma matéria sobre o acampamento dos camponeses na serra do

131

O escritor cearense Jáder de Carvalho relata que conheceu Severino Tavares na prisão, em Fortaleza, quando

também foi preso sob acusação de comunismo, em 1936 (CARIRY, 1986).

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Araripe, alertando as autoridades sobre o perigo daquela ―concentração de fanáticos‖ 132

.

Severino Tavares chega à Serra do Araripe e vai ajudar no abastecimento de alimentos

para o acampamento. Ele era muito influente e querido - muitos dos camponeses tinham

chegado até ali atraídos por suas prédicas. Também já era bastante conhecido das autoridades.

Neste período, espalharam-se boatos de que os "fanáticos do beato José Lourenço,

chefiados por Severino Tavares", iriam invadir a cidade do Crato. No dia 9 de maio de 1937,

o Capitão Cordeiro Neto, Chefe de Polícia do Estado, recebeu um telegrama do deputado

Norões Milfont, comunicando que um secretário do beato José Lourenço ameaçara atacar uma

fazenda a poucas léguas do Crato. Como resposta, na manhã do dia 10 de maio, conforme

amplamente divulgado pela imprensa da época, seguiram do Crato rumo à região da Serra do

Araripe, onde acampavam os refugiados do Caldeirão, 11 praças sob o comando do Capitão

José Bezerra, um velho conhecido do povo do Caldeirão133

.

Próximo à localidade de Cruzeiro, o Capitão José Bezerra e mais seis militares

embrenharam-se pelas matas em busca dos camponeses. É aí que aconteceu violento

confronto entre os caldeirenses e a polícia. Com foices e cacetes, um grupo de camponeses

reagiu contra os policiais. Dos sete militares que travaram luta com os romeiros, apenas três

escaparam com vida. Morreram, no conflito, o capitão José Bezerra, o sargento Anacleto, o

cabo Benigno e o soldado Josafá. Não há informações precisas sobre o número de

camponeses que teriam morrido neste confronto134

.

Foi o estopim; as primeiras páginas dos jornais estampavam a tragédia: ―a chacina

cometida, na Serra do Araripe, pelos fanáticos do Caldeirão". O espírito corporativista da

polícia exigia uma reação imediata. Fortaleza chora os militares mortos, que são

representados como heróis, vítimas de uma emboscada de ―sanguinários fanáticos‖. No dia 11

de maio, 30 homens saíram de Juazeiro para sitiar os seguidores do beato. O Governo do

Estado mandou de Fortaleza uma companhia do 1º batalhão de combate e uma Seção de

132

O jornal O Crato era ligado à LEC (Liga Eleitoral Católica). Apresentava-se como um semanário político e

noticioso. Circulou de 1935 a 1939 e teve como redator-chefe Alexandre Arraes de Alencar. Esta matéria foi

transcrita e publicada pelo jornal O Povo, em 12 de maio de 1937, e também constitui o corpus desta pesquisa. 133

O capitão José Gonçalves Bezerra foi o enviado para espionar o Caldeirão antes da invasão em 1936. Além

disso, ele foi um dos líderes da invasão ao Caldeirão e ficou no comando da tropa encarregada de impedir a

reorganização da comunidade. 134

Segundo depoimento, concedido ao historiador Régis Lopes, por Eleutério Tavares, filho de Severino

Tavares, seu pai teria sido morto neste confronto (RAMOS, 1991). Essa informação, portanto, nega a

informação, divulgada por diversos autores, de que Severino Tavares teria ido se juntar ao povo de Pau de

Colher, na Bahia.

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110

Metralhadoras da Força Pública. Também foram enviados reforços da 7ª Região Militar e do

23º Batalhão de Caçadores. Enquanto isso, a imprensa ecoava um discurso hegemônico que

justificava a limpeza e dizimação do ―antro de fanáticos‖. O jornal O Crato, por exemplo,

defendia que ―a captura do grupo, ou mesmo seu extermínio, é de todo imprescindível‖ (O

Crato, 15/5/1937). A repressão foi intensa, entretanto o número de vítimas da violência

policial na Serra do Araripe é bastante controverso135

.

A perseguição se alastrou pelos estados vizinhos, os camponeses que tentavam fugir

acabavam sendo surpreendidos nas divisas. O beato José Lourenço e algumas famílias

conseguiram escapar dessa perseguição. Diversos estudiosos apontam que é possível que

alguns remanescentes do Caldeirão tenham ido para o interior da Bahia, integrar-se ao povo

de Pau de Colher.

Mais tarde, no ano de 1938, o beato José Lourenço recebeu autorização para voltar ao

Caldeirão, desde que não se envolvesse com seguidores. O beato e um pequeno número de

agricultores voltaram ao sítio e reiniciaram as atividades agrícolas. As terras do Caldeirão já

começavam a florescer e a produzir novamente, quando os herdeiros legais do sítio, os

Salesianos, expulsaram definitivamente José Lourenço e seus companheiros do Caldeirão. O

beato, mais uma vez, teve que abandonar os frutos do seu trabalho e ir embora.

De acordo com Cordeiro (2004), para tentar amenizar o roubo que cometeu contra o

povo do Caldeirão na invasão em 1936, a polícia fez o depósito de uma parte da quantia

obtida com a venda dos bens do Caldeirão. Com este dinheiro, José Lourenço comprou um

sítio, onde foi viver, em Exu, Pernambuco: o sítio União.

Agora, proprietário da terra em que trabalhava e cauteloso para não receber muitos

romeiros, José Lourenço não foi mais importunado pelas autoridades e conseguiu desenvolver

135

Muitos estudiosos afirmam que, nesta ocasião, houve uma grande chacina na Serra do Araripe, inclusive com

bombardeio aéreo, que teria matado centenas de camponeses. Entretanto, recentemente, esta versão vem sendo

questionada. Conforme o Prof. Dr. Domingos Sávio Cordeiro, da Universidade Regional do Cariri (URCA), as

pesquisas feitas em livros, monografias, trabalhos publicados em congressos nacionais e internacionais e,

principalmente, os depoimentos dos remanescentes da comunidade do Caldeirão revelam que ‗não houve o

massacre‘: ―não há documentos, resquícios arqueológicos, nem registro de depoimentos orais que confirmem a

versão da suposta chacina‖ (CORDEIRO, 2013). Essas informações foram enviadas pelo Departamento de

História da URCA ao Ministério Público Federal, em um processo de investigação do suposto massacre do

Caldeirão (VICELMO, 2011). Também há depoimentos de estudiosos que questionam a existência do

bombardeio aéreo em documentário sobre o Caldeirão, produzido pela TV Assembleia (CEARÁ, 2009).

Ressaltamos que é importante esse questionamento à versão do bombardeio e da ―chacina‖ do Caldeirão,

entretanto a repressão do Estado ao movimento é inegável. Além disso, destacamos que a grande violência

cometida foi a destruição da comunidade (o impedimento da continuidade daquela experiência comunitária onde

―tudo era de todos e nada era de ninguém‖) e, ao longo da história, a reprodução de vozes que criminalizaram o

beato José Lourenço e o povo do Caldeirão.

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seu trabalho agrícola ao lado de pequeno número de camponeses. Em 1944, José Lourenço

moveu uma ação judicial contra o Estado, cobrando indenização pelos bens saqueados e

destruídos e pela agressão sofrida136

. Não ganhou a causa.

No dia 12 de maio de 1946, o beato José Lourenço faleceu de peste bubônica, no seu

sítio União, em Exu. Seu corpo foi trazido por seus seguidores, ao som de benditos, numa

viagem a pé, até Juazeiro do Norte, distante 80 km de Exu. O beato José Lourenço foi

enterrado no cemitério do Socorro, ao lado da igreja onde fica o túmulo de Padre Cícero.

4.5 A voz oficial: o Relatório de Polícia

―Como rezes bravias num curral, homens, mulheres e crianças se comprimiam, uns

contra os outros, olhando-nos com ódio e temor; a severidade dos semblantes, a

atitude reservada e a uniformidade negra das indumentárias, não deixavam de

empreender à cena uma grandiosidade lúgubre e triste, como uma expectativa de

catástrofe‖ (BARROS, 1937, p.24)137

.

Essa descrição do povo do Caldeirão consta em um relatório produzido por um dos

comandantes da intervenção policial na comunidade, o Delegado da Ordem Política e

Social138

, Tenente José Góes de Campos Barros139

. O relatório, que objetiva justificar a

operação de destruição do Caldeirão, foi publicado na imprensa da época140

e, em abril de

1937, em um livro intitulado A Ordem dos Penitentes: Exposição, editado pela Imprensa

Oficial do Ceará. No relatório, o militar defende que, no Caldeirão, sob o jugo do beato José

Lourenço, os sertanejos constituíram uma irmandade da Ordem dos Penitentes, daí o título da

obra141

.

O relatório de polícia traz detalhes sobre a diligência de invasão ao Caldeirão e

também sobre a forma de organização da comunidade, inclusive com a presença de diversas

fotografias. O livro possui 40 páginas, divididas em seções: Governo e responsabilidade/

Antecedentes/ A Ordem de Penitência e a Polícia/ A diligência/ Conclusão.

136

Representaram José Lourenço nesta ação os advogados Antônio de Alencar Araripe e Ademar Távora. Este

último escreveu, em 1937, no jornal O Povo, um artigo que compõe o corpus desta pesquisa.

138

A Delegacia de Ordem Política e Social do Ceará (DOPS-CE) foi criada pela lei n. 130, de 30 de julho de

1936, com o intuito de reprimir as ideias comunistas que haviam deflagrado intentonas como as de 1935 no Rio

Grande do Norte, Pernambuco e Distrito Federal. Em setembro de 1937, o interventor Menezes Pimentel

extinguiu a Chefatura de Polícia e recriou a Secretaria de Polícia e Segurança Pública (ARQUIVO NACIONAL,

2011). 139

O militar José Góes de Campos Barros nasceu em Flores, PE, em 1907, e faleceu em Fortaleza, CE, em 2006. 140

O relatório foi publicado, ao longo de edições do jornal O Estado, em maio de 1937. 141

Vale destacar que, segundo relatos de remanescentes do Caldeirão, na comunidade não havia uma Ordem de

Penitentes, com rituais de autoflagelação.

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112

Figura 5 – Capa do livro A Ordem dos Penitentes

Fonte: Barros (1937)

O relatório foi feito por ordem do Chefe de Polícia, Capitão Cordeiro Neto, com o

objetivo de que ficassem ―devidamente conhecidas a justificada expectativa de um perigo

futuro e a lisura com que a Polícia se houve no cumprimento dos seus deveres‖, conforme

registrado em documento da Chefatura de Polícia, presente na abertura da obra. O Tenente

José Góes de Campos Barros, assim justifica, em seu relatório a destruição do sítio.

A verdadeira História da Humanidade é a história das elites; a massa anônima é

apenas material de construção - não pode dirigir [...] Canudos, Contestado e Joazeiro

lembram retrocesso e sangue. O governo inteligente e intencionado [...] viu e

impediu a formação de uma tragédia futura no sertão sofrido. [...] O Governo

resolveu pôr fim àquele núcleo de fanáticos, pela razão muito forte de que, mais

cedo ou mais tarde, poderia ser explorado por um qualquer ambicioso, inteligente e

audaz, criando-lhe imprevisíveis embaraços, tanto mais quanto já temos os tristes

exemplos de Joazeiro, Contestado e Canudos, onde sofreu revezes o próprio

Exército vencedor do Paraguai. (BARROS, 1937, p.4,30).

Nesse sentido, no relatório, o Estado defende a legitimidade de suas ações e retoma os

sentidos construídos sobre outros movimentos sociais, como Canudos e Contestado. A

exposição feita pelo Delegado da Ordem Política e Social é uma fonte para o acesso às vozes

oficiais, à visão que as autoridades e a intelectualidade da época, fundamentada por correntes

de pensamento evolucionistas e deterministas, tinham sobre a religiosidade popular. ―Em

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113

pleno século vinte, quando a humanidade parece prestes a chegar à ordenada máxima da

civilização, esta forma grotesca de expansão mística deve, forçosamente, classificar-se no

passado, entre os fenômenos mortos na evolução humana‖ (BARROS, 1937, p.4).

A partir de um horizonte social de valores que considera as manifestações da

religiosidade popular como expressão de ―retardamento social‖, o autor apresenta os

antecedentes do movimento Caldeirão e descreve o José Lourenço como um ―sedutor

fetichista‖.

Há cerca de dez anos se vinha criando, na fazenda Caldeirão, município do Crato, o

germen, talvez, de uma nova epopeia, semelhante à do Conselheiro nos sertões da

Bahia. Em 1926, por ordem do Padre Cícero, ali se instalou o beato José Lourenço,

tipo clássico de fetichista, meio santo, meio D.Juan. Preto, contando atualmente

quase sessenta e oito anos de idade, estatura acima de média, robusto e forte,

inteligente e enérgico, enquadra-se maravilhosamente nas páginas insuperáveis de

Euclides da Cunha. Já em 1926, revelara o beato o cunho original de seu misticismo

quando à revelia do taumaturgo de Joazeiro, adorava um boi e sua imaginação

ousada teve a ideia portentosa de reencarnar o céu (BARROS, 1937, p.27).

O militar destaca, ainda, que ―o caso se tornara mais grave quando as romarias a

Joazeiro se estavam canalizando para o Caldeirão, onde as relações de produção e consumo

tendiam francamente para o comunismo‖ (BARROS, 1937, p.19). O relatório, nesse sentido,

também mostra o clima de ―caças às bruxas‖, instaurado no Governo Vargas, em perseguição

a qualquer foco de comunismo, tendo em vista que uma das suspeitas da polícia era que no

Caldeirão houvesse ―agentes comunistas‖.

Importante destacar que uma série de medidas vinham sendo implementadas pelo

Governo, em nível nacional e estadual, no sentido de perseguir acusados de ligação com o

comunismo ―moscovita‖, em especial a Lei de Segurança Nacional, que foi decretada em abril

de 1935 e definia os crimes contra a ordem política e social, estabelecendo as respectivas

penalidades e o processo competente. As medidas repressivas objetivavam barrar a ação das

forças de oposição ao Governo, sobretudo a ANL, Aliança Nacional Libertadora, e preparar

terreno para um golpe de Estado, efetivado em novembro de 1937.

No texto, o Caldeirão é descrito como um ―Estado Comunista‖ e ―Teocrático‖ e o

beato como um ―marxista prático‖, entretanto o autor admite que ―um fato importante, que eu

tenho observado com surpresa, é não haverem os agentes comunistas‖ (BARROS, 1937, p.

37). Existia, ainda, a suspeita de que no Caldeirão houvesse armas, contudo as únicas

encontradas foram os instrumentos de trabalho com a terra.

Barros (1937) admite que reinavam, no Caldeirão, uma ―disciplina absoluta e uma

ordem rígida‖ e que aqueles ―homens rudes‖ conseguiram fazer uma terra ―sáfara e quase

estéril‖ produzir. ―Aliás, faça-se justiça, o espetáculo de organização e rendimento de

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trabalho, com que deparamos ali, era verdadeiramente edificante‖ (BARROS, 1937, p. 30).

Entretanto, o militar destaca que a autonomia da comunidade poderia ser muito perigosa.

Nesse sentido, no relatório, predomina um tom depreciativo nas representações do

beato José Lourenço e sua gente. Assim, para asseverar o ―fanatismo‖ do povo do Caldeirão,

o tenente José Góes de Campos Barros descreve uma suposta organização religiosa da

comunidade ―fanatizada‖, na qual cada membro representaria um santo católico. O beato José

Lourenço seria São José: ―Sem escrúpulos anatômicos e etnológicos, o nosso herói se fez São

José. Não sei como se teria arranjado para harmonizar os seus cabelos enroscados, seus lábios

grossos e o nariz chato com o perfil sereno e correto do humilde Carpinteiro da Galileia.

(BARROS, 1937, p.28). Assim, no relatório oficial do Estado - que descreve o Caldeirão

como um ―ambiente, humilde‖ ―e, excluindo as pessoas, agradável e asseado‖ - emerge,

ainda, uma clara discriminação racial.

Diversas fotografias ilustram o relatório e retratam objetos diversos142

e também

pessoas ligadas à comunidade. As imagens são acompanhadas de legendas que reproduzem

bem a visão que as autoridades tinham sobre o Caldeirão e o beato José Lourenço. Dentre as

fotografias, destacamos três: a foto de uma batina, de uma cadeira; e a imagem de duas jovens

moradoras do Caldeirão.

A primeira traz a seguinte legenda: Sob esta batina, dizem, o sacerdote do Caldeirão

desfez muitos casamentos, há quem diga que as divorciadas, quando aprazíveis, passavam

gozar da sua proteção especial (BARROS, 1937, p.31). A segunda foto tem como legenda:

CADEIRA PONTIFICIAL: Possivelmente, nos dias grandes, aí se sentava o Pagé para o

beija mão (BARROS, 1937, p.43).

