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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ – UECE MESTRADO ACADÊMICO EM POLÍTICAS PÚBLICAS E SOCIEDADE Ocleciano de Souza Costa “CORONEL” – CRISTÃO: A Trajetória de Ananias Arruda na Fé e na Política.

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ – UECE

MESTRADO ACADÊMICO EM POLÍTICAS PÚBLICAS E SOCIEDADE

Ocleciano de Souza Costa

“CORONEL” – CRISTÃO: A Trajetória de Ananias Arruda na Fé e na

Política.

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“CORONEL” – CRISTÃO: A Trajetória de Ananias Arruda na Fé e na

Política.

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C837e3E28 Costa, Ocleciano de Souza

O Coronel – Cristão; a trajetória de Ananias Arruda na fé e na política. Ocleciano de Souza Costa. _ Fortaleza, 2007

105p

Orientadora: Prof(a) Dra. Mônica Dias Martins. Dissertação (Mestrado em Políticas Públicas e Sociedade) _ Universidade

Estadual do Ceará, Centro de Estudos Sociais Aplicados. 1. Coronelismo. 2. Religiosidade e Política. I. Universidade Estadual do

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MESTRADO ACADÊMICO EM POLÍTICAS PÚBLICAS E SOCIEDADE

Meus agradecimentos a todos que me ajudaram na

difícil empreitad a de elaboração da presente pesquisa,

em especial a prof(a) dra. Mônica Dias Martins,

Clemente Olintho Távora Arruda, Édson André e

Carlos Sérgio Alves Pereira, pelas contribuições

significativas.

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MESTRADO ACADÊMICO EM POLÍTICAS PÚBLICAS E SOCIEDADE

LISTA DE FIGURAS:

Figura 01 : Visão panorâmica de Baturité registrada pelo Hotel dos Jesuítas com informações

para visitas e hosped agens no ano de 2000............. ....................................................10

Figura 02 : Mapa da rede ferroviária do Ceará ............................................................................12

Figura 03 : Mapa político de Baturité .........................................................................................12

Figura 04 : Prédio da Estação Ferroviária ...................................................................................16

Figura 05 : Nossa Senhora da Palma ...........................................................................................18

Figura 06 : Igreja Nossa Senhora da Palma ................................................................................18

Figura 07 : Igreja de Santa Luzia ................................................................................................19

Figura 08 : Prédio da Prefeitura Municipal .................................................................................20

Figura 09 : Baturité década de 1930.............................................................................................21

Figura 10 : Paramentas de comendador de Ananias Arruda ......................................................50

Figura 11 : Museu comendador Ananias Arruda........................................................................50

Figura 12 : Ananias Arruda aos noventa anos em 1976...............................................................51

Figura 13 : Primeiro exemplar do jornal “A Verdade”................................. ...............................52

Figura 14 : Construção do prédio do convento dos padres jesuítas ............................................53

Figura 15 : Casal Ananias Arruda e Donaninha dos Santos ........................................................65

Figura 16 : Prédio do centro comunitário.....................................................................................68

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MESTRADO ACADÊMICO EM POLÍTICAS PÚBLICAS E SOCIEDADE

SUMÁRIO:

1. Introdução : .....................................................................................................................06

2. Capítulo 01 : Baturité e as riquezas da serra ....................................................................10

3. Capítulo 02 : Dominação tradicional: tradição, administração e liturgia ........................22

4. Capítulo 03 : Um momento de “tensos” e acordos entre Igreja e Estado na perspectiva da

ciência política ............................................................................................34

5. Capítulo 04 : Ananias Arruda: uma trajetória de austeridade na fé e n a política ...............48

6. Capítulo 05 : Nos lugares da memória: a possível representação da realidade...................62

7. Considerações Finais : .......................................................................................................90

8. Referências Bibliográficas : ...............................................................................................92

9. 96 Anexos: ...........................................................................................................................

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RESUMO

O presente trabalho busca contribuir para o entendimento do processo de reprodução do

mando no Nordeste. Partimos da leitura da categoria em construção “coronelismo” para no s

apropriarmos da realidade, torna-la inteligível. Como delimitação espaço/temporal optamos por

analisar a trajetória do “coronel” Ananias Arruda em Baturité no período de 1935 a 1940, no

intuito de construirmos uma interpretação sobre o mando numa perspectiva que o considera o

“coronel” cristão, atributo que lhe foi peculiar mediante tantos outros que caracterizam os

“coronéis”.

Como referencial teórico tivemos a categoria dominação tradicional de Max Weber. A

luz do pensamento weberiano buscamos identificar os fundamentos do mando d e An anias

Arruda. Conseguimos visualizar a austeridade religiosa do “coronel” fundamentada no poder

eterno da tradição. Percebemos que sua austeridade foi de fundamental valia naquele momento

histórico em que o “coronel” foi chamado como conciliador de interesses políticos antagônicos.

O presente trabalho se configura numa interpretação do momento em que a reprodução

do mando no Ceará passa por uma fase de transição entre as instituições tradicionais,

representadas pelo conservadorismo, ruralismo e predomínio da tradição católica e as

instituições modernas, representadas pelo urbanismo, industrialismo e de predomínio do

pensamento racional. Este momento requer a presença de pessoas conciliadoras entre os

interesses tradicionais e os modernos e, Ananias será este agente conciliador na reprodução do

mando em Baturité.

Finalizamos a pesquisa concluindo que o atributo de “coronel” cristão de Ananias

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Introdução

O texto trata do p rocesso de reprodução do poder no Cear á. Investigamos os fundamentos

e a abrangência das práticas de mando de Ananias Arruda nas décadas de 1930 e 1940 na cidade

de Baturité. Grande proprietário de terras, industrial e comerciante, além de obstinado católico,

Ananias Arruda teve na fé a justificativa para ações políticas típicas de um “coronel”.

Nosso interesse pelo tema foi suscitado pelas histórias que ouvimos das façanhas de Ana-

nias Arruda narradas por moradores em conversas nas calçadas e por depoimentos de pessoas que

de alguma forma mantiveram contatos com a família Arruda.

Nas reflexões preliminar es sobre a temática, nos deparamos com a possibilidade de que

Ananias Arruda poderia ser incluso na grande variedade de atributos reservados aos chefes políti-

cos nordestinos denominados de “coronel”. Na história do mando no Nordeste, a literatura cos-

tuma denominar “coronel” o chefe local que, além da propriedade da terra, possui atributos que

os distingue dos seus par es. Assistência jurídica, econômica, favores políticos, empregos e apoio

eleitoral são algumas das obrigações reserv adas a estes chefes e que os mantêm no mando. Entre-

tanto, entre esses atributos, não conhecíamos ainda estudos sobre um chefe político que, sem per-

tencer a hierarquia eclesiástica, tenha se utilizado da autoridade da tradição católica da cidade

para impor o conteúdo da sua “verdade” a todos e que se tenham mantido no poder por um curto

espaço de tempo.

Por isso, denominamos Ananias Arruda de o “coronel” cristão, porque ele utilizou-se da

própria austeridade católica embasada na tradição religiosa do povo para impor a obediência ao

seu mando.

Nosso referencial teórico é a dominação tr adicional de Weber. Compreendemos que o

mando de Ananias Arruda se deu “aos moldes” da dominação weberiana, porque ele utilizou a

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tradição religiosa da maioria do povo baturiteense para conquistar o poder político e administrar a

cidade, tendo como referência o conjunto de rituais litúrgicos da Igr eja.

Utilizamos três dos princípios que compõem a dominação tradicional weberiana: a tradi-

ção, a administração e a liturgia. Estes três elementos iluminam a análise das origens e abrangên-

cia do mando de Ananias Arruda.

A tradição no que se refere ao caráter sagr ado dos costumes, dos comportamentos, das ati-

tudes que têm origens antigas e que se perpetuaram na transmissão de geração a ger ação, na mai-

oria das vezes, isenta de críticas e legitimada pelo espírito de religiosidade da maioria do povo.

Na administração “aos moldes” weberiano, buscamos entender como se organizou o man-

do extrapatrimonial. Como as instituições públicas inventadas pela República, apesar de terem

sido criadas para atender aos interesses sociais da coletividade, muitas vezes, prestavam-se a a-

tender aos caprichos e vontades egocêntricos do chefe político local.

E, por último, mas não menos importante, usamos a liturgia como mecanismo de reprodu-

ção dos rituais que representavam a obediência e a hierarquia, o poder e as obrigações político-

sociais tanto do dominador como dos dominados. A partir das obrigações litúrgicas, os princí-

pios da lealdade e da piedade se fortaleceram para que a obediência acontecesse.

Na fase do levantamento bibliográfico, tendo em vista nossas limitações no campo da So-

ciologia, nos concentramos na análise apenas dos três princípios da dominação tradicional webe-

riana, acima citados (tradição, administração e liturgia), porque eles atenderam nossas expectati-

vas no que se refere a uma teoria sólida capaz de subsidiar as análises do mando do “coronel”

Ananias Arruda.

Como empiria contatamos familiares, ex-funcionários e pessoas que conheceram Ananias

Arruda e se disponibilizaram a dar entrevistas sobre a trajetória do “coronel” e seus projetos de

administração pautados na austeridad e católica e n a tradição religiosa do povo.

O caminho percorrido para execução dessa pesquisa foi longo e cheio de percalços. Entre

entrevistas adiadas e informações desencontradas decorr eram três anos. Visitamos todos os en-

trevistados no ano de 2005, coletamos dados e fizemos análises de resultados baseadas nas entre-

vistas. Entretanto, no ano de 2006, tivemos contato com jornais da década de 1930 que colocaram

dúvidas nas análises dos dados anteriores. Encontramos outros documentos (entre eles biografia

escrita por um sobrinho) que comprovaram algumas hipóteses levantadas sobre o mando de Ana-

nias Arruda - mando que se deu a partir da sua austeridade católica unida à tradição religiosa do

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povo – e sobre o fato de que o “coronel” não possuía carisma para ser eleito prefeito da cidade.

Com base nas informações obtidas nesses jornais e documentos, re-elaboramos as perguntas e

obtivemos respostas esclarecedoras e contundentes. Isto aconteceu no primeiro semestre de 2007,

período da primeira fase de elaboração desta dissertação.

Apresentamos a seguir os resultados da pesquisa em capítulos.

No primeiro capítulo, apresentamos Baturité como espaço geopolítico da serra. Sua voca-

ção econômica que serviu de suporte material para vivência das supostas tensões políticas das

décadas de 1930 e 1940. Apresentamos o município como alternativa econômica aos efeitos soci-

ais da seca e, principalmente, como local estratégico de formação d e membros da elite católica

cearense para administração do Estado, durante os governos que podemos denominar de “conser-

vadores”.

No segundo capítulo, descrevemos a teoria que embasou a análise do material empírico

coletado. Discutimos o pensamento weberiano sobre a dominação tradicional, levando em consi-

deração três elementos (tradição, administração e liturgia) como elementos concretos que possibi-

litam a dominação. Esclarecemos sobre as limitações teóricas do nosso trabalho, já que o pensa-

mento weberiano foi elaborado tendo em vista a análise de uma realidade histórica completamen-

te difer ente da realidade de reprodução do mando no Ceará, além de citar o pragmatismo racional

de Weber e o momento histórico de transformações econômicas e fortalecimento político de

grandes “impérios” capitalistas no mundo.

No terceiro capítulo, fizemos um rápido e reflexivo ensaio sobre autor es que discutem as

tensões entre as elites cearenses que disputaram o poder durante as primeiras décadas do século

XX. Iniciamos discutindo o momento em que o Estado brasileiro assumiu a postura de adotar a

política de planejamento racional, própria do modelo industrial emergente no país, identificada

como liberal. Utilizei o termo racionalização para designar a proposta que o governo federal im-

pôs a todos os Estados da federação.

No Ceará, essa proposta se chocou com os interesses da Igreja Católica, visto que, nesse

mesmo período, a Igreja local tentava impor - de certa forma, até como resposta aos intentos do

Estado - o projeto católico de ro manização da fé do povo cearense. Segundo alguns cientistas

políticos, a Igreja vivia tensões entre a moral cristã e o pensamento comunista, o qual, segundo a

Igreja, ameaçava a harmonia social e a moral cató lica

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No quarto capítulo, expomos três entrevistas que foram significativas para a compreensão

das origens e abrangência do mando de Ananias Arruda como “coronel” cristão. As entrevistas

selecionadas nos deram a oportunidade de esclarecermos o conteúdo das reportagens dos jornais,

panfletos políticos e documentos históricos que, sozinhos, tornavam-se complexos e de difícil

interpretação. Entr e os jornais, destacamos “O Nordeste” (década de 1930), “A Verdade” (de

1917 e alguns exemplares da década de 1980). Entre os livros, destaque para a biografia de Ana-

nias Arruda, de autoria de seu sobrinho Olinto Arruda. De fund amental importância foram as

entrevistas com o radialista e historiador Edson André. Todo esse material serviu para análise e

ajudou na construção do capítulo cinco, no qual se descreve a trajetória de fé de Ananias Arruda

na política.

Por fim, discorremos nossas considerações sobre a trajetória de Ananias Arruda como

chefe político, cuja trajetória foi marcad a por uma severa disciplina e obstinação na fé católica,

mecanismos que lhe serviram para impor os princípios da leald ade e da piedade, os quais, juntos,

caracterizaram a obediên cia da dominação tradicional “aos moldes” weberiano imposta à maioria

do povo baturiteense.

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Capítulo 01

Baturité e as riquezas da serra

Figura 01. Visão panorâmica de Baturité registrada pelo Hotel dos Jesuítas como informações para visitas e hospedagens no ano de 2000. Fonte: Casa de

Repouso dos Jesuítas

A palavra Baturité foi estudada etimologicamente por muitos intelectuais, ainda que não

haja consenso entre eles sobre o seu significado. Von Martius, Paulino Nogueira, Gil Amora e,

1 por último, Pedro Catão , foram alguns dos que se comprometeram em desvendar o significado

O topônimo Baturité é indígena e procede da serra em cujo sopé se eleva a cidade. Segundo José de Alencar (Ira- 1

cema, notas aditivas), vem de “baturieté”, “narceja (uma ave) ilustre” ou de “b atuira” e “eté”, no me que tomara o chefe potiguara e que na linguagem figurada significa “valente nad ador”. Conforme Von Martius, significa “certo aço”, corrutela de epo (“porventura”) e ita-eté (“aço”). O dr. Paulino Nogueira não aceita nenhuma dessas versões, a primeira “por ser simplesmente u ma co mbinação engenhosa para realce de um poema d e imaginação” e a segunda porque, “não conhecend o o índio o ferro, co m maioria de razão não devera conhecer o aço que já é uma transforma- ção artística desse metal”. A etimologia legítima lhe parece: uma corrutela de ibi, (“terra”), tira, (“alta”), isto é, serra; e eté (“em muito, po r excelência, verdadeira”). De ibi-tira-eté se fez Baturité, serra verdadeira, por excelência. No entanto, o dr. Gil Amora, em trabalho p ublicado na Revista do Instituto (vol 3º, pág. 183), afirma haver equívoco de

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desse vocábulo. Em comum, todos concluem que Baturité deriva de Batu (= monte, morro) e eté

2(= desinência superlativa aumentativa). Portanto, Baturité significa verdadeira serra .

O que atualmente chamamos de Maciço de Baturité, região que compreende as áreas terri-

toriais ocupadas pelos municípios de Aracoiaba, Capistrano de Abreu, Guaramiranga, Itapiúna,

Mulungu, Pacoti e Redenção, fora, até a década de 1960, área de um único município, Baturité,

3criado pelo Decreto Lei nº 844 de 09 de agosto de 1858 .

A área de 993km² está atualmente reduzida a 262km²; sua altitude é de 177,24m; latitude

4º 19”46’ S e longitude de 38° 52” 3’ W. Criado inicialmente como vila Monte-Mor-o-Novo

4 d’América , pela Secretaria dos Domínios Ultramarinos português e oficializada pelo governador

de Pernambuco, Luiz Diogo Lobo da Silva, por meio de carta datada de 06 de agosto de 1763,

enviada ao Ouvidor do Ceará, Vitoriano Soares Barbosa. A legitimação se deu através da Portaria

15/08, de 31 de março de 1764. A inauguração o correu em 14 de maio desse mesmo ano.

Alencar e Paulino Nogueira. “O verdadeiro nome nunca foi Baturité e sim Batieté. Se não encontramos em documen- tos escritos assim esse nome, encontramo-lo do povo. Segundo me contaram alguns velhos habitantes da comarca, assim pronunciavam (Batieté) e ainda hoje muitos caboclos de origem indígena. Decomposto esse nome na língua tupi, vem a ser: bu (sair, rebentar, sair da fonte), ty (água) e eté (boa), que exprime “butieté” (sair água boa), talvez alusão às inúmeras fontes de água cristalina que jorra da serra”. (IBGE – Mapa municipal no 5º volume – Baturité – Ce) 2 LEAL, Vinícius Barros. História de Baturité; época colonial. Fortaleza. Secretaria de Cultura e desporto, 1981. No quadro da divisão administrativa do Brasil, relativa ao ano de 1911, Baturité compõe-se dos distritos da sede, 3

Caio Prado e Castro , mas nos quadros de apuração do Recenseamento de 1920, além destes figuraram os de Putiú, Candeia, Guaramiranga, Pernambuquinho e Riachão. (...) Durante as duas primeiras interventorias federais do Ceará, após a Revo lução de 1930, surgiram os Decretos nº 193, de 20 de maio de 1931, e 1156, de 4 de dezembro de 1933, que modificaram a divisão então vigente e deram a Baturité os distritos de Baturité, Caio Prado, Candéa, Capistrano de Abreu e Itans, omitindo os demais que constavam em 1920. Nos anos seguintes, nenhuma alteração se verificou nos quadros territoriais do Município. (...) Em 1938, o Decreto-lei nº. 448 , de 20 de dezembro, deu a Baturité parte do distrito de Pindoba, extinto e pertencente a Pacoti, sendo também anexado ao distrito da sede o território de Can- deia. Assim fico u Baturité, além da sede, com os distritos de Capistrano (ex-Capistrano de Abreu), Itaúna e Caio Prado.(...)Na divisão territorial fixada para 194 3, o Decreto-lei nº. 1114, de 30 de dezembro, mudou para Itapiúna o nome do distrito de Itaúna. (...)Nos termos da Lei nº. 213, de 9 de junho de 1948, Baturité, que é cabeça de comarca desde 184 1 (Lei provincial nº. 22 6, de 9 de janeiro), figura como comarca de terceira entrância. (...)A Lei nº 1153, de 22 de novembro de 1 951 , deu a Capistrano autonomia municipal, desmembrando-o de Baturité. Posteriormente, pela Lei nº. 3559, de 20 de maio de 1957, foi criado o município de Itapiúna, formado dos distritos de Itapiúna e Caio Prado, ambos desmembrados de Baturité, ficando por conseguinte o território do município de Baturité reduzido ao do distrito-sede (IBGE – Mapa municipal no 5º volume – Baturité – Ce) GIRÃO, Raimundo. Os Municípios Cearenses e seus distritos. Instituto d o Ceará. Fortaleza-Ce. 1983. 4

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Figura: 02 –Mapa da rede ferroviária do

Ceará - Fonte: SEMACE - ano: 2002

O mapa acima representa todo domínio territorial do Maciço de Baturité na época da Por-

taria 15/08, de 31 de março de 1764. O Map a abaixo representa o atual domínio territorial de Ba-

turité, após o desmembramento dos municípios de Capistrano, Aracoiaba, Guaramiranga, Mulun-

gu, Pacoti e Redenção.

figura: 03 – Mapa político de Baturité Fonte: IPECE Ano: 2007

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5O acesso ao município se faz pela Ce 060/356 que o liga a capital, Fortaleza . Baturité

possui um clima tropical quente sub-úmido, com chuvas de janeiro a maio. Apresenta um relevo

composto por maciços residuais de solo bruno não cálcico, planossolo solódico, podzólico ver-

melho-amarelo distrófico, podzólico vermelho-amarelo eutró fico, solo aluviais eutróficos e uma

vegetação composta por caatinga arbustiva densa, floresta subcaducifólia tropical pluvial e flores-

6 ta subperenifólia tropical pluvionebular. A capacidade pluviométrica é de 1.089,7mm ao ano .

Segundo o IBGE, os principais rios são: Aracoiaba, Putiú e Nilo e, os principais riachos seriam

Jaburu e Candeia, além de uma rede lacustre de 18 açudes públicos e particulares.

A denominação da região, em sua construção simbólica, assistiu mutações ao longo do

tempo, acompanhando o próprio processo de ocupação. Em cada denominação, observa-se uma

forma específica de apropriação do território. O início da apropriação das terras e da construção

simbólica do Maciço de Baturité está fixado por volta do final do século XVII, quando ocorreu a

ocupação do semi-árido pelos caminhos do gado, subindo pelos Rios Jaguaribe e Acaraú e, a par-

tir dos sertões do Piauí, ampliou-se o território ocupado pelos rebanhos, ao mesmo tempo em que

se ex pulsavam os povos indígenas para áreas r estritas. Não causa espanto que as áreas de exceção

no interior do semi-árido pastoril, como a serra da Ibiapaba, Serra de Baturité e Serra do Araripe,

se tornassem os últimos redutos de populações indígenas (Relatório da SEMACE, 2002).

Dessa forma, a população indígena daquela região tornou-se alvo de dois processos res-

ponsáveis pela fundação de Baturité: a catequese e o aldeamento. Esses foram instrumentos de

dominação diferenciados dos utilizados pela ocupação do semi-árido e que constituíram os outros

municípios, pois nestes, como matriz econômica, predominaram os rebanhos de gado.

Nos redutos das serras indígenas, prevaleceu o objetivo da catequização como forma de

aculturamento dos povos e formação de uma população cristã no interior. A transferência dos

índios paiacus de Monte-Mor o Velho para Monte-Mor o Novo – futura Baturité – indica a cons-

tituição de áreas de isolamento para remanescentes indígenas preparados para se converterem ao

catolicismo. Em 1720, restavam poucos índios no Ceará, fator que contribuiu para a conversão

desses nativos à fé católica, bem como, para a transformação dos últimos aldeamentos em vilas.

Liga-se com municípios limítrofes e co m a Capital do Estado, pelo s seguintes meios de transporte: Aracoiaba; 5

ferro viário R.V.C. (19km); rodoviário (9km); Capistrano; ferroviário R.V.C.(19km); rodoviário (18 km); Canindé; rod oviário (80km); Pacoti; rodoviário (35 km); Quixadá; ferroviário R.V.C. (87 km); rodoviário (98 km); Redenção; misto a) ferro viário (35 km) até Acarap e e b) rodoviário (2 k m) ou rodoviário (36 k m); Capital estadual; ferroviário R.V.C. (103 km); Cap ital Federal; via Fortaleza, já descrita. Daí ao DF. (IBGE – Mapa mu nicipal no 5º volume – Baturité – Ce. Anuário do Ceará – 2006 – p. 47. 6

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Neste sentido, a criação de vilas foi um instrumento para ex pandir o poder real, dando-lhe

forma no território. Em 1763, a Secretaria dos Domínios Ultramarinos expediu aviso autorizando

o estabelecimento de novas vilas na Capitania do Siará Grande. Entre elas, a de Baturité.

De início, a vocação econômica do município foi a agricultura de subsistência, somada,

depois, à cultura do café. Essa cultura contribuiu, desde então, para definir a forma de ocupação

econômica do território. A primeira experiência d e plantio de café no Maciço se deu no sítio Mu-

cahipe, em 1824, ano em que também foi plantado no sítio Bagaço, hoje localidade do município

de Mulungu. Sendo disseminado inicialmente em quintais e pequenas áreas, o café espalhou-se

pela serra, alcançando sua maior produção no século XIX. “Dar-se-ia, assim, a efetiva ocupação

das serras de Baturité, Aratanha, Maranguape, Uruburetama, Meruoca, Serra Grande e Araripe,

com um produto que se destacará no quadro da economia provincial” (LIMA citado no relatório

da SEMACE; 2002).

