universidade estadual do cearÁ centro de ...5 campo, pedaladas e banhos de mar, não cabem no papel...
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
CENTRO DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA
DOUTORADO EM GEOGRAFIA
PRISCILA DE OLIVEIRA ROMCY
A CONTRIBUIÇÃO DA ESTRUTURA DE SENTIMENTO DOS ARTESÃOS DO
COURO PARA O CARIRI CEARENSE
FORTALEZA - CEARÁ
2018
1
PRISCILA DE OLIVEIRA ROMCY
A CONTRIBUIÇÃO DA ESTRUTURA DE SENTIMENTO DOS ARTESÃOS DO
COURO PARA O CARIRI CEARENSE
Tese apresentada ao Curso de Doutorado em Geografia do Centro de Ciências e Tecnologia da Universidade Estadual do Ceará, como requisito parcial à obtenção do título de doutor em Geografia. Área de concentração: Análise geoambiental e ordenação do território nas regiões semiáridas e litorâneas. Orientadora: Profa. Dra. Denise de Souza Elias
FORTALEZA – CEARÁ
2018
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AGRADECIMENTOS
Primeiramente agradeço a Deus, pela saúde concedida e pela oportunidade de viver
essa experiência tão enriquecedora.
À Denise Elias pela seriedade profissional. Desde as aulas de geografia agrária na
graduação com as devidas resenhas e as tabulações de dados na iniciação científica,
o que me parecia no momento chato, mostrou-se ao longo do caminho muito
importante à minha formação. Não só pela atividade realizada, mas pela fomentação
da disciplina, conhecimento e capacidade de análise. A exemplo dessas atividades,
como aprendi, e só depois reconheci a importância de cada exercício para minha
formação. Não obstante aos degraus do aprimoramento profissional vivido junto à
professora, agradeço à paciência e confiança da mesma durante 1/3 da minha vida,
me doando seus tempo e conhecimento. Meu aprimoramento é fruto dessa dedicação.
Muito Grata!
Agradeço ao meu amigo e esposo Rodrigo José, companheiro de todos os segundos,
presente em todas as intensas decisões da vida. Muito feliz pelo amor, humor e
companheirismo, como pelas reflexões e ensinamentos vividos, cultivados e
compartilhados juntos.
À minha mãe, Maria Auxiliadora, pelo sua presença e apoio incondicional, da esfera
emocional a material; pela força concedida nos momentos de fragilidade (pela
compreensão às minhas ausências, pelos braços abertos aos inúmeros momentos de
choro).
Aos meus irmãos, Thamires e Nathanael, agradeço pelos corações fraternos, que me
acompanharam nessa jornada e nas distâncias percorridas nesses anos, se mantendo
sempre próximos com suas compreensões, sorrisos e tranquilidade. À Thamires
agradeço especialmente pela disposição e coragem em dirigir na rodovia pela primeira
vez e atravessar o Ceará comigo junto com Adrielle e Jucier. A vocês agradeço por
realizarem comigo o trabalho de campo junto aos curtumes no Ceará e em
Pernambuco. Sem vocês esse campo não teria acontecido.
A toda minha família pela torcida, apoio e carinho nessa caminhada.
Aos amigos, que como ondas no mar sempre estiveram presentes nesses cinco anos
de trajetória. Mesmo com as distâncias territoriais em diferentes escalas, cada amigo
reaparece como uma onda de ânimo, sendo cada qual um momento importante para
que o equilíbrio da jornada se mantivesse em prumo. Dentre encontros, trabalho de
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campo, pedaladas e banhos de mar, não cabem no papel todos vocês, portanto,
registro tudo nas lembranças do coração.
A todos os meus alunos e ex-alunos. Se o tempo dedicado à tese foi menor em função
do exercício de professora (URCA/CE, UESPI/PI, IFAL/AL), maior foi a sensibilidade
adquirida junto aos estudantes, pois estes me proporcionaram muito aprendizado
pelas vivências do Sertão e sua riqueza.
Agradeço sinceramente aos artesãos do couro pelo amor que dedicam à atividade,
pelos ensinamentos transmitidos a partir de suas experiências de vida, enquanto uma
aprendiz da vossa realidade sinto-me honrada em partilhar de suas vivências e
histórias.
A Antônio José Bezerra (Pajé), pela ajuda incomensurável junto aos trabalhos de
campo com os artesãos e com os registros realizados.
A Diego Salvador (Baiano), pela imensa paciência e apoio junto aos mapas e
cartogramas confeccionados, muito obrigada!!
Agradeço por fim à banca de qualificação (Prof.ª Doralice Sátiro Maia e prof. Jorn
Seemann) e à banca examinadora da tese (Prof.ª Doralice Sátyro, prof. Levi Furtado,
Prof.ª Maria Soares, Prof.ª Lúcia Helena de Brito) pela prestimosa contribuição para
com esta pesquisa.
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RESUMO
A presente tese busca evidenciar a cultura como um traço importante da região do
Cariri cearense. Para tanto, acreditamos que os artesãos do couro são sujeitos que,
no presente, proporcionam uma estrutura de sentimento a esta região, amalgamando
heranças do passado que se perpetuam nos dias atuais. A partir da perspectiva da
geografia cultural materialista pautada em Raymond Williams, compreendemos os
artesãos do couro e sua obra, o artesanato, a partir das experiências formativas do
saber fazer artesão de modo geracional no Cariri cearense. Realizamos a pesquisa
com base nos procedimentos metodológicos: observação simples, observação
sistemática, trabalhos de campo e entrevistas. Estas foram essenciais para captar as
informações provenientes desses sujeitos com base em suas narrativas, e que a partir
do procedimento de categorização pudemos tabular para análise e interpretação das
informações. Dentre tantos critérios de regionalizar o Cariri cearense, buscamos
àqueles pertinentes aos sujeitos que construíram a história do sertão, com suas mãos,
e contribuíram culturalmente com um sentido vivido e histórico para a mesma. A
materialidade das experiências sociais e simbólicas advindas dos artesãos em couro
vieram da formação histórica do Cariri cearense, e não obstante o seu passado, ainda
permeiam culturalmente esta região enquanto traço identitário.
Palavras-chave: Artesãos do couro. Cariri cearense. Estrutura de Sentimento.
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ABSTRACT
This thesis seeks to highlight culture as an important prominent feature of the Cariri
region in Ceará. For this purpose, we believe that the leather craftsmen are subjects
that, at present, provide a feeling structure by this region, blending past legacies that
perpetuate themselves in current days. Starting from the cultural geography
perspective materialistic based on Raymond Williams, we understand that the leather
craftsmen and his work, crafts, from the formative knowing how experiences to make
craftsmen in general mode in Cariri cearense region. We perform the research based
on methodological procedures: simple observation, systematic observation, field works
and interviews. These were essential to capture the information from these subjects
based on their narratives, and that from the categorization procedure we tabulate
information to analysis and interpretation. Among many standards to regionalize the
Cariri Ceara, we seek those pertinent to the subject who constructed the countryside
history, with their hands, and contributed culturally with a path lived and history for
themselves. The social materiality and symbolic experiences stemming from the
leather craftsmen came from the Cariri Ceara historical formation, and despite your
past, still permeate culturally this region as a mark of identity.
Keywords: Leather craftsmen. Cariri Cearense. Feeling Structure
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LISTA DE FIGURAS
Figura 1-
Figura 2 -
Figura 3 -
Figura 4-
Figura 5-
Figura 6-
Figura 7 -
Figura 8 -
Figura 9-
Figura 10 -
Figura 11-
Figura 12-
Figura 13-
Figura 14 -
Figura 15 -
Figura 16 -
Figura 17 -
Figura 18 -
Figura 19 -
Figura 20 -
Figura 21 -
Figura 22 -
Figura 23 –
Ceart Cariri ...............................................................................
Ceart Fortaleza .........................................................................
Peles para lavagem. Curtume modernizado em
Ouricuri/Pe. ...............................................................................
Fulão de lavagem/ Curtume modernizado de Fortaleza/CE .
Fulão de lavagem/Curtume modernizado de Ouricuri/PE ....
Fulão de lavagem em curtume artesanal de Várzea
Alegre/Ce. .................................................................................
Tanque para procedimento de caleiro. Curtume artesanal
em Várzea Alegre/Ce. ...............................................................
Ilustração de descarne do couro ............................................
Máquina 'divisora', utilizada nos curtumes mecanizados
para limpeza da pele ou retirada da raspa. ............................
Tanque de curtimento com casca de Angico no Curtume
de Várzea Alegre/Ce. ................................................................
Couro secando a sombra. Várzea Alegre/Ce .........................
Estiramento do couro. Distrito Carmelópoles /CE. ...............
Couro estirado no curtume de Ouricuri/Pe ............................
Sandália confeccionada a partir de molde centenário do
pai de Fernando .......................................................................
Sandálias confeccionadas por Sebastião. .............................
Vaqueiro com paletó de couro. ...............................................
Selas: modelo Sebastião ; modelo comum, selote. ..............
Chapéu dos Augustinhos em processo de confecção e
panela de grude. ......................................................................
Chapéus modelo Augustinhos. .............................................
Ferramentas utilizadas para confecção dos chapéus ..........
Fitilho de couro comumente substituído pelo tento .............
Artesão do couro e a botina de Carnal ..................................
Município de Cachoeirinha/Pe ................................................
Localização do município de Cachoeirinha/Pe. ...................
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Figura 24 -
Figura 25-
Figura 26 -
Figura 27 -
Figura 28 -
Figura 29 -
Figura 30 -
Figura 31 -
Figura 32 -
Feira de Caruaru/ Pe. ..............................................................
Sandálias em Caruaru/Pe. .......................................................
Sandália ‘maria bonita’ em Caruaru/Pe. .................................
Print do site da marca O Mameluco .......................................
Desfile na Semana da moda de Piratininga 2005 com
sandálias de Sebastião. ...........................................................
Banco encomendado pelos irmãos Cabanas. .......................
Bolsas e carteiras de Sebastião .............................................
Sebastião e calçados da sua loja ...........................................
Sandália de Sebastião vendida pela exclusivamente pela
ROSA .........................................................................................
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119
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128
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SUMÁRIO
1
2
2.1
2.2
2.3
3
3.1
3.2
3.2.1
4
4.1
4.2
4.2.1
4.2.2
4.2.3
5
5.1
5.2
5.3
5.3.1
INTRODUÇÃO.....................................................................................
A CIVILIZAÇÃO DO COURO EM CONTEXTO: ELEMENTOS
PARA A DINÂMICA REGIONAL........................................................
ECONOMIA PASTORIL.......................................................................
DESENVOLVIMENTO DA SOCIABILIDADE NO SERTÃO.............
A IMPORTÂNCIA DO CARIRI NA ECONOMIA PASTORIL:
CULTURA E EXPERIÊNCIA, UMA CONTRIBUIÇÃO PARA A
REGIÃO...............................................................................................
ESTUDOS CULTURAIS E GEOGRAFIA CULTURAL: A
CONTRIBUIÇÃO DO ARTESÃO ATRAVÉS DA CULTURA ...........
CULTURA E GEOGRAFIA CULTURAL.............................................
RECONHECIMENTO DO ESTADO E PROMOÇÃO DO
ARTESANATO....................................................................................
Ceart– Central de Artesanato do Ceará1..........................................
O ARTESÃO E SEU ARTESANATO: UMA CONSTRUÇÃO
COLETIVA...........................................................................................
OS COMPONENTES DA ESTRUTURA DE SENTIMENTO:
CURTUMES, FEIRAS E ARTESÃOS DO COURO.............................
ARTESÃOS DO COURO E MODALIDADE DAS SUAS OBRAS......
Artesãos de montaria .......................................................................
Artesãos do chapéu...........................................................................
Artesãos do calçado..........................................................................
ENTRE A OBRA E PRODUTO:..........................................................
O TRABALHO ARTESÃO, SUA OBRA E O IMPACTO DA
MODERNIZAÇÃO NA PRODUÇÃO E REPRODUÇÃO SOCIAL....
O PRODUTO DO CARIRI CEARENSE E O SEU ALCANCE ENTRE
ESCALAS............................................................................................
ARTESÃOS DO SÉCULO XXI: ESTRUTURA DE SENTIMENTO
PARA A CONFIGURAÇÃO DA REGIÃO............................................
Pensando a configuração regional..................................................
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1 A partir das entrevistas realizadas em Fortaleza e Juazeiro do Norte, nos dias 05 e 15 de fevereiro de 2014, o foco
das ações da CEART foi exposto e detalhado nas entrevistas realizadas.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................
REFERÊNCIAS...................................................................................
APÊNDICES........................................................................................
APÊNDICE A - LISTA DE ENTIDADES DO ARTESANATO EM
COURO DA CEART PARA A REGIÃO DO CARIRI CEARENSE.....
APÊNDICE B - LISTA DOS TESOUROS VIVOS DA CULTURA POR
ANO DE NOMEAÇÃO, ATIVIDADE E MUNICÍPIO DE
ORIGEM..............................................................................................
ANEXOS..............................................................................................
ANEXO A - LISTA DE TIPOLOGIAS DE ARTESANATO DA CEART
ANEXO B – PROPAGANDA DE ‘PEGA DE BOI NO MATO’.............
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174
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1 INTRODUÇÃO
O trabalho a seguir, sobre o Cariri cearense, traz à luz o aspecto cultural
dos artesãos do couro enquanto elemento importante que confere um sentido para a
região em questão. Outros grupos históricos sociais poderiam ser escolhidos pra
compor essa representação de Cariri cearense, contudo, buscamos entender os
artesãos do couro e sua obra como uma das bases que sustentam o sentido de região
do Cariri cearense, tanto pelo seu artesanato quanto pela experiência histórica desse
grupo social com seus relatos e experiências.
O objetivo de nossa pesquisa consiste em analisar o artesanato em couro
na região do Cariri cearense para confirma-lo enquanto uma materialidade cultural,
mantenedora de uma ‘estrutura de sentimento’ (Williams 1979, 2011a, 2011b 2015)
que é reinterpretada para delimitar a referida região na realidade atual. Essa intenção
se consubstancia a partir da premissa de que os artesãos do couro e a relação que
eles têm com sua obra – o artesanato, criam uma estrutura de sentimento, pela
experiência social histórica e contemporânea. Essa estrutura de sentimento, com base
em suas experiências vividas, valores e identidade com a obra que produzem,
contribui com o sentido cultural da região Cariri cearense.
Tal experiência artesã transcende a obra individual de cada sujeito na
direção de pautar valores e costumes que marcaram e continuam marcando uma
região historicamente a partir das riquezas étnicas miscigenadas advindas dos índios
que habitavam o espaço que conhecemos como Cariri cearense, dos colonos e
também dos negros que lá trabalharam. A sociabilidade construída sobre a herança
colonial legou para a atualidade símbolos para com o modo de viver, produzindo assim
um traço cultural do Cariri cearense presente na região e que também se materializou
no artesanato em couro, símbolo da história nordestina sertaneja, e como lembrança
do passado, é o nosso mote para reconhecer a importância do artesão pelo seu valor
histórico e a estética da sua obra, especialmente nas sandálias em couro.
Logo, tendo por base assuntos como artesanato, formação social sertaneja e
cariri cearense, é central para nossa tese trabalhar os conceito de ‘região’ e ‘estrutura
de sentimento’ sob a perspectiva temática da cultura e geografia cultural.
Quando decidimos desvendar a materialidade cultural que o artesanato em
couro representa para o Cariri cearense, mostramos interesse em entender as
experiências de vida desses artesãos, em um processo que vai da singularidade à
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representação dos componentes sociais coletivos. Desse modo, acreditamos que
‘estrutura de sentimento’ é o conceito adequado para compreendermos a relação
entre o sujeito e a realidade cultural (coletiva) construída pelos artesãos do couro na
região do Cariri cearense, justamente por apreender o processo histórico enquanto
expressão coletiva de convicções, ações e experiências de um grupo social que
marcam espaço e tempo, bem como permite também a incursão de uma observação
do tempo/espaço presente com suas características e transformações em relação ao
tempo/espaço passado. Logo, estrutura de sentimento e região são os conceitos
centrais da nossa pesquisa.
A Estrutura de sentimento é trabalhada por Raymond Williams (1979)
originalmente na literatura, visto essa ser uma forma de expressão da sociedade.
Para o autor “As estruturas de sentimento podem ser definidas como experiências
sociais em solução, distintas das outras formações semânticas e sociais que foram
precipitadas e existem de forma mais evidente e imediata” (Williams, 1979, p.136).
Nesse sentido, a concepção de experiências sociais em ‘solução’ significa afirmar que,
coletivamente, tais experiências, mesmo que presentes no cotidiano, ainda não
tomaram uma forma propriamente dita ou foram formalizadas socialmente. O autor
afirma que a hipótese tem relevância especial para a arte e literatura, mas nós
acreditamos que ela seja importante também para refletirmos os costumes e vivências
que dão sentido aos espaços.
Tencionado o debate no âmbito da região, pautado nos autores da
Geografia: Haesbaert (1999,2010), Paasi (1991, 2001), Cosgrove e Jackson (2010),
a nossa proposta na pesquisa está mais na compreensão da consciência pratica que
envolve a região Cariri cearense, a partir da vivência e experiência social legada e
presente através dos artesãos do couro. Essa consciência prática existe nos valores
e atitudes individuais dos artesãos que também se tornam coletivos, seja no presente,
como na configuração histórica dessa região. Como nos afirma Williams:
[...] ao descobrirmos a natureza de uma prática particular, bem como a natureza da relação entre um projeto individual e um modelo coletivo, descobrimos que estamos analisando, como duas formas de um mesmo processo, tanto a sua composição ativa quanto as condições dessa composição, e em ambas as direções essa é uma relação ativa complexa e em transformação. Isso significa, obviamente, que não temos um processo internamente construído do tipo que é indicado pelo caráter fixo de um objeto. Nós temos os princípios das relações das práticas dentro de uma organização vista como intencional, e temos as hipóteses disponíveis do dominante, do residual e do emergente. Mas o que estamos ativamente buscando é a prática
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efetiva que foi alienada em um objeto e as verdadeiras condições dessa prática (WILLIAMS, 2011a, p. 67).
Ou seja, essa compreensão da relação entre a prática particular e coletiva
em processo, para nós, culmina na regionalização do Cariri cearense. Essa região
tem seus limites alterados segundo o critério escolhido (político, climático, econômico,
etc.). Entretanto, sua formação histórica que a particulariza no Ceará é comum para
os municípios que a compõe, bem como mantêm no presente relações econômicas e
políticas que a consolidaram enquanto região. Podemos perceber que, como atesta
Haesbaert: “Seria impossível assim, traçar um ‘retrato completo’ da região, uma vez
que os múltiplos sujeitos que a constroem produzem espaços muito pouco conectados
entre si” (HAESBAERT, 2010, p.83). Ou seja, a coerência interna da região se dá de
acordo com as variáveis que selecionamos para compreendê-la, e dentre os muitos
sujeitos que a formam, para o Cariri cearense, escolhemos àqueles que deram forma
a ela historicamente com as mãos – os artesãos do couro.
Contudo, a nossa contribuição para o entendimento da região Cariri
cearense é voltada para o sistema de representações desta, a partir da formação
histórica pastoril, na qual os artesãos do couro são os sujeitos que a modelaram e a
viveram, bem como ainda nos dias atuais, ainda vivem a cultura presente nessa
região, captada pelo conceito de ‘estrutura de sentimento’.
Entendemos como importante o aprofundamento no campo dos estudos da
geografia cultural, seja em âmbito nacional como internacional, e na nossa
empreitada, achamos de suma importância trazer à luz e fazer maior aprofundamento
sobre a geografia cultural materialista, esta, engajada politicamente e sob a
perspectiva teórica de Raymond Williams (1979,2011a, 2011b, 2015) e E.P.Thompson
(1998,2009), importantes referenciais para nosso trabalho, e em nossa opinião,
condizentes e esclarecedores para com a realidade que nos deparamos na região do
Cariri em relação aos artesãos do couro.
Essa perspectiva condiz com a proposta de Williams (1979) em
compreender a realidade, visto que o autor repreende a redução social a formas fixas
e considera como importante os processos formativos pelos quais passa o objeto.
Logo, a nós é fundamental a estrutura de sentimento existente pelas experiências
sociais em processo do trabalho artesão para compreender a sua real contribuição à
região do Cariri, visto esta existir tanto no sentido funcional como no sentido simbólico.
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O sentido simbólico o qual abordamos é aquele construído historicamente,
e por isso, nos foi necessário um estudo para com os assuntos artesanato, formação
social sertaneja e Cariri cearense. Esses estudos nos direcionaram para além da
forma tomada pelo artesanato e pela região, visto que o enfoque para a compreensão
da realidade retratada esteve no processo formativo que os constituíram, nos
significados, práticas e valores presentes em cada fase particular da cultura
dominante e seu respectivo período histórico.
Para tanto, tendo em vista a importância do percurso metodológico para o
desenvolvimento da pesquisa, apresentamos aqui os nossos procedimentos para a
realização da mesma, os quais nos possibilitou reflexões tão importante a cerca do
nosso objetivo.
A nossa tese tem por base a pesquisa qualitativa, visto que o objetivo dessa
modalidade de pesquisa se relaciona com as “preocupações dos atores sociais tais
quais elas são vividas no cotidiano” (DESALUIRES, KERISIT, 2008, p.130). No que
tange a operacionalização da pesquisa, o primeiro momento desta foi realizado com
caráter exploratório, visto que esse perfil tem “o objetivo de proporcionar visão geral,
de tipo aproximativo, acerca de determinado fato” (GIL, 1999, p.43). Essa perspectiva
da pesquisa teve como instrumentos importantes a observação simples e a
observação sistemática para apreensão das informações em primeira mão.
A importância de captar as informações primárias da realidade se dá
porque “sem conhecimento baseado em experiência de primeira mão para corrigir
nossas representações, não só não sabemos para onde olhar à procura de material
interessante, como também não sabemos o que requer investigação e prova extensa”
(BECKER, 2007, p.36). Para tanto, a observação simples e a observação sistemática
foram instrumentos de captação das informações que nos possibilitou adquirir um
conhecimento real do que estivemos estudando, nos tornando menos suscetíveis a
pontos de vistas imaginativos.
Iniciamos no processo de observação um ano antes de adentrarmos ao
doutorado (2012), durando até 2013.1, quando do primeiro semestre de nosso curso.
Esse período possibilitou um contato inicial com os artesãos do couro, que culminou
em um período construtivo, visto que a partir da observação simples pudemos
investigar de maneira espontânea (GIL, 1999) o local de trabalho dos artesãos, seu
ritmo de trabalho, bem como serviu para nos aproximar desses sujeitos com
entrevistas informais.
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Nesse primeiro período de um ano e meio (o mesmo em que moramos no
município do Crato/CE 2), não obstante às informações adquiridas relativas ao
trabalho dos artesãos e suas obras, realizamos também observações sistemáticas em
trabalhos de campo com fins de fomentar os registros iniciados. Nessa modalidade de
observação o pesquisador “sabe quais os aspectos da comunidade ou grupo que são
significativos para alcançar os objetivos pretendidos” (GIL, 1999, p.114). Ademais,
identificamos o local de trabalho desses sujeitos bem como o local de exposição de
seus artefatos, obtivemos informações relativa a sua maneira de trabalhar. Não
obstante a captação de informações junto aos artesãos, frequentamos alguns eventos
que ocorreram na região e tiveram relação com o artesanato 3.
A partir do objetivo da pesquisa e da experiência vivenciada no Cariri
cearense, mesmo que de maneira introdutória, nos inclinamos para a realização da
pesquisa bibliográfica e documental na intenção de encontrar produções literárias,
estudos e documentos que relatassem e informassem sobre a realidade referente ao
artesanato e aos artesãos do couro.
No que tange a pesquisa bibliográfica, procuramos livros, artigos
científicos, teses e dissertações, nas plataformas on line (scielo, revistas eletrônicas,
portal CAPES dentre outros) sobre a temática cultura e geografia cultural materialista.
Não obstante a estas temáticas, enfocamos também uma busca para com os
conceitos de Estrutura de sentimento e Região; bem como para com os assuntos
artesanato, formação social sertaneja e Cariri cearense.
Em relação à pesquisa documental, visitamos o acervo da Secretaria de
Cultura do Estado do Ceará, a Biblioteca Municipal do Crato, a Universidade Regional
do Cariri, a Universidade Federal do Ceará, a Universidade Estadual do Ceará e o
acervo do Instituto Histórico geográfico do Ceará, onde, neste último, é importante
ressaltar que pudemos encontrar artigos históricos muito importantes para a pesquisa,
como por exemplo a bibliografia de Thomaz Pompeu Sobrinho e publicações de
2 Nesse período nos mudamos de Fortaleza/CE (capital) para o Crato/Ce em decorrência da aprovação para lecionar
na Universidade Regional do Cariri (URCA), enquanto professora substituta no departamento de Geografia.
3 Feira Internacional de Artesanato e Decoração (FEINCARTES) realizada em Juazeiro do Norte no ano de 2012.
Durante a realização desta, pudemos observar que dentre os grupos organizados de artesãos, a Associação de
artesãos do couro é bem recente, com menos de três anos. Em entrevista com a presidente desta associação, na
ocasião do evento, ela reconhece que o trabalho em couro é marcante para a história da região e afirma da existência
de muitas famílias que ainda passam de geração em geração o ofício, mas que falta uma organização formal. Em
2013 é realizada a primeira feira de artesãos do Cariri, organizada pelo CEART com os artesãos credenciados.
17
Capistrano de Abreu sobre a ocupação do sertão brasileiro.
O processo de pesquisa bibliográfica iniciado em 2013 foi contínuo em
função da dinâmica e compreensão do objeto, pois este “se constrói
progressivamente, em ligação com o campo, a partir da interação dos dados coletados
com a análise que deles foi extraída, e não somente à luz da literatura do assunto”
(DESALUIRES, KERISIT, 2008, p.134), o que nos possibilitou formular coerências
teórico-práticas em consonância com os trabalhos de campo e coerentes com os
nossos objetivos.
Como apresentado, a pesquisa bibliográfica nos foi muito importante para
elucidar o conhecimento a que chegamos, entretanto, também concordamos que a
versão escrita dos fatos e seus arquivos muitas vezes desconhecem ou negligenciam
várias informações presentes na realidade, visto que:
As artes da escrita e as artes da criação e da representação são, em todo o seu leque, partes do processo cultural em todos os modos e setores diversos que estou tentando descrever. Elas contribuem para a cultura dominante efetiva e são uma dentre suas articulações centrais. Elas encarnam significados e valores residuais, nem todos eles incorporados embora muitos o sejam [...] (WILLIAMS, 2011a, p.62)
Nesse sentido, valorizamos a oralidade como um instrumento para a
captação de informações e análise da realidade, muitas vezes em complemento ou
contraponto ao que está ideologicamente representado nos registros (SAID, 2011).
Essa perspectiva é endossada por Cascudo (1968) quando este afirma que “a tradição
oral guarda as obras que não foram impressas e elas vivem perpetuamente no idioma
popular” (CASCUDO, 1968, p.96). Logo, vemos a riqueza da oralidade como uma
maneira de traduzir um modo de vida pela experiência cotidiana, de nos familiarizar
com as histórias não documentadas que fazem parte de um passado/presente
comum, que podemos nos aproximar para compreendê-la a partir dos trabalhos de
campo.
Ao valorizar a oralidade como estratégia de pesquisa, temos no relato de
vida (BERTAUX, 2005) um instrumento importante para aquisição de informações.
Com o relato de vida o sujeito conta um episódio de sua experiência, adotando uma
forma narrativa, e essa historia não é isolada dos fatos sociais, logo:
Ao relacionar numerosos depoimentos sobre a experiência vivida da mesma situação social, por exemplo, suas singularidades podem ser superadas para alcançar, através de uma construção progressiva, uma representação
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sociológica dos componentes sociais (coletivos) da situação (BERTAUX,
2005, p.37) 4
Sabendo-se que a realidade existe enquanto um devir social, cremos como
importante expor a perspectiva dos artesãos pela sua narrativa, visto que “o conteúdo
narrado deve possibilitar a visão do singular, e a partir desta, o geral, presente no
social e histórico, que é apropriado pelo homem.” (FERNANDES,A; ARAUJO, C;
TEIXEIRA, C; 2011, p.107).
As entrevistas concedidas nos permitiu apreender o conjunto das opiniões
e representações sociais desse grupo, bem como captar as singularidades das falas,
procedimento metodológico convergente com a concepção de ‘consciência prática’ de
Williams (1979) quando o autor esclarece que: “A consciência prática é aquilo que
está sendo realmente vivido, e não apenas aquilo que acreditamos estar sendo vivido”
(p.133). O exercício desse procedimento metodológico nos possibilitou sistematizar
informações importantes pertinentes ao trabalho artesão, foco da nossa pesquisa.
Dessa forma, através das narrativas dos sujeitos, conseguimos descobrir a
dimensão social a partir da vivência cotidiana deles, e então, juntamente com a análise
histórica, nos foi possível, em nossa pesquisa, analisar a contribuição cultural dada à
região pelos artesãos do couro.
Nos trabalhos de campo, as entrevistas foram instrumentos
importantíssimos para a apreensão das informações. No diálogo inicial com os
artesãos nós apresentamos a eles em sua residência/local de trabalho e expusemos
que estávamos fazendo uma pesquisa, sendo esta em fase inicial e que tinha por
objetivo mostrar a importância do trabalho do artesão do couro para a região do Cariri.
Realizamos sete trabalhos de campo, respectivamente nos meses de
fevereiro, junho, novembro e dezembro de 2014, bem como setembro de 2015 e em
fevereiro e junho de 2016. O período de duração de cada atividade de campo variou
entre quatro dias a quinze dias e tiveram como instrumentos: entrevistas abertas a
partir de pergunta geradora e entrevistas semiestruturadas, gravação em vídeo e
áudio das entrevistas concedidas e registro fotográfico, além das anotações nos
4 Al relacionar numerosos testemonios sobre la experiência vivida de una misma situación social por ejemplo, se
podrán superar sus singularidades para lograr, mediante uma construcción progressiva, uma representación
sociológica de los componentes sociales (colectivos) de la situación.
19
diários de campo.
Essa organização dos trabalhos de campo em diferentes momentos nos
possibilitou um contato rico de primeira mão com os artesãos, no qual a partir da
pergunta geradora – como ele vê a importância do próprio trabalho - eles nos
informaram abertamente sobre seus próprios valores, motivações e particularidades.
O conjunto da riqueza de informações assinaladas pelos próprios sujeitos nos
possibilitou adentrar em seu mundo, nos norteando sobre quais temáticas deveríamos
aprofundar para o desenvolvimento da pesquisa em trabalhos de campo posteriores
com as entrevistas semiestruturadas.
Para tanto, com base nas informações iniciais, bem como cientes do nosso
objetivo, elaboramos questões norteadoras que direcionaram as entrevistas
semiestruturadas com os artesãos. É importante ressaltar que na medida em que
realizávamos as entrevistas, as questões norteadoras que nos tencionavam para o
aprofundamento do conhecimento sobre os artesãos eram:
Quem são os artesãos do couro?
Como eles se percebem nessa construção histórica da identidade regional?
Como vêm o seu legado?
O que acham da profissão?
Qual a projeção que tem de futuro?
Quais as relações que mantêm entre si?
Como se organizam para manter a produção?
Como precificam os produtos?
Como se reproduzem enquanto artesãos no mundo moderno?
Quais recursos utilizam para comunicação em relação à compra de matéria prima?
O que eles pensam das mudanças no setor?
Qual a opinião deles sobre a intervenção do estado ou falta dessa intervenção?
Como o artesanato é agenciado pelo estado e pelos setores privados?
Qual o alcance de mercado deste artesanato em couro?
Quais os traços comuns entre os artesãos do couro?
O que os artesãos valorizam em relação a sua atividade?
Para melhor expor o caminhar da nossa pesquisa, nos valemos da
apresentação dos trabalhos de campo em sua ordem cronológica para enfatizarmos
as informações adquiridas de cada período. Em síntese, em 2014 focamos as
entrevistas nos artesãos do couro, em 2015, nos curtumes e em 2016 nos circuitos de
20
comercialização dos artefatos em ouro, bem como retomamos as entrevistas com os
artesãos.
O trabalho de campo realizado em fevereiro de 2014 foi uma grande
descoberta, partimos inicialmente para entrevistar os representantes de duas
instituições quais sejam, a Ceart Cariri situado em Juazeiro do Norte e a Associação
dos Artesãos do Crato5 na intenção de captar as informações referentes aos artesãos
do couro. Essa nossa intenção foi muito pouco sanada nessa ocasião, pois o cadastro
dessa modalidade de artesãos era parco de informações nos dois lugares; o primeiro
tinha um cadastro com poucos artesãos formalizados e o segundo, por congregar uma
variedade de artesanato representativo do município, também tinha poucos artesãos
do couro associados. Contudo, a interação com esses agentes foi proveitosa, visto
que nos utilizando das entrevistas abertas, pudemos abarcar as informações no que
se refere à origem e funcionalidade dessas instituições, bem como a maneira que elas
operam junto aos artesãos, e o porquê da localização de onde estão.
Logo, ao longo dos meses de fevereiro, junho, novembro e dezembro de
2014, a partir de uma questão geradora (“Como você vê a importância do seu trabalho
de artesão”?) realizamos primeiramente as entrevistas abertas com os artesãos que
conhecemos e retornamos em outro momento para aprofundar as informações a partir
da elaboração de entrevistas semiestruturadas.
Os primeiros artesãos que entrevistamos estavam presentes no cadastro
da associação de artesãos do Crato (senhor Estevão) e no cadastro da Ceart (Damião
e Cosme). Depois de encontrá-los, eles passaram o contato de outros artesãos, e na
medida em que conhecemos cada qual, eles apresentavam mais artesãos.
A listagem dos artesãos entrevistados pode ser observada no quadro
abaixo, o qual organizamos de acordo com o município do entrevistado:
5 No Crato existe uma ‘Associação dos artesãos do Crato’, a qual representa uma variedade de tipologias artesanais,
bem como tem sua sede/loja no centro deste município.
21
Quadro 1 - Artesãos entrevistados, segundo os municípios da região do Cariri
cearense.
Municípios Entrevistados
Campos Sales - Lucas
- João e Thiago (irmãos)
Assaré - Matheus
- Estácio
- Timóteo
- Paulo
Crato - Fernando
- Cosme
- Damião
- Estevão
Várzea Alegre - Tito
- Barnabé
- Raimundo Nonato
Nova Olinda - Sebastião
Santana do
Cariri
- Francisco
- Marcos
Barbalha Vicente
Filipe
Fonte: elaborado pela autora
O início do diálogo com o público artesão se deu em formato de entrevista,
a partir de uma pergunta geradora feita ao interlocutor, de modo que ele respondesse
a partir dos elementos que considera importante ressaltar, pois “as associações de
ideias têm necessariamente sentido para o pesquisado e um sentido social a descobrir
pelo pesquisador” (BEAUD, p. 136, 2007). Com a fala do artesão, aos poucos
inferíamos questões, a partir das considerações dele, que interessaram a nós de
modo a fomentar o diálogo. Nesse sentido, estabelecemos o que Bertaux (2005)
aponta como ‘pacto de entrevista’ que acontece quando um sujeito é informado da
proposta e intenção do pesquisador e sua pesquisa, e, por conseguinte aceita a
proposta. Desse modo, “Este pacto tiene el valor de filtro, ya que orienta y centra
previamente la entrevista.” (p.39).
As entrevistas foram gravadas, filmadas e transcritas. Essa escolha,
influenciada pela perspectiva de BEAUD (2007) que “a gravação é, então, mais que
uma simples razão de conforto, pois condiciona a qualidade de sua escuta. Só a
gravação permitir-lhe-á captar na íntegra e todas as suas dimensões a palavra do
22
entrevistado” (BEAUD, 2007, p. 137). Esse recurso metodológico foi adotado por nós,
tendo em vista a importância da gravação e o seu conteúdo para a consulta durante
o período de toda a pesquisa. Essa dimensão é importante, pois o entrevistado narra
os fatos que considera importante a partir de sua vivência e perspectiva de vida. Nas
palavras de BEAUD (op.cit): “É essa relação de confiança que terá estabelecido o que
levará à coleta de um material suficientemente rico para ser interpretado” (p.137).
Os sujeitos artesãos expuseram uma visão do singular em sua realidade, e
nós refletimos sobre as experiências vividas e socializadas por eles. Entendemos que
a lógica de exposição e encadeamento dessas histórias se constituíram enquanto
narrativas dos sujeitos, sendo estas, ferramenta metodológica importante, que em
outras palavras:
A narrativa, utilizada como técnica de produção de dados, possibilita a superação da ênfase na objetividade, ao considerar o sujeito como produtor de um discurso que o representa e que o situa em seu contexto histórico e social, permitindo, ainda, o seu pensar crítico sobre si e sobre a realidade na qual está imerso. (FERNANDES, ARAUJO, TEIXEIRA, 2011, p.104).
Pelas suas experiências vividas, tivemos uma possibilidade de análise de
material coletivo que nos diz para além das individualidades de cada artesão. Como
atesta Bertaux (2005)
El proyecto mismo de vida, tomado em um momento determinado de la
existência, no se há elaborado in abstracto dentro de una consciência aislada,
sino que se há habado, dialogado, construído e influído o negociado en el
transcurso de la vida em grupo (BERTAUX, 2005, p.42).
A interpretação e análise das narrativas se deu pelo procedimento de
Categorização (GOMES, 2012). Na busca de compreender quais elementos eram
comuns ou particulares desse grupo social, a partir desse procedimento, observamos
as repetições temáticas nas falas dos diversos artesãos, de modo a encontrar
representações sociais que nos possibilitaram uma estrutura de análise.
A categorização foi um procedimento aplicado na “tentativa de se caminhar
na objetivação durante uma análise (...), cada categoria deve ser obtida a partir dos
mesmos princípios utilizados para toda a categorização” (Gomes, 2012, p.88). Assim,
como ela deve ser adaptada ao conteúdo e ao objetivo que se quer chegar, buscamos
os padrões de informações nas transcrições das entrevistas (primeiramente dentre as
entrevistas abertas, e posteriormente nas entrevistas semiestruturadas), que culminou
23
na construção de um quadro informativo denominado ‘Núcleos de sentido para a
interpretação dos conteúdos das entrevistas’.
Os núcleos de sentido nos ajudaram a organizar mais objetivamente as
informações importantes ao objetivo da pesquisa e sobre a conjuntura da vida artesã
e suas particularidades. A partir disso, conseguimos perceber os artesãos segundo
suas especialidades (montaria, chapéu e calçados), e, pela análise do conteúdo
objetivado na categorização, realizamos a inferência do conteúdo, ao articularmos “a
superfície do material a ser analisado com os fatores que determinam suas
características” (GOMES, 2012, p.89).