A foto das duas jovens (imagem abaixo) é acompanhada da seguinte legenda: Estas

duas “afilhadas” de José Lourenço são de boa família e, com voz doce e serena, nos fizeram

sentir que o seu protetor era o mais justo dos homens deste mundo: negam,

peremptoriamente, tudo o que se relaciona com as versões sobre a libidinosidade do seu

ídolo. É difícil saber-se com quem está a razão, pois que a fidelidade dos íntimos de

Lourenço os leva, naturalmente, à negação sistemática de tudo o que possa prejudicar-lhe a

reputação (BARROS, 1937, p.37).

142

Ramos (2011b, p. 367) destaca que os militares trouxeram do Caldeirão para Fortaleza como ―troféus de

guerra‖: duas cruzes, um estandarte, um turíbulo, duas roupas de culto penitencial, uma espingarda, uma

palmatória, uma foice, um machado e uma cadeira. Os objetos ficaram expostos na Chefatura de Polícia, depois

foram doados ao Museu Histórico do Ceará.

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115

Figura 6 – Moradoras do Caldeirão143

Fonte: Foto publicada no livro A Ordem dos Penitentes (BARROS, 1937)

Nesse sentido, o relatório policial ecoa as vozes que acusavam José Lourenço de

promiscuidade, pois ele era acusado de seduzir as mulheres do Caldeirão, e de heresia, já que

o beato é nomeado como ―Pagé‖, a quem os ―fanáticos‖ deviam subserviência. Já a presença

da fala das moradoras do Caldeirão traz uma voz que polemiza com esses sentidos que

denigrem a imagem do beato José Lourenço, já que elas negam ―peremptoriamente‖ ―tudo o

que se relaciona com as versões sobre a libidinosidade‖ e defendem a honestidade do beato.

Entretanto, o autor do texto ressalta a possibilidade de que essa defesa ocorra em função da

―fidelidade‖ das jovens ao seu ―ídolo‖, ou seja, elas estariam ―fanatizadas‖ pelo beato José

Lourenço.

A medida tomada pelas forças policiais que invadiram o Caldeirão foi a expulsão dos

trabalhadores e a destruição do sítio, com o incêndio das casas e plantações: ―Fazia-se

necessária uma medida drástica e radical, de modo a não mais ser possível a sua

reconstituição, mediante a afluência de romeiros que, de longe, já vinham atraídos pela

santidade do preto sagaz‖ (BARROS, 1937, p. 24). As autoridades deixaram no Caldeirão um

destacamento policial o intuito de impedir ―a reorganização dos fanáticos‖.

143

Vale lembrar que era um costume no Caldeirão o uso do preto, em sinal de luto pela morte do padre Cícero.

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116

Assim, ao longo do relatório policial, constrói-se uma representação do Caldeirão

como um perigoso ―ajuntamento de fanáticos‖, que precisava ser destruído. Barros (1937, p.

4) defende que ―o governo inteligente e intencionado [...] viu e impediu a formação de uma

tragédia futura no sertão sofrido‖. O relatório, portanto, como já destacado, é uma fonte das

vozes oficiais que justificaram a destruição do Caldeirão.

4.6 Anos 1930: A conjuntura política no Brasil e no Ceará

Nas primeiras décadas do século XX, o quadro político brasileiro era marcado pela

hegemonia das oligarquias agrárias. O país vivia a chamada ―política do café com leite‖, que

significava o revezamento do poder entre as elites latifundiárias de São Paulo e Minas Gerais.

Entretanto, com o desenvolvimento, no Brasil, de uma burguesia industrial e

comercial, aliado à grave crise internacional, que despencou o preço do café - consequência

da grande depressão mundial, iniciada com o ―crack‖ da Bolsa de Nova York, em 1929- as

oligarquias agrárias viram cair seu poderio e sua hegemonia.

A crise e decadência do velho regime oligárquico culminaram com a chamada

Revolução de 30, que destituiu o presidente Washington Luís e entregou o poder a Getúlio

Vargas. Pela derrubada das estruturas da República Velha, aliaram-se, além da classe média

urbana, a jovem oficialidade do exército (o movimento Tenentista), e as oligarquias

dissidentes, que eram oligarcas de estados que se viam prejudicados pela hegemonia político-

econômica de mineiros e paulistas. No Ceará, o governador Matos Peixoto, aliado das

oligarquias tradicionais cearenses, foi deposto pelos militares e os ―revolucionários de 30‖

fizeram o desarme de jagunços e coronéis no Cariri. 144

De acordo com Souza (1994), os grupos que articularam o processo revolucionário de

30 se apregoavam em defesa da democracia e do desenvolvimento do país, em contraponto à

velha estrutura oligárquica que era causa, dentre outros males, do coronelismo reinante nos

sertões. Porém, de fato, o movimento de 30 significou um golpe de parcelas descontentes da

elite nacional contra o predomínio dos velhos oligarcas mineiros e paulistas que há muito

tempo dirigiam o país. Ou seja, foi um movimento distante da participação popular, liderado

por elites em ascensão contra uma elite decadente. ―A partir dos anos 1930, ocorreu uma troca

da elite do poder sem grandes rupturas. Caíram os quadros oligárquicos tradicionais, os

‗carcomidos da política‘, como se dizia na época. Subiram os militares, os técnicos

144

Nestas ações, o sítio Caldeirão foi invadido pelas ―revolucionários de 30‖.

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117

diplomados, os jovens políticos e, um pouco mais tarde, os industriais‖ (FAUSTO, 1999, p.

127).

O ideário da chamada Revolução de 30 vinha como uma negação ao passado, como

uma atitude moralizante frente ao esquema do coronelismo com os apadrinhamentos, troca de

favores e currais eleitorais. Entretanto, os revolucionários não questionaram o cerne de toda

esta problemática; as bases do latifúndio, que excluem e submetem o homem do campo. Com

a subida dos revolucionários de 30 ao poder, sob o comando de Getúlio Vargas, instaurou-se

um Estado centralizador e autoritário145

.

Em 1935, o Governo promulgou a Lei de Segurança Nacional (LSN), que definia os

crimes contra a ordem política e social, objetivando impor penas mais severas aos

―criminosos políticos‖. Dentre os crimes previstos na LSN, constavam: ―Instigar

desobediência coletiva ao cumprimento de lei de ordem pública‖, ―Incitar diretamente o ódio

entre as classes sociais‖, ―Promover, organizar ou dirigir sociedade de qualquer espécie, cuja

atividade se exerça no sentido de subverter ou modificar a ordem política ou social por meios

não consentidos em lei‖ (BRASIL, 2014).

Neste período, as disputas internacionais entre comunistas e totalitários se refletiam,

no Brasil, através da formação de organizações como a AIB, Ação Integralista Brasileira, de

orientação fascista, defensora da propriedade privada, e dos valores cristãos contra o

―comunismo ateu‖ - e a ANL, Aliança Nacional Libertadora, de orientação comunista; era

contrária aos totalitarismos de direita, defendia a garantia de liberdades democráticas e a

constituição de um governo popular. Com base na Lei de Segurança Nacional, poucos meses

após o lançamento da ANL, o Governo colocou-a na ilegalidade, alegando que a organização

vinha desenvolvendo atividade subversiva da ordem politica e social.

Conforme Lopes (1994), após decretada a ilegalidade da ANL, o Partido Comunista

Brasileiro assume a hegemonia sobre o movimento e deflagra, em Natal, Recife e Rio de

Janeiro, em novembro de 1935, uma revolta armada que ficou conhecida como a Intentona

Comunista. O movimento foi duramente reprimido pelo governo. O fantasma do comunismo

serviu como justificativa para o clima de repressão instaurado no país. A Intentona Comunista

serviu como pretexto para Vargas declarar o estado de sítio, em seguida o estado de guerra146

,

145

Entre 1930 e 1937, Vargas decretou uma série de medidas repressivas que culminaram com o Golpe do

Estado Novo. 146

O Governo Vargas alegava que as instituições estavam ameaçadas por atividades subversivas, orientadas por

organizações internacionais, portanto medidas repressivas eram necessárias para manter a ordem pública. Por

meio de manobras políticas, Vargas conseguiu equiparar o estado de sítio ao estado de guerra, que foi prorrogado

até junho de 1937. No estado de guerra (ao contrário do que ocorre no estado de sítio), o Poder Executivo

suspende todas as garantias constitucionais julgadas prejudiciais à ordem pública. Outra medida repressiva foi a

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118

a censura à imprensa de todo o país e a perseguição aos opositores; assim preparava terreno

para o golpe do Estado Novo, quando culmina o controle sobre os meios de comunicação.

A ditadura criou órgão especial, o Departamento de Imprensa e Propaganda,

(segundo o modelo nazista: o famigerado DIP controlava a imprensa e o rádio e

baixava listas de assuntos proibidos). Nos Estados foram instalados os

Departamentos Estaduais de Imprensa, DEL que faziam o mesmo serviço (SODRÉ,

1999, p.439).

Diversas medidas repressivas já vinham sendo adotadas desde a subida de Getúlio

Vargas ao poder. No governo provisório (1930-1934), Vargas determinou a dissolução dos

partidos políticos, do Congresso Nacional, das assembleias legislativas e das câmaras

municipais, revogou a Constituição de 1891 e substituiu os governadores dos estados por

interventores.

Os interventores eram nomeados por Getúlio Vargas e significavam mais um

instrumento de centralização político-administrativa, ―que objetivava minar as bases do poder

regional e local colocando a elite política da região na dependência do Poder Central"

(SOUZA, 1994, p. 323). Os interventores, na realidade, acabaram tendo que conciliar os

interesses de facções políticas e grupos oligárquicos estaduais.

As elites do Norte e Nordeste acreditavam que as práticas do novo Regime poderiam

significar sua chance de maior participação política, já que, por muitos anos, elas tinham sido

marginalizadas em função da hegemonia política do Sudeste.

O primeiro interventor, no Ceará, foi o civil Fernandes Távora que, oito meses depois,

foi substituído; acusado - pelos tenentes e pelas oligarquias "decaídas" locais - de privilegiar

sua facção oligárquica. Getúlio Vargas substituiu Fernandes Távora pelo interventor militar

Carneiro de Mendonça, que vai tentar manter uma política de neutralidade em relação aos

grupos políticos locais.

No Ceará, as disputas eleitorais para a Assembleia Constituinte Federal147

se deram

entre o Partido Social Democrático (PSD) e a Liga Eleitoral Católica (LEC). O PSD era

composto por civis apoiadores da revolução de 30 e militares. O partido propunha a

modernização do Ceará; "pela sindicalização das classes e defesa dos direitos proletários.

Preconizava a nacionalização das minas e quedas d'água. [...] No plano regional, pregava o

fomento da cultura carnaubeira e suas indústrias. Recomendava a construção do porto do

criação, em 1936, de um tribunal específico para julgar os acusados de ―subversão‖, o Tribunal de Segurança

Nacional (TSN), órgão ligado à justiça militar e que funcionou até o final do Estado Novo, em 1945

(MARQUES, 2013). 147

Na Assembleia Nacional Constituinte, em 1934, Getúlio Vargas foi eleito presidente, por meio de voto

indireto. O mandato deveria ser exercido até maio de 1938, quando seriam realizadas eleições diretas para a

presidência. Entretanto, em novembro de 1937, Getúlio Vargas decretou o Golpe do Estado Novo.

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119

Mucuripe e o combate às secas" (MONTENEGRO, 1980, p.122). O PSD tinha como porta-

voz o jornal O Povo148

.

Conforme Souza (1994), a LEC reunia as oligarquias "decaídas" após a Revolução de

30 e a intelectualidade do catolicismo tradicional cearense. A criação da Liga Eleitoral

Católica (LEC) está ligada às tentativas da Igreja Católica brasileira de recuperar seu espaço

político-social, que vinha decaindo principalmente após a Constituição Republicana de 1891,

que provocou a separação entre Igreja e Estado. A LEC foi criada em 1932, com o intuito de

se situar fora e acima dos partidos políticos, orientando o eleitorado católico a votar nos

candidatos que defendessem os interesses da Igreja. Entretanto, no Ceará, a LEC atuou como

um verdadeiro partido e teve uma repercussão tão grande junto à sociedade que se tomou a

força política mais expressiva do estado. Através do jornal O Nordeste, a intelectualidade

católica difundia as ideias lecistas. Em escolas, praças, debates e conferências, a LEC ia

penetrando junto à população cearense. Dentre os preceitos defendidos pelo lecistas

destacam-se: combate a qualquer legislação que contrarie os princípios católicos; repúdio ao

comunismo e à luta de classes; defesa da propriedade privada e da intervenção estatal na

questão social. Nesse sentido, as medidas de combate ao comunismo e aos movimentos

populares empreendidas por Vargas tinham apoio e respaldo da Igreja, em especial por meio

de organizações políticas, como a LEC.

As eleições para a Constituinte Estadual, em 1934, foram agitadas. Pelo interior, os

padres faziam sermões em favor da LEC. De acordo com Souza (1994), depois de ampla

mobilização do PSD e da LEC por todo o estado, os resultado das urnas deram vitória à LEC.

Era o início do retomo das antigas oligarquias cearenses ao poder. Durante todo o processo

eleitoral, o interventor Carneiro de Mendonça tinha se colocado numa suposta posição de

neutralidade, o que fará com que o PSD o acuse de favorecimento à LEC. O PSD exigiu junto

ao Presidente Getúlio Vargas o afastamento do interventor Carneiro de Mendonça. O próprio

interventor pediu, em 1934, a sua destituição do cargo. Neste ano, foi promulgada uma nova

Constituição, que possuía uma orientação liberal-democrática, com conquistas como a

instituição do voto secreto, do voto feminino e a criação de legislação trabalhista. Porém, a

Constituição de 1934 foi revogada com o Golpe do Estado Novo, em 1937.

Em 1934, assumiu a interventoria do Ceará o militar Felipe Moreira Lima, que

148

Em diversas edições do jornal, há campanha explícita para os candidatos do PSD. ―O voto será arma infalível

para as suas vitórias municipais e para o triunfo geral do Partido Social Democrático‖ (O POVO, 4/2/1933)

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120

manifestava preferência pelo grupo do PSD149

. Mesmo sem o apoio do interventor, graças à

campanha através dos aparatos institucionais da Igreja Católica no Ceará, a LEC obteve nova

vitória, em outubro de 1934, nas eleições para a Assembleia Estadual Constituinte, que

elegeria o novo governador do Estado, em maio de 1935. Dos 30 deputados estaduais, a LEC

elegeu 17, enquanto o PSD, 13. Com maioria de deputados, a LEC elegeu para governador

Constitucional do Estado o seu candidato, o intelectual católico Menezes Pimentel.

A vitória da LEC representa a recomposição política das oligarquias mais

tradicionais do Ceará, com a incorporação de intelectuais católicos formando assim,

o novo bloco estadual de poder. Após o golpe de 10 de novembro de 1937, este

bloco reforçará sua dominação sobre o conjunto da sociedade cearense,

implementando as medidas autoritárias e centralizantes do Governo de Getúlio

(SOUZA, 1994, p.344).

Menezes Pimentel ficou muitos anos no poder. Primeiro como Governador (1935-

1937) e, depois do golpe do Estado Novo, como interventor do Ceará (1937-1945). Sua

administração foi marcada como um período autoritário, violento e repressivo no Estado.

Logo que tomou posse, destituiu os prefeitos do interior e funcionários públicos ligados ao

PSD; utilizou a Lei de Segurança Nacional, criada depois da intentona de 1935, para perseguir

opositores, principalmente acusados de comunistas; mandou fechar os núcleos locais da

Aliança Nacional Libertadora (ANL), organização esquerdista, que estava na ilegalidade.

Com a decretação do Estado Novo, Menezes Pimentel é confirmado no poder como

interventor federal, significando que no Estado do Ceará implantará as diretrizes

autoritárias e centralizadoras do Estado Novo. A partir daí, todas as organizações da

sociedade, no capo da cultura, educação, do trabalho, dentre outras, terão o controle

do governo estadual. O pimentelismo recebe o apoio dos setores mais conservadores

da sociedade dando continuidade a práticas políticas que vinham desenvolvendo,

mesmo antes da decretação do Estado Novo. Quanto às organizações dos

trabalhadores, que não fossem pautadas nos princípios do corporativismo, eram

consideradas ―comunistas‖ e, portanto, objeto de olhares vigilantes da polícia de

Pimentel (SOUZA, 2009, p. 311).

O Caldeirão foi destruído neste período (1936-37) quando o Ceará estava sob a

administração de Menezes Pimentel e o Brasil vivia os instantes finais de preparação para o

golpe do Estado Novo, em 1937, que instaurou um longo período ditatorial no país. Nesse

contexto, aumentou a violência e repressão a qualquer manifestação que pudesse ameaçar a

ordem. Assim é que, na década de 1930, ocorre o fim do ciclo do cangaço e a destruição de

movimentos populares religiosos como Caldeirão e Pau de Colher.

O combate a possíveis focos de atividade comunista foi umas das justificativas para a

repressão ao Caldeirão. Nesse período, o clima de perseguição a acusados de comunismo

149

Conforme Souza (2009), o interventor Felipe Moreira foi apontado como apoiador do comunismo, pelo

jornal católico O Nordeste, por permitir a realização de comícios e passeatas. Em 1936, ele chegou a ser preso

sob acusação de comunismo.

