universidade estadual do cearÁ centro de ...5 campo, pedaladas e banhos de mar, não cabem no papel...

179
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA DOUTORADO EM GEOGRAFIA PRISCILA DE OLIVEIRA ROMCY A CONTRIBUIÇÃO DA ESTRUTURA DE SENTIMENTO DOS ARTESÃOS DO COURO PARA O CARIRI CEARENSE FORTALEZA - CEARÁ 2018

Upload: others

Post on 25-Feb-2020

1 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

0

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ

CENTRO DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA

DOUTORADO EM GEOGRAFIA

PRISCILA DE OLIVEIRA ROMCY

A CONTRIBUIÇÃO DA ESTRUTURA DE SENTIMENTO DOS ARTESÃOS DO

COURO PARA O CARIRI CEARENSE

FORTALEZA - CEARÁ

2018

1

PRISCILA DE OLIVEIRA ROMCY

A CONTRIBUIÇÃO DA ESTRUTURA DE SENTIMENTO DOS ARTESÃOS DO

COURO PARA O CARIRI CEARENSE

Tese apresentada ao Curso de Doutorado em Geografia do Centro de Ciências e Tecnologia da Universidade Estadual do Ceará, como requisito parcial à obtenção do título de doutor em Geografia. Área de concentração: Análise geoambiental e ordenação do território nas regiões semiáridas e litorâneas. Orientadora: Profa. Dra. Denise de Souza Elias

FORTALEZA – CEARÁ

2018

2

3

4

AGRADECIMENTOS

Primeiramente agradeço a Deus, pela saúde concedida e pela oportunidade de viver

essa experiência tão enriquecedora.

À Denise Elias pela seriedade profissional. Desde as aulas de geografia agrária na

graduação com as devidas resenhas e as tabulações de dados na iniciação científica,

o que me parecia no momento chato, mostrou-se ao longo do caminho muito

importante à minha formação. Não só pela atividade realizada, mas pela fomentação

da disciplina, conhecimento e capacidade de análise. A exemplo dessas atividades,

como aprendi, e só depois reconheci a importância de cada exercício para minha

formação. Não obstante aos degraus do aprimoramento profissional vivido junto à

professora, agradeço à paciência e confiança da mesma durante 1/3 da minha vida,

me doando seus tempo e conhecimento. Meu aprimoramento é fruto dessa dedicação.

Muito Grata!

Agradeço ao meu amigo e esposo Rodrigo José, companheiro de todos os segundos,

presente em todas as intensas decisões da vida. Muito feliz pelo amor, humor e

companheirismo, como pelas reflexões e ensinamentos vividos, cultivados e

compartilhados juntos.

À minha mãe, Maria Auxiliadora, pelo sua presença e apoio incondicional, da esfera

emocional a material; pela força concedida nos momentos de fragilidade (pela

compreensão às minhas ausências, pelos braços abertos aos inúmeros momentos de

choro).

Aos meus irmãos, Thamires e Nathanael, agradeço pelos corações fraternos, que me

acompanharam nessa jornada e nas distâncias percorridas nesses anos, se mantendo

sempre próximos com suas compreensões, sorrisos e tranquilidade. À Thamires

agradeço especialmente pela disposição e coragem em dirigir na rodovia pela primeira

vez e atravessar o Ceará comigo junto com Adrielle e Jucier. A vocês agradeço por

realizarem comigo o trabalho de campo junto aos curtumes no Ceará e em

Pernambuco. Sem vocês esse campo não teria acontecido.

A toda minha família pela torcida, apoio e carinho nessa caminhada.

Aos amigos, que como ondas no mar sempre estiveram presentes nesses cinco anos

de trajetória. Mesmo com as distâncias territoriais em diferentes escalas, cada amigo

reaparece como uma onda de ânimo, sendo cada qual um momento importante para

que o equilíbrio da jornada se mantivesse em prumo. Dentre encontros, trabalho de

5

campo, pedaladas e banhos de mar, não cabem no papel todos vocês, portanto,

registro tudo nas lembranças do coração.

A todos os meus alunos e ex-alunos. Se o tempo dedicado à tese foi menor em função

do exercício de professora (URCA/CE, UESPI/PI, IFAL/AL), maior foi a sensibilidade

adquirida junto aos estudantes, pois estes me proporcionaram muito aprendizado

pelas vivências do Sertão e sua riqueza.

Agradeço sinceramente aos artesãos do couro pelo amor que dedicam à atividade,

pelos ensinamentos transmitidos a partir de suas experiências de vida, enquanto uma

aprendiz da vossa realidade sinto-me honrada em partilhar de suas vivências e

histórias.

A Antônio José Bezerra (Pajé), pela ajuda incomensurável junto aos trabalhos de

campo com os artesãos e com os registros realizados.

A Diego Salvador (Baiano), pela imensa paciência e apoio junto aos mapas e

cartogramas confeccionados, muito obrigada!!

Agradeço por fim à banca de qualificação (Prof.ª Doralice Sátiro Maia e prof. Jorn

Seemann) e à banca examinadora da tese (Prof.ª Doralice Sátyro, prof. Levi Furtado,

Prof.ª Maria Soares, Prof.ª Lúcia Helena de Brito) pela prestimosa contribuição para

com esta pesquisa.

6

RESUMO

A presente tese busca evidenciar a cultura como um traço importante da região do

Cariri cearense. Para tanto, acreditamos que os artesãos do couro são sujeitos que,

no presente, proporcionam uma estrutura de sentimento a esta região, amalgamando

heranças do passado que se perpetuam nos dias atuais. A partir da perspectiva da

geografia cultural materialista pautada em Raymond Williams, compreendemos os

artesãos do couro e sua obra, o artesanato, a partir das experiências formativas do

saber fazer artesão de modo geracional no Cariri cearense. Realizamos a pesquisa

com base nos procedimentos metodológicos: observação simples, observação

sistemática, trabalhos de campo e entrevistas. Estas foram essenciais para captar as

informações provenientes desses sujeitos com base em suas narrativas, e que a partir

do procedimento de categorização pudemos tabular para análise e interpretação das

informações. Dentre tantos critérios de regionalizar o Cariri cearense, buscamos

àqueles pertinentes aos sujeitos que construíram a história do sertão, com suas mãos,

e contribuíram culturalmente com um sentido vivido e histórico para a mesma. A

materialidade das experiências sociais e simbólicas advindas dos artesãos em couro

vieram da formação histórica do Cariri cearense, e não obstante o seu passado, ainda

permeiam culturalmente esta região enquanto traço identitário.

Palavras-chave: Artesãos do couro. Cariri cearense. Estrutura de Sentimento.

7

ABSTRACT

This thesis seeks to highlight culture as an important prominent feature of the Cariri

region in Ceará. For this purpose, we believe that the leather craftsmen are subjects

that, at present, provide a feeling structure by this region, blending past legacies that

perpetuate themselves in current days. Starting from the cultural geography

perspective materialistic based on Raymond Williams, we understand that the leather

craftsmen and his work, crafts, from the formative knowing how experiences to make

craftsmen in general mode in Cariri cearense region. We perform the research based

on methodological procedures: simple observation, systematic observation, field works

and interviews. These were essential to capture the information from these subjects

based on their narratives, and that from the categorization procedure we tabulate

information to analysis and interpretation. Among many standards to regionalize the

Cariri Ceara, we seek those pertinent to the subject who constructed the countryside

history, with their hands, and contributed culturally with a path lived and history for

themselves. The social materiality and symbolic experiences stemming from the

leather craftsmen came from the Cariri Ceara historical formation, and despite your

past, still permeate culturally this region as a mark of identity.

Keywords: Leather craftsmen. Cariri Cearense. Feeling Structure

8

LISTA DE FIGURAS

Figura 1-

Figura 2 -

Figura 3 -

Figura 4-

Figura 5-

Figura 6-

Figura 7 -

Figura 8 -

Figura 9-

Figura 10 -

Figura 11-

Figura 12-

Figura 13-

Figura 14 -

Figura 15 -

Figura 16 -

Figura 17 -

Figura 18 -

Figura 19 -

Figura 20 -

Figura 21 -

Figura 22 -

Figura 23 –

Ceart Cariri ...............................................................................

Ceart Fortaleza .........................................................................

Peles para lavagem. Curtume modernizado em

Ouricuri/Pe. ...............................................................................

Fulão de lavagem/ Curtume modernizado de Fortaleza/CE .

Fulão de lavagem/Curtume modernizado de Ouricuri/PE ....

Fulão de lavagem em curtume artesanal de Várzea

Alegre/Ce. .................................................................................

Tanque para procedimento de caleiro. Curtume artesanal

em Várzea Alegre/Ce. ...............................................................

Ilustração de descarne do couro ............................................

Máquina 'divisora', utilizada nos curtumes mecanizados

para limpeza da pele ou retirada da raspa. ............................

Tanque de curtimento com casca de Angico no Curtume

de Várzea Alegre/Ce. ................................................................

Couro secando a sombra. Várzea Alegre/Ce .........................

Estiramento do couro. Distrito Carmelópoles /CE. ...............

Couro estirado no curtume de Ouricuri/Pe ............................

Sandália confeccionada a partir de molde centenário do

pai de Fernando .......................................................................

Sandálias confeccionadas por Sebastião. .............................

Vaqueiro com paletó de couro. ...............................................

Selas: modelo Sebastião ; modelo comum, selote. ..............

Chapéu dos Augustinhos em processo de confecção e

panela de grude. ......................................................................

Chapéus modelo Augustinhos. .............................................

Ferramentas utilizadas para confecção dos chapéus ..........

Fitilho de couro comumente substituído pelo tento .............

Artesão do couro e a botina de Carnal ..................................

Município de Cachoeirinha/Pe ................................................

Localização do município de Cachoeirinha/Pe. ...................

63

63

73

74

74

75

75

76

76

77

77

78

79

79

88

88

91

93

93

94

95

96

98

115

9

Figura 24 -

Figura 25-

Figura 26 -

Figura 27 -

Figura 28 -

Figura 29 -

Figura 30 -

Figura 31 -

Figura 32 -

Feira de Caruaru/ Pe. ..............................................................

Sandálias em Caruaru/Pe. .......................................................

Sandália ‘maria bonita’ em Caruaru/Pe. .................................

Print do site da marca O Mameluco .......................................

Desfile na Semana da moda de Piratininga 2005 com

sandálias de Sebastião. ...........................................................

Banco encomendado pelos irmãos Cabanas. .......................

Bolsas e carteiras de Sebastião .............................................

Sebastião e calçados da sua loja ...........................................

Sandália de Sebastião vendida pela exclusivamente pela

ROSA .........................................................................................

116

118

119

119

121

125

126

127

128

10

SUMÁRIO

1

2

2.1

2.2

2.3

3

3.1

3.2

3.2.1

4

4.1

4.2

4.2.1

4.2.2

4.2.3

5

5.1

5.2

5.3

5.3.1

INTRODUÇÃO.....................................................................................

A CIVILIZAÇÃO DO COURO EM CONTEXTO: ELEMENTOS

PARA A DINÂMICA REGIONAL........................................................

ECONOMIA PASTORIL.......................................................................

DESENVOLVIMENTO DA SOCIABILIDADE NO SERTÃO.............

A IMPORTÂNCIA DO CARIRI NA ECONOMIA PASTORIL:

CULTURA E EXPERIÊNCIA, UMA CONTRIBUIÇÃO PARA A

REGIÃO...............................................................................................

ESTUDOS CULTURAIS E GEOGRAFIA CULTURAL: A

CONTRIBUIÇÃO DO ARTESÃO ATRAVÉS DA CULTURA ...........

CULTURA E GEOGRAFIA CULTURAL.............................................

RECONHECIMENTO DO ESTADO E PROMOÇÃO DO

ARTESANATO....................................................................................

Ceart– Central de Artesanato do Ceará1..........................................

O ARTESÃO E SEU ARTESANATO: UMA CONSTRUÇÃO

COLETIVA...........................................................................................

OS COMPONENTES DA ESTRUTURA DE SENTIMENTO:

CURTUMES, FEIRAS E ARTESÃOS DO COURO.............................

ARTESÃOS DO COURO E MODALIDADE DAS SUAS OBRAS......

Artesãos de montaria .......................................................................

Artesãos do chapéu...........................................................................

Artesãos do calçado..........................................................................

ENTRE A OBRA E PRODUTO:..........................................................

O TRABALHO ARTESÃO, SUA OBRA E O IMPACTO DA

MODERNIZAÇÃO NA PRODUÇÃO E REPRODUÇÃO SOCIAL....

O PRODUTO DO CARIRI CEARENSE E O SEU ALCANCE ENTRE

ESCALAS............................................................................................

ARTESÃOS DO SÉCULO XXI: ESTRUTURA DE SENTIMENTO

PARA A CONFIGURAÇÃO DA REGIÃO............................................

Pensando a configuração regional..................................................

13

26

31

38

44

47

47

58

62

69

71

89

89

93

97

104

104

113

129

132

1 A partir das entrevistas realizadas em Fortaleza e Juazeiro do Norte, nos dias 05 e 15 de fevereiro de 2014, o foco

das ações da CEART foi exposto e detalhado nas entrevistas realizadas.

11

6

CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................

REFERÊNCIAS...................................................................................

APÊNDICES........................................................................................

APÊNDICE A - LISTA DE ENTIDADES DO ARTESANATO EM

COURO DA CEART PARA A REGIÃO DO CARIRI CEARENSE.....

APÊNDICE B - LISTA DOS TESOUROS VIVOS DA CULTURA POR

ANO DE NOMEAÇÃO, ATIVIDADE E MUNICÍPIO DE

ORIGEM..............................................................................................

ANEXOS..............................................................................................

ANEXO A - LISTA DE TIPOLOGIAS DE ARTESANATO DA CEART

ANEXO B – PROPAGANDA DE ‘PEGA DE BOI NO MATO’.............

141

144

149

150

151

173

174

177

12

1 INTRODUÇÃO

O trabalho a seguir, sobre o Cariri cearense, traz à luz o aspecto cultural

dos artesãos do couro enquanto elemento importante que confere um sentido para a

região em questão. Outros grupos históricos sociais poderiam ser escolhidos pra

compor essa representação de Cariri cearense, contudo, buscamos entender os

artesãos do couro e sua obra como uma das bases que sustentam o sentido de região

do Cariri cearense, tanto pelo seu artesanato quanto pela experiência histórica desse

grupo social com seus relatos e experiências.

O objetivo de nossa pesquisa consiste em analisar o artesanato em couro

na região do Cariri cearense para confirma-lo enquanto uma materialidade cultural,

mantenedora de uma ‘estrutura de sentimento’ (Williams 1979, 2011a, 2011b 2015)

que é reinterpretada para delimitar a referida região na realidade atual. Essa intenção

se consubstancia a partir da premissa de que os artesãos do couro e a relação que

eles têm com sua obra – o artesanato, criam uma estrutura de sentimento, pela

experiência social histórica e contemporânea. Essa estrutura de sentimento, com base

em suas experiências vividas, valores e identidade com a obra que produzem,

contribui com o sentido cultural da região Cariri cearense.

Tal experiência artesã transcende a obra individual de cada sujeito na

direção de pautar valores e costumes que marcaram e continuam marcando uma

região historicamente a partir das riquezas étnicas miscigenadas advindas dos índios

que habitavam o espaço que conhecemos como Cariri cearense, dos colonos e

também dos negros que lá trabalharam. A sociabilidade construída sobre a herança

colonial legou para a atualidade símbolos para com o modo de viver, produzindo assim

um traço cultural do Cariri cearense presente na região e que também se materializou

no artesanato em couro, símbolo da história nordestina sertaneja, e como lembrança

do passado, é o nosso mote para reconhecer a importância do artesão pelo seu valor

histórico e a estética da sua obra, especialmente nas sandálias em couro.

Logo, tendo por base assuntos como artesanato, formação social sertaneja e

cariri cearense, é central para nossa tese trabalhar os conceito de ‘região’ e ‘estrutura

de sentimento’ sob a perspectiva temática da cultura e geografia cultural.

Quando decidimos desvendar a materialidade cultural que o artesanato em

couro representa para o Cariri cearense, mostramos interesse em entender as

experiências de vida desses artesãos, em um processo que vai da singularidade à

13

representação dos componentes sociais coletivos. Desse modo, acreditamos que

‘estrutura de sentimento’ é o conceito adequado para compreendermos a relação

entre o sujeito e a realidade cultural (coletiva) construída pelos artesãos do couro na

região do Cariri cearense, justamente por apreender o processo histórico enquanto

expressão coletiva de convicções, ações e experiências de um grupo social que

marcam espaço e tempo, bem como permite também a incursão de uma observação

do tempo/espaço presente com suas características e transformações em relação ao

tempo/espaço passado. Logo, estrutura de sentimento e região são os conceitos

centrais da nossa pesquisa.

A Estrutura de sentimento é trabalhada por Raymond Williams (1979)

originalmente na literatura, visto essa ser uma forma de expressão da sociedade.

Para o autor “As estruturas de sentimento podem ser definidas como experiências

sociais em solução, distintas das outras formações semânticas e sociais que foram

precipitadas e existem de forma mais evidente e imediata” (Williams, 1979, p.136).

Nesse sentido, a concepção de experiências sociais em ‘solução’ significa afirmar que,

coletivamente, tais experiências, mesmo que presentes no cotidiano, ainda não

tomaram uma forma propriamente dita ou foram formalizadas socialmente. O autor

afirma que a hipótese tem relevância especial para a arte e literatura, mas nós

acreditamos que ela seja importante também para refletirmos os costumes e vivências

que dão sentido aos espaços.

Tencionado o debate no âmbito da região, pautado nos autores da

Geografia: Haesbaert (1999,2010), Paasi (1991, 2001), Cosgrove e Jackson (2010),

a nossa proposta na pesquisa está mais na compreensão da consciência pratica que

envolve a região Cariri cearense, a partir da vivência e experiência social legada e

presente através dos artesãos do couro. Essa consciência prática existe nos valores

e atitudes individuais dos artesãos que também se tornam coletivos, seja no presente,

como na configuração histórica dessa região. Como nos afirma Williams:

[...] ao descobrirmos a natureza de uma prática particular, bem como a natureza da relação entre um projeto individual e um modelo coletivo, descobrimos que estamos analisando, como duas formas de um mesmo processo, tanto a sua composição ativa quanto as condições dessa composição, e em ambas as direções essa é uma relação ativa complexa e em transformação. Isso significa, obviamente, que não temos um processo internamente construído do tipo que é indicado pelo caráter fixo de um objeto. Nós temos os princípios das relações das práticas dentro de uma organização vista como intencional, e temos as hipóteses disponíveis do dominante, do residual e do emergente. Mas o que estamos ativamente buscando é a prática

14

efetiva que foi alienada em um objeto e as verdadeiras condições dessa prática (WILLIAMS, 2011a, p. 67).

Ou seja, essa compreensão da relação entre a prática particular e coletiva

em processo, para nós, culmina na regionalização do Cariri cearense. Essa região

tem seus limites alterados segundo o critério escolhido (político, climático, econômico,

etc.). Entretanto, sua formação histórica que a particulariza no Ceará é comum para

os municípios que a compõe, bem como mantêm no presente relações econômicas e

políticas que a consolidaram enquanto região. Podemos perceber que, como atesta

Haesbaert: “Seria impossível assim, traçar um ‘retrato completo’ da região, uma vez

que os múltiplos sujeitos que a constroem produzem espaços muito pouco conectados

entre si” (HAESBAERT, 2010, p.83). Ou seja, a coerência interna da região se dá de

acordo com as variáveis que selecionamos para compreendê-la, e dentre os muitos

sujeitos que a formam, para o Cariri cearense, escolhemos àqueles que deram forma

a ela historicamente com as mãos – os artesãos do couro.

Contudo, a nossa contribuição para o entendimento da região Cariri

cearense é voltada para o sistema de representações desta, a partir da formação

histórica pastoril, na qual os artesãos do couro são os sujeitos que a modelaram e a

viveram, bem como ainda nos dias atuais, ainda vivem a cultura presente nessa

região, captada pelo conceito de ‘estrutura de sentimento’.

Entendemos como importante o aprofundamento no campo dos estudos da

geografia cultural, seja em âmbito nacional como internacional, e na nossa

empreitada, achamos de suma importância trazer à luz e fazer maior aprofundamento

sobre a geografia cultural materialista, esta, engajada politicamente e sob a

perspectiva teórica de Raymond Williams (1979,2011a, 2011b, 2015) e E.P.Thompson

(1998,2009), importantes referenciais para nosso trabalho, e em nossa opinião,

condizentes e esclarecedores para com a realidade que nos deparamos na região do

Cariri em relação aos artesãos do couro.

Essa perspectiva condiz com a proposta de Williams (1979) em

compreender a realidade, visto que o autor repreende a redução social a formas fixas

e considera como importante os processos formativos pelos quais passa o objeto.

Logo, a nós é fundamental a estrutura de sentimento existente pelas experiências

sociais em processo do trabalho artesão para compreender a sua real contribuição à

região do Cariri, visto esta existir tanto no sentido funcional como no sentido simbólico.

15

O sentido simbólico o qual abordamos é aquele construído historicamente,

e por isso, nos foi necessário um estudo para com os assuntos artesanato, formação

social sertaneja e Cariri cearense. Esses estudos nos direcionaram para além da

forma tomada pelo artesanato e pela região, visto que o enfoque para a compreensão

da realidade retratada esteve no processo formativo que os constituíram, nos

significados, práticas e valores presentes em cada fase particular da cultura

dominante e seu respectivo período histórico.

Para tanto, tendo em vista a importância do percurso metodológico para o

desenvolvimento da pesquisa, apresentamos aqui os nossos procedimentos para a

realização da mesma, os quais nos possibilitou reflexões tão importante a cerca do

nosso objetivo.

A nossa tese tem por base a pesquisa qualitativa, visto que o objetivo dessa

modalidade de pesquisa se relaciona com as “preocupações dos atores sociais tais

quais elas são vividas no cotidiano” (DESALUIRES, KERISIT, 2008, p.130). No que

tange a operacionalização da pesquisa, o primeiro momento desta foi realizado com

caráter exploratório, visto que esse perfil tem “o objetivo de proporcionar visão geral,

de tipo aproximativo, acerca de determinado fato” (GIL, 1999, p.43). Essa perspectiva

da pesquisa teve como instrumentos importantes a observação simples e a

observação sistemática para apreensão das informações em primeira mão.

A importância de captar as informações primárias da realidade se dá

porque “sem conhecimento baseado em experiência de primeira mão para corrigir

nossas representações, não só não sabemos para onde olhar à procura de material

interessante, como também não sabemos o que requer investigação e prova extensa”

(BECKER, 2007, p.36). Para tanto, a observação simples e a observação sistemática

foram instrumentos de captação das informações que nos possibilitou adquirir um

conhecimento real do que estivemos estudando, nos tornando menos suscetíveis a

pontos de vistas imaginativos.

Iniciamos no processo de observação um ano antes de adentrarmos ao

doutorado (2012), durando até 2013.1, quando do primeiro semestre de nosso curso.

Esse período possibilitou um contato inicial com os artesãos do couro, que culminou

em um período construtivo, visto que a partir da observação simples pudemos

investigar de maneira espontânea (GIL, 1999) o local de trabalho dos artesãos, seu

ritmo de trabalho, bem como serviu para nos aproximar desses sujeitos com

entrevistas informais.

16

Nesse primeiro período de um ano e meio (o mesmo em que moramos no

município do Crato/CE 2), não obstante às informações adquiridas relativas ao

trabalho dos artesãos e suas obras, realizamos também observações sistemáticas em

trabalhos de campo com fins de fomentar os registros iniciados. Nessa modalidade de

observação o pesquisador “sabe quais os aspectos da comunidade ou grupo que são

significativos para alcançar os objetivos pretendidos” (GIL, 1999, p.114). Ademais,

identificamos o local de trabalho desses sujeitos bem como o local de exposição de

seus artefatos, obtivemos informações relativa a sua maneira de trabalhar. Não

obstante a captação de informações junto aos artesãos, frequentamos alguns eventos

que ocorreram na região e tiveram relação com o artesanato 3.

A partir do objetivo da pesquisa e da experiência vivenciada no Cariri

cearense, mesmo que de maneira introdutória, nos inclinamos para a realização da

pesquisa bibliográfica e documental na intenção de encontrar produções literárias,

estudos e documentos que relatassem e informassem sobre a realidade referente ao

artesanato e aos artesãos do couro.

No que tange a pesquisa bibliográfica, procuramos livros, artigos

científicos, teses e dissertações, nas plataformas on line (scielo, revistas eletrônicas,

portal CAPES dentre outros) sobre a temática cultura e geografia cultural materialista.

Não obstante a estas temáticas, enfocamos também uma busca para com os

conceitos de Estrutura de sentimento e Região; bem como para com os assuntos

artesanato, formação social sertaneja e Cariri cearense.

Em relação à pesquisa documental, visitamos o acervo da Secretaria de

Cultura do Estado do Ceará, a Biblioteca Municipal do Crato, a Universidade Regional

do Cariri, a Universidade Federal do Ceará, a Universidade Estadual do Ceará e o

acervo do Instituto Histórico geográfico do Ceará, onde, neste último, é importante

ressaltar que pudemos encontrar artigos históricos muito importantes para a pesquisa,

como por exemplo a bibliografia de Thomaz Pompeu Sobrinho e publicações de

2 Nesse período nos mudamos de Fortaleza/CE (capital) para o Crato/Ce em decorrência da aprovação para lecionar

na Universidade Regional do Cariri (URCA), enquanto professora substituta no departamento de Geografia.

3 Feira Internacional de Artesanato e Decoração (FEINCARTES) realizada em Juazeiro do Norte no ano de 2012.

Durante a realização desta, pudemos observar que dentre os grupos organizados de artesãos, a Associação de

artesãos do couro é bem recente, com menos de três anos. Em entrevista com a presidente desta associação, na

ocasião do evento, ela reconhece que o trabalho em couro é marcante para a história da região e afirma da existência

de muitas famílias que ainda passam de geração em geração o ofício, mas que falta uma organização formal. Em

2013 é realizada a primeira feira de artesãos do Cariri, organizada pelo CEART com os artesãos credenciados.

17

Capistrano de Abreu sobre a ocupação do sertão brasileiro.

O processo de pesquisa bibliográfica iniciado em 2013 foi contínuo em

função da dinâmica e compreensão do objeto, pois este “se constrói

progressivamente, em ligação com o campo, a partir da interação dos dados coletados

com a análise que deles foi extraída, e não somente à luz da literatura do assunto”

(DESALUIRES, KERISIT, 2008, p.134), o que nos possibilitou formular coerências

teórico-práticas em consonância com os trabalhos de campo e coerentes com os

nossos objetivos.

Como apresentado, a pesquisa bibliográfica nos foi muito importante para

elucidar o conhecimento a que chegamos, entretanto, também concordamos que a

versão escrita dos fatos e seus arquivos muitas vezes desconhecem ou negligenciam

várias informações presentes na realidade, visto que:

As artes da escrita e as artes da criação e da representação são, em todo o seu leque, partes do processo cultural em todos os modos e setores diversos que estou tentando descrever. Elas contribuem para a cultura dominante efetiva e são uma dentre suas articulações centrais. Elas encarnam significados e valores residuais, nem todos eles incorporados embora muitos o sejam [...] (WILLIAMS, 2011a, p.62)

Nesse sentido, valorizamos a oralidade como um instrumento para a

captação de informações e análise da realidade, muitas vezes em complemento ou

contraponto ao que está ideologicamente representado nos registros (SAID, 2011).

Essa perspectiva é endossada por Cascudo (1968) quando este afirma que “a tradição

oral guarda as obras que não foram impressas e elas vivem perpetuamente no idioma

popular” (CASCUDO, 1968, p.96). Logo, vemos a riqueza da oralidade como uma

maneira de traduzir um modo de vida pela experiência cotidiana, de nos familiarizar

com as histórias não documentadas que fazem parte de um passado/presente

comum, que podemos nos aproximar para compreendê-la a partir dos trabalhos de

campo.

Ao valorizar a oralidade como estratégia de pesquisa, temos no relato de

vida (BERTAUX, 2005) um instrumento importante para aquisição de informações.

Com o relato de vida o sujeito conta um episódio de sua experiência, adotando uma

forma narrativa, e essa historia não é isolada dos fatos sociais, logo:

Ao relacionar numerosos depoimentos sobre a experiência vivida da mesma situação social, por exemplo, suas singularidades podem ser superadas para alcançar, através de uma construção progressiva, uma representação

18

sociológica dos componentes sociais (coletivos) da situação (BERTAUX,

2005, p.37) 4

Sabendo-se que a realidade existe enquanto um devir social, cremos como

importante expor a perspectiva dos artesãos pela sua narrativa, visto que “o conteúdo

narrado deve possibilitar a visão do singular, e a partir desta, o geral, presente no

social e histórico, que é apropriado pelo homem.” (FERNANDES,A; ARAUJO, C;

TEIXEIRA, C; 2011, p.107).

As entrevistas concedidas nos permitiu apreender o conjunto das opiniões

e representações sociais desse grupo, bem como captar as singularidades das falas,

procedimento metodológico convergente com a concepção de ‘consciência prática’ de

Williams (1979) quando o autor esclarece que: “A consciência prática é aquilo que

está sendo realmente vivido, e não apenas aquilo que acreditamos estar sendo vivido”

(p.133). O exercício desse procedimento metodológico nos possibilitou sistematizar

informações importantes pertinentes ao trabalho artesão, foco da nossa pesquisa.

Dessa forma, através das narrativas dos sujeitos, conseguimos descobrir a

dimensão social a partir da vivência cotidiana deles, e então, juntamente com a análise

histórica, nos foi possível, em nossa pesquisa, analisar a contribuição cultural dada à

região pelos artesãos do couro.

Nos trabalhos de campo, as entrevistas foram instrumentos

importantíssimos para a apreensão das informações. No diálogo inicial com os

artesãos nós apresentamos a eles em sua residência/local de trabalho e expusemos

que estávamos fazendo uma pesquisa, sendo esta em fase inicial e que tinha por

objetivo mostrar a importância do trabalho do artesão do couro para a região do Cariri.

Realizamos sete trabalhos de campo, respectivamente nos meses de

fevereiro, junho, novembro e dezembro de 2014, bem como setembro de 2015 e em

fevereiro e junho de 2016. O período de duração de cada atividade de campo variou

entre quatro dias a quinze dias e tiveram como instrumentos: entrevistas abertas a

partir de pergunta geradora e entrevistas semiestruturadas, gravação em vídeo e

áudio das entrevistas concedidas e registro fotográfico, além das anotações nos

4 Al relacionar numerosos testemonios sobre la experiência vivida de una misma situación social por ejemplo, se

podrán superar sus singularidades para lograr, mediante uma construcción progressiva, uma representación

sociológica de los componentes sociales (colectivos) de la situación.

19

diários de campo.

Essa organização dos trabalhos de campo em diferentes momentos nos

possibilitou um contato rico de primeira mão com os artesãos, no qual a partir da

pergunta geradora – como ele vê a importância do próprio trabalho - eles nos

informaram abertamente sobre seus próprios valores, motivações e particularidades.

O conjunto da riqueza de informações assinaladas pelos próprios sujeitos nos

possibilitou adentrar em seu mundo, nos norteando sobre quais temáticas deveríamos

aprofundar para o desenvolvimento da pesquisa em trabalhos de campo posteriores

com as entrevistas semiestruturadas.

Para tanto, com base nas informações iniciais, bem como cientes do nosso

objetivo, elaboramos questões norteadoras que direcionaram as entrevistas

semiestruturadas com os artesãos. É importante ressaltar que na medida em que

realizávamos as entrevistas, as questões norteadoras que nos tencionavam para o

aprofundamento do conhecimento sobre os artesãos eram:

Quem são os artesãos do couro?

Como eles se percebem nessa construção histórica da identidade regional?

Como vêm o seu legado?

O que acham da profissão?

Qual a projeção que tem de futuro?

Quais as relações que mantêm entre si?

Como se organizam para manter a produção?

Como precificam os produtos?

Como se reproduzem enquanto artesãos no mundo moderno?

Quais recursos utilizam para comunicação em relação à compra de matéria prima?

O que eles pensam das mudanças no setor?

Qual a opinião deles sobre a intervenção do estado ou falta dessa intervenção?

Como o artesanato é agenciado pelo estado e pelos setores privados?

Qual o alcance de mercado deste artesanato em couro?

Quais os traços comuns entre os artesãos do couro?

O que os artesãos valorizam em relação a sua atividade?

Para melhor expor o caminhar da nossa pesquisa, nos valemos da

apresentação dos trabalhos de campo em sua ordem cronológica para enfatizarmos

as informações adquiridas de cada período. Em síntese, em 2014 focamos as

entrevistas nos artesãos do couro, em 2015, nos curtumes e em 2016 nos circuitos de

20

comercialização dos artefatos em ouro, bem como retomamos as entrevistas com os

artesãos.

O trabalho de campo realizado em fevereiro de 2014 foi uma grande

descoberta, partimos inicialmente para entrevistar os representantes de duas

instituições quais sejam, a Ceart Cariri situado em Juazeiro do Norte e a Associação

dos Artesãos do Crato5 na intenção de captar as informações referentes aos artesãos

do couro. Essa nossa intenção foi muito pouco sanada nessa ocasião, pois o cadastro

dessa modalidade de artesãos era parco de informações nos dois lugares; o primeiro

tinha um cadastro com poucos artesãos formalizados e o segundo, por congregar uma

variedade de artesanato representativo do município, também tinha poucos artesãos

do couro associados. Contudo, a interação com esses agentes foi proveitosa, visto

que nos utilizando das entrevistas abertas, pudemos abarcar as informações no que

se refere à origem e funcionalidade dessas instituições, bem como a maneira que elas

operam junto aos artesãos, e o porquê da localização de onde estão.

Logo, ao longo dos meses de fevereiro, junho, novembro e dezembro de

2014, a partir de uma questão geradora (“Como você vê a importância do seu trabalho

de artesão”?) realizamos primeiramente as entrevistas abertas com os artesãos que

conhecemos e retornamos em outro momento para aprofundar as informações a partir

da elaboração de entrevistas semiestruturadas.

Os primeiros artesãos que entrevistamos estavam presentes no cadastro

da associação de artesãos do Crato (senhor Estevão) e no cadastro da Ceart (Damião

e Cosme). Depois de encontrá-los, eles passaram o contato de outros artesãos, e na

medida em que conhecemos cada qual, eles apresentavam mais artesãos.

A listagem dos artesãos entrevistados pode ser observada no quadro

abaixo, o qual organizamos de acordo com o município do entrevistado:

5 No Crato existe uma ‘Associação dos artesãos do Crato’, a qual representa uma variedade de tipologias artesanais,

bem como tem sua sede/loja no centro deste município.

21

Quadro 1 - Artesãos entrevistados, segundo os municípios da região do Cariri

cearense.

Municípios Entrevistados

Campos Sales - Lucas

- João e Thiago (irmãos)

Assaré - Matheus

- Estácio

- Timóteo

- Paulo

Crato - Fernando

- Cosme

- Damião

- Estevão

Várzea Alegre - Tito

- Barnabé

- Raimundo Nonato

Nova Olinda - Sebastião

Santana do

Cariri

- Francisco

- Marcos

Barbalha Vicente

Filipe

Fonte: elaborado pela autora

O início do diálogo com o público artesão se deu em formato de entrevista,

a partir de uma pergunta geradora feita ao interlocutor, de modo que ele respondesse

a partir dos elementos que considera importante ressaltar, pois “as associações de

ideias têm necessariamente sentido para o pesquisado e um sentido social a descobrir

pelo pesquisador” (BEAUD, p. 136, 2007). Com a fala do artesão, aos poucos

inferíamos questões, a partir das considerações dele, que interessaram a nós de

modo a fomentar o diálogo. Nesse sentido, estabelecemos o que Bertaux (2005)

aponta como ‘pacto de entrevista’ que acontece quando um sujeito é informado da

proposta e intenção do pesquisador e sua pesquisa, e, por conseguinte aceita a

proposta. Desse modo, “Este pacto tiene el valor de filtro, ya que orienta y centra

previamente la entrevista.” (p.39).

As entrevistas foram gravadas, filmadas e transcritas. Essa escolha,

influenciada pela perspectiva de BEAUD (2007) que “a gravação é, então, mais que

uma simples razão de conforto, pois condiciona a qualidade de sua escuta. Só a

gravação permitir-lhe-á captar na íntegra e todas as suas dimensões a palavra do

22

entrevistado” (BEAUD, 2007, p. 137). Esse recurso metodológico foi adotado por nós,

tendo em vista a importância da gravação e o seu conteúdo para a consulta durante

o período de toda a pesquisa. Essa dimensão é importante, pois o entrevistado narra

os fatos que considera importante a partir de sua vivência e perspectiva de vida. Nas

palavras de BEAUD (op.cit): “É essa relação de confiança que terá estabelecido o que

levará à coleta de um material suficientemente rico para ser interpretado” (p.137).

Os sujeitos artesãos expuseram uma visão do singular em sua realidade, e

nós refletimos sobre as experiências vividas e socializadas por eles. Entendemos que

a lógica de exposição e encadeamento dessas histórias se constituíram enquanto

narrativas dos sujeitos, sendo estas, ferramenta metodológica importante, que em

outras palavras:

A narrativa, utilizada como técnica de produção de dados, possibilita a superação da ênfase na objetividade, ao considerar o sujeito como produtor de um discurso que o representa e que o situa em seu contexto histórico e social, permitindo, ainda, o seu pensar crítico sobre si e sobre a realidade na qual está imerso. (FERNANDES, ARAUJO, TEIXEIRA, 2011, p.104).

Pelas suas experiências vividas, tivemos uma possibilidade de análise de

material coletivo que nos diz para além das individualidades de cada artesão. Como

atesta Bertaux (2005)

El proyecto mismo de vida, tomado em um momento determinado de la

existência, no se há elaborado in abstracto dentro de una consciência aislada,

sino que se há habado, dialogado, construído e influído o negociado en el

transcurso de la vida em grupo (BERTAUX, 2005, p.42).

A interpretação e análise das narrativas se deu pelo procedimento de

Categorização (GOMES, 2012). Na busca de compreender quais elementos eram

comuns ou particulares desse grupo social, a partir desse procedimento, observamos

as repetições temáticas nas falas dos diversos artesãos, de modo a encontrar

representações sociais que nos possibilitaram uma estrutura de análise.

A categorização foi um procedimento aplicado na “tentativa de se caminhar

na objetivação durante uma análise (...), cada categoria deve ser obtida a partir dos

mesmos princípios utilizados para toda a categorização” (Gomes, 2012, p.88). Assim,

como ela deve ser adaptada ao conteúdo e ao objetivo que se quer chegar, buscamos

os padrões de informações nas transcrições das entrevistas (primeiramente dentre as

entrevistas abertas, e posteriormente nas entrevistas semiestruturadas), que culminou

23

na construção de um quadro informativo denominado ‘Núcleos de sentido para a

interpretação dos conteúdos das entrevistas’.

Os núcleos de sentido nos ajudaram a organizar mais objetivamente as

informações importantes ao objetivo da pesquisa e sobre a conjuntura da vida artesã

e suas particularidades. A partir disso, conseguimos perceber os artesãos segundo

suas especialidades (montaria, chapéu e calçados), e, pela análise do conteúdo

objetivado na categorização, realizamos a inferência do conteúdo, ao articularmos “a

superfície do material a ser analisado com os fatores que determinam suas

características” (GOMES, 2012, p.89).

O estudo desse material visou expor as representações sociais dos

artesãos a partir da interpretação das falas e dos pontos em comum presente nas

narrativas, proporcionando uma análise do conteúdo de modo a elucidar as

particularidades e generalidades do grupo social artesãos em couro do Cariri

cearense. Logo, a compreensão a partir das narrativas sobre as experiências dos

artesãos foi a base para consubstanciarmos a estrutura de sentimento deles na região

do Cariri cearense.

Os trabalhos de campo realizados em 2015 e 2016 foram motivados pelas

informações apuradas junto às entrevistas feitas em 2014. A partir do contexto da vida

artesã, focamos em 2015 na descoberta da dinâmica do funcionamento dos curtumes

– fornecedores da matéria-prima couro curtido – e em 2016 nos voltamos para a

expressão do artesanato caririense junto aos centros regionais (Cachoeirinha/PE e

Caruaru/PE) e demais canais de circulação de produtos como sandálias, chapéus e

bolsas como em aeroportos e centros turísticos.