A produção do café em Baturité tinha uma característica peculiar. A produtividade da

planta era garantida pelo sombreamento das ingazeiras. No final do século, esse tipo de planta foi

substituído por outro importado do sudeste do país, que se revelou inadaptável ao ambiente local .

Por decorrência disso, a produção cafeeira perdeu importância econômica. Assim, numa conjun-

ção em que figuraram as dificuldades para o plantio das novas mudas - que não se adaptaram ao

clima e ao solo -, o despreparo da mão de obra para o manejo das plantas e os transportes inade-

quados, deu-se o declínio do cultivo do café em favor do plantio de outros grãos e hortaliças, co-

mo matriz econômica.

Apesar da decad ência do café, dados do Anuário Estatístico do Ceará (1997) indicam que

o Maciço ainda é responsável por mais da metade (51,03%) de toda a área colhida com café no

estado, assim como por 64% da quantidade produzida, dada a pouca importância deste produto na

agricultura cearense.

Também o cultivo da cana de açúcar e a produção de rapadu ra e de aguardente participa-

vam do PIB local, mas essas atividades também viriam a perder importância econômica, por de-

ficiências no cultivo e despreparo para produção de derivados, quando comparadas a outras regi-

7 ões de maior dinamismo do país .

Ao contrário do café, a produção da cana-de-açúcar, plantad a nas baixadas úmidas da re-

gião, foi pouco significativa perante a produção nacional. Atualmente a produção de cana-de-

ANDRÉ, Edson. Baturité. Artigo sobre Baturité. 1999. 7

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açúcar em Baturité chega a representar apenas (6,26%) da produção estadual. Incluindo nesse

índice a produção de Palmácia (36,37%), Redenção (21,75%) e Acarape (19,72) (Anuário agro-

pecuário; 1995-1996).

Ao longo dos anos, novos produtos agriculturáveis se desenvolveram no Maciço de Batu-

rité, como é o caso da banana, com um índice d e 27,30% da produção estadual. Além da banana,

frutas como a castanha- de-caju, com uma área colhida de 18.271 ha e uma participação de

(8,42%) na economia estadual; a manga e a laranja, com 233 ha e 204 ha colhidas, respectiva-

mente, de acordo com dados do IPLANCE. Aracoiaba (31,86% ), Baturité (24,25%), Aratuba

(7,84%) e Red enção (7,24%) se destacam na produção de manga e Pacoti (19,65%), Aratuba

(16,77%), Guaramiranga (16,05%) e Mulungu (13,76%) na produção de laranja na região.

Há produções de menor escala de outras frutas, seja considerando o total de área colhida,

seja pela importância per ante a produção estadual: acerola (151ha), coco-da-baía (117ha), mamão

(41ha), melão (38 há) e maracujá (30 há). A produção de acerola con centra-se em Baturité

(44,90%), Aracoiaba (13,54%) e Acarape (8,55%) que, juntos, detêm a maior produção de coco-

de-baía, enquanto 70% da produção de mamão encontra-se distribuída entres os municípios de

Aratuba, Baturité, Capistrano, Mulungu e Reden ção. A pequena produção de melão distribui-se

pelos municípios de Redenção, Palmácia e Aracoiaba, enquanto 57,37% da produção de maracu-

já concentra-se em Mulungu e Capistrano. Como acontece em todo o Ceará, os municípios do

Maciço de Baturité também apr esentam-se como importantes produtores de milho (24.049ha) e

feijão (21.096ha) (SEMACE; 2002).

A safra agrícola de 1955 , co nforme elementos do Departamento Estadual de Estatís- tica, foi estimada em....cr$ 34 356 400,00, correspondentes aos seguintes produtos, por ordem de valor monetário: 100 000 arrobas de 15 quilos de algodão arbóreo – cr$ 10 000 000,00; 16 000 toneladas de mandioca-brava – cr$ 8 000 000,00; 40 000 sacos de 60 qui- los de milho em grão – cr$ 4 800 000 000,00 ; 16 880 sacos de arroz em casca – cr$ 3 088 000,00; 5 000 arrobas de 15 quilos de café em grãos – cr$ 2 250 000,00; 9 000 sacos de feijão – cr$ 1 440 000,00 ; 70 000 cachos de banana – cr$ 1 120 000,00; 8 000 toneladas de cana-de-açúcar – cr$ 1 040 000,00 ; 20 000 centos de laranja – cr$ 1 000 000,00; 5 000 centos de abacate – cr$ 750 000,00; 60 000 centos de manga – cr$ 480 000,00; 5 000 cen- tos de tangerina – cr$ 250 000,00; 3 500 quilos de uva – cr$ 85 000,00; 200 sacos d e fava – cr$ 36 0 00,00; 295 centos de côco-da-baía – cr$ 35 0 00,00; 9 toneladas de batata-doce – cr$ 18 000 ,00 e 4 000 quilos de mamona – cr$ 14 000,00 (IBGE – Mapa municipal no 5º volume – Baturité – Ce.

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A horticultura tem apresentado importante crescimento nos últimos anos, favorecida pe-

las condições naturais (clima e recursos hídricos), assim como pela proximidade ao mercado con-

sumidor da Região Metr opolitana de Fortaleza. A horticultura é produzida, em especial, nos mu-

nicípios de Aratuba, Mulungu, Pacoti e Guaramiranga.

Para o escoamento da produção agrícola e insumos, teve gr ande destaque naquele p eríodo

a construção da estrada de ferro que ligava Baturité à capital Fortaleza e ao interior, principal-

mente, ao sertão central e à região sul do Cariri. A inauguração se deu no dia 02 de fevereiro de

8 1882, ainda no Governo Imperial de d. Pedro II . Nesse período, Fortaleza estava suplantando,

economicamente, as até então prósperas cidades de Aracati e Camocim, dois dos principais por-

tos de escoamento dos produtos agrícolas do Ceará.

Estando em construção a estrada de ferro que se destinaria a servir a zona

sul do Estado, estabelecendo ligação com a Capital, era do projeto ligar Baturité por ra- mal à linha principal que passava em Aracoiaba. João Cordeiro, então radicado à cid ade serrana, defendeu a idéia de fazer passar a via férrea na localidade. Op ond o-se à incon- veniência de um ramal, saiu vencedor nas suas pretensões, inaugurando-se a estação a 2 de março de 1882. (IBGE, mapa municipal no 5º vol. P. 90)

Pelo desenvolvimento econômico de Baturité, conforme demonstrado pelos números da

safra da segunda metade do século XIX e pela própria modificação do trajeto da linha férrea, po-

demos afirmar que o município possuía destaque junto ao governo do Estado. Na foto abaixo a

seguir, vê-se o prédio da Estação Ferroviária de Baturité. Pela imponência e estilo arquitetônico,

percebemos que a cidade possuía certo destaque político.

Figura: 04 – Prédio da Estação Ferroviária Fonte: Olintho Ar- ruda Ano: 1985

Governo do Estado do Ceará. Secretaria da Indústria e do Comércio . CODITUR/SEBRAE. 8

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Na parte cultural, a cidade também merecia d estaque. Naquela época, o município possuía

a Biblioteca 16 de novembro; a Banda de música Carlos Gomes; apostolados literários “com

aulas de cultura cívica, história e geografia do Brasil ; o externato São Luiz de Gonzaga, “sob

cuidados da professora Maria Estelita”; escolas públicas “administradas pelo professor Raimundo

Joaquim, para meninos, e outra administrada pela professora Filomena Gomes, para meninas,

além de outras, entre as quais se mencionam aquelas administradas por d. Guilhermina Araújo,

9Donana Bilhar, Edwirges Castelo Branco e Maria Tereza Furtado .

Durante toda primeira metade do século XX, Baturité se destacou tanto na parte econômi-

ca, como política e cultural.

NOSSA SENHORA DA PALMA: O Oráculo religioso

Baturité é uma cidade em que o povo possui forte ligação à tradição católica. Por isso,

descrevo a história da criação da freguesia de Nossa Senhora da Palma, padroeira do Município.

Conta Raimundo Girão (1983) que, por volta de 1785, através de Alvará, foi oficializado o orácu-

lo. O autor escreve que, conforme reza a tradição, índios Canindés e Jenipapos aldeados na serra

da Palma em Quix adá, na fazenda denominada Frade, devido ao assassinato de um frade, encon-

traram a imagem de Nossa Senhora, daí aderindo a denominação de Nossa Senhora da Palma. Os

índios Jenipapos e Canindés vinham sendo removidos do sítio Banabuiú, sertão central, para

10 compor a quantidade de casais necessários para criação da vila Monte-Mor-o-Novo d’ América .

IBGE. Mapa d o Município 5º volume p.92 9 10 GIRÃO, Raimundo. Os Municípios Cearenses e seus distritos. Instituto do Ceará. Fortaleza-Ce. 1983.

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Figura: 05 – Nossa Senhora d a Palma Fonte: Coleção descu-

bra o Ceará Ano: s/d

A Igreja matriz foi construída provavelmente em 1784 em homenagem a Nossa Senhora

da Palma. Em estilo barroco, apresenta duas torres imponentes, um altar principal que compõe a

Capela-Mor, dois altares e púlpitos nas laterais, onde os fiéis acendem velas, várias pinturas de

santos e, principalmente, no altar principal, após ter sofrido muitas reformas e alter ações, uma

imagem de Nossa Senhora da Palma de 1,50m do ada por d. Mar garida Soares Arruda, esposa do

irmão do comendador, Jeremias Arruda, após mais uma reforma em 1918. Veja foto:

Figura 06 – Igreja de Nossa Senhora da Palma Fonte: Coleção Descubra o Ceará

Ano: 1997

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Destacamos, também, o sino doado pelo capitão Miguel de Arruda, e o relógio trazido da

11 França em 1903 por Alfredo Dutra, intermediado por Jeremias Arruda . A importância dessa

obra arquitetônica está no fato de ela representar - além da tradição católica, inculcada no povo -

a hierarquia, a disciplina, a obediência ao poder, começando com a sensação de onipresença que

a Igreja projeta na paisagem urbana, pois, quando observada do topo d e uma montanha próxima,

fica no centro do território da municipalidade, e seu projeto define o trajeto das ruas a partir do

local em que foi construída. Entretanto, o que mais nos chamou atenção não foram as pretensões

arquitetônicas portuguesas, mas, sim, a necessidade de os Arruda terem presentes na Igreja, entre

as relíquias sagradas, objetos doados pela família, o que nos parece atitude de auto-afirmação

perante o povo daquela localidade. Configura-se para nós, portanto, como a construção da trajetó-

ria de influência da família na tradição religiosa da cidade.

Outra Igreja importante no que se refere ao respeito à hierarquia é a que homenageia San-

ta Luzia, localizada em outro ponto da cidade e inaugurada no dia 07 de setembro de 1879. Fa-

mosa por abrigar os fiéis mais humildes, por isso, é a Igreja que aparentemente demonstra isola-

mento, esquecimento por parte das autoridades locais. Mas, nem por isso, desmerece apresenta-

ção. Com o mesmo estilo arquitetônico da Igreja Matriz, possui também duas torres imponentes,

o sino e a imagem da santa anfitriã. Entretanto o tamanho e a área de construção são bem meno-

res do que a área da Igreja Matriz. Veja foto:

Figura: 07 – Igreja de Santa Lu- zia Fonte: Coleção Conhecen-

do o Ceará Ano: 1997

ARRUDA, Olintho. Co mendador Ananias Arruda: um exemplo de vida cristã, política e social. Baturité, 200 111

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Outros monumentos religiosos ou laicos representam o ambiente ou cenário em que se

fomentaram as tramas políticas em Baturité,as quais, nas décadas d e 1930 e 1940, serviram co-

mo conteúdo para tensões entre os membros das elites que defendiam o projeto de romanização

ou o projeto de racionalização, que analisaremos no correr deste trabalho. Todo cenário apresen-

ta a característica de austeridade da fé católica, mesmo durante a fase áurea da econ omia baturi-

teense. Entre Igrejas e prédios públicos, até mesmo no Prédio da Cultura, erguido em homena-

gem ao ato de libertação dos escravos em Baturité e localizado atualmente ao lado da Prefeitura

Municipal (Palácio Entre Rios), esta característica se fazia presente.

Figura: 08 - Prédio da Prefeitura Munici- pal Fonte: SEMACE Ano: 1997

Mesmo o Pelourinho, símbolo da fundação d a cidade, fincado em frente a Igreja Matriz e

Prefeitura do município, lembra o tempo em que os negros e índios escravizados eram surrados

pelos atos de insubordinação às autoridades eclesiásticas e políticas.

Essa descrição de Baturité foi necessária para localizarmos o espaço geo gráfico em que a

família Arruda se instalou e, também, demonstr ar o quanto a disciplina da religião católica está

presente na vida dos baturiteenses. Da Igreja Matriz até a Igreja Santa Luzia, há uma rua denomi-

nada 7 de setembro, hoje, a principal rua da cidade. “Ricos” moram próximos à Igreja Matriz e

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trabalham em comércios próximos à Igreja Santa Luzia. Nas décadas de 30 e 40 do século passa-

do, metade desse trajeto – o que fica entre as duas Igrejas - era composta por propriedades resi-

denciais e de comércio da família Arruda, que, logo depois, passaram a propriedade particular de

Ananias Ar ruda, fato que será melhor explicado nas entrevistas do capítulo 05. Abaixo, foto da

rua 7 de setembro na década de 1930:

Figura 09. Baturité década de 1930 Fonte: Clemente Olintho Arruda.

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Capítulo 02

DOMINAÇÃO TRADICIONAL: TRADIÇÃO, ADMINISTRAÇÃO E LITURGIA.

Buscamos entender a dominação tradicional no Nordeste brasileiro à luz do pensamento

weberiano e investigamos a trajetória política de Ananias Arruda, em Baturité, durante as déca-

das de 1930 e 1940 como material empírico.

Compreendi que a expressão “ reprodução do poder ” envolve, entre outros fatores, os

fenômenos d a “obediência” e da “cumplicidade”, exteriorizados como sentimentos de piedade e

de lealdade, as quais, em tese, legitimam o mando. Essas características podem ser tomadas como

práticas consideradas “coronelistas”, o que facilita a investigação de como se dava a obediência e

o mando no sertão.

Estamos ciente das distâncias histórico-contextuais e ideológicas da analogia que fazemos

entre a categoria sociológica weberiana e nosso objeto de estudo, acreditando, porém, na aproxi-

mação que há entre alguns atributos presentes em ambos.

Weber analisou grandes impérios e nações e viveu em um contexto de guerras e disputas

imperialistas entre nações desenvolvidas, o que influenciou em seu pensamento como cientista.

Sua educação puritana lhe deu visão pragmática das ações políticas. Consideramos que a produ-

ção intelectual de Web er, por ser flex ível, possibilita o entendimento de contextos histórico-

sociológicos diversos. Apesar das categorias weberianas terem sido pensadas para tornar inteligí-

vel a realidade da Alemanha e da Europa, seu método de análise, ao considerar as causalidades,

permite a compreensão tanto do contexto internacional como de uma pequena comunidade no

interior do Ceará.

Weber defendeu a hipótese de que, para a realização de um trab alho de inv estigação cien-

tífica nas ciências sociais, deve-se, a priori, investigar a causalidade histórica e sociológica dos

fenômenos. Isto supõe que ele não pré-determino u o uso exclusivo das suas categorias ao contex-

to alemão. A consciência histórica do autor o fez buscar as causalidades mais remotas dos fenô-

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menos, o que me permitiu usar, sem receio, o conteúdo da sua teoria fazendo os acréscimos ou

12 omissões que a realidade e o tempo exigiram .

O valor fundamental da teoria weberiana para nosso trabalho foi o conceito de dominação,

expresso de diversos modos. Primeiro, como força que impulsiona as tensões entre os agrupa-

mentos políticos. Aron(2002), estudioso e crítico do pensamento weberiano, afirma “ poder é de-

finido simplesmente como a probabilidade de um ator impor sua vontade a outro, mesmo contra

a resistência deste”. (p.806)

Segundo Aron(2002) o poder se reproduz sem considerar a possibilidade de resistência,

nega-se a aceitar a fr agilidade. A violência física, outra forma de exercício do poder, pode até ser

utilizada como meio para impor as vontades do detentor do mando. Essa onipotência do poder o

transforma em algo abstrato, impossível de ser concretizado na plenitude por qualquer agrupa-

mento político. Por isso, Weber desenvolve a argumentação de que existem, entre os agrupamen-

tos políticos, disputas pelo poder, mas, que, na verdade, o máx imo que esses agrupamentos con-

seguem é manifestar modos variados de possíveis concretizações dessa força. Dessa forma, a

dominação, categoria fundamental da minha base teórica, emerge como uma das manifestações

13 do processo de reprodução do poder :

Por ‘dominação’ compreenderemos, então, aqui, uma situação de fato , em q ue uma vontade manifesta (“mandado”) do “dominador” ou dos “dominadores” quer influ- enciar as ações de outras pessoas (do “dominado” ou dos dominados”), e de fato as influencia de tal modo que estas ações, nu m grau socialmente relevante, se reali- zam como se os dominados tivessem feito do próprio conteúdo do mandado a má- xima de suas ações (“obediência”). (WEBER, 1999;191)

A dominação se manifesta como sendo uma forma de poder não hegemônico que não so-

brevive sem o princípio da obediência. Essa obediência ocorre a partir da superposição de dois

mecanismos, sempre em reconstrução, que possibilitam a reprodução do mando; a crença nos

princípios da lealdade e da piedade aparentemente representados pela suposta cumplicidade que

12 WEBER, Max. Ensaios de Sociolo gia. (org.) H.H. Gerth e C. Wright Mills. 5ª. Edição: Rio de Janeiro; LTC edito- ra, 2002. 13 WEBER, Max. Economia e Sociedade. Tradução Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. Brasília, DF: Ed. Uni- versidade de Brasília, 1999. Vol. 02.

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existe entre “dominador” e “dominados”. A dominação por ser transitória se manifesta no caráter

14 onipresente da cumplicidade e acontece de forma dissimulada aos agrupamentos políticos que,

ao conquistarem-na por determinado tempo, transformam-se em agrup amentos políticos hegemô-

nicos. Entretanto, apenas um agrupamento político, de cada vez e por um período determinado,

consegue a hegemonia transitória, independente d a sua composição, e é a ideologia desse agru-

pamento que determina a parte legal do que venha a ser a dominação.

(...)O presidente ou o primeiro-ministro, a quem o poder é confiado pelo corpo e- leitoral por um período determinado, tem o encargo de cuidar do s negócios da Na- ção e de zelar p ela observância da lei. E ninguém lhe co ntesta o direito de exercer tal função. Sem dúvida, a oposição pode criticar a escolha de seus objetivos e a maneira p or que emprega a sua auto ridade: não questiona, porém, uma autoridade cujo princípio ela reconheceu (LEBRUN, 1981;15)

O Estado moderno é um aparato burocrático legal de dominação que monopoliza, nos li-

mites do seu território, todas as formas de poder – até a violência física se legitima como instru-

mento de domínio - e, com esse objetivo, reúne nas mãos dos dirigentes os meios materiais de

gestão (Weber, 2002). Entretanto, na formação social capitalista, em que predomina o agrupa-

mento político burguês controlador do Estado, a aparência do mando contradiz o que é tradicio-

nal. A alternativa é a sociedade civil mobilizar agrupamentos políticos excluídos do Estado para

estimularem a participação efetiva nas disputas pela ocupação de espaços capazes de modificar as

formas do mando. Tendo em vista os choques de interesses que emergem pela descrença nas

promessas da política liberal burguesa não concretizadas.

Essa mobilização dos setores considerados excluídos da dinâmica da reprodução do poder

ocorre através de um processo lento e contínuo de convencimento dos membros a participarem de

alguma forma das estratégias políticas e do mer cado como agentes críticos herdeiros dos direitos

prometidos pelo Estado- Nação. Essa articulação da sociedade civil fragiliza a perpetuação do

mando e causa a rotatividade dos agentes no exercício do poder público.

14 Por agrupamento político entenda-se toda congregação de indivíduos que, mesmo não tendo diretamente o projeto

para conquista da hegemonia do poder estatal, possui a força concreta para mobilização d os pares em eventuais cri- ses. (WEBER, Max. Ciências e Política duas vocações. Tradução Leônid as Hegenerg e Octany Silveira da Mota. São Paulo, SP; Ed . Cultrix.

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No livro Ciência e Política - duas vocações , esta questão surge a partir da idéia de que os

agrupamentos políticos se organizam em torno da disputa pelo mando. Weber propõe que esse

conflito resume-se em quem teria o “monopólio” do uso da “violência”, legitimada pelos três

princípios que viabilizam a dominação: tradição, carisma e legalidade(leis). Na sociedade mo-

derna, essa legitimidade da violência se transferiu completamente para o Estado. Portanto, a dis-

puta entre os grupos sociais limita-se à busca de participação nas instâncias do Estado.

A realidade da qual Weber extraiu o conteúdo para elaboração da categoria dominação

tradicional foi o Leste da Alemanha, onde predominavam os Junkers , grupo abastado de nobres

com características de dominação tradicional.

Há contrastes acentuados na estrutura social rural da Alemanha que nenhum via- jante deixa de observar: no Oeste e no Sul, o aldeamento rural torna-se mais denso, predominam o s pequenos agricultores, e a cultura torna-se mais dispersa e variada. Quando mais para o leste avançamos, especialmente para o nordeste, tanto mais extensos são os campos de cereais, beterrabas e batatas, tanto mais predomina o cultivo intensivo e tanto mais uma grande classe rural de trabalhadores rurais sem propriedades se opõe à aristocracia agrária. Essa diferença é de grande importância. (WEBER, 2002;259)

Mesmo considerando os aspectos que distanciam a Alemanha do Brasil, a citação descre-

ve características da dominação tradicional weberiana próxima do que os autores brasileiros de-

nominam atributos ou práticas “coronelistas”: a distribuição desigual da terra entre trabalhadores

rurais e oligarquia agrária. Em ambos, Alemanh a ou Brasil, esse fenômeno diferencia os centros

dinâmicos dos centros considerados atrasados. Segundo Weber, esta é uma das causas da continu-

idade da dominação tradicional, ainda que no restante do país se sobressaia a dominação legal.

Não é po ssível falar de uma “luta” verdadeira entre o capitalismo e o poder d a in- fluência histórica, neste caso de conflito crescente entre o capital e a p ropriedade da terra. Trata-se, em parte, de um processo de seleção e em parte de um processo de co rrupção. Predominam condições muito diferentes não só onde uma multid ão não-organizada de campo neses se vê impotente nas cadeias das entidades financei- ras das cidades, mas também quando há uma camada aristocrática acima dos cam- poneses, que não luta apenas pela sua existência econômica, mas também pela po- sição social que, durante séculos, lhe foi concedida. Isso acontece especialmente onde essa aristocracia não está presa ao país por interesse exclusivamente financei-

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ros, como dono de terras inglês, ou apenas pelos interesses recreativos e esportivos, mas quando os seus representantes estão envo lvidos, como agriculto res, no conflito econômico e têm ligação íntima com o país. Os efeitos d issolventes do capitalismo são , co m isso, aumentados. Como a propriedade da terra dá posição social, os pre- ços das grandes propriedades superam o valo r de sua p rodutividade. Byron pergun- tava do senhor de terras: ‘Por que Deus na sua ira o criou? A resposta é: ‘Rendas’! ‘Rendas’! ‘Rendas’! E na verdade as rendas são a base econômica de todas as aris- tocracias que necessitam de uma renda não-proveniente do trabalho para a sua e- xistência. Mas precisamente p orque o Junker prussiano despreza a posse urbana do dinheiro, o capitalismo o transforma n um devedor. Uma tensão cada vez maior en- tre a cidade e o campo resulta dessa situação (WEBER, 2002;257)

Na verdade, esta longa citação de Weber é útil na medida em que comprova o caráter ru-

ral da dominação tradicional, o que aponta a possibilidade de explicarmos a semelhança que e-

xiste com o mando no sertão brasileiro.