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121

estava instaurado no Ceará. Matéria publicada na Gazeta de Notícias, em 11 de julho de 1936,

registra a repressão ao comunismo no Ceará. Com a manchete ―O drama vermelho!‖, a

reportagem traz detalhes sobre o ―desenvolvimento do comunismo no Ceará e o seu combate

incessante pelas sentinelas do regime‖. A matéria registra a prisão de militantes comunistas,

de intelectuais e militares acusados de ligação com o movimento, além da morte de dois

―agentes comunistas‖, que seriam responsáveis pela difusão dos ―ideais moscovitas‖ na zona

norte do Estado.

Se a repressão a Canudos teve como justificativa o combate a um ―reduto de

monarquistas fanáticos‖, a investida contra o Caldeirão será respaldada pelo clima de

perseguição ao comunismo e a toda manifestação que pudesse corresponder uma ameaça à

ordem. Assim, importante destacar que a repressão ao Caldeirão ocorre em um contexto em

que o País estava em ―estado de guerra‖ e as ações do Governo eram respaldadas por

mecanismos como a Lei de Segurança Nacional. Nesse sentido, a destruição do Caldeirão

deve ser analisada a partir da articulação desse cenário político com outras problemáticas, tais

como os interesses político-econômicos das elites locais e os confrontos entre a Igreja Oficial

e as manifestações da religiosidade popular.

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122

5 ANÁLISE DIALÓGICA DO DISCURSO JORNALÍSTICO SOBRE O

MOVIMENTO CALDEIRÃO

5.1 Percurso metodológico

Nesta pesquisa, trabalhamos com uma ―concepção de linguagem, construção e

produção de sentidos necessariamente apoiadas nas relações discursivas empreendidas por

sujeitos historicamente situados‖ (BRAIT, 2010, p.10).

Assim, analisamos a partir da concepção de vozes sociais, na perspectiva bakhtiniana,

a construção das representações do movimento Caldeirão e do beato José Lourenço na

cobertura do jornal O Povo, de 1934 a 1938. O movimento Caldeirão teve grande repercussão

na imprensa, principalmente na década de 1930.

Encontramos textos em diversos jornais, da Capital e do Interior, entre eles: O Estado,

Gazeta de Notícias, O Nordeste, O Crato, Unitário, Correio do Ceará e O Povo. Destes, o

jornal O Povo, continua em circulação e foi o jornal da época que publicou mais textos sobre

o assunto. De 1934 a 1938, encontramos 23 edições do jornal que trazem matérias

relacionadas ao Caldeirão.

A delimitação desse período se justifica por este ser o momento de maior repercussão

do movimento na imprensa, tendo em vista que, em 1936, o sítio Caldeirão foi invadido e

destruído e, em 1937, houve sério confronto entre remanescentes do Caldeirão e militares na

Serra do Araripe, que foi reprimido pelas autoridades e ficou amplamente registrado nos

jornais da época.

Em 1985, o Núcleo de Microfilmagem da Secretaria de Turismo e Desporto do Ceará

organizou uma coletânea de textos jornalísticos referentes ao movimento Caldeirão,

publicadas no período de 1934 a 1984, que se encontram disponíveis na Biblioteca Pública

Governador Menezes Pimentel. Entretanto, nem todos o textos que compõem o corpus desta

pesquisa encontram-se na coletânea, assim as matérias utilizadas nesta pesquisa fazem parte

do acervo do Banco de Dados do jornal O Povo150

. Na Biblioteca Pública, também

pesquisamos outros jornais do período para analisarmos o contexto histórico do Ceará dos

anos 1930.

150

O Banco de dados do jornal O Povo possui, em versão digital, edições publicadas desde a sua fundação, em

1928. Em observância à legislação referente aos direitos autorais, a reprodução das matérias que compõem o

corpus desta pesquisa foi autorizada por ―Contrato de Cessão de Artigos‖, firmado com o jornal O Povo.

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123

5.1.1 Corpus

De 1934 a 1938, encontramos no jornal O Povo 23 textos relacionados ao Caldeirão,

que constituem o corpus desta pesquisa e, conforme já destacado, aos quais temos acesso, em

versão digital. Vale destacar que trabalhamos esse corpus tendo como foco análise da

construção da representação do Caldeirão e do beato José Lourenço a partir do confronto

entre diversas vozes sociais, em especial observando os efeitos de sentidos construídos a partir

de mecanismos como o discurso citado e o acento apreciativo.

Assim, lançamos nosso olhar sobre o corpus, procurando nos deter nesses aspectos

destacados. Conforme já destacado, designamos o material que compõe o corpus da pesquisa

como ―textos‖, ―matérias‖ ou ―artigos‖ (quando assinados), tendo em vista que as

características dos gêneros jornalísticos ainda estão em processo de configuração no contexto

histórico em análise.

Para termos uma visão geral dos textos publicados pelo jornal O Povo, e tomando

como referencial os fatos históricos ligados ao Caldeirão, dividimos a cobertura do jornal em

três partes. Tal divisão evidencia a grande repercussão do movimento na imprensa após o

confronto entre militares e remanescentes do Caldeirão, ocorrido na Serra do Araripe, em

1937, conforme pode ser observado no quadro a seguir:

Quadro 2 – Textos sobre o movimento Caldeirão publicados no jornal O Povo (1934-1938)

PARTE I (junho/1934 a março/1935) – Textos publicados antes da invasão ao sítio

Caldeirão, ocorrida em setembro de 1936. (2 textos)

PARTE II (setembro a novembro/ 1936) – Textos publicados depois da invasão ao sítio

Caldeirão/ Antes do confronto na Serra do Araripe.(2 textos)

PARTE III (maio/ 1937 a janeiro/1938) – Textos publicados depois do confronto na Serra do

Araripe. (19 textos)

Vale ressaltar que nossa análise não é de cunho quantitativo, entretanto consideramos

que essa divisão pode contribuir para uma melhor visualização do corpus da pesquisa e para

que sejam estabelecidas relações entre os textos publicados pelo jornal e o contexto histórico

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do movimento Caldeirão. Tal divisão também não é estanque e, ao longo da análise,

estabelecemos um diálogo entre os textos publicados nos diversos períodos.

Seguem, abaixo, as manchetes das matérias que compõem o corpus desta pesquisa151

.

PARTE I

- “O Beato José Lourenço e sua ação no Cariri” (7/6/1934)

- “Os fanáticos do Caldeirão” – Antônio de Alcântara Machado (2/3/1935)

PARTE II

- ―O Beato do Caldeirão – Com vistas ao Sr. Chefe de Polícia.” (30/9/1936)

- “Os bens do beato José Lourenço- Até as portas da capela foram vendidas” (11/11/1936)

PARTE III

- “ÚLTIMA HORA- Notícias de última hora chegadas a esta redação” (10/5/1937)

- “Luta de morte na Serra do Araripe.” (11/5/1937)

- “Os acontecimentos na Serra do Araripe/ Um jornal do Crato localizou nova Concentração

de Fanáticos em Meados de Abril” (12/5/1937)

- “Os acontecimentos na Serra do Araripe. Os funerais do Capitão José Bezerra...”

(13/5/1937)

- ―Um novo Caldeirão?” (18/5/1937)

- “Novo Caldeirão?” (19/5/1937)

- “Novo Caldeirão. Está em Fortaleza Chefe dos Fanáticos” (20/5/1937)

- “Fanáticos do Caldeirão em Fortaleza.” (21/5/1937)

- “Nova investida do Beato Zélourenço.” (21/8/1937)

- “O eterno problema” – Ademar Távora (3/9/1937)

- “Um Grupo de Fanáticos ameaça o Distrito de Iracema – Será o Beato José Lourenço?”

(27/11/1937)

- ―O Beato José Lourenço no Rio Grande do Norte” (29/11/1937)

- “O Beato Zelourenço na Bahia?” (12/1/1938)

- “O BEATO JOSÉ LOURENÇO NA BAHIA?” (14/01/1938)

151

Neste trabalho, mantivemos, em geral, a ortografia original dos textos que compõem o corpus.

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- “Quinhentos homens do Beato Lourenço – assaltando e matando na Bahia: O Beato não

está á frente do bando.” (19/1/1938)

- “140 baixas. 42 horas de fogo entre fanáticos e a polícia” (24/1/1938)

- “600 homens constituíam o Reduto desbaratado pela Polícia” (25/1/1938)

- “Os fanáticos rechaçados pela polícia internam-se no Piauí (26/1/1938)

- “Um comunista entre os fanáticos” (27/1/1938)

5.1.2 Procedimentos de análise de dados

A construção dos sentidos é marcada por lutas e tensões que se materializam na

linguagem, assim analisamos a categoria das vozes sociais, considerando as condições

históricas, as relações de poder em jogo no processo de construção do discurso jornalístico

sobre o Caldeirão. Dentro de uma concepção dialógica de linguagem, a heteroglossia diz

respeito ao embate entre diferentes vozes sociais que emerge na enunciação, a partir do grande

diálogo social. Assim, as vozes sociais dirigem-se a vozes anteriores e esperam uma resposta,

pois, na enunciação há uma tomada de posicionamentos valorativos em relação ao outro.

O nosso referencial teórico-metodológico trabalha a articulação entre elementos

linguísticos e não linguísticos, conforme destacado por Bakhtin (2013). Assim, a partir das

várias vozes sociais em confronto no discurso jornalístico, observamos como o enunciador se

posiciona em relação ao ―outro‖, no processo de construção das representações do beato José

Lourenço e do movimento Caldeirão. Consideramos, portanto, a representação como

construção social, que envolve posicionamentos e escolhas a partir de determinando horizonte

de valores dos mais diversos grupos sociais.

Destacamos, ainda, que o relatório sobre a invasão ao Caldeirão, produzido pelo

Governo do Estado e publicado sob o título A Ordem dos Penitentes: Exposição (1937), é

tomado neste trabalho como uma fonte da voz oficial sobre o Caldeirão. Em nossa análise, a

essa voz oficial, materializada no relatório, pudemos contrapor outras vozes e analisar as

tensas relações no processo de produção de sentidos sobre o Caldeirão e o beato José

Lourenço.

Procuramos analisar esses confrontos a partir dos acentos apreciativos, que podem ser

observados por meio da escolha de determinados recursos linguístico-discursivos. Assim,

analisamos a utilização de recursos como o uso das aspas e de adjetivos, advérbios e verbos,

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126

discutindo sobre essas escolhas e os efeitos de sentidos construídos. A partir desses recursos

linguístico-discursivos, procuramos analisar, também, que tons e estilos são expressos nos

enunciados em análise, tais como ironia, autoritarismo, consenso/ dissenso.

Com relação ao discurso citado - compreendido como espaço em que fica bastante

evidenciado o confronto entre diferentes vozes sociais - procuramos analisar as tendências da

apreensão ativa do discurso do outro, estilo linear e estilo pictórico, propostos por Bakhtin/

Volochínov (1990), observando os posicionamentos do enunciador e os sentidos produzidos.

Consideramos, ainda, a inter-relação entre contexto narrativo e discurso citado, observando

aspectos como a utilização dos verbos dicendi e os diferentes sentidos construídos em torno

da representação do beato José Lourenço e do Caldeirão. A partir do discurso citado e

acento apreciativo, procuramos analisar, também, o horizonte social de valor a partir do qual

são construídas as representações do beato José Lourenço.

Nesta perspectiva, realizamos os seguintes procedimentos no intuito de articular os

referenciais teóricos e as categorias de análise ao corpus da pesquisa.

- Análise, a partir da entonação (dos acentos apreciativos) dos recursos linguístico-

discursivos que contribuem para marcar os confrontos entre diferentes vozes sociais, os

posicionamentos avaliativos na luta pela construção das representações sobre o beato José

Lourenço e o Caldeirão.

- Análise do discurso citado como espaço de embate entre diversas vozes sociais, que

marcam posições sócio-ideológicas conflitantes, diferentes horizontes sociais de valor,

observando os efeitos de sentidos produzidos.

Ressaltamos, ainda, que, em nossa análise, também tomamos como fio condutor a

discussão mobilizada na nossa fundamentação teórica acerca concepção de ideologia no

pensamento bakhtiniano. Assim as representações não são um simples reflexo da realidade,

nem se restringem à imposição de um sentido, tendo em vista que são construídas a partir de

confrontos e de processos que envolvem estabilidade/instabilidade, forças centralizadoras e

descentralizadoras, consensos e divergências, escolhas e posicionamentos, tal como

desenvolvido na discussão sobre políticas de representação (RAJAGOPALAN 2002, 2003).

Sintetizamos, no quadro a seguir, o referencial teórico-metodológico e as categorias e

os recursos linguístico-discursivos que referenciam nosso procedimento de análise dos dados.

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RELAÇÕES DIALÓGICAS

Quadro 3 – Síntese: Referencial teórico-metodológico/ Procedimentos de análise dos dados

5.2 PARTE I – Textos publicados antes da invasão ao sítio Caldeirão.

O primeiro texto publicado no O Povo sobre o Caldeirão é um artigo escrito pelo

jornalista e farmacêutico cratense José Alves de Figueiredo. Este artigo foi publicado no dia 7

de junho de 1934, quando já havia iniciado a perseguição ao Beato José Lourenço e seus

seguidores, por meio de uma campanha difamatória. O artigo, intitulado ―O Beato José

Lourenço e sua ação no Cariri‖, objetiva defender o beato José Lourenço das acusações que

vinha recebendo. É um longo texto que foi publicado em toda a página 7 desta edição do

jornal O Povo.

O texto traz toda a trajetória do beato José Lourenço desde sua chegada a Juazeiro do

Norte, depois o trabalho no sítio Baixa Danta, o episódio do Boi Mansinho até a construção

da comunidade no Caldeirão, fala também sobre a seca de 1932, quando o beato acolheu os

retirantes que procuravam o sítio. Este artigo é uma referência para os estudiosos do tema.

José Alves, que foi vereador e prefeito do Crato, tinha uma fazenda vizinha ao Caldeirão, era

amigo de José Lourenço e, em função de sua defesa ao beato, chegou a ser preso, na época da

invasão ao Caldeirão, em 1936.

No texto, o beato é nomeado como ―rude apóstolo do bem‖. Assim, é representado

como um homem de mentalidade atrasada, fanático pelo padre Cícero, porém muito

trabalhador, honesto, resignado e respeitador da ordem. O trecho a seguir abre o artigo:

DISCURSO CITADO: Estilo

Linear/ Estilo Pictórico,

Verbos dicendi, etc

ACENTO APRECIATIVO:

recursos linguístico-discursivos

(uso de aspas, adjetivos, verbos,

advérbios, etc.)

Políticas de Representação

VOZES SOCIAIS: A HETEROGLOSSIA

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O beato José Lourenço pertence ao número dos verdadeiros fanáticos do Padre Cícero.

Ele é daqueles que vêem na figura do velho patriarca do Joazeiro alguma coisa mais do

que um simples sacerdote” (O POVO, 7/6/1934). (ANEXO B).

No decorrer do texto, ouviremos vozes em contraponto às vozes hegemônicas sobre o

beato e sua gente. Entretanto, já de início, aparece essa voz em consonância com a voz oficial

- que é materializada no relatório de polícia - segundo a qual as crenças da religiosidade do

povo são manifestações de ―fanatismo‖, que se expressa em crenças como a sobrenaturalidade

do milagre de Juazeiro e a santidade do Padre Cícero.

O texto prossegue falando da ida de José Lourenço ao sítio Baixa Danta, onde foi

―viver honradamente da profissão de agricultor‖. No sítio Baixa Danta, ocorreu o episódio do

Boi Mansinho, quando o povo do beato foi acusado de heresia e fetichismo, e a repercussão

do fato na imprensa causou a prisão de José Lourenço.

Nesse tempo, Joazeiro sofria tenaz perseguição da imprensa, suscitada, em parte, pela

interferência de dr. Floro Bartolomeu na política do Estado e, em parte, pela ausência de

escrúpulos de alguns jornalistas que visaram assaltar o bolso do padre Cícero.

A lenda do boi santo foi trazida à baila, com os naturais retoques que os caçadores de

escândalos tecem por sua conta, sendo José Lourenço apontado, falsamente, como

estimulador de um grosseiro fetichismo (O POVO, 7/6/1934). (ANEXO B).

No trecho acima, a partir das escolhas lexicais, pode-se perceber um tom de dissenso

em relação às vozes que repercutiram a ―lenda do boi‖. Os jornalistas são nomeados como

―caçadores de escândalos‖, que ―tecem por sua conta‖ uma narrativa cheia de ―retoques‖,

construindo uma representação do beato José Lourenço como estimulador de práticas

fetichistas.

O episódio do Boi Santo marcou o início da perseguição ao José Lourenço e sua gente.

Durante muitos anos, a historiografia tradicional reproduziu que, no Cariri, fanáticos

adoravam o boi ―Ápis‖. Entretanto, no artigo podem-se perceber vozes que abrem espaço para

a construção de outros sentidos, pois considera as implicações políticas desse episódio: a

tensa relação entre o deputado Floro Bartolomeu e a imprensa da época, que, por interesses

políticos, acusava Juazeiro de ser foco de fanatismo e retardamento social.