O estudo desse material visou expor as representações sociais dos
artesãos a partir da interpretação das falas e dos pontos em comum presente nas
narrativas, proporcionando uma análise do conteúdo de modo a elucidar as
particularidades e generalidades do grupo social artesãos em couro do Cariri
cearense. Logo, a compreensão a partir das narrativas sobre as experiências dos
artesãos foi a base para consubstanciarmos a estrutura de sentimento deles na região
do Cariri cearense.
Os trabalhos de campo realizados em 2015 e 2016 foram motivados pelas
informações apuradas junto às entrevistas feitas em 2014. A partir do contexto da vida
artesã, focamos em 2015 na descoberta da dinâmica do funcionamento dos curtumes
– fornecedores da matéria-prima couro curtido – e em 2016 nos voltamos para a
expressão do artesanato caririense junto aos centros regionais (Cachoeirinha/PE e
Caruaru/PE) e demais canais de circulação de produtos como sandálias, chapéus e
bolsas como em aeroportos e centros turísticos.
Não obstante aos canais de fornecimento da matéria-prima e escoamento
da produção do artesanato em couro, voltamos em 2016 ao Cariri na intenção de
fortalecer as informações referentes às características da produção manufatureira,
familiar e individual do artesanato em couro. Buscamos aprofundar e entender como
a manutenção artesanal dos artefatos em couro se implementaram juntamente às
transformações advindas com a modernização de utensílios usados pelos artesãos, e
modificação da demanda desses artefatos.
As entrevistas realizadas e gravadas, bem como os cadernos de campo
foram os nossos materiais de consulta mais ricos. Para a organização das
informações adquiridas em trabalho de campo realizamos o que Gomes (2012) chama
de ‘método de interpretação dos sentidos’, no qual, a partir da interpretação dos
24
dados, buscamos uma lógica interna dos fatos, relatos e observações. Para tanto,
fizemos transcrições das entrevistas realizadas, organizando-as por data e artesão.
Essa metodologia utilizada nos permitiu discorrer sobre esses sujeitos
pelas informações obtidas diretamente com os próprios, bem como pelas informações
relativas a eles a partir de instituições como Ceart, SEBRAE. A busca por essas
informações foi surpreendente e enriquecedora, visto que cada artesão se dispunha
a dialogar com informalidade, afeição e uma xícara de café. As manhãs e as tardes
pareciam não ter horas suficientes para caber tanta informação e lucidez, e a partir
dessa experiência tão humana, nomeamos os artesãos em respeito a particularidade
de cada qual, contudo tendo em o momento presente formal, o fizemos com
codinomes, de modo a preservar a sua identidade original.
O percurso da pesquisa a e riqueza de informações advindas da exploração
do mundo do artesanato em couro nos proporcionou a exposição da tese em quatro
capítulos.
No primeiro capítulo iniciamos com a exposição da relação entre artesãos
do couro, região e estrutura de sentimento. Discorremos sobre os critérios de
regionalizar o Cariri cearense ao passo que afirmamos nossa proposta enquanto
ponto de partida para compreender a contribuição dos artesãos do couro a essa
região. Para tanto apresentamos a economia pastoril e como o seu desenvolvimento
histórico, originado na ocupação dos ‘catingaes’ pelos colonos, impactou a formação
social do sertão nordestino bem como a particularidade do Cariri cearense enquanto
região particular consolidada perante o sertão. Tal esclarecimento histórico, seja na
perspectiva econômica, como na herança da sociabilidade sertaneja se entrelaçou
com a reflexão teórica de região amparada em Paasi (1991, 2001) para refletirmos a
região de nossa pesquisa. É nesse capítulo que temos uma aproximação com o
legado étnico e social que conduziu os princípios de sociabilidade presentes no sertão
e no Cariri.
No capítulo segundo, justificamos e expusemos a abordagem da geografia
cultural, principalmente a partir da perspectiva de Raymond Williams, para apreender
o legado dos artesãos em couro. Para tanto examinamos a fundamentação teórica;
experiência, cultura e estrutura de sentimento. Ademais, refletimos sobre o panorama
da geografia cultural e a relação desta com Williams associado aos estudos regionais.
Não obstante à explanação do nosso direcionamento teórico em relação aos artesãos
e ao artesanato, expusemos também a realidade material de como o artesanato tem
25
sido reconhecido e promovido no estado do Ceará, problematizando os elementos
concernentes à estrutura de sentimento dos artesãos em couro.
No capítulo terceiro o dilema obra/produto permeia todo o capítulo. Essa
aparente contradição é o caráter duplo do artefato em couro: como obra realizada pelo
artesão e como mercadoria para o mercado. A maneira como a modernização e o
mercado abrangem o artesão no século XXI visibiliza seu produto em diferentes
escalas ao passo que a estrutura de sentimento se mantém tencionando culturalmente
a região a partir das bases do passado pastoril. Neste capítulo, ápice da
problematização, apresentamos e debatemos como as mudanças advindas da
modernidade repercutem na reprodução social proporcionando mudanças relativas ao
trabalho artesão e como tais influências são ressignificadas por esses sujeitos.
No último capítulo fazemos uma caracterização do trabalho artesão e a
maneira como tal trabalho cultiva características particulares de um modo de vida
presente na região, advindas de outra temporalidade e que ainda se encontram
presente na atualidade. Expusemos a partir da expressão coletiva do saber-fazer que
historicamente formou-se no Cariri cearense como a cultura é retroalimentada na
região e trouxemos uma análise dos curtumes e feiras enquanto elementos da
estrutura de sentimento constituído e apresentado a nós a partir das lembranças
desses artesãos. Este capítulo busca no cotidiano artesão e nas suas narrativas o
conteúdo que entendemos enquanto materialidade cultural da estrutura de
sentimento, debatida ao longo da pesquisa.
26
2 A CIVILIZAÇÃO DO COURO EM CONTEXTO: ELEMENTOS PARA A
DINÂMICA REGIONAL
Para pensar a região do Cariri cearense é importante reconhecer os
discursos regionais existentes predominantes que balizam a produção bibliográfica
histórica e contemporânea, bem como é importante identificar os critérios de
regionalização que elas abrangem. Contudo, nos aportamos em Haesbaert (2010)
para ressaltar que o conceito Região, como todo conceito não é só abstração,
representação, mas pretende “traduzir”, bem como reproduzir realidades. Pois é na
intenção de reconhecer e valorizar essa realidade que propusemos como hipótese a
afirmação de que os artesãos do couro e a relação que eles têm com sua obra – o
artesanato, criam uma estrutura de sentimento, pela experiência social histórica e
contemporânea. Essa estrutura de sentimento, com base em suas experiências
vividas, valores e identidade com a obra que produzem, contribui com o sentido
cultural da região Cariri cearense.
A nossa preocupação está menos na delimitação da região Cariri cearense
e mais na compreensão da consciência pratica que a envolve a partir da vivência e
experiência social legada e presente através dos artesãos do couro. Essa perspectiva
condiz com a proposta de Williams (1979) em compreender a realidade, visto que o
autor repreende a redução social à formas fixas e considera como importante os
processos formativos pelos quais passa o objeto. Logo, a nós é fundamental a
apreensão da estrutura de sentimento existente pelas experiências sociais em
processo do trabalho artesão para compreender a sua real contribuição à região do
Cariri, visto esta ser tanto funcional como simbólica.
Pensando o recorte da nossa pesquisa, qual seja a região do Cariri
cearense, é necessário constatar que tal delimitação, segundo o Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE), abrange municípios do Ceará e da Paraíba de maneira
não contígua. A partir da definição do IBGE, o Cariri Cearense corresponde a oito
municípios, enquanto o Cariri Paraibano totaliza 29 municípios6, fato que não nos
6 Municípios do Cariri Cearense: Barbalha, Crato, Jardim, Juazeiro do Norte, Missão Velha, Nova Olinda, Porteiras
e Santana do Cariri. Municípios do Cariri Paraibano: Alcantil, Barra de Santana, Barra de São Miguel, Boqueirão,
Cabaceiras, Caraúbas, Caturité, Gurjão, Riacho de Santo Antônio, Santo André, São Domingos do Cariri, São João
do Cariri (porção oriental) / Amparo, Assunção, Camalaú, Congo, Coxixola, Livramento, Monteiro, Ouro Velho,
Parari, Prata, São João do Tigre, São José dos Cordeiros, São Sebastião do Umbuzeiro, Serra Branca, Sumé,
Taperoá e Zabelê (porção ocidental).
27
possibilita pensar que a configuração do Cariri seja necessariamente uma questão de
contiguidade ou de delimitação física de área pela característica natural, pois através
dos aspectos físicos e naturais quase não há similitude entre essas microrregiões,
ademais o distanciamento entre ambas. Não obstantes às tentativas históricas de
delimitar o Cariri Cearense, temos ainda, mais contemporaneamente, as divergentes
configurações propostas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
Instituto de pesquisa e estratégia econômica do Ceará (IPECE) e Banco do Nordeste;
bem como a problematização no que concerne a Região Metropolitana do Cariri
(RMC) por sansão de lei estadual no ano de 2009.
Contudo, qualquer das tentativas supracitadas de delimitar o Cariri
cearense considera prioritariamente critérios econômicos, e compreendemos que este
critério não é o mais importante para a definição regional em pauta. Por isso,
entendemos que uma delimitação que se aproxime do que queremos mostrar como
região do Cariri deve aludir a aspectos históricos e identitários. Nessa perspectiva,
como ponto de partida para o presente trabalho, nos valemos de duas referências ao
considerarmos os condicionantes históricos de ocupação.
Para tanto, nos aproximamos da argumentação de Menezes (2005) para a
delimitação de região do Cariri, tendo em vista a seleção dos municípios da sub-bacia
sedimentar do Araripe; já que as características físicas comuns à região como balanço
hídrico, perfil do solo e fertilidade influenciaram a ocupação histórica dessa localidade
desde a população indígena. Assim, na delimitação de Menezes (op cit.), os
municípios da região do Cariri Cearense são: Crato, Juazeiro do Norte, Barbalha,
Missão Velha, Santana do Cariri, Nova Olinda, Assaré, Jardim, Milagres, Brejo Santo,
Porteiras, Mauriti, Farias Brito, Jati, Penaforte, Araripe, Altaneira e Abaiara. Irineu
Pinheiro também delimitou o Cariri, sendo esta região exposta segundo a
compreensão do ‘povo caririense’ pautada na tradição. Sendo assim, o Cariri é
composto por 11 municípios, quais sejam: Crato, Barbalha, Juazeiro do Norte, Missão
Velha, Milagres, Mauriti, Brejo Santo, Jardim, Santana do Cariri, Caririaçu e Farias
Brito.
Contudo, o debate regional estabelecido historicamente para com o Cariri
cearense tem sido pautado majoritariamente sobre aspectos locacionais e
econômicos para construir um discurso sobre esse recorte. Esta região “é uma
invenção, uma construção institucional, resultante das diferentes intencionalidades
das agências que a programam” (CUNHA, 2012, p.205). Sob essa premissa, Cunha
28
(2012) afirma que discursos e documentos promoveram historicamente conjuntos de
aspectos para integrar e definir uma regionalização de Cariri, principalmente sob os
elementos referentes à dinamicidade econômica no interior do Ceará; aglomeração
urbana e singularidade do aspecto ambiental.
A partir da análise de Cunha (op cit.), entende-se como premissa maior que
as concepções de análise regional em diferentes momentos históricos partilharam de
uma narrativa composta por elementos e fenômenos que evidenciaram e valorizaram
a proposta das classes dominantes no que tange a integração regional. Essa história
oficial, instituída legalmente por documentos e regulada socialmente, nos mostrou que
“a capacidade de representar, retratar, caracterizar e figurar não está simplesmente à
disposição de qualquer membro de qualquer sociedade” (SAID, 2011, p.243). Ou seja,
projetou-se uma totalidade na qual houve seleções e omissões de fatos que foram
elencados para a confecção de um discurso que representou grupos sociais e recortes
territoriais, mesmo sendo produtos de uma mentalidade determinada (WILLIAMS,
2011a; MARTINS, 1992). Esse processo de escolha de critérios é denominado por
Williams (2011a) como ‘tradição seletiva’, e consiste:
[...] na forma pela qual, a partir de toda uma área possível do passado e do presente, certos significados e práticas são escolhidos e enfatizados, enquanto outros significados e práticas são reinterpretados, diluídos ou colocados em formas que dão suporte ou, ao menos, não contradizem os outros elementos dentro de uma cultura dominante eficaz (op. cit.p.54).
Ademais os diferentes discursos estudados por Cunha (2012), a autora
afirma “A primeira divisão oficial na escala do nomeado Cariri cearense é a
estabelecida pela resolução 143, de julho de 1945, que dispões sobre a divisão do
Brasil em zonas fisiográficas” (op cit. p.166), mostrando a importância primeira de sua
diferenciação natural perante o sertão.
No cartograma a seguir, localizamos no Ceará as propostas de Edith
Menezes e Irineu Pinheiro para uma delimitação regional de Cariri, bem como
contornamos nesse mesmo cartograma os municípios que visitamos em trabalhos de
campo, nos quais realizamos entrevistas com os artesãos do couro.
30
O presente cartograma mostra um conjunto de municípios, que,
dependendo dos critérios, podem ser entendidos como inseridos na região do Cariri
Cearense. De nossa parte, concordamos com Williams (2011a) em que “temos de
romper com a ideia difundida do isolamento do objeto para, então, descobrirmos seus
componentes; temos de descobrir a natureza de uma prática e, então, as suas
condições” (op. cit.p.66). Assim, mesmo apresentando as propostas de Menezes
(2005) e Pinheiro (2009) de regionalização do Cariri cearense, decidimos não partir
de uma região a priori, e sim buscar os sujeitos (artesãos em couro) para então
delinearmos o entendimento dessa região decorrente dos elementos descobertos nas
experiências e valores coletivos desse público, no presente contexto de globalização.
Acreditamos que os artesãos do couro com sua estrutura de sentimento
contribuíram para um entendimento de região de profundidade histórica e cultural, que
tem significado pelo protagonismo histórico daqueles que cultivaram a vida no Cariri
cearense ao passo que legaram costumes, valores e pertencimento a essa localidade.
Para tanto, o aporte teórico de Paasi (1991;2001) para a compreensão da região é
fundamental, visto que o autor valoriza a noção de ‘geração’, o que converge com a
nossa perspectiva:
Vou defender a importância da geração como uma categoria que medeia entre as regiões e histórias de vida individuais. Esta é uma categoria que foi negligenciada e pode nos ajudar a compreender a constituição de certas distinções sociais e espaciais historicamente específicas 7 (PAASI, 1991, p.240, tradução nossa).
As histórias de vida analisadas sob a perspectiva de uma geração condiz
com o resgate “da prática efetiva que foi alienada em um objeto e as verdadeiras
condições dessa prática” (Williams, op.cit), ou seja, com a estrutura de sentimento.
Assim, nos é possível compreender a formação de uma cultura pela experiência de
vida histórica dos integrantes daquela região, e dessa maneira, entendemos que a
‘estrutura de sentimento’ reforça o conceito de região por considerar essa base social,
da experiência humana, histórica, que interliga as vidas individuais e que proporciona
o sentido pelo qual as instituições norteiam variáveis, segundo interesses adversos,
para a delimitação regional.
7 Citação original: I will argue for the significance of generation as a category which mediates between regions
and individual life histories. This is a neglected category which can help us to understand the constitution of certain
historically specific social and spatial distinctions” (p.240).
31
Logo, concordamos que as “regiões e lugares são sínteses ou
manifestação complexa de objetos, padrões, processos e práticas sociais derivados
da interação simultânea entre diferentes níveis de processos sociais, operando em
escalas geográficas e históricas variadas” (op.cit. p.242) 8. E a região do Cariri
cearense tem no legado histórico dos artesãos do couro a estrutura de sentimento que
determina um traço cultural desta região.
Para aprofundar a compreensão da importância do artesão em couro para
o Cariri cearense, desenvolvemos a seguir uma exposição de enfoque histórico para
subsidiar a formação sócio espacial, bem como para esclarecer os costumes sociais
desenvolvidos junto à base econômica pastoril que caracterizam o sertão nordestino
e conferem particularidade ao Cariri cearense.
2.1 ECONOMIA PASTORIL
Para amparar a reflexão do artesanato em couro, entendemos como
necessário pautar o contexto histórico de ocupação sócio espacial do sertão
nordestino. Nessa perspectiva, autores como Pompeu Sobrinho (1937), Capistrano
de Abreu (1996), Pedro Puntoni (2002) e Djacir Menezes (1995) são referências
históricas e documentais para a compreensão da diferenciação entre sertão e litoral,
quanto à organização social sertaneja; confronto entre indígenas e colonos pela a
ocupação da terra, bem como as heranças e os caminhos dessa construção social
para o Nordeste, e em especial para o Cariri cearense.
É importante ressaltar que as publicações documentais e sínteses
históricas dos autores supracitados relatam uma realidade a partir de uma análise
exterior à vivência cotidiana e às relações com a lida do gado e com o trabalho em
couro. Tais autores, observadores dos sujeitos e fatos estudados contribuíram com o
nosso conhecimento sobre o sertão, entretanto, o fizeram de modo a evidenciar os
próprios padrões de pensamento, produzindo um discurso. Entendemos que devemos
averiguar as informativas publicações históricas para com o nosso sertão, assim como
Edward Said (2011) o fez em relação à literatura europeia e americana. “[...]
esforçando-nos para extrair, estender, enfatizar e dar voz ao que está calado, ou
8 “Regions and localities are a complex synthesis or manifestation of objects, patterns, processes, and social
practices derived from simultaneous interaction between different levels of social processes, operating on varying
geographical and historical scales” (p.242).
32
marginalmente presente ou ideologicamente representado em tais obras” (SAID,
2011,p.123).
Iniciamos nossa discussão a partir da particularidade da estruturação dos
núcleos coloniais no sertão, os quais, em suas características sociais e produtivas,
demarcaram historicamente a cultura e o modo de vida sertanejo. No que tange ao
contexto histórico, concordamos com Puntoni (2002) que a pecuária foi uma tentativa
de povoar o interior da América, ao passo que expandia a ocupação da empresa
colonial, e nesse sentido, o interior do que conhecemos como Nordeste teve sua
ocupação advinda principalmente a partir de Pernambuco e Bahia, nos quais “os
caminhos e veredas do semiárido, por onde fluíam as tropas e os guerreiros bárbaros,
acompanhavam sinuosamente o sistema resultante da respiração sazonal da bacia
hidrográfica” (PUNTONI,2002, p. 39). Essa assertiva condiz com a perspectiva de
Pompeu Sobrinho, quando este afirma que os caminhos advêm das ‘veredas dos
índios’, as quais se serviram expedições contra indígenas rebelados e fazendeiros –
os primeiros exploradores.
No que tange a esse processo civilizatório no Brasil, Ribeiro (1995) afirma
haver uma interrupção de uma linha evolutiva das populações indígenas, que as
subjuga e “recruta seus remanescentes como mão-de-obra servil de uma nova
sociedade” (RIBEIRO, 1995, p.74). Tal processo é denominado pelo autor como
‘incorporação’, que proporcionou a miscigenação como tática de relações de poder
por parte dos colonos.
Não obstante o controle dos povos nativos, uma das bases de condições
materiais para a produção e reprodução social do referido processo civilizatório é a
“introdução do gado, que fornecia carne e couro – além de animais de transporte e
tração - , bem como a criação de porcos, galinhas e outros animais domésticos que,
associado à lavoura tropical indígena, proveria a subsistência dos núcleos coloniais”
(op.cit. p.74). Logo, tal processo de dominação dos habitantes de Pindorama9 foi
crucial para o desenvolvimento do Brasil enquanto país e marcou o embate e interação
étnica em nosso estado nacional.
A consolidação da economia pastoril se realizou no seio do escravagismo
operante na exploração e constituição do Brasil. Temos na economia pastoril uma
9 Pindorama é o nome dado pelos índios à sua morada antes do período de colonização do território que nós
conhecemos por Brasil.
33
particularidade, que segundo Puntoni (2002), se diferenciou pelo seu sistema de
relações e remuneração, nas palavras do autor: “O proprietário de imensas terras,
como era o patrão nos tempos coloniais e de grandes quantidades de gado,
responsabilizava vaqueiros pelo trato de algumas cabeças que ficavam sob seus
cuidados e dos ajudantes que fossem recrutados” (PUNTONI, 2002, p. 36). Sob essa
perspectiva, o autor ressalta uma relação de confiança e lealdade entre o vaqueiro e
o dono da fazenda que foi pertinente à economia e modo de vida pautado pela
pecuária, ao passo que não foi presente na exploração (escrava) da conjuntura da
época que marcava o litoral e sua produção agrícola para exportação.
Esta relação de confiança presente nos currais têm origens no conflito e
violência com os povos nativos, de modo geral, com as mulheres, de maneira
particular e com os frutos – mestiços – desse processo.
Na concepção de Ribeiro (1995), os campos de criação de gado, os
sertões, foram formados principalmente de mamelucos e brancos pobres. Essa
realidade foi possibilitada pela realização da já mencionada ‘incorporação’ pela
realização do cunhadismo, prática de miscigenação realizada através do casamento
de uma índia com um estranho (homem branco). “A importância era enorme e decorria
de que aquele adventício passava a contar com uma multidão de parentes, que podia
pôr a seu serviço, seja para seu conforto pessoal, seja para a produção de
mercadorias” (Op.cit. p.81).
Essa prática de sociabilidade, aparentemente amistosa, se mostrou
violenta a partir da relação de poder estabelecida pelos valores do homem branco,
pois, “para os colonos, os índios eram gado humano, cuja natureza, mais próxima de
bicho que de gente, só se recomendava á escravidão” (RIBEIRO, 1995, p. 53). Logo,
a influência social adquirida através da mestiçagem se deu com base na subordinação
subjetiva dos povos nativos sob a classe dominante, estrangeira, bem como na
dominação do povo nascente. Nas palavras de Martins (2013), nos é ilustrado a base
social brasileira: “Sociedade estamental, Portugal regulamentou no Brasil as relações
sociais apenas onde fosse necessário para assegurar os privilégios da elite branca e
católica e as diferenças sociais em que se fundavam” (Op. cit. p.28).
Esse processo de miscigenação como cooptação para consolidação de
poder e influência se consolidou não só pelo tencionamento do estrangeiro europeu,
mas também pela sujeição indígena, quando da incorporação de alguns costumes.
34
Na tradição indígena, o ser que nasce levava a descendência paterna, e
não materna, sendo a mulher considerada como um receptáculo gerador da criança
(RIBEIRO, 1995). Essa perspectiva indígena, somada aos interesses dos colonos,
gerou a dupla rejeição do mestiço mameluco, pois os índios não o viam como tal por
a descendência do pai ser do colono, e por parte dos pais, estes os viam como
“impuros filhos da terra” e assim os aproveitavam como mão de obra e os integravam
às bandeiras, quando rapazes. Segundo Menezes (1995), tal miscigenação originou
“a população livre e mestiçada” (ibid. p.63) que serviriam às tropas do exército, ao
trabalho produtivo, bem como seriam os retirantes em períodos de seca.
O povoamento decorrente de tais práticas delineou as relações de
confiança expostas por Puntoni (2002) como características da economia pastoril.
Diegues (1999) endossa essa perspectiva ao afirmar que a cultura sertaneja, no
decurso desse movimento de expansão, como especializada na criação de animais
de pastoreio e sendo “marcada pela dispersão espacial e por traços característicos
identificáveis no modo de vida, na organização familiar, na estruturação do poder [...]”
(op.cit. p. 50). Tal argumento se ratifica com Abreu (1996) ao reconhecer que “a
criação do gado influe sobre o modo por que se forma a população” (op.cit. p.226),
mostrando assim a formação da sociabilidade sertaneja e sua relação com o os currais
e com o couro.
A profissão de vaqueiro é reconhecida por nós e pelos autores em questão
como uma profissão digna, que requer coragem e habilidade. Contudo, o que
apontamos para a reflexão é a maneira como ela é propalada de modo desarticulado
da sua relação com o criador de gado e subjugada a este. Considerando que os
criadores são de etnia branca e os vaqueiros mamelucos, no contexto de segregação
étnica, quase estamental (Martins, 1992), entendemos que o vaqueiro, mesmo
exaltado, é uma profissão de “2ª. Classe”, é a manutenção da subordinação do
mestiço ao status quo dominante sob o enaltecimento de características étnicas
brancas e indígenas.
Essa relação de complexidade, foi pontuada por Puntonni ao expor que tal
relação entre patrão e empregado tem por base a relação de confiança (e
subordinação) que não é comum no presente contexto, visto no litoral a relação é entre
senhor de escravo e mercadoria. Entretanto, não nos furtamos ao debate, pois não é
porque a relação no sertão é de confiança que esta imune de preconceito e coação.
Analisemos a assertiva de Pompeu Sobrinho (p.337)
35
os vaqueiros e seus agregados e ajudantes, quasi únicos habitantes desses rincões, sabem que seus pais não exerceram ali atividade diversa; a tradição apega-os fortemente à tradição de seus maiores, profissão que, por sua vez, tem atrativos poderosos. O vaqueiro goza de uma liberdade ampla, não tem patrão muitas vezes e, quando o tem, esse é antes um sócio a que ele acompanha pela superioridade que lhe confere o conhecimento da terra, do gado, dos métodos de criação, e a responsabilidade direta das cousas da fazenda. A vida do vaqueiro é pouco atormentada: não lhe preocupam o espirito aborrecidos, trabalhos materiais sobre que tenha de meditar, nem a possibilidade de sêcas destruidoras, nem os negócios econômicos ou a manutenção da família. Não podia haver profissão mais adequada aos descendentes dos indígenas, habituados a uma vida sem coação de ordem administrativa. (1937, p.337)
A alegação de Pompeu Sobrinho (op cit) enaltece uma liberdade falseada,
visto que a relação do vaqueiro para com o fazendeiro remete a traços de servidão,
seja por falta de posses de terra como pelo ganho relativo à produção. Além do que,
é valorizado o trabalho na lida em detrimento do trabalho intelectual, como se o
mestiço não fosse capaz de realiza-lo, enquanto na verdade, este trabalho
administrativo, que é intelectual, é concebido ao senhor, ao fazendeiro, ou seja, ao
colono, enquanto etnia superior. É essa falsa relação amistosa apresentada e
defendida por Pompeu Sobrinho que criticamos, visto que subvaloriza o real trabalho
do vaqueiro.
Nesse sentido, a dinâmica social do sertão se desenvolve com base na
contraditória agregação étnica, que soma culturas do opressor e do povo nativo para
melhor controla-las sob o jugo do primeiro, no contexto criado por este, de ocupação
e domínio territorial, tendo o gado e o couro como base produtiva e reprodutiva dessa
sociabilidade.
Para Pompeu Sobrinho (1937), a ocupação dos sertões nordestinos
começou na última metade do século XVII, quando as terras litorâneas já estavam
povoadas e produzindo. Puntoni (2002) reforça essa perspectiva afirmando “o objetivo
era manter povoado o interior da América, expandir a ocupação da empresa colonial,
ao mesmo tempo, enfrentar os problemas que esta mesma expansão criava” (op. cit.
p.26). Tal objetivo só pôde ser concretizado, segundo argumentação de Abreu (1996),
visto que a criação do gado foi capaz de vencer distancias, facilitando o transporte, o
que foi importante num país tão vasto, pois as próprias rezes fizeram o percurso.
A consolidação da economia pastoril, bem como da reprodução social
sertaneja aconteceu a partir de embates diretos com os indígenas já presente nessas
terras. Abreu (idem) discorre que no século XVII os bandeirantes estavam
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organizados sob um poder central que os regulavam e desse modo eram contratados
pelo governo para “pacificar uma região determinada, recebendo em paga parte dos
prisioneiros feitos ou terrenos que ficavam devolutos, ou postos, pensões e
comendas” (ABREU, 1996, p.225). Nas palavras do autor:
[...] contornando as águas do alto Paraná, procuravam as do S. Francisco, que seguiam até seu destino. Os que chegaram por este caminho ao Ceará provavelmente acostaram-se ao Pajehú, de onde, transposta a Borburema, rendido os índios do Piancó, Seridó e outros afluentes do Piranhas, se passaram ás águas do baixo Jaguaribe. Por ahi corre até nossos dias um dos caminhos que ligam Ceará a Pernambuco (op.cit. p.225-226).
Tal inserção do colono para o interior a partir de rios perenes ou não, era
impulsionada para o domínio de novas áreas além do litoral. E mesmo com a pouca
lucratividade da lavoura em áreas de caatinga, “urgia dar-lhes destino, mesmo porque
a área dos catingaes era enorme, e descura-la tanto montava a deixar sem proveito a
maior parte do paiz” (ABREU,1996, p.78). Em nota de rodapé, Abreu caracteriza as
adversidades da caatinga por esta ser acessível, mas não fácil de transpassar, e é
por essa adversidade que o autor afirma “só o gado poude primeiro trilhar a caatinga”
(op.cit. p.78-79), mostrando assim a importância da pecuária no sertão nordestino.
A marcha colonizadora pelo sertão foi primordial, visto a dificuldade de
transporte para a circulação nacional pela via marítima ser problemática10, logo, os
caminhos do interior foram indispensáveis para habitação e comunicação entre o
sertão e as áreas de expressão comercial. Em relação a esses caminhos, “quase
todos os que serviram durante os tempos coloniais provieram das veredas dos índios
aproveitadas pelos primeiros exploradores, pelas expedições contra os indígenas
rebelados e pelos fazendeiros que se situaram às margens dos rios e riachos”
(POMPEU SOBRINHO, 1937, p.334). O autor ainda ressalta que muito depois do
aproveitamento dos caminhos indígenas apareceram os caminhos criados
politicamente, mas que estes consistiam muitas vezes em melhorias de caminhos
antigos.
Contudo, a apropriação dos espaços ocupados pelos índios nativos não
aconteceu de maneira rápida ou fácil. A difusão da presença do colono se deu ao
10Os ventos no litoral, que sopram numa só direção, dificultavam e retardavam o diálogo entre as capitanias,
principalmente Pernambuco, que era central para as operações econômicas da época.
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passo da resistência indígena, dentre os quais os Cariris, sinaliza Abreu, foram os
mais persistentes em sua defesa em todo o país. Mesmo assim, estes11 foram mortos,
reduzidos a aldeamentos, “outros agregados a fazendas, fundindo-se e confundindo-
se com os colonizadores alienígenas”. (ABREU, 1996, p.60).
Menezes (1995) também ressaltou a brava resistência dos índios e
salientou que a passagem de Pernambuco para o interior da capitania cearense foi
muito dificultada pela defesa dos índios Paiacus entre o Assú e a serra do Apodi.
Em relação às áreas dominadas, Pompeu Sobrinho (1937) mostra a
influência indígena na construção dos primeiros abrigos dos colonos, com casas muito
simples de taipa com telha ou de palha trançada à similitude das cabanas indígenas,
quando até os utensílios eram produzidos a partir das palmeiras ou plantas similares,
quando estas abundavam.
Não obstante aos caminhos pelos quais o gado penetrou, como legado que
“foi sem dúvida pela trilha do índio e guiado por índio” (ABREU, 1996, p.79), têm-se
também a herança na habitação, com a construção de cabanas ventiladas, e a
alimentação. Nessa perspectiva podemos observar a assertiva de Pompeu Sobrinho
(p.369) com base nos apontamentos do naturalista Koster ao notar que até pouco
tempo o sertanejo, de maneira geral, não usava mesa nem cadeira para as refeições:
“o costume mais geral, diz Koster, é acocarem-se em cima de uma esteira, onde toda
a família forma um círculo em roda de cabaças e assim é que fazem suas refeições”
(KOSTER apud, POMPEU SOBRINHO 1936, p.369).
Vale ressaltar que assim como o artesanato em palha é resquício da cultura
indígena associada ao nascente modo de vida sertanejo, a base alimentar pautada
em tubérculos como macaxeira e milho é outra herança; “com a massa de mandioca
Puba preparam-se bolos e papas, com a goma beijus, tapiocas, com a farinha pará,
carare pisada ou paçoca de carne, paçoca de peixe, etc.” (PINHEIRO,2009, p. 49).
Vemos assim uma forte contribuição cultural indígena associada ao
desenvolvimento da reprodução social sertaneja, que como nos lembra Andrade
(1995), tal herança é delegada aos colonizadores, sendo estes muitas vezes já
miscigenados. Tal influência “Também deu margem à utilização de utensílios de
couro, como portas de casa, leitos, cordas, borracha de carregar água, alforje, malas,
mochilas, peias para cavalo, bainhas de faca etc. [...]” (op. cit. 48).
11 Os cariris existiam em territórios desde a Paraíba ao Ceará.
38
Não obstante à herança e influência indígena para com a cultura em
processo, outro legado se deu em relação à formação dos povoados. Pompeu
Sobrinho, em relação ao povoamento, discorre sobre a formação das vilas, mostrando
as diferentes influências para a formação das mesmas. O autor afirma que as
primeiras vilas e cidades fizeram-se a partir dos aldeamentos indígenas, mas que
esses aglomerados também podem ter se originado “de um primitivo centro, sede de
fazendas de criar ou de sítios de plantar , convenientemente situados no interesse das
relações comerciais” (POMPEU SOBRINHO, 1937, p.333). Logo, seja por influência
política ou por necessidades da justiça, as vilas e cidades sertanejas foram sendo
instituídas, e materializadas enquanto amálgama da sociedade camponesa e
sertaneja nascente.
2.2 DESENVOLVIMENTO DA SOCIABILIDADE NO SERTÃO
Com o processo de povoamento, entendemos que a igreja tem importante
atuação em consonância com as bandeiras para a redução da força indígena, visto
que Bezerra apud Menezes (1995) afirma que o motivo da doutrinação indígena pela
religião era manter em segurança o gado e os colonos. Nas palavras de Ribeiro
(1995) “Nada que os índios tinham ou faziam foi visto com qualquer apreço, senão
eles próprios, como objeto diverso de gozo e como fazedores do que não entendiam,
produtores do que não consumiam” (op. cit., p.8).
Não obstante a lógica estabelecida de dominação territorial e da
subjetividade do nativo, a expansão do pastoreio pela dispersão dos currais promoveu
um desenvolvimento da economia pastoril e do modo de vida peculiar no sertão, com
‘espírito de patriarcado’ (PINHEIRO, 2009) que ao longo dos séculos se concretizou
com seus costumes próprios. Sobre esse processo, Ribeiro (1995) afirma:
Conformou, também, um tipo particular de população com subcultura própria, a sertaneja, marcada por sua especialização ao pastoreio, por sua dispersão espacial e por traços característicos identificáveis no modo de vida , na organização da família, na estruturação do poder, na vestimenta típica, nos folguedos estacionais, na dieta [...] (op. cit. p.340)
Essa caracterização da reprodução social do sertão, com seus costumes e
modo de vida, contrasta com litoral, primeiro espaço povoado para fins de exploração
econômica, com melhores solos para a produção, principalmente na zona da mata, e
39
de maneira geral, lócus de funcionamento das instâncias jurídicas e comerciais
representativas perante o exterior. Essa concentração de poderes e autoridade no
litoral, representados por ouvidores, governadores, vigários e fregueses é exposta por
Abreu (1996) ao caracterizar este espaço como cenário dessas lutas políticas. Tal
concentração de instancias políticas e jurídicas também eram tidas como marcos de
civilização, presente no litoral e não no sertão.
No que tange ao espaço cearense, mesmo que Abreu afirmasse que no
século XVII o Ceará já estivesse “devassado” e os índios reduzidos à aldeias,
Menezes precisa que somente no século XVIII a criação de gado foi fomentada no
Ceará, mostrando que “as ‘fazendas de criação’ desempenharam o papel de linha
avançada da marcha colonizadora, a fronteira movediça dos conflitos mais violentos”
(MENEZES, 1995. P. 176).
Sob o contexto da consolidação da pecuária e decorrente povoamento do
sertão, Pompeu Sobrinho justifica o sucesso da criação de gado, afirmando que a
difusão do gado foi prodigiosa nas caatingas por ser rendosa e haver poucas
despesas. O fato do transporte dessa mercadoria se da por ela mesma, sem custos,
facilitou a troca com outros gêneros de maior valor nos centros comerciais.
No espaço dos currais o comércio era inexpressivo, e as necessidades das
pessoas quanto à alimentação e vestuário eram sanadas localmente, com produção
agrícola de subsistência pra consumo e produção de artefatos artesanais para demais
usos (POMPEU SOBRINHO, 1937) . Na descrição do autor fica clara a existência
dessas outras atividades, que não à pecuária, compondo a realidade e dinâmica do
sertão, mesmo tendo o gado por central:
Não havia agricultura, senão raramente em pequenos tratos nas coroas dos rios, onde alguns agregados se davam ao trabalho de cultivar uma insignificância de milho, feijão, melancia, algodão. Pouco bastava, porque a terra fértil oferecia rendimento espantoso e escassas eram as bocas para o consumo dos cereais e legumes. Com o algodão, fiavam-se e teciam-se em toscos teares fazendas grosseiras e principalmente redes de dormir. O comércio era insignificante e os artigos da sua predileção tiravam-se do próprio gado. A pele dos ruminantes domésticos chegou a ser matéria prima de aplicação quasi universal entre os sertanejos do XVIII século. As grandes necessidades de alimento, satisfazia-as o gado – a carne fresca e seca, o queijo e o leite [...] o mais, isto é, a rapadura e a farinha, obtinha-se em troca dos couros das reses sacrificadas para o consumo e pelas morrinhas. (POMPEU SOBRINHO, 1937, p.338)
40
As necessidades locais eram sanadas em sua maior parte pelo artesanato
em couro, seja a confecção de instrumentos de trabalho no campo ou de uso
doméstico, já as demandas por produtos que não se produzia e nem confeccionavam
artesanalmente no local, também eram adquiridos a partir das rezes enquanto fonte
de capital “os gêneros de maior valor, tecidos caros, utensílios que os artífices locais
não sabiam fabricar, tiveram de ser comprados nas praças da Baia e Pernambuco,
com o produto das boiadas” (Op cit., p339). Mesmo homens e mulheres mais pobres
tinham suas roupas (comumente de algodão e chita) tecidas em casa, e também
compravam tecidos na cidade pelo intermédio dos ‘passadores de gado’(POMPEU
SOBRINHO, 1937). Pinheiro (2009) reforça a exposição de como a dinâmica do sertão
acontecia e como permaneceu até meados do século XIX. Nas palavras do autor:
No século XIX, nos sertões, a vida era quase autárquica. Além de vestir-se nosso matuto do algodão de suas roças, tecido em seus teares, alimentava-se de legumes que plantava, da rapadura de seus engenhos, calçava alpercatas de couro cru e resguardava-lhe a cabeça do sol e da chuva seu célebre chapéu de couro curtido (op.cit. p.113).
