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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE SANTA CRUZ UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ADAILSON HENRIQUE MIRANDA DE OLIVEIRA O SANTO É DE ILHÉUS; A LAVAGEM, DE SALVADOR Reflexões sobre industrialização e mercantilização no processo de turistização da Lavagem das Escadarias da Catedral de São Sebastião ILHÉUS-BAHIA 2005

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Page 1: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE SANTA CRUZ … · de Turismo, criados em setembro de 1953, lançaram, no ano seguinte, um Plano Diretor de Turismo para orientar uma atividade que, por volta

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE SANTA CRUZ UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

ADAILSON HENRIQUE MIRANDA DE OLIVEIRA

O SANTO É DE ILHÉUS; A LAVAGEM, DE SALVADOR Reflexões sobre industrialização e mercantilização no processo de turistização da

Lavagem das Escadarias da Catedral de São Sebastião

ILHÉUS-BAHIA 2005

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ADAILSON HENRIQUE MIRANDA DE OLIVEIRA

O SANTO É DE ILHÉUS; A LAVAGEM, DE SALVADOR Reflexões sobre industrialização e mercantilização no processo de turistização da

Lavagem das Escadarias da Catedral de São Sebastião

Dissertação apresentada, para obtenção do título de Mestre em Cultura & Turismo, à Universidade Estadual de Santa Cruz / Universidade Federal da Bahia. Área de Concentração: Memória, Identidade e Expressões Regionais. Orientador: Prof. Dr. Milton A. Moura.

ILHÉUS-BAHIA 2005

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ADAILSON HENRIQUE MIRANDA DE OLIVEIRA

O SANTO É DE ILHÉUS; A LAVAGEM, DE SALVADOR Reflexões sobre industrialização e mercantilização no processo de turistização da

Lavagem das Escadarias da Catedral de São Sebastião

Dissertação apresentada, para obtenção do título de Mestre em Cultura & Turismo, à Universidade Estadual de Santa Cruz / Universidade Federal da Bahia. Área de Concentração: Memória, Identidade e Expressões Regionais. Orientador: Prof. Dr. Milton A. Moura.

Ilhéus-BA, 27/08/2005

_________________________________________________________________________ Milton Araújo Moura – Dr.

UFBA – Universidade Federal da Bahia. (Orientador)

________________________________________________________________________ Maria de Lourdes Netto Simões – Dra.

UESC – Universidade Estadual de Santa Cruz.

_________________________________________________________________________ Benito Muñoz Juncal – Dr. Faculdades Dois de Julho.

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DEDICATÓRIA

Um trabalho que temos a oportunidade de desenvolver é a nossa realização máxima e dedicá-lo a alguém é reconhecer que outras pessoas também o construíram de algum modo. Portanto, aos meus familiares – em especial Iraci, minha mãe, e Adilson, meu pai – que, com carinho e incentivo não mediram esforços para que eu atingisse mais este objetivo de vida, dedico.

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AGRADECIMENTOS

Aos Departamentos de Economia, Letras e Artes, e Filosofia e Ciências Humanas, da Universidade Estadual de Santa Cruz, pela oportunidade de realização do Curso.

Ao então coordenador do Curso, Prof. Dr. Hélio Estrela Barroco, pela dedicação e oportunos aconselhamentos.

À atual coordenadora do Curso, Profa. Dra. Sandra Sacramento, pela condução e atenção na etapa final de estudos e produção.

À funcionária do Curso Graça Argolo, pela atenção, gentileza e presteza na assessoria. Aos colegas e aos professores do curso, em especial, às Profas. Dras. Maria de

Lourdes Netto Simões e Maria Hilda Barqueiro pelos sábios ensinamentos. À Profa. Dra. Janete Ruiz de Macedo, pelo aconselhamento e pela presteza com que

atendeu minhas solicitações de pesquisa. Aos funcionários do Centro de Documentação e Memória da UESC (CEDOC), em

especial, à funcionária Flordeni, pela colaboração na coleta de dados. À pesquisadora Aline Santos de Brito Nascimento, pela colaboração no processo de

coleta das imagens. A Fábio Lisandro e Rianne Cardin, pelo apoio e pela colaboração na conformação

lingüística do trabalho. Ao Prof. Arléo Barbosa e à Sra. Maria Luiza, pelos depoimentos e pela contribuição

na coleta dos dados de pesquisa. Ao presidente do Sindicato dos estivadores de Ilhéus, Emerso Tavares, pela audiência

e possível colaboração. Aos turistas, guias turísticos, populares, gestores e às baianas, pela colaboração e pelos

depoimentos concedidos. Aos amigos Adriano Lemos, Ana Paula, Cíntia Paula e Moabe Breno, pelo convívio,

amizade e companheirismo. À amiga Adriana Lemos que, grávida e em fase de finalização da sua dissertação,

compartilhou angústias mútuas e soube ser a amiga perfeita. Aos meus irmãos, Adilma, Adilson Filho e Cristiane, pelo companheirismo, carinho,

apoio e amizade. À minha noiva, Thaísa, pela compreensão, auxílio, atenção e paciência no período de

pesquisa e produção do trabalho. E, especialmente, ao Prof. Dr. Milton Araújo Moura pela paciência e brilhantismo

dispensados na orientação ao trabalho que aqui se apresenta.

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O SANTO É DE ILHÉUS; A LAVAGEM, DE SALVADOR

Reflexões sobre industrialização e mercantilização no processo de turistização da Lavagem das Escadarias da Catedral de São Sebastião

Autor: ADAILSON HENRIQUE MIRANDA DE OLIVEIRA

Orientador: Prof. Dr. MILTON ARAÚJO MOURA

RESUMO

Investigação sobre a Lavagem das Escadarias da Catedral de São Sebastião, em Ilhéus, litoral-sul da Bahia, com ênfase na cultura local e nas conexões estratégicas com o hegemônico discurso da baianidade promovido na atividade turística do Estado da Bahia. O trabalho enfoca festa baiana,

identidade e turismo na relação direta com a celebração dessa lavagem e a homenagem originária ao santo padroeiro dos estivadores ilheenses. Tendo em vista as intervenções das indústrias e dos mercados de bens

simbólicos, analisa a comemoração atual e o tributo nativo com vistas a identificar a ocorrência dos processos de estetização e espetacularização culturais no evento da lavagem, e de dessimbolização da festa nativa. Considera as transformações ocorridas e as múltiplas facetas que compõem essas mudanças para

apresentar sugestões capazes de colaborar para uma reflexão-crítica a respeito da importância de se imprimir maior coerência e imputabilidade nas deliberações político-administrativas voltadas ao setor

turístico, em especial, no universo das decisões de cunho social e/ou cultural. Salvaguardando a dinâmica cultural, conclui que a execução da Lavagem de São Sebastião deveria fundamentar-se em princípios de

respeito à cultura ilheense e, de forma participativa, priorizar a sustentabilidade cultural.

Palavras-chave: cultura; turismo; religião; identidade; baianidade.

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THE SAINT IS OF ILHÉUS; THE WASHING, OF SALVADOR Reflections about industrialization and marketization in the process of touristization of

the Washing of the Stairs of the Saint Sebastian’s Cathedral

Author: ADAILSON HENRIQUE MIRANDA DE OLIVEIRA

Adviser: Prof. Dr. MILTON ARAÚJO MOURA

ABSTRACT

Investigation about the Washing of the Stairs of the Saint Sebastian’s Cathedral, in Ilhéus, in the south coast of Bahia, pointing out in the local culture and in the strategic connections hegemonic discourse of the baianidade promoted by the tourist activities in the State of Bahia. This search emphasizes the baiana’s parties, identity and tourism in the directed relation with the celebration of this washing and the honor originally to the Saint protector of the stowers from Ilhéus. Because of the industries interferences and symbolical goods markets, analyses the present celebration and the native tribute to identification of the frequency of the standard cultural process in the washing and of dissymbolization of the native party. Observing the changes and the multi faces that are involved in these changes to present suggestions able to help in the critical reflection about the importance of having more coherence and imputability in the political management to the tourism section, in special, in the universe of the social and/or cultural decisions. Protecting the cultural dynamic, it was concluded that the Washing of the Stairs of the Saint Sebastian Cathedral should be based on the respect of the culture in Ilhéus and, in a participative way, priority the cultural support. Keywords: culture; tourism; religion; identity; baianidade.

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LISTA DE FIGURAS

Figura Página

1 Bainas reunidas antes da cerimônia da Lavagem. 117

2 Ensaio da banda de percussão antes da saída do cortejo. 117

3 Populares, estivadores e coronéis no tributo originário a São Sebastião. 119

4 Turistas e populares na Festa-Lavagem de São Sebastião. 119

5 Baiana vestida para a Lavagem de São Sebastião. 126

6 Baianas associadas ao camdomblé. 127

7 Atual fachada do Sindicato dos Estivadores de Ilhéus. 128

8 Homens travestidos de baiana na Lavagem de São Sebastião. 128

9 Capa e interior de folder promocional das festas tradicionais de Ilhéus. 129

10 Presença da equipe de reportgem da TV Santa Cruz/Rede Bahia. 129

11 Catedral de São Sebastião em Ilhéus. 131

12 Limpeza interna da Catedral de São Sebastião por populares e devotos. 138

13 As carroças e os devotos responsáveis pela limpeza da Catedral. 139

14 Fanfarras no tributo originário a São Sebastião. 140

15 Fuga das baianas diante da participação de populares e turistas em 2004. 142

16 Caminhão-pipa em frente à Catedral de São Sebastião na Lavagem de 2004. 143

17 Fuga das baianas diante da participaçaõ de populares e turistas no passado. 143

18 Cortejo da Lavagem de São Sebastião em 2005. 144

19 Lavagem de São Sebastião em 2005. 144

20 Presença popular no cortejo realizado no tributo originário a São Sebastião. 145

21 Participação popular na festa realizada no tributo originário a São Sebastião. 145

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SUMÁRIO

Página

Resumo

v

ABSTRACT vi

LISTA DE FIGURAS vii

1 INTRODUÇÃO 1

2 BAHIA, ILHÉUS E LAVAGEM: TEMA, CAPÍTULO E ALÍNEA 25

2.1 Baianidade: um tema de Bahia 32

2.2 Grapiunidade: um capítulo de Bahia 45

2.3 Lavagens de igrejas: uma alínea de Bahia 60

3 Indústrias, Mercados e Padrões Culturais: Perdas e Ganhos

68

3.1 Industrialização e mercantilização da cultura 72

3.2 Estetização e espetacularização da cultura 93

3.3 Símbolo e dessimbolização da cultura 102

4 PADRÕES, ESTÉTICAS, ESPETÁCULOS E SÍMBOLOS: DO TRIBUTO À FESTA 111

4.1 Festa-Lavagem de São Sebastião: um fenômeno de estetização 117

4.2 Lavagem de São Sebastião: um fenômeno de espetacularização 127

4.3 Tributo a São Sebastião: um fenômeno de dessimbolização 137

5 Considerações Finais

150

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 158

DEPOIMENTOS CONCEDIDOS 165

APÊNDICES 166

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111 IIInnntttrrroooddduuuçççãããooo

Parece consensual que o binômio turismo1-cultura2 corresponde a um importante setor

da economia baiana. A certificação desse campo implicou a elaboração de uma complexa

trama identitário-cultural3 cuja proeminência, em esfera estadual e nacional, sugeriu a

construção e a afirmação de uma sólida baliza. Através das agências turísticas e dos meios de

comunicação, a imagem da cidade de Salvador e do Recôncavo, entendidos em certo tempo e

sentido como Cidade da Bahia, associou-se a uma representação estética e espetacular da

festa religiosa, profana e mística, de um lugar onde as pessoas viveriam em permanente

estado de alegria e despojamento, supostamente proporcionado por uma condição mestiça na

qual refulge, emblematicamente, a origem africana, como se a propagada felicidade baiana

repousasse e se alimentasse num componente étnico.

Para entender esse processo de associação representacional entre a Bahia e a

felicidade, deve-se, num primeiro momento, compreender o desenvolvimento histórico dos

procedimentos de oficialização do turismo baiano, que teve início no dia 04 de dezembro de 1 Entende-se turismo, de acordo com Moesch (2000, p. 21), como “um fenômeno com conseqüências culturais, sociais, políticas, comunicacionais, que deve ser estudado [...], não somente do ponto de vista mercadológico, mas também nas preocupações sociológicas, antropológicas, geográficas, etc.”. 2 Entende-se cultura a partir da perspectiva idealista do antropólogo Geertz (1978), como um sistema simbólico, um aparelho de representação característico de um povo, de uma sociedade. 3 Entende-se identidade cultural conforme Coelho Netto (1999), como noção-chave, que aponta para um sistema representacional (dados de simbolização e sua encenação) das relações entre indivíduos e os grupos e entre estes e seu território de reprodução e produção, seu meio, espaço e tempo.

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1951, com uma lei que instituiu o Código Tributário e de Rendas da Cidade de Salvador. No

título XIII, este estatuto estabelecia uma taxa sobre passagens comercializadas, diárias em

hotéis e pousadas, serviços de concessionárias e arrendatários de veículos marítimos, aéreos e

terrestres. Além disso, o Conselho de Turismo da Cidade de Salvador e o Diretório Municipal

de Turismo, criados em setembro de 1953, lançaram, no ano seguinte, um Plano Diretor de

Turismo para orientar uma atividade que, por volta de 1959, transformou-se em um dos mais

importantes setores programáticos do Plano de Desenvolvimento da Bahia.

Uma década mais tarde, em 29 de agosto de 1968, a Empresa de Turismo da Bahia

S.A. (BAHIATURSA) foi fundada com a finalidade, dentre outras, de promover o

crescimento do fluxo turístico no Estado; divulgá-lo nacional e internacionalmente, através da

realização de eventos, da edição e publicação de matérias promocionais; e aprimorar a

qualidade dos serviços turísticos, bem como de promover a valorização do patrimônio natural

e cultural baiano. Os diversos empreendimentos implementados pela BAHIATURSA, que

transformaram a cidade de Salvador e parte da região do Recôncavo em um dos principais

pólos turísticos brasileiros, sobretudo no âmbito do turismo cultural4, alcançaram formas

inusitadas e reconhecidamente inovadoras.

Sem dúvida, a legitimação da Bahia na paisagem turística interna e externa ocorreu,

principalmente, por via do discurso oficial do aparelho de Estado, que promoveu um

crescimento significativo do turismo baiano. Além de permanentes campanhas de divulgação

nos meios de comunicação e nas agências de turismo, nacionais e internacionais, a

BAHIATURSA adotou várias providências com a finalidade de consolidar uma posição de

destaque para a capital baiana no mercado turístico. Dentre essas medidas, destacam-se a

concepção, o apoio estrutural, o financiamento e a divulgação de uma série de eventos

4 Entendido conforme Coelho Netto (1999), como uma atividade de caráter ambíguo, pois não se delineia como prática cultural propriamente dita nem participa integralmente do mesmo contexto de aspectos que sinaliza o turismo. Em geral, fundamenta-se ou numa curiosidade imprecisa ou em meras motivações consumistas.

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esportivos, culturais, artísticos e festivos tanto na cidade de Salvador quanto nas localidades

da região do Recôncavo.

No entanto, além da elocução do aparelho oficial do Estado, outros sujeitos, nos mais

distintos campos – na política, na literatura, na ciência, nas artes, nas empresas do turismo e

na mídia – falaram publicamente para e por todos os baianos, já que delinearam

representações de mundo que se colaram à realidade enunciada e se tornaram verdadeiras,

porquanto enunciadas por atores autorizados a criar categorias importantes na visão de mundo

do senso comum. Nesse sentido, vale lembrar que a imagem do ser baiano começou a ser

elaborada em um contexto histórico no qual o rádio, a revista e o jornal eram os principais

meios de comunicação de massa brasileiros, já que a televisão, inaugurada no Brasil em 1950,

passou a ter um alcance de maior escala apenas na segunda metade dos anos sessenta.

Aproximadamente entre o fim da década de sessenta e o início dos anos setenta, a

sedução do turismo baiano toma uma direção mais categórica. Nesse período, foram

realizados altos investimentos na reestruturação do espaço urbano de Salvador, sobretudo no

que se refere à higienização da cidade, com o objetivo de viabilizar o crescimento da

exploração turística. A mídia dos grandes centros do sudeste do Brasil passou a dedicar à

capital baiana amplas e recorrentes reportagens com ênfase em roteiros de viagens exclusivos,

que incluíam passeios exóticos e festas quase cotidianas. A Cidade da Bahia, portanto,

começa a ser descoberta como uma espécie de ancoradouro de etnias, mistérios, exotismos,

liberdades, alegrias e celebrações.

Nesse sentido, caberia dizer que com o imprescindível apoio do governo, da mídia e

de artistas baianos, a BAHIATURSA pode ser considerada uma das principais responsáveis

pela inserção e disseminação de uma bem elaborada imagem baiana no mercado de bens

simbólicos5. A partir da ação conjunta entre o governo do Estado e os veículos de

5 Entendidos aqui conforme Adorno (1986a), como o conjunto de manifestações populares, expressões artísticas e procedimentos culturais, que constitui o patrimônio, a herança cultural de um povo.

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comunicação populares, uma noção de cultura baiana começou a ser retratada como

folclórica, exótica, sensual, mística, pronta para o consumo e produzida por um povo negro,

sofrido, mas feliz. Para avaliar a eficácia dessa atuação, pode-se considerar a repercussão de

grande sucesso de um dos primeiros e principais veículos de comunicação oficiais do turismo

baiano, a revista Viver Bahia, lançada em novembro de 1973, e que logo no primeiro número

estampou na capa a inusitada foto de uma mãe-de-santo negra e sorridente.

Se, por um lado, deve-se considerar a BAHIATURSA um dos organismos cardeais

para que a representação da Bahia fosse fixada e difundida no mercado de bens culturais, por

outro, a propaganda turística em torno de uma bem elaborada imagem pode ser compreendida

como um discurso fundamental para a construção da noção da indolência, da sensualidade e

da festa baianas. Além disso, ao fazer aderir sobre a Bahia, principalmente sobre a cidade de

Salvador e o Recôncavo, uma aura libertina e paradisíaca, a ingerência dos veículos de

comunicação contribuiu para a ocorrência de desdobramentos que fizeram com que o Estado

fosse comercializado para o turista, sobretudo o estrangeiro, como um lugar privilegiado para

o encontro com a folia, o prazer, a orgia, o sexo fácil e livre.

Na segunda metade da década de setenta, com a posse da nova administração pública

estadual, o governo da Bahia passou por uma ampla reestruturação. Uma das medidas dessa

reforma administrativa foi suprimir o Conselho Estadual de Turismo e a Coordenação de

Fomento ao Turismo. Por conta dessas supressões, a BAHIATURSA recebeu um incremento

estrutural e funcional que a possibilitou assumir as funções dessas duas instituições. Além

disso, a Empresa de Turismo da Bahia S.A. passou a centralizar a gerência dos

Empreendimentos Turísticos da Bahia S.A. (EMTUR) e do Centro de Convenções da Bahia

S.A. (CONBAHIA). Nesse período, o turismo baiano foi alvo de uma série de ações

estratégicas. A primeira delas, o Plano de Turismo do Recôncavo, visava à planificação da

atividade turística em Salvador e no Recôncavo.

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A partir dessa primeira estratégia, entre 1979 e 1983, a BAHIATURSA foi

responsável por promover, apoiar e/ou realizar diversos eventos, dentre os quais destacam-se

Noite do Samba, Ceia Baiana, Samba de Roda, O Sol se Põe no Farol, Dia da Baiana, e

Musicamp, além da organização de regatas de saveiros, feiras de artesanato, festivais de

música e exposições artísticas. Com o propósito de conferir às manifestações populares da

Bahia uma acepção nova e singular, o engenho oficial do turismo baiano organizou um amplo

ciclo de festas populares e projetou ainda mais o carnaval de rua, que passou a ser

comercializado e promovido como o principal e maior evento turístico do Estado, com cinco

dias de folia e características muito peculiares.

Após a efetivação do Plano de Turismo do Recôncavo, a BAHIATURSA desenvolve

uma segunda estratégia turística, dessa vez com foco no interior do Estado. A partir de um

programa denominado Caminhos da Bahia, a agência oficial do turismo da Bahia visou ao

planejamento turístico de doze localidades, dentre as quais está Ilhéus, cidade onde se realiza

a Lavagem das Escadarias da Catedral de São Sebastião, objeto desse estudo. De acordo com

Gaudenzi (2001), o poder público pretendia, com essa investida, viabilizar o estabelecimento

e o gerenciamento de novos e melhores leitos, a habilitação de mão-de-obra especializada, a

divulgação e a captação de linhas aéreas internacionais, além de maiores e mais expressivos

empreendimentos de marketing.

Nesse período, com o implemento de novos investimentos publicitários, inclusive a

criação e a veiculação interna e externa do slogan Bahia: Terra da Felicidade, uma certa

alocução acerca do ethos baiano6 começa a receber maior promoção turística, principalmente

com um novo direcionamento da presença ostensiva de determinados atores especializados:

mídia, artistas, agências. No entanto, vale lembrar que desde meados da década de cinqüenta,

esse modus vivendi baiano-soteropolitano tem sido apropriado e divulgado pelo setor turístico.

6 Vale salientar que esse ethos diz respeito a cidade de Salvador e Recôncavo.

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Através dessa apropriação e divulgação, a Bahia começou a ser gradualmente demarcada, e

ainda hoje tem sido definida, como o lugar do exótico, do místico, da mestiçagem afro-

descendente, da bonança, da sensualidade, da alegria, da festa, um lugar do não-trabalho, do

tempo-livre e, por conseguinte, do turismo.

Em síntese, pode-se afirmar que a administração pública nos níveis estadual e

municipal com a BAHIATURSA, a Empresa de Turismo de Salvador S.A. (EMTURSA) e

outras secretarias municipais de turismo no interior, representantes dos interesses de um

complexo engenho turístico, e obstinados a difundir uma imagem da cultura baiano-

soteropolitana, empregaram uma bem elaborada narrativa identitária para promover

turisticamente a Cidade da Bahia. Por meio de ações estratégicas, o povo e o cotidiano da

Bahia, em particular da cidade de Salvador, foram promovidos e oferecidos aos turistas como

um produto atraente e singular.

Nessa direção, sobretudo a partir da década de oitenta, o setor turístico baiano,

apoiado pelos artífices promotores do turismo no Estado, divulgou e comercializou a Bahia a

partir de uma certa noção de baianidade, uma narrativa significativa inspirada em um

determinado cotidiano soteropolitano, e inspiradora dos destinos baianos7. Esse discurso, uma

alocução empregada tanto pela imprensa especializada e literatura do turismo quanto por

alguns importantes estudiosos e artistas, pode ser interpretada como uma construção plasmada

na interação entre as esferas de uma conjuntura soteropolitana, arquitetada como modo de

vida francamente manifesto numa tradição, sobretudo afro-descendente.

Assim, o discurso da baianidade pode ser pensado como uma espécie de instauração

simbólica e ideológica entendida como “sistema cultural que alinha as noções de ideologia e

cultura, sendo a primeira uma faceta da segunda” (GEERTZ, 1978, p. 15). Alguns dos

contornos deste construto simbólico podem ser identificados, sobretudo em diversas

7 Essa acepção da expressão baianidade inspira-se na compreensão de Moura (2000). Nesse sentido, os termos narrativa e texto designam uma tessitura de sentidos capaz de enunciar, minuciosamente e pelos mais variados discursos, os componentes identitários do ethos baiano.

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manifestações culturais de Salvador e do Recôncavo, especialmente nas três últimas décadas

do século XX e início do XXI – literatura, arquitetura, artes plásticas e, em grande medida, as

celebrações de cunho sagrado e/ou profano, a musicalidade, incluindo-se aí a denominada axé

music e o pagode baiano inspirado no samba de roda, que invadiram e foram usados

massivamente pela mídia.

A narrativa da baianidade se constitui, basicamente, como a representação

supostamente consensual de uma cultura baiana singular esboçada e enfaticamente

espiritualizada em místicas, cores, danças, músicas, festas e alegrias de uma tradição mestiça,

entendida pelas empresas do turismo como um importante produto turístico8 que atende a

segmentos específicos de consumo. No entanto, apesar de se comercializar turisticamente uma

noção de baianidade singularizada na cidade de Salvador e, em certa medida, no Recôncavo

baiano, caberia reconhecer que a Bahia apresenta uma cultura plural e que nela há distintas e

distintivas tessituras identitárias. Com base nos estudos de Featherstone (1995a), pode-se

afirmar, inclusive, que todo e qualquer corpo social constitui, por si, em si e, prioritariamente,

para si mesmo, uma manifestação de códigos culturais determinados num dado espaço, tempo

e dinâmica sociais.

Desse modo, compreendendo a cultura tanto como modo de vida quanto como

produtos e experiências espiritualmente elevadas, pode-se dizer que qualquer localidade

humana, ao produzir e dar significados a artefatos, espaços e expressões existenciais pela e

para a própria sociedade, e não apenas nela, detém uma cultura legítima que a identifica.

Deve-se afirmar, ainda, que essa legitimidade destoa de qualquer tentativa de comercialização

de uma espécie de cultura de consumo9 baiano-preeminente a partir do discurso de uma

baianidade soteropolitana como representação hegemônica de toda a Bahia. Ademais, não se

8 Conforme Lage e Milone (1990, p. 51), “conjunto de bens e serviços relacionados a toda e qualquer atividade de turismo”. 9 Entendida aqui como “prazeres emocionais do consumo, os sonhos e desejos celebrados no imaginário cultural consumista e em locais específicos de consumo que produzem diversos tipos de excitação física e prazeres estéticos” (FEATHERSTONE, 1995a, p. 31).

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deve esquecer das ostensivas políticas culturais, no contexto da asseveração midiática e da

comercialização de um padrão cultural baiano distinto daqueles observados nos locais de

origem dos turistas de outros Estados e da própria conjuntura baiana.

Muitas elocuções deram aval para que um estalão identitário fundado na baianidade

soteropolitana pudesse ser assimilado e efetivado por alguns sítios turísticos do interior do

Estado. Dessas localidades, destaca-se a cidade de Ilhéus, uma das principais paragens

turísticas envolvidas pelas estratégias da BAHIATURSA, o que sugere uma reflexão sobre a

influência que esse município exerceu e sofreu no processo de intervenção do poder público,

das agências de turismo e da indústria cultural10 na produção e na promoção de manifestações

culturais como produtos turísticos. Considerando-se o caso da Lavagem das Escadarias da

Catedral de São Sebastião, que há cerca de três décadas substituiu a celebração originária11

realizada pelos estivadores em homenagem ao santo padroeiro, uma questão se impõe de

modo contundente: até que ponto pode-se asseverar que o discurso da baianidade teria,

através de um fatível processo de estetização12 cultural, promovido a espetacularização13

desse ritual de Lavagem e a dessimbolização14 da festa nativa?

O investimento de esforços em direção ao desvendamento dessa questão significa uma

incursão em vários desdobramentos referidos, em sua maior parte, ao agenciamento turístico

público e/ou privado e à atuação das indústrias culturais que podem ser responsáveis por

desencadear três processos específicos. O primeiro diz respeito ao emprego da mística e dos

formatos artísticos de músicas, danças e festas soteropolitanas na concepção estético-

imagética da Lavagem das Escadarias da Catedral de São Sebastião, o que denunciaria a

10 Conforme Adorno e Horkheimer (1985), as indústrias culturais podem ser entendidas como manufaturas produtoras de bens simbólico-culturais das sociedades contemporâneas. 11 Esse termo é entendido aqui, de modo literal, como nativo; aquilo que tem origem em alguém ou em alguma realidade particular; proveniente; descendente; oriundo; primitivo. 12 Processo relacionado à tematização e estilização culturais e que “designa o fluxo veloz de signos e imagens que saturam a trama da vida cotidiana na sociedade”. (FEATHERSTONE, 1995a, p. 100). 13 Segundo Debord (1997), é o processo pelo qual a produção cultural, vivida direta, espontânea e autenticamente por uma dada sociedade ou comunidade, é transformada numa representação, num espetáculo. 14 “Processo cultural pelo qual as emoções e os sentimentos são separados do pensamento (da abstração, do juízo) e uns e outros, da ação”. (COELHO NETTO, 1999, p. 149).

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possibilidade do setor turístico da cidade de Ilhéus ter recebido e desenvolvido a influência de

tendências simulacionais do consumismo cultural. O segundo se refere aos possíveis

procedimentos de produção dessa celebração a partir da configuração de teatralidades, de uma

série de espetáculos representativos da baianidade. O último diz respeito ao provável

apartamento multilateral entre os modos de sentir, de pensar e de agir no tributo ao santo

padroeiro dos estivadores ilheenses.

Em âmbito geral, esse

trabalho pretende pontuar

determinados vetores que, de

algum modo, ajudaram a construir,

nos três últimos decênios, uma

imagem turístico-cultural baiana

fortemente marcada pelo discurso

da baianidade. Trata-se de

circunscrever os artífices e os

arautos mais importantes no

processo de direcionamento

turístico e nos possíveis fenômenos

de estetização e de

espetacularização culturais na

Lavagem das Escadarias da

Catedral de São Sebastião, bem

como de dessimbolização na

celebração nativa em homenagem

ao santo. Por conseguinte, almeja-

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se contribuir para a reflexão-crítica

acerca da responsabilidade das

decisões políticas em âmbito

sócio-cultural, visando a aumentar

o nível de racionalidade e de

qualidade no agenciamento

turístico do Estado da Bahia e, por

decorrência, em outras localidades

e regiões.

Em esfera específica, objetiva-se discernir e analisar as teorias defendidas acerca da

noção de baianidade, buscando elaborar uma síntese elucidativa das discussões em torno

dessa construção identitária e de outras narrativas baianas, em especial, a que se formula em

torno da identidade cultural grapiúna15, situando, nessa conjuntura, os rituais de Lavagem.

Ademais, procura-se reconhecer as nuances artísticas típicas16 da festa soteropolitana, que

poderiam ter sido empregadas pelo agenciamento turístico e pelas indústrias culturais numa

possível estetização da Lavagem das Escadarias da Catedral de São Sebastião, avaliando se

esse processo de tematização e estilização teria designado uma acelerada absorção de signos e

imagens, capaz de saturar a trama cultural dessa manifestação ilheense. Além disso, pretende-

se identificar se esse evento foi ou não transformado num espetáculo e analisar a possível

ocorrência de um processo de dessimbolização cultural no tributo originário ao santo mártir.

Por fim, busca-se compreender a presumível transfiguração dessa homenagem nativa de

objetivo cultural em objeto turístico.

15 Expressão que identifica os moradores da Região Cacaueira no Sul da Bahia. De acordo com Teixeira Neto (2002) significa “pássaro branco e preto” pela etimologia guirá, gra por aglutinação, que é igual a pássaro, pi igual a branco e una, preto. Numa outra acepção, significa “canoa preta” pela etimologia ygara, gra por aglutinação, que é igual à canoa e py-una, casca preta de uma árvore da família das mirtáceas. 16 Termo entendido aqui como simbólico, característico.

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Tendo em vista as múltiplas ingerências públicas e privadas na promoção e

comercialização dessa celebração para o mercado turístico, pode-se inferir o poder exercido

pelo setor turístico e pelo processo de industrialização da cultura. Em tese, pode-se dizer que

na Bahia, todos os atores autorizados a criar castas importantes na Weltanschauung17 do senso

comum, desempenham papéis sociais que os autorizam a emitir e disseminar publicamente

ideários acerca da sociedade e da cultura baianas. Assim, pode-se dizer que complexas teias

discursivas acerca de manifestações culturais de Salvador e do Recôncavo, em especial, as

celebrações de cunho religioso-profano, as festividades populares e o carnaval de rua,

representaram elementos substanciais num possível processo de estetização da Lavagem das

Escadarias da Catedral de São Sebastião.

Por outro turno, pode-se afirmar, em princípio, que a Lavagem das Escadarias da

Catedral de São Sebastião passou a ser espetacularmente representada, elaborada e

estereotipada a partir de ingredientes sócio-artístico-culturais típicos da cidade de Salvador.

Além disso, por mãos bastante hábeis e pelos mais modernos meios, tramas discursivas

parecem ter se configurado em liames intricados e sutis a partir dos quais a celebração

originária em homenagem a São Sebastião foi afastada dos típicos sentimentos, pensamentos

e ações populares. A constatação desse fenômeno denotaria a ocorrência de um processo de

dessimbolização no tributo nativo ao santo padroeiro dos estivadores.

Desse modo, com o intuito de confirmar e/ou negar essas hipóteses, a pesquisa foi

realizada inicialmente em caráter exploratório. Os dados secundários preliminares foram

reunidos por meio do Relatório Bahia-Turismo, do período de 1979 a 1983; da primeira

edição da revista Viver Bahia; dos cadernos de turismo e lazer encartados em jornais de

circulação local, regional e nacional; bem como de determinados magazines destinados à

promoção turística e que apresentaram conteúdo sobre a Bahia. Esses textos proveram a

17 Termo alemão empregado por Adorno e Horkheimer (1985) que significa, aproximadamente, mundividência; concepção, perspectiva de mundo.

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investigação do corpus liminar e fundamental à identificação dos meios pelos quais foram

esteticamente esboçadas e coloridas as imagens representativas tanto da cidade de Salvador e

da região do Recôncavo quanto, por decorrência, da própria conjuntura baiana no interior do

Estado, especificamente, no município de Ilhéus.

Ainda numa perspectiva exploratória inicial, foram consideradas as fotografias

disponíveis no Centro de Documentação e Memória Regional da Universidade Estadual de

Santa Cruz (CEDOC) que as coletou tanto no Sindicato dos Estivadores quanto na Cúria

Diocesana de Ilhéus. Das fontes disponíveis, houve algumas de cunho científico, jornalístico,

artístico e/ou turísticos das quais se destacaram os guias culturais da Bahia, os textos

disponíveis na Internet, no Arquivo Público Municipal de Ilhéus, em periódicos locais e nos

meios de divulgação turística, estaduais e municipais. Esse material representou elemento

indispensável, sobretudo ao estudo acerca da possível ocorrência de um processo de

estetização na Lavagem das Escadarias da Catedral de São Sebastião.

Os dados primários de investigação foram coletados através de observações

sistemáticas in loco. Conforme Lakatos e Marconi (2000), a observação sistemática se

caracteriza pelas condições controladas e com a utilização de ferramentas para coleta das

informações. Desse modo, o observador deve priorizar a intencionalidade e o planejamento

prévio; precisa ter consciência do que investiga e o que demanda relevância em determinada

circunstância. Por conta disso, como instrumentos de pesquisa, foram realizadas anotações

coordenadas durante o processo de investigação. Utilizou-se, ainda, de uma máquina

fotográfica com a finalidade de registrar os momentos significativos.

Também foram empregados questionários abertos, com interesses previamente

pontuados, levando em consideração a participação efetiva e as exigências dos depoentes.

Após serem elaborados, os questionamentos foram analisados com o objetivo de efetuar

possíveis e/ou necessárias alterações, inclusões e exclusões de pontos diretores. Nesse

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sentido, vale salientar que a demarcação de todas as questões ocorreu a partir dos seguintes

procedimentos: buscou-se reunir conhecimentos prévios acerca de cada testemunha, sendo

que todos os envolvidos receberam esclarecimentos precisos sobre os objetivos da pesquisa;

deu-se prioridade aos pontos que se desejava investigar; procurou-se controlar possíveis

divagações nas respostas; os próprios depoentes esclareceram determinados termos relevantes

à investigação. Além disso, deve-se acrescentar que todos os envolvidos nessa etapa

assinaram cessão de direitos para o uso dos depoimentos no corpo desse trabalho.

O universo pesquisado correspondeu aos ilheenses envolvidos ou mesmo interessados

na realização do tributo originário ao santo padroeiro dos estivadores bem como da Lavagem

das Escadarias da Catedral de São Sebastião. Por intermédio do método de amostragem

intencional não-probabilística por julgamento, realizou-se um recorte a partir do qual se

definiu a população a ser pesquisada. Dos critérios de apreciação que determinaram essa

demarcação, pode-se destacar os seguintes: influência e/ou comprometimento com o estudo

das manifestações públicas e tradicionais ilheenses; pesquisa e/ou participação direta ou

indireta na concepção, organização ou promoção da festa nativa em homenagem a São

Sebastião; estudo e/ou envolvimento direto ou indireto na idealização, na produção ou na

divulgação social, cultural, religiosa e/ou turística do ritual da Lavagem.

Neste encaminhamento, foram considerados os Secretários de Turismo do município

de Ilhéus nos anos de 2004 e 2005 e o Presidente do Sindicato dos Estivadores, há trinta anos

no cargo e, portanto, um dos principais responsáveis pela concepção da Lavagem das

Escadarias da Catedral de São Sebastião, além de um historiador envolvido no estudo do

tributo originário ao patrono dos estivadores e do atual evento. Considerou-se, ainda, a ex-

presidente da Fundação Cultural de Ilhéus, as baianas, os guias turísticos e alguns turistas

presentes nas edições de 2004 e 2205 da Lavagem.

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Com o objetivo de realizar uma análise das imagens representativas da festa originária

em tributo ao santo padroeiro e da Lavagem das Escadarias da Catedral de São Sebastião,

foram consideradas determinadas imagens expressivas. Nesse procedimento, buscou-se

selecionar fotografias primordiais em álbuns antigos. As edições de 2004 e 2005 da Lavagem

foram fotografadas em pesquisa e tiveram os cenários e as personagens intencionalmente

eleitos com o interesse de registrar aspectos relevantes para a investigação. Além disso, foi

selecionado um folder de divulgação do evento da Lavagem. Considerando-se a intenção de

desenvolver um estudo paralelo de caráter demonstrativo, decidiu-se por apresentar todas as

imagens entremeando o texto, o que contribuirá para compor um ambiente adequado à

compreensão do trabalho. Deve-se esclarecer, no entanto, que a especulação imagética não

representa a tônica prioritária dessa discussão.

Vale destacar, ainda, determinadas dificuldades encontradas na coleta dos

depoimentos e na realização das observações in loco. Os guias turísticos e as baianas,

sobretudo as mais antigas participantes da Lavagem das Escadarias da Catedral de São

Sebastião, se negaram a dar declarações sobre a cerimônia, alegando não poderem se

comprometer. O presidente do Sindicato, embora tenha aceitado colaborar com a pesquisa,

apresentou uma série de impedimentos para gravar ou responder aos questionários. Por conta

disso, alguns testemunhos relevantes à investigação foram registrados apenas de modo

informal. Ademais, não foi permitido fotografar a festa privativa que ocorreu no interior da

sede do Sindicato dos Estivadores no dia da celebração.