Outra semelhança a ser observada é o confronto entre as antigas relações de produção e a

penetração paulatina das relações capitalistas modernas que, em muitos casos, provocaram inde-

finições no processo de reprodução do mando. O velho e o novo se definindo dentro dos seus

limites.

No que se refere aos po ntos que poderiam distanciar as duas nações, ocorre quando os

Junkers impuseram sua força política e preservaram suas características de sociedade patrimoni-

al, enquanto, que, no Brasil, a oligarquia agrária teve que se submeter ao capitalista urbano-

industrial para sobreviver. As próprias instituições representativas da Nova República, segundo

Leal, se apresentaram de forma avançada demais para o conjunto de hábitos e costumes atrelados

à tradição r eligiosa transmitida de geração a geração no meio rural e defendida pelo grupo aristo-

crático do Brasil.

Dessa forma, a adaptação da oligarquia agrária aos ditames do modelo do capitalismo in-

dustrial brasileiro deu a idéia de atraso no país. Daí, o aparecimento da idéia de que, na região do

Nordeste brasileiro, o processo de industrialização assumiu um caráter “ tardio ”, segundo defen-

dem estudiosos como Lemenhe (1996).

Já Alencar (2006), em sua tese de doutoramento “Virgílio Távora: ‘coronel’ modernizador

do Ceará”, demonstra uma certa versatilidade d as elites locais ao perceberem a necessidade de

adquirir outra roupagem para as práticas tradicionais, haja vista as mudanças ocorridas com o

projeto de modernização nacional. Isso não significa que as elites cearenses se tornaram moder-

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nas no sentido de abandonar práticas “coronelistas”, mas, que, a fragilidade do mando devido aos

problemas econômicos, infra-estruturais e geopolíticos, forçaram-nas a buscar alternativas para

continuar no poder, porém adotando medidas que demonstrassem seu compromisso com o novo

conteúdo progressista .

Descrevemos, a seguir, algumas características da dominação tradicional para explicar as

práticas de Ananias Arruda legitimadas pela tradição religiosa, tentando mostrar possíveis apro-

ximações entre o Nordeste brasileiro e o mando na Alemanha.

Três características da dominação tradicional nos chamaram atenção:

O poder ‘santificador’ da tradição. Ao lado da resistência puramente efetiva, muito forte por toda parte, contra tudo que não é habitual como tal, atua na reprovação de eventuais inovações do sen hor da casa por parte do mundo circundante e seu medo de poderes religiosos, os quais por toda parte protegem a tradição e as relações de piedade(p.238). As relações de ad ministração patrimoniais(...)A obtenção de um domínio ‘político’, isto é, do domínio de um senhor sobre outros senhores, não submetidos ao poder doméstico (...)Os dois poderes especificamente políticos, do nosso ponto de vista, o poder militar e o judicial, são exercidos pelo senhor ilimitadamente sobre aqueles que lhe estão patrimonialmente submetidos, como partes integrantes do pod er do- méstico(p.240) (...) Particularmente desenvolvida, (...) está nele a satisfação litúrgica das necessi- dades políticas e econômicas do senhor (WEBER,1999; 248)

Essas três características da dominação tradicional podem ser encontradas no mando no

Nordeste brasileiro. São identificadas no fenômeno da obediência traduzida na cumplicidade en-

tre “dominador” e “dominados”, forjadas pelos sentimentos de piedade do senhor e de lealdade

do servo. Essa teia de relações amplia o universo da ação e controle do dominador, que vai do

pequeno espaço da família ou clã a um território maior, num gr ande domínio de terras conquista-

do politicamente pelo patriarca e parentela. O senhor dominador, dessa forma, se torna um admi-

nistrador de um complexo político. Agora a obediência é garantida quase que exclusivamente

pela tradição. No caso de Baturité, religiosa e litúrgica. Representada pelas obrigações e regras

impostas pela austeridade católica (o primeiro, como princípio da autoridade; o segundo, de or-

ganização da relação de mando).

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A aproximação dos atributos de uma realidade ainda não inteligível aos conceitos sólidos

de estudos aprofundados de realidades ex ógenas, requer cuidado na seleção, sistematização e

análises de idéias. Portanto, comparar atributos da dominação tradicional à idéia básica de domi-

nação p ela tradição religiosa, no caso do Nordeste, faz-nos certos de que esses três pilares d e es-

truturação da reprodução do mando, segundo Weber, é boa escolha como referencial teórico.

Descrevemos esses pilares como forma de entender as origens d a obediência para o do-

mínio político na administração de um território ex trapatrimonial, mas não pretendemos analisar

a origem da propriedade privada à luz de Weber, porque este teórico escreve sobre a realidade de

principados modernos, grandes nações e impérios, que concebiam a propriedade da terra como

bem do soberano, e nós escrevemos sobre uma pequena região em que o poder se reproduz “ aos

moldes ” da dominação tradicional weberiana. Por isso, em muitos casos, n ão posso contar com a

teoria weberiana na íntegra.

Principalmente no que se refere às relações de propriedade da terra. No caso do Brasil a

política se reproduz atr avés de um complexo sistema de alianças entr e proprietários de terras,

afilhados, agregados políticos e/ou ainda não possuidores de propriedades rurais, que, nem por

isso, comprometem a afirmação de que a propriedade da terr a seria fundamental para o exercício

do mando na administração extrapatrimonial no Brasil, algo que Weber percebe com muita caute-

la.

Weber (2002) não descarta a aliança entre príncipes, proprietários de domínios territoriais

e outros senhores de terra, mas prefere desenvolver a idéia de submissão de todos ao poder cen-

tral através da obediên cia. Não gostariamos de incluir discussões dessa ordem neste momento do

trabalho. As relações de propriedade são tratadas de forma muito diferenciada entr e a base con-

ceitual weberiana e a base que desenvolvemos nessa pesquisa, ainda que ambas serviram-nos

como correlação, uma vez que são tidas como mecanismos semelhantes de reprodução do mando.

Dessa forma, por tradição, entendemos o conjunto de hábitos, costumes e crenças que

determinam, com certo grau de autonomia, atitudes dos indivíduos, independentemente do agru-

pamento político ao qual pertencem. Essa autonomia da tradição confere um caráter d e santidade,

de impossibilidade da mudança no conteúdo, de inviolabilidade do que fora predeterminado pelos

antepassados.

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(...) portanto, alguma co isa ao submetid o, não juridicamente, mas de acordo co m o costume. Sobretudo proteção de perigos externos e ajuda em caso de necessida- de(...) De acordo com o costume, o submetido deve ao senho r seu apoio, com todos os meios disponíveis(WEBER, 1999; 238)

È a lealdade que, juntamente com a piedade, fundamenta a tradição. A obediência ao con-

teúdo santificador da tradição se volta para o sentimento de ‘piedade’, sentimento esse recíproco

entre senhor e súditos. Mas ao senhor cabe a piedade, que, em troca, exige a lealdade dos subal-

ternos. Essa troca apresenta um certo grau de evolução no exercício da dominação.

O poder doméstico descentralizado mediante a cessão de terras e eventualmente de utensílio s a filhos o u o utros d ependentes da comunidade doméstica, queremos chamar de dominação patrimo nial”. (WEBER, 1999; 238)

Essa noção d e submissão ao senhor, inspirada nos princípios da piedade e da lealdade, es-

tá presente nas duas formas da dominação tradicional idealizadas por Weber: dominação tradi-

cional patriarcal e patrimonial. A segund a forma se fundamenta n a noção de administração de um

grande complexo político, ao contrário da primeira, que se restringe ao clã, à família . A coexis-

tência entre essas duas formas de dominação provocava a idéia equivocada de que o espaço pú-

blico estatal tinha por dever a satisfação dos interesses p rivados do agrupamento político hege-

mônico.

O patrimonialismo passa a adotar imperceptivelmente a rotina de uma administra- ção burocrática, com um sistema regulamentado de contribuições em dinheiro. En - quanto a antiga qualidade distintiva da ‘liberdade’ era a ausência do dever tributá- rio regular, deduzível apenas de relaçõ es patrimoniais, e o caráter voluntário dos serviços prestados ao senhor, com o desenvolvimento pleno do poder senhorial, também os súditos ‘livres’, isto é, não submetidos ao poder senhorial do soberano, têm que contribuir, mediante prestações litúrgicas ou co m caráter de impostos, para pagar as pugnas e a representação deste. A diferença entre as duas categorias mani- festa-se então, em regra, somente na limitação mais estreita e mais firme daquelas prestações e em certas garantias jurídicas para os súditos ‘livres’, isto é, apenas po- lítico. (WEBER, 1999; 241)

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Na dominação tradicional patrimonial, o domínio evoluiu da esfera privada para a esfera

pública, incluindo, como súditos políticos, todos e quaisquer indivíduos que estivessem nos terri-

tórios do senhor. O modo de expressar o mando se modifica com a complexidade do exercício do

poder político.

Entendemos por p olítica apenas a direção do agrupamento político hoje denomina- do ‘Estado’ ou a influência que se exerce em tal sentido. O que é um Estado? Sociologicamente o Estado não se deixa definir a não ser pelo esp ecífico meio que lhe é peculiar, tal co mo é peculiar a todo outro agrupamento político, ou seja, o uso da coação física. O Estado consiste em uma relação de dominação do ho mem sobre o homem, fun- dada no instrumento da violência legítima(...) O Estado só pode existir, portanto, sob cond ição de q ue os homens d ominad os se sub metam à autoridade continua- mente reivindicada pelos dominadores.(WEBER, 1999; 55 -56-57)

A evolução da dominação tradicional patriarcal para a patrimonial mostra um processo

complexo de criação de novas relações de poder desconhecidas no estágio anterior. A noção de

mando se desloca simplesmente dos princípios da piedade e lealdade e se amplia, incluindo o

conjunto das relações que tem, além da tradição, a administração como elementos diferenciado-

res.

A administração aparece como sinalizadora de q ue o complexo político evoluiu nas rela-

ções político-sociais e que o chefe político teria que se adequar aos novos ditames da dominação

do espaço público. Administrar, assim, exige o manuseio das normas da legalidade do Estado

burocrático moderno, sem perder de vista também a continuidade do poder litúrgico ampliado e

herdado da dominação tradicional patriarcal.

A liturgia repr esenta o caráter sagrado dos rituais que devem ser seguidos por súditos e

senhores na vida social, na política e nas relações de trab alho. São os rituais que adquiriram auto-

nomia para impor a obediência à autoridade, mesmo que esta não possua o prestígio necessário,

exigido pela tradição, para o exercício do mando. O caráter litúrgico é representado pela obriga-

toriedade da repetição de atos ligados à obediência, principalmente realizados através de presta-

ções litúrgicas, numa espécie de obrigatoried ade subjetiva imposta. “C riação de associações res-

ponsáveis heterônomas e muitas vezes heterocéfalas. (...) respondem perante o príncipe pelas

obrigações de todos os indivíduos”. (WEBER, 1999; 248)

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Entendemos essas associações como a capacidade dos agrupamentos políticos de se mani-

festarem subjetivamente na obrigatoriedade da obediência aos rituais políticos e econômicos sem

exigir do senhor a imposição da força para seu cumprimento. Não as compreendemos como as-

sociações de fato. Muitas vezes, os membros sujeitos às obrigações litúrgicas nem percebem o

caráter violento e agem como se não ex istissem imposições. São as cerimônias políticas, a obedi-

ência à hierarquia, o pagamento de impostos dos quais não percebemos diretamente a utilidade e

aplicabilidade, os privilégios reserv ados a alguns indivíduos próximos do senhor, a nobreza por

honra, o significado do aparato burocrático e militar, o próprio funcionamento do Estado que, em

suma, representam o conjunto ritualístico que exige obediência de todos e que entendemos por

caráter litúrgico da dominação tradicional patrimonial.

Recorreremos sempre à tradição, à administração e à liturgia da dominação tradicional

como fontes de inspiração para pensar sobre as características da obediência que estruturam a

base do mando no Nordeste brasileiro . Por isso, de início, consideramos que o caráter santifica-

dor da tradição inspira pensar um tipo político que tenha sido herança dos sentimentos de piedade

e lealdade, sólidos e tr ansferidos do país colonizador e impostos através das práticas religiosas e

políticas durante o processo de colonização pelo qual o Brasil passou.

Gilberto Freyre(1996) traduz essa transferência em forma de sadismo e masoquismo:

Por outro lado, a tradição conservadora no Brasil sempre se tem sustentado do sa- dismo do mando, disfarçado em ‘princípio de Autoridade’ ou ‘defesa da Ordem’. Entre essa d uas místicas – a da Ordem e a da Liberdade, a da Autoridade e a da Democracia – é que se vem equilibrando entre nós a vida política, precocemente saída do regime de senhores e escravos. Na verdade, o equilíbrio continua a ser en- tre as realidades tradicionais e profundas: sadistas e masoquistas, senhores e escra- vos, doutores e analfabetos, indivíduos de cultura predominantemente européia e outros de cultura principalmente africana e ameríndia(P. 52)

O efeito santificador da tradição transforma submissão em lealdade, opressão em práticas

legítimas de piedade, tudo inserido num contexto em que prevalece a autoridade do senhor como

a base fortificadora da ordem e do progresso que se espera adquirir n a terra a partir da obediência

dos súditos. Esse princípio da autorid ade, contido na tradição, fora motivo de disputas históricas

entre agrupamentos políticos, principalmente, entre o Estado e a Igreja.

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A mística litúrgica da obediência ao conjunto de ritos sagrados da política, da economia e

da religião, ou quando se refere à Igreja, da fé, foi mobilizada nos momentos em que a disputa

pelo mando chegava aos extremos. Exemplo claro foi o momento em que o Estado e a Igreja tive-

ram que se afastar em defesa de interesses próprios.

No Ceará, o auge desse conflito seria alcançad o co m a fundação da Academia Francesa, perfilhando o surto cientificista, e a Reação Católica, que p erfiava por re- lançar argumentos extraídos do velho pensamento teológico, redimensionados a ní- veis da anunciação tradicionalista, buscando justificar a preservação de privilégios desfrutados pela Igreja e visível em ‘extensos setores’ como o clero, instituto de ensino médio e superior, imprensa, família’. De modo geral, posicionava-se a Rea- ção Católica contra o liberalismo, a Revolução Francesa, o Capitalismo, a Ciência Moderna, a igualdade antiindividualista, a Reforma Protestante. (PARENTE, 2000; 82)

Enfim, a tradição que legitimou a autoridade conservadora impôs o sentimento de lealda-

de, pensado para um contexto estável do reinado das obrigações litúrgicas que equivale a um dos

fundamentos do mando .

No que diz respeito à administração “aos moldes” da dominação tradicional, as relações

de mando assumiram um car áter artificial no sentido de que se descentralizaram e incluíram re-

presentantes da burocracia, trabalhando em proveito dos interesses do senhor. E, juntamente com

este, elaboraram práticas para defender os interesses pessoais do senhor e de seus correligionário s

como sendo interesses sociais da coletividade emanados da lei. O Estado se transformou, sem o

mínimo pudor, na instância que legitima os interesses particulares do grupo político hegemônico

através da legislação e das instituições representativas, conforme diz o historiador Ser gio Buar-

que de Holanda:

A separação da política e da vida social (dizia) atingiu, em nossa pátria, o máximo de distância. À força de alheação da realidade a política chegou ao cúmulo do ab- surdo, constituindo em meio de nossa nacio nalidade nova, o nde todos os elementos se propunham a impulsionar e fomentar um surto social robusto e progressivo, uma classe artificial, verdadeira superfetação, ingênua e francamente estranha a todo s os interesses, onde, quase sempre com a maior boa-fé, o brilho d as fórmulas e o calor das imagens não passam de pretextos para as lutas de conquistas e a conservação das posições. (HOLANDA, 2002; 1075)

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Na reprodução do mando, os interesses sociais são transformados em projetos burocráti-

cos engavetados após as conquistas e vitórias eleitorais. Os desejos dos súditos são transformados

em motivadores para práticas políticas, sempre mais importantes do que o atendimento das ne-

cessidades populares.

Na política nordestina, as instâncias de poder eram controladas por indivíduos suposta-

mente preparados pela tradição. Pessoas respeitadas, porque eram católicas, possuíam base eco-

nômica sólida ou ainda algumas intelectualizadas, todas, não dispensavam o aparato administrati-

vo, exigente quanto às obrigações litúrgicas. Dessa forma, a política se tornou assunto restrito que

dispensa a participação popular.

O tipo que estudo se insere nesse perfil e ainda agrega o caráter cristão à sua capacidade

de mando. Cristão no sentido de que, para a configuração das suas práticas de poder, teve uma

formação na fé católica.

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Capítulo 03

UM MOMENTO DE “TENSÕES” E ACORDOS ENTRE IGREJA E ESTADO NA

PERSPECTIVA DA CIÊNCIA POLÍTICA

Objetivamos refletir sobr e algumas práticas “clientelistas” vislumbradas no planejamento

das políticas públicas durante os governos das décadas de 1930 e 1940 no Ceará, período em que

a racionalidade técnico-científica foi exigida nas relações de produção. Por conta dessa raciona-

lização , novos nortes foram dados às decisões político-administrativas e novas relações de traba-

lho estabelecidas de modo que se conquistassem metas que visavam o progresso da sociedade,

mas não sem controvérsias. Em meio a tudo isso, houve o sur gimento da contradição e do anta-

gonismo entre as elites que denunciaram a falta de preparo para elaboração da coesão estadual

que não pôde existir sem uma consciência homogênea para o mando, donde originou as tensões

identificadas entre o Estado e a Igreja nesse período.

A década de 1930 foi o momento da expansão das atividades industriais brasileiras. Até

então, o país se configurava como o grande celeiro produtor de mercadorias primárias destinadas

à exportação. Percebemos que esta década representou o período em que os investimentos feitos

anteriormente na produção agrícola nacional culminaram em lucratividade direcionada para o

setor industrial devido uma série de fatores. Entre esses fatores, há que se destacar a crise inter-

nacional na produção, determinada pela ocorrência da Primeira Guerra Mundial, pivô do surto

inicial da indústria de substituição aos bens industrializados estrangeiros.

Nos comentários de Parente (1999), todo investimento na agricultura realizado na segun-

da metade do século XIX foi direcionado para a produção de mercadorias primárias que direta-

mente atenderam às necessidades da indústria internacional e, logo depois, nacional, em substitu-

ição aos importados.

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Durante a Primeira República (1889-1930), os Estados que mais prosperaram fo- ram São Paulo e o Rio de Janeiro, apesar do processo de industrialização ter alcançado, embora em menores e variados graus, outras paragens da República Brasileira (PAREN- TE, 1999; 55 )

Isso deixa claro que foi no final do século XIX que as elites brasileiras perceberam o

quanto a atividade industrial era promissora para a economia e, imediatamente, redimensionaram

os investimentos para setores da agricultura que puderam dar sustentabilidade ao fornecimento de

matérias-primas à incipiente indústria nacional.

Nessas circunstâncias, o Ceará investiu no algodão, produto de alto valor no mercado in-

ternacional.

(...)Esse produto prospera quando da Guerra de Secessão (1 861-1870), nos Esta- dos Unidos da América. Com a desorganização de sua economia ocasionada por este co n- flito interno, sua produção de algodão para a expo rtação d ecai, passando este produto a ser solicitado de outros locais ( PARENTE, 1999; 62)

15 Dessa forma, fortalecia-se a participação cearense no mercado intern acional e as elites

locais passaram a ter contato com idéias sobre progresso vivenciadas a partir do desenvolvimento

industrial europeu.

(...)Com a chegada de ingleses em busca do algodão vieram também idéias pró- prias da modernid ade que a Igreja combatia. Segundo José Bonifácio de Sousa, o po siti- vismo de Co mte, o darwinismo e o pensamento de Spencer, além de Hegel e Stuart Mill, eram algu mas das idéias assimiladas pelas gerações intelectuais do período (PARENTE, 2000; 80).

15 Parente (2000) classifica de elite todo grupo que ocupa cargos públicos administrativos sucessíveis à dinâmica damudança interna de quem exerce o poder.

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Nesse novo contexto econômico, o Estado do Ceará se prep arou par a vivenciar a ocorrên-

cia de tensões entre o poder da tradição religiosa, instaurada há séculos no sertão e que não estava

susceptível a mudanças, e as idéias de progresso, emergentes do liberalismo industrial internacio-

nal, que contradiziam as “verdades” dogmáticas e solidificadas há tempos no Ceará.

Isso significou uma “pseudo” cisão entre alguns membros da elite estadual a partir da dé-

cada de 1930, deixando aparecer evidências de tensões entre membros da Igreja Católica e políti-

cos progressistas atrelados ao Estado. Na Igr eja, representantes da tradição religiosa se impuse-

ram frente às pretensões do Estado de racionalizar e colocaram em prática sua austeridade religi-

osa também na política, numa tentativa de romanização da sociedade. Dedicaram-se a preparar

membros da elite católica para atuarem no projeto político da Igr eja. Nesse momento, os mem-

bros da elite política, atrelados ao Estado, demonstraram seu caráter enfático de querer acompa-

nhar a dinâmica internacional de prevalência das idéias liberais ligadas ao positivismo, darwinis-

mo e evolucionismo e não abriram mão da disputa pelo poder, provocando rivalidades entre os

tradicionais paradigmas da romanização e as idéias de progresso da racionalização .

Esta “pseudo” tensão originou um cenário político-ideológico que teve como sustentabi-

lidade a prosperidade econômica do Estado.

O algodão no Ceará cresceu em volume de exportação na década de 30 junta- mente com a carnaúba, peles e couros, milho e a mamona. A população pastoril aumen - tou. A estrada de ferro alcançara a região caririense, um pólo econômico significativo. As rodovias-tronco faziam ligação de Fortaleza a Sobral e já se pretendia alcançar o baixo Jaguaribe. A serra de Baturité, por outra boa rodagem, escoava os produtos agrícolas para Fo rtaleza. O mesmo acontecia co m Maranguape. Os portos de Camocim e Aracati, com estradas agora precárias, tendem a deslocar as atividades para o Mucuripe, em Fortaleza, que recebeu uma reforma e absorveu o movimento de circulação de mercadorias que, an - teriormente era efetuado através daq uele porto( PARENTE, 1999; 114)

Na verdade, o objetivo das elites era se colocarem como lideranças na articulação das po-

líticas públicas cearenses para serem intermediadoras dos interesses gerais da sociedade mediante

o governo federal. Elas fizeram dos pobres, dos retirantes, dos flagelados, dos agricultores e do s

vaqueiros os “centros das atenções”, instrumentos legitimadores dos seus discursos para que o

Estado financiasse p rojetos de assistência à pobreza, mas que, na verdade, funcionaram como

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fontes de recursos para o financiamento das obras que solidificaram as bases econômico-políticas

que sustentaram o poder no Estado...

Determinado a modernizar a economia e a sociedade sertanejas, o Estado construiu

obras hídricas, o rganizo u frentes de serviço, incentivou e subsidiou agroindústrias, criou perímetros irrigados, patrocinou cooperativas, d eterminou preços do produtor ao consu- midor, reduziu impostos, fixou plano s de safra, ind uziu ao uso de tecnologias, fez alian- ças, negociou, reprimiu…(Martins, 2000; 176)

Apesar de a pesquisadora estar se referindo ao contexto da década de 1970, a citação é

emblemática, pois nos leva às origens das ações do poder público ocorridas na década de 1930,

período em que a distribuição de recursos às elites políticas regionais era suplemento à política

das obras paliativas contra o atraso estrutural do país, cujo desfecho, logo depois, nas décadas

seguintes do século XX, resultou numa grande lista de obras públicas d esativadas, inacabadas ou

expropriadas do Estado e privatizadas por algum membro remanescente daquela elite.