Logo, constatamos a importância do artesanato como meio transformador
da natureza. Essa atividade, fundamental na construção social do sertão do século
XVIII, tinha por base primordial o couro das boiadas, as quais, como vimos, é nossa
base econômica e social dos costumes e modo de vida experienciado e disseminado
por gerações. Assim, os artesãos do couro e os vaqueiros são importante expressão
histórica desse constructo social, atravessaram gerações e ainda hoje nos congratula
com sua existência e conhecimento adquirido ao longo das gerações.
Contudo, faz-se necessário expor o contexto e problematização em torno
daqueles que dinamizaram a realidade do sertão, sejam eles artesãos, vaqueiros, e
demais mestiços que com muito empenho trabalharam com a terra, o gado e viveram
nesta sociedade.
É importante pautar a discussão sobre os grupos étnicos, miscigenação e
seu papel social no período histórico em questão, pois a mentalidade do Brasil durante
o século XVIII é de que o imigrante, na figura do colono, representa a ordem, e a ele
foram concedidas terras para trabalho, sejam por sesmarias, no inicio da colônia,
como por concessões de produção já no século XVIII, em detrimento do papel do
mestiço e sua contribuição social.
41
Contudo, esses colonos, que foram os imigrantes italianos nos estudos de
Martins (1992), e o Português no Nordeste (POMPEU SOBRINHO, 1937) no século
XVIII são a expressão da europeização que as elites coloniais idealizavam enquanto
um ideal de civilização para o Brasil. Desse modo, ao contrário do imigrante europeu,
a população mestiça e de origem indígena era:
Destituída de direito à propriedade numa sociedade em que tal direito estava vinculado à pureza racial, ao mesmo tempo em que não contava com a tutela e a proteção a que estavam obrigados os senhores de escravos em relação aos seus cativos. Embora formalmente livre, era uma população privada de direitos, obrigada a viver de favor e de pequenos trabalhos para os grandes fazendeiros ou para si mesma. Em todo o país, desde os tempos coloniais, foi uma população forçada a viver no limite da sociedade, obrigada a desenvolver uma sociabilidade em grande parte própria, apoiada em estratégias de sobrevivência (MARTINS, 1992, p. 137).
Essa segregação social de base étnica, constitui a base das relações
sociais e do poder da classe dominante de narrar sob a sua perspectiva (científicas e
da literatura) a função dos papeis sociais dentre aqueles que compõe a realidade, em
nosso caso, a realidade pastoril no interior cearense e mais precisamente no Cariri
Cearense.
Pompeu Sobrinho (1937), ao identificar as bases étnicas predominantes do
Nordeste brasileiro afirma que “é de conhecimento de todos o ariano peninsular,
particularmente o português dos séculos XVI a XVIII, o africano importado e o
ameríndio que ocupava a região ao tempo da conquista” (op cit.p.341). No que tange
à caracterização do ariano, português em relação à colonização do sertão, este é
caracterizado como: “mesmo rodeado de índios mansos e mamelucos destemidos, o
português ou o mazombo que se aventurava a tanto devia possuir dotes excepcionais
de coragem e energia (...)” (op. cit. P.341). Já os negros, são tidos como menos
presente nos sertões nordestinos , seja por ser uma mercadoria cara e de menor
necessidade nos sertões comparado ao tipo de trabalho que demandava essa mão-
de-obra no litoral, como, segundo Pompeu Sobrinho, por serem “os menos amparados
contra o flagelo (das secas), em vista da inferioridade das suas condições sociais” (op
cit. p.348). No que tange ao índio “Sob o aspecto humoral e psíquico há que salientar
a grande resistência física que lhes permitia enormes caminhadas, rapidez
extraordinária nas corridas (...). Essas qualidades eram tais que causavam admiração
aos fortes soldados da Holanda” (op cit. p. 354).
42
As pretensas justificativas para caracterizar os tipos étnicos, partilharam da
premissa da superioridade da raça pura, sendo esta a branca, expressa nas citações
presentes, como em demais explicações no documento original. Mesmo com elogios
ao índio, este o faz a partir de relatórios naturalistas já realizados por povos de etnia
branca (Holandeses), enquanto as alegações de inferioridade aos negros não são
fundamentadas, mas ainda sim postas em artigo como verídicas, o que nos mostra
como os documentos da história oficial estão vinculados a uma perspectiva ideológica
tendenciosa.
Entretanto, tal posicionamento do autor é compreensível, visto que, “A
constituição de um objeto narrativo, por mais anormal ou insólito que seja, sempre é
um ato social por excelência, e como tal carrega atrás ou dentro de si a autoridade da
história e da sociedade” (SAID, 2011, p.139). O que mostra o ponto de vista segundo
os preceitos e ideologia que nortearam seu pensamento.
Consoante às assertivas de Pompeu Sobrinho (op. Cit.), Menezes (1995)
sintetizou como se deu a culminância do processo de povoamento do sertão
nordestino, afirmando que foi a partir da população indígena que provieram os
contingentes futuros da população trabalhadora, pela miscigenação, juntamente com
a população negra, e brancos, em menor proporção, por estes serem a minoria
beneficiada.
Apresentado os nossos elementos sociais da base econômica pecuária,
vemos que a criação do gado, base econômica comum à realidade sertaneja, era
realizada pelos vaqueiros. Estes eram trabalhadores livres dos fazendeiros (em
contexto nacional de escravidão) que eram pagos “em generos de quatro bezerros
um, de modo que em poucos annos têm semente com que começar vantajosamente
a luta pela existência” (ABREU, 1996, p.100). Não obstante ao recebimento de
pagamento em gêneros, os vaqueiros são caracterizados por Menezes e Abreu como
trabalhadores de vida aventurosa, por se aventurar em espaços nos quais os
criadores não iam, denotando um trabalho de liberdade e de espírito livre, por estes
serem mamelucos, reforçando a relação da origem indígena e branca. Logo, nessa
perspectiva, “desagradava-lhes a tarefa contínua e absorvente da lavoura”
(MENEZES, 1995, p.88).
Essa composição do vaqueiro como um forte e valente, procede para com
o trabalho que realiza, além de ser um trabalho pautado no conhecimento de
habilidades adquiridas pela experiência. Contudo, tal sujeito figura como um mito,
43
muitas vezes exaltado fora de contexto da realidade12. De todo modo, o trabalho de
vaqueiro, e a vida da gente simples e livre do sertão, no século XVIII, ainda privada
de direitos, proporcionou o desenvolvimento de uma sociabilidade própria para a
manutenção da sobrevivência sobre o legado indígena da produção de macaxeira,
milho e pequenas roças para o consumo, associado ao trabalho com o couro, seja
com curtumes para o trato da pele, como com o artesanato a partir da confecção de
instrumentos e acessórios necessários ao dia a dia.
Essa sociabilidade própria, de produção para a subsistência numa
realidade de liberdade formal, esteve diretamente atrelada à uma relação de
patriarcado, pois, “No Nordeste o patriarcado rural, acima nomeado, requinta-se
atingindo uma verdadeira intimidade entre o amo e seu vaqueiro, ou seu trabalhador
de enxada, que conversam familiarmente, sentados lado a lado, comem na mesa, etc.”
(POMPEU SOBRINHO, 1937, p.43).
Entendemos, assim, que o espaço de sertão no século XVIII foi a síntese
da relação de poderes e interação social entre brancos, índios, negros e mestiços.
Síntese esta que promoveu uma convivência tendo por pressuposto uma segregação
étnica e social, que se harmonizou pelos laços de familiaridade e compadrio
disseminados e cultivados de maneira interesseira desde os tempos de colonização,
com o cunhadismo.
No âmbito da composição social sertaneja, os naturalistas e estudiosos dos
séculos XIX e XX, nos trazem elementos importantes para situarmos a diferenciação
social no sertão. A partir dos escritos de Pinheiro (2009), Pompeu Sobrinho (1937) e
Menezes (1995), podemos distinguir os ‘habitantes respeitáveis’, constituídos por
brasileiros, quase todos lojistas, políticos ou fazendeiros; enquanto o mestiço, pobre,
é visto como um ‘cabra’ de índole ruim ou violenta, ou mesmo um ‘matuto’, o qual
eram os empregados que transportavam mercadorias em lombos de animais, mais
conhecidos por camboeiros. Ademais, temos o ‘homem da enxada’ e o ‘vaqueiro’
fazendo parte do conjunto dos pobres e mestiços, contudo, estes são elogiados como
‘duros e sóbrios’ pelos ‘ilustres filhos da terra’ (cidadãos pertencentes às elites).
No que tange ao artesão, era o próprio vaqueiro, que por muitas vezes
produzia suas peças de trabalho. Quando não, seleiros faziam especialmente selas e
artefatos voltados à montaria, com precisão e qualidade para a efetivação do trabalho
44
com o gado. Estes, compunham o setor social que eram respeitados, porém,
subjugados pelos detentores do poder.
Essa diferenciação social, forjada no bojo da economia pecuária é o
conjunto que dinamiza o contexto das ações dos coronéis, e implica diretamente na
economia e política locais.
2.3 A IMPORTÂNCIA DO CARIRI NA ECONOMIA PASTORIL: CULTURA E
EXPERIÊNCIA, UMA CONTRIBUIÇÃO PARA A REGIÃO.
Ainda em relação ao período colonial e suas particularidades, Pompeu
Sobrinho distingue três áreas etnográficas no Nordeste brasileiro, quais sejam: a dos
vaqueiros, a dos engenhos e a dos pescadores. Sendo a área do vaqueiro a terra do
sertão. Este estudioso acredita que “as forças orientadoras do meio físico sobre o
homem e a sociedade ainda preponderam” (POMPEU SOBRINHO,1937, p.324) o que
gera diferenciações em relação às características sociais de grupamentos.
Sem adentrar ao debate de determinismo social, mas focando as
diferenciações colocadas pelo autor, ao analisar o adensamento demográfico no
Nordeste, além das áreas etnográficas, o autor afirma existir quatro zonas de
concentração humana e suas respectivas características, dentre as quais uma delas
“consta principalmente do vale do Cariri, mas se estende aos estados da Paraíba e
Rio Grande do Norte. O foco desta concentração compreende os municípios de
Barbalha, Juazeiro, Missão Velha, Crato e São Pedro” (op cit. p.328). O argumento do
autor para essa assertiva é a de que as maiores concentrações populacionais se
relacionam às zonas de maior pluviosidade.
Menezes (2005) reafirma essa busca do Cariri pelos exploradores pela sua
fertilidade natural e Pinheiro (2009) ressalta a existência de água como o fator
preponderante para a escolha dos locais de povoação. Nas palavras de Figueiredo
Filho (2010b, p.42):
Eram criadores os primeiros colonos do Cariri [...] Notou logo o alienígena a diferença entre esta região e as outras zonas sertanejas circunvizinhas. A água perene de suas fontes foi o primeiro convite ao homem para soltar o laço e agarrar-se à foice e ao cabo da enxada. (op.cit. p.42)
45
Esta região13 cresceu economicamente tendo a pecuária como base desde
o século XVIII; Figueiredo Filho (2010a) e Almeida (1965), afirmaram que o século
XVIII se consagrou como o período das origens e da formação social da então
denominada região do Cariri, na porção cearense, que começou a se consolidar pelo
povoamento mais intenso desde o século XVII, na interiorização da colonização no
Nordeste, sob o pleito das terras indígenas para a criação de gado. Esse processo
de ocupação iniciou pela zona semiárida paraibana (conhecida como Cariris Velhos)
e continuou pelo vale úmido da Chapada do Araripe, no Ceará, conhecida como
Cariris Novos.
Contudo, é importante ressaltar que para o Cariri Cearense outras bases
produtivas foram salutares para o crescimento econômico da região ao longo do
percurso histórico (como a cotonicultura e a produção dos derivados da cana). Suas
peculiaridades em termos de produção14 comparado à realidade de sertão era
complementar às características gerais de reprodução social pautada na economia
pastoril.
A cana de açúcar produzida no Cariri, ao contrário daquela da zona da
mata, não era para produção de açúcar, mas sim para melado e rapadura
(FIGUEIREDO FILHO, 2010b), vendidos nas feiras juntamente com outros artefatos
de uso cotidiano (dentre os quais muitos confeccionados em couro para uso
doméstico ou voltados para a lida com o gado) além do que, seu transporte acontecia
em carros de boi15, nos mostrando que não está dissociada da produção pecuária.
Tais atividades tiveram suas influências, inclusive econômicas para o
crescimento da região, mas não suprimiram a importância do legado do couro, bem
como do artesanato atrelado a ele, sendo esta a base econômica deste recorte
territorial ao longo dos séculos XVIII e XIX (ARAÚJO, 2011). A baixo, o cartograma de
13 O debate sobre a região do Cariri, sua delimitação e seus critérios de definição é um debate inconcluso, mas
muito bem retomado pela tese da professora geógrafa Maria Soares da Cunha, intitulada: ‘Pontos de (re) visão e
explorações historiográficas da abordagem regional: exercício a partir do Cariri Cearense (séculos XIX e XX)’.
Mais adiante, como base nesse material, problematizaremos a questão em relação a proposta de nossa tese. 14Segundo Djacir Menezes (1995), as serras frescas e ribeiras jaguaribanas foram as primeiras tentativas mais
firmes de produção agrícola. No caso do Cariri, a expressão desse fato é a plantação de cana voltada à produção
de rapadura e melado para as feiras regionais (Figueiredo Filho 2010b). 15 “Serviam, particularmente, os carros de bois, no Cariri, e inda hoje servem em menor escala, para o transporte
da cana de açúcar dos cortes, nos sítios, até o pé dos engenhos. Não só para o carregamento da cana, também para
o da lenha, sustentados os toros de pau pelos fueiros enfiados nas chedas da mesa do carro” (PINEHIRO, 2009, p.
107).
46
Santos (2005) mostra a diversidade produtiva do Cariri perante o sertão, bem como a
relevância do gado e seus derivados:
Cartograma 2 - Distribuição da produção na província do Ceará nas duas
primeiras décadas do século XIX.
A criação de gado movimentou a economia, seja pela carne seca, como
pelo trabalho em couro dos artesãos, paripassu aos produtos vendidos nas mesmas
feiras oriundos dos em
genhos. Em relação à economia, a partir dos artefatos em couro, Beserra
(2007) afirmou que não se pode falar em indústrias propriamente ditas até final do
século XIX pela já existência das oficinas de cunho artesanal presentes na parte
central dos povoados voltados para o comércio local na região do Cariri.
A coerência de produção e reprodução da vida no Cariri cearense foi
pautada na atividade pastoril e nas condições climáticas particulares, que
proporcionou o desenvolvimento de um modo de vida o qual muitos estudiosos e
políticos buscaram regionalizar na intensão de delimitar este espaço particular no
sertão cearense.
47
3 ESTUDOS CULTURAIS E GEOGRAFIA CULTURAL: A CONTRIBUIÇÃO DO
ARTESÃO ATRAVÉS DA CULTURA
Podemos observar que a realidade histórica dos artesãos do couro tem sido
bastante modificada com o advento da globalização. A existência desses artesãos em
pleno século XXI, a mercantilização de seu símbolo cultural, o reconhecimento social
do seu trabalho, bem como o interesse do Estado no reconhecimento e fomento desse
saber popular nos mostra diferentes perspectivas de compreensão sobre a
importância da autenticidade deste grupo social tão marcante na história do sertão e
na configuração regional do Cariri cearense.
No âmbito dos nossos estudos, buscamos a perspectiva de apreender o
legado que estes deixaram e ainda em vida o perpetuam para o Cariri cearense. Esse
estudo não poderia se realizar a não ser pelo viés da geografia cultural materialista,
com base em Raymond Williams.
3.1 CULTURA E GEOGRAFIA CULTURAL
Para compreender o significado da região e desvendar a dinâmica que
configura o legado dos artesãos do couro contemporaneamente nas suas múltiplas
dimensões, recorremos às bases de entendimento sobre o trabalho artesão e a cultura
bem como as correlações destas para com a configuração regional do Cariri
Cearense.
No que tange a influência cultural no desenvolvimento social, questionamo-
nos sobre qual seja o significado de cultura, e nos deparamos com um debate intenso
dentro e fora da Geografia. Mas se nos remetermos à sua origem, veremos que o
conceito de cultura é derivado do conceito de natureza, pela relação com o trabalho
humano, o cultivo (EAGLETON, 2005). Segundo Terry Eagleton (2005): “‘Cultura’
denotava de inicio um processo completamente material, que foi depois
metaforicamente transferido para questões do espírito. A palavra, assim, mapeia em
seu desdobramento semântico a mudança histórica da própria humanidade da
existência rural para a urbana” (op.cit.p.10).
O homem, enquanto ser genérico é parte da natureza e, na medida em que
precisa sobreviver não só convive com a mesma, mas a transforma com finalidade de
suprir suas necessidades. Não consideramos aqui o homem isoladamente, mas o
48
homem que vive historicamente em sociedade, esta que é um
[...] processo constitutivo com pressões muito poderosas que se expressam em formações políticas, econômicas e culturais e são internalizadas e se tornam ‘vontades individuais’, já que tem também um peso de ‘constitutivas’ (WILLIAMS, 1979 p. 91).
Nesse aspecto, entendemos que o desenvolvimento da sociedade se refere
a uma vida social na qual existe um sentido pleno criado, vivido e expandido pelo
próprio homem em sociedade.
Posto isso, entendemos que as necessidades humanas a serem supridas
não são apenas de ordem natural de sobrevivência, mas de ordem socialmente
construída, e porque não dizer cultural, já que este conjunto delineia a totalidade
social.
É importante ressaltar que o suprimento das necessidades humanas e as
novas necessidades criadas não são passíveis de compreensão apenas pela
teorização. Faz-se necessário entender a significação do processo, e este acontece
por meio da experiência dos sujeitos como atesta Thompson (2009):
[...] a experiência é um termo médio necessário entre o ser social e a consciência social: é a experiência (muitas vezes a experiência de classe) que dá cor à cultura, aos valores e ao pensamento: é por meio da experiência que o modo de produção exerce uma pressão determinante sobre outras
atividades: e é pela prática que a produção é mantida. (Thompson,2009, p, 139)
Essa experiência, vivida no âmbito da coletividade, é base para a
consciência e para a cultura, mesmo que não autoconsciente. A Experiência humana
é importante para mostrar como a história é determinada, ou seja, como ocorre o
desenvolvimento social. Pois as pessoas, como sujeitos “experimentam suas
situações e relações produtivas determinadas como necessidades e interesses e
como antagonismos, e em seguida, ‘tratam’ essa experiência em sua consciência e
sua cultura” (IBID , 2009, p. 226).
Mas o que significa a cultura? Para nós, a cultura permeia o cotidiano, os
hábitos e se materializa nas tomadas de decisões diárias para com a realização da
vida em seus mais diferentes aspectos e em consonância com os valores de diferentes
grupos sociais. Cosgrove (2010) e Williams (2015) apresentam concepções
complementares em relação ao conceito. Para o geógrafo:
49
A produção e reprodução da vida cultural são, necessariamente, uma arte coletiva, mediada na consciência e sustentada através de códigos de comunicação. Esta última é produção simbólica. Tais códigos incluem não apenas a linguagem em seu sentido formal, mas também o gesto, o vestuário, a conduta pessoal e social, a música, pintura, a dança, o ritual, a cerimônia e as construções (COSGROVE, 2010, p.103).
Para Williams (2015) a cultura é um fato do dia a dia, na qual
[...] toda sociedade humana tem sua própria forma, seus próprios propósitos, seus próprios significados. Toda sociedade humana expressa isso nas instituições, nas artes e no conhecimento. A formação de uma sociedade é a descoberta de significados e direções comuns, e seu desenvolvimento se dá no debate ativo e no seu aperfeiçoamento, sob a pressão da experiência, do contato e das invenções, inscrevendo-se na própria terra (op. cit., p.5).
Considerando as perspectivas de cultura apresentadas, ambas se referem
a um modo de vida organizado socialmente, contudo, elas também estão suscetíveis
a um domínio da subjetividade social, visto a existência dos embates de valores e as
alienações da modernidade (EAGLETON, 2005).
De acordo com Martins (2013), a modernidade no Brasil só pode ser
elucidada se buscarmos como o moderno e os signos da modernidade são absorvidos
pelo popular. Nós acrescentamos ainda que entender a interação de símbolos da
modernidade com o popular é fundamental para as demais escalas afora ao estado-
nação, justamente pela influência e manutenção do mundo vivido.
As diferentes temporalidades impostas pela modernidade “está mais no
âmbito do ser visto do que no do viver” (MARTINS, 2013, p. 33). E assim, ainda
segundo o autor, a cultura popular carrega consigo seu tempo histórico, mas aos
poucos dá lugar aos novos elementos modernos que modifica a sua autenticidade.
Em outros termos, aquilo que era repleto de sentido e representado por uma
determinada forma, tende a manter o seu significante (forma), mas perdendo seu
significado – em todos os âmbitos da vida.
Contudo, qualquer análise dos processos deve considerar os períodos
históricos e respectivos recortes espaciais em que acontecem os fenômenos. Posto
isso, a cultura historicamente se desenvolve como uma prática social, e desse modo,
não acontece senão, de modo paradoxal, marcando o cotidiano. Contudo, com o
avanço das forças produtivas e com a complexidade das relações sociais de
produção, compreender a cultura, é entendê-la articulada ao cunho político e partícipe
da dinâmica social.
50
Em decorrência da particularidade fomentada historicamente por condições
próprias ao Nordeste e ao Cariri cearense, temos atualmente uma maneira de
expressar, sotaques, festejos e artesanatos próprios de temporalidades passadas que
permeiam a vida cotidiana presente. Entretanto, sob a nova conjuntura, os signos
dessas expressões culturais estão passíveis da perda de seu significado, mesmo que
ainda haja uma identidade da população para com essas manifestações. Nas
palavras de Martins (2013):
A cultura popular carrega consigo o seu tempo histórico, que só lentamente se dilui para dar lugar a formas culturais desenraizadas e, portanto, desprovidas dos liames de autenticidade que lhes davam sentido em outros tempos e situações, isto é, formas puras e intercambiáveis […]. Mesmo aí, a recuperação da cultura popular e do tradicionalismo que ela expressa e contém não pode se integrar na modernidade senão como anomalia e problema […] uma anomalia, portanto, na situação própria da modernidade, dominada pela moda, pelo moderno e pelo passageiro. (op cit. p.33)
Na naturalização da realidade desigual enquanto “ordem social vigente” as
esferas da vida com resquício de alguma espontaneidade como lazer, diversão,
cotidiano são incorporados ao sistema e transformados em parte deste como fonte de
lucro e de controle social pelo horizonte ideológico que o domina e que passa a
sistematizá-lo.
Essa massificação que se passa com a arte, com o saber e com a realidade
urbana (LEFEBVRE, 1973) também intervém nas diferentes formas de apropriação
do espaço, territorializando toda esta dinâmica que transita entre diferentes escalas
de maneira a manifestar seu poder em áreas precisas. Logo, nossa proposta de
estudo visa refletir sobre a estrutura de sentimento em questão, pela consciência
prática daquilo que está sendo vivido, pois “estamos interessados em significados e
valores tal como são vividos e sentidos ativamente, e as relações entre eles e as
crenças formais ou sistemáticas são na prática, variáveis [...]” (WILLIAMS,1979, p.
133).
Assim, para nós, estudar a região caririense via estrutura de sentimento é
plausível, por abranger a cultura constituída no passado e que ainda se faz presente
pela existência dos artesãos do couro, experiência esta que é histórica e geracional.
A contribuição deste conceito está na “[...] junção do objetivo e do afetivo, é uma
maneira de tentar transpor a dualidade da cultura, ao mesmo tempo realidade material
e experiência vivida” (EAGLETON, 2005, p.57).
51
Tal perspectiva, ao valorizar a experiência e uma identidade comum,
mesmo que não autoconsciente por parte dos artesãos, visou entender os artesãos
do couro e sua obra como uma das bases que sustentam o sentido de região do Cariri
cearense, pois “a esfera simbólica traz consigo a história e as tradições e promove a
reprodução de consciência social. A formação da forma simbólica de uma região
específica também canoniza um aparelho para distingui-lo de todo” 16 (PAASI, 1991,
p.245). Esse sentido de região fomentado pela narrativa dos artesãos é tencionado
frente o incessante processo de incorporação que reinterpreta, dilui, projeta
(WILLIAMS, 1979) uma região concebida pelo poder hegemônico mantenedor da
ordem social.
Segundo Williams (2011b) os Estudos culturais tem a sua raiz na educação
para adultos (na Inglaterra), na tentativa de trabalhar integradamente um projeto e
uma formação voltado ao acesso popular para “uma discussão dessa literatura em
relação às situações de vida que as pessoas estavam enfatizando fora dos sistemas
educacionais institucionalizados” (op cit.p.173). Ou seja, o autor tinha como proposta
de estudo cultural a relação entre o saber intelectual sendo dialogado junto à
população civil comum, que vive e reflete seu dia a dia, a partir das experiências nas
suas mais diferentes escalas.
Vemos como importante os estudos culturais apontados por Williams (op
cit.) para a Geografia, na medida em que a base desta ciência está na relação intricada
entre a sociedade e a natureza. Logo, em nossa perspectiva, a contribuição dos
estudos culturais proporcionou compreendermos as particularidades sociais na escala
do viver como um caminho de esclarecer quais variáveis devemos considerar para a
compreensão de uma espacialidade.
Contudo, no que tange à experiência inglesa, essa tentativa prática de
realização dos estudos culturais foi objeto de racionalização, teorização e
institucionalização acadêmica, o que proporcionou, segundo Williams (2011b; 2015),
o ‘esquecimento do projeto real’ e certo engessamento desses estudos, visto que
estes foram desenvolvidos segundo as premissas dos formalismos de intelectuais,
perdendo assim o foco e a essência original da proposta.
16 “Thus the symbolic sphere carries with it history and traditions and promotes the reproduction of social
consciousness. The formation of the symbolic shape of a specific region also canonizes an apparatus for
distinguishing it from all” (p.245).
52
Trouxemos a reflexão sobre os estudos culturais para a seara da geografia
Cultural e suas abordagens, neste quase um século de pesquisa, visto a influência da
escola Britânica e de Raymond Williams para a Geografia, bem como pelas diferenças
nuanças de pesquisa que se desenvolveram em nossa área desde Carl Sauer.
A geografia cultural de Sauer pautava-se nos estudos de áreas geográficas
distintas que poderiam ser “identificadas e descritas através do mapeamento dos
elementos visíveis da cultura material produzida pelos grupos culturais unitários”
(Cosgrove e Jacson, 2010, p.136). Nas palavras do próprio Sauer (2010,p.22-23):
A geografia cultural se interessa, portanto, pelas obras humanas que se inscrevem na superfície terrestre e imprimem uma expressão característica. A área cultural constitui assim um conjunto de formas interdependentes e se diferencia funcionalmente de outras áreas.
Com base na proposta do próprio autor, vemos que a geografia cultural da
década de 1930 muito se aproxima do conceito de Gênero de vida, visto que ambos
focam os estudos em comunidades mais ou menos fechadas, que têm a cultura como
um produto social. Não obstante, o elemento circulação/ fluxos, tão comum no século
XX e XXI, essa dinamização está para ambas como um desarticulador de um modo
de vida próprio, sendo um fio condutor para a ocorrência de mudanças.
Considerando o desenvolvimento das pesquisas na escola de Berkeley,
novas referências conceituais são estabelecidas, bem como metodologias são
desenvolvidas e a geografia cultural se difunde e diversifica seu campo de atuação,
ao passo da dinâmica social.
A década de 1970 é conhecida por ser um período de novos caminhos para
a geografia cultural, período em que novas características e recortes de estudos são
trazidos à luz da pesquisa para análise. De modo amplo, nesse período, as pesquisas
desenvolvidas estavam enveredando para desvendar as contradições sociais
relacionadas a grupos considerados minoritários e as relações entre grupos
dominantes e subordinados (Ver Cosgrove e Jacson, 2010).
Em relação a proposta de Sauer para com a geografia cultural, bem como
de autores como Cosgrove e Jacson (op cit.) e Mc Dowell (1996), entendemos que a
dinâmica da história tem influenciado e posto à reflexão os paradigmas da geografia
53
cultural. 17 Nesse sentido, a partir da dinâmica do mundo presente, em sua
intensificação de fluxos de informações, fazemos coro à McDowel (ibidem) quando
esta entende que o desafio aos geógrafos culturais é investigar “como as
interconexões entre forças globais e particulares local alteram os relacionamentos
entre identidade, significado e lugar” (op.cit p.181).
Sob o desafio de compreender as relações entre forças globais e
particulares alterando identidades, significados e lugares, concordamos que há um
fomento dos estudos culturais, inclusive na Geografia, possibilitando uma variedade
de recortes de pesquisa, bem como de vieses metodológicos de interpretação,
enriquecendo cada vez mais o debate nessa área da Geografia.
Kirsch (2013) expõe em seu artigo uma revisão teórica sobre a geografia
cultural dos últimos vinte anos e cita autores como Cresswel e Danniels para endossar
a afirmativa que a geografia cultural ascendeu de subcampo da Geografia para uma
formação transdisciplinar, sendo nos dias de hoje um produto inacabado, por ser um
campo aberto de pesquisa no qual os geógrafos têm estudado os processos culturais
em sua transformação em relação aos conceitos da Geografia.
Paasi (1991), a partir dos discursos geográficos da década de 1980,
examina os conceitos de região, espaço e lugar, elaborando uma “reinterpretação do
conceito de região como um marco sociocultural e categoria apresentada” (Paasi,
1991, p.239, tradução nossa) relacionando a cultura e a Geografia pela constituição
das histórias sociais.
Com base em artigos da década de 1990, Tolia - Kely (2011, 2010) perfaz
um panorama da geografia cultural, mostrando que para esse âmbito da Geografia
existem diferentes abordagens e endossa a inegável contribuição dos estudos
culturais, inclusive a partir de Raymond Williams, sob a perspectiva do materialismo
cultural. Kirsch (2013) atesta que a difusão do materialismo pela geografia cultural é
uma maneira prática e filosófica de engajamento nas pesquisas, mesmo entendendo
que há uma multiplicidade de abordagens. Para o autor:
Concepções relacionais de natureza, objetos, pessoas e espacialidades são enfatizadas até mesmo quando a natureza dessas relações são diferentemente compreendidas. Ao mesmo tempo, o materialismo requer que
17 Em obras publicadas no Brasil como ‘Geografia Humana’ organizado por Gregory, Martin e Smith , “Introdução
a Geografia Cultural” organizado por Corrêa e Rosendahl , e demais coletâneas, temos um panorama e
aprofundamento de como a Geografia cultural desenvolveu-se a nível mundial, bem como suas transformações na
década de 1970 e sua variedade no âmbito dos campos de atuação. Não obstante, TOLIA-KELLY (2010, 2011),
KIRSCH (2013) fazem um panorama de como está o andamento das publicações nessa área, bem como debatem
o compromisso político das pesquisas realizadas atualmente.
54
não determinemos o avanço dos processos em situações dadas – em termos gerais, a econômica, a política, a cultural, a hidrológica – as mais influentes, quais as hegemônicas, quais tem maior ou menor eficácia, tampouco precisar o papel que o ‘cultural’ deveria desempenhar. É preciso definir nossas próprias verdades - se necessário nossas próprias categorias de conhecimento – através de nossas investigações demostráveis das condições materiais de nossa existência (Kirsch, 2013, p.435, tradução nossa).
A assertiva de Kirsch condiz com o pensamento de McDowell (1996) em
relação à contribuição de Williams, quando a mesma afirma que Stuart Hall e
Raymond Williams são destaques de importância para a geografia cultural inglesa, a
qual “aborda questões sobre como os conjuntos de significados compartilhados e
identidades sociais estão ligados a lugar” (MC DOWELL,1996,p.169). A preocupação
de Williams (2015) em compreender que a cultura é algo comum e ordinário, que pela
experiência se expressa na forma da sociedade, conduz a uma perspectiva de
compreender a realidade em sua dinâmica. Essa abordagem, base para a vertente
materialista na geografia cultural, volta-se para a transformação e o processo das
relações humanas, ressaltando as particularidades implicadas no processo de
globalização (KIRSCH, 2013).
Tolia-Kely (2010) afirma que as publicações e editoriais mostram uma
tendência de pesquisa em geografia menos conservadora que por sua vez, revelam
uma perspectiva de engajamento político nas realizações das mesmas. Em relação
ao ponto de vista de Mc Dowell (1996), Tolia-Kely (2012) também creditou importância
à perspectiva cultural materialista, a qual impactou o desenvolvimento da Geografia
cultural:
O aspecto importante do materialismo para esses autores é uma possibilidade de mudança política e releitura de um complexo de vida que está situado na resolução humana e da violência não-humana, a alienação, recurso contra a pobreza [...].18 (TOLIA KELLY, 2012, p.155, tradução nossa).
Os estudos ‘marginais’, ou seja, estudos de objetos e processos não
“nobres” ou tradicionais na geografia, foram e são as temáticas sobre as quais os
estudos culturais buscaram intervir politicamente. Estes foram trazidos à luz a partir
das temáticas de diferenças raciais, sexuais, dentre outros temas, que foram
18 “The important aspect of materialism for these authors is a possibility for political change and reimagining of a
complex of living that is situated in resolving human and non-human violence, alienation, resource-poverty […]”
(p.155).
55
abraçados pela “Nova geografia Cultural” desde a década de 1970 ao buscar
compreender a dinâmica social pelas práticas sociais que marcaram todo um período
e eram desconsideradas pelos debates centrais à Geografia.
Paasi (1991) inclusive trouxe à nossa discussão o argumento de que
“discussões anteriores sugerem que há uma evidente necessidade de uma
abordagem histórica e cultural, mais explícita” (op.cit.p.24019) visto que, na opinião do
autor, muito se perdeu com os velhos paradigmas por conta de um separatismo social
pelos pesquisadores “o que levou os geógrafos a teorizar espacialidade per se,
ignorando a constituição social da realidade.” (ibidem, p.239 20). A resistência da
Geografia, assim como outras ciências para com o compromisso de desvendar a
realidade na sua pluralidade pode ser considerado um erro metodológico segundo
Lefebvre (1969):
O estudo das marginalidades e processos que operam nas fissuras não pode rejeitar para a penumbra o conhecimento dos fenômenos centrais e globais, notadamente os das relações de produção e de propriedade, dos conflitos e contradições que aí nascem. Isto seria um erro metodológico [...] (p. 91).
Logo, temáticas “nobres” ou não à Geografia estão articuladas, como
podemos refletir à luz das considerações de Lefebvre. Nesse sentido, vemos como
importante a influência dos estudos culturais na Geografia com seu engajamento
político, na perspectiva de descortinar as práticas cotidianas nas dimensões materiais
e culturais transformadoras do espaço.
A concepção de cultura para essa geografia cultural da década de 1970
toma um sentido diferente daquele concebido na década de 1930. Para a “nova
geografia cultural”, como ficou conhecida essa geografia cultural contemporânea, “a
cultura não é uma categoria residual, mas o meio pelo qual a mudança social é
experienciada, contestada e constituída” (COSGROVE E JACKSON,2010, p.136). Tal
assertiva condiz com a perspectiva de Williams (2015) na qual “Uma cultura são
significados comuns, o produto de todo um povo, e os significados individuais
disponibilizados , o produto de uma experiência pessoal e social empenhada de um
19 “Previous discussions suggest that there is an obvious need for a more explicit historical and cultural approach”
(p.240). 20 “The intellectual background for these debates is a disappointment with the old paradigms, above all spatial
separatism, which led geographers to theorise spatiality per se, while ignoring the social constitution of reality”
(p.239).
56
indivíduo.” (WILLIAMS, 2015,p. 12). Esse produto da experiência social e coletiva
comentado por Williams é o mote sobre o qual a ‘virada materialista´ assinalada por
Kirsh (2013) está se debruçando para avançar nas pesquisas em geografia, através
da geografia cultural.
Contudo, ao refletir a difusão da geografia cultural no Brasil, vemos como
necessário ponderar a assertiva de Correa e Rosendahl (2010) quando estes
afirmaram que a geografia cultural chegou tardiamente (na década de 1990) ao país,
e dentre os motivos deste “atraso”, estaria um “materialismo histórico mal assimilado”
(op.cit;p.9) na década de 1970.
A crítica de Corrêa e Rosendhal (ibidem) às pesquisas de cunho marxista
na década de 1970 no Brasil tem como cerne a mesma característica criticada por
Williams (2011a,2011,b) sobre o marxismo adotado por muitos pesquisadores, qual
seja: a separação da esfera produtiva da repercussão social e cultural.
Se observarmos a conjuntura política do nosso país na década de 1970,
período remetido por Correa e Rosendhal em relação ao atraso da Geografia cultural
no país, podemos constatar que estávamos num período ‘duro’ de ditadura militar.
Não mais que dois anos da instauração do Ato institucional 5 (AI5), e desse modo,
temos como característica cotidiana o patrulhamento ideológico e cerceamento da
vida como elemento comum desse período.
A implicação da conjuntura política se fez presente nos vários âmbitos da
vida, inclusive no meio acadêmico, o qual interferiu no delineamento das pesquisas.
No âmbito da ciência geográfica, o desenvolvimento da pesquisa se não fosse voltado
a uma geografia de cunho quantitativo, utilitária aos preceitos do status quo, cômodo
ao período, direcionava-se aos questionamentos desses preceitos, a partir da
perspectiva marxista. Contudo, a perspectiva marxista empregada e engajada na
Geografia para a denúncia social e a análise das contradições, enfatizava a lógica
econômica como primordial para a compreensão dos problemas sócio espaciais e
suas mazelas. Essa perspectiva de análise marxista, que erroneamente subestima a
cultura, como se esta fosse acessória à economia, é fortemente criticada por Williams
(2011a).
Para Williams (2011a): “só podemos entender uma cultura efetiva e
dominante se compreendermos o processo social real do qual ela depende”
(op.cit.p.53). Logo vemos que a ênfase do autor não se pauta numa separação entre
57
economia e cultura, ou economia e vida cotidiana, mas justamente na relação entre
as esferas da vida e as estruturas produzidas socialmente.
Sobre cultura, Eagleton (2005) ressaltou a dificuldade de se conceitualizar
esse termo, e corrobora com os geógrafos culturais mencionados ao compreender a
cultura como uma criação social, um modo de vida característico, valores do
autodesenvolvimento humano que para o autor:
[...] significa cultivo, um cuidar, que é ativo, daquilo que cresce naturalmente, o termo sugere uma dialética entre o artificial e o natural, entre o que fazemos ao mundo e o que o mundo nos faz. É uma noção 'realista', no sentido epistemológico, já que implica a existência de uma natureza ou matéria-prima além de nós; mas tem também uma dimensão 'construtivista', já que essa matéria-prima precisa ser elaborada numa forma humanamente significativa (EAGLETON, 2005, p. 11).