Também merecem realce os problemas decorrentes do clima ocasionado pelo pleito

eleitoral do ano de 2005. Desde meados de 2004, muitos sujeitos dos setores político e

turístico, envolvidos direta ou indiretamente na concepção e na efetivação do ritual de

Lavagem, quando não se encontravam indisponíveis, apresentavam posicionamentos e falas

que oscilavam entre o desconhecimento quase absoluto acerca da antiga e da atual

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comemoração em homenagem a São Sebastião e a necessidade de promover politicamente o

prefeito em campanha e/ou divulgar os projetos para o turismo municipal do candidato da

situação à prefeitura.

Parcialmente superadas essas dificuldades e de posse dos dados coletados, foi possível

levantar informações acerca das transformações pelas quais teriam passado a celebração

originária em homenagem a São Sebastião. A partir desse corpus, buscou-se identificar se

esse tributo nativo mudou, em que aspectos, como e por que essas mudanças ocorreram, além

de analisar as repercussões mais diretas dessas possíveis alterações. O intento principal das

observações in loco, das fotografias e dos depoimentos recolhidos foi, respectivamente, o de

reunir informações acerca das configurações da cerimônia originária em homenagem a São

Sebastião e do ritual de Lavagem, bem como sobre a forma pela qual essas celebrações têm

sido entendidas.

A título de esclarecimento, competiria discorrer acerca da eleição do município de

Ilhéus e da Lavagem das Escadarias da Catedral de São Sebastião como campo e objeto dessa

pesquisa. A princípio, com o intuito de definir a área de estudo dessa investigação, foram

consideradas as paragens turísticas envolvidas no programa-base Caminhos da Bahia.

Segundo Gaudenzi (2001), Cipó, Cachoeira, Caldas do Jorro, Ibotirama, Ilhéus, Itaparica,

Jacobina, Juazeiro, Lençóis, Paulo Afonso, Porto Seguro e Valença receberam implementos

consideráveis no setor de planejamento turístico. Dessas localidades, elegeu-se a cidade de

Ilhéus por duas razões especificas. Em primeiro lugar por ter recebido maior proeminência,

sobretudo pela localização costeira privilegiada, e pelo patrimônio histórico e cultural que

dispõe. Em segundo plano por compor uma região representada por uma elocução identitária,

uma espécie de narrativa da grapiunidade18 marcada por insígnias, que começam a ser

apropriadas e divulgadas pelo turismo e pela indústria cultural.

18 Embora se reconheça que o termo grapiúna não seja reconhecido como o mais apropriado para designar a identidade ilheense, decidiu-se – por não haver um termo mais adequado – empregar a derivação grapiunidade

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Preliminarmente, das muitas manifestações culturais ilheenses que poderiam ser

tratadas, decidiu-se pela Lavagem das Escadarias da Catedral de São Sebastião, por

representar um evento considerado tradicional do município de Ilhéus. Ademais, um ensejo

foi elemento determinante para essa escolha: o evidente uso turístico, a inserção no universo

das indústrias culturais, a configuração estética e espetacular desse evento. Deve-se pontuar,

ainda, que essa cerimônia substituiu o festejo originário realizado pelo Sindicato dos

Estivadores de Ilhéus em tributo ao santo mártir há aproximadamente três décadas, e anos

mais tarde começou a contar com a ingerência direta do setor turístico municipal e estadual,

bem como dos veículos de comunicação, que podem ser considerados peças-chave para a

inclusão de elementos estilísticos, tematizantes e simulacionais nesse evento.

Sobre o modelo conceptual empregado nesse estudo, deve-se esclarecer determinados

aspectos metodológicos imprescindíveis. Uma investigação acerca de fenômenos culturais, e

com vistas a alcançar a construção de conhecimentos válidos por meio da circunferência entre

compreensão preliminar, interpretação e nova compreensão, exige o desenvolvimento do

convênio entre os conceitos metódicos fenomenológico e hermenêutico. Nesse sentido, tendo

em vista o objetivo de investigar os processos de estetização, espetacularização e

dessimbolização, entende-se essa combinação de procedimentos de pesquisa como uma

abordagem que utiliza técnicas qualitativas peculiares e adequadas aos interesses desse

trabalho de inquirição.

Privilegiam estudos teóricos e análise de documentos e textos. Suas propostas são críticas e geralmente tem marcado interesse de “conscientização” dos indivíduos envolvidos na pesquisa e manifestam interesse por práticas alternativas. Buscam relação entre o fenômeno e a essência, o todo e as partes, o objeto e o contexto. A validação da prova científica no processo lógico da interpretação e na capacidade de reflexão do pesquisador sobre o fenômeno de seu estudo. (MARTINS, 1994, p. 26-7 – aspas da autora).

para, nessa discussão, dar nome à narrativa identitária da Região do Cacau e, por conseguinte, do município de Ilhéus.

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Nesse sentido, considerando-se as influências da indústria e do mercado de bens

simbólicos, ao pretender investigar os processos de estetização e espetacularização e

dessimbolização culturais como fenômenos, visando a compreendê-los, a interpretá-los e a

revisar as compreensões preliminares acerca deles, faz-se necessário atentar e incrementar as

principais etapas metodológicas constitutivas da fenomenologia-hermenêutica. Segundo

Geiger (1958), o pesquisador deve deter-se na investigação dos fenômenos, não aspirando a

apreendê-los em sua condicionalidade essencial e individual, mas em seus momentos

essenciais, que não devem ser apreendidos nem por dedução nem por indução.

Com relação ao método fenomenológico-hermenêutico, não cabe considerá-lo nem

dedutivo nem empírico. Essa perspectiva metodológica consiste em assoalhar os dados e

esclarecer estes mesmos dados. Além disso, não se aplica por leis, nem opera nenhuma

dedução a partir de princípios, mas considera o que está à porta da consciência, o objeto.

Portanto, pode-se dizer que esse arcabouço metódico não se dispõe diretamente ao subjetivo,

nem mesmo por alguma atividade do sujeito19; interessa-se por completo pela idéia objetiva,

aquilo que se sabe ou que se põe em interrogação. Por fim, vale lembrar que essa pesquisa

considera a exclusão de toda e qualquer pressuposição ingênua, além de considerar nulo tudo

o que não puder ser apoditicamente demonstrado.

Com base nessa perspectiva metodológica e considerando-se os objetivos delimitados

para a pesquisa, o corpo substancial desse trabalho encontra-se dividido em cinco momentos.

Além dessa introdução, a dissertação apresenta três partes específicas de discussão, cada uma

dividida em três sub-tópicos que abordam pontos particulares. Por fim, no momento destinado

às considerações finais, discute-se a necessidade de implementação de maiores níveis de

racionalidade e de compromisso nas decisões políticas e nos agenciamentos turísticos. Todas

19 Deve-se destacar, no entanto, que essa atividade do sujeito pode ser considerada matéria de investigação do método fenomenológico-hermenêutico.

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as divisões e sub-divisões dessa dissertação tiveram a intenção de organizar o

desenvolvimento de um debate capaz de contemplar os objetivos demarcados pela pesquisa.

Na primeira parte do trabalho, desenvolve-se uma síntese acerca dos debates

conjeturais em torno das noções de baianidade e grapiunidade bem como dos rituais de

Lavagem. Procura-se pontuar o processo de transição da Bahia de feições quase comunitárias,

celeiro histórico-cultural do Brasil, etnografado por tantos escritores, músicos, dramaturgos e

artistas plásticos regionais, nacionais e internacionais, para o lugar das massas, idealizado

como um exótico ambiente permeado por uma felicidade epidêmica e, predominantemente,

afro-descendente. Com base em fundamentos teóricos específicos, busca-se identificar e

descrever a invenção e a consolidação de uma comunidade baiana consensual e integral; além

de mapear tanto os componentes identitários característicos da baianidade quanto aqueles

pertinentes à cidade de Ilhéus e região grapiúna.

No sub-tópico em que se discute o texto da baianidade, as contribuições de alguns

ensaístas e teóricos são considerados relevantes suportes de pesquisa. Dentre os autores

trabalhados, merecem destaque Risério (1988, 1981, 1993), que compreende o ser baiano

como uma constituição histórica, cultural, natural e urbana, e indica, inclusive, os alicerces

sobre os quais essa entidade estaria sustentada; Teixeira (1996), que entende a individuação

baiana a partir de uma acepção muito intrigante de isolamento cultural; e Moura (2000) que,

por seu turno, defende a narrativa identitária baiana como a alcunha da personalidade

característica e manifesta do baiano.

Além desses, outros nomes devem ser destacados: Sansone e Santos (1997),

estudiosos da massificação da axé music; Pinho (1996), dedicado ao estudo sobre a relação

cultura negra soteropolitana e baianidade; Góes (1996), que traça o esboço de uma Bahia

dedicada à felicidade e ao divertimento carnavalesco; Miguez (1996), que descreve o carnaval

baiano como um fenômeno da pluralidade sócio-cultural; e Veloso (1997), que entende o

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carnaval de Salvador como uma saída estética e soteropolitana para a manifestação ativa e

genuína da arte popular. Por fim, deve-se destacar Hall (1997) para quem as identidades

coletivas são concebidas e modificadas no cerne das representações sociais; e Maria de A.

Brandão, (1994) que, por sua vez, trata os discursos identitários no Brasil como uma espécie

de língua-franca, componentes de uma ampla gramática nacional.

Acerca da narrativa da grapiunidade, os estudos do sociólogo Asmar (1983, 1985,

1987), sobre a delimitação geográfica e cultural da região grapiúna, recebem tratamento

enfático. Ademais, sobre a identidade entre a cultura ilheense e a cultura do cacau, merecem

destaque os estudos de Lippiello (1996) e as influentes obras de cunho literário de autores

regionais20. Finalmente, sobre aspectos historiográficos de Ilhéus e região, são referencias

essenciais os livros de Andrade (2003), que relaciona a história ilheense com a história dos

coronéis do cacau; e Vinháes (2001), que elabora um diagrama de São Jorge dos Ilhéus, da

formação e declínio da capitania hereditária ao final do século XX.

Em torno dos rituais de Lavagem na Bahia, trabalha-se, em especial, a obra de

Cascudo (1972), que trata de forma minuciosa a origem, a justificação e o desenvolvimento

dos rituais de Lavagem em templos religiosos no mundo, no Brasil e na Bahia. Sobre a

Lavagem das Escadarias da Catedral de São Sebastião, Vinháes (2001), além dos aspectos

históricos, apresenta uma detalhada descrição dessa cerimônia. Por fim, no tratamento da festa

que norteia essa Lavagem, deve-se fazer menção ao tratamento dado às reflexões de Carlos R.

Brandão. (1989), que defende a festa de rua como lócus substancial e acertado para as

manifestações sócio-culturais.

Na segunda parte do

trabalho, auxiliado por uma

20 Vale esclarecer, no entanto, que esse trabalho não tem como objetivo principal desenvolver uma discussão pormenorizada acerca da produção literária acerca do universo grapiúna. Pretende-se, apenas, realizar algumas considerações reflexivas em torno das contribuições dessa produção à constituição do discuso identitário da grapiunidade.

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literatura ligada ao estudo da

formação e gestão das identidades

sócio-culturais, e aos trabalhos

voltados para o âmbito do turismo

e da cultura, investiga-se o

desempenho dos atores mais ativos

na idealização, divulgação,

industrialização, mercantilização e

consumo de uma alma baiana, que

se tornaria nos anos noventa no

maior atrativo turístico da Bahia.

Ainda nesse momento, sem deter-

se ao caso da Lavagem das

Escadarias da Catedral de São

Sebastião, procede-se ao debate em

torno dos pressupostos teóricos.

Procura-se discutir os conceitos de

estetização, espetacularização e

dessimbolização culturais com

vistas a avaliar a influência de

possíveis dissimulações

promovidas pela concepção,

promoção, produção,

comercialização e consumação da

cultura na atividade turística.

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No sub-tópico destinado aos estudos acerca da indústria cultural, Adorno e

Horkheimer (1985, 1986a, 1986b, 1988) representam fontes teóricas a partir das quais se

desenrola grande parte de toda a discussão. Ao estudar a crise das sociedades e do progresso

modernos, estes autores defendem que, quando o homem se libertou dos vínculos da tradição,

submeteu a sociedade a novas formas de dependência. Rüdiger (1999), por sua vez, acredita

que o desenvolvimento das indústrias culturais coincide com a formação de grupos

econômicos interessados na exploração das atividades de natureza simbólica e o formidável

crescimento do mercado de bens de consumo ocorrido nas primeiras décadas do século XX.

Ademais, não se pode deixar de considerar a presença marcante dos estudos de

teóricos como Morin (1981), que trabalha a produção de uma terceira cultura como a nova e

consolidada tendência do século XXI; Bolaño (2000), Benjamin (1987) e Zallo (1988), que

revelam determinados pontos de vistas inusitados e relevantes, e acrescentam perspectivas

controvertidas e polêmicas à discussão acerca das indústrias culturais. Além desses, outros

autores apresentam estudos relevantes e que são trabalhados nesse trabalho. Herscovici (1995)

e Bourdieu (1985) afirmam a necessidade de, no comércio de bens simbólicos, prevalecer

uma lógica da distinção determinante da lógica da diferenciação com a finalidade de garantir

sucesso mercadológico.

A respeito do processo de estetização decorrente da influência dos poderes público e

privado, bem como das indústrias culturais, alguns autores são considerados referências de

análise, sobretudo no que diz respeito aos estudos acerca do poder da narrativa da baianidade

no cenário turístico baiano. Além disso, muitas especulações e altercações descrevem e

definem os procedimentos de estilização dos modos de vida e de tematização das atividades

culturais. A partir desses estudos e discussões, pôde-se investigar a provável ingerência das

agências oficiais e particulares de turismo, e da indústria cultural, a partir da projeção da

representação simbólica de uma Bahia estereotipada. Nesse sentido, como fontes prioritárias,

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destacam-se duas obras de Featherstone (1995a; 1995b) acerca da cultura de consumo e dos

fenômenos culturais em tempos pós-modernos.

Ainda nessa direção, Jameson (1992, 1994, 1997) pode ser considerado um

interlocutor de singular importância quando afirma que a cultura contemporânea representa

uma espécie de segunda natureza conexa a um universo onde o processo de consumo de

produtos simbólicos caracteriza a cultura como mercadoria análoga a qualquer outro objeto

constituinte do mundo consumista atual, o que vem abalizar, historicamente, uma possível

coerência para o denominado capitalismo tardio e para a organização social da pós-

modernidade. Nessa perspectiva, Kant (1995) também é referência de pesquisa na medida em

que chama a atenção aos relevantes papéis que tanto a estética quanto e principalmente o juízo

estético adquirem para o ser humano e para a sociedade hodierna, que vêem no usufruto de

bens simbólicos uma nova e estimulante prática social.

Acerca da força da mídia no processo de estetização, considera-se referência básica as

obras de Baudrillard (1985, 1991, 1995a, 1995b), segundo as quais o mundo atual vive um

momento de assimilação das formas de expressão dos veículos de comunicação publicitários.

Valverde (2003), por sua vez, amplia essa discussão e, portanto, recebe tratamento pontual.

Para esse teórico, como a publicidade assimila a cultura, as expressões artísticas e religiosas

ou mesmo científicas, o desenvolvimento do discurso publicitário apreende uma estética

capaz de contagiar a maneira pela qual os indivíduos receptores percebem o mundo, a

realidade. Nessa discussão, destacam-se ainda as especulações de Maffesoli (1995, 1999), que

propõe a imagem vivenciada no cotidiano como instrumento de imobilização temporal,

delimitadora de uma atmosfera que delineia as vivências estéticas pós-modernas.

Ainda no estudo sobre o processo de estetização, deve-se destacar algumas abordagens

fundamentais. Primeiro, as ponderações em torno das reflexões de Chauí (1980), que destaca

a afinidade entre as esferas culturais e democráticas. A partir dessa compreensão, pôde-se

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ponderar que os discursos políticos, administrativos e econômicos podem representar

elementos categóricos ao processo de estetização cultural. Em contrapartida, vale ressaltar o

tratamento dado às reflexões de Foucault (2002), segundo as quais os peremptórios

discursivos representam ingredientes dominantes, mas que de algum modo são dominados.

Em outros termos, pode-se dizer que determinadas alocuções competentes, embora orientem

processos estetizantes da cultura, também são gerenciadas pela cultura.

Acerca do fenômeno de espetacularização, dois teóricos recebem destaque: Debord

(1997) e Subiratis (1989). O primeiro, tratando da sociedade do espetáculo, acredita que sob

todos os modos contemporâneos de divulgação e/ou de consumo de entretenimentos, os

espetáculos constituem padrões predominantes das vivências sociais. O segundo, por seu

turno, discutindo a cultura como espetáculo, apresenta uma perspectiva controvertida acerca

dos processos de espetacularização ao associá-los à estetização cultural, na medida em que

acredita que a realidade não conserva relação com a utopia da cultura como concepção

artística plural capaz de valorizar o espiritual e o intuitivo. Na atualidade, pode-se dizer,

portanto, que a criatividade da produção cultural tem sido subjugada aos rigorosos critérios da

conveniência, da praticidade e da padronização mercadológica, eminentemente estetizante e,

por decorrência, espetacular.

No sub-tópico destinado às discussões acerca dos processos de simbolização e

dessimbolização, a noção de símbolo trabalhada tem como alusão à semiótica de Peirce

(1984). Esse teórico entende o símbolo como uma categoria de signo que não mantém uma

conexão espontânea21 com o objeto significado, diferentemente do que ocorre com o ícone e o

índice. Por outro lado, alguns estudiosos entendem de modo diverso a noção de símbolo, e

também foram considerados. Os teóricos do imaginário, por exemplo, defendem que

determinados traços pertinentes aos ícones e aos índices estão presentes nos símbolos. Durand

21 O termo espontâneo é entendido por Peirce (1984) como aquilo que se manifesta como que por instinto, sem premeditação ou desvios.

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(1988, 2001), em seus estudos sobre a filosofia da imagem e a imaginação simbólica, entende

o símbolo como uma agnação natural entre presenças corpóreas e ausências incorpóreas.

Ainda na discussão em torno dos procedimentos de simbolização e dessimbolização,

Coelho Netto (1980, 1999) é uma fonte fundamental. Esse teórico compreende as

experiências simbolizantes como possibilidades de incremento integral de individualidades

humanas capazes de assinalar o eu e o outro e de atuar com representações não-idealizadas do

individual e do coletivo no interior de uma célula social. As vivências dessimbolizantes, por

outro lado, são compreendidas como uma espécie de desagregação entre pensamentos,

sentimentos e ações sócio-culturais; um processo através do qual os anseios emocionais são

apartados do que se pensa, abstrai e ajuíza, e estes do modo como o individuo se comporta

frente ao símbolo cultural.

Na terceira parte da dissertação, na qual se discute os resultados da pesquisa, procede-

se a uma análise sobre a expansão das empresas de turismo em direção à promoção de uma

alma baiana consensual, bem como avaliar as repercussões desse processo na cidade de

Ilhéus, mercado fundamental para a consolidação de uma imagem pública baiana

turisticamente atraente. Para tanto, procura-se desvelar determinadas conexões estratégicas

com o objetivo de mapear e interpretar o feitio, as intenções e os resultados culturais das

manobras mais importantes dos agentes privilegiados na área de planejamento e execução das

políticas turísticas e culturais do Estado da Bahia. Assim, acredita-se poder identificar e

analisar as principais repercussões desse agenciamento turístico, no que diz respeito à

concepção e à negociação da baianidade como produto cultural baiano.

Nesse momento, além de referências teóricas, de pesquisas exploratórias, depoimentos

e observações pontuais, também foram considerados dados colhidos em jornais locais,

sobretudo no caderno Cultura e Lazer do periódico Diário de Ilhéus. Com base nesse corpus,

apresenta-se uma discussão pormenorizada acerca dessa cerimônia de Lavagem como evento

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típico e tradicional da cidade de Ilhéus, com supostos interesses e fundamentos religioso-

culturais. Nesse sentido, além de investigar a noção de tradição em torno desse ritual, busca-

se avaliar como as mudanças ocorridas foram repercutidas, assimiladas e percebidas.

No sub-tópico destinado à transformação da Lavagem das Escadarias da Catedral de

São Sebastião num objeto do turismo, procura-se identificar, analisar e discutir os possíveis

fenômenos de mercantilização e de industrialização dessa cerimônia ilheense. Com base nas

discussões preliminares acerca desse ritual como objetivo cultural e a partir de um esforço

analítico fundamentado em dados primários e em fontes teóricas, principalmente aquelas

destinadas ao estudo da indústria e do comércio de bens simbólicos, analisa-se o fenômeno de

transfiguração dessa Lavagem num relevante produto ilheense a ser comercializado no

universo de consumo do competitivo mercado turístico de bens simbólicos.

A respeito da ocorrência de processos estetizantes e espetacularizantes na Lavagem

das Escadarias da Catedral de São Sebastião, e dessimbolizantes na celebração nativa em

tributo ao santo mártir, são considerados os dados colhidos através de pesquisa de campo,

incluindo as fotografias e outras imagens selecionadas, além dos apontamentos in loco, e dos

questionários abertos em conjugação a um corpus secundário específico. À luz de

pressupostos teóricos, realiza-se uma análise dos depoimentos e das observações realizadas, e

desenvolve-se uma discussão acerca da influência das agências da indústria cultural e dos

poderes públicos na possível padronização estética e na fatível teatralização dessa cerimônia

de Lavagem, bem como no decorrente e presumido fenômeno de dessimbolização na

homenagem originária a São Sebastião.

Por fim, no momento destinado às considerações finais, buscou-se discutir sobre os

níveis de racionalidade e de qualidade tanto nas ações do gerenciamento público e/ou

particular do setor turístico baiano, em especial do interior do Estado, quanto na definição do

poderoso e abrangente discurso das manufaturas culturais bem como na atuação do mercado

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de bens simbólicos. Além disso, procurou-se sintetizar as discussões realizadas no sentido de

colaborar para uma reflexão-crítica a respeito da importância de se imprimir maior coerência

e responsabilidade nas deliberações político-administrativas voltadas para a atividade

turística, especialmente no universo das decisões de cunho social e/ou cultural.

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2 BAHIA, ILHÉUS E LAVAGEM: TEMA, CAPÍTULO E ALÍNEA

Determinadas imagens da Bahia ou em torno da Bahia têm sido amplamente

empregadas pelo engenho turístico e pelas agências da indústria cultural com o intuito de

impulsionar a economia do turismo e da cultura no Estado. Esses construtos imagético-

simbólicos podem ser compreendidos como partes de um grande conglomerado; são

integrantes ou mesmo versões de um amplo texto identitário com tema, capítulos e alíneas

bem estabelecidas, uma elocução emblemática e poderosa, uma narrativa identitária inspirada

num ambiente exótico e inspiradora de um lugar mágico com tempos, lugares, enredos e

personagens definidos. Embora tenha recebido maior promoção e ordenação estratégico-

mercadológica apenas a partir da segunda metade do século XX, a composição dessa escritura

tem se mantido em permanente desenvolvimento desde a chegada dos europeus às terras ainda

não reconhecidas como o lóculo da felicidade.

Quando o Velho Mundo desejava mais poder e hegemonia, muitos países europeus

sentiram necessidade de empreender uma expansão territorial e mercadológica. Por

intermédio de novas rotas marítimas, mais exploradas a partir do século XVI, e dispondo de

novas tecnologias, algumas nações européias lançaram-se na busca pela ampliação dos

próprios territórios e mercados, com a exploração de novas terras, o acúmulo de metais

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preciosos e a comercialização de outros produtos. Assim, certas direções e localidades do

globo se tornaram, geopoliticamente, de suma importância para o êxito no fluxo dos novos

caminhos oceânicos. Nesse contexto de ambições e disputas, dispondo de uma privilegiada

condição geográfica e política, a paragem que mais tarde seria denominada Brasil pode ser

pensada, portanto, como o porto seguro de todos os descobrimentos e invasões, a baía de

todos os santos e invasores.

Sem dúvida, alguns dos primeiros europeus que chegaram ao Brasil podem ser

responsabilizados por dar início ao processo de mercantilização e industrialização do exótico

a partir de impressões e de representações imagéticas em torno de uma região que no futuro

ficaria conhecida como a Terra da Felicidade. Nessa direção, várias ilustrações eloqüentes

podem ser destacadas no sentido de dar conta da descoberta de um ambiente exótico, rico,

tropical e libertino. Mais tarde, a noção de que “não existe pecado abaixo da linha do

Equador” reforçaria a incorporação, por parte das principais cidades litorâneas, inclusive

algumas daquelas que comporiam o Estado da Bahia, de uma identidade cultural na qual

seriam agregados determinados valores ligados a necessidades e interesses dos segmentos

políticos, culturais, mercadológicos e turísticos.

Nesse sentido, caberia lembrar as peculiaridades existentes nos entretempos, nos

intervalos de tempo, de certo modo curtos, do processo histórico de (des)construção da baía

dos colonizadores europeus e de construção da Bahia dos baianos e dos turistas. Pode-se

visualizar, inclusive, três estágios de tempo relevantes desses procedimentos de

(des)edificação. Inicialmente, na tomada do território há mais ou menos quinhentos anos,

descobre-se o ambiente do exótico e da liberdade. Num segundo momento, no período que vai

aproximadamente do século XIX ao início do século XX, surge um lugar rico, diferente e, por

outro lado, fechado em si mesmo. Por último, numa passagem temporal iniciada em meados

da década de cinqüenta do século XX e ainda sem registro de finalização, tem-se uma Bahia

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submetida a um processo inicial de nacionalização e à ratificação dos processos de

internacionalização e comercialização.

A primeira Bahia, ou baía, eminentemente natural, era dominada e, paradoxalmente,

livre: produzia um eu baiano por si mesma e para o outro europeu. Na segunda Bahia, do

século XIX até o início dos anos cinqüenta do século XX, mesclada de verde e concreto, a

intensificada produção cultural foi fotografada, escrita, pintada e cantada. Nesse momento de

projeção e expansão interna, algumas áreas passaram a receber maior destaque num lugar que

começa a caminhar de modo mais independente com a corrida ao diamante na região da

Chapada, o desenvolvimento de Salvador e do Recôncavo, a produção de charutos, a

construção e o reparo de embarcações, a lavoura açucareira e, depois, do cacau. Nesse

contexto de constituição identitária do Estado, não se pode negligenciar a presença ativa e

marcante dos afro-descendentes. Por fim, a terceira Bahia se mostra ao Brasil e ao mundo

como uma grande vitrine; ao baiano, então, competiria transformar-se num produtor de bens

simbólicos, de mercadorias e serviços turísticos; caberia tornar-se um produto, uma expressão

da baianidade, um propagador de insígnias baianas.

Além disso, deve-se lembrar que não apenas as tradições positivas referendaram o

imaginário do baiano simbólico, mas também certas construções míticas pejorativas. A

edificação do mito do “baiano preguiçoso”, desenvolvido em oposição ao do “sulista

trabalhador”, por exemplo, dispôs e ainda dispõe de fartos argumentos pré-ajuizados que

ancoram a preguiça a três categorias de povos: o indígena, o lusitano e o africano. Em síntese,

pode-se dizer que essa argumentação circulou em torno dos seguintes axiomas: os índios

trabalhavam apenas para garantirem a sobrevivência básica, para satisfazerem necessidades

diárias; os portugueses, ao que tudo indica, entendiam ócio e nobreza como termos

complementares; enquanto os negros trabalhavam somente por obrigação e à medida que

eram alforriados compravam escravos. O estereotipo negativo do baiano preguiçoso muda de

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sentido entre os anos setenta e oitenta do século XX, e passa a ser positivo na medida em que

foi estratégica e gradativamente associado à figura do sujeito tranqüilo que “sabe viver e ser

feliz”.

A imagem de uma Bahia preguiçosa remete, portanto, a dois âmbitos de

representação: um negativo e outro positivo. Inicialmente, o campo depreciativo que

desqualifica o baiano ao representá-lo como um sujeito estafermo e boêmio, uma imagem

associada a uma condição inferior; em seguida, a esfera da amabilidade conectada ao texto da

baianidade, que distingue o baiano, como ser ontológico, das outras identidades brasileiras.

Nessa perspectiva, a condição do ser baiano estaria relacionada a determinadas propriedades

específicas, dentre as quais se coloca a preguiça, descrita como um modo particular e

inteligente de ordenar a própria dinâmica existencial, uma forma para não sucumbir ao stress

protestante e capitalista. Importantes nuanças dessas duas facetas da preguiça baiana podem

ser desvendadas com uma breve e pontual incursão na história.

Depois de ter sido um importante centro comercial, administrativo, religioso e militar,

enquanto capital da colônia portuguesa, a cidade de Salvador permaneceu de certo modo

isolada tanto em sua existência política e econômica quanto em sua realidade social e cultural,

entre meados do século XIX e a década de quarenta do século XX. Assim, enquanto a Cidade

da Bahia se manteve relativamente isolada, ou seja, enquanto a migração baiana não havia se

estabelecido em grande escala para outras regiões do Brasil, e, por outro lado, enquanto

Salvador ainda não havia sido incorporada à dinâmica do capitalismo industrial brasileiro,

nem as imagens negativas nem as positivas sobre a preguiça baiana haviam sido formuladas

ou pelo menos ainda não repercutiam nacionalmente.

Os baianos começam, gradativamente, a ser representados como sujeitos preguiçosos a

partir do processo de inserção do Estado da Bahia, em especial da cidade de Salvador e da

região do Recôncavo, na divisão interespacial do trabalho. Nessa época, tempo em que a

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capital baiana inicia um movimento de projeção econômica, social e cultural por várias

direções, sobretudo pelos caminhos do turismo e das produções artísticas, através de ações

estratégicas do setor turístico e de movimentos culturais como a Tropicália, em 1967, a

iconografia identitária baiana começa a receber o adjetivo da preguiça como um estigma que

acaba sendo legitimado no senso comum primeiro como um feitio de apatia diante do trabalho

e mais tarde como uma representação na qual os baianos eram descritos como seres que

vivem em permanente estado de despojamento e celebração.

Com o objetivo preliminar de consolidar a cidade de Salvador e o Recôncavo como

centros turísticos, os poderes públicos e privados, o engenho turístico, o comércio e a

produção culturais empregaram uma certa noção de baianidade capaz de conjugar preguiça e

felicidade, um texto identitário eminentemente inspirado na conjuntura soteropolitana e

inspirador da imagem de um ser baiano afro-luso-descendente e festeiro, genitor preguiçoso e

feliz do Brasil. Mais tarde, a partir dessa mesma concepção imagética, as empresas do turismo

e as indústrias culturais, com o auxílio de políticos, artistas e intelectuais, empenharam-se em

fazer de toda a Bahia e do baiano importantes produtores e produtos representativos do

exótico, da miscigenação étnica que deu certo, da riqueza ambiental, da parcimônia, da

libertinagem e, principalmente, da alegria e da festa.

Pode-se dizer, portanto, que a narrativa da baianidade tem sido utilizada turisticamente

não apenas para representar e promover uma imagem de Salvador e do Recôncavo, como

também para constituir e divulgar uma espécie de consenso imagético acerca do Estado; para

caracterizar não somente o soteropolitano, mas o ser baiano. No entanto, deve-se reconhecer

e destacar que a Bahia possui outros discursos identitários relevantes, embora apresentem

menor poder e repercussão se comparados com a elocução da baianidade. Na atualidade,

pode-se perceber mais nitidamente que um texto representativo em torno da Bahia admitiria

uma série de subdivisões que, apesar de ainda incipientes dentro do universo das indústrias

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culturais, começam a se estabelecer e disseminar em cada área natural baiana que apresenta

um correspondente cultural diferenciado, com musicalidade própria, religiões distintas, ritos

diversos e outros ingredientes particularizantes.

Como áreas naturais pode-se considerar o Norte, o Nordeste, o Noroeste, o Centro, o

Sul e o Sudeste baianos. Além das especificidades ambientais, deve-se ressaltar que as

composições e as produções características dessas regiões também apresentam um modo

particular e singularizante. Como áreas culturais pode-se enumerar a indígena, a chapadense,

a sertaneja, a praieira dentre outras com formas de agir, sentir e pensar distintas e distintivas.

Dessas extensões geográficas e simbólicas, destaca-se a denominada Região Cacaueira, no

Sul do Estado, e nela releva-se o município de Ilhéus, por exercer um papel fundamental na

composição do texto identitário regional e representar um dos destinos turísticos do interior da

Bahia que mais receberam atenção e investimentos tanto do poder público quanto da iniciativa

privada, ambos interessados no fomento do turismo no território baiano.

Nessa discussão, portanto, cabe reconhecer a diversidade discursiva em torno da

identidade baiana, embora o setor turístico oficial da Bahia tenha empregado como padrão

consensual o discurso da baianidade, compreendido aqui como uma narrativa identitária

acerca de Salvador e Recôncavo, uma composição dos baianos – ou acerca dos baianos – que

privilegia uma áurea de felicidade e de festa, um passado que não passa, uma origem,

sobretudo africana, uma espécie de prolongamento étnico da África no Brasil. Atualmente,

não se pode negar que tem ganhado força um texto simbólico e simbolizante tematizado a

partir de uma contextura de sentidos, de elocuções, de modos e versões identitárias distintas.

Afinal, além de começar a ser reconhecida dentro e fora do Brasil, essa tessitura de liames

díspares começa a se submeter às exigências mercadológicas do comércio de bens simbólicos

e, por conseguinte, aos parâmetros das indústrias culturais.

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Sem dúvida, a atual construção simbólica em torno da Bahia passa por diversos

planos: temporal, espacial, político, cultural; em resumo, transita por tudo o que pode ser

comercializável, tudo o que teria a cara típica da Bahia. Esse imaginário simbólico,

fragmentado e diferenciado que encontra nuances diferentes, são representações multi-

referenciais e apresenta-se como uma espécie de teia bem elaborada, onde vários seres

baianos se entrelaçam e compõem um ser baiano, onde todos e cada um atuam

fundamentalmente para a harmonização desse emaranhado identitário. Evidentemente, esse

fenômeno não ocorre por acaso; há fatores que determinam ou apenas sugerem formas de

comportamento. Os interesses políticos, os gerenciamentos turísticos, assim como as

multimídias e as pressões mercadológicas, corroboraram e ainda corroboram para a

manutenção e/ou para o desenvolvimento de uma bem intrincada imagem baiana.

Nesses processos de manutenção e/ou de desenvolvimento, a Bahia começa a ganhar

um caráter que a relaciona a uma grande conjugação de diferentes passados e futuro, tradições

e modernidade, matas e cidade, barbáries e civilização, introversões e extroversão,

misticismos e racionalidade, trabalho e preguiça, universalidade e singularidades, interiores e

centro, culturas e cultura. Essa característica baiana tem sido empregada para garantir a

sobrevivência e o sucesso do turismo do Estado. Nesse sentido, caberia realizar discussões

pontuais tanto em torno dos símbolos e das elocuções identitárias do interior baiano,

especialmente da Região do Cacau, quanto acerca do discurso da baianidade, uma narrativa

identitária tematizada numa certa acepção de Bahia, e que exerce funções simbólicas e

simbolizantes, capazes de constituir uma representação apropriada à promoção e à

comercialização dos produtos turísticos baianos.

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2.1 Baianidade: um tema de Bahia

No século XX, cerca de duzentos anos depois da perda do posto de centro

administrativo português, vê-se a velha Cidade da Bahia, passar por uma série de importantes

mudanças ideológico-culturais no final da década de sessenta e, sobretudo, durante as décadas

de setenta e oitenta. Nesse período, consolida-se a narrativa da baianidade, uma construção

discursiva que, apesar de relativamente recente no universo das discussões científicas,

representa um importante objeto de estudo de alguns agentes e autores, no tocante ao conjunto

de elementos que teve influência na composição da identidade baiana. Entre as fontes teóricas

que podem gerar um bom material de investigação, há os textos acadêmicos e para-

acadêmicos de cronistas e ensaístas que estudaram a dinâmica sócio-artístico-cultural da

Bahia.

A produção de diversos estudiosos se situa para além das exigências científicas, mas

apresenta uma riqueza descritiva e, em certa medida, um ineditismo no ponto de vista

defendido, o que indica algumas direções investigativas interessantes. Na pesquisa acerca do

discurso da baianidade, destacam-se os estudos de Risério (1988, 1993), ensaísta que compôs

um vivo quadro da Bahia. No entanto, embora tenha estendido sua linha de raciocínio sem

concernir à precisão analítica, foi capaz de definir os pilares fundamentais da alma baiana, ao

compreender a construção do ser baiano como um fato histórico, cultural, natural e urbano.

O mito baiano está assentado num tripé: antigüidade histórica, originalidade cultural, beleza natural e urbana. Foi a partir desses elementos, que são reais, que o mito evoluiu, dos tempos coloniais aos dias de hoje. [...] Atualmente – e ainda a partir de elementos reais – é a vez dos negros idealizarem ao extremo o “axé” da Bahia. É um mito persistente e rico. (RISÉRIO, 1993, p. 112 – aspas do autor).

Nessa perspectiva, pode-se dizer que Risério (1988, p. 157) atribui a existência de uma

certa “trama psicossocial de uma nova cultura, organicamente nascida, sobretudo, das

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experiências da gente lusa, da gente banto e da gente iorubana”, uma vez que as “práticas

culturais se articularam no sentido da individuação da Bahia no conjunto brasileiro de

civilização”. Na investigação acerca de uma alma baiana expressa na consolidada narrativa

da baianidade, caberia realizar, ainda, uma apreciação em torno das reflexões e das

especulações de outros estudiosos.

Segundo Teixeira (1996), a individuação baiana – referida anteriormente por Risério

(1988) – representa uma espécie de isolamento cultural, paradoxalmente provinciano e

cosmopolita que estaria no cerne de uma cultura idiossincrásica baiana ou, mais propriamente,

soteropolitana. Sem dúvida, a Bahia apresenta, em sua extensão física e simbólica, um

universo surpreendente de circunstâncias de diversificação e de riqueza geográfica e cultural

capaz de individualizá-la. No entanto, a composição do discurso empregado para representar

o ser típico de todo território baiano conta apenas com elementos identitários

soteropolitanos22. Nesse sentido, pode-se dizer que o ser baiano, personagem protagonista da

baianidade, amplamente divulgado e comercializado, embora diga respeito especialmente à

cidade de Salvador e ao Recôncavo, caracteriza imageticamente o Estado.