Não obstante aos canais de fornecimento da matéria-prima e escoamento

da produção do artesanato em couro, voltamos em 2016 ao Cariri na intenção de

fortalecer as informações referentes às características da produção manufatureira,

familiar e individual do artesanato em couro. Buscamos aprofundar e entender como

a manutenção artesanal dos artefatos em couro se implementaram juntamente às

transformações advindas com a modernização de utensílios usados pelos artesãos, e

modificação da demanda desses artefatos.

As entrevistas realizadas e gravadas, bem como os cadernos de campo

foram os nossos materiais de consulta mais ricos. Para a organização das

informações adquiridas em trabalho de campo realizamos o que Gomes (2012) chama

de ‘método de interpretação dos sentidos’, no qual, a partir da interpretação dos

24

dados, buscamos uma lógica interna dos fatos, relatos e observações. Para tanto,

fizemos transcrições das entrevistas realizadas, organizando-as por data e artesão.

Essa metodologia utilizada nos permitiu discorrer sobre esses sujeitos

pelas informações obtidas diretamente com os próprios, bem como pelas informações

relativas a eles a partir de instituições como Ceart, SEBRAE. A busca por essas

informações foi surpreendente e enriquecedora, visto que cada artesão se dispunha

a dialogar com informalidade, afeição e uma xícara de café. As manhãs e as tardes

pareciam não ter horas suficientes para caber tanta informação e lucidez, e a partir

dessa experiência tão humana, nomeamos os artesãos em respeito a particularidade

de cada qual, contudo tendo em o momento presente formal, o fizemos com

codinomes, de modo a preservar a sua identidade original.

O percurso da pesquisa a e riqueza de informações advindas da exploração

do mundo do artesanato em couro nos proporcionou a exposição da tese em quatro

capítulos.

No primeiro capítulo iniciamos com a exposição da relação entre artesãos

do couro, região e estrutura de sentimento. Discorremos sobre os critérios de

regionalizar o Cariri cearense ao passo que afirmamos nossa proposta enquanto

ponto de partida para compreender a contribuição dos artesãos do couro a essa

região. Para tanto apresentamos a economia pastoril e como o seu desenvolvimento

histórico, originado na ocupação dos ‘catingaes’ pelos colonos, impactou a formação

social do sertão nordestino bem como a particularidade do Cariri cearense enquanto

região particular consolidada perante o sertão. Tal esclarecimento histórico, seja na

perspectiva econômica, como na herança da sociabilidade sertaneja se entrelaçou

com a reflexão teórica de região amparada em Paasi (1991, 2001) para refletirmos a

região de nossa pesquisa. É nesse capítulo que temos uma aproximação com o

legado étnico e social que conduziu os princípios de sociabilidade presentes no sertão

e no Cariri.

No capítulo segundo, justificamos e expusemos a abordagem da geografia

cultural, principalmente a partir da perspectiva de Raymond Williams, para apreender

o legado dos artesãos em couro. Para tanto examinamos a fundamentação teórica;

experiência, cultura e estrutura de sentimento. Ademais, refletimos sobre o panorama

da geografia cultural e a relação desta com Williams associado aos estudos regionais.

Não obstante à explanação do nosso direcionamento teórico em relação aos artesãos

e ao artesanato, expusemos também a realidade material de como o artesanato tem

25

sido reconhecido e promovido no estado do Ceará, problematizando os elementos

concernentes à estrutura de sentimento dos artesãos em couro.

No capítulo terceiro o dilema obra/produto permeia todo o capítulo. Essa

aparente contradição é o caráter duplo do artefato em couro: como obra realizada pelo

artesão e como mercadoria para o mercado. A maneira como a modernização e o

mercado abrangem o artesão no século XXI visibiliza seu produto em diferentes

escalas ao passo que a estrutura de sentimento se mantém tencionando culturalmente

a região a partir das bases do passado pastoril. Neste capítulo, ápice da

problematização, apresentamos e debatemos como as mudanças advindas da

modernidade repercutem na reprodução social proporcionando mudanças relativas ao

trabalho artesão e como tais influências são ressignificadas por esses sujeitos.

No último capítulo fazemos uma caracterização do trabalho artesão e a

maneira como tal trabalho cultiva características particulares de um modo de vida

presente na região, advindas de outra temporalidade e que ainda se encontram

presente na atualidade. Expusemos a partir da expressão coletiva do saber-fazer que

historicamente formou-se no Cariri cearense como a cultura é retroalimentada na

região e trouxemos uma análise dos curtumes e feiras enquanto elementos da

estrutura de sentimento constituído e apresentado a nós a partir das lembranças

desses artesãos. Este capítulo busca no cotidiano artesão e nas suas narrativas o

conteúdo que entendemos enquanto materialidade cultural da estrutura de

sentimento, debatida ao longo da pesquisa.

26

2 A CIVILIZAÇÃO DO COURO EM CONTEXTO: ELEMENTOS PARA A

DINÂMICA REGIONAL

Para pensar a região do Cariri cearense é importante reconhecer os

discursos regionais existentes predominantes que balizam a produção bibliográfica

histórica e contemporânea, bem como é importante identificar os critérios de

regionalização que elas abrangem. Contudo, nos aportamos em Haesbaert (2010)

para ressaltar que o conceito Região, como todo conceito não é só abstração,

representação, mas pretende “traduzir”, bem como reproduzir realidades. Pois é na

intenção de reconhecer e valorizar essa realidade que propusemos como hipótese a

afirmação de que os artesãos do couro e a relação que eles têm com sua obra – o

artesanato, criam uma estrutura de sentimento, pela experiência social histórica e

contemporânea. Essa estrutura de sentimento, com base em suas experiências

vividas, valores e identidade com a obra que produzem, contribui com o sentido

cultural da região Cariri cearense.

A nossa preocupação está menos na delimitação da região Cariri cearense

e mais na compreensão da consciência pratica que a envolve a partir da vivência e

experiência social legada e presente através dos artesãos do couro. Essa perspectiva

condiz com a proposta de Williams (1979) em compreender a realidade, visto que o

autor repreende a redução social à formas fixas e considera como importante os

processos formativos pelos quais passa o objeto. Logo, a nós é fundamental a

apreensão da estrutura de sentimento existente pelas experiências sociais em

processo do trabalho artesão para compreender a sua real contribuição à região do

Cariri, visto esta ser tanto funcional como simbólica.

Pensando o recorte da nossa pesquisa, qual seja a região do Cariri

cearense, é necessário constatar que tal delimitação, segundo o Instituto Brasileiro de

Geografia e Estatística (IBGE), abrange municípios do Ceará e da Paraíba de maneira

não contígua. A partir da definição do IBGE, o Cariri Cearense corresponde a oito

municípios, enquanto o Cariri Paraibano totaliza 29 municípios6, fato que não nos

6 Municípios do Cariri Cearense: Barbalha, Crato, Jardim, Juazeiro do Norte, Missão Velha, Nova Olinda, Porteiras

e Santana do Cariri. Municípios do Cariri Paraibano: Alcantil, Barra de Santana, Barra de São Miguel, Boqueirão,

Cabaceiras, Caraúbas, Caturité, Gurjão, Riacho de Santo Antônio, Santo André, São Domingos do Cariri, São João

do Cariri (porção oriental) / Amparo, Assunção, Camalaú, Congo, Coxixola, Livramento, Monteiro, Ouro Velho,

Parari, Prata, São João do Tigre, São José dos Cordeiros, São Sebastião do Umbuzeiro, Serra Branca, Sumé,

Taperoá e Zabelê (porção ocidental).

27

possibilita pensar que a configuração do Cariri seja necessariamente uma questão de

contiguidade ou de delimitação física de área pela característica natural, pois através

dos aspectos físicos e naturais quase não há similitude entre essas microrregiões,

ademais o distanciamento entre ambas. Não obstantes às tentativas históricas de

delimitar o Cariri Cearense, temos ainda, mais contemporaneamente, as divergentes

configurações propostas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),

Instituto de pesquisa e estratégia econômica do Ceará (IPECE) e Banco do Nordeste;

bem como a problematização no que concerne a Região Metropolitana do Cariri

(RMC) por sansão de lei estadual no ano de 2009.

Contudo, qualquer das tentativas supracitadas de delimitar o Cariri

cearense considera prioritariamente critérios econômicos, e compreendemos que este

critério não é o mais importante para a definição regional em pauta. Por isso,

entendemos que uma delimitação que se aproxime do que queremos mostrar como

região do Cariri deve aludir a aspectos históricos e identitários. Nessa perspectiva,

como ponto de partida para o presente trabalho, nos valemos de duas referências ao

considerarmos os condicionantes históricos de ocupação.

Para tanto, nos aproximamos da argumentação de Menezes (2005) para a

delimitação de região do Cariri, tendo em vista a seleção dos municípios da sub-bacia

sedimentar do Araripe; já que as características físicas comuns à região como balanço

hídrico, perfil do solo e fertilidade influenciaram a ocupação histórica dessa localidade

desde a população indígena. Assim, na delimitação de Menezes (op cit.), os

municípios da região do Cariri Cearense são: Crato, Juazeiro do Norte, Barbalha,

Missão Velha, Santana do Cariri, Nova Olinda, Assaré, Jardim, Milagres, Brejo Santo,

Porteiras, Mauriti, Farias Brito, Jati, Penaforte, Araripe, Altaneira e Abaiara. Irineu

Pinheiro também delimitou o Cariri, sendo esta região exposta segundo a

compreensão do ‘povo caririense’ pautada na tradição. Sendo assim, o Cariri é

composto por 11 municípios, quais sejam: Crato, Barbalha, Juazeiro do Norte, Missão

Velha, Milagres, Mauriti, Brejo Santo, Jardim, Santana do Cariri, Caririaçu e Farias

Brito.

Contudo, o debate regional estabelecido historicamente para com o Cariri

cearense tem sido pautado majoritariamente sobre aspectos locacionais e

econômicos para construir um discurso sobre esse recorte. Esta região “é uma

invenção, uma construção institucional, resultante das diferentes intencionalidades

das agências que a programam” (CUNHA, 2012, p.205). Sob essa premissa, Cunha

28

(2012) afirma que discursos e documentos promoveram historicamente conjuntos de

aspectos para integrar e definir uma regionalização de Cariri, principalmente sob os

elementos referentes à dinamicidade econômica no interior do Ceará; aglomeração

urbana e singularidade do aspecto ambiental.

A partir da análise de Cunha (op cit.), entende-se como premissa maior que

as concepções de análise regional em diferentes momentos históricos partilharam de

uma narrativa composta por elementos e fenômenos que evidenciaram e valorizaram

a proposta das classes dominantes no que tange a integração regional. Essa história

oficial, instituída legalmente por documentos e regulada socialmente, nos mostrou que

“a capacidade de representar, retratar, caracterizar e figurar não está simplesmente à

disposição de qualquer membro de qualquer sociedade” (SAID, 2011, p.243). Ou seja,

projetou-se uma totalidade na qual houve seleções e omissões de fatos que foram

elencados para a confecção de um discurso que representou grupos sociais e recortes

territoriais, mesmo sendo produtos de uma mentalidade determinada (WILLIAMS,

2011a; MARTINS, 1992). Esse processo de escolha de critérios é denominado por

Williams (2011a) como ‘tradição seletiva’, e consiste:

[...] na forma pela qual, a partir de toda uma área possível do passado e do presente, certos significados e práticas são escolhidos e enfatizados, enquanto outros significados e práticas são reinterpretados, diluídos ou colocados em formas que dão suporte ou, ao menos, não contradizem os outros elementos dentro de uma cultura dominante eficaz (op. cit.p.54).

Ademais os diferentes discursos estudados por Cunha (2012), a autora

afirma “A primeira divisão oficial na escala do nomeado Cariri cearense é a

estabelecida pela resolução 143, de julho de 1945, que dispões sobre a divisão do

Brasil em zonas fisiográficas” (op cit. p.166), mostrando a importância primeira de sua

diferenciação natural perante o sertão.

No cartograma a seguir, localizamos no Ceará as propostas de Edith

Menezes e Irineu Pinheiro para uma delimitação regional de Cariri, bem como

contornamos nesse mesmo cartograma os municípios que visitamos em trabalhos de

campo, nos quais realizamos entrevistas com os artesãos do couro.

29

Cartograma 1- Esboço da Região do Artesanato em Couro

Fonte: elaborado pela autora

30

O presente cartograma mostra um conjunto de municípios, que,

dependendo dos critérios, podem ser entendidos como inseridos na região do Cariri

Cearense. De nossa parte, concordamos com Williams (2011a) em que “temos de

romper com a ideia difundida do isolamento do objeto para, então, descobrirmos seus

componentes; temos de descobrir a natureza de uma prática e, então, as suas

condições” (op. cit.p.66). Assim, mesmo apresentando as propostas de Menezes

(2005) e Pinheiro (2009) de regionalização do Cariri cearense, decidimos não partir

de uma região a priori, e sim buscar os sujeitos (artesãos em couro) para então

delinearmos o entendimento dessa região decorrente dos elementos descobertos nas

experiências e valores coletivos desse público, no presente contexto de globalização.

Acreditamos que os artesãos do couro com sua estrutura de sentimento

contribuíram para um entendimento de região de profundidade histórica e cultural, que

tem significado pelo protagonismo histórico daqueles que cultivaram a vida no Cariri

cearense ao passo que legaram costumes, valores e pertencimento a essa localidade.

Para tanto, o aporte teórico de Paasi (1991;2001) para a compreensão da região é

fundamental, visto que o autor valoriza a noção de ‘geração’, o que converge com a

nossa perspectiva:

Vou defender a importância da geração como uma categoria que medeia entre as regiões e histórias de vida individuais. Esta é uma categoria que foi negligenciada e pode nos ajudar a compreender a constituição de certas distinções sociais e espaciais historicamente específicas 7 (PAASI, 1991, p.240, tradução nossa).

As histórias de vida analisadas sob a perspectiva de uma geração condiz

com o resgate “da prática efetiva que foi alienada em um objeto e as verdadeiras

condições dessa prática” (Williams, op.cit), ou seja, com a estrutura de sentimento.

Assim, nos é possível compreender a formação de uma cultura pela experiência de

vida histórica dos integrantes daquela região, e dessa maneira, entendemos que a

‘estrutura de sentimento’ reforça o conceito de região por considerar essa base social,

da experiência humana, histórica, que interliga as vidas individuais e que proporciona

o sentido pelo qual as instituições norteiam variáveis, segundo interesses adversos,

para a delimitação regional.

7 Citação original: I will argue for the significance of generation as a category which mediates between regions

and individual life histories. This is a neglected category which can help us to understand the constitution of certain

historically specific social and spatial distinctions” (p.240).

31

Logo, concordamos que as “regiões e lugares são sínteses ou

manifestação complexa de objetos, padrões, processos e práticas sociais derivados

da interação simultânea entre diferentes níveis de processos sociais, operando em

escalas geográficas e históricas variadas” (op.cit. p.242) 8. E a região do Cariri

cearense tem no legado histórico dos artesãos do couro a estrutura de sentimento que

determina um traço cultural desta região.

Para aprofundar a compreensão da importância do artesão em couro para

o Cariri cearense, desenvolvemos a seguir uma exposição de enfoque histórico para

subsidiar a formação sócio espacial, bem como para esclarecer os costumes sociais

desenvolvidos junto à base econômica pastoril que caracterizam o sertão nordestino

e conferem particularidade ao Cariri cearense.

2.1 ECONOMIA PASTORIL

Para amparar a reflexão do artesanato em couro, entendemos como

necessário pautar o contexto histórico de ocupação sócio espacial do sertão

nordestino. Nessa perspectiva, autores como Pompeu Sobrinho (1937), Capistrano

de Abreu (1996), Pedro Puntoni (2002) e Djacir Menezes (1995) são referências

históricas e documentais para a compreensão da diferenciação entre sertão e litoral,

quanto à organização social sertaneja; confronto entre indígenas e colonos pela a

ocupação da terra, bem como as heranças e os caminhos dessa construção social

para o Nordeste, e em especial para o Cariri cearense.

É importante ressaltar que as publicações documentais e sínteses

históricas dos autores supracitados relatam uma realidade a partir de uma análise

exterior à vivência cotidiana e às relações com a lida do gado e com o trabalho em

couro. Tais autores, observadores dos sujeitos e fatos estudados contribuíram com o

nosso conhecimento sobre o sertão, entretanto, o fizeram de modo a evidenciar os

próprios padrões de pensamento, produzindo um discurso. Entendemos que devemos

averiguar as informativas publicações históricas para com o nosso sertão, assim como

Edward Said (2011) o fez em relação à literatura europeia e americana. “[...]

esforçando-nos para extrair, estender, enfatizar e dar voz ao que está calado, ou

8 “Regions and localities are a complex synthesis or manifestation of objects, patterns, processes, and social

practices derived from simultaneous interaction between different levels of social processes, operating on varying

geographical and historical scales” (p.242).

32

marginalmente presente ou ideologicamente representado em tais obras” (SAID,

2011,p.123).

Iniciamos nossa discussão a partir da particularidade da estruturação dos

núcleos coloniais no sertão, os quais, em suas características sociais e produtivas,

demarcaram historicamente a cultura e o modo de vida sertanejo. No que tange ao

contexto histórico, concordamos com Puntoni (2002) que a pecuária foi uma tentativa

de povoar o interior da América, ao passo que expandia a ocupação da empresa

colonial, e nesse sentido, o interior do que conhecemos como Nordeste teve sua

ocupação advinda principalmente a partir de Pernambuco e Bahia, nos quais “os

caminhos e veredas do semiárido, por onde fluíam as tropas e os guerreiros bárbaros,

acompanhavam sinuosamente o sistema resultante da respiração sazonal da bacia

hidrográfica” (PUNTONI,2002, p. 39). Essa assertiva condiz com a perspectiva de

Pompeu Sobrinho, quando este afirma que os caminhos advêm das ‘veredas dos

índios’, as quais se serviram expedições contra indígenas rebelados e fazendeiros –

os primeiros exploradores.

No que tange a esse processo civilizatório no Brasil, Ribeiro (1995) afirma

haver uma interrupção de uma linha evolutiva das populações indígenas, que as

subjuga e “recruta seus remanescentes como mão-de-obra servil de uma nova

sociedade” (RIBEIRO, 1995, p.74). Tal processo é denominado pelo autor como

‘incorporação’, que proporcionou a miscigenação como tática de relações de poder

por parte dos colonos.

Não obstante o controle dos povos nativos, uma das bases de condições

materiais para a produção e reprodução social do referido processo civilizatório é a

“introdução do gado, que fornecia carne e couro – além de animais de transporte e

tração - , bem como a criação de porcos, galinhas e outros animais domésticos que,

associado à lavoura tropical indígena, proveria a subsistência dos núcleos coloniais”

(op.cit. p.74). Logo, tal processo de dominação dos habitantes de Pindorama9 foi

crucial para o desenvolvimento do Brasil enquanto país e marcou o embate e interação

étnica em nosso estado nacional.

A consolidação da economia pastoril se realizou no seio do escravagismo

operante na exploração e constituição do Brasil. Temos na economia pastoril uma

9 Pindorama é o nome dado pelos índios à sua morada antes do período de colonização do território que nós

conhecemos por Brasil.

33

particularidade, que segundo Puntoni (2002), se diferenciou pelo seu sistema de

relações e remuneração, nas palavras do autor: “O proprietário de imensas terras,

como era o patrão nos tempos coloniais e de grandes quantidades de gado,

responsabilizava vaqueiros pelo trato de algumas cabeças que ficavam sob seus

cuidados e dos ajudantes que fossem recrutados” (PUNTONI, 2002, p. 36). Sob essa

perspectiva, o autor ressalta uma relação de confiança e lealdade entre o vaqueiro e

o dono da fazenda que foi pertinente à economia e modo de vida pautado pela

pecuária, ao passo que não foi presente na exploração (escrava) da conjuntura da

época que marcava o litoral e sua produção agrícola para exportação.

Esta relação de confiança presente nos currais têm origens no conflito e

violência com os povos nativos, de modo geral, com as mulheres, de maneira

particular e com os frutos – mestiços – desse processo.

Na concepção de Ribeiro (1995), os campos de criação de gado, os

sertões, foram formados principalmente de mamelucos e brancos pobres. Essa

realidade foi possibilitada pela realização da já mencionada ‘incorporação’ pela

realização do cunhadismo, prática de miscigenação realizada através do casamento

de uma índia com um estranho (homem branco). “A importância era enorme e decorria

de que aquele adventício passava a contar com uma multidão de parentes, que podia

pôr a seu serviço, seja para seu conforto pessoal, seja para a produção de

mercadorias” (Op.cit. p.81).

Essa prática de sociabilidade, aparentemente amistosa, se mostrou

violenta a partir da relação de poder estabelecida pelos valores do homem branco,

pois, “para os colonos, os índios eram gado humano, cuja natureza, mais próxima de

bicho que de gente, só se recomendava á escravidão” (RIBEIRO, 1995, p. 53). Logo,

a influência social adquirida através da mestiçagem se deu com base na subordinação

subjetiva dos povos nativos sob a classe dominante, estrangeira, bem como na

dominação do povo nascente. Nas palavras de Martins (2013), nos é ilustrado a base

social brasileira: “Sociedade estamental, Portugal regulamentou no Brasil as relações

sociais apenas onde fosse necessário para assegurar os privilégios da elite branca e

católica e as diferenças sociais em que se fundavam” (Op. cit. p.28).

Esse processo de miscigenação como cooptação para consolidação de

poder e influência se consolidou não só pelo tencionamento do estrangeiro europeu,

mas também pela sujeição indígena, quando da incorporação de alguns costumes.

34

Na tradição indígena, o ser que nasce levava a descendência paterna, e

não materna, sendo a mulher considerada como um receptáculo gerador da criança

(RIBEIRO, 1995). Essa perspectiva indígena, somada aos interesses dos colonos,

gerou a dupla rejeição do mestiço mameluco, pois os índios não o viam como tal por

a descendência do pai ser do colono, e por parte dos pais, estes os viam como

“impuros filhos da terra” e assim os aproveitavam como mão de obra e os integravam

às bandeiras, quando rapazes. Segundo Menezes (1995), tal miscigenação originou

“a população livre e mestiçada” (ibid. p.63) que serviriam às tropas do exército, ao

trabalho produtivo, bem como seriam os retirantes em períodos de seca.

O povoamento decorrente de tais práticas delineou as relações de

confiança expostas por Puntoni (2002) como características da economia pastoril.

Diegues (1999) endossa essa perspectiva ao afirmar que a cultura sertaneja, no

decurso desse movimento de expansão, como especializada na criação de animais

de pastoreio e sendo “marcada pela dispersão espacial e por traços característicos

identificáveis no modo de vida, na organização familiar, na estruturação do poder [...]”

(op.cit. p. 50). Tal argumento se ratifica com Abreu (1996) ao reconhecer que “a

criação do gado influe sobre o modo por que se forma a população” (op.cit. p.226),

mostrando assim a formação da sociabilidade sertaneja e sua relação com o os currais

e com o couro.

A profissão de vaqueiro é reconhecida por nós e pelos autores em questão

como uma profissão digna, que requer coragem e habilidade. Contudo, o que

apontamos para a reflexão é a maneira como ela é propalada de modo desarticulado

da sua relação com o criador de gado e subjugada a este. Considerando que os

criadores são de etnia branca e os vaqueiros mamelucos, no contexto de segregação

étnica, quase estamental (Martins, 1992), entendemos que o vaqueiro, mesmo

exaltado, é uma profissão de “2ª. Classe”, é a manutenção da subordinação do

mestiço ao status quo dominante sob o enaltecimento de características étnicas

brancas e indígenas.

Essa relação de complexidade, foi pontuada por Puntonni ao expor que tal

relação entre patrão e empregado tem por base a relação de confiança (e

subordinação) que não é comum no presente contexto, visto no litoral a relação é entre

senhor de escravo e mercadoria. Entretanto, não nos furtamos ao debate, pois não é

porque a relação no sertão é de confiança que esta imune de preconceito e coação.

Analisemos a assertiva de Pompeu Sobrinho (p.337)

35

os vaqueiros e seus agregados e ajudantes, quasi únicos habitantes desses rincões, sabem que seus pais não exerceram ali atividade diversa; a tradição apega-os fortemente à tradição de seus maiores, profissão que, por sua vez, tem atrativos poderosos. O vaqueiro goza de uma liberdade ampla, não tem patrão muitas vezes e, quando o tem, esse é antes um sócio a que ele acompanha pela superioridade que lhe confere o conhecimento da terra, do gado, dos métodos de criação, e a responsabilidade direta das cousas da fazenda. A vida do vaqueiro é pouco atormentada: não lhe preocupam o espirito aborrecidos, trabalhos materiais sobre que tenha de meditar, nem a possibilidade de sêcas destruidoras, nem os negócios econômicos ou a manutenção da família. Não podia haver profissão mais adequada aos descendentes dos indígenas, habituados a uma vida sem coação de ordem administrativa. (1937, p.337)

A alegação de Pompeu Sobrinho (op cit) enaltece uma liberdade falseada,

visto que a relação do vaqueiro para com o fazendeiro remete a traços de servidão,

seja por falta de posses de terra como pelo ganho relativo à produção. Além do que,

é valorizado o trabalho na lida em detrimento do trabalho intelectual, como se o

mestiço não fosse capaz de realiza-lo, enquanto na verdade, este trabalho

administrativo, que é intelectual, é concebido ao senhor, ao fazendeiro, ou seja, ao

colono, enquanto etnia superior. É essa falsa relação amistosa apresentada e

defendida por Pompeu Sobrinho que criticamos, visto que subvaloriza o real trabalho

do vaqueiro.

Nesse sentido, a dinâmica social do sertão se desenvolve com base na

contraditória agregação étnica, que soma culturas do opressor e do povo nativo para

melhor controla-las sob o jugo do primeiro, no contexto criado por este, de ocupação

e domínio territorial, tendo o gado e o couro como base produtiva e reprodutiva dessa

sociabilidade.

Para Pompeu Sobrinho (1937), a ocupação dos sertões nordestinos

começou na última metade do século XVII, quando as terras litorâneas já estavam

povoadas e produzindo. Puntoni (2002) reforça essa perspectiva afirmando “o objetivo

era manter povoado o interior da América, expandir a ocupação da empresa colonial,

ao mesmo tempo, enfrentar os problemas que esta mesma expansão criava” (op. cit.

p.26). Tal objetivo só pôde ser concretizado, segundo argumentação de Abreu (1996),

visto que a criação do gado foi capaz de vencer distancias, facilitando o transporte, o

que foi importante num país tão vasto, pois as próprias rezes fizeram o percurso.

A consolidação da economia pastoril, bem como da reprodução social

sertaneja aconteceu a partir de embates diretos com os indígenas já presente nessas

terras. Abreu (idem) discorre que no século XVII os bandeirantes estavam

36

organizados sob um poder central que os regulavam e desse modo eram contratados

pelo governo para “pacificar uma região determinada, recebendo em paga parte dos

prisioneiros feitos ou terrenos que ficavam devolutos, ou postos, pensões e

comendas” (ABREU, 1996, p.225). Nas palavras do autor:

[...] contornando as águas do alto Paraná, procuravam as do S. Francisco, que seguiam até seu destino. Os que chegaram por este caminho ao Ceará provavelmente acostaram-se ao Pajehú, de onde, transposta a Borburema, rendido os índios do Piancó, Seridó e outros afluentes do Piranhas, se passaram ás águas do baixo Jaguaribe. Por ahi corre até nossos dias um dos caminhos que ligam Ceará a Pernambuco (op.cit. p.225-226).

Tal inserção do colono para o interior a partir de rios perenes ou não, era

impulsionada para o domínio de novas áreas além do litoral. E mesmo com a pouca

lucratividade da lavoura em áreas de caatinga, “urgia dar-lhes destino, mesmo porque

a área dos catingaes era enorme, e descura-la tanto montava a deixar sem proveito a

maior parte do paiz” (ABREU,1996, p.78). Em nota de rodapé, Abreu caracteriza as

adversidades da caatinga por esta ser acessível, mas não fácil de transpassar, e é

por essa adversidade que o autor afirma “só o gado poude primeiro trilhar a caatinga”

(op.cit. p.78-79), mostrando assim a importância da pecuária no sertão nordestino.

A marcha colonizadora pelo sertão foi primordial, visto a dificuldade de

transporte para a circulação nacional pela via marítima ser problemática10, logo, os

caminhos do interior foram indispensáveis para habitação e comunicação entre o

sertão e as áreas de expressão comercial. Em relação a esses caminhos, “quase

todos os que serviram durante os tempos coloniais provieram das veredas dos índios

aproveitadas pelos primeiros exploradores, pelas expedições contra os indígenas

rebelados e pelos fazendeiros que se situaram às margens dos rios e riachos”

(POMPEU SOBRINHO, 1937, p.334). O autor ainda ressalta que muito depois do

aproveitamento dos caminhos indígenas apareceram os caminhos criados

politicamente, mas que estes consistiam muitas vezes em melhorias de caminhos

antigos.

Contudo, a apropriação dos espaços ocupados pelos índios nativos não

aconteceu de maneira rápida ou fácil. A difusão da presença do colono se deu ao

10Os ventos no litoral, que sopram numa só direção, dificultavam e retardavam o diálogo entre as capitanias,

principalmente Pernambuco, que era central para as operações econômicas da época.

37

passo da resistência indígena, dentre os quais os Cariris, sinaliza Abreu, foram os

mais persistentes em sua defesa em todo o país. Mesmo assim, estes11 foram mortos,

reduzidos a aldeamentos, “outros agregados a fazendas, fundindo-se e confundindo-

se com os colonizadores alienígenas”. (ABREU, 1996, p.60).

Menezes (1995) também ressaltou a brava resistência dos índios e

salientou que a passagem de Pernambuco para o interior da capitania cearense foi

muito dificultada pela defesa dos índios Paiacus entre o Assú e a serra do Apodi.

Em relação às áreas dominadas, Pompeu Sobrinho (1937) mostra a

influência indígena na construção dos primeiros abrigos dos colonos, com casas muito

simples de taipa com telha ou de palha trançada à similitude das cabanas indígenas,

quando até os utensílios eram produzidos a partir das palmeiras ou plantas similares,

quando estas abundavam.

Não obstante aos caminhos pelos quais o gado penetrou, como legado que

“foi sem dúvida pela trilha do índio e guiado por índio” (ABREU, 1996, p.79), têm-se

também a herança na habitação, com a construção de cabanas ventiladas, e a

alimentação. Nessa perspectiva podemos observar a assertiva de Pompeu Sobrinho

(p.369) com base nos apontamentos do naturalista Koster ao notar que até pouco

tempo o sertanejo, de maneira geral, não usava mesa nem cadeira para as refeições:

“o costume mais geral, diz Koster, é acocarem-se em cima de uma esteira, onde toda

a família forma um círculo em roda de cabaças e assim é que fazem suas refeições”

(KOSTER apud, POMPEU SOBRINHO 1936, p.369).

Vale ressaltar que assim como o artesanato em palha é resquício da cultura

indígena associada ao nascente modo de vida sertanejo, a base alimentar pautada

em tubérculos como macaxeira e milho é outra herança; “com a massa de mandioca

Puba preparam-se bolos e papas, com a goma beijus, tapiocas, com a farinha pará,

carare pisada ou paçoca de carne, paçoca de peixe, etc.” (PINHEIRO,2009, p. 49).

Vemos assim uma forte contribuição cultural indígena associada ao

desenvolvimento da reprodução social sertaneja, que como nos lembra Andrade

(1995), tal herança é delegada aos colonizadores, sendo estes muitas vezes já

miscigenados. Tal influência “Também deu margem à utilização de utensílios de

couro, como portas de casa, leitos, cordas, borracha de carregar água, alforje, malas,

mochilas, peias para cavalo, bainhas de faca etc. [...]” (op. cit. 48).

11 Os cariris existiam em territórios desde a Paraíba ao Ceará.

38

Não obstante à herança e influência indígena para com a cultura em

processo, outro legado se deu em relação à formação dos povoados. Pompeu

Sobrinho, em relação ao povoamento, discorre sobre a formação das vilas, mostrando

as diferentes influências para a formação das mesmas. O autor afirma que as

primeiras vilas e cidades fizeram-se a partir dos aldeamentos indígenas, mas que

esses aglomerados também podem ter se originado “de um primitivo centro, sede de

fazendas de criar ou de sítios de plantar , convenientemente situados no interesse das

relações comerciais” (POMPEU SOBRINHO, 1937, p.333). Logo, seja por influência

política ou por necessidades da justiça, as vilas e cidades sertanejas foram sendo

instituídas, e materializadas enquanto amálgama da sociedade camponesa e

sertaneja nascente.

2.2 DESENVOLVIMENTO DA SOCIABILIDADE NO SERTÃO

Com o processo de povoamento, entendemos que a igreja tem importante

atuação em consonância com as bandeiras para a redução da força indígena, visto

que Bezerra apud Menezes (1995) afirma que o motivo da doutrinação indígena pela

religião era manter em segurança o gado e os colonos. Nas palavras de Ribeiro

(1995) “Nada que os índios tinham ou faziam foi visto com qualquer apreço, senão

eles próprios, como objeto diverso de gozo e como fazedores do que não entendiam,

produtores do que não consumiam” (op. cit., p.8).

Não obstante a lógica estabelecida de dominação territorial e da

subjetividade do nativo, a expansão do pastoreio pela dispersão dos currais promoveu

um desenvolvimento da economia pastoril e do modo de vida peculiar no sertão, com

‘espírito de patriarcado’ (PINHEIRO, 2009) que ao longo dos séculos se concretizou

com seus costumes próprios. Sobre esse processo, Ribeiro (1995) afirma:

Conformou, também, um tipo particular de população com subcultura própria, a sertaneja, marcada por sua especialização ao pastoreio, por sua dispersão espacial e por traços característicos identificáveis no modo de vida , na organização da família, na estruturação do poder, na vestimenta típica, nos folguedos estacionais, na dieta [...] (op. cit. p.340)

Essa caracterização da reprodução social do sertão, com seus costumes e

modo de vida, contrasta com litoral, primeiro espaço povoado para fins de exploração

econômica, com melhores solos para a produção, principalmente na zona da mata, e

39

de maneira geral, lócus de funcionamento das instâncias jurídicas e comerciais

representativas perante o exterior. Essa concentração de poderes e autoridade no

litoral, representados por ouvidores, governadores, vigários e fregueses é exposta por

Abreu (1996) ao caracterizar este espaço como cenário dessas lutas políticas. Tal

concentração de instancias políticas e jurídicas também eram tidas como marcos de

civilização, presente no litoral e não no sertão.

No que tange ao espaço cearense, mesmo que Abreu afirmasse que no

século XVII o Ceará já estivesse “devassado” e os índios reduzidos à aldeias,

Menezes precisa que somente no século XVIII a criação de gado foi fomentada no

Ceará, mostrando que “as ‘fazendas de criação’ desempenharam o papel de linha

avançada da marcha colonizadora, a fronteira movediça dos conflitos mais violentos”

(MENEZES, 1995. P. 176).

Sob o contexto da consolidação da pecuária e decorrente povoamento do

sertão, Pompeu Sobrinho justifica o sucesso da criação de gado, afirmando que a

difusão do gado foi prodigiosa nas caatingas por ser rendosa e haver poucas

despesas. O fato do transporte dessa mercadoria se da por ela mesma, sem custos,

facilitou a troca com outros gêneros de maior valor nos centros comerciais.

No espaço dos currais o comércio era inexpressivo, e as necessidades das

pessoas quanto à alimentação e vestuário eram sanadas localmente, com produção

agrícola de subsistência pra consumo e produção de artefatos artesanais para demais

usos (POMPEU SOBRINHO, 1937) . Na descrição do autor fica clara a existência

dessas outras atividades, que não à pecuária, compondo a realidade e dinâmica do

sertão, mesmo tendo o gado por central:

Não havia agricultura, senão raramente em pequenos tratos nas coroas dos rios, onde alguns agregados se davam ao trabalho de cultivar uma insignificância de milho, feijão, melancia, algodão. Pouco bastava, porque a terra fértil oferecia rendimento espantoso e escassas eram as bocas para o consumo dos cereais e legumes. Com o algodão, fiavam-se e teciam-se em toscos teares fazendas grosseiras e principalmente redes de dormir. O comércio era insignificante e os artigos da sua predileção tiravam-se do próprio gado. A pele dos ruminantes domésticos chegou a ser matéria prima de aplicação quasi universal entre os sertanejos do XVIII século. As grandes necessidades de alimento, satisfazia-as o gado – a carne fresca e seca, o queijo e o leite [...] o mais, isto é, a rapadura e a farinha, obtinha-se em troca dos couros das reses sacrificadas para o consumo e pelas morrinhas. (POMPEU SOBRINHO, 1937, p.338)

40

As necessidades locais eram sanadas em sua maior parte pelo artesanato

em couro, seja a confecção de instrumentos de trabalho no campo ou de uso

doméstico, já as demandas por produtos que não se produzia e nem confeccionavam

artesanalmente no local, também eram adquiridos a partir das rezes enquanto fonte

de capital “os gêneros de maior valor, tecidos caros, utensílios que os artífices locais

não sabiam fabricar, tiveram de ser comprados nas praças da Baia e Pernambuco,

com o produto das boiadas” (Op cit., p339). Mesmo homens e mulheres mais pobres

tinham suas roupas (comumente de algodão e chita) tecidas em casa, e também

compravam tecidos na cidade pelo intermédio dos ‘passadores de gado’(POMPEU

SOBRINHO, 1937). Pinheiro (2009) reforça a exposição de como a dinâmica do sertão

acontecia e como permaneceu até meados do século XIX. Nas palavras do autor:

No século XIX, nos sertões, a vida era quase autárquica. Além de vestir-se nosso matuto do algodão de suas roças, tecido em seus teares, alimentava-se de legumes que plantava, da rapadura de seus engenhos, calçava alpercatas de couro cru e resguardava-lhe a cabeça do sol e da chuva seu célebre chapéu de couro curtido (op.cit. p.113).

Logo, constatamos a importância do artesanato como meio transformador

da natureza. Essa atividade, fundamental na construção social do sertão do século

XVIII, tinha por base primordial o couro das boiadas, as quais, como vimos, é nossa

base econômica e social dos costumes e modo de vida experienciado e disseminado

por gerações. Assim, os artesãos do couro e os vaqueiros são importante expressão

histórica desse constructo social, atravessaram gerações e ainda hoje nos congratula

com sua existência e conhecimento adquirido ao longo das gerações.

Contudo, faz-se necessário expor o contexto e problematização em torno

daqueles que dinamizaram a realidade do sertão, sejam eles artesãos, vaqueiros, e

demais mestiços que com muito empenho trabalharam com a terra, o gado e viveram

nesta sociedade.

É importante pautar a discussão sobre os grupos étnicos, miscigenação e

seu papel social no período histórico em questão, pois a mentalidade do Brasil durante

o século XVIII é de que o imigrante, na figura do colono, representa a ordem, e a ele

foram concedidas terras para trabalho, sejam por sesmarias, no inicio da colônia,

como por concessões de produção já no século XVIII, em detrimento do papel do

mestiço e sua contribuição social.

41

Contudo, esses colonos, que foram os imigrantes italianos nos estudos de

Martins (1992), e o Português no Nordeste (POMPEU SOBRINHO, 1937) no século

XVIII são a expressão da europeização que as elites coloniais idealizavam enquanto

um ideal de civilização para o Brasil. Desse modo, ao contrário do imigrante europeu,

a população mestiça e de origem indígena era:

Destituída de direito à propriedade numa sociedade em que tal direito estava vinculado à pureza racial, ao mesmo tempo em que não contava com a tutela e a proteção a que estavam obrigados os senhores de escravos em relação aos seus cativos. Embora formalmente livre, era uma população privada de direitos, obrigada a viver de favor e de pequenos trabalhos para os grandes fazendeiros ou para si mesma. Em todo o país, desde os tempos coloniais, foi uma população forçada a viver no limite da sociedade, obrigada a desenvolver uma sociabilidade em grande parte própria, apoiada em estratégias de sobrevivência (MARTINS, 1992, p. 137).