(...) uma quantia considerável de investimentos estatais poderia ser canalizada para obras cada vez maiores de acumulação de água que pudessem absorver aquela mão-de- obra disp onível nos momentos de escassez de chuvas no semi-árido. Obras que, situadas no interior do Estado, atraiam os retirantes famintos – dispostos a aceitar qualquer servi- ço, por q ualquer salário, em q uaisq uer condiçõ es de trabalho – e formavam um escudo protetor em torno da capital, que ficaria, assim, livre de uma vez po r todas da “invasão” periódica daqueles que eram agora chamados de “flagelados” (Neves: 2000;89)

Dessa reflexão, retiramo s pontos de vista que devem ser considerados sobre o posiciona-

mento das elites cearenses. Primeiro, a sociedade rural sentia-se insegura mediante os efeitos so-

ciais da seca e se deixava orientar pelos chefes políticos que buscaram alternativas econômicas

para manter seu território e, conseqüentemente, manter os despossuídos sob seu mando. Apesar

de distante historicamente, as reflexões de CHANDLER (1980) ilustram esta idéia: “Embora as

secas trouxessem prejuízos a todos os proprietários da região, aqu eles que, abraçando a agricul-

tura, conseguiam, assim, uma base econômica mais sólida, escapavam com mais facilidade aos

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prejuízos provocados pelas estiagens (CHANDLER, 1980; 203)”. Assim conseguiam se impor na

disputa pelo mando local.

Segundo, as perd as das bases materiais da maior ia dos membros das elites, articuladoras

do mando, impediram a consolidação da hegemonia e as amedrontaram, pela conseqüente rotati-

vidade provocada no exercício do poder local. O resultado foi o fortalecimento das práticas de

mando conhecidas como “coronelistas”, fundamentadas no poder da tradição e/ou financiadas

pelo estado modernizador.

Qualquer fazendeiro, representante da província, político lo cal, ou outra pessoa de uma camada alta da comunidade que não tivesse o título de “doutor” – conferido àque- les que concluem um curso universitário e que somente poucas pessoas conseguiam no século XIX – normalmente podiam exibir um título da Guarda Nacio nal (CHANDLER, 1980; 56)

Se, por acaso, o chefe político não conseguisse oficialmente o título de “coronel”, conse-

guia-o por sua ascensão econômica, conquistada mediante a sobrevivência à calamidade social

das secas e por p rojetos financiados pelo Estado. A sociedad e o proclamava “coronel”, numa

espécie de demonstração do respeito e obediência ao chefe, “conveniência” política, pois os po-

bres sabiam que, fora dos domínios desse poder, a vida se tornaria quase impossível. Portanto, a

obediência era-lhes conveniente até certo ponto. Ademais, havia a necessidade de o próprio che-

fe político cultivar os sentimentos de lealdade e fidelidade para que a obediência tivesse continu-

idade.

A citação de CHANDLER (1980), exposta acima, apesar de se referir ao século XIX, é

significativa, pois localiza historicamente a origem do título de “co ronel”, honra que alguns che-

fes políticos do sertão nordestino ostentaram sem ter nenhuma ligação com a antiga guarda na-

cional, ou na atualidade, com o exército. Tal título se solidificou historicamente, tendo sido em-

pregado inicialmente no contexto da administração imperial brasileira, perdendo seu v alor no

contexto da história nacional, continuando, porém, sendo empregado aos indivíduos que não

tiveram nenhuma formação intelecto-formal das ciências, mas que tiveram domínios de grandes

áreas territoriais, áreas significativas para a continuidade do mando político nos Estados. Atual-

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mente, o “coronel” somente existe na história do imaginário popular e em alguns álbuns de famí-

lia de remanescentes de tais autoridades.

Voltando à temática principal, a prosperidade econômica marcada pela produção agrícola

no Ceará, no final do século XIX, culminou na industrialização do Estado, ainda na primeira

metade do século XX. E essa prosperidade não se restringiu apenas à produção de algodão, mui-

tas vezes, ameaçada pelas secas, mas foi auxiliada também pelo desenvolvimento dos rebanhos

de gado, pela produção de cereais e por outras matérias primas necessárias aos emergentes focos

de industrialização, importantes para o grande desenvolvimento vivido na década de 1930 no

país.

Nos anos de 1909, encontramos no Ceará as seguintes fábricas: Pompeu & Ir- mãos,(...) que produziam 200 peças de fazenda de algodão por dia, empregando 230 pessoas; Ceará industrial (...) pro duzindo 150 peças diárias, empregando 140 pessoas; Ernesto & Ribeiro, em Sobral, empregando 65 homens, 99 mulheres e 30 crianças; Pop ular aracatiense, empregando 180 pessoas; Po mpeu & Cia, empre- gando 300 operários; Dr. Thomas Pompeu fáb rica de redes, empregando 5 0 op erá- rios; E existiam mais oito fábricas médias e 25 pequenas, com apenas quatro teares. (...) Existiam aind a, em outros ramos, várias pequenas fábricas, como no ramo de alimentos: Santo Antô nio, p roduzindo massa, co m 11 homens trab alhando e uma mulher; Santa Isabel, com 16 empregados; (...) Existiam seis fábricas de cigarro s, destacando a Iracema; (...) Ainda três fábricas de chapéus; (...) Sete de sabão e ó- leo; duas de torrefação de café; duas de gelo; 17 p adarias; (...) Sete tipografias; du - as encadernadoras; 14 carpintarias e marcenarias; (...) 10 ourives e relojoeiros; 11 alfaiates; três marmoristas; quatro agências de leilões; três fundições; três casas de tipografia; quatro tinturarias; 11 restaurantes; uma casa de alugar carros; além de outras casas comerciais (PARENTE, 1999; 68-6 9)

Nesse cenário de prosperidade econômica estão inseridos os membros da elite que esta-

vam atrelados ao Estado e outros que estavam atrelados à Igreja. Gostaríamos de refletir sobre a

inserção do projeto de romanização a partir da imposição do projeto de racionalização do Esta-

do . Já que o consideramos como fonte motivadora de tensões e aumento das rivalidades entre os

membros das elites cearenses. Segundo Parente (2000), em estudos centrados em décadas bem

anteriores à década de 19 30, a Igreja Católica no Ceará se destacou por impor a dominação atra-

vés da tradição religiosa e por ser chefiada por bons administradores eclesiásticos que pretende-

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ram romanizar a fé cearense, aproveitando-se, para tanto, dos efeitos do surto de modernização

do Estado.

Essa proposta de romanização foi iniciada por Dom Manoel da Silva Gomes, apontado

como um dos grandes articuladores do grupo político católico que viria governar o Ceará por

algumas décadas. Parente (2000) confirma,

D. Manoel da Silva Gomes liderou uma elite, homogeneizada ideologicamente, para assumir os pontos estratégicos da divulgação da cultura e permanecer nos pontos estra- tégicos da política cearense. Essa administração estratégica tem início no ano seguinte de sua investida co mo bispo do Ceará. Era uma administração realizad a não apenas pelo cen- tralismo das decisões, mas pela descentralização espacial. Nessa época, o papa Bento XV elevou a diocese do Ceará à catego ria de arquidiocese, sendo d om Manoel Gomes o seu primeiro arcebispo. Ao mesmo tempo foram criadas duas outras dioceses que ficaram sob a jurisdição de Fortaleza como su fragâneas. A primeira, lo calizada no município de Crato, e foi nomeado dom Quintino Rodrigues d e Oliveira e Silva para administrar. Naquele municí- pio já estava em fu ncionamento um seminário para a formação do clero, por onde passavam também os filhos das elites da zona sul do Estado do Ceará. O segundo bispado foi instituí- do no município de Sobral, sendo nomeado dom José Tupinambá da Frota. Eram, portanto, municípios localizados estrategicamente nos centros políticos e econômicos de maior irradi- ação do Ceará. (Parente, 2000; 9 0-91)

Na época de d. Manu el da Silva Gomes, a Igreja estava realizando o projeto de interiori-

zação das Dioceses e nisso a figura de Ananias Arruda aparece entre os membros de uma elite

secundária, de uma área não contemplada com a casa episcop al, mas de significativa relevância,

pois a responsabilidade de rep roduzir o poder da romanização nessas áreas periféricas poderia

apresentar resultados positivos ou negativos para a Igreja no eix o Fortaleza-Crato-Sobral, com a

possibilidade de fortalecer o grupo católico até mesmo na capital. Basta observar a contribuição

de Baturité na décad a de 30 do século passado, ao enviar vários religiosos ou pessoas com forma-

ção religiosa para atuar em regiões importantes para a Igreja.Tais missionários eram formados na

Escola Apostólica dos Padres Jesuítas em Baturité, que funcionou como centro de importante

processo educativo da elite local, e eram treinadas para conduzir a fé e a política, não ap enas nas

localidades circunvizinhas, mas, em todo o Estado.

Esse foi o cenário do desfecho das tensões entre Igreja e Estado. O início foi o ano de

1860, quando a Igreja cearense foi desmembrad a da Arquidiocese de Pernambuco e o bispo no-

meado, dom João Quirino, por motivos outros, renunciou à nomeação, sendo substituído por dom

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Luiz Antônio Santos. Nesse momento, a Igreja cearense assumiu a postura de defensora da fé

romanizada, em resistência às idéias secularizantes modernas, que Parente (2000) as denominou

de positivismo, darwinismo e evolucionismo, importadas da Europa e Estados Unidos por comer-

ciantes, viajantes e intelectuais.

Nas duas primeiras décadas do século XX, a Igreja no Ceará tentou consolidar o projeto

de romanização , fundamentado nos princípios da autoridade e da autonomia administrativa. O

governo eclesiástico de d. Manoel da Silva Gomes (1912) teve o objetivo de instaurar definitiva-

mente esse projeto de caráter conservador, o qual já havia penetrado nas consciências dos mem-

bros das elites cearenses católicas, mobilizando-as no intuito de homogeneizar as percep ções das

16 classes média e trabalhadora . Parente (1999) argumenta que romanizar o catolicismo brasileiro

significou fazer com que a igreja católica roman a, no Brasil, fosse administrada cada vez mais

por Roma. A origem do processo de romanização deve ser buscada na publicação da encíclica de

Leão XIII, “Rerum novarum”, de 15 de maio de 1891. Tal processo, por um lado, aproximou a

Igreja da questão social, face às graves conseqüências morais negativas, segundo a doutrina da

Igreja, do d esenvolvimento capitalista, mas, por o utro, ex igiu obediência à doutrina conservadora

católica, principalmente no que concerne à austeridade na fé.

Assim, o projeto de romanização da Igreja no Ceará funcionou como base mágico-

religiosa para a permanência do discurso legitimador do processo de reprodução do poder na

perspectiva conservadora, diferente, portanto, da tentativa progressista que tentava racionalizar o

Estado. Esta última assumiu a postura de distanciamento aos dogmas católicos tradicionais e se

inspirou no pensamento político científico vivenciado na Europa e Estados Unidos. Em meio às

propostas de racionalização do Estado e romanização da Igreja, sur giram tensões em todos os

municípios cearenses, configurando, assim, a crise entre fé e Estado.

Em Baturité, essas tensões ficaram na responsabilidade de Ananias Arrud a, que, n a ad-

ministração dos conflitos entre racionalização e romanização, teve a convicção pessoal de que o

poder deveria sintetizar os fundamentos da austeridade católica e da “conveniência” na política.

Nesse final do século XIX, o seminário d a Prainha já tinha um peso razoável na cultura cearense. Excetuando-se o 16

Liceu do Ceará e o Ateneu Cearense, que surgiram antes do Seminário, todos os outros colégios foram criados por ex-seminaristas merecendo destaque o Panteão Cearense, fundado em 1870, o Colégio Cearense, em 1872, o Colégio São José, o Instituto Cearense de Humanid ades e o Colégio Universal, todos em 1875, e o Ginásio Cearense, entre outros. São ex-seminaristas Austregésilo de Athayde, Fausto Barreto, José Arrais de Alencar, Capistrano de Abreu, José Albano, Barbosa de Freitas e Paula Ney, entre muitos outros que participaram ativamente na vida político- administrativa e intelectual cearense. O seminário da Prainha passou a ser parte dinâmica nesse processo de reno va- ção que se processava no Ceará do final do século passad o e início do século XX. (PARENTE, Josênio Camelo. ANAUÊ: os camisas verdes no poder. Fortaleza; EUFC, 1999;93-94)

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No projeto de administração de Ananias Arruda, a política deveria se submeter à austeridade ca-

tólica. A fé cristã (católica) deveria ser o fim e a política o meio para a conquista da hegemonia.

Portanto, a política, como pensamento progressista e como conquistas materiais e econômicas,

deveria servir para a p erpetuação da austeridade católica na região, o que, desde o início, origi-

nou tensões locais.

Da mesma forma que a racionalização, o projeto de romanização tomou como base o de-

senvolvimento econômico do Estado, fortalecido na segunda metade do século XIX. As circula-

ções de idéias pro gr essistas/liberais, as tecnologias e técnicas produtivas fizeram as elites cearen-

ses se perceberem como frágeis para organizar o Estado. Economicamente, o Estado estava se

destacando. Todavia, no mando, havia uma insegurança que causou a disputa entre membros das

elites, que se tornaram “rivais” ideologicamente.

No cenário político nacional, estávamos na Rep ública getulista, momento da história na-

cional em que personagens políticos ligados ao mundo rural - em especial, os ligados ao setor

agrário-exportador e monocultor - foram “destituídos” do exercício do mando tradicional de in-

tervenção direta nas instituições públicas do país. Assumiram os seus lugares, na administração

pública, lideranças ligadas ao setor industrial e ao comércio, num geral, recém organizadas por

um movimento armado que colocou Getúlio Vargas como líder em 1930. Lo go depois, tais lide-

ranças foram legalizadas, em 1932, pelas eleições indiretas para representação na Câmara d e De-

putados Federal e Estadual, fato que demonstrou abertura para que todos os grupos políticos na-

cionais buscassem sua representatividade. Com essa possibilidade, a Igreja aproveitou para ele-

ger o maior número possível de deputados no intuito de barrar projetos do governo que fossem

considerados nocivos à Instituição e emperrassem o projeto de romanização.

Como qualquer grupo político, a Igreja Católica estava preparada para concorrer aos car-

gos eletivos, com uma elite católica forte e consciente da postura do governo federal de não se

deixar orientar apenas pelo discurso político da oligarquia agrária. A Igreja, ademais, disseminou

ideologias conservadoras contra as idéias progressistas e se apropriou de obras assistencialistas

de saúde e de educação popular, interferindo, assim, nas políticas públicas nacionais de orienta-

ção popular como as CEBs etc. O governo Federal, por seu turno, permitia o trânsito da elite ca-

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tólica na política, transitando, ele próprio, entre os mais antagônicos projetos daquele período e

17 definindo-se como o executivo orientador e reformista .

Todas as categorias, de alto a baixo, sem diferença de idade e sexo, comungaram num id êntico pensamento fraterno e d ominador: - a construção de uma pátria nova, igual- mente acolhedora para os grandes e pequenos, aberta à colocação de todos os seus filhos (3 de novembro 1933). O retorno constitucional, pregado pelos aliados da véspera e desejad o pelos vencidos, lhe parece inviável, por incapaz de ‘realizar reformas radicais, impossível de execução em período de normalidade constitucional’ (23 d e fevereiro de 1931). ‘Consti- tui fato incontroverso’ – são palavras de 8 de setembro de 1933 – ‘e os constituintes terão de leva-lo em conta (...)(Faoro; 2003; 6 93)

Pela citação, percebe-se qual o “novo” cenário político do país e de que forma o governo

federal se colocav a como o centro irradiador do planejamento das diretrizes do desenvolvimento

econômico e como se impunha exigindo a obrigação de todos os segmentos da sociedade brasilei-

ra se colocarem a sua disposição, para a implementação d a proposta de racionalização da econo-

mia.

Nos Estados, o fortalecimento das tensões se deu no momento de reprodução do projeto

racionalizador. No Ceará, tínhamos tradições religiosas e políticas conservadoras muito fortes,

divididas entre os interesses políticos da Igreja e os interesses políticos do Estado. A partir desse

cenário, a arquidiocese de Fortaleza mobilizou o maior número de lideranças católicas para o

alistamento de eleitores no pleito que iria formar a Assembléia Nacional Constituinte.

A idéia foi deix ar clara para o Estado racionalizador a soberania da Igreja. O marco prin-

cipal dessa tensão reside no convite feito por d. Manuel da Silva Gomes a chefes políticos locais

para a composição d as comissões provisórias para formação da Liga Eleitoral Católica - LEC –,

que visava espaços políticos para romanizar e isolar os efeitos morais da racionalização.

Em Baturité, encontramos registros dos feitos das ações de Ananias Arruda defendendo

os interesses político-ideológicos clericais da romanização. São demonstrações do modo como

ele atraiu os investimentos públicos de obrigação do Estado racionalizador , que foram transferi-

dos, em forma de grandes projetos de obras públicas, como açudes, ab astecimento de água, for-

17 FAORO, Raymundo. OS DONOS DO PODER: formação do patro nato político brasileiro. São Paulo;Globo, 2003;696.

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necimento de energia, telefonia, calçamentos, instituições de assistência aos desvalidos da seca

etc. e utilizados com fins de preserv ação da tradição religiosa em combate aos efeitos morais da

racionalização estatal.

Os efeitos dessas ações aparecem na literatura local:

Como se descreve Aquela feia riqueza, Produto da esperteza

De um ente que é mortal

E a habilidade Com q’ele pega no alheioSem temor e sem receio. Sem pudor sem moral.

É um tarado: Tem a pele de jiboia,

O olh ar de Lambisgóia, E a inhaca do chacal.

Sua fortuna E “Belém” e a “Betania”, Um pouco do da Libania

Que lhe entrou “pelo quintal”

E a inda: O “Jucá” e o “Ca njarí””Gitiran a” e “Uma ri”

E a fazenda “Batimbal”,

Itapaí, San t’Anton io, S. Miguel,

Onde o pai do João Famel Fez progresso sem igual.

E foi p’ro Sul, Fo i ser chefe de quadrilh a,

Para hon ra da família De qu e é um moioral.

Mas o Ananias Bota ele na bagagem,

Em matéria de pilhagem Ninguém lhe passa um quinal.

Nem o Reimundo... Que gosa justo conceito,

E age, daquele jeito (?!...) Não vai com ele afinal.

O Famel...

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Que se d ispistou num monge, Esse inda está mui longe De fazer o “jogo” da cal.

O Jeremias C’a certeza com que arca

E toda a carga da “barca”, Ele o meteu no bornal...

Haja vista A historia do “Convento”:

Nem lhe deu ca nceira a o mento, Controlar o material.

No “Banco”?!...O sem quengo deu tutano:

Dois roubos dentro de um ano, De um efeito...colossal!...

E depois

Que nos deram a Prefeitura, Nossa casa é só fartura,

Grande o nosso cabedal!...

(Versos publicados Ad Perpetuam Rei Memoriam, 1936;15)

Os versos citados acima, mesmo anônimos, sintetizam as críticas ao comendador, princi-

palmente após o dia 29 de março de 1936, quando ele foi anunciado como prefeito eleito pelo

cartório eleitoral. As tensões, a partir dessa data, ficaram evidentes. Os projetos de interesse pú-

blico foram legitimadores da austeridade católica e a funcionalidade da máquina administrativa

municipal aconteceu a partir da dinâmica litúrgica da Igreja.

Inicialmente, as críticas às ações do “coronel” se configuraram em uma série de acusa-

ções, pondo em dúvida a validade da eleição, mas, como nada foi apurado nesse sentido, os opo-

sicionistas voltaram-se para a maneira como o comendador conduziu sua trajetória até chegar à

prefeitura. Fizeram uma série de acusações de como Ananias Arruda multiplicou seus bens até

chegar ao status d e pr efeito. Mesmo já havendo comentários antigos sobre a natureza da riqueza

do chefe político, foi, após a eleição, que se fortaleceram e tomaram as ruas da cidade.

Familiares como Olintho Arruda afirmam que o acúmulo de b ens e propriedades por par-

te de Ananias Arruda foi resultado do trabalho e da compra que ele fez dos bens de parentes en-

dividados em bancos e transações comerciais mal-sucedidas, ainda no período da Primeira Guer-

ra Mundial.

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O ex-funcionário da gráfica do jornal “A verdade” , Walmir Penaforte confirma que o en-

riquecimento de Ananias Arruda se deu através do fornecimento, a princípio, de lenha para a

rede ferroviária; depois, de cal, mosaico, carvão e outros produtos fornecidos a grandes obras

públicas, tendo em vista que, sem concorrência, Ananias Arruda podia abastecer e ter o lucro

garantido.

O panfleto “Ad Perpetuam”, de autoria anônima, atribuiu o enriquecimento do “coronel”

à “esperteza e à habilidade de pegar o que era alheio”, fazendo referência, entre outras atitudes

desconhecidas do comendador, ao modo como ele conseguiu se apropriar das terras para edifica-

ção das obras da Igreja.

Temos a certeza de que essas críticas se originaram das atitudes austeras do “coronel”,

que, em momento algum, se permitiu ouvir os comentários dos adversários para refletir sobre

suas práticas políticas. Sua “v erdade”, fundamentada na moral conservadora católica, tinha um

caráter hermético. Tão hermético que jamais alguém conseguiu por em dúvidas a sua maneira de

governar. Essa postura convicta de ser o representante legítimo da “verdade” fez de Ananias Ar-

ruda um chefe político que buscou no caráter eterno da tradição, aos “moldes” weberiano, o fun-

damento para o mando. Não temos como mensurar até que ponto a intencionalidade do comenda-

dor se deu em benefício próprio ao se utilizar do recurso à fé na doutrina católica. E nem até onde

a formação moral que ele recebeu, na família e na igreja, contribuiu para a elaboração do seu pro-

jeto de administração. O certo é que, para Ananias Arruda, todos os meios foram válidos para que

a política, sempre submissa à doutrina católica, servisse para romanizar a fé em Baturité, em be-

nefício do progresso e da continuidade do seu mando.

Ainda segundo o pensamento weberiano, o domínio extrapatrinomial ocorre quando o

chefe político se dispõe a administrar, além dos seus domínios patrimoniais, os domínios dos seus

súditos, agr egados, além dos próprios familiares, ao considerá-los incapazes de conduzirem o

destino dos negócios por conta própria. Dessa forma, o dominador se apropria do que é alheio

sem o mínimo de constrangimento, muitas d as vezes, através de barganhas ilícitas, as quais, por

terem sido realizadas pelo chefe, são “perdoáveis” ou “permitidas”. Assim, o público e o privado

se mesclam no processo de reprodução do poder no sertão.

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Ainda povoa o imaginário popular - ou como diria Benevides (2001) parafraseando Pier-

18 re Nora , os lugares da memória , uma série de eventos pitorescos que culminaram na antipatia

popular à administração de Ananias Arruda. En tre eles, o atropelamento de um pobre homem

desassistido pelo atropelador, no caso, Ananias Arruda, no centro da cidade, ocasião em que,

sem constran ger-se, acusou-o de ter perdido a oportunidade de ter morrido para pagar seus peca-

19 20 dos no inferno . Descreve Alencar (ano? p67) que, certo dia, estava o pastor da Igreja Pres-

biteriana a almoçar na pensão do sr. Fêlix Franco, localizada a rua 7 de setembro esquina com a

travessa Gonzaga Furtado, quando alguns elementos se aproximaram e jogaram areia na mesa do

21 pastor, que se retirou para seus aposentos .

Folcloricamente, ou nos lugares da memória , esses eventos são guardados e lembrados

sempre que falamos da austeridade na fé do comendador. Compreendemos que na política o “co-

ronel” usou as estratégias que utilizava no cumprimento da agenda das obras assistencialistas da

Igreja. Teve firmeza ao acreditar na força da tradição religiosa para governar o povo. Agia com

austeridade nas tomadas de decisões políticas desconsiderando o caráter laico dos súditos. Impu-

nha o ritualismo copiado das cerimônias litúrgicas da Igreja aos eventos políticos o que, muitas

vezes, contrariava aos adversários presentes aos eventos. Como relatou Raimundo Raul Correia

Lima quando nomeado prefeito em 21 de fevereiro de 1944, contra a vontade de Ananias Arruda.

Correia não aceitou o roteiro da cerimônia do 1º Congresso Eucarístico de Baturité. Naquela épo-

ca, os eventos sociais eram realizados dentro do salão de festas da Prefeitura. E o prefeito nome-

ado não aceitou a organização litúrgica de Ananias Arruda, po rque dava muita ênfase aos rituais

da Igreja e, quase n ada, do prefeito. Esse episódio teve repercussão durante muitos dias na cida-

de.