A cultura é expressiva para ser estudada visto que é constituída e
modificada socialmente, imbricada ideologicamente e permeia a vivência, produção e
autotransformação dos sujeitos sociais e suas formas de organização.
Posto isso, concordamos com a afirmativa de Williams (2011a) que “A
‘base’ é a existência social real do homem. ‘A base’ são as relações reais de produção
que correspondem a uma fase do desenvolvimento das forças produtivas materiais.
‘A base’ é um modo de produção em um determinado estágio de seu
desenvolvimento” (p. 46). Nesse sentido, se temos todo um direcionamento de forças
produtivas, elas não se dão ao acaso, mas se realizam pautadas em valores e práticas
humanas que favorecem uma dominação de classe. Nas palavras do autor: “é o
sistema central, efetivo e dominante de significados e valores que não são meramente
abstratos, mas que são organizados e vividos (op.cit , p. 54)”.
É a partir da proposta de compreender o espaço pelos processos
intrínsecos que o formam, articulando os fatores locais nos âmbitos políticos,
econômicos e culturais que significa fazer geografia cultural materialista.
Logo, na continuidade desse capítulo, abordamos como a cultura cearense
foi reconhecida/ fomentada pelo estado do Ceará. Considerando a estruturação
histórica do sertão, bem como do cariri Cearense, é importante averiguar como , no
período presente, o Estado enquanto agente regulador de discursos e de realização
de políticas públicas têm adotado ações em prol da sociedade em sua expressão
cultural histórica, bem como também é importante analisar o viés de como o artesão
do couro têm sido representados nesse processo.
58
3.2 RECONHECIMENTO DO ESTADO E PROMOÇÃO DO ARTESANATO
O estado do Ceará, na tentativa de promover a cultura cearense tem
fomentado ações para o reconhecimento e desenvolvimento da cultura e do
artesanato no estado. A criação da Ceart (Central de Artesanato do Ceará) e as
políticas de estado promovidas em diferentes governos têm proporcionado um resgate
e a difusão do saber popular de modo a enaltecer e reconhecer os sujeitos
mantenedores dessas práticas.
Desde 2003 o governo do estado do Ceará estabeleceu o programa
‘Tesouros vivos da cultura’ e programou uma legislação que seleciona pessoas com
conhecimento de artes materiais e imateriais , intitulados “mestres da cultura” para
receber um salário mínimo mensal de maneira vitalícia. Essa ação do estado tem a
intenção de manter a cultura popular e propagá-la. Para tanto, nesse programa,
anualmente são escolhidos cinco mestres da cultura, que dentre os critérios de
seleção, leva em conta:
[...] ter comprovação da existência e relevância do seu saber ou do fazer; ter reconhecimento público; deter a memória indispensável à transmissão do saber ou do fazer; propiciar a efetiva transmissão dos conhecimentos e possuir residência, domicílio e atuação, conforme o caso, no Ceará, há pelo menos 20 anos, completos ou a serem contemplados no ano da candidatura. (fonte: http://www.secult.ce.gov.br/index.php/latest-news/44453-edital-dos-tesouros-vivos-da-cultura-prorrogado-prazo-de-inscricoes-ate-10-de-dezembro).
Dentre os mestres selecionados desde o ano 2004 a 201521, temos
diversas tipologias referentes a artesanatos manuais, danças, expressões religiosas,
etc. A maioria deles residentes no interior do estado, de vida simples, e de expressiva
qualidade na obra que realizam. No Anuário do Ceará22, podemos observar o enfoque
à espontaneidade da experiência humana como elemento de reconhecimento de
pessoas simples que vivem a cultura e contribuem com a mesma:
Quase que anualmente, a Secretaria da Cultura do Ceará (Secult-CE) diploma pessoas, grupos ou comunidades que realizam com maestria o delicado trabalho de permear as tradições culturais que nasceram e se firmaram de forma espontânea no Estado. Eles são os chamados “Tesouros
21 É importante ressaltar que a premiação “tesouros vivos da cultura” aconteceu initerruptamente nos anos
2004,2005,2006,2007,2008,2009 e posteriormente, para as edições 2013 e 2014/2015. 22 Ver apêndice B – Lista dos Tesouros Vivos da cultura do estado do Ceará para os períodos de realização do
edital.
59
Vivos da Cultura”. (http://www.anuariodoceara.com.br/mestres-da-cultura-do-ceara/)
A seguir o mapa abaixo localiza no estado do Ceará a origem municipal
dos mestres de cultura agraciados com esse título, bem como o perfil cultural
disseminado por estes ‘tesouros vivos’:
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Dentre os mestres reconhecidos pelo poder do Estado, dois artesãos do
couro são contemplados, quais sejam: Joaquim de Cota (2006), advindo do município
de Assaré e Espedito Seleiro (2008) advindo de Nova Olinda. Ambos do Cariri, mas o
primeiro (já falecido) confeccionando selas e o segundo, reconhecido por confeccionar
bolsas e calçados.
O projeto ‘tesouros vivos da Cultura’ do Governo do Estado está presente
no plano Estadual da cultura aprovada pela Assembleia Legislativa no ano de 2016,
“definindo as metas e diretrizes para a política cultural nos próximos 10 anos”. Logo,
o reconhecimento e valorização da cultura por parte do estado, condiz com a mesma
proposta para com o artesanato, que culmina na valorização da cultura como vetor de
desenvolvimento socioeconômico. Podemos observar, não obstante a valorização dos
sujeitos e suas artes – elementos da cultura cearense – O estado tem buscado
também associar um caráter econômico a essas representações desde a década de
1970 quando da idealização da Ceart.
Ao visitar os espaços de âmbito institucional como a Ceart e o Serviço
Brasileiro de apoio às micro e pequenas empresas - SEBRAE constatamos que houve
um reconhecimento cultural do Cariri por parte dos representantes desses
organismos. A vivência dos artesãos, independente da modalidade realizada,
contribuiu para a importância dada por estas instituições aos sujeitos sociais que
construíram cotidianamente a história e geografia do Cariri cearense. No que tange
aos artesãos do couro, percebemos um avanço no sentido institucional para com o
reconhecimento e divulgação de suas obras.
Em visita ao SEBRAE em Juazeiro do Norte, adquirimos a publicação
“Impressões” (2006), catálogo produzido pela instituição (Juazeiro do Norte) em
parceria com o governo do Estado o Ceará sobre as modalidades de artesanato
presentes no Cariri cearense. Neste catálogo a instituição reconheceu que “As peças
de artesanato, como expressão de cultura, têm o caráter específico de portadores de
identidade e valor de sentido” (p.9). Ainda para estes órgãos, o artesanato é
importante fonte de emprego e renda e um mantenedor das tradições locais. A
publicação se remete ainda ao traço cultural do Cariri, afirmando:
A atração de populações, em princípio pelo pasto para o gado, pelas notícias do ouro e, depois, pelos milagres de Padre Cícero tornou o Cariri - Ceará lugar de encontros culturais, junção de diferenças e troca de saberes. O Cariri é uma cultura viva que se celebra na vida cotidiana (SEBRAE, 2006, p.17).
62
O reconhecimento do estado do Ceará para com a cultura caririense tem
no artesanato a sua maior expressão material. Entretanto, dentre as diferentes
modalidades expostas de artesanato produzido na região, o artesanato em couro não
estava presente no catálogo, tendo em vista a não organização burocrática do
segmento, que segundo elementos da entrevista informal realizada em novembro de
2012, só poderiam participar daquela publicação, as entidades que tivesses CNPJ.
Logo, nenhuma entidade / associação do couro tinha esse requisito naquele período.
Contudo, no catálogo de artesanato do Ceará publicado em 2014
“Artesanato cearense: tradição que se renova” pela mesma parceria SEBRAE e
Governo do Estado, podemos contemplar a representatividade do setor do couro de
maneira organizada e formalizada por associações de Nova Olinda, Crato e de
Campos Sales23. Essa mudança mostra como essa arte que já marcava a região e é
tão importante a esta, se organizou em termos jurídicos a ponto de serem
contemplados pelo governo do Estado para com a difusão e propaganda do seu
artesanato.
Para o governo do estado, atuar junto ao artesanato é mais que um
programa de governo, visto que através da Ceart significa: “consolidar o artesanato
cearense no mercado nacional, otimizando suas atividades, investindo em qualidade
e preservando a identidade de um povo criativo e trabalhador” (CEARA, 2014,p.7).
3.2.1 Ceart– Central de Artesanato do Ceará24
A Ceart está ligada a Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento social do
governo do Estado do Ceará. Essa central foi idealizada pela primeira dama, Sra.
Luiza Távora em 1979 enquanto ação governamental para apoiar os artesãos e o
artesanato cearense. Contudo, a inauguração da Central de Artesanato do Ceará
como ela se encontra hoje ocorreu em 1992 no governo de Tasso Jereissati.
23 Associação Oficina Escola Espedito Seleiro; Associação de couro do Crato ; Associação dos artesãos de Campos
Sales Xique Chique. 24 A partir das entrevistas realizadas em Fortaleza e Juazeiro do Norte, nos dias 05 e 15 de fevereiro de 2014, o
foco das ações da CEART foi exposto e detalhado nas entrevistas realizadas.
63
Figura 1- Ceart Cariri
Fonte: elaborado pela autora
Figura 2 - Ceart Fortaleza
Fonte: elaborado pela autora
A Ceart credencia o artesão proporcionando a ele a isenção de ICMS do
seu produto, fornece capacitação (“para resgatar aquele costume”) e auxilia na
comercialização dos produtos.
Os cursos oferecidos pela Ceart, segundo a representante da central em
Juazeiro do Norte, são realizados segundo a demanda. Essa demanda pode ser um
grupo novo que não domina a técnica solicitada, como já pode ser um grupo
64
experiente. Normalmente o contato do público da capacitação se da mediante
associações organizadas ou pelo próprio município buscando a Ceart, assim como a
instituição Ceart também entra em contato com os municípios via secretarias
(principalmente de Ação social).
A Ceart visita a comunidade pra ver se realmente existe aquele grupo com a tipologia de costume para fazer um diagnostico 25. Mas antes não era assim, não tinha o diagnostico e o problema é que as pessoas faziam o curso só pra fazer. E ao fim da capacitação não tinha resultado + Não produziam para gerar renda, que é a intenção do Ceart, pra melhorar a condição financeira pelo artesanato.
A preocupação da Ceart não está só na “busca preservar o talento dos
artesãos e a arte popular” como afirma a secretaria de desenvolvimento social, mas,
preocupa-se principalmente com o produto final que é a geração de renda, pela venda
do artesanato enquanto produto/ mercadoria. No site da Secretaria do trabalho e
Desenvolvimento social está expresso a intenção da central como:
Com o intuito de fortalecer as entidades artesanais e colaborar para o avanço da política no Estado, são realizadas ações de capacitações de gestão empreendedora e tecnológica para o desenvolvimento de novos produtos, viabilização da participação dos artesãos em feiras e eventos; além do incremento na qualificação, organização da produção e comercialização do artesanato com foco na ampliação dos canais de comercialização, gerando assim uma renda maior para o setor. (http://www.stds.ce.gov.br/index.php/programa-de-desenvolvimento-do-artesanato-do-estado-do-ceara/ceart#)
Para tanto, a central não limita sua ação a grupos que já têm
conhecimentos prévios, visto que o compromisso desse braço do Estado também é
fomentar a geração de renda a partir desse setor. Dessa forma, a Ceart além de
reconhecer o artesanato produzido e estabelecido historicamente, também ensina o
oficio àqueles que não têm tradição na modalidade artesanal. Segundo entrevista com
a representante da Ceart – Cariri26:
Quando é um grupo novo, que nunca desenvolveram aquele artesanato, agente contrata um mestre artesão para iniciar. Quando é um grupo que desenvolve aquela tipologia, já faz um trabalho, agente contrata um designer pra ver como eles trabalham matéria prima. aí criam uma nova coleção. 27
25O diagnostico vai pra Fortaleza pra ser analisado por uma equipe e eles autorizam ou não a capacitação. 26 Entrevista realizada em 05/02/2014. 27 A capacitação para acontecer tem que ter pelo menos 25 pessoas, mas os cursos são abertos à comunidade e não
só restrito à associação. A associação funciona como meio para se chegar às pessoas.
65
Podemos constatar que a preocupação da Ceart consiste na capacitação
de mão de obra bem como na mediação para a venda das mercadorias. Não obstante
a essa perspectiva, é interessante refletir que a central também auxilia o artesão a
calcular seu lucro sobre a peça, mas o parâmetro para o cálculo é o salário mínimo.
Todos esses elementos, tencionados pelo Estado, promovem o artesanato enquanto
um produto, mas não fortalecem a relação de subjetividade entre o artesão e sua obra,
abrindo espaço para uma alienação entre o artesão com o seu trabalho, bem como o
limita financeiramente pela sua reprodução pautada no salário mínimo enquanto
paradigma.
Sob o discurso de preservar o talento e a arte popular, a Ceart
contraditoriamente é utilitária enquanto vitrine ao turismo para a revenda da produção
advinda de todo o Ceará em suas lojas urbanas. Tal fato não é de se estranhar, visto
que “as condições gerais do sistema capitalista e as próprias dificuldades de os
artesãos nele se inserirem e se organizarem de modo consistente torna-os cada vez
mais dependentes do capital comercial” (CANCLINI, 1983, p.100). Em nossa
conjuntura de globalização, o fim comercial como meio de subsistência dos artesãos
tem fortalecido a ressignificação do processo do trabalho artesão como um todo
mundialmente.
Vale ressaltar que nas entrevistas com os artesãos, alguns deles já
colaboraram para a Ceart como ‘mestre artesãos’ nesses cursos de capacitação. Além
do que, a existência do designer para os grupos experientes mostra a preocupação
da Ceart (e é reconhecida por ela) em proporcionar uma estética voltada ao mercado
desde que associada ao traço cultural da atividade28.
A proposta da Ceart ao oferecer cursos com designer a artesãos com
experiência, tende a criar uma sintonia entre a estética culturalmente produzida e uma
expectativa de mercado. Sobre essa realidade, vemos claramente o deslocamento do
sentido social do artesanato, visto que o processo artesanal se subordina ao mercado
e suas tendências para uma melhor oportunidade de venda, que é direcionada pelo
designer profissional a um consumo estético/decorativo, ou mesmo suntuário “que
serve de distinção social para setores com alto poder aquisitivo” (op cit., p. 102).
Além das lojas urbanas, localizadas em espaços nobres e centrais da
capital cearense, a Ceart também promove feiras nas quais os artesãos cadastrados
28 A Ceart Fortaleza ressalta que os jovens não estão se interessando pelo artesanato.
66
são convidados a participar. As feiras sempre aconteceram em Fortaleza, mas em
2013 teve sua primeira edição fora da capital, essa edição foi realizada em Juazeiro
do Norte, Crato (Cariri) e em Sobral. Em 2014 a feira teve sua segunda edição em
Juazeiro do Norte no mês de março, desta vez com expositores de todo o estado e
não só do Cariri, como ocorreu em 2013. Segundo a representante da Ceart Cariri
“Convidamos na maioria das vezes os grupos, pois trabalhamos muito com as
entidades para não beneficiar só uma pessoa.”.
Ao questionar a Ceart em Juazeiro do Norte sobre suas ações no Cariri, e
a delimitação dessa região para as atividades, a mesma afirmou que a elaboração
dos projetos para atender àquela área foi realizada em Fortaleza. Assim, nos
direcionamos para a capital e lá a representante nos informou que o Cariri enquanto
região institucionalizada pelo estado é constituída por 29 municípios, e sobre essa
delimitação ela afirma que: “Eu acho que a escolha também foi pelas características
geográficas, pela chapada que interfere em muitos municípios. Pois o Cariri já é uma
região. Em nível de administração do estado, eles estão na região 8 [...]”. 29Além da
presença da chapada, a representante alega que o clima é comum à região, o que a
diferencia das demais. Desse modo, percebemos que a justificativa da regionalização
fornecida pela representante da central de artesanato não é muito clara30, visto que
acrescentaram três municípios do centro-sul (Tarrafas, várzea Alegre e Lavras da
Mangabeira) na atuação da Ceart, porém considera as características físicas e
climáticas da região como importante para delimitá-la.
A representante afirmou que a Ceart trabalha com o artesanato em todo o
estado, mas que além de Fortaleza, a outra sede é localizada no Cariri (na entrevista
nossa interlocutora se remete à região e não ao município de Juazeiro do Norte, onde
a sede está situada) para facilitar o trabalho, pois “o que tem aqui no Cariri é o forte
pra metade do Ceará, lá tem tudo é a vida toda. No Cariri, culturalmente o artesanato
toda vida foi muito forte, já em outros municípios é decorrente da geração de renda.
Eu era menina e já usava aquela chinela rasteira do Cariri.” A partir da fala da
representante, vemos que o artesanato no Cariri tem uma essência, não é um
artesanato forjado para o mercado em sua origem, e como símbolo desse artesanato,
29 Entrevista em trabalho de campo 15/02/2014 30 Aurora, Barro, Mauriti, Milagres, Abaiara, Brejo Santo, Porteiras, Jati, Penaforte, Jardim, Barbalha, missão
velha, Juazeiro, Crato, Caririaçu, Granjeiro, Farias brito, Altaneira, Nova Olinda, Santana do cariri, Assaré,
Antonina do norte, Campos Sales, Salitre, Araripe e Potengi.
67
a interlocutora já mencionou a chinela de couro, conhecida popularmente como
currulepe.
Podemos perceber a partir da entrevista com a responsável pela CEART
em Fortaleza que não há uma concepção clara de critérios para regionalizar um
espaço pensando o artesanato ou a valorização e reconhecimento do trabalho
artesão. Essa constatação se deu quando a central legitimou a região dividida por
critérios econômicos para o seu trabalho social. Entretanto, apesar do critério de
regionalização, é salutar reconhecer a importância da ação de buscar abranger e
atender a maior quantidade de artesãos possível dentro do estado do Ceará.
No que tange ao artesanato propriamente dito, constatamos também que a
CEART se preocupou em fomentá-lo enquanto produto para o mercado, como um
instrumento de geração de renda, no qual a própria representante, a partir de sua
entrevista, diferencia o artesanato que tem seu sentido histórico e cultural, daquele
produzido sob a conjuntura atual que não tem um significado original.
Mesmo tendo sido profícuo o trabalho de campo e entrevistas realizados
com foco sobre a CEART, verificamos que apesar da sua abrangência e organização
para com o artesanato, muitos artesãos do couro não constam na sua lista de
entidades (ver apêndice I), inclusive por não estarem associados a nenhuma
associação ou órgão. Alguns deles, na especificidade do trabalho voltado à montaria
(selas, arreios, luvas ...), ainda têm menos expressão no que tange ao foco da
instituição, pela inadequação do seu produto ao mercado urbano com sua
diversificada demanda de uso.
Até então trouxemos para a análise as informações a partir da proposta do
Estado, através da CEART, para difusão e manutenção do artesanato e cultura. Nesse
sentido, pudemos constatar o artesanato como uma maneira de expressão cultural
valorizado por seu valor humano, histórico e cultural, mas que também permeia a
realidade cearense como uma atividade econômica de subsistência. Nesse sentido,
percebemos a interface entre o legado histórico do artesanato em couro, a
manutenção da atividade artesã como um modo de vida residual e sua imbricação
com as demandas do mercado no presente.
A divulgação do artesanato cearense, e em nosso recorte, o artesanato em
couro advindo do Cariri cearense, tem sido realizado junto aos meios de mídia como
jornais e televisão, bem como procurado enquanto objeto de consumo por turistas ou
locais. Nas palavras de Canclini (1983):
68
O artesanato conserva uma relação mais complexa em termos de sua origem e do seu destino, por ser simultaneamente um fenômeno econômico e estético, sendo não capitalista devido à sua confecção manual e seus desenhos, mas se inserindo no capitalismo como mercadoria (p. 91).
Logo, o artefato em si encerra tanto a história geracional do grupo social
que o confecciona, representa a cultura e região de onde provêm, e ainda é consumido
enquanto representação da estrutura de sentimento o qual compõe. Entretanto, cada
vez mais no mundo globalizado, corroborando com a assertiva de Canclini, o seu
destino está cada vez mais difuso em relação à sua origem, o que nos leva a refletir
sobre sua condição no século XXI.
A temporalidade presente, de ressignificação da cultura e artesanato não
condiz com as condições basilares da condição do trabalho artesão, apesar deste
sujeito continuar resistindo no tempo atual. A reprodução social contemporânea é
sustentada pelo modo capitalista de produção, pela alienação do trabalho e no
empobrecimento da vida.
Sobre a realidade contemporânea, Martins (2013) situa a modernidade a
partir dos ritmos desiguais do desenvolvimento econômico e social, que incorpora,
inclusive, culturas e relações sociais datadas. Deste modo, o autor aponta para a
dimensão do conflito causado pela modernidade em relação ao cotidiano e a
reinvenção dos significados. Nas palavras de Martins: “A modernidade se instaura
quando o conflito se torna cotidiano e se dissemina, sobretudo sob a forma de conflito
cultural, de disputa entre valores sociais [...]” (p.21-22). Contudo, em contradição com
o próprio sistema, ainda vemos persistir no século XXI o artesão tradicional, mas sob
uma nova conjuntura.
69
4 O ARTESÃO E SEU ARTESANATO: UMA CONSTRUÇÃO COLETIVA
Ao escolhermos os artesãos do couro para analisarmos sua narrativa,
entendemos que estes artesãos são sujeitos, os quais, em suas diferenças, se
assemelham a partir de vivências, valores e experiências, que sob o contexto histórico
da formação do Cariri cearense, realizaram suas obras, obras estas que permearam
o simbólico da região e ainda conferem significado a esta, a partir da sua estrutura de
sentimento.
A partir de cada declaração, observamos a valorização do trabalho por
parte de quem o faz, trabalho este associado ao seu produto final, realizado com
esmero, dedicação e vontade para além do preço. Tais artesãos demostraram que a
sua experiência no trato com o couro ultrapassou a condição de profissão e trabalho
alienado. Ao contrário, o desenvolvimento e capricho da atividade que têm realizado
e a obra que produzem nos mostram a existência de um estilo de vida e valores
experienciados na individualidade de cada qual, bem como nos permite enxergar a
riqueza do que fazem também enquanto coletividade social.
A presente exposição, que intende mostrar o produto de nossa pesquisa,
foi desenvolvida a partir do processo metodológico de categorização (GOMES, 2012)
das entrevistas abertas. A partir das entrevistas abertas realizadas com os artesãos,
observamos que estes elencaram temáticas comuns à sua vida cotidiana, que para
nós, constituíram parte do conteúdo da estrutura de sentimento dos artesãos em couro
do Cariri Cearense.
Com base no direcionamento de Gomes (2012) em relação à pesquisa
qualitativa, pudemos analisar as entrevistas de modo a encontrar representações
sociais comuns nas falas, presente no quadro a abaixo, no qual os núcleos de sentido
são decorrentes de uma análise das entrevistas transcritas, observando repetições
temáticas nas falas dos diversos artesãos. Nesse sentido, construímos o quadro ‘2’
em sintonia com a perspectiva de Gomes (2012, p.100) quando este afirma “com essa
etapa, buscamos, de um lado, ter uma visão de conjunto e, de outro, apreender as
particularidades do material” (p.100). O quadro a seguir serve como uma estrutura de
análise para nossa interpretação, a partir das informações e ações coletadas junto
aos atores (GOMES, 2012).
70
Quadro 2 – Núcleos de sentido para a interpretação dos conteúdos das
entrevistas
Núcleos de Sentido Particularidade apreendida para
análise
Inicio do trabalho com couro
Mostra as condições particulares que levaram o artesão a trabalhar com o couro bem como o contexto da época em que isso aconteceu.
Modalidade de produção
Mostra o tipo de artesanato em couro a que o artesão entrevistado se dedica. Tal categoria possibilita reconhecer as ferramentas e tempo de trabalho bem como o perfil de publico consumidor.
Criação das peças
Mostra a autenticidade do artesão bem como quais influências ele tem.
Origem do couro Possibilita apontar o alcance do circuito produtivo.
Material utilizado
Mostra o grau de modernização no processo de confecção das peças.
Critério para preço Expõe a mentalidade comercial do artesão.
Quantidade de ajudantes Mostra a expressão da demanda atendida pelo artesão e produtividade
Comparativo na produção dos artefatos contemporaneamente e antigamente
Possibilita ver pela ótica do artesão quando é o ‘antigamente’ e o que caracteriza esse período, bem como o que caracteriza o período atual.
Marca na peça (carimbo)
Suscita perceber como o artesão pensa em se diferenciar ou não no mercado e suas intenções com a marca.
Funcionamento das vendas e entrega das mercadorias
Mostra os processos que concretizam o artesanato como mercadoria e como isso se dá a partir do artesão.
Participa de associação
Auxilia a perceber quais pontos positivos e negativos de um tipo de organização.
Importância do trabalho Como ele percebe o trabalho que faz, mostrando identidade.
Fonte: elaborado pela autora
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Nesse capítulo apresentamos de maneira mais expressa a vivência dos
artesãos. A partir de suas narrativas, buscamos trazer ao leitor a realidade a partir da
narrativa desse grupo social, considerando a sua própria experiência. Para tanto,
organizamos essa sessão em dois tópicos; o primeiro discorre sobre os curtumes, as
feiras e os próprios artesãos, entendendo-os enquanto componentes da estrutura de
sentimento da região Cariri cearense. O segundo tópico explana mais propriamente
sobre os artesãos em relação à especialização de suas obras, as quais organizamos
em tipologias: mantaria, chapéus e calçados.
4.1 OS COMPONENTES DA ESTRUTURA DE SENTIMENTO: CURTUMES,
FEIRAS E ARTESÃOS DO COURO.
Curtumes
Pudemos verificar nas entrevistas realizadas com os donos de curtumes a
importância do cuidado com as peles do gado para sua transformação em sola,
vaqueta, raspa etc., o couro como conhecemos de maneira geral. A qualidade do
couro é determinada ainda no período da condução e abate do gado. As marcas no
gado ainda vivo perduram na pele a ser curtida, seja pela marcação de posse, como
arranhões do mato, corte etc. Segundo os artesãos, o couro curtido dura de 10 a 15
anos que não estraga e o processo de curtimento é necessário para a transformação
da pele in natura para o couro curtido.
O processo de curtimento é importante de ser registrado, visto que
historicamente ele está associado diretamente à produção dos artefatos em couro,
fato que veio se transformando ao passo da modernização e competitividade do setor,
separando-se em duas cadeias produtivas bem distintas atualmente: curtimento do
couro e produção de artefatos.
Segundo entrevistas com os artesãos de Várzea Alegre e Nova Olinda, o
curtimento do couro era parte integrante da atividade do vaqueiro. Este (o vaqueiro)
costumava, ele próprio, consertar e confeccionar as peças de uso do seu trabalho no
tempo livre. E para confeccionar esses objetos dos quais necessitava, ele
primeiramente tinha que curtir31 a pele do animal, o couro, para então utiliza-lo.
31 O curtimento do couro é um processo de transformação da pele animal (no sertão normalmente se curte a pele
de boi e bode para uso dos artefatos abordados nessa tese), matéria prima in natura em couro curtido, ou seja,
couro estável, salvo da degradação microbiológica natural.
72
O curtimento era comum à atividade do vaqueiro juntamente com a
confecção de algumas peças de trabalho, principalmente de pequeno porte como
cabeçadas e arreios. Contudo, ao passo desse costume, também já existiam os
conhecidos “mestres seleiros”, os artesãos que faziam profissionalmente as selas e
demais artefatos de montaria, sejam eles de maior ou menor complexidade. Mesmo
os seleiros tinham de dedicar-se ao trato do couro, como podemos averiguar na fala
do senhor Fernando, que por muito tempo foi seleiro, e expõe bem essa realidade:
Hoje ta muito fácil de trabalhar... Era diferente. o couro já vem todo trabalhado. Naquele tempo agente comprava o couro cru, já curtido, mas agente que tinha que beneficiar ele. Ainda vinha com pele, tirava com facão, tinha que molhar ele, botava de molho, passava um sabugo de milho bem passado (pra deixar o lado de dentro bem lisim).
O sr. Raimundo Nonato afirma que o couro está diferente. Inclusive pela
maneira como o couro é curtido hoje.
Antes o couro no curtume era só curtido na casca de angico. Não botava preparo nenhum Assim hoje o curtume já é diferente. A casca de angico é pouco, tem mais outro preparo pra da qualidade. Pra curtir é rápido. E o couro passava 1 mês dentro do tanque, hoje com 20 dias o couro ta curtido. antigamente era mais de 1 mês.
Segundo os artesãos entrevistados, o curtimento do couro tem um
procedimento comum, mesmo com algumas variações, entretanto, a maneira como
ele é realizado tem sido modificado com o incremento de alguns componentes
químicos, bem como com a modernização do setor. Esse processo costuma ser
realizado nas localidades denominadas curtumes.
É importante destacar que o processo de transformação da pele em couro
curtido viabiliza diferentes tipos de couro, quais sejam: Sola, camurça, raspa, vaqueta
(couro de melhor qualidade), raspilha (subproduto do couro) e o couro de bode, mais
maleável que a sola (feita de couro de boi). Observando os artefatos em couro
produzidos pelos artesãos e a partir do questionamento sobre a origem e tipo de
matéria prima que usam, constatamos que a sola é base do artesanato, bem como se
usa também couro de bode, vaqueta e raspa.
Em entrevistas com donos e ex-donos de curtumes de Fortaleza, Várzea
Alegre, Assaré, Campos Sales e Ouricuri (PE), bem como com base no relatório
técnico de Recamonde (2006), o processo de transformação da pele em couro se dá,
basicamente, com os seguintes processos: classificação do couro, lavagem, caleiro,
73
descarne, desencalagem e curtimento. Entretanto, os produtos finais dos curtumes
variam de acordo com a sua complexidade e modernização.
Na classificação do couro, a pele salgada (matéria prima natural) adquirida pelo
curtume é separada para classificação daquelas que serão utilizadas para o
curtimento. Nesse processo leva-se em conta o peso e o tamanho da pele.
Figura 3 - Peles para lavagem. Curtume modernizado em Ouricuri/Pe.
Fonte: Antônio José; 2015
No processo de lavagem (remolho32), as peles são levadas ao ‘fulão’, para
serem lavadas com água e perderem o excesso de sal. Abaixo podemos observar os
fulões em curtumes modernizados e artesanais.
A pele lavada passa em seguida para o processo de caleiro, no qual
consiste na retirada dos pelos da pele. No curtume artesanal esse procedimento se
utiliza de cal e cinzas de madeira sob e sobre o couro, sendo esse virado
manualmente e diariamente durante o período de uma semana. Nesse processo a
pele fica mais espessa e com coloração voltada para o branco. Nos curtumes
modernizados, esse procedimento é realizado com cal, sulfetos, aminas e detergente
em um processo mecanizado.
32 Em trabalho de campo no curtume modernizado de Fortaleza, em setembro de 2015, nos foi informado que a
pós a lavagem da pele para a retirada do excesso de sal, também há outra lavagem para a reidratação da mesma.
Entretanto, em visita ao curtume artesanal em Várzea Alegre nesse mesmo período, a reidratação da pele é
realizada a pós o curtimento.
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Figura 4 - Fulão de lavagem/ Curtume modernizado de Fortaleza/CE
Fonte: Antônio José;2015
Figura 5 - Fulão de lavagem/Curtume modernizado de Ouricuri/PE
Fonte: Antônio José; 2015
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Figura 6 - Fulão de lavagem em curtume artesanal de Várzea Alegre/Ce.
Fonte: elaborado pela autora
Figura 7 - Tanque para procedimento de caleiro. Curtume artesanal em Várzea
Alegre/Ce.
Fonte: elaborado pela autora
A pós a pele limpa, reidratada e depilada, ela segue para o procedimento
de descarne, no qual se removem os resíduos de gordura. Esse procedimento é
manual nos curtumes artesanais e mecanizado nos curtumes mais modernos.
76
Figura 8 - Ilustração de descarne do couro
Fonte: elaborado pela autora
Segundo o representante do curtume de Várzea Alegre, a pós descarnar a pele, esta
passa para o curtimento na casca de Angico, passando uma média de 30 dias imersa
numa solução de água e casca. É esta casca que tinge o couro de marrom e da a ele
um cheiro característico. Tanto o curtume situado em Várzea Alegre como o
curtimento artesanal em oficina dos irmãos de Carmelópoles – distrito de Campos
Sales – tem como produto final somente a sola.
Figura 9 - Máquina 'divisora', utilizada nos curtumes mecanizados para limpeza
da pele ou retirada da raspa.
Fonte: elaborado pela autora
77
Figura 10 - Tanque de curtimento com casca de Angico no Curtume de Várzea
Alegre/Ce.
Fonte: elaborado pela autora
O couro curtido, nesse caso, a sola, passa por outra lavagem, é hidratado
com óleo e colocado para secar preferencialmente á sombra (visto que secar no sol
resseca o couro).
Figura 11 - Couro secando a sombra. Várzea Alegre/Ce
Fonte: Thamires Romcy, 2015.
78
Figura 92 - Estiramento do couro. Distrito Carmelópoles /CE.
Fonte: elaborado pela autora
Nos curtumes mecanizados, como o de Fortaleza/Ce e de Ouricuri/Pe, para
o curtimento das peles utiliza-se o mineral Cromo em vez da casca de Angico. Nesse
caso, o estabelecimento é autorizado pela Polícia Federal para manusear o mineral.
Nesses curtumes, existem outras etapas dentro do processo produtivo de curtimento,
bem como especificidades de manuseio e cuidado de acordo com os diferentes
produtos finais, antes de os armazenarem para a venda.
O curtume situado em Fortaleza/Ce só produz uma modalidade de couro
utilizada pelos artesãos, à vaqueta. Sua cartela de produtos tem como foco a venda
do couro ‘wet-blue’, o qual é majoritariamente vendido a indústrias do Rio Grande do
Sul. É importante destacar que somente dois artesãos (os artesãos do Crato que
produzem em larga escala para vender a todo o Nordeste) mencionaram ter comprado
sua matéria prima deste curtume algumas vezes, o que corrobora com a observação
que fizemos em trabalho de campo, que o cliente potencial deste curtume é a média
e grande indústria.
O curtume localizado em Ouricuri/Pe também fornece matéria prima para
médias e grandes empresas, entretanto, ele também atende a quase totalidade dos
artesãos entrevistados do Cariri cearense, seja com a venda da vaqueta, bem como
da sola e da raspa.
79
Figura 103 - Couro estirado no curtume de Ouricuri/Pe
Fonte: Antônio José, 2015.
Constatamos entre os entrevistados a dificuldade em comprar matéria
prima (sola) no Ceará, visto que o curtume situado em Juazeiro do Norte não produz
sola, e até o fim de 2015 o curtume de Várzea Alegre estava para ser fechado,
reproduzindo uma realidade de fechamento de curtumes que iniciou há tempos atrás,
como por exemplo com fechamento do curtume de Assaré (década de 2000). É
importante ressaltar que esses curtumes que encerraram suas atividades eram os que
produziam sola, a base do artesanato em couro do Cariri cearense.
Segundo os entrevistados (donos de curtumes que fecharam e artesãos),
são diferentes os motivos que contribuíram para essa realidade. Um deles, a
adequação às questões sanitárias, visto que a expansão das cidades acabaram por
incluir os curtumes na delimitação urbana dos municípios, impelindo-os a mudar de
local; a dificuldade de obter a casca de angico tendo em vista a problemática ambiental
e dificuldade de permissão junto ao IBAMA; o alto custo de produção e
comercialização no Ceará com impostos33 bem elevados se comparados a outros
estados. Nas palavras de Matheus: “até dois anos atrás (2012) eu tinha um curtume
33 Esse é o argumento do dono do curtume de Várzea Alegre, o mesmo alega que a compra de sola da Paraíba é
mais rentável que produzir sola do curtume que é da família por gerações, visto que as taxas pagas por ele no Ceará
não compensam a produção e venda local, sendo mais viável comprar e pagar o frete para vir à matéria prima de
outro estado.
80
e curtia o couro, mas agora eu compro de Várzea Alegre”. Quando perguntamos sobre
os motivos que o levaram a fechar o curtume, ele responde:
Porque era manual, e como a cidade cresceu já ficou dentro da rua; a mão de obra ta difícil e a casca de angico (matéria prima), da problema com IBAMA. só serve a casca do angico. (troca 4 vezes a casca)” “inclusive no processo industrial também usa a madeira. chama tanino [...].
Na experiência do sr. Francisco, seleiro de Santana do Cariri, ele afirma
que compra couro em Juazeiro do Norte, mas somente quando é da modalidade
vaqueta. Nas palavras do Sr. Francisco: “Já comprei couro aqui por todo canto.
Assaré, Juazeiro, Missão velha, Milagres. Compro lá em Bodocó porque tem e aqui
não tem. Assaré comprava muito em Assaré, é porque lá acabaram, fecharam o
curtume. faz uns 4 anos”.
Em relação à existência dos curtumes na região, os sr Matheus, de Assaré
afirma:
[...] muito não, mas sempre tinha [...] é muito dispendioso. diminuiu por conta da escassez da casca. Pra mim curtir o couro é no mínimo 30 dias fora os sete dias pra tirar o cabelo [...] em indústria é 1 dia pra tirar o cabelo e 1 dia pra curtir. Pra manter o curtume tirava 10 mil quilos de casca.
Podemos constatar que o processo de curtimento do couro, existente
desde a consolidação dos núcleos coloniais do sertão ainda hoje é basilar enquanto
atividade econômica para os artesãos e a confecção de seus artefatos. Entretanto, o
processo de urbanização e decorrente modernização das questões comerciais
afetaram diretamente os pequenos curtumes, dificultando a sua operacionalização.
Somente os grupos e empreendimentos mais capitalizados conseguiram permanecer
gerando rendimentos por adaptarem-se aos trâmites formais do mercado e sua
burocracia.
A partir das experiências de campo, conversamos diretamente com donos
de pequenos curtumes que recentemente fecharam seus estabelecimentos, início do
século XXI, curtumes os quais produziam somente sola, e abasteciam os artesãos da
região do Cariri cearense. As dificuldades já expostas para a manutenção dessa
atividade geracional, serve também para ressaltar as características da região em
relação á produção do couro a partir desta narrativa coletiva de artesãos e os
responsáveis pelo curtimento das peles, expondo assim o perfil dessa atividade e suas
transformações nos auspícios do século XXI.