Essa segregação social de base étnica, constitui a base das relações

sociais e do poder da classe dominante de narrar sob a sua perspectiva (científicas e

da literatura) a função dos papeis sociais dentre aqueles que compõe a realidade, em

nosso caso, a realidade pastoril no interior cearense e mais precisamente no Cariri

Cearense.

Pompeu Sobrinho (1937), ao identificar as bases étnicas predominantes do

Nordeste brasileiro afirma que “é de conhecimento de todos o ariano peninsular,

particularmente o português dos séculos XVI a XVIII, o africano importado e o

ameríndio que ocupava a região ao tempo da conquista” (op cit.p.341). No que tange

à caracterização do ariano, português em relação à colonização do sertão, este é

caracterizado como: “mesmo rodeado de índios mansos e mamelucos destemidos, o

português ou o mazombo que se aventurava a tanto devia possuir dotes excepcionais

de coragem e energia (...)” (op. cit. P.341). Já os negros, são tidos como menos

presente nos sertões nordestinos , seja por ser uma mercadoria cara e de menor

necessidade nos sertões comparado ao tipo de trabalho que demandava essa mão-

de-obra no litoral, como, segundo Pompeu Sobrinho, por serem “os menos amparados

contra o flagelo (das secas), em vista da inferioridade das suas condições sociais” (op

cit. p.348). No que tange ao índio “Sob o aspecto humoral e psíquico há que salientar

a grande resistência física que lhes permitia enormes caminhadas, rapidez

extraordinária nas corridas (...). Essas qualidades eram tais que causavam admiração

aos fortes soldados da Holanda” (op cit. p. 354).

42

As pretensas justificativas para caracterizar os tipos étnicos, partilharam da

premissa da superioridade da raça pura, sendo esta a branca, expressa nas citações

presentes, como em demais explicações no documento original. Mesmo com elogios

ao índio, este o faz a partir de relatórios naturalistas já realizados por povos de etnia

branca (Holandeses), enquanto as alegações de inferioridade aos negros não são

fundamentadas, mas ainda sim postas em artigo como verídicas, o que nos mostra

como os documentos da história oficial estão vinculados a uma perspectiva ideológica

tendenciosa.

Entretanto, tal posicionamento do autor é compreensível, visto que, “A

constituição de um objeto narrativo, por mais anormal ou insólito que seja, sempre é

um ato social por excelência, e como tal carrega atrás ou dentro de si a autoridade da

história e da sociedade” (SAID, 2011, p.139). O que mostra o ponto de vista segundo

os preceitos e ideologia que nortearam seu pensamento.

Consoante às assertivas de Pompeu Sobrinho (op. Cit.), Menezes (1995)

sintetizou como se deu a culminância do processo de povoamento do sertão

nordestino, afirmando que foi a partir da população indígena que provieram os

contingentes futuros da população trabalhadora, pela miscigenação, juntamente com

a população negra, e brancos, em menor proporção, por estes serem a minoria

beneficiada.

Apresentado os nossos elementos sociais da base econômica pecuária,

vemos que a criação do gado, base econômica comum à realidade sertaneja, era

realizada pelos vaqueiros. Estes eram trabalhadores livres dos fazendeiros (em

contexto nacional de escravidão) que eram pagos “em generos de quatro bezerros

um, de modo que em poucos annos têm semente com que começar vantajosamente

a luta pela existência” (ABREU, 1996, p.100). Não obstante ao recebimento de

pagamento em gêneros, os vaqueiros são caracterizados por Menezes e Abreu como

trabalhadores de vida aventurosa, por se aventurar em espaços nos quais os

criadores não iam, denotando um trabalho de liberdade e de espírito livre, por estes

serem mamelucos, reforçando a relação da origem indígena e branca. Logo, nessa

perspectiva, “desagradava-lhes a tarefa contínua e absorvente da lavoura”

(MENEZES, 1995, p.88).

Essa composição do vaqueiro como um forte e valente, procede para com

o trabalho que realiza, além de ser um trabalho pautado no conhecimento de

habilidades adquiridas pela experiência. Contudo, tal sujeito figura como um mito,

43

muitas vezes exaltado fora de contexto da realidade12. De todo modo, o trabalho de

vaqueiro, e a vida da gente simples e livre do sertão, no século XVIII, ainda privada

de direitos, proporcionou o desenvolvimento de uma sociabilidade própria para a

manutenção da sobrevivência sobre o legado indígena da produção de macaxeira,

milho e pequenas roças para o consumo, associado ao trabalho com o couro, seja

com curtumes para o trato da pele, como com o artesanato a partir da confecção de

instrumentos e acessórios necessários ao dia a dia.

Essa sociabilidade própria, de produção para a subsistência numa

realidade de liberdade formal, esteve diretamente atrelada à uma relação de

patriarcado, pois, “No Nordeste o patriarcado rural, acima nomeado, requinta-se

atingindo uma verdadeira intimidade entre o amo e seu vaqueiro, ou seu trabalhador

de enxada, que conversam familiarmente, sentados lado a lado, comem na mesa, etc.”

(POMPEU SOBRINHO, 1937, p.43).

Entendemos, assim, que o espaço de sertão no século XVIII foi a síntese

da relação de poderes e interação social entre brancos, índios, negros e mestiços.

Síntese esta que promoveu uma convivência tendo por pressuposto uma segregação

étnica e social, que se harmonizou pelos laços de familiaridade e compadrio

disseminados e cultivados de maneira interesseira desde os tempos de colonização,

com o cunhadismo.

No âmbito da composição social sertaneja, os naturalistas e estudiosos dos

séculos XIX e XX, nos trazem elementos importantes para situarmos a diferenciação

social no sertão. A partir dos escritos de Pinheiro (2009), Pompeu Sobrinho (1937) e

Menezes (1995), podemos distinguir os ‘habitantes respeitáveis’, constituídos por

brasileiros, quase todos lojistas, políticos ou fazendeiros; enquanto o mestiço, pobre,

é visto como um ‘cabra’ de índole ruim ou violenta, ou mesmo um ‘matuto’, o qual

eram os empregados que transportavam mercadorias em lombos de animais, mais

conhecidos por camboeiros. Ademais, temos o ‘homem da enxada’ e o ‘vaqueiro’

fazendo parte do conjunto dos pobres e mestiços, contudo, estes são elogiados como

‘duros e sóbrios’ pelos ‘ilustres filhos da terra’ (cidadãos pertencentes às elites).

No que tange ao artesão, era o próprio vaqueiro, que por muitas vezes

produzia suas peças de trabalho. Quando não, seleiros faziam especialmente selas e

artefatos voltados à montaria, com precisão e qualidade para a efetivação do trabalho

44

com o gado. Estes, compunham o setor social que eram respeitados, porém,

subjugados pelos detentores do poder.

Essa diferenciação social, forjada no bojo da economia pecuária é o

conjunto que dinamiza o contexto das ações dos coronéis, e implica diretamente na

economia e política locais.

2.3 A IMPORTÂNCIA DO CARIRI NA ECONOMIA PASTORIL: CULTURA E

EXPERIÊNCIA, UMA CONTRIBUIÇÃO PARA A REGIÃO.

Ainda em relação ao período colonial e suas particularidades, Pompeu

Sobrinho distingue três áreas etnográficas no Nordeste brasileiro, quais sejam: a dos

vaqueiros, a dos engenhos e a dos pescadores. Sendo a área do vaqueiro a terra do

sertão. Este estudioso acredita que “as forças orientadoras do meio físico sobre o

homem e a sociedade ainda preponderam” (POMPEU SOBRINHO,1937, p.324) o que

gera diferenciações em relação às características sociais de grupamentos.

Sem adentrar ao debate de determinismo social, mas focando as

diferenciações colocadas pelo autor, ao analisar o adensamento demográfico no

Nordeste, além das áreas etnográficas, o autor afirma existir quatro zonas de

concentração humana e suas respectivas características, dentre as quais uma delas

“consta principalmente do vale do Cariri, mas se estende aos estados da Paraíba e

Rio Grande do Norte. O foco desta concentração compreende os municípios de

Barbalha, Juazeiro, Missão Velha, Crato e São Pedro” (op cit. p.328). O argumento do

autor para essa assertiva é a de que as maiores concentrações populacionais se

relacionam às zonas de maior pluviosidade.

Menezes (2005) reafirma essa busca do Cariri pelos exploradores pela sua

fertilidade natural e Pinheiro (2009) ressalta a existência de água como o fator

preponderante para a escolha dos locais de povoação. Nas palavras de Figueiredo

Filho (2010b, p.42):

Eram criadores os primeiros colonos do Cariri [...] Notou logo o alienígena a diferença entre esta região e as outras zonas sertanejas circunvizinhas. A água perene de suas fontes foi o primeiro convite ao homem para soltar o laço e agarrar-se à foice e ao cabo da enxada. (op.cit. p.42)

45

Esta região13 cresceu economicamente tendo a pecuária como base desde

o século XVIII; Figueiredo Filho (2010a) e Almeida (1965), afirmaram que o século

XVIII se consagrou como o período das origens e da formação social da então

denominada região do Cariri, na porção cearense, que começou a se consolidar pelo

povoamento mais intenso desde o século XVII, na interiorização da colonização no

Nordeste, sob o pleito das terras indígenas para a criação de gado. Esse processo

de ocupação iniciou pela zona semiárida paraibana (conhecida como Cariris Velhos)

e continuou pelo vale úmido da Chapada do Araripe, no Ceará, conhecida como

Cariris Novos.

Contudo, é importante ressaltar que para o Cariri Cearense outras bases

produtivas foram salutares para o crescimento econômico da região ao longo do

percurso histórico (como a cotonicultura e a produção dos derivados da cana). Suas

peculiaridades em termos de produção14 comparado à realidade de sertão era

complementar às características gerais de reprodução social pautada na economia

pastoril.

A cana de açúcar produzida no Cariri, ao contrário daquela da zona da

mata, não era para produção de açúcar, mas sim para melado e rapadura

(FIGUEIREDO FILHO, 2010b), vendidos nas feiras juntamente com outros artefatos

de uso cotidiano (dentre os quais muitos confeccionados em couro para uso

doméstico ou voltados para a lida com o gado) além do que, seu transporte acontecia

em carros de boi15, nos mostrando que não está dissociada da produção pecuária.

Tais atividades tiveram suas influências, inclusive econômicas para o

crescimento da região, mas não suprimiram a importância do legado do couro, bem

como do artesanato atrelado a ele, sendo esta a base econômica deste recorte

territorial ao longo dos séculos XVIII e XIX (ARAÚJO, 2011). A baixo, o cartograma de

13 O debate sobre a região do Cariri, sua delimitação e seus critérios de definição é um debate inconcluso, mas

muito bem retomado pela tese da professora geógrafa Maria Soares da Cunha, intitulada: ‘Pontos de (re) visão e

explorações historiográficas da abordagem regional: exercício a partir do Cariri Cearense (séculos XIX e XX)’.

Mais adiante, como base nesse material, problematizaremos a questão em relação a proposta de nossa tese. 14Segundo Djacir Menezes (1995), as serras frescas e ribeiras jaguaribanas foram as primeiras tentativas mais

firmes de produção agrícola. No caso do Cariri, a expressão desse fato é a plantação de cana voltada à produção

de rapadura e melado para as feiras regionais (Figueiredo Filho 2010b). 15 “Serviam, particularmente, os carros de bois, no Cariri, e inda hoje servem em menor escala, para o transporte

da cana de açúcar dos cortes, nos sítios, até o pé dos engenhos. Não só para o carregamento da cana, também para

o da lenha, sustentados os toros de pau pelos fueiros enfiados nas chedas da mesa do carro” (PINEHIRO, 2009, p.

107).

46

Santos (2005) mostra a diversidade produtiva do Cariri perante o sertão, bem como a

relevância do gado e seus derivados:

Cartograma 2 - Distribuição da produção na província do Ceará nas duas

primeiras décadas do século XIX.

A criação de gado movimentou a economia, seja pela carne seca, como

pelo trabalho em couro dos artesãos, paripassu aos produtos vendidos nas mesmas

feiras oriundos dos em

genhos. Em relação à economia, a partir dos artefatos em couro, Beserra

(2007) afirmou que não se pode falar em indústrias propriamente ditas até final do

século XIX pela já existência das oficinas de cunho artesanal presentes na parte

central dos povoados voltados para o comércio local na região do Cariri.

A coerência de produção e reprodução da vida no Cariri cearense foi

pautada na atividade pastoril e nas condições climáticas particulares, que

proporcionou o desenvolvimento de um modo de vida o qual muitos estudiosos e

políticos buscaram regionalizar na intensão de delimitar este espaço particular no

sertão cearense.

47

3 ESTUDOS CULTURAIS E GEOGRAFIA CULTURAL: A CONTRIBUIÇÃO DO

ARTESÃO ATRAVÉS DA CULTURA

Podemos observar que a realidade histórica dos artesãos do couro tem sido

bastante modificada com o advento da globalização. A existência desses artesãos em

pleno século XXI, a mercantilização de seu símbolo cultural, o reconhecimento social

do seu trabalho, bem como o interesse do Estado no reconhecimento e fomento desse

saber popular nos mostra diferentes perspectivas de compreensão sobre a

importância da autenticidade deste grupo social tão marcante na história do sertão e

na configuração regional do Cariri cearense.

No âmbito dos nossos estudos, buscamos a perspectiva de apreender o

legado que estes deixaram e ainda em vida o perpetuam para o Cariri cearense. Esse

estudo não poderia se realizar a não ser pelo viés da geografia cultural materialista,

com base em Raymond Williams.

3.1 CULTURA E GEOGRAFIA CULTURAL

Para compreender o significado da região e desvendar a dinâmica que

configura o legado dos artesãos do couro contemporaneamente nas suas múltiplas

dimensões, recorremos às bases de entendimento sobre o trabalho artesão e a cultura

bem como as correlações destas para com a configuração regional do Cariri

Cearense.

No que tange a influência cultural no desenvolvimento social, questionamo-

nos sobre qual seja o significado de cultura, e nos deparamos com um debate intenso

dentro e fora da Geografia. Mas se nos remetermos à sua origem, veremos que o

conceito de cultura é derivado do conceito de natureza, pela relação com o trabalho

humano, o cultivo (EAGLETON, 2005). Segundo Terry Eagleton (2005): “‘Cultura’

denotava de inicio um processo completamente material, que foi depois

metaforicamente transferido para questões do espírito. A palavra, assim, mapeia em

seu desdobramento semântico a mudança histórica da própria humanidade da

existência rural para a urbana” (op.cit.p.10).

O homem, enquanto ser genérico é parte da natureza e, na medida em que

precisa sobreviver não só convive com a mesma, mas a transforma com finalidade de

suprir suas necessidades. Não consideramos aqui o homem isoladamente, mas o

48

homem que vive historicamente em sociedade, esta que é um

[...] processo constitutivo com pressões muito poderosas que se expressam em formações políticas, econômicas e culturais e são internalizadas e se tornam ‘vontades individuais’, já que tem também um peso de ‘constitutivas’ (WILLIAMS, 1979 p. 91).

Nesse aspecto, entendemos que o desenvolvimento da sociedade se refere

a uma vida social na qual existe um sentido pleno criado, vivido e expandido pelo

próprio homem em sociedade.

Posto isso, entendemos que as necessidades humanas a serem supridas

não são apenas de ordem natural de sobrevivência, mas de ordem socialmente

construída, e porque não dizer cultural, já que este conjunto delineia a totalidade

social.

É importante ressaltar que o suprimento das necessidades humanas e as

novas necessidades criadas não são passíveis de compreensão apenas pela

teorização. Faz-se necessário entender a significação do processo, e este acontece

por meio da experiência dos sujeitos como atesta Thompson (2009):

[...] a experiência é um termo médio necessário entre o ser social e a consciência social: é a experiência (muitas vezes a experiência de classe) que dá cor à cultura, aos valores e ao pensamento: é por meio da experiência que o modo de produção exerce uma pressão determinante sobre outras

atividades: e é pela prática que a produção é mantida. (Thompson,2009, p, 139)

Essa experiência, vivida no âmbito da coletividade, é base para a

consciência e para a cultura, mesmo que não autoconsciente. A Experiência humana

é importante para mostrar como a história é determinada, ou seja, como ocorre o

desenvolvimento social. Pois as pessoas, como sujeitos “experimentam suas

situações e relações produtivas determinadas como necessidades e interesses e

como antagonismos, e em seguida, ‘tratam’ essa experiência em sua consciência e

sua cultura” (IBID , 2009, p. 226).

Mas o que significa a cultura? Para nós, a cultura permeia o cotidiano, os

hábitos e se materializa nas tomadas de decisões diárias para com a realização da

vida em seus mais diferentes aspectos e em consonância com os valores de diferentes

grupos sociais. Cosgrove (2010) e Williams (2015) apresentam concepções

complementares em relação ao conceito. Para o geógrafo:

49

A produção e reprodução da vida cultural são, necessariamente, uma arte coletiva, mediada na consciência e sustentada através de códigos de comunicação. Esta última é produção simbólica. Tais códigos incluem não apenas a linguagem em seu sentido formal, mas também o gesto, o vestuário, a conduta pessoal e social, a música, pintura, a dança, o ritual, a cerimônia e as construções (COSGROVE, 2010, p.103).

Para Williams (2015) a cultura é um fato do dia a dia, na qual

[...] toda sociedade humana tem sua própria forma, seus próprios propósitos, seus próprios significados. Toda sociedade humana expressa isso nas instituições, nas artes e no conhecimento. A formação de uma sociedade é a descoberta de significados e direções comuns, e seu desenvolvimento se dá no debate ativo e no seu aperfeiçoamento, sob a pressão da experiência, do contato e das invenções, inscrevendo-se na própria terra (op. cit., p.5).

Considerando as perspectivas de cultura apresentadas, ambas se referem

a um modo de vida organizado socialmente, contudo, elas também estão suscetíveis

a um domínio da subjetividade social, visto a existência dos embates de valores e as

alienações da modernidade (EAGLETON, 2005).

De acordo com Martins (2013), a modernidade no Brasil só pode ser

elucidada se buscarmos como o moderno e os signos da modernidade são absorvidos

pelo popular. Nós acrescentamos ainda que entender a interação de símbolos da

modernidade com o popular é fundamental para as demais escalas afora ao estado-

nação, justamente pela influência e manutenção do mundo vivido.

As diferentes temporalidades impostas pela modernidade “está mais no

âmbito do ser visto do que no do viver” (MARTINS, 2013, p. 33). E assim, ainda

segundo o autor, a cultura popular carrega consigo seu tempo histórico, mas aos

poucos dá lugar aos novos elementos modernos que modifica a sua autenticidade.

Em outros termos, aquilo que era repleto de sentido e representado por uma

determinada forma, tende a manter o seu significante (forma), mas perdendo seu

significado – em todos os âmbitos da vida.

Contudo, qualquer análise dos processos deve considerar os períodos

históricos e respectivos recortes espaciais em que acontecem os fenômenos. Posto

isso, a cultura historicamente se desenvolve como uma prática social, e desse modo,

não acontece senão, de modo paradoxal, marcando o cotidiano. Contudo, com o

avanço das forças produtivas e com a complexidade das relações sociais de

produção, compreender a cultura, é entendê-la articulada ao cunho político e partícipe

da dinâmica social.

50

Em decorrência da particularidade fomentada historicamente por condições

próprias ao Nordeste e ao Cariri cearense, temos atualmente uma maneira de

expressar, sotaques, festejos e artesanatos próprios de temporalidades passadas que

permeiam a vida cotidiana presente. Entretanto, sob a nova conjuntura, os signos

dessas expressões culturais estão passíveis da perda de seu significado, mesmo que

ainda haja uma identidade da população para com essas manifestações. Nas

palavras de Martins (2013):

A cultura popular carrega consigo o seu tempo histórico, que só lentamente se dilui para dar lugar a formas culturais desenraizadas e, portanto, desprovidas dos liames de autenticidade que lhes davam sentido em outros tempos e situações, isto é, formas puras e intercambiáveis […]. Mesmo aí, a recuperação da cultura popular e do tradicionalismo que ela expressa e contém não pode se integrar na modernidade senão como anomalia e problema […] uma anomalia, portanto, na situação própria da modernidade, dominada pela moda, pelo moderno e pelo passageiro. (op cit. p.33)

Na naturalização da realidade desigual enquanto “ordem social vigente” as

esferas da vida com resquício de alguma espontaneidade como lazer, diversão,

cotidiano são incorporados ao sistema e transformados em parte deste como fonte de

lucro e de controle social pelo horizonte ideológico que o domina e que passa a

sistematizá-lo.

Essa massificação que se passa com a arte, com o saber e com a realidade

urbana (LEFEBVRE, 1973) também intervém nas diferentes formas de apropriação

do espaço, territorializando toda esta dinâmica que transita entre diferentes escalas

de maneira a manifestar seu poder em áreas precisas. Logo, nossa proposta de

estudo visa refletir sobre a estrutura de sentimento em questão, pela consciência

prática daquilo que está sendo vivido, pois “estamos interessados em significados e

valores tal como são vividos e sentidos ativamente, e as relações entre eles e as

crenças formais ou sistemáticas são na prática, variáveis [...]” (WILLIAMS,1979, p.

133).

Assim, para nós, estudar a região caririense via estrutura de sentimento é

plausível, por abranger a cultura constituída no passado e que ainda se faz presente

pela existência dos artesãos do couro, experiência esta que é histórica e geracional.

A contribuição deste conceito está na “[...] junção do objetivo e do afetivo, é uma

maneira de tentar transpor a dualidade da cultura, ao mesmo tempo realidade material

e experiência vivida” (EAGLETON, 2005, p.57).

51

Tal perspectiva, ao valorizar a experiência e uma identidade comum,

mesmo que não autoconsciente por parte dos artesãos, visou entender os artesãos

do couro e sua obra como uma das bases que sustentam o sentido de região do Cariri

cearense, pois “a esfera simbólica traz consigo a história e as tradições e promove a

reprodução de consciência social. A formação da forma simbólica de uma região

específica também canoniza um aparelho para distingui-lo de todo” 16 (PAASI, 1991,

p.245). Esse sentido de região fomentado pela narrativa dos artesãos é tencionado

frente o incessante processo de incorporação que reinterpreta, dilui, projeta

(WILLIAMS, 1979) uma região concebida pelo poder hegemônico mantenedor da

ordem social.

Segundo Williams (2011b) os Estudos culturais tem a sua raiz na educação

para adultos (na Inglaterra), na tentativa de trabalhar integradamente um projeto e

uma formação voltado ao acesso popular para “uma discussão dessa literatura em

relação às situações de vida que as pessoas estavam enfatizando fora dos sistemas

educacionais institucionalizados” (op cit.p.173). Ou seja, o autor tinha como proposta

de estudo cultural a relação entre o saber intelectual sendo dialogado junto à

população civil comum, que vive e reflete seu dia a dia, a partir das experiências nas

suas mais diferentes escalas.

Vemos como importante os estudos culturais apontados por Williams (op

cit.) para a Geografia, na medida em que a base desta ciência está na relação intricada

entre a sociedade e a natureza. Logo, em nossa perspectiva, a contribuição dos

estudos culturais proporcionou compreendermos as particularidades sociais na escala

do viver como um caminho de esclarecer quais variáveis devemos considerar para a

compreensão de uma espacialidade.

Contudo, no que tange à experiência inglesa, essa tentativa prática de

realização dos estudos culturais foi objeto de racionalização, teorização e

institucionalização acadêmica, o que proporcionou, segundo Williams (2011b; 2015),

o ‘esquecimento do projeto real’ e certo engessamento desses estudos, visto que

estes foram desenvolvidos segundo as premissas dos formalismos de intelectuais,

perdendo assim o foco e a essência original da proposta.

16 “Thus the symbolic sphere carries with it history and traditions and promotes the reproduction of social

consciousness. The formation of the symbolic shape of a specific region also canonizes an apparatus for

distinguishing it from all” (p.245).

52

Trouxemos a reflexão sobre os estudos culturais para a seara da geografia

Cultural e suas abordagens, neste quase um século de pesquisa, visto a influência da

escola Britânica e de Raymond Williams para a Geografia, bem como pelas diferenças

nuanças de pesquisa que se desenvolveram em nossa área desde Carl Sauer.

A geografia cultural de Sauer pautava-se nos estudos de áreas geográficas

distintas que poderiam ser “identificadas e descritas através do mapeamento dos

elementos visíveis da cultura material produzida pelos grupos culturais unitários”

(Cosgrove e Jacson, 2010, p.136). Nas palavras do próprio Sauer (2010,p.22-23):

A geografia cultural se interessa, portanto, pelas obras humanas que se inscrevem na superfície terrestre e imprimem uma expressão característica. A área cultural constitui assim um conjunto de formas interdependentes e se diferencia funcionalmente de outras áreas.

Com base na proposta do próprio autor, vemos que a geografia cultural da

década de 1930 muito se aproxima do conceito de Gênero de vida, visto que ambos

focam os estudos em comunidades mais ou menos fechadas, que têm a cultura como

um produto social. Não obstante, o elemento circulação/ fluxos, tão comum no século

XX e XXI, essa dinamização está para ambas como um desarticulador de um modo

de vida próprio, sendo um fio condutor para a ocorrência de mudanças.

Considerando o desenvolvimento das pesquisas na escola de Berkeley,

novas referências conceituais são estabelecidas, bem como metodologias são

desenvolvidas e a geografia cultural se difunde e diversifica seu campo de atuação,

ao passo da dinâmica social.

A década de 1970 é conhecida por ser um período de novos caminhos para

a geografia cultural, período em que novas características e recortes de estudos são

trazidos à luz da pesquisa para análise. De modo amplo, nesse período, as pesquisas

desenvolvidas estavam enveredando para desvendar as contradições sociais

relacionadas a grupos considerados minoritários e as relações entre grupos

dominantes e subordinados (Ver Cosgrove e Jacson, 2010).

Em relação a proposta de Sauer para com a geografia cultural, bem como

de autores como Cosgrove e Jacson (op cit.) e Mc Dowell (1996), entendemos que a

dinâmica da história tem influenciado e posto à reflexão os paradigmas da geografia

53

cultural. 17 Nesse sentido, a partir da dinâmica do mundo presente, em sua

intensificação de fluxos de informações, fazemos coro à McDowel (ibidem) quando

esta entende que o desafio aos geógrafos culturais é investigar “como as

interconexões entre forças globais e particulares local alteram os relacionamentos

entre identidade, significado e lugar” (op.cit p.181).

Sob o desafio de compreender as relações entre forças globais e

particulares alterando identidades, significados e lugares, concordamos que há um

fomento dos estudos culturais, inclusive na Geografia, possibilitando uma variedade

de recortes de pesquisa, bem como de vieses metodológicos de interpretação,

enriquecendo cada vez mais o debate nessa área da Geografia.

Kirsch (2013) expõe em seu artigo uma revisão teórica sobre a geografia

cultural dos últimos vinte anos e cita autores como Cresswel e Danniels para endossar

a afirmativa que a geografia cultural ascendeu de subcampo da Geografia para uma

formação transdisciplinar, sendo nos dias de hoje um produto inacabado, por ser um

campo aberto de pesquisa no qual os geógrafos têm estudado os processos culturais

em sua transformação em relação aos conceitos da Geografia.

Paasi (1991), a partir dos discursos geográficos da década de 1980,

examina os conceitos de região, espaço e lugar, elaborando uma “reinterpretação do

conceito de região como um marco sociocultural e categoria apresentada” (Paasi,

1991, p.239, tradução nossa) relacionando a cultura e a Geografia pela constituição

das histórias sociais.

Com base em artigos da década de 1990, Tolia - Kely (2011, 2010) perfaz

um panorama da geografia cultural, mostrando que para esse âmbito da Geografia

existem diferentes abordagens e endossa a inegável contribuição dos estudos

culturais, inclusive a partir de Raymond Williams, sob a perspectiva do materialismo

cultural. Kirsch (2013) atesta que a difusão do materialismo pela geografia cultural é

uma maneira prática e filosófica de engajamento nas pesquisas, mesmo entendendo

que há uma multiplicidade de abordagens. Para o autor:

Concepções relacionais de natureza, objetos, pessoas e espacialidades são enfatizadas até mesmo quando a natureza dessas relações são diferentemente compreendidas. Ao mesmo tempo, o materialismo requer que

17 Em obras publicadas no Brasil como ‘Geografia Humana’ organizado por Gregory, Martin e Smith , “Introdução

a Geografia Cultural” organizado por Corrêa e Rosendahl , e demais coletâneas, temos um panorama e

aprofundamento de como a Geografia cultural desenvolveu-se a nível mundial, bem como suas transformações na

década de 1970 e sua variedade no âmbito dos campos de atuação. Não obstante, TOLIA-KELLY (2010, 2011),

KIRSCH (2013) fazem um panorama de como está o andamento das publicações nessa área, bem como debatem

o compromisso político das pesquisas realizadas atualmente.

54

não determinemos o avanço dos processos em situações dadas – em termos gerais, a econômica, a política, a cultural, a hidrológica – as mais influentes, quais as hegemônicas, quais tem maior ou menor eficácia, tampouco precisar o papel que o ‘cultural’ deveria desempenhar. É preciso definir nossas próprias verdades - se necessário nossas próprias categorias de conhecimento – através de nossas investigações demostráveis das condições materiais de nossa existência (Kirsch, 2013, p.435, tradução nossa).

A assertiva de Kirsch condiz com o pensamento de McDowell (1996) em

relação à contribuição de Williams, quando a mesma afirma que Stuart Hall e

Raymond Williams são destaques de importância para a geografia cultural inglesa, a

qual “aborda questões sobre como os conjuntos de significados compartilhados e

identidades sociais estão ligados a lugar” (MC DOWELL,1996,p.169). A preocupação

de Williams (2015) em compreender que a cultura é algo comum e ordinário, que pela

experiência se expressa na forma da sociedade, conduz a uma perspectiva de

compreender a realidade em sua dinâmica. Essa abordagem, base para a vertente

materialista na geografia cultural, volta-se para a transformação e o processo das

relações humanas, ressaltando as particularidades implicadas no processo de

globalização (KIRSCH, 2013).

Tolia-Kely (2010) afirma que as publicações e editoriais mostram uma

tendência de pesquisa em geografia menos conservadora que por sua vez, revelam

uma perspectiva de engajamento político nas realizações das mesmas. Em relação

ao ponto de vista de Mc Dowell (1996), Tolia-Kely (2012) também creditou importância

à perspectiva cultural materialista, a qual impactou o desenvolvimento da Geografia

cultural:

O aspecto importante do materialismo para esses autores é uma possibilidade de mudança política e releitura de um complexo de vida que está situado na resolução humana e da violência não-humana, a alienação, recurso contra a pobreza [...].18 (TOLIA KELLY, 2012, p.155, tradução nossa).

Os estudos ‘marginais’, ou seja, estudos de objetos e processos não

“nobres” ou tradicionais na geografia, foram e são as temáticas sobre as quais os

estudos culturais buscaram intervir politicamente. Estes foram trazidos à luz a partir

das temáticas de diferenças raciais, sexuais, dentre outros temas, que foram

18 “The important aspect of materialism for these authors is a possibility for political change and reimagining of a

complex of living that is situated in resolving human and non-human violence, alienation, resource-poverty […]”

(p.155).

55

abraçados pela “Nova geografia Cultural” desde a década de 1970 ao buscar

compreender a dinâmica social pelas práticas sociais que marcaram todo um período

e eram desconsideradas pelos debates centrais à Geografia.

Paasi (1991) inclusive trouxe à nossa discussão o argumento de que

“discussões anteriores sugerem que há uma evidente necessidade de uma

abordagem histórica e cultural, mais explícita” (op.cit.p.24019) visto que, na opinião do

autor, muito se perdeu com os velhos paradigmas por conta de um separatismo social

pelos pesquisadores “o que levou os geógrafos a teorizar espacialidade per se,

ignorando a constituição social da realidade.” (ibidem, p.239 20). A resistência da

Geografia, assim como outras ciências para com o compromisso de desvendar a

realidade na sua pluralidade pode ser considerado um erro metodológico segundo

Lefebvre (1969):

O estudo das marginalidades e processos que operam nas fissuras não pode rejeitar para a penumbra o conhecimento dos fenômenos centrais e globais, notadamente os das relações de produção e de propriedade, dos conflitos e contradições que aí nascem. Isto seria um erro metodológico [...] (p. 91).

Logo, temáticas “nobres” ou não à Geografia estão articuladas, como

podemos refletir à luz das considerações de Lefebvre. Nesse sentido, vemos como

importante a influência dos estudos culturais na Geografia com seu engajamento

político, na perspectiva de descortinar as práticas cotidianas nas dimensões materiais

e culturais transformadoras do espaço.

A concepção de cultura para essa geografia cultural da década de 1970

toma um sentido diferente daquele concebido na década de 1930. Para a “nova

geografia cultural”, como ficou conhecida essa geografia cultural contemporânea, “a

cultura não é uma categoria residual, mas o meio pelo qual a mudança social é

experienciada, contestada e constituída” (COSGROVE E JACKSON,2010, p.136). Tal

assertiva condiz com a perspectiva de Williams (2015) na qual “Uma cultura são

significados comuns, o produto de todo um povo, e os significados individuais

disponibilizados , o produto de uma experiência pessoal e social empenhada de um

19 “Previous discussions suggest that there is an obvious need for a more explicit historical and cultural approach”

(p.240). 20 “The intellectual background for these debates is a disappointment with the old paradigms, above all spatial

separatism, which led geographers to theorise spatiality per se, while ignoring the social constitution of reality”

(p.239).

56

indivíduo.” (WILLIAMS, 2015,p. 12). Esse produto da experiência social e coletiva

comentado por Williams é o mote sobre o qual a ‘virada materialista´ assinalada por

Kirsh (2013) está se debruçando para avançar nas pesquisas em geografia, através

da geografia cultural.

Contudo, ao refletir a difusão da geografia cultural no Brasil, vemos como

necessário ponderar a assertiva de Correa e Rosendahl (2010) quando estes

afirmaram que a geografia cultural chegou tardiamente (na década de 1990) ao país,

e dentre os motivos deste “atraso”, estaria um “materialismo histórico mal assimilado”

(op.cit;p.9) na década de 1970.

A crítica de Corrêa e Rosendhal (ibidem) às pesquisas de cunho marxista

na década de 1970 no Brasil tem como cerne a mesma característica criticada por

Williams (2011a,2011,b) sobre o marxismo adotado por muitos pesquisadores, qual

seja: a separação da esfera produtiva da repercussão social e cultural.

Se observarmos a conjuntura política do nosso país na década de 1970,

período remetido por Correa e Rosendhal em relação ao atraso da Geografia cultural

no país, podemos constatar que estávamos num período ‘duro’ de ditadura militar.

Não mais que dois anos da instauração do Ato institucional 5 (AI5), e desse modo,

temos como característica cotidiana o patrulhamento ideológico e cerceamento da

vida como elemento comum desse período.

A implicação da conjuntura política se fez presente nos vários âmbitos da

vida, inclusive no meio acadêmico, o qual interferiu no delineamento das pesquisas.

No âmbito da ciência geográfica, o desenvolvimento da pesquisa se não fosse voltado

a uma geografia de cunho quantitativo, utilitária aos preceitos do status quo, cômodo

ao período, direcionava-se aos questionamentos desses preceitos, a partir da

perspectiva marxista. Contudo, a perspectiva marxista empregada e engajada na

Geografia para a denúncia social e a análise das contradições, enfatizava a lógica

econômica como primordial para a compreensão dos problemas sócio espaciais e

suas mazelas. Essa perspectiva de análise marxista, que erroneamente subestima a

cultura, como se esta fosse acessória à economia, é fortemente criticada por Williams

(2011a).

Para Williams (2011a): “só podemos entender uma cultura efetiva e

dominante se compreendermos o processo social real do qual ela depende”

(op.cit.p.53). Logo vemos que a ênfase do autor não se pauta numa separação entre

57

economia e cultura, ou economia e vida cotidiana, mas justamente na relação entre

as esferas da vida e as estruturas produzidas socialmente.

Sobre cultura, Eagleton (2005) ressaltou a dificuldade de se conceitualizar

esse termo, e corrobora com os geógrafos culturais mencionados ao compreender a

cultura como uma criação social, um modo de vida característico, valores do

autodesenvolvimento humano que para o autor:

[...] significa cultivo, um cuidar, que é ativo, daquilo que cresce naturalmente, o termo sugere uma dialética entre o artificial e o natural, entre o que fazemos ao mundo e o que o mundo nos faz. É uma noção 'realista', no sentido epistemológico, já que implica a existência de uma natureza ou matéria-prima além de nós; mas tem também uma dimensão 'construtivista', já que essa matéria-prima precisa ser elaborada numa forma humanamente significativa (EAGLETON, 2005, p. 11).

A cultura é expressiva para ser estudada visto que é constituída e

modificada socialmente, imbricada ideologicamente e permeia a vivência, produção e

autotransformação dos sujeitos sociais e suas formas de organização.

Posto isso, concordamos com a afirmativa de Williams (2011a) que “A

‘base’ é a existência social real do homem. ‘A base’ são as relações reais de produção

que correspondem a uma fase do desenvolvimento das forças produtivas materiais.

‘A base’ é um modo de produção em um determinado estágio de seu

desenvolvimento” (p. 46). Nesse sentido, se temos todo um direcionamento de forças

produtivas, elas não se dão ao acaso, mas se realizam pautadas em valores e práticas

humanas que favorecem uma dominação de classe. Nas palavras do autor: “é o

sistema central, efetivo e dominante de significados e valores que não são meramente

abstratos, mas que são organizados e vividos (op.cit , p. 54)”.

É a partir da proposta de compreender o espaço pelos processos

intrínsecos que o formam, articulando os fatores locais nos âmbitos políticos,

econômicos e culturais que significa fazer geografia cultural materialista.

Logo, na continuidade desse capítulo, abordamos como a cultura cearense

foi reconhecida/ fomentada pelo estado do Ceará. Considerando a estruturação

histórica do sertão, bem como do cariri Cearense, é importante averiguar como , no

período presente, o Estado enquanto agente regulador de discursos e de realização

de políticas públicas têm adotado ações em prol da sociedade em sua expressão

cultural histórica, bem como também é importante analisar o viés de como o artesão

do couro têm sido representados nesse processo.

58

3.2 RECONHECIMENTO DO ESTADO E PROMOÇÃO DO ARTESANATO

O estado do Ceará, na tentativa de promover a cultura cearense tem

fomentado ações para o reconhecimento e desenvolvimento da cultura e do

artesanato no estado. A criação da Ceart (Central de Artesanato do Ceará) e as

políticas de estado promovidas em diferentes governos têm proporcionado um resgate

e a difusão do saber popular de modo a enaltecer e reconhecer os sujeitos

mantenedores dessas práticas.

Desde 2003 o governo do estado do Ceará estabeleceu o programa

‘Tesouros vivos da cultura’ e programou uma legislação que seleciona pessoas com

conhecimento de artes materiais e imateriais , intitulados “mestres da cultura” para

receber um salário mínimo mensal de maneira vitalícia. Essa ação do estado tem a

intenção de manter a cultura popular e propagá-la. Para tanto, nesse programa,

anualmente são escolhidos cinco mestres da cultura, que dentre os critérios de

seleção, leva em conta:

[...] ter comprovação da existência e relevância do seu saber ou do fazer; ter reconhecimento público; deter a memória indispensável à transmissão do saber ou do fazer; propiciar a efetiva transmissão dos conhecimentos e possuir residência, domicílio e atuação, conforme o caso, no Ceará, há pelo menos 20 anos, completos ou a serem contemplados no ano da candidatura. (fonte: http://www.secult.ce.gov.br/index.php/latest-news/44453-edital-dos-tesouros-vivos-da-cultura-prorrogado-prazo-de-inscricoes-ate-10-de-dezembro).