Ao longo do artigo, podemos verificar uma tensa relação entre as diversas vozes

sociais que entram em confronto na construção da representação do Beato José Lourenço e o

povo do Caldeirão. O texto dialoga com o que foi dito anteriormente sobre ao Caldeirão e traz

respostas às acusações que o beato e seu povo vinham sofrendo, entre elas, promiscuidade e

ameaça à ordem.

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Assim, no texto, é possível perceber vozes em contraponto à voz oficial, segundo a

qual o beato e sua gente adulteravam o culto católico e eram elementos perigosos à ordem.

Mal compreendido nos seus melhores intuitos, sem saber defender-se quando acusado, o

beato José Lourenço tem sofrido grandes injustiças, sendo perseguido várias vezes como

perigoso à ordem.

Dotado de um espírito dócil, amigo da paz, dispondo sempre de agregados, nunca

desrespeitou uma autoridade. [...]

Quem conhece. de, de perto, esse humilde camponês, dominado sempre pela idea, ou

mania, de ser superiormente humanitário, não será capaz de esperar dele um movimento

qualquer que implique rebeldia” [..]

Ali não se vê arma, além das destinadas ao trabalho: machados, foice, etc. (O POVO,

7/6/1934).

Tendo em uma de suas salas [...] enorme quantidade de santos, entre os quais se notam

diversas fotografias do padre Cícero, [...] Ali ele reúne seus protegidos, seus agregados e

reza. Mas as suas orações são todas da liturgia romana. Creio que num país onde as leis

garantem a liberdade de culto, esse direito não lhe poderá ser negado, como já tem

procurado fazê-lo. (O POVO, 7/6/1934). (Grifo nosso) (ANEXO B).

Ao longo do texto, apresenta-se um embate entre essas vozes marginalizadas e as vozes

oficiais, que, já neste período, construíam uma representação do beato José Lourenço e sua

gente como ―fanáticos, perigosos à ordem‖, e, mais tarde, seria utilizada como justificativa

para a destruição do Caldeirão. Lembremos que essas vozes oficiais reverberam os

posicionamentos da Igreja, dos latifundiários e do Estado. Assim, o autor do artigo fala a

partir de uma posição social avaliativa que questiona os sentidos hegemônicos que vinham

sendo construídos sobre o Caldeirão.

No dia 20 de julho de 1934, pouco mais de um mês depois da publicação do artigo de

José Alves de Figueiredo no O Povo, padre Cícero morre e deixa em testamento as terras do

Caldeirão para a Ordem dos Salesianos. Os herdeiros legais reivindicaram a posse do terreno.

A partir daí, intensificou-se a campanha de perseguição ao beato e à gente do Caldeirão, que

culminou com a invasão e destruição do sítio, ocorrida em setembro de 1936.

No dia 2 de março de 1935, o jornal O Povo publicou um artigo intitulado ―OS

FANÁTICOS do Caldeirão‖. O texto, de autoria de Antônio de Alcântara Machado, havia

sido publicado, em 22 de fevereiro de 1935, no jornal carioca Diário da Noite. Antônio de

Alcântara Machado era jornalista, político e escritor modernista152

.

152

Antônio de Alcântara Machado (1901-1935) era paulista, teve intensa atuação em movimentos políticos e

literários nos anos 1920 e 1930. É autor, entre outras obras, da coletânea de contos Brás, Bexiga e Barra Funda,

publicada em 1928. Entre 1934 e 1935, foi diretor do vespertino Diário da Noite, fundado, em 1929, por Assis

Chateaubriand. Foi eleito deputado federal, mas não chegou a exercer o cargo, pois faleceu em abril de 1935.

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Engajado com o debate político pós-revolução de 1930, o autor escrevia artigos que

tratavam de questões políticas de diversas regiões do país. Alcântara Machado abordou

problemáticas referentes ao Ceará em mais de uma edição. Antes da publicação do artigo

sobre o Caldeirão, o autor havia analisado, em mais de um texto, a atuação política do

interventor Felipe Moreira Lima no Ceará. Em artigo publicado em janeiro de 1935, o autor

tece críticas à atuação política do interventor e às suas declarações de que o Ceará seria a

―terra do bom humor‖ 153

.

Todos nós, que o berço do sr. Juarez Távora nunca pisamos, imaginávamos o Ceará uma

terra suarenta, sofrendo dia e noite o tormento da sede e portanto mal humorada. Não há

nada que irrite mais os nervos do que o calor, sol escaldante na cabeça, água nenhuma

para refrescar o corpo e também o espírito. No Ceará porém (informa o coronel Moreira

Lima) a temperatura alta e a seca permanente são um fator de alegria. O cearense é alegre

e perito na arte de botar apelidos. (Diário da Noite, 14/1/1935)

Esse trecho do artigo de Antônio de Alcântara Machado serve-nos como referencial

para analisarmos o texto sobre o Caldeirão. A partir da entonação irônica empreendida pelo

autor, a representação do Ceará é construída a partir do olhar urbano e letrado, assim o Ceará

é o ―outro‖, o ―estranho", onde ―nunca pisamos‖, lugar que ―sofre dia e noite o tormento da

sede‖.

Assim, na matéria publicada no Diário da Noite e reproduzida no jornal O Povo

(2/3/1935), Alcântara Machado inicia o texto em tom de denúncia: “Dois malandros do

Ceará, José Lourenço e Severino Tavares, andam explorando no vale do Cariri a memória do

padre Cícero”.

Segundo o autor, os dois estariam explorando ―inteligentemente‖, pois não se

limitavam a rezar e obrigam os fieis a trabalharem com a terra. A ação de José Lourenço e

Severino Tavares representaria uma ―dádiva, um notável progresso sobre os processos até

hoje adotados no sertão para fanatizar os coitados alucinados pela seca‖.

Importante destacar que a experiência do Caldeirão teve certa repercussão nacional,

tendo em vista que o texto havia sido publicado em um jornal de grande circulação em São

Paulo. Assim, após a morte do padre Cícero, intensificaram-se as investidas contra o

movimento, inclusive na imprensa, pois os herdeiros legais reivindicaram a posse do terreno.

Os dois sócios fantasiados de taumaturgos enriquecem. E na imprensa já surgem protestos

indignados contra essa nunca dantes imaginada exploração do trabalho pela astúcia, que

também é um capital, como ninguém ignora. (O POVO, 2/3/1935). (ANEXO C)

153

Consideramos pertinente fazer uma breve análise desse texto, pois ele ilustra como, nesse contexto, o ―Ceará‖

e as suas mais diversas manifestações são representadas como o ―outro‖, o estranho, pois são vistas a partir de

um olhar urbano, ―civilizado‖.

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131

No texto, a partir de um contraste de ideias, é construído um tom irônico. Assim, o

autor afirma que esse tipo de exploração teria sua utilidade, pois se, ―de um lado, contribuem

para a prosperidade criminosa de dois canalhas, de outro, cooperam para a riqueza de um

pedaço de terra até então abandonado‖.

Brait (1996) destaca que a ironia é uma espécie de citação, na qual o enunciador

convoca outras vozes com as quais não compartilha. O autor do artigo adverte que, ―após

tantas horas de penitência em forma de trabalho‖, é bem provável que os ―fanáticos‖ deixem

de crer em ―iluminados e beatos‖, o que assinala a ironia presente no texto, pois o enunciador

convoca essa voz (segundo a qual José Lourenço e Severino seriam ―beatos‖ e ―iluminados‖)

para refutá-la.

No texto, os religiosos populares são representados como uma ―profissão‖ que deve

ser desmoralizada. ―José Lourenço e Severino talvez estejam desmoralizando no Cariri a

profissão de beato. É um serviço que o nordestino lhes fica devendo‖. Ou seja, os beatos se

aproveitariam da ignorância dos sertanejos para explorá-los.

Como já ressaltado, Alcântara Machado fala a partir de um horizonte social avaliativo

que compreende a religiosidade popular como ―grosseria‖, atraso, expressão de ―fanatismo‖

como ―misticismo analfabeto‖. Dessa forma, as escolhas lexicais na forma de nomear

Severino Tavares e José Lourenço não são neutras, revelam posicionamentos ideológicos:

―sócios‖, ―malandros‖, ―taumaturgos‖, ―canalhas‖.

Assim, comparando os dois textos publicados no jornal O Povo nessa primeira parte

da cobertura, podemos observar as tensões entre diferentes vozes sociais na construção das

representações do beato José Lourenço e o Caldeirão. No signo ideológico ocorre o

entrecruzamento de diversos índices de valor, assim o beato é representado como herege/

católico, trabalhador/ ―canalha‖, aproveitador/ honesto; signos representativos dos embates da

luta social.

5.3 PARTE II- Textos publicados depois da invasão ao sítio Caldeirão/ Antes do

confronto na Serra do Araripe

Quando ocorreu a destruição do Caldeirão, no dia 10 de setembro de 1936, o jornal O

Povo silenciou, não se pronunciou. Apesar da repercussão que teve na sociedade a operação

militar de destruição do sítio Caldeirão, a princípio o jornal não publicou nenhum texto sobre

a invasão. Até que, no dia 30 de setembro de 1936, o jornal publicou um texto com a

manchete ―O Beato do Caldeirão – Com vistas ao Sr. Chefe de Polícia.‖. A matéria chama a

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atenção das autoridades do Estado para venda ilegal de bens do beato José Lourenço e do

povo do Caldeirão que foram apropriados pela polícia por ocasião da invasão ao sítio.

[...] Como sabe o público desde que a polícia insurgiu contra o “beato”, pondo fim à vida

estranha que o mesmo levava naquele sítio, estacionou ali um destacamento, incumbido de

manter a ordem e não permitir, certamente, a reorganização do centro de fanatismo e

retardamento social que as autoridades cearenses vislumbravam no pacato município.

Entretanto, segundo informações que nos têm sido enviadas, o destacamento em apreço

está pondo em “leilão” todos os pertences de José Lourenço. Algodão, animais, utensílios

domésticos, tudo enfim, é vendido sem a menor formalidade legal, ao mesmo em que

destroem casas e se impõem a mudança de domicílio de seus habitantes (O POVO,

30/9/1936). (ANEXO D)

No trecho, as palavras, ―beato‖ e ―leilão‖ aparecem entre aspas, uma marca de

entonação que indica a busca de certo distanciamento em relação aquilo que se diz. Ao longo

de todo o texto, a palavra beato aparece sempre entre aspas. Essa marca questiona a

adequação do uso desse termo, comumente atribuído ao líder do movimento do Caldeirão.

Assim, elas assinalam, pois, a presença de uma outra voz que critica a pertinência e validade

dessa denominação, própria das práticas da religiosidade popular. No seu estudo sobre o

caráter heterogêneo da linguagem, Authier-Revuz (2004) destaca que as aspas marcam uma

operação de distanciamento, uma tentativa de suspensão da responsabilidade do enunciador, e

remetem a um outro discurso.

Vale destacar que os trechos do texto em que o movimento Caldeirão é classificado

como centro de fanatismo e retardamento social não aparecem entre aspas, o que assinala a

postura do enunciador em reafirmar e valorizar a utilização desses termos. Além disso, a

escolha do adjetivo ―estranha‖ revela certo posicionamento do enunciador ao representar a

experiência vivenciada no Caldeirão como algo que fugia aos padrões e aos valores

consagrados na época.

As aspas da palavra ―leilão‖, no trecho; ―Entretanto, segundo informações que nos têm

sido enviadas, o destacamento em apreço está pondo em “leilão” todos os pertences de José

Lourenço”, assinalam um tom irônico, pois destacam a inadequação do uso do termo, ao

mesmo tempo em que o reafirmam. Os efeitos de sentido construídos levam a um

questionamento acerca da atitude das forças policiais que se apropriaram dos bens da

comunidade e estavam, em benefício próprio e de forma ilícita, ―leiloando‖, vendendo, os

bens de José Lourenço e do povo do Caldeirão. Inclusive essa atitude da polícia entra em

conflito com a voz presente no texto, segundo a qual as forças policiais seriam os ―agentes

incumbidos de manter a ordem‖.

No texto jornalístico em análise, apesar de haver espaço para a construção de sentidos

que questionam a ação da polícia, predomina uma representação do beato e do Caldeirão a

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partir de forças centralizadoras, que tendem à reprodução dos sentidos hegemônicos,

legitimadores da destruição do Caldeirão. É tanto que, junto à denúncia da venda ilícita dos

bens do beato, na mesma matéria, O Povo transcreve um texto que havia sido publicado no

jornal Correio Paulistano154

, de São Paulo, em que predominam vozes oficiais, que constroem

a representação de José Lourenço como ―herege‖, ―promíscuo‖, ―explorador‖ e uma ―ameaça

à ordem‖.

O “beato” José Lourenço exercia na localidade de Caldeirão completa autonomia e era a

única autoridade obedecida, entregando-lhes os fanáticos os próprios haveres. O “beato”

possuía um harém composto de 16 mulheres jovens e formosas. A sua mesa era farta e

bebidas finas não lhe faltavam.

Mas o “beato” deu a jogaras cristas contra o governo. Ultimamente, afirmam as notícias,

o “beato” José Lourenço fazia observações nada simpáticas ao Sr. Getúlio Vargas. E, vai

daí, a ruína de José.

Que fizesse milagres, vá.

Que formasse fanáticos, compreende-se; que explorasse a crendice sertaneja, tolerasse,

Mas meter-se em política contra o governo, isso nunca (O POVO, 30/9/1936). (ANEXO D)

Assim, o jornal traz explicitamente a presença de uma outra voz, a partir da matéria do

jornal Correio Paulistano, o que reforça o seu posicionamento sobre o movimento Caldeirão.

No trecho, ―Ultimamente, afirmam as notícias, o “beato” José Lourenço fazia observações

nada simpáticas ao Sr. Getúlio Vargas”, a marca da presença de outras vozes se apresenta em

―afirmam as notícias”, ou seja, a informação apresentada teria como fonte as matérias de

outros jornais. É importante destacar a repercussão que poderiam ter textos como esses,

publicados em 1936, quando o Brasil estava sob a liderança autoritária de Getúlio Vargas,

cujo governo reprimia (em nível nacional e estadual) duramente qualquer foco de ―ameaça à

ordem‖. Tais informações são apresentadas no texto como fatos que representam justificativas

para a destruição do Caldeirão. No trecho, ―Que fizesse milagres, vá. Que formasse fanáticos,

compreende-se; que explorasse a crendice sertaneja, tolerasse, Mas meter-se em política

contra o governo, isso nunca”, ficam evidenciadas as vozes que rotulam como ―fanatismo‖ as

manifestações da religiosidade popular e acusam o Caldeirão de ser um foco desordem.

No dia 11 de novembro de 1936, O Povo publicou matéria cujo título é “Os bens do

Beato José Lourenço: Até as portas da Capela foram vendidas”. No texto, o jornal, mais uma

vez, alerta as autoridades para a questão da venda indevida dos bens do beato e de seu povo.

No texto, predomina um tom de denúncia: “Arrobas de algodão no valor de dez contos de

154

O Jornal Correio Paulistano circulou, em São Paulo, de 1854 a 1963. Logo após tomar posse, em 1930,

Getúlio Vargas ordenou o fechamento das instalações do jornal, que passou quatro anos sem ser publicado (SÃO

PAULO, 2014).

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reis, segundo relatamos, afora utensílios domésticos e outros bens de valor foram

transacionados pela polícia, sem a menor formalidade legal, ignorando-se mesmo de onde

tenha provindo tão estranha e injustificável autorização”. Assim, na matéria ecoa uma voz

que denuncia a ação ilícita da polícia, entretanto não há um questionamento à destruição do

Caldeirão:

Que se combatesse o beato, sob o pretexto de que o mesmo era um chefe de fanáticos,

admite-se. Vender-se, porém, aquilo que de direito lhe pertence e aos seus ”romeiros” não

parece justo nem razoável, mesmo porque o Estado é que terá que reparar o prejuízo

resultante da mencionada transação [...] Como essas numerosas foram as vendas da

mesma natureza e cujas transações iniciais devem ter sido feitas pela polícia. (O Povo,

11/11/1936). (ANEXO E)

O texto retoma e reafirma vozes segundo as quais o beato era um ―chefe de fanáticos‖,

o que seria uma justificativa para o combate ao Caldeirão. Cabe destacar que a escolha da

palavra ―pretexto‖ (Que se combatesse o beato, sob o pretexto de que o mesmo era um chefe

de fanáticos, admite-se...) pode indicar um questionamento à validade dessa justificativa.

Entretanto, o enunciador considera admissível o combate ao beato e não questiona o papel do

Estado na destruição do Caldeirão. Sua crítica se restringe à ação da polícia e objetiva alertar

o Governo para que apure os fatos. Predomina, assim, uma voz que considera que o Estado

não tem participação ou sequer tomou conhecimento desses atos ilícitos cuja responsabilidade

recai sobre a polícia.