81
Feiras
É importante ressaltar, como discorrido no capitulo primeiro, que a vida no
sertão do século XIX foi quase autárquica, Pinheiro (2009) ressaltou que a produção
artesanal de vestimentas e utensílios próprios era fato comum à população, inclusive
do Cariri. Logo, a divisão social do trabalho voltado à maior parte da população estava
em ser um ‘homem de enxada’ ou ‘vaqueiro’. O comércio, realizado a partir das feiras
significava a expressão mercantil da troca do que era produzido localmente e em
locais distantes, e mesmo assim, funcionava enquanto subordinada às atividades do
campo.
A feira foi e continua sendo o espaço onde ocorre, geralmente, a
socialização entre o produtor de alimentos e aquele que irá consumi-lo, e sua
importância para nós se estende a socialização dos produtos artesanais
confeccionados pelos artesãos do couro. As feiras livres foram definidas por Pazera
Jr, (2003), como sendo “... o lócus escolhido para os mais variados atos da vida social
mantendo assim um sentido de permanência. Ali se sabem as últimas notícias e
boatos. Ali são feitos os anúncios de utilidade pública...” (p.18) . No Nordeste,
segundo Dantas (2008), as feiras são a expressão de dinamização regional, e estão
associadas ao comércio de gado desde seu início. Logo, o cotidiano da população
simples do sertão tem nas feiras um elemento comum de sociabilidade e vida, como
podemos observar nas memórias dos artesãos entrevistados.
No que tange às feiras, os artesãos entrevistados comentam do tempo em
que “não tinha carro e moto”, e a compra de mantimentos era realizada em grandes
feiras como a do Crato, Várzea Alegre, Assaré. De acordo com o artesão e ex -
vaqueiro de Várzea Alegre,
Tudo era montado. Eu morava a 5 léguas do município de Cariús. Ai, de la, a gente vinha todos os sábados na cidade de Várzea Alegre fazer a feira, e agente vinha montado. Eu ainda fui ao Crato a cavalo, pra Nova Olinda. Era muito diferente. 34
Em relação á realidade da feira de Assaré, os artesãos de Carmelópoles,
distrito rural de Campos Sales, afirmam que:
34Entrevista realizada em trabalho de campo em Várzea Alegre / 25/02/2014.
82
A feira de Assaré o movimento era grande, começava as sete da manha até sete da noite. Há 30 anos (década de 1980) a feira dava de dez na de hoje, mas era por conta disso. Você morava no sitio, vinha de animal mesmo. Teve um tempo em Assaré que tinha 500 cavalo, tudo selado. Dava roubo de sela, de arriação. O caba ia fazer a feira, num tinha jeito de ficar pastorando quando voltava, já tinham tirado cia, rabicho... Quando o caba ia pro forró, era animal demais.(lembra o artesão), era 150 animal.35
A partir das falas dos nossos sujeitos, percebemos que o espaço da feira é
importante na memória social, assim como constituiu parte da vida cotidiana dos
artesãos, vaqueiros, e das famílias do sertão. As feiras são referências de um passado
não tão distante de sociabilidade frente ao tempo presente e as transformações
vivenciadas nesses tempos recentes.
Nas palavras de Pinheiro (2009, p.113) “São as feiras caririenses
esplêndidas rendez-vous, a que comparecem cearenses, pernambucanos, rio-
grandenses-do-norte, paraibanos, especialmente homens do povo a que chamam
cabras”. Ponto de encontro, a feira é o local que se chega a partir de transporte animal,
como relatado acima. Logo, percebemos que os acessórios voltados às montarias,
carros de boi, charretes, eram artefatos importantes na utilidade cotidiana, ademais
aos artefatos utilizados dentro do lar, comprados e muitas vezes também
confeccionados nesses mesmos ambientes.
Não obstante às mercadorias produzidas e vendidas na feira relacionadas
ao couro, temos, a partir do relato dos artesãos, a exposição de personagens
marcantes para eles, os quais eram sapateiros, repentistas, dentre outros, os quais
marcavam este espaço de vivência para além das trocas comerciais e de subsistência.
Podemos constatar que a realidade das feiras foi um elo comum a todos os
artesãos entrevistados, visto que todos iniciaram na função de artesãos do couro
(cada qual em sua modalidade) por alguma relação à realidade rural, seja como
aprendizes de sapateiros, advindos de família de vaqueiros, família de seleiros,
artesãos de chapéu, artesão de cangalhas e alpercatas etc.
Em nossa perspectiva, a realidade histórica do sertão deixa suas marcas
nas feiras e no modo de vida ainda no século XX, como relatado pelos artesãos, pois
essa realidade proporcionou e ainda influencia as condições práticas da vida coletiva
e individual.
35Entrevista realizada em trabalho de campo em Carmelópoles – Distrito de Campos Sales 04/02/2014.
83
As feiras, assim como o trabalho artesanal permanecem nos dias de hoje,
mas cada vez mais adaptadas às demandas urbanas provenientes das
transformações históricas e conjunturais que impactam a região.
A partir das entrevistas, ao rememorar o passado e refletir o presente, os
artesãos se referem à década de 1970 – 1980 como um período de boas vendas da
produção de artefatos em couro. Seja pelo papel desempenhado nas feiras em
relação aos artefatos de montaria, seja em relação à demanda continua e intensa
pelos calçados em couro – sandálias e botas, como de boas vendas em geral perante
o período de trabalho desses artesãos. Para ilustrar esse período temos os
depoimentos de alguns artesãos:
Aqui tinha operário que fazia 20 par de chinela por dia. Tudo era na faca. Num tinha essa historia” (Artesão de botas de Carnal em Assaré) 36 Meu pai chegou a ter 42 funcionário trabalhando só em couro. De 1960 a 1970. Naquela época o processo era quase todo manual mesmo, e o carro chefe era o calçado (Artesão e lojista de produtos em couro em Assaré).37 De 1960 a 1990. De 2000 pra cá já foi... (diminuindo) Mas não fiz fortuna” (Seleiro de Santana do Cariri).38
As falas acima são relacionadas mais diretamente às características de
produção de um período em que o artesanato era o principal suprimento das
necessidades cotidianas. Necessidades essas supridas nas feiras, espaços marcados
na memoria popular de valorização do artesão e sua obra, bem como espaço de
transformações advindas da modernização.
Não obstante às feiras e à lembrança de um bom período de retribuição
econômica referente à venda do artesanato em couro, o processo de curtimento do
couro, bem como os impactos da modernização e suas transformações decorrentes
são processos que também compõem a estrutura de sentimento de sujeitos tão
particulares e que mantêm esse elo de saber e experiência.
Artesanato em couro:
Temos a consciência de que a produção de artefatos com couro é
característica da referida região e está intrinsecamente relacionada à sua história,
36 Entrevista realizada em trabalho de campo em Assaré 04/02/ 2014. 37Entrevista realizada em trabalho de campo em Assaré 04/02/ 2014. 38 Entrevista realizada em trabalho de campo em Santana do Cariri. Julho de 2013.
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repleta de conflito e contradição, assim como todo o passado de colonização, e ao
longo desse processo, permeou contemporaneamente traços e significados sociais
que compõem a região em questão.
Entendemos que mesmo cada artesão do couro tenha sua particularidade,
podemos observar que todos partilham de um contexto e temporalidade similar, até
porque “el proyecto mismo de vida, tomado en um momento determinado de la
existência, no se há elaborado in abstracto dentro de uma consciência aislada, sino
que se ha hablado, dialogado, construído e influído o negociado em el transcurso de
la vida em grupo” (BERTAUX,2005, p.42).
A partir das falas dos artesãos, constatamos que o aprendizado do
manuseio com o couro se deu, de modo geral, no período entre a infância e a
adolescência, sob um cotidiano contextualizado com a reprodução da vida no campo,
bem como em contato com familiares ou grupos de convivência do artesão . Pela
narrativa dos entrevistados:
Na época não era como hoje, tinha muito fazendeiro, gado... eles pediam os arreio, as roupas de couro... a gente fazia tudo. (Fernando/Santana do Cariri- Crato) O pai Fazia arreio, cangalha. O Francisco, meu irmão, desde menino que a vocação dele era trabalho em couro. ele fazia uns “arreinho”. Ai começou, foi + Ele tinha uns 15 anos quando começou. Ele já rapazinho e eu menino com 8 anos + Eu aprendi com ele, com o irmão. (Fernando/Santana do Cariri- Crato) Eu comecei desde os meus avós, eles faziam roupa de vaqueiro, essas coisas né (Thiago/ Carmelópoles – distrito de Campos Sales) Eu sou um vaqueiro desde de pequeno, na minha família é tradição. A profissão da maioria é vaqueiro (...) E devido a gente trabalhar de vaqueiro agente precisa do uniforme de coro, do chapéu, da sela, ai eu fiz o seguinte: Em vez de eu ir mandar fazer uma sela, eu fui aprendendo aos pouco. “Em vez de mandar fazer um uniforme de couro com os mestre em Assaré, Tauá, que naquela época é onde tinha né, eu fui aprender a fazer.” (Raimundo Nonato/ Várzea Alegre) Começou que aprendi com meu pai, mas ai meu pai já aprendeu com o pai dele. Vem de longe, já vem do meu avô”. (Paulo/ Assaré) Esse trabalho já vem do meu pai, assim. Fazia sela, serviço em geral. Eu comecei ajudando a partir dos 10 anos” (Matheus/ Assaré)] Esse trabalho dagente começou através dum cunhado meu que era sapateiro, ai meu irmão trabalhou com ele e depois fui trabalhar com meu irmão (...) Volta de 1960 eu já trabalhava, e com 14 anos já era profissional, fazia sapato pras loja.” (Estevão/ Crato) “O avô também trabalhava com couro, marcava o couro, riscava e ele mexia na faca , cortando o pedaço de do couro e foi assim que me acostumei, mais meu avô”. (Sebastião / Nova Olinda)
A influência familiar, geracional, é percebida a partir dos depoimentos dos
artesãos, e a experiência destes vem de longa data, muitas vezes da infância,
85
culminando no domínio do saber-fazer dos artefatos que produzem com destreza e
criatividade. No âmbito da reflexão dos próprios artesãos sobre o trabalho que
desenvolvem, eles afirmaram:
Quando você faz um trabalho, que você procura aperfeiçoar ai você vai ficando conhecido através do outros vem diretamente aqui [...] (Estevão/ Crato) Achava muito bom fazer arreio, mas hoje acho muito bom fazer sandália, quase melhor do que o arreio... Acho bom trabalhar (Fernando/ Crato) Toda profissão depende do gosto. Se você faz gostando. Quando você faz com gosto, caprichado, ninguém faz melhor que você (...) Aonde você tiver com o pé de ferro, martelim e faca. Vou na sua casa e saio com alguma coisa. Nunca me faltou nada, toda vida vivi da profissão e nunca nenhum dia faltou nada, nem pra mim, nem pra mulher nem pra criança. Nunca passei fome. A profissão é boa. (Estácio / Assaré) Eu não considero isso aqui como um trabalho, mas considero isso aqui como um esporte. (Sebastião/ Nova Olinda)
Portanto, entendemos que tais narrativas são relatos de vivências
cotidianas, as quais conferem sentido ao conceito de ‘experiência humana’ de
Thompson (2009). Logo, o conceito de ‘experiência humana’ é importante para a
pesquisa em questão visto seu foco no sujeito enquanto parte do coletivo que se
insere.
Nesse sentido concordamos com Thompson que a ‘experiência humana’ é
necessária ao entendimento de como a história é delineada e se desenvolve ao
relacionar processo histórico e modo de produção. Nas palavras do autor:
Pois as pessoas não experimentam sua própria experiência apenas como ideias, no âmbito do pensamento e de seus procedimentos , ou (como supõem alguns praticantes teóricos) como instinto proletário etc. Elas também experimentam sua experiência como sentimento e lidam com esses sentimentos na cultura, como normas, obrigações familiares e de parentescos, e reciprocidades [...] (THOMPSON, 2009, p.235)
A compreensão e valorização do sujeito como um ser que sente e é dotado
de liberdade em determinado contexto, essa experiência, vivida no âmbito da
coletividade, é base para a consciência e para a cultura.
O ser social determina a consciência, ou seja, para Williams, a partir de
Marx, a origem da determinação está nas próprias atividades dos homens. Nas
palavras do autor: “[...] o que estamos ativamente buscando é a prática efetiva que foi
alienada em um objeto e as verdadeiras condições dessa prática” (WILLIAMS,2011a,
p.67).
86
A justificativa de Williams (1979, p.134) para usar o termo ‘sentimento’ e
não outros formais como ‘visão de mundo’ e ‘ideologia’ é por que: “estamos
interessados em significados e valores tal como são vividos e sentidos ativamente”,
pois as relações entre as vivências e suas contribuições e as crenças formais são, na
prática, variáveis e passiveis de delimitações que podem não condizer com os
processos. Williams fala de “pensamento tal como sentido e de sentimento tal como
pensado: a consciência prática de um tipo presente, numa continuidade viva e inter-
relacionada”. Esses elementos são definidos pelo autor como uma ‘estrutura’ “como
uma série, com relações internas específicas, ao mesmo tempo engrenadas e em
tensão.” E que ainda são emergentes e mais reconhecíveis em fases posteriores.
Portanto, entendemos que a preocupação do autor está na ênfase ao
processo e não na formação acabada. O que importa é a relação forma - conteúdo e
a formação da consciência. Nas palavras de Williams:
[...] as formas sociais são mais reconhecíveis quando são articulados e explícitos, mas nem por isso, mesmo quando todas as formas forem identificadas não formam um inventário total nem mesmo da consciência social em seu sentido mais simples. Pois só se tornam consciência social quando são vividos, ativamente, em relações reais, e, além do mais, em relações que são mais de trocas sistemáticas entre unidades fixas (1979, p. 132).
Essa preocupação do autor na dinâmica dos processos conferindo o
sentido às formas mostra que a consciência prática transcende às relações entre
unidades fixas, mas nos permite perceber um sentido conferido à essas delimitações,
ou seja, no âmbito da Geografia, um sentido pela estrutura de sentimento conferida à
região a partir da vivência dos artesãos, que neste trabalho, é exposto a partir de suas
narrativas.
Logo, a partir das falas apresentadas, observamos um contexto comum de
vivência tendo nas feiras o espaço de circulação e troca entre produtores e seus
artefatos com seus compradores diretos. O transporte animal também é referência
desse período, no qual os artesãos comentam ser o mesmo período de boas vendas
para os artesãos do couro. Esses marcos, juntamente com as solas produzidas nos
curtumes, nos mostram um cotidiano vivido no século XX herdado e pouco modificado
desde o século XVIII.
No que tange mais diretamente ao trabalho artesão, a obra que executam,
cada qual com sua particularidade, a realizam em suas residências ou em suas
87
oficinas que se situam ao lado de suas casas. As ideias impressas nos artefatos
produzidos advêm da criatividade fomentada pelas experiências de vida:
Quando a gente tava começando a gente criou muito. Só que chega num ponto que a gente vende direto, não damo de conta. ai em time que ta ganhando não se mexe. Quando o cliente pede modelo, a gente faz do jeito que ele quer, mas nós fazemos o nosso. (irmãos Cardoso – Crato) A gente olha e você já pega, começa imaginar e vai fazendo as alterações. pega um pedaço de papel, bota ali, aqui, muda a posição. Ai você olha, já escala num papelão [“...]” (Estevão – Crato) A gente inventa, às vezes a mulher inventa. Ainda hoje tenho uns moldes. Guardei e o cupim comeu. tem uns moldes da sandália que fiz, no molde da camisa de couro gibão+ Inventei e deu certo esse modelo. (Fernando – Crato/ Santana do Cariri) [...] Eu quero deixar a criação e deixar aqui uma peças antigas que meu avô fazia, meu pai fazia, e eu quero mostrar pro pessoal novo, igual a esses dai (que estavam na oficina) que a nossa cultura não acabou, que tem que fazer e ir renovando. (Sebastião – Nova Olinda)
A criatividade de cada artesão é expressa em sua fala, bem como o
reconhecimento da criatividade também oriunda daqueles que vieram antes deles e
daqueles que os ensinaram. Artesãos como Sebastião e Fernando além de
produzirem novos moldes para suas sandálias, também recorreram a moldes dos
tempos de seus pais. As características desenvolvidas em cada artefato leva um jeito
próprio de cada artesão produzir, o que marcaram a peça para além do carimbo
(marca) que esta levava. Assim, o artesanato pronto, seja ela, sandália, bolsa, sela,
bainha , etc. é a materialização dessa criatividade, respeito geracional, valores, e
experiência que constituem a estrutura de sentimento daqueles que historicamente
alimentam culturalmente o Cariri cearense.
As fotos a seguir são de sandálias reproduzidas a partir dos moldes
centenários dos pais dos artesãos seleiros: Fernando e Francisco, e Sebastião.
Ambas, confeccionadas sob os moldes dos pais dos referidos artesãos, elas tem na
sua estética sertaneja o traço caririense proveniente da sela em sua identidade.
88
Figura 114 - Sandália confeccionada a partir de molde centenário do pai de
Fernando
Fonte: Maria Auxiliadora de Oliveira, 2015.
Figura 125 - Sandálias confeccionadas por Sebastião.
Fonte: Própria autora, 2015.
Fonte: elaborado pela autora
Estas sandálias, conhecidas popularmente de “maria bonita” 39 expressa o
traço Caririense do artesanato em couro, ou seja, traz um sentido de particularidade
aos calçados da região. Tal aspecto, decorrente de uma história coletiva comum e
39 Não se sabe ao certo a precisão do termo atrelado ás sandálias. Contudo, o nome se refere à companheira do
cangaceiro Lampião. Ambos usavam alpercatas, bem como era o costume no interior do Nordeste. A sandália
‘maria bonita’ vendida atualmente nas lojas é um modelo feminino de alpercata marcada pela característica
artística dos artesãos que adornam selas (seleiros).
89
particular do Cariri Cearense é cultivado como expressão material reconhecida dessa
região perante as feiras regionais do Nordeste.
Contudo, esta materialidade da expressão cultural que marca o Cariri
cearense também é permeada pela estrutura de sentimento que os artesãos do couro
alimentaram ao longo de sua vida, e ainda experienciam nos dias atuais, a partir da
maneira como lidam com a obra a qual produzem, valorizam e experienciam em sua
vida cotidiana.
Logo, compreender a realidade como devir social, é reconhecer o papel
dos sujeitos sociais realizando suas experiências integrando a realidade socioespacial
em todos os seus âmbitos. É nesse sentido, que entendemos que a esfera cultural
não é um mero apêndice da economia, mas uma prática social que confere sentido às
formas espaciais.
4.2 ARTESÃOS DO COURO E MODALIDADE DAS SUAS OBRAS
4.2.1 Artesãos de montaria
Os artesãos entrevistados que trabalham com montaria40 têm experiências
bem diferentes que os distinguem, sem nos possibilitar traçar um perfil de artesão do
couro voltado para montaria. Dentre os artesãos em questão, um deles foi vaqueiro,
outro técnico agrícola, empresário, pessoas do campo e todos são artesãos
reconhecidos. Nesse sentido, considerando as diferentes vivências, não traçamos um
perfil comum, como fizemos aos artesãos dos calçados ou chapéus.
No caso dos artesãos voltados à montaria, vemos em comum a todos um
apreço pelo seu trabalho e um conhecimento profundo em relação às peças que
fazem. É importante ressaltar que o artesanato vendido é de alta durabilidade como
selas, paletó de couro, o que não condiz com a obsolescência programada presente
nas mercadorias contemporaneamente. Esse fato, somado ao público alvo, de
características rurais, aponta para uma situação de remanescentes, que percebem a
transformação da realidade (crescente uso das motos, diminuição dos cavalos
selados, perda do apreço para os enfeites etc.), mas que ainda proporciona condições
40 É o termo usado pelos artesãos para especificar o artesanato em couro voltado para lidar diretamente com o gado
como os componentes do paletó de couro (roupa completa usada pelos vaqueiros para adentrar a vegetação), sela
e adereços de trabalho (como chicotes, selas etc.).
90
de viver a vida, mas sem ‘acumular’, por parte dos artesãos. Vale ressaltar ainda a
reinvenção de atividades como a brincadeira ‘pega de boi no mato’ e permanência de
uso de alguns objetos como o paletó de couro. Mesmo com a diminuição de vaqueiros
e cavalos, o paletó é vendido tendo em vista essa brincadeira.
Não obstante as transformações da demanda, o mercado consumidor não
se realiza apenas no Cariri, mas também regionalmente e nacionalmente como
podemos perceber a partir das encomendas das selas e das vendas para lojas que
revendem para outras porções do país, fato expresso nas falas dos artesãos:
É só pra fazendeiro. Tirando o do Pernambuco, que é pra loja que ele tem. (Sr. Raimundo Nonato, artesão de Várzea Alegre relata sobre a venda do seu artesanato) Fabrico e tenho fornecedores (que também trabalham em casa). vendo e mando pelo correio, vem na loja.(Matheus, Artesão e lojista de Assaré) Uma vez eu encontrei uma pessoa do Mato Grosso do Sul que tinha comprado uma sela minha, ele veio aqui me conhecer (Fernando, Artesão de Santana do Cariri, quando comentou da visita de um comprador antigo a sua oficina. Este o tinha encomendado uma sela, porque viu a do amigo e encomendou à distância, sem conhecer o artesão).
Mesmo sem o domínio das facilidades tecnológicas como e-mail e cartão
de crédito, a compra a distância é comum aos artesãos que produzem o artesanato
montaria e se realiza ao longo da carreira de cada artesão. Segundo as entrevistas, é
comum vender via correio, visto que a divulgação costuma acontecer por ‘boca a
boca’, segundo os consumidores conhecidos do artesão. Sob essa lógica, o
compromisso de pagamento envolve confiança e costuma acontecer quando há o
envio do dinheiro, pagamento no local da oficina do artesão, ou mesmo depósito
bancário.
Em relação à venda do paletó de couro, ou partes específicas dessa roupa
o artesão de Assaré afirma: “o que ta segurando mais o negocio de couro é as
vaquejada. porque no sitio ta fraco”.
Através do serviço.. Exemplo, chegou um rapaz de Sobral aqui ... Ai eu tava ali numa loja que o rapaz vende sela e roupa de couro (e tem um curtume). Ai ele disse: você vende um gibão? Você tem uniforme de couro? Ai o Luís, não, por enquanto agora não tenho, mas esse “véi” que ta ai é quem faz. Ai como é que nois fazia um negocio pra você fazer 2 uniforme pra mim? Agente conversando da certo. Você tem a medida? Não. Como é seus vaqueiro? É um pequeno e um maior. (ele riu comentando isso) Pois eu faço. Faço uma base aqui e da certo. Ai peleitei as duas roupas, marquei o tempo dele vir buscar. Ele é um dotô. Rapaz, eu tomei um conhecimento com esse “home” la, que eu já vou fazer mais de cinco roupa com ele, pra os amigo dele. Ai é assim.” (artesão de Várzea Alegre)
91
Teve uma época que até procurava. inventaram uma brincadeira. Pega de boi no mato... Nesses dias teve um bocado de procura sim. Não é por ser o vaqueiro. É uma brincadeira. (afirma o artesão de Santana do Cariri).
Podemos observar que o mercado das roupas de couro ainda se realiza,
apesar da modernização, da disseminação do uso da motocicleta e do acesso fácil ao
consumo de roupas industrializadas que poderiam ser adaptadas a essa necessidade.
Contudo, seja pela tradição, como pela funcionalidade, o paletó de couro se realiza
pela propaganda do boca a boca, e tem como mercado consumidor os vaqueiros das
fazendas, os brincantes das ‘pega de boi no mato’ (ver anexo B), assim como os
vaqueiros das vaquejadas.
Figura 136 - Vaqueiro com paletó de couro.
Fonte: Dragão do Mar – Museu da Cultura Cearense (MCC)
Além do tradicional paletó de couro, as selas e os selotes são os artefatos
de couro que mais são vendidos na modalidade montaria, dentre outros artefatos
menores voltados para animais pequenos como os bodes, comuns no sertão.
92
Eu fazia era sela bonita mesmo, que era pra mostrar pro povo que eu trabalhava sela bonita ““... (afirma artesão de Santana do Cariri). Costumo fazer mais sela e concerto. Pra fazer a sela completa, é de oito a dez dias, faz cabeçada e toda parte de arreio. (artesão de Carmelópoles)
Figura 147 - Selas: modelo Sebastião ; modelo comum, selote.
Fonte: elaborado pela autora
A sela completa é constituída pelo assento do condutor do animal,
juntamente com a proteção e os adereços utilizados para fazê-lo andar41. A exemplo
da fotografia 26, podemos observar que o modelo da sela é o mesmo, porém algumas
tem mais enfeites como a confeccionada por Sebastião (primeira sela). Tais enfeites
tem a características próprias de cada artesão, e segundo um artesão entrevistado
em Alagoas, “no Ceará valorizam muito o acabamento lateral, tem muito enfeite”. 42
Não obstante o uso das selas, contemporaneamente o selote tem sido o mais
procurado dentre os consumidores, sendo um modelo “compacto” da sela (terceiro
artefato da fotografia). Este é mais voltado às vaquejadas visto o assento ser mais
profundo que o assento da sela – o que proporciona maior apoio ao vaqueiro.
Perguntamos a cada artesão entrevistado no Cariri cearense, como eles se
sentem ao serem parte da região do Cariri e contribuindo com o seu trabalho para a
região. Considerando todos os artesãos, é interessante observar que nenhum nega o
seu pertencimento em relação ao Cariri, mas todos ressaltam a condição de
municipalidade; “sou campo salense!”, por exemplo. Essa resposta que todos deram
para com o próprio município, nos suscita pensar que na verdade há uma identidade
de cada um para o trabalho que realizam no município onde residem. Por essa
41 Os componentes da sela são: apoio de loro, peitoral, cia, subcia, rabicho e guarda suor. 42 Entrevista informal em Santana do Ipanema (maior cidade do sertão Alagoano) com Jaelson de Melo Viana,
artesão do couro.
93
identidade com sua obra, eles dão um sentido à região muito maior do que a
consciência que possuem disso.
4.2.2 Artesãos do chapéu
Os artesãos encontrados no Cariri que confeccionam chapéus são três.
Todos trabalham com couro no município de Assaré e aprenderam a fazer chapéu de
couro com a mesma pessoa, o senhor Expedito Gomes Ferreira, patriarca (já falecido)
da conhecida família que confecciona chapéus, os Augustinhos.
O filho do patriarca dos Augustinhos, senhor Paulo, comenta que o pai
aprendeu o trabalho com o avô e passou aos filhos. Mas dos filhos, apenas ele
continua na profissão, os demais migraram para diferentes capitais do país. Este
afirma que além dele existe um rapaz e um conhecido e antigo aprendiz, o senhor
Timóteo que confeccionam chapéus em Assaré. Todos eles aprenderam a arte com
Expedito Gomes Ferreira.
Figura 158 - Chapéu dos Augustinhos em processo de confecção e panela de
grude.
Fonte: elaborado pela autora
94
Figura 19 - Chapéus modelo Augustinhos.
Fonte: elaborado pela autora
O sr. Timóteo comenta que desde os 16 anos “chegava na casa do Jaime
Monte43 e ajudava lá”. Desde então, ele trabalha a uma média de 4 décadas com
artesanato em couro, com a especialidade de fazer chapéus.
O sr Paulo trabalha na oficina ao lado da casa e perto da roça. “A oficina é
pequena, mas é só pra mim mesmo... Eu escuto é brega aqui o dia todinho (enquanto
trabalha)”. Já Timóteo trabalha em casa, e segundo ele, é um trabalho que ele faz
“num canto só, ouvindo música e conversando política”.
Sobre o modelo do chapéu, ambos afirmam que criam, mas não
necessariamente só produzem o que querem, visto que muito do que é comprado, é
demandado pelo mercado. Nas palavras filho do patriarca Augustinho: “Eu posso
criar, mas mais vem da encomenda”. “O mais que eu gosto de fazer é simples, do
menos trabalho”. Mas diz que o mais bonito é o outro, pelo qual a família ficou
conhecida. Timóteo tem posicionamento parecido com o de Paulo ao afirmar que cria,
“vai testando, mas às vezes é de acordo com o que o cliente pede”.
Paulo comenta que na época do pai os chapéus eram “secos”, moles, do
tipo que podem ser dobrados. O pai foi quem inovou44, fazendo o chapéu “cheio”, mais
duro, como podemos ver na figura 20, acima. Ele usa formas em madeira, feitas pelo
próprio pai para dar forma ao chapéu, que prega com grude (cola de goma). As
43Jaime Monte é pai de um dos artesãos do couro entrevistado, e na década de 1960-1970 tinha uma fábrica de
calçados em couro no município de Assaré que empregava muito artesãos. 44Segundo artesão e comerciante de Assaré o “chapéu dos Augostim” é conhecido pelo interior todo, justamente
por ter um estilo próprio, criado pelo Expedito Gomes Ferreira.
95
ferramentas usadas são faca, compasso, chifre de veado do mato (envolto no couro)
– usado pra aprontar os chapéus e fazer os furos, esmeril (pra amolar as facas), o
martelo e o compasso (que eram do pai), como ilustrados na figura 21. Usa ainda uma
máquina de costura45. No caso da costura, Paulo conta com a ajuda de sua própria
filha para esse serviço, já Timóteo afirma trabalhar sozinho.
Figura 20 - Ferramentas utilizadas para confecção dos chapéus
Fonte: elaborado pela autora
Quando perguntamos a Timóteo sobre o tempo médio de se fazer um
chapéu ele responde com uma história, diz ele ser real; na qual um homem mostra
um chapéu pra ele e pergunta quantos anos tem o chapéu. “Tinha 47 anos” . O
aprendiz afirma que ia ajeitar o chapéu velho da história contada quando o dono do
chapéu acrescentou “esse daqui serve mais que esse ai” (que é o novo) e fala do
quotidiano dele com o chapéu, para todo lado, trabalhando muito e que no dia a dia
pesado, ele teria que ter cuidado com o novo, coisa que não precisava ter com o velho.
Assim, vemos que é importante ressaltar como o chapéu de couro tem seu valor de
uso e ainda é vendido também como adereço e ornamento principalmente nos
períodos de vaquejadas, como nos relata os entrevistados.
O couro trabalhado para fazer os chapéus é adquirido junto a dois
artesãos/comerciantes (ambos de Assaré/CE), mas que o couro também vem do
Crato/CE e Juazeiro do Norte/CE. Para fazer os adornos do chapéu, tanto o sr Paulo
45Sobre a máquina de costura, o sr. Paulo afirma “A dona da máquina já morreu (quando ele a pegou) e máquina
já era velha, com mais de 40 anos”.
96
como o sr Timóteo usam o fitilho de couro ou o tento. O ‘tento’ é um tipo de fita colorida
e industrializado que é fabricado no Rio de janeiro, segundo os artesãos. Mas que
antigamente não se usava tento, “era feito no couro mesmo.46 mas é mais caro e mais
difícil”. A fita de couro presente na figura 31 é o exemplo daquela substituída pelo
tento, visto a demanda de destreza e mais tempo de trabalho por parte do artesão.
Figura 161 - Fitilho de couro comumente substituído pelo tento
Fonte: elaborado pela autora
Sobre as vendas dos chapéus, o sr Paulo afirma: “Vende muito quando tem
as vaquejadas”. Sobre o ganho, “Num ganha muito não porque é pouco, mas num fica
agoniado. Melhor que ir pra roça”. Ele afirma Produzir de 10 a 12 chapéus por semana;
“trabalhando muito, de dia e de noite”. Já o sr. Timóteo ressalta: “não tem uma hora
de serviço que eu não ganhe 10 reais”. E relata que o chapéu rende mais de 50 por
cento de lucro. Ele vende o chapéu a 60 ou 75 reais, sendo este o preço que as lojas
de revenda compram, podendo revender por 110, a 160 reais. Para Timóteo, a
vantagem do seu trabalho pode ser vista na afirmativa a seguir: “Da pra mim ganhar
200 reais por dia. Trabalhando diretamente para ter mais dias livres... E o trabalho é
num canto só, em casa.”.
46 O fitilho de couro é feito pela precisão da mão livre à faca no couro curtido. Além do corte, é necessário amaciá-
lo com a faca, no movimento da lâmina sob o verso do couro liso. Como para deixa-lo adequado a sua função no
chapéu, os artesãos consideram o tento como uma alternativa de bom custo-benefício.
97
O sr Paulo, mesmo trabalhando com couro e aprendido o oficio com seu
pai, também tem roça, mas essa é para subsistência, não encarada como a profissão
de fato. Nas suas palavras47: “A melhor profissão que eu acho é só essa mesmo (com
couro). Foi o que aprendi primeiro e gosto de trabalhar”.
4.2.3 Artesãos do calçado
Com base nas entrevistas dos artesãos do couro que confeccionam
calçados, vemos que eles têm suas oficinas como extensão da casa, mesmo àqueles
de larga produção, exceto um artesão, o sr Estácio, que confecciona as botinas de
carnal48, que mora em frente ao ponto onde trabalha. Inclusive, ele é exceção também
quanto a ter ajudantes em sua atividade, visto que não possui nenhum, ao passo que
os demais têm ajudantes mesmo que em diferentes quantidades.
47 Conheci filho do patriarca da família Augustinho (artesão de chapéus) quando fui entrevistar o filho do sr Jaime
Monte (Matheus), na loja que herdou de seu pai em Assaré. Quando terminei a entrevista com ele, fui gentilmente
levada à casa do artesão de chapéus, para que eu pudesse fazer a entrevista com este. Enquanto estávamos nós três
lá na porta da oficina, chegou o seleiro de Santana do Cariri, conhecido de todos, o qual compareceu para comprar
chapéu para revender na sua oficina em Santana do Cariri. Vendo o movimento, chegou também o fornecedor de
couro. Essa relação espontânea entre os artesãos, nos mostra como eles se conhecem e fazem o intercâmbio de
seus trabalhos. 48 A denominada botina de Carnal é feita com a parte macia do couro voltada para dentro, pois sua confecção é
pensada para o conforto de quem a usa e a durabilidade da peça na caatinga, e não na beleza da ‘flor’ do couro
no calçado.
98
Figura 172 – Artesão do couro e a botina de Carnal
Fonte: elaborado pela autora
A informação sobre o tempo de trabalho diário desses artesãos não foi
clara, visto que alguns não comentaram ou não precisaram. O sr. Estácio, de Assaré,
diz que não trabalha ¼ de antigamente (não se sabendo há quanto tempo atrás seria
isso). Levando em conta a fala de um dos artesãos do Crato, o trabalho significa bem
mais que o costumeiro horário comercial.
A quantidade de sandálias produzidas por semana varia. A diferença
produtiva que vemos está, em nosso entendimento, situada no maquinário e alcance
de mercado, como podemos observar nas entrevistas.
No que tange ao alcance das vendas desse artesanato, essa realidade
varia: o artesão familiar (Sr. Fernando e Sebastião), o artesão individual (sr. Estevão)
e os artesãos donos de fábrica (Cosme e Damião) vendem tanto no atacado como no
varejo. No entanto, a clientela do sr Fernando, como do sr. Estevão é para Juazeiro
do Norte e algumas revendedoras autônomas de Minas Gerais, Maranhão e Região
Metropolitana de Fortaleza. Já os irmãos Cosme e Damião, com uma produção “fabril”,
exportam com frequência, além de estarem presentes em quase todas as capitais do
Nordeste. Sebastião mantém vendas locais em Nova Olinda, em Fortaleza através da
Ceart, bem como efetua contratos com grandes marcas.
99
No que se refere à marcar o artefato (o que os artesãos denominam
‘carimbo’), ou seja, identifica-lo quanto a origem do artesão, é importante ressaltar que
apenas o sr. Fernando e o sr. Sebastião mantém uma marca única nas sandálias e
artefatos que fazem. O sr Estevão disse que é importante ter marca, entretanto, até
então suas sandálias não têm nenhum símbolo seu (pediu para fazerem um carimbo
e não recebeu e nem foi atrás desse carimbo para suas sandálias). Os irmãos, donos
de marcas de calçados em couro, de ampla produção se comparados aos demais,
não veem problema algum em colocar outro carimbo em suas sandálias se o cliente
pedir (como é o caso da exportação que fazem, produzindo para a marca ‘O
mameluco’, de Barcelona; ou para demais distribuidoras para o Nordeste, que pedem
que coloquem o selo da distribuidora).
No que tange à venda e a marca, o caso do artesão de Nova Olinda e de
Assaré (ambos os artesãos de produção familiar) são correlatos e díspares ao mesmo
tempo. Ambos vendem no varejo e por encomenda, mas o nome do artesão de Nova
Olinda é amplamente conhecido no meio urbano e artístico, o que dá grande
visibilidade ao seu trabalho, mesmo que este não tenha o alcance de produção das
fábricas Lampião e Nordestina, do Crato. Já o sr Estácio, artesão de Assaré, é
reconhecido e respeitado dentre os artesãos, mas quando vende o seu produto (botina
de carnal), não tem seu nome associado a ele. Inclusive, o artesão de Assaré vende49
para as lojas dos irmãos do Crato e em lojas do Assaré mas não há carimbo, e o
reconhecimento de seu trabalho nem sempre é efetivado para o grande público.
Podemos observar que nem todos os artesãos atentam para o teor administrativo e
financeiro do poder da marca em seus produtos, como uma estratégia de mercado
para além da importância do trabalho para a cultura ou satisfação do reconhecimento
de sua obra.
Da criatividade de fazer os modelos, todos comentam que criam. Mas
também adaptam, e por vezes, pegam ideias observando modelos em lojas. Os
artesãos /empresários Cosme e Damião, do Crato, fazem uma ressalva afirmando que
o artesanato do Cariri não é de um artesão em particular, mas do Cariri, por que tem
uma base comum. Esse posicionamento é complementar e contraditório com a
afirmação do artesão Fernando, do Crato, que além de sandália, às vezes produz
bolsas. Este artesão afirma, em um exemplo, que viu uma artista na novela com uma
49 Vemos que é comum entre só artesão comprar peças uns dos outros para venderem em suas “praças”.
100
bolsa e ele pensou que poderia fazer o molde e vendê-la. Como afirma Canclini
(1983): “Todo objeto recebe o seu significado do sistema de objetos reais entre os
quais se situa e também do repertório imaginário de objetos que não possui, mas que
são vistos, descritos, oferecidos pela sedução publicitária” (p.94). Posto isso, não
podemos entender o trabalho artesão descontextualizado do mundo moderno, pois
ele continua a ser executado e tendo uma base histórica, mas também é influenciado
pelos vários âmbitos da globalização, mesmo que sob o direcionamento da
criatividade individual de cada artista.