Talvez fosse semanticamente mais próprio dizer, sermos soteropolitanos do que baianos. É uma falsidade semântica falarmos em cultura baiana. Temos na área territorial do Estado da Bahia algumas culturas baianas que não se encontram, não se casam, são coisas heterogêneas entre si. (TEIXEIRA, 1996, p.11).

Outros teóricos, por sua vez, acreditam que o ser baiano, independente de ter sido

inspirado em Salvador e no Recôncavo ou em todo o Estado da Bahia, assume um papel

fundamental e característico na concepção da imagem baiana e do imaginário brasileiro. A

baianidade, assim, estaria inscrita num amplo diálogo de discursos identitários. Essa elocução,

no plano nacional, seria uma unidade simbólica eloqüente capaz de exercer um forte papel

22 Cabe destacar que essa proposição não tem o objetivo de criticar a produção imagética de intelectuais, artistas e produtores culturais sobre a Bahia, pois se reconhece a não-obrigatoriedade desses sujeitos produzirem um acervo representativo sobre todo o Estado.

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distintivo. Do mesmo modo que outros discursos representativos acerca do Brasil, a fala

baiana representaria, portanto, uma espécie de dicção investida de ingredientes particulares e

particularizantes.

Nesse sentido, pode-se realizar o arrolamento dos circunscritos idiossincráticos que

constituem a baianidade na medida em que se confrontam e, em circunstâncias particulares, se

estabelecem correspondências identitárias entre o ser baiano e outros seres brasileiros. Desse

modo, torna-se possível listar quais expressões estéticas compõem ou passam a compor essa

narrativa representativa da Bahia e, dessa lista, pode-se deduzir que a elaboração de um

construto simbólico-cultural baiano típico, intenso e extravagante voltado, em maior ou menor

medida, para si mesmo e/ou para o outro, tem sido elaborado a partir de determinados

acondicionamentos bem definidos, que visam objetivos específicos ligados à oferta de um

diferencial mercadológico no âmbito do comercio de bens tangíveis e intangíveis relacionados

ao turismo tanto em esfera nacional quanto internacional.

Nessa direção, a pesquisadora Maria de A. Brandão (1994) acredita a realização de um

estudo aprofundado sobre qualquer forma de tradicionalismo que consiga integrar expressões

identitárias de âmbito local ou regional a um código maior, exige a apreciação pormenorizada

de uma espécie de língua-franca, capaz de efetuar a decodificação dos chamados códigos

locais e/ou regionais, aqueles estilos de interlocução intra ou interclasses. Desse modo, pode-

se dizer que as análises acerca do discurso da baianidade bem como de outras elocuções

significativas precisam considerar uma certa gramática nacional na qual estariam inscritos os

substantivos e os adjetivos representativos da brasilidade e, por conseguinte, do ser baiano.

Noutra perspectiva, no universo das teorias sócio-antropológicas propriamente ditas,

dispõe-se de uma grande quantidade de obras que dizem respeito a determinados aspectos

pertinentes à narrativa da baianidade, como referências elementares das representações

imagéticas construídas em torno da Bahia. Embora muitos desses textos ainda não tenham

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sido publicados e alguns outros sejam produções de cunho acadêmico, direcionadas, mais

especificamente, ao estudo sobre a música baiana, o ideário de felicidade, o evento do

carnaval e as organizações afro-carnavalescas na cidade de Salvador, esses trabalhos podem

constituir um conjunto de relevantes fundamentos teóricos nessa discussão.

Preliminarmente, acerca da cultura musical, deve-se considerar uma obra específica, a

coletânea organizada por Sansone e Santos (1997). Nessa obra dedicada ao estudo do

processo de massificação da nova música popular baiana, faz-se uma defesa consistente da

(auto)denominada axé music como uma produção artística que referenda a imagem da Bahia.

Desse modo, pode-se atribuir a musicalidade baiana um importante papel; através dela, a

baianidade foi ritmada e sonoramente veiculada em todo território nacional, como o som da

alegria, da festa. Em verdade, a imagem em torno das celebrações baianas foi visceralmente

marcada pelo ritmo de percussões e por letras que estimulam o movimento, a dança e as

coreografias.

Sobre a relação entre a cultura negra soteropolitana e o discurso identitário em torno

da Bahia, Pinho (1996), acredita que a idéia da alegria baiana representa uma relevante baliza

de intersecção entre negritude e baianidade. Segundo ele, a insígnia Terra da Felicidade

passou a ser fortemente investida pelas mídias impressa e eletrônica nas últimas décadas,

constituindo-se como um instrumento de interpretação e auto-representação dos

soteropolitanos e de outros baianos, materializado em uma série de traços esteticamente afro-

estereotipados, tomados como naturais e evidentes, como se emanassem de uma vida popular

autêntica23.

No exame dedicado ao tema da identidade baiana, com especial atenção ao mega-

evento do carnaval de Salvador, pode-se considerar, inicialmente, as obras de dois estudiosos

baianos: Góes (1996) e Moura (1987, 1996, 1988, 2000). O primeiro traz uma contribuição

23 O termo autêntico é entendido por Pinho (1996) como genuíno, legítimo, lídimo.

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importante ao traçar o desenho, quase alegórico, de uma Bahia dedicada à promoção da

alegria e do entretenimento através do carnaval, situando-o como característica essencial do

Estado. O segundo, por sua vez, estima a noção de baianidade como uma representação, o

nome da máscara típica e pública do baiano, dotada de certos traços característicos, como a

familiaridade, a sensualidade, a religiosidade e, sobretudo, a felicidade.

Nessa análise destacam-se, ainda, as obras de Miguez (1996) e de Veloso (1997). Ao

traçar um quadro analítico dos conflitos e confetes da tradicional festa baiana, o trabalho de

Miguez (1996, p. 25) descreve o carnaval como “um fenômeno que expressa uma complexa

pluralidade de dinâmicas, imbricando processos de mundo simbólico-cultural”. A partir de um

ponto de vista literário, pode-se entender a tradicional festa soteropolitana como uma saída

estético-cultural para a ativa expressão popular: o carnaval de rua “foi uma solução estética

que o povo de Salvador encontrou para continuar se manifestando ativamente”

(VELOSO,1997, p. 91).

Em síntese, as compreensões teóricas e artísticas em torno da noção de baianidade

podem ser discriminadas e entendidas a partir de duas perspectivas específicas. Numa, pode-

se defender um ser baiano natural, autêntico e fluido que existe independente tanto de

quaisquer interesses ou estratégias quanto da interpretação dos estudos antropológicos,

sociológicos ou econômicos. Noutra, pode-se apresentar uma alma baiana que, nascida da

contraposição com as representações de outras regiões brasileiras, teria sido planificada e

calculada a partir de objetivos e exigências mercadológicas impostas, sobretudo, por empresas

interessadas no fomento do turismo e pelo poder público da Bahia.

A primeira perspectiva, amplamente assimilada e discutida no universo acadêmico,

arrazoa a existência de uma Bahia enquanto ambiente endógeno, o lugar da espontaneidade

onde o ser baiano emergiria do interior para o exterior e das bases para o topo da sociedade

baiana. Segundo esse ponto de vista, existiria uma espécie de ethos baiano, uma alma

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estabelecida depois de mais de quatrocentos anos de sincretismo étnico, cultural e religioso,

de amalgamação afro-luso-tupi. Essa mistura seria a responsável direta por atribuir à Bahia

um caráter típico e regional que desde o início do século XX, mais precisamente entre os anos

trinta e quarenta, tem progredido e se solidificado.

A segunda, por outro lado, defende que esse ponto de vista endógeno não passa de um

mito constitutivo da identidade baiana. Nessa outra perspectiva, arrazoa-se que a noção de

baianidade teria sido desenvolvida e efetivada de fora para dentro e de cima para baixo.

Preliminarmente, do exterior para o interior, pois o ser baiano constitui uma imagem

opositiva daquilo que representa o ser carioca, o ser paulista bem como daquilo que

representa os outros seres nacionais ou internacionais. Em seguida, do topo para as bases

porque foi e ainda tem sido reforçada e, por vezes, elaborada e re-elaborada pelas políticas

públicas, pelo turismo, pelas empresas do carnaval, pelo poder da mídia, pelos artistas e

intelectuais. Segundo esse enfoque, a força atual do mito baiano teria fundamento nesses

investimentos convenientes tanto às indústrias culturais quanto ao universo político,

econômico e turístico.

Entretanto, não se pretende aqui discutir se a baianidade deve ser entendida como

construção interior ou exterior, oriunda das bases ou dos cumes sócio-políticos. O objetivo

fundamental dessa discussão não consiste em desfazer controvérsias teóricas, encontrar ou

elaborar uma noção de baianidade mais apropriada e pertinente. Além disso, cabe destacar

que esse debate não se propõe a definir uma caracterização ideal ou mais justa da Bahia.

Afinal, a imagem de uma Bahia negra, mística, tradicional e natural, além de vigorar, constitui

a (auto)representação coletiva e individual do baiano. Nesse sentido, a concepção imagética

em torno da alma baiana que mais se ajusta a essa discussão pode ser sintetizada na fronte

identitária hegemônica e consensual que tem sido empregada pública e comercialmente,

apesar de parcial e minoritária.

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Para o mundo do consumo, do entretenimento e do turismo, da cultura industrializada,

da mercantilização e da publicidade, há uma imagem baiana que parece mais apropriada, ou

pelo menos mais conveniente. A partir dessa representação, tanto o poder público quanto os

empreendimentos privados têm realizado grandes investimentos no sentido de gerenciar,

promover e comercializar ambientes, cidades e bens culturais como expressões de uma certa

noção de Bahia, enquanto balneários estéticos e espetaculares de baianidade. Resta saber se

esse fato não entrava ou limita a criatividade e a individualização da produção cultural baiana,

deve-se discutir se esse discurso identitário pode ou não ser compreendido como um estigma

demarcador da criação e da particularização dos modos culturais baianos ou da forma como

essas modalidades são representadas.

No âmbito das investigações sobre a identidade baiana, os estudos sócio-

antropológicos sobre a constituição identitária, do modo como têm sido desenvolvidos nas

últimas décadas, podem ser convenientes para investigar o contexto baiano. Hall (1997), por

exemplo, acredita que as identidades coletivas nacionais, regionais ou locais são formadas e

transformadas no interior de uma larga rede de representações sociais. Segundo essa

perspectiva, poder-se-ia dizer que a imagem da Bahia não se estabelece como reflexo de uma

identidade natural. O suposto ethos baiano, inspirado na baianidade, seria uma espécie de

produto-produtor de sentidos, um sistema de representação local ou extralocal de uma cultura

plural.

Por outro prisma, muitas discussões em torno de questões identitárias dão conta de

uma noção de cultura enquanto elemento uniforme, algo monolítico. A identidade baiana, no

entanto, se caracteriza justamente pela diversidade, pelas múltiplas singularidades de

contextos e de heranças culturais, das bases de referência e das manifestações. Mesmo

acostumados a lidar com a identidade de Salvador e do Recôncavo, pautada numa cultura

mestiça, cujo ambiente o elemento afro domina por ser mais forte, os estudos em torno da

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representação cultural baiana não devem descartar a multiplicidade identitária baiana. Ainda

que menos divulgados e, por isso mesmo, menos conhecidos, outras conjunturas marcantes

estão presentes no Estado e, na atualidade, com o planejamento do turismo em quinze regiões

estratégicas, percebe-se que distintas identidades constituem a base de um texto maior acerca

da Bahia e do rico patrimônio histórico e cultural baiano.

Iniciado na Europa, o debate em torno de questões identitárias, presente na mídia, na

academia e nos circuitos intelectuais em geral, teve grande importância, sobretudo nos anos

oitenta, por significar uma forma de avigorar a diversidade contra a unidade. Entretanto, em

alguns enfoques mais atuais, se transformou em uma espécie de arma extremamente

reacionária e totalitária, na medida em que tem sido empregada para impulsionar micro-

identidades, detentoras de verdades particulares, à não-comunicação e à intolerância cultural.

Essa perspectiva ocasionou uma nova categoria de narcisismo identitário das minorias que,

em tese, são vulneráveis e/ou vítimas da massificação cultural. Ganha força, também, o

discurso da auto-estima étnica, uma narrativa autocondescendente que ao reforçar o eu,

fortalece o nós e procura uma espécie de salvação. O identitarismo ganhou um efeito

bumerangue e passou a representar uma versão atualizada do conservadorismo, uma disputa

pela posição de gestor da própria cultura.

Nessa discussão, entretanto, aprofundar elucubrações sobre questões identitárias não

representa objetivo primordial. Não se pretende, ainda, proceder a alguma defesa salvadora

acerca da identidade cultural baiana ou defender perspectivas identitaristas em torno da Bahia.

Pretende-se entender os usos que se fizeram e ainda se fazem do ser baiano enquanto

narrativa identitária tanto pelo engenho turístico quanto pelos poderes políticos estaduais e

municipais. Além disso, acredita-se que mais relevante do que identificar a origem ou as

conformações dessa construção simbólica ou sustentar um ponto de vista acerca da identidade

cultural baiana seria entender as repercussões oriundas da utilização desse texto identificador

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na produção simbólica pelos modos culturais baianos, que têm sido administrados com o

objetivo principal de serem comercializados como mercadorias turísticas.

Esse processo de produção e comercialização de bens simbólicos passa por alguns

setores e recebe reforços de diferentes esferas. No âmbito das empresas do turismo, por

exemplo, a cultura mercantilizada como produto demanda a ingerência das indústrias

culturais, que exige um padrão, uma matriz simbólica para a sua efetivação. Nesse sentido,

considerando-se a realidade baiana, poder-se-ia afirmar que uma certa noção de baianidade

tem sido empregada como padrão para a fabricação e promoção de uma imagem tradicional e

tradicionalizante, típica e tipicizante, estética e estetizante, espetacular e espetacularizante

tanto de manifestações culturais em Salvador quanto em outras paragens turísticas do Estado

da Bahia.

De modo preliminar, pode-se afirmar que, como contribuições fundamentais para esse

processo, têm-se os universos das denominadas artes especializadas bem como das atividades

ditas intelectuais. Sem dúvida, criou-se e/ou reforçou-se a mística dos artistas e dos

intelectuais baianos: entidades que de modo singular dançam, cantam, compõem, pintam,

interpretam, fotografam e escrevem. Na Bahia, o terreno artístico e intelectual está minado

por uma profusão de investimentos narcisistas pelos quais as indústrias culturais têm

procurado conceber e reforçar imagens estereotipadas que são largamente empregadas pelo

engenho turístico do Estado.

Os setores do turismo e da produção cultural respondem pela circulação de grandes

somas monetárias, interferem decisivamente na gestão da imagem baiana e recebem, por

decorrência, fortes influências políticas. Isso ocorre não apenas por conta da riqueza natural e

cultural da Bahia, mas, sobretudo, em função do simbolismo que a envolve e está presente

tanto na atividade artística quanto na atuação intelectual. Esse envolvimento representativo

agrega valor ao produto-Bahia e eleva o Estado ao posto de um dos principais alvos do fluxo

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de visitantes do Brasil. Pode-se assegurar, inclusive, que o diferencial cultural baiano

representado na imagem de um ethos particular constitui o eixo substantivo para se entender a

imbricação da produção e promoção culturais, das diretrizes políticas e institucionais, dos

substratos artísticos e intelectuais relativos à baianidade.

Sobretudo a partir dos anos setenta do século XX, o turismo baiano passa a ser

planificado e orientado por metas objetivas sob o crivo de órgãos oficiais. No mesmo período

e na mesma medida, observa-se um complexo sistema sócio-econômico que, através da

indústria cultural e do mercado de bens simbólicos, amplifica o discurso da baianidade,

transformando-o num elemento substancial para a produção de bens culturais altamente

atrativos e lucrativos. A (re)produção popular dessas mercadorias tradicionaliza e multiplica

midiaticamente um ser baiano poderoso invasor da atividade artística e intelectual na Bahia.

A literatura, as artes plásticas, a música, as expressões corporais dentre outras produções e

manifestações artístico-intelectuais são arquétipos efetivos dessa invasão simbólica

consentida.

Deve-se destacar que a (re)produção dos produtos da baianidade quer significar dois

fenômenos ao mesmo tempo distintos e integrados. Em primeiro lugar, quer dizer re-produzir,

produzir novamente, re-elaborar. No caso da Bahia, seria o processo de capitalização de

alguns elementos culturais típicos para transformá-los num poderoso produto temático e

tematizante. Num segundo plano, quer dizer a simples multiplicação, como ocorre com

determinados emblemas baianos. A baiana do acarajé, o capoeirista, os coqueirais, a

musicalidade, as danças, as festas religioso-profanas, são alguns dos ingredientes quase

obrigatórios em qualquer imagem representativa do Estado e têm sido amplamente

(re)produzidos.

Para considerar apenas dois exemplos, talvez os mais significativos, pode-se citar o

repertório musical e o carnaval baianos. Esses dois elementos são ingredientes substanciais no

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processo de intensificação da composição e elocução do discurso da baianidade. A

constituição estética sonoro-visual da musicalidade e do carnaval tem servido de embalagem

baiana da Bahia, como um produto com larga penetração nos media regionais, nacionais e

internacionais. A axé music, incluindo uma espécie de axé pagode, e o carnaval, ou melhor, o

axé carnaval, contribui de modo decisivo para a afirmação e permanente atualização da

imagem de um lugar ricamente ilustrado com sol, verão, praia, prazer, sensualidade, alegria e

muita festa.

Surgida – ou melhor e mais conhecida – há vinte anos, a denominada axé music

representa bem mais do que uma mera manifestação estético-musical, significa uma “interface

de repertório24”, uma insígnia da conjuntura baiana, um traço idiossincrático da Bahia. Essa

expressão da musicalidade baiana, ao construir refrões e elaborar ritmos para a dicção da

baianidade, permeia e invade diferentes âmbitos culturais, estejam eles ligados ao cotidiano

social, à esfera econômica, às celebrações divinas e/ou profanas. Vale notar, porém, que a axé

music e as outras diferentes expressões musicais baianas, espalhadas pelo vasto território

geográfico e cultural do Estado, não são contrapostas entre si, mas situam-se em planos

distintos de um mesmo processo.

O carnaval, ou o axé carnaval, por sua vez, também possui uma função categórica na

composição da baianidade. Essa celebração popular caracterizada não apenas como um

movimento meramente turístico ou político, pode ser compreendida como uma associação

entre criatividade e técnica, espontaneismo e estratégia, um corpo social, político, econômico

e cultural com padrões estéticos, pragmáticos e mercantis produzidos, reproduzidos e

caricaturizados industrial e comercialmente. Sem dúvida, no trio elétrico, nos blocos

carnavalescos organizados, na pipoca25, nas coreografias mais ou menos improvisadas, nas

letras das músicas, nos ritmos, na infra-estrutura e na ornamentação estão figuradas cadências,

24 Conforme o entendimento de Moura (2000). 25 Expressão comum no vocabulário soteropolitano para designar a massa de pessoas que acompanha os trios elétricos do lado de fora das cordas que demarcam o espaço dos integrantes de blocos carnavalescos na avenida.

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texturas, cores, atitudes, ambientes, personagens, tempos e enredos da narrativa representativa

da Terra da Felicidade.

Contudo, vale reafirmar que os vetores fortalecedores do discurso da baianidade não

se restringem apenas às indústrias da música e do carnaval baianos. Outros componentes

convergentes à industrialização da cultura viabilizam o fortalecimento e a atualização de uma

identidade baiana comum: a literatura, a produção intelectual, as estratégias políticas e

empresariais encontram-se direcionadas à promoção e à intensificação de uma imagem

identitária da Bahia. De modo elaborado e definido, esses ingredientes objetivam garantir

tanto o poder e o valor da baianidade quanto o sentimento de pertencimento do baiano. Nesse

sentido, pode-se reinterpretar o ser baiano como um substrato simbólico que alimenta a

indústria cultural que, por seu turno, retro-alimenta a própria identidade baiana.

Sem dúvida, caberia ratificar que uma certa noção de baianidade tem sido apreendida

e capitalizada pelos principais administradores do setor turístico da Bahia. Desse modo, faz-se

importante destacar o poder e o valor do universo cultural, ideológico e/ou também identitário

na atual conjuntura dos procedimentos estratégicos de desenvolvimento econômico do Estado.

A imagem hegemônica de um certo ser baiano tem proporcionado a ampliação de novos e

mais consolidados produtos e serviços turísticos. Essa expansão da oferta tem sido protegida

por uma grande disposição econômica e comercial das indústrias culturais associada às ações

estratégicas tanto do governo estadual e da BAHIATURSA quanto de administrações públicas

municipais e de suas secretarias de turismo.

Muitas são as discussões teóricas que referendam o alcance das indústrias culturais e

do gerenciamento público tanto nas atividades turísticas de âmbito cultural e, por decorrência,

na própria produção de bens simbólicos, quanto em seu poder de criar dissimulações sobre a

cultura. Esses debates remetem a duas questões básicas relacionadas tanto aos objetivos

sempre ideológicos subjacentes a intenções e ações político-mercadológicas quanto às

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repercussões dessas pretensões e atuações na produção contemporânea de bens culturais,

cujas perspectivas podem pontuar padrões de fabricação, oferta e divulgação de mercadorias

para um segmento específico do turismo.

Na Bahia, ações aparentemente prosaicas, como a veiculação de slogans, matérias e

imagens em cadernos jornalísticos destinados ao turismo, revistas especializadas, emissoras

de rádio e de televisão, podem se constituir em importantes estratégias de manejo e de

reprodução de representações estereotipadas sobre o contexto baiano. Essas formas de

divulgação, quando enunciadas por veículos de comunicação com alguma legitimidade e em

quantidade relativamente abrangente conseguem referendar e, em alguns casos, até construir

estigmas pautados em feições pré-conceituadas acerca da cultura baiana e sobre os baianos,

que se disseminaram no contexto social interno e externo como verdades absolutas e,

portanto, inquestionáveis, simples verdades.

Assim, considerando-se os diferentes mecanismos sociais que produziram e ainda

produzem a estigmatização e a segregação representativa dos baianos, pode-se afirmar que

muitos instrumentos foram concretizados, por meio de um processo de nominação, cumprindo

a função de discriminar os ingredientes considerados desejáveis daqueles que se ambiciona

controlar ou eliminar. Sem dúvida, esses procedimentos de ênfase e exclusão de determinados

componentes representativos podem ter funcionado, também, como uma estrutura capaz de

exercer certo controle formal sobre a sociedade baiana e os diferentes modos pelos quais

entende, expressa e produz a própria cultura. Essas modalidades, até certo ponto distintas e

distintivas, dão conta de que, além da baianidade, existe uma série de outros discursos

significativos acerca da Bahia.

Nessa discussão, portanto, não se pode perder de vista os muitos capítulos que

constariam da composição de um amplo texto identitário acerca da Bahia, ainda que esses

tópicos não disponham do mesmo alcance e da mesma força da narrativa da baianidade. A

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partir da consideração desses componentes, deve-se aprofundar o debate sobre o potencial

padronizador presente no uso turístico do discurso da baianidade na representação e na

produção cultural do Estado. Afinal, como já foi dito, essa narrativa identitária, ao ser

empregada enquanto ingrediente ideológico ou como matriz simbólica pelas indústrias

culturais, tem o poder de exercer uma espécie de dominação consentida, além de promover a

estetização e a espetacularização da cultura, ao passo que pode distanciar o baiano de

determinados bens simbólicos.

Em verdade, muitas elocuções – como as do Sertão, da Chapada e do Sul – não estão

efetivamente formuladas como tópicos identitários de um código maior sobre a Bahia, pois

ainda não foram desenvolvidos de forma que pudessem ser assimilados pela indústria cultural.

Ainda assim, a narrativa construída em torno da Região Grapiúna ou Região Cacaueira, no

sul-baiano, pode ser entendida como um dos mais importantes capítulos constitutivos de um

amplo texto sobre a Bahia. Esse tópico enfatiza personagens e ambientes não apenas afro, mas

também luso-tupi descendentes, e tem conseguido alcançar êxito considerável no âmbito das

indústrias culturais. Destinado à grapiunidade, sobretudo a partir de elocuções do município

de Ilhéus, essa dicção merece destaque e, portanto, exige uma discussão pormenorizada.

2.2 Grapiunidade: um capítulo de Bahia

Em primeiro lugar, deve-se reafirmar a existência de um texto identitário sobre o

Brasil no qual se situaria um grande tomo destinado ao Nordeste. Desde o início do século

XX, esse volume tem sido composto a partir de um conglomerado de ícones da literatura

regionalista, da musicalidade nordestina e das estratégicas político-nacionalistas articuladas

com certos setores da ditadura militar que, em comunhão, empregaram o termo Nordeste para

designar um lócus específico de brasilidade, uma dicção do texto Brasil, e não apenas como

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um dos pontos cardeais do país. Sem manter relação direta com os elementos tropicais e

exóticos da atual representação turística do Nordeste brasileiro, essa primeira enunciação de

Nordeste encontrou fundamento em ingredientes como seca, natureza árida, sofrimento social,

desnutrição, analfabetismo, cangaço26, homens e mulheres de pele castigada pela ação de um

sol implacável e de uma natureza hostil.

Num segundo momento, deve-se lembrar que nesse tomo destinado ao Nordeste,

caberia à Bahia um texto amplo e de grande destaque que, por sua vez, também se comporia

de partes relevantes inspiradas nas diversas paragens baianas. Segundo Asmar (1983, p. 21),

“a mais antiga delimitação do Estado foi realizada pelo IBGE, em 1940, tomando como base

o critério fisiográfico e de posição geográfica, partindo da homogeneidade física”. Nessa

classificação, discriminam-se dezesseis setores fisiográficos, todos eles com qualidades e

especificidades individualizantes. Dentre essas zonas, merece ênfase o arrolamento da Zona

Cacaueira composta, inicialmente, por vinte e um municípios produtores de cacau, depois por

vinte e quatro e, mais tarde, por vinte e oito localidades, nem todas dedicadas exclusivamente

à atividade agrícola, mas também à pecuária.

O conceito de Grande Região Cacaueira só foi criado em 1974, quando a Comissão

Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira (CEPLAC) efetiva uma série de estudos e

pesquisas tendo como objetivo elaborar um diagnóstico sócio-econômico acerca dessa área.

Nessa época, identificam-se oito microrregiões homogêneas que compunham uma extensão

contínua de mais de cem mil quilômetros quadrados com uma população estimada em mais de

dois milhões de habitantes. Além dos municípios de Itabuna e Ilhéus, as cidades de Vitória da

Conquista, Jequié e Valença representavam importantes pólos dessa região, formada por cento

e duas localidades de baixa ou grande produção de cacau bem como de seus vizinhos mais

comprometidos com a criação de gado.

26 Gênero de vida dos cangaceiros: homens considerados por alguns como justiceiros do Sertão nordestino e, por outros, como salteadores, bandidos sanguinários, bandoleiros sertanejos.

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Na atualidade, essa região significa bem mais do que uma simples composição

espacial de zonas. As Terras do Cacau devem ser entendidas como uma importante insígnia

econômica, política, geográfica, histórica e cultural da Bahia. Os componentes constitutivos

da Região Cacaueira, relacionados à economia e à política, à geografia e à história, ao

componente étnico e à cultura, além de estimularem o desenvolvimento do turismo baiano,

assumem uma função substancial no processo de composição de uma ampla narrativa

identitário-baiana, como um de seus principais tópicos simbólicos.

Se a Região Cacaueira merece lugar de destaque entre os capítulos que comporiam um

texto sobre a Bahia, dentre os municípios do cacau, a cidade de Ilhéus se impõe como

principal fonte de inspiração para a composição do tópico destinado à grapiunidade. Nessa

região, Ilhéus ganha proeminência pelo lugar de realce que ocupa tanto no âmbito político,

econômico e social quanto na produção artística e cultural. Afinal, entre as décadas de trinta e

quarenta do século passado, a narrativa acerca dessa opulenta e poderosa região baiana tinha

os seus princípios elementares de composição centrados em elocuções, elaborações sobre uma

identidade ilheense, voltadas para as figuras políticas, econômicas, sociais e culturais da

lavoura de cacau, dos coronéis27, dos jagunços28, dos trabalhadores braçais, das belas

mulheres meio índias, parte negras, pouco européias.

De todas as imagens significativas que identificam Ilhéus, a lavoura cacaueira exerce

papel preponderante na representação da Região Grapiúna. Sem dúvida, o denominado fruto

de ouro representou durante muito tempo o centro de influência determinante de toda a

economia e, também, de toda a dinâmica sócio-cultural ilheense. A monocultura do cacau

somada aos conseqüentes abusos cometidos pelos grandes latifundiários para satisfazerem

27 Como eram conhecidos os proprietários de latifúndios produtores de cacau no Sul da Bahia que dispunham de grande poder econômico e de reconhecida autoridade política. 28 Indivíduos temidos pelo comportamento violento e pela proteção política dos “coronéis do cacau”, podem ser entendidos como uma espécie de capanga: indivíduo valente que se põe a serviço de quem lhe paga, como uma variação do guarda-costas; ou como capataz: indivíduo que chefia um grupo de homens. Segundo Andrade (2003, p. 32), “o acusado de haver introduzido na região a jagunçada é o Coronel Gentil José de Castro”.

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suas ambições por mais terras, mais dinheiro e mais poder, além da submissão e da ignorância

dos lavradores, também constituíram o ambiente dessa importante paragem do interior Sul do

Estado da Bahia.

Pode-se dizer que, antes da efetivação da lavoura cacaueira, o povo de Ilhéus não

possuía uma representação identitária consolidada. A cultura ilheense identifica-se com o

cacau que se tornou uma espécie de divindade mística e mítica “que tudo abrange e justifica e

todos vivem dele e com ele passam a viver para ele” (LIPPIELLO, 1996, p. 18). Criou-se a

saga do cacau que pode ser compreendida a partir da vasta e rica produção acadêmica e

literária, bem como dos compêndios históricos que relacionam a expressão cultural de Ilhéus

e região ao fruto de ouro, quase uma entidade em torno da qual se desenvolveram rituais de

adoração e se conceberam uma rica conjuntura de mitos e uma forma de religião.

Esse tempo de pujança econômica e de distorções sociais em torno da lavoura

cacaueira durou cerca de cinco decênios. No final da década de oitenta do século passado,

além da podridão parda, uma doença que invadiu quase todas as propriedades rurais, as taxas

recolhidas em torno da comercialização do cacau passaram a ser centralizadas no orçamento

da União, sem retorno direto para a região, desencadeando uma crise de proporções

inusitadas. Nos anos noventa, a cultura do cacau sofre grande depreciação em seu valor de

mercado, somando-se a isto a vassoura de bruxa, praga provocada por um fungo até então

pouco conhecido pela maioria dos fazendeiros.

Ainda assim, a decadência econômica, social e/ou física de praticamente toda a

geração daqueles que vivenciaram e constituíram os tempos áureos do cacau não impediu a

permanência e o uso das matrizes temáticas construídas por essa gênese regional. Sem dúvida,

embora não se possa negar o surgimento de outra descendência sul-baiana com o olhar focado

em outros valores, tempos e espaços, os principais discursos representativos em torno da

Região Cacaueira foram tematizados em elementos eminentemente ilheenses, como as

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culturas do cacau, do coronelismo, da jagunçada, do comerciante árabe, dos cabarés, da

mulher nativa sensual, um tanto tribal, um pouco africana e quase não-européia.

Nesse processo de tematização, os discursos da produção literária merecem ênfase.

Jorge Amado, por exemplo, demarcou de modo original, sobretudo nas obras Gabriela, Cravo

e Canela; Terras do Sem Fim e São Jorge dos Ilhéus, certos componentes considerados

substanciais à identidade cultural grapiúna. Afrânio Peixoto, por outro lado, pode ser

considerado o primeiro a empregar o termo grapiúna. Embora em sentido pejorativo, Peixoto

faz uso dessa elocução em seu romance Maria Bonita, e é o responsável por nomear de

formar particular o povo de Ilhéus e de toda a Região Cacaueira. Outro autor, Adonias Filho,

em Sul da Bahia; Chão de Cacau, recupera elementos históricos para, numa análise sócio-

cultural, legitimar a existência de um conjunto de características próprias à vida social

grapiúna. O escritor Euclides Neto, por sua vez, dicionarizou a expressão grapiúna em sua

obra Dicionareco das Roças de Cacau e Arredores.

Tanto o ambiente quanto os personagens do cacau, sobretudo os ilheenses, ao serem

contados, cantados, repetidos e imageticamente materializados, poderiam ser considerados os

principais elementos de tematização do texto representativo da região dita cacaueira, não

fosse a recente e poderosa influência da narrativa da baianidade. Sobre a grapiunidade, muitas

alocuções foram construídas, traçadas, tecidas e engendradas, num primeiro momento, com a

intenção de dizer a história e, mais tarde, com o objetivo de contar estórias. Esse discurso,

inclusive, começa a ser empregado de modo ainda incipiente, mas com certo êxito, tanto pelo

setor turístico municipal e estadual quanto pelas empresas particulares do turismo para

promover parte significativa do Sul da Bahia.

Sobre o uso turístico do discurso da grapiunidade, cabe realizar uma discussão acerca

do nascimento e do desenvolvimento do turismo na Região Cacaueira. Entre o final do século

XX e o início do século XXI, com o agravamento do momento crítico pelo qual passava – e

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ainda passa – a economia regional, parte do sul-baiano dá início a uma busca por formas

alternativas de sobrevivência. Nessa procura, inicia-se um processo de investimentos no

turismo através da promoção e comercialização de novos produtos turísticos, sobretudo

aqueles ligados ao patrimônio e à produção cultural. Ao procurar na atividade turística as

saídas para a auto-sustentação, muitas paragens sul-baianas – especialmente os Municípios do

Cacau – começam a perceber e a investir no que antes a estabilidade econômica, política e/ou

social não permitia.

Privilegiada com um lugar de destaque no mapa geográfico, histórico e cultural da

Bahia, do Nordeste e do Brasil, a Região Cacaueira começa a enxergar as próprias

singularidades. Em meio à crise, mas situada no coração da Mata Atlântica, apresentando um

dos litorais mais belos do país, localizado na biosfera do descobrimento, e constituindo uma

das safenas da história e da cultura nacional, as Terras do Cacau são levadas a perceber o

potencial turístico que dispunham e no qual poderiam e deveriam investir. Nesse contexto, e

submetida ao capitalismo de um tempo pós-moderno, de uma sociedade consumista, da

industrialização e da mercantilização de espetáculos simbólicos, a cidade de Ilhéus desponta

na corrida para se inserir no mundo do turismo e, em certa medida, para também se fixar no

universo das indústrias culturais.

Nessa direção, pode-se afirmar que uma certa atmosfera natural e cacaueira, de

coronéis e jagunços, ruralistas e comerciantes, de homens e mulheres afro-luso-tupi

descendentes, ao passo que representa a alma identitária do ser grapiúna e constitui

ingrediente fundamental para a composição de um relevante capítulo sobre a Bahia, tem sido

empregada, nos últimos decênios com a presença marcante da baianidade, como elemento

promotor da cidade de Ilhéus, entendida como um importante produto turístico baiano. Para

entender esse processo, buscando compreender o lugar de proeminência ocupado pelo

município de Ilhéus, deve-se considerar o desenvolvimento das muitas estratégias turísticas,

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aperfeiçoadas a partir do redimensionamento das agências oficiais do turismo, que alcançaram

o interior do Estado e, em especial, a Região do Cacau.

Assim, caberia ratificar o redimensionamento do engenho turístico oficial do Estado

da Bahia ocorrido no final da década de setenta, mais precisamente no ano de 1979, com a

reforma administrativa realizada pelo governo estadual recém empossado. Nesse momento, a

BAHIATURSA ganha novos e maiores poderes ao assumir as funções do Conselho Estadual

de Turismo e da Coordenação de Fomento ao Turismo, ambos atualmente extintos, além de

assumir o controle da EMTUR e do CONBAHIA. A partir dessa nova organização, após a

efetivação da primeira estratégia turística para a Bahia, o Plano de Turismo do Recôncavo,

voltada para as atividades turísticas de Salvador e do Recôncavo, elabora-se uma segunda

ação tática executada através do programa-base denominado Caminhos da Bahia, e destinada

ao desenvolvimento do turismo no interior do Estado.

Esse segundo projeto previa o implemento do planejamento turístico em doze

paragens turísticas. Dessas localidades, a cidade de Ilhéus, situado na região Sul da Bahia,

recebeu, gradativamente, mais destaque e imissões significativas. Por conta disso, pode-se

afirmar que a conjuntura turística ilheense merece uma investigação minuciosa. Afinal, ao que

tudo indica, esse município e suas manifestações culturais sofreram, pelo menos em tese, por

tempo e com ênfase consideráveis, as influências diretas e/ou indiretas dos investimentos

pretendidos e realizados tanto pelo agenciamento oficial do turismo no Estado e do poder

público municipal quanto pela ingerência das indústrias culturais.

A cidade de Ilhéus possui um contexto social peculiar, uma constituição histórica

característica e uma composição cultural relativamente distinta e distintiva. Além de cumprir

um calendário de celebrações oscilantes entre o divino e o profano configuradas e

reconfiguradas para serem ou se manterem turisticamente atraentes e comerciais, esse

município apresenta uma série de outros atrativos classificados e, em alguns casos,

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apresentados oficialmente como turísticos. Atualmente, empregadas como subsídios de

representação tanto municipal e regional quanto estadual e nacional, a privilegiada localização

geográfica, a típica conjuntura social, cultural e histórica distingue a localidade de Ilhéus e a

situa num lugar de destaque no universo turístico.

A história oficial de Ilhéus se confunde com a própria história do Brasil e tem início

no século XVI, período em que o rei de Portugal D. João III criou as Capitanias Hereditárias.

Em 25 de abril de 1534 foi assinada a epístola régia correspondente à doação das terras

ilheenses. No entanto, como o donatário Jorge Figueiredo Correia não se dignou a vir ao

Brasil, veio em seu lugar o espanhol Francisco Romero, acompanhado dos primeiros colonos.

De acordo com Andrade (2003), o senhor Romero era um sujeito rude e violento, um

aventureiro sem escrúpulos, “amigo das armas”, que desembarcou primeiro na ilha de

Tinharé, erguendo um forte na localidade de Morro de São Paulo. Após explorar o litoral,

conheceu um sítio que considerou mais interessante, com excelente ancoradouro e mais fácil

para ações de defesa. Nesse lugar, então, fundou a vila de São Jorge, que se tornou a sede da

capitania de São Jorge dos Ilhéus.