Lembremos que as representações envolvem escolhas e são construídas a partir de

confrontos político-ideológicos. Nesse sentido, nos textos publicados no jornal O Povo em

1934, ainda antes da invasão ao sítio, era possível ver a construção de sentidos que rompem

com as vozes oficiais sobre o Caldeirão, entretanto, nos textos publicados após a invasão,

predominam vozes hegemônicas, as quais tendem à centralização dos sentidos que defendem a

destruição do movimento e constroem uma representação do beato e sua gente como

―fanáticos‖.

5.4 PARTE III – Textos publicados depois do confronto na Serra do Araripe

Depois da destruição do Caldeirão, muitos trabalhadores que lá viviam se refugiaram

na Serra do Araripe. Em maio de 1937, sob a justificativa de que os remanescentes do

Caldeirão ameaçavam invadir o Crato e Juazeiro, a polícia seguiu para a serra, onde houve um

violento combate, no qual morreram caldeirenses e militares.

A notícia rapidamente se espalhou pela imprensa. Jornais da Capital, do Interior e de

outros estados deram foco para a ―Chacina da Serra do Araripe‖. A morte dos militares foi

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narrada com sensacionalismo e comoção. O Governo do Estado promoveu por ato de bravura,

post mortem, os militares mortos. A opinião pública pedia uma dura reação, em honra dos

―militares chacinados pelos fanáticos do Caldeirão‖.

No dia 10 de maio de 1937, o jornal O Povo chegou a publicar uma nota sobre o

confronto na serra155

e, até janeiro de 1938, publicou mais 17 textos, relacionados ao

Caldeirão. A ―Notícia de última hora‖, publicada do dia 10 de maio, registrava que ―a força

policial sob o comando do Capitão José Bezerra travou luta com o beato José Lourenço‖, mas

ainda não confirmava a morte do capitão (“Chegaram a Juazeiro uma praça morta e três

feridas”).

O beato José Lourenço aparece como o líder, o agente desse confronto com a polícia.

No dia 11 de maio de 1937, a primeira página do O Povo estampava como manchete

principal: “Luta de morte na Serra do Araripe, com letras grandes logo abaixo do logotipo do

jornal. Ainda na primeira página, está a matéria, ao centro, com a chamada: “Perdem a vida

numa impressionante Chacina o Capitão José Gonçalves Bezerra e outros militares” – “A

polícia está no encalço doa fanáticos – Novo Tiroteio à Noite de Ontem – O Grupo de

compõe de 300 homens – O deplorável estado dos mortos - Cabeças quebradas – Braços

cortados e Rostos retalhados a Faca – O Sargento Josafá e o Cabo Benigno parece que

foram pisados num pilão! – O Enterro das Vítimas – Outras Notas” (O Povo, 11/5/1938)

(ANEXO F).

Figura 7: Manchete matéria O Povo

Fonte: O Povo (11/5/1938)

155

Ressaltamos que O Povo era vespertino e o confronto na Serra do Araripe havia ocorrido no final da manhã

do dia 10 de maio de 1937. Assim, por meio de correspondência telegráfica, no mesmo dia do confronto, o jornal

publicou informações preliminares sobre esse acontecimento.

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No ―calor da hora‖, a imprensa, publicou textos em que predominava um tom de

sentimentalismo e autoritarismo, em defesa de uma reação enérgica contra os ―fanáticos‖.

Na chamada da matéria já fica evidenciado o tom apelativo, em função da escolha de

determinadas expressões, tais como: Cabeças quebradas – Braços cortados e Rostos

retalhados a Faca – O Sargento Josafá e o Cabo Benigno parece que foram pisados num

pilão!”.

A matéria continua na página 4. Para contextualizar o assunto, o texto traz os

antecedentes sobre o caso.

Em setembro do ano findo, conforme é de conhecimento público e acaba de ser divulgado

em folheto de autoria do tenente José Góis de Campos Barros, delegado da Ordem Social,

a polícia deste Estado atacou a concentração de fanáticos que há tempos se formara no

sítio “Caldeirão”, do município do Crato, destruindo-o completamente. Os fanáticos,

porém, tiveram tempo de evadir se, internando se nas fronteiras do Ceará com o estado de

Pernambuco (O POVO, 11/5/1937). (ANEXO F)

O texto refere-se ao relatório sobre a invasão ao Caldeirão, elaborado pelo tenente José

Góes de Campos Barro. Conforme já destacado em capítulo anterior, esta publicação é a

versão oficial sobre os acontecimentos e é, com frequência, utilizada pela imprensa da época

como argumento de autoridade. Nesse sentido, é recorrente, ao longo dessa matéria, o

depoimento e a fala das autoridades.

Conforme noticiou “O Estado” de hoje – o sr chefe de polícia recebeu telegrama do

deputado NorõesMilfont, atualmente, em Crato, comunicando que o “secretário” do beato

José Lourenço de nome Sebastião Marinho, ameaçara atacar a fazenda Conceição, a

poucas léguas daquela cidade, que também seria visada pelos fanáticos do Caldeirão (O

POVO, 11/5/1937). (ANEXO F).

Esta matéria, publicada no O Povo de 11 de maio, é toda construída a partir de fontes

oficiais. O texto busca depoimentos da polícia, reproduz telegramas de autoridades e os

comunicados entre os militares através do Rádio da Força Pública. Norões Milfont, por

exemplo, que é uma das fontes da matéria, era advogado dos Salesianos, herdeiros do

Caldeirão, e foi um dos articuladores da destruição da comunidade.

Vale destacar que o fato ocorreu no Cariri cearense e o jornal O Povo circulava na

capital, assim limitações dos meios de comunicação da época contribuíam para a reprodução

de fontes oficiais (que favorecem a centralização dos sentidos), as quais eram acessíveis e

possuíam credibilidade perante o público-leitor. Conforme Dalmaso (2002):

A procura pelas fontes oficiais também passa pelo conceito da representatividade.

As fontes oficiais, por representarem instituições de poder e exercerem também

certo controle e responsabilidades, são as primeiras a serem procuradas pelos

jornalistas, ficando em segundo plano os representados, os que não têm a influência

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de uma autoridade, os que não possuem um cargo representativo (DALMASO,

2002, p.11).

A utilização dessas diversas fontes que compõem a fala do jornal assinala, de forma

explícita, a presença de outras vozes, as quais exaltam a ação militar e criminalizam os

remanescentes do Caldeirão que entraram em choque com a polícia. A retomada da palavra do

outro, portanto, expressa um posicionamento, uma atitude valorativa. Ainda valendo-se de

fontes oficiais, o texto traz, mais uma vez, a fala das autoridades e reproduz comunicados do

Rádio da Força Pública que faz uma descrição aterrorizadora da luta.

O capitão José Bezerra lutou muito até não poder mais, porque recebeu uma foiçada na

nuca que provocou a exposição da massa encefálica. A morte desse oficial foi uma coisa

bárbara.

O sargento Anacleto teve o rosto todo retalhado, tornando impossível reconhecer se suas

feições. Ambos os braças foram cortados nas canas.

O sargento Josafá Gonçalves parece que foi pisado num pilão.

Igualmente sucedeu com o cabo Benigno Gonçalves da Silva. [...]

Consta com visos de verdade que o grupo de bandidos se eleva a trezentos homens. O

Capitão Cordeiro Neto seguiu agora mesmo de avião, a fim de fazer reconhecimento e

tomar as providências que o caso exige (O POVO, 11/5/1937). (ANEXO F)

Em meio a toda a comoção provocada pela morte dos militares, a presença marcada

dessas vozes oficiais favorece a construção de sentidos que justificam uma reação enérgica

contra os ―fanáticos‖ refugiados na serra. Assim, pelas escolhas lexicais da descrição,

constroem-se representações dos militares como ―bravos heróis que foram massacrados

barbaramente por fanáticos‖. Na sequência da matéria, são apresentadas as providências

oficiais, tomadas para reprimir os ―fanáticos‖.

Preparada pelo governo do Estado, viajou para o Crato às 14,45, em trem especial, a

1.B.C. da Força Pública [...] Além dessa força, constituída de 95 praças, com um pelotão

de metralhadoras leves e 6 F.M., seguiu ainda uma ambulância, sob a direção do major dr.

João Vitorioso.

Minutos antes, o cap. Cordeiro Neto seguiu de avião militar para o Cariri, em companhia

do tenente Góis, delegado da Ordem Social, e do tenente Alfredo Dias.

Zarparam também para o local da luta os aviões “Paraíba”, “Chaco”, e “C 83”, sob o

comando do capitão José Macedo[...].

Por determinação do ministro de Guerra, a força federal acontonada neste Estado foi

autorizada a prestar auxílio ao governo estadual no combate ao grupo de fanáticos (O

POVO, 11/5/1937).(ANEXO F)

Assim, ao longo da matéria, é reproduzida uma série de telegramas de autoridades e de

comunicados das forças policiais que vão tecendo os sentidos construídos acerca do choque

entre os refugiados na Serra do Araripe e as forças militares.

Nesse sentido, a presença desses vários textos (e vozes), oriundos de fontes oficiais, na

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matéria em análise mostra que, no ―calor da hora‖, há uma tentativa de silenciamento de vozes

contra-hegemônicas, que possibilitariam a descentralização dos sentidos. Dessa forma, vão se

construindo as justificativas para repressão aos remanescentes do movimento.

O autoritarismo institucional, nas ditaduras brasileiras, também reforçou a voz

oficial, em detrimento das vozes anônimas, do debate nacional. Verificou-se a

extrema centralização das fontes de informação em todos os temas (pautas) que

diziam respeito diretamente a qualquer cidadão brasileiro – problema salarial,

habitacional, de emprego etc. (MEDINA, 2000, p.36).

No dia 12 de maio de 1937, O Povo traz como manchete principal: “Os

acontecimentos na Serra do Araripe”. Na capa, acima do nome do jornal, vem a seguinte

chamada: “Segundo nos declarou hoje o Sr. Chefe de Polícia é bem difícil a captura dos

fanáticos, ora Internados na Serra”. Essa edição traz duas matérias sobre o assunto. Mais

uma vez, o jornal recorre à voz das autoridades. A segunda matéria tem como manchete “Um

jornal do Crato localizou a concentração de fanáticos”.

A primeira matéria é toda baseada em uma entrevista feita com o Capitão Cordeiro

Neto, chefe de Polícia do Estado. O texto traz, em discurso direto, uma reprodução da fala do

Capitão acerca dos acontecimentos da Serra do Araripe.

[...] Os sucessos de Joazeiro, que são uma resultante do ocorrido o ano passado em

Caldeirão – começou o Capitão Cordeiro Neto – revestem se de certa gravidade, se se tiver

em vista o local estratégico em que se acham os transviados e o fanatismo que nos mesmos

desperta o beato José Lourenço” (O POVO, 12/5/1937). (ANEXO G)

No texto, esse tipo de discurso assinala a presença de uma fala de autoridade,

legitimada pela ordem político-econômica, o que traz credibilidade à informação. A partir das

categorias propostas por Bakhtin/Volochínov (1990), neste trecho, haveria a predominância

do estilo linear, pois há uma tentativa de demarcação nítida entre a fala citada e aquele que

cita, uma criação de fronteiras à volta do discurso citado. Assim, estaria conservada a

autenticidade e integridade do discurso de outrem. Tal procedimento objetiva acentuar certo

distanciamento em relação à fala retomada, o que garantiria isenção ao discurso jornalístico.

Entretanto, é possível perceber índices que assinalam a postura apreciativa do produtor do

texto ao dar voz à autoridade policial. A utilização do discurso direto na matéria lida assevera

a gravidade dos acontecimentos e contribui para a construção de sentidos hegemônicos, que

justificam a repressão aos remanescentes do Caldeirão.

Na fala do capitão Cordeiro Neto, ele faz uso do discurso indireto para reproduzir o

que, supostamente, teria sido dito pelas remanescentes do Caldeirão que haviam sido presas e

trazidas para Fortaleza.

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Segundo declarações de algumas das vinte e poucas mulheres que ontem à tarde foram

aprisionadas, pretendiam os fanáticos assaltar as cidades de Joazeiro e Crato para, depois

de saquearem bancos e estabelecimentos comerciais, apoderando se de dinheiro,

estabelecerem se novamente em Caldeirão [...] (O POVO, 12/05/1937). (ANEXO G)

O chefe de Polícia objetiva justificar o quanto o povo do Caldeirão representava uma

ameaça à ordem e apresenta as ―declarações‖ das remanescentes aprisionadas, o que

garantiria, enfaticamente, a veracidade das informações, pois, além de estarem sendo ditas por

uma autoridade, foram coletadas com o próprio povo do Caldeirão.

A declaração das mulheres reafirmava os ―boatos‖ segundo os quais havia o plano de

saques ao Crato e Juazeiro, o que justificava a dura repressão ao povo na Serra do Araripe. Ao

longo da matéria, o capitão diz, ainda, acreditar que ―os fanáticos estão dispersos pela região e

que não é nada fácil a captura‖.

Na mesma edição, do dia 12 de maio de 1937, O Povo transcreve uma matéria que

havia sido publicada no jornal O Crato no dia 17 de abril de 1937. O texto ocupa duas

colunas da primeira página, à esquerda, e continua na página 8. A manchete é a seguinte:

“Um jornal do Crato localizou nova Concentração de Fanáticos em Meados de Abril”.

Abaixo da manchete, a chamada: “Travestido de Crente, o Repórter conseguiu visitar o

Acampamento, observando todos os seus Detalhes – o Beato não tinha Pouso certo – O

Abastecimento do Arraial – a Desventura de José Alexandre – Serviço de Espionagem –

Outras Notas”.

Conforme o texto, um repórter visitou o acampamento dos remanescentes ―travestido

de crente‖ e o jornal O Crato publicou a matéria com o intuito de alertar as autoridades para a

ameaça representada por aquele ―ajuntamento de fanáticos‖.

Não é possível ocultar o perigo que acarreta este ajuntamento selvagem em logar deserto e

despoliciado como a Serra do Araripe, não sendo de estranhar que dentro em breve surjam

roubos e tropelias outras praticadas por aquele bando de inconscientes de quase mil

indivíduos, atualmente vagabundos e ociosos (O POVO, 12/05/1937). (ANEXO G)

Segundo o relato do repórter, os camponeses viviam em ―miseráveis casebres cobertos

de folhas e algumas palhas, as quais mal os abrigavam das chuvas‖, já o beato José Lourenço

não se fixava em um só lugar. O responsável pelo abastecimento do acampamento seria o

comboieiro Severino Tavares. Conforme o texto, o ―ajuntamento‖ teria um ―serviço de

espionagem‖, homens de confiança do beato, vigias, com a “incumbência de dar aviso da

aproximação de forças”. Além disso, os moradores da região estariam revoltados e temerosos

com a presença dos ―fanáticos‖ e ―não é difícil que surja entre eles e os adventos indesejáveis

– séria luta armada”. O texto narra um episódio em que um suposto morador da serra, de

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nome José Alexandre, teria tido a ―desventura‖ de encontrar-se casualmente com José

Lourenço.

O beato interrogou lhe de pronto: “- Tem rosário?” Zéalexandre, aturdido, respondeu

confusamente. Foi o suficiente para que o Beato o agredisse e dominando o, arrancasse lhe

do pescoço aquele sinal de cristão e lhe infligisse, por castigo, rigorosa pancadaria, em

conseqüência da qual Zéalexandre foi obrigado a um repouso de quatro dias [...]. Dado o

exemplo, Zelourenço explicou: „Fiquem sabendo você e seus parceiros que aqui ninguém

usa rosário que não seja dado por mim (O POVO, 12/05/1937). (ANEXO G)

A presença do discurso direto reforça a construção da representação do Beato José

Lourenço como um agressivo fanático, herege, que quer impor sua lei e não respeita os

símbolos e preceitos da Igreja Oficial. Assim o repórter, de certa forma, procura se isentar da

responsabilidade pelo que está sendo dito, procura manter-se afastado. Entretanto, esse

suposto distanciamento pode ser compreendido como uma estratégia argumentativa que

constrói determinados efeitos de sentido. Nessa retomada da fala de outro, predomina o estilo

pictórico, pois é possível perceber, a partir das entoações, das escolhas lexicais, das réplicas e

dos comentários, um claro posicionamento do enunciador.

A utilização do verbo ―interrogar‖, como dicendi, assevera o suposto autoritarismo do

beato. No contexto narrativo, o destaque para verbos de ação, como ―agredir‖, ―dominar‖,

―arrancar‖, ―infligir‖, constroem a representação do beato como um violento fanático, alguém

perigoso à ordem e herege, pois não respeitou o ―sinal de cristão‖.

No texto, contribuem para a construção dessa imagem, ainda, a utilização das

expressões valorativas ―aturdido‖ e ―rigorosa‖. Por fim, a fala do beato, em discurso direto,

pressupõe que aquela agressividade contra o morador da Serra deveria servir como exemplo e

reforça o ―fanatismo‖ do beato José Lourenço, que quer impor a sua liderança e sua fé por

meio da força. Dar voz ao beato, neste contexto, significa comprovar ―através de fatos‖ sua

agressividade e autoritarismo, que representavam uma evidente ameaça à ordem social.