Contudo, por mais que haja a influência da globalização no âmbito da
criatividade do sujeito, a criatividade desse grupo se formou genuinamente pela sua
experiência de vida, por gerações, e especialmente a confecções dos calçados se
remete ao tempo em que os próprios vaqueiros o faziam, e persistem aos dias atuais
com originalidade sem perda da essência como nos relatam Sebastião e Fernando50,
homens que lidavam antigamente com os artefatos de montaria. É nesse sentido que
a ornamentação do calçado herda muito da ornamentação da sela, dando origem ao
traço caririense desenvolvido por artesãos da região.
No referente ao preço desses artefatos, os artesãos comentam de imediato
o preço em si, mas não o processo de elaboração do preço e os elementos que
consideraram para tal. Quem nos esclarece sobre o assunto são os irmãos do Crato,
quando afirmam que o artesão costuma vender muito barato, além de que não sabem
por o preço. Eles fazem essa assertiva tendo si próprios como exemplo, pois,
segundos os mesmos, no inicio de suas carreiras, eles pautavam os preços pela
concorrência e hoje já se utilizam de um conhecimento mais técnico que levam em
conta o custo de matéria prima e produção.
Sobre a origem do couro usado pelos artesãos, o espaço recorrente de
compra é o estado do Pernambuco (municípios contíguos de Bodocó e Ouricuri), mas
também vemos que compram couro na Paraíba e no Ceará (Fortaleza e Juazeiro do
Norte). Vale ressaltar que não há só um tipo de couro para a confecção das sandálias,
visto que o uso dos diferentes tipos de couro (sola, camurça, couro de bode, vaqueta)
são usados de acordo com cada parte confeccionada da sandália, mesmo que a sola
50 O ‘Seleiro’ que acompanha o nome do sr. Sebastião, não é sobrenome. Ele é conhecido assim por que iniciou
o seu trabalho como artesão de couro com peças de montaria. Os artesão que confeccionam selas e peças de
montaria são conhecidos popularmente por ‘seleiros’. O sr. Fernando, que também iniciou suas atividades como
seleiro, e assim como o sr. Sebastião, migrou para o ramo de calçados, é reconhecido como “O seleiro que faz
sandálias”.
101
seja a matéria prima base para a totalidade do artesanato em couro confeccionado no
Cariri cearense.
O inicio de cada artesão com o trabalho em couro se deu cedo, por volta
de 9 a 11 anos de idade. No caso de três artesãos entrevistados, o conhecimento da
confecção de calçados não foi passado de pai para filho, mas através de pessoas
próximas. Estes artesãos já iniciaram seus trabalhos com a sandália, mas produzindo
de uma maneira mais “arcaica”, com tinta de asfalto, cola de grude a taxas. Já dois
dos artesãos entrevistados faziam arreios e montarias (ambos eram seleiros) e
migraram para o ramo das sandálias após a ver a dificuldade de se manterem no
mercado com o produto que faziam (visto o enfraquecimento das vendas desses
artefatos de uso rural).
Os artefatos que os artesãos produzem hoje têm mudado desde o seu
beneficiamento no curtume, bem como com inovações que dão melhor acabamento
ao produto com inserção de cores, máquinas para fixar a cola, pistola para pintar “por
igual” as peças das sandálias, dentre outros. Contudo, mesmo com a inserção de
algumas máquinas, a produção é predominantemente manual, principalmente no caso
da bota de carnal, na qual esta é realizada sua maior parte na mão e “na faca”.
Dentre os problemas atuais elencados pelos artesãos, temos o
desinteresse da juventude para com o aprendizado do trabalho artesão; e a
desvalorização do produto pela população local, tendo em vista a preferencia pelos
produtos industrializados.
A partir da particularidade da experiência dos artesãos do couro do Cariri
cearense exposto até então, entendemos que seu produto se caracteriza enquanto
‘residual incorporado’ visto a sólida apreciação e reconhecimento da sua obra por
variados setores da sociedade (designers, artistas, jornalistas, turistas etc.) no século
XXI, ao passo do seu passado histórico marcado pela subalternidade e depreciação
relacionados á origem ética e social desses sujeitos.
Essa aparente contradição vigora sobre como entender a colocação do
artesão em couro no século XXI. Para nós, como podemos observar na origem
histórica desse povo, ela é residual na medida em que
[“...] suas experiências, significados e valores que não podem ser verificados ou não podem ser expressos nos termos da cultura dominante são, todavia, vividos e praticados como resíduos – tanto culturais quanto sociais – de formações sociais anteriores” (WILLIAMS, 2011a, p.56)
102
.
Mesmo de características marginalizadas pela cultura dominante, o legado
desses artesãos é marcante historicamente, trazendo valores que permeiam e são
expressos pelo artesanato que tanto é valorizado contemporaneamente. Logo, vemos
uma incorporação visto que o traço cultural forte advindo desse publico é inegável,
pois, necessário à cultura dominante reconhece-lo para que fique sob o seu domínio
e controle. Essa realidade de captação dos sentidos das culturas marginalizadas é
sintetizada por Canclini (1983) da seguinte maneira:
Qualquer desenvolvimento autônomo ou alternativo por parte das culturas subalternas é impedido, tanto o seu consumo e produção quanto a sua estrutura social e linguagem são reordenados com a finalidade de se tornarem adaptados ao desenvolvimento capitalista (p.27)
Nesta pesquisa, buscamos trazer à tona o valor dos artesãos do couro,
valor este que não é forjado no mercado, mas decorrente de um modo de vida
autêntico, real, em processo, que cultivado na experiência cotidiana, esse modo de
vida marca a população, seja pelas experiências diretas, bem como pela vivência
cultural. Logo, tal configuração da ‘estrutura de sentimento’ a partir dos artesãos do
couro se faz presente na região do Cariri cearense.
Mesmo que o mercado, a publicidade e a moda captem o artesanato como
mercadoria, sabemos da riqueza imaterial que não se apaga simbolizado e
materializado no artesanato em couro, este como pratica social. As condições dessa
prática é que intencionamos buscar, seja no presente como na história, para
compreender as suas relações e transformações que a caracterizam em sua estrutura
de sentimento.
No que tange a operacionalização do trabalho artesão, este incorporou
técnicas e ferramentas de caráter industrial, mas considerados obsoletos e lixo por
parte dos próprios industriais. A vantagem de tais ferramentas como ‘balancim’, forma,
pistola e demais utensílios é para ajudar o artesão na produção do artesanato e não
para aliená-lo de sua obra.
Afinal, mesmo com o uso de tais ferramentas advindas das indústrias, o
saber-fazer, a experiência e criatividade são utensílios fundamentais que continuam
presentes no artesão do século XXI, bem como a matéria prima é original da natureza
e “baseado, substancialmente, na troca e na criação dos valores de troca, o objetivo
principal da produção não é o enriquecimento ou o valor de troca como valor de troca,
103
mas a subsistência do homem como artesão, como mestre-artesão e,
consequentemente, o valor de uso” (MARX, 2006, p.110).
As mudanças advindas com a modernização interferiram na produção,
otimizando a mesma, melhorando o acabamento, e complexificando a compreensão
do que concebemos como artesanato. Contudo o que não muda é a satisfação desses
artesãos para com o trabalho que fazem. Muitos afirmam em concordância que o
trabalho em couro não “enrrica”, que é para a subsistência, mas que sentem prazer
em fazer o que fazem e se deleitam na satisfação daqueles que adquirem seu
artesanato e o apreciam.
104
5 ENTRE A OBRA E PRODUTO:
A conjuntura do século XXI para a confecção do artesanato é complexa,
visto que a maneira como este é feito não corresponde ao fluxo do mercado. O artefato
produzido manualmente agrega tanto as características de uma obra – pela intenção
do artesão, como da mercadoria – pelo contexto de troca. Nesse sentido,
problematizamos no presente capítulo as relações entre economia e cultura
materializadas no artesanato em couro.
5.1 O TRABALHO ARTESÃO, SUA OBRA E O IMPACTO DA MODERNIZAÇÃO NA
PRODUÇÃO E REPRODUÇÃO SOCIAL
Considerando que a mercadoria é “um objeto externo, uma coisa que, por
meio de suas propriedades, satisfaz necessidades humanas de um tipo qualquer”
(MARX, 2013,p.113), sejam elas advindas “do estômago ou da imaginação”, é fato
que sua utilidade é considerada em diversos aspectos. Para tanto, Marx alerta que
“cada uma dessas coisas é um conjunto de muitas propriedades” e devem ser
consideradas pelo duplo aspecto da quantidade e da qualidade. Ou seja, tais coisas
vão ter diferentes medidas de acordo com as convenções formuladas historicamente,
bem como pela natureza dos objetos a serem medidos. É nesse sentido que pautamos
a nossa discussão sobre o artesanato em couro, visto que tal artefato é difundido por
diferentes temporalidades e a atividade que o constitui permanece e se reformula,
marcando o cotidiano e a produção, transformando relações de produção e
reprodução social, bem como intervindo no imaginário e nas relações que influenciam
a composição regional do Cariri Cearense.
Nesse sentido, é importante pautar o que seja o trabalho artesão, bem
como seus significados, para compreendermos a produção para além da confecção
de mercadorias. O significado do indivíduo artesão, em sua origem, está relacionado
diretamente com a comunidade pré-capitalista. Ele, mesmo possuindo os
instrumentos de trabalho para confeccionar o seu objeto, seu objetivo não é a criação
de valor, mas a “manutenção do proprietário individual e sua família, bem como da
comunidade como um todo.” (MARX, 2006, p.66). No que tange a reprodução social
que engloba o trabalho artesão, esta é explicitada por Marx (2006) da seguinte
maneira:
105
Suas relações com as condições naturais de trabalho são os de proprietários; mas o trabalho pessoal tem de estabelecer continuamente, tais condições como condições reais e elementos objetivos da personalidade do indivíduo, do seu trabalho pessoal (MARX, 2006, p.71).
Em outras palavras, cada artefato confeccionado pelo artesão tem
características próprias, traços de sua individualidade e criatividade calcada no valor
de uso da peça, contextualizadas pelo conhecimento da realidade social em questão.
Essa temporalidade do trabalho artesão, com o significado real de sua obra,
alcança seu auge, segundo kropotkin (2000), ainda no período feudal, a partir do
século XII, no contexto das cidades livres. Para este autor: “Toda a indústria moderna
provém daquelas cidades. Em três séculos, toda a indústria e as artes chegaram a tal
grau de perfeição que nosso século ainda não as ultrapassou, a não ser na rapidez
da produção, mas muito raramente na qualidade e na beleza do produto”
(KROPOTKIN, 2000, p.42).
Kropotkin (2000) expressou a necessidade de manter as inter-relações
pessoais e entre grupos de modo a respeitar as particularidades e as diferenças, visto
que a criação popular, a partir do próprio povo é àquela original. Portanto, para o autor,
a criação popular fornece conteúdo e sentido a tudo que se elabora, apontando para
uma liberdade de fato, que não é encontrada pela mediação do Estado. Logo, essa
liberdade está materializada pelo trabalho artesão, aquele presente nas cidades livres,
cuja liberdade está presente num curto período histórico da humanidade. Nas palavras
do autor:
Em cada rua, em cada bairro, em cada agrupamento de indivíduos que vivam em torno de uma oficina, ou ao longo de uma via férrea, é necessário despertar o espírito criador, construtor, organizador, a fim de se reconstruir a vida inteira; - e a reconstrução dessa vida nova deve ser feita na oficina, no caminho de ferro, na produção, na distribuição, nos armazéns, nos entrepostos, no povoado, enfim, em todas as relações entre indivíduos e entre os aglomerados urbanos, para, no dia em que se terminar com a organização social atual, comercial e administrativa, haver o necessário espírito de continuidade, as necessárias fontes de vida humana social e livre. (op cit. p.90-91)
A perspectiva de sociabilidade pautada em Kropotkin (op.cit), que valoriza
o saber-fazer criativo e autônomo do artesão como um sujeito que transforma a
realidade, entendendo a sua contribuição como uma arte, é corroborada por Lefebvre
(1968) na medida em que este filósofo faz a reflexão teórica putada em Marx de que
a obra é valor de uso e o produto está relacionado diretamente ao valor de troca.
106
Assim, compreendendo a diferença de significado entre obra e produto,
vemos, a partir da análise de Lefebvre, que o resultado do trabalho artesão é em sua
essência uma obra e se constitui como tal por ser intrínseca à criatividade
desenvolvida pelo artesão, bem como pela sua experiência baseada em sua vivência
coletiva e histórica. Nas palavras do filósofo: “somente passa por criadora a atividade
do indivíduo que completa sua obra. A coisa, o produto, a obra se distinguem”
(LEFEBVRE,1968, p.31).
Entretanto, mesmo a reprodução social do artesão se realizando como
parte e membro da comunidade ao qual pertence, no decorrer histórico, a
complexificação das relações sociais pautadas no valor de troca ainda situam o
artesanato sob o objetivo do valor do uso e da manutenção do artesão enquanto tal,
e não para o enriquecimento financeiro, status social ou outros valores decorrentes
do mundo moderno.
Posto isso, surge nossa problemática. O trabalho artesão é fato como obra,
mas no mundo capitalista também persiste como mercadoria, ou seja, é qualidade e
especificidade pela singularidade das peças confeccionadas, mas no âmbito da troca
também se estabelece como quantidade/ abstração para equivalência de troca. Esse
duplo ponto de vista, o qual já atestava Marx (2013) é inerente aos produtos. Logo, a
obra outrora existente em temporalidades passadas, cada vez mais é difícil de manter-
se sob as relações contemporâneas, na qual a produção se direciona para o mercado,
e desse modo, o produto é o que se vê. Nas palavras de Lefebvre (1972, p.38): “Em
la sociedade moderna, la productividad há destruído la creatividad. La obra
desaparece frente al produto”.
Assim, em respeito ao trabalho da totalidade dos artesãos, é inadmissível
comparar a obra de cada qual, visto serem artefatos desenvolvidos de maneira
geracional, de aprendizado lapidado pela experiência e autonomia individual sob a
conjuntura de todo um contexto histórico.
Entretanto, a lógica do mercado abstrai as diferenças na busca de um
critério de equivalência de troca, principalmente no que tange à forma dinheiro. “os
trabalhos privados só atuam efetivamente como elos do trabalho social total por meio
das relações que a troca estabelece entre os produtos do trabalho e, por meio destes,
também entre os produtores.” (MARX, 2013, p.148) E sob esse prisma, o produto do
trabalho artesão é tão mercadoria como o produto da manufatura e da fábrica,
concorrendo no mercado, como qualquer outra mercadoria.
107
Canclini (1983) é claro ao mostrar a complexidade do trabalho artesão no
âmbito mercantil e a ressignificação do artesanato sob os auspícios dos valores
integrados ao capitalismo, para o autor:
O artesanato conserva uma relação mais complexa em termos da sua origem e do seu destino, por ser simultaneamente um fenômeno econômico e estético, sendo não capitalista devido à sua confecção manual e seus desenhos, mas se inserindo no capitalismo como mercadoria (CANCLINI, 1983, p. 91).
Com a valorização das mercadorias pelo seu valor de troca, sendo este
valor “uma maneira social determinada de expressar o trabalho realizado numa coisa”
(MARX, 2013, p.157), vemos uma desvalorização da obra, bem como do sujeito, como
já alertara Kropotkin, e somos cúmplices da disseminação do produto e da alienação
para com o trabalho e com a vida.
O advento da industrialização e sua coexistência com outras formas de
produção nos traz não só um debate de temporalidades, como também de escala,
visto que tais processos que regem o mercado estão bem complexificados em relação
à produção, valores de troca, consumo e reprodução social.
Não obstante o processo de modernização influenciando a industrialização,
a sincronização que move o trabalho humano (Thompson, 1998) o prende à máquina,
e a sua vida aos ditames sociais consonantes com os valores transformados pela
modernidade. Para Thompson (op. cit.), a relação tempo/ trabalho é um trunfo para a
alienação da vida, a partir da perspectiva do tempo do relógio em detrimento do tempo
da natureza. Nas palavras do autor:
O que estamos examinando neste ponto não são apenas mudanças na técnica da manufatura que exigem maior sincronização de trabalho e maior exatidão nas rotinas do tempo em qualquer sociedade, mas essas mudanças como são experienciadas na sociedade capitalista industrial nascente. Estamos preocupados simultaneamente com a percepção do tempo em seu condicionamento tecnológico e com a medição do tempo como meio de exploração da mão de obra (THOMPSON, 1998, p.289).
A realização do trabalho artesão em suas atividades tem sua
particularidade no significado que os próprios conferem ao seu tempo. Para os
artesãos, o tempo de trabalho não é contado de maneira necessariamente monetária,
mas pela qualidade de como ele passa o tempo, mesmo que trabalhando (Thompson,
1998). Esse modo de pensar e viver dos artesãos e trabalhadores de manufaturas da
transição do século XVIII europeu também é característico dos artesãos do couro,
108
quando estes, assim como seus antecessores, mantêm autonomia do que fazem,
decidindo como e quando vão trabalhar.
A tentativa da modernidade em impor um padrão de tempo ao trabalho e à
vida é contestada pelos artesãos do couro, que autonomamente definem os rumos da
sua atividade. Essa atitude que se expressa no seu cotidiano se relaciona à
equivalência das obras como mercadorias no mundo moderno. É importante destacar
que os significados de ‘particularidade’ e ‘diferença’ modificam os sentidos da
obra/produto nos contextos em que se inserem.
Lefebvre (1972), a partir de Marx, define o particular como uma
característica ou conjuntos de características típicos de cada povo, decorrente do
conjunto de atividades produtivas de uma sociedade determinada, trazendo seu
sentido de origem. Já a diferença, esta se realiza e esse exprime a partir das relações
entre particularidades distintas, quando “transformados por al lucha, las cualidades
que sobreviven y que aún pueden afirmarse no se afirmam más por separado. No
pueden presentar-se y re-presentarse más que sus relaciones recíprocas, conflictivas
o sossegadas” (LEFEBVRE, 1972, p.43). A referida citação, em nosso entendimento,
mostra que a diferença só existe quando as particularidades são conhecidas e se
relacionam. Assim, com essa interação, pela conjuntura de necessidade de
sobrevivência no mundo moderno e homogeneizante, o que sobrevive enquanto
legado dos povos particulares são suas qualidades comuns.
Para Lefebvre (ibid., p.45), a particularidade é “o umbral entre o particular
e o diferente”, ou seja, é o conjunto apurado do movimento histórico e original que
conferem as características únicas dos diferentes povos particulares e suas referidas
obras. Logo, o termo particularidade é permeado de sentido.
Logo, percebemos que a contribuição teórica de Lefebvre para com a
particularidade e a diferença, pode ser diretamente relacionada com a situação do
artesanato em couro do Cariri cearense, pela perspectiva de análise da
problematização obra/produto. O artesanato em couro enquanto essa ‘qualidade’ que
sobrevive contemporaneamente no mundo moderno e incorporado pelo mesmo, é
justamente por isso, muita vezes empobrecido para com o sentido histórico e social,
e mais sobrevalorizado enquanto estética e raridade.
No âmbito do trabalho artesão, as operações no trabalho não são
dissociadas entre si, logo o artesão domina todo o saber-fazer necessário à confecção
completa da peça, detendo além desse conhecimento, as ferramentas necessárias
109
para sua atividade. O tempo de trabalho do artesão é designado originalmente pela
temporalidade do apreço à obra, da qualidade pautando a confecção do artefato;
valores pré-capitalistas. 51
A manufatura, enquanto criação específica do modo de produção
capitalista foca a produtividade, se baseando na divisão do trabalho artesanal, o qual
“não inclui qualquer sequência de processos de desenvolvimento, mas uma
multiplicidade de processos diferentes” (MARX, 2013,p.532), mantendo a importância
dos músculos humanos na realização das atividades. Vemos aí a contradição da
valorização do trabalho artesanal e sua destreza, ao passo que agora ele obedece a
uma autoridade e também realiza trabalhos parcelares mesmo dominando o saber-
fazer completo, e desse modo, “a força produtiva que nasce da combinação dos
trabalhos aparece como força produtiva do capital” (p.434). Nesse mesmo sentido,
corrobora Lukács (2012) ao afirmar que:
Se perseguirmos o caminho percorrido pelo desenvolvimento do processo de trabalho desde o artesanato, passando pela cooperação e pela manufatura, até a indústria mecânica, descobriremos uma racionalização continuamente crescente , uma eliminação cada vez maior das propriedades qualitativas , humanas e individuais do trabalhador (LUKÁCS, 2012, p. 201).
No trabalho fabril, a força motriz não está no ser humano, mas sim na
máquina, consolidando uma produção mecanizada. Quando a maquinaria se impõe
em processos parciais no interior da manufatura “a cristalização rígida da organização
manufatureira, que tem origem na velha divisão do trabalho, é dissolvida e dá lugar a
uma modificação incessante” (MARX, 2013, p.533). Não obstante a essa
transformação, a inserção da maquinaria se realiza na medida em que consegue
diminuir os furos da produção. “(...) Portanto, a racionalização deve, por um lado,
romper com a unidade orgânica de produtos acabados, baseados na ligação
tradicional de experiências concretas do trabalho: a racionalização é impensável sem
a especialização” (LUKÁCS, 2012 p, 202).
É importante perceber como com o avanço da tecnologia em prol de uma
produtividade para o mercado, cada vez mais se desvaloriza o trabalho humano, seja
no seu aspecto de entendimento de realização dos processos, da desvalorização da
51 Sobre o horário do trabalho artesão, Marx ressalta em nota de rodapé que este era irregular, segundo a vontade
do próprio artesão. “perdem 2 ou 3 dias e depois trabalham toda a noite para se ressarcirem” (p.548). A realidade
atestada por Marx é corroborada pelas entrevistas realizadas e já expostas nesse capítulo.
110
criatividade e subjetividade, como a tentativa constante de substituição do trabalho
humano pela máquina.
Tal processo de modernização se expande pelo mundo no ímpeto de
subjugá-lo à lógica de produção e reprodução social ditada pelo capital, logo, como
afirma Lefebvre (1972):
Constrenir a los trabajadores (campesinos, artesanos, obreiros, etc), de todos los países a una industrializacíon casi idêntica, no tolerando más que pequenas variantes, conservar un esquema homogéneo a escala mundial, no variar el modelo unitário em lo que concierne a las tosas e ritmos de crecimiento, es imposible actualmente. De hecho, ya no se intenta hacerlo, pero esto no se proclama. Se conserva la ideologia, el esquema, los modelos, em vez de plantearse los diferentes problemas para cada país, para cada pueblo, para cada cultura, para cada setor. Se mantienen los esquemas de homogeneidade por razones fáciles de entender: prestigio, autoridade,
instituiciones existentes, etc.52 (LEFEBVRE, 1972, p.17).
No Ceará, sob os preceitos da modernidade enquanto universais e a
contradição dos seus ritmos desiguais para com o desenvolvimento econômico e
social (Martins, 2013), esse processo de desenvolvimento econômico vigorou sob a
perspectiva do governo do Estado de fomentar a produtividade e a mecanização sob
a égide política em consonância com a escala internacional na década de 1980.
Para a realidade cearense, Pereira Junior afirma que a vitória política nas
eleições de 1986 implicou a realização de um novo projeto no qual o Estado assumira
a tarefa de impulsionar o crescimento econômico (PEREIRA JUNIOR, 2012). Nas
palavras do autor:
As praticas desse novo estilo de fazer gestão , no inicio largamente divulgado pelo slogan “governo das mudanças”, se fundamentam numa filosofia burguesa, ao defender ações como o fortalecimento das tendências industrializantes, a racionalização dos sistemas técnicos de organização do território, a atração de investimentos externos e a reestruturação da máquina pública baseada numa política de “enxugamento” e “privatização” (IBID, p.30).
Pereira Junior (2012), ao trabalhar o desenvolvimento econômico no Ceará
aponta o processe de industrialização como marca do referido governo. E para o
52 “Constranger aos trabalhadores (agricultores, artesãos, trabalhadores, etc.) de todos os países a uma
industrialização quase idêntica, não tolerando mais que pequenas variações, mantendo um esquema globalmente
consistente, não mudar o modelo unitário em que concerne as taxas de crescimento, é impossível atualmente. Na
verdade, ele não tenta fazer, mas isso não é proclamado. Se mantém a Ideologia, o esquema, os modelos, em vez
de considerar os diferentes problemas para cada país, para cada povo, para cada cultura, para cada setor. Mantêm-
se os esquemas de homogeneidade por razões compreensíveis: Prestígio, autoridade, instituições existentes, etc.”.
111
Cariri, região a ser impactada por esse tipo de ‘progresso’, o autor reconhece a
mudança na dinâmica no setor calçadista, tendo este a origem no artesanato em
couro:
As origens da produção calçadista local estão vinculadas ao desenvolvimento de atividades ligadas à criação do gado, notadamente às heranças do trabalho artesanal que beneficiava o couro e seus artefatos. A tradição na produção de utensílios requeridos pelo vaqueiro, a exemplo de sapatos, sandálias, bolsas, entre outros, engendrou um saber reproduzido por anos de experiência. Ademais, a centralidade comercial e de serviços exercida por Crato e Juazeiro do Norte não pode ser negligenciada, uma vez que o dinamismo do consumo regional, que polariza também muitos municípios da Paraíba, de Pernambuco e do Piauí, exerceu influência para uma maior produção e aperfeiçoamento dos produtores (PEREIRA JUNIOR, 2012,p. 258).
Pautado o contexto histórico, bem como a problematização referente à
modernização produtiva influenciando diretamente os produtores de calçados,
observamos que o contexto contemporâneo para com a produção artesanal de
artefatos em couro é bem diferente das condições conhecidas há pelo menos 50 anos.
Visto às grandes transformações terem inicio em 1986, e implementadas mais
concretamente na década de 1990 com a mudança política de ruptura do 'governo
das mudanças' de Tasso Jereissati.
Em relação ao Cariri cearense, Pereira Junior (op.cit) afirma que esta
região teve importante dinamismo econômico para o estado nas últimas décadas, e
endossa que “apesar de concentrar um número expressivo de estabelecimentos
voltados para a produção de artigos de confecção, de cimento e de alumínio, impõe-
se decisivamente pela predominância de fábricas de calçados” (idem, p.292).
As transformações ocorridas no âmbito cearense condizem com o processo
de modernização mundial, seja em termos políticos, como produtivos, e desse modo,
vemos diferentes temporalidades desiguais operando em uma região com resquícios
de um ‘modus operandi’ sertanejo, no qual o aspecto particular da reprodução social
se imbrica com os preceitos legados pela modernidade como universais. Assim,
corroborando com Martins (2013), efetua-se uma “colagem” pelo fato da modernidade
incorporar a cultura popular, relações sociais datadas, conjugando passado e
presente, perfazendo uma modernidade que não se completa.
O impacto da modernização logo foi sentido pelos artesãos. Segundo
Estácio, artesão de botina de carnal em Assaré, “Depois que apareceu a borracha,
112
acabou o sapateiro53”, outros artesãos que fazem os artefatos de calçados ' na faca'
comentam que é injusto a concorrência, pois a indústria produz muito mais em pouco
tempo, o que torna a concorrência desleal. Entretanto, ressaltam que a qualidade do
artesanato que produzem não tem comparação, é muito melhor que qualquer produto
de fábrica.
Não obstante à problemática referente ao artefato modalidade calçado, o
advento da modernização foi sentido pelos demais artesãos do couro. Seleiros que
confeccionavam peças de montaria como selas, arreios, disseram que com o passar
do tempo à produção veio diminuindo, inclusive pela troca do uso do cavalo pela
motocicleta.
Nas palavras de um artesão de Assaré54:
roupa do couro completa não tem mais tanta saída mas sempre sai / Ta começando inclusive a venda de roupa de couro, vende pelas 'pega de boi', pra entrar no mato ne. A camisa, a calça, a luva. Usa o sapato tradicional / inclusive a moto hoje é quase um cavalo aqui na região. Tangendo o gado todo de moto / o que ta segurando mais o negocio de couro é as vaquejadas, porque no sitio tá fraco.
Essa perspectiva do aumento do uso da moto em detrimento do cavalo
como meio de transporte no meio rural é reforçada por um artesão de Santana do
Cariri55 : “Garupa agora é em moto, não é cavalo” . Este artesão comenta
saudosamente que a sela de cavalo é bem enfeitada, que no passado, o esmero
grafado na sela era valorizado, ao passo que hoje, muitas pessoas deixam de comprar
sela para levar um selote simples.
Como podemos observar, a adesão da motocicleta para realizar as
atividades do meio rural, a disseminação dos meios de transportes a combustível,
somado à industrialização nascente, vem reconfigurando à região em questão, e
influencia diretamente no modo de vida dos artesãos.
As transformações advindas da modernização implementada pelo estado
do Ceará não aconteceram apenas no âmbito da produção, mas se realizaram e se
difundiram configurando temporalidades, modos de vida e reproduções sociais.
53 Entrevista realizada em Assaré - Trabalho de campo 04/02/2014. 54 Entrevista realizada em Assaré - Trabalho de campo 04/02/2014. 55 Entrevista realizada em Santana do Cariri - Trabalho de campo Julho/ 2013.
113
Thompson (1998) argumenta que a transformação é cultural, expressa nos sistemas
de poder, articulando mudanças técnicas e àquelas experienciadas na sociedade.
Segundo entrevistas de artesãos de Nova Olinda56 e Crato57, a implicação
da modernização impactou também os artesãos profissionais ‘seleiros’, visto que
estes deixaram de trabalhar com selas para adentrar no ramo de calçados, alegando
que a mudança foi tencionada pela dificuldade de vendas dos artefatos de montaria.
Para ilustrar essa realidade, um dos seleiros afirma:
Até quando eu vim pra cá eu ainda fazia arreio, e as venda ficou ruim de vender... Aí tem um rapaz e disse, vamo fazer sandália, que sandália vende que arreio ta ruim demais de vender. Outro vizinho disse também “não falta quem compre” (sandália). Ai pensei em fazer... Conhecia ninguém assim de sandália. E a mulher já fazia isso (de bordar sandálias), mas em sintéticos. Ai começamo a fazer e ela borda, ai agente tem pedido direto do pessoal.
Tais narrativas mostram a experiência dos artesãos sob os auspícios da
modernização e a maneira como lidam com essas transformações sem deixarem de
confeccionar sua obra e nem perderem o cerne de sua atividade em sua vida.
Mesmo com as tendências globalizantes de produzir e implementar novos
costumes, a exemplo do uso das sandálias de borracha pela população, as corrulepes
58 concorrem diretamente com as chinelas de borracha e muitas vezes ganham a
preferência do consumidor por serem consideradas ‘menos quentes’; a busca da
população local pelas sandálias ‘maria bonita’ se intensificam nos períodos de festejos
(como na EXPOCRATO); A roupa do vaqueiro como aspecto cultural diminui pela sua
função para com o vaqueiro mas permanece pela “brincadeira” de pega de boi no
mato; mesmo os selotes, sendo campeões de venda frente as selas, os compradores
continuam a enaltecer o artesão que as confeccionam.
5.2 O PRODUTO DO CARIRI CEARENSE E O SEU ALCANCE ENTRE ESCALAS
No século XX temos a modernização como expressão abrangente dessa
realidade, que em nível mundial, pauta-se na produção em massa e na padronização
do produto e consumo massificado difundindo-se em escala global.
56 Entrevista realizada em Nova Olinda - Trabalho de campo 06/2014. 57 Entrevista realizada em Crato - Trabalho de campo 06/2014. 58 Corrulepes são as conhecidas chinelas de couro.
114
A expansão do fordismo pelo pós-guerra proporcionou a formação de
mercados de massa globais, que nas palavras de Hobsbawm (1994), em relação ao
fim do sec. XIX e início do século XX “não havia outro modelo operacional além da
‘ocidentalização’ ou ‘modernização’ (HOBSBAWM, 1994, p. 199)”. No que tange ao
impacto nos países de periferia, a modernização “promovia a destruição de culturas
locais, muita opressão e numerosas formas de domínio capitalista em troca de ganhos
bastante pífios em termos de padrão de vida e serviços públicos” (HARVEY, 1996,
p.133). Logo, insere-se no mundo uma perspectiva de civilização e civilidade com
base em modos de vida e consumir que são tidas como a expressão do que há de
melhor na sociedade (EAGLETON, 2005), e inteiramente inter-relacionada às formas
de acumulação e expropriação que subjugam às diferenças (costumes, crenças,
valores) sob um critério hierárquico de concepção.
Harvey (1996) expõe que o Fordismo no início de 1900 já seguia uma
tendência em curso de divisão técnica do trabalho e realização de formas corporativas
de organização dos negócios. Contudo, seu diferencial ditou um modelo produtivo
pautado em um novo sistema de reprodução da força de trabalho condizente com um
modo de vida padronizado “uma nova estética e uma nova psicologia, em suma, um
novo tipo de sociedade democrática, racionalizada, modernista e populista” (p.121)
O impacto da massificação da mercadoria e a difusão da globalização
permeou também a seara do artesanato em couro de diferentes maneiras. Podemos
observar, a partir das informações dos trabalhos de campo realizados, que na medida
em que se difundiu a mercadoria artesanato, menor foi o conhecimento do processo
que o envolve e mais superficial é a sua representação cultural.
Ao sair do Cariri cearense para o comercio regional nordestino as sandálias
que expressam a região cearense perdem seu destaque de particularidade para
representar perante aos demais estados do Nordeste a valorização do artesanato
genuinamente cearense. Essa mudança de percepção para com o artesanato em
couro se evidencia cada vez mais ao passo que a escala de circulação da mercadoria
se expande.
No que tange ao alcance dos artefatos em couro, identificamos que eles
estão presentes em circuitos de circulação das mercadorias, sejam nas escalas
regionais como nacionais. Tais artefatos, tão conhecidos da população do Cariri
cearense, também são produtos de boa vendabilidade, e objetos requisitados pelo
público de alto poder monetário.
115
Realizamos trabalhos de campo em diferentes circuitos para verificar como
se dá o reconhecimento da obra/produto do trabalho artesão do Cariri cearense. A
escolha dos locais a serem visitados teve como elemento norteador as entrevistas dos
artesãos, os quais mencionaram venda dos produtos para Cachoeirinha – PE,
Caruaru –PE e Espanha. Para tanto, mudaremos o enfoque do processo do trabalho
artesão e sua particularidade para a análise do alcance do artesanato como produto
e sua ressignificação enquanto mercadoria.
O município de Cachoeirinha tem a fama de ser a ‘terra do couro e do aço’,
essa pequena localidade do sertão Pernambucano é marcada historicamente pela
produção de couro e aço voltados para a confecção de artigos de montaria como selas
e arreios, como podemos observar na paisagem da rua principal do município com
suas várias selarias e o cheiro de couro curtido ao longo do dia no centro da cidade.
Figura 183 - Município de Cachoeirinha/Pe
Fonte: elaborado pela autora
116
Figura 24 - Localização do município de Cachoeirinha/Pe.
Fonte: elaborado pela autora
Campina (2010, p.93) endossa que toda a produção de Cachoeirinha é
voltada majoritariamente para produção de arreios e rédeas e ressalta “vale salientar
que o comércio dos artigos em couro e aço já é tão significativo, que passa também a
abranger artigos (principalmente de couro) de outras cidades, assim como de outras
regiões (...)” num fluxo intrarregional.
No circuito regional polarizado por Cachoeirinha, Campina (op cit.)
reconhece o Ceará como consumidor e fornecedor das mercadorias do couro, bem
como ressalta que o estado é forte fornecedor de sandálias em couro. Verificamos em
trabalho de campo realizado em 14 de julho de 2016, que as sandálias em couros
vindas do Ceará são produzidas no Cariri.
Em entrevistas realizadas junto aos lojistas locais, bem como adentrando
em cada loja do centro de Cachoeirinha, constatamos a partir dos carimbos das
sandálias, serem estas produzidas no Cariri, bem como os próprios lojistas a
117
denominam de “sandálias maria bonita”. Para eles, esse modelo de sandália é
reconhecidamente cearense.
Não obstante o relatado pelos lojistas de Cachoeirinha em relação aos
produtos cearenses, sabemos também por lojistas de Assaré, que outros produtos
como botinas e chapéus, produzidos pelos artesãos locais de Assaré também são
vendidos em Cachoeirinha, na sua grande feira.
Em Caruaru – PE59, popularmente conhecida como a maior feira do
Nordeste, tivemos a oportunidade de realizar trabalho de campo60 e reafirmar o que
vimos em Cachoeirinha, principalmente em relação às sandálias em couro.
Na feira de Caruaru, dentre os vários espaços temáticos, visitamos o setor
do couro. Contamos nesse espaço oito lojas destinadas à venda de produtos em couro
como calçados, bolsas, solas, vaquetas, chapéus etc. Quando realizamos as
entrevistas informais com os vendedores das lojas, perguntamos a todos, quais
produtos do Ceará eram vendidos, e eles, majoritariamente responderam que eram
as sandálias ‘maria bonita’.
59 Segundo Dantas (2008), a feira de Caruaru é uma grande feira de caráter regional. O autor cita Andrade (1997,
p. 129) para reforçar sua assertiva no que se refere às feiras de Caruaru, Campina Grande e Feira de Santana “para
elas convergem toda a produção de grandes áreas, sendo daí escoadas para as áreas de maior concentração e para
os principais portos”. 60 Trabalho de campo realizado em 13 de julho de 2016.
118
Fonte: elaborado pela autora
.
Tanto em Cachoeirinha como em Caruaru, a partir das entrevistas,
descobrimos que artefatos como chapéus e bolsas em couro também são
provenientes do Ceará para as feiras dos referidos municípios, contudo, as “sandálias
maria bonita” são notadamente reconhecidas como do Ceará, e sabemos que a
confecção destas se dá no Cariri cearense.
Figura 195 - Feira de Caruaru/ Pe.
119
Figura 206 - Sandália ‘maria bonita’ em Caruaru/Pe.
Fonte: elaborado pela autora
Figura 217 - Sandálias em Caruaru/Pe.
Fonte: elaborado pela autora
Em relação às sandálias ‘maria bonita’, é importante destacar que todos os
vendedores entrevistados alegaram que elas eram do Ceará pela sua estética, apesar
de constatarmos uma variação nas marcas (carimbos).
120
Além das feiras de Caruaru e Cachoeirinha, essas mesmas sandálias foram
encontradas em pontos turísticos de Piranhas – AL61 (Local das filmagens da novela
global “Velho Chico62” exibida em 2016 no horário nobre da rede Globo), no Aeroporto
de Sergipe63, na famosa praia cearense de Jeriquaquara64, na baixa dos sapateiros
65em Salvador/ BA66 espaços estes voltados ao turismo na escala regional, nacional e
internacional.