Uma das primeiras vilas criadas no território nacional, a Vila de São Jorge, nasceu no

outeiro de São Sebastião, onde foram edificadas as primeiras casas e erguidas as primeiras

fortificações bem como a primeira igreja. Essa denominação foi atribuída em homenagem ao

donatário Jorge de Figueiredo Correia. Quando Francisco Romero chegou às terras ilheenses,

aportou na foz do rio Cachoeira, denominando-o Rio dos Ilhéos29, por existirem cinco ilhéus

nas suas proximidades. O território dessa capitania era primitivamente habitado pelos índios

tupiniquins e aimorés com ou contra os quais foram travadas muitas lutas, até que,

conquistada uma espécie de paz, fosse possível indígenas e portugueses, ou indígenas a

29 Escrita arcaica de Ilhéus.

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serviço dos portugueses, construírem os primeiros engenhos de açúcar e iniciarem o cultivo

da cana, do milho, do feijão e da mandioca.

No ano de 1761, por ordem do rei D. José I, o governo de Portugal põe fim ao

aparelho das capitanias e o território de Ilhéus retorna ao controle do Estado português. Nesse

mesmo período, chegam a Ilhéus as primeiras sementes de cacau trazidas, ao que tudo indica,

da região amazônica do Brasil, mas apenas entre as últimas décadas do século XIX e os

primeiros decênios do século XX tem início à efetivação da rentável lavoura cacaueira e do

universo social, cultural, político e econômico em torno.

De acordo com Andrade (2003, p. 31), de 1890 a 1930, “a história de Ilhéus pode ser

pensada como a história dos coronéis do cacau, cuja influência foi positiva como força

propulsora do desenvolvimento regional”. Muitas estórias e histórias compõem a trajetória do

coronelismo ilheense numa confluência de mito e realidade, bravura e aventura. Tanto o

coronel que comprara sua patente, na Corporação da Guarda Nacional, quanto os ricos

fazendeiros que eram reconhecidos como tais por haverem conquistado o poder político e o

respeito da população representam elementos essenciais na representação da Região

Cacaueira.

Os principais grupos étnicos que deram origem à formação do povo de Ilhéus são os

índios, nativos que habitavam o Brasil na época da chegada dos portugueses; os negros,

africanos trazidos como escravos para a região e os brancos, aqueles que colonizaram o país.

De acordo com Andrade (2003), dos cinco grandes agrupamentos indígenas do Brasil, o tupi,

o nuaruaque, o caraíba e o jê, o maior de todos, cognominado de tapuia30, habitavam as

terras da Capitania dos Ilhéos os descendentes dos tapuias, denominados aimorés, e os

tupiniquins, descendentes dos tupis. Mais tarde, outras comunidades indígenas descendentes

dos tapuias foram surgindo no litoral, como os guerens, além dos pataxós e dos kamakãs.

30 Muitos estudiosos acreditam que o uso da expressão tapuia para designar uma comunidade indígena constitui um erro de interpretação: esse termo significa qualquer forasteiro ou inimigo e, portanto, não denotaria uma tribo ou uma nação de índios brasileiros.

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Quanto aos africanos negros, a vinda para Ilhéus resultou, como em outras regiões

brasileiras, da necessidade de mão-de-obra para a lavoura, uma vez que os padres jesuítas

lutavam contra a utilização dos povos indígenas nativos nessa atividade. Iniciado no ano de

1539, o tráfico negreiro teve como precursores os famosos tumbeiros, traficantes que

cruzaram o oceano, vindos da África. As várias etapas do plantio de cana e da fabricação de

açúcar contaram com a força física dos negros. Embora não se saiba o número exato do total

de cativos traficados para a região, sabe-se que, somente nos dois principais engenhos da

Companhia de Jesus, havia mais de trezentos escravos.

Dentre muitos outros imigrantes, as terras ilheenses atraíram alemãs, franceses, suíços,

sírios e até russos, como a família Bunchaft, desembarcada em Ilhéus em 1925. Entretanto,

embora imigrantes de várias nacionalidades tenham acorrido a essa região, os portugueses

conseguiram se adaptar e se integrar mais facilmente às condições climáticas e às mudanças

de hábitos alimentares e sociais. Ao constituírem matrimônio ou mancebia com índios e

negros, o lusitano dá origem aos mestiços que inspiraram e inspiram tantas imagens em torno

dos homens e, sobretudo, das mulheres grapiúnas.

No século XX, pessoas de outras regiões do Brasil e do mundo começam a migrar

para a região de Ilhéus. Entre as décadas de vinte e trinta, chegam às terras ilheenses artistas

das mais distintas artes, que se especializam na promoção de toda sorte de entretenimento

para os coronéis, em ambientes inspirados nos tradicionais cabarés europeus. Essa época foi

musicada, pintada e escrita em expressões intelectuais e artísticas que laboraram a imagem de

uma cidade grapiúna, centro de uma rica e exótica região baiana que, mais tarde, com a

otimização da atividade turística e das indústrias culturais, seria conhecido nacional e

internacionalmente como o lócus inspirador de uma versão apurada de Bahia.

De praticamente todos esses grupos étnicos, muito restou de herança cultural. Esse

patrimônio marca as nuanças da cultura ilheense e tem caracterizado boa parte das expressões

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do povo grapiúna, o que acaba influenciando de modo decisivo a composição do texto

identitário sobre a Região Cacaueira. Muitos hábitos alimentares, aspectos da religiosidade,

da agricultura, da pecuária, da linguagem e dos comportamentos regionais da atualidade

podem ser entendidos a partir da intersecção entre passado e presente do ponto de vista social,

étnico e cultural em Ilhéus. Esses ingredientes foram trabalhados por diversas frentes: da

promoção social à atuação política; da produção intelectual à atividade econômica; da

literatura ao turismo.

Numa uma rápida situacionalização geográfica do município de Ilhéus, pode-se dizer

que a cidade está localizada no Sul do Estado da Bahia e ocupa um espaço ambientalmente

privilegiado. Limita-se a Leste com o Oceano Atlântico; ao Norte com o município de

Aurelino Leal (79 km), Itacaré (65 km) e Uruçuca (48 km); a Oeste com Buerarema (39 km),

Coarací (75 km), Itabuna (26 km), Itajuípe (45 km) e Itapitanga (108 km); ao Sul com a

cidade de Una (57 km).

O lugar que inspirou obras de arte, histórias e estórias, tem seduzido pessoas de todas

as partes do Brasil e do mundo como um relevante produto do turismo baiano. Considerada

uma das mais importantes paragens turísticas do litoral sul-baiano, o município de Ilhéus

representa o núcleo de uma região proclamada e reconhecida como cacaueira e que na

atualidade corresponde à área compreendida pela BAHIATURSA como um cluster

denominado Costa do Cacau. Esse complexo turístico se estende por 110 km ao Sul e 60 km

ao Norte do território ilheense e inclui, dentre ostras localidades, os municípios de Itacaré,

com ênfase no turismo ecológico e de aventura, e de Itabuna, com destaque na atividade

turística de negócios.

Dispondo de uma série de atrativos ambientais, históricos, culturais e, mais

recentemente, também econômicos, a cidade de Ilhéus se tornou um importante pólo turístico.

Nos dias atuais, o turismo ilheense tem sido alvo de um grande incremento, com as ações

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tanto da Secretaria Municipal de Turismo quanto do engenho turístico oficial do Estado. Esse

desenvolvimento, por sua vez, representa um estímulo a cada vez mais, novos e maiores

investimentos, principalmente com o apoio dos empresários interessados no ramo hoteleiro,

que se apresenta em crescente expansão, no município e nas zonas circunvizinhas, sobretudo

no litoral Sul de Olivença, Una e Canavieiras.

A promoção e a atividade do turismo de Ilhéus se divide entre a exploração de

atrativos naturais, históricos, sociais, culturais e econômicos. Nas últimas décadas, a cidade

começou a receber e realizar investimentos liminares com o objetivo de se consolidar também

como um destino interessante para aqueles que almejam realizar negócios. Mesmo sem

pretender proceder a um debate amplo e minucioso acerca do tema, cabe registrar que o

turismo com base na economia ilheense e/ou no potencial de negócios do município e da

região que compõe tem crescido significativamente e representado um novo objetivo dos

setores turísticos, apesar de haver recebido, até então, apenas tímidas e incipientes investidas.

O município de Ilhéus tem procurado oferecer, para quem vem a trabalho, muitas

oportunidades de negócio. Para tanto, foi construído um Centro de Convenções com

capacidade para duas mil e quinhentas pessoas, que permite a programação de múltiplos

eventos. Nesse sentido, não se pode perder de vista também que Ilhéus tem se transformado

num importante pólo de informática do Norte e Nordeste brasileiros, com a implantação de

fábricas de equipamentos eletrônicos. Além disso, muitos eventos têm sido organizados e

promovidos com o intuito de atrair visitantes e de consolidar o município como um destino

desse ramo do turismo contemporâneo.

Entretanto, não se pode negar que o engenho turístico de Ilhéus tem se voltado com

maior cuidado e veemência à promoção de ambientes ideais tanto para aqueles que desejam

viver momentos de satisfação e contentamento em meio a natureza atlântica quanto para os

que desejam conhecer a história nacional, bem como os cenários e os personagens descritos

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por diversos escritores regionais. Não se deve esquecer, ainda, dos eventos festivos que têm

recebido lugar de destaque como reflexo e insígnia de baianidade para os que se interessam

em conhecer a Terra da Felicidade na Terra da Gabriela.

No que diz respeito aos atrativos naturais, o turismo municipal tem se esforçado para

promover orlas e reservas naturais, dentre outros atrativos. Em determinados sites31

ditos

oficiais da cidade, por exemplo, divulga-se a orla Norte ilheense como um pedaço de paraíso

constituído por mais de cinqüenta quilômetros de praias servidas pela primeira estrada

ecológica do país, aparelhada com passarelas suspensas e túneis para passagem de animais

silvestres, que leva a Área de Proteção Ambiental da Lagoa Encantada, a Serra Grande,

distrito de Uruçuca, ao município de Itacaré, além do Parque Estadual do Conduru. A orla

Sul, por sua vez, recebe promoção enfatizada na possibilidade de a partir dela pode se

conhecer locais como o Rio de Engenho, além das dezenas de praias que possui, desde a dos

Milionários até a Back Door.

Na orla Sul de Ilhéus, além desses atrativos, há outros que recebem e merecem

destaque. Um deles, a Estância Hidromineral de Olivença, uma antiga vila jesuítica, tem sido

promovido por possuir fontes d’água divulgadas como medicinais e que guardariam o segredo

da vitalidade. Um outro atrativo, o Eco-Parque do município de Una, acessado a partir da

região sul-ilheense, recebe ênfase por oferecer aos visitantes uma série de trilhas ecológicas

dentro da Mata Atlântica, passarelas suspensas na copa das árvores a mais de vinte metros de

altura e a possibilidade de se observar algumas espécies ameaçadas de extinção como o mico-

leão-da-cara-dourada, o macaco-prego-de-peito-amarelo e a preguiça-de-coleira, animais

protegidos pela Reserva Biológica que faz divisa com o parque.

Entretanto, embora os aspectos econômicos e ambientais do turismo ilheense sejam

relevantes, merecem destaque os elementos culturais promovidos como produtos turísticos de

31 Ver: www.ilheus.com.br e www.ilheus.gov.br.

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Ilhéus. Se na divulgação dos atrativos econômicos exalam os odores da modernidade e na

representação do patrimônio ambiental sopra o ar de uma natureza rica, tropical, exótica e

rara, na imagem cultural construída em torno da cidade de Ilhéus se respiram os ares literários

e os sedutores aromas do cacau e da gastronomia regional. A culinária ilheense destaca os

pratos preparados com frutos-do-mar e do já típico quibe que divide espaço no tradicional

tabuleiro da baiana de acarajé. Na visitação tanto a determinados estabelecimentos da sede do

município quanto a algumas antigas fazendas, pode-se acessar um pouco dos costumes e dos

hábitos alimentares do povo de Ilhéus e da Região Cacaueira.

Na perspectiva da construção da representação cultural e da conseqüente ampliação da

atividade turística de Ilhéus, não se deve negligenciar a força da produção literária de vários

escritores, como Afrânio Peixoto, Adonias Filho, Euclides Neto e, em especial, Jorge Amado,

reconhecido como o maior narrador da epopéia grapiúna. Nesse sentido, o pesquisador

Lippiello (1996) destaca que, das obras amadianas em torno do universo do cacau, seis

ingredientes podem ser considerados elementos constitutivos da identidade ilheense:

violência, erotismo, injustiça social, imoralidade, insegurança e romantismo. Parece

consensual que a produção literária de Jorge Amado ampliou a importância turística da cidade

pelo fato de ter sido o cenário de alguns dos seus principais romances.

No que diz respeito à promoção de atrativos arquitetônicos referenciais, destaca-se o

Quarteirão Jorge Amado, onde se concentra um bom número das atrações históricas e

culturais da cidade, como imponentes palacetes dos poderosos coronéis que patrocinaram uma

certa europeização da cidade, chegando a importar estátuas em mármore para embelezar

residências e jardins. Dentre essas construções, pode-se ressaltar o Palácio Paranaguá, onde

funcionam a Prefeitura e a Associação Comercial, o casarão do coronel Misael Tavares e o da

tradicional família Berbert, inspirado no Palácio do Catete do Rio de Janeiro, a Igreja Matriz

de São Jorge, a Catedral de São Sebastião, o Ilhéos Hotel, com o primeiro elevador do interior

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do Nordeste, o Cine Teatro Ilhéos, além da Igreja de Nossa Senhora da Piedade, do cabaré

Bataclan, da Capela de Nossa Senhora de Santana, construída em 1537 e considerada a

terceira mais antiga do Brasil.

Além desse patrimônio, a cidade de Ilhéus tem sido divulgada, sob nítida inspiração

no sucesso mercadológico da narrativa da baianidade, como um lugar com grande vocação

para a festa, seja em eventos profanos ou em celebrações religiosas. Nos últimos anos, dentre

as festividades de destaque, além do reveillon que reúne milhares de pessoas nas praias, o

município realizava um festejo junino em Olivença e dois carnavais na sede do município: o

Ilhéus Folia, antecipado com trios elétricos e nos moldes soteropolitanos, e o Carnaval

Cultural, na data oficial e que supostamente tenta resgatar a genuína expressão da cultura

afro-tupi-ilheense. Nesse universo, duas outras festas se sobressaem: a de Iemanjá e a Puxada

do Mastro de São Sebastião, no distrito de Olivença, uma das mais antigas celebrações

ilheenses, que pereniza narrativas envolvendo elementos indígenas, jesuíticos e caboclos.

Sobre esse calendário de festas, caberia apresentar algumas observações relevantes. A

realização desses festejos sempre esteve submetida às mudanças político-administrativas do

município de Ilhéus: a cada nova eleição, um novo secretariado; a cada novo secretariado,

uma nova perspectiva para o turismo e as celebrações ilheenses. No final de 2004, por

exemplo, sob o clima de campanha eleitoral, não foram realizadas certas comemorações,

como o reveillon. Em 2005, certas alterações foram implementadas com a posse de um

governo de oposição à administração anterior, e uma delas pode servir de ilustração: os dois

carnavais não foram realizados e, em seu lugar, a prefeitura realizou um carnaval fora de

época, mais precisamente no mês de abril.

Dos festejos promovidos em Ilhéus, chama a atenção uma comemoração de cunho

sincrético-religioso que tem conquistado um lugar de realce no calendário das festas,

consideradas tradições ilheenses: a Festa de São Sebastião. Das cerimônias que constam dessa

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festa, a já tradicional Lavagem das Escadarias da Catedral de São Sebastião, no centro da

cidade, pode ser compreendida como um elemento de grande força representativa da Bahia;

afinal, os rituais de Lavagem compõem a imagem que se construiu em torno do ser baiano.

Na Região Grapiúna, essa cerimônia, criada em substituição à celebração nativa em

homenagem ao santo patrono dos estivadores, tem recebido cada vez mais atenção e maior

projeção pelo setor turístico, como um importante produto. Desse modo, merece uma reflexão

detalhada no esforço de se entender tanto o poder e o valor dos discursos acerca da Bahia

sobre a produção e a concepção da representação da cultura baiana quanto suas conseqüências

mais mediatas.

2.3 Lavagens de igrejas: uma alínea de Bahia

Muitos pesquisadores da mitologia entendem a Lavagem de templos religiosos na

Bahia como uma cerimônia de cunho eminentemente africano. No entanto, seria prudente

lembrar da evidente convergência de dezenas de celebrações tradicionais tanto em África

quanto em Europa na maioria dos rituais baianos de Lavagem dos ambientes considerados

sagrados. Nesse sentido, vale ressaltar ainda que, tanto nas Campitales romanas quanto na

grande Panatenéia grega, as encruzilhadas e o Partenon eram banhados ao som de cânticos

específicos. As divindades, especialmente os psicopompos – Mercúrio em Roma, Hermes na

Grécia ou Anúbis no Egito – além de tempos apropriados para o preparo votivo, tinham dias

determinados para a limpeza dos respectivos santuários.

Não era apenas o africano que banhava seus fetiches com azeite, mas também o romano o fazia com óleos sagrados. Os ídolos eram imersos assim como os santos são banhados, por castigo, se não fazem o milagre pedido, ou pela sugestão da lei simpática, para que mandem a chuva cair. (CASCUDO, 1972, p. 507).

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Desse modo, os atos de pintar ou simplesmente caiar paredes, reformar ou apenas

embelezar altares, lavar ou somente varrer pisos e escadarias podem ser compreendidos como

compromissos sociais e/ou promessas de fé. Além disso, cabe ratificar que, entre as

obrigações sócio-religiosas, seja de caráter passageiro, seja permanente, aquelas que se

constituem como uma contribuição ao asseio das igrejas ou enquanto meio para realizar a

limpeza de templos, vasculhando ambientes, banhando as partes internas e/ou externas,

enfeitando adros, corredores ou naves, podem ser consideradas de certo modo corriqueiras nas

mais variadas regiões geográfico-culturais do globo, de onde derivaram para o território

brasileiro, em especial, para o Estado da Bahia.

Entretanto, não se pretende aqui aprofundar um debate acerca da origem étnica das

cerimônias de Lavagem na Bahia. Nessa discussão, independente de apresentarem

ascendências africanas, européias ou se constituírem em rituais sincréticos, as Lavagens de

templos baianos são entendidas como importantes componentes representativos do ser

baiano, promovidas como produtos de forte apelo turístico, sobretudo aquela que

tradicionalmente se realiza na cidade de Salvador. De acordo com Cascudo (1972, p. 506-

507), “em nenhuma parte houve, como durante tantíssimos anos ocorreu, a cerimônia de

Lavagem da igreja do Bonfim em Itapagipe, bairro da capital baiana, com tamanha

regularidade sistemática e popularidade extrema”.

Durante todo ano, a devoção faz milhares de fiéis e romeiros se dirigirem à Igreja de

Nosso Senhor do Bonfim. Em 1804, instituiu-se uma festa católica em homenagem ao santo,

realizada no mês de janeiro, com ápice no segundo domingo depois do Dia de Reis.

Inicialmente, as celebrações católicas duravam cerca de dez dias, começando com uma série

de novenas e encerrando com a realização de missas solenes e campais. Anos depois,

integrantes do candomblé, mães e filhas-de-santo, relacionando Oxalá, pai dos orixás, ao

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Senhor do Bonfim, começaram a realizar uma das manifestações sincrético-religiosas mais

famosas da Bahia, a Lavagem das Escadarias da Igreja do Bonfim.

Desde então, na segunda-feira seguinte ao domingo do Bonfim, baianas tipicamente

vestidas saem da Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia e caminham

aproximadamente oito quilômetros até a Sagrada Colina, onde se localiza a Igreja de Nosso

Senhor do Bonfim. Acompanhando as baianas, uma multidão inclui fiéis, populares, turistas,

personalidades famosas e, com interesses bem definidos, muitas autoridades da política

municipal, estadual e até nacional. Ao chegarem ao Bonfim, trazendo potes ornamentados por

flores e com água de cheiro, as baianas entoam cânticos e preces, enquanto lavam as

escadarias e o adro do templo que, dentre muitas outras significações, representa, sobretudo

naqueles dias, tanto um importante santuário católico quanto a casa de Oxalá.

Nessa cerimônia, são comuns os banhos de pipoca e as manifestações de transe em

plena escadaria da igreja, sem intervenção direta das autoridades católicas, que recentemente

têm procurado respeitar os rituais do candomblé. Além das celebrações de cunho religioso, a

Lavagem das Escadarias da Igreja de Nosso Senhor do Bonfim tem sido envolvida por uma

grande festividade profana. Durante vários anos, desenvolveu-se uma festa pagã e de largo

que era acompanhada por trios elétricos, sonorizada pela axé music, servida de muita bebida e

comida. No entanto, no ano de 1998, o aparato pré-carnavalesco teve sua proibição decretada

por se acreditar que com ele a religiosidade da festa era descaracterizada.

Palco desse evento religioso-profano, o templo católico em homenagem a Nosso

Senhor do Bonfim foi inaugurado no ano de 1754, num sítio denominado Monte Serrat, local

escolhido para receber, no dia 24 de junho do mesmo ano, a imagem do Senhor do Bonfim.

Essa igreja teve sua edificação concluída graças, sobretudo, à intervenção e aos esforços de

uma irmandade devotada ao santo. Ainda hoje se mantém viva a religiosidade desenvolvida

em torno do Nosso Senhor do Bonfim, iniciada séculos atrás, provavelmente no ano de 1745,

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quando uma escultura semelhante à imagem encontrada em Portugal foi colocada no altar da

Igreja de Nossa Senhora da Penha, no bairro de Itapagipe.

Outros templos baianos conhecem cerimônias de Lavagem. Muito comuns na Bahia,

esses eventos ocorrem de modo regular também no interior do Estado. No município de

Ilhéus, por exemplo, um ritual de Lavagem tem alcançado cada vez mais notoriedade e

importância no calendário cultural baiano, bem como entre os produtos promovidos pelo setor

turístico: trata-se da Lavagem das Escadarias da Catedral de São Sebastião, ou simplesmente

Lavagem de São Sebastião, um evento religioso-profano elaborado e desenvolvido pelo

Sindicato dos Estivadores de Ilhéus. A igreja palco dessa cerimônia teve sua construção

iniciada no ano de 1931 e concluída em 1967, constituindo-se como uma das principais

atrações da cidade de Ilhéus.

A Catedral de São Sebastião, imponente templo católico em estilo aproximadamente

neoclássico, localiza-se entre o mar e o meneio final do rio Cachoeira, ao concluir seu curso.

Este sítio, à época da chegada dos portugueses, era circundado pelas águas do rio e

correspondia a uma ilha na qual foi instalado o marco de fundação da cidade. Antes de se

construir a Catedral, erguia-se no mesmo local uma capela dedicada a São Sebastião. Em

meio às estórias e às histórias de Ilhéus, conta-se que em 1923, resolveram demolir a capela

para instalar aí uma praça. No entanto, como numa maldição, ou por falta da proteção do

santo, o mar, qual num aviso divino, atravessou a cidade. Por conta disso, a comunidade

amedrontada, fez a promessa a São Sebastião de naquele lugar construir uma grande igreja: as

águas do mar se acalmaram e nunca mais tornaram a atravessar a cidade.

Apenas em meados da década de setenta do século passado, a Lavagem de São

Sebastião passa a compor as demais celebrações em homenagem ao santo mártir e, a cada

ano, tem contado com maiores investimentos e ganhado repercussões mais significativas. No

entanto, desde a década de 1920, o Sindicato dos Estivadores participa das celebrações em

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tributo a São Sebastião, realizadas no período de 08 a 25 de janeiro e das quais também

constam, segundo o Guia Cultural da Bahia (1999), de procissão e de missa solene.

Inicialmente, as festividades efetivadas pelos trabalhadores da estiva em tributo a São

Sebastião faziam parte do Calendário Folclórico de Ilhéus, mas não representavam um evento

de proporções tão alargadas como se observa na sua atual conformação.

Muitos ingredientes considerados elementos substanciais da festa originária não

constituem a atual celebração. Em seus lugares, o ritual de Lavagem chama a atenção e

merece tratamento minucioso; primeiro, por ter substituído a celebração nativa em

homenagem ao santo; segundo, por ter recebido nos últimos anos uma série de investimentos

significativos dos poderes públicos, das empresas do turismo e das indústrias culturais, o que

realçou seu poder e apelo comercial; e terceiro, por ter alterado sobremaneira as dinâmicas de

produção e de desenvolvimento do tributo ao padroeiro dos trabalhadores da estiva de Ilhéus.

A celebração originária para homenagear São Sebastião, de festa eminentemente popular e

religiosa ligada ao Sindicato dos Estivadores do Porto de Ilhéus, foi suprimida pela Lavagem

das Escadarias da Catedral de São Sebastião, que passou a constituir num dos mais

importantes eventos do calendário turístico-cultural ilheense e começa a ser produzida como

uma mercadoria turística representativa, divulgada e comercializada pelo turismo em âmbito

estadual, nacional e internacional.

No dia 20 de janeiro, ou num final de semana próximo a essa data32, da Avenida Dois

de Julho sai o cortejo acompanhado por carroças ornamentadas, por baianas tipicamente

vestidas e por pessoas fantasiadas de baianas típicas, com jarros na cabeça, flores e vassouras

nas mãos. Além dessas companhias, a Lavagem conta com um grande número de populares

que seguem o roteiro até chegar a Catedral de São Sebastião, na praça Dom Eduardo, onde

acontece o ponto alto da Lavagem. Nesse ambiente, trios elétricos, bandas de axé music e

32 Há uma necessidade de se realizar a Lavagem num final de semana, por conta disso, esse ritual não se efetiva numa data estável.

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grupos de percussão tocam para turistas e populares que cantam e dançam, enquanto as

escadarias do referido templo são lavadas em meio a uma espécie de batalha onde as baianas,

munidas com água de cheiro, são vencidas pela força do caminhão-pipa da prefeitura. À noite,

quando da data em louvor ao santo mártir, a bacalhoada, antes oferecida à comunidade, tem

sido servida apenas a alguns convidados, o que nos últimos anos não tem acontecido com

regularidade.

Na atual conjuntura da Lavagem de São Sebastião, um ritual desenvolvido com base

em enredos que oscilam entre fé e folguedo, estórias e história, deve-se considerar em

destaque a realização de uma grande manifestação pública e de característica mais mundana

que religiosa, mais turística que típica. Esse evento tem sido realizado e promovido, de modo

sistemático, sob a forma de festividade fortemente popular e representativa do ser baiano. A

cena sincrética integra a presença da imagem de São Sebastião no meio da praça, enquanto os

foliões comem, bebem, dançam e cantam à vontade.

Sem dúvida, o festejo de largo tem representado, dentre os eventos realizados em

torno da Lavagem de São Sebastião, o mais divulgado pelo setor turístico estadual e

municipal. Ao receber investimentos em publicidade e agenciamento, essa festa parece se

sobrepor à cerimônia de Lavagem a ponto de não mais se poder discernir uma da outra.

Assim, seria mais pertinente dizer simplesmente Festa-Lavagem de São Sebastião do que

Lavagem das Escadarias da Catedral de São Sebastião. No entanto, os aspectos que chamam à

atenção são os matizes, as formas e os ritmos pelos quais essa festividade tem se realizada e

não o fato dela se sobrepor à Lavagem propriamente dita. Em síntese, pode-se dizer que a

celebração nativa em homenagem ao santo padroeiro, de manifestação localizada entre o

religioso e o profano, sucumbiu a uma cerimônia de Lavagem, a um acontecimento turístico

de evidência quase pré-carnavalesca.

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Nessa investigação, por conseguinte, busca-se estudar as influências padronizantes

presentes na produção desse ritual de Lavagem bem como as repercussões mais diretas dessas

ingerências. Para tanto, entende-se que, primeiro, caberia compreender os festejos de largo em

sua representação e função sócio-cultural. Carlos R. Brandão (1989), estudioso da cultura

popular, acredita que a festa de rua representa o lócus fundamental e apropriado para as

manifestações culturais de um povo, de uma sociedade, onde o que se entende como

inevitável e/ou não-desejável pode ser negado e, por vezes, suportado, onde se vive de modo

intenso a beleza do desejado, o espaço do discurso, da memória e da mensagem, o ambiente

onde as expressões culturais acontecem e se mantêm vivas.

O lugar simbólico onde cerimonialmente separam-se o que deve ser esquecido e, por isso mesmo, em silêncio não festejado, e aquilo que deve ser resgatado da coisa ao símbolo, posto em evidência de tempos em tempos, comemorado, celebrado. Aqui e ali, por causa dos mais diversos motivos, eis que a cultura de que somos ator-parte interrompe a seqüência do correr dos dias da vida cotidiana e que demarca os momentos de festejar. (BRANDÃO, C. R. 1989, p. 8).

Nesse sentido, a celebração de largo que se desenvolve em torno da Lavagem das

Escadarias da Catedral de São Sebastião poderia ser pensada tanto como uma alocução

popular ou uma tradição identitária quanto como uma essência simbólica ou uma conjugação

de símbolos culturais. Além disso, não se pode negar que esses festejos se constituem

enquanto atmosfera do alegórico, do característico cultural, o ambiente onde se busca afastar

todos os ingredientes cotidianos que precisam e podem ser esquecidos, ao passo que se

procura relevar todos os componentes que merecem e devem ser resgatados, lembrados e, por

isso mesmo, celebrados coletivamente.

Cabe lembrar, no entanto, que nos últimos anos essa comemoração sofreu influências

diretas do setor turístico baiano por meio de certas estratégias que visavam à promoção e à

comercialização de uma Bahia representada, prioritariamente, a partir do texto organizado

com referência aos ícones da baianidade de matriz soteropolitana e, mais recentemente e em

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menor medida, através dos discursos identitários inspirados numa certa noção de grapiunidade

ilheense. Considerando-se a possibilidade dessas ingerências, restaria saber se, na atualidade,

a produção dessa festa não tem sofrido interferências padronizantes tanto das agências da

indústria cultural quanto do comércio de bens simbólicos.

Com fins a alcançar a realização desse objetivo, deve-se primeiramente compreender

de modo detalhado o desenvolvimento dos conceitos de indústria e de mercado cultural, bem

como das noções de estetização, de espetacularização e de dessimbolização. A partir daí,

poder-se-á discutir as repercussões positivas e/ou negativas do uso de padrões estéticos, de

espetáculos e de símbolos baiano-soteropolitanos, sobretudos aqueles pertinentes ao discurso

da baianidade, na concepção e na realização da Lavagem das Escadarias da Catedral de São

Sebastião, em Ilhéus.

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3 INDÚSTRIAS, MERCADOS E PADRÕES CULTURAIS: PERDAS E GANHOS

O uso de padrões estéticos, em cujo bojo pode-se situar as referências cênicas,

musicais, coreográficas, culinárias, dentre outras, têm se tornado uma prática corriqueira das

empresas oficiais de administração turística do Estado da Bahia para produzir e promover

cada vez mais produtos culturais no mercado respectivo. Sem dúvida, ao que tudo indica, há

uma íntima inter-relação entre estética, espetáculo, produção simbólica e atividade turística.

Do mesmo modo, não se pode dissociar os elementos estetizantes e espetacularizantes da

maioria das questões referentes ao poder do símbolo e às ameaças que se impõem ao valor

simbólico das mercadorias culturais quando comercializadas turisticamente.

Assim, qualquer discussão em torno de temas relacionados às atividades turísticas,

especialmente àquelas de cunho cultural, exige um tratamento aprimorado a respeito das

noções de estetização e espetacularização, bem como de dessimbolização e, em maior grau,

em torno da poderosa influência do poder público e da indústria cultural. Nesse estudo sobre o

uso de padrões estéticos, de espetáculos e de símbolos nas produções culturais, portanto, não

se pode fugir da discussão acerca das ingerências empreitadas tanto pelas empresas

particulares e agências oficiais do turismo quanto pelo mercado e pelas manufaturas de bens

simbólicos.

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Os estudos fundadores da Escola de Frankfurt, ao cunharem e discutirem a noção de

indústria cultural, apresentam a cultura contemporânea como elemento mercantilizado e

submetido a um mundo administrado. No entanto, os desenvolvimentos acerca das discussões

sobre industrialização e mercantilização da cultura fazem com que o conceito de indústria

cultural adquira novas e controvertidas dimensões. Ao deslocarem o foco de atenção da mera

comercialização para a produção, certas perspectivas em torno da manufatura da cultura

diferenciam as mercadorias culturais que resultam de um processo essencialmente

industrialista daquelas que continuam sendo produzidas de modo não propriamente industrial.

A idéia de que a cultura industrializada refere-se não a qualquer bem cultural que

circula no mercado, mas àqueles que são produzidos numa lógica mercadológica massiva,

pode ser considerada um ponto crucial nas discussões em torno da produção industrial e das

diligências mercantis da cultura. Uma segunda questão que merece destaque vem da

economia política da cultura, que realiza a diferenciação interna da indústria cultural, ou seja,

a indicação da existência de várias e distintas indústrias culturais que se agrupam em sistemas

e subsistemas com diferentes lógicas de produção.

Nesse sentido, cabe lembrar certas distinções pioneiras estabelecidas entre as agências

da indústria cultural. Acredita-se que a possibilidade de uma tipologia dessas manufaturas,

além de ampliar a discussão, viabiliza um melhor domínio sobre a complexidade do assunto,

incorporando, inclusive, as interfaces entre cultura, comunicação e constantes inovações

tecnológicas. Desse modo, pode-se identificar as indústrias editoriais, ligadas à produção

literária, discográfica, cinematográfica; os meios de comunicação, relacionados à imprensa,

ao rádio, à tv, à Internet; as indústrias que não possuem um canal autônomo de distribuição e

difusão referentes à publicidade; as áreas tecno-culturais da informática e da eletrônica; e os

segmentos culturais.

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Ao compreender a fabricação industrial da cultura como a produção massiva de bens

simbólicos, dividida em diversos setores, pode-se alcançar uma definição mais precisa do

conceito de indústria cultural no universo das pesquisas em torno do mercado turístico. Em

verdade, as indústrias culturais formam um aglomerado de seções, seqüências e diligências

auxiliares, produtoras e classificadoras de mercadorias com conteúdos simbólicos que podem

e são eficientemente promovidos e comercializados como atraentes produtos do turismo

cultural, pensado aqui como uma atividade voltada para a visitação ou acesso a diferentes

modos culturais.

Dessa forma, deve-se ressaltar que a indústria da cultura, organizada por um capital,

tem procurado reproduzir e ampliar seu valor através da ampliação do conjunto de elementos

que podem ser considerados modos culturais. Ainda com o objetivo de alargar o próprio

valor, pode-se afirmar que as indústrias culturais estruturam processos manufatureiros de

produção capitalista ajustados às peculiaridades da produção de bens simbólicos, e com o

objetivo principal de instituir princípios normativos para a reprodução, serialização e

aceleração do período que se inicia na invenção, passam pela aquisição e finda no consumo,

no usufruto de uma mercadoria cultural.

No entanto, mesmo quando massificados, os produtos culturais mantêm certa

particularidade que, balizada pela valoração econômica, exige a execução de um trabalho

criativo e a função de reprodução social e ideológica. Na atualidade, esse papel – o de

reproduzir socialmente o conjunto de convicções e convenções culturais, políticas e

econômicas – pode ser facilmente constatado na produção inventiva e capitalista de

expressões da cultura. Desse modo, pode-se dizer que uma manifestação cultural, ao ser

produzida e/ou re-produzida para atender, por exemplo, a demanda do mercado turístico, além

de exercer grande poder econômico, apresenta criatividade e cumpre a tarefa de representação

sócio-ideológica.

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Por outro lado, a ampliação da noção do que pode ser entendido como cultura –

ratificada pelo processo de mercantilização e de industrialização culturais – tem legitimado o

pleno desenvolvimento de novas e inovadoras oportunidades econômicas, sobretudo no

mercado turístico. Todavia, não foi a cultura, como possibilidade de enriquecimento da

experiência simbólica, que sofreu uma ampliação. Esse alargamento conceitual ocorreu,

principalmente, a partir de formas mais abertas para a capitalização e validação culturais, nos

mais diferentes ângulos e circuitos do consumo – e nesse contexto situa-se, num lugar de

destaque, a atividade turístico-cultural.

Em síntese, pode-se dizer que a empresa turística impulsiona o mercado cultural e tem

sido impulsionada ou mesmo impelida por um processo mais amplo de mercantilização da

cultura, que, por sua vez, estimula sua industrialização e tem sido incentivado pela indústria

da cultura. Evocando essa reflexão, pode-se dizer que o turismo cultural se expandiu não

propriamente ou fundamentalmente por conta de algum desenvolvimento real das

oportunidades e/ou dos incentivos à diversificação da produção cultural, mas sim em razão do

estímulo à diversificação dos modos pelos quais a economia justificante de uma cultura

estetizada e espetacularizada se racionalizou estratégica e mercadologicamente.

Desse modo, diante dos emblemas criados e/ou reforçados pela indústria cultural na

produção, promoção e distribuição do patrimônio simbólico no mercado turístico, pode-se

observar o emprego de padrões simbólicos, estetizantes e espetacularizantes da cultura, como

recursos elementares. Esses dois processos socioeconômicos, políticos e culturais, por sua

vez, podem promover o afastamento entre os campos da cultura, do pensamento, das emoções

e das ações sócio-culturais, o que caracterizaria, então, um processo de dessimbolização a

partir da implementação da estética e do espetáculo na promoção, produção e comercialização

dos produtos-mercadoria culturais: bens simbólicos.

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Nesse sentido, cabe afirmar o poder simbólico do bem cultural representa um ponto

merecedor de atenção especial nessa discussão. Deve-se ressaltar, também, que o valor

simbólico de toda mercadoria cultural não pode ser dissociado de seu valor econômico.

Afinal, o valor do símbolo determina e precede, obrigatoriamente, o valor da economia. Não

se pode fugir, ainda, do debate acerca do papel de legitimação e diferenciação dos bens

culturais na sociedade capitalista, bem como da função de re-produção e manutenção do

poder socioeconômico. Estas questões passam fundamentalmente pela reflexão em torno das

noções de industrialização e mercantilização culturais e suas repercussões mais diretas na

sociedade pós-moderna do consumo, da estética, do espetáculo, da representação e do

simulacro, o que merece um trabalho pontual de reflexão.