Estes eventos sinalizam para tensões entre membros das elites em Baturité. Principalmen-

te porque os cenários políticos nacional e estadual eram de vivência de tensões entre a Igreja e o

Estado.

18 São locais onde uma espécie de saudade ancestral parece sempre pronta a invadir olhares esquecido. Marinina Gruska Benevides. Ancorando a memória e fabrica ndo continuidade. Fortaleza-Ce. IMOPEC – Revista Memória e Patrimônio Cultural do Ceará I. 2001 (p. 04)

ARRUDA, Clemente Olintho. Comendador Ananias Arruda: um exemp lo de vida cristã, política e social. Baturité, 19

2000. Alencar, Francisco Alves de. Igreja Presbiteriana de Fortaleza. Fortaleza-Ce (edição própria) 20

21 A Igreja Presbiteriana foi fundada em Baturité em 15 de novembro de 1933, época em que Ananias Arruda iniciava o trajeto na

política oficial. Ele não aceitava, em hipótese alguma, a e xistência de outras Igrejas que não fosse m Católicas. Circulou na cidade boatos de que Ananias Arruda promoveu a queima de dezenas de bíblias evangélicas, ele não apareceu, mas homens lideraram a ação e os populares logo atribuíram tal atitude ao “coronel”.

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Capítulo 04

ANANIAS ARRUDA: UMA TRAJETÓRIA DE AUSTERIDADE NA FÉ E NA POLÍTICA

Há grandes discussões sobre o mando dos chefes políticos no Nordeste. As análises histó-

ricas e sociológicas apontam para as práticas “coronelistas”. Mas quem são as figuras que as uti-

lizaram? O que lhes conferiu autoridade, principalmente, nos processos eleitorais? Quais elemen-

tos asseguraram coerência a tais práticas que fund amentaram atitudes arbitrarias? Como controla-

ram os tão numerosos e diversificados modos de pensar dos “súditos” políticos? Essas questões

possuem supostas evidências nos trabalhos de pesquisas já realizados e demonstram o quanto as

práticas de reprodução do poder necessitam ser melhor analisadas como conteúdo de uma catego-

22 ria histórico-sociológica em construção como é o caso do “coronelismo” .

Até onde v ai nosso exame crítico imaginamos que há razões suficientes para atribuirmos

o aposto de “coronel” cristão a Ananias Arruda. Ele exerceu um mando utilizando-se de atributos

pessoais como a austeridade católica e a tradição religiosa do povo (aos moldes weberiano) so-

madas às conservadoras formas de fazer política no sertão, conhecidas como “práticas clientelis-

tas” próprias do universo “coronelista”.

Não atribuímos importância indevida à capacidad e de mando de Ananias Arruda, apenas,

o apontamos como um “coronel”. Que deve ser incluso no conjunto dos políticos, que, num de-

terminado momento da história, se destacou por suas vontades egocêntricas, pela capacidade de

realizar convenientes alianças e aproveitar as circunstâncias históricas para reproduzir seu man-

do.

22 O vocábulo “co ronelismo”, intro duzido desde muito em no ssa língua com acepção particular, de que resultou serregistrado como “brasileirismo” nos léxicos aparecidos do lado de cá do Atlântico, deve incontestavelmente a remota origem do seu sentido translato aos autênticos ou falsos “coronéis” da extinta Guarda Nacio nal. Com efeito, além dos que realmente ocuparam nela tal p osto, o tratamento de “coronel” começou desde logo a ser dado pelos sertanejos a todo e qualquer chefe político, a todo e qualq uer potentado... (MAGALHÃES, Basílio de. Citado por LEAL, Victor Nunes em Coronelismo, enxada e voto, p. 289)

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A capacidade de Ananias Arruda esteve ligada à crença que ele tinha de que o povo lhe

devia obediên cia, não por prestígio político próprio, mas, devido à fé católica da qual ele se inti-

tulava defensor. O poder era exercido pretensiosamente em nome da austeridade Católica “ao s

moldes” da dominação tradicional. A austeridade do comendador se consolidava na convicção de

que a doutrina católica d everia ser assumida e preservada por todos daquela cidade. Isto nos le-

vou a sugerir o atributo de “coronel” cristão.

Sua vida foi estruturada dentro de rituais dos quais todos imaginavam ser de absoluta o-

bediência a Santa Sé. Por isso, foi merecedor do reconhecimento e condecorado pelo provincial,

padre Cândido Mendes, com o título de “Irmão da Companhia de Jesus” em 16 de outubro de

1929.

A tradição católica agindo sobre a coletividade, juntamente com a austeridade religiosa

transformada em convicção pessoal de Ananias foram elementos fundamentais para a reprodução

do mando. Sua noção de verdade esteve na sua fé, que considerava a Igreja Católica indivisível e

que não havia salvação fora dela. No primeiro exemplar do jornal “A VERDADE”, monsenhor

Manuel Cândido sintetizou essa concepção de fé e de Igreja disseminada e inculcada na elite ca-

tólica cearense.

Todos devemos apoiar a verdade como condenar o erro, do mesmo modo que todos somos obrigado s a querer o bem e odiar o mal e a procurar a luz e a fugir das trevas. Será o nosso lema a sabedoria social de Jesus Cristo sobre a terra e o magistério infalí- vel da Igreja, coluna e firmamento da verdade na frase eloqüente e incisiva do grande Apóstolo das gentes (A VERDADE, 1917; n° 001)

Essa convicção de Ananias Arruda foi reconhecida pelo papa Pio XII que o condecorou

com o título de Cavaleiro Comendador das Ord ens de São Gregório e de São Silvestre.

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Figura 10 . Paramenta de comendador – foto exposta no Museu Comendador Ananias Arruda em Baturité – fonte: Museu comendador Ananias Arrud a, 1962

Figura: 11 – Museu Comendador Ananias Arruda - Fonte: Coleção

Descubra o Ceará Ano: 2002

Este título confirmou a idéia de que Ananias Arruda se construiu como um ilustre colabo-

rador da Igreja, paulatinamente, recebendo, a cada época, os privilégios e honrarias da Institui-

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ção, conhecidos desde o período medieval para os que contribuíam com a reprodução do mando

católico. Entre as honrarias Ananias conseguiu a autorização do papa para ter em casa uma capela

na qual poderia celebrar as datas do ano litúrgico católico com a família. Privilégio que pouco s

cearenses tiveram. Isto demonstrou o quanto o comendador vinha se preparando para sua trajetó-

ria na fé.

Figura: 12 - Ananias Arruda aos noventa anos em

1976 - Fonte: Museu Ananias Arruda Ano: 2005

Homenagear com títulos era o modo da Igreja Católica conservar a fidelidade e a lealdade

de figuras abastadas em pontos longínquos de Roma. Os títulos honoríficos até meados do século

XX carregavam importantes significados e, a Igreja, os utilizava para garantir a homogeneidade

da moral católica. Por isso, muitos personagens da história política cearense foram agraciados

com títulos religiosos. Entre eles o médico e intelectual Guilherme Studart entregue em 22 de

janeiro de 1900, pelo papa Leão XIII qu e outor go u o título de barão, torn ando-o bar ão de Studart

(PARENTE, 2000; 83) um dos responsáveis pela formação intelectual das elites cearenses.

Muitos outros foram contemplados com o título de comendador da ordem pontifícia. As

honrarias eram símbolo de virtude e de crença d e que fora d a Igreja não existia salvação.

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Ser comendador para Ananias Arruda significou a culminância de um trajeto de fé inicia-

do com a função de professor da Conferência Vicentina em 1900, e continuou com o projeto de

criação do jornal “A Ver dade” em 08 de abril de 1917. Ações marcantes p ara fé e que contribuí-

ram para elaboração de atitudes repletas de austeridade par a preservação da moral cristã.

Assistir aos pobres e criar um jornal foram mecanismos decisivos para definirem a auste-

ridade do comendador e o garantirem como o guardião do pensamento católico naquela região. E,

acima de tudo, o definirem como chefe político homogen eizador do processo de reprodução do

mando alguns anos depois.

O objetivo do jornal “A Verdade” era divulgar as doutrinas da Santa Sé em Baturité em

busca de uma coesão moral.

Figura: 13 - Primeiro exemplar do jornal “A verdad e”. Fonte: Museu co mendador Ananias Arruda

Trouxe satisfação a Ananias Arruda entregar em cada lar de pessoas importantes de Batu-

rité, do Estado, do país e até do exterior um impresso reproduzido segundo a ideologia da Igreja,

isto o fazia presente entre todos e o tornava importante mediante as lideranças político-religiosas.

Através desse meio de comunicação o comendado r motivava lideranças a participarem dos proje-

tos de assistência social da Igreja e garantia a firme permanência da moral e bons costumes da

sociedade.

Dando continuidade a esta postura o comendador cooptou a educação como outro meio e-

ficaz para reproduzir a moral. Tornou a escola um mecanismo eficaz na formação católica. No

Ceará essa práxis era antiga, desde 1880, com a institucionalização da Igreja, ou seja, autonomia

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da Igreja com relação ao Estado. E d epois, na primeira metade do século XX, com d. Manuel da

Silva Gomes, arcebispo de Fortaleza, tal prática foi fortalecida.

Nesta época, a educação cearense priorizou a formação das elites intelectuais. Esta foi

uma exigência das circunstâncias políticas e econômicas daquele período. Foi assim que em 1913

d. Manoel da Silva Gomes incentivou diretamente a fundação do Círculo Católico de Fortaleza,

transformado-o depois em Centro d. Vital em 1921. E, em 1930, já com a elite católica instruída,

direcionou a intelectualidade para a dimensão da participação política no Estado a partir da cria-

ção das LEC – Liga Eleitoral Católica - a fim de homogeneizar as elites em torno da moral cató-

lica conservadora.

É nesse contexto de inserção à política partidária que Ananias Arruda pode ser incluso

como o “coronel” cristão, pois, contribuiu de for ma direta, e em parceria com outras p essoas in-

fluentes da cidade, para a construção da Escola Apostólica dos Padres Jesuítas. Conseguiu a doa-

ção do sítio Olho d’água para construção iniciada por d. Manuel da Silva Gomes.

Figura 14. Construção do prédio do Convento dos padres Jesuítas.

Fonte: Clemente Olintho Arruda, 1 922 .

Um documento enviado em 17 de agosto de 1932 pelo padre Antonio Pinto da Companhia

de Jesus a d. Manuel, cita os nomes de Ananias Arruda e, principalmente dr. João Ramos em Ba-

turité como benfeitores da obra (A.A. Bispo do Porto, 1932).

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A fundação da Escola Apostólica em Baturité significou considerar a importância da regi-

ão para o projeto de romanização da fé no nosso Estado. A cidade funcionou como ponto geopo-

lítico estratégico para formação da elite intelectual católica que atuou na política em combate ao

pensamento político liberal do Estado. No documento citado aparece o ano de 1910 como sendo

o marco inicial da busca do local ideal para construção da escola que iria educar na fé mentes

para consolidação da romanização no Brasil. E o Ceará foi visto como um possível local que po-

deria servir de ponto estratégico para o atendimento dessa demanda e demais áreas circunvizi-

nhas.

Houve inicialmente a cogitação de que a Escola deveria ser construído em Recife, mas, o

superior da Companhia de Jesus sentiu o perigo entre os conflitos políticos daquela localidade e

as obras da Igreja, portan to, voltou-se para o Ceará em 1921 e decidiu empreender o projeto. “No

dia 3 de dezembro de 1922, festa do Apóstolo das Ìndias, S.Francisco Xavier, realizou-se a sus-

pirada solenidade da benção da primeira pedra!” (A.A. Bispo do Porto, 1932, 20).

A Escola Apostólica dos Padres Jesuítas em Baturité começou a funcionar em 15 de agos-

to de 1927 com sete apostolandos, com o tempo, estes se espalhar am entre regiões do Maciço e

até Europa com a missão de romanizar a fé.

O interesse da Igreja pela educação garantiu a formação de uma intelectualidade discipli-

nada e obediente aos valores católicos que impôs o mando fundamentado na austeridade do cato-

licismo. Nas escolas religiosas a hierarquia se constituía como mecanismo, por excelência, de

imposição da homogeneidade ao pensamento dos indivíduos.

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Em Baturité, a respeito da hierarquia, esta fazia parte da tradição católica assimilada pela

maioria do povo, e as escolas reproduziam essa maneira de pensar facilmente identificada nos

eventos sociais escolares. Os alunos, filhos da elite, eram escolhidos para serem oradores em e-

ventos, fazerem elogios aos chefes políticos ou para participarem de números artísticos teatrais

representando Jesus, Nossa Senhora, Anjos, Santos e grandes personagens da história. Já os alu-

nos pobres, filhos dos trabalhadores, apareciam nos dramas como escravos, índios, degredados,

anjos do mal etc. Assim, a escola cumpria a função de educar, a cada indivíduo, para assimilar,

desde cedo, qual seu lugar na sociedade, e quem determinava as políticas públicas da municipali-

dade. E, a Igreja, legitimava.

Por iniciativa do prefeito municipal Ananias Arruda realizou-se no dia 7 de setembro de 1936 uma grande parada escolar em comemoração ao dia da pátria, na qual formaram mais de 2.000 alunos dos seguintes colégios e escolas: Escola Apostólica dos Jesuítas; Colégio Salesiano “N. S. Auxiliadora”; Colégio Salesiano “Domingos Sávio”; Grup o Es- colar; Escolas Estad uais de Capistrano de Abreu; Putiú; Candeia; Itauna e Cangati; esco - las rurais de Riachão do Panta, Lages, S. Francisco, Bananeiras, Açudinho, Vila Izabel, Pesqueiro, Poço da Taboa e Mondego; escolas rurais municipais do Labyrinto, Cristos, Veneza, Bom Jardim, Jordão, Serra do Vicente, Cajazeiras, Santo Antonio do Pesqueiro, São Pedro de Carqueija, Itãns, Riacho do Padre, Jucá, Umary, 13 de maio, no bairro Con- selheiro Estelita e proletárias masculina e feminina, do Círculo Operário São José (....) As 6½ ao toque do Hino Nacional, subiram ao grande coreto construído na Praça da Ma- triz, o Exmo sr. José Martins Rodrigues, d.d.Secretário do Interior e da Justiça, represen - tante do sr. Governado r do Estado; Exama Consorte d. Zilda Martins, representante do di- retor da instrução pública: Ananias Arruda, prefeito municipal; Luiz Sucupira, inspeto r de alfândega; Vasco Menezes, d o “O Nordeste”; Pedro Maia, da “Gazeta d e Notícias”; Her- menegildo Furtado, Raymund o Arruda e Aurino Lopes, respectivamente, presidente, se- cretário e vereador da câmara municipal, Capital Antônio Francisco, Delegado Regional; Cap. Pinheiro; dr. Silveira Carvalho, promotor público; dr João Paulino, médico da prefei- tura; Revdos p adres jesuítas, Redondo, Pinheiro, Monteiro da Cruz e Oliveira; J. B. Paula, gerente d a Ligth; Vasco Furtado, escrivão da coletoria estadual; dr. José Germiniano Ju- rema, Juiz de direito ( Arruda, 2001; 86)

A longa citação demonstrou a forma como ocorria a aprendizagem do comportamento

obediente, e a aquisição do respeito à hierarquia, princípios norteadores da educação popular nas

décadas de 1930 e 1940 em Baturité. Durante o ano letivo havia muitos eventos escolares que

ensinavam o amor a pátria, a importância da obediência e a necessidade do respeito às autorida-

des. Normal, em um sistema de ensino pautado em transformar em sucesso as ações políticas dos

chefes locais, principalmente, do prefeito.

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Liturgicamente, para qualquer evento, Ananias Arruda organizava a relação das escolas

seguindo o critério deter minado pela Igreja. Em primeiro lugar a Escola Apostólica, onde se for-

mava o mais alto estamento do mando eclesiástico, depois, a escola qu e formava as filhas que

seriam as futuras mães, retratos de Maria. Logo abaixo, a escola dos rapazes, futuros Josés, “ho-

mens bons” da cidade. Vale ressaltar que as três primeiras escolas foram construídas para educar

os filhos da elite. A lista da organização do evento prosseguia com as escolas dos pobres, também

com sua hierarquia. Inicialmente a escola que ho menageava o p ároco monsenhor Manoel Cândi-

do, depois, a escola estadual, municipal urbanas e rural, finalizava com as escolas distritais. Estas

encerravam os desfiles e quase ninguém as prestigiavam.

Na apresentação da semana da pátria e outros eventos encontrávamos no coreto central da

praça a cúpula que no momento detinha o mando, representantes do governo estadual, vereadores

da municipalidade e demais autoridades. Discursavam apenas os membros do poder executivo,

cabendo aos demais circularem demonstrando seu afeto ao povo, como verdadeira conveniência

na política.

Aparentemente as manif estações de respeito à Pátria revelavam-se disciplinadas, configu-

rando a total interação entre a Igreja e a elite política, necessária par a impor os rumos das ações

públicas municipais para os próximos anos. O hasteamento do pavilhão nacional acompanhado

por hinos e pelas presen ças d as autoridades funcionava como ritual litúrgico de apresentação do

grupo político que possivelmente governaria o município, já que no final de 1936 haveria elei-

ções, logo depois, suspensas pelo golpe do Estado Novo, deflagrado por Getúlio Var gas. Essas

manifestações patrióticas funcionavam como momentos de exposição dos “homens bons” da ci-

dade.

Após o hasteamento da bandeira na semana da pátria de 1936, e a missa, a Igreja serviu

como intermediadora, usando sua austeridade religiosa, impondo a romanização, e a conveniên-

cia na política, negociando entre chefes políticos, definindo os membros que comporiam as cha-

pas para o pleito eleitoral. Na missa matutina foram homenageados os ilustres personagens da fé

e da política local, e, desse momento litúrgico em diante, as presenças dos chefes políticos regio-

nais residentes na capital eram necessárias nas celebrações. Representantes do governo estadual,

deputados fed erais e estaduais, vereadores, juízes, advogados, médicos e a imprensa deveriam se

fazer presentes. Era necessário criar a impressão ao povo de que a elite estava homogeneizada na

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fé e na política. Desse momento em diante foi apresentada ao povo a necessidade de votar nos

candidatos apontados pela elite local.

Ainda em si tratando de política e para inserirmos Ananias Arruda no contexto descrito

anteriormente, voltemos ao dia 9 de janeiro de 1932, quando faleceu mons. Manoel Cândido,

conselheiro espiritual de Ananias Arruda. Depois dessa perca o “coronel” cristão, agor a sob ori-

entação de d. Manuel da Silva Gomes, arcebispo de Fortaleza, dedicou seu tempo para fortalecer

suas atividades político-partidárias, impulsionado, também, pelas circunstâncias de tensõ es entre

romanização , proposta da Igreja, e racionalização do governo estadual. O arcebispo combatia

abertamente as mudan ças morais provocadas pela política de racionalização liberal e o comen-

dador decidiu auxilia-lo ingressando de vez na disputa pelo mando político, deixando claro seu

interesse em construir sua trajetória n a política além da trajetória na fé.

A partir de então, Ananias se destacou como político, alistando todos os eleitores para vo-

tarem a mando do arcebispo. De alguma forma, os moradores, eleitores em potencial, dependiam

da tutela ou favores do “coronel” cristão. Através da política de garantir empregos públicos ou

nas próprias empresas, ou, através da atitude de alojar o povo em moradias populares construídas

pela Igreja, eram práticas recorrentes para a solidificação da reprodução do mando em Baturité.

Motivos eleitoreiros foram os responsáveis pela criação em Baturité da LEC, responsável por

garantir o maior número possível de votos para os deputados defensores dos interesses eclesiásti-

cos.

A justificativa da Igreja para criação da LEC no Ceará era fortalecer as ações de combate

as associações laicas que pregavam a liberdad e e igualdade de todos em total negação aos princí-

pios assimilados nos Círculos de Operários Católicos da obediência à autoridade e a hierarquia da

Igreja e do poder. Utilizando essa justificativa Ananias Arruda iniciou seu trajeto de fazer seu

prestígio religioso funcionar como mecanismo de imposição ao povo de suas preferências políti-

cas. Numa perspectiva de conveniência política.

Ananias, após alistar inúmeros eleitores para o pleito eleitoral e seguro do valor da tradi-

ção católica para as decisões políticas na localidade, tornou-se bem visto por d. Manuel da Silva

Gomes.

Aos olhos de d. Manoel o candidato ao governo do Estado tinha qu e sair do meio da elite

católica, portanto, escolheu Menezes Pimentel. Intelectual católico apontado como defensor do s

interesses da Igreja no Ceará. Escolhido porque dominava bem os mecanismos da proposta de

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racionalização do Estado, sem negar às inovações econômico-tecnológicas, mas, principalmente,

porque defendia a preservação da tradição católica, os interesses da austeridade moral da Igreja.

E Ananias Arruda seria seu auxiliar como chefe político no maciço de Baturité.

Além do arcebispo o comendador necessitava do apoio de mais figu ras políticas de desta-

que. Contou, então, com as lideranças de Waldemar Falcão, baturiteense na deputancia federal e

Menezes Pimentel, católico e governo do Estado. Em Baturité, chefes como Raimundo Viana e

José Pinto do Carmo entre outros, talvez até mais poderosos, como a família Holanda de d. Maria

Libânia de Holanda, viúva do “coronel” Baltazar Lopes Lima e mais tarde a família Ribeiro do

grupo Severino Ribeiro ligada ao ramo empr esarial das comunicações representaram peças fun-

damentais das articulações políticas do comendador.

Menezes Pimentel encarregado de fazer na capital a síntese entre preservação da moral ca-

tólica e favorecer o desenvolvimento controlado do Estado tinha a necessidade de se articular,

também, no interior. Para tanto, facilitou a participação de muitos ch efes políticos do interior,

entre eles, Ananias.

Dessa forma pode favorecer mudanças na política, na infra-estrutura e no mando contro-

lado pela tradição católica, o que resultou na indicação de Ananias Arruda em 1935 para prefeitu-

ra da Baturité.

Na verdad e o país e o Estado exigiam governos conciliadores que garantissem a ordem e

o progresso, que pudessem traduzir os interesses de conciliação entre racionalização e romaniza-

ção. Assim, se constituíram as circunstân cias necessárias para que a figura de Ananias Arruda

construísse a conveniência na política que descrevi acima e conquistasse o governo municipal.

Em qualquer outra época jamais Ananias Arruda teria conquistado o poder político na re-

gião. A prova é que passado o contexto de turbulências das décadas de 1930 e 1940, o comenda-

dor jamais conseguiu se reeleger prefeito da cidade.

Para se ter idéia da força das circunstâncias que favoreceram a estada do “coronel” como

representante da conveniência na política basta identificarmos o grupo que o acompanhou na ad-

ministração. Dr. Hermenegildo Furtado, uma das cabeças da administração, era também presiden-

te da câmara e vice-presidente da associação comercial e p residente do banco comercial e agríco-

la. Raimundo Arruda, outro correligionário e irmão de Ananias, era secretário da câmara munici-

pal e gerente do banco comercial e agrícola. As famílias Proença e Th aumaturgo eram coadjuvan-

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tes dos feitos políticos do comendador (ARRUDA, 2001; 110). Todos ligados ao grupo da elite

católica local.

São essas alianças que chamamos de conveniência na política porque a conjuntura exigia

um determinado comportamento de conciliação entre supostos interesses antagônicos e o grupo

citado acima detinha, naquele momento, as características apar entemente adequad as para ocupa-

rem cargos públicos de destaque desmobilizando qualquer oposição ao processo de rep rodução

do mando.

Chamamos isto de conveniência na política. Porque foi cômodo para o gestor municipal

ter do seu lado o presidente do legislativo, os vereadores, os chefes dos bancos públicos, cartórios

etc... todos simpatizantes do partido aliado, assim o mando se perpetuou e pareceu solidificar-se

sem a inconveniência do diálogo entre elites rivais.