Dentre os mestres selecionados desde o ano 2004 a 201521, temos

diversas tipologias referentes a artesanatos manuais, danças, expressões religiosas,

etc. A maioria deles residentes no interior do estado, de vida simples, e de expressiva

qualidade na obra que realizam. No Anuário do Ceará22, podemos observar o enfoque

à espontaneidade da experiência humana como elemento de reconhecimento de

pessoas simples que vivem a cultura e contribuem com a mesma:

Quase que anualmente, a Secretaria da Cultura do Ceará (Secult-CE) diploma pessoas, grupos ou comunidades que realizam com maestria o delicado trabalho de permear as tradições culturais que nasceram e se firmaram de forma espontânea no Estado. Eles são os chamados “Tesouros

21 É importante ressaltar que a premiação “tesouros vivos da cultura” aconteceu initerruptamente nos anos

2004,2005,2006,2007,2008,2009 e posteriormente, para as edições 2013 e 2014/2015. 22 Ver apêndice B – Lista dos Tesouros Vivos da cultura do estado do Ceará para os períodos de realização do

edital.

59

Vivos da Cultura”. (http://www.anuariodoceara.com.br/mestres-da-cultura-do-ceara/)

A seguir o mapa abaixo localiza no estado do Ceará a origem municipal

dos mestres de cultura agraciados com esse título, bem como o perfil cultural

disseminado por estes ‘tesouros vivos’:

60

Mapa 1- localização dos 'Tesouros vivos da cultura' Cearense

61

Dentre os mestres reconhecidos pelo poder do Estado, dois artesãos do

couro são contemplados, quais sejam: Joaquim de Cota (2006), advindo do município

de Assaré e Espedito Seleiro (2008) advindo de Nova Olinda. Ambos do Cariri, mas o

primeiro (já falecido) confeccionando selas e o segundo, reconhecido por confeccionar

bolsas e calçados.

O projeto ‘tesouros vivos da Cultura’ do Governo do Estado está presente

no plano Estadual da cultura aprovada pela Assembleia Legislativa no ano de 2016,

“definindo as metas e diretrizes para a política cultural nos próximos 10 anos”. Logo,

o reconhecimento e valorização da cultura por parte do estado, condiz com a mesma

proposta para com o artesanato, que culmina na valorização da cultura como vetor de

desenvolvimento socioeconômico. Podemos observar, não obstante a valorização dos

sujeitos e suas artes – elementos da cultura cearense – O estado tem buscado

também associar um caráter econômico a essas representações desde a década de

1970 quando da idealização da Ceart.

Ao visitar os espaços de âmbito institucional como a Ceart e o Serviço

Brasileiro de apoio às micro e pequenas empresas - SEBRAE constatamos que houve

um reconhecimento cultural do Cariri por parte dos representantes desses

organismos. A vivência dos artesãos, independente da modalidade realizada,

contribuiu para a importância dada por estas instituições aos sujeitos sociais que

construíram cotidianamente a história e geografia do Cariri cearense. No que tange

aos artesãos do couro, percebemos um avanço no sentido institucional para com o

reconhecimento e divulgação de suas obras.

Em visita ao SEBRAE em Juazeiro do Norte, adquirimos a publicação

“Impressões” (2006), catálogo produzido pela instituição (Juazeiro do Norte) em

parceria com o governo do Estado o Ceará sobre as modalidades de artesanato

presentes no Cariri cearense. Neste catálogo a instituição reconheceu que “As peças

de artesanato, como expressão de cultura, têm o caráter específico de portadores de

identidade e valor de sentido” (p.9). Ainda para estes órgãos, o artesanato é

importante fonte de emprego e renda e um mantenedor das tradições locais. A

publicação se remete ainda ao traço cultural do Cariri, afirmando:

A atração de populações, em princípio pelo pasto para o gado, pelas notícias do ouro e, depois, pelos milagres de Padre Cícero tornou o Cariri - Ceará lugar de encontros culturais, junção de diferenças e troca de saberes. O Cariri é uma cultura viva que se celebra na vida cotidiana (SEBRAE, 2006, p.17).

62

O reconhecimento do estado do Ceará para com a cultura caririense tem

no artesanato a sua maior expressão material. Entretanto, dentre as diferentes

modalidades expostas de artesanato produzido na região, o artesanato em couro não

estava presente no catálogo, tendo em vista a não organização burocrática do

segmento, que segundo elementos da entrevista informal realizada em novembro de

2012, só poderiam participar daquela publicação, as entidades que tivesses CNPJ.

Logo, nenhuma entidade / associação do couro tinha esse requisito naquele período.

Contudo, no catálogo de artesanato do Ceará publicado em 2014

“Artesanato cearense: tradição que se renova” pela mesma parceria SEBRAE e

Governo do Estado, podemos contemplar a representatividade do setor do couro de

maneira organizada e formalizada por associações de Nova Olinda, Crato e de

Campos Sales23. Essa mudança mostra como essa arte que já marcava a região e é

tão importante a esta, se organizou em termos jurídicos a ponto de serem

contemplados pelo governo do Estado para com a difusão e propaganda do seu

artesanato.

Para o governo do estado, atuar junto ao artesanato é mais que um

programa de governo, visto que através da Ceart significa: “consolidar o artesanato

cearense no mercado nacional, otimizando suas atividades, investindo em qualidade

e preservando a identidade de um povo criativo e trabalhador” (CEARA, 2014,p.7).

3.2.1 Ceart– Central de Artesanato do Ceará24

A Ceart está ligada a Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento social do

governo do Estado do Ceará. Essa central foi idealizada pela primeira dama, Sra.

Luiza Távora em 1979 enquanto ação governamental para apoiar os artesãos e o

artesanato cearense. Contudo, a inauguração da Central de Artesanato do Ceará

como ela se encontra hoje ocorreu em 1992 no governo de Tasso Jereissati.

23 Associação Oficina Escola Espedito Seleiro; Associação de couro do Crato ; Associação dos artesãos de Campos

Sales Xique Chique. 24 A partir das entrevistas realizadas em Fortaleza e Juazeiro do Norte, nos dias 05 e 15 de fevereiro de 2014, o

foco das ações da CEART foi exposto e detalhado nas entrevistas realizadas.

63

Figura 1- Ceart Cariri

Fonte: elaborado pela autora

Figura 2 - Ceart Fortaleza

Fonte: elaborado pela autora

A Ceart credencia o artesão proporcionando a ele a isenção de ICMS do

seu produto, fornece capacitação (“para resgatar aquele costume”) e auxilia na

comercialização dos produtos.

Os cursos oferecidos pela Ceart, segundo a representante da central em

Juazeiro do Norte, são realizados segundo a demanda. Essa demanda pode ser um

grupo novo que não domina a técnica solicitada, como já pode ser um grupo

64

experiente. Normalmente o contato do público da capacitação se da mediante

associações organizadas ou pelo próprio município buscando a Ceart, assim como a

instituição Ceart também entra em contato com os municípios via secretarias

(principalmente de Ação social).

A Ceart visita a comunidade pra ver se realmente existe aquele grupo com a tipologia de costume para fazer um diagnostico 25. Mas antes não era assim, não tinha o diagnostico e o problema é que as pessoas faziam o curso só pra fazer. E ao fim da capacitação não tinha resultado + Não produziam para gerar renda, que é a intenção do Ceart, pra melhorar a condição financeira pelo artesanato.

A preocupação da Ceart não está só na “busca preservar o talento dos

artesãos e a arte popular” como afirma a secretaria de desenvolvimento social, mas,

preocupa-se principalmente com o produto final que é a geração de renda, pela venda

do artesanato enquanto produto/ mercadoria. No site da Secretaria do trabalho e

Desenvolvimento social está expresso a intenção da central como:

Com o intuito de fortalecer as entidades artesanais e colaborar para o avanço da política no Estado, são realizadas ações de capacitações de gestão empreendedora e tecnológica para o desenvolvimento de novos produtos, viabilização da participação dos artesãos em feiras e eventos; além do incremento na qualificação, organização da produção e comercialização do artesanato com foco na ampliação dos canais de comercialização, gerando assim uma renda maior para o setor. (http://www.stds.ce.gov.br/index.php/programa-de-desenvolvimento-do-artesanato-do-estado-do-ceara/ceart#)

Para tanto, a central não limita sua ação a grupos que já têm

conhecimentos prévios, visto que o compromisso desse braço do Estado também é

fomentar a geração de renda a partir desse setor. Dessa forma, a Ceart além de

reconhecer o artesanato produzido e estabelecido historicamente, também ensina o

oficio àqueles que não têm tradição na modalidade artesanal. Segundo entrevista com

a representante da Ceart – Cariri26:

Quando é um grupo novo, que nunca desenvolveram aquele artesanato, agente contrata um mestre artesão para iniciar. Quando é um grupo que desenvolve aquela tipologia, já faz um trabalho, agente contrata um designer pra ver como eles trabalham matéria prima. aí criam uma nova coleção. 27

25O diagnostico vai pra Fortaleza pra ser analisado por uma equipe e eles autorizam ou não a capacitação. 26 Entrevista realizada em 05/02/2014. 27 A capacitação para acontecer tem que ter pelo menos 25 pessoas, mas os cursos são abertos à comunidade e não

só restrito à associação. A associação funciona como meio para se chegar às pessoas.

65

Podemos constatar que a preocupação da Ceart consiste na capacitação

de mão de obra bem como na mediação para a venda das mercadorias. Não obstante

a essa perspectiva, é interessante refletir que a central também auxilia o artesão a

calcular seu lucro sobre a peça, mas o parâmetro para o cálculo é o salário mínimo.

Todos esses elementos, tencionados pelo Estado, promovem o artesanato enquanto

um produto, mas não fortalecem a relação de subjetividade entre o artesão e sua obra,

abrindo espaço para uma alienação entre o artesão com o seu trabalho, bem como o

limita financeiramente pela sua reprodução pautada no salário mínimo enquanto

paradigma.

Sob o discurso de preservar o talento e a arte popular, a Ceart

contraditoriamente é utilitária enquanto vitrine ao turismo para a revenda da produção

advinda de todo o Ceará em suas lojas urbanas. Tal fato não é de se estranhar, visto

que “as condições gerais do sistema capitalista e as próprias dificuldades de os

artesãos nele se inserirem e se organizarem de modo consistente torna-os cada vez

mais dependentes do capital comercial” (CANCLINI, 1983, p.100). Em nossa

conjuntura de globalização, o fim comercial como meio de subsistência dos artesãos

tem fortalecido a ressignificação do processo do trabalho artesão como um todo

mundialmente.

Vale ressaltar que nas entrevistas com os artesãos, alguns deles já

colaboraram para a Ceart como ‘mestre artesãos’ nesses cursos de capacitação. Além

do que, a existência do designer para os grupos experientes mostra a preocupação

da Ceart (e é reconhecida por ela) em proporcionar uma estética voltada ao mercado

desde que associada ao traço cultural da atividade28.

A proposta da Ceart ao oferecer cursos com designer a artesãos com

experiência, tende a criar uma sintonia entre a estética culturalmente produzida e uma

expectativa de mercado. Sobre essa realidade, vemos claramente o deslocamento do

sentido social do artesanato, visto que o processo artesanal se subordina ao mercado

e suas tendências para uma melhor oportunidade de venda, que é direcionada pelo

designer profissional a um consumo estético/decorativo, ou mesmo suntuário “que

serve de distinção social para setores com alto poder aquisitivo” (op cit., p. 102).

Além das lojas urbanas, localizadas em espaços nobres e centrais da

capital cearense, a Ceart também promove feiras nas quais os artesãos cadastrados

28 A Ceart Fortaleza ressalta que os jovens não estão se interessando pelo artesanato.

66

são convidados a participar. As feiras sempre aconteceram em Fortaleza, mas em

2013 teve sua primeira edição fora da capital, essa edição foi realizada em Juazeiro

do Norte, Crato (Cariri) e em Sobral. Em 2014 a feira teve sua segunda edição em

Juazeiro do Norte no mês de março, desta vez com expositores de todo o estado e

não só do Cariri, como ocorreu em 2013. Segundo a representante da Ceart Cariri

“Convidamos na maioria das vezes os grupos, pois trabalhamos muito com as

entidades para não beneficiar só uma pessoa.”.

Ao questionar a Ceart em Juazeiro do Norte sobre suas ações no Cariri, e

a delimitação dessa região para as atividades, a mesma afirmou que a elaboração

dos projetos para atender àquela área foi realizada em Fortaleza. Assim, nos

direcionamos para a capital e lá a representante nos informou que o Cariri enquanto

região institucionalizada pelo estado é constituída por 29 municípios, e sobre essa

delimitação ela afirma que: “Eu acho que a escolha também foi pelas características

geográficas, pela chapada que interfere em muitos municípios. Pois o Cariri já é uma

região. Em nível de administração do estado, eles estão na região 8 [...]”. 29Além da

presença da chapada, a representante alega que o clima é comum à região, o que a

diferencia das demais. Desse modo, percebemos que a justificativa da regionalização

fornecida pela representante da central de artesanato não é muito clara30, visto que

acrescentaram três municípios do centro-sul (Tarrafas, várzea Alegre e Lavras da

Mangabeira) na atuação da Ceart, porém considera as características físicas e

climáticas da região como importante para delimitá-la.

A representante afirmou que a Ceart trabalha com o artesanato em todo o

estado, mas que além de Fortaleza, a outra sede é localizada no Cariri (na entrevista

nossa interlocutora se remete à região e não ao município de Juazeiro do Norte, onde

a sede está situada) para facilitar o trabalho, pois “o que tem aqui no Cariri é o forte

pra metade do Ceará, lá tem tudo é a vida toda. No Cariri, culturalmente o artesanato

toda vida foi muito forte, já em outros municípios é decorrente da geração de renda.

Eu era menina e já usava aquela chinela rasteira do Cariri.” A partir da fala da

representante, vemos que o artesanato no Cariri tem uma essência, não é um

artesanato forjado para o mercado em sua origem, e como símbolo desse artesanato,

29 Entrevista em trabalho de campo 15/02/2014 30 Aurora, Barro, Mauriti, Milagres, Abaiara, Brejo Santo, Porteiras, Jati, Penaforte, Jardim, Barbalha, missão

velha, Juazeiro, Crato, Caririaçu, Granjeiro, Farias brito, Altaneira, Nova Olinda, Santana do cariri, Assaré,

Antonina do norte, Campos Sales, Salitre, Araripe e Potengi.

67

a interlocutora já mencionou a chinela de couro, conhecida popularmente como

currulepe.

Podemos perceber a partir da entrevista com a responsável pela CEART

em Fortaleza que não há uma concepção clara de critérios para regionalizar um

espaço pensando o artesanato ou a valorização e reconhecimento do trabalho

artesão. Essa constatação se deu quando a central legitimou a região dividida por

critérios econômicos para o seu trabalho social. Entretanto, apesar do critério de

regionalização, é salutar reconhecer a importância da ação de buscar abranger e

atender a maior quantidade de artesãos possível dentro do estado do Ceará.

No que tange ao artesanato propriamente dito, constatamos também que a

CEART se preocupou em fomentá-lo enquanto produto para o mercado, como um

instrumento de geração de renda, no qual a própria representante, a partir de sua

entrevista, diferencia o artesanato que tem seu sentido histórico e cultural, daquele

produzido sob a conjuntura atual que não tem um significado original.

Mesmo tendo sido profícuo o trabalho de campo e entrevistas realizados

com foco sobre a CEART, verificamos que apesar da sua abrangência e organização

para com o artesanato, muitos artesãos do couro não constam na sua lista de

entidades (ver apêndice I), inclusive por não estarem associados a nenhuma

associação ou órgão. Alguns deles, na especificidade do trabalho voltado à montaria

(selas, arreios, luvas ...), ainda têm menos expressão no que tange ao foco da

instituição, pela inadequação do seu produto ao mercado urbano com sua

diversificada demanda de uso.

Até então trouxemos para a análise as informações a partir da proposta do

Estado, através da CEART, para difusão e manutenção do artesanato e cultura. Nesse

sentido, pudemos constatar o artesanato como uma maneira de expressão cultural

valorizado por seu valor humano, histórico e cultural, mas que também permeia a

realidade cearense como uma atividade econômica de subsistência. Nesse sentido,

percebemos a interface entre o legado histórico do artesanato em couro, a

manutenção da atividade artesã como um modo de vida residual e sua imbricação

com as demandas do mercado no presente.

A divulgação do artesanato cearense, e em nosso recorte, o artesanato em

couro advindo do Cariri cearense, tem sido realizado junto aos meios de mídia como

jornais e televisão, bem como procurado enquanto objeto de consumo por turistas ou

locais. Nas palavras de Canclini (1983):

68

O artesanato conserva uma relação mais complexa em termos de sua origem e do seu destino, por ser simultaneamente um fenômeno econômico e estético, sendo não capitalista devido à sua confecção manual e seus desenhos, mas se inserindo no capitalismo como mercadoria (p. 91).

Logo, o artefato em si encerra tanto a história geracional do grupo social

que o confecciona, representa a cultura e região de onde provêm, e ainda é consumido

enquanto representação da estrutura de sentimento o qual compõe. Entretanto, cada

vez mais no mundo globalizado, corroborando com a assertiva de Canclini, o seu

destino está cada vez mais difuso em relação à sua origem, o que nos leva a refletir

sobre sua condição no século XXI.

A temporalidade presente, de ressignificação da cultura e artesanato não

condiz com as condições basilares da condição do trabalho artesão, apesar deste

sujeito continuar resistindo no tempo atual. A reprodução social contemporânea é

sustentada pelo modo capitalista de produção, pela alienação do trabalho e no

empobrecimento da vida.

Sobre a realidade contemporânea, Martins (2013) situa a modernidade a

partir dos ritmos desiguais do desenvolvimento econômico e social, que incorpora,

inclusive, culturas e relações sociais datadas. Deste modo, o autor aponta para a

dimensão do conflito causado pela modernidade em relação ao cotidiano e a

reinvenção dos significados. Nas palavras de Martins: “A modernidade se instaura

quando o conflito se torna cotidiano e se dissemina, sobretudo sob a forma de conflito

cultural, de disputa entre valores sociais [...]” (p.21-22). Contudo, em contradição com

o próprio sistema, ainda vemos persistir no século XXI o artesão tradicional, mas sob

uma nova conjuntura.

69

4 O ARTESÃO E SEU ARTESANATO: UMA CONSTRUÇÃO COLETIVA

Ao escolhermos os artesãos do couro para analisarmos sua narrativa,

entendemos que estes artesãos são sujeitos, os quais, em suas diferenças, se

assemelham a partir de vivências, valores e experiências, que sob o contexto histórico

da formação do Cariri cearense, realizaram suas obras, obras estas que permearam

o simbólico da região e ainda conferem significado a esta, a partir da sua estrutura de

sentimento.

A partir de cada declaração, observamos a valorização do trabalho por

parte de quem o faz, trabalho este associado ao seu produto final, realizado com

esmero, dedicação e vontade para além do preço. Tais artesãos demostraram que a

sua experiência no trato com o couro ultrapassou a condição de profissão e trabalho

alienado. Ao contrário, o desenvolvimento e capricho da atividade que têm realizado

e a obra que produzem nos mostram a existência de um estilo de vida e valores

experienciados na individualidade de cada qual, bem como nos permite enxergar a

riqueza do que fazem também enquanto coletividade social.

A presente exposição, que intende mostrar o produto de nossa pesquisa,

foi desenvolvida a partir do processo metodológico de categorização (GOMES, 2012)

das entrevistas abertas. A partir das entrevistas abertas realizadas com os artesãos,

observamos que estes elencaram temáticas comuns à sua vida cotidiana, que para

nós, constituíram parte do conteúdo da estrutura de sentimento dos artesãos em couro

do Cariri Cearense.

Com base no direcionamento de Gomes (2012) em relação à pesquisa

qualitativa, pudemos analisar as entrevistas de modo a encontrar representações

sociais comuns nas falas, presente no quadro a abaixo, no qual os núcleos de sentido

são decorrentes de uma análise das entrevistas transcritas, observando repetições

temáticas nas falas dos diversos artesãos. Nesse sentido, construímos o quadro ‘2’

em sintonia com a perspectiva de Gomes (2012, p.100) quando este afirma “com essa

etapa, buscamos, de um lado, ter uma visão de conjunto e, de outro, apreender as

particularidades do material” (p.100). O quadro a seguir serve como uma estrutura de

análise para nossa interpretação, a partir das informações e ações coletadas junto

aos atores (GOMES, 2012).

70

Quadro 2 – Núcleos de sentido para a interpretação dos conteúdos das

entrevistas

Núcleos de Sentido Particularidade apreendida para

análise

Inicio do trabalho com couro

Mostra as condições particulares que levaram o artesão a trabalhar com o couro bem como o contexto da época em que isso aconteceu.

Modalidade de produção

Mostra o tipo de artesanato em couro a que o artesão entrevistado se dedica. Tal categoria possibilita reconhecer as ferramentas e tempo de trabalho bem como o perfil de publico consumidor.

Criação das peças

Mostra a autenticidade do artesão bem como quais influências ele tem.

Origem do couro Possibilita apontar o alcance do circuito produtivo.

Material utilizado

Mostra o grau de modernização no processo de confecção das peças.

Critério para preço Expõe a mentalidade comercial do artesão.

Quantidade de ajudantes Mostra a expressão da demanda atendida pelo artesão e produtividade

Comparativo na produção dos artefatos contemporaneamente e antigamente

Possibilita ver pela ótica do artesão quando é o ‘antigamente’ e o que caracteriza esse período, bem como o que caracteriza o período atual.

Marca na peça (carimbo)

Suscita perceber como o artesão pensa em se diferenciar ou não no mercado e suas intenções com a marca.

Funcionamento das vendas e entrega das mercadorias

Mostra os processos que concretizam o artesanato como mercadoria e como isso se dá a partir do artesão.

Participa de associação

Auxilia a perceber quais pontos positivos e negativos de um tipo de organização.

Importância do trabalho Como ele percebe o trabalho que faz, mostrando identidade.

Fonte: elaborado pela autora

71

Nesse capítulo apresentamos de maneira mais expressa a vivência dos

artesãos. A partir de suas narrativas, buscamos trazer ao leitor a realidade a partir da

narrativa desse grupo social, considerando a sua própria experiência. Para tanto,

organizamos essa sessão em dois tópicos; o primeiro discorre sobre os curtumes, as

feiras e os próprios artesãos, entendendo-os enquanto componentes da estrutura de

sentimento da região Cariri cearense. O segundo tópico explana mais propriamente

sobre os artesãos em relação à especialização de suas obras, as quais organizamos

em tipologias: mantaria, chapéus e calçados.

4.1 OS COMPONENTES DA ESTRUTURA DE SENTIMENTO: CURTUMES,

FEIRAS E ARTESÃOS DO COURO.

Curtumes

Pudemos verificar nas entrevistas realizadas com os donos de curtumes a

importância do cuidado com as peles do gado para sua transformação em sola,

vaqueta, raspa etc., o couro como conhecemos de maneira geral. A qualidade do

couro é determinada ainda no período da condução e abate do gado. As marcas no

gado ainda vivo perduram na pele a ser curtida, seja pela marcação de posse, como

arranhões do mato, corte etc. Segundo os artesãos, o couro curtido dura de 10 a 15

anos que não estraga e o processo de curtimento é necessário para a transformação

da pele in natura para o couro curtido.

O processo de curtimento é importante de ser registrado, visto que

historicamente ele está associado diretamente à produção dos artefatos em couro,

fato que veio se transformando ao passo da modernização e competitividade do setor,

separando-se em duas cadeias produtivas bem distintas atualmente: curtimento do

couro e produção de artefatos.

Segundo entrevistas com os artesãos de Várzea Alegre e Nova Olinda, o

curtimento do couro era parte integrante da atividade do vaqueiro. Este (o vaqueiro)

costumava, ele próprio, consertar e confeccionar as peças de uso do seu trabalho no

tempo livre. E para confeccionar esses objetos dos quais necessitava, ele

primeiramente tinha que curtir31 a pele do animal, o couro, para então utiliza-lo.

31 O curtimento do couro é um processo de transformação da pele animal (no sertão normalmente se curte a pele

de boi e bode para uso dos artefatos abordados nessa tese), matéria prima in natura em couro curtido, ou seja,

couro estável, salvo da degradação microbiológica natural.

72

O curtimento era comum à atividade do vaqueiro juntamente com a

confecção de algumas peças de trabalho, principalmente de pequeno porte como

cabeçadas e arreios. Contudo, ao passo desse costume, também já existiam os

conhecidos “mestres seleiros”, os artesãos que faziam profissionalmente as selas e

demais artefatos de montaria, sejam eles de maior ou menor complexidade. Mesmo

os seleiros tinham de dedicar-se ao trato do couro, como podemos averiguar na fala

do senhor Fernando, que por muito tempo foi seleiro, e expõe bem essa realidade:

Hoje ta muito fácil de trabalhar... Era diferente. o couro já vem todo trabalhado. Naquele tempo agente comprava o couro cru, já curtido, mas agente que tinha que beneficiar ele. Ainda vinha com pele, tirava com facão, tinha que molhar ele, botava de molho, passava um sabugo de milho bem passado (pra deixar o lado de dentro bem lisim).

O sr. Raimundo Nonato afirma que o couro está diferente. Inclusive pela

maneira como o couro é curtido hoje.

Antes o couro no curtume era só curtido na casca de angico. Não botava preparo nenhum Assim hoje o curtume já é diferente. A casca de angico é pouco, tem mais outro preparo pra da qualidade. Pra curtir é rápido. E o couro passava 1 mês dentro do tanque, hoje com 20 dias o couro ta curtido. antigamente era mais de 1 mês.

Segundo os artesãos entrevistados, o curtimento do couro tem um

procedimento comum, mesmo com algumas variações, entretanto, a maneira como

ele é realizado tem sido modificado com o incremento de alguns componentes

químicos, bem como com a modernização do setor. Esse processo costuma ser

realizado nas localidades denominadas curtumes.

É importante destacar que o processo de transformação da pele em couro

curtido viabiliza diferentes tipos de couro, quais sejam: Sola, camurça, raspa, vaqueta

(couro de melhor qualidade), raspilha (subproduto do couro) e o couro de bode, mais

maleável que a sola (feita de couro de boi). Observando os artefatos em couro

produzidos pelos artesãos e a partir do questionamento sobre a origem e tipo de

matéria prima que usam, constatamos que a sola é base do artesanato, bem como se

usa também couro de bode, vaqueta e raspa.

Em entrevistas com donos e ex-donos de curtumes de Fortaleza, Várzea

Alegre, Assaré, Campos Sales e Ouricuri (PE), bem como com base no relatório

técnico de Recamonde (2006), o processo de transformação da pele em couro se dá,

basicamente, com os seguintes processos: classificação do couro, lavagem, caleiro,

73

descarne, desencalagem e curtimento. Entretanto, os produtos finais dos curtumes

variam de acordo com a sua complexidade e modernização.

Na classificação do couro, a pele salgada (matéria prima natural) adquirida pelo

curtume é separada para classificação daquelas que serão utilizadas para o

curtimento. Nesse processo leva-se em conta o peso e o tamanho da pele.

Figura 3 - Peles para lavagem. Curtume modernizado em Ouricuri/Pe.

Fonte: Antônio José; 2015

No processo de lavagem (remolho32), as peles são levadas ao ‘fulão’, para

serem lavadas com água e perderem o excesso de sal. Abaixo podemos observar os

fulões em curtumes modernizados e artesanais.

A pele lavada passa em seguida para o processo de caleiro, no qual

consiste na retirada dos pelos da pele. No curtume artesanal esse procedimento se

utiliza de cal e cinzas de madeira sob e sobre o couro, sendo esse virado

manualmente e diariamente durante o período de uma semana. Nesse processo a

pele fica mais espessa e com coloração voltada para o branco. Nos curtumes

modernizados, esse procedimento é realizado com cal, sulfetos, aminas e detergente

em um processo mecanizado.

32 Em trabalho de campo no curtume modernizado de Fortaleza, em setembro de 2015, nos foi informado que a

pós a lavagem da pele para a retirada do excesso de sal, também há outra lavagem para a reidratação da mesma.

Entretanto, em visita ao curtume artesanal em Várzea Alegre nesse mesmo período, a reidratação da pele é

realizada a pós o curtimento.

74

Figura 4 - Fulão de lavagem/ Curtume modernizado de Fortaleza/CE

Fonte: Antônio José;2015

Figura 5 - Fulão de lavagem/Curtume modernizado de Ouricuri/PE

Fonte: Antônio José; 2015

75

Figura 6 - Fulão de lavagem em curtume artesanal de Várzea Alegre/Ce.

Fonte: elaborado pela autora

Figura 7 - Tanque para procedimento de caleiro. Curtume artesanal em Várzea

Alegre/Ce.

Fonte: elaborado pela autora

A pós a pele limpa, reidratada e depilada, ela segue para o procedimento

de descarne, no qual se removem os resíduos de gordura. Esse procedimento é

manual nos curtumes artesanais e mecanizado nos curtumes mais modernos.

76

Figura 8 - Ilustração de descarne do couro

Fonte: elaborado pela autora

Segundo o representante do curtume de Várzea Alegre, a pós descarnar a pele, esta

passa para o curtimento na casca de Angico, passando uma média de 30 dias imersa

numa solução de água e casca. É esta casca que tinge o couro de marrom e da a ele

um cheiro característico. Tanto o curtume situado em Várzea Alegre como o

curtimento artesanal em oficina dos irmãos de Carmelópoles – distrito de Campos

Sales – tem como produto final somente a sola.

Figura 9 - Máquina 'divisora', utilizada nos curtumes mecanizados para limpeza

da pele ou retirada da raspa.

Fonte: elaborado pela autora

77

Figura 10 - Tanque de curtimento com casca de Angico no Curtume de Várzea

Alegre/Ce.

Fonte: elaborado pela autora

O couro curtido, nesse caso, a sola, passa por outra lavagem, é hidratado

com óleo e colocado para secar preferencialmente á sombra (visto que secar no sol

resseca o couro).

Figura 11 - Couro secando a sombra. Várzea Alegre/Ce

Fonte: Thamires Romcy, 2015.

78

Figura 92 - Estiramento do couro. Distrito Carmelópoles /CE.

Fonte: elaborado pela autora

Nos curtumes mecanizados, como o de Fortaleza/Ce e de Ouricuri/Pe, para

o curtimento das peles utiliza-se o mineral Cromo em vez da casca de Angico. Nesse

caso, o estabelecimento é autorizado pela Polícia Federal para manusear o mineral.

Nesses curtumes, existem outras etapas dentro do processo produtivo de curtimento,

bem como especificidades de manuseio e cuidado de acordo com os diferentes

produtos finais, antes de os armazenarem para a venda.

O curtume situado em Fortaleza/Ce só produz uma modalidade de couro

utilizada pelos artesãos, à vaqueta. Sua cartela de produtos tem como foco a venda

do couro ‘wet-blue’, o qual é majoritariamente vendido a indústrias do Rio Grande do

Sul. É importante destacar que somente dois artesãos (os artesãos do Crato que

produzem em larga escala para vender a todo o Nordeste) mencionaram ter comprado

sua matéria prima deste curtume algumas vezes, o que corrobora com a observação

que fizemos em trabalho de campo, que o cliente potencial deste curtume é a média

e grande indústria.

O curtume localizado em Ouricuri/Pe também fornece matéria prima para

médias e grandes empresas, entretanto, ele também atende a quase totalidade dos

artesãos entrevistados do Cariri cearense, seja com a venda da vaqueta, bem como

da sola e da raspa.

79

Figura 103 - Couro estirado no curtume de Ouricuri/Pe

Fonte: Antônio José, 2015.

Constatamos entre os entrevistados a dificuldade em comprar matéria

prima (sola) no Ceará, visto que o curtume situado em Juazeiro do Norte não produz

sola, e até o fim de 2015 o curtume de Várzea Alegre estava para ser fechado,

reproduzindo uma realidade de fechamento de curtumes que iniciou há tempos atrás,

como por exemplo com fechamento do curtume de Assaré (década de 2000). É

importante ressaltar que esses curtumes que encerraram suas atividades eram os que

produziam sola, a base do artesanato em couro do Cariri cearense.

Segundo os entrevistados (donos de curtumes que fecharam e artesãos),

são diferentes os motivos que contribuíram para essa realidade. Um deles, a

adequação às questões sanitárias, visto que a expansão das cidades acabaram por

incluir os curtumes na delimitação urbana dos municípios, impelindo-os a mudar de

local; a dificuldade de obter a casca de angico tendo em vista a problemática ambiental

e dificuldade de permissão junto ao IBAMA; o alto custo de produção e

comercialização no Ceará com impostos33 bem elevados se comparados a outros

estados. Nas palavras de Matheus: “até dois anos atrás (2012) eu tinha um curtume

33 Esse é o argumento do dono do curtume de Várzea Alegre, o mesmo alega que a compra de sola da Paraíba é

mais rentável que produzir sola do curtume que é da família por gerações, visto que as taxas pagas por ele no Ceará

não compensam a produção e venda local, sendo mais viável comprar e pagar o frete para vir à matéria prima de

outro estado.

80

e curtia o couro, mas agora eu compro de Várzea Alegre”. Quando perguntamos sobre

os motivos que o levaram a fechar o curtume, ele responde:

Porque era manual, e como a cidade cresceu já ficou dentro da rua; a mão de obra ta difícil e a casca de angico (matéria prima), da problema com IBAMA. só serve a casca do angico. (troca 4 vezes a casca)” “inclusive no processo industrial também usa a madeira. chama tanino [...].

Na experiência do sr. Francisco, seleiro de Santana do Cariri, ele afirma

que compra couro em Juazeiro do Norte, mas somente quando é da modalidade

vaqueta. Nas palavras do Sr. Francisco: “Já comprei couro aqui por todo canto.

Assaré, Juazeiro, Missão velha, Milagres. Compro lá em Bodocó porque tem e aqui

não tem. Assaré comprava muito em Assaré, é porque lá acabaram, fecharam o

curtume. faz uns 4 anos”.

Em relação à existência dos curtumes na região, os sr Matheus, de Assaré

afirma:

[...] muito não, mas sempre tinha [...] é muito dispendioso. diminuiu por conta da escassez da casca. Pra mim curtir o couro é no mínimo 30 dias fora os sete dias pra tirar o cabelo [...] em indústria é 1 dia pra tirar o cabelo e 1 dia pra curtir. Pra manter o curtume tirava 10 mil quilos de casca.

Podemos constatar que o processo de curtimento do couro, existente

desde a consolidação dos núcleos coloniais do sertão ainda hoje é basilar enquanto

atividade econômica para os artesãos e a confecção de seus artefatos. Entretanto, o

processo de urbanização e decorrente modernização das questões comerciais

afetaram diretamente os pequenos curtumes, dificultando a sua operacionalização.

Somente os grupos e empreendimentos mais capitalizados conseguiram permanecer

gerando rendimentos por adaptarem-se aos trâmites formais do mercado e sua

burocracia.

A partir das experiências de campo, conversamos diretamente com donos

de pequenos curtumes que recentemente fecharam seus estabelecimentos, início do

século XXI, curtumes os quais produziam somente sola, e abasteciam os artesãos da

região do Cariri cearense. As dificuldades já expostas para a manutenção dessa

atividade geracional, serve também para ressaltar as características da região em

relação á produção do couro a partir desta narrativa coletiva de artesãos e os

responsáveis pelo curtimento das peles, expondo assim o perfil dessa atividade e suas

transformações nos auspícios do século XXI.

81

Feiras

É importante ressaltar, como discorrido no capitulo primeiro, que a vida no

sertão do século XIX foi quase autárquica, Pinheiro (2009) ressaltou que a produção

artesanal de vestimentas e utensílios próprios era fato comum à população, inclusive

do Cariri. Logo, a divisão social do trabalho voltado à maior parte da população estava

em ser um ‘homem de enxada’ ou ‘vaqueiro’. O comércio, realizado a partir das feiras

significava a expressão mercantil da troca do que era produzido localmente e em

locais distantes, e mesmo assim, funcionava enquanto subordinada às atividades do

campo.

A feira foi e continua sendo o espaço onde ocorre, geralmente, a

socialização entre o produtor de alimentos e aquele que irá consumi-lo, e sua

importância para nós se estende a socialização dos produtos artesanais

confeccionados pelos artesãos do couro. As feiras livres foram definidas por Pazera

Jr, (2003), como sendo “... o lócus escolhido para os mais variados atos da vida social

mantendo assim um sentido de permanência. Ali se sabem as últimas notícias e

boatos. Ali são feitos os anúncios de utilidade pública...” (p.18) . No Nordeste,

segundo Dantas (2008), as feiras são a expressão de dinamização regional, e estão

associadas ao comércio de gado desde seu início. Logo, o cotidiano da população

simples do sertão tem nas feiras um elemento comum de sociabilidade e vida, como

podemos observar nas memórias dos artesãos entrevistados.

No que tange às feiras, os artesãos entrevistados comentam do tempo em

que “não tinha carro e moto”, e a compra de mantimentos era realizada em grandes

feiras como a do Crato, Várzea Alegre, Assaré. De acordo com o artesão e ex -

vaqueiro de Várzea Alegre,

Tudo era montado. Eu morava a 5 léguas do município de Cariús. Ai, de la, a gente vinha todos os sábados na cidade de Várzea Alegre fazer a feira, e agente vinha montado. Eu ainda fui ao Crato a cavalo, pra Nova Olinda. Era muito diferente. 34

Em relação á realidade da feira de Assaré, os artesãos de Carmelópoles,

distrito rural de Campos Sales, afirmam que:

34Entrevista realizada em trabalho de campo em Várzea Alegre / 25/02/2014.

82

A feira de Assaré o movimento era grande, começava as sete da manha até sete da noite. Há 30 anos (década de 1980) a feira dava de dez na de hoje, mas era por conta disso. Você morava no sitio, vinha de animal mesmo. Teve um tempo em Assaré que tinha 500 cavalo, tudo selado. Dava roubo de sela, de arriação. O caba ia fazer a feira, num tinha jeito de ficar pastorando quando voltava, já tinham tirado cia, rabicho... Quando o caba ia pro forró, era animal demais.(lembra o artesão), era 150 animal.35

A partir das falas dos nossos sujeitos, percebemos que o espaço da feira é

importante na memória social, assim como constituiu parte da vida cotidiana dos

artesãos, vaqueiros, e das famílias do sertão. As feiras são referências de um passado

não tão distante de sociabilidade frente ao tempo presente e as transformações

vivenciadas nesses tempos recentes.

Nas palavras de Pinheiro (2009, p.113) “São as feiras caririenses

esplêndidas rendez-vous, a que comparecem cearenses, pernambucanos, rio-

grandenses-do-norte, paraibanos, especialmente homens do povo a que chamam

cabras”. Ponto de encontro, a feira é o local que se chega a partir de transporte animal,

como relatado acima. Logo, percebemos que os acessórios voltados às montarias,

carros de boi, charretes, eram artefatos importantes na utilidade cotidiana, ademais

aos artefatos utilizados dentro do lar, comprados e muitas vezes também

confeccionados nesses mesmos ambientes.

Não obstante às mercadorias produzidas e vendidas na feira relacionadas

ao couro, temos, a partir do relato dos artesãos, a exposição de personagens

marcantes para eles, os quais eram sapateiros, repentistas, dentre outros, os quais

marcavam este espaço de vivência para além das trocas comerciais e de subsistência.

Podemos constatar que a realidade das feiras foi um elo comum a todos os

artesãos entrevistados, visto que todos iniciaram na função de artesãos do couro

(cada qual em sua modalidade) por alguma relação à realidade rural, seja como

aprendizes de sapateiros, advindos de família de vaqueiros, família de seleiros,

artesãos de chapéu, artesão de cangalhas e alpercatas etc.

Em nossa perspectiva, a realidade histórica do sertão deixa suas marcas

nas feiras e no modo de vida ainda no século XX, como relatado pelos artesãos, pois

essa realidade proporcionou e ainda influencia as condições práticas da vida coletiva

e individual.

35Entrevista realizada em trabalho de campo em Carmelópoles – Distrito de Campos Sales 04/02/2014.

83

As feiras, assim como o trabalho artesanal permanecem nos dias de hoje,

mas cada vez mais adaptadas às demandas urbanas provenientes das

transformações históricas e conjunturais que impactam a região.