3.1 Industrialização e mercantilização da cultura

A expressão Kulturindustrie, estabelecida a partir da obra de Adorno e Horkheimer

(1985), demarca terreno com a expressão cultura de massa, uma vez que esta última dá

suporte tanto para a idéia de uma cultura surgida no meio da população detentora de um

processo produtivo, quanto para a noção de uma cultura de acesso democratizado. Ao analisar

a crise da civilização atual e do progresso no mundo contemporâneo, Adorno e Horkheimer

entendem que esse momento crítico, ao mesmo tempo em que libertou o homem das amarras

da tradição, sujeitou a sociedade a novas formas de dependência. Para os autores, a razão,

adjetivada de instrumental, representa o elemento central desse processo de libertação e

aprisionamento da cultura.

Por sua vez, o conceito de cultura, particularmente pertinente a esse momento de

discussão, na acepção do termo alemão Kultur, significando as realizações mais altas do ser

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coletivo ou individual33, remete à mais elevada e pura produção da substância humana, da

essência do homem, sem ligação necessária com funcionalidades mercantis. Nesse sentido, a

cultura seria contraposta à administração. No entanto, reconhece-se que a denominada razão

instrumental também ocupou a esfera cultural que não se configura como um interdito às

convergências do mundo administrado, mesmo admitindo as dificuldades iniciais de

adaptação da produção cultural à esfera administrativa.

La exigencia de administración de la cultura es esencialmente heterónoma: tiene que medir lo cultural, sea esto lo que fuere, con arreglo a normas que no le son inherentes, que no tienen nada que ver con la cualidad del objeto, sino exclusivamente con ciertos patrones traídos de fuera; y a la vez, de acuerdo con sus prescripciones y su propia constitución, el administrador ha de rechazar em su mayor parte, con motivo de la cualidad inmanente, la verdad de la cosa misma para hacer caso de su razón objetiva em general. (ADORNO; HORKHEIMER, 1986b, p. 58).

Aos poucos, nessa colisão entre a cultura e a razão instrumental, determinados

elementos constitutivos do patrimônio cultural são negados. Em primeiro lugar, vitima-se a

autonomia, pois o sujeito criador passa a ter uma atuação preordenada, o que origina um

sentimento de impotência frente às exigências do meramente existente, ou seja, uma vida

administrada. Num segundo momento, impossibilita-se aquilo que se pode chamar, não sem

certa simplificação, de espontaneidade, pois, diante do planejamento total de cada

deslocamento, fica inviabilizado o jogo das forças que deveriam se encontrar em uma espécie

de totalidade livre. Por fim, com o fim do espírito crítico, que se tornaria inviável em um

contexto onde impera a máquina administrativa, a crítica desaparece.

Nesse contexto, o processo de industrialização da cultura pode ser pensado como a

manifestação de uma barbárie pós-moderna: ao mundo da cultura impõe-se uma ocupação do

mundo administrado. Essa invasão ocorre mediante um movimento que resulta na

33 Conforme o entendimento de Elias (1994).

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mercantilização da cultura existente, bem como na criação de uma espécie de nova cultura,

que surge totalmente submersa à lógica mercantilista.

Historicamente, o desenvolvimento da indústria cultural coincide com a formação de grupos econômicos interessados na exploração das atividades culturais e o formidável crescimento do mercado de bens de consumo ocorrido nas primeiras décadas do século. (RÜDIGER, 1999, p. 21).

Em Adorno e Horkheimer (1985), a noção de indústria cultural faz referência à

transformação dos bens culturais em mercadoria, em bens de consumo, e não se refere

necessariamente a uma produção industrializada desses patrimônios: trata-se do azeite com o

qual as veneráveis razões da lucratividade envolveram a produção cultural. A cultura torna-se

industrial quando assimila as formas planejadas, racionalizadas, de organização. Por meio da

utilização generalizada da planificação na produção, as indústrias culturais conformam-se

enquanto totalidade.

Nesse sentido, o termo indústria, quando referido à esfera cultural, não deveria ser

tomado literalmente. Diz respeito tão somente à estandardização da cultura e à racionalização

das técnicas de concepção, promoção e distribuição, e não aos processos de produção. Em

outras palavras, não se diz indústria cultural querendo significar que os meios produtivos da

cultura se dão de modo industrial, mas indicando que a sua constituição, divulgação e

classificação são conduzidas de forma simplesmente mercantil.

Praticamente todos os setores da indústria cultural obedecem a um plano; produtos são

adaptados ao consumo que em grande medida determina a composição, a difusão e a

qualificação da cultura. Como conseqüência do desempenho planejado e da transformação do

receptor em consumidor, as produções industriais da cultura não apenas agregam o caráter de

mercadoria, mas transformam-se integralmente em mercadoria. Parafraseando Rüdiger

(1999), pode-se dizer que os produtos culturais deixam de ser sinônimo de criações da arte, do

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folclore, da literatura, enfim da expressão sócio-cultural, transformando-se em mercadorias e

passando a englobar todo um conjunto de atividades econômicas.

Desse modo, pode-se afirmar que os produtos culturais têm sido incorporados pelos

mesmos conceitos que qualquer bem de consumo possui no mercado. Por conta disso, a

indústria cultural pode se envaidecer de ter arquitetado e edificado, com energia e em

princípios sólidos, o remanejamento – muitas vezes desejado – da cultura para a esfera do

consumo. Além disso, ainda de acordo com Adorno e Horkheimer (1985), a industrialização

da cultura pode ostentar a façanha tanto de haver despido os entretenimentos culturais das

ingenuidades inoportunas quanto de ter aprimorado a configuração das mercadorias culturais

no âmbito das perspectivas comerciais.

Pode-se considerar como um importante aspecto da indústria cultural o valor

simbólico que a posse do bem cultural agrega ao consumidor. Para Adorno (1988), o bem

cultural não vale mais por si, pelo uso conservado de forma ilusória na sociedade capitalista,

mas pelo que ele significa socialmente, pelo valor de troca que o valor de consumo assume

ficcionalmente. Não interessa o conhecimento ou o prazer estético proporcionado pelo bem

cultural, mas a altivez social que sua posse pode viabilizar: o uso da cultura se subjuga aos

valores do prestígio, do poder e das tendências em voga.

O entendimento acerca de indústria cultural foi trabalhado por Adorno e Horkheimer

(1985) no sentido do processo capitalista e pós-moderno de mercantilização dos bens

culturais. Dialogando com essa linha de pensamento peculiar à Escola de Frankfurt, alguns

teóricos expressam discordância radical. Morin (1981), por exemplo, reconhece nos produtos

do mass culture34 uma espécie de terceira cultura: uma cultura não apenas tão legítima

quanto às expressões culturais clássicas e nacionais, mas que representa a verdadeira, nova e

atopetada corrente do século XXI.

34 No entendimento de Morin (1981), produção cultural realizada para e, às vezes, pelas massas.

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A mass culture pode ser entendida como o resultado de uma segunda industrialização,

a industrialização do espírito, e de uma segunda colonização, a colonização da alma, tendo

como base o progresso da técnica, não apenas dirigida à organização exterior, mas também

voltada à subjetividade humana, transformando seus produtos em mercadorias culturais.

Segundo Morin (1981), o que determina a terceira cultura não seria a mera mercadoria, mas a

introdução da técnica na sua produção, ou seja, o ingresso das normas maciças da indústria na

fabricação de bens simbólicos. Observa, ainda, que a mercantilização da cultura representa

um aspecto secundário, o que contraria a perspectiva tradicional da Escola de Frankfurt.

A indústria da cultura apresenta um contexto no qual se observa uma correspondência

entre centralização tecnológica e centralização burocrática35. Na mass culture, essa correlação

tem forte tendência à despersonalização da concepção, à preponderância do aparelhamento

produtivo sobre a criação e à desagregação da força cultural. No entanto, essa conjuntura não

sugere a dissolução ou a extinção absolutas da capacidade criativa, pois a inclinação técnico-

burocrática própria da indústria cultural opõe-se radicalmente à necessidade do consumo

cultural de novos produtos individualizados.

Dessa reflexão, pode-se inferir que a cultura industrializada apresenta uma visível

contradição a partir de sua estrutura funcional: se por um lado induz a uma padronização,

quase como exigência elementar; por outro, exige que os produtos culturais ofereçam

originalidade para garantir eficiência. Em outros termos, pode-se dizer que a indústria cultural

funciona por meio de determinados conjugados antitéticos: burocracia e invenção, modelo e

personalidade.

Mais do que produtos personalizados, a indústria cultural necessita, em certos

momentos, produzir mercadorias culturais criativas. Desse fato, pode-se abstrair um elemento

substancial da lógica pertinente à terceira cultura. Conforme Morin (1981, p. 26), “a criação

35 Essa compreensão converge com a idéia de mundo administrado de Adorno e Horkheimer (1986b).

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cultural não pode ser totalmente integrada num sistema de produção industrial”. Dessa

barreira decorrem duas implicações centrais: por um lado, deriva uma espécie de indisposição

à não-concentração e à competitividade, por outro, procede a propensão a uma relativa

autonomia da criatividade no âmago da produção.

Com o intuito de criar um clima de consumo positivo, de instigar as massas a pagar

para desfrutar dos produtos advindos da mass culture, os expedientes publicitários são

considerados recursos tão imprescindíveis que se confundem com a própria mercadoria.

Assim, não se pode deixar de assinalar as marcantes afinidades entre a indústria cultural e a

publicidade. Nessa direção, Morin (1981) assinala que a denominada terceira cultura pode,

em certo sentido, ser entendido como um feitio publicitário do desenvolvimento consumidor

do mundo ocidental. Numa outra acepção, o universo da publicidade representa um

prolongamento prático da mass culture.

Para Adorno e Horkheimer (1995), não se pode considerar cultura o que se produz por

um procedimento de produção industrial. Morin (1981), por sua vez, considera esse ponto de

vista um dos mais tenazes mal-entendidos presentes no pensamento desses dois teóricos.

Procurando desfazer esse equívoco, enfatiza, entre outras questões de grande importância, os

procedimentos de produção dos bens culturais e as funções da técnica permanentemente

revigoradas, e cada vez mais requeridas para a oportunizar formas mais eficientes de

industrialização cultural.

Ao empregarem o conceito de indústria cultural, os teóricos da Escola de Frankfurt,

especialmente Adorno e Horkheimer (1985), abordaram o fenômeno da industrialização e da

mercantilização da cultura enquanto totalidade. Nessa perspectiva, pode-se, por exemplo,

tratar a transformação de uma festa popular, a princípio relacionada aos valores de sua

comunidade, em um produto estetizado e espetacular que objetiva também – quando não

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principalmente – um retorno financeiro como um acontecimento generalizado da fabricação e

comercialização culturais.

Por outro turno, muitos teóricos dirigem suas ponderações não para a totalidade da

produção cultural, mas para os processos de feitura inventiva do patrimônio simbólico. Morin

(1981) acredita que a produção do bem cultural, quando já não se encontra envolvida por uma

lógica industrial, deixa de ser concebida manualmente para receber os estatutos da indústria,

sobretudo por conta de uma série de necessidades como a serialização, a projeção

mercadológica, a divulgação comercial e a resposta comercial.

No entanto, com o objetivo de alcançar uma definição mais aprimorada do conceito de

indústria cultural, devidamente ajustado aos desenvolvimentos pós-modernos de uma

produção de bens simbólicos cada vez mais situada na esfera econômica, deve-se recorrer às

pesquisas e às análises congregadas em torno da economia política da comunicação e da

cultura. Esses estudos incorporam elementos de outras esferas das ciências humanas e sociais

aplicadas.

Ao anexar aspectos relevantes de diferentes áreas do conhecimento humano e social, a

economia política busca entender o lugar ocupado pela comunicação e pela cultura no

universo da produção econômica e no processo de acúmulo de capital. Esse entendimento,

portanto, não se limita a situar na superestrutura36 as esferas comunicacional e cultural como

simples ambientes ou meros poderes produtivos do circuito simbólico.

Entre os teóricos da economia política da comunicação e da culturam destacam-se os

da Escola Francesa, com a qual dialogam tanto teóricos europeus quanto latino-americanos.

De acordo com Bolaño (2000), o trabalho do Groupe de Recherches sur les Enjeus de la

Communication (GRESEC)37, da Universidade de Stendhal de Grenoble, muda a direção

analítica da discussão, antes voltada apenas para os aspectos mercadológicos. A partir das

36 Empregando a conhecida metáfora cunhada pelos marxistas. 37 Grupo em torno do qual se inicia a tradição francesa no estudo econômico-político acerca da comunicação e da cultura.

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intervenções desse grupo, o foco de pesquisa passa a apontar para os processos de produção

de bens culturais. Nessa conjuntura, deve-se compreender o processo de produção desses

patrimônios na formação social e abandonar a idéia de que a indústria cultural pode ser

representada apenas pelo encontro da oferta e da demanda de bens obedientes a certas

necessidades culturais.

Na atualidade, a indústria da cultura, além de permitir o alargamento da produção

cultural, participa de forma maciça e direta do processo de acumulação de capital. Na medida

em que compartilha dos procedimentos capitalistas, a indústria cultural viabiliza a satisfação

de novos desejos e precisões nos setores de maior poder aquisitivo e posteriormente alarga o

domínio desse consumo para as ditas camadas sociais de base, provendo, em tese, uma

espécie de democratização do consumo dos bens culturais.

No que se refere aos sentimentos pertinentes ao uso do produto cultural, Bolaño

(2000) considera que, mesmo sendo reproduzido massivamente, este ainda consegue sustentar

certa unicidade e trazer as marcas de quem ou das comunidades que o produz. Portanto,

persiste no consumidor a ilusão de que, ao consumir um bem simbólico produzido segundo as

diretrizes industriais, está desfrutando de um produto único, o que não corresponderia a uma

verdade objetiva. A partir dessa linha de raciocínio, contrariando o que defende Benjamin

(1987), pode-se atestar que resta uma determinada aura de unicidade na obra cultural mesmo

num tempo em que os bens simbólicos se submetem à reprodutibilidade técnica.

Considera-se a existência de valores incertos de consumo, a incerteza que acompanha

o lançamento de produtos culturais acerca de seu sucesso comercial, a primeira conseqüência

dessa peculiaridade da produção e do produto cultural. Através da monopolização dos meios

de distribuição, do emprego de novas tecnologias promocionais de vendas, produções

dirigidas a segmentos de mercado, tenta-se controlar de modo parcial o consumo da cultura.

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Contudo, mesmo através desses e de outros recursos estratégicos, não se pode exercer um

controle total da demanda.

A segunda conseqüência são os limites impostos à reprodutibilidade do produto. Essa

multiplicação pode apresentar uma origem financeira relacionada ao poder de compra dos

consumidores; uma ascendência da cultura vinculada ao controle dos códigos exigidos ao

consumo do bem cultural; e uma procedência político-econômica conectada à capacidade de

um centro no sentido de realizar a padronização de produções e, por conseguinte, de produtos

culturais consumidos no mercado.

Por fim, tem-se na diversificação das estruturas econômicas a terceira conseqüência.

Na produção de bens simbólicos observa-se uma divisão entre os trabalhos de criação e de

reprodução material. Ocorre, ainda, a coexistência de relações de produção de natureza

distinta. Isso implica diferentes mercados em que atuam empresas monopolistas, pequenas

empresas e os produtos artesanais. Além disso, com freqüência considerável, o trabalho

artístico-cultural admite a maneira não-capitalizada com a qual o trabalho autônomo se

realiza.

Observa-se que na produção de bens simbólicos, como no caso de muitas celebrações

religiosas e dos festejos mundanos em torno delas, produzidos para atender também ou,

sobretudo, as necessidades do mercado turístico, essas três conseqüências podem ser

evidenciadas. Inicialmente, percebe-se a impossibilidade de se dominar a demanda, pois há

grande dificuldade de se prever o êxito mercadológico dessas celebrações, em cujo âmbito

poderíamos situar as festas populares, como aquela que se constitui como objeto empírico

desta pesquisa.

Em seguida, pode-se notar a imposição de severas demarcações padronizadoras da

reprodução desses produtos a partir de um modelo com sucesso comprovado. Finalmente, não

se pode negar a diferenciação das composições econômicas presentes nessas festividades,

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nem das atividades criativas representativas dos artefatos pertinentes a elas. Além disso, deve-

se ressaltar a convivência de fabricações culturais distintas, bem como a admissão pelo

trabalho artístico industrial de algumas formas de produção não-capitalizadas.

Nesse sentido, a diferenciação estrutural da economia não pode ser vista como o

“resultado da sobrevivência de formas arcaicas, que tenderiam a desaparecer com o

desenvolvimento capitalista e os processos associados de concentração e centralização do

capital” (BOLAÑO, 2000, p. 170). Essa diversificação corresponde, ao contrário, a uma

relevante função de inovação da conjuntura da produção cultural, pois são as empresas de

pequeno porte as principais responsáveis pela criação de novos bens simbólicos. Essas novas

mercadorias culturais de vanguarda, por apresentarem alto poder de atração mercadológica,

são absorvidas pelo capital monopolista após serem testadas no mercado.

Compreendida até aqui como um conjunto homogêneo, a indústria cultural sofre uma

primeira divisão a partir dos estudos do GRESEC, que propõem dois recordes: a indústria da

edição e a culture de flot, ou cultura de onda38. Nessa diferenciação, as indústrias da edição

reúnem as manufaturas literárias, fonográficas e audiovisuais; por sua vez, as culturas de onda

seriam responsáveis pelas empresas radiofônicas, televisivas e de imprensa. Essas agências

produtoras de cultura são caracterizadas pela assiduidade dos programas, pelo intenso poder

de divulgação, pela obsolescência imediata do produto e pela presença intervencionista do

Estado. Além disso, as cultures de flot possuem um programa cultural referente ao uso

distinto da publicidade em cada um de seus setores, e não um produto específico.

A análise das lógicas sociais, das formas como se organizam os “diferentes modelos

econômicos em torno dos quais se articula a produção cultural” (BOLAÑO, 2000, p 173)

constitui outra preocupação central do GRESEC. Ampliando a tipologia elaborada

anteriormente, o grupo delineia cinco lógicas sociais: a edição de mercadorias culturais; a

38 Como se apresenta na tradução de Bolaño (2000).

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cultura de onda; a informação escrita; a produção de programas informáticos; e a

retransmissão do espetáculo ao vivo.

O espanhol Zallo (1988), ao dialogar com a tradição francesa, revela determinados

posicionamentos e acrescenta novos e controvertidos pontos de vista. Ratifica posições de

seus antecessores, ao afirmar que as esferas da comunicação e da cultura devem ser

percebidas como áreas produtivas e organizações internas características para a produção de

capital, com um espaço crescente tanto nas estruturas econômicas nacionais quanto

internacionais. Para ele, seria um equívoco entender os campos comunicacionais e culturais

apenas como superestruturas ideológicas, ou enquanto mera função exercida pelo Estado e/ou

pelo mecenato.

As indústrias culturais, constituidoras de um “setor industrial diferenciado”, cujas especificidades incidem sobre as formas de produção e de mercado, deixaram de ser um setor arcaico e protegido para se converterem em um setor dinâmico, concentrado, transnacionalizado, de alta rentabilidade e com volumes crescentes de capital comprometido. (ZALLO, 1993, p. 66 – aspas do autor).

No processo de transição da cultura e da comunicação como um espaço restrito ao

componente ideológico, para o lugar das produções culturais, certos ingredientes são

considerados substanciais. Dentre esses elementos, alguns merecem destaque especial: o

surgimento de uma massa de criadores disponível ao capital cultural; a incorporação pelo

trabalho cultural de uma variedade de intermediários entre o bem simbólico e o consumidor; a

aplicação, na produção cultural, dos princípios do taylorismo, do neotaylorismo, do

neofordismo; a substituição do papel cultural-reprodutivo do Estado pelo capital privado; a

tendência de centralização de capital nos setores da comunicação e da cultura.

Considerando-se essas novas conformações da produção e da comercialização dos

bens simbólico-culturais, Zallo (1992) atualiza o conceito de indústria cultural. Nessa

apreciação, com a separação entre as esferas do capital e do trabalho, a expressão indústria

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faz referência a uma certa forma de produção diferenciada pela natureza específica do

trabalho criativo e seus produtos causadores e transmissivos de valores simbólicos. Além

disso, os bens culturais “cristalizados en mercancías culturales, es decir, en producciones

intercambiables en el mercado y que valorizan capitales y reproducen realciones sociales”

(ZALLO, 1988, p. 25), delimita seu lugar com outras composições culturais não intercedidas

por um sistema de produção industrial. Por fim, a indústria da cultura está voltada para os

mercados de consumo privados ou públicos, coletivos ou estratificados.

Aquí se entenderán por industrias culturales un conjunto de ramas, segmentos y atividades auxiliares industriales productoras y distribuidoras de mercancías con contenidos simbólicos, concebidas por un trabajo creativo, organizadas por um capital que se valoriza y destinadas finalmente a los mercados de consumo, con uma función de reproducción ideológica y social. (ZALLO, 1988, p. 25-26).

Tal definição tem reforço na idéia de que a cultura industrializada encontra-se

aparelhada por um capital que objetiva multiplicar, expandir sua estima e compor

procedimentos industrias de trabalho, mesmo quando acomodados às especialidades da

produção cultural. A industrialização aparece como a aplicação de procedimentos e formas de

trabalho industriais em várias etapas produtivas, procurando, desse modo, alcançar o

barateamento dos gastos, a normalização das regulagens de produção, a rápida propagação, a

fabricação em série, a rapidez do circuito criação-compra-usufruto.

Deve-se destacar, conforme Morin (1981) e Zallo (1988), a manutenção do trabalho

criativo nas indústrias culturais bem como a permanência de uma certa autonomia na

atividade do trabalhador industrial; no exercício da criatividade individual imprescindível à

realização da obra-mercadoria pelo operário cultural. Observa-se, por exemplo, que a

produção de uma festividade popular, mesmo submetida às diretrizes da industrialização

cultural, ainda consegue manter tanto uma determinada criatividade quanto uma relativa

independência criadora. A criatividade e a autonomia são as características responsáveis por

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imprimirem no patrimônio simbólico uma aparência de objeto único, insubstituível; elas

podem garantir uma aura de unicidade nos bens culturais, mesmo sendo reproduzidos

massivamente.

Nessa acepção, a atividade produtiva do bem cultural deve ser pensada como um

afazer inventivo de protótipos, modelos, matrizes, capaz de conceder um caráter único a cada

mercadoria simbólica. Cabe ressaltar a distinção entre o modelo e os produtos convertidos em

artigos de consumo, resultantes da multiplicação seriada. Em relação ao protótipo, pode-se

falar em aura de unicidade; no entanto, a noção de objeto ímpar, quando empregada para se

referir às mercadorias culturais propriamente definidas, perde força heurística e propriedade.

Sob a forma de multiplicação seriada de mercadoria similar a uma matriz, mas distinta

de qualquer outra série, a produção cultural a partir de protótipos consegue reproduzir, ainda

que industrialmente, certo feitio único presente no valor de uso e expresso no valor de troca.

A relação dialética entre a importância de consumo e a relevância de barganha confere um

caráter de unicidade e de objeto insubstituível às mercadorias culturais, que precisam

preservar a originalidade na criação de um bem cultural, pois essa preservação deve ser

considerada a ação apta a atribuir um sentido à obra criativa.

No entanto, não se pode deixar de reconhecer determinados elementos corrosivos do

caráter único da cultura-mercadoria. Zallo (1993) aponta o assalariamento, o sistema de

organização do trabalho e a continuidade como ingredientes capitalistas abrasivos que

corrompem a unicidade dos bens culturais e sinalizam um crescente rodízio mercadológico do

produto simbólico. Ainda que não elimine a aura de unicidade do protótipo, a multiplicação

industrial dos patrimônios culturais, ao mesmo tempo em que viabiliza a ampliação do

consumo cultural, acaba por comprometer o seu valor. Uma celebração popular multiplicada

para o uso turístico, por exemplo, tenderia a adulterar sua individualização representativa.

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Bolaño (2000), por sua vez, esclarece que tanto o assalariamento quanto as alterações

no sistema de organização das atividades produtivas são aspectos que interferem, diretamente,

na criatividade peculiar ao trabalho artístico-cultural. O primeiro, ao demandar a divisão

hierárquica do trabalho e constituir um sistema de autoridade, bem como o segundo, ao

pretender a redução do nível de improbabilidade própria das obras concebidas distante do

domínio industrial, promovem a expropriação do saber criativo; causam uma perda de

autonomia; tornam o produtor individual dependente dos crivos do mercado.

Os procedimentos para reduzir os riscos da aleatoriedade do produto cultural

representam outro aspecto merecedor de destaque nessa discussão. Entendido por Zallo

(1993) e pelo GRESEC como um conflito, essas estratégias de redução de riscos das

contingências do bem simbólico são percebidas como uma batalha que ocorre no interior da

organização em distintas configurações capitalistas. Bons exemplos desse combate são a

sistematização interna das indústrias, a aplicação de sinergias, a repartição de um mesmo

produto em suportes díspares e, no caso dos capitais de pequeno porte, observa-se a exigência

de especialização.

Nessa guerra organizacional, localizam-se o grande e o pequeno capital. Enquanto os

capitais de maior dimensão procuram investir bem mais em áreas ligadas aos direitos de

exclusividade, de reprodução e de distribuição, os de menor volume realizam investimentos

nos setores produtivos ou de criação. Essas opções de interesse ocorrem, no caso dos grandes

montantes, por conta do elevado risco oferecido pela mercadoria cultural, que apresenta um

alto grau de aleatoriedade; no caso dos pequenos montantes, por uma questão de

condicionamento econômico.

Segundo Zallo (1988), a indústria cultural, mesmo que apreensiva com a aleatoriedade

de suas mercadorias e economicamente condicionada, deve propor sempre novos produtos no

mercado consumidor. Afinal, um dos elementos que compõem a natureza da cultura é a

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permanente renovação, que mantém íntima relação com a inovação. Entre o renovado e o

inovado, observa-se um relacionamento intricado: a criatividade no desenvolvimento de um

novo produto cultural – o que não chega a comprometer as tecnologias nem as linhas de

produção – correlaciona-se às novas produções que alteram de modo expressivo o modelo

técnico-estético dominante.

No entanto, à renovação e à inovação deve-se acrescentar a invenção. Esse terceiro

ingrediente individualiza-se pelo lançamento de uma nova mercadoria com a capacidade de

modificar um padrão estetizante, um modelo estético predominante, mas que a indústria da

cultura não absorve de imediato, o que pode ou não ocorrer posteriormente. O fato de

pequenas empresas culturais conseguirem não apresentar o mesmo prejuízo observado nas

grandes indústrias tem explicação justamente na coexistência desses três vetores

fundamentais: a revitalização, a novidade e a criatividade.

Ora, se a produção independente é capaz de realizar uma invenção passível de transformar-se em inovação, essa transformação só será possível se a referida invenção conseguir ultrapassar os limites do gueto cultural em que foi originariamente produzida, adquirindo peso específico no interior de uma indústria caracteristicamente oligopolizada e de consumo massificado. Para que esses limites sejam rompidos, é necessário que a empresa inovadora tenha acesso aos circuitos de distribuição, ou de difusão, monopolizados por um grupo extremamente reduzido de grandes capitais. Assim sendo, algum tipo de aliança com esses grandes capitais é necessária para que o produtor independente possa capitalizar a sua invenção. (BOLAÑO, 2000, p. 198).

Por outro turno, deve-se enfatizar que a estimativa simbólica do bem cultural

representa um evento que não pode ser dissociado da cotação econômica. Para Herscovici,

(1995, p. 32) “a função do produto cultural é produzir sentido: o valor simbólico é

determinante e precede, obrigatoriamente, o valor econômico”. Nessa acepção, por conta de

uma questão de funcionalidade, a noção de cultura ou de produto cultural deve ser entendida

de forma moderada. Desse modo, pode-se pensar o campo cultural como todos os bens e

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serviços artístico-culturais, considerando-se a submissão destes a uma noção histórica de arte

que sempre se encontra subjugada a formas de eficácia cultural.

Sobre essa perspectiva, Bolaño (2000) aponta algumas limitações no que concerne à

concepção conceitual de trabalho artístico. A partir do ponto de vista de Herscovici (1990), as

tarefas artísticas não anexam todos os afazeres inventivos. Para ele, o trabalho jornalístico

acerca de uma celebração popular, por exemplo, não deve ser anexado às empreitadas

criativas pertinentes a atividade artística, pois, apesar de o jornalista poder ser considerado um

artista, sua ocupação produz um valor simbólico susceptível de conversão em valor

econômico. Além disso, despreza os trabalhos não-criativos, como dos apresentadores de

televisão e locutores de rádio que promovem e investem em produtos culturais. No entanto,

essa modalidade de mão-de-obra também gera capital simbólico e, portanto, possui um papel

relevante na indústria da cultura.

Sem dúvida, o trabalho dos jornalistas bem como aquele dos apresentadores de

emissoras de TV e rádio não deve ser negligenciado. Observa-se, por exemplo, que essas

atividades profissionais, sendo elas criativas ou não, atuam de forma decisiva e em grande

escala na geração e até mesmo na ampliação dos valores simbólicos e dos capitais

econômicos ligados à manifestações festivas profanas e/ou religiosas. Essas cerimônias, ao

serem produzidas, divulgadas e comercializadas no mercado turístico, podem receber

contornos de mercadoria e conformarem-se em produtos culturais industrializados e

mercantilizados sobre os quais, portanto, incidem os reflexos diretos e indiretos da ação de

todos os afazeres inventivos ou não-inventivos da mídia.

Um ponto comum entre os teóricos tratados até aqui diz respeito à presença da

produção cultural no acúmulo de capital das sociedades pós-modernas. Todos reconhecem a

participação da cultura nos procedimentos de conglomeração capitalista. Para eles, os setores

produtivos e difusores dos sistemas culturais apresentam determinadas estruturas tecno-

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econômicas e sócio-econômicas fundamentais que na atualidade também passam a constituir

um ingrediente infra-estrutural pertinente à esfera cultural.

Nesse sentido, cabe esclarecer que os denominados arcabouços tecno-econômicos são

entendidos tanto como os múltiplos relacionamentos entre as várias ramificações e sistemas

capitalistas da cultura quanto como as diversas relações mantidas entre esses ramos e os

sistemas econômicos globais. Além disso, deve-se ter claro que as composições

socioeconômicas tratam, por sua vez, das implicações categorizadas entre os administradores

culturais nas mais distintas maneiras pelas quais se conformam as vias de acesso aos canais

produtivos e difusores da cultura.

Com o objetivo de compreender o âmbito econômico da realidade cultural, deve-se

propor a idéia de sistema tecno-estético pensado enquanto uma organização coesa e coerente

esquemas tecno-estéticas capazes de determinar de forma parcial um padrão estético por meio

de uma forma peculiar de funcionamento capitalista. Assim, pode-se dizer que uma

disposição tecno-estética procede da afinidade entre determinadas ordens técnicas e estéticas.

Esse aparelho tecnológico-estético opera em três planos que configuram uma espécie de

dialética estrutural.

O nível intraestrutural, onde se confrontam a lógica intrínseca do projeto criador e as condições de sua realização (este nível também pode ser qualificado como intramidiático); o nível intermidiático no qual, no interior do sistema cultural, se confrontam os sistemas tecno-estéticos característicos de cada mídia e, finalmente, o nível interestrutural, onde se definem as relações entre o sistema cultural e o conjunto do sistema econômico. (HERSCOVICI, 1995, p. 125 – parênteses do autor).

Tendo como fundamento os produtos culturais, no plano denominado intraestrutural

ou intramidiático, observa-se uma subversão entre uma lógica interna ao bem cultural e as

variáveis técnico-econômicas presentes em sua produção. Essas variantes são consideradas

tanto técnicas quanto econômicas, pois, ao mesmo tempo em que toda invenção exige um

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apoio material para receber um contorno definido, os meios produtivos e difusores demandam

um acondicionamento eminentemente capitalista.

A produção estético-cultural sempre manteve relação direta com as disposições

tecnológicas e econômicas de um dado momento histórico. As novas tecnologias e os novos

incrementos da economia ligados, por exemplo, às manifestações festivas mundano-

religiosas, como as festas de largo comuns em praticamente todo o território baiano,

sobretudo nas localidades turísticas, não são empregados de modo aleatório, pois,

considerando-se as reflexões de Herscovici (1995), essas inovações técnicas, parcimoniosas –

e, portanto, também sociais – estão inscritas em procedimentos que predefinem e pré-

conformam produções, usos e acessos culturais.

Compreendendo uma dialética midiática, o nível intermidiático trata do

redimensionamento e da recolocação dos sistemas tecno-estéticos de antigas mídias diante do

aparecimento de novos meios de comunicação social. Desse modo, com o surgimento de uma

nova mídia, o poder de um certo veículo de informação sobre uma festa popular pode ser

revogado, o que força uma série de ajustamentos no que se refere ao público-alvo, aos

financiamentos e, sobretudo, à criação estética. Um bom exemplo foi o aparecimento e

popularização da televisão e da Internet, que deslocaram o papel até então preponderante do

rádio, da televisão e dos impressos na promoção de produtos culturais. Nesse caso, tanto o

rádio quanto a TV e o material gráfico necessitaram modificar modelos tecno-estéticos para

sobreviverem às tendências pós-modernas de consumo cultural.

Por fim, o plano interestrutural compreende a função da cultura em tempos de

capitalismo quando se ressalta uma economia da diferenciação. Diante dos fenômenos

econômicos da transnacionalização e oligopolização, faz-se necessário diferenciar entre o

local, o nacional e o internacional com o objetivo de que possam se delinear como ambientes

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favoráveis à capitalização. Essa diferenciação espacial se estabelece mediante a cultura que,

enquanto produtora de sentido, pode viabilizar a construção de imagens distintivas.

A oligopolização, por outro lado, insinua “uma modificação das modalidades de

concorrência: esta se opera, cada vez mais, fora do mecanismo dos preços, a partir de uma

estratégia de diferenciação dos produtos” (HERSCOVICI, 1995, p. 130-131). Segundo essa

perspectiva, mercadorias culturais como as celebrações que ocorrem em praticamente todas as

paragens turísticas do Estado da Bahia, para garantirem certa distinção entre elas e com

relação às concorrentes no mercado e contextos exteriores, precisariam estar anexadas à

caracterização individualizante que o patrimônio cultural de cada localidade possibilita ao

imprimir sentido.

Nessa direção, pode-se ratificar que, tanto na esfera dos ambientes geográficos como

no âmbito mercadológico, a fabricação de impressões midiáticas simula uma nuança

mercantil tônica da economia da distinção cultural. A legitimação de produtos culturais

acontece de modo indireto por meio da produção de uma implicação da mídia apta a garantir,

num mesmo tempo, o custeamento público e privado. Tendo em vista que na pós-

modernidade tem-se uma cultura instrumentalizada, participante ativa e direta dos processos

de acúmulo de capital bem como da concretização da mercadoria, a validação de bens

simbólicos ocorre não mais na mera comercialização, pois, no vigor absoluto do capitalismo

da individualização, a ingerência dos aparelhos econômicos sobre os sistemas culturais revela

uma magnitude inédita.

Em contrapartida, considerando-se tanto a subjetividade do valor de usufruto de um

produto cultural quanto a sua relação íntima com a extensão simbólica, pode-se observar que

“a valorização do mercado é incerta e particularmente aleatória: de determinado número de

produtos ‘fabricados’, apenas uma ínfima parte consegue rentabilizar-se, ou seja, validar-se

socialmente” (HERSCOVICI, 1995, p. 164). Com o intuito de se conquistar,

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subseqüentemente, uma configuração de capital econômico, de custo, a acidentalidade própria

do valor de uma mercadoria cultural necessita estar situada nas modalidades de

desenvolvimento do valor de consumo.

O valor de uso do bem simbólico, subjetivo, aleatório, não satisfaz, portanto, uma necessidade identificável tecnicamente, previsível e objetiva. Ele resulta do funcionamento do campo e das modalidades de sua acumulação simbólica. Por outro lado, não é possível prever se o efeito de diferenciação aparecerá ou se provocará um processo de legitimação/deslegitimação. Da mesma forma, não é possível determinar o tempo necessário para o eventual aparecimento deste tipo de processo. (HERSCOVICI, 1995, p. 167).

Entretanto, vale lembrar que determinados valores, como do design e da marca, apesar

de não se relacionarem obrigatoriamente com o desempenho do consumo da mercadoria

cultural, também são considerados elementos substanciais para a decisão do consumidor.

Tanto Herscovici (1995) quanto Bourdieu (1985) afirmam que, no reino dos bens simbólicos,

necessitaria prevalecer uma lógica da distinção que determina a lógica da diferenciação entre

os produtos materiais com fins a garantir êxito mercadológico.

Nessa perspectiva, poder-se-ia afirmar, por exemplo, que entre uma festa de largo

característica de uma localidade e outros festejos de rua representativos de outras regiões, um

design diferenciado e diferenciador, ou seja, uma planificação e uma comunicação visuais

distintas e distintivas deveriam ser consideradas fatores determinantes e, por conseguinte,

imprescindíveis. Em ambas as celebrações, não se deveria desprezar a função decisiva de uma

marca, isto é, de um sinal capaz de particularizar cada uma dessas festividades, o que poderia

viabilizar o sucesso comercial de ambas manifestações enquanto produtos turístico-culturais.

Nessa discussão, portanto, deve-se ressaltar algumas outras ponderações relevantes.

Parece evidente que, ao se limitar a atribuir uma apreciação particular e acidental aos produtos

simbólicos e um julgamento centrado no consumo objetivo e previsível aos produtos

materiais, físico-tecnológicos, negligencia-se o debate já realizado em torno do vigor

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simbólico presente no bem cultural produzido e consumido pela sociedade contemporânea.

Esse descuido pode significar, inclusive, um ponto nevrálgico e comprometedor de qualquer

abordagem acerca da valoração das mercadorias simbólicas e materiais.

Cabe destacar, ainda, que nos meios de produção das mercadorias simbólicas,

sobretudo dos que derivam da indústria cultural, observa-se uma “intermediação do capital

econômico, de acordo com seu modo específico de produção, utilizando meios materiais mais

ou menos importantes” (BOLAÑO, 2000, p. 204). Por conta disso, pode-se asseverar que a

aleatoriedade do patrimônio simbólico, do mesmo modo que da mercadoria material, não se

encontra situado meramente na fabricação, pois os componentes de sua estima

mercadológica, como a validação e a participação populares, em geral chegam ao

conhecimento público antes mesmo de seu surgimento no mercado consumidor.