A oposição a essa “prática privatista” ao poder público logo emergiu de forma variada,

principalmente através das manifestações da cultura popular. Em forma de emboladas, versos,

cartas, cantigas e folhetos como o que foi publicado no dia 19 de novembro de 1936, denominado

“Ad Perpetuam Rei Memoriam” em que desaf etos políticos no anonimato explanaram os descon-

tentamentos e denunciaram práticas autoritárias de Ananias Arruda.

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No livro da biografia do comendador produzido por Olintho Arruda há uma referência aos

fatos. O título é “Graves ocorrências de terça para quarta do carnaval de 1937”. No artigo

Olintho Arruda descreve que um bando de baderneiros saiu às ruas cantando e recitando versos

picantes e caluniosos ao prefeito Ananias Arruda. O curioso é que entre os baderneiros estava o

principal chefe político da oposição ao comendador, dr. João Ramos, escrivão eleitoral e ch efe do

partido social democrata em Baturité, o dr. Edmu ndo Victoriano, médico clínico local e o sr. Ca-

semiro Pinto Nogueira, funcionário da fazenda estadual (ARRUDA, 2001; 95-96). Todos repre-

sentantes da parte da elite oposicionista à austeridade católica e à conveniência na política do

comendador.

Esse episódio confirma a pouca aceitação à administração do “coronel”. Principalmente

depois que no dia 26 de novembro de 1937, já no período do Estado Novo, Menezes Pimentel o

nomeou, novamente, prefeito da cidade (ARRUDA,2001; 124).

Edson André, radialista e historiador, relata fatos pitorescos ocorridos por influência do

comendador em Baturité ligados ao tratamento dado à oposição realizada por indivíduos de baixo

poder aquisitivo. Usava o mecanismo da austeridade católica como meio de eliminar qualquer

foco de oposição popular. André confirma que em 1934, ano antecedente a sua nomeação como

prefeito, o sr Francisco Custódio Viana (Chico Viana), dentista da cidade e, Orlando Viana foram

presos acusados de comunistas, transportados por um senhor conhecido como Job que os levou

para Fortaleza acusados de crime contr a a ordem pública. Outro de nome Heitor Maciel foi víti-

ma do delegado de polícia sargento Sebastião que o acusou de subverter a ordem e pregar contra

a moral cristã. Neste período o comunismo era o maior inimigo político tanto do Estado raciona-

lizador como da Igreja que pretendia romanizar a sociedade.

Na Europa e no mundo o cenário não era diferente os países viviam tensões entre corren-

tes ideológicas de extrema esquerda conflitando com correntes ideológicas de ex trema direita.

Ora tínhamos governos de ex trema direita no poder, ora tínhamos governo da extrema esquerda e

isto refletia nos países pobres que não possuíam autonomia econômica e nem solidês na política

que ficavam a mercê das decisões tomadas nos grandes centros de poder.

Mussolini conseguiu marchar sobre Roma e conquistar o po der que tanto bem há feito à Itália porque se escutou em 300 mil camisas negras que cobriam peitos jo- vens estuantes de patriotismo e de fé na ressurreição da Pátria.

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Hittler derrotou os adversários de seu partido em várias eleições p orque a seu lado estava uma juventude enérgica disposta não apenas a vencer nas urnas mas a apóia- lo em qualquer circu nstancia. A mocidade espanho la que acompanhava Gil Rob les cheia de ardor patriótico foi que ofereceu e ainda está oferecendo resistência à onda invaso ra do chãos semea- dos pelos Bela-Kuns nacionaes e estrangeiros, todos a soldo e a mando da barbárie moscovita. Na França é a juventude das ligas fascistas, da Croix-de-Feu e de tantas o utras a- gremiações da direita que está evitando façam os comunistas mão baixa no beau pays de Joana d’Arc. (Jornal “O Nord este” de 04 de julho de 1936)

Dessa forma se apresentava o mundo aos olhos das elites cearenses. Inseguro, confuso,

propenso a grandes transformações estruturais. Portanto, era de extrema necessidade homogenei-

zar as idéias em torno de propostas que garantissem a continuidade da reprodução do poder fica-

do na tradição. Principalmente na tradição católica.

Analisando este contexto compreendemos as origens das tensões entre elites e, principal-

mente, compreendemos como Ananias Arruda fundamentou seu mando e exerceu, por um curto

espaço de tempo, o cargo de prefeito municipal. Entendemos que não foi seu carisma que o fez

chefe político, foram as circunstâncias, as conjunturas políticas daquele momento que exigiram

mecanismos de coerção encontrados na tradição religiosa da maioria do povo personificada na

pessoa de Ananias Arruda que tinha a convicção de que a fé católica harmonizaria os conflitos

sociais e traria progresso para região.

Enfim, personagem de conciliação entre tensões que poderiam impedir a continuidade do

processo de reprodução do poder em Baturité, foi a contribuição que encontramos na figura do

“coronel” Ananias Arruda. Sua forma de lhe dá com as tensões entre roman ização e racionaliza-

ção naquele dado momento histórico o colocou entre os chefes políticos nordestinos que mere-

cem receber o atributo de “coronel”. Mesmo confirmando que esta categoria ainda não d ar conta

da realidade política do Nordeste por ter o caráter inacabado enquanto discussão teórica.

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Capítulo 05

NOS LUGARES DA MEMÓRIA: A POSSÍVEL REPRESENTAÇÃO DA REALIDADE

Este capítulo foi reservado para expor depoimentos sobre lembranças retidas nos lugares

23 da memória que puderam resgatar fragmentos da trajetória de Ananias Arruda.

Pelos vestígios do passado que não se fizeram apagar, passeiam as almas das gera- ções q ue nos antecederam, retornam em fragmentos os acontecimentos q ue, nos lu- gares da memória, um dia, tiveram lugar e ecoam vozes há muito silenciadas. Co- mo uma espécie de fronteira na q ual se opõem e pela qual se comunicam diferentes mundos, os lugares da memória nos invadem de um sentimento de transcendência, inerentes, por exemplo, aos símbo los de abertura para o alto, nos quais até parece possível a comu nicação com os deuses ( BENEVIDES, 2001; 5)

As lembranças foram gu ardadas na memória e estão prontas para retornarem ao presente

se for em estimuladas por questões do cotidiano. Apresentamos três entrevistas pautadas em lem-

branças retidas na memória significativas para o entendimento da trajetória de Ananias Arruda,

na fé e na política. Os entrevistados foram pessoas que mantiveram contato direto com Ananias

Arruda. Portanto, possuem lembranças guardadas nos lugares da memória que fluem para o pre-

sente quando solicitadas. Todavia, temos consciência das limitações desse procedimento metodo-

lógico, sabemos que ex iste uma carga valorativa, ideológica, nas preferências e sentimentos nos-

tálgicos contidos no presente, que, de certa forma, interferem no esforço de cada um para retomar

ao passado através das lembranças elaborando o retrato desejado da realidade.

Ainda segundo Benevides(2001) as lembranças guardadas nos lugares da memória neces-

sitam ser resgatadas e isso pode se dá a partir do estímulo que pode ser através do contato com

algum objeto material da cultura atual que estimule a reconstrução do passado como algo concre-

to na memória. O que fizemos foi dialogar com os entrevistados, com questões significativas re-

23 BENEVIDES, Marinina Gruska. Ancorando a memória e fabricando continuidade. IMOPEC – INSTITUTO DA MEMÓRIA DO POVO CEARENSE, 2001 numa interpretação do pensamento de Pierre Nora.

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lacionadas a vida religiosa, empresarial e política do “coronel” fomos instigando e trazendo as

lembranças da época em que os entrevistados conviveram com Ananias Arruda.

Estes suportes, tais co mo os túmulos, os acervos, os mo numento s, os álbuns de família etc., são locais da memória e da amnésia, porque a eles é po ssível acres- centar aquilo que deve ser lembrado e suprimir aquilo que deve ser esquecid o (BENEVIDES, 2001; 4)

Entrevistar pessoas que vivem no presente e que foram atores do passado, ou seja, que

participaram das tramas do passado, como recurso metodológico de reconstrução da trajetória de

vida de alguém, sempre atrairá questionamentos e críticas. Sujeitos históricos que foram e que

são, os entrevistados, sempre darão sentidos próprios aos eventos segundo seus interesses e con-

junto de valores. O que o pesquisador visualiza nas fotografias, cartas ou em outro suporte mate-

rial da memória não possui o mesmo significado que o entrevistado atribui. Os nossos olhos do

presente estão muito embaçados com as tramas do presente e desconectos das tramas daquele

tempo passado que não foi vivido por nós. Isso força a recorrermos as lembranças dos atores que

vivenciaram aqueles eventos para podermos reconstruir a nossa interpretação. Nas ciências hu-

manas jamais conseguiremos uma versão acabada da interpretação do objeto estudado. Portanto,

o que se segue são tentativas de aproximação da memória à realidade. São três entrevistas que

representam somente uma ilustração da hipótese de que a trajetória de An anias Arruda na políti-

ca teve como suporte a dominação tradicional aos moldes weberiano.

O primeiro entrevistado é o sobrinho do comendador Ananias Arruda. Pretendemos ar-

gumentar que desde a infância o “coronel” foi educado para a austeridade religiosa. Apresenta-

mos a sistematização das informações e dados da entrevista a luz do modelo da dominação tradi-

cional weberiana e tendo como conteúdo principal a tradição. No caso de Ananias Arruda, a tra-

dição religiosa.

Buscamos ex por a idéia de que esteve no modelo de educação oferecido a Ananias Arru-

da, norteado nos valores cristãos eternizados, costumes cristalizados através dos séculos e tidos

como verdades absolutas, inquestionáveis, um dos primeiros fundamentos para o caráter austero

de Ananias. Vejamos a entrevista na tentativa de compreender este fundamento da austeridade

católica do “coronel”:

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O PODER DA TRADIÇÃO NA FORMAÇÃO DA AUSTERIDADE

* Clemente Olintho Távora Arruda

(Sobrinho de Ananias Arruda).

Ananias chegou em Baturité muito pequeno, aos cinco (5) anos de idade. A família mi-

grou de Sobral porqu e a vida naquelas bandas estava se tornando difícil. O pai comerciante en-

tendeu que em Baturité, com o sobrinho na intendência, a vida poderia melhorar. Além dos pais,

capital Miguel de Arruda e dona Maria do Livramento Vasconcelos de Arruda, a família era

composta por 21 membros: 8 morreram na infância e 3 foram abortados. Sobraram 10 filhos dos

quais Ananias Arruda fora o 9º.

O capital Miguel de Arruda emigrou em julho de 1891. Na chegada se instalou na Aveni-

da 7 de setembro nº 1050 onde montou também seu comércio d e estivas e miudezas que apresen-

tou prosperidade. Mudou-se depois para outra casa na mesma rua até qu e, por fim, ele adquiriu

um prédio. Também localizado na rua 7 de setembro. Um casarão com cin co (5) janelas de frente

e na lateral esquerda, 1 porta e 7 cômodos para acomodar sua família. Dois vastos salões com 2

janelas e 2 portas, para ser possível acomodar seu armazém comercial.

O prédio anterior de nº ? foi substituído pelo casarão de nº 1038 que demonstrava mais

conforto e adequação aos negócios. Foram os três primeiros imóveis da família Arruda, depois,

vieram os prédios das indústrias e firmas, todos na rua 7 e, adjacências, rua São Paulo. As firmas

Antonio Arruda & Irmão, Arruda & Irmão e Arruda & Filho, todas ligadas ao comércio foram

fruto da prosperidade dos Arrudas em Baturiré.

O comendador sempre estudou em escolas com a orientação católica. Passou pelas escolas

primárias do professor Raimundo Joaquim da Silva Viana e das professoras Maria Maia e Maria

*Essa entrevista foi concedida no dia 12 de julho de 2005. Foi uma tard e muito produtiva. Olintho Arrud a, ho mem

sensato, sereno, aparentando gostar de reviver os feitos da família, descreveu pacientemente a trajetória dos Arrudas em Baturité. Com a idade avançada, setenta anos ou mais, iniciou a conversa afirmando que o “coronel” era um homem o bstinado na fé católica. Tudo q ue ameaçasse a Igreja tinha que ser comb atid o por ele.

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Estelita, o Ateneu Baturiteense, o colégio Nogueira, e, por último, Educandário mantido pelo

padre João Augusto da Costa em Guar amiranga como aluno interno até 1901. Portanto sua for-

mação foi toda dentro do clima de disciplina religiosa.

A primeira grande responsabilidade do comendador foi assumida em 1900 quando mon-

senhor Manoel Cândido o convocou, juntamente com seus irmãos, Antônio Arruda, Jeremias

Arruda e outras pessoas para assumirem a missão de fundarem a Conferência Vicentina de “São

Luiz Gonzaga” no dia 16 de dezembro de 1900. Ele já atuava na catequese e na pastoral que visi-

tava os presos aos domingos. Agora, passou a ser professor e, logo depois, diretor dessa escola

para meninos carentes.

A amizade que o comendador Ananias Arruda mantinha com monsenhor Manoel Cândido

dos Santos era tão grande e de um valor inestimável. Foi pela amizade que o comendador teve a

oportunidade de conh ecer Ana Custódio dos Santos, sobrinha e afilhada do pároco que no futuro

seria sua esposa.

Aos 25 anos casou-se com dona Aninha que tinha apenas 16 anos de idade. Abenção de

monsenhor Manoel Cândido foi imprescindível. Monsenhor Manoel Cândido foi amigo o conse-

lheiro espiritual da família do capitão Miguel de Arruda durante seus anos como vigário desta

Paróquia. Abaixo foto do casamento do “coronel” Ananias Arruda com Ana Custódio dos Santos:

Figura 15. Casal Ananias Arruda e Do- naninha dos Santos

Fonte: Museu comendad or Ananias Ar- ruda.

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O casal não teve filhos. Os filhos adotivos do comendador foram seu sobrinho Miguel Al-

berto Arruda, filho de Eurico Arruda. Clodomir Monte Comaru adotado com 10 anos, Everton

Monte Comaru com 9 an os, Rocivalda Monte Comaru com 7 anos e Luiza Altair Monte Comaru

com 5 anos de idade, todos filhos do casal Jeremias Comaru e Heraclides Montes Comaru que

enviuvou, não pode criar os filhos e os entregou na Conferência Vicentina ficando aos cuidados

do comendador.

Rocivalda era muito afeiçoada com dona An a Custódio, sempre a acompanhava nos reti-

ros feitos para o patronato “Imaculada Conceição” na serra de Pacoti. Dona Ana Custódio sofria

de uma forte dor na cabeça, depois transformad a em um aneurisma cerebral o que lhe causou a

morte repentina numa manhã de janeiro de 1941. Por sofrer com fortes dores na cabeça dona Ana

Custódio sempre era acompanhada por Rocivalda, que no retiro, todas as manhãs, faziam cami-

nhadas. Numa dessas caminhadas dona Ana sentiu uma forte dor e desmaiou chegando imedia-

tamente a falecer. Era 19 de janeiro de 1941. Ananias estava viajando para o sul do país (sic).

Ele viajou para o sul do país(sic), e, du rante a viagem, (...) estava havendo aquelas en-

crencas lá com o padre Cícero no Juazeiro. O padre Paulo que tinha sido salesiano aqui foi primei-

ro diretor aqui, do colégio salesiano.

Tinha ido para o Juazeiro, foi abrir a congregação salesiano, lá no Juazeiro. E o padre Pau-

lo estava se transformando num padre Cícero. E, então, Ananias Arruda foi nessa viagem e pegou

o padre Paulo e foram para Recife, para convencer o padre Paulo qu e não devia sair da orientação

da igreja. Não, ele não tinha permissão para mudar a doutrina da Igreja.

A Igreja não concordava com aquilo. Então ele procurou convencer o padre Paulo, e, con-

seqüentemente, o padre Cícero...ele vivia realizando viagens pela Igreja.. .foi por isso que ele co-

nheceu Santos de Oliveira, porque ele viajava muito para Juazeiro. Padre Cícero num era vigário

de Juazeiro... então ele viajava muito para amenizar os ânimos naquela região e viajava quase

sempre acompanhado por monsenhor Manoel Cândido. Porque monsenhor Manoel Cândido é

contemporâneo do padre Cícero. Pra ver se conseguia catequizar o padre Cícero.

Com a morte de Donaninha ele retornou imediatamente.

No local do desmaio de dona Ana Custódio Arruda o comendador mando u construir um

monumento religioso em homenagem a esposa, sinal de afeto.

Considerando sua afeição ao vigário notáveis foram as realizações no campo social-

religioso. Dedicando-se inteiramente aos trabalhos de catequese junto aos paroquianos, principal-

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mente a juventude. Católico, educado nos princípios rígidos do catolicismo, não admitia a existên-

cia de outras Igrejas, a maçonaria, festas de samba, casas de mulheres da vida, e, muito menos,

bebida alcoólica. Acreditando nisso fundou o jornal “A Verdade” em 1917 como veículo divulga-

dor da proposta católica.

Sua dedicação à Igreja o fez em 1922 conseguir a Escola Apostólica dos Padres Jesuítas

para Baturité. O reitor d os Jesuítas quando passou aqui, padre Antônio Pinto, em visita à região,

deixou claro que o Jesuíta deveria ser construído na Paraíba. Mas, Ananias Arruda insistiu tanto,

que ele decidiu instalar o Jesuíta aqui, em Baturité.

Construiu o prédio na serra. Ananias deu as terras do sítio sem conversar com os donos.

Ele fazia muito isso. Ele doava as terras e nem conversava com os donos, deu, deu. E aí os donos

terminavam cedendo. E por pouco ou nada. Porque a indenização que ele dava aos proprietários

era mínima. É porque ele tinha uma amizade tão grande, uma influencia tão grande que eles ali

aceitavam. Ali aonde é o Jesuíta. Aonde é o prédio era o sítio dos Mattos. A família proprietária

da farmácia Mattos. Então aceitaram a doação d as terras do sitio para diocese de Fortaleza. Acei-

tando como qualquer...qualquer boa ação. E, outr a coisa, Ananias Ar ruda sempre botava a dioce-

se no meio das suas negociações porque ele chegava e convencia pelo discurso de ser aquilo em

benefício da religião, da igreja. Dessa forma, o terreno dali foi passado em escritura para o nome

da diocese.

Teve uma ocasião em que eu acompanhei Ananias Arruda. Quase sempre eu o acompa-

nhava nas suas saídas. Em uma ocasião eu fui... nós fomos! fazer uma visita a José Martins Rodri-

gues, que era o secretario do interior. E eu observei o José Martins Rodrigues! atende logo o Ana-

nias porque se não ele não sai mais daqui. Falou o secretário. Ele tinha essa perseverança, insis-

tência tão grande que as vezes os govern antes atendiam. Não era nem pelo valor dele, era para se

ver livre dele. Ele persistia tanto, perseverava tanto, que ele terminava atendido nos pedidos.

Outro exemplo de persistência foi o projeto de construção da maternidade.

O Severino Ribeiro queria instalar ali aonde foi o centro comunitário e hoje é a secretaria

de saúde um cinema. E Ananias Arruda o convenceu de que um cinema em nada ajudaria a popu-

lação de Baturité. Ribeiro era filho de Baturité. Ali, aonde hoje é a secretaria de saúde, tinha um

sobrado aonde moraram os pais Luiz Severiano Ribeiro, os velhos. E o novo Luiz Severino Ribei-

ro nasceu nesse sobrado. Então ele queria transformar o sobrado num cinema. Veja foto do Centro

Comunitário antigo sobrado dos Ribeiros:

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Figura: 16 Prédio Centro Comunitário – local escolhido p ara a instalação do Cinema Fon-

te: SEMACE Ano: 2002

E, Ananias Arruda, o convenceu de que tinha muito mais proveito e benefício para popula-

ção a construção de algu ma coisa que n ão fosse o cinema. Porque o cinema ia dá lucro ao Ribeiro.

O que a cidade iria ganhar de concr eto com o cinema? – E, Severiano acabou convencido de que

aquele dinheiro que ele ia doar, que era de 50 mil cruzeiros na época, poderia aplicar noutra coisa,

como por exemplo; numa maternidade, num hospital. Veja a foto da Maternidade Maria Feliciano

Ribeiro, hoje, transformada no Hospital José Pinto do Carmo:

Figura: 17 – Hospital José Pinto do Carmo Fon- te: Olintho Arruda Ano: 200 1

E Severiano Ribeiro acabou construindo a maternidade do nome Maria Feliciano Ribeiro.

Não tem o hospital José Pinto do Carmo? – que também foi doação do próprio José Pinto do Car-

mo? Então a Maternidade levou o nome de Maria Feliciano Ribeiro, mãe do Severino Ribeiro

Filho. Dessa forma o benefício para cidad e seria para sempre. Construir aqui em Baturité, o que?

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uma casa de negócio? uma casa de negócio iria beneficiar os Ribeiros. Então Severiano deveria

construir algo qu e beneficiasse ao povo. Você tem que olhar o povo. O benefício que vai trazer

para o povo. Terminou o Ribeiro aceitando! Já não foi mais nem o velh o Ribeiro e nem o José

Pinto do Carmo, já foi o filho Osiel Silva que terminou financiando a construção do hospital e o

filho do velho Severiano financiando a maternidade. Que hoje, eles acabaram com a maternidade

com o nome Maria Feliciano Ribeiro e ai agora tudo é uma coisa só. Hospital e maternidade José

Pinto do Carmo. Então ele convencia as pessoas assim. Se você quer ajudar a cidade, quer ajudar

o povo, você tem que fazer uma obra que traga benefício para o povo o resto da vida. E ele conse-

guiu, ele tinha essa perseverança de convencer as pessoas par a execução d os seus projetos.

No dia 13 de janeiro de 1924, data do aniversário do pároco mons. Manoel Cândido dos

Santos, e com a benção de d. Manuel da Silva Gomes, foi criado o Círculo de Operários Católi-

cos com o intuito de presenteá-lo com uma instituição que tivesse o objetivo de sanear a moral e

revigorar a religião naquela sociedade. Partilharam desse momento pe. Alexandrino Monteiro, pe.

Godofredo Cândido dos Santos e convidados. Veja foto do prédio do Círculo dos Operários Cató-

licos :

Figura: 18 – Prédio do Círculo Operário Cató- lico Fonte: Olintho Arruda Ano: 2001

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Depois, em 1940, foi deliberada a construção de uma vila de casas para operários deno-

minada vila operária “São José” localizada na rua de acesso a serra de Baturité. Veja foto da vila:

Figura: 19 – Vila São Vicente de Paulo fonte: SEMACE Ano: 2002

Em 1925 participou da grande peregrinação do ano Santo. Foram par a o Oriente Médio:

Ananias Arruda, Donaninha dos Santos Arruda, pe Godofredo Cândido dos Santos, pe Rodolfo da

Cunha, cel Juvenal de Carvalho, dr Barreto Campelo, sr Eduardo Castro, sr Raimundo Menezes,

partiram para Pern ambuco aonde encontraram outros peregrinos do Sul e embarcaram no navio a

vapor “formoso” de bandeira francesa.

De volta ao Brasil o comendador iniciou a missão de conseguir a doação do terreno do

“sítio Benício” para instalação de outra escola religiosa, agora era a Casa e escola Salesiana no

ano de 1930 para meninos. A Congregação com sede em Turim na Itália. Dona Maria Libânia de

Holanda foi a alma que doou os recursos necessários para que Ananias Arruda adquirisse o “Sítio

Benício”. Foi construída. Veja foto da capela da Escola:

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Figura: 20 – Igreja da escola Salesiana para meninos Domingos Sávio - Fonte: SEMACE Ano: 2002

E, logo depois, em 19 de março de 1932, Ananias Arruda se dedicou a mais uma missão.

A construção de outra escola religiosa, agora, somente par a meninas, tendo em vista a gr ande

procura provocada pela inauguração da Casa e escola Salesiana para meninos. A escola recebeu a

denominação de Instituto Nossa Senhora Auxiliadora. Veja foto do primeiro prédio da escola:

Figura 21. Construção do prédio do Colégio N. S. Auxiliadora Fonte: Clemente Olintho Arruda, 1932

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Muito amigo de d. Manoel da Silva Gomes, An anias foi convidado para ser o responsável

pela Liga Eleitoral Católica de Baturité. A LEC tinha o intuito de combater o comunismo. Aqui

tenho um documento que confirma o que digo, veja:

Para o pleito eleitoral de 3 de maio de 1933, Ananias conseguiu alistar 1.000 eleitores.