A partir das entrevistas, ao rememorar o passado e refletir o presente, os

artesãos se referem à década de 1970 – 1980 como um período de boas vendas da

produção de artefatos em couro. Seja pelo papel desempenhado nas feiras em

relação aos artefatos de montaria, seja em relação à demanda continua e intensa

pelos calçados em couro – sandálias e botas, como de boas vendas em geral perante

o período de trabalho desses artesãos. Para ilustrar esse período temos os

depoimentos de alguns artesãos:

Aqui tinha operário que fazia 20 par de chinela por dia. Tudo era na faca. Num tinha essa historia” (Artesão de botas de Carnal em Assaré) 36 Meu pai chegou a ter 42 funcionário trabalhando só em couro. De 1960 a 1970. Naquela época o processo era quase todo manual mesmo, e o carro chefe era o calçado (Artesão e lojista de produtos em couro em Assaré).37 De 1960 a 1990. De 2000 pra cá já foi... (diminuindo) Mas não fiz fortuna” (Seleiro de Santana do Cariri).38

As falas acima são relacionadas mais diretamente às características de

produção de um período em que o artesanato era o principal suprimento das

necessidades cotidianas. Necessidades essas supridas nas feiras, espaços marcados

na memoria popular de valorização do artesão e sua obra, bem como espaço de

transformações advindas da modernização.

Não obstante às feiras e à lembrança de um bom período de retribuição

econômica referente à venda do artesanato em couro, o processo de curtimento do

couro, bem como os impactos da modernização e suas transformações decorrentes

são processos que também compõem a estrutura de sentimento de sujeitos tão

particulares e que mantêm esse elo de saber e experiência.

Artesanato em couro:

Temos a consciência de que a produção de artefatos com couro é

característica da referida região e está intrinsecamente relacionada à sua história,

36 Entrevista realizada em trabalho de campo em Assaré 04/02/ 2014. 37Entrevista realizada em trabalho de campo em Assaré 04/02/ 2014. 38 Entrevista realizada em trabalho de campo em Santana do Cariri. Julho de 2013.

84

repleta de conflito e contradição, assim como todo o passado de colonização, e ao

longo desse processo, permeou contemporaneamente traços e significados sociais

que compõem a região em questão.

Entendemos que mesmo cada artesão do couro tenha sua particularidade,

podemos observar que todos partilham de um contexto e temporalidade similar, até

porque “el proyecto mismo de vida, tomado en um momento determinado de la

existência, no se há elaborado in abstracto dentro de uma consciência aislada, sino

que se ha hablado, dialogado, construído e influído o negociado em el transcurso de

la vida em grupo” (BERTAUX,2005, p.42).

A partir das falas dos artesãos, constatamos que o aprendizado do

manuseio com o couro se deu, de modo geral, no período entre a infância e a

adolescência, sob um cotidiano contextualizado com a reprodução da vida no campo,

bem como em contato com familiares ou grupos de convivência do artesão . Pela

narrativa dos entrevistados:

Na época não era como hoje, tinha muito fazendeiro, gado... eles pediam os arreio, as roupas de couro... a gente fazia tudo. (Fernando/Santana do Cariri- Crato) O pai Fazia arreio, cangalha. O Francisco, meu irmão, desde menino que a vocação dele era trabalho em couro. ele fazia uns “arreinho”. Ai começou, foi + Ele tinha uns 15 anos quando começou. Ele já rapazinho e eu menino com 8 anos + Eu aprendi com ele, com o irmão. (Fernando/Santana do Cariri- Crato) Eu comecei desde os meus avós, eles faziam roupa de vaqueiro, essas coisas né (Thiago/ Carmelópoles – distrito de Campos Sales) Eu sou um vaqueiro desde de pequeno, na minha família é tradição. A profissão da maioria é vaqueiro (...) E devido a gente trabalhar de vaqueiro agente precisa do uniforme de coro, do chapéu, da sela, ai eu fiz o seguinte: Em vez de eu ir mandar fazer uma sela, eu fui aprendendo aos pouco. “Em vez de mandar fazer um uniforme de couro com os mestre em Assaré, Tauá, que naquela época é onde tinha né, eu fui aprender a fazer.” (Raimundo Nonato/ Várzea Alegre) Começou que aprendi com meu pai, mas ai meu pai já aprendeu com o pai dele. Vem de longe, já vem do meu avô”. (Paulo/ Assaré) Esse trabalho já vem do meu pai, assim. Fazia sela, serviço em geral. Eu comecei ajudando a partir dos 10 anos” (Matheus/ Assaré)] Esse trabalho dagente começou através dum cunhado meu que era sapateiro, ai meu irmão trabalhou com ele e depois fui trabalhar com meu irmão (...) Volta de 1960 eu já trabalhava, e com 14 anos já era profissional, fazia sapato pras loja.” (Estevão/ Crato) “O avô também trabalhava com couro, marcava o couro, riscava e ele mexia na faca , cortando o pedaço de do couro e foi assim que me acostumei, mais meu avô”. (Sebastião / Nova Olinda)

A influência familiar, geracional, é percebida a partir dos depoimentos dos

artesãos, e a experiência destes vem de longa data, muitas vezes da infância,

85

culminando no domínio do saber-fazer dos artefatos que produzem com destreza e

criatividade. No âmbito da reflexão dos próprios artesãos sobre o trabalho que

desenvolvem, eles afirmaram:

Quando você faz um trabalho, que você procura aperfeiçoar ai você vai ficando conhecido através do outros vem diretamente aqui [...] (Estevão/ Crato) Achava muito bom fazer arreio, mas hoje acho muito bom fazer sandália, quase melhor do que o arreio... Acho bom trabalhar (Fernando/ Crato) Toda profissão depende do gosto. Se você faz gostando. Quando você faz com gosto, caprichado, ninguém faz melhor que você (...) Aonde você tiver com o pé de ferro, martelim e faca. Vou na sua casa e saio com alguma coisa. Nunca me faltou nada, toda vida vivi da profissão e nunca nenhum dia faltou nada, nem pra mim, nem pra mulher nem pra criança. Nunca passei fome. A profissão é boa. (Estácio / Assaré) Eu não considero isso aqui como um trabalho, mas considero isso aqui como um esporte. (Sebastião/ Nova Olinda)

Portanto, entendemos que tais narrativas são relatos de vivências

cotidianas, as quais conferem sentido ao conceito de ‘experiência humana’ de

Thompson (2009). Logo, o conceito de ‘experiência humana’ é importante para a

pesquisa em questão visto seu foco no sujeito enquanto parte do coletivo que se

insere.

Nesse sentido concordamos com Thompson que a ‘experiência humana’ é

necessária ao entendimento de como a história é delineada e se desenvolve ao

relacionar processo histórico e modo de produção. Nas palavras do autor:

Pois as pessoas não experimentam sua própria experiência apenas como ideias, no âmbito do pensamento e de seus procedimentos , ou (como supõem alguns praticantes teóricos) como instinto proletário etc. Elas também experimentam sua experiência como sentimento e lidam com esses sentimentos na cultura, como normas, obrigações familiares e de parentescos, e reciprocidades [...] (THOMPSON, 2009, p.235)

A compreensão e valorização do sujeito como um ser que sente e é dotado

de liberdade em determinado contexto, essa experiência, vivida no âmbito da

coletividade, é base para a consciência e para a cultura.

O ser social determina a consciência, ou seja, para Williams, a partir de

Marx, a origem da determinação está nas próprias atividades dos homens. Nas

palavras do autor: “[...] o que estamos ativamente buscando é a prática efetiva que foi

alienada em um objeto e as verdadeiras condições dessa prática” (WILLIAMS,2011a,

p.67).

86

A justificativa de Williams (1979, p.134) para usar o termo ‘sentimento’ e

não outros formais como ‘visão de mundo’ e ‘ideologia’ é por que: “estamos

interessados em significados e valores tal como são vividos e sentidos ativamente”,

pois as relações entre as vivências e suas contribuições e as crenças formais são, na

prática, variáveis e passiveis de delimitações que podem não condizer com os

processos. Williams fala de “pensamento tal como sentido e de sentimento tal como

pensado: a consciência prática de um tipo presente, numa continuidade viva e inter-

relacionada”. Esses elementos são definidos pelo autor como uma ‘estrutura’ “como

uma série, com relações internas específicas, ao mesmo tempo engrenadas e em

tensão.” E que ainda são emergentes e mais reconhecíveis em fases posteriores.

Portanto, entendemos que a preocupação do autor está na ênfase ao

processo e não na formação acabada. O que importa é a relação forma - conteúdo e

a formação da consciência. Nas palavras de Williams:

[...] as formas sociais são mais reconhecíveis quando são articulados e explícitos, mas nem por isso, mesmo quando todas as formas forem identificadas não formam um inventário total nem mesmo da consciência social em seu sentido mais simples. Pois só se tornam consciência social quando são vividos, ativamente, em relações reais, e, além do mais, em relações que são mais de trocas sistemáticas entre unidades fixas (1979, p. 132).

Essa preocupação do autor na dinâmica dos processos conferindo o

sentido às formas mostra que a consciência prática transcende às relações entre

unidades fixas, mas nos permite perceber um sentido conferido à essas delimitações,

ou seja, no âmbito da Geografia, um sentido pela estrutura de sentimento conferida à

região a partir da vivência dos artesãos, que neste trabalho, é exposto a partir de suas

narrativas.

Logo, a partir das falas apresentadas, observamos um contexto comum de

vivência tendo nas feiras o espaço de circulação e troca entre produtores e seus

artefatos com seus compradores diretos. O transporte animal também é referência

desse período, no qual os artesãos comentam ser o mesmo período de boas vendas

para os artesãos do couro. Esses marcos, juntamente com as solas produzidas nos

curtumes, nos mostram um cotidiano vivido no século XX herdado e pouco modificado

desde o século XVIII.

No que tange mais diretamente ao trabalho artesão, a obra que executam,

cada qual com sua particularidade, a realizam em suas residências ou em suas

87

oficinas que se situam ao lado de suas casas. As ideias impressas nos artefatos

produzidos advêm da criatividade fomentada pelas experiências de vida:

Quando a gente tava começando a gente criou muito. Só que chega num ponto que a gente vende direto, não damo de conta. ai em time que ta ganhando não se mexe. Quando o cliente pede modelo, a gente faz do jeito que ele quer, mas nós fazemos o nosso. (irmãos Cardoso – Crato) A gente olha e você já pega, começa imaginar e vai fazendo as alterações. pega um pedaço de papel, bota ali, aqui, muda a posição. Ai você olha, já escala num papelão [“...]” (Estevão – Crato) A gente inventa, às vezes a mulher inventa. Ainda hoje tenho uns moldes. Guardei e o cupim comeu. tem uns moldes da sandália que fiz, no molde da camisa de couro gibão+ Inventei e deu certo esse modelo. (Fernando – Crato/ Santana do Cariri) [...] Eu quero deixar a criação e deixar aqui uma peças antigas que meu avô fazia, meu pai fazia, e eu quero mostrar pro pessoal novo, igual a esses dai (que estavam na oficina) que a nossa cultura não acabou, que tem que fazer e ir renovando. (Sebastião – Nova Olinda)

A criatividade de cada artesão é expressa em sua fala, bem como o

reconhecimento da criatividade também oriunda daqueles que vieram antes deles e

daqueles que os ensinaram. Artesãos como Sebastião e Fernando além de

produzirem novos moldes para suas sandálias, também recorreram a moldes dos

tempos de seus pais. As características desenvolvidas em cada artefato leva um jeito

próprio de cada artesão produzir, o que marcaram a peça para além do carimbo

(marca) que esta levava. Assim, o artesanato pronto, seja ela, sandália, bolsa, sela,

bainha , etc. é a materialização dessa criatividade, respeito geracional, valores, e

experiência que constituem a estrutura de sentimento daqueles que historicamente

alimentam culturalmente o Cariri cearense.

As fotos a seguir são de sandálias reproduzidas a partir dos moldes

centenários dos pais dos artesãos seleiros: Fernando e Francisco, e Sebastião.

Ambas, confeccionadas sob os moldes dos pais dos referidos artesãos, elas tem na

sua estética sertaneja o traço caririense proveniente da sela em sua identidade.

88

Figura 114 - Sandália confeccionada a partir de molde centenário do pai de

Fernando

Fonte: Maria Auxiliadora de Oliveira, 2015.

Figura 125 - Sandálias confeccionadas por Sebastião.

Fonte: Própria autora, 2015.

Fonte: elaborado pela autora

Estas sandálias, conhecidas popularmente de “maria bonita” 39 expressa o

traço Caririense do artesanato em couro, ou seja, traz um sentido de particularidade

aos calçados da região. Tal aspecto, decorrente de uma história coletiva comum e

39 Não se sabe ao certo a precisão do termo atrelado ás sandálias. Contudo, o nome se refere à companheira do

cangaceiro Lampião. Ambos usavam alpercatas, bem como era o costume no interior do Nordeste. A sandália

‘maria bonita’ vendida atualmente nas lojas é um modelo feminino de alpercata marcada pela característica

artística dos artesãos que adornam selas (seleiros).

89

particular do Cariri Cearense é cultivado como expressão material reconhecida dessa

região perante as feiras regionais do Nordeste.

Contudo, esta materialidade da expressão cultural que marca o Cariri

cearense também é permeada pela estrutura de sentimento que os artesãos do couro

alimentaram ao longo de sua vida, e ainda experienciam nos dias atuais, a partir da

maneira como lidam com a obra a qual produzem, valorizam e experienciam em sua

vida cotidiana.

Logo, compreender a realidade como devir social, é reconhecer o papel

dos sujeitos sociais realizando suas experiências integrando a realidade socioespacial

em todos os seus âmbitos. É nesse sentido, que entendemos que a esfera cultural

não é um mero apêndice da economia, mas uma prática social que confere sentido às

formas espaciais.

4.2 ARTESÃOS DO COURO E MODALIDADE DAS SUAS OBRAS

4.2.1 Artesãos de montaria

Os artesãos entrevistados que trabalham com montaria40 têm experiências

bem diferentes que os distinguem, sem nos possibilitar traçar um perfil de artesão do

couro voltado para montaria. Dentre os artesãos em questão, um deles foi vaqueiro,

outro técnico agrícola, empresário, pessoas do campo e todos são artesãos

reconhecidos. Nesse sentido, considerando as diferentes vivências, não traçamos um

perfil comum, como fizemos aos artesãos dos calçados ou chapéus.

No caso dos artesãos voltados à montaria, vemos em comum a todos um

apreço pelo seu trabalho e um conhecimento profundo em relação às peças que

fazem. É importante ressaltar que o artesanato vendido é de alta durabilidade como

selas, paletó de couro, o que não condiz com a obsolescência programada presente

nas mercadorias contemporaneamente. Esse fato, somado ao público alvo, de

características rurais, aponta para uma situação de remanescentes, que percebem a

transformação da realidade (crescente uso das motos, diminuição dos cavalos

selados, perda do apreço para os enfeites etc.), mas que ainda proporciona condições

40 É o termo usado pelos artesãos para especificar o artesanato em couro voltado para lidar diretamente com o gado

como os componentes do paletó de couro (roupa completa usada pelos vaqueiros para adentrar a vegetação), sela

e adereços de trabalho (como chicotes, selas etc.).

90

de viver a vida, mas sem ‘acumular’, por parte dos artesãos. Vale ressaltar ainda a

reinvenção de atividades como a brincadeira ‘pega de boi no mato’ e permanência de

uso de alguns objetos como o paletó de couro. Mesmo com a diminuição de vaqueiros

e cavalos, o paletó é vendido tendo em vista essa brincadeira.

Não obstante as transformações da demanda, o mercado consumidor não

se realiza apenas no Cariri, mas também regionalmente e nacionalmente como

podemos perceber a partir das encomendas das selas e das vendas para lojas que

revendem para outras porções do país, fato expresso nas falas dos artesãos:

É só pra fazendeiro. Tirando o do Pernambuco, que é pra loja que ele tem. (Sr. Raimundo Nonato, artesão de Várzea Alegre relata sobre a venda do seu artesanato) Fabrico e tenho fornecedores (que também trabalham em casa). vendo e mando pelo correio, vem na loja.(Matheus, Artesão e lojista de Assaré) Uma vez eu encontrei uma pessoa do Mato Grosso do Sul que tinha comprado uma sela minha, ele veio aqui me conhecer (Fernando, Artesão de Santana do Cariri, quando comentou da visita de um comprador antigo a sua oficina. Este o tinha encomendado uma sela, porque viu a do amigo e encomendou à distância, sem conhecer o artesão).

Mesmo sem o domínio das facilidades tecnológicas como e-mail e cartão

de crédito, a compra a distância é comum aos artesãos que produzem o artesanato

montaria e se realiza ao longo da carreira de cada artesão. Segundo as entrevistas, é

comum vender via correio, visto que a divulgação costuma acontecer por ‘boca a

boca’, segundo os consumidores conhecidos do artesão. Sob essa lógica, o

compromisso de pagamento envolve confiança e costuma acontecer quando há o

envio do dinheiro, pagamento no local da oficina do artesão, ou mesmo depósito

bancário.

Em relação à venda do paletó de couro, ou partes específicas dessa roupa

o artesão de Assaré afirma: “o que ta segurando mais o negocio de couro é as

vaquejada. porque no sitio ta fraco”.

Através do serviço.. Exemplo, chegou um rapaz de Sobral aqui ... Ai eu tava ali numa loja que o rapaz vende sela e roupa de couro (e tem um curtume). Ai ele disse: você vende um gibão? Você tem uniforme de couro? Ai o Luís, não, por enquanto agora não tenho, mas esse “véi” que ta ai é quem faz. Ai como é que nois fazia um negocio pra você fazer 2 uniforme pra mim? Agente conversando da certo. Você tem a medida? Não. Como é seus vaqueiro? É um pequeno e um maior. (ele riu comentando isso) Pois eu faço. Faço uma base aqui e da certo. Ai peleitei as duas roupas, marquei o tempo dele vir buscar. Ele é um dotô. Rapaz, eu tomei um conhecimento com esse “home” la, que eu já vou fazer mais de cinco roupa com ele, pra os amigo dele. Ai é assim.” (artesão de Várzea Alegre)

91

Teve uma época que até procurava. inventaram uma brincadeira. Pega de boi no mato... Nesses dias teve um bocado de procura sim. Não é por ser o vaqueiro. É uma brincadeira. (afirma o artesão de Santana do Cariri).

Podemos observar que o mercado das roupas de couro ainda se realiza,

apesar da modernização, da disseminação do uso da motocicleta e do acesso fácil ao

consumo de roupas industrializadas que poderiam ser adaptadas a essa necessidade.

Contudo, seja pela tradição, como pela funcionalidade, o paletó de couro se realiza

pela propaganda do boca a boca, e tem como mercado consumidor os vaqueiros das

fazendas, os brincantes das ‘pega de boi no mato’ (ver anexo B), assim como os

vaqueiros das vaquejadas.

Figura 136 - Vaqueiro com paletó de couro.

Fonte: Dragão do Mar – Museu da Cultura Cearense (MCC)

Além do tradicional paletó de couro, as selas e os selotes são os artefatos

de couro que mais são vendidos na modalidade montaria, dentre outros artefatos

menores voltados para animais pequenos como os bodes, comuns no sertão.

92

Eu fazia era sela bonita mesmo, que era pra mostrar pro povo que eu trabalhava sela bonita ““... (afirma artesão de Santana do Cariri). Costumo fazer mais sela e concerto. Pra fazer a sela completa, é de oito a dez dias, faz cabeçada e toda parte de arreio. (artesão de Carmelópoles)

Figura 147 - Selas: modelo Sebastião ; modelo comum, selote.

Fonte: elaborado pela autora

A sela completa é constituída pelo assento do condutor do animal,

juntamente com a proteção e os adereços utilizados para fazê-lo andar41. A exemplo

da fotografia 26, podemos observar que o modelo da sela é o mesmo, porém algumas

tem mais enfeites como a confeccionada por Sebastião (primeira sela). Tais enfeites

tem a características próprias de cada artesão, e segundo um artesão entrevistado

em Alagoas, “no Ceará valorizam muito o acabamento lateral, tem muito enfeite”. 42

Não obstante o uso das selas, contemporaneamente o selote tem sido o mais

procurado dentre os consumidores, sendo um modelo “compacto” da sela (terceiro

artefato da fotografia). Este é mais voltado às vaquejadas visto o assento ser mais

profundo que o assento da sela – o que proporciona maior apoio ao vaqueiro.

Perguntamos a cada artesão entrevistado no Cariri cearense, como eles se

sentem ao serem parte da região do Cariri e contribuindo com o seu trabalho para a

região. Considerando todos os artesãos, é interessante observar que nenhum nega o

seu pertencimento em relação ao Cariri, mas todos ressaltam a condição de

municipalidade; “sou campo salense!”, por exemplo. Essa resposta que todos deram

para com o próprio município, nos suscita pensar que na verdade há uma identidade

de cada um para o trabalho que realizam no município onde residem. Por essa

41 Os componentes da sela são: apoio de loro, peitoral, cia, subcia, rabicho e guarda suor. 42 Entrevista informal em Santana do Ipanema (maior cidade do sertão Alagoano) com Jaelson de Melo Viana,

artesão do couro.

93

identidade com sua obra, eles dão um sentido à região muito maior do que a

consciência que possuem disso.

4.2.2 Artesãos do chapéu

Os artesãos encontrados no Cariri que confeccionam chapéus são três.

Todos trabalham com couro no município de Assaré e aprenderam a fazer chapéu de

couro com a mesma pessoa, o senhor Expedito Gomes Ferreira, patriarca (já falecido)

da conhecida família que confecciona chapéus, os Augustinhos.

O filho do patriarca dos Augustinhos, senhor Paulo, comenta que o pai

aprendeu o trabalho com o avô e passou aos filhos. Mas dos filhos, apenas ele

continua na profissão, os demais migraram para diferentes capitais do país. Este

afirma que além dele existe um rapaz e um conhecido e antigo aprendiz, o senhor

Timóteo que confeccionam chapéus em Assaré. Todos eles aprenderam a arte com

Expedito Gomes Ferreira.

Figura 158 - Chapéu dos Augustinhos em processo de confecção e panela de

grude.

Fonte: elaborado pela autora

94

Figura 19 - Chapéus modelo Augustinhos.

Fonte: elaborado pela autora

O sr. Timóteo comenta que desde os 16 anos “chegava na casa do Jaime

Monte43 e ajudava lá”. Desde então, ele trabalha a uma média de 4 décadas com

artesanato em couro, com a especialidade de fazer chapéus.

O sr Paulo trabalha na oficina ao lado da casa e perto da roça. “A oficina é

pequena, mas é só pra mim mesmo... Eu escuto é brega aqui o dia todinho (enquanto

trabalha)”. Já Timóteo trabalha em casa, e segundo ele, é um trabalho que ele faz

“num canto só, ouvindo música e conversando política”.

Sobre o modelo do chapéu, ambos afirmam que criam, mas não

necessariamente só produzem o que querem, visto que muito do que é comprado, é

demandado pelo mercado. Nas palavras filho do patriarca Augustinho: “Eu posso

criar, mas mais vem da encomenda”. “O mais que eu gosto de fazer é simples, do

menos trabalho”. Mas diz que o mais bonito é o outro, pelo qual a família ficou

conhecida. Timóteo tem posicionamento parecido com o de Paulo ao afirmar que cria,

“vai testando, mas às vezes é de acordo com o que o cliente pede”.

Paulo comenta que na época do pai os chapéus eram “secos”, moles, do

tipo que podem ser dobrados. O pai foi quem inovou44, fazendo o chapéu “cheio”, mais

duro, como podemos ver na figura 20, acima. Ele usa formas em madeira, feitas pelo

próprio pai para dar forma ao chapéu, que prega com grude (cola de goma). As

43Jaime Monte é pai de um dos artesãos do couro entrevistado, e na década de 1960-1970 tinha uma fábrica de

calçados em couro no município de Assaré que empregava muito artesãos. 44Segundo artesão e comerciante de Assaré o “chapéu dos Augostim” é conhecido pelo interior todo, justamente

por ter um estilo próprio, criado pelo Expedito Gomes Ferreira.

95

ferramentas usadas são faca, compasso, chifre de veado do mato (envolto no couro)

– usado pra aprontar os chapéus e fazer os furos, esmeril (pra amolar as facas), o

martelo e o compasso (que eram do pai), como ilustrados na figura 21. Usa ainda uma

máquina de costura45. No caso da costura, Paulo conta com a ajuda de sua própria

filha para esse serviço, já Timóteo afirma trabalhar sozinho.

Figura 20 - Ferramentas utilizadas para confecção dos chapéus

Fonte: elaborado pela autora

Quando perguntamos a Timóteo sobre o tempo médio de se fazer um

chapéu ele responde com uma história, diz ele ser real; na qual um homem mostra

um chapéu pra ele e pergunta quantos anos tem o chapéu. “Tinha 47 anos” . O

aprendiz afirma que ia ajeitar o chapéu velho da história contada quando o dono do

chapéu acrescentou “esse daqui serve mais que esse ai” (que é o novo) e fala do

quotidiano dele com o chapéu, para todo lado, trabalhando muito e que no dia a dia

pesado, ele teria que ter cuidado com o novo, coisa que não precisava ter com o velho.

Assim, vemos que é importante ressaltar como o chapéu de couro tem seu valor de

uso e ainda é vendido também como adereço e ornamento principalmente nos

períodos de vaquejadas, como nos relata os entrevistados.

O couro trabalhado para fazer os chapéus é adquirido junto a dois

artesãos/comerciantes (ambos de Assaré/CE), mas que o couro também vem do

Crato/CE e Juazeiro do Norte/CE. Para fazer os adornos do chapéu, tanto o sr Paulo

45Sobre a máquina de costura, o sr. Paulo afirma “A dona da máquina já morreu (quando ele a pegou) e máquina

já era velha, com mais de 40 anos”.

96

como o sr Timóteo usam o fitilho de couro ou o tento. O ‘tento’ é um tipo de fita colorida

e industrializado que é fabricado no Rio de janeiro, segundo os artesãos. Mas que

antigamente não se usava tento, “era feito no couro mesmo.46 mas é mais caro e mais

difícil”. A fita de couro presente na figura 31 é o exemplo daquela substituída pelo

tento, visto a demanda de destreza e mais tempo de trabalho por parte do artesão.

Figura 161 - Fitilho de couro comumente substituído pelo tento

Fonte: elaborado pela autora

Sobre as vendas dos chapéus, o sr Paulo afirma: “Vende muito quando tem

as vaquejadas”. Sobre o ganho, “Num ganha muito não porque é pouco, mas num fica

agoniado. Melhor que ir pra roça”. Ele afirma Produzir de 10 a 12 chapéus por semana;

“trabalhando muito, de dia e de noite”. Já o sr. Timóteo ressalta: “não tem uma hora

de serviço que eu não ganhe 10 reais”. E relata que o chapéu rende mais de 50 por

cento de lucro. Ele vende o chapéu a 60 ou 75 reais, sendo este o preço que as lojas

de revenda compram, podendo revender por 110, a 160 reais. Para Timóteo, a

vantagem do seu trabalho pode ser vista na afirmativa a seguir: “Da pra mim ganhar

200 reais por dia. Trabalhando diretamente para ter mais dias livres... E o trabalho é

num canto só, em casa.”.

46 O fitilho de couro é feito pela precisão da mão livre à faca no couro curtido. Além do corte, é necessário amaciá-

lo com a faca, no movimento da lâmina sob o verso do couro liso. Como para deixa-lo adequado a sua função no

chapéu, os artesãos consideram o tento como uma alternativa de bom custo-benefício.

97

O sr Paulo, mesmo trabalhando com couro e aprendido o oficio com seu

pai, também tem roça, mas essa é para subsistência, não encarada como a profissão

de fato. Nas suas palavras47: “A melhor profissão que eu acho é só essa mesmo (com

couro). Foi o que aprendi primeiro e gosto de trabalhar”.

4.2.3 Artesãos do calçado

Com base nas entrevistas dos artesãos do couro que confeccionam

calçados, vemos que eles têm suas oficinas como extensão da casa, mesmo àqueles

de larga produção, exceto um artesão, o sr Estácio, que confecciona as botinas de

carnal48, que mora em frente ao ponto onde trabalha. Inclusive, ele é exceção também

quanto a ter ajudantes em sua atividade, visto que não possui nenhum, ao passo que

os demais têm ajudantes mesmo que em diferentes quantidades.

47 Conheci filho do patriarca da família Augustinho (artesão de chapéus) quando fui entrevistar o filho do sr Jaime

Monte (Matheus), na loja que herdou de seu pai em Assaré. Quando terminei a entrevista com ele, fui gentilmente

levada à casa do artesão de chapéus, para que eu pudesse fazer a entrevista com este. Enquanto estávamos nós três

lá na porta da oficina, chegou o seleiro de Santana do Cariri, conhecido de todos, o qual compareceu para comprar

chapéu para revender na sua oficina em Santana do Cariri. Vendo o movimento, chegou também o fornecedor de

couro. Essa relação espontânea entre os artesãos, nos mostra como eles se conhecem e fazem o intercâmbio de

seus trabalhos. 48 A denominada botina de Carnal é feita com a parte macia do couro voltada para dentro, pois sua confecção é

pensada para o conforto de quem a usa e a durabilidade da peça na caatinga, e não na beleza da ‘flor’ do couro

no calçado.

98

Figura 172 – Artesão do couro e a botina de Carnal

Fonte: elaborado pela autora

A informação sobre o tempo de trabalho diário desses artesãos não foi

clara, visto que alguns não comentaram ou não precisaram. O sr. Estácio, de Assaré,

diz que não trabalha ¼ de antigamente (não se sabendo há quanto tempo atrás seria

isso). Levando em conta a fala de um dos artesãos do Crato, o trabalho significa bem

mais que o costumeiro horário comercial.

A quantidade de sandálias produzidas por semana varia. A diferença

produtiva que vemos está, em nosso entendimento, situada no maquinário e alcance

de mercado, como podemos observar nas entrevistas.

No que tange ao alcance das vendas desse artesanato, essa realidade

varia: o artesão familiar (Sr. Fernando e Sebastião), o artesão individual (sr. Estevão)

e os artesãos donos de fábrica (Cosme e Damião) vendem tanto no atacado como no

varejo. No entanto, a clientela do sr Fernando, como do sr. Estevão é para Juazeiro

do Norte e algumas revendedoras autônomas de Minas Gerais, Maranhão e Região

Metropolitana de Fortaleza. Já os irmãos Cosme e Damião, com uma produção “fabril”,

exportam com frequência, além de estarem presentes em quase todas as capitais do

Nordeste. Sebastião mantém vendas locais em Nova Olinda, em Fortaleza através da

Ceart, bem como efetua contratos com grandes marcas.

99

No que se refere à marcar o artefato (o que os artesãos denominam

‘carimbo’), ou seja, identifica-lo quanto a origem do artesão, é importante ressaltar que

apenas o sr. Fernando e o sr. Sebastião mantém uma marca única nas sandálias e

artefatos que fazem. O sr Estevão disse que é importante ter marca, entretanto, até

então suas sandálias não têm nenhum símbolo seu (pediu para fazerem um carimbo

e não recebeu e nem foi atrás desse carimbo para suas sandálias). Os irmãos, donos

de marcas de calçados em couro, de ampla produção se comparados aos demais,

não veem problema algum em colocar outro carimbo em suas sandálias se o cliente

pedir (como é o caso da exportação que fazem, produzindo para a marca ‘O

mameluco’, de Barcelona; ou para demais distribuidoras para o Nordeste, que pedem

que coloquem o selo da distribuidora).

No que tange à venda e a marca, o caso do artesão de Nova Olinda e de

Assaré (ambos os artesãos de produção familiar) são correlatos e díspares ao mesmo

tempo. Ambos vendem no varejo e por encomenda, mas o nome do artesão de Nova

Olinda é amplamente conhecido no meio urbano e artístico, o que dá grande

visibilidade ao seu trabalho, mesmo que este não tenha o alcance de produção das

fábricas Lampião e Nordestina, do Crato. Já o sr Estácio, artesão de Assaré, é

reconhecido e respeitado dentre os artesãos, mas quando vende o seu produto (botina

de carnal), não tem seu nome associado a ele. Inclusive, o artesão de Assaré vende49

para as lojas dos irmãos do Crato e em lojas do Assaré mas não há carimbo, e o

reconhecimento de seu trabalho nem sempre é efetivado para o grande público.

Podemos observar que nem todos os artesãos atentam para o teor administrativo e

financeiro do poder da marca em seus produtos, como uma estratégia de mercado

para além da importância do trabalho para a cultura ou satisfação do reconhecimento

de sua obra.

Da criatividade de fazer os modelos, todos comentam que criam. Mas

também adaptam, e por vezes, pegam ideias observando modelos em lojas. Os

artesãos /empresários Cosme e Damião, do Crato, fazem uma ressalva afirmando que

o artesanato do Cariri não é de um artesão em particular, mas do Cariri, por que tem

uma base comum. Esse posicionamento é complementar e contraditório com a

afirmação do artesão Fernando, do Crato, que além de sandália, às vezes produz

bolsas. Este artesão afirma, em um exemplo, que viu uma artista na novela com uma

49 Vemos que é comum entre só artesão comprar peças uns dos outros para venderem em suas “praças”.

100

bolsa e ele pensou que poderia fazer o molde e vendê-la. Como afirma Canclini

(1983): “Todo objeto recebe o seu significado do sistema de objetos reais entre os

quais se situa e também do repertório imaginário de objetos que não possui, mas que

são vistos, descritos, oferecidos pela sedução publicitária” (p.94). Posto isso, não

podemos entender o trabalho artesão descontextualizado do mundo moderno, pois

ele continua a ser executado e tendo uma base histórica, mas também é influenciado

pelos vários âmbitos da globalização, mesmo que sob o direcionamento da

criatividade individual de cada artista.

Contudo, por mais que haja a influência da globalização no âmbito da

criatividade do sujeito, a criatividade desse grupo se formou genuinamente pela sua

experiência de vida, por gerações, e especialmente a confecções dos calçados se

remete ao tempo em que os próprios vaqueiros o faziam, e persistem aos dias atuais

com originalidade sem perda da essência como nos relatam Sebastião e Fernando50,

homens que lidavam antigamente com os artefatos de montaria. É nesse sentido que

a ornamentação do calçado herda muito da ornamentação da sela, dando origem ao

traço caririense desenvolvido por artesãos da região.

No referente ao preço desses artefatos, os artesãos comentam de imediato

o preço em si, mas não o processo de elaboração do preço e os elementos que

consideraram para tal. Quem nos esclarece sobre o assunto são os irmãos do Crato,

quando afirmam que o artesão costuma vender muito barato, além de que não sabem

por o preço. Eles fazem essa assertiva tendo si próprios como exemplo, pois,

segundos os mesmos, no inicio de suas carreiras, eles pautavam os preços pela

concorrência e hoje já se utilizam de um conhecimento mais técnico que levam em

conta o custo de matéria prima e produção.

Sobre a origem do couro usado pelos artesãos, o espaço recorrente de

compra é o estado do Pernambuco (municípios contíguos de Bodocó e Ouricuri), mas

também vemos que compram couro na Paraíba e no Ceará (Fortaleza e Juazeiro do

Norte). Vale ressaltar que não há só um tipo de couro para a confecção das sandálias,

visto que o uso dos diferentes tipos de couro (sola, camurça, couro de bode, vaqueta)

são usados de acordo com cada parte confeccionada da sandália, mesmo que a sola

50 O ‘Seleiro’ que acompanha o nome do sr. Sebastião, não é sobrenome. Ele é conhecido assim por que iniciou

o seu trabalho como artesão de couro com peças de montaria. Os artesão que confeccionam selas e peças de

montaria são conhecidos popularmente por ‘seleiros’. O sr. Fernando, que também iniciou suas atividades como

seleiro, e assim como o sr. Sebastião, migrou para o ramo de calçados, é reconhecido como “O seleiro que faz

sandálias”.

101

seja a matéria prima base para a totalidade do artesanato em couro confeccionado no

Cariri cearense.

O inicio de cada artesão com o trabalho em couro se deu cedo, por volta

de 9 a 11 anos de idade. No caso de três artesãos entrevistados, o conhecimento da

confecção de calçados não foi passado de pai para filho, mas através de pessoas

próximas. Estes artesãos já iniciaram seus trabalhos com a sandália, mas produzindo

de uma maneira mais “arcaica”, com tinta de asfalto, cola de grude a taxas. Já dois

dos artesãos entrevistados faziam arreios e montarias (ambos eram seleiros) e

migraram para o ramo das sandálias após a ver a dificuldade de se manterem no

mercado com o produto que faziam (visto o enfraquecimento das vendas desses

artefatos de uso rural).

Os artefatos que os artesãos produzem hoje têm mudado desde o seu

beneficiamento no curtume, bem como com inovações que dão melhor acabamento

ao produto com inserção de cores, máquinas para fixar a cola, pistola para pintar “por

igual” as peças das sandálias, dentre outros. Contudo, mesmo com a inserção de

algumas máquinas, a produção é predominantemente manual, principalmente no caso

da bota de carnal, na qual esta é realizada sua maior parte na mão e “na faca”.

Dentre os problemas atuais elencados pelos artesãos, temos o

desinteresse da juventude para com o aprendizado do trabalho artesão; e a

desvalorização do produto pela população local, tendo em vista a preferencia pelos

produtos industrializados.

A partir da particularidade da experiência dos artesãos do couro do Cariri

cearense exposto até então, entendemos que seu produto se caracteriza enquanto

‘residual incorporado’ visto a sólida apreciação e reconhecimento da sua obra por

variados setores da sociedade (designers, artistas, jornalistas, turistas etc.) no século

XXI, ao passo do seu passado histórico marcado pela subalternidade e depreciação

relacionados á origem ética e social desses sujeitos.

Essa aparente contradição vigora sobre como entender a colocação do

artesão em couro no século XXI. Para nós, como podemos observar na origem

histórica desse povo, ela é residual na medida em que

[“...] suas experiências, significados e valores que não podem ser verificados ou não podem ser expressos nos termos da cultura dominante são, todavia, vividos e praticados como resíduos – tanto culturais quanto sociais – de formações sociais anteriores” (WILLIAMS, 2011a, p.56)

102

.

Mesmo de características marginalizadas pela cultura dominante, o legado

desses artesãos é marcante historicamente, trazendo valores que permeiam e são

expressos pelo artesanato que tanto é valorizado contemporaneamente. Logo, vemos

uma incorporação visto que o traço cultural forte advindo desse publico é inegável,

pois, necessário à cultura dominante reconhece-lo para que fique sob o seu domínio

e controle. Essa realidade de captação dos sentidos das culturas marginalizadas é

sintetizada por Canclini (1983) da seguinte maneira:

Qualquer desenvolvimento autônomo ou alternativo por parte das culturas subalternas é impedido, tanto o seu consumo e produção quanto a sua estrutura social e linguagem são reordenados com a finalidade de se tornarem adaptados ao desenvolvimento capitalista (p.27)

Nesta pesquisa, buscamos trazer à tona o valor dos artesãos do couro,

valor este que não é forjado no mercado, mas decorrente de um modo de vida

autêntico, real, em processo, que cultivado na experiência cotidiana, esse modo de

vida marca a população, seja pelas experiências diretas, bem como pela vivência

cultural. Logo, tal configuração da ‘estrutura de sentimento’ a partir dos artesãos do

couro se faz presente na região do Cariri cearense.

Mesmo que o mercado, a publicidade e a moda captem o artesanato como

mercadoria, sabemos da riqueza imaterial que não se apaga simbolizado e

materializado no artesanato em couro, este como pratica social. As condições dessa

prática é que intencionamos buscar, seja no presente como na história, para

compreender as suas relações e transformações que a caracterizam em sua estrutura

de sentimento.

No que tange a operacionalização do trabalho artesão, este incorporou

técnicas e ferramentas de caráter industrial, mas considerados obsoletos e lixo por

parte dos próprios industriais. A vantagem de tais ferramentas como ‘balancim’, forma,

pistola e demais utensílios é para ajudar o artesão na produção do artesanato e não

para aliená-lo de sua obra.

Afinal, mesmo com o uso de tais ferramentas advindas das indústrias, o

saber-fazer, a experiência e criatividade são utensílios fundamentais que continuam

presentes no artesão do século XXI, bem como a matéria prima é original da natureza

e “baseado, substancialmente, na troca e na criação dos valores de troca, o objetivo

principal da produção não é o enriquecimento ou o valor de troca como valor de troca,

103

mas a subsistência do homem como artesão, como mestre-artesão e,

consequentemente, o valor de uso” (MARX, 2006, p.110).