Vale destacar que a matéria publicada no jornal O Povo, em junho de 1934 (antes do

confronto entre os remanescentes do Caldeirão e os militares), traz informações que

contradizem essa imagem depreciativa do beato.

[...] Ali ele reúne seus protegidos, seus agregados e reza. Mas as suas orações são todas

da liturgia romana [...]”.

Dotado de um espírito dócil, amigo da paz e dispondo sempre de agregados, nunca se

aproveitou deles para uma desordem, nunca desrespeitou uma autoridade [..])”.

Quem conhece, de perto, este humilde camponês, dominado sempre pela idéia, ou mania,

de ser superiormente humanitário, não será capaz de esperar dele um movimento qualquer

que implique rebeldia (O POVO, 7/6 934). (ANEXO B)

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Essas vozes, segundo as quais o beato era um homem ―dócil‖, ―respeitador da ordem e

da liturgia romana‖, contrastam com as vozes predominantes nos textos publicados após o

confronto na Serra do Araripe, em que predominam representações do beato como ―herege‖,

―fanático‖ e ―perturbador da ordem‖. Assim, após esse confronto na Serra do Araripe,

percebe-se, no jornal, uma tentativa de silenciamento de vozes que questionem as vozes

oficiais, segundo as quais era necessária uma enérgica repressão àquele movimento.

Predomina ainda, nos textos lidos, uma voz em tom de apelo para que as autoridades

tomassem as medidas necessárias contra os ―fanáticos do Caldeirão‖. Tais vozes são

consonantes com o momento político do país, quando interessa ao Estado, a todo custo,

―impor a ordem‖. Assim, observa-se a construção de um sentido dominante segundo o qual ―o

beato e sua gente são um perigo à ordem pública‖, em oposição a um outro sentido, que é

silenciado, segundo o qual ―o beato e sua gente são honestos trabalhadores rurais‖, ―estão se

escondendo para se proteger das perseguições que vêm sofrendo‖, ―o beato e sua gente só

querem terra para trabalhar‖. Desse modo, predominam forças que tendem à centralização dos

sentidos.

A perseguição aos remanescentes do Caldeirão se estendeu por outros estados do

Nordeste. Ao longo do ano de 1937, a imprensa continuou uma incisiva campanha de

perseguição ao ―fanatismo religioso‖. De maio de 1937 até janeiro de 1938, foram publicados,

no jornal O Povo, diversos textos referentes ao assunto. Dentre eles, no dia 18 de maio de

1937, o jornal traz na primeira página a manchete: ―Um novo Caldeirão? Os fanáticos de

Pedra Branca são partidários da Monarquia- Mais de duzentos, em trajes exóticos, tomaram

parte na festa do Dia dez.”. A matéria é uma publicação da carta de um leitor, que denuncia a

formação de um ―reduto de fanáticos‖ no município de Pedra Branca, interior do Ceará. O

texto alerta as autoridades “para que não se repitam cenas desagradáveis como as que

ocorreram em Caldeirão”. Assim, aquilo que foi dito sobre o Caldeirão é retomado e passa a

constituir os sentidos sobre essa outra manifestação da religiosidade popular. Ao fim da carta,

o jornal publica uma Nota da Redação (N.R)

- N.R – Cumpre às autoridades agir com inteligência e cautela no combate a mais esse

núcleo de fanatismo que reponta em nosso Estado. O caso é mais de catequese, de

ensinamentos prontos e eficazes do que mesmo de polícia. Tomando providências

oportunas e esclarecidas, o governo poderá extirpar essas deploráveis manifestações de

ignorância sertaneja, fazendo penetrar na órbita social aqueles que dela se encontram

afastados à falta de instrução (O POVO, 18/5/1937). (ANEXO H)

Essa nota editorial traz a posição do jornal O Povo sobre o ―fanatismo religioso‖. A

partir de uma perspectiva positivista, evolucionista, o jornal constrói a representação do

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―fanatismo‖ como uma ―expressão da ignorância sertaneja‖. Assim, o jornal constrói sua

representação como ―civilizado‖, ―evoluído‖, ―racional‖. Cumpre destacar que esses valores

são compartilhados pelas camadas letradas da época, ou seja, são construídos a partir de um

―chão comum‖, possuem um ―coral de apoio‖, nos termos de Volochínov (2011). Nesse

contexto, as expressões da religiosidade popular são compreendidas como ―deploráveis‖

manifestações de atraso e ignorância que devem ser combatidas pelas autoridades. Assim,

caberia às autoridades tomar providências oportunas e esclarecidas, fazendo os ―fanáticos‖

penetrarem na ―órbita social‖. A escolha desse último termo, ―órbita social‖, revela

julgamentos de valor e um posicionamento segundo o qual os adeptos do ―fanatismo‖

estariam à margem da sociedade e a ―instrução‖ seria o caminho para tirá-los dessa

marginalidade.

O jornal apresenta, assim, uma voz questionadora às vozes dominantes, já que destaca

que os casos de ―fanatismo‖ precisariam ―mais de catequese, de ensinamentos prontos e

eficazes do que mesmo de polícia‖. Nesse sentido, aparece uma voz em defesa de outra

solução no combate ao ―fanatismo religioso‖ que não a ação policial. Entretanto, apesar de

trazer essa voz, no texto ecoam vozes que constroem as representações das manifestações da

religiosidade popular como ―fanatismo‖, atraso e ignorância que deveriam ser combatidas em

nome do progresso e da civilização.

Nos dois dias seguintes, 18 e 19 de maio, o jornal confirma a existência do grupo de

―fanáticos‖, em Maria Pereira, e narra as providências das autoridades para resolver o caso: a

polícia dispersou os ―fanáticos‖ e prendeu o líder do movimento. A edição do dia 20 de maio

(ANEXO J) traz na primeira página a foto de Mestre Silvino, apontado como líder desse

movimento, sua esposa e um filho, que foram presos e trazidos para Fortaleza. Vale frisar que

nas matérias publicadas, em três edições seguidas, sobre o núcleo de Maria Pereira, as vozes

que criminalizam o Caldeirão são retomadas e vão construir os sentidos sobre o núcleo de

Maria Pereira, que foi apresentado pelo jornal primeiro a partir de interrogações nas

manchetes: ―Um novo Caldeirão?” (18/05/1937) (ANEXO H), “Novo Caldeirão?”

(19/5/1937) (ANEXO I), até chegar à afirmativa: “Novo Caldeirão”.

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Figura 8 - Manchete matéria O Povo

Fonte: O Povo (19/5/1937) (ANEXO I)

Assim, a partir de um diálogo entre vozes (anteriores) sobre o Caldeirão, o jornal

constrói os sentidos sobre o ―novo reduto de fanáticos‖. Há nos textos, ainda, marcas que

indicam esse diálogo entre as vozes sociais no embate para a construção dos sentidos sobre

essa outra comunidade religiosa.

Cumpre às autoridades agir com inteligência e cautela no combate a mais esse núcleo de

fanatismo que reponta em nosso Estado”[...]

Concluindo suas interessantes informações sobre o assunto, disse nos o prefeito Carlos

Benevides que, a seu ver, o chefe dos fanáticos de Maria Pereira é um elemento

desgarrado do “Caldeirão” ou que ainda sofre as influências do fanatismo que por tantos

anos predominou no Cariri. (O Povo, 19/5/ 1937.) (ANEXO I)

O trecho “mais esse núcleo de fanatismo” pressupõe que já havia outros núcleos no

Estado, ou seja, retoma os sentidos construídos acerca do Caldeirão. No texto, no discurso

indireto que reproduz a fala do prefeito do município, é destacada uma possível relação entre

o Caldeirão e o chefe dos ―fanáticos‖ de Maria Pereira.

Na edição seguinte, 21 de maio, O Povo estampa na primeira página, em duas colunas,

à direita, a manchete: “Fanáticos do Caldeirão em Fortaleza”, seguida da chamada:

“Interessantes declarações feitas à Reportagem do O POVO - Como eles veem o Beato

Zelourenço‖. A reportagem fala da chegada em Fortaleza de ―uma carga humana muito

interessante para a reportagem dos jornais” (O POVO, 21/7/1937).

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Nada menos que vinte e nove fanáticos, entre homens e mulheres, todos adeptos do beato

Zelourenço, vieram presos de Joazeiro, para, nesta capital, seguirem o destino que a

polícia lhes der.[...]

A reportagem do O POVO procurou ouvi los pela manhã de hoje.

Os homens negam peremptoriamente que sejam fanáticos.

Conversando com Valdevino Pereira dos Santos, individuo moreno, cego de um olho, de

barba esquálida, roupa escura e preta, colhemos dele as seguintes declarações:

- Foragido de Caldeirão, o “beato” quase nunca aparecia nos ajuntamentos. Foi ele quem

deu dinheiro para nós sairmos dali e por isso o seguimos. Quando tinha de dar algum

conselho fazia o por intermédio se Severino. Zelourenço aparecia ora aqui ora ali, de sorte

que ninguém pudesse encontra lo.

Acerca da santidade do beato não acredito nada. Sei apenas que é um homem como os

outros, muito trabalhador e caridoso. Por isso é muito querido. [...]

As declarações que fizeram os companheiros de Valdevino foram idênticas. [...] (O POVO,

21/5/19379 (ANEXO K)

Observa-se que o jornal nomeia a “interessante carga humana” como fanáticos (sem

a utilização de aspas que estabeleceriam certo distanciamento e questionamento). Entretanto,

em discurso indireto, aparece a voz dos remanescentes do Caldeirão os quais negam

terminantemente que fossem fanáticos.

Importante destacar que, ao longo das matérias que compõem o corpus desta pesquisa,

o povo do Caldeirão é nomeado pelo signo ideológico ―fanático‖. Conforme já destacado nos

capítulos anteriores, as palavras são carregadas de intenções. O ato de nomear, portanto, não é

neutro, pois assinala um posicionamento em relação ao ―outro‖, uma atribuição de valor ao

que se diz. As formas linguísticas não são neutras e isentas de intencionalidades, pois

correspondem a diferentes perspectivas ideológicas. Assim, algumas palavras podem ser

selecionadas, outras rejeitadas, de acordo com a relação valorativa entre as vozes em diálogo.

Nesse contexto, a denominação ―fanático‖ é comumente utilizada para adjetivar as

manifestações de religiosidade do povo, que são consideradas ―insanas‖, ―rudes‖,

―ignorantes‖, ―atrasadas‖. E, como já esclarecemos neste trabalho, no final do século XIX e

início do século XX, o combate ao chamado ―fanatismo religioso‖ serviu com um dos

pretextos para a destruição de movimentos, que, além da questão da religiosidade, eram

motivados por problemáticas sociais decorrentes da concentração fundiária, dentre estes:

Canudos, Contestado, Caldeirão e Pau de Colher.

Os religiosos populares não se consideram fanáticos, mas sim católicos praticantes dos

preceitos cristãos. Uma das acusações sofridas pelo povo do Caldeirão era a heresia, segundo

os boatos, no sítio, o beato José Lourenço era adorado como um santo. Entretanto, no discurso

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direto, o remanescente do Caldeirão Valdevino Pereira nega tal afirmação: ―Acerca da

santidade do beato não acredito nada. Sei apenas que é um homem como os outros, muito

trabalhador e caridoso. Por isso é muito querido[...]”. Assim, há uma tensa relação entre

esses sentidos construídos acerca de José Lourenço. Ao dar voz aos remanescentes, marca-se a

presença de vozes que constroem uma representação do beato como homem honesto e

trabalhador. Entretanto, do desfecho da matéria, ainda prevalecem sentidos dominantes na

representação do beato José Lourenço e o povo do Caldeirão.

As mulheres por serem menos experientes manifestam se mais crentes no beato e o julgam

um deus, a quem é devida cega obediência.

Dentre elas, destacam-se algumas de cor branca, peles roses e assetinada, vestindo,

porém, hábito preto do qual se exala um mao cheiro insuportável.

Conforme nos declarou anteriormente o Sr. Chefe de polícia pretende fazer embarcar

todos os fanáticos para suas terras de origem. (O POVO, 21/5/1937). (ANEXO K)

Segundo o texto, as mulheres ―manifestam-se‖ mais ―fanáticas‖ pelo beato José

Lourenço, a quem julgam um Deus. Assim, reafirmam-se os sentidos dominantes acerca da

santidade de José Lourenço e do fanatismo religioso do movimento. A “cor branca, peles

roses e assetinada” de algumas das mulheres as destacariam entre as prisioneiras. Os termos

“branca” e “assetinada” traz ideia de limpeza. Entretanto, a adversativa “porém” reverte

esse quadro, já que, apesar de terem, a cor branca e a pele roses e assetinada, essas mulheres,

assim como as outras, vestiam ―hábito preto do qual se exala um mau cheiro insuportável”.

Assim constrói-se um tom depreciativo sobre o povo do Caldeirão. Por fim, o jornal

apresenta, mais uma vez, a fala das autoridades acerca das providências a serem tomadas para

a dispersão dos ―fanáticos‖.

No dia 21 de agosto de 1937, O povo publicou, na página 5, matéria com a seguinte

manchete: “Nova investida do Beato Zélourenço.”. A matéria fala sobre o ―terror‖ das

populações do Vale do Cariri, ameaçados com uma possível ―investida do beato Zélourenço e

sua grei contra as cidades de Crato e Juazeiro‖. O texto, mais uma vez, tem como fonte o

capitão Cordeiro Neto, chefe de Polícia do Estado, que, afirma, em discurso direto, que ―o

fanatismo dos jagunços pelo beato José Lourenço é um fato‖ e que os remanescentes do

Caldeirão vivem como ―nômades na serra‖. O capitão destaca, ainda, que o Caldeirão, que

estava sob o poder de seus herdeiros legais, vinha sofrendo ameaças de invasão pelos

―beatos‖.

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- Como é de conhecimento público, o Caldeirão, depois de desalojados os fanáticos,

passou a pertencer a uma ordem de religiosos, que ali mantem seus prepostos. Esses

homens tem recebido constantes ameaças por parte dos beatos, para que abandonem as

terras, que julgam deles sob pena de um assalto. (O POVO, 21/8/1937) (ANEXO L)

O signo ideológico ―beato‖, nesse contexto, tem o mesmo valor semântico que

―jagunço‖, ―bandido‖, ―fanático‖, ou seja, sentidos bem diversos daqueles construídos, por

exemplo, quando o próprio povo do Caldeirão nomeia José Lourenço como ―beato‖. No fim

da matéria, o capitão afirma que o beato José Lourenço estava sendo visto pela serra, mas

―sem as atitudes hostis que o caracterizaram anteriormente‖. Assim, conforme veremos na

análise dos próximos textos, começa a ser construída uma representação do beato José

Lourenço como alguém que não representa mais uma ameaça à ordem, entretanto os

remanescentes do Caldeirão continuam sendo representados como ―elementos perigosos à

ordem‖.

No dia 3 de setembro de 1937, O Povo publicou artigo escrito pelo advogado Ademar

Fernandes Távora156

, intitulado ―O eterno problema‖. No texto, ao autor trata da problemática

do banditismo no Ceará e exige das autoridades providências no combate à presença de

cangaceiros no interior do estado. O autor estabelece um paralelo entre a ação da polícia no

combate ao banditismo e no combate ao Caldeirão.

Os que moram naquelas paragens, sem nenhuma arma para se defenderem e ameaçados, a

todo momento, de ataque por parte dos bandidos, estão, até hoje, esperando qualquer

socorro das autoridades que ainda não se mexeram [...] Quando lembramos da presteza

com que o governo mandou arrasar Caldeirão, onde algumas centenas de criaturas

humildes se entregavam ao trabalho e as orações, não podemos deixar de perguntar se a

esse mesmo governo porque fica impassível diante de um perigo como o que ora ameaça as

populações de três municípios (O POVO, 2/9/1937).(ANEXO M)

Assim, em confronto com as vozes que justificavam a ação da polícia contra o

Caldeirão, emerge essa voz que questiona a ―presteza‖ com que as autoridades mandaram

―arrasar‖ o Caldeirão e em face de sua indiferença no combate ao banditismo no estado.

Assim, constrói-se uma representação do povo do Caldeirão como ―humildes criaturas que se

entregavam ao trabalho e às orações‖. Nesse sentido, questionam-se as vozes oficiais que

rotulam o beato e sua gente como ―fanáticos desordeiros‖. Conforme Ademar Távora, ―Para

Caldeirão, bastaria ter mandado dois ou três missionários e estes, pregando a palavra de

Deus, teriam resolvido um caso que a polícia, com seus desmandos e violência, só fez foi

complicar”. Desse modo, emergem vozes que questionam a necessidade de uma ação militar

contra o Caldeirão, por outro lado, prevalecem sentidos que consideram que o povo do

156

O advogado cearense Ademar do Nascimento Fernandes Távora e Antônio Alencar Araripe representaram o

beato José Lourenço numa ação contra o Estado em 1944.

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Caldeirão necessitava de uma ação ―catequética‖, ―missionária‖.