Veio o pleito e na apuração dos votos do 1º turno o candidato a deputado Waldemar Fal-

cão obteve 647 votos e o restante foi distribuído entre os candidatos capitão Jehovan Motta, Luiz

Sucupira, dr. Leão Samp aio, dr. José Antonio de Figueiredo e dr. Antonio Xavier de Oliveira. No

2º turno e comparado com deputados de outras áreas eleitorais a apuração regional ficou distribu-

ída assim: Waldemar Falcão com 637 votos, escolhido depois para Assembléia Nacional Consti-

tuinte com 2.555 votos, juntamente com Luiz Sucupira que obteve 634 votos, escolhido para As-

sembléia Nacional Constituinte com 3.675 votos. Os demais candidatos obtiveram Jehovan Motta

666 votos, Leão Sampaio 684 votos, José Antonio de Figueiredo 650 votos e Antonio Xavier de

Oliveira 643 votos, respectivamente todos eleitos representantes políticos federais n a região.

Em 14 de outubro de 1934 ocorreram as eleições para deputados estaduais e, mais uma

vez, a Liga Eleitoral Católica entra em cena para definir os eleitores que deveriam escolher os

candidatos para a Assembléia Estadual Constituinte obtendo bons resultad os.

Ele foi convidado diversas vezes pra ser candidato a prefeito de Baturité em eleição e não

aceitou. Somente aceitou quando veio o golpe de Getúlio Vargas. Chamado de redemocratizando

o Br asil, que já era a revolução... fechando todo congresso. Então o Getúlio...isso já estava em

pleno movimento da luta contra o comunismo. Prestes, naquele movimento, estava atuando, es-

tremecendo a política. Então veio as eleições de 1934, a primeir a eleição que Getúlio foi vence-

dor...E o cardeal d. Jayme da Barros Câmara, que era também muito amigo de Ananias Arruda,

veio aqui diversas vezes, veio aqui no Jesuítas, passando férias. Criou a arquidiocese de Fortaleza

e, no Ceará, criou a Liga Eleitoral Católica (...), isto foi extensivo ao país todinho. Então, logo

depois, aqui d. Manoel convidou para ele (Ananias Arruda) formar a Liga Eleitoral aqui em Batu-

rité. Ele foi um dos que combateu o movimento comunista na região. A idéia da Liga era só pra

combater os comunistas. Foi assim que ele entrou na política. Ele entrou na política pelas mãos de

d. Manoel da Silva Gomes. Foi convidado para ser pref eito da cidade e combater qualquer discur-

so que fosse contrário ao pensamento da Igreja.

Quando houve a eleição. Eleição indireta para eleger o presidente da Repú blica. O Getúlio

foi eleito. Getúlio foi eleito pelo Congresso Nacional. O Getúlio marcou as eleições estaduais.

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Aqui, no Ceará, foi a mesma coisa, tinha que haver uma eleição. Foi a eleição do Pimentel. (....)

Pimentel só ganhou por um voto. Que até foi o v oto do Chico Monte: Fr ancisco de Almeida Mon-

te, que era da zona norte, de Sobral.

O Pimentel foi eleito, indiretamente. E então tinha que nomear os interventores nos muni-

cípios. Waldemar Falcão, baturiteense e ministro do supremo tribunal, criou o ministério do traba-

lho, foi eleito senador por Baturité. Waldemar Falcão e Luiz Sucupira. Waldemar Falcão foi no-

meado por Getúlio já por indicação do Pimentel. Pimentel indicou o comendador Ananias Arruda

por intermédio de Waldemar Falcão que era de Baturité. E ele indicou logo Ananias Arruda p ara

Baturité.

Chamou Ananias e disse assim: _ você vai tomar conta de Baturité. Um ano e meio depois

veio a eleição pr a o município. E ele... já tinha formado a Liga Eleitoral Católica aqui, então ele

foi eleito pelos votos da Liga. Foi eleito prefeito. Foi até uma eleição enrolada aqui em Baturité.

Me lembro muito disso, porque meu pai foi candidato... eu tinha oito anos, sete anos por aí assim.

O Raimundo Viana se beneficiou muito com os votos para vereador por que meu pai foi candida-

to, Raimundo Arruda e Raimundo Viana, nomes parecidos...naquele tempo era o voto de caneta e

o sujeito botava Raimundo... e na hora da apuração o tabelião lá ... acho que o dr João Ramos que

era tabelião logo dizia.. _ É Raimundo Viana! _ É Raimundo Viana! Só sei que foi uma confusão

muito grande.

E aí Ananias Arruda foi eleito. E quando foi 10 d e novembro de 1937 veio o golpe de Es-

tado e o Pimentel continuou e convidou Ananias para continuar. Ele saiu em 42, espontaneamen-

te... ele participou de uma concorr ência com a rede ferroviária federal – rede de viação cearense

para o fornecimento de lenha para a Lithg. A Lithg era uma usina inglesa. Usina inglesa que eletri-

ficava Fortaleza e a Lei dizia que o administrador municipal não podia participar da con corrên-

cia...e ele então renunciou para participar da concorrência e ganhou, ele ganhou a concorrência,

então, ele não podia ser fornecedor do próprio governo. Ele fornecia lenha e cal.

Do período da administração do “coronel” lembro do projeto do açude Labirinto. Ananias

lutou muito por aquilo e nunca conseguiu. A Rachel de Queiroz impediu... eu tenho até ali um

artigo sobre a questão. Veja foto do artigo de Rachel de Queiroz:

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Figura: 22 – Capa do artigo de Rachel de Queiroz fazendo

críticas ao açude Labirinto - Fonte: Jornal o Cruzeiro

Ano: 1952

A família do Acelino Brito, da serra, que foi sogro do sr. Antonio Carlos, irmão do dr. Ivo,

que depois se juntaram na política. Então...as terras do Acelino Brito... partes das terras, seriam

alcançadas, seriam desap ropriadas, serviriam para bacia do açude. Esse açude, o estudo dele, eu

tenho ali, os estudos dele, ia abastecer água até Fortaleza... aqui, toda região. E até Fortaleza. Se

fala muito nesse açude Castanhão...que v ai passar aqui pertinho no Choro, ..abastecendo tudo. E o

Labirinto tinha a mesma importância para região do maciço e foi a Rachel de Queiroz que botou o

dedo no suspiro com os artigos dela no Rio de Janeiro.

Naquele tempo, ditadura, né, Rachel de Queiroz e Acelino Brito são primos e lá pelo Rio

deram um jeito de imperrar a obra. Chegou a sair o financiamento, a ser liberado o dinheiro, tudo

isso, mas o prazo que o Departamento Nacional de Obras Contra Seca deu foi tão curto, que não

tinha condições. Ex emplo, as terras não chegaram a ser desapropriadas, o comendador chegou a

fazer um ofício oferecendo a desapropriação pela prefeitura, quando veio a autorização para exe-

cução da obra, eles pediram dentro de um prazo ínfimo a escritura do terreno, não havia escritura

pois não tinha desapropriado o terreno, não tinha havido tempo nem pra conversar...Porque era

normal...são coisas do comendador Ananias Arruda que... ele falava só depois é que ia tratar do

assunto. E o açude ele não conseguiu porque o prazo foi tão ínfimo que ele não teve tempo. E aí

ele já não era mais prefeito, já não tinha mais a influência que tev e no início.

FIM.

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A TRADIÇÃO E A REPRODUÇÃO DO PODER

Para início da reflexão, r etomamos a noção de poder inspirada em Weber. Poder como uma

relação de dominação que se fundamenta nos princípios da lealdade e da piedade presentes nas

relações sociais. Como agrupamento político, a Igreja, num dado momento da história foi obrigada

a convocar a lideranças religiosas p ara desenvolverem um conjunto de estratégias para garantir a

obediência. No caso do “coronel”, as estratégias deveriam iniciar nas relações entre lideranças po-

lítico-religiosas e “súditos políticos” e/ou, fieis católicos. Como em qualquer outra relação de do-

minação, o mando devia ser fundamentado, no caso de Ananias, a tradição religiosa legitimou a

hegemonia.

Durante todo depoimento, Clemente Olintho Arruda, discorreu sobre a preocupação com

relação à preservação da obediência. Não qualquer obediência, mas, aquela específica, ligada à

doutrina católica e preservada pela austeridade de Ananias Arruda. Descreveu com cuidado as es-

tratégias que o comendador utilizou para preservar a sobreposição da liderança religiosa sobre

qualquer outro tipo de liderança. Esta era uma marca peculiar do comportamento do comendador.

Estratégias como controlar, por completo, qualquer instituição que se autodefinisse como educati-

va. Ter o máximo de domínio sobre as informações e os meios produtores dessas informações na

cidade. Definir o tipo de formação adequada para a população católica. Configuravam o compor-

tamento austero do “coronel”.

Percebemos a freqüente preocupação em conservar o caráter eterno da tradição religiosa

principalmente na formação das lideranças. Segu ndo Weber é o poder “santificador” da tradição

que destrói as resistências, reprova as inovações e põe medo dos poderes religiosos. Foi assim que

chegamos a concluir que a trajetória política de Ananias Arruda teve início com a sua inserção no

universo da dominação da doutrina católica milenar ainda na infância.

Remetemo-nos, de forma ilustrativa, ao pensamento de Sérgio Buarque de Holanda sobre a

figura do “homem cordial”, no aspecto em que o autor considera que a fase de maior apropriação

da carga valorativa do caráter e personalidade humana é a infância.

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A personalidade social do estudante, moldada em tradições acentuadamen- te particularistas, tradições que, como se sabe, costumam ser decisivas e impera- tivas durante os primeiros quatro ou cinco anos de vida da criança, era forçada a ajustar-se, nesses casos, a novas situações e a novas relações sociais que impor- tavam na necessidade de uma revisão, por vezes radical, dos interesses, ativida- des, valores, sentimentos, atitudes e crenças adquiridos no convívio da família. ( Holanda, 2002;1047)

Evidente que o autor se refer e a uma realidade sócio-cultural ampla e distinta historicamen-

te. Entretanto, observável, principalmente, nas áreas rurais do país. Na história da educação brasi-

leira, os modelos de educação, principalmente, os destinados às cidades do interior, são pensados a

partir dos valores coloniais retrógrados e cômodos aos grupos que reproduzem o poder. Esta cita-

ção de Sérgio Bu arque de Holanda nos é útil para descrevermos o modelo de educação em que

Ananias Arruda foi inserido a partir dos cinco(5) anos de idade.

Segundo o entrevistado, em julho de 1891, Ananias Arruda tinha cinco an os de idade. Suas

preferências de crianças, seus gostos, suas atitudes poderiam muito bem serem adversas às preten-

didas pela família. Família tradicional, católica, que prezava a disciplina e austeridad e na fé, ja-

mais permitiria uma personalidade que desviasse da tradição daquele momento.

Toda formação do “coronel” aconteceu dentro do convívio com a realidade da Igreja Cató-

lica. Aos quatorze anos de idade já havia obtido toda escolaridade necessária para um garoto da

sua idade. Pelas escolas católicas que passou sempre a família incentivava o estudante a participar

ativamente da vida religiosa escolar. Não deixava abertura para a construção da autonomia. O

mundo profano das diversões, das tertúlias, dos namoros, dos vícios ou das outras atividades que

poderiam desviar a personalidade de Ananias Arruda foi totalmente proibido ao “coronelzinho”.

Desde pequeno An anias Arruda se fez pupilo esp ecial do vigário geral de Baturité, Monse-

nhor Manoel Cândido dos Santos. Uma amizade íntima e de total confiança que resultou em 1911

no casamento entre Ananias Arruda e a sobrinha do vigário dona Ana Custódio dos Santos. O cu-

rioso é que este acontecimento fez surgir no imaginário social da cidade o comentário de que

mesmo casado o comendador continuou casto, pois, suas preocupações giravam em torno das o-

bras sociais da Igreja. O matrimônio significou um profundo apreço entr e as famílias, e, principal-

mente, a consolidação da austeridade católica, já que, Donaninha, como passou a ser conhecida

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dona Ana Custódio, foi apresentada para a sociedade baturiteense como uma criatura esposa e

“santa”.

Influenciado pela intransigência da família, Ananias Arruda cresceu e desenvolveu o hábito

de combater com mãos de ferro qualquer manifestação pública de atos de afeto entre indivíduos,

principalmente os da sexualidade, pois, os considerava “obscenos”. Comenta-se que o “coronel”,

já empresário, chegou a comprar uma rua inteirinha, a rua São Paulo, por que esta concentrava as

casas de mulheres da “vida” da cidade.

Segundo Sér gio Buarque de Holanda, existe nas raízes da formação sócio-cultural brasileira

uma tradição religiosa hipócrita, cega porque não entende o conteúdo da espiritualidade, porque

não permite a vivência da autonomia individualizada e preza pela repetição de comportamentos

artificiais que buscam uma aproximação mais material dos lugares sagrados do que propriamente

vivenciar uma ética espiritual de busca da caridade e da solidariedade cristã. Basta observarmos os

sacrifícios que as elites cearenses realizaram para estarem p resentes nos lu gares sagrados de Jeru-

salém e Oriente Médio, num momento em que o Ceará vivia o período entre guerras e as secas

provocavam questionamentos ao poder nas décadas de 1920 e 1930.

Uma religiosidade de superfície, menos atenta ao sentido íntimo das cerimônias do que ao colorido e à pompa exterior, quase carnal em seu apego ao concreto e em sua rancorosa incompreensão de toda verdadeira esp iritualidade; transigente, por isso mesmo que pronta a acordos....(Holanda, 2002;1054)

Queremos de forma ilustrativa nos apropriar da idéia de “religiosidade d e superfície” de

Sérgio Buarque de Holanda, para defendermos a idéia de austeridade católica, que, para nós, foi a

base da formação do “coronel” e que sustenta a tradição religiosa em Baturité. Defendemos que a

austeridade na fé, aqui compreendida como a forma de disciplinar o fiel, impor à moral cristã, sóli-

da, inquestionável, feita para ser obedecida, em muitos momentos, se flex ibiliza, favorecendo aos

interesses dos lideres. Quando a conjuntura exige, quando os interesses privados do grupo são a-

meaçados, acordos convenientemente entre moral cristã e política acontecem e a austeridade passa

a se configu rar como ap enas meio de se garantir a obediência. Detenho-me em justificar que esta

flexibilidade da austeridade somente é possível porque a moral cristã se fundamenta no principio

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da eternidade contido na tradição religiosa. Na verdade foi no contexto das décadas de 1920 e 1930

que a austeridade católica se tornou à alternativa política para a preservação da ordem, representa-

da pelo poder de mando de Ananias Arruda.

O exemplo empírico desta reflexão está no discurso do entrevistado que relata que Ananias

Arruda doava as terras dos proprietários sem consulta-los. Isto demonstra a conveniência entre os

interesses da fé e os interesses da política. Utilizou-se da fé católica para fortalecer os laços de

dependência entre autoridades.

A tradição religiosa que defendemos, aos moldes weberiano, é algo construído historica-

mente que se iniciou em algum momento a partir das experiências dos mais velhos, das autorida-

des culturalmente e economicamente preparad as e foi se solidificando a partir da transmissão entre

gerações se misturando paulatinamente valores ligados ao sagrado e o mundo profano p ara condu-

zir o processo de reprodução do poder, as práticas e atitudes foram sendo protegidas pelo caráter

repetitivo que as tornou eternas e que permitiu a formação da consciência da existência de uma

austeridade buscada na religião para legitimar as ações na política.

Dessa tradição se desenvolveu a noção de conveniência. Podemos citar exemplo. Basta nos

remeter a fundação do jornal a “A Verdade”. Que segundo o entrevistado, foi criado em 1917 para

divulgar os valores cristãos e preservar a moral católica, que naquela época, sofria ameaças com a

divulgação e aceitação social das idéias comunistas. Segundo ele, o jornal foi a forma como o co-

mendador auxiliou ao arcebispo de Fortaleza combater a ideologia que ameaçava a Igreja no Cea-

rá.

Acreditamos que o jornal “A Verdade” foi uma estratégia encontrada pelo “coronel” para

diminui a oposição as suas idéias conservadoras. Havia, naquele momento, uma forte resistência

entre a maioria dos membros da elite baturiteense ao comportamento austero ou “tirânico” de A-

nanias Arruda. Tudo se amenizou quando a cidade se deparou com a etapa de transição entre a

velha ordem, dominada pela conservação da tradição religiosa de conteúdo da proposta de romani-

zação, e a nova ordem, da proposta de ra cionalização do Estado. Que no auge da transição, todas

as décadas de 1920 e 1930, a elite local não teve preparação suficiente para manter a oposição e, o

governo estadual indicou o comendador, que se apegou a sua austeridade para liderar o processo

de reprodução do mando na cidade.

Este momento da história local foi o momento em que a trajetória do “coronel” na fé garan-

tiu seu lugar na política, provisoriamente. A resistência da elite baturiteense em aceitar Ananias

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como seu interventor ou prefeito residia na repulsa que qualquer indivíduo tinha da sua austerida-

de.

A exemplo tivemos o fato relatado pelo entrevistado. A proibição da construção do cinema

em Baturité pelo empresário Luiz Severiano Ribeiro, que foi obrigado a direcionar o investimento

para o projeto de Ananias Arruda de construção de um hospital sob sua administração.

Essa atitude “tirânica”, porque expropriou a liberdade alheia, dividia a elite política local e

Ananias não conseguia se projetar. Portanto, a aceitação pr ovisória do “coronel” como interventor

da cidade somente poderia se configurar numa ação de conveniência política entre a fé e a política,

momentaneamente.

Assim o comendador imaginou que a criação do jornal poderia auxilia-lo no combate aos

opositores. O fato é qu e no jornal “A Verdade” não se permitia críticas aos políticos, não se permi-

tia pensamentos contrários às idéias de Ananias Arruda, para isso, o jornal sempre foi financiado

exclusivamente pelo capital particular dos empreendimentos do “coronel”.

Na verdade o comendador desde a infância esteve convencido de que a doutrina católica ou

a tradição católica deveria prevalecer naquela cidade como a única alternativa de vida. Pois desde

criança foi educado para ser um cavaleiro da ordem pontifícia. Os interesses da Igreja d everiam

está em primeiro lugar. Basta observarmos as atas de reuniões das sessões de posse da câmara mu-

nicipal e da prefeitura municipal da época par a percebermos a invocação ao poder da Santa Igreja

em Jesus Cristo e Ananias Arruda fazendo questão de salientar que se a administração municipal

fosse orientada segundo os ensinamentos da Igreja com certeza teria sucesso, caso contrário, o

administrador deveria ser destituído.

Fundamentamos esta idéia de verdade católica defendida por Ananias Arruda na teoria da

ética da convicção da categoria dominação tr adicional de Weber. O comendador foi educado desde

criança a agir em defesa da fé católica. Quando adulto, teve a convicção de que representava todas

as verdades do cristianismo. Foi incapaz de se imaginar “tirano”, expropriador das liberdades a-

lheias. Privilegiado com as benesses do poder público marginalizou muitos em benefício de pou-

cos que reproduziam o mando naquele contexto.

Como conclusão chegamos a idéia de que em um curto período da história política de Batu-

rité, Ananias Arruda foi instrumento para reprodu ção do mando. Num período em que as circuns-

tâncias exigiam a presença de uma figura que representasse solidez frente às grandes mudanças

que estavam ocorrendo. O contexto era de substituição das velhas instituições político-sociais por

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outras de aparência moderna. Mas, sem perder de vista a permanência fundamental dos agentes

reprodutores do mando.

As velhas instituições político-sociais representadas pelo ru ralismo, analfabetismo, atrasos

econômicos deveriam ser substituídas por outras, representadas pelo projeto de racionalização

criado a partir d a década de 1930 pelo Estado. Nesse contexto as mud anças chegaram a mexer com

os agentes responsáveis pela reprodução do mando. Velhos agentes como a Igreja e as elites tradi-

cionais não quiseram perder espaço. Por isso, surgiu a figura momentânea do agente conciliador

dos interesses entre o moderno, racionalização e o tradicional, romanização . No desenrolar dessas

tensões é que emer ge a n ecessidad e da presença de algo que seja eterno para garantir as permanên-

cias necessárias mediante as mudanças obrigatórias do contexto nas dimensões do econômico, po-

lítico e social. A eternidade da tradição religiosa esteve presente na formação da personalidade do

agente conciliador que atuou especificamente no momento de transição entre a substituição do

tradicional para o moderno.

Somente levando em consideração este caráter momentâneo da necessidade do agente con-

ciliador é que podemos entender o porquê de Ananias Arruda permanecer tão pouco tempo no

mando político institucionalizado. Já que sua dominação se fundamentava na tradição religiosa.

Entendemos que o mandato de prefeito de Ananias Arruda foi algo circunstancial. O “coro-

nel” não possuía nenhum carisma para a política. Seu mando como “coronel” se fundamentava na

austeridade religiosa somada ao seu poder aquisitivo elevado. Sua passagem pela prefeitura se deu

pelas circunstâncias históricas. Todo país atravessava o momento de modernização, urbanização

racionalização da produtividade o que mexia com agentes tradicionais do poder. Essas circunstân-

cias exigiram que em todo país, pessoas que tivessem um pensamento empreendedor fossem indi-

cadas a se responsabilizarem pela condu ção do processo de transição. Na ausên cia dessa mente

empreendedora e moderna, poderia substituí-la, o agente conciliador entre o tradicional e o moder-

no. Nessas circunstâncias Ananias Arruda foi indicado em Baturité para ser o agente conciliador.

Passado este momento de conciliação nem mesmo a própria elite católica o acompanhou em novas

disputas eleitorais.

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UM SONHO DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA A SERVIÇO DA TRADIÇÃO RELIGI-

OSA

O segundo entrevistado contribuiu com o argumen to de que a partir da austeridade religi-

osa o “coronel” conseguiu o poder político. E a base foi o espírito empreendedor que alavancou

o acúmulo de riquezas e a projeção econômico-social de Ananias Arruda, ancorado na convicção

de que suas atitudes, decisões, atos e projetos, por mais particulares que fossem, por mais pesso-

ais que fossem, segundo ele, eram considerados legítimas e de interesse público porque ele se

sentia o “escolhido” pela fé para administrar os bens materiais e imateriais da sociedade naquele

momento. A segurança que o “coronel” tinha de que suas ações eram corretas, porque legitima-

das pela tradição religiosa, o fez agir como “dono” da cidade, impondo a obrigação da obediên-

cia como princípio católico, num momento em que a sociedade transitava entre o “r acional” e o

“romanizado” que discuti nos capítulos anteriores.

A seguir as entrevistas:

* Valmir Penaforte de Brito

(Ex-funcionário de Ananias Arruda)

Quero iniciar pelo ano em que fui contratado pelo comendador para trabalhar na obra de

construção do hospital José Pinto do Carmo em 1956 como ajudante de pedreiro. No ano seguin-

te, em 20 de maio de 1957, fui contratado como tipógrafo porque houve uma festa na cidade e o

tipógrafo responsável desobedeceu a ordem de Ananias Arruda e foi preso durante três dias,

quando voltou ao trabalho pediu demissão.

* Entrevista concedida para um sábado no local de trabalho do sr. Valmir Penaforte, como é conhecido o ex- funcio nário da gráfica do comendador Anan ias Arruda. Lá, em seu escritório, montado numa espécie de cooperativa de materiais hidráulicos e elétricos que abastece as empresas fornecedoras de energia e água da cidade, conversamos sobre como foi sua vida enquanto funcionário do “coronel” Ananias Arruda. Atualmente além de ser uma espécie de pro prietário da cooperativa, Valmir possui uma gráfica de aparência moderna localizada na principal avenida co mer- cial da cidade.