Ao contrário do que captamos nas feiras, as sandálias presentes nesses
espaços mais globalizados não são reconhecidas como do Ceará, nem do Cariri, mas
simbolizam a cultura sertaneja juntamente com outros produtos reconhecidamente do
sertão nordestino como cordéis, rapaduras, bordados etc. Essa mudança de
perspectiva, nos mostra a contradição pautada por Canclini (1983), da unificação do
particular pelo mercado. Nas palavras do autor:
A identificação que exaltam é negada quando dissolvem a sua explicação na sua exibição. A grandeza do povo que elogiam é diminuída ao apresentarem como manifestações espontâneas, que facilmente são atribuídas ao virtuosismo ou ao “gênio” populares, peças de artesanato e cerimônias cujo mérito reside no esforço realizado para transportar para o plano simbólico e às vezes ‘solucionar’ de modo imaginário relações dramáticas onde a natureza fez com que se sentissem impotentes ou os opressores fizeram com que se sentissem humilhados (CANCLINI, 1983, p.87).
O capital simbólico explicitado por Harvey (2005) é bem presente na
realidade das marcas de calçados no Crato, como Lampião e Nordestina. De
produção manufatureira, ambas fornecem a mercadoria encomendada pela marca O
Mameluco, fornecedor europeu dos calçados produzidos no Cariri. Podemos ver na
página da marca internacional, ilustrado na figura 29, como o capital simbólico é
utilizado enquanto marketing do produto:
61 Outubro de 2015. 62 Velho Chico foi a novela do horário nobre (novela das ‘nove’) da rede Globo entre os meses de março e setembro
de 2016. A novela foi ambientada no sertão nordestino e trouxe a economia e o coronelismo como conflito gerador
da história. Sob este enredo, o artesanato de Sebastião foi encomendado para compor o figurino da novela nos
primeiros capítulos.
63 Dezembro de 2015. 64 Janeiro de 2016. 65 A baixa dos sapateiros é um centro comercial que já no século XIX é marcado pelo intenso comércio e
concentração de artesãos de calçado em couro. (http://www.salvador-antiga.com/baixa-sapateiros/antigas.htm).
66 Outubro de 2016.
121
Figura 228 - Print do site da marca O Mameluco
Fonte: http://www.caboclobrasil.com/#caboclo-project
Em tradução livre, a empresa acredita que:
Nossas sandálias e sapatos são exemplos reais de como trabalhamos. Levou-nos em média 2 anos para desenvolver cada um deles com artesãos do Ceará, nordeste do Brasil. Descobrimos que o processo de fabricação era datado do século XVI. Um grande benefício é que o tratamento de couro ainda é feito da mesma forma, portanto, é livre de cromo e todos os pigmentos e cores são naturais. Como parte da abordagem inovadora, em vez de solas de borracha tradicional, decidimos usar pneus reciclados como nosso único material. Depois de algumas versões e testes finalmente encontramos a melhor tecnologia. Até mesmo a ferramenta para fabricar os pneus e segregar a borracha dos fios de aço foram desenvolvidas durante o projeto. Finalmente, melhoramos o design criando mais de 30 modelos. Esperamos que você possa ver essa devoção em cada um de nossos produtos (tradução nossa).
A síntese da O Mameluco em seu site faz uma amálgama da estrutura de
sentimento dos artesãos do cariri sobrepujando a real condição de produção das suas
sandálias fornecidas pelos artesãos cratenses, donos das empresas que fornecem as
sandálias para a marca internacional.
Segundo os próprios donos das marcas Lampião e Nodestina,
Foi o seguinte, Nois comecemo com a fome de deixar o artesanato sem deixar as característica mas com estilo de indústria. Produz artesanato mais limpo,
122
introduzindo maquina pra aumentar a quantidade, mas sem perder as características. Foi uma revolução de nois irmãos. Agente deu inicio a um processo que há muitos anos vinha ficando parado. Tinha os artesãos que não inovavam, agente veio e inovou. (Entrevista realizada em Fevereiro de 2014)
Ou Seja, Cosme e Damião, conhecidos pelo meio dos artesãos como os
Irmãos Pedroso (donos das Marcas: Nordestina e Lampião) são artesãos antes de
serem empresários. Ambos expressam respeito pelo artesanato e pelos demais
artesãos, contudo, diferente dos demais, os irmãos aderiram ao uso de maquinário
fabril (Balancinho, máquina de prensar e máquina de vazar) 67e estratégias de
organização fordista de trabalho para a melhoria da qualidade do artefato e aumento
da sua produção, fortalecendo a característica manufatureira na produção das
sandálias em couro.
Segundo os empresários, a adaptação na maneira de produzir o artesanato
foi uma consequência para suprir o atendimento da demanda. Os empresários,
dominadores do saber fazer artesão o transmitiram aos funcionários, na intensão de
manter a qualidade do produto, entretanto, a busca pela melhoria do artefato (pintura
homogênea, colagem da sola, simetria do corte da palmilha etc.) requereu também
alterações na maneira de produzir, mesclando elementos fordistas às características
artesanais de produção.
Em relação à característica dos calçados realizados comumente no Cariri
eles afirmam que “De primeira era produzido um artesanato que era feito em qualquer
lugar. Eles colocavam taxa na sandália porque eles trabalhavam com uma cola que
colavam mal. Melhoramos na colagem, tiramos a taxa. Hoje em dia a gente trabalha
com a colagem boa.” Não obstante à colagem, o couro utilizado mudou: “Trabalhava
com couro muito bruto, fedia. Hoje o couro não fede. Hoje agente atinge a todos os
públicos, não só o homem da roça e pessoal humilde, que era o público - agora o
turista também compra”.
Quanto ao couro utilizado nas sandálias, os irmãos afirmam que compram
em Ouricuri/ Pernambuco, origem do couro para muitos artesãos, visto o fechamento
67 Os irmãos Cardoso expõem que o maquinário comprado para acelerar e aperfeiçoar a produção do artesanato é
visto como obsoleto pela própria indústria. A uso das formas laminadas substituem as facas e dão o mesmo formato
as palmilhas do calçado; o balancinho é a máquina que pressiona a lâmina e corta essas palmilhas na sola; a
máquina de prensar finaliza a colagem da sola no pneu – substituindo o uso do martelo e pé de ferro; a máquina
de vazar faz os furos necessários nas sandálias, descartando a necessidade de fazer os furos manuais, um a cada
vez.
123
de alguns curtumes no Ceará, apesar de comprarem também em um antigo curtume
em Fortaleza/CE. É importante ressaltar que os curtumes de Fortaleza e Ouricuri são
curtumes considerados pequenos, mas que tratam as peles das reses de modo
industrial, modernizado, utilizando cromo68 para o curtimento do couro, ao contrario do
que alega a empresa espanhola.
Podemos observar que o couro (vaqueta, camurça) comprado do curtume
de Ouricuri, pelos artesãos como um todo, não tem sua base artesanal. Logo, o
artesanato conta com sua matéria prima trabalhada a partir do método industrial, por
mais que a sola (outra modalidade de couro) possa vir de fontes artesanais para
alguns artesãos - a exemplo do fornecimento de sola pelos artesãos de Carmelópoles,
distrito do município de Campo Sales (CE). Essa modernização no trato com o couro,
bem como na confecção das sandálias é reconhecida pelos artesãos entrevistados
mas não é difundida pela marca O Mameluco, em sua divulgação on line.
Em dezembro de 2014, tivemos a oportunidade de entrar em uma loja
especializada em calçados na cidade de Paris, a parceira francesa da marca. Nessa
ocasião, observando os produtos em exposição, não constatamos nenhuma
característica do artesanato caririense nos calçados. Logo, informalmente fizemos
questões aos lojistas sobre os calçados da marca espanhola: quais eram, de onde
vinham o produto, o preço vendido no mercado.
Os calçados apresentados da marca eram comuns, sem nenhuma estética
que os vinculasse ao Cariri, Ceará ou Brasil. Sobre a origem do produto, os lojistas
afirmaram que eles vinham de Barcelona/ Espanha, o que para nós transparece um
desconhecimento sobre a origem de confecção do produto, conhecendo somente o
foco de distribuição internacional. Tal fato contradiz a própria marca em relação aos
seus objetivos visto que valorizam o artesanato e as culturas regionais. Nesse
período, o preço médio de um par de calçados era de 175 euros.
Podemos observar que a internacionalização das sandálias do Cariri
transmutaram esse artefato, transformando suas particularidades, significados. Na
68O processo de curtimento do couro transforma a pele, matéria prima natural e perecível no ‘couro curtido’, que
pode ser armazenado sem a degradação do couro animal não trabalhado nesse processo. No curtimento artesanal
é a substância tanino encontrada na árvore Angico que da a cor amarelada do couro cru das sandálias e bolsas,
bem como é responsável por o cheiro característico, o qual os irmãos Cardoso mencionam como de forte odor. Já
no processo industrial de curtimento, usa-se o mineral Cromo em vez da casca do Angico. O Cromo não só curte
o couro sem o odor característico da casca do angico, como também muda a coloração do couro para um azul claro
(sendo necessário tingir o couro). É importante ressaltar que os curtumes que utilizam o Cromo no seu processo
de curtimento devem ter permissão do governo federal para o uso da substância.
124
loja parceira da marca que comprou os calçados do Crato, situada na popularmente
reconhecida capital da moda, podemos observar a homogeneização da obra em
produto, e da perda de sua identidade sob o discurso de valorização do exótico e
cultural. Tal homogeneização acontece de tal forma, que a única singularidade deste
produto na loja, se comparado aos demais, se resumiu ao fato dele ser feito a mão.
Em contraponto a massificação globalizante do artesanato em couro como
produto, temos também a expressão do artesanato como raridade, ou como aponta
Harvey (2005) ‘vantagem monopolista’. Para tanto, expressão desse fato é a
valorização do trabalho artesão, mas, desta vez, o valorizando para agregar valor ao
produto, valor de exclusividade, ao elencar a origem, histórico e particularidades locais
como ingredientes que formulam uma ‘grife’ para poucos consumidores. Dessa
maneira, poucos artesãos serão lembrados pela sua arte, e dentre tantos talentosos,
poucos serão aqueles reconhecidos pela difusão da grande mídia.
O caso do Sebastião, conhecido por Sebastião Seleiro, famoso artesão de
Nova Olinda-CE é central para nossa discussão. Tal artesão, sentindo os impactos da
modernidade na vida cotidiana, ao perceber as baixas vendas dos produtos que
confeccionava como selas, arreios e outros artefatos em couro voltados à montaria,
aplicou nas sandálias, muito do seu conhecimento de seleiro. Esse talento do Cariri
cearense é reconhecido contemporaneamente, sendo convidado para compor
figurinos para filmes e novelas brasileiros, e como em um jogo de dominó, cada vez
mais aumentando a publicização de sua arte. Os calçados do sr Sebastião chamaram
a atenção de designers e fashionistas depois que a marca Rock usou, em 2005,
algumas peças no desfile da Semana da moda de Piratininga69.
69 É o maior evento de moda do Brasil e o mais importante da América Latina.
125
Figura 29 - Desfile na Semana da moda de Piratininga 2005 com sandálias de
Sebastião.
Fonte: http://ffw.uol.com.br/desfiles/sao-paulo/verao-2006-rtw/cavalera/2541/colecao/12/
O reconhecimento do talentoso seleiro de Nova Olinda e sua arte foram
difundidos a pós sua aparição no desfile. Em nosso entender, a particularidade da sua
vida e aprendizado do ofício ser geracional, somado a singularidade do avô do artesão
ter confeccionado uma sandália para Lampião, foi uma maneira que o mercado
encontrou para agregar valor às suas peças, já confeccionadas com tanto esmero,
historicamente enquanto obra. Esse conjunto de qualificações da obra deste talentoso
artesão foi apropriado pelo mercado pelo seu valor simbólico, o que conferiu aos
produtos vendidos um preço diferenciado, mais próximo ao público consumidor e
entendidos do circuito de grifes, tendências de moda e alta costura. Ou seja, as
particularidades da vida do sr Sebastião foram captadas pelo mercado como
vantagem monopolista tão quanto o histórico do sertão nordestino e o legado da
curtição do couro do vaqueiro e a obra dos artesãos.
Em trabalho de campo realizado em fevereiro de 2016 em Nova Olinda,
entrevistamos Sebastião. Sua pessoa simples mostrou a continuidade do seu
trabalho, apresentou a sua oficina e loja, bem como os seus moldes, máquina de
costura e ferramentas manuais. Dentre as peças dispostas para venda, e as
126
confeccionadas por ele, ele mostrou um banco que estava sendo terminado para
envia-lo aos irmãos Cabanas.70bem como nos informou que não poderia conversar
muito visto que estava trabalhando em uma encomenda de bolsas para compor uma
novela da rede Globo.
Figura 230 - Banco encomendado pelos irmãos Cabanas.
Fonte: Denise Elias, 2015.
Entendemos que a qualidade das peças confeccionadas por Sebastião e
sua oficina escola é fruto de muito esmero e experiência, contudo, a sua obra, bem
como a singularidade de sua história e simplicidade de sua pessoa o tornaram
elemento importante enquanto diferencial na produção massificada de mercado e
captado pelo mercado.
70 Os irmãos Cabanas são designers brasileiros de grande destaque na atualidade e reconhecidos
internacionalmente.
127
Figura 241 - Bolsas e carteiras de Sebastião
Fonte: elaborado pela autora
Figura 252 - Sebastião e calçados da sua loja
Fonte: Antônio José, 2015
Designers como Perla Bis e irmãos Cabanas o têm como referência para
simbolizar linhas de produtos que remetem ao imaginário de sertão, Nordeste e
mesmo ao cangaço como relíquia cultural brasileira. Tais linhas de produtos, seja em
128
parceria com a Rock, ROSA71, ou com os próprios irmãos Cabanas72, respeitam a
identidade do trabalho do artesão, a partir dessa significação cultural para o mercado,
conferindo uma exclusividade ao produto em questão a ser vendido a preços
compatíveis ao público de tais designers e marcas internacionais, voltados ao
mercado de luxo, normalmente como ‘edições limitadas’, ou seja, exclusivas. A foto a
baixo é uma expressão dessa parceria:
Figura 263 - Sandália de Sebastião vendida pela exclusivamente pela ROSA
Fonte: http://www.farmrio.com.br/br/adorofarm/post/farm-3-espedito-seleiro/_/A-blogPost-
3300008.ptbr
O caso exposto em relação à obra do seleiro de Nova Olinda mostra a
valorização do seu produto, mas sob “a estratégia de descontextualização e
ressignificação que a cultura hegemônica cumpre diante das culturas subalternas”
(CANCLINI, 1983, p.92). Concordando com Canclini, “Todo objeto recebe o seu
significado do sistema de objetos reais entre os quais se situa e também do repertório
imaginário de objetos que não se possui, mas que são vistos, descritos, oferecidos
pela sedução publicitária” (op cit. p.94). O deslocamento desse artesanato para as
71 A ROSA é uma rede de lojas em âmbito nacional que tem a intenção de fazer moda de maneira “mais natural,
contemporânea e autêntica possível”. Ver site: Cultura.com.br. É importante ressaltar que as peças vendidas do
Sebastião na sua rede são expressivamente mais caras, e como os modelos são limitados, os mesmos não são
encontrados na loja do próprio artesão. A título de comparação, uma sandália ‘maria bonita’ confeccionada pelo
Sr. Sebastião é vendida na sua loja ou na Ceart pelo preço médio de 80R$ em 2016, enquanto sua sandália na loja
ROSA custa 339R$. É curioso destacar que as sandálias maria Bonita não confeccionadas por ele, mas vendidas
em Cachoerinha-PE, Caruaru-PE tem preço médio de 45 R$. 72Ver site das respectivas marcas e revista Casa Vogue. http://www.farmrio.com.br/br/adorofarm/post/farm-3-
espedito-seleiro/_/A-blogPost-3300008.ptbr (acessado em 24/09/2016)
http://casavogue.globo.com/Design/Gente/noticia/2015/04/campanas-criam-com-inspiracao-no-cangaco.html
(acessado em 24/09/2016)
129
boutiques também delegaram superficialidade à história, experiência e estrutura de
sentimento que os artesãos conferem ao seu espaço de vivência e, em nosso caso,
especificamente à região do Cariri cearense.
Nesse sentido, a quantificação, a abstração que compreende que todo
trabalho humano é o caráter comum das mercadorias, suprime as diferenças entre os
artefatos produzidos. Essa supressão das características singulares socialmente
produzidas com significados próprios, em prol de uma equivalente comum universal
supõe uma relação entre os objetos. Assim, se concretiza ‘ o caráter místico da
mercadoria’ no qual fala Marx, pois a quantidade suplanta a qualidade, as diferenças,
logo ‘as reais relações dos produtores’ aparecem erroneamente como “uma relação
social entre os objetos, existente as margens dos produtores (MARX, 2013,p.147)” e
desse modo, temos o caráter fetichista da mercadoria surgindo pelas várias
necessidades que uma mercadoria pode suprir, tanto quanto o capital pode reinventar.
Nas palavras de Lukács (2012, p.199): O homem é confrontado com sua própria
atividade, com seu próprio trabalho como algo objetivo, independente dele e que o
domina por leis próprias, que lhes são estranhas. E isso ocorre tanto sob o aspecto
objetivo quanto sob o subjetivo.
5.3 ARTESÃOS DO SÉCULO XXI: ESTRUTURA DE SENTIMENTO PARA A
CONFIGURAÇÃO DA REGIÃO
Podemos observar que na região do Cariri ainda nos dias atuais, coexistem
o trabalho artesanal do couro, a manufatura e as indústrias, principalmente aquelas
voltadas para a fabricação de calçados. Vale ressaltar que mesmo que haja uma
produção variada de objetos artesanais em couro (como selas, seletas, rédeas,
chapéus etc.), grande parte dessa produção tem sido realizada em calçados, como
podemos observar em trabalho de campo.
Entendemos que há uma mudança do perfil de artesanato devido às
entrevistas realizadas, principalmente com os seleiros, quando eles afirmam a
desvalorização ou uma menor procura de artigos que costumavam ser bem vendáveis
em outros momentos. Temos o exemplo da valorização da compra de selotes em
130
detrimento das selas73, bem como o aprimoramento da confecção dos calçados, e
início da produção de bolsas, carteiras e demais utensílios voltados ao público de
maneira geral e menos às demandas do campo.
A mudança da demanda sentida pelos artesãos está atrelada ao impacto
da modernização na região para além da mudança em relação à demanda dos
artefatos. A modernização implementada inicialmente na produção e edificação do
espaço, é transformadora de costumes e atividades cotidianas ao longo das décadas,
visto que ela está relacionada diretamente a como o sujeito se percebe em seu tempo:
[...] na comunidade em que a orientação pelas tarefas é comum parece haver pouca separação entre o “trabalho” e “a vida”. As relações sociais e o trabalho são misturados – o dia de trabalho se prolonga ou se contrai segundo a tarefa – e não há senso de conflito entre o trabalho e “passar do dia”. (THOMPSON, 1998, p.271)
Thompson (1998) discorre sobre a percepção do tempo do trabalhador no
século XVIII e XIX para expor a ascensão de uma nova disciplina do tempo, mais
condizente com a produtividade e menos com o ritmo da vida e da natureza. Essa
realidade que propagava o ‘uso- econômico-do-tempo’ (ibid.) na transformação social
desses séculos de revolução, se configura atualmente como a realidade comum
ocidental perante a vida.
Logo, entendemos que a compreensão e valorização do sujeito como um
ser que sente e é dotado de liberdade em determinado contexto, essa experiência,
vivida no âmbito da coletividade, é base para a consciência e para a cultura, mesmo
sob transições de práticas e costumes.
Em Nova Olinda, o senhor Sebastião confecciona suas obras em sua
oficina, próximo a sua casa. Este, para dar conta da demanda, bem como cumprir com
as atividades de Mestre artesão reconhecido pelo programa ‘Tesouros Vivos da
cultura’, produz suas peças juntamente com filhos, sobrinhos e aprendizes. O saber -
fazer é difundido dentre os aprendizes que o ajudam a confeccionar as peças em
couro sob o controle de qualidade observado de perto pelo próprio artesão.
73 Segundo seleiro de Santana do Cariri, a preferencia pelos selotes é devido a estes serem menores, práticos e
mais baratos. O artesão afirma que antigamente uma sela bem ornada era motivo de apreciação e deferência por
parte de quem a possuía. Ressalta ainda que nos tempos atuais, os jovens não querem saber de sela e não valorizam
a sua arte, optando assim pelo selote.
131
No Crato, sob olhar atento do sr. Fernando, o saber fazer artesão é
difundido, mas sob o modelo do trabalho familiar. Juntamente com os filhos e a
esposa, o artesão confecciona majoritariamente sandálias, as quais são feitas na
oficina que se situa nos fundos da casa do artesão. A particularidade da inovação
nesse caso acontece no âmbito da estética e não no âmbito da produção. São
costuradas miçangas em algumas das sandálias, que tem público comprador
garantido nas feiras de Juazeiro do Norte, como com revendedoras que vão buscar
os calçados na casa do artesão.
Os casos citados acima buscam evidenciar as mudanças pelas quais o
artesanato passou, em consonância com as transformações vividas pelos artesãos no
contexto histórico de fomento da urbanização, modernização e simultaneidade das
informações. Traços da indústria, manufatura e trabalho familiar são mantidos e/ou
aderidos segundo as necessidades de venda do artesanato enquanto mercadoria.
Essa aparente contradição é o aspecto formal que vemos no âmbito do artesanato
como mercadoria, que o é, mas que não deixa também de permanecer como obra ao
artesão que a cria.
Afirmamos que o artesanato em couro no Cariri cearense é uma
particularidade, por tudo o que foi exposto e debatido bem como origem histórica,
raízes sociais e étnicas, modo de vida e a estrutura de sentimento advinda desse
processo coletivo e individual.
Para nós, a importância dessa discussão orienta a abordagem de análise
que fazemos do artesanato com sua contribuição regional, difusão global, bem como
da sua representação cultural vista de maneira diversa nos diferentes circuitos de
distribuição da mercadoria.
Canclini, na década de 1980, já argumentava a necessidade de se pensar
o artesanato no conjunto dos processos que o constituem, e não de maneira isolada
ou romantizada pelo pesquisador. Tal consideração ressalta a necessidade de
superar o isolamento dos objetos nos estudos sobre a cultura popular. Tal advertência,
tão necessária, sucumbe aos discursos e operacionalizações capitalistas que
costumam operar para a valorização da cultura.
Contudo, por mais que haja a influência da globalização no âmbito da
criatividade do sujeito, a criatividade dos artesãos se formou genuinamente pela sua
experiência de vida, por gerações, e, especialmente a confecção dos calçados se
remete ao tempo em que os próprios vaqueiros o faziam, e persistem aos dias atuais
132
com originalidade sem perda da essência como nos relatam Sebastião e Fernando,
homens que lidavam antigamente com os artefatos de montaria.
5.3.1 Pensando a configuração regional
As realidades de Sebastião e Fernando ilustram a estrutura de sentimento
e valores artesãos sob a implementação do processo de modernização. Esses
sujeitos, juntamente com os demais artesãos vivem seu cotidiano pautado no
aprendizado histórico do uso e transformação do couro enquanto cotidiano.
Essa estrutura de sentimento, coletiva dos artesãos do couro, tem sua base
na consolidação do próprio Cariri cearense, quando da confecção dos artefatos de
uso diário para a lida com o gado e uso doméstico. Esse costume, vivido e difundido
na região, propagado ao tempo presente pelos artesãos em sua vida cotidiana, bem
como pela relação com a qual estes sujeitos valorizam a sua obra, conferiu um
aspecto cultural ao Cariri cearense que tanto é reconhecido pelo Estado e suas
políticas, como também é reconhecido pela população. Esta convive com o artesão
presente em sua realidade ordinária, experienciando com ele valores, apreciando e
consumindo dos seus artefatos, reconhecendo a ancestralidade desse saber-fazer.
No que tange ao debate da região, muitos autores contribuem para a
definição desse conceito. Entretanto, acreditamos que não é possível uma enunciação
que o defina em sua concretude, já que o ato de regionalizar é intrinsecamente
político, e, portanto, passível de modificação segundo interesses preponderantes e
não necessariamente caraterísticas basilares selecionadas com neutralidade. Como
sabemos, a forma região se dá pela coerência de conteúdos selecionados, seleção
essa tencionada pelos interesses de classe. Na perspectiva de compreender a região
como um “fato político” resultante de um equilíbrio de forças, concordamos que:
Poder-se-ia dizer, então, que a região seria uma resultante da construção histórica desta complexa coerência, construída a partir da dialética articulação (enfrentamento) de distintos processos sociais, que tende a conferir características específicas a um determinado espaço social, e a expressar os distintos interesses dos agentes e atores sociais envolvidos. (LIMONAD, 2004, p.55)
Não obstante às diferentes intencionalidades, devemos entender que as
relações sociais se realizam em diferentes escalas espaciais de modo não
hierárquico, mas de maneira desigual e combinada, que como afirmamos
133
anteriormente, interage em um confronto de forças dentro do sistema de produção
vigente.
Se acreditarmos na importância da escala regional, não podemos negar a
interação dos processos sociais particulares e globais configurando uma coerência
própria (LENCIONI, 1999). Contudo, tais aspectos podem tencionar essa configuração
regional em várias feições considerando a totalidade social. Desse modo, podem
destacar-se como elementos para o delineamento da coerência regional a sua
representação institucional; a experiência histórica; organização econômica, traços de
identidade cultural dentre outros.
Pelo viés econômico, a região seria uma configuração geográfica
relativamente estável por um grau de coerência interna “estruturada em termos de
produção, distribuição, troca e consumo – ao menos por algum tempo” (HARVEY,
2004, p.88). Assim, a caracterização desse espaço é peculiar aos demais, mesmo que
suas fronteiras sejam difusas e porosas. Ainda segundo o autor, mesmo que as trocas
econômicas sejam fundamentais para a manutenção dessa coerência estruturada da
região, a sua configuração “abrange atitudes, valores culturais, crenças e mesmo
afiliações religiosas e políticas entre os capitalistas e aqueles que são por eles
empregados” (op.cit.p.89).
Em nossa concepção, para pensar a região devemos primeiramente
concordar que ela é intrinsecamente social, histórica e política. Assim, concordamos
com Lencioni e Harvey no que tange à coerência estruturada desta escala de análise
que medeia à relação entre o global e o local. Contudo, a perspectiva das relações
desiguais e combinadas, pertinentes à realidade mundial que relacionam os espaços,
não devem levar em conta somente os mecanismos que comandam o desempenho e
a regulação do modo de produção e sua interferência na especialização espacial. As
características específicas próprias da região, além de produtos da relação direta
entre escalas, envolvem também as diferentes temporalidades que a construção
histórica dotou de sentido e identidade. Nessa perspectiva, concordamos com
Haesbaert (1999) quando ele conceitua:
[...] região como um espaço de identidade ideológico-cultural e representatividade política, articulado em função de interesses específicos, geralmente econômicos, por uma fração ou bloco ‘regional’ de classe que nele reconhece sua base territorial de reprodução (op.cit.p.29).
134
Acreditamos que a conceituação de região do autor é representativa para
o nosso trabalho por considerar a importância da identidade e âmbito cultural como
parte integrante com os demais elementos para a definição do conceito. Ademais,
consideramos a conceituação de Paasi74 (2001) como a mais completa para a nossa
pesquisa tendo em vista a importância que o autor delega aos agentes que configuram
a região, pois em sua perspectiva:
As regiões (...) são construções sociais criadas nas práticas políticas, econômicas, culturais e nas práticas administrativas bem como nos discursos. Além disso, nessas práticas e discursos as regiões podem tornar-se instrumentos fundamentais de poder que se manifestam na formação dos espaços de economia, governança e cultura. (PAASI, 2001p.18, tradução nossa).
Desse modo, percebemos que o trato das características identitárias e
culturais são importantes para o debate regional e sua discussão não é novidade. No
que tange à identidade e à cultura, estas não podem ser observadas dissociadas da
sua realidade espacial, do seu vínculo construído socialmente. La Blache já abordava
tal apontamento sob o conceito de “Gêneros de Vida”, conduzindo a identidade para
um tratamento regional (HAESBAERT, 2010).
Geógrafos como Paasi (1991, 2001) e Cosgrove (2010) ao promover o
debate regional dão ênfase e importância à contribuição da leitura cultural e da análise
identitária para a região pela relação com a escala do vivido. Essa é uma questão
muito importante para a compreensão da região do Cariri Cearense, seja pela sua
constituição histórica, como pelo pertencimento e identidade da população a partir de
outras temporalidades.
Para o sociólogo Albuquerque Junior (2011) “Os recortes geográficos, as
regiões são fatos humanos, são pedaços de história, magma de enfrentamentos que
se cristalizaram, são ilusórios ancoradouros da lava da luta social que um dia veio à
tona e escorreu sobre este território” (op.cit.p.79). Sob o foco das relações sociais,
onde enfrentamentos políticos permeiam o sentido do conceito região, não podemos
nos furtar ao debate no qual a seleção dos fatos históricos e argumentos são
selecionados segundo uma cultura e discurso dominantes advindos de uma mesma
realidade. Sob esse bojo, “é fato que os modos de dominação selecionam e,
74 Citação original: “Regions (…) are social constructs that are created in political, economic, cultural and
administrative practices and discourses. Further, in these practices and discourses regions may become crucial
instruments of power that manifest themselves in shaping the spaces of governance, economy and culture”.
135
consequentemente, excluem parte da gama total da prática humana real e possível”
(WILLIAMS, 20011 a, p.59). Essas práticas humanas “dependem muito da prática
estar ou não em uma área em que a classe e a cultura dominantes têm um interesse
e uma participação” (ibidem). Nesse sentido, a seleção das informações prementes
à construção de uma narrativa, visto que o desenvolvimento produtivo e social não é
uniforme nem estático e menos ainda é estanque as suas implicações sociais.
A partir da compreensão da realidade como devir social (LUKÁCS, 2012),
entendemos a sua dinamicidade, que se manifesta na experiência do espaço e do
tempo. Para tanto, como afirma Harvey (1996) o conceito de espaço e tempo vem de
práticas materiais sociais e coletivas variadas. Assim, na tentativa de delimitar um
recorte para estudo, devemos ter consciência que o conhecimento produzido por nós
pesquisadores dificilmente chegará ao cerne da verdade (LEFEBVRE, 1986), visto
que os agentes sociais são dinâmicos. Além do que, existem formas fetichistas de
objetivar a realidade, provenientes da sociedade capitalista, que para Lukács,
dissimulam as relações reais entre os objetos, dando a elas um caráter reificado,
dificultando o caminho à compreensão da realidade.
Harvey (1996) fomenta essa perspectiva ao afirmar que no capitalismo
construímos ‘mitos’ para reforçar representações espaciais e temporais para manter
o seu controle sobre a sociedade. Becker (2007, p.34), ao situar o cientista social na
busca do conhecimento infere que “na ausência de conhecimento real, nossas
representações assumem o controle” visto que essas representações são resquícios
da nossa vida cotidiana, mostrando na nossa pretensão de analisar a realidade, não
estamos separados dela.
Na busca de compreender a realidade, do Cariri cearense, a vislumbramos
pelo conceito geográfico de região. Região esta permeada pela vida social
historicamente construída, bem como politicamente institucionalizada. Nas palavras
de Paasi (1991) em relação ao movimento de institucionalização da região “é apenas
um momento da transformação regional perpétua, discutido por vários autores (...) que
está ligado às praticas econômicas e políticas locais, estaduais e internacionais
ocorrendo em vários períodos de tempo e escalas históricas” (op.cit.p.242, tradução
nossa).
Essa compreensão da importância histórica de determinado espaço para a
sua compreensão geográfica do fenômeno, nos traz a importância das práticas sociais
locais, sejam elas institucionalizadas (pela legislação, política) ou não (cultura,
136
consciência). Desse modo, pensar o Cariri cearense no âmbito regional, é considerar
os mais variados aspectos, entretanto, selecionando àqueles que dão à região uma
identidade específica.
Como já retratados por Cunha (2012), os discursos que argumentam os
critérios de coerência da região do Cariri cearense evidenciam dinamicidades
econômicas interessantes a interesses políticos estabelecidos. Nós buscamos
evidenciar o alimento cultural que dá vida e identidade à região, o viés que escolhemos
advém da estrutura de sentimento existente a partir da experiência dos artesãos do
couro.
A coerência regional que escolhemos expor é de caráter histórico e cultural
da sociedade procedente e produtora da região; os artesãos do couro, mais
especificamente. Tais sujeitos, em sua experiência de vida, nos retrataram uma
realidade com elementos gerais de sertão e particulares do Cariri. Essa é a
apropriação simbólica que pretendemos expor, sendo o conceito de região não só
uma abstração ou representação, mas sim uma ’tradução’ da realidade, a partir de
uma análise contextual.
Entendemos que a estrutura de sentimento que dá sentido à região Cariri
cearense pelos artesãos do couro é compartilhada pela população do Cariri enquanto
sentimento de pertencimento e familiaridade. Ela também foi construída na
consciência social, esta, vivida ativamente nas relações sociais (Thompson, 2009),
portanto, presente na memoria coletiva da população urbana e rural. Tais memórias
“retratam contextos globais que influenciam as histórias individuais dos sujeitos”
(FERNANDES; ARAUJO; TEIXEIRA, 2011, p.103). Assim, àqueles que cresceram
frequentando as feiras da região, utilizando as corrulepes no seu dia a dia, bem como
partilhando das vivências cotidianas comuns, mesmo que não diretamente com o
couro, também traz na sua cultura essa relação. Nesse sentido, delineamos no mapa
abaixo a região do Cariri cearense considerando a estrutura de sentimento dos
artesãos do couro:
137
Mapa 2 - Região do Cariri cearense segundo a estrutura de sentimento dos
artesãos do couro
Fonte: elaborado pela autora
138
Essa coerência que buscamos evidenciar na pesquisa pelo recorte regional é
endossado por Paasi (1991) quando este afirma que a região:
[...] é mediada na vida cotidiana e é produzida e reproduzida em múltiplas práticas sociais através da comunicação e dos símbolos, que podem ser comuns a todos os indivíduos de uma região, embora os significados associados a eles sejam sempre interpretados pessoalmente com base em
situações de vida específicas e biografias”. 75 (op.cit. p.249)
Ao defender essa perspectiva de região, o autor salienta a vivência e
experiência do sujeito social, inclusive a baseia na concepção de ‘estrutura de
sentimento’ de Williams para desenvolver o seu conceito de ‘estrutura de
expectativas’, que segundo o próprio, “agregam a relação cultural e histórica entre
uma região e seus habitantes, e também com as pessoas de fora” (ibidem, p.249).
Paasi defende o conceito alegando que:
Estruturas de expectativas formam um quadro que está ligado a uma região específica. Este quadro é bastante permanente e é representado sob a forma de esquemas de percepção, concepção e ação, sistematicamente espaciais, de âmbito temporal e espacial, que compreendem características reais,
imaginárias e míticas da região. 76(PAASI, 1991, p.249, tradução nossa)
A leitura regional de Paasi publicada na década de 1990, sem duvida deu
grande contribuição à Geografia. Nos anos 2000, ele desenvolve a perspectiva
regional de modo a agregar as características relativas às construções sociais à região
enquanto instrumento de poder, reconhecendo inclusive a importância dos elementos
simbólicos para a institucionalização das regiões. Concordamos com Paasi (2001,
p.16, tradução nossa), quando este conceitua a região enquanto:
75 Citação original: “It is mediated into daily life and is produced and reproduced in multitudinous social practices
through communication and symbols, which can be common to all individuals in a region, though the meanings
associated with them will always be construed personally on the basis of specific life situations and biographies”. 76 Citação original: “Structures of expectations form a frame that is bound to a specific region. This frame is quite
permanent and is represented in the form of time - space-specific, region-bounded, institutionally embedded
schemes of perception, conception, and action, which can comprise real, imagined, and mythical features of the
region”.
139
[...] construções sociais criadas em práticas e discursos políticos, econômicos, culturais e administrativos. Além disso, nessas práticas e discursos as regiões podem se tornar instrumentos de poder cruciais que se
manifestam na formação dos espaços de governança, economia e cultura. 77
Entretanto, acreditamos que são as ‘estruturas de sentimento’ (WILLIAMS,
1979) e não as ‘estruturas de expectativas’ (PAASI, 1991) que corroboram com o
sentido de Cariri cearense. Pois como afirmou Kirsh (2013, p. 435, tradução nossa):
“o materialismo requer que não determinemos o avanço dos processos em situações
dadas”. Tal alegação de Kirsch condiz com Williams e seu conceito de ‘estrutura de
sentimento’, visto que:
[...] ao descobrirmos a natureza de uma prática particular, bem como a natureza da relação entre um projeto individual e um modo coletivo, descobrimos que estamos analisando, como duas formas de um mesmo processo, tanto a sua composição, e em ambas as direções essa é uma
relação ativa complexa e em transformação. (WILLIAMNS, 2011a, p.67)
Logo, não estamos enfatizando a questão discursiva de Williams
(1979;2011a,2011b,2015) sobre como a consciência prática que é vivida e
experimentada se distingue da "consciência oficial", como atesta Paasi (1991).
Assim, a evidenciação dos sujeitos e suas experiências são os pontos
de partida na tradição cultural marxista que nos permite, a partir do contexto histórico
e suas especificidades, compreender as marcas deixadas na produção espacial, bem
como, a partir das relações sociais desenvolvidas, compreender como aquela cultura
se desenvolveu , construindo características próprias na sociabilidade, e na identidade
do espaço que ocupam, fomentando contornos culturais associados às
institucionalizações. Esse devir condiz com a reflexão de Haesbaert (2010, p.178)
quando este afirma que a
[...] região tem seu foco, mais amplo, nos processos gerais de articulação, diferenciação e ‘recortamento’ do espaço, o que implica trabalhar no entrecruzamento – ou no limiar- entre diferenciação como construção social efetiva e como recorte espacial classificatório/analítico.
Na pesquisa por nós realizada, a contribuição se deu em prol do
posicionamento e concepção da realidade a partir dos artesãos do couro. Mesmo
77 Citação original: “Regions are always part of this action and hence they are social constructs that are created in
political, economic, cultural and administrative practices and discourses. Further, in these practices and discourses
regions may become crucial instruments of power that manifest themselves in shaping the spaces of governance,
economy and culture”.
140
considerando que “Evidentemente, todo conhecimento da realidade parte de fatos [...]
Trata-se de saber quais dados da vida e em que contexto metódico merecem ser
considerados como fatos importantes para o conhecimento” (LUKÁCS, 2012, p.70),
para nós, ouvir as vozes pela experiência coletiva dos artesãos, suas impressões e
trajetórias é perfazer um caminho via estrutura de sentimento para compreender o
significado e legado deste público à região do Cariri. Esta é nossa escolha dentro do
campo de forças simbólicas, visto que “grande parte da vida política das sociedades
contemporâneas só pode ser compreendida como uma luta pela autoridade simbólica”
(THOMPSOM, 1998, p. 70). Essa interdependência entre o material e o simbólico a
partir dos artesãos do couro, é a nossa base de reflexão para um escrutínio
metodológico de ação para o entendimento da estrutura de sentimento na região do
Cariri cearense.