As mudanças advindas com a modernização interferiram na produção,

otimizando a mesma, melhorando o acabamento, e complexificando a compreensão

do que concebemos como artesanato. Contudo o que não muda é a satisfação desses

artesãos para com o trabalho que fazem. Muitos afirmam em concordância que o

trabalho em couro não “enrrica”, que é para a subsistência, mas que sentem prazer

em fazer o que fazem e se deleitam na satisfação daqueles que adquirem seu

artesanato e o apreciam.

104

5 ENTRE A OBRA E PRODUTO:

A conjuntura do século XXI para a confecção do artesanato é complexa,

visto que a maneira como este é feito não corresponde ao fluxo do mercado. O artefato

produzido manualmente agrega tanto as características de uma obra – pela intenção

do artesão, como da mercadoria – pelo contexto de troca. Nesse sentido,

problematizamos no presente capítulo as relações entre economia e cultura

materializadas no artesanato em couro.

5.1 O TRABALHO ARTESÃO, SUA OBRA E O IMPACTO DA MODERNIZAÇÃO NA

PRODUÇÃO E REPRODUÇÃO SOCIAL

Considerando que a mercadoria é “um objeto externo, uma coisa que, por

meio de suas propriedades, satisfaz necessidades humanas de um tipo qualquer”

(MARX, 2013,p.113), sejam elas advindas “do estômago ou da imaginação”, é fato

que sua utilidade é considerada em diversos aspectos. Para tanto, Marx alerta que

“cada uma dessas coisas é um conjunto de muitas propriedades” e devem ser

consideradas pelo duplo aspecto da quantidade e da qualidade. Ou seja, tais coisas

vão ter diferentes medidas de acordo com as convenções formuladas historicamente,

bem como pela natureza dos objetos a serem medidos. É nesse sentido que pautamos

a nossa discussão sobre o artesanato em couro, visto que tal artefato é difundido por

diferentes temporalidades e a atividade que o constitui permanece e se reformula,

marcando o cotidiano e a produção, transformando relações de produção e

reprodução social, bem como intervindo no imaginário e nas relações que influenciam

a composição regional do Cariri Cearense.

Nesse sentido, é importante pautar o que seja o trabalho artesão, bem

como seus significados, para compreendermos a produção para além da confecção

de mercadorias. O significado do indivíduo artesão, em sua origem, está relacionado

diretamente com a comunidade pré-capitalista. Ele, mesmo possuindo os

instrumentos de trabalho para confeccionar o seu objeto, seu objetivo não é a criação

de valor, mas a “manutenção do proprietário individual e sua família, bem como da

comunidade como um todo.” (MARX, 2006, p.66). No que tange a reprodução social

que engloba o trabalho artesão, esta é explicitada por Marx (2006) da seguinte

maneira:

105

Suas relações com as condições naturais de trabalho são os de proprietários; mas o trabalho pessoal tem de estabelecer continuamente, tais condições como condições reais e elementos objetivos da personalidade do indivíduo, do seu trabalho pessoal (MARX, 2006, p.71).

Em outras palavras, cada artefato confeccionado pelo artesão tem

características próprias, traços de sua individualidade e criatividade calcada no valor

de uso da peça, contextualizadas pelo conhecimento da realidade social em questão.

Essa temporalidade do trabalho artesão, com o significado real de sua obra,

alcança seu auge, segundo kropotkin (2000), ainda no período feudal, a partir do

século XII, no contexto das cidades livres. Para este autor: “Toda a indústria moderna

provém daquelas cidades. Em três séculos, toda a indústria e as artes chegaram a tal

grau de perfeição que nosso século ainda não as ultrapassou, a não ser na rapidez

da produção, mas muito raramente na qualidade e na beleza do produto”

(KROPOTKIN, 2000, p.42).

Kropotkin (2000) expressou a necessidade de manter as inter-relações

pessoais e entre grupos de modo a respeitar as particularidades e as diferenças, visto

que a criação popular, a partir do próprio povo é àquela original. Portanto, para o autor,

a criação popular fornece conteúdo e sentido a tudo que se elabora, apontando para

uma liberdade de fato, que não é encontrada pela mediação do Estado. Logo, essa

liberdade está materializada pelo trabalho artesão, aquele presente nas cidades livres,

cuja liberdade está presente num curto período histórico da humanidade. Nas palavras

do autor:

Em cada rua, em cada bairro, em cada agrupamento de indivíduos que vivam em torno de uma oficina, ou ao longo de uma via férrea, é necessário despertar o espírito criador, construtor, organizador, a fim de se reconstruir a vida inteira; - e a reconstrução dessa vida nova deve ser feita na oficina, no caminho de ferro, na produção, na distribuição, nos armazéns, nos entrepostos, no povoado, enfim, em todas as relações entre indivíduos e entre os aglomerados urbanos, para, no dia em que se terminar com a organização social atual, comercial e administrativa, haver o necessário espírito de continuidade, as necessárias fontes de vida humana social e livre. (op cit. p.90-91)

A perspectiva de sociabilidade pautada em Kropotkin (op.cit), que valoriza

o saber-fazer criativo e autônomo do artesão como um sujeito que transforma a

realidade, entendendo a sua contribuição como uma arte, é corroborada por Lefebvre

(1968) na medida em que este filósofo faz a reflexão teórica putada em Marx de que

a obra é valor de uso e o produto está relacionado diretamente ao valor de troca.

106

Assim, compreendendo a diferença de significado entre obra e produto,

vemos, a partir da análise de Lefebvre, que o resultado do trabalho artesão é em sua

essência uma obra e se constitui como tal por ser intrínseca à criatividade

desenvolvida pelo artesão, bem como pela sua experiência baseada em sua vivência

coletiva e histórica. Nas palavras do filósofo: “somente passa por criadora a atividade

do indivíduo que completa sua obra. A coisa, o produto, a obra se distinguem”

(LEFEBVRE,1968, p.31).

Entretanto, mesmo a reprodução social do artesão se realizando como

parte e membro da comunidade ao qual pertence, no decorrer histórico, a

complexificação das relações sociais pautadas no valor de troca ainda situam o

artesanato sob o objetivo do valor do uso e da manutenção do artesão enquanto tal,

e não para o enriquecimento financeiro, status social ou outros valores decorrentes

do mundo moderno.

Posto isso, surge nossa problemática. O trabalho artesão é fato como obra,

mas no mundo capitalista também persiste como mercadoria, ou seja, é qualidade e

especificidade pela singularidade das peças confeccionadas, mas no âmbito da troca

também se estabelece como quantidade/ abstração para equivalência de troca. Esse

duplo ponto de vista, o qual já atestava Marx (2013) é inerente aos produtos. Logo, a

obra outrora existente em temporalidades passadas, cada vez mais é difícil de manter-

se sob as relações contemporâneas, na qual a produção se direciona para o mercado,

e desse modo, o produto é o que se vê. Nas palavras de Lefebvre (1972, p.38): “Em

la sociedade moderna, la productividad há destruído la creatividad. La obra

desaparece frente al produto”.

Assim, em respeito ao trabalho da totalidade dos artesãos, é inadmissível

comparar a obra de cada qual, visto serem artefatos desenvolvidos de maneira

geracional, de aprendizado lapidado pela experiência e autonomia individual sob a

conjuntura de todo um contexto histórico.

Entretanto, a lógica do mercado abstrai as diferenças na busca de um

critério de equivalência de troca, principalmente no que tange à forma dinheiro. “os

trabalhos privados só atuam efetivamente como elos do trabalho social total por meio

das relações que a troca estabelece entre os produtos do trabalho e, por meio destes,

também entre os produtores.” (MARX, 2013, p.148) E sob esse prisma, o produto do

trabalho artesão é tão mercadoria como o produto da manufatura e da fábrica,

concorrendo no mercado, como qualquer outra mercadoria.

107

Canclini (1983) é claro ao mostrar a complexidade do trabalho artesão no

âmbito mercantil e a ressignificação do artesanato sob os auspícios dos valores

integrados ao capitalismo, para o autor:

O artesanato conserva uma relação mais complexa em termos da sua origem e do seu destino, por ser simultaneamente um fenômeno econômico e estético, sendo não capitalista devido à sua confecção manual e seus desenhos, mas se inserindo no capitalismo como mercadoria (CANCLINI, 1983, p. 91).

Com a valorização das mercadorias pelo seu valor de troca, sendo este

valor “uma maneira social determinada de expressar o trabalho realizado numa coisa”

(MARX, 2013, p.157), vemos uma desvalorização da obra, bem como do sujeito, como

já alertara Kropotkin, e somos cúmplices da disseminação do produto e da alienação

para com o trabalho e com a vida.

O advento da industrialização e sua coexistência com outras formas de

produção nos traz não só um debate de temporalidades, como também de escala,

visto que tais processos que regem o mercado estão bem complexificados em relação

à produção, valores de troca, consumo e reprodução social.

Não obstante o processo de modernização influenciando a industrialização,

a sincronização que move o trabalho humano (Thompson, 1998) o prende à máquina,

e a sua vida aos ditames sociais consonantes com os valores transformados pela

modernidade. Para Thompson (op. cit.), a relação tempo/ trabalho é um trunfo para a

alienação da vida, a partir da perspectiva do tempo do relógio em detrimento do tempo

da natureza. Nas palavras do autor:

O que estamos examinando neste ponto não são apenas mudanças na técnica da manufatura que exigem maior sincronização de trabalho e maior exatidão nas rotinas do tempo em qualquer sociedade, mas essas mudanças como são experienciadas na sociedade capitalista industrial nascente. Estamos preocupados simultaneamente com a percepção do tempo em seu condicionamento tecnológico e com a medição do tempo como meio de exploração da mão de obra (THOMPSON, 1998, p.289).

A realização do trabalho artesão em suas atividades tem sua

particularidade no significado que os próprios conferem ao seu tempo. Para os

artesãos, o tempo de trabalho não é contado de maneira necessariamente monetária,

mas pela qualidade de como ele passa o tempo, mesmo que trabalhando (Thompson,

1998). Esse modo de pensar e viver dos artesãos e trabalhadores de manufaturas da

transição do século XVIII europeu também é característico dos artesãos do couro,

108

quando estes, assim como seus antecessores, mantêm autonomia do que fazem,

decidindo como e quando vão trabalhar.

A tentativa da modernidade em impor um padrão de tempo ao trabalho e à

vida é contestada pelos artesãos do couro, que autonomamente definem os rumos da

sua atividade. Essa atitude que se expressa no seu cotidiano se relaciona à

equivalência das obras como mercadorias no mundo moderno. É importante destacar

que os significados de ‘particularidade’ e ‘diferença’ modificam os sentidos da

obra/produto nos contextos em que se inserem.

Lefebvre (1972), a partir de Marx, define o particular como uma

característica ou conjuntos de características típicos de cada povo, decorrente do

conjunto de atividades produtivas de uma sociedade determinada, trazendo seu

sentido de origem. Já a diferença, esta se realiza e esse exprime a partir das relações

entre particularidades distintas, quando “transformados por al lucha, las cualidades

que sobreviven y que aún pueden afirmarse no se afirmam más por separado. No

pueden presentar-se y re-presentarse más que sus relaciones recíprocas, conflictivas

o sossegadas” (LEFEBVRE, 1972, p.43). A referida citação, em nosso entendimento,

mostra que a diferença só existe quando as particularidades são conhecidas e se

relacionam. Assim, com essa interação, pela conjuntura de necessidade de

sobrevivência no mundo moderno e homogeneizante, o que sobrevive enquanto

legado dos povos particulares são suas qualidades comuns.

Para Lefebvre (ibid., p.45), a particularidade é “o umbral entre o particular

e o diferente”, ou seja, é o conjunto apurado do movimento histórico e original que

conferem as características únicas dos diferentes povos particulares e suas referidas

obras. Logo, o termo particularidade é permeado de sentido.

Logo, percebemos que a contribuição teórica de Lefebvre para com a

particularidade e a diferença, pode ser diretamente relacionada com a situação do

artesanato em couro do Cariri cearense, pela perspectiva de análise da

problematização obra/produto. O artesanato em couro enquanto essa ‘qualidade’ que

sobrevive contemporaneamente no mundo moderno e incorporado pelo mesmo, é

justamente por isso, muita vezes empobrecido para com o sentido histórico e social,

e mais sobrevalorizado enquanto estética e raridade.

No âmbito do trabalho artesão, as operações no trabalho não são

dissociadas entre si, logo o artesão domina todo o saber-fazer necessário à confecção

completa da peça, detendo além desse conhecimento, as ferramentas necessárias

109

para sua atividade. O tempo de trabalho do artesão é designado originalmente pela

temporalidade do apreço à obra, da qualidade pautando a confecção do artefato;

valores pré-capitalistas. 51

A manufatura, enquanto criação específica do modo de produção

capitalista foca a produtividade, se baseando na divisão do trabalho artesanal, o qual

“não inclui qualquer sequência de processos de desenvolvimento, mas uma

multiplicidade de processos diferentes” (MARX, 2013,p.532), mantendo a importância

dos músculos humanos na realização das atividades. Vemos aí a contradição da

valorização do trabalho artesanal e sua destreza, ao passo que agora ele obedece a

uma autoridade e também realiza trabalhos parcelares mesmo dominando o saber-

fazer completo, e desse modo, “a força produtiva que nasce da combinação dos

trabalhos aparece como força produtiva do capital” (p.434). Nesse mesmo sentido,

corrobora Lukács (2012) ao afirmar que:

Se perseguirmos o caminho percorrido pelo desenvolvimento do processo de trabalho desde o artesanato, passando pela cooperação e pela manufatura, até a indústria mecânica, descobriremos uma racionalização continuamente crescente , uma eliminação cada vez maior das propriedades qualitativas , humanas e individuais do trabalhador (LUKÁCS, 2012, p. 201).

No trabalho fabril, a força motriz não está no ser humano, mas sim na

máquina, consolidando uma produção mecanizada. Quando a maquinaria se impõe

em processos parciais no interior da manufatura “a cristalização rígida da organização

manufatureira, que tem origem na velha divisão do trabalho, é dissolvida e dá lugar a

uma modificação incessante” (MARX, 2013, p.533). Não obstante a essa

transformação, a inserção da maquinaria se realiza na medida em que consegue

diminuir os furos da produção. “(...) Portanto, a racionalização deve, por um lado,

romper com a unidade orgânica de produtos acabados, baseados na ligação

tradicional de experiências concretas do trabalho: a racionalização é impensável sem

a especialização” (LUKÁCS, 2012 p, 202).

É importante perceber como com o avanço da tecnologia em prol de uma

produtividade para o mercado, cada vez mais se desvaloriza o trabalho humano, seja

no seu aspecto de entendimento de realização dos processos, da desvalorização da

51 Sobre o horário do trabalho artesão, Marx ressalta em nota de rodapé que este era irregular, segundo a vontade

do próprio artesão. “perdem 2 ou 3 dias e depois trabalham toda a noite para se ressarcirem” (p.548). A realidade

atestada por Marx é corroborada pelas entrevistas realizadas e já expostas nesse capítulo.

110

criatividade e subjetividade, como a tentativa constante de substituição do trabalho

humano pela máquina.

Tal processo de modernização se expande pelo mundo no ímpeto de

subjugá-lo à lógica de produção e reprodução social ditada pelo capital, logo, como

afirma Lefebvre (1972):

Constrenir a los trabajadores (campesinos, artesanos, obreiros, etc), de todos los países a una industrializacíon casi idêntica, no tolerando más que pequenas variantes, conservar un esquema homogéneo a escala mundial, no variar el modelo unitário em lo que concierne a las tosas e ritmos de crecimiento, es imposible actualmente. De hecho, ya no se intenta hacerlo, pero esto no se proclama. Se conserva la ideologia, el esquema, los modelos, em vez de plantearse los diferentes problemas para cada país, para cada pueblo, para cada cultura, para cada setor. Se mantienen los esquemas de homogeneidade por razones fáciles de entender: prestigio, autoridade,

instituiciones existentes, etc.52 (LEFEBVRE, 1972, p.17).

No Ceará, sob os preceitos da modernidade enquanto universais e a

contradição dos seus ritmos desiguais para com o desenvolvimento econômico e

social (Martins, 2013), esse processo de desenvolvimento econômico vigorou sob a

perspectiva do governo do Estado de fomentar a produtividade e a mecanização sob

a égide política em consonância com a escala internacional na década de 1980.

Para a realidade cearense, Pereira Junior afirma que a vitória política nas

eleições de 1986 implicou a realização de um novo projeto no qual o Estado assumira

a tarefa de impulsionar o crescimento econômico (PEREIRA JUNIOR, 2012). Nas

palavras do autor:

As praticas desse novo estilo de fazer gestão , no inicio largamente divulgado pelo slogan “governo das mudanças”, se fundamentam numa filosofia burguesa, ao defender ações como o fortalecimento das tendências industrializantes, a racionalização dos sistemas técnicos de organização do território, a atração de investimentos externos e a reestruturação da máquina pública baseada numa política de “enxugamento” e “privatização” (IBID, p.30).

Pereira Junior (2012), ao trabalhar o desenvolvimento econômico no Ceará

aponta o processe de industrialização como marca do referido governo. E para o

52 “Constranger aos trabalhadores (agricultores, artesãos, trabalhadores, etc.) de todos os países a uma

industrialização quase idêntica, não tolerando mais que pequenas variações, mantendo um esquema globalmente

consistente, não mudar o modelo unitário em que concerne as taxas de crescimento, é impossível atualmente. Na

verdade, ele não tenta fazer, mas isso não é proclamado. Se mantém a Ideologia, o esquema, os modelos, em vez

de considerar os diferentes problemas para cada país, para cada povo, para cada cultura, para cada setor. Mantêm-

se os esquemas de homogeneidade por razões compreensíveis: Prestígio, autoridade, instituições existentes, etc.”.

111

Cariri, região a ser impactada por esse tipo de ‘progresso’, o autor reconhece a

mudança na dinâmica no setor calçadista, tendo este a origem no artesanato em

couro:

As origens da produção calçadista local estão vinculadas ao desenvolvimento de atividades ligadas à criação do gado, notadamente às heranças do trabalho artesanal que beneficiava o couro e seus artefatos. A tradição na produção de utensílios requeridos pelo vaqueiro, a exemplo de sapatos, sandálias, bolsas, entre outros, engendrou um saber reproduzido por anos de experiência. Ademais, a centralidade comercial e de serviços exercida por Crato e Juazeiro do Norte não pode ser negligenciada, uma vez que o dinamismo do consumo regional, que polariza também muitos municípios da Paraíba, de Pernambuco e do Piauí, exerceu influência para uma maior produção e aperfeiçoamento dos produtores (PEREIRA JUNIOR, 2012,p. 258).

Pautado o contexto histórico, bem como a problematização referente à

modernização produtiva influenciando diretamente os produtores de calçados,

observamos que o contexto contemporâneo para com a produção artesanal de

artefatos em couro é bem diferente das condições conhecidas há pelo menos 50 anos.

Visto às grandes transformações terem inicio em 1986, e implementadas mais

concretamente na década de 1990 com a mudança política de ruptura do 'governo

das mudanças' de Tasso Jereissati.

Em relação ao Cariri cearense, Pereira Junior (op.cit) afirma que esta

região teve importante dinamismo econômico para o estado nas últimas décadas, e

endossa que “apesar de concentrar um número expressivo de estabelecimentos

voltados para a produção de artigos de confecção, de cimento e de alumínio, impõe-

se decisivamente pela predominância de fábricas de calçados” (idem, p.292).

As transformações ocorridas no âmbito cearense condizem com o processo

de modernização mundial, seja em termos políticos, como produtivos, e desse modo,

vemos diferentes temporalidades desiguais operando em uma região com resquícios

de um ‘modus operandi’ sertanejo, no qual o aspecto particular da reprodução social

se imbrica com os preceitos legados pela modernidade como universais. Assim,

corroborando com Martins (2013), efetua-se uma “colagem” pelo fato da modernidade

incorporar a cultura popular, relações sociais datadas, conjugando passado e

presente, perfazendo uma modernidade que não se completa.

O impacto da modernização logo foi sentido pelos artesãos. Segundo

Estácio, artesão de botina de carnal em Assaré, “Depois que apareceu a borracha,

112

acabou o sapateiro53”, outros artesãos que fazem os artefatos de calçados ' na faca'

comentam que é injusto a concorrência, pois a indústria produz muito mais em pouco

tempo, o que torna a concorrência desleal. Entretanto, ressaltam que a qualidade do

artesanato que produzem não tem comparação, é muito melhor que qualquer produto

de fábrica.

Não obstante à problemática referente ao artefato modalidade calçado, o

advento da modernização foi sentido pelos demais artesãos do couro. Seleiros que

confeccionavam peças de montaria como selas, arreios, disseram que com o passar

do tempo à produção veio diminuindo, inclusive pela troca do uso do cavalo pela

motocicleta.

Nas palavras de um artesão de Assaré54:

roupa do couro completa não tem mais tanta saída mas sempre sai / Ta começando inclusive a venda de roupa de couro, vende pelas 'pega de boi', pra entrar no mato ne. A camisa, a calça, a luva. Usa o sapato tradicional / inclusive a moto hoje é quase um cavalo aqui na região. Tangendo o gado todo de moto / o que ta segurando mais o negocio de couro é as vaquejadas, porque no sitio tá fraco.

Essa perspectiva do aumento do uso da moto em detrimento do cavalo

como meio de transporte no meio rural é reforçada por um artesão de Santana do

Cariri55 : “Garupa agora é em moto, não é cavalo” . Este artesão comenta

saudosamente que a sela de cavalo é bem enfeitada, que no passado, o esmero

grafado na sela era valorizado, ao passo que hoje, muitas pessoas deixam de comprar

sela para levar um selote simples.

Como podemos observar, a adesão da motocicleta para realizar as

atividades do meio rural, a disseminação dos meios de transportes a combustível,

somado à industrialização nascente, vem reconfigurando à região em questão, e

influencia diretamente no modo de vida dos artesãos.

As transformações advindas da modernização implementada pelo estado

do Ceará não aconteceram apenas no âmbito da produção, mas se realizaram e se

difundiram configurando temporalidades, modos de vida e reproduções sociais.

53 Entrevista realizada em Assaré - Trabalho de campo 04/02/2014. 54 Entrevista realizada em Assaré - Trabalho de campo 04/02/2014. 55 Entrevista realizada em Santana do Cariri - Trabalho de campo Julho/ 2013.

113

Thompson (1998) argumenta que a transformação é cultural, expressa nos sistemas

de poder, articulando mudanças técnicas e àquelas experienciadas na sociedade.

Segundo entrevistas de artesãos de Nova Olinda56 e Crato57, a implicação

da modernização impactou também os artesãos profissionais ‘seleiros’, visto que

estes deixaram de trabalhar com selas para adentrar no ramo de calçados, alegando

que a mudança foi tencionada pela dificuldade de vendas dos artefatos de montaria.

Para ilustrar essa realidade, um dos seleiros afirma:

Até quando eu vim pra cá eu ainda fazia arreio, e as venda ficou ruim de vender... Aí tem um rapaz e disse, vamo fazer sandália, que sandália vende que arreio ta ruim demais de vender. Outro vizinho disse também “não falta quem compre” (sandália). Ai pensei em fazer... Conhecia ninguém assim de sandália. E a mulher já fazia isso (de bordar sandálias), mas em sintéticos. Ai começamo a fazer e ela borda, ai agente tem pedido direto do pessoal.

Tais narrativas mostram a experiência dos artesãos sob os auspícios da

modernização e a maneira como lidam com essas transformações sem deixarem de

confeccionar sua obra e nem perderem o cerne de sua atividade em sua vida.

Mesmo com as tendências globalizantes de produzir e implementar novos

costumes, a exemplo do uso das sandálias de borracha pela população, as corrulepes

58 concorrem diretamente com as chinelas de borracha e muitas vezes ganham a

preferência do consumidor por serem consideradas ‘menos quentes’; a busca da

população local pelas sandálias ‘maria bonita’ se intensificam nos períodos de festejos

(como na EXPOCRATO); A roupa do vaqueiro como aspecto cultural diminui pela sua

função para com o vaqueiro mas permanece pela “brincadeira” de pega de boi no

mato; mesmo os selotes, sendo campeões de venda frente as selas, os compradores

continuam a enaltecer o artesão que as confeccionam.

5.2 O PRODUTO DO CARIRI CEARENSE E O SEU ALCANCE ENTRE ESCALAS

No século XX temos a modernização como expressão abrangente dessa

realidade, que em nível mundial, pauta-se na produção em massa e na padronização

do produto e consumo massificado difundindo-se em escala global.

56 Entrevista realizada em Nova Olinda - Trabalho de campo 06/2014. 57 Entrevista realizada em Crato - Trabalho de campo 06/2014. 58 Corrulepes são as conhecidas chinelas de couro.

114

A expansão do fordismo pelo pós-guerra proporcionou a formação de

mercados de massa globais, que nas palavras de Hobsbawm (1994), em relação ao

fim do sec. XIX e início do século XX “não havia outro modelo operacional além da

‘ocidentalização’ ou ‘modernização’ (HOBSBAWM, 1994, p. 199)”. No que tange ao

impacto nos países de periferia, a modernização “promovia a destruição de culturas

locais, muita opressão e numerosas formas de domínio capitalista em troca de ganhos

bastante pífios em termos de padrão de vida e serviços públicos” (HARVEY, 1996,

p.133). Logo, insere-se no mundo uma perspectiva de civilização e civilidade com

base em modos de vida e consumir que são tidas como a expressão do que há de

melhor na sociedade (EAGLETON, 2005), e inteiramente inter-relacionada às formas

de acumulação e expropriação que subjugam às diferenças (costumes, crenças,

valores) sob um critério hierárquico de concepção.

Harvey (1996) expõe que o Fordismo no início de 1900 já seguia uma

tendência em curso de divisão técnica do trabalho e realização de formas corporativas

de organização dos negócios. Contudo, seu diferencial ditou um modelo produtivo

pautado em um novo sistema de reprodução da força de trabalho condizente com um

modo de vida padronizado “uma nova estética e uma nova psicologia, em suma, um

novo tipo de sociedade democrática, racionalizada, modernista e populista” (p.121)

O impacto da massificação da mercadoria e a difusão da globalização

permeou também a seara do artesanato em couro de diferentes maneiras. Podemos

observar, a partir das informações dos trabalhos de campo realizados, que na medida

em que se difundiu a mercadoria artesanato, menor foi o conhecimento do processo

que o envolve e mais superficial é a sua representação cultural.

Ao sair do Cariri cearense para o comercio regional nordestino as sandálias

que expressam a região cearense perdem seu destaque de particularidade para

representar perante aos demais estados do Nordeste a valorização do artesanato

genuinamente cearense. Essa mudança de percepção para com o artesanato em

couro se evidencia cada vez mais ao passo que a escala de circulação da mercadoria

se expande.

No que tange ao alcance dos artefatos em couro, identificamos que eles

estão presentes em circuitos de circulação das mercadorias, sejam nas escalas

regionais como nacionais. Tais artefatos, tão conhecidos da população do Cariri

cearense, também são produtos de boa vendabilidade, e objetos requisitados pelo

público de alto poder monetário.

115

Realizamos trabalhos de campo em diferentes circuitos para verificar como

se dá o reconhecimento da obra/produto do trabalho artesão do Cariri cearense. A

escolha dos locais a serem visitados teve como elemento norteador as entrevistas dos

artesãos, os quais mencionaram venda dos produtos para Cachoeirinha – PE,

Caruaru –PE e Espanha. Para tanto, mudaremos o enfoque do processo do trabalho

artesão e sua particularidade para a análise do alcance do artesanato como produto

e sua ressignificação enquanto mercadoria.

O município de Cachoeirinha tem a fama de ser a ‘terra do couro e do aço’,

essa pequena localidade do sertão Pernambucano é marcada historicamente pela

produção de couro e aço voltados para a confecção de artigos de montaria como selas

e arreios, como podemos observar na paisagem da rua principal do município com

suas várias selarias e o cheiro de couro curtido ao longo do dia no centro da cidade.

Figura 183 - Município de Cachoeirinha/Pe

Fonte: elaborado pela autora

116

Figura 24 - Localização do município de Cachoeirinha/Pe.

Fonte: elaborado pela autora

Campina (2010, p.93) endossa que toda a produção de Cachoeirinha é

voltada majoritariamente para produção de arreios e rédeas e ressalta “vale salientar

que o comércio dos artigos em couro e aço já é tão significativo, que passa também a

abranger artigos (principalmente de couro) de outras cidades, assim como de outras

regiões (...)” num fluxo intrarregional.

No circuito regional polarizado por Cachoeirinha, Campina (op cit.)

reconhece o Ceará como consumidor e fornecedor das mercadorias do couro, bem

como ressalta que o estado é forte fornecedor de sandálias em couro. Verificamos em

trabalho de campo realizado em 14 de julho de 2016, que as sandálias em couros

vindas do Ceará são produzidas no Cariri.

Em entrevistas realizadas junto aos lojistas locais, bem como adentrando

em cada loja do centro de Cachoeirinha, constatamos a partir dos carimbos das

sandálias, serem estas produzidas no Cariri, bem como os próprios lojistas a

117

denominam de “sandálias maria bonita”. Para eles, esse modelo de sandália é

reconhecidamente cearense.

Não obstante o relatado pelos lojistas de Cachoeirinha em relação aos

produtos cearenses, sabemos também por lojistas de Assaré, que outros produtos

como botinas e chapéus, produzidos pelos artesãos locais de Assaré também são

vendidos em Cachoeirinha, na sua grande feira.

Em Caruaru – PE59, popularmente conhecida como a maior feira do

Nordeste, tivemos a oportunidade de realizar trabalho de campo60 e reafirmar o que

vimos em Cachoeirinha, principalmente em relação às sandálias em couro.

Na feira de Caruaru, dentre os vários espaços temáticos, visitamos o setor

do couro. Contamos nesse espaço oito lojas destinadas à venda de produtos em couro

como calçados, bolsas, solas, vaquetas, chapéus etc. Quando realizamos as

entrevistas informais com os vendedores das lojas, perguntamos a todos, quais

produtos do Ceará eram vendidos, e eles, majoritariamente responderam que eram

as sandálias ‘maria bonita’.

59 Segundo Dantas (2008), a feira de Caruaru é uma grande feira de caráter regional. O autor cita Andrade (1997,

p. 129) para reforçar sua assertiva no que se refere às feiras de Caruaru, Campina Grande e Feira de Santana “para

elas convergem toda a produção de grandes áreas, sendo daí escoadas para as áreas de maior concentração e para

os principais portos”. 60 Trabalho de campo realizado em 13 de julho de 2016.

118

Fonte: elaborado pela autora

.

Tanto em Cachoeirinha como em Caruaru, a partir das entrevistas,

descobrimos que artefatos como chapéus e bolsas em couro também são

provenientes do Ceará para as feiras dos referidos municípios, contudo, as “sandálias

maria bonita” são notadamente reconhecidas como do Ceará, e sabemos que a

confecção destas se dá no Cariri cearense.

Figura 195 - Feira de Caruaru/ Pe.

119

Figura 206 - Sandália ‘maria bonita’ em Caruaru/Pe.

Fonte: elaborado pela autora

Figura 217 - Sandálias em Caruaru/Pe.

Fonte: elaborado pela autora

Em relação às sandálias ‘maria bonita’, é importante destacar que todos os

vendedores entrevistados alegaram que elas eram do Ceará pela sua estética, apesar

de constatarmos uma variação nas marcas (carimbos).

120

Além das feiras de Caruaru e Cachoeirinha, essas mesmas sandálias foram

encontradas em pontos turísticos de Piranhas – AL61 (Local das filmagens da novela

global “Velho Chico62” exibida em 2016 no horário nobre da rede Globo), no Aeroporto

de Sergipe63, na famosa praia cearense de Jeriquaquara64, na baixa dos sapateiros

65em Salvador/ BA66 espaços estes voltados ao turismo na escala regional, nacional e

internacional.

Ao contrário do que captamos nas feiras, as sandálias presentes nesses

espaços mais globalizados não são reconhecidas como do Ceará, nem do Cariri, mas

simbolizam a cultura sertaneja juntamente com outros produtos reconhecidamente do

sertão nordestino como cordéis, rapaduras, bordados etc. Essa mudança de

perspectiva, nos mostra a contradição pautada por Canclini (1983), da unificação do

particular pelo mercado. Nas palavras do autor:

A identificação que exaltam é negada quando dissolvem a sua explicação na sua exibição. A grandeza do povo que elogiam é diminuída ao apresentarem como manifestações espontâneas, que facilmente são atribuídas ao virtuosismo ou ao “gênio” populares, peças de artesanato e cerimônias cujo mérito reside no esforço realizado para transportar para o plano simbólico e às vezes ‘solucionar’ de modo imaginário relações dramáticas onde a natureza fez com que se sentissem impotentes ou os opressores fizeram com que se sentissem humilhados (CANCLINI, 1983, p.87).

O capital simbólico explicitado por Harvey (2005) é bem presente na

realidade das marcas de calçados no Crato, como Lampião e Nordestina. De

produção manufatureira, ambas fornecem a mercadoria encomendada pela marca O

Mameluco, fornecedor europeu dos calçados produzidos no Cariri. Podemos ver na

página da marca internacional, ilustrado na figura 29, como o capital simbólico é

utilizado enquanto marketing do produto:

61 Outubro de 2015. 62 Velho Chico foi a novela do horário nobre (novela das ‘nove’) da rede Globo entre os meses de março e setembro

de 2016. A novela foi ambientada no sertão nordestino e trouxe a economia e o coronelismo como conflito gerador

da história. Sob este enredo, o artesanato de Sebastião foi encomendado para compor o figurino da novela nos

primeiros capítulos.

63 Dezembro de 2015. 64 Janeiro de 2016. 65 A baixa dos sapateiros é um centro comercial que já no século XIX é marcado pelo intenso comércio e

concentração de artesãos de calçado em couro. (http://www.salvador-antiga.com/baixa-sapateiros/antigas.htm).

66 Outubro de 2016.

121

Figura 228 - Print do site da marca O Mameluco

Fonte: http://www.caboclobrasil.com/#caboclo-project

Em tradução livre, a empresa acredita que:

Nossas sandálias e sapatos são exemplos reais de como trabalhamos. Levou-nos em média 2 anos para desenvolver cada um deles com artesãos do Ceará, nordeste do Brasil. Descobrimos que o processo de fabricação era datado do século XVI. Um grande benefício é que o tratamento de couro ainda é feito da mesma forma, portanto, é livre de cromo e todos os pigmentos e cores são naturais. Como parte da abordagem inovadora, em vez de solas de borracha tradicional, decidimos usar pneus reciclados como nosso único material. Depois de algumas versões e testes finalmente encontramos a melhor tecnologia. Até mesmo a ferramenta para fabricar os pneus e segregar a borracha dos fios de aço foram desenvolvidas durante o projeto. Finalmente, melhoramos o design criando mais de 30 modelos. Esperamos que você possa ver essa devoção em cada um de nossos produtos (tradução nossa).

A síntese da O Mameluco em seu site faz uma amálgama da estrutura de

sentimento dos artesãos do cariri sobrepujando a real condição de produção das suas

sandálias fornecidas pelos artesãos cratenses, donos das empresas que fornecem as

sandálias para a marca internacional.

Segundo os próprios donos das marcas Lampião e Nodestina,

Foi o seguinte, Nois comecemo com a fome de deixar o artesanato sem deixar as característica mas com estilo de indústria. Produz artesanato mais limpo,

122

introduzindo maquina pra aumentar a quantidade, mas sem perder as características. Foi uma revolução de nois irmãos. Agente deu inicio a um processo que há muitos anos vinha ficando parado. Tinha os artesãos que não inovavam, agente veio e inovou. (Entrevista realizada em Fevereiro de 2014)

Ou Seja, Cosme e Damião, conhecidos pelo meio dos artesãos como os

Irmãos Pedroso (donos das Marcas: Nordestina e Lampião) são artesãos antes de

serem empresários. Ambos expressam respeito pelo artesanato e pelos demais

artesãos, contudo, diferente dos demais, os irmãos aderiram ao uso de maquinário

fabril (Balancinho, máquina de prensar e máquina de vazar) 67e estratégias de

organização fordista de trabalho para a melhoria da qualidade do artefato e aumento

da sua produção, fortalecendo a característica manufatureira na produção das

sandálias em couro.

Segundo os empresários, a adaptação na maneira de produzir o artesanato

foi uma consequência para suprir o atendimento da demanda. Os empresários,

dominadores do saber fazer artesão o transmitiram aos funcionários, na intensão de

manter a qualidade do produto, entretanto, a busca pela melhoria do artefato (pintura

homogênea, colagem da sola, simetria do corte da palmilha etc.) requereu também

alterações na maneira de produzir, mesclando elementos fordistas às características

artesanais de produção.

Em relação à característica dos calçados realizados comumente no Cariri

eles afirmam que “De primeira era produzido um artesanato que era feito em qualquer

lugar. Eles colocavam taxa na sandália porque eles trabalhavam com uma cola que

colavam mal. Melhoramos na colagem, tiramos a taxa. Hoje em dia a gente trabalha

com a colagem boa.” Não obstante à colagem, o couro utilizado mudou: “Trabalhava

com couro muito bruto, fedia. Hoje o couro não fede. Hoje agente atinge a todos os

públicos, não só o homem da roça e pessoal humilde, que era o público - agora o

turista também compra”.

Quanto ao couro utilizado nas sandálias, os irmãos afirmam que compram

em Ouricuri/ Pernambuco, origem do couro para muitos artesãos, visto o fechamento

67 Os irmãos Cardoso expõem que o maquinário comprado para acelerar e aperfeiçoar a produção do artesanato é

visto como obsoleto pela própria indústria. A uso das formas laminadas substituem as facas e dão o mesmo formato

as palmilhas do calçado; o balancinho é a máquina que pressiona a lâmina e corta essas palmilhas na sola; a

máquina de prensar finaliza a colagem da sola no pneu – substituindo o uso do martelo e pé de ferro; a máquina

de vazar faz os furos necessários nas sandálias, descartando a necessidade de fazer os furos manuais, um a cada

vez.

123

de alguns curtumes no Ceará, apesar de comprarem também em um antigo curtume

em Fortaleza/CE. É importante ressaltar que os curtumes de Fortaleza e Ouricuri são

curtumes considerados pequenos, mas que tratam as peles das reses de modo

industrial, modernizado, utilizando cromo68 para o curtimento do couro, ao contrario do

que alega a empresa espanhola.

Podemos observar que o couro (vaqueta, camurça) comprado do curtume

de Ouricuri, pelos artesãos como um todo, não tem sua base artesanal. Logo, o

artesanato conta com sua matéria prima trabalhada a partir do método industrial, por

mais que a sola (outra modalidade de couro) possa vir de fontes artesanais para

alguns artesãos - a exemplo do fornecimento de sola pelos artesãos de Carmelópoles,

distrito do município de Campo Sales (CE). Essa modernização no trato com o couro,

bem como na confecção das sandálias é reconhecida pelos artesãos entrevistados

mas não é difundida pela marca O Mameluco, em sua divulgação on line.

Em dezembro de 2014, tivemos a oportunidade de entrar em uma loja

especializada em calçados na cidade de Paris, a parceira francesa da marca. Nessa

ocasião, observando os produtos em exposição, não constatamos nenhuma

característica do artesanato caririense nos calçados. Logo, informalmente fizemos

questões aos lojistas sobre os calçados da marca espanhola: quais eram, de onde

vinham o produto, o preço vendido no mercado.

Os calçados apresentados da marca eram comuns, sem nenhuma estética

que os vinculasse ao Cariri, Ceará ou Brasil. Sobre a origem do produto, os lojistas

afirmaram que eles vinham de Barcelona/ Espanha, o que para nós transparece um

desconhecimento sobre a origem de confecção do produto, conhecendo somente o

foco de distribuição internacional. Tal fato contradiz a própria marca em relação aos

seus objetivos visto que valorizam o artesanato e as culturas regionais. Nesse

período, o preço médio de um par de calçados era de 175 euros.