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O tipógrafo era um senh or conhecido como Torres. O Torres era um sujeito temido, traba-

lhava à base de álcool, muitos o chamava de príncipe. Valente e temido estava o Torres com três

mulheres da vida no p atamar da Igreja, quando, Ananias Arruda anunciou, na radiadora da Igreja,

que quem estivesse com mulheres nas proximidades da Igreja seria detido pelos policiais que

faziam a ronda noturna. E, o Torres, valente do jeito que era, desobedeceu as ordens do “coronel”

o que resultou na sua prisão por três dias. Este fato aconteceu na sexta feira. Na segunda feira,

livre das grades, o Torres pediu demissão e o jornal “A Verdade” ficou sem tipógrafo, foi quando

Ananias Arruda me convocou ur gentemente p ara trabalhar como tipógrafo. Eu nunca tinha ma-

nuseado um tipo de imprensa.

O “coronel” era homem respeitado, andava sempre com uma sombrinha na mão, o que ele

dizia poucos se recusam a não obedecer. Além de mim minhas irmãs, Doracir Penaforte de Brito,

Valdecí Penaforte de Brito e Auzir Penaforte de Brito foram contratados para trab alhar em na

produção e administração do jornal e em outras atividades econômicas de Ananias Arruda.

Por esse tempo ele possuía a indústria de cal em Umarí, indústria d e tinta Oca na rua 7 de

setembro no centro da cidade, indústria de b asculante (vitrô) para portas e janelas, indústria de

mosaicos (marmorite), além de fornecer lenha para a estrada de ferro. Nesta última atividade ten-

do em vista a gr andeza da demanda e a ausência da concorr ência, Ananias Arruda obteve alta

lucratividade, o que lhe permitiu comprar várias propriedades rurais. Ele sabia ganhar dinheiro.

As pessoas diziam que as águas só correm pro mar.

O comendador Ananias Arruda era homem sereno, disciplinado, a maioria do povo da

cidade o tinha como homem “próximo” de Deus. Portanto ele gozava de um prestígio fora de

sério entre os moradores. Enfrenta-lo significava ir contra a própria concepção de fé na cidade.

Certa vez na eleição de 1947, Ananias Arruda foi candidato a pr efeito e foi derrotado por

dr. Raimundo Viana. O opositor, por ter muito respeito ao comendado r, pediu-lhe desculp as pelas

investidas e agravamentos na campanha, porque a disputa travada fora de caráter político e não

pessoal.

O respeito ao “coronel” chegava a tal ponto que, circulava na cidade, o comentário de que

o comendador havia casado, mas, sua “obediência” a Deus era tal que ele tinha feito voto de cas-

tidade.

Um dos episódios que serviu para essa imagem do comendador foi a suposta compra, feita

pelo “coronel”, de toda rua São Paulo, porque o local concentrava todas as casas de prostituição e

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cabarés da cidade. O “coronel” comprou a rua to da e expulsou as prostitutas da cidade. Da mes-

ma forma proibiu bebida alcoólica a todos os seus funcionários. O que originou outro fato curio-

so. O funcionário João Alejado, viciado em álcool, misturava em uma garrafa álcool e água e

consumia. Ao mesmo tempo para vingar-se do “coronel” jo gava os tipos da tipografia do jornal

no mato.

O jornal era considerado por Ananias Arruda a fonte de conservação e renovação da fé

católica. Embora as despesas com a produção e circulação fossem de sua inteira responsabilidade,

não havia cobrança pela assinatura. O “coronel” o considerava importantíssimo para as obras

sociais da Igreja.

Sinto-me satisfeito em falar do exemplo que foi o comendador para minha formação, para

minha compreensão do que seja honestidade, disciplina e organização. Certo dia o governador

Menezes Pimentel deixou com Ananias Arruda uma certa quantia em dinheiro que deveria ser

distribuída entre os retirantes da seca em forma de cestas básicas, o comendador distribuiu o ne-

cessário e o restante ele enviou de volta ao governador o que causou espanto ao político. Não é

de práxis a devolução de recursos aos cofres públicos.

O jornal possuía uma rigorosa organização e rígida ética. Todos os dias da semana tinha

um santo homenageado. Em seguida vinha a coluna de comentários dos convidados de Ananias

Arruda. Eram colunas que versavam sobre assuntos religiosos, políticos, sociais ou da cultura

local, estadual, nacional ou internacional.

Não eram permitidas críticas a “qualquer” administração, não se “permitia” acusações,

não veiculava notícias que ferissem a “moral” da Igreja. Enfim o jornal era católico conservador.

Por isso, todos os dias o comendador sentava ao lado do rádio “BREVTE”, de origem alemã, e

ouvia as notícias do Vaticano que logo eram copiadas por ele e corrigidas ortograficamente por

sua filha Rosinha que as encaminhavam para a tipografia do jornal que aos domingos era distri-

buído.

FIM

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O AGENTE CONCILIADOR ENTRE O TRADICIONAL E O MODERNO

Na entrevista a imagem de Ananias Arruda que mais se evidencia é a de um sujeito em-

preendedor. Seus negó cios prosperavam porque ele aproveitava as oportunidades, tinha a ousadia

de manipular investimentos, contactar pessoas importantes, convencer investidores. Foi esta ca-

racterística de Ananias Arruda que chamou atenção do governo do Estado que o nomeou inter-

ventor de Baturité. Num momento em que a cidade precisava aderir o pro jeto de racionalização

do gov erno federal e manter as permanências da reprodução do mando pautadas na tr adição reli-

giosa romanizada foi que Ananias Arruda se configurou como a peça fundamental daquelas cir-

cunstâncias.

O comendador foi homem influente que de tudo fez para preservar seus contatos e usa-los

quando necessários. Infiltrado nos negócios da Igreja manteve-se entr e os principais membros da

hierarquia eclesiástica, até mesmo o papa chegou a condecora-lo com o título de Cavaleiro da

Ordem Pontifícia d e Roma. Foi uma figura muito importante na decisão de instalar em Baturité a

escola Apostólica dos Padres Jesuítas. Conseguiu por méritos trazer várias escolas de orientação

religiosa para cidade e construiu diversas instituições de assistência aos pobres através do seu

poder de persuasão que convencia às elites locais doarem recursos para a concretização dos seus

projetos de cunho assistencialista.

A fundação do jornal “A Verdade” foi a principal marca do empreendedorismo de Anani-

as Arrud a. Ele p ercebeu que controlando os meios de comunicação e as informações veiculadas

por eles poderia se auto- projetar e manter em ev idência suas ações e projetos. De 1917, ano da

fundação do jornal até 1935, ano em que foi nomeado interventor da cidade, o trajeto de Ananias

Arruda foi de conquistas na dimensão das obras de assistência aos pobres o que, mais tarde, no

momento da escolha do membro da elite local que iria por em prática o projeto de racionalização

do Estado, conciliado com a romanização, ele foi o escolhido. Contrariando todo o restante dos

membros da elite que resistiam a decisão. Ananias Arruda foi o homem que estava preparado

naquele momento para dá continuidade ao projeto de reprodução do poder em Baturité.

Acrescentamos ainda ao perfil empreendedor de Ananias Arruda a capacidade que ele

tinha de transferir d a religião para os negócios e para a política o comportamento austero, disci-

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plinador que conv enientemente propo rcionava a sensação de respeitabilidade, honestidade, in-

questionáveis para os que tinham admiração ao “coronel”. Chamamos esta austeridade de meio

facilitador para os acordos políticos convenientes que ocorreram a partir de 1935, que sustenta-

ram o “coronel” no poder por mais de seis anos. Prova disto está que o comendador após este

período jamais conseguiu se eleger prefeito de Baturité, apesar de muitas tentativas.

Esta austeridade conveniente foi essencial a partir da década de 1930 quando o Estado

quis racionalizar a produção e a Igreja romanizar a fé. Aos moldes weberiano, Ananias Arruda,

através da dominação tradicional, expandiu seu mando aos domínios extrapatrimonial. Ou seja,

com a mesma disciplina com que administrava seus negócios pessoais, o mesmo comportamento

expropriador das liberdades alheias com que con duzia os negócios da Igr eja, expandiu e os impôs

aos funcionários públicos municipais e à população no período em que foi interventor, momenta-

neamente.

Acreditando naquele mo mento ser o único agente político capacitado para a intervenção

na cidade o “co ronel” se apoderou da convicção de que se alguém estivesse com a Igr eja deveria

obedece-lo, quem não estivesse com a Igreja toda espécie de exclusão, perseguição e desvaloriza-

ção social. Dessa forma, atraiu muitos opositores a sua administração. Muitos episódios se defla-

graram como resposta às suas ações de mando.

Clemente Olintho Arruda relata em sua entrevista um fato que aconteceu na madrugada de

terça f eira do carn aval de 1937. Um grupo de opositores da elite local se pôs, neste dia, em frente

a casa do comendador recitando versos de críticas ao pod er “tirânico” do comendador. As princi-

pais críticas recaiam sobre o despotismo que tomava de conta da prefeitura da cidade. Somente

familiares do comendador ocupavam cargos estratégicos e de confian ça. Sobre este assunto foi

publicada em março de 1937, uma manchete no jornal “O Nordeste” denominada a “oligarquia

no poder em Baturité”.

Em comparação a dominação tradicional extrapatrimonial de Weber, a administração do

comendador se assemelha no aspecto da cultura da obediência ao chefe político. Este se apropria-

va dos recursos, instituições públicas e das benesses para ofertar segundo suas conveniências.

Cabendo aos subalternos aguardar as decisões do chefe político.

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O COMPORTAMENTO LITURGICO A SERVIÇO DA TRADIÇÃO RELIGIOSA NA

ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

O depoimento do ter ceir o entrevistado proporcionou condições par a traçarmos algumas

considerações sobr e os rituais litúrgicos da obediência. Entendermos como foi construída a ima-

gem do homem “bondoso”, “correto”, “honesto”, “santo”, afável com os que concordavam com

suas idéias e severo com os desobedientes. Nessa última entrevista, percebemos o quanto o ima-

ginário social foi trabalhado para aceitar a figura de Ananias Arruda. O quanto os rituais litúrgi-

cos de apresentações públicas, elogios, punições aos desobedientes e o controle sobre os meios

de circulação das informações, o fez parecer o homem “bondoso” ou “maldoso”, dependendo

dos interesses que manipulavam esses meios de propagação dos rituais litúrgicos.

* Francisco Moreira Filho – 96 anos de idade .

(fazendeiro proprietário da Fazenda Nova: Pedra Aguda – Aracoiaba)

O “coronel” Ananias Arruda era um homem de baixa estatura, usava uma túnica, uma

espécie de uniforme que os “coronéis ” quase sempre usavam, muito retraído. Hoje é que os “ co-

ronéis ” falam com qualquer um. Foi um homem de uma visão de mundo que fazia questão de

deixar clara par a todos de Baturité. Trabalhava com a produção de cal e quebrando ped ra, sofreu

os mesmos males que nós sofremos; as pessoas não queriam trabalhar no pesado.

Vinham de três ou quatro vagões de carros de trem para levar a lenha e, muitas vezes, era

difícil dá conta da demanda. Era um homem bem planejado nas suas atividades.

Ele não era bem visto pela população. Também na época Baturité tinha poucas pessoas

que se concentravam somente ali no centro. Era um lugarzinho pequeno, não tinha essa área por

fora, que se constitui nos bairros. Mas, Ananias era perseverante, o próprio Estado se beneficiava

Este senhor tem uma história de vida repleta de experiências, de lutas pela existência. Herdeiro de uma fazenda *

equivalente a mais ou menos 400 hectares de terra, que logo após o falecimento da esposa foram distribuídas entre o s cinco filhos do casal. Conheceu Ananias Arruda ainda menino.

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das coisas que ele administrava, por exemplo; agricultura, ele interferia na agricultura. Ele junta-

va todo mundo e pressionava o Estado no tempo de seca.

Ele tinha um comboio de jumentos interminável, naquele tempo o transporte era assim,

jumentos com esteiras para aliviar o couro, carregando pedras em caçambas de madeira que colo-

cavam em montes para queimar num buraco, com tantos metros de parede, e transformar em cal.

Todos em Baturité aguar davam a queima da cal do “coronel” que era transportada em vagões de

trem para Fortaleza, somente depois é que o povo de Baturité poderia ir ver se tinha sobrado al-

guma coisa para cidade.

Raimundo Arruda, parente dele, administrava um banco. Esse banco cob ria as dívidas de

Ananias. Ninguém ficava sem receber. Ainda hoje eu sei aonde se localizava o prédio desse ban-

co. Ele dizia o seguinte: ‘quem reza está comigo, quem não reza fica para depois’. Ele dava total

apoio àqueles que faziam parte do que ele chamava de família d ele, qu e andavam dentro do modo

de pensar dele.

Ele tinha um conceito, palavra positiva, temia a Deus, homem simples, não era aburgue-

sado, pensava em salvação, vivia com o clero, envolvido com as atividades católicas. Ele mano-

brava as atividades católicas porque ele tinha conhecimento, ele vinha de onde morava o papa no

Vaticano.

Nunca tomei conh ecimento de um filho do “coronel”, o povo diz, alguma, vozes dizem,

que ele era um homem casto. Afirmavam que ele tinha atenção para servir a Deus. Negócio dele

era religião. Depois da religião vinha a política. Mas ele era um homem assustado com a política

porque ele não era de confiar na eleição.

A senhora dele era tida como uma ‘santa’.

Naquele tempo Ananias ia pessoalmente fazer o pagamento dos trabalhadores porque pou-

cas pessoas sabiam ler, não tinha professoras para ensinar, hoje é que o Estado presta mais atenção

a isso. Naquele tempo quase ninguém sabia ler e nem escrever.

Ele abraçava a educação da cidade, a religião, todos tinham que obedecer a ele, não ti-

nha outra pessoa, tudo era ele. Ele se colocava em defesa da pobreza.

Parece que a família de Ananias Arruda não tinha tanta raiz, foi ele que puxou por si pró-

prio para construir seu p atrimônio. Honrando a palavra, sem ser chamado de velhaco, sem dá o

braço a torcer.

FIM

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A CONSTRUÇÃO LITURGICA PARA PROJEÇÃO POLÍTICA

A tradição eternizada legitimou as ações da administração extrapatrimonial. Entretanto,

ambas necessitaram da f orça do comportamento litúrgico aos “moldes” weberiano. O texto acima

representa bem a necessidade da solidez do comportamento austero a partir da liturgia. Quando o

entrevistado teve a preocupação de relatar o perfil de homem honesto, simples, sereno e religioso

que foi Ananias Arruda. Isto confirma que as repetições litúrgicas nos eventos públicos, nas esco-

las, no meio social, nos jornais, no boca-a-boca do dia-a-dia, foram eficazes para construção da

imagem do “coronel” católico.

Estas repetições dos rituais sociais, das homenagens, das doações de verbas à Igreja, dos

gestos de respeito, representam a força imposta pela necessidade da aquisição da obediência para

que o mando se reproduza e a ordem desejada seja instaurada. Segundo Weber isto se apresenta

como uma liturgia, uma obrigação que tanto o dominador como o dominado precisam respeitar e

preservar para que ambos tenham seus interesses defendidos. Se o comportamento litúrgico for

bem trabalho o dominador concentra mais poderes em suas mãos e por mais tempo controla he-

gemonicamente o mando e, o dominado, garante o mínimo de condições para sobrevivência.

O exemplo dessa cumplicidade para obediência está relatado na entrevista do sr. Moreira

quando ele diz que todos os populares de Baturité aguardavam que o “coronel” retirasse seus car-

regamentos de cal das pedreiras para somente depois tentarem retirar os resíduos para serem ven-

didos para ganharem algum dinheiro.

O comportamento litúrgico perpassa todas as dimensões da vida. Pode iniciar com a rela-

ção de dependência econômica, como a descrita acima, ou, pela dependência da assistência soci-

al, que ocorria com a oferta das escolas de orientação católica públicas par a pobres, ou hospitais

filantrópicos de car áter privado, ou, até mesmo, pelo atendimento da carência de moradias popu-

lares, como foi o caso da construção da vila operária São Vicente de Paula na décad a de 1920.

Em troca desses favores assistencialistas exigia-se dos pobres a obediência aos rituais litúrgicos,

desde a presença nas missas nos finais de semana, até a participação nos eventos públicos muni-

cipais.

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Esse comportamento de obediência aos rituais litúrgicos atingia a todos os grupos sociais,

entretanto, os pobres eram os mais fieis. Ao grupo que compunha a elite local r eservava-se além

dos rituais litúrgicos, os acordos legitimados pela tradição e as conveniências na administração

extra-patrimonial com a distribuição de cargos públicos.

Fundamentados nessa argumentação temos algumas considerações. Primeiro, o “coronel”

não possuía nenhum carisma para política. A prova disso está em que ele nunca conseguiu se

eleger prefeito após sua indicação para interventor ou da eleição legitimada p ela Liga Eleitoral

Católica. No período de redemocratização do país, ocorrido a partir de meados da década de

1940, Ananias Arruda jamais conseguiu votação significativa para exercer o cargo de prefeito.

Segundo, mesmo proprietário da maioria das casas de comércio, indústrias e melhores terras da

região o comendador, jamais, conseguiu se impor como chefe político que tivesse legitimação do

poder político pela base econômica. Exercia o mando de caráter social garantido pela importância

econômica de seus empreendimentos e negócios, que, acima de qualquer coisa, garantia o traba-

lho e os salários de muita gente da região. Entretanto, poder e importância político-eleitoral Ana-

nias Arruda não conseguiu. Terceiro e último, sua austeridad e na vida social e religiosa impedia

qualquer sinal de unanimidade para aceitação d a figura do “coronel” como liderança política. O

que teve de especial no mando de Ananias Arruda, no período investigado, foi o acordo de con-

veniência entre interesses político-econômicos opostos; Estado versos Igreja Católica. Ambos

precisavam defender seus interesses em um momento histórico em que os lados opostos deveriam

se “aliar”, momentaneamente, para garantir a continuidade do mando. E que para isto foi necessá-

rio a indicação de indivíduos conciliadores e de confiança que tivessem as características que

Ananias Arruda apresentava; austeridade, disciplina e, prin cipalmente, espírito empreendedor, na

época, denominado de espírito progressista.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A idéia que norteou todo o processo de elaboração deste trabalho foi a de que Ananias

Arruda, entre todos os chefes políticos do Nord este, ex erceu um certo tipo de mando que deno-

minamos de o “coronel” cristão. Tendo em vista a disciplina na fé católica partindo do pressu-

posto de que a doutrina da Igreja era uma espécie de verdade inquestionável, imutável e que to-

dos na cidade deveriam por obrigação obedecer.

A denominação “coronel” cristão veio desta obstinação que conseguimos observar de A-

nanias Arruda a tudo que se referisse ao discurso da Santa Sé. Identificou-se com o ambiente de

disciplina e intolerância religiosa. Seu trajeto na fé católica foi recheado de grandes amizades

tanto de chefes católicos importantes, arcebispos e padres como de políticos de destaques.

Estas amizades possibilitaram a construção de uma trajetória de empreendedorismo para

Ananias Arruda o “coronel” cristão apto a fun ção de conciliador nas tensões entre romanização e

racionalização .

Ananias Arruda nunca teve carisma para política. Nunca foi aceito pelo povo. Nunca con-

seguiu vencer uma eleição democrática na cidade. Dos mandatos exercidos, um foi por indicação

do governador, outro, por pressão das elites e imposição aos eleitores que dele dependiam nas

questões de apóio econômico ou jurídico etc. A única vez que se candidatou ao pleito democráti-

co foi derrotado por Wellington Viana em 1962.

Chegamos ao final desse trabalho e a sensação que temos é qu e a história do mando no

Nordeste conserva permanências das características políticas tradicionais apontadas por grandes

intérpretes da história nacional. Entre eles, principalmente Paulo Prado e a tristeza profunda do

povo provocad a pela frustração de não ter conseguido saciar as ambições. Ananias Arruda se

eternizou como o “coronel” que não conseguiu se impor politicamente. Frustrou-se no projeto de

busca constante do poder político. Seu prestígio econômico não foi suficiente. Buscou o mando

através da fé. Incessantemente quis alongar seu mando para a política o que deu origem a sua

grande frustração e tristeza congênita. Sérgio Buarque de Holanda na construção do homem cor-

dial nos fornece informações sobre as origens das mazelas do comportamento do brasileiro. Este

originário da idéia de que a cultura européia e a fé na Igreja Católica eram as matrizes legítimas

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para construção da civilidade em qualquer território. Nos países tropicais houve uma adequação

dessas matrizes a realidade local. No Brasil o abrasileiramento dessas matrizes européias nos faz

entender as conveniências que existiam no comportamento austero de Ananias Arrudas. No pen-

samento de Sérgio Buarque de Holanda o português que serviu de matriz para as origens do povo

brasileiro era um sujeito degenerado, corrupto nos valores da época. Portanto, o comportamento

nobre no Brasil e a religiosidade cristã ap arentavam ser de superfície. Tanto os valores como a

religião eram de aparência, possibilitando o surgimento dos vícios presentes no comportamento

do brasileiro. Além desses dois intérpretes que foram de suma importância para compreensão da

trajetória do “coronel”, nos apoiamos também em Caio Prado Jr e suas idéias sobre os conflitos

entre as classes sociais. Nesse ponto buscamos compreender o pensamento dialético que há na

cumplicidade que permeia a relação dominador e dominado na ocorrência do fenômeno da obedi-

ência. Caio Prado Jr entende que o caráter complementar da economia brasileira obrigou nossas

elites a obter comportamentos contrastantes com a realidade nacional e determinou a origem do

modelo de obediência presente na nossa história.

Enfim, consideramos os trabalhos de Capistrano de Abreu, Caio Prado Jr, Paulo Prado,

Oliveira Viana, Manoel Bonfim, Gilberto Freire, Raimundo Faoro, entre outros, a base para qual-

quer estudo sobre a realidade nacional. Quando optamos por estudar a categoria “coronelismo”

não poderíamos abrir mãos de entender o comportamento patriarcal, o patrimonialismo e o pen-

samento conservador analisado por Raimundo Faoro, Gilberto Freire etc. De certa forma os estu-

dos posteriores aos grandes interpretes da nacionalidade possuem uma car acterística de continui-

dade. Não é o nosso caso, não temos a pretensão de dá continuidade aos brilhantes trabalhos da

intelectualidade brasileira, mas, nos fundamentos nos seus estudos para entendermos realidades

isoladas.

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ENTREVISTAS

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ANDRÉ, Edson. (participação direta na coleta de dados sobre Baturité).

MOREIRA FILHO, Francisco. Concedida em 08 de julho de 2006.

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JORNAIS E OUTROS

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AD PERPETUAM REI MEMORIAM. (panfleto) Baturité, 19 de novembro de 1936.

JESUÍTAS. (panfleto) Hotel Antiga Escola Apostólica de Baturité. 2000.

UMA RESERVA DE VIDA. (panfleto) Aratuba, Baturité, Guaramiranga, Mulungu, Pacoti

e Palmácia. Fortaleza; Governo do Estado/Secretaria da Indústria e Comércio.

“O Cruzeiro”. Açude na Serra. Escrito por Rachel de Queiroz. Última página.

“O Nordeste”. Exame de consciência coletivo. Fortaleza, 04 de julho de 1936. Acervo biblioteca

pública de Fortaleza (jornais das décadas de 30 e 40).

“O Povo”. Oligarquia em Baturité. Fortaleza, 12 de março de 1937.

IBGE. Mapa Municipal no 5º vol.

ANUÁRIO, IPLANCE, 1997.

Planejamento Biorregional do Maciço de Baturité, Ce. Instituto Brasileiro do Meio Ambiente

e dos Recursos Naturais Renováveis. UECE; Fortaleza. BNB, 2002.

MACIÇO DE BATURITÉ: Plano de Desenvolvimento Regional. SEMACE, 1997

ATAS DE REUNIÕES: Reuniões da Igreja de Baturité – séc. XX.

Câmara Municipal – séc. XX.

Livros de licenças comerciais – séc. XX.

Estatutos da Associação Comercial – séc XX.

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ANEXOS

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