Finalmente, concordando com Zallo (1988), vale enfatizar que o fenômeno da

aleatoriedade do produto cultural, seja ele material ou simbólico, encontra-se localizado na

efetivação desses produtos quando são consumidos. Assim, situando a acidentalidade na

realização do consumo, pode-se entender que, no caso de bens materiais, o ingrediente físico-

tecnológico deve ou deveria exercer maior autoridade do que o design ou a marca enquanto

que no usufruto de bens simbólicos, ao contrário, o valor simbólico representa elemento

preponderante. Nas palavras de Bolaño (2000, p. 205), “os elementos de ordem subjetiva são

muito mais determinantes no caso dos bens simbólicos do que no dos bens materiais e,

portanto, a aleatoriedade é maior”.

As formas pelas quais tem se configurado o funcionamento das indústrias culturais no

sentido de controlar a aleatoriedade das mercadorias simbólicas e materiais denunciam, dentre

outras questões, o fenômeno da padronização estética e espetacular das mercadorias culturais.

Em outros termos, a industrialização da cultura propõe um modelo para a produção cultural,

capaz de desencadear fenômenos estetizantes e espetacularizantes diretamente relacionados ao

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conjunto de conjunturas técnicas e financeiras da pós-modernidade. Desse modo, tendo em

vista a importância dessas questões para essa discussão, acredita-se que os processos de

estetização e espetacularização exigem um estudo pormenorizado.

3.2 Estetização e espetacularização da cultura

Os ingredientes empregados nos processos de industrialização e de mercantilização

turística da cultura, seja em grandes centros urbanos, seja em pequenas cidades interioranas,

passam por componentes estéticos padronizantes e pelos espetáculos representativos. Ao que

tudo indica, esses procedimentos industriais e mercantis ocorrem por intermédio da

estandardização material e, sobretudo, simbólica da produção de determinadas elocuções

culturais consideradas potencialmente consumíveis, a partir de um certo padrão, uma espécie

de modelo cultural que, por ser considerado comercialmente eficiente, apresenta-se como

dominante.

Nesse fenômeno de padronização, determinadas expressões culturais, ao serem

industrializadas e mercantilizadas para o setor turístico, por exemplo, seguem trânsitos

obedientes a uma ordem hierarquizada. Afinal, na medida em que a caracterização e o

direcionamento culturais ocorrem de uma paragem com sucesso comprovado para localidades

que pretendem otimizar a atividade turística por intermédio de ações táticas empreitadas, seja

pelas agências oficiais de turismo, seja pelo setor privado, institui-se, então, um procedimento

hierárquico.

Nos processos de industrialização e mercantilização da cultura de uma localidade

turística, algumas características e determinados artefatos internos e/ou externos são

selecionados para serem empregados como padrões, modelos representativos a serem

empregados com o intuito prioritário de objetar as expressões culturais, tornando-as também

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materiais e não apenas espirituais. Em geral, tais peculiaridades e artifícios estão relacionados

aos indivíduos, às tradições e à conduta popular cotidiana, como subsídios de ordem estética e

espetacular, capazes de viabilizar maior êxito no mercado de consumo turístico de bens

simbólicos.

No entanto, certos aspectos e objetos, materiais ou não-materiais, costumam

apresentar significados e valores distintos para os que podem ser entendidos como

subjugados, e para aqueles que podem ser pensados como subjugadores. Numa determinada

comunidade turística, por exemplo, a indumentária, os artefatos, as cores e os ritmos usados

numa certa manifestação, apesar de apresentarem características aproximadas aos

componentes característicos de uma outra expressão, noutra localidade, mantêm certa

distinção tanto nas dinâmicas de significação quanto nos procedimentos de avaliação e

valoração.

Observa-se, portanto, uma dinâmica de ingerência recíproca e de intersubordinação

hierárquica entre o consumo e os bens culturais. Nesse processo, ao consumir de acordo com

modelos dominantes, o desejo-consumidor pode determinar conformações representativas da

cultura. Desse modo, apesar de se poder ostentar determinada diferenciação entre uma

manifestação e outra, as exigências de produção industrial e de oferta mercadológica próprias

da pós-modernidade acabam por proporcionar certa modelação estética e espetacular, capaz

de impor tendências uniformizantes que atingem o cultivo de uma expressão popular, além de

alcançar e definir fabricação e comercialização completas ou parciais dessa elocução cultural.

Sem dúvida, os interesses de consumo representam ponto essencial na relação entre

fabricação, comercialização e expressões culturais. Os trâmites desse relacionamento se

abreviaram e recentemente foram fortalecidos pela atividade do setor turístico. Ao produzir e

comercializar características da cultura, a indústria e o mercado cultural, ambos a serviço do

turismo, promovem processos de estetização e espetacularização da cultura. Nesse sentido,

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caberia destacar a ênfase dada aos elementos culturais antigos e/ou contemporâneos,

considerados representativos, na definição de modelos para a produção industrial e para a

conseqüente oferta comercial de bens simbólicos. Assim, não se pode negligenciar o processo

de padronização material e não-material de versões locais da cultura a partir de certos

ingredientes turisticamente atraentes e, por isso mesmo, hegemônicos.

Ademais, tendo em vista o trânsito industrial e mercantil de determinados

componentes da cultura, deve-se analisar tanto as especialidades quanto as conduções

hierárquicas desse fluxo entre uma localidade e outras paragens turísticas. Portanto, com um

objetivo inicialmente exploratório, não procedente de um trabalho de campo particular, essa

esta discussão necessita reunir um conjunto de análises acerca dos fenômenos culturais de

estetização e espetacularização nas manifestações culturais pensadas enquanto produtos

turístico-culturais. Em certa medida, essa pesquisa também precisa direcionar esforços

analíticos para as ações estratégicas públicas e privadas do turismo, bem como para a

influência da indústria cultural.

Assim, no horizonte temático das discussões sobre a industrialização e a

mercantilização da cultura é que se insere esse esforço de examinar, criticamente, a trajetória

na qual se dão certas conformações estéticas e espetaculares de manifestações culturais, a

partir das ingerências turísticas oficiais e/ou particulares. A princípio, defende-se a idéia de

que, na contemporaneidade, o turismo, a indústria e o comércio cultural podem ser

considerados os principais responsáveis pelos processos de estetização e espetacularização de

expressões significativas.

Indústrias, mercados e consumos culturais deixaram de ser apenas referências

capitulares da denominada pós-modernidade para se tornarem agentes capazes de sugerir uma

certa subalternidade da produção cultural aos poderes da mídia capaz, inclusive, de

transformar determinadas expressões da cultura numa espécie de fantoche regularizado pela

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industrialização, pela mercantilização e pelo consumismo. Jameson (1992) acredita que a

cultura atual deve ser entendida como uma segunda natureza pertinente a um mundo onde o

usufruto de mercadorias enquanto processo caracteriza os bens culturais como produtos

exatamente iguais a qualquer um dos outros que o constituem, demarcando de forma histórica

a lógica do capitalismo tardio e do sistema pós-moderno.

Interessa ressaltar, ainda,

que os projetos de estetização e de

espetacularização da cultura

encontram ressonância e respaldo

em um público ainda mais amplo

do que os circuitos empresariais,

intelectuais e artísticos. Mediante a

expansão de determinados grupos

ocupacionais especializados na

produção e no consumo de bens

simbólicos, que atuam

simultaneamente como produtor-

disseminador e consumidor-

público de produtos culturais, um

número cada vez maior de

indivíduos se fascina com os

modos culturais identitários, as

apresentações, as feições, os estilos

de vida e buscam incessantemente

novas experiências – sobretudo

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estéticas – a que podem e/ou

devem acessar, manter contato.

Muitos são os teóricos que têm se dedicado ao estudo acerca do processo de

estetização da cultura: a apropriação, o controle e o uso dos subsídios simbólicos próprios ao

campo cultural pelas esferas da política, da administração e da economia. Kant (1995) já

chamava a atenção para o lugar de relevância que não apenas a estética, mas, sobretudo, o

juízo estético, adquire para o homem e para as organizações sociais na atualidade. Apartado

do mundo estritamente material, o juízo estético constitui-se um sentimento moral, uma

moldura ideal para a subjetividade humana. Assim, pode-se dizer que a estética e o senso

estético surgem como uma força que está na base da humanidade, capaz de reformar a cultura

e revolucionar a subjetividade.

Por outro turno, Featherstone (1995a), estudando o fenômeno estetizador da realidade

pós-moderna, defende o entendimento da estetização em três sentidos: inicialmente, como

atividade artística que se movimenta no sentido de apagar as fronteiras entre a arte e a vida

cotidiana; em segundo lugar, como o projeto de transformar a vida cotidiana numa obra de

arte; e, por fim, como um fluxo veloz de signos e imagens que saturam a vida cotidiana na

sociedade contemporânea. Esse terceiro aspecto de estetização da realidade representa

elemento pontual. Realiza-se aí o desenvolvimento da cultura de consumo, da tematização

cultural e, consecutivamente, da estilização da vida cotidiana.

Precisamos ter consciência de sua interação [o da saturação da vida cotidiana] com o segundo aspecto [a transformação da vida em uma obra de arte] que identificamos: com efeito, é necessário examinar os processos de seu desenvolvimento relacional em longo prazo, que determinaram o desenvolvimento dos mundos de sonho da cultura de consumo de massa e de uma esfera (contra)cultural separada, na qual artistas e intelectuais adotaram várias estratégias de distanciamento, além de tentar tematizar e compreender esse processo. (FEATHERSTONE, 1995a, p. 101).

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Subiratis (1989), por sua vez, defende a polêmica idéia de que o processo de

estetização da realidade contemporânea não guarda relação alguma com o ideal ingênuo da

cultura como criação artística coletiva que procura valorizar o espiritual e o intuitivo. Assim,

pode-se afirmar que criatividade cultural, atualmente invadida pelas empreitadas políticas,

administrativas, econômicas e produtivas das indústrias culturais, encontra-se submetida aos

rígidos critérios da utilidade, da objetividade e da exatidão dos interesses de cunho

mercadológico. Essa submissão tem a capacidade de desencadear, inclusive, procedimentos

de teatralização da cultura.

Desse modo, além da estetização, a cultura sob os efeitos do mercado e da produção

industrial também pode sofrer um outro processo: a espetacularização. Através da promoção

imagético-mercadológica, são produzidas formas pós-modernas de artificialidade e de

instrumentalização culturais. Ainda sobre o poder da imagem nesse procedimento

espetacularizante, caberia afirmar que, no mundo contemporâneo, o componente imagético

pode ser compreendido como uma espécie de musa sedutora capaz de desfazer a realidade,

instituir virtualidades e vender sonhos: esse entendimento define de modo contundente a

marca da época atual. Por meio das imagens tenta-se, inclusive, imobilizar o momento que,

inexorável e paradoxalmente, flui.

A imagem vivida no cotidiano, a imagem banal das lembranças, a imagem dos rituais diários, imobiliza o tempo que passa. Seja a da publicidade, a da teatralidade urbana, a da televisão onipresente, ou dos objetos a consumir, sempre insignificante ou frívola, ela não deixa de delimitar um ambiente que delimita bem a experiência estética da pós-modernidade. (MAFFESOLI, 1999, p 112)

Se, para alguns teóricos, a imagem faz com que o conjunto social em seu todo seja

mais resistente aos poderes estabelecidos, para outros, o reinado da aparência, definidor da

atualidade, apresenta-se como uma dimensão alienante do modus vivendi social. A essa

condição de produção na vida societal, Debord (1997) chamou de sociedade do espetáculo.

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Para ele, o espetáculo – sob todas as formas particulares de informação, propaganda,

publicidade ou do consumo direto de entretenimentos – constitui o modelo contemporâneo da

existência dominante nas ordens sociais contemporâneas.

Por certo, a espetacularização não apenas da cultura, mas da arte, da economia, do

mercado – enfim, da vida humana – tem no circuito da mídia sua principal vitrine. Da

perspectiva midiática acidamente crítica ao espetáculo como reconstrução de material e

técnica da religiosidade, Debord (1997) afirma que, quando a realidade se transmuta em

meras imagens, estas se transformam em seres reais e motivadores eficazes de determinados

comportamentos hipnóticos. A tendência ao endeusamento e, por conseguinte, uma

fetichização da imagem faz com que o indivíduo se concentre apenas na veloz sucessão de

frames. Assim, recortam-se e colam-se não apenas imagens, propriamente ditas, como cores,

texturas, movimentos, sensações, emoções, sons e músicas, tramando uma verdadeira tessitura

visual do real.

Os atores da política, da administração e da economia apelam, de modo cada vez mais

intenso, para táticas caracterizadas por uma forte tendência à estetização e espetacularização

culturais. Para tanto, a estética e os recursos imagéticos, o espetáculo e a teatralidade têm sido

empregados pelo mercado cultural com o objetivo de garantir um lugar de destaque na esfera

midiática, considerada por muitos como o principal veículo para conquistar visibilidade no

mundo atual. Nesse contexto, denominado por Jameson (1996) de capitalismo tardio, de

sociedade do espetáculo na fala de Debord (1997) ou de ordem do simulacro no entendimento

de Baudrillard (1991), a indústria cultural alcança um lugar ardiloso.

Em verdade, ao se submeter aos ditames das tendências mercadológicas, da

monopolização comercial e da tecno-burocracia intervencionista presente em praticamente

todos os campos da realidade contemporânea, a produção cultural também se sujeita às

exigências da pós-modernidade, dos padrões estéticos, do espetáculo e da simulação. Em

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síntese, pode-se dizer que do mundo administrado, parido das requisições políticas,

administrativas e econômicas da atualidade, nasce uma espécie de cultura administrada,

gerenciada não mais pela força das tradições, mas pelo poder do mercado e pela necessidade

de sucesso comercial.

Submetidas às exigências da mercantilização, as formas pelas quais se concebem o

agenciamento e as classificações culturais têm se configurado como manufatura. Segundo

Debord (1997), quando se promove a cultura integralmente como uma mercadoria, ela tende a

se tornar simples produto de uma sociedade do espetáculo. Nesse sentido, vale ressaltar o

quanto a mídia tem se apropriado de símbolos para fazer de determinadas manifestações

culturais um produto conformado em espetáculo e, portanto, comercializável. Sem dúvida,

nunca a tirania das imagens e o servilismo alienante ao império da mídia tiveram tanto poder

quanto na contemporaneidade.

Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação. As imagens que se desligaram de cada aspecto da vida fundem-se num curso comum, onde a unidade desta vida já não pode ser restabelecida. (DEBORD, 1997, p. 13).

Nesse sentido, pode-se afirmar, ainda, que o real considerado de modo parcial

distende-se numa unicidade genérica como uma espécie de pseudomundo paralelo, um objeto

destinado exclusivamente à contemplação. Na contemporaneidade, a especialidade das

imagens do mundo da realidade realiza-se num mundo da imagem autonomizada, um lugar

onde a simulação simula a si mesma, onde os espetáculos promovidos pelo universo midiático

são conformados como uma inversão concreta da vida e representam um movimento

autônomo do não-vivo.

No que tange à função específica dos veículos de comunicação no processo de

estetização e espetacularização culturais, deve-se considerar as ponderações de Baudrillard

(1985, 1991, 1995a, 1995b) quando chama a atenção para o papel-chave dos meios

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eletrônicos de comunicação de massa na sociedade capitalista. Segundo ele, a televisão, por

exemplo, produz um excesso de percepções, perspectivas, imagens e informações que ameaça

o sentido de realidade. O triunfo da cultura da dissimulação midiática resulta num universo

simulacional, num mundo contrafeito, num simulacro estético no qual a proliferação dos

signos e das imagens apagou as fronteiras distintivas entre o real e a representação simbólico-

imagética.

O que estamos a viver é a absorção de todos os modos de expressão virtuais no mundo da publicidade. Todas as formas culturais originais, todas as linguagens determinadas absorvem-se neste, porque não tem profundidade, é instantâneo e instantaneamente esquecido. (BAUDRILLARD, 1991, p. 113).

Na publicidade em torno da produção cultural, a natureza estética da difusão

publicitária perpassa a produção de um discurso exclusivamente dedicado a encontrar uma

recepção afeita à autoridade sensorial, e não à apropriação crítica e reflexiva de uma

mensagem. Desse modo, a divulgação de expressões da cultura pode determinar um processo

de estetização das formas concretas de captação das realidades culturais expressas nas formas

de vida comuns, pois:

[...] como a publicidade apropria ambiências da cultura, sejam as cenas cotidianas, os signos e/ou procedimentos oriundos dos diversos media, ou pertinentes a modalidades específicas de ordenamento do mundo, como as várias artes, a religião ou mesmo a ciência, a elaboração de sua narrativa segue um viés de apreensão enfaticamente estética, que tende a contaminar, por sua vez, o modo de apreensão do mundo dos receptores concretamente inseridos em seus diversos contextos comunicacionais. (VALVERDE, 2003, p. 227).

No entanto, não só a fala da publicidade, mas também de outros “heróis”, articulam os

limites estéticos e espetaculares do mundo para explorar a fonte e os limites da linguagem na

definição imagética da cultura. Nessa acepção, Chauí (1980) enfatiza a relação entre cultura e

democracia ao avaliar que a presença de alocuções políticas, administrativas e econômicas

competentes representa fator determinante na estetização e na espetacularização da realidade

cultural. Por outro lado, os discursos orientadores desses processos culturais também são

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gerenciados. Segundo Foucault (2002), os determinantes discursivos, seus poderes e perigos,

são elementos controladores, mas também controlados.

[...] em toda sociedade, a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade. (FOUCAULT, 2002, p. 8).

Bourdieu (1985, 1987, 1997), por sua vez, sustenta que mais do que instrumentos de

conhecimento, as classificações culturais viabilizadas pelo poder interdependente do mercado

e da mídia são instrumentos de poder, orientadas por interesses de grupos que disputam

espaços dentro de um campo específico de luta social. O teor da dominação projeta-se a partir

dos interesses subjacentes a um determinado campo de ação, classificando e instituindo

valores sociais numa ordenação hierárquica entre sujeitos que interagem em um mesmo

contexto histórico.

Na atualidade, a produção de idéias acerca do mundo social encontra-se subordinada à

lógica da conquista de poder. Assim, para entender a realidade contemporânea, seria preciso

apreender, ao mesmo tempo, o que é instituído – resultante da luta para fazer existir ou

inexistir o que existe em um certo espaço de tempo – e as representações, ou seja, enunciados

performativos que pretendem fazer acontecer o que eles enunciam e cuja eficácia se faz

proporcional à autoridade daquele que enuncia.

Nesse sentido, pode-se dizer que a palavra da autoridade tem o poder de agir sobre o

mundo social e, de fato, instituí-lo. Da mesma maneira, o pronunciamento de sujeitos sociais

que ocupam espaços reais e simbólicos de prestígio também tem o poder de exercer grande

influência na formulação das representações coletivas. Segundo Bourdieu (1985), a

arquitetura da fala dos mediadores simbólicos, ou seja, governos, artistas e intelectuais,

através da literatura, da expressão artística, dos meios de comunicação de massa e da própria

ciência, constroem, dão forma e legitimam imagens culturais, em pronunciamentos que

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podem se apresentar de maneira descuidada, mas quase sempre são apresentados de forma

velada.

Em verdade, não se pode negar a influência dos mais variados discursos e das mais

poderosas vozes nos procedimentos estetizantes e espetacularizantes da cultura. Do mesmo

modo, não se pode negligenciar as principais repercussões desses processos culturais na

sociedade do consumo pós-moderno. Considerando-se essas falas como importantes

intercessores simbólicos, deve-se ressaltar sua capacidade de construir, conformar e validar

representações culturais que, em muitos casos, acabam por comprometer a experiência

simbolizante e a eficácia do símbolo.

3.3 Símbolo e dessimbolização da cultura

Um dos aspectos mais acentuados na definição e efetivação de programas relacionados

às planificações estratégicas da indústria e do mercado cultural tem sido a forte referência

teórica e prática tanto ao gerenciamento das transformações culturais quanto, em alguns

casos, às tentativas de mobilização imagética de, pelo menos, determinados elementos

simbólico-culturais, como condição fundamental para a conquista e/ou manutenção de

credibilidade comercial por parte dos consumidores e investidores do turismo cultural. Esse

fato, particularmente, chama a atenção por referendar os processos de estetização e

espetacularização simbólicas dos modos culturais contemporâneos.

Esse tipo de intervenção com claros objetivos de padronização industrial da produção

simbólica e, por decorrência, das imagens culturais, evidencia uma forte tendência ao uso de

símbolos culturais como subsídios para a fabricação, venda e consumo de produtos da

cultura. Nessas intervenções, há uma série de práticas muitas vezes movidas por

emblemáticas e sistemáticas transgressões estimuladas pela pouco dissimulada acedência da

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administração da cultura. No caso das celebrações populares de localidades turísticas, por

exemplo, pode-se enumerar uma série de exemplos dessa tendência intervencionista, como o

emprego de cores, ritmos, movimentos, aparatos infra-estruturais e de personagens típicos e

comercialmente interessantes.

Na contemporaneidade, essas interferências têm empregado, como recurso tático, a

significação e/ou re-significação imagética dos patrimônios simbólicos. Desta forma, mais do

que transformar a imagem cultural das cidades, essas intervenções objetivam conceber

imagens significadas e re-significadas, significantes e re-significantes, para estimular novas e

maiores oportunidades econômicas ligadas, principalmente, à atividade turística. Assim, pode-

se dizer que em algumas paragens, ao mesmo tempo em que se realizam intervenções na

produção cultural local, formatam-se e promovem-se manifestações populares estereotipadas

para serem comercializadas como mercadorias culturais, como exemplificam a concepção e a

divulgação de megaeventos regulares para atenderem os atuais interesses de consumo de

segmentos específicos do turismo.

No caso de muitos municípios turísticos baianos, por exemplo, a própria dinâmica

cotidiana da cidade tem sido arquitetada a partir de projetos e objetivos estratégicos pelos

quais se procura garantir a promoção de uma imagem atraente, de uma localidade envolvida

por uma espécie de áurea de significados, um lugar capaz de inspirar a curiosidade e de

estimular a imaginação das pessoas. Para tanto, sobre essas paragens, procura-se elaborar,

desenvolver e manter determinadas imagens significativas, aptas a seduzir um número cada

vez maior de visitantes, bem como incrementar o fluxo de turistas e, em decorrência, projetar

a economia do lugar. Nessa direção, ao longo da evolução da concepção imagética de uma

cidade turística, tenta-se assegurar constantes produções e reproduções culturais com a

finalidade de qualificá-la e/ou (re)qualificá-la para o mercado de bens simbólicos.

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Na atualidade, os discursos identitários, independente das formas pelas quais se

apresentam, quando empregados por preceitos ardis, gerenciais e financeiros da pós-

modernidade, podem ser considerados os principais responsáveis por submeter certos

produtos simbólicos de cidades turísticas às indústrias e aos mercados culturais. A

identificação e a compreensão dos ecos sociais desse fenômeno dependem fundamentalmente

do entendimento pontual e específico acerca da noção de símbolo e sobre a influência da

ditadura simbólica nos processos de estetização e de espetacularização da cultura. Nessa

perspectiva, dispõe-se de um grande número de elucubrações tão esclarecedoras quanto

polêmicas.

O símbolo permite aos sentidos conceber limites e diferenças, tornando razoável a

intercessão simbólica que abre para o sujeito a possibilidade da pré-compreensão de uma

realidade sempre exclusiva, particular, e nunca comum ou genérica. Nesse sentido, acaba

moldando o comportamento social e cultural, tornando-se função necessária à organização e à

dinâmica sócio-cultural.

Por outro turno, a semiótica de Peirce (1984) entende símbolo como uma espécie de

signo sem relação natural com o objeto representado. Para ele, os signos que, em seu sistema,

mantêm alguma relação natural com o objeto que representam são o ícone e o índice. No

entanto, outros teóricos apresentam um entendimento diverso e atestam precisamente o

contrário. Segundo a teoria do imaginário, por exemplo, alguns traços desses signos estão

presentes no símbolo. Durand (1988), entendendo o imaginário como o conjunto das imagens

não-gratuitas e das relações de imagens constituintes do capital inconsciente e pensado do

humano, reflete sobre o símbolo enquanto afinidade coerente entre uma presença concreta e

uma ausência imaterial.

Para atingir o objetivo de ampliar a compreensão em torno dos efeitos sociais

decorrentes dos processos de industrialização, estetização e espetacularização culturais, uma

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acepção de símbolo própria dos estudos do imaginário, sob um ângulo antropológico, parece

ser a mais pertinente aos efeitos da presente pesquisa. Nessa noção, admite-se a existência de

uma conexão coerente, natural e habitual entre um elemento do universo físico e um

componente de esfera imagética, imaginária ou simbólica.

[Símbolo pode ser pode ser definido como] qualquer signo concreto que evoca, por intermédio de uma relação natural, algo de ausente ou impossível de ser percebido diretamente e que, por meio desse concreto sensível, figurado, é reconduzido ao domínio do significado. (COELHO NETTO, 1999, p. 342).

Assim compreendido, pode-se dizer que o símbolo, ao ser capaz de remeter

significado a um invisível-indizível, encarna concretamente essa adequação pelo jogo das

remissões míticas, rituais ou iconográficas que, além de completar, corrigem a discordância

da representação. Em oposição à alegoria, o núcleo do engenho simbólico pode ser entendido

como uma espécie de recondução formadora do significado manifesto apenas por meio de

uma imagem ímpar.

A expressão símbolo sempre implica a noção de uma afluência entre um sentido e uma

imagem, o ajuntamento da dimensão noológica, o vivenciado e o sentido, com uma imagem, o

artifício espacial. Desse modo, o símbolo pode ser compreendido como o pacto, que se

relaciona com as formas estruturantes, com as constantes e, por conseguinte, com o comando

arquetipológico da etologia humana. Em síntese, a função do símbolo seria fomentar

articulações biopsíquicas entre a realidade psíquica e a realidade física, bem como

articulações sócio-culturais entre a realidade social e a realidade cultural.

Coelho Netto (1980) entende as experiências simbolizadas, ou de simbolização, como

possibilidades de pleno desenvolvimento das personalidades individuais. Segundo este autor,

apenas as simbolizações são capazes de incrementar as individualidades humanas aptas a

distinguir o eu e o outro, e de operar tolerantemente com imagens não-idealizadas do eu e do

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outro no interior de um grupo social que, por conseguinte, mostra-se apto a oportunizar os

pré-requisitos necessários para a realização de todos e de cada um.

Em verdade, as organizações e as dinâmicas sócio-culturais – que envolvem a

produção tanto quanto os consumo ou uso cultural, bem como os modos de comunicação, de

ação e de política culturais – são capazes, através dos seus símbolos, de manifestar certa

coerência entre o que se pensa, o que se sente e como se age na produção e na percepção da

cultura. No entanto, essa coesão pensamento-sentimento-ação depende de uma realidade livre

da coerção produzida pelos efeitos da dominação comum às relações políticas, administrativas

e econômicas próprias da pós-modernidade.

Por outro lado, numa realidade estetizada e espetacularizada pelas influências e pelos

poderes de agências públicas e/ou privadas articuladoras da mercantilização turística e da

industrialização da produção de bens simbólicos, essa coesão entre pensamento, sentimento e

ação não se manifesta, o que denunciaria um fenômeno de dessimbolização cultural. Esse

acontecimento pode ser constatado a partir da desintegração entre o pensado, o sentido e o

agido sócio-culturalmente.

Quando [...] a dinâmica cultural apresenta-se fortemente marcada por um processo ideológico [...], aquilo que é entendido não é sentido e feito, ou o que é feito não é sentido embora seja entendido, o que é sentido não é entendido nem feito. (COELHO NETTO, 1999, p. 150).

A dessimbolização pode ser pensada, então, como um processo cultural pelo qual as

emoções e os sentimentos são separados do pensamento, da abstração, do juízo, e uns e

outros, da ação. Em outras palavras, aquilo que se realiza, não se sente nem se entende. No

momento em que não se consegue mediar nem gerar signos plenos, capazes de agregar um

conceito, uma apreciação ou uma intenção a um determinado sentimento, a experiência com o

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símbolo ocorre por intermédio de estereótipos. Desse modo, fenômenos dessimbolizantes

podem ser considerados eventos imperativos quando se observa, na produção cultural, a

presença dominante de padrões estéticos e de espetáculos que, em teoria da cultura, devem ser

entendidos como intenções inconscientes tanto para a atuação quanto para a emoção ou para o

juízo.

Nesta discussão, cabe ainda uma ampliação do debate conceitual para o campo

pragmático das ações de gerenciamento dos bens simbólicos nas sociedades contemporâneas.

Uma das características mais marcantes na execução de programas vinculados ao

planejamento estratégico da denominada indústria cultural tem sido a forte referência, no

discurso e na prática, às transformações e mobilizações dos símbolos culturais, como

requisitos à conquista de confiabilidade por parte dos investidores turísticos. Esse representa

um traço que, particularmente, tem chamado a atenção de muitos estudiosos, pois referenda a

estetização e a espetacularização emblemática da cultura, evidenciando uma clara mudança

nas experiências culturais.

Sem dúvida, ao importar as prerrogativas políticas, administrativas e econômicas para

a esfera da cultura, os estrategistas do capitalismo tardio influenciados pela pós-modernidade,

pela sociedade do espetáculo e pela ordem do simulacro, difundem a proposta de que

características culturais devem ser utilizadas como um dos principais trunfos na competição

mercadológica. Nessa leitura, comumente evocada e divulgada, as produções simbólico-

culturais genuínas passam a ser alvo de propostas de formatação ou revitalização meramente

estéticas e espetaculares ou, mais curioso que isso, de sugestões puramente turísticas.

A nova geração de gerentes culturais, que apresenta interesses focados no turismo e no

marketing turístico, lida com o patrimônio cultural reinventando, estrategicamente, produtos-

cultura, promovidos sob a forma de imagens, de simbioses de imagem e produto que

caracterizam a indústria-comércio-cultural. Nesse sentido, as intervenções na cultura e a

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produção de imagens construídas e/ou alteradas por processos mercadológicos e

comunicacionais se reveste de forte intenção estratégica, mobilizando a produção cultural em

busca de novas sincronicidades. Os agentes pós-modernizadores da cultura seriam os

responsáveis por uma crescente sincronicidade entre o cultural e o imagético, pela produção

especializada de uma imagética que seleciona e difunde ângulos culturais específicos.

As fragmentações sócio-culturais, ao serem relidas por novos processos de

comunicação comerciais, quando não hiper-expõem determinados elementos significativos,

ocultam outros. Com o poder de parecer atualizar e conquistar novos valores estratégicos, a

pós-modernização cultural conduz a uma pós-modernização das imagens culturais. Nesse

contexto, se, por um lado, a cultura pode ser considerada livre das amarras da tradição, por

outro, o uso das correntes invisíveis do mercado e da publicidade desencadeia, a partir do

comércio e da promoção meramente mercadológica de representações culturais, um processo

dessimbolizante, um afastamento entre o que as pessoas pensam acerca dos bens simbólicos e

a forma como elas sentem este patrimônio bem como entre pensamento, sentimento e o modo

pelo qual esses indivíduos se comportam em suas experiências simbólicas.

A proliferação das inovações que recriam, atualizam a cultura, e a crescente facilidade

de circulação de imagens têm recolocado, tanto para a antropologia quanto para o turismo

cultural, novas clivagens culturais, indicadas pela metáfora proposta pelos antropólogos

contemporâneos de culturas itinerantes. Esta parece ser a maneira mais apropriada de definir

os novos elos entre o lugar e a produção cultural, sempre intermediado pelos interesses do

mercado e da indústria cultural.

Para muitos teóricos contemporâneos, as tecnologias de comunicação com interesses,

sobretudo comerciais, alterando e criando novas mediações entre experiências reais e virtuais,

modificam as experiências simbolizantes. Percebe-se, assim, que as vivências simbólicas

acontecem por intermédio de uma espécie de repertório interconexo entre imagens que torna

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imperceptível a separação entre a imagem do real e a da ficção. Configuram-se, assim,

processos dessimbolizantes que podem ocasionar dificuldades e obstáculos à afirmação de

formas mais desenvolvidas e independentes de apropriação e condução de oportunidades, ou

seja, certas imagens corsárias promovem a dessimbolização, que na atualidade se apresenta

em muitas expressões culturais e causa uma crise simbólica e uma propagação equivalente

dos signos.

Tanto a dessimbolização quanto o colapso simbólico, ambos resultantes do uso de

padrões estéticos e de espetáculos na promoção de produtos turísticos, podem ser facilmente

observados, por exemplo, em muitas produções culturais da atualidade baiana, especialmente

no interior. Nesse momento, redirecionando o foco desta discussão, pode-se trazer esse debate

para a ambiência propriamente empírica. Tome-se o caso da Lavagem das Escadarias da

Catedral de São Sebastião, ou melhor, da Festa-Lavagem de São Sebastião. Pode-se afirmar

que essa celebração, sob a influência industrial, comercial, gerencial, administrativa e pré-

definidora dos gerenciamentos turísticos, da indústria cultural e da mercantilização de bens

simbólicos, encontra-se vulnerável a (pseudo)requintadas propostas estetizantes e

espetacularizantes. Além disso, a partir da submissão a esses dois procedimentos culturais,

este festejo apresenta muitos pré-requisitos para atuar como desencadeador de um processo de

dessimbolização na homenagem realizada pelo Sindicato dos Estivadores do Porto de Ilhéus

ao santo padroeiro.

Nesse sentido é que procede realizar um estudo objetivo e minucioso acerca do tributo

originário a São Sebastião e da atual cerimônia de Lavagem a partir da conjugação entre os

pressupostos teóricos e os dados colhidos na pesquisa de campo. De antemão, acredita-se que

esse ritual de Lavagem, manipulado em nome de interesses políticos, administrativos e/ou

econômicos, estaria, convergentemente, fadado a passar por procedimentos estetizadores e de

espetacularizadores, enquanto, por conseqüência, o objetivo nativo de se prestar uma

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homenagem ao santo dos estivadores teria sido submetido a um processo de dessimbolização.

Seria necessário, então, reler e (dês)construir certos (pseudo)simbolismos, atentando aos

fenômenos culturais resultantes da viabilização de condições mais favoráveis a uma produção

cultural voltada ao consumo e ao desenvolvimento da atividade turística tal como parece

prevalecer no dias atuais.

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4 PADRÕES, ESTÉTICAS, ESPETÁCULOS E SÍMBOLOS: DO TRIBUTO À FESTA

Entre as homenagens a São Sebastião, duas festas ocorridas na sede do município de

Ilhéus merecem destaque: uma realizada pela Diocese; a outra, pelo Sindicato dos

Estivadores39. A primeira, composta de missa solene e procissão, presta tributo

eminentemente religioso ao santo padroeiro da cidade; a segunda, constituída originariamente

por um festejo de largo e, décadas mais tarde, por um ritual de Lavagem, destina-se a

homenagear profano-religiosamente a mesma entidade, mas enquanto patrono dos

trabalhadores da estiva ilheense. Embora esses dois festejos tenham motivações aproximadas,

a celebração diocesana pode ser distinguida da comemoração dos estivadores levando-se em

conta a preponderância de determinados elementos constitutivos em ambas as expressões de

fé e devoção.

Considerando-se os ingredientes que podem ser entendidos como característicos da

celebração realizada pelo Sindicado dos Estivadores, muitos são considerados distintivos e

indispensáveis à composição substancial dessa comemoração nativa. Desses componentes

imprescindíveis, pode-se citar a grande bacalhoada outrora servida gratuitamente na sede da

associação dos trabalhadores da estiva e chegava a dar nome próprio ao festejo. Além dessa 39 Essa discussão não considera como objeto de estudo a cerimônia da “Puxada do Mastro de São Sebastião”, evento realizado na estância hidromineral de Olivença, distrito do município de Ilhéus.

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tradição, caberia ressaltar o comércio de bebidas e de alimentos por barraqueiros, o desfile de

carroças típicas, as bandas compostas por instrumentos de sopro e a participação voluntária de

indivíduos do povo sem representatividade institucional, além das apresentações, pelas ruas e

avenidas da cidade, de personagens característicos em performances particulares, originais e

originárias.

Fruto de uma motivação especialmente religiosa, essa celebração local foi substituída,

em meados dos anos setenta do século XX, por uma cerimônia de Lavagem das escadarias da

Catedral. Em verdade, as cerimônias religiosas de Lavagem, sobretudo as que ocorrem diante

de templos católicos, podem ser consideradas de certo modo tradicionais em diversas cidades

da Bahia. A força dessa tradição faz com que esses rituais se imponham como ingredientes

importantes a partir dos quais muitos personagens baianos exercem papéis e dão movimento e

sentido à narrativa da baianidade. Nessa discussão, portanto, independentemente de quaisquer

debates antropológicos ou sociológicos, as lavagens de templos baianos são pensadas como

elementos fundamentais para o desenvolvimento de uma certa representação do ser baiano,

que tem sido produzida e promovida para atender, também ou principalmente, aos interesses

do setor turístico.

Nesse sentido, pode-se afirmar que o ritual de Lavagem das Escadarias da Catedral de

São Sebastião impõe seu poder de caracterização e de representação da cultura baiana e

ocupa, portanto, lugar de destaque no campo dos eventos ilheenses de cunho religioso-

profano. Embora se realize a partir de uma motivação menos religiosa do que carnavalesca,

mais comercial do que ritualística, menos profana do que turística, e apresente ingredientes

distantes da intenção de homenagear o padroeiro, a cerimônia merece destaque por constituir

um componente de grande força na expressão do ethos baiano-soteropolitano em Ilhéus e, por

decorrência, um acontecimento fundamentalmente utilizado, produzido e divulgado como

produto turístico com amplo poder de atração mercadológica.

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De acordo com a descrição realizada pelo Guia Cultural da Bahia (1999), uma série de

celebrações, sobretudo de cunho religioso, precede a cerimônia de Lavagem das Escadarias da

Catedral de São Sebastião. Dentre os festejos católicos, destacam-se, por exemplo, a missa

solene e a procissão, ambas pensadas e realizadas sob a responsabilidade da Diocese. A

cerimônia de Lavagem propriamente dita tem sua concepção e organização a cargo quase

exclusivo do Sindicato dos Estivadores do Porto de Ilhéus, e consta de um conjunto de

ingredientes e acontecimentos representativos que, respeitados e entendidos como elementos

essenciais, são transmitidos e mantidos, o que garante a esse evento um caráter de tradição.

Nesta discussão, caberia destacar ainda que a edificação da Catedral de São Sebastião

está envolta por uma mística popular que seria capaz de justificar o cumprimento regular da

cerimônia de Lavagem. No entanto, embora se reconheçam essas inspirações no âmbito da

crença popular, da religiosidade e/ou da cultura, não se deve negligenciar a preponderância de

determinadas questões de ordem social e econômica que motivaram o início dessa celebração

e ainda têm motivado a realização periódica desse ritual. Essas motivações sócio-econômicas,

mais evidentes na atualidade, encontram sólidas balizas em diversas frentes, sobretudo no

interesse público e privado de incrementar a atividade turística no interior do Estado da Bahia,

em especial, no município de Ilhéus.