141
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A região do Cariri cearense, como a conhecemos, é permeada de diversas
expressões culturais, sejam elas de ordem material ou imaterial. Os artesanatos
(sejam de cerâmica, madeira, tecido, couro etc.) denotam a riqueza criativa e cultural
da região, que juntamente com a história de sua ocupação, bem com o
desenvolvimento econômico no fim do século XX a particulariza no contexto do
estado. Essa região também se especifica enquanto enclave edafoclimático perante
o sertão, caracterizando-se pela amenidade climática, abundantes recursos hídricos
e qualidades agricultáveis, mencionadas historicamente nos relatos dos viajantes que
legaram informações historiográficas preciosas.
Dentre tantos aspectos que enriqueceram e caracterizaram de forma
especial a região do Cariri, reconhecemos a contribuição dos artesãos do couro como
de importância significativa. A experiência artesã, presente e fomentada
historicamente revela uma estrutura de sentimento a qual marcam a região com
valores, costumes e símbolos para com o modo de viver. Tais traços, advindos da
experiência artesã, permeiam a realidade dessa região de modo a se realizar
enquanto consciência prática presente a partir dos artesãos em couro, legada por eles
historicamente, e vivenciada pela população da região em sua cultura.
Selas, selotes, arreios, paletós e calçados continuam a ser
confeccionados sob os critérios norteadores de esmero e qualidade, valorização da
peça – obra, satisfazendo quem consome e quem produz, deleite da execução de um
trabalho bem feito e bem acabado, reconhecimento de si mesmo no que está sendo
produzido, não alienação do trabalho, tão raro no mundo moderno. Para quem vê de
fora temos peças de artesanato que simbolizam a região, para quem vive esta
realidade no cotidiano, conversar sobre como tanger vaca tinguida78, costurar
mentalizando a mobilidade do usuário da roupa de couro, lembrar das feiras e cavalos
selados e os tantos personagens que marcam a historia social é algo comum e que
evidenciam os processos formativos da estrutura de sentimento para além das
delimitações formais dos critérios regionais.
78 Segundo o vaqueiro artesão: A vaca tinguida é aquela que está sendo aboiada junto às outras vacas do rebanho,
mas que diferente das demais decide parar de andar, o que gera um problema ao vaqueiro, atrasando o seu trabalho.
Existem diferentes maneiras de resolver o problema, contudo o vaqueiro adverte que a melhor delas é deixar a
vaca quieta e vir busca-la em outro momento, sem usar da foça física contra o animal.
142
Essa espontaneidade que marca singularmente cada artesão, e no
conjunto deles se transforma em particularidade, confere à região um traço cultural
que advêm de uma expressão de valores e tempo não direcionados pelo relógio ou
importância monetária, mas sim pela relação da vida e trabalho permeado de sentido,
resquícios de um modo de viver e pensar pré-industrial, quando o tempo é orientado
pelas tarefas, segundo a lógica da necessidade.
É fato que o advento da modernização impregnou e direcionou para a
transformação o Cariri em seu modo de viver, de produzir e a utilização do tempo.
Contudo, a estrutura de sentimento construída não desmorona, mas ressignifica os
aspectos da modernização, como também é aderida por esse movimento.
As sandálias de borracha, feitas industrialmente, têm vez nos pés da
população assim como as ‘corrulepes’ e as ‘maria bonita’ são requisitadas nas
passarelas e constituem figurinos de filmes e novelas da Rede Globo. Essa simbiose
entre o artesanato e o produto de fábrica remonta à aceitação do legado artesão com
seus valores e preceitos no mesmo espaço temporal que a fluidez do consumo e a
superficialidade incutidas na vida social graças à modernidade. Logo, a estrutura de
sentimento legada pelos artesãos do couro encontra-se frente a frente às imposições
do mundo moderno, seja em conflito, como em uma aceitação parcial por este mesmo
mundo.
Pudemos observar a partir da exposição da realidade dos artesãos de
diferentes municípios do Cariri que suas vidas individuais não estão desassociadas
de uma realidade coletiva em processo. Logo, a partir da realidade captada pelos
trabalhos de campo, entendemos que a experiência ativa e sentida por estes sujeitos
está atrelada a um modelo coletivo, que sob o ponto de partida para uma análise sob
a tradição cultural marxista,
[…] descobrimos que estamos analisando, como duas formas de um mesmo processo, tanto a sua composição ativa quanto as condições dessa composição, e em ambas as direções essa é uma relação ativa complexa e em transformação. Isso significa, obviamente, que não temos um processo internamente construído do tipo que é indicado pelo caráter fixo de um objeto. Nós temos os princípios das relações das práticas dentro de uma organização vista como intencional, e temos as hipóteses disponíveis do dominante, do residual e do emergente. (WILLIAMS, 2011a, p.67)
Entendemos que os artesãos em couro do Cariri trazem “uma qualidade
particular da experiência social e das relações sociais, historicamente diferentes de
143
outras qualidades particulares, que dá o senso de uma geração ou um período”
(WILLIAMS, 1979, p.133) caracterizando a estrutura de sentimento à região,
germinada pela prática de vida que os artesãos expressam enquanto sujeitos, sujeitos
que produzem seu trabalho e sua vida pelo artesanato em couro.
Contudo, a contribuição dos sujeitos, como o caso dos artesãos em couro,
foram/ são valorizadas a partir da seleção organizada e consciente da cultura
dominante (WILLIAMS, 2011a; MARTINS, 2013). Nesse sentido, como a ação
individual e coletiva dos artesãos do couro produzem ‘artes de criação’, como tal, pelo
seu histórico, trazem significados e valores residuais, também são no presente a
manifestação de práticas emergentes, visto serem reconhecidas institucionalmente,
bem como são valorizadas pela geração presente da região. Logo, a estrutura de
sentimento legada pelos artesãos do couro dá um sentido de região ao Cariri cearense
enquanto critério cultural.
144
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149
_____. The geographies of cultural geography III: Material geographies, vibrant matters and risking surface geographies. Progress in Human Geography, v. 37, n. 1, 2012.
151
APÊNDICE A - Lista de entidades do artesanato em couro da CEART para a região
do Cariri cearense.
- Socicouro (Crato)
- Associação dos artesãos de Campos Sales
- Associação dos artesãos do Crato
- Sebastião – Nova Olinda
- Damião Pedroso – Crato (Nordestina)
- Cosme Pedroso – Crato (Lampião)
Fonte: Trabalho de campo – CEART Juazeiro do Norte
152
APÊNDICE B - Lista dos tesouros vivos da cultura por ano de nomeação, atividade e
município de origem.
Nome Data de
nascimento Atividade Município Comentário Ano
Francisco
Pedrosa de
Sousa
08/04/1933 Boi-Bumbá Sobral
Mestre Panteca inspirou a
criação de mais de 30
grupos de Bois existentes
em Sobral. Dedicou 40
anos de sua vida à arte.
Iniciou a brincadeira
quando ainda era feirante
com o objetivo de puxar o
Boi e divertir a família.
Morreu em 2006.
2004
Joaquim Mulato
de Sousa 03/03/1920 Penitência Barbalha
Ainda menino ficou
maravilhado com um grupo
que cantava a música ABC
do Divino. Depois descobriu
que se tratava dos
penitentes. Anos depois,
pediu permissão para fazer
parte da Ordem. Liderou os
penitentes de Barbalha e
ficou conhecido como
Mestre Biro e Mestre
Joaquim Mulato.
2004
Joaquim
Pessoa Araújo 30/01/1923 Maracatu Fortaleza
Juca do Balaio, como era
conhecido, morreu em 2006
com 35 anos dedicados à
tradição do maracatu.
Nascido no Cedro, o
compositor e tirador de loas
trajava-se como balaieiro
no Maracatu Az de Ouro,
no qual desfilava no
período do Carnaval em
Fortaleza.
2004
153
José Aldenir
Aguiar 20/08/1933 Reisado Crato
Mestre Aldenir coordena
mais de 60 pessoas em três
grupos folclóricos: um
masculino, um feminino e
um infantil. Em 1997,
recebeu o título de Mestre
do Saber e das Artes do
Povo do Cariri pela
Secretaria de Cultura do
Crato.
2004
Lucia Rodrigues
da Silva 24/12/1959
Cerâmica em
Barro
Limoeiro do
Norte
Conhecida popularmente
como Lúcia Pequena, é
especialista na fabricação
de peças de barro desde os
dez anos de idade. A
jaguaribana ceramista tem
cerca de cinco décadas de
atividade.
2004
Manoel Antônio
da Silva 04/07/1923 Maneiro-Pau
Juazeiro do
Norte
Conhecido como Mestre
Bigode, começou a alegrar
as festas da padroeira e o
imaginário popular da
região do Cariri, em 1942.
Na década de 1970, criou o
grupo de bacamarteiros que
até hoje anima festas
populares com grandes
salvas de tiros.
2004
Maria de
Lourdes
Cândido
Monteiro
11/02/1939 Artesanato Juazeiro do
Norte
A Mestre Maria Cândido é
uma das maiores artesãs
do Brasil e aclamada por
desenvolver peças de barro
com os mais variados
temas como sagrado,
profano, festas populares e
histórias de aventura. Suas
obras já percorreram a
Alemanha, a França, a
2004
154
Holanda e os Estados
Unidos.
Maria Margarida
da Conceição 21/06/1935 Reisado
Juazeiro do
Norte
Da sua infância em
Alagoas, trouxe influência
para fundar em Juazeiro o
grupo As Guerreiras de
Joana d’Arc, reisado
formado exclusivamente
por mulheres, e três treme-
terra. Os blocos de moças
com espadas resistem,
cantando e dançando a arte
do povo nordestino. Seu
nome artístico é Margarida
Guerreira.
2004
Miguel
Francisco da
Rocha
14/09/1942 Banda cabaçal Juazeiro do
Norte
Com mais de 50 anos de
atividade, Mestre Miguel,
mestre de banda cabaçal,
tocava, cantava e dançava.
O poeta também fabricava
seus próprios instrumentos.
2004
Raimundo José
da Silva 14/02/1934 Banda cabaçal Crato
Foi integrante-líder da
Banda Cabaçal dos Irmãos
Aniceto, que já percorreu
todas as regiões do Brasil.
Os instrumentos são
fabricados pelos próprios
integrantes do grupo, que
foi tombado (âmbito
municipal) como Patrimônio
Imaterial do Crato.
2004
155
Raimundo
Zacarias 19/09/1929 Congada Milagres
Há aproximadamente sete
décadas, dedica-se à
atividade da congada. Doca
Zacarias, como ficou
conhecido, destaca-se por
seu rico acervo folclórico
local e por manter viva a
história bicentenária do
Grupo de Congo do
município.
2004
Walderêdo
Gonçalves de
Oliveira
19/04/1920 Xilogravura Crato
É apontado como um dos
maiores nomes da
xilogravura nacional. Mestre
Walderêdo realizou também
exposições internacionais.
Foi tipógrafo, torneiro
mecânico, pintor e
eletricista.
2004
2005
Antônio Batista
da Silva 15/09/1939
Boi de
Reisado Quixeramobim
De brincante passou a
Mestre do Boi de Antônio
Maria Águeda, o “Das
Águias”, tornando-se o
principal mestre-de-boi em
atividades no município,
esforçando-se em manter a
tradição e transmiti-la às
novas gerações. É
conhecido como Mestre
Piauí.
2005
Antônio
Rodrigues
Trajano
04/07/1928 Rabequeiro Varjota
É filho de um carpinteiro
com uma tecelã. Aos 15
anos, reconstruiu uma
rabeca. Antes do conserto,
Mestre Antônio Hortêncio,
como é conhecido, pediu-a
emprestada. Ele conta que,
dois dias depois, devolveu-
a, já tendo composto um
2005
156
samba e uma marcha, sem
que ninguém tenha
ensinado.
Dina Maria
Martins Lima 21/08/1954
Vaqueira e
aboiadora Canindé
Mestre Dina, a Rainha dos
Vaqueiros, inspirou filmes,
cordéis e livros, além de ter
sido convidada dos
Debates Especiais Grandes
Nomes, do Grupo de
Comunicação O POVO.
Fundou a Associação dos
Vaqueiros e Aboiadores do
Sertão Central.
2005
Francisca
Rodrigues
Ramos do
Nascimento
03/01/1939 Arte em
cerâmica
Viçosa do
Ceará
Dona Francisca é
descendente de índios e
herdou a arte de moldar o
barro de seus avós e pais,
que se utilizam desse saber
para fabricar utensílios de
uso doméstico.
2005
Francisco das
Chagas da
Costa
20/5/1959 Bumba meu
Boi
Limoeiro do
Norte
Mestre Chico começou a
brincar de bumba meu boi
aos dez anos ao lado do
pai, Mestre Zé Nogueira, e
do tio. Assumiu o posto de
seus familiares e é um
profundo conhecedor dessa
cultura.
2005
Gertrudes
Ferreira dos
Santos
03/09/1927 Dança da
Cana verde Fortaleza
Dona Gerta mantinha e
participava da Dança da
Cana Verde. Seu ofício era
repassar a música, os
figurinos e os significados
da dança para o grupo
composto por 34 brincantes
2005
157
da comunidade de
pescadores do bairro do
Mucuripe, em Fortaleza.
José Demétrio
de Araújo 13/08/1953
Maneiro-Pau,
Coco e São
Gonçalo
Crato
Conhecido como Mestre
Cirilo, é um dos ícones da
cultura tradicional popular
cearense. Além de
pertencer a um grupo de
maneiro-pau, formado por
adultos, mantém um grupo
infantil preocupado em
transmitir esta herança às
novas gerações.
2005
José Francisco
Rocha 04/12/1946
Bumba meu
boi Fortaleza
Mestre Zé Pio começou a
brincar de boi aos três anos
de idade. Mais tarde,
tornou-se o índio do Boi
Reis de Ouro. Criou o Boi
Juventude, na Barra do
Ceará, e desenvolve
trabalho social com
crianças, ensinando a
cultura do bumba meu boi.
2005
José Pedro de
Oliveira 13/06/1929
Reisado de
Couro Barbalha
Mestre José Pedro ou
Mestre Gonçalo é um dos
responsáveis por manter a
tradição do Reisado de
Couro, um dos mais raros
tipos de reisados do
Nordeste, que se encontra
no sítio Barro Vermelho, em
Barbalha.
2005
158
Maria Alves de
Paiva 17/07/1941 Cerâmica Ipu
Conhecida como Dona
Branca, começou a fazer
louça de barro aos dez
anos com sua avó. Seu
início foi às escondidas,
pois seu pai não queria que
a filha trabalhasse. Com o
passar do tempo, o próprio
pai passou a vender, na
feira do Ipu, o que ela
produzia.
2005
Maria Edite
Ferreira 19/03/1952
Rede de
Travessa
São Luís do
Curu
Foi iniciada na arte aos 14
anos por sua tia, seguindo
a tradição de seus
ancestrais, os índios
Tremembé de São Luís do
Curu. Suas redes são
totalmente artesanais, e já
ensinou o ofício aos filhos.
2005
Zilda Eduardo
Nascimento 02/04/1927 Dramista Guaramiranga
Compõe desde a infância e,
segundo ela, já fez drama
por encomenda para
alegrar festas de igreja e
acontecimentos cívicos e
políticos. Inspirou a
fundação do primeiro grupo
de teatro de Guaramiranga,
o Cangalha.
2005
2006
Antônio Pinto
Fernandes 12/05/1924
Construtor de
Rabecas Aurora
Fez sua primeira rabeca
ainda criança. Sua arte
possui influências vindas de
Minas Gerais, terra em que
viveu por anos. Mestre
Antônio produz rabecas
bem acabadas e de rica
sonoridade.
2006
159
Gilberto Ferreira
de Araújo 06/10/1942
Teatro de
bonecos Icapuí
É apaixonado pelo trabalho
do teatro de bonecos.
Conhecido como Mestre
Gilberto Calungueiro, é um
dos veteranos do segmento
e responsável pelo
entretenimento de sua
comunidade.
2006
José
Evangelista dos
Santos
27/12/1931 Bumba meu
Boi Granja
Começou a dançar Bumba
Meu Boi aos 14 anos.
Tornou-se o primeiro
mestre de seu grupo em
1970. É reconhecido por
preservar e transmitir esta
manifestação artística em
sua comunidade e
arredores.
2006
Joaquim Pereira
Lima 08/07/1917
Artesanato em
Couro Assaré
Mestre Joaquim de Cota
mantém confeccionava
objetos utilizados pelo
vaqueiro nordestino, como
sandálias, chapéus,
chicotes e gibões. Foi
reconhecido como
possuidor de um saber
sertanejo que remetia à
autêntica cultura
nordestina.
2006
José Matias da
Silva 15/09/1925 Reisado Caririaçu
Agricultor, pratica a dança
do reisado nos grandes
eventos da região. Segundo
o próprio Mestre Zé Matias,
estas apresentações em
público são momentos de
extrema alegria e
realização pessoal.
2006
160
José Pereira de
Oliveira 25/09/1925 Jangadas Aquiraz
Mestre Oliveira é um exímio
artesão nos trabalhos com
madeira. Ele confecciona
miniaturas de jangadas com
pedaços de madeira. Aos
mais jovens, repassa as
minúcias e os segredos de
seu ofício.
2006
Joviniano Alves
Feitosa 06/02/1913
Mestre
Santeiro Crateús
Filho de carpinteiro e neto
de santeiro, Mestre
Joviniano desenvolveu sua
arte vendo o avô esculpir.
Suas imagens espelham a
religiosidade popular. Elas
são famosas pelo
acabamento minucioso e
cuidado nos gestos e
expressões.
2006
Manoel
Graciano
Cardoso dos
Santos
18/07/1926 Artesanato em
Madeira Barbalha
Mestre Graciano é
considerado uma referência
na cultura brasileira. São
inconfundíveis seus traços
e acabamentos em obras
arquitetadas a partir de
troncos, de onde emanam
flores, frutos e bichos.
2006
Maria Pereira
da Silva 08/06/1927 Lapinha
Juazeiro do
Norte
Metade de sua sala de
visitas era tomada pelo
presépio, herdado de sua
mãe, que fundou a Lapinha
Santa Clara, em 1912.
Carregou consigo o orgulho
de coordenar a mais
tradicional e antiga lapinha
de Juazeiro do Norte.
2006
Pedro Alves da
Silva 26/12/1926
Artesanato em
Cipó Guaramiranga
Mestre Pedro Balaeiro
gosta de ser chamado de
“O Homem da Cestinha”.
Seus trabalhos são uma
2006
161
referência nacional no
trançado de cipó de imbé.
Sebastião Alves
Lourenço 24/04/1934 Cordelista Capistrano
Dedicou a vida à mestrança
das brincadeiras de reisado
e aos versos de cordel.
Com muito esforço, sem
apoio oficial, sempre
procurou manter vivas as
tradições de sua arte. É
conhecido também como
Sebastião Chicute.
2006
Zulene Galdino
Sousa 02/03/1949
Pastoril,
Dança do
Coco e
Maneiro-Pau
Crato
Mestra Zulene é membro
fundadora da Fundação do
Folclore Mestre Eloi. Desde
a infância, já dançava
quadrilha junina. Criou no
Crato dois grupos: um de
crianças e outro de jovens.
2006
2007
Antônio Gomes
da Silva 13/02/1960
Luthier de
Violino Mauriti
Totonho é um pequeno
agricultor que divide seu
tempo entre os trabalhos na
roça e a construção de
violinos, violoncelos,
contrabaixos e violas. O
interesse pela arte
apareceu após um encontro
com o maestro italiano
Augusto Lombardi.
2007
Getúlio Colares
Pereira 23/03/1929 Sineiro Canindé
Os moradores de Canindé
conhecem os seus repiques
que estão presentes em
músicas e hinos dedicados
a São Francisco. Toca o
sino em ritmos diferentes
para ocasiões especiais.
2007
162
Seu repertório soma 85
toques diferentes.
João Lucas
Evangelista 06/05/1937 Cordel e Viola Crateús
Mestre João Lucas publicou
romances, folhetos e
gravou canções e poemas
de cordel. Artistas como
Frank Aguiar e a banda
Mastruz com Leite já
interpretaram suas
músicas.
2007
Maria Assunção
Gonçalves 1º/6/1916
Artesanato e
artes plásticas
Juazeiro do
Norte
Com atividades que
incluem artesanato
(bordado e renda) e artes
plásticas (pintura), foi
considerada guardiã da
memória. Assunção
Gonçalves se destacava
também na culinária como
confeiteira.
2007
Maria de castro
Firmeza 18/07/1921
Bordado,
Culinária,
Artes Plásticas
e Artesanato
Fortaleza
Mestre Dona Nice
desenvolvia atividades nas
áreas do bordado, da
culinária e das artes
plásticas. No bordado,
apresentava-se como das
mais criativas,
sobressaindo-se com um
estilo próprio, em desenhos
e cores. Professora,
ministrava cursos dessas
atividades. Morreu em
2013.
2007
163
Maria José
Inácio 19/06/1944 Bendito
Juazeiro do
Norte
Lavadeira, Dona Maria do
Horto, como é conhecida,
canta benditos de sua
própria autoria. Com uma
voz potente, suas
composições falam do
universo religioso ligado ao
Padre Cícero.
2007
Maria Odete
Martins Uchoa 06/01/1946
Medicina
Popular Canindé
Os conhecimentos que
Odete Uchoa tem sobre as
plantas medicinais é uma
herança de seus
antepassados, núcleos
indígenas. Desde criança
convive com remédios
caseiros. Observa e estuda
as plantas e métodos de
aproveitamento.
2007
MOISÉS
CARDOSO
DOS SANTOS
26/03/1945 Dança do
Coco Trairi
Herdou a tradicional Dança
do Coco dos seus
antepassados indígenas.
Os passos, o ritmo e o
movimento corporal têm
relação com o universo do
trabalho rural. Moisés criou
uma escolinha para
repassar a dança para a
comunidade.
2007
Sebastião
Cosme 08/12/1940 Reisado
Juazeiro do
Norte
Começou aos nove anos
como brincante de reisado
e, aos 15, era embaixador.
Com 17 anos formou seu
próprio grupo: Reisado de
São Sebastião. Vinha se
dedicando ao espetáculo,
ajudando a manter viva a
tradição popular.
2007
164
Silvino Veras
D´ávila 05/09/1917
Luthier de
Rabecas Irauçuba
Mestre Vino era carpinteiro
aposentado e
confeccionava rabecas.
Construía os instrumentos e
os manuseava, tocando
com maestria. Suas
rabecas eram famosas,
internacionalmente. Morreu
em agosto de 2013 sem
deixar discípulos.
2007
Terezinha Lima
dos Santos 07/06/1941 Dramista Beberibe
Teve os primeiros contatos
com o drama ainda na
escola primária. Desde
então, Mestre Tereza Lino,
como é conhecida, participa
de montagens, cria peças e
acompanha o movimento
dramista em Beberibe.
2007
Vicente Chagas
Gondim 02/07/1937 Reisado Guaramiranga
Desde os 15 anos tem
envolvimento com o
Reisado. É um dos
“topadores de boi” mais
conhecidos do Maciço de
Baturité. As várias “figuras”
do espetáculo (cavalo-
marinho, boi, burrinha) são
confeccionadas por ele.
2007
2008
Ana Maria da
Conceição 27/07/1956 Dramista Tianguá
Integrante do grupo de
dramistas dos Tucuns, que
ministra música e
expressões corporais que
representam práticas
dramáticas de comunidades
rurais. Os dramas são
cantados por mulheres do
grupo, acompanhadas
pelos tocadores.
2008
165
Espedito Veloso
de Carvalho 29/10/1939
Artesanato em
Couro Nova Olinda
Por meio de sua arte,
Mestre Espedito Seleiro
resgata a história do couro
na originalidade das
vestimentas do vaqueiro e
do cangaço. Suas obras
são reconhecidas
mundialmente e já esteve
presente nas passarelas e
no design de móveis.
2008
Francisca
Galdino de
Oliveira
12/09/1941 Rezadeira Alto Santo
Natural de Umarizal (RN), a
rezadeira aprendeu o ofício
com a madrinha aos cinco
anos de idade, fazendo
rezas curativas para
diversas enfermidades. É
conhecida como
Francisquinha Félix.
2008
FRANCISCO
MARQUES DO
NASCIMENTO
(CACIQUE
JOÃO
VENÂNCIO)
30/01/1955 Cultura
Indígena Itarema
Cacique João Venâncio é
da etnia Tremembé desde
1991, e responsável geral e
instrutor das danças e
rituais sagrados indígenas.
Atua como instrutor de
carpintaria, pesca e
agricultura.
2008
José Stênio
Sliva Diniz 26/12/1953
Xilógrafo e
cordelista
Juazeiro do
Norte
Já atuou como ator e
cantor, destacando-se,
entretanto, por seu talento
como xilógrafo. Suas obras
estão espalhadas por
alguns dos principais
museus de gravura do País
e do Exterior. Notabilizou-
se também pela luta em
prol do artesanato de
Juazeiro.
2008
166
Luciano
Carneiro Lima 07/01/1942
Cordelista e
tipógrafo Crato
Iniciou como cordelista em
1975, divulgando suas
poesias em rádios. Foi
membro fundador da
Academia dos Cordelistas
do Crato. É uma das mais
respeitadas e reconhecidas
expressões do verso
popular caririense.
2008
Luís Manuel do
Nascimento 13/09/1951
Cultura
Indígena Itarema
É um representante
genuíno da antiga tradição
dos pajés, tendo sido
preparado pelo pai, o pajé
Caboco Sororô. Nasceu na
aldeia Tremembé da
Varjota, em Almofala.
Mestre Pajé Luís Caboclo,
como é conhecido,
começou sua atividade de
cura com ervas medicinais
aos 18 anos.
2008
Maria do Carmo
Menezes Morais 11/03/1939 Pastoril Paracuru
Teve os primeiros contatos
com o pastoril com a mãe.
Depois de adulta, já em
Paracuru, começou a
ensinar pastoril às crianças
da vizinhança, sendo fiel às
tradições.
2008
Raimundo de
Brito Silva 14/04/1931 Mateiro
Juazeiro do
Norte
O uso de raízes, cascas e
folhas na produção de
xaropes e chás levou
Mestre Mundô, como é
chamado, à elaboração de
uma fórmula de xarope
bastante utilizada nos
meios familiares e entre
amigos.
2008
2009
167
Antônio Luiz de
Souza 21/09/1957
Reisado de
Caretas Potengi
Tornou-se brincante do
Reisado de Caretas em
1980. A atividade estava
em vias de acabar, no Sítio
Assaré, quando Antônio
passou a organizar o
reisado. Hoje o Reisado de
Caretas de Potengi é uma
referência para a região.
2009
Expedita
Moreira dos
Santos
09/10/1939 Dança de São
Gonçalo Tianguá
Participa da Dança de São
Gonçalo desde os dez anos
de idade, incentivada por
sua mãe.
A dança é realizada pelas
mulheres da comunidade,
tendo a Mestre Expedita
como “Mariposa” que
organiza o grupo e dirige a
manifestação.
2009
Francisca
Ferreira Pires 15/12/1943 Rendeira Cascavel
Mestra Francisca, como é
conhecida, repassa seu
conhecimento em renda a
todos da comunidade,
fortalecendo ainda mais a
tradição de rendeira em sua
região.
2009
Francisco Paes
de Castro 23/10/1925
Instrumentista
– Sanfona de
Oito Baixos
(Pé de Bode)
Assaré
Mestre Chico Paes é neto
de João Saturnino do
Prado, rabequista e violeiro,
e filho de Chico Paes. Ele
desenvolveu a arte de tocar
a sanfona de oito baixos
(pé de bode), instrumento
característico da cultura
popular. Sua música é
conhecida em toda a
região.
2009
168
Francisco Vitor
Lima 25/11/1939 Ferreiro Cedro
Mestre Netinho, como é
conhecido, aprendeu com o
avó e o pai a arte de
ferreiro. Produz peças que
ajudam a manter viva a
atividade de ferreiro,
repassando a arte para
seus filhos e netos.
2009
Joaquim
Ferreira da Silva 19/02/1939
Dança de São
Gonçalo Quixadá
Mestre Joaquim organiza
junto com as mulheres da
Comunidade do Sítio Veiga
a Dança de São Gonçalo.
Ele acompanha o grupo
com um tamborzinho que
recebeu de presente de seu
pai e repassa seus
conhecimentos a todos da
comunidade.
2009
José Maurício
dos Santos 20/09/1951
Artesanato em
Flandres
Juazeiro do
Norte
É brincante de reisado, mas
é na arte de trabalhar com
flandres que se destaca.
Suas peças integram
exposições coletivas e
individuais, colocando-o em
posição de importância no
campo da arte popular.
2009
Maria do Carmo
dos Reis Felício 18/07/1928
Medicina
popular -
lambedor
Alto Santo
É conhecida por fazer
lambedor. O remédio
caseiro é feito com a
colaboração de sua irmã,
Dona Francisca. Usam
diversos tipos de plantas
cultivadas no quintal de
casa. Todos os dias colhem
plantas e raízes especiais
para o lambedor.
2009
169
Severino
Antônio da
Rocha
04/08/1925 Penitência Barbalha
Desde os dez anos de
idade, acompanhava o
grupo de penitentes do Sítio
Cabeceiras, conhecido por
ser o grupo do Mestre
Joaquim Mulato. Com a
morte do Mestre, Severino
passa a organizar o grupo
de penitentes, buscando
manter viva a tradição.
Morreu em outubro de
2013.
2009
2011/2012
Deoclécio
Soares Diniz 26/12/1936 Escultor Canindé
Conhecido como “Seu Bibi”,
“Mestre Bibi” ou “Bibi
Santeiro”, mestre Deoclécio
produz imagens sacras em
grandes dimensões. Seu
primeiro trabalho foi a
produção de uma estatueta
de Nossa Senhora do
Perpétuo Socorro.
2011/2013
Raimunda Lúcia
Lopes 31/05/1949 Rendeira Trairi
É conhecida como Dona
Raimundinha na localidade
de Timbaúba. Conheceu o
processo de produção
artesanal ao desenvolver
atividades de bordadeira e
costureira.
2011/2014
2013
José de Abreu
Brasil 19/03/1945 Arte circense Fortaleza
O Palhaço Pimenta iniciou
as atividades em circo por
volta de 1960, no Grande
Circo Uiara, como porteiro.
Daí, envolveu-se nas ações
de palco como trapezista,
depois palhaço, com o
nome de Coça-Coça.
2013
170
Josefa Pereira
de Araújo 15/09/1943 Artesanato Potengi
Dona Zefinha é
considerada a única artesã
no Estado a utilizar a
técnica tradicional para
tecer redes de dormir. Ela
confecciona as peças com
renda de bilros. Aprendeu
essa arte com a mãe, Dona
Helena, que também fazia
redes. Trabalha numa
almofada de mais de um
metro de comprimento,
manipulando 120 pares de
bilros de macaúba. Para
tecer uma rede de dormir,
necessita de 20 novelos de
linhas e cerca de 70 dias de
trabalho.
2013
2014-2015
Francisco Dias
de Oliveira 20/01/1942
Artesanato em
Flandres Potengi
Mestre Françuli é o
flandeiro mais conhecido de
Potengi. São diversas as
produções de seu acervo,
como chaminés, fornos,
pás, baldes, latas, tubos de
armazenar legumes,
candeeiros e funis. Já foi
tema de documentários,
que retratavam suas obras.
2014-
2015
Francisco Felipe
Marques 16/01/1922 Reisado
Juazeiro do
Norte
Natural do Crato, onde
começou nas brincadeiras
de reis, Mestre Tico, hoje,
atua no Crato e em
Juazeiro do Norte. Um dos
mais antigos mestres
atuantes, é dono de um
repertório imenso de
canções ligadas às
2014-
2015
171
tradições dos reisados
antigos.
Geraldo Ramos
Freire 13/08/1938 Artesão
Juazeiro do
Norte
Nascido em Juazeiro do
Norte, desde os 14 anos
trabalhava com seu pai,
que exercia a função de
ferreiro e fundidor. Com ele,
aprendeu a arte. Ajudou,
ainda, a reativar a antiga
fábrica de relógios
mecânicos dos salesianos.
2014-
2015
José Pinheiro
de Moraes 02/05/1935 Penitente Assaré
A vocação se manifestou
por volta de 1945, com a
morte de seu pai, também
penitente. Mestre Deca
assumiu a liderança do
Grupo da Irmandade de
Nossa Senhora como
decurião.
2014-
2015
Maria de
Lourdes da
Conceição
Alves (Cacique
Pena)
25/03/1945 Cultura
indígena Aquiraz
A Cacique Pequena
dedicou a vida ao
movimento de resistência
dos povos indígenas
cearenses. Seu nome
indígena é Tigresa, mas é
comumente conhecida
como Pequena. Rompeu
costumes presentes nos
índios cearenses e se
tornou a primeira mulher na
função de cacique.
2014-
2015
Maria Deusa e
Silva Almeida 08/03/1926 Lapinha Assaré
Devota religiosa, Dona
Deusa começou como
catequista e tornou-se
diretora da Paróquia de
Nossa Senhora das Dores
2014-
2015
172
de Assaré, durante 50
anos. Foi protagonista do
ciclo natalino de Assaré,
produzindo e dirigindo a
Lapinha.
Maria José
Costa Carvalho 14/10/1939
Tradições
juninas e
Festejo do
ciclo junino
Caucaia
Dona Mazé da Quadrilha é
conhecida pelo trabalho de
cultivo e manutenção das
tradições juninas no
formato mais legítimo, fiel
às origens desta tradição
no Estado. Ela é integrante
da Federação das
Quadrilhas Juninas do
Ceará (Fequajuce) e
também filiada à União
Junina.
2014-
2015
Maria Quirino
da Silva 07/03/1939 Cerâmica Cascavel
Nasceu no povoado de
Moita Redonda, onde, há
várias gerações, as
pessoas trabalham com
cerâmica. Foi lá onde Dona
Tarina aprendeu a arte na
qual começou a trabalhar
desde os oito anos, ensino
passado de mãe para filha.
Trabalha o barro usando
técnicas ancestrais em um
processo completamente
artesanal.
2014-
2015
Pedro Coelho
da Silva 12/04/1943
Vaqueiro
aboiador e
poeta
Acopiara
É poeta nato e vaqueiro
aboiador. Ao longo dos
seus mais de 50 anos de
profissão, Mestre Pedro
Coelho teve sua história e
trabalhos publicados,
apresentados e divulgados
em rádio e TV.
2014-
2015
173
Fonte: Elaboração da autora a partir das informações dos 'Tesouros Vivos da cultura' catalogados no
<http://www.anuariodoceara.com.br/mestres-da-cultura-do-ceara> Acessado em 30 de Novembro de
2016
175
ANEXO A - Lista de tipologias de artesanato da CEART
COORDENADORIA DO ARTESANATO E ECONOMIA SOLIDÁRIA
Programa de Desenvolvimento do Artesanato do Estado do Ceará
Nº ORD. TIPOLOGIA TÉCNICA
01 AREIA COLORIDA COMPOSIÇÃO DE IMAGEM
02 ARGILA
LUTHERIA / MODELAGEM / MOSAICO /
OLARIA / OLARIA VIDRADA / PINTURA /
PORCELANA / TORNEAMENTO
VITRIFICAÇÃO
03 ALIMENTOS
E BEBIDAS
COZIMENTO APURADO / DECANTAÇÃO /
DESTILAÇÃO / FORNADO / INFUSÃO /
PRODUÇÃO DE ALIMENTOS TÍPICOS /
PRODUÇÃO DE BEBIDAS DESTILADAS
PRODUÇÃO DE BEBIDAS FERMENTADAS
/ PRODUÇÃO DE DOCES
/ PRODUÇÃO DE LICORES / PUXADO /
SOVADO / TORRAGEM
04 CÊRA, MASSA,
GESSO E PARAFINA ESCULPIDO / MODELAGEM
05 CHIFRES E OSSOS,
DENTES E CASCOS
ESMERILHAMENTO / TORNEAMENTO
/ PIROGRAVURA
06
CONCHAS E
ESCAMAS DE PEIXE
ESMERILHAMENTO / MOSAICO
07
COURO, PELES, PENAS,
CASCAS DE OVOS E CRINA
DE CAVALO
COMPOSIÇÃO EM RETALHO /
ESMERILHAMENTO /
PIROGRAVURA / SAPATARIA
/ SELARIA
08 FIBRAS VEGETAIS COMPOSIÇÃO DE BONECOS (AS)
176
ARTESANAIS / CONFECÇÃO DE FLORES
ARTESANAIS / CROCHÊ / ENTALHAMENTO /
ESCULPIDO / LUTHERIA / MAMUCABA /
MOSAICO TRANÇADO
09 FIOS E TECIDOS
BORDADO À MÃO / BORDADO À MÁQUINA /
COMPOSIÇÃO DE BONECOS (AS)
ARTESANAIS / COMPOSIÇÃO EM RETALHOS
/ CROCHÊ / FILÉ / FUXICO / LABIRINTO /
MAMUCABA / RENDA DE BILRO / RENDA
RENASCENÇA / RICHELIEU /
/ TAPEÇARIA / TECELAGEM
/ TRANÇADO / TRICÔ
177
Fonte: CEART – Juazeiro do Norte / trabalho de campo – 2014.
Nº ORD. TIPOLOGIA TÉCNICA
10 MADEIRA
CARPINTARIA / ENTALHAMENTO ESCULPIDO / LUTHERIA / MOSAICO /
TORNEAMENTO / MARCHETARIA / MARCENARIA / PIROGRAVURA
/ XILOGRAVURA
11 MATERIAIS SINTÉTICOS
BOLEADO / ENTALHAMENTO / ESCULPIDO /
LUTHERIA / MOSAICO / PINTURA /
SERIGRAFIA
TRANÇADO / ESTAMPARIA
12
METAIS
ARMARIA DECORATIVA / BIJUTERIA / CUTELARIA / FERRARIA / GRAVAÇÃO / LUTHERIA / LATOARIA / OURIVESARIA / PINTURA / SERRALHERIA / TORÇÃO /
TRANÇADO
13 PAPEL CARTONAGEM / MODELAGEM / MOSAICO /
LITERATURA DE CORDEL / TRANÇADO / XILOGRAVURA
14 PEDRAS CANTARIA / ESCULPIDO / LAPIDAÇÃO
/ MOSAICO
15
SEMENTES, CASCAS,
RAIZES, FLORES E FOLHAS SECAS
BIJUTERIA / ENTALHAMENTO / ESCULPIDO / ESMERILHAMENTO
16
VIDRO
AZULEJARIA / VIDRADO / VITRIFICAÇÃO / JATEAMENTO / MODELAGEM /
MOSAICO