Podemos observar que a internacionalização das sandálias do Cariri

transmutaram esse artefato, transformando suas particularidades, significados. Na

68O processo de curtimento do couro transforma a pele, matéria prima natural e perecível no ‘couro curtido’, que

pode ser armazenado sem a degradação do couro animal não trabalhado nesse processo. No curtimento artesanal

é a substância tanino encontrada na árvore Angico que da a cor amarelada do couro cru das sandálias e bolsas,

bem como é responsável por o cheiro característico, o qual os irmãos Cardoso mencionam como de forte odor. Já

no processo industrial de curtimento, usa-se o mineral Cromo em vez da casca do Angico. O Cromo não só curte

o couro sem o odor característico da casca do angico, como também muda a coloração do couro para um azul claro

(sendo necessário tingir o couro). É importante ressaltar que os curtumes que utilizam o Cromo no seu processo

de curtimento devem ter permissão do governo federal para o uso da substância.

124

loja parceira da marca que comprou os calçados do Crato, situada na popularmente

reconhecida capital da moda, podemos observar a homogeneização da obra em

produto, e da perda de sua identidade sob o discurso de valorização do exótico e

cultural. Tal homogeneização acontece de tal forma, que a única singularidade deste

produto na loja, se comparado aos demais, se resumiu ao fato dele ser feito a mão.

Em contraponto a massificação globalizante do artesanato em couro como

produto, temos também a expressão do artesanato como raridade, ou como aponta

Harvey (2005) ‘vantagem monopolista’. Para tanto, expressão desse fato é a

valorização do trabalho artesão, mas, desta vez, o valorizando para agregar valor ao

produto, valor de exclusividade, ao elencar a origem, histórico e particularidades locais

como ingredientes que formulam uma ‘grife’ para poucos consumidores. Dessa

maneira, poucos artesãos serão lembrados pela sua arte, e dentre tantos talentosos,

poucos serão aqueles reconhecidos pela difusão da grande mídia.

O caso do Sebastião, conhecido por Sebastião Seleiro, famoso artesão de

Nova Olinda-CE é central para nossa discussão. Tal artesão, sentindo os impactos da

modernidade na vida cotidiana, ao perceber as baixas vendas dos produtos que

confeccionava como selas, arreios e outros artefatos em couro voltados à montaria,

aplicou nas sandálias, muito do seu conhecimento de seleiro. Esse talento do Cariri

cearense é reconhecido contemporaneamente, sendo convidado para compor

figurinos para filmes e novelas brasileiros, e como em um jogo de dominó, cada vez

mais aumentando a publicização de sua arte. Os calçados do sr Sebastião chamaram

a atenção de designers e fashionistas depois que a marca Rock usou, em 2005,

algumas peças no desfile da Semana da moda de Piratininga69.

69 É o maior evento de moda do Brasil e o mais importante da América Latina.

125

Figura 29 - Desfile na Semana da moda de Piratininga 2005 com sandálias de

Sebastião.

Fonte: http://ffw.uol.com.br/desfiles/sao-paulo/verao-2006-rtw/cavalera/2541/colecao/12/

O reconhecimento do talentoso seleiro de Nova Olinda e sua arte foram

difundidos a pós sua aparição no desfile. Em nosso entender, a particularidade da sua

vida e aprendizado do ofício ser geracional, somado a singularidade do avô do artesão

ter confeccionado uma sandália para Lampião, foi uma maneira que o mercado

encontrou para agregar valor às suas peças, já confeccionadas com tanto esmero,

historicamente enquanto obra. Esse conjunto de qualificações da obra deste talentoso

artesão foi apropriado pelo mercado pelo seu valor simbólico, o que conferiu aos

produtos vendidos um preço diferenciado, mais próximo ao público consumidor e

entendidos do circuito de grifes, tendências de moda e alta costura. Ou seja, as

particularidades da vida do sr Sebastião foram captadas pelo mercado como

vantagem monopolista tão quanto o histórico do sertão nordestino e o legado da

curtição do couro do vaqueiro e a obra dos artesãos.

Em trabalho de campo realizado em fevereiro de 2016 em Nova Olinda,

entrevistamos Sebastião. Sua pessoa simples mostrou a continuidade do seu

trabalho, apresentou a sua oficina e loja, bem como os seus moldes, máquina de

costura e ferramentas manuais. Dentre as peças dispostas para venda, e as

126

confeccionadas por ele, ele mostrou um banco que estava sendo terminado para

envia-lo aos irmãos Cabanas.70bem como nos informou que não poderia conversar

muito visto que estava trabalhando em uma encomenda de bolsas para compor uma

novela da rede Globo.

Figura 230 - Banco encomendado pelos irmãos Cabanas.

Fonte: Denise Elias, 2015.

Entendemos que a qualidade das peças confeccionadas por Sebastião e

sua oficina escola é fruto de muito esmero e experiência, contudo, a sua obra, bem

como a singularidade de sua história e simplicidade de sua pessoa o tornaram

elemento importante enquanto diferencial na produção massificada de mercado e

captado pelo mercado.

70 Os irmãos Cabanas são designers brasileiros de grande destaque na atualidade e reconhecidos

internacionalmente.

127

Figura 241 - Bolsas e carteiras de Sebastião

Fonte: elaborado pela autora

Figura 252 - Sebastião e calçados da sua loja

Fonte: Antônio José, 2015

Designers como Perla Bis e irmãos Cabanas o têm como referência para

simbolizar linhas de produtos que remetem ao imaginário de sertão, Nordeste e

mesmo ao cangaço como relíquia cultural brasileira. Tais linhas de produtos, seja em

128

parceria com a Rock, ROSA71, ou com os próprios irmãos Cabanas72, respeitam a

identidade do trabalho do artesão, a partir dessa significação cultural para o mercado,

conferindo uma exclusividade ao produto em questão a ser vendido a preços

compatíveis ao público de tais designers e marcas internacionais, voltados ao

mercado de luxo, normalmente como ‘edições limitadas’, ou seja, exclusivas. A foto a

baixo é uma expressão dessa parceria:

Figura 263 - Sandália de Sebastião vendida pela exclusivamente pela ROSA

Fonte: http://www.farmrio.com.br/br/adorofarm/post/farm-3-espedito-seleiro/_/A-blogPost-

3300008.ptbr

O caso exposto em relação à obra do seleiro de Nova Olinda mostra a

valorização do seu produto, mas sob “a estratégia de descontextualização e

ressignificação que a cultura hegemônica cumpre diante das culturas subalternas”

(CANCLINI, 1983, p.92). Concordando com Canclini, “Todo objeto recebe o seu

significado do sistema de objetos reais entre os quais se situa e também do repertório

imaginário de objetos que não se possui, mas que são vistos, descritos, oferecidos

pela sedução publicitária” (op cit. p.94). O deslocamento desse artesanato para as

71 A ROSA é uma rede de lojas em âmbito nacional que tem a intenção de fazer moda de maneira “mais natural,

contemporânea e autêntica possível”. Ver site: Cultura.com.br. É importante ressaltar que as peças vendidas do

Sebastião na sua rede são expressivamente mais caras, e como os modelos são limitados, os mesmos não são

encontrados na loja do próprio artesão. A título de comparação, uma sandália ‘maria bonita’ confeccionada pelo

Sr. Sebastião é vendida na sua loja ou na Ceart pelo preço médio de 80R$ em 2016, enquanto sua sandália na loja

ROSA custa 339R$. É curioso destacar que as sandálias maria Bonita não confeccionadas por ele, mas vendidas

em Cachoerinha-PE, Caruaru-PE tem preço médio de 45 R$. 72Ver site das respectivas marcas e revista Casa Vogue. http://www.farmrio.com.br/br/adorofarm/post/farm-3-

espedito-seleiro/_/A-blogPost-3300008.ptbr (acessado em 24/09/2016)

http://casavogue.globo.com/Design/Gente/noticia/2015/04/campanas-criam-com-inspiracao-no-cangaco.html

(acessado em 24/09/2016)

129

boutiques também delegaram superficialidade à história, experiência e estrutura de

sentimento que os artesãos conferem ao seu espaço de vivência e, em nosso caso,

especificamente à região do Cariri cearense.

Nesse sentido, a quantificação, a abstração que compreende que todo

trabalho humano é o caráter comum das mercadorias, suprime as diferenças entre os

artefatos produzidos. Essa supressão das características singulares socialmente

produzidas com significados próprios, em prol de uma equivalente comum universal

supõe uma relação entre os objetos. Assim, se concretiza ‘ o caráter místico da

mercadoria’ no qual fala Marx, pois a quantidade suplanta a qualidade, as diferenças,

logo ‘as reais relações dos produtores’ aparecem erroneamente como “uma relação

social entre os objetos, existente as margens dos produtores (MARX, 2013,p.147)” e

desse modo, temos o caráter fetichista da mercadoria surgindo pelas várias

necessidades que uma mercadoria pode suprir, tanto quanto o capital pode reinventar.

Nas palavras de Lukács (2012, p.199): O homem é confrontado com sua própria

atividade, com seu próprio trabalho como algo objetivo, independente dele e que o

domina por leis próprias, que lhes são estranhas. E isso ocorre tanto sob o aspecto

objetivo quanto sob o subjetivo.

5.3 ARTESÃOS DO SÉCULO XXI: ESTRUTURA DE SENTIMENTO PARA A

CONFIGURAÇÃO DA REGIÃO

Podemos observar que na região do Cariri ainda nos dias atuais, coexistem

o trabalho artesanal do couro, a manufatura e as indústrias, principalmente aquelas

voltadas para a fabricação de calçados. Vale ressaltar que mesmo que haja uma

produção variada de objetos artesanais em couro (como selas, seletas, rédeas,

chapéus etc.), grande parte dessa produção tem sido realizada em calçados, como

podemos observar em trabalho de campo.

Entendemos que há uma mudança do perfil de artesanato devido às

entrevistas realizadas, principalmente com os seleiros, quando eles afirmam a

desvalorização ou uma menor procura de artigos que costumavam ser bem vendáveis

em outros momentos. Temos o exemplo da valorização da compra de selotes em

130

detrimento das selas73, bem como o aprimoramento da confecção dos calçados, e

início da produção de bolsas, carteiras e demais utensílios voltados ao público de

maneira geral e menos às demandas do campo.

A mudança da demanda sentida pelos artesãos está atrelada ao impacto

da modernização na região para além da mudança em relação à demanda dos

artefatos. A modernização implementada inicialmente na produção e edificação do

espaço, é transformadora de costumes e atividades cotidianas ao longo das décadas,

visto que ela está relacionada diretamente a como o sujeito se percebe em seu tempo:

[...] na comunidade em que a orientação pelas tarefas é comum parece haver pouca separação entre o “trabalho” e “a vida”. As relações sociais e o trabalho são misturados – o dia de trabalho se prolonga ou se contrai segundo a tarefa – e não há senso de conflito entre o trabalho e “passar do dia”. (THOMPSON, 1998, p.271)

Thompson (1998) discorre sobre a percepção do tempo do trabalhador no

século XVIII e XIX para expor a ascensão de uma nova disciplina do tempo, mais

condizente com a produtividade e menos com o ritmo da vida e da natureza. Essa

realidade que propagava o ‘uso- econômico-do-tempo’ (ibid.) na transformação social

desses séculos de revolução, se configura atualmente como a realidade comum

ocidental perante a vida.

Logo, entendemos que a compreensão e valorização do sujeito como um

ser que sente e é dotado de liberdade em determinado contexto, essa experiência,

vivida no âmbito da coletividade, é base para a consciência e para a cultura, mesmo

sob transições de práticas e costumes.

Em Nova Olinda, o senhor Sebastião confecciona suas obras em sua

oficina, próximo a sua casa. Este, para dar conta da demanda, bem como cumprir com

as atividades de Mestre artesão reconhecido pelo programa ‘Tesouros Vivos da

cultura’, produz suas peças juntamente com filhos, sobrinhos e aprendizes. O saber -

fazer é difundido dentre os aprendizes que o ajudam a confeccionar as peças em

couro sob o controle de qualidade observado de perto pelo próprio artesão.

73 Segundo seleiro de Santana do Cariri, a preferencia pelos selotes é devido a estes serem menores, práticos e

mais baratos. O artesão afirma que antigamente uma sela bem ornada era motivo de apreciação e deferência por

parte de quem a possuía. Ressalta ainda que nos tempos atuais, os jovens não querem saber de sela e não valorizam

a sua arte, optando assim pelo selote.

131

No Crato, sob olhar atento do sr. Fernando, o saber fazer artesão é

difundido, mas sob o modelo do trabalho familiar. Juntamente com os filhos e a

esposa, o artesão confecciona majoritariamente sandálias, as quais são feitas na

oficina que se situa nos fundos da casa do artesão. A particularidade da inovação

nesse caso acontece no âmbito da estética e não no âmbito da produção. São

costuradas miçangas em algumas das sandálias, que tem público comprador

garantido nas feiras de Juazeiro do Norte, como com revendedoras que vão buscar

os calçados na casa do artesão.

Os casos citados acima buscam evidenciar as mudanças pelas quais o

artesanato passou, em consonância com as transformações vividas pelos artesãos no

contexto histórico de fomento da urbanização, modernização e simultaneidade das

informações. Traços da indústria, manufatura e trabalho familiar são mantidos e/ou

aderidos segundo as necessidades de venda do artesanato enquanto mercadoria.

Essa aparente contradição é o aspecto formal que vemos no âmbito do artesanato

como mercadoria, que o é, mas que não deixa também de permanecer como obra ao

artesão que a cria.

Afirmamos que o artesanato em couro no Cariri cearense é uma

particularidade, por tudo o que foi exposto e debatido bem como origem histórica,

raízes sociais e étnicas, modo de vida e a estrutura de sentimento advinda desse

processo coletivo e individual.

Para nós, a importância dessa discussão orienta a abordagem de análise

que fazemos do artesanato com sua contribuição regional, difusão global, bem como

da sua representação cultural vista de maneira diversa nos diferentes circuitos de

distribuição da mercadoria.

Canclini, na década de 1980, já argumentava a necessidade de se pensar

o artesanato no conjunto dos processos que o constituem, e não de maneira isolada

ou romantizada pelo pesquisador. Tal consideração ressalta a necessidade de

superar o isolamento dos objetos nos estudos sobre a cultura popular. Tal advertência,

tão necessária, sucumbe aos discursos e operacionalizações capitalistas que

costumam operar para a valorização da cultura.

Contudo, por mais que haja a influência da globalização no âmbito da

criatividade do sujeito, a criatividade dos artesãos se formou genuinamente pela sua

experiência de vida, por gerações, e, especialmente a confecção dos calçados se

remete ao tempo em que os próprios vaqueiros o faziam, e persistem aos dias atuais

132

com originalidade sem perda da essência como nos relatam Sebastião e Fernando,

homens que lidavam antigamente com os artefatos de montaria.

5.3.1 Pensando a configuração regional

As realidades de Sebastião e Fernando ilustram a estrutura de sentimento

e valores artesãos sob a implementação do processo de modernização. Esses

sujeitos, juntamente com os demais artesãos vivem seu cotidiano pautado no

aprendizado histórico do uso e transformação do couro enquanto cotidiano.

Essa estrutura de sentimento, coletiva dos artesãos do couro, tem sua base

na consolidação do próprio Cariri cearense, quando da confecção dos artefatos de

uso diário para a lida com o gado e uso doméstico. Esse costume, vivido e difundido

na região, propagado ao tempo presente pelos artesãos em sua vida cotidiana, bem

como pela relação com a qual estes sujeitos valorizam a sua obra, conferiu um

aspecto cultural ao Cariri cearense que tanto é reconhecido pelo Estado e suas

políticas, como também é reconhecido pela população. Esta convive com o artesão

presente em sua realidade ordinária, experienciando com ele valores, apreciando e

consumindo dos seus artefatos, reconhecendo a ancestralidade desse saber-fazer.

No que tange ao debate da região, muitos autores contribuem para a

definição desse conceito. Entretanto, acreditamos que não é possível uma enunciação

que o defina em sua concretude, já que o ato de regionalizar é intrinsecamente

político, e, portanto, passível de modificação segundo interesses preponderantes e

não necessariamente caraterísticas basilares selecionadas com neutralidade. Como

sabemos, a forma região se dá pela coerência de conteúdos selecionados, seleção

essa tencionada pelos interesses de classe. Na perspectiva de compreender a região

como um “fato político” resultante de um equilíbrio de forças, concordamos que:

Poder-se-ia dizer, então, que a região seria uma resultante da construção histórica desta complexa coerência, construída a partir da dialética articulação (enfrentamento) de distintos processos sociais, que tende a conferir características específicas a um determinado espaço social, e a expressar os distintos interesses dos agentes e atores sociais envolvidos. (LIMONAD, 2004, p.55)

Não obstante às diferentes intencionalidades, devemos entender que as

relações sociais se realizam em diferentes escalas espaciais de modo não

hierárquico, mas de maneira desigual e combinada, que como afirmamos

133

anteriormente, interage em um confronto de forças dentro do sistema de produção

vigente.

Se acreditarmos na importância da escala regional, não podemos negar a

interação dos processos sociais particulares e globais configurando uma coerência

própria (LENCIONI, 1999). Contudo, tais aspectos podem tencionar essa configuração

regional em várias feições considerando a totalidade social. Desse modo, podem

destacar-se como elementos para o delineamento da coerência regional a sua

representação institucional; a experiência histórica; organização econômica, traços de

identidade cultural dentre outros.

Pelo viés econômico, a região seria uma configuração geográfica

relativamente estável por um grau de coerência interna “estruturada em termos de

produção, distribuição, troca e consumo – ao menos por algum tempo” (HARVEY,

2004, p.88). Assim, a caracterização desse espaço é peculiar aos demais, mesmo que

suas fronteiras sejam difusas e porosas. Ainda segundo o autor, mesmo que as trocas

econômicas sejam fundamentais para a manutenção dessa coerência estruturada da

região, a sua configuração “abrange atitudes, valores culturais, crenças e mesmo

afiliações religiosas e políticas entre os capitalistas e aqueles que são por eles

empregados” (op.cit.p.89).

Em nossa concepção, para pensar a região devemos primeiramente

concordar que ela é intrinsecamente social, histórica e política. Assim, concordamos

com Lencioni e Harvey no que tange à coerência estruturada desta escala de análise

que medeia à relação entre o global e o local. Contudo, a perspectiva das relações

desiguais e combinadas, pertinentes à realidade mundial que relacionam os espaços,

não devem levar em conta somente os mecanismos que comandam o desempenho e

a regulação do modo de produção e sua interferência na especialização espacial. As

características específicas próprias da região, além de produtos da relação direta

entre escalas, envolvem também as diferentes temporalidades que a construção

histórica dotou de sentido e identidade. Nessa perspectiva, concordamos com

Haesbaert (1999) quando ele conceitua:

[...] região como um espaço de identidade ideológico-cultural e representatividade política, articulado em função de interesses específicos, geralmente econômicos, por uma fração ou bloco ‘regional’ de classe que nele reconhece sua base territorial de reprodução (op.cit.p.29).

134

Acreditamos que a conceituação de região do autor é representativa para

o nosso trabalho por considerar a importância da identidade e âmbito cultural como

parte integrante com os demais elementos para a definição do conceito. Ademais,

consideramos a conceituação de Paasi74 (2001) como a mais completa para a nossa

pesquisa tendo em vista a importância que o autor delega aos agentes que configuram

a região, pois em sua perspectiva:

As regiões (...) são construções sociais criadas nas práticas políticas, econômicas, culturais e nas práticas administrativas bem como nos discursos. Além disso, nessas práticas e discursos as regiões podem tornar-se instrumentos fundamentais de poder que se manifestam na formação dos espaços de economia, governança e cultura. (PAASI, 2001p.18, tradução nossa).

Desse modo, percebemos que o trato das características identitárias e

culturais são importantes para o debate regional e sua discussão não é novidade. No

que tange à identidade e à cultura, estas não podem ser observadas dissociadas da

sua realidade espacial, do seu vínculo construído socialmente. La Blache já abordava

tal apontamento sob o conceito de “Gêneros de Vida”, conduzindo a identidade para

um tratamento regional (HAESBAERT, 2010).

Geógrafos como Paasi (1991, 2001) e Cosgrove (2010) ao promover o

debate regional dão ênfase e importância à contribuição da leitura cultural e da análise

identitária para a região pela relação com a escala do vivido. Essa é uma questão

muito importante para a compreensão da região do Cariri Cearense, seja pela sua

constituição histórica, como pelo pertencimento e identidade da população a partir de

outras temporalidades.

Para o sociólogo Albuquerque Junior (2011) “Os recortes geográficos, as

regiões são fatos humanos, são pedaços de história, magma de enfrentamentos que

se cristalizaram, são ilusórios ancoradouros da lava da luta social que um dia veio à

tona e escorreu sobre este território” (op.cit.p.79). Sob o foco das relações sociais,

onde enfrentamentos políticos permeiam o sentido do conceito região, não podemos

nos furtar ao debate no qual a seleção dos fatos históricos e argumentos são

selecionados segundo uma cultura e discurso dominantes advindos de uma mesma

realidade. Sob esse bojo, “é fato que os modos de dominação selecionam e,

74 Citação original: “Regions (…) are social constructs that are created in political, economic, cultural and

administrative practices and discourses. Further, in these practices and discourses regions may become crucial

instruments of power that manifest themselves in shaping the spaces of governance, economy and culture”.

135

consequentemente, excluem parte da gama total da prática humana real e possível”

(WILLIAMS, 20011 a, p.59). Essas práticas humanas “dependem muito da prática

estar ou não em uma área em que a classe e a cultura dominantes têm um interesse

e uma participação” (ibidem). Nesse sentido, a seleção das informações prementes

à construção de uma narrativa, visto que o desenvolvimento produtivo e social não é

uniforme nem estático e menos ainda é estanque as suas implicações sociais.

A partir da compreensão da realidade como devir social (LUKÁCS, 2012),

entendemos a sua dinamicidade, que se manifesta na experiência do espaço e do

tempo. Para tanto, como afirma Harvey (1996) o conceito de espaço e tempo vem de

práticas materiais sociais e coletivas variadas. Assim, na tentativa de delimitar um

recorte para estudo, devemos ter consciência que o conhecimento produzido por nós

pesquisadores dificilmente chegará ao cerne da verdade (LEFEBVRE, 1986), visto

que os agentes sociais são dinâmicos. Além do que, existem formas fetichistas de

objetivar a realidade, provenientes da sociedade capitalista, que para Lukács,

dissimulam as relações reais entre os objetos, dando a elas um caráter reificado,

dificultando o caminho à compreensão da realidade.

Harvey (1996) fomenta essa perspectiva ao afirmar que no capitalismo

construímos ‘mitos’ para reforçar representações espaciais e temporais para manter

o seu controle sobre a sociedade. Becker (2007, p.34), ao situar o cientista social na

busca do conhecimento infere que “na ausência de conhecimento real, nossas

representações assumem o controle” visto que essas representações são resquícios

da nossa vida cotidiana, mostrando na nossa pretensão de analisar a realidade, não

estamos separados dela.

Na busca de compreender a realidade, do Cariri cearense, a vislumbramos

pelo conceito geográfico de região. Região esta permeada pela vida social

historicamente construída, bem como politicamente institucionalizada. Nas palavras

de Paasi (1991) em relação ao movimento de institucionalização da região “é apenas

um momento da transformação regional perpétua, discutido por vários autores (...) que

está ligado às praticas econômicas e políticas locais, estaduais e internacionais

ocorrendo em vários períodos de tempo e escalas históricas” (op.cit.p.242, tradução

nossa).

Essa compreensão da importância histórica de determinado espaço para a

sua compreensão geográfica do fenômeno, nos traz a importância das práticas sociais

locais, sejam elas institucionalizadas (pela legislação, política) ou não (cultura,

136

consciência). Desse modo, pensar o Cariri cearense no âmbito regional, é considerar

os mais variados aspectos, entretanto, selecionando àqueles que dão à região uma

identidade específica.

Como já retratados por Cunha (2012), os discursos que argumentam os

critérios de coerência da região do Cariri cearense evidenciam dinamicidades

econômicas interessantes a interesses políticos estabelecidos. Nós buscamos

evidenciar o alimento cultural que dá vida e identidade à região, o viés que escolhemos

advém da estrutura de sentimento existente a partir da experiência dos artesãos do

couro.

A coerência regional que escolhemos expor é de caráter histórico e cultural

da sociedade procedente e produtora da região; os artesãos do couro, mais

especificamente. Tais sujeitos, em sua experiência de vida, nos retrataram uma

realidade com elementos gerais de sertão e particulares do Cariri. Essa é a

apropriação simbólica que pretendemos expor, sendo o conceito de região não só

uma abstração ou representação, mas sim uma ’tradução’ da realidade, a partir de

uma análise contextual.

Entendemos que a estrutura de sentimento que dá sentido à região Cariri

cearense pelos artesãos do couro é compartilhada pela população do Cariri enquanto

sentimento de pertencimento e familiaridade. Ela também foi construída na

consciência social, esta, vivida ativamente nas relações sociais (Thompson, 2009),

portanto, presente na memoria coletiva da população urbana e rural. Tais memórias

“retratam contextos globais que influenciam as histórias individuais dos sujeitos”

(FERNANDES; ARAUJO; TEIXEIRA, 2011, p.103). Assim, àqueles que cresceram

frequentando as feiras da região, utilizando as corrulepes no seu dia a dia, bem como

partilhando das vivências cotidianas comuns, mesmo que não diretamente com o

couro, também traz na sua cultura essa relação. Nesse sentido, delineamos no mapa

abaixo a região do Cariri cearense considerando a estrutura de sentimento dos

artesãos do couro:

137

Mapa 2 - Região do Cariri cearense segundo a estrutura de sentimento dos

artesãos do couro

Fonte: elaborado pela autora

138

Essa coerência que buscamos evidenciar na pesquisa pelo recorte regional é

endossado por Paasi (1991) quando este afirma que a região:

[...] é mediada na vida cotidiana e é produzida e reproduzida em múltiplas práticas sociais através da comunicação e dos símbolos, que podem ser comuns a todos os indivíduos de uma região, embora os significados associados a eles sejam sempre interpretados pessoalmente com base em

situações de vida específicas e biografias”. 75 (op.cit. p.249)

Ao defender essa perspectiva de região, o autor salienta a vivência e

experiência do sujeito social, inclusive a baseia na concepção de ‘estrutura de

sentimento’ de Williams para desenvolver o seu conceito de ‘estrutura de

expectativas’, que segundo o próprio, “agregam a relação cultural e histórica entre

uma região e seus habitantes, e também com as pessoas de fora” (ibidem, p.249).

Paasi defende o conceito alegando que:

Estruturas de expectativas formam um quadro que está ligado a uma região específica. Este quadro é bastante permanente e é representado sob a forma de esquemas de percepção, concepção e ação, sistematicamente espaciais, de âmbito temporal e espacial, que compreendem características reais,

imaginárias e míticas da região. 76(PAASI, 1991, p.249, tradução nossa)

A leitura regional de Paasi publicada na década de 1990, sem duvida deu

grande contribuição à Geografia. Nos anos 2000, ele desenvolve a perspectiva

regional de modo a agregar as características relativas às construções sociais à região

enquanto instrumento de poder, reconhecendo inclusive a importância dos elementos

simbólicos para a institucionalização das regiões. Concordamos com Paasi (2001,

p.16, tradução nossa), quando este conceitua a região enquanto:

75 Citação original: “It is mediated into daily life and is produced and reproduced in multitudinous social practices

through communication and symbols, which can be common to all individuals in a region, though the meanings

associated with them will always be construed personally on the basis of specific life situations and biographies”. 76 Citação original: “Structures of expectations form a frame that is bound to a specific region. This frame is quite

permanent and is represented in the form of time - space-specific, region-bounded, institutionally embedded

schemes of perception, conception, and action, which can comprise real, imagined, and mythical features of the

region”.

139

[...] construções sociais criadas em práticas e discursos políticos, econômicos, culturais e administrativos. Além disso, nessas práticas e discursos as regiões podem se tornar instrumentos de poder cruciais que se

manifestam na formação dos espaços de governança, economia e cultura. 77

Entretanto, acreditamos que são as ‘estruturas de sentimento’ (WILLIAMS,

1979) e não as ‘estruturas de expectativas’ (PAASI, 1991) que corroboram com o

sentido de Cariri cearense. Pois como afirmou Kirsh (2013, p. 435, tradução nossa):

“o materialismo requer que não determinemos o avanço dos processos em situações

dadas”. Tal alegação de Kirsch condiz com Williams e seu conceito de ‘estrutura de

sentimento’, visto que:

[...] ao descobrirmos a natureza de uma prática particular, bem como a natureza da relação entre um projeto individual e um modo coletivo, descobrimos que estamos analisando, como duas formas de um mesmo processo, tanto a sua composição, e em ambas as direções essa é uma

relação ativa complexa e em transformação. (WILLIAMNS, 2011a, p.67)

Logo, não estamos enfatizando a questão discursiva de Williams

(1979;2011a,2011b,2015) sobre como a consciência prática que é vivida e

experimentada se distingue da "consciência oficial", como atesta Paasi (1991).

Assim, a evidenciação dos sujeitos e suas experiências são os pontos

de partida na tradição cultural marxista que nos permite, a partir do contexto histórico

e suas especificidades, compreender as marcas deixadas na produção espacial, bem

como, a partir das relações sociais desenvolvidas, compreender como aquela cultura

se desenvolveu , construindo características próprias na sociabilidade, e na identidade

do espaço que ocupam, fomentando contornos culturais associados às

institucionalizações. Esse devir condiz com a reflexão de Haesbaert (2010, p.178)

quando este afirma que a

[...] região tem seu foco, mais amplo, nos processos gerais de articulação, diferenciação e ‘recortamento’ do espaço, o que implica trabalhar no entrecruzamento – ou no limiar- entre diferenciação como construção social efetiva e como recorte espacial classificatório/analítico.

Na pesquisa por nós realizada, a contribuição se deu em prol do

posicionamento e concepção da realidade a partir dos artesãos do couro. Mesmo

77 Citação original: “Regions are always part of this action and hence they are social constructs that are created in

political, economic, cultural and administrative practices and discourses. Further, in these practices and discourses

regions may become crucial instruments of power that manifest themselves in shaping the spaces of governance,

economy and culture”.

140

considerando que “Evidentemente, todo conhecimento da realidade parte de fatos [...]

Trata-se de saber quais dados da vida e em que contexto metódico merecem ser

considerados como fatos importantes para o conhecimento” (LUKÁCS, 2012, p.70),

para nós, ouvir as vozes pela experiência coletiva dos artesãos, suas impressões e

trajetórias é perfazer um caminho via estrutura de sentimento para compreender o

significado e legado deste público à região do Cariri. Esta é nossa escolha dentro do

campo de forças simbólicas, visto que “grande parte da vida política das sociedades

contemporâneas só pode ser compreendida como uma luta pela autoridade simbólica”

(THOMPSOM, 1998, p. 70). Essa interdependência entre o material e o simbólico a

partir dos artesãos do couro, é a nossa base de reflexão para um escrutínio

metodológico de ação para o entendimento da estrutura de sentimento na região do

Cariri cearense.

141

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A região do Cariri cearense, como a conhecemos, é permeada de diversas

expressões culturais, sejam elas de ordem material ou imaterial. Os artesanatos

(sejam de cerâmica, madeira, tecido, couro etc.) denotam a riqueza criativa e cultural

da região, que juntamente com a história de sua ocupação, bem com o

desenvolvimento econômico no fim do século XX a particulariza no contexto do

estado. Essa região também se especifica enquanto enclave edafoclimático perante

o sertão, caracterizando-se pela amenidade climática, abundantes recursos hídricos

e qualidades agricultáveis, mencionadas historicamente nos relatos dos viajantes que

legaram informações historiográficas preciosas.

Dentre tantos aspectos que enriqueceram e caracterizaram de forma

especial a região do Cariri, reconhecemos a contribuição dos artesãos do couro como

de importância significativa. A experiência artesã, presente e fomentada

historicamente revela uma estrutura de sentimento a qual marcam a região com

valores, costumes e símbolos para com o modo de viver. Tais traços, advindos da

experiência artesã, permeiam a realidade dessa região de modo a se realizar

enquanto consciência prática presente a partir dos artesãos em couro, legada por eles

historicamente, e vivenciada pela população da região em sua cultura.

Selas, selotes, arreios, paletós e calçados continuam a ser

confeccionados sob os critérios norteadores de esmero e qualidade, valorização da

peça – obra, satisfazendo quem consome e quem produz, deleite da execução de um

trabalho bem feito e bem acabado, reconhecimento de si mesmo no que está sendo

produzido, não alienação do trabalho, tão raro no mundo moderno. Para quem vê de

fora temos peças de artesanato que simbolizam a região, para quem vive esta

realidade no cotidiano, conversar sobre como tanger vaca tinguida78, costurar

mentalizando a mobilidade do usuário da roupa de couro, lembrar das feiras e cavalos

selados e os tantos personagens que marcam a historia social é algo comum e que

evidenciam os processos formativos da estrutura de sentimento para além das

delimitações formais dos critérios regionais.

78 Segundo o vaqueiro artesão: A vaca tinguida é aquela que está sendo aboiada junto às outras vacas do rebanho,

mas que diferente das demais decide parar de andar, o que gera um problema ao vaqueiro, atrasando o seu trabalho.

Existem diferentes maneiras de resolver o problema, contudo o vaqueiro adverte que a melhor delas é deixar a

vaca quieta e vir busca-la em outro momento, sem usar da foça física contra o animal.

142

Essa espontaneidade que marca singularmente cada artesão, e no

conjunto deles se transforma em particularidade, confere à região um traço cultural

que advêm de uma expressão de valores e tempo não direcionados pelo relógio ou

importância monetária, mas sim pela relação da vida e trabalho permeado de sentido,

resquícios de um modo de viver e pensar pré-industrial, quando o tempo é orientado

pelas tarefas, segundo a lógica da necessidade.

É fato que o advento da modernização impregnou e direcionou para a

transformação o Cariri em seu modo de viver, de produzir e a utilização do tempo.

Contudo, a estrutura de sentimento construída não desmorona, mas ressignifica os

aspectos da modernização, como também é aderida por esse movimento.

As sandálias de borracha, feitas industrialmente, têm vez nos pés da

população assim como as ‘corrulepes’ e as ‘maria bonita’ são requisitadas nas

passarelas e constituem figurinos de filmes e novelas da Rede Globo. Essa simbiose

entre o artesanato e o produto de fábrica remonta à aceitação do legado artesão com

seus valores e preceitos no mesmo espaço temporal que a fluidez do consumo e a

superficialidade incutidas na vida social graças à modernidade. Logo, a estrutura de

sentimento legada pelos artesãos do couro encontra-se frente a frente às imposições

do mundo moderno, seja em conflito, como em uma aceitação parcial por este mesmo

mundo.

Pudemos observar a partir da exposição da realidade dos artesãos de

diferentes municípios do Cariri que suas vidas individuais não estão desassociadas

de uma realidade coletiva em processo. Logo, a partir da realidade captada pelos

trabalhos de campo, entendemos que a experiência ativa e sentida por estes sujeitos

está atrelada a um modelo coletivo, que sob o ponto de partida para uma análise sob

a tradição cultural marxista,

[…] descobrimos que estamos analisando, como duas formas de um mesmo processo, tanto a sua composição ativa quanto as condições dessa composição, e em ambas as direções essa é uma relação ativa complexa e em transformação. Isso significa, obviamente, que não temos um processo internamente construído do tipo que é indicado pelo caráter fixo de um objeto. Nós temos os princípios das relações das práticas dentro de uma organização vista como intencional, e temos as hipóteses disponíveis do dominante, do residual e do emergente. (WILLIAMS, 2011a, p.67)

Entendemos que os artesãos em couro do Cariri trazem “uma qualidade

particular da experiência social e das relações sociais, historicamente diferentes de

143

outras qualidades particulares, que dá o senso de uma geração ou um período”

(WILLIAMS, 1979, p.133) caracterizando a estrutura de sentimento à região,

germinada pela prática de vida que os artesãos expressam enquanto sujeitos, sujeitos

que produzem seu trabalho e sua vida pelo artesanato em couro.

Contudo, a contribuição dos sujeitos, como o caso dos artesãos em couro,

foram/ são valorizadas a partir da seleção organizada e consciente da cultura

dominante (WILLIAMS, 2011a; MARTINS, 2013). Nesse sentido, como a ação

individual e coletiva dos artesãos do couro produzem ‘artes de criação’, como tal, pelo

seu histórico, trazem significados e valores residuais, também são no presente a

manifestação de práticas emergentes, visto serem reconhecidas institucionalmente,

bem como são valorizadas pela geração presente da região. Logo, a estrutura de

sentimento legada pelos artesãos do couro dá um sentido de região ao Cariri cearense

enquanto critério cultural.

144

REFERÊNCIAS

ABREU, Capistrano de. Caminhos antigos e povoamento do Brasil. São Paulo: Xérox do Brasil / Câmara brasileira do livro,1996. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. A invenção do Nordeste e outras artes. 5ed. São Paulo: Cortez, 2011. ALMEIDA, Elpídio de. História de Campina Grande. Campina Grande: Edição da Limeira Pedrosa: 1965. ANDRADE, Manuel Correa. A questão do território no Brasil. São Paulo: IPESPE, 1995.

ARAÚJO, Iara Maria de. Os novos espaços produtivos: relações sociais e vida econômica no Cariri cearense. Fortaleza: Banco do nordeste do Brasil, 2011. BEAUD, Stéphane. Guia para a pesquisa de campo: produzir e analisar dados etnográficos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. BECKER, Howard, S. Segredos e truques da pesquisa. Rio de janeiro: Zahar, 2007. BERMAN, Marschall. Tudo que é sólido desmancha no ar: A aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

BERTEAUX, Daniel. Los relatos de vida: perspectiva etnosociológica. Barcelona: Bellaterra, 2005. Cap.2. Acerca del relato de vida. BESERRA, Fábio Ricardo Silva. Espaço, indústria e Reestruturação do capital: a indústria de calçados na Região do Cariri – Ce. 2007. 145f. Dissertação (Mestrado em Geografia) - universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, 2007. CAMPINA, Allyson de Farias. Entre as garras do couro e os salões de artesanato: considerações acerca do ofício coureiro em Ribeira da Cabaceira. 2010. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Universidade Federal da Paraiba, Campina grande, PB, 2010. CANCLINI, Nestor Garcia. As culturas populares no capitalismo. São Paulo: brasiliense, 1983. CARVALHO, Gilmar de. Artes da tradição: mestres do povo. Fortaleza: UFC/UECE, 2005. CASCUDO, Luis da Câmara. Vaqueiros e Cantadores. Porto Alegre: Ediouro, 1968. CASTANHA, Marilda. Pindorama: Terra das palmeiras. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

145

CEARÁ. Artesanato cearense: tradição que se renova. Fortaleza: Gráfica e editora comercial Ltda., 2014. COSGROVE, Denis E. Em direção a uma geografia cultural radical. In: CORRÊA, Roberto Lobato; ROSENDAHL, Zeny (org.). Introdução à geografia cultural. 3. ed. Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 2010. P.103-134. . COSGROVE, Denis E; JACKSON, Peter. Novos rumos da Geografia cultural. In: CORRÊA, Roberto lobato; ROSENDAHL, Zeny (org.). Introdução à geografia cultural. 3. ed. Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 2010. P.135-146. CORRÊA, Roberto lobato; ROSENDAHL, Zeny. Geografia cultural: introduzindo a temática, os textos e uma agenda. In: _____ (org.).Introdução à geografia cultural. Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 2010. p.9-18 CUNHA, Maria Soares. Pontos de (re) visão e explorações historiográficas da abordagem regional: exercício a partir do Cariri cearense (séculos XIX e XX). 2012. 189f. Tese (Doutorado em Geografia) Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2012. DANTAS, Geovany Pachelly Galdino. Feiras Nordestinas. Revistas Mercator, v. 7, n. 13, 2008. DESLAURIERS, Jean-Pierre; KÉRISIT, Michéle. O delineamento de pesquisa qualitativa. A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos, v. 2, 2008. DIEGUES, Antônio Carlos. Biodiversidade e comunidades tradicionais no Brasil. São Paulo: NUPUB – USP, MMA, CNPQ, 1999. EAGLETON, Terry. A ideia de cultura. São Paulo: UNESP, 2005. FERNANDES, Ana Gabriela Nunes; ARAUJO, Cristina Cardoso de; TEIXEIRA, Cristiane de Sousa Moura. A narrativa no contexto da investigação sobre identidade profissional: Método e/ou técnica?! In: CARVALHO, Maria Vilani Cosme (Org). Identidade: questões contextuais e teórico-metodológicas. Curitiba, PR: CRV, 2011. FIGUEIREDO FILHO, José de. História do Cariri. Fortaleza: Edições UFC, 2010a. (Coedição Secult/ Edições URCA). FIGUEIREDO FILHO, José de. Engenhos de rapadura do Cariri: Documentário da vida rural. Fortaleza: Edições UFC, 2010b. (Coedição Secult/ Edições URCA). GOMES, Romeu. Análise e interpretação de dados de pesquisa qualitativa. In: MINAYO, Maria Cecília de Souza; GOMES, Suely Ferreira Deslandes Romeu (org.). Pesquisa Social: teoria, método e criatividade. 32 ed. Petrópolis, Rio de janeiro: Vozes, 2012. GIL, Antônio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa Social. São Paulo: Atlas, 1999.