Nesse artigo, escrito pelo advogado Ademar Távora, são construídos sentidos

dissonantes daqueles que predominam nos textos publicados após o confronto na Serra do

Araripe. Assim, até janeiro de 1938, diversas matérias publicadas no O Povo associam crimes

praticados pelos sertões ao beato José Lourenço e sua gente. No dia 27 de novembro de 1937,

o jornal traz a manchete: “Um Grupo de Fanáticos ameaça o Distrito de Iracema – Será o

Beato José Lourenço?”.

Do juiz distrital de Iracema, município de Pereiro, nas fronteiras deste Estado com o Rio

Grande do Norte, recebeu da chefatura de polícia o seguinte telegrama:

“Iracema, 20, comunico a V. excia que um grupo de fanáticos se encontra nas fronteiras

deste distrito com o Rio Grande do Norte. O povo alarmado espera socorro”. Cândido

Couto.

Ao que estamos informados, a polícia tomou urgentes providências a respeito do assunto.

Telegramas do R.G do Norte publicados na imprensa do Rio e ontem divulgados pelo

Rádio davam notícia da permanência do beato José Lourenço naquele Estado, com

numeroso grupo de fanáticos (O POVO, 27/11/1937). (ANEXO N)

Conforme a matéria, telegramas ―davam notícia‖ da permanência do beato no Rio

Grande do Norte e logo crimes cometidos por lá estavam sendo associados a ele e a seus

adeptos. No dia 29 de novembro, O Povo publica outra matéria com a manchete: O Beato

José Lourenço no Rio Grande do Norte – Novos Telegramas sobre os seus Fanáticos. O

texto, mais uma vez, é construído a partir de comunicados entre as autoridades.

[...] Segundo informações colhidas pelo prefeito (de Pereiro), o beato Zélourenço, quando

ainda estava em Joazeiro , mandou seu emissário Severino a Pereiro, a fim de conseguir

adeptos. O secretário do beato chegou a levar para o antro de Zelourenço várias famílias.

Em Pereiro, já chegaram dois caminhões conduzindo soldados a fim de reprimir os

fanáticos (O POVO, 29/11/1937). (ANEXO O)

A partir da fala do prefeito, em discurso indireto, reafirmam-se os sentidos que

consideram o beato José Lourenço como um explorador que enviava um emissário (Severino

Tavares) com o intuito de conseguir ―adeptos‖ para o ―antro de fanáticos‖. A marca da

presença da voz das autoridades, “segundo informações colhidas pelo prefeito” [...], mais

uma vez, pretende dar credibilidade e veracidade às informações.

No dia 13 de janeiro de 1938, na mesma edição em que saíam “as contraditórias

notícias sobre a morte de Lampeão‖, o jornal O Povo publicou, na primeira página, uma curta

notícia intitulada: “O Beato Zelourenço na Bahia?”, seguida da chamada: “Quinhentos

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homens – mais de oito pessoas trucidadas”. Esta notícia reproduz um telegrama (que havia

sido publicado em um jornal do Rio Grande do Norte), segundo o qual o Beato José Lourenço

estaria à frente de um bando de ―fanáticos‖ cometendo crimes na Bahia. A edição do dia

seguinte, 14 de janeiro de 1938, traz na primeira página uma grande manchete acima do nome

do jornal: “O BEATO LOURENÇO NA BAHIA?‖, seguida da chamada: “A notícia de seu

reaparecimento à Frente de 500 Homens – Fala a O POVO o Delegado da Ordem Social”.

Com o subtítulo ―TERROR DOS SERTÕES‖. Segue detalhe da primeira página desta edição

do jornal.

Figura 9 – Manchete jornal O Povo

Fonte: jornal O Povo (14/1/1938)

A matéria afirma:

- Cremos não haver mais quem entre nós desconheça o beato Zelourenço e o halo de

misticismo que envolve o nome do mesmo [...] (O POVO, 14/1/1938). (ANEXO Q)

O jornal estabelece um diálogo com os leitores ao reafirmar a fama do beato José

Lourenço, que se estampava pelas páginas dos jornais nos últimos meses. Em seguida, a

matéria apresenta uma entrevista com o tenente José Góes de Campos Barros que, em

discurso direto, afirma:

- A polícia já tem convicção de que José Lourenço não armou os fanáticos contra o

capitão José Bezerra e que tudo isso partiu de seu sequaz Severino Tavares, o qual com

alguns asseclas cindiu se do beato. Adiantou nos mais o tenente Gois que a polícia tem

estado em contato com o beato Lourenço, por intermédio de pessoas residentes no Crato,

inclusive o atual prefeito.

- Vê se, assim, que é impossível estar o beato na Bahia. Zé Lourenço encontra-se na serra,

inchado e atacado pelos carrapatos. Sua sorte infunde compaixão [...] (O POVO,

14/1/1938). (ANEXO O)

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Ele destaca, ainda, que os crimes cometidos na Bahia e em outros estados poderiam

estar sendo praticados por cangaceiros, ou mesmo pelos homens do beato, mas sem a

participação de José Lourenço, que se encontrava no Crato.

- Tal deve ser o que ora se observa na Bahia. Um grupo de cangaceiros comete crimes e

logo se propais ser o o beato Zelourenço. Por último, também aparecera, alguns fanáticos

em Pereiro e logo se espalhou a notícia de que o beato estava a sua frente, quando isso

não era verdade (O POVO, 14/1/1938). (ANEXO O)

Por meio da utilização dos discursos direto e indireto, o jornal apresenta a fala do

tenente José Góes, que, ao longo da entrevista, vai construindo uma imagem do beato como

alguém fragilizado e que não representa mais nenhuma ameaça.

- [...] O beato pediu humildemente ao governo um lugar certo para trabalhar sem risco

de sofrer perseguições e necessidades.

O último pedido de José Lourenço ao governo foi no sentido de pelo amor de Deus, não o

deixasse passar o inverno no mato. Por tudo isso, sou um daqueles que acreditam na

regeneração do beato José Lourenço (O POVO, 14/1/1938). (ANEXO O)

Na fala do tenente, as escolha dos termos “inchado”, “atacado pelos carrapatos”,

“sua sorte infunde compaixão”, “pediu humildemente ao governo”, levam à construção da

representação do beato como um homem que foi ―derrotado‖ e ―aprendeu a lição‖ dada pelas

autoridades, portanto se ―regenerou‖. Para as autoridades, o beato José Lourenço não

representava mais um perigo, já tinha sido vencido. Entretanto, os fugitivos do Caldeirão é

que estariam espalhando o terror pelos sertões.

No dia 19 de janeiro de 1938, O Povo traz na primeira página uma manchete, acima do

nome jornal, “Quinhentos homens do Beato Lourenço – assaltando e matando na Bahia”,

seguida da chamada: “O Beato não está á frente do bando”. A matéria é ilustrada com uma

foto rara do Beato José Lourenço ao lado de uma afilhada, prova de que ele estaria no Ceará.

O texto reproduz noticiário telegráfico da Bahia e de Pernambuco que registra a prática de

crimes que seriam atribuídos a José Lourenço.

Em uma Nota da Redação, o jornal O Povo esclarece que o Beato José Lourenço não

poderia estar à frente do bando e usa como argumento a entrevista dada pelo Tenente José

Góes Barros.

– É possível que os assaltos a quem se tem referido o noticiário telegráfico, nos últimos

dias, sejam praticados, efetivamente, por elementos que obedeciam à orientação do beato

Lourenço. Uma cousa, porém, podemos afirmar, o beato não está à frente dos mesmos, por

isso que se encontra presentemente no Cariri, consoante informações que dali temos

recebido.

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A razão está inteiramente com o Sr. Delegado da Ordem Social, na entrevista que há

poucos dia concedeu a O POVO

E, para prová-la, aí temos uma fotografia do beato José Lourenço e uma filha de criação

do mesmo, apanhada recentemente no Cariri de onde foi enviada ao tenente Góis Barros,

que teve a gentileza de cedê-la a este jornal [...] (O POVO, 19/1/1938). (ANEXO P)

O jornal reafirma e retoma a fala do Tenente Góes Barros, que afirmara que José

Lourenço encontrava-se no Cariri cearense e também assinala a presença de outras fontes que

confirmam o fato ―consoante informações que dali temos recebido”. Por fim, utilizam como

prova da veracidade da informação a publicação da foto de José Lourenço.

Figura 10 - Beato José Lourenço com sua afilhada Maria de Maio

Fonte: Jornal O Povo (19/1/1938)

Assim, nos textos dos dias 13, 14 e 19 de janeiro de 1938, é construído um sentido que

diz: ―O beato José Lourenço não está à frente de um bando de criminosos e não representa

mais uma ameaça‖, o qual é reforçado por escolhas léxico-discursivas como “a sorte do beato

infunde compaixão”. Em contrapartida, sobre as representações dos remanescentes do

Caldeirão, impõe-se e reafirma-se um sentido hegemônico: ―Os homens do beato andam

assaltando e matando pelos sertões‖.

Os últimos textos publicados sobre o Caldeirão no jornal O Povo, de 24 a 27 de

janeiro de 1938, associam essa experiência ao movimento Pau de Colher (BA). Lembremos

que a repressão ao movimento Pau de Colher envolveu as polícias de, pelo menos, três

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estados: Bahia, Pernambuco e Piauí, tendo em vista que o sítio onde se reuniam os adeptos do

beato Senhorinho ficava em uma área de divisa entre esses estados. Assim, O Povo publicou,

dia 26 de janeiro de 1938, uma matéria intitulada “Os fanáticos; rechaçados pela polícia,

internam-se no Piauí”, que trata das ameaças dos ―fanáticos‖ de Pau de Colher invadirem os

estados vizinhos e as medidas tomadas pela Secretaria de Segurança Pública do Ceará para

“defender as fronteiras cearenses”, tendo em vista que “bandoleiros” de Pau de Colher

teriam procurado refúgio no território do Piauí.

Figura 11 – Manchete jornal O Povo

Fonte: O Povo (26/1/1938)

Ainda antes da publicação dessa matéria, o jornal O Povo publicou, no dia 24 de

janeiro de 1938, em primeira página, a manchete: “140 baixas. 42 horas de fogo entre os

Fanáticos e a Polícia - Seguirá de Fortaleza um avião pilotado pelo Capitão Macedo”

(24/1/1938). A reportagem trata de suposto confronto entre os ―fanáticos do beato José

Lourenço‖ e forças policiais na Bahia. “Desde cedo, circulou na cidade a notícia de que teria

havido renhido encontro armado entre uma volante policial e os fanáticos do beato José

Lourenço, em território da Bahia”. Assim, a reportagem traz, mais uma vez, como fonte o

capitão Cordeiro Neto, que confirma a ocorrência de conflito entre a polícia de Pernambuco e

um ―grupo de fanáticos‖, mas alerta que o beato José Lourenço não estaria à frente do

―bando‖.

Disse-nos o cap. Cordeiro Neto estar convencido de que não se trata do beato José

Lourenço. É possível que no grupo se encontrem fanáticos do extinto Caldeirão, mas o

beato, este se acha no Cariri.

Por nossa vez, podemos assegurar que o beato José Lourenço se encontra, de fato, no

Cariri, neste Estado, pois, além da fotografia que há dias publicamos, recebemos uma

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outra, tirada na semana passada, na qual se vê o ex-chefe do Caldeirão em atitude pacífica

( O POVO, 24/1/1938) (ANEXO Q)

Reafirmam-se os sentidos segundo os quais o beato José Lourenço não estaria à frente

desse grupo de ―fanáticos‖ na Bahia, entretanto, conforme é destacado, em discurso indireto,

na fala do Capitão Cordeiro Neto, ―É possível que no grupo se encontrem fanáticos do extinto

Caldeirão”. A utilização do verbo ―assegurar‖ assinala uma postura do jornal ao enfatizar que

o beato José Lourenço encontrava-se no Cariri cearense. Assim, constrói-se uma

representação de José Lourenço como um homem ―pacífico‖, ―indefeso‖, entretanto os

remanescentes do Caldeirão são, ainda, representados como ―fanáticos‖ que poderiam estar

envolvidos nos confrontos ocorridos na Bahia.

No dia 25 de janeiro de 1938, O Povo publica outra matéria sobre as ocorrências na

Bahia, com a manchete: “600 homens constituíam o Reduto desbaratado pela Polícia”.

A opinião pública desta capital está voltada para os sucessos ora desenrolados na

fronteira da Bahia com o estado de Pernambuco, onde centenas de fanáticos, estão

causando toda sorte de crimes e depredações.

Neste momento, e desde alguns dias, elementos da polícia nordestina conjugam esforços

para rechaçar os fanáticos, os quais se acredita serem remanescentes do bando que há

alguns meses, assolou no Ceará, causando a morte do Capitão José Bezerra e de vários

elementos da Força Pública cearense (O POVO, 25/1/1938). (ANEXO R)

Assim, não são mais feitas referências à presença do beato José Lourenço nesses

conflitos, entretanto é levantada a possibilidade (“acredita-se”) de que os ―fanáticos‖ de Pau

de Colher fossem remanescentes do ―bando‖ que entrou em confronto com militares na Serra

do Araripe. A mesma matéria reproduz trecho de uma notícia publicada em Recife, a qual

apresenta as ações da polícia pernambucana no combate àquele grupo de ―fanáticos‖ e

―cangaceiros‖, constituído, “segundo se sabe”, “em parte, por elementos procedentes do

Ceará, que tomaram parte nos sucessos do Caldeirão”.

Na última matéria publicada no período que compõe o corpus desta pesquisa (1934-

1938), O Povo estampa, em primeira página, a manchete: “UM COMUNISTA ENTRE OS

FANÁTICOS: os celerados recebiam armas modernas, engrossavam suas fileiras com

Moradores das Margens do Rio São Francisco”. Na matéria, aparecem, mais uma vez, vozes

que afirmavam que o beato José Lourenço poderia estar liderando aquele movimento: “se

supunha” que José Lourenço estaria chefiando “aquele grupo de fanáticos”. Entretanto, no

texto, predominam vozes que associam o movimento Pau de Colher ao Comunismo. “Foi

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153

confirmado que os fanáticos recebiam armas modernas de pessoas residentes à margem do

São Francisco, bem como que o extremista Sodré Viana se acha entre os celerados” 157

.

Importante enfatizar os sentidos do signo ideológico ―comunista‖ nesse contexto de

recém-instauração do Estado Novo. Conforme já destacado, havia uma incisiva ―campanha‖

de perseguição àqueles que representassem uma ameaça ao poder instituído. Assim, nesse

período, o ―comunista‖ emerge como o ―outro‖, ―subversivo‖, ―extremista‖, que poderia

trazer grandes danos à ordem social. O jornal O Povo, portanto, fala a partir desse horizonte

social de valores e reproduz essas vozes que defendem que os ―comunistas‖ são um ―perigo à

ordem‖ e devem ser combatidos. Assim, associar ―fanáticos‖ a ―comunistas‖, nesse contexto

político, significa construir as representações desse ―outro‖ como o ―inimigo‖ que deveria ser

duramente reprimido. Ou seja, essa imagem do ―fanático comunista‖ ilustra bem a estratégia

de identificar um ―outro‖ para, em seguida, ―demonizá-lo‖ e construir uma representação de si

como ―civilizado‖, ―instruído‖, ―ordeiro‖.

Assim, ao longo das matérias que relacionam o Caldeirão a Pau de Colher, os adeptos

desses movimentos são nomeados (além do termo recorrente ―fanático‖) como ―bandoleiros‖,

―celerados‖, ―bandidos‖, ―cangaceiros‖ e também ―comunistas‖. Tais termos não são isentos

de julgamentos de valor, tendo em vista que as representações envolvem posicionamentos,

assim essas formas de nomear assinalam os confrontos entre posições antagônicas no

processo de construção dos sentidos.

157 Jerônimo Sodré Viana, jornalista baiano, era partidário da ANL, Aliança Nacional Libertadora (que tinha

sido posta na ilegalidade em 1935), e pertencente a uma família de tradição política em Casa Nova, município

onde se localizava a fazenda Pau de Colher. Assim, por questões políticas, surgiram denúncias de que Sodré

Viana seria o líder intelectual do movimento Pau de Colher, o que representaria uma séria ameaça ao recém-

instaurado Estado Novo. Inclusive, o prefeito de Casa Nova, ligado à família Viana, foi destituído do cargo e em

seu lugar foi colocado um interventor militar. Nesse sentido, conforme Brito (1998, p. 54), há ―indicativos de

que as alegações de marxismo/comunismo foram utilizadas como pretexto para justificar a intervenção na

prefeitura de Casa Nova‖.

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154

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho, a partir do referencial teórico-metodológico da Análise Dialógica do

Discurso, analisamos a construção das representações do movimento Caldeirão e do beato

José Lourenço na cobertura do jornal O Povo (1934-1938). Os discursos são permeados, apor

múltiplas e heterogêneas vozes sociais, compreendidas como diferentes perspectivas sócio-

ideológicas, posturas axiológicas que assinalam determinada interpretação do mundo. Assim,

analisamos, no discurso jornalístico sobre o movimento Caldeirão, a heteroglossia,

compreendida como a inter-relação entre as vozes sociais no universo das relações dialógicas.