Sem dúvida, as inspirações para o cumprimento da cerimônia de Lavagem e da festa

de largo na semana dos festejos em homenagem a São Sebastião passam tanto pela

necessidade de oportunizar entretenimento e/ou geração de renda para a população local

quanto pelo interesse mercadológico de oferecer e promover produtos culturais no mercado

turístico. Este empenho comercial tem como objetivo atrair cada vez mais consumidores de

bens simbólicos num mercado considerado um dos principais setores econômicos de Ilhéus,

município que tenta superar a crise instaurada em toda a região desde que a crise da lavoura

cacaueira assumiu um caráter crônico.

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Por outro lado, não se pode negar que, como obrigação de fé ou enquanto

compromisso social, a comemoração nativa em homenagem a São Sebastião recebeu, com o

advento do ritual de Lavagem, contornos para além da tradição antiga e seguiu direções

independentes de uma dinâmica meramente cultural. Além disso, caberia ratificar que o

tributo originário e original dos estivadores ilheenses, inicialmente de caráter popular e

religioso, ao ser substituído pela Lavagem de São Sebastião, pode ter deixado de representar

uma celebração de devoção ao santo, passando a significar apenas um evento de caráter,

lúdico, como uma breve antecipação do carnaval; um produto turístico nos moldes

soteropolitanos, uma espécie de bem cultural baiano destinado ao consumo e que tem sido

amplamente comercializado no mercado de bens simbólicos.

Desse modo, caberia afirmar que a Lavagem das Escadarias da Catedral de São

Sebastião, ao receber investimentos do poder público e das empresas particulares interessados

no desenvolvimento do turismo, pode ter sido submetida aos ditames das agências da

indústria cultural capazes de avivar a força comercial desse ritual, ao passo que modificam as

dinâmicas de concepção e de concretização do tributo ao padroeiro. Nesse processo de

submissão, observa-se certa obediência a padrões estéticos específicos, bem como a

implementação de espetáculos significativos. Tanto a padronização estética quanto a

teatralização parecem exercer a função de garantir à cerimônia da Lavagem a imagem e a

atratividade necessárias ao sucesso no mercado turístico.

Na atualidade, determinados ingredientes, apesar de serem entendidos por muitos

como fundamentais, têm sido desprezados no processo de concepção e de produção da

celebração em homenagem a São Sebastião. Nessa conjuntura, em lugar dos cânticos de

louvor, ecoa o som dos trios elétricos; em substituição aos devotos, populares e turistas

empunham latinhas de cerveja, pulam ao som da axé music e disputam lugar com as baianas e

os indivíduos fantasiados que dançam e carregam jarros ornamentados. Na Lavagem, o jato

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d’água do caminhão-pipa vence as baianas e a água de cheiro numa espécie de batalha entre

os atos de lavar as escadarias e banhar os foliões. Nesse turbilhão de ações, interações e

superações, de onipresenças, presenças e ausências, a Catedral se torna cenário para uma

espécie de grande ato cênico em que as pessoas, como se esquecidas do santo na igreja,

prestam um tributo à festa na rua.

Em verdade, os festejos de largo conseguiram, gradativamente, se sobrepor à própria

cerimônia da Lavagem. Nos últimos trinta anos, seguindo e corroborando com essa

justaposição, coube às empresas turísticas e às indústrias culturais promover essa festa como

um dos eventos mais atraentes das comemorações em torno de São Sebastião. No entanto, o

que mais chama a atenção dessa investigação não são os holofotes do mercado turístico e da

indústria de bens simbólicos voltados para a celebração de rua, mas os contornos

carnavalescos que essa festividade recebeu, sobretudo nos últimos anos. Cores, canções,

coreografias e personagens típicas do carnaval de Salvador, ou pelo menos inspirados nele,

dão nuança, ritmo, movimento e personalidade à Festa-Lavagem de São Sebastião, que, em

lugar de expressar a devoção e o tributo ao santo, configura-se como uma versão estética e

espetacular da baianidade, ou de uma espécie de soteropolitanidade.

Nesse sentido, pode-se afirmar que o setor turístico e as indústrias culturais têm

promovido, em torno da Lavagem de São Sebastião, tanto uma imagem arquitetada para ser

esteticamente atraente quanto uma festa-produto fabricada em função das demandas do

mercado turístico. No entanto, ao se apropriarem de determinados ingredientes da baianidade,

como as atmosferas culturais cotidianas, os elementos simbólicos e alguns procedimentos

artísticos característicos da cidade de Salvador e do Recôncavo, sobretudo das festas de largo

soteropolitanas, as agências turísticas e as indústrias de bens simbólicos podem ter composto,

sobre a Festa-Lavagem de São Sebastião, uma representação que não segue um viés apenas

estético e espetacular, mas conformado estética e espetacularmente.

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Assim, considerando-se os estudos de Featherstone (1995), pode-se entender o

possível processo de padronização dessa festa a partir do discurso da baianidade como um

fluxo de signos e imagens capaz de desencadear um processo de tematização e de estilização,

com o objetivo de promover o desenvolvimento da produção de uma cultura de consumo.

Agregando a essa perspectiva o pensamento de Debord (1997), caberia reconhecer que, além

de padrões estético-culturais para atender a uma sociedade de consumo, a Festa-Lavagem de

São Sebastião, na qual imperam condições mercadológicas e industriais de produção, tende a

se apresentar como um grande conglomerado de espetáculos. Afinal, muito do que parece

constituir e ser diretamente vivido no processo de idealização e de concretização dessa

celebração transformou-se, ao que tudo indica, numa interpretação, num grande e expressivo

acontecimento cênico.

Sem dúvida, a narrativa da baianidade, empregada como principal ingrediente

conceptual ou enquanto padrão simbólico pelo setor turístico e pelas indústrias culturais, pode

ter desempenhado um papel de representação hegemônica e consensual apta a estetizar a festa

de rua realizada em torno da Lavagem de São Sebastião e desencadear um processo de

fabricação de espetáculos significativos e atraentes. Esses processos de estetização e

espetacularização, por sua vez, têm a capacidade de influenciar, de modo decisivo, a forma

pela qual os sujeitos que produzem e/ou consomem produtos culturais, concretamente

inseridos em distintas conjunturas, concebem e apreendem essa manifestação religioso-

profana. Deve-se atentar, portanto, para a possibilidade de esses procedimentos estetizantes e

espetacularizantes haverem promovido o distanciamento entre os envolvidos na Lavagem e

certos domínios simbólicos ligados à homenagem ao padroeiro.

Nesse sentido, inspirando-se no entendimento de Coelho Netto (1999) acerca dos

procedimentos de simbolização, caberia dizer que a conexão harmônica entre o modo como se

pensa, sente e produz a Lavagem de São Sebastião, na atualidade, corre sério risco de não se

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manifestar como tributo ao santo, o que denotaria um processo de dessimbolização na

homenagem a São Sebastião. A ocorrência dessa provável desarmonia poderá ser evidenciada

a partir, inicialmente, da constatação de um artifício ideológico como chancela determinante

da dinâmica de produção cultural do evento da Lavagem e, em seguida, através da

observância de uma decorrente falta de integração entre a compreensão, o anseio e o cultivo

desse ritual e da festa popular que tão intensamente o caracteriza como forma alternativa de

homenagear o padroeiro dos estivadores do porto de Ilhéus.

Desse modo, acredita-se que a identificação desse processo de dessimbolização na

homenagem nativa a São Sebastião depende, preliminarmente, de uma discussão acerca do

possível uso de padrões estéticos e espetaculares pela indústria e mercado de bens simbólicos

na produção e promoção da cerimônia de Lavagem das Escadarias da Catedral de São

Sebastião. Para tanto, além de uma investigação exploratória em fontes teóricas e em

referências histórico-culturais, realizou-se uma pesquisa de campo constituída por

observações in loco e baseada em questionários elaborados, ordenados e processados com o

objetivo de atender a intenções previamente ponderadas e planejadas.

4.1 Festa-Lavagem de São Sebastião: um fenômeno de estetização

Na praça Dom Eduardo, nos momentos que antecedem a saída do cortejo, um número

considerável de pessoas bebe e dança ao som das bandas de axé music que se apresentam

sobre o trio elétrico. Na Avenida Dois de Julho, em frente à sede do Sindicato dos

Estivadores, enquanto se comercializam latinhas de cerveja e outras bebidas, as baianas

bebem e se divertem (Figura 1) ao som dos grupos de percussão que ensaiam acordes e

coreografias (Figura 2). Acompanhado por com alguns estivadores, muitos políticos locais,

populares e turistas, o cortejo chega à Catedral; momento em que se trava uma espécie de

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disputa por espaço entre as baianas e os indivíduos que ocupam as escadarias. Após a

Lavagem, a festa se intensifica e se estende até a madrugada.

Figura 1 – Bainas reunidas antes da cerimonia da Lavagem.

Fonte: foto do autor, 2004.

Figura 2 – Ensaio da banda de percussão antes da saída do cortejo.

Fonte: foto do autor, 2004.

Nessa discussão, independentemente de qualquer pretensão de atribuir um sentido de

positividade, neutralidade ou negatividade à festa em torno da cerimônia de Lavagem das

Escadarias da Catedral de São Sebastião, acredita-se poder pensar essa celebração como uma

manifestação de largo, um espaço simbólico onde se procura apartar o que precisa ser

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esquecido e aquilo que necessita ser rememorado. Assim, a partir das reflexões de Carlos R.

Brandão (1989), pode-se pensar a realização dessa comemoração, seja ela motivada por um

compromisso social ou por uma obrigação de fé, como a ambiência simbólica em que, numa

tradição quase ritualística, se realiza o resgate da coisa ao símbolo. Noutros termos, caberia

dizer que essa Festa-Lavagem seria o ambiente ideal em que aquilo que não demanda

notabilidade imediata se separa daquilo que exige comemoração e evidência recorrentes.

Na atual composição da Festa-Lavagem de São Sebastião, observa-se um afastamento

entre os aspectos que demandam celebração e proeminência recorrentes e aqueles que, no

universo das indústrias culturais e do comércio de bens simbólicos, não se consideram

relevantes e/ou mercadologicamente interessantes. Assim, tendo em vista uma elocução

identitária sobre o ethos baiano que, em âmbito turístico, se impõe como referência

representativa poderosa, pode-se entender o fenômeno de estilização da festa que norteia a

Lavagem das Escadarias da Catedral de São Sebastião a partir dos componentes estéticos

pertinentes ao discurso da baianidade.

Nesse sentido, D. Hilda40, uma das baianas que participaram da cerimônia da Lavagem

em 2004, apresenta uma fala que, em conformidade com os demais depoentes, demonstra a

força e a preeminência da festa de rua. Para ela, os turistas demonstram grande interesse nesse

tipo de evento muito comum na Bahia e que conta com o apoio e os investimentos do governo

do Estado e da Secretaria de Turismo municipal. Sem dúvida, a partir do que evidenciou a

dinâmica da celebração em 2004, pode-se dizer que a Lavagem, com duração de alguns

minutos, parece obrigada a ceder lugar aos festejos de largo, que se estendem pela madrugada,

sem hora para terminar.

Na celebração que se realizava em torno do tributo originário ao santo padroeiro dos

estivadores, chamava à atenção a assiduidade orgulhosa dos devotos e, sobretudo, dos

40 Em depoimento concedido no dia 18 de Janeiro de 2004.

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estivadores e dos coronéis (Figura 3), que confirmava um compromisso sócio-religioso e fazia

referência direta ao cotidiano ilheense e às tradições grapiúnas. Em contrapartida, na atual

festa que acontece como norte promotor da Lavagem de São Sebastião, destaca-se a

participação de turistas e populares que, ao som da axé music e inspirados pela presença do

trio elétrico, comportam-se como foliões e fazem alusão a uma versão de baianidade (Figura

4), em especial, ao carnaval soteropolitano: produto turístico de êxito comercial confirmado.

Figura 3 – Populares, estivadores e coronéis no tributo originário a São Sebastião.

Fonte: CEDOC/UESC.

Figura 4 – Turistas e populares na Festa-Lavagem de São Sebastião.

Fonte: foto do autor, 2004.

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Sem dúvida, o modo pelo qual a produção cultural da Festa-Lavagem de São

Sebastião subordina-se a uma certa lógica de poder. Assim, para compreender a presente

realidade desse evento, deve-se considerar os elementos instituídos e reconhecidos como

baianos, a partir do poderoso discurso da baianidade, em contraponto aos que compõem a

narrativa da grapiunidade e que ainda não apresentam a mesma força mercadológica no

âmbito da atividade turística. A conformação infra-estrutural, visual e artístico-musical da

atual festa que se realiza em torno da Lavagem denotam a influência estetizante da baianidade

sobre a configuração estética grapiúna que outrora se fazia presente na celebração originária

em homenagem ao padroeiro dos estivadores.

Nesse sentido, Maria Luiza F. Heine41, ex-presidente da Fundação Cultural do

município, há dois anos à frente da coordenadoria de cultura, defende a idéia de que a Festa-

Lavagem de São Sebastião apresenta determinados elementos produzidos como reprodução

da festa soteropolitana. Segundo Heine, as novidades ou os “acréscimos” quase carnavalesco-

soteropolitanos observados na celebração devem-se à necessidade de se imitar os festejos de

largo, em especial, o carnaval de Salvador, que tem sido exportado tanto para outras regiões

brasileiras quanto para outros países.

Além de Heine, outros depoimentos ratificam o processo de padronização estética da

Lavagem de São Sebastião a partir da noção de Bahia declarado no discurso da baianidade. O

professor Carlos Roberto Arléo Barbosa42, por exemplo, sessenta e cinco anos de idade,

cinqüenta e quatro anos residindo em Ilhéus, autor de diversos livros sobre a história ilheense

e regional, acredita que a Lavagem de São Sebastião configura-se como uma imitação dos

festejos que ocorrem em Salvador e representa uma espécie de “tradição planejada”. Para ele,

embora “o tradicional seja mais bonito quando espontâneo”, a Lavagem “ocorre no período de

‘alta estação’ e é bom para o turismo em Ilhéus”.

41 Em depoimento concedido no dia 28 de Janeiro de 2004. 42 Em depoimento concedido no dia 16 de Fevereiro de 2005.

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Dos guias que trabalham oficialmente em Ilhéus, Emília M. Nascimento43, acredita

que a festa com trios elétricos e bandas de axé music seduzem os turistas, e que a participação

da Secretaria de Turismo seja fundamental para o sucesso turístico desse evento. No entanto,

não se pode negar a frustração de alguns grupos que não vêem satisfeito o desejo de

presenciar e/o participar do ritual de Lavagem. Embora seja amplamente divulgada e

comercializada no mercado turístico, a Lavagem de São Sebastião é mais festa soteropolitana

do que uma cerimônia característica do universo simbólico afro-descendente. Segundo

Nascimento, o sentimento de ausência do objeto desejado e de decorrente insatisfação de

consumo também se estende àqueles que esperam assistir uma manifestação típica da cultura

local.

Segundo Emerson Travares44, há mais de trinta anos na presidência do Sindicato dos

Estivadores de Ilhéus, a participação da Secretaria de Turismo na efetivação da Lavagem foi

muito importante. Em contrapartida, em 2005, com a posse da nova administração, a

prefeitura não participou da realização da festa. Raimundo Mazzei, recém-empossado no

gabinete de turismo, não se prestou maiores esclarecimentos, mas para muitos envolvidos,

houve motivação política para o não-comprometimento do poder público. No governo de

Jabes Ribeiro, até o final de 2004, Romualdo Pereira, secretário de turismo e presidente do

Conselho Municipal de Turismo (COMTUR), apoiou financeiramente o evento com alocação

de recursos para a divulgação, infraestrutura e contratação de atrações, como trios e bandas de

axé-music, que proporcionavam, inegavelmente, a atração de turistas.

Nessa perspectiva, vale destacar dois episódios sugestivos ocorridos na edição de 2004

da Festa-Lavagem de São Sebastião. No primeiro, na concentração do cortejo em frente à

sede do Sindicato, três turistas europeus declararam que tinham muita vontade de conhecer a

“Lavagem do Bonfim” e que naquele dia estavam “realizando um sonho”. No segundo, na

43 Em depoimento concedido no dia 26 de Janeiro de 2004. 44 Em depoimento concedido no dia 24 de Janeiro de 2005.

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festa realizada em frente à Catedral, um grupo de excursionistas do sudeste brasileiro,

entusiasmado com os trios elétricos e a axé music, entoava em coro ritmado: “sorria, você está

na Bahia”. A idéia de que a festa-Lavagem de Ilhéus expressava a baianidade, a ponto de ser

confundida com o evento soteropolitano, parece uma evidência incontestável. Afinal, embora

os dois fatos citados sejam episódicos, não se pode negar que a conformação estética e

artística do evento ilheense se aproxima, em muitos aspectos, daquele realizado na cidade de

Salvador, sobretudo no tocante à festa de rua que o norteia e sinaliza.

Essa aproximação de amoldamentos estéticos entre a Festa-Lavagem ilheense e aquela

realizada em torno da Lavagem do Bonfim em Salvador pode ser explicada por meio das

ingerências do mercado e da indústria cultural. Na atual conjuntura do setor turístico baiano,

inclusive e principalmente em municípios do interior do Estado, constata-se uma necessidade

de se promover e oferecer produtos que sejam esteticamente reconhecidos como

característicos do ethos baiano. Além disso, conforme depoimentos de alguns guias turísticos,

muitos turistas buscam encontrar em Ilhéus a Bahia – ou uma versão de Bahia – prometida em

panfletos, encartes, materiais publicitários e Internet. Assim, pode-se afirmar que, seguindo

uma máxima mercadológica muito evidente na contemporaneidade, a Festa-Lavagem de São

Sebastião, como tudo o que se produz para ser oferecido ao consumo, seja ele turístico ou não,

procura atender o desejo do consumidor.

Desse modo, tendo em vista que a celebração da Lavagem de São Sebastião se

aproxima mais da noção de baianidade do que a homenagem que era realizada

originariamente, pode-se inferir a ingerência das indústrias e do mercado de bens culturais,

senão na criação, mas certamente na conformação e na produção desse evento na atualidade.

De acordo com Emerson Tavares, o objetivo inicial da celebração era prestar um tributo ao

santo padroeiro e a Lavagem foi criada como uma “nova forma” para se homenagear o santo

patrono, um meio para revitalizar a homenagem nativa. No entanto, não se pode negar que,

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além de seguir um viés de produção esteticamente padronizado a partir da narrativa identitária

da baianidade e negligenciar a estética grapiúna, essa celebração passou a servir como

produto turístico-mercadológico.

Sem dúvida, uma certa idéia difusamente alegórica de baianidade tem sido captada e

capitalizada pelos agentes inseridos no setor turístico baiano, reconhecido como um dos mais

relevantes da conjuntura econômica do Estado. Desse modo, caberia destacar a importância

das dimensões culturais, ideológicas ou ainda identitárias no contexto do desenvolvimento da

economia baiana, sobretudo nas últimas décadas. As noções da mestiçagem, do lúdico e da

eterna festa baiana proporcionam, numa perspectiva pragmática, a produção e a oferta em

larga escala de serviços de lazer e de turismo pautados num modelo sonoro, imagético e

estético, que conseguem ser amparados econômica e estruturalmente por uma imensa

disposição comercial de eventos-produto e de show-business associada aos governos estadual,

municipal e também nacional, sobretudo nos últimos anos, com a proposta do Ministério do

Turismo de regionalizar a atividade turística no Brasil.

[...] a Bahia continua a produção de sua homogênea mercadoria de exportação por excelência, a afirmação do “bom viver”, da “fidalguia de sentimentos”, da “convivência entre raças” e de sua jovem nordestinidade – identificação com os interesses regionais do Nordeste, enquanto praticando, quase sem retoques, sua baianidade assimétrica nas relações internas entre “brancos” e “pobres” e seu bairrismo pleonasticamente provinciano e narcísico. (BRANDÃO, M., 1994, p. 52 – aspas da autora).

Segundo Sansone e Santos (1997), a promoção da cultura baiana ou do discurso

representativo da baianidade, principalmente no tocante às festas de largo promovidas em

torno das manifestações baianas afro-religiosas, centra-se mais na necessidade do uso

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estratégico e comercial de ambientes, cores, indumentárias e, em especial, danças e ritmos do

que no universo simbólico do sistema religioso afro-baiano. Nesse sentido, pode-se atribuir à

atual conjuntura da Festa-Lavagem de São Sebastião uma conexão muito íntima com as

indústrias do lazer e da cultura, sobretudo as musicais e discográficas, que cresceram

enormemente nos últimos trinta anos e procuraram conceder uma ênfase renovada ao

consumo de bens simbólicos no Estado.

Essa conexão entre a Festa-Lavagem de São Sebastião e as indústrias do

entretenimento e de bens culturais constitui uma espécie de mosaico sonoro-visual do ethos

baiano, no qual a arte delineia um imaginário que tem sido amplamente apresentado e

promovido pelos meios de comunicação de massa. A partir desses mecanismos

comunicacionais, suscitam-se e estimulam-se as tribos de admiradores da Bahia ou o que se

pode denominar de neotribos turísticas. Nesse sentido, pode-se afirmar que essa versão de

neotribalismo45 aponta para os componentes estéticos da baianidade, sejam eles de ordem

artística ou não, como os principais responsáveis pela construção de novos e atuais laços

sócio-afetivos entre os indivíduos.

Segundo Maffesoli (1999), o neotribalismo está inscrito em sentimentos,

comportamentos e afinidades sociais a partir dos quais ocorre uma espécie de partilha de

experiências em um estar-junto baseado no cotidiano e não apenas em fundações ou heranças

históricas. O vínculo social entre as neotribos funcionaria, portanto, a partir de uma lógica da

identificação na qual as confluências de emoções, condutas e desejos em comum se

constituem como conseqüência da atração. Esse fenômeno pode ser observado na atividade

turística contemporânea, em que os turistas se reúnem em grupos com o objetivo de

compartilhar vivências numa conjugação de sensibilidades, procedimentos e aspirações

comuns que se estabelece como resultado do fascínio e do descolamento.

45 Conforme Maffesoli (1999), o neotribalismo representa um vetor fundamental das sociedades contemporâneas e constitui uma nova modalidade de organização pautada em interesses partilhados, caracterizada por relativa coesão e homogeneidade social.

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No caso específico da substituição do tributo originário ao santo, pode-se observar a

multiplicidade de sentidos e a incorporação de elementos da estética da baianidade e das

expressões artísticas da axé music como ingredientes que, ao passo que desqualificaram a

celebração nativa, tornaram a atual manifestação mais interessante para o universo das

necessidades consumistas das neotribos turísticas. Nesse episódio em particular, deve-se

considerar a confluência de sentimentos, condutas e, sobretudo, de anseios no tocante ao

universo de consumo de constituições ou representações identitário-culturais características

do ser baiano, em especial, do âmbito das tradições afro-descendentes religiosas e das

manifestações festivas.

Em suma, pode-se dizer que a Festa-Lavagem de São Sebastião, ao representar uma

manifestação característica da baianidade, embora não apresente uma motivação tipicamente

associada à afro-descendência ou mesmo carnavalesca, parece insistir em querer ser ou pelo

menos parecer negra e modernamente baiana. A realização dessa celebração, baseada no uso

ostentoso de determinados padrões estéticos e artísticos da cultura afro-baiana e da festa

soteropolitana, assume um papel de produto destinado a um novo e expansivo consumo de

bens simbólicos e, por conseguinte, designa novas condições para a mercantilização turística

das manifestações culturais ilheenses, tendo em vista o sucesso comercial de uma Bahia

amplamente divulgada e consumida nos mercados regionais, nacionais e globais.

No universo turístico baiano, não se pode negar a configuração de teias, tessituras

sutis, narrativas, práticas e símbolos que se entrelaçam em fiações emblemáticas, por meio de

conexões complexas, sinuosos encadeamentos em que se conformam tradições e a partir dos

quais se criam e recriam o antigo, o novo, o antigo-novo e o novo-antigo. Nesse contexto, a

Festa-Lavagem de São Sebastião em Ilhéus reduplica sons e estéticas de outros espaços

materiais e simbólicos, enquanto o desejo de festejar a baianidade suplanta a vontade de

homenagear o santo, numa espécie de espetáculo do presente e do novo-passado, que se

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articula pelos mais modernos mecanismos, pelas mais eloqüentes vozes e pelas mais

habilidosas mãos.

4.2 Lavagem de São Sebastião: um fenômeno de espetacularização

Na atualidade, acompanhada por populares e turistas, a Lavagem das Escadarias da

Catedral de São Sebastião não conta com a participação dos estivadores. Em seus lugares,

destacam-se os turistas, os foliões e as baianas que, coordenadas por Mãe Carmozina,

empunham vassouras, vestem roupas brancas, usam colares e turbantes, equilibram jarros com

flores e água-de-cheiro na cabeça (Figura 5). Quando o cortejo chega às escadarias da

Catedral, as carroças, sem espaço na praça Dom Eduardo, retornam à Avenida Dois de Julho.

No momento da Lavagem propriamente dita os ramos de flores são derrubados no chão e

muitos jarros são quebrados em função da ânsia de alguns pelo banho de água-de-cheiro. Por

conta disso, as escadas não são lavadas, as baianas se dispersam e em pequenos grupos se

reúnem na frente da sede do Sindicato para participarem da festa organizada pela Secretaria

de Turismo. Nas edições de 2004 e 2005, a cerimônia de Lavagem teve a duração de,

aproximadamente, dez minutos.

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Figura 5 – Baiana vestida para a Lavagem de São Sebastião.

Fonte: foto do autor, 2004.

Pode-se considerar a Lavagem de templos católicos por baianas associadas ao

candomblé (Figura 6) uma manifestação típica da Bahia; afinal, inserido na trama do

sincretismo religioso baiano, esse ritual simboliza uma importante e categórica faceta do ser

baiano. No entanto, no município de Ilhéus, esse ritual, sob o crivo dos interesses do turismo

e das intervenções político-administrativas, bem como das ingerências impetradas pelas

indústrias culturais e pelo mercado de bens culturais, simboliza um evento de caráter

eminentemente turístico, que exige a formatação de enredos, atuações, figurinos, personagens

e cenários, para atender necessidades de consumo e obter sucesso mercadológico.

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Figura 6 – Baianas associadas ao candomblé.

Fonte: foto do autor, 2004.

Na Lavagem de São Sebastião, observa-se um enredo muito bem demarcado,

personagens devidamente caracterizadas em movimentos e falas roteirizadas, atuando num

cenário urbano adequado. Em frente à sede do Sindicato dos Estivadores (Figura 7),

momentos antes da saída do cortejo, turistas e homens travestidos de baiana (Figura 8)

aprendem e ensaiam, sob a tutela de algumas senhoras, as danças características da tradição

afro, ou seja, correspondente a uma tipificação da afro-descendência, como numa grande e

bem organizada articulação para uma encenação teatral que conta, ainda, com folder

promocional (Figura 9) e amplos investimentos em divulgação midiática, dos quais se destaca

a cobertura televisiva (Figura 10).

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Figura 7 – Atual fachada do Sindicato dos Estivadores de Ilhéus.

Fonte: foto do autor, 2004.

Figura 8 – Homens travestidos de baiana na Lavagem de São Sebastião.

Fonte: foto do autor, 2004.

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Figura 9 – Capa e interior de folder promocional das festas tradicionais de Ilhéus.

Fonte: NASCIMNETO, Aline S. de Brito.

Figura 10 – Presença da equipe de reportgem da TV Santa Cruz/Rede Bahia.

Fonte: foto do autor, 2004.

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A atuação das baianas, ou dos sujeitos vestidos de baiana, a presença dos trios

elétricos e a força da axé music, como representações do ethos baiano, provocam uma

sensação de se estar numa expressão viva de uma noção de Bahia-produto. Ainda que se

considere a criação dessa cerimônia um meio para revitalizar a homenagem ao patrono dos

estivadores ilheenses, pode-se dizer que as modificações que envolveram essa revitalização

acabaram por gerar uma espécie de artificialidade, de instrumentalização da estética e da

dinâmica desse ritual de Lavagem.

Para Debord (1997), o reinado da aparência, definidor da pós-modernidade, apresenta-

se como uma dimensão alienante do modus vivendi social. A essa condição de produção na

vida societal, que ele denomina sociedade do espetáculo, associa-se uma variedade de

mecanismos midiáticos de grande alcance, capazes de expor e promover espetáculos culturais

como sedutores produtos para o pronto consumo. Assim, pode-se considerar que a produção

espetacularizada da cultura tem no circuito da mídia a sua principal e, certamente, mais

eficiente vitrine. Em Ilhéus, ao se direcionar os holofotes comunicacionais para a baianidade,

o setor turístico condena a grapiunidade à escuridão, ao passo que institui cenários e

personagens, estéticas e espetáculos baiano-soteropolitanos em Ilhéus.

Desse modo, cabe afirmar que, no mostruário midiático em que se expõe e promove a

cerimônia da Lavagem das Escadarias da Catedral de São Sebastião, a avenida Dois de Julho,

a praça Dom Eduardo e, sobretudo, a Catedral (Figura 11) podem ser entendidos como peças

completares de um amplo cenário ao ar livre, ao passo que muitos participantes locais e

turistas se comportam como atores e coadjuvantes de um grande teatro de rua. Diante dos

emblemas criados ou reforçados para representar esse ritual de Lavagem frente ao universo

turístico, assiste-se um processo no qual reinam as imagens, as feições da baianidade, ao

tempo em que a grapiunidade é negligenciada, principalmente, por não apresentar o mesmo

poder e êxito comercial no mercado turístico baiano.

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Figura 11 – Catedral de São Sebastião em Ilhéus.

Fonte: foto do autor, 2005.

Segundo Debord (1997), sob todas as configurações particulares – comunicação,

propaganda ou utilização direta de mercadorias e serviços para satisfação de necessidades

humanas – o espetáculo constitui o modelo da vida dominante na sociedade atual. No mundo

contemporâneo ou pós-moderno, a imagem e os outros componentes do sentido da visão

representam uma espécie de musa sedutora ao passo que definem a marca da atualidade. No

caso da Lavagem de São Sebastião, não se deve, no entanto, desconsiderar a relevância dos

sons e da própria música com todos os elementos que lhe são peculiares. Afinal, na Bahia, as

múltiplas relações entre as composições musicais e imagéticas desenham-se, conjuntamente,

nos mais vaiados contextos ideológicos, sociais, culturais, artísticos e, sobretudo, estéticos.

Assim, considerando-se os sons como importantes componentes da imagem

representativa da baianidade, pode-se defender que tanto as qualidades racionais e lógicas

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quanto as espirituais, artísticas e emocionais interligam-se a fim de que se obtenha um tipo de

conhecimento no qual, segundo Morin (1981), a fração está no conjunto que está na fração e

que, por sua vez, poderia estar apta, em certo modo e em certa medida, a regenerar a

totalidade. O conhecimento acerca do universo musical e imagético da Bahia não consegue

separar as instâncias da escuta e da elocução musical daquelas pertinentes à visão e à

expressão imagética. As imagens baianas que se desligam de certos aspectos da realidade, em

especial a música, fundem-se num movimento compartilhado, em que a unidade do real não

pode ser restabelecida, mas apenas percebida.

Além disso, a partir das reflexões de Debord (1997), numa perspectiva crítica ao

espetáculo como reconstrução material e técnica da religiosidade, pode-se afirmar que quando

o tributo originário a São Sebastião foi substituído pelo ritual de Lavagem constituído a partir

de imagens da baianidade, estas imagens tornaram-se seres reais e motivações eficientes de

um comportamento espetacular quase hipnótico. A tendência ao endeusamento e, por

conseqüência, a uma fetichização da efígie baiana conduz a uma percepção de cortes, recortes

e afixações não apenas imagéticas, mas também rítmicas, musicais e movimentais capazes de

tramar uma espécie de sinfonia visual regida pelas convergências espetaculares da pós-

modernidade.

A Lavagem de São Sebastião, considerada parcialmente, desdobra-se na própria

unidade geral enquanto (pseudo)tributo à parte do objetivo originário de homenagear o santo e

constitui-se um objeto de exclusiva contemplação. Afinal, a atual especialização das imagens

acerca do ethos baiano encontra-se realizada num mundo de imagens autonomizadas. Em

geral, o espetáculo, como inversão concreta da vida cotidiana, simula o movimento autônomo

do não-vivo. Assim, o ritual de Lavagem ilheense não representa um conjunto de imagens,

mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens; não pode ser compreendido

apenas como o abuso de um mundo da visão e da audição, o produto das técnicas de difusão

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massiva de imagens e sons, pois significa uma mundividência e uma mundiaudiência tornadas

efetivas, material e sonoramente traduzidas, uma visão e uma audição do mundo baiano que

se objetivou.

Por outro lado, considerada em sua totalidade, a Lavagem de São Sebastião pode ser

entendida como um espetáculo resultado dos mecanismos de produção existentes. Desse

modo, a partir da perspectiva de Debord (1997), pode-se dizer que esse evento não se

constitui como o suplemento ou a decoração adicionada à realidade turística ilheense, mas

como o cerne de uma espécie de irrealidade apreciada pela sociedade real. Sob a configuração

de informação ou merchandising, propaganda ou “deglutição” direta de entretenimentos, a

Lavagem de São Sebastião harmoniza-se com o padrão da ordem social predominante e

configura-se como a afirmação de escolhas praticadas na produção cultural, uma proposição

do consumo.

Dentre as tendências contemporâneas de criação e exaltação do espetáculo, muitas

hipóteses explicativas já foram propostas pelos teóricos de Frankfurt, em especial, Adorno e

Horkheimer (1985). Para estes, as indústrias culturais exercem um papel determinante quanto

à concepção e promoção de espetáculos como produtos conformados pelas exigências

mercadológicas da pós-modernidade. Nesse sentido, pode-se dizer que o feitio e o teor da

Lavagem de São Sebastião representam a apologia quase absoluta dos pré-requisitos e das

finalidades dos sistemas de consumo e de produção existentes, sobretudo, no âmbito turístico.

Além disso, a realização dessa Lavagem ilheense todo mês de janeiro significa a presença

recorrente desta apologia como principal ocupação daqueles que, enquanto consumidores,

postam-se “dentro e distantes” dos atuais procedimentos de produção de bens simbólicos.

Sem dúvida, as sociedades que se alimentam das indústrias culturais não são casual ou

aparentemente espetaculares, são essencialmente espetaculares. Em Ilhéus, no caso particular

da Lavagem de São Sebastião, o espetáculo não quer chegar à outra coisa senão a si próprio.

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Pode-se dizer que certos comportamentos dos participantes dessa cerimônia ratificam o

caráter substancialmente tautológico do espetáculo, que decorre do fato de os meios para a

realização desse evento serem, ao mesmo tempo, a finalidade almejada. Nesse sentido, cabe

acrescentar que, embora se afirme que a Lavagem representaria um novo meio para se prestar

uma homenagem ao santo46, o que se evidencia são interesses mais comerciais e turísticos do

que tradicionais ou religiosos.

Como adorno imprescindível dos objetos de consumo turístico que são produzidos

atualmente na Bahia, como exposição geral da racionalidade do sistema consumista pós-

moderno ou como expressão de um dos setores mais avançados e importantes da economia

baiana que padroniza diretamente uma série crescente de manifestações-produto, a Lavagem

de São Sebastião representa uma produção espetacular da sociedade contemporânea. Nessa

direção, esse evento submete a si os turistas, na medida em que foram submetidos pelo desejo

de consumir produtos reconhecidos como baianos. Assim, pode-se afirmar que a realização

dessa celebração significa, em parte, um reflexo constante da necessidade de se produzir bens

simbólicos consumíveis a partir de um padrão de sucesso e, por conseguinte, um mecanismo

de objetivação dos produtores e participantes diretos e indiretos desse evento.

Entre a cerimônia originária em tributo a São Sebastião e a atual Lavagem de São

Sebastião observa-se a vitória das tendências contemporâneas de produção cultural, sobretudo

em âmbito turístico. Nas sociedades atuais, evidencia-se uma batalha constante entre tradições

e inovações. Essa luta representa o fundamento do desenvolvimento interno da cultura, que

parece não poder prosseguir senão por intermédio do triunfo persistente da inovação. No caso

da celebração nativa e da Lavagem em homenagem a São Sebastião, a novidade e a mudança

não foram trazidas por outro fenômeno a não ser o movimento histórico dos meios produtivos

de bens simbólicos e dos desdobramentos das tendências consumistas da atividade turística.

46 Segundo entrevista concedida pelo presidente do Sindicato dos Estivadores de Ilhéus, Emerson Tavares, ao Jornal Diário de Ilhéus (2004).

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Segundo Debord (1997), esse movimento tende à superação de pressupostos culturais;

caminha para a supressão de toda a separação entre passado, presente e futuro; marcha em

direção à construção e exaltação do passado-presente e do presente-futuro.

Nesse sentido, pode-se dizer que o consumo espetacular da Lavagem de São

Sebastião, que conserva congelado o objetivo nativo de homenagear o patrono dos estivadores

ilheenses, torna incomunicável a repetição recorrente e recuperada de determinadas

manifestações representativas locais. Por outro lado, a destruição extrema da comunicação de

certos componentes simbólicos pode encontrar-se reconhecida como um valor positivo pelo

setor turístico oficial, pois, em tese, essa não-comunicação apregoaria uma reconciliação entre

o tributo primitivo ao santo mártir e as conjunturas dominantes nas relações de consumo da

atualidade, nas quais a informação do que é originário, mas não-comercializável, tem sido

alegremente afastado e proclamado como ausente.

Para Debord (1997), a verdade crítica do afastamento e da ausência do originário nas

sociedades contemporâneas, como constituinte expressivo de manifestações culturais,

literárias e artísticas, encontra-se dissimulada. De acordo com esse ponto de vista, pode-se

dizer que essa dissimulação ocorre porque o espetáculo, que exerce a função de afastar para

um segundo plano a identidade histórica na produção cultural pós-moderna, aplica nas

(pseudo)novidades a própria estratégia que constitui em profundidade os meios pós-modernos

de produção de bens simbólicos. Desse modo, caberia reconhecer que o objetivo de

homenagear o santo padroeiro dos estivadores ilheenses parece assumir uma áurea de

novidade com o advento da Lavagem de São Sebastião que, como espetáculo, admite

contemplar uma manifestação popular baiana e ser contemplado como um evento turístico

reconhecido como expressão da baianidade.