146

HAESBAERT. Rogério. Região, diversidade territorial e globalização. GEOgraphia, Ano 1, n. 1, 1999. Disponível em; <www.uff.br/geographia/ojs/index.php/geographia/article/downl>. Acesso em: 23 fev. 2013

_____ . Regional-global: dilemas da região e da regionalização na geografia contemporânea. Bertrand Brasil, 2010. HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1996. _____. O novo imperialismo. São Paulo: Edições Loyola, 2004. _____. A produção capitalista do espaço. São Paulo: Annablume, 2005. HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. KIRSCH, Scott. Cultural geography I Materialist turns. Progress in Human Geography, v. 37, n. 3, p. 433-441, 2013. KROPOTKIN, Piotr. O Estado e seu papel histórico. São Paulo: Imaginário, 2000. LEFEVBRE, Henri. A práxis. In: LEFEBVRE, Henri. A sociologia de Marx. São Paulo: Companhia Forense, 1968. _____ . Posição: Contra os tecnocratas. Brasilia: documento, 1969. _____ . Manifesto diferencialista. Madrid: Siglo Veintiuno Editores, 1972. _____ . Problemas de sociologia rural In: MARTINS, J.S. (Org.). Introdução crítica à sociologia rural. São Paulo: Hucitec, 1986. _____. A reprodução das relações de produção. Porto: Publicações escorpião, 1973. LENCIONI, Sandra. Região e Geografia. São Paulo: Edusp, 1999. LIMONAD, Ester. Brasil, século XXI: regionalizar Para que? Para quem? In: LIMONAD, Ester; HAESBAERT, Rogerio; MOREIRA, Ruy (org.). Brasil, século XXI: por uma nova regionalização? Agentes, Processos e Escalas. São Paulo: Max limonad, 2004. LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012. MARTINS, José de Souza. Subúrbio. Vida cotidiana e história no subúrbio da cidade de São Paulo: São Caetano, do fim do Império ao fim da república Velha. São Paulo: Hucitec, 1992.

147

MARTINS, José de Souza. A sociabilidade do homem simples: cotidiano e história na modernidade anômala. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2013. MARX, Karl. Formações Econômicas Pré-capitalistas. São Paulo: Paz e Terra, 2006. _____.Contribuição à crítica da economia política. 2. ed. São Paulo: Expressão popular, 2007. _____.O Capital: critica da economia política: (Livro 1): São Paulo : Boitempo, 2013. MCDOWELL, Linda. A transformação da geografia cultural. In: DEREK, Gregory. Geografia Humana: sociedade, espaço e ciência social. Rio de Janeiro: Zahar, 1996. MELLO, Frederico Pernambucano de. Estrelas de couro: a estética do cangaço. 2. ed. São Paulo: Escrituras editora, 2012. MENEZES, Djacir. O outro Nordeste: ensaio sobre a evolução social e política do Nordeste da “civilização do couro” e suas implicações históricas nos problemas gerais. Fortaleza: UFC, 1995. MENEZES, Edith Oliveira de. O Cariri cearense. In: SILVA, José Borzacchiello da; CA VALCANTE, T. C.; DANTAS, E. W. C. (Org.). Ceará: um novo olhar geográfico. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 2005. p. 339-363. PAASI, Anssi. Deconstructing regions: notes on the scales of spatial life. Environment and Planning A, v. 23, p. 239-256, 1991. _____ . Europe as a social process and discourse considerations of place, boundaries and identity. European urban and regional studies, v. 8, n. 1, p. 7-28, 2001. PACHECO, José Wagner Faria. Curtumes. São Paulo: CETESB, 2005. PAZERA Jr., Eduardo. A Feira de Itabaiana-PB: permanência e mudança. 2003. 201 f. Tese (Doutorado em Geografia Humana) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003. PEREIRA JÚNIOR, Edilson. Território e Economia política: uma abordagem a partir do novo processo de industrialização do Ceará. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2012. PINHEIRO, Irineu. O Cariri: seu descobrimento, povoamento e costumes. Fortaleza: Fundação Waldemar Alcântara, 2009. POMPEU SOBRINHO, Thomaz. O homem do Nordeste. Disponível em: <http://www.institutodoceara.org.br/revista/Rev-apresentacao/RevPorAno/1937/1937-OHomemdoNordeste.pdf>. Acesso em: 5 maio 2018

148

PUNTONI, Pedro. Guerra dos Bárbaros: Povos indígenas e a Colonização do Sertão Nordeste do Brasil, 1650 – 1720. São Paulo: HUCITEC; FAPESP, 2002. RABELLO, Sylvio. Os artesãos do Padre Cícero: condições sociais e econômicas do artesanato de Juazeiro do Norte. Recife: Instituto Joaquim Nabuco de pesquisas sociais, 1967. RECAMONDE, Bruno Aguiar. Relatório final do curso técnico em curtimento. Porto Alegre: Centro tecnológico do couro, 2006. RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: A formação e o sentido de Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. SAID, Edward. Cultura e imperialismo. São Paulo: companhia das Letras, 2011. SANTOS, Mauricio Caetano dos. Cartografia e Geografia Histórica: um olhar sobre a economia e ocupação territorial da província do Ceará no período anterior à independência do Brasil. Disponível em: < https://3siahc.wordpress.com/memorias/#Mauricio Caetano dos Santos>. Acesso em: 10 jan. 2017. SAUER, Carl. Geografia Cultural. In: CORRÊA, Roberto lobato; ROSENDAHL, Zeny (org.). Introdução à geografia cultural. Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 2010.p. 19-26. SERVIÇO BRASILEIRO DE APOIO ÀS MICRO E PEQUENAS EMPRESAS. Cariri Ceará - Coleção Impressões. Fortaleza: SEBRAE/CE, 2006. WILLIAMS, Raymond. Literatura e Marxismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. _____ . Cultura e materialismo. São Paulo: UNESP, 2011a. _____ . Política do Modernismo. São Paulo: UNESP, 2011b. _____ . Recursos de Esperança. São Paulo: UNESP, 2015. THOMPSON, E,P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. _____ . Misérias da teoria: ou um planetário de erros. [S.l.:s.n.], 2009. TOLIA-KELLY, Divya P. The geographies of cultural geography I: identities, bodies and race. Progress in Human Geography, v. 34, n. 3, 2010. _____. The geographies of cultural geography II: Visual culture. Progress in Human Geography, v. 36, n. 1, 2011.

149

_____. The geographies of cultural geography III: Material geographies, vibrant matters and risking surface geographies. Progress in Human Geography, v. 37, n. 1, 2012.

150

APÊNDICES

151

APÊNDICE A - Lista de entidades do artesanato em couro da CEART para a região

do Cariri cearense.

- Socicouro (Crato)

- Associação dos artesãos de Campos Sales

- Associação dos artesãos do Crato

- Sebastião – Nova Olinda

- Damião Pedroso – Crato (Nordestina)

- Cosme Pedroso – Crato (Lampião)

Fonte: Trabalho de campo – CEART Juazeiro do Norte

152

APÊNDICE B - Lista dos tesouros vivos da cultura por ano de nomeação, atividade e

município de origem.

Nome Data de

nascimento Atividade Município Comentário Ano

Francisco

Pedrosa de

Sousa

08/04/1933 Boi-Bumbá Sobral

Mestre Panteca inspirou a

criação de mais de 30

grupos de Bois existentes

em Sobral. Dedicou 40

anos de sua vida à arte.

Iniciou a brincadeira

quando ainda era feirante

com o objetivo de puxar o

Boi e divertir a família.

Morreu em 2006.

2004

Joaquim Mulato

de Sousa 03/03/1920 Penitência Barbalha

Ainda menino ficou

maravilhado com um grupo

que cantava a música ABC

do Divino. Depois descobriu

que se tratava dos

penitentes. Anos depois,

pediu permissão para fazer

parte da Ordem. Liderou os

penitentes de Barbalha e

ficou conhecido como

Mestre Biro e Mestre

Joaquim Mulato.

2004

Joaquim

Pessoa Araújo 30/01/1923 Maracatu Fortaleza

Juca do Balaio, como era

conhecido, morreu em 2006

com 35 anos dedicados à

tradição do maracatu.

Nascido no Cedro, o

compositor e tirador de loas

trajava-se como balaieiro

no Maracatu Az de Ouro,

no qual desfilava no

período do Carnaval em

Fortaleza.

2004

153

José Aldenir

Aguiar 20/08/1933 Reisado Crato

Mestre Aldenir coordena

mais de 60 pessoas em três

grupos folclóricos: um

masculino, um feminino e

um infantil. Em 1997,

recebeu o título de Mestre

do Saber e das Artes do

Povo do Cariri pela

Secretaria de Cultura do

Crato.

2004

Lucia Rodrigues

da Silva 24/12/1959

Cerâmica em

Barro

Limoeiro do

Norte

Conhecida popularmente

como Lúcia Pequena, é

especialista na fabricação

de peças de barro desde os

dez anos de idade. A

jaguaribana ceramista tem

cerca de cinco décadas de

atividade.

2004

Manoel Antônio

da Silva 04/07/1923 Maneiro-Pau

Juazeiro do

Norte

Conhecido como Mestre

Bigode, começou a alegrar

as festas da padroeira e o

imaginário popular da

região do Cariri, em 1942.

Na década de 1970, criou o

grupo de bacamarteiros que

até hoje anima festas

populares com grandes

salvas de tiros.

2004

Maria de

Lourdes

Cândido

Monteiro

11/02/1939 Artesanato Juazeiro do

Norte

A Mestre Maria Cândido é

uma das maiores artesãs

do Brasil e aclamada por

desenvolver peças de barro

com os mais variados

temas como sagrado,

profano, festas populares e

histórias de aventura. Suas

obras já percorreram a

Alemanha, a França, a

2004

154

Holanda e os Estados

Unidos.

Maria Margarida

da Conceição 21/06/1935 Reisado

Juazeiro do

Norte

Da sua infância em

Alagoas, trouxe influência

para fundar em Juazeiro o

grupo As Guerreiras de

Joana d’Arc, reisado

formado exclusivamente

por mulheres, e três treme-

terra. Os blocos de moças

com espadas resistem,

cantando e dançando a arte

do povo nordestino. Seu

nome artístico é Margarida

Guerreira.

2004

Miguel

Francisco da

Rocha

14/09/1942 Banda cabaçal Juazeiro do

Norte

Com mais de 50 anos de

atividade, Mestre Miguel,

mestre de banda cabaçal,

tocava, cantava e dançava.

O poeta também fabricava

seus próprios instrumentos.

2004

Raimundo José

da Silva 14/02/1934 Banda cabaçal Crato

Foi integrante-líder da

Banda Cabaçal dos Irmãos

Aniceto, que já percorreu

todas as regiões do Brasil.

Os instrumentos são

fabricados pelos próprios

integrantes do grupo, que

foi tombado (âmbito

municipal) como Patrimônio

Imaterial do Crato.

2004

155

Raimundo

Zacarias 19/09/1929 Congada Milagres

Há aproximadamente sete

décadas, dedica-se à

atividade da congada. Doca

Zacarias, como ficou

conhecido, destaca-se por

seu rico acervo folclórico

local e por manter viva a

história bicentenária do

Grupo de Congo do

município.

2004

Walderêdo

Gonçalves de

Oliveira

19/04/1920 Xilogravura Crato

É apontado como um dos

maiores nomes da

xilogravura nacional. Mestre

Walderêdo realizou também

exposições internacionais.

Foi tipógrafo, torneiro

mecânico, pintor e

eletricista.

2004

2005

Antônio Batista

da Silva 15/09/1939

Boi de

Reisado Quixeramobim

De brincante passou a

Mestre do Boi de Antônio

Maria Águeda, o “Das

Águias”, tornando-se o

principal mestre-de-boi em

atividades no município,

esforçando-se em manter a

tradição e transmiti-la às

novas gerações. É

conhecido como Mestre

Piauí.

2005

Antônio

Rodrigues

Trajano

04/07/1928 Rabequeiro Varjota

É filho de um carpinteiro

com uma tecelã. Aos 15

anos, reconstruiu uma

rabeca. Antes do conserto,

Mestre Antônio Hortêncio,

como é conhecido, pediu-a

emprestada. Ele conta que,

dois dias depois, devolveu-

a, já tendo composto um

2005

156

samba e uma marcha, sem

que ninguém tenha

ensinado.

Dina Maria

Martins Lima 21/08/1954

Vaqueira e

aboiadora Canindé

Mestre Dina, a Rainha dos

Vaqueiros, inspirou filmes,

cordéis e livros, além de ter

sido convidada dos

Debates Especiais Grandes

Nomes, do Grupo de

Comunicação O POVO.

Fundou a Associação dos

Vaqueiros e Aboiadores do

Sertão Central.

2005

Francisca

Rodrigues

Ramos do

Nascimento

03/01/1939 Arte em

cerâmica

Viçosa do

Ceará

Dona Francisca é

descendente de índios e

herdou a arte de moldar o

barro de seus avós e pais,

que se utilizam desse saber

para fabricar utensílios de

uso doméstico.

2005

Francisco das

Chagas da

Costa

20/5/1959 Bumba meu

Boi

Limoeiro do

Norte

Mestre Chico começou a

brincar de bumba meu boi

aos dez anos ao lado do

pai, Mestre Zé Nogueira, e

do tio. Assumiu o posto de

seus familiares e é um

profundo conhecedor dessa

cultura.

2005

Gertrudes

Ferreira dos

Santos

03/09/1927 Dança da

Cana verde Fortaleza

Dona Gerta mantinha e

participava da Dança da

Cana Verde. Seu ofício era

repassar a música, os

figurinos e os significados

da dança para o grupo

composto por 34 brincantes

2005

157

da comunidade de

pescadores do bairro do

Mucuripe, em Fortaleza.

José Demétrio

de Araújo 13/08/1953

Maneiro-Pau,

Coco e São

Gonçalo

Crato

Conhecido como Mestre

Cirilo, é um dos ícones da

cultura tradicional popular

cearense. Além de

pertencer a um grupo de

maneiro-pau, formado por

adultos, mantém um grupo

infantil preocupado em

transmitir esta herança às

novas gerações.

2005

José Francisco

Rocha 04/12/1946

Bumba meu

boi Fortaleza

Mestre Zé Pio começou a

brincar de boi aos três anos

de idade. Mais tarde,

tornou-se o índio do Boi

Reis de Ouro. Criou o Boi

Juventude, na Barra do

Ceará, e desenvolve

trabalho social com

crianças, ensinando a

cultura do bumba meu boi.

2005

José Pedro de

Oliveira 13/06/1929

Reisado de

Couro Barbalha

Mestre José Pedro ou

Mestre Gonçalo é um dos

responsáveis por manter a

tradição do Reisado de

Couro, um dos mais raros

tipos de reisados do

Nordeste, que se encontra

no sítio Barro Vermelho, em

Barbalha.

2005

158

Maria Alves de

Paiva 17/07/1941 Cerâmica Ipu

Conhecida como Dona

Branca, começou a fazer

louça de barro aos dez

anos com sua avó. Seu

início foi às escondidas,

pois seu pai não queria que

a filha trabalhasse. Com o

passar do tempo, o próprio

pai passou a vender, na

feira do Ipu, o que ela

produzia.

2005

Maria Edite

Ferreira 19/03/1952

Rede de

Travessa

São Luís do

Curu

Foi iniciada na arte aos 14

anos por sua tia, seguindo

a tradição de seus

ancestrais, os índios

Tremembé de São Luís do

Curu. Suas redes são

totalmente artesanais, e já

ensinou o ofício aos filhos.

2005

Zilda Eduardo

Nascimento 02/04/1927 Dramista Guaramiranga

Compõe desde a infância e,

segundo ela, já fez drama

por encomenda para

alegrar festas de igreja e

acontecimentos cívicos e

políticos. Inspirou a

fundação do primeiro grupo

de teatro de Guaramiranga,

o Cangalha.

2005

2006

Antônio Pinto

Fernandes 12/05/1924

Construtor de

Rabecas Aurora

Fez sua primeira rabeca

ainda criança. Sua arte

possui influências vindas de

Minas Gerais, terra em que

viveu por anos. Mestre

Antônio produz rabecas

bem acabadas e de rica

sonoridade.

2006

159

Gilberto Ferreira

de Araújo 06/10/1942

Teatro de

bonecos Icapuí

É apaixonado pelo trabalho

do teatro de bonecos.

Conhecido como Mestre

Gilberto Calungueiro, é um

dos veteranos do segmento

e responsável pelo

entretenimento de sua

comunidade.

2006

José

Evangelista dos

Santos

27/12/1931 Bumba meu

Boi Granja

Começou a dançar Bumba

Meu Boi aos 14 anos.

Tornou-se o primeiro

mestre de seu grupo em

1970. É reconhecido por

preservar e transmitir esta

manifestação artística em

sua comunidade e

arredores.

2006

Joaquim Pereira

Lima 08/07/1917

Artesanato em

Couro Assaré

Mestre Joaquim de Cota

mantém confeccionava

objetos utilizados pelo

vaqueiro nordestino, como

sandálias, chapéus,

chicotes e gibões. Foi

reconhecido como

possuidor de um saber

sertanejo que remetia à

autêntica cultura

nordestina.

2006

José Matias da

Silva 15/09/1925 Reisado Caririaçu

Agricultor, pratica a dança

do reisado nos grandes

eventos da região. Segundo

o próprio Mestre Zé Matias,

estas apresentações em

público são momentos de

extrema alegria e

realização pessoal.

2006

160

José Pereira de

Oliveira 25/09/1925 Jangadas Aquiraz

Mestre Oliveira é um exímio

artesão nos trabalhos com

madeira. Ele confecciona

miniaturas de jangadas com

pedaços de madeira. Aos

mais jovens, repassa as

minúcias e os segredos de

seu ofício.

2006

Joviniano Alves

Feitosa 06/02/1913

Mestre

Santeiro Crateús

Filho de carpinteiro e neto

de santeiro, Mestre

Joviniano desenvolveu sua

arte vendo o avô esculpir.

Suas imagens espelham a

religiosidade popular. Elas

são famosas pelo

acabamento minucioso e

cuidado nos gestos e

expressões.

2006

Manoel

Graciano

Cardoso dos

Santos

18/07/1926 Artesanato em

Madeira Barbalha

Mestre Graciano é

considerado uma referência

na cultura brasileira. São

inconfundíveis seus traços

e acabamentos em obras

arquitetadas a partir de

troncos, de onde emanam

flores, frutos e bichos.

2006

Maria Pereira

da Silva 08/06/1927 Lapinha

Juazeiro do

Norte

Metade de sua sala de

visitas era tomada pelo

presépio, herdado de sua

mãe, que fundou a Lapinha

Santa Clara, em 1912.

Carregou consigo o orgulho

de coordenar a mais

tradicional e antiga lapinha

de Juazeiro do Norte.

2006

Pedro Alves da

Silva 26/12/1926

Artesanato em

Cipó Guaramiranga

Mestre Pedro Balaeiro

gosta de ser chamado de

“O Homem da Cestinha”.

Seus trabalhos são uma

2006

161

referência nacional no

trançado de cipó de imbé.

Sebastião Alves

Lourenço 24/04/1934 Cordelista Capistrano

Dedicou a vida à mestrança

das brincadeiras de reisado

e aos versos de cordel.

Com muito esforço, sem

apoio oficial, sempre

procurou manter vivas as

tradições de sua arte. É

conhecido também como

Sebastião Chicute.

2006

Zulene Galdino

Sousa 02/03/1949

Pastoril,

Dança do

Coco e

Maneiro-Pau

Crato

Mestra Zulene é membro

fundadora da Fundação do

Folclore Mestre Eloi. Desde

a infância, já dançava

quadrilha junina. Criou no

Crato dois grupos: um de

crianças e outro de jovens.

2006

2007

Antônio Gomes

da Silva 13/02/1960

Luthier de

Violino Mauriti

Totonho é um pequeno

agricultor que divide seu

tempo entre os trabalhos na

roça e a construção de

violinos, violoncelos,

contrabaixos e violas. O

interesse pela arte

apareceu após um encontro

com o maestro italiano

Augusto Lombardi.

2007

Getúlio Colares

Pereira 23/03/1929 Sineiro Canindé

Os moradores de Canindé

conhecem os seus repiques

que estão presentes em

músicas e hinos dedicados

a São Francisco. Toca o

sino em ritmos diferentes

para ocasiões especiais.

2007

162

Seu repertório soma 85

toques diferentes.

João Lucas

Evangelista 06/05/1937 Cordel e Viola Crateús

Mestre João Lucas publicou

romances, folhetos e

gravou canções e poemas

de cordel. Artistas como

Frank Aguiar e a banda

Mastruz com Leite já

interpretaram suas

músicas.

2007

Maria Assunção

Gonçalves 1º/6/1916

Artesanato e

artes plásticas

Juazeiro do

Norte

Com atividades que

incluem artesanato

(bordado e renda) e artes

plásticas (pintura), foi

considerada guardiã da

memória. Assunção

Gonçalves se destacava

também na culinária como

confeiteira.

2007

Maria de castro

Firmeza 18/07/1921

Bordado,

Culinária,

Artes Plásticas

e Artesanato

Fortaleza

Mestre Dona Nice

desenvolvia atividades nas

áreas do bordado, da

culinária e das artes

plásticas. No bordado,

apresentava-se como das

mais criativas,

sobressaindo-se com um

estilo próprio, em desenhos

e cores. Professora,

ministrava cursos dessas

atividades. Morreu em

2013.

2007

163

Maria José

Inácio 19/06/1944 Bendito

Juazeiro do

Norte

Lavadeira, Dona Maria do

Horto, como é conhecida,

canta benditos de sua

própria autoria. Com uma

voz potente, suas

composições falam do

universo religioso ligado ao

Padre Cícero.

2007

Maria Odete

Martins Uchoa 06/01/1946

Medicina

Popular Canindé

Os conhecimentos que

Odete Uchoa tem sobre as

plantas medicinais é uma

herança de seus

antepassados, núcleos

indígenas. Desde criança

convive com remédios

caseiros. Observa e estuda

as plantas e métodos de

aproveitamento.

2007

MOISÉS

CARDOSO

DOS SANTOS

26/03/1945 Dança do

Coco Trairi

Herdou a tradicional Dança

do Coco dos seus

antepassados indígenas.

Os passos, o ritmo e o

movimento corporal têm

relação com o universo do

trabalho rural. Moisés criou

uma escolinha para

repassar a dança para a

comunidade.

2007

Sebastião

Cosme 08/12/1940 Reisado

Juazeiro do

Norte

Começou aos nove anos

como brincante de reisado

e, aos 15, era embaixador.

Com 17 anos formou seu

próprio grupo: Reisado de

São Sebastião. Vinha se

dedicando ao espetáculo,

ajudando a manter viva a

tradição popular.

2007

164

Silvino Veras

D´ávila 05/09/1917

Luthier de

Rabecas Irauçuba

Mestre Vino era carpinteiro

aposentado e

confeccionava rabecas.

Construía os instrumentos e

os manuseava, tocando

com maestria. Suas

rabecas eram famosas,

internacionalmente. Morreu

em agosto de 2013 sem

deixar discípulos.

2007

Terezinha Lima

dos Santos 07/06/1941 Dramista Beberibe

Teve os primeiros contatos

com o drama ainda na

escola primária. Desde

então, Mestre Tereza Lino,

como é conhecida, participa

de montagens, cria peças e

acompanha o movimento

dramista em Beberibe.

2007

Vicente Chagas

Gondim 02/07/1937 Reisado Guaramiranga

Desde os 15 anos tem

envolvimento com o

Reisado. É um dos

“topadores de boi” mais

conhecidos do Maciço de

Baturité. As várias “figuras”

do espetáculo (cavalo-

marinho, boi, burrinha) são

confeccionadas por ele.

2007

2008

Ana Maria da

Conceição 27/07/1956 Dramista Tianguá

Integrante do grupo de

dramistas dos Tucuns, que

ministra música e

expressões corporais que

representam práticas

dramáticas de comunidades

rurais. Os dramas são

cantados por mulheres do

grupo, acompanhadas

pelos tocadores.

2008

165

Espedito Veloso

de Carvalho 29/10/1939

Artesanato em

Couro Nova Olinda

Por meio de sua arte,

Mestre Espedito Seleiro

resgata a história do couro

na originalidade das

vestimentas do vaqueiro e

do cangaço. Suas obras

são reconhecidas

mundialmente e já esteve

presente nas passarelas e

no design de móveis.

2008

Francisca

Galdino de

Oliveira

12/09/1941 Rezadeira Alto Santo

Natural de Umarizal (RN), a

rezadeira aprendeu o ofício

com a madrinha aos cinco

anos de idade, fazendo

rezas curativas para

diversas enfermidades. É

conhecida como

Francisquinha Félix.

2008

FRANCISCO

MARQUES DO

NASCIMENTO

(CACIQUE

JOÃO

VENÂNCIO)

30/01/1955 Cultura

Indígena Itarema

Cacique João Venâncio é

da etnia Tremembé desde

1991, e responsável geral e

instrutor das danças e

rituais sagrados indígenas.

Atua como instrutor de

carpintaria, pesca e

agricultura.

2008

José Stênio

Sliva Diniz 26/12/1953

Xilógrafo e

cordelista

Juazeiro do

Norte

Já atuou como ator e

cantor, destacando-se,

entretanto, por seu talento

como xilógrafo. Suas obras

estão espalhadas por

alguns dos principais

museus de gravura do País

e do Exterior. Notabilizou-

se também pela luta em

prol do artesanato de

Juazeiro.

2008

166

Luciano

Carneiro Lima 07/01/1942

Cordelista e

tipógrafo Crato

Iniciou como cordelista em

1975, divulgando suas

poesias em rádios. Foi

membro fundador da

Academia dos Cordelistas

do Crato. É uma das mais

respeitadas e reconhecidas

expressões do verso

popular caririense.

2008

Luís Manuel do

Nascimento 13/09/1951

Cultura

Indígena Itarema

É um representante

genuíno da antiga tradição

dos pajés, tendo sido

preparado pelo pai, o pajé

Caboco Sororô. Nasceu na

aldeia Tremembé da

Varjota, em Almofala.

Mestre Pajé Luís Caboclo,

como é conhecido,

começou sua atividade de

cura com ervas medicinais

aos 18 anos.

2008

Maria do Carmo

Menezes Morais 11/03/1939 Pastoril Paracuru

Teve os primeiros contatos

com o pastoril com a mãe.

Depois de adulta, já em

Paracuru, começou a

ensinar pastoril às crianças

da vizinhança, sendo fiel às

tradições.

2008

Raimundo de

Brito Silva 14/04/1931 Mateiro

Juazeiro do

Norte

O uso de raízes, cascas e

folhas na produção de

xaropes e chás levou

Mestre Mundô, como é

chamado, à elaboração de

uma fórmula de xarope

bastante utilizada nos

meios familiares e entre

amigos.

2008

2009

167

Antônio Luiz de

Souza 21/09/1957

Reisado de

Caretas Potengi

Tornou-se brincante do

Reisado de Caretas em

1980. A atividade estava

em vias de acabar, no Sítio

Assaré, quando Antônio

passou a organizar o

reisado. Hoje o Reisado de

Caretas de Potengi é uma

referência para a região.

2009

Expedita

Moreira dos

Santos

09/10/1939 Dança de São

Gonçalo Tianguá

Participa da Dança de São

Gonçalo desde os dez anos

de idade, incentivada por

sua mãe.

A dança é realizada pelas

mulheres da comunidade,

tendo a Mestre Expedita

como “Mariposa” que

organiza o grupo e dirige a

manifestação.

2009

Francisca

Ferreira Pires 15/12/1943 Rendeira Cascavel

Mestra Francisca, como é

conhecida, repassa seu

conhecimento em renda a

todos da comunidade,

fortalecendo ainda mais a

tradição de rendeira em sua

região.

2009

Francisco Paes

de Castro 23/10/1925

Instrumentista

– Sanfona de

Oito Baixos

(Pé de Bode)

Assaré

Mestre Chico Paes é neto

de João Saturnino do

Prado, rabequista e violeiro,

e filho de Chico Paes. Ele

desenvolveu a arte de tocar

a sanfona de oito baixos

(pé de bode), instrumento

característico da cultura

popular. Sua música é

conhecida em toda a

região.

2009

168

Francisco Vitor

Lima 25/11/1939 Ferreiro Cedro

Mestre Netinho, como é

conhecido, aprendeu com o

avó e o pai a arte de

ferreiro. Produz peças que

ajudam a manter viva a

atividade de ferreiro,

repassando a arte para

seus filhos e netos.

2009

Joaquim

Ferreira da Silva 19/02/1939

Dança de São

Gonçalo Quixadá

Mestre Joaquim organiza

junto com as mulheres da

Comunidade do Sítio Veiga

a Dança de São Gonçalo.

Ele acompanha o grupo

com um tamborzinho que

recebeu de presente de seu

pai e repassa seus

conhecimentos a todos da

comunidade.

2009

José Maurício

dos Santos 20/09/1951

Artesanato em

Flandres

Juazeiro do

Norte

É brincante de reisado, mas

é na arte de trabalhar com

flandres que se destaca.

Suas peças integram

exposições coletivas e

individuais, colocando-o em

posição de importância no

campo da arte popular.

2009

Maria do Carmo

dos Reis Felício 18/07/1928

Medicina

popular -

lambedor

Alto Santo

É conhecida por fazer

lambedor. O remédio

caseiro é feito com a

colaboração de sua irmã,

Dona Francisca. Usam

diversos tipos de plantas

cultivadas no quintal de

casa. Todos os dias colhem

plantas e raízes especiais

para o lambedor.

2009

169

Severino

Antônio da

Rocha

04/08/1925 Penitência Barbalha

Desde os dez anos de

idade, acompanhava o

grupo de penitentes do Sítio

Cabeceiras, conhecido por

ser o grupo do Mestre

Joaquim Mulato. Com a

morte do Mestre, Severino

passa a organizar o grupo

de penitentes, buscando

manter viva a tradição.

Morreu em outubro de

2013.

2009

2011/2012

Deoclécio

Soares Diniz 26/12/1936 Escultor Canindé

Conhecido como “Seu Bibi”,

“Mestre Bibi” ou “Bibi

Santeiro”, mestre Deoclécio

produz imagens sacras em

grandes dimensões. Seu

primeiro trabalho foi a

produção de uma estatueta

de Nossa Senhora do

Perpétuo Socorro.

2011/2013

Raimunda Lúcia

Lopes 31/05/1949 Rendeira Trairi

É conhecida como Dona

Raimundinha na localidade

de Timbaúba. Conheceu o

processo de produção

artesanal ao desenvolver

atividades de bordadeira e

costureira.

2011/2014

2013

José de Abreu

Brasil 19/03/1945 Arte circense Fortaleza

O Palhaço Pimenta iniciou

as atividades em circo por

volta de 1960, no Grande

Circo Uiara, como porteiro.

Daí, envolveu-se nas ações

de palco como trapezista,

depois palhaço, com o

nome de Coça-Coça.

2013

170

Josefa Pereira

de Araújo 15/09/1943 Artesanato Potengi

Dona Zefinha é

considerada a única artesã

no Estado a utilizar a

técnica tradicional para

tecer redes de dormir. Ela

confecciona as peças com

renda de bilros. Aprendeu

essa arte com a mãe, Dona

Helena, que também fazia

redes. Trabalha numa

almofada de mais de um

metro de comprimento,

manipulando 120 pares de

bilros de macaúba. Para

tecer uma rede de dormir,

necessita de 20 novelos de

linhas e cerca de 70 dias de

trabalho.

2013

2014-2015

Francisco Dias

de Oliveira 20/01/1942

Artesanato em

Flandres Potengi

Mestre Françuli é o

flandeiro mais conhecido de

Potengi. São diversas as

produções de seu acervo,

como chaminés, fornos,

pás, baldes, latas, tubos de

armazenar legumes,

candeeiros e funis. Já foi

tema de documentários,

que retratavam suas obras.

2014-

2015

Francisco Felipe

Marques 16/01/1922 Reisado

Juazeiro do

Norte

Natural do Crato, onde

começou nas brincadeiras

de reis, Mestre Tico, hoje,

atua no Crato e em

Juazeiro do Norte. Um dos

mais antigos mestres

atuantes, é dono de um

repertório imenso de

canções ligadas às

2014-

2015

171

tradições dos reisados

antigos.

Geraldo Ramos

Freire 13/08/1938 Artesão

Juazeiro do

Norte

Nascido em Juazeiro do

Norte, desde os 14 anos

trabalhava com seu pai,

que exercia a função de

ferreiro e fundidor. Com ele,

aprendeu a arte. Ajudou,

ainda, a reativar a antiga

fábrica de relógios

mecânicos dos salesianos.

2014-

2015

José Pinheiro

de Moraes 02/05/1935 Penitente Assaré

A vocação se manifestou

por volta de 1945, com a

morte de seu pai, também

penitente. Mestre Deca

assumiu a liderança do

Grupo da Irmandade de

Nossa Senhora como

decurião.

2014-

2015

Maria de

Lourdes da

Conceição

Alves (Cacique

Pena)

25/03/1945 Cultura

indígena Aquiraz

A Cacique Pequena

dedicou a vida ao

movimento de resistência

dos povos indígenas

cearenses. Seu nome

indígena é Tigresa, mas é

comumente conhecida

como Pequena. Rompeu

costumes presentes nos

índios cearenses e se

tornou a primeira mulher na

função de cacique.

2014-

2015

Maria Deusa e

Silva Almeida 08/03/1926 Lapinha Assaré

Devota religiosa, Dona

Deusa começou como

catequista e tornou-se

diretora da Paróquia de

Nossa Senhora das Dores

2014-

2015

172

de Assaré, durante 50

anos. Foi protagonista do

ciclo natalino de Assaré,

produzindo e dirigindo a

Lapinha.

Maria José

Costa Carvalho 14/10/1939

Tradições

juninas e

Festejo do

ciclo junino

Caucaia

Dona Mazé da Quadrilha é

conhecida pelo trabalho de

cultivo e manutenção das

tradições juninas no

formato mais legítimo, fiel

às origens desta tradição

no Estado. Ela é integrante

da Federação das

Quadrilhas Juninas do

Ceará (Fequajuce) e

também filiada à União

Junina.

2014-

2015

Maria Quirino

da Silva 07/03/1939 Cerâmica Cascavel

Nasceu no povoado de

Moita Redonda, onde, há

várias gerações, as

pessoas trabalham com

cerâmica. Foi lá onde Dona

Tarina aprendeu a arte na

qual começou a trabalhar

desde os oito anos, ensino

passado de mãe para filha.

Trabalha o barro usando

técnicas ancestrais em um

processo completamente

artesanal.

2014-

2015

Pedro Coelho

da Silva 12/04/1943

Vaqueiro

aboiador e

poeta

Acopiara

É poeta nato e vaqueiro

aboiador. Ao longo dos

seus mais de 50 anos de

profissão, Mestre Pedro

Coelho teve sua história e

trabalhos publicados,

apresentados e divulgados

em rádio e TV.

2014-

2015

173

Fonte: Elaboração da autora a partir das informações dos 'Tesouros Vivos da cultura' catalogados no

<http://www.anuariodoceara.com.br/mestres-da-cultura-do-ceara> Acessado em 30 de Novembro de

2016

174

ANEXOS

175

ANEXO A - Lista de tipologias de artesanato da CEART

COORDENADORIA DO ARTESANATO E ECONOMIA SOLIDÁRIA

Programa de Desenvolvimento do Artesanato do Estado do Ceará

Nº ORD. TIPOLOGIA TÉCNICA

01 AREIA COLORIDA COMPOSIÇÃO DE IMAGEM

02 ARGILA

LUTHERIA / MODELAGEM / MOSAICO /

OLARIA / OLARIA VIDRADA / PINTURA /

PORCELANA / TORNEAMENTO

VITRIFICAÇÃO

03 ALIMENTOS

E BEBIDAS

COZIMENTO APURADO / DECANTAÇÃO /

DESTILAÇÃO / FORNADO / INFUSÃO /

PRODUÇÃO DE ALIMENTOS TÍPICOS /

PRODUÇÃO DE BEBIDAS DESTILADAS

PRODUÇÃO DE BEBIDAS FERMENTADAS

/ PRODUÇÃO DE DOCES

/ PRODUÇÃO DE LICORES / PUXADO /

SOVADO / TORRAGEM

04 CÊRA, MASSA,

GESSO E PARAFINA ESCULPIDO / MODELAGEM

05 CHIFRES E OSSOS,

DENTES E CASCOS

ESMERILHAMENTO / TORNEAMENTO

/ PIROGRAVURA

06

CONCHAS E

ESCAMAS DE PEIXE

ESMERILHAMENTO / MOSAICO

07

COURO, PELES, PENAS,

CASCAS DE OVOS E CRINA

DE CAVALO

COMPOSIÇÃO EM RETALHO /

ESMERILHAMENTO /

PIROGRAVURA / SAPATARIA

/ SELARIA

08 FIBRAS VEGETAIS COMPOSIÇÃO DE BONECOS (AS)

176

ARTESANAIS / CONFECÇÃO DE FLORES

ARTESANAIS / CROCHÊ / ENTALHAMENTO /

ESCULPIDO / LUTHERIA / MAMUCABA /

MOSAICO TRANÇADO

09 FIOS E TECIDOS

BORDADO À MÃO / BORDADO À MÁQUINA /

COMPOSIÇÃO DE BONECOS (AS)

ARTESANAIS / COMPOSIÇÃO EM RETALHOS

/ CROCHÊ / FILÉ / FUXICO / LABIRINTO /

MAMUCABA / RENDA DE BILRO / RENDA

RENASCENÇA / RICHELIEU /

/ TAPEÇARIA / TECELAGEM

/ TRANÇADO / TRICÔ

177

Fonte: CEART – Juazeiro do Norte / trabalho de campo – 2014.

Nº ORD. TIPOLOGIA TÉCNICA

10 MADEIRA

CARPINTARIA / ENTALHAMENTO ESCULPIDO / LUTHERIA / MOSAICO /

TORNEAMENTO / MARCHETARIA / MARCENARIA / PIROGRAVURA

/ XILOGRAVURA

11 MATERIAIS SINTÉTICOS

BOLEADO / ENTALHAMENTO / ESCULPIDO /

LUTHERIA / MOSAICO / PINTURA /

SERIGRAFIA

TRANÇADO / ESTAMPARIA

12

METAIS

ARMARIA DECORATIVA / BIJUTERIA / CUTELARIA / FERRARIA / GRAVAÇÃO / LUTHERIA / LATOARIA / OURIVESARIA / PINTURA / SERRALHERIA / TORÇÃO /

TRANÇADO

13 PAPEL CARTONAGEM / MODELAGEM / MOSAICO /

LITERATURA DE CORDEL / TRANÇADO / XILOGRAVURA

14 PEDRAS CANTARIA / ESCULPIDO / LAPIDAÇÃO

/ MOSAICO

15

SEMENTES, CASCAS,

RAIZES, FLORES E FOLHAS SECAS

BIJUTERIA / ENTALHAMENTO / ESCULPIDO / ESMERILHAMENTO

16

VIDRO

AZULEJARIA / VIDRADO / VITRIFICAÇÃO / JATEAMENTO / MODELAGEM /

MOSAICO

178

ANEXO B – Propaganda de ‘Pega de boi no mato’