Trilhamos nosso percurso a partir do estudo de conceitos fundantes da teoria

bakhtiniana, tendo em vista que a heteroglossia se manifesta por meio de mecanismos como o

discurso citado e os acentos apreciativos. O processo de construção dos sentidos, na

perspectiva aqui trabalhada, envolve lutas e jogo de forças que se efetivam na concretude da

comunicação verbal. Daí a importância de termos discutido, também, sobre signo ideológico e

relações de poder para chegarmos ao debate sobre políticas de representação, pois as

representações são construídas a partir de processos que envolvem escolhas, posicionamentos,

forças de estabilidade e instabilidade. Ou seja, os sentidos não são, simplesmente, impostos.

A Análise Dialógica do Discurso trabalha com uma concepção de linguagem calcada

na historicidade, nas situações concretas de interação verbal. Desse modo, no percurso de

desenvolvimento do trabalho, discutimos sobre as configurações e especificidades do discurso

jornalístico e sobre as condições de produção e circulação do jornalismo cearense nas décadas

de 1920 e 1930, com foco para a história do jornal O Povo, no âmbito dos confrontos

políticos em cena na época.

No universo das relações dialógicas, as vozes sociais se constituem a partir do diálogo

com outras vozes, constituindo a corrente da comunicação verbal. Dessa forma, na

apresentação do contexto histórico do movimento Caldeirão, mobilizamos uma discussão

sobre a construção histórica dos signos ideológicos ―beato‖ e ―fanático‖ (na perspectiva do

horizonte social das camadas letradas da sociedade) e sobre os movimentos sociorreligiosos

Canudos, Contestado e Pau de Colher. Os sentidos são construídos na historicidade, a partir

do diálogo entre diversas vozes sociais. Assim, os sentidos sobre o Caldeirão, muitas vezes,

são construídos a partir de vozes que emergiram na trajetória de luta de outros movimentos

sociais.

O ―chão comum‖, o horizonte social de valores das camadas letradas é, também,

construído historicamente e, nesse contexto, os movimentos sociorreligiosos são

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155

representados como o ―outro‖, o ―estranho‖, ―a expressão de atraso‖. E esse processo de

representar o ―outro‖ consiste em construir uma representação de si como o ―evoluído‖, o

―civilizado‖.

Em nossa análise, na primeira parte da cobertura do jornal O Povo, é possível observar

que, no jornal, emergem vozes que questionam uma série de acusações as quais o beato José

Lourenço e seu povo vinham recebendo. As ironias presentes no texto carregam um tom de

crítica aos detratores do beato José Lourenço. Portanto, no primeiro texto da cobertura (O

Povo, 7/6/1934), predomina a construção de uma representação do beato e de sua gente como

―honestos trabalhadores, incapazes de cometer desordem‖. No texto escrito por Alcântara

Machado (O Povo, 2/3/1935), o beato José Lourenço e Severino Tavares são nomeados a

partir de signos como ―malandros‖, e ―canalhas‖; os sertanejos são representados como

―coitados alucinados pela seca‖. O autor fala a partir de um horizonte social de valores que

compreende a religiosidade do povo do Caldeirão como a expressão de um ―misticismo

analfabeto‖. Assim, na primeira parte da cobertura do jornal O Povo, pode-se observar a

tensão entre diversas vozes sociais, que marcam diferentes perspectivas sócio-ideológicas no

processo de construção da representação do beato José Lourenço e sua gente.

Na segunda parte da cobertura, depois da invasão ao sítio Caldeirão, antes do

confronto na serra do Araripe, há duas matérias que trazem um questionamento sobre a venda

indébita dos bens de José Lourenço, entretanto prevalece a construção da representação do

beato José Lourenço a partir de vozes hegemônicas, que justificam a destruição do Caldeirão.

Nos textos em análise, observamos, por exemplo, o uso das aspas na palavra ―beato‖,

utilizadas como marca de distanciamento, numa tentativa de isenção de responsabilidade e, ao

mesmo tempo, de ironia, de questionamento da validade daquela nomeação para o líder do

Caldeirão. Além disso, na mesma edição em que há a denúncia da venda ilícita dos bens de

José Lourenço, O Povo reproduz matéria publicada no jornal Correio Paulistano, em que

predominam vozes oficiais que constroem a representação do beato José Lourenço, a partir de

signos como ―herege‖ e ―promíscuo‖. Assim, se antes da invasão ao Caldeirão, ainda era

possível a emergência de vozes que questionavam os sentidos oficiais sobre o Caldeirão, após

a invasão, predominam vozes oficiais que legitimam a repressão ao movimento e representam

o beato José Lourenço e sua gente como ―fanáticos‖.

Depois do confronto na Serra do Araripe, a cobertura do jornal passa a reproduzir os

sentidos legitimados pelos grupos de poder, em uma tensa relação com outros sentidos. A

morte dos militares nesse conflito parece ser um ―divisor de águas‖ na cobertura do jornal O

Povo sobre o Caldeirão. Antes do confronto, ainda era possível emergirem vozes que

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156

apontavam para a construção de sentidos marginalizados, em contraponto aos sentidos

hegemônicos sobre o Caldeirão. Porém, após esse confronto, as camadas dominantes se

uniram para reprimir os remanescentes do Caldeirão na Serra do Araripe e, no jornal O Povo,

passam a predominar vozes que defendem o ―combate ao fanatismo religioso‖, em

consonância com interesses dos grupos sociais de poder.

Assim, as matérias desse período utilizam, sobretudo, as falas de autoridades policiais,

as quais garantiriam a legitimidade e veracidade das informações. Nos textos, predomina a

utilização de fontes oficiais, por meio de entrevistas com autoridades e da reprodução de

comunicados e telegramas da Força Pública. Ao longo dos textos, a representação do povo do

Caldeirão é construída com tom depreciativo e eles são representados como ―perigosos

elementos‖. Sobre José Lourenço, a primeira imagem construída é de que ele seria uma

―ameaça à ordem‖. No entanto, nos últimos textos do nosso período em análise, por meio do

discurso citado, a fala de uma autoridade assegura que o beato é um homem fragilizado,

derrotado, portanto, José Lourenço é representado como um homem ―indefeso‖, que já teria

recebido a devida punição e ―lição‖, aplicada pelo Estado. A imagem dos remanescentes do

Caldeirão, entretanto, continua associada a diversos crimes cometidos pelos sertões e eles são

representados, muitas vezes, como ―bandidos‖, ―jagunços‖.

Nesta perspectiva, a partir da análise do embate entre as vozes sociais no discurso

jornalístico sobre o movimento Caldeirão, pudemos perceber as tensas relações na construção

dos sentidos acerca desse movimento. Na cobertura do jornal O Povo, apesar de haver, em

determinados momentos, abertura para a construção de sentidos que rompem com aqueles

ligados aos grupos de poder, em especial na primeira parte de nossa análise; ao longo da

cobertura, predominam acentos apreciativos e posicionamentos, que vão constituindo sentidos

hegemônicos os quais criminalizam o movimento Caldeirão.

Destacamos que a presente pesquisa não esgota, certamente, as possibilidades de

discussão e análise sobre o tema. Outros aspectos poderiam ser analisados nos textos que

compõem o corpus da pesquisa, tendo em vista que, aqui, nos concentramos em analisar a

inter-relação entre diferentes vozes sociais, em especial a partir do discurso citado e dos

acentos apreciativos.

Vale destacar, ainda, que a imprensa cearense publicou considerável material sobre o

Caldeirão na década de 1930, o que possibilita, por exemplo, uma análise comparativa entre a

cobertura de mais de um veículo. A título de ilustração, podemos destacar que os jornais O

Nordeste e O Estado publicaram matérias em que predomina um tom de consenso em relação

às vozes oficiais que criminalizam o beato José Lourenço e o movimento Caldeirão. Se no

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157

jornal O Povo ainda emergiram, em alguns momentos da cobertura, vozes questionadoras às

vozes oficiais; nesses outros jornais, há uma tentativa de total silenciamento dessas vozes

marginalizadas e são reproduzidos, sobretudo, sentidos hegemônicos, legitimadores da

destruição do Caldeirão.

São sempre bem-vindas leituras críticas sobre o discurso jornalístico, tendo em vista

que, por meio dele, sentidos dominantes e autoritários podem ser reproduzidos e vir a

constituir a memória histórica oficial. Por muitos anos, o que foi dito pela imprensa sobre o

Caldeirão – e que já era dito em outros lugares – foi se reproduzindo e se perpetuando como o

sentido legítimo e verdadeiro sobre o movimento Caldeirão.

Anos mais tarde, pesquisadores procuraram remanescentes do Caldeirão e surgiram

vozes dissonantes daquelas vozes oficiais. Em 1986, quando completaram 50 anos da

destruição do Caldeirão, aconteceu o lançamento do documentário O Caldeirão da Santa

Cruz do Deserto, de Rosemberg Cariry, que apresenta o Caldeirão como um movimento de

luta dos trabalhadores rurais pela terra. O documentário foi fruto de pesquisas realizadas por

estudiosos da cultura cearense, com o intuito de procurar fatos significativos da história do

povo cearense e mostrar meios de luta e resistência às formas de opressão a que eram

submetidas as populações sertanejas. Essas pesquisas renderam, além do documentário, a

publicação, em 1986, da peça A Irmandade as Santa Cruz do Deserto, do escritor cearense e

dramaturgo Oswald Barroso, além de diversos artigos sobre o tema. Também nesse ano, a

Igreja Católica, por meio da Pastoral da Terra, lançou o caderno ―Caldeirão – 50 anos: uma

história, uma esperança‖.

As representações sobre o Caldeirão passaram a ser construídas a partir de outras

vozes e a própria imprensa também passou a reproduzir esses novos sentidos: ―A luta contra o

Beato‖ (O Povo, 7/6/1982); ―Caldeirão: socialismo com muita reza‖ (O Povo, 4/4/1988); ―A

Saga do Caldeirão: Massacre destruiu a maior experiência de produção de bens coletiva do

Nordeste‖ (O Povo, 7/9/1996).

A partir desse processo de construção de novos sentidos sobre o Caldeirão, diversos

movimentos sociais tomam essa experiência comunitária como um símbolo de luta, um

referencial para os movimentos agrários. Desde 2000, todos os anos, no mês de setembro, as

pastorais sociais da Diocese do Crato realizam a Romaria do Caldeirão, que tem como

objetivo resgatar essa história de luta do homem do campo. A 14ª Romaria do Caldeirão,

realizada em 2013, teve como tema ―Terra, Água, Comunhão: Bem Viver no Nosso Chão‖,

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158

no intuito de relembrar a organização comunitária do povo do Caldeirão, representada como

um modelo de convivência com o semiárido brasileiro158

.

No ano de 2002, a Assembleia Legislativa do Estado do Ceará aprovou a criação do

Dia Estadual em Memória da Comunidade do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto. O dia

comemorativo é 10 de setembro, data da invasão e destruição do sítio em 1936. Em 2005, o

sítio Caldeirão foi tombado como Patrimônio Histórico Cultural, a partir de proposta

elaborada pela Coordenação de Patrimônio Histórico Cultural, da Secretaria de Cultura do

Estado. Hoje o Caldeirão está sob a gerência da Prefeitura Municipal do Crato, que vem

trabalhando na elaboração de projetos voltados para a revitalização do sítio, pesquisa e

salvaguarda patrimonial.

Em 2006, o Museu do Ceará organizou a exposição permanente ―Caldeirão 80 anos‖,

para relembrar a história de luta daqueles trabalhadores, no ano em que completaram oitenta

anos de criação da comunidade, setenta anos de sua destruição e sessenta anos da morte do

beato José Lourenço, no sítio União, em Exu, Pernambuco, onde se refugiou depois que

cessaram as perseguições.

No ano de 2013, o projeto ―Caldeirão Vivo‖, premiado pela Secretaria de Cultura de

Fortaleza, desenvolveu como uma de suas ações a realização de exposição fotográfica e

apresentação de videodocumentário, em escolas públicas municipais de Fortaleza, com o

objetivo de levar a história do Caldeirão e do beato José Lourenço para alunos do ensino

fundamental.

Assim, atualmente, os sentidos construídos sobre o Caldeirão já são múltiplos;

diversos dos sentidos dominantes na época da destruição do movimento.

No momento histórico em que vivemos – no qual fervilham movimentos no campo e

os trabalhadores rurais reagem e se organizam para lutar por terra e por melhores condições

de trabalho – analisar o discurso jornalístico sobre o movimento Caldeirão pode contribuir,

também, para lançarmos um olhar crítico sobre a cobertura da mídia acerca dos movimentos

sociais na atualidade.

Destacamos, por fim, que a Linguística Aplicada crítica, ―indisciplinar‖, está voltada

para práticas problematizadoras e para a relevância social do que se está produzindo. Nesse

sentido, a história de uma experiência comunitária, próspera e autossuficiente, construída pelo

trabalho coletivo de trabalhadores rurais e destruída pelos grupos de poder, certamente, tem

muito a dizer para as problemáticas e desafios do presente.

158

Ver imagem XIV Romaria do Caldeirão (ANEXO A)

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JORNAIS

Corpus

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(12/5/1937); (13/5/1937); (18/5/1937); (19/5/1937); (20/5/1937); (21/5/1937); (21/8/1937);

(3/9/1937); (27/11/1937); (29/11/1937); (12/1/1938); (14/1/1938); (19/1/1938); (24/1/1938);

(25/1/1938); (26/1/1938); (27/1/1938).

Demais jornais

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170

- O Povo (7/1/1928); (13/1/1929); (12/7/1930); (4/2/1933); (26/1/1938); (11/11/1938);

(13/3/1982); (7/6/1982); (4/4/1988); (7/9/1996).

- O Crato (15/5/1937); (23/5/1937).

- O Estado (11/5/1937); (12/5/1937); (13/5/1937); (14/5/1937); (15/5/1937).

- O Nordeste (14/9/1936); (11/5/1937); (12/5/1937); (13/5/1937); (14/5/1937)

- Gazeta de Notícias (11/7/1936).

- Diário da Noite (14/1/1935); (22/2/1935).

DOCUMENTÁRIOS

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Beato José Lourenço. Fortaleza, 2009.

XILOGRAVURA (Folha de rosto)

(Adaptada) Autoria: Erivana D‘Arc. A chegada de José Lourenço em Juazeiro do Norte

(Integrante do álbum ―O Caldeirão! A esperança de um povo...‖), 1999. Disponível em: < http://xilobiblio.blogspot.com.br>. Acesso em: 10 mar. 2013.

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ANEXOS

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ANEXO A XIV ROMARIA DO CALDEIRÃO (2013)

Foto da autora

―Caldeirões‖ existentes no sítio.

Fonte: Acervo ―Projeto Caldeirão Vivo‖

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ANEXO B (O Povo, 7/6/1934)

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174

ANEXO C (O Povo, 2/3/1935)

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ANEXO D (O Povo, 30/9/1936)

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ANEXO E (O Povo, 11/11/1936)

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ANEXO F (O Povo, 11/5/1937)

Page 178: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE …uece.br/posla/dmdocuments/Benedita_Sipriano.pdf · Canudos foi derrotado Sem dó e sem compaixão, ... Canudos, Contestado, ... 4.3 Juazeiro

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ANEXO G (O Povo, 12/5/1937)

Page 179: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE …uece.br/posla/dmdocuments/Benedita_Sipriano.pdf · Canudos foi derrotado Sem dó e sem compaixão, ... Canudos, Contestado, ... 4.3 Juazeiro

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ANEXO G

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ANEXO H (O Povo, 13/5/1937)

Page 181: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE …uece.br/posla/dmdocuments/Benedita_Sipriano.pdf · Canudos foi derrotado Sem dó e sem compaixão, ... Canudos, Contestado, ... 4.3 Juazeiro

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ANEXO I (O Povo, 18/5/1937)

Page 182: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE …uece.br/posla/dmdocuments/Benedita_Sipriano.pdf · Canudos foi derrotado Sem dó e sem compaixão, ... Canudos, Contestado, ... 4.3 Juazeiro

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ANEXO J (O Povo, 19/5/1937)

Page 183: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE …uece.br/posla/dmdocuments/Benedita_Sipriano.pdf · Canudos foi derrotado Sem dó e sem compaixão, ... Canudos, Contestado, ... 4.3 Juazeiro

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ANEXO J

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ANEXO K (O Povo 20/5/1937)

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185

ANEXO L (O Povo, 21/5/1937)

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186

ANEXO M (O Povo, 21/8/1937)

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187

ANEXO N (O Povo, 3/9/1937)

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ANEXO O (O Povo, 27/11/1937)

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ANEXO P (O Povo, 29/11/1937)

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ANEXO Q (O Povo, 13/1/1938)

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ANEXO R (O Povo, 14/1/1938)

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ANEXO S (O Povo, 19/1/1938)

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ANEXO T (O Povo, 24/1/1938)

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ANEXO U (O Povo,

25/1/1938)

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ANEXO V (O Povo, 26/1/1938)

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ANEXO X (O Povo, 27/1/1938)