Em síntese, pode-se afirmar que o desejo de homenagear o santo, antes satisfeito pela

celebração originária, acaba por ser redirecionado para o reconhecimento do valor que a

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Lavagem de São Sebastião assume como mercadoria turístico-cultural ilheense, tendo em

vista o processo de produção e consumo no qual está inserida. Assim, constata-se que as

práticas consumistas em torno desse evento-produto são auto-suficientes e representam a

demonstração e a efetivação evidentes de sensações, emoções e desejos pós-modernos bem

como da expansão fervorosa da liberdade soberana dos objetos de comércio na atualidade.

Em verdade, o entusiasmo para um dado produto, apoiado e realçado pelos principais

meios de comunicação, propaga-se em grande velocidade. Na Bahia, o apoio e os realces

recebidos pela narrativa identitária da baianidade e, em especial, pela noção de festa baiana

exprimem esse fenômeno. No caso da Lavagem de São Sebastião, por exemplo, o interesse de

prestar um tributo ao santo padroeiro, que parece não interessar ao consumo ou pelo menos

não representa certeza de êxito comercial, foi suplantado pela necessidade de expressão

espetacular dos componentes essenciais e característicos do ethos baiano, entendidos como

objetos de prestígio e de comprovado sucesso mercadológico.

4.3 Tributo a São Sebastião: um fenômeno de dessimbolização

O festejo originário em devoção ao santo padroeiro, realizado desde meados da

primeira década do século XX pelo Sindicato dos Estivadores do Porto de Ilhéus, acontecia

essencialmente como um compromisso de fé e devoção, como uma celebração de cunho

religioso acompanhado de festa profana e que ocupava lugar de destaque no calendário das

tradições ilheenses. Esse evento pode ser pensado, portanto, como elemento de amplo poder

simbólico, mas que no início não recebia investimentos significativos do setor turístico, como

ocorre na atualidade com a cerimônia de Lavagem das Escadarias da Catedral de São

Sebastião.

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Segundo Barbosa, as casas do comércio eram fechadas na data em que se realizava o

tributo a São Sebastião. Nesse dia dedicado ao santo dos estivadores, a sociedade ilheense se

organizava para participar da celebração que constituía um importante evento religioso, social

e político do município. Missa solene, alvorada e procissão compunham os festejos que

contavam com grandes manifestações devocionistas. No entanto, de todas as celebrações

significativas, uma merece destaque: tendo em vista o baixo preço do bacalhau, que era

subsidiado pelo governo, dezenas de pratos à base desse pescado eram servidos em praça

pública para tantos quantos desejassem. Essa prática, idealizada pelo Sr. Barreto, um dos

primeiros associados do Sindicato dos trabalhadores da estiva de Ilhéus, tornou-se tradição e

chegou a dar nome ao evento durante muitos anos.

Deve-se admitir determinadas perspectivas acerca da celebração originária em

homenagem a São Sebastião. Em primeiro plano, cabe aceitar que essa comemoração nativa

exercia o papel de satisfazer a certos imperativos sociais e a função de designar a

transmitância de ações, prazeres e/ou crendices. Além disso, não se pode deixar de pontuar

que esse tributo sempre esteve submetido a uma série de transformações conexas a

indigências temporais e circunstanciais. Negligenciar essas mudanças seria, no mínimo, uma

imprudência investigativa. No entanto, vale ressaltar que essas alterações não corrompiam o

objetivo primais de homenagear o santo patrono dos estivadores de Ilhéus.

De acordo com Heine, o festejo originário organizado e efetivado pela associação dos

trabalhadores da estiva ilheense realizava-se sempre no dia 20 de janeiro e era conhecido

como Festa do Bacalhau ou Festa dos Estivadores. Inicialmente, embora contasse com uma

limpeza do templo pelos estivadores e populares (Figura 12) para a realização da celebração

religiosa, essa festa não se estabelecia como um ritual de Lavagem afro-religiosa; antes,

constituía-se como uma forma de agradecer as graças alcançadas pelos estivadores em

momentos de dificuldade e de crise no passado. Essa comemoração era marcada, sobretudo,

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pela Bacalhoada de Barreto Estivador que se tornou tradicional e de portas abertas para tantos

quantos desejassem. Após o falecimento do referido estivador, os familiares, com o apoio dos

sindicalizados, procuraram, durantes alguns anos, manter a tradição.

Figura 12 – Limpeza interna da Catedral de São Sebastião por populares e devotos.

Fonte: CEDOC/UESC.

Para Barbosa, além de uma relevante tradição ilheense, pode-se entender a

homenagem originária a São Sebastião como uma elocução significativa da narrativa

identitária grapiúna. Nesse sentido, vale ratificar determinados ingredientes desse tributo

profano-religioso: as barracas de bebidas e comidas típicas da Região Cacaueira, como o licor

de jenipapo, a cachaça-doce e o bolo de aipim; as carroças ornamentadas com palhas de

bananeira e de coqueiro, puxadas por jumentos (Figura 13), animais usualmente empregados

nas roças de cacau de onde derivava a matéria-prima para a referida ornamentação.

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Figura 13 – As carroças e os devotos responsáveis pela limpeza da Catedral.

Fonte: CEDOC/UESC.

Segundo Tavares, a homenagem originária, organizada pelo Sindicato dos Estivadores

e pela Diocese de Ilhéus, representava um modo dos trabalhadores da estiva e de outros

devotos demonstrarem veneração e gratidão ao santo. Embora se configurasse como uma

celebração de cunho eminentemente religioso, contava com uma série de eventos profanos e

significativos da cultura local e regional. Desses acontecimentos representativos que ocorriam

durante todo o dia, um, no final da tarde, merece destaque por ser reconhecido como o ponto

alto de toda a celebração.

[...] a turubibita, a maior atração da festa, uma boneca fantasiada de palhaço, com uma perna de pau, manejada por alguém que se escondia sob sua saia comprida, braços abertos, bem alta, rebolando e percorrendo as ruas, acompanhada pelo povo e dando carreira nas crianças curvando-se sobre elas que corriam amedrontadas. Havia, também, a Vaquinha, que passava cantando: “Minha Vaquinha, vem dançar, pula a janela e vem passear” (VINHÁES, 2001, p. 317 – aspas do autor).

Essas personagens, a Turubibita e a Vaquinha, podem ser apontadas como destaques

por sintetizarem a dinâmica e a estética tradicionais das manifestações populares grapiúnas.

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Confeccionadas com retalhos de sacos de sisal47 e outros tecidos, elas dançavam e entoavam

cânticos48 capazes de descrever movimentos e ritmos característicos da história local e

regional. Além dessas figuras dramáticas, pode-se destacar as fanfarras constituídas por

instrumentos de sopro (Figura 14); a participação ativa e altiva dos coronéis e a presença dos

estivadores orgulhosos por trabalharem com o transporte do fruto de ouro e, desse modo,

contribuírem com o desenvolvimento da rica economia das Terras do Cacau.

Figura 14 – Fanfarras no tributo originário a São Sebastião.

Fonte: CEDOC/UESC.

Sem dúvida, esses componentes podem ser considerados instituições constitutivas do

discurso identitário da grapiunidade, que dão cor, sabor, corpo, movimento, ritmo e voz ao

tributo nativo ao santo padroeiro dos estivadores ilheenses. Originariamente, a realização

47 Contextura feita com a fibra têxtil extraída do agave, planta comum nas terras grapiúnas; esse tipo de tecido é empregado para confeccionar o invólucro usado para embalar e transportar as amêndoas secas de cacau. 48 Merece destaque as cantigas do repertorio popular e tradicional ilheense, que embalavam, segundo Vinháes (2001), o desfile de populares e de personagem pelas ruas e avenidas da cidade.

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periódica dessa homenagem apresentava um marcado objetivo cultural49. Tanto como tradição

fundada na meta de cumprir uma obrigação de fé ou desenvolver um evento social quanto

como manifestação inspirada no intuito de expressar o ser grapiúna, a comemoração

originária para homenagear São Sebastião era efetivada pelo Sindicato dos trabalhadores da

estiva de Ilhéus com o interesse primordial e prioritário de exprimir a cultura popular, traduzir

o patrimônio simbólico da população local.

No início, enquanto a celebração originária em homenagem ao santo patrono dos

estivadores ilheenses ficava a cargo exclusivo do Sindicato e não se encontrava submetida às

influências diretas e ostensivas do poder público, do setor turístico e/ou das indústrias

culturais, as mudanças sofridas não denotavam a transfiguração simbólica desse tributo. No

entanto, após a criação da Lavagem das Escadarias da Catedral de São Sebastião e a inserção

desse ritual no calendário de eventos turísticos do município, há aproximadamente dez anos,

certas estratégias exerceram ingerência notória e determinante na comemoração para

homenagear o santo padroeiro. Assim, considerando-se certas intervenções padronizantes,

pode-se dizer que esse ritual foi transformado num objeto a serviço do consumo.

Desse modo, deve-se reconhecer que, nos últimos anos, sob o crivo dos interesses do

turismo, das intervenções político-administrativas bem como das ingerências impetradas pelas

indústrias culturais, a partir do discurso da baianidade, concebeu-se sobre o tributo originário

a São Sebastião, uma cerimônia de Lavagem que pode ser entendida como um evento baiano

de caráter eminentemente turístico e festivo, religioso-profano, dir-se-ia pré-carnavalesco.

Além disso, pode-se afirmar que, embora seja divulgada como um procedimento da cultura

afro-brasileira e uma “nova forma” para se homenagear o santo, a Lavagem das Escadarias da

Catedral de São Sebastião ocorre como um episódio apócrifo, esteticamente pensado,

49 Considerando-se o conceito de cultura de Geertz (1978), entende-se objetivo cultural como o que interessa, tem validade abrangente e está em conformidade com o aparelho simbólico de representação típico de uma comunidade num dado espaço e tempo.

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produzido e promovido para servir como uma espécie de tradução estética e espetacular da

baianidade, a serviço do mercado e do consumo turístico-cultural.

Na atualidade, pode-se dizer que enquanto o tributo nativo sucumbiu à Lavagem, esta,

por sua vez, sucumbiu à festa de largo tipicamente soteropolitana. Na edição de 2004, as

baianas sequer conseguiram lavar as escadarias, impedidas pela invasão de “foliões” e pelo

jato d’água do caminhão-pipa (Figura 15), que ocupa a frente da Catedral de São Sebastião

(Figura 16). Em edições anteriores, o aparato quase pré-carnavalesco também se impunha,

assumia o lugar do santo como ponto de convergência da homenagem e ocupava o lugar das

baianas nas escadas da Catedral destinada ao santo, no momento da Lavagem (Figura 17).

Figura 15 – Fuga das baianas diante da participação de populares e turistas em 2004.

Fonte: foto do autor, 2004.

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Figura 16 – Caminhão-pipa em frente à Catedral de São Sebastião na Lavagem de 2004.

Fonte: foto do autor, 2004.

Figura 17 – Fuga das baianas diante da participaçaõ de populares e turistas no passado.

Fonte: CEDOC/UESC.

Em 2005, por conta da falta de investimentos do poder público e do setor turístico –

fato motivado pelas divergências políticas entre o presidente do Sindicato e o prefeito eleito –

o evento da Lavagem, sem trios elétricos ou bandas de axé music, não contou com a

participação da mídia e, por conseguinte, de turistas e do mesmo número de populares,

observado em edições anteriores. Esse fato pôde ser observado tanto no cortejo (Figura 18)

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quanto na chegada às escadarias da Catedral (Figura 19). O esvaziamento turístico percebido

em 2005 também contrasta com a presença massiva de devotos nas procissões (Figura 20) e

nas festas (Figura 21), ambas realizadas no tributo originário.

Figura 18 – Cortejo da Lavagem de São Sebastião em 2005.

Fonte: foto do autor, 2005.

Figura 19 – Lavagem de São Sebastião em 2005.

Fonte: foto do autor 2005.

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Figura 20 – Presença popular no cortejo realizado no tributo originário a São Sebastião.

Fonte: CEDOC/UESC.

Figura 21 – Participação popular na festa realizada no tributo originário a São Sebastião.

Fonte: CEDOC/UESC.

Na Lavagem de São Sebastião, as expressões estéticas e artísticas da baianidade,

tornadas independentes num produto espetacular, apresentam-se em cores resplandecentes,

sons atraentes e movimentos marcados; denotam que o tributo originário ao santo padroeiro

dos estivadores envelheceu e que a dinâmica consumista e produtiva da atualidade não o

permite rejuvenescer. A partir de uma certa noção de baianidade, a mesma sociedade que

suprimiu as distâncias geográficas para instituir uma Bahia homogênea e consensual recolhe

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interiormente o apartamento espacial como uma espécie de separação simbólica, estética e

espetacular de juízos, sentimentos e realizações.

Inspirando-se nas reflexões de Coelho Netto (1999) acerca do processo de

dessimbolização, pode-se dizer que o nexo coesivo entre a forma como se ajuíza, se sente e se

realiza a Lavagem das Escadarias da Catedral de São Sebastião, na atualidade, não se

manifestar como tributo ao santo mártir, mas como manifestação da folia baiana. A ocorrência

dessa cisão desarmônica fica flagrante a partir da verificação de um estratagema relacionado a

um articulado conjunto de idéias próprias de um grupo, de uma época, e que traduzem uma

situação histórica, como uma insígnia determinante que merece confiança e, portanto,

reafirma e referenda a dinâmica de produção desse evento.

A tradução e a propagação estéticas da baianidade, no plano de uma cultura

espetacularizada, compõem o mesmo projeto de uma reestruturação de manifestações

populares em mercadorias para serem comercializadas na atividade turística, sem que se

respeite a ingerência direta dos objetivos originários das comunidades que as produzem. O

valor de consumo do tributo originário ao santo patrono dos estivadores ilheenses, que estava

apenas implícita e parcialmente compreendido, passou a ser explicitamente proclamado pela

Lavagem de São Sebastião que, por meio de uma economia mercantil superdesenvolvida,

promoveu a separação efetiva entre o objetivo nativo da celebração primitiva e a

comemoração realizada na atualidade.

Não se pode, portanto, caracterizar essa ocorrência como um fenômeno de re-

significação, ao passo que, em lugar de apenas atribuir um novo significado ao tributo nativo

ao santo mártir, o ritual de Lavagem, concebido a partir de estéticas e símbolos

soteropolitanos, teatraliza e satura a trama da homenagem originária, destrói o significado

originário e original dessa tradição, em suma, afasta, multilateralmente, sentidos, sentimentos,

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juízos e ações acerca desse evento. A exaltação da imagem baiana leva a uma

dessimbolização que tem como conseqüência o adoecer da cultura.

Segundo a guia turística Nascimento, a baiana D. Hilda e o historiador Barbosa, como a Lavagem

acontece em janeiro e antecede a festa de carnaval do município, as presenças dos trios elétricos e das

bandas de axé são importantes para atrair turistas. Ainda nessa perspectiva, o presidente do Sindicato

dos Estivadores também admite a relevância da participação da Secretaria de Turismo, no sentido de

promover turisticamente a festa. Por outro lado, com a criação da Lavagem e todas as interferências

estéticas e espetaculares sofridas, sobretudo na padronização do festejo de largo a partir de um modelo

soteropolitano, os depoentes são unânimes em reconhecer que o tributo ao santo foi afastado da

sociedade.

Com base nas reflexões de Coelho Netto (1999), pode-se afirmar que esse afastamento

expressa uma tendência da conjuntura contemporânea e da práxis consumidora da pós-

modernidade. Assim, pode-se dizer que a prática de consumo de imagens-mercadoria e de

espetáculos-produto, perante a qual se coloca a Lavagem de São Sebastião, representa uma

convergência do universo turístico contemporâneo e expressa uma cisão entre o objetivo de se

prestar um tributo ao santo mártir e celebração da Lavagem. Nesse evento ilheense, consome-

se uma festa baiana que se vê e não um tributo que se afirma produzir. Tanto os padrões

estéticos quanto os espetáculos inspirados no discurso da baianidade promovem a mutilação

da totalidade dessa celebração a ponto de se fazer perceber que as aparências são finalidades

auto-suficientes e auto-afirmativas do processo de produção capitalista da cultura.

Nesse sentido, pode-se afirmar, com base no depoimento de Heine, que a celebração

originária era auto-justificante por ser realizado para as pessoas homenagearem o santo

patrono dos estivadores e contava com a participação das pessoas que comungavam desse

objetivo. Na atualidade, a Lavagem de São Sebastião se auto-justifica por ser destinado ao

consumo turístico e procurar aparentar um acontecimento tipicamente baiano: configura-se

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como um evento que despreza certos componentes relevantes da tradição local. Ratificando

esse ponto de vista, Arléo Barbosa defende que, atualmente, diferente do que ocorria nos

primórdios dos festejos, a participação popular não se destina ao tributo, mas à festa profana e

à atividade turística.

Enfim, reúnem-se elementos suficientes para afirmar que o valor simbólico da

celebração originária a São Sebastião, como componente capaz de representar um

constrangimento à lógica totalitária da produção desenfreada e da circulação turístico-

comercial da cultura, foi afastado pelos interesses das indústrias e do mercado de bens

culturais. Na Lavagem de São Sebastião, a racionalidade que rejeita qualquer outro tipo de

pressuposto social que possa constituir um entrave para a mercantilização da cultura impõe

aquilo que se pode caracterizar como dessimbolização, ou seja, o aniquilamento de valores

culturais e de legados religiosos e sociais, desenvolvidos pela sociedade ilheense, em especial,

pelos estivadores.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O tempo em que a cultura era considerada inegociável e as tradições inabaláveis,

constitui um passado longínquo e quase não-saudoso. Com o advento das indústrias culturais

e do mercado de bens simbólicos, além dos produtos materiais, os artefatos imateriais também

passaram a ser vistos como mercadoria. Nesse sentido, faz-se verdade comum para aqueles

que compreendem os mecanismos pós-modernos da comercialização e do consumo que, para

um produto ser vendido, é necessário antes de tudo tornar-se atraente ao consumidor. Com a

cultura, essa máxima mercadológica não é diferente. Na atualidade, constata-se a ampla

manipulação do patrimônio cultural para que se torne consumível.

Esse manuseio pode ser considerado facilmente realizável quando a cultura é

submetida a padrões estéticos de mercado e transformada em atraentes espetáculos. Em

Ilhéus, a Lavagem das Escadarias da Catedral de São Sebastião representa um bom exemplo

desse fenômeno. Nas últimas edições desse evento, observa-se a obediência aos padrões

estéticos e espetaculares da baianidade que pode ser entendida como um discurso identitário

de amplo poder de fascínio, um objeto de desejo dos consumidores turísticos. O custo dessa

subordinação está no fato de a indústria cultural e o mercado de bens simbólicos, ambos

inseridos e a serviço da atividade turística, serem capazes de promover e destruir sensações e

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entendimentos, numa rotatividade de produtos e padronizações para que o mercado sempre

possa apresentar uma nova e mais cintilante mercadoria ao consumidor.

Quando a cultura passa a ser uma simples mercadoria para a indústria cultural e para o

mercado turístico, coloca-se em risco o que poderia ser considerado o mais nuclear na

experiência da cultura, sobretudo da cultura popular. Por meio da manipulação e da

padronização da produção de bens culturais, pode-se saciar o consumidor pós-moderno que

exige produtos manipulados e padronizados, capazes de satisfazer o consumo de estéticas e

espetáculos cobiçados e mercantilizados. Além disso, cabe reconhecer que o desejo e os

conseqüentes comércios e consumos de representações culturais, podem conduzir à pronta

aceitação de qualquer material cultural que contemple os anseios de usufruto de produtos

satisfatórios às necessidades consumistas, ainda que negligenciem o que há de originário e

original na cultura realizada.

Assim, pode-se dizer que, quando o evento da Lavagem das Escadarias da Catedral de

São Sebastião se impôs como um produto turístico configurado num belo espetáculo de

baianidade, a essência primordial da homenagem ao santo adoeceu e pereceu. Vale salientar

que não apenas o objetivo originário de prestar um tributo ao santo sofreu esse processo de

doença e morte; a própria Lavagem como produto turístico desenvolveu uma espécie de

câncer das essências e parece condenada a falecer acometida por um mal ainda mais grave: a

falta de sentido. Por algum tempo, a baianidade, impressa estética e espetacularmente na

Lavagem de São Sebastião, atraiu turistas que desejavam conhecer uma “Ilhéus baiana”, mas

afastou os ilheenses que constituíam e realizavam a grapiunidade. Nesse afastamento, ao se

deparar com a estética e o espetáculo baianos, o turista encontrou um evento mais artístico ou

teatral e menos baiano ou grapiúna.

Apesar disso, tendo em vista o emprego de estratégias mercadológicas, estéticas e

espetaculares para a aceitação e comercialização dessa Lavagem, deve-se reconhecer a grande

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estima dos “turistas consumidores de cultura baiana” por essa modalidade de evento. No

entanto, observa-se que enquanto a celebração nativa em tributo ao patrono dos estivadores

ilheenses parece haver perdido o valor de instrumento de crítica, expressão e conhecimento da

cultura, a Lavagem das Escadarias da Catedral de São Sebastião, por sua vez, tornou-se uma

mera mercadoria turística. Esses fenômenos tornaram superficiais os olhares, os juízos e os

sentimentos tanto daqueles que consomem quanto dos que produzem esse evento ilheense, o

que denota um processo de dessimbolização.

Com a Lavagem de São Sebastião, constata-se o desenvolvimento de um processo

capaz de fazer cair em esquecimento o objetivo de homenagear o padroeiro dos estivadores,

perdendo-se toda uma gama de aspectos individualizantes do tributo originário. Na atualidade,

embora ocorra em diferentes tempos e em diferentes espaços e não apresente a mesma estética

e os mesmos movimentos, a Lavagem de São Sebastião procura aproximar-se estética e

espetacularmente da noção de festa baiano-soteropolitana. Nessa conjuntura, os turistas e a

população local permanecem suscetíveis a almejar tais configurações, a partir dos sonhos e

dos valores promovidos e comercializados pelo setor turístico. Passa-se a aceitar qualquer

manifestação que se configure como uma imagem representativa e/ou um espetáculo

reprodutor de uma acepção de Bahia amplamente propagada e que, além de expressar o

discurso da baianidade, exerce controle e liderança pelo comprovado sucesso comercial

alcançado no setor turístico.

No entanto, a necessidade de se consumir uma noção de Bahia imposta pelas

tendências de consumo pós-modernas não deveria ser oposta a nenhuma necessidade ou

desejo que não sejam modelados pelo patrimônio cultural ilheense. Em contrapartida, a

produção de mercadorias apresenta-se como a ruptura absoluta de um desenvolvimento

orgânico das necessidades sociais. A acumulação mecânica dos meios produtivos

padronizados de bens culturais consumíveis tem a capacidade de libertar um artificial

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ilimitado, perante o qual o desejo pode ser conduzido, formatado. A potência cumulativa

dessa artificialidade, que depende apenas das ingerências das indústrias e dos mercados

culturais, sobretudo em âmbito turístico, acarreta a exaltação da cultura mercantilizada e um

conseqüente falseamento da cultura vivenciada.

Com a Lavagem das Escadarias da Catedral de São Sebastião, o licor de frutas

regionais e a típica cachaça-doce foram substituídos pelas latinhas da cervejaria patrocinadora

do evento; os pratos da culinária local cederam lugar ao acarajé; a Turubibita e a Vaquinha

saem de cena para a atuação dos sujeitos fantasiados de baiana; o sisal é trocado pela chita

branca e pelas rendas; os cânticos da tradição grapiúna se calam frente ao poder da axé music;

o andor do santo é esquecido diante de uma espécie de andor-carnavalesco: o trio elétrico.

Além disso, saem os estivadores e os devotos, entram os turistas e os foliões; substitui-se a

celebração em homenagem a São Sebastião por um tributo à festa de largo soteropolitana;

permuta-se uma manifestação originária e original por um produto turístico e comercial. Em

suma, negligencia-se a grapiunidade em nome da baianidade.

Subproduto da circulação das mercadorias culturais, o turismo, considerado uma

modalidade da circulação humana pelo consumo, reduz-se fundamentalmente ao

entretenimento de observar o prosaico ou mesmo participar do que se tornou de certo modo

banal, mas que se reconhece como desejável e desejado. Nesse sentido, a ordenação

econômica presente na visitação de lugares diferentes representa a garantia da auto-

equivalência dessa atividade que dispensa certos pressupostos temporais e espaciais:

freqüenta-se o passado no presente, percorre-se um lugar em outro. Noutras palavras, caberia

afirmar que a mesma modernização que separou a viagem de determinadas implicações do

tempo separou-a também da realidade do espaço.

Na imagem da unificação

feliz de tempos e espaços pelo

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consumo, a divisão real está

apenas suspensa até à próxima

não-completa realização no

consumível. Cada produto

particular que deve representar a

esperança de um atalho fulgurante

para iluminar, enfim, a terra

prometida pelo consumo total, tem

sido apresentado

cerimoniosamente como a

singularidade decisiva. No caso da

Lavagem de São Sebastião,

conformada estética e

espetacularmente a partir de uma

noção identitária de Bahia,

observa-se que, enquanto evento

turístico, essa celebração será

consumida por todos quantos

estiverem interessados e

disponham das condições

econômicas e sociais necessárias

para o consumo do que é ou parece

ser a expressão do ser baiano: um

produto do qual se espera um

poder singular, pois se acredita não

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poder ser produzido por qualquer

tempo ou lugar, além de não se

apresentar exposto à devoção e

contemplação gratuita de todos.

Além disso, pode-se dizer

que o caráter prestigioso da

Lavagem das Escadarias da

Catedral de São Sebastião deve-se

também ao fato de ter sido

colocado, num momento

adequado, no centro dos desejos de

consumo, como um mistério

revelado da produção de bens

culturais a serviço da atividade

turística. No entanto, esse evento,

que apresenta um prestígio

reconhecido na estética e no

espetáculo da baianidade, pode

tornar-se vulgar50 no instante em

que perde certos sentidos

singularizantes e se apresenta

como o produto de qualquer lugar

e de qualquer tempo. Nesse caso,

essa celebração revelaria uma

50 Entendido aqui como relativo ou pertencente ao vulgo: comum, ordinário, trivial, usual, ordinário.

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espécie de falência substancial

promovida pela miséria imposta

pelos processos padronizantes de

produção. Desse modo, o turista

passa a ter como oferta de objeto

de consumo um produto que traz

uma ineficiente justificação do

sistema cultural e uma incoerente

exigência comercial: ser

reconhecido não pelo que tem de

diferente, mas pelo que apresenta

de igual ou equivalente.

Sob as diversões cambiantes apresentadas a partir dos modelos estéticos e dos

espetáculos comercializáveis e consumíveis na atividade turística, o movimento de

banalização da cultura predomina em cada uma das localidades nas quais as práticas de

consumo de mercadorias culturais definiram e multiplicaram, na aparência e na produção, as

mercadorias simbólicas a escolher. Na Bahia, por exemplo, a narrativa da baianidade, mesmo

representado apenas uma expressão identitária soteropolitana, configurou-se como a vedete do

turismo baiano. Por conta disso, essa elocução tem sido empregada como modelo estético e

espetacular para a definição e multiplicação de manifestações culturais em outras regiões

inseridas no mapa do consumo turístico do Estado.

Desse modo, pode-se afirmar que, ao optar pela Lavagem das Escadarias da Catedral

de São Sebastião, o turista opta, na verdade, por uma versão das manifestações tipicamente

baianas, produzida e pensada para satisfazer os admiradores da baianidade, esta pensada a

partir dos padrões engendrados, cultivados e consolidados no sub-universo de Salvador e do

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Recôncavo. Essa escolha pela estética e espetáculo baianos se alimenta na justaposição de

imagens identitárias ao mesmo tempo exclusivas, concorrenciais e solidárias. Nessa

conjuntura de exclusividades, competitividades e imbricações, desenvolve-se uma

pseudobatalha entre qualidades particularizantes destinadas a seduzir e apaixonar o

consumidor-turista. Assim, com o enfraquecimento das aposições regionalistas ou locais,

grapiúnas ou ilheenses, fortalece-se uma categoria especial de unidade encarregada de

transfigurar em superioridade ontológica a posição hierárquica das imagens identitárias

soteropolitanas estabelecidas no universo do consumo turístico baiano.

Na atualidade, a crítica e a reflexão sobre a cultura, bem como a participação nas

decisões político-culturais, cederam lugar à mera estetização e espetacularização: aquilo que

se produzia como bem simbólico parece querer transformar-se em mercadoria estética e

espetacularmente conformada e sedutora. Por outro lado, deve-se reconhecer que as novas

formas de controle do desejo consumidor não se dão por coação, mas por sedução. Em Ilhéus,

o consumo da Lavagem das Escadarias da Catedral de São Sebastião deve-se, em grande

parte, à utilização de estratégias de produção e das mais diferentes performances midiáticas

num bem elaborado processo de encanto desenvolvido a partir da obediência a modelos e

imagens representativos da baianidade.

No mundo das aparências e na sociedade dos espetáculos, a cultura está diante da

ameaça de ser produzida com a finalidade quase exclusiva de se apresentar como imagens e

espetáculos favoráveis ao consumo pós-moderno. Nesse sentido, pode-se especular a respeito

do fim da cultura em decorrência da estetização e da espetacularização: procedimentos com o

poder de fazer os patrimônios culturais cederem lugar às prerrogativas da padronização, às

estratégias de marketing e veiculação de performances midiáticas. Afinal, a demanda por

determinados produtos e/ou serviços turísticos tende, de forma crescente, a ser diretamente

proporcional aos investimentos que de alguma forma sejam capazes de garantir ganhos e

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benefícios econômicos. Nessa direção, não se pode negar que a produção, a mercantilização e

o consumo culturais necessitam assumir certa responsabilidade social.

No entanto, não se consegue escapar facilmente da voracidade das tendências

modernas de consumo, porquanto toda a cultura parece tornar-se replicante. Nas sociedades

em que imperam a indústria e o mercado culturais, tudo – inclusive a responsabilidade social

– se torna negócio e, por conseguinte, seus fins comerciais são realizados por meio de

sistemática e programada exploração de bens considerados culturais. Em Ilhéus, o que antes

era um compromisso de fé com o santo patrono dos estivadores transformou-se, com o

advento da Lavagem das Escadarias da Catedral de São Sebastião, em um meio eficaz de

manipulação dos desejos de consumo.

Desse modo, pode-se dizer que as indústrias e o comércio de bens simbólicos trazem

consigo todos os elementos característicos do mundo pós-moderno e, na Bahia, exercem um

papel específico, qual seja, o de promotora da ideologia dominante pautada na narrativa da

baianidade, a qual pretende, mas nem sempre consegue, outorgar sentido a outros sistemas

culturais. Esse tipo de dominação tem sua mola motora no desejo de posse constantemente

renovado e sabiamente controlado. De acordo com essa perspectiva, o fim possível para essa

autoridade encontra-se na limitação de ação dos sistemas de produção e consumo culturais e

na libertação dos padrões estéticos e das conformações espetaculares, o que, em decorrência,

evitaria o processo de dessimbolização nas denominadas culturas dominadas.

Numa perspectiva utópica, mas racionalizada, pode-se afirmar que a antítese mais

viável do universo do consumo, no qual se configuram o mundo das aparências e a sociedade

dos espetáculos, seria a libertação da arte pela cultura e da cultura pela arte. Enquanto para a

indústria e o mercado de bens simbólicos, a cultura não passa de mercadoria para o consumo;

para a livre expressão artístico-cultural, representa uma entidade existencial viva. Nesse

sentido, uma redefinição dos discursos midiáticos e da atuação política e econômica no setor

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cultural, artístico e turístico – tão abrangentes e poderosos, porque legitimados socialmente –

poderia trazer inestimáveis contribuições à formulação da cultura baiana, sobretudo no

interior do Estado.

Por fim, a partir de uma espécie de antropofagia cultural51, pode-se defender a

inevitabilidade do processo de associação de aspectos e valores da cultura soteropolitana às

expressões culturais ilheenses, mas sem perder de vista a valorização do patrimônio simbólico

da cidade, da grapiunidade. Desse modo, o conjunto complexo dos códigos e padrões que

regulam a ação humana individual e coletiva, como patrimônio próprio e distintivo de Ilhéus e

da Região Grapiúna, não estaria submetido ao imperialismo cultural e turístico de Salvador a

partir da baianidade, mas sim re-elaborado. Acredita-se, portanto, que essa perspectiva

poderia viabilizar uma vitalidade singular de manifestações da cultura local em um contexto

tão massificado, até porque não se pode apenas impedir o acesso a culturas estranhas ou

superficiais, mas observá-las e tentar assimilar aspectos percebidos como positivos sem

adoecer ou destruir expressões de menor poder no mundo do consumo pelo consumo.

51 Expressão inspirada na prática dos povos canibais que matavam e comiam os inimigos para adquirirem as qualidades dos mortos.

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DEPOIMENTOS CONCEDIDOS

TAVARES, E. Emerson Tavares. Presidente do Sindicato dos Estivadores de Ilhéus: depoimento [24 jan. 2005]. Entrevistador: Adailson Henrique Miranda de Oliveira. Ilhéus: Sindicato dos Estivadores de Ilhéus, 2005. Depoimento informal concedido ao Mestrado em Cultura & Turismo, UESC/UFBA.

HEINE, M. L. F. Maria Luiza F. Heine. Ex-presidente da Fundação Cultural de Ilhéus: depoimento [28 jan. 2004]. Entrevistador: Adailson Henrique Miranda de Oliveira. Ilhéus: Residência, 2004. Depoimento escrito concedido ao Mestrado em Cultura & Turismo, UESC/UFBA.

BARBOSA, C. R. A. Carlos Roberto Arléo Barbosa. Professor de História Regional da UESC: depoimento [16 fev. 2005]. Entrevistador: Adailson Henrique Miranda de Oliveira. Ilhéus: Colégio e Curso Fênix, 2005. Depoimento escrito concedido ao Mestrado em Cultura & Turismo, UESC/UFBA.

NASCIMENTO, E. M. Emília M. Nascimento. Guia de Turismo de Ilhéus: depoimento [26 jan. 2004]. Entrevistador: Adailson Henrique Miranda de Oliveira. Ilhéus: Colégio e Curso Fênix, 2004. Depoimento informal concedido ao Mestrado em Cultura & Turismo, UESC/UFBA.

HILDA. Dona Hilda. Baiana participante da Lavagem das Escadarias da Catedral de São Sebastião: depoimento [18 jan. 2004]. Entrevistador: Adailson Henrique Miranda de Oliveira. Ilhéus: Praça Dom Eduardo, 2004. Depoimento informal concedido ao Mestrado em Cultura & Turismo, UESC/UFBA.

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APÊNDICES

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Roteiro de questionamento ao presidente do Sindicato dos Estivadores do Porto de Ilhéus (24/01/2005)∗∗∗∗.

1. Qual o nome completo e a idade do senhor?

2. Há quantos anos o senhor mora em Ilhéus? E há quantos anos é presidente do Sindicato?

3. O senhor considera tradições ilheenses a cerimônia originária em homenagem à São Sebastião e a atual Lavagem das Escadarias da Catedral de São Sebastião bem como a festa de rua que ocorre antes, durante e depois da Lavagem? Por quê?

4. Nos últimos anos, a Lavagem tem contado com uma festa animada por um trio elétrico e algumas bandas de axé music e pagode baiano. Há quanto tempo essa festa ocorre desse modo? A festa com trios e bandas pode ser considerada uma nova tradição? Por quê?

5. Para que a Festa-Lavagem das Escadarias da Catedral de São Sebastião conte com trios e bandas há alguma participação do poder público, da Secretaria de Turismo Municipal? Como o senhor entende e avalia a presença dos trios e das bandas de axé music e de pagode? Por quê?

6. A participação da Secretaria de Turismo e a divulgação por panfletos, pela Internet, pela televisão e emissoras de rádio têm influência na atração de turistas. O senhor acredita que esse fato influenciou de modo decisivo as mudanças que a Lavagem e a festa sofreram?

7. Comparadas com as do ano de 2004, a Lavagem e a festa de 2005 contaram com menor participação popular, turística e televisiva. O senhor acredita que essa diferença se deve a uma menor participação da nova Secretaria de Turismo Municipal? Por quê?

8. As baianas participam voluntariamente da Lavagem ou são estimuladas de algum modo? Sempre foi assim? Homens fantasiados de baiana também podem participar? Por quê?

9. Nos dois últimos anos (2004 e 2005), as baianas não conseguiram lavar as escadarias por conta da interferência do “caminhão-pipa”, do trio elétrico e, por conseguinte, da presença de populares e turistas nas escadas da Catedral. Como o senhor entende esse fato?

10. As bonecas Turubibita e Vaquinha, consideradas pontos altos da celebração originária, não participaram das Lavagens de 2004 e 2005? Há quanto tempo essas figuras foram retiradas da Lavagem das Escadarias da Catedral de São Sebastião? Por quê?

11. A “Bacalhoada de Barreto” ainda é realizada como antes? Caso tenha sido modificada, em que aspecto mudou? Por quê?

12. Para o senhor, o que mudou mais, o ritual da Lavagem das Escadarias da Catedral de São Sebastião ou a festa realizada antes, durante e depois da Lavagem? Com essas mudanças, houve algum prejuízo? Para quem? Qual seria esse prejuízo? Por quê?

13. No início, a celebração em homenagem a São Sebastião constituía uma cerimônia religiosa motivada por uma promessa dos estivadores e pela devoção ao Santo. Atualmente, como a Lavagem pode ser entendida (evento cultural, religioso, comercial, turístico)? Por quê?

14. Diante das mudanças sofridas pela Lavagem das Escadarias da Catedral de São Sebastião, o senhor acredita que hoje os ilheenses sentem, entendem e se comportam como se ela representasse um tributo ao santo patrono? No passado, era diferente? Por quê?

15. O senhor gostaria de acrescentar algum comentário?

∗ Nem todas as perguntas foram respondidas. Além disso, a entrevista formal gravada e/ou escrita não pôde ser realizada, pois o entrevistado declarou não dispor de tempo.

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Roteiro de questionamento à ex-presidente da Fundação Cultural de Ilhéus (28/01/2004).

1. Qual o nome completo e a idade da senhora?

2. Há quantos anos mora em Ilhéus? Durante quantos anos a senhora esteve à frente da Fundação Cultural de Ilhéus?

3. A senhora considera tradições ilheenses a Lavagem das Escadarias da Catedral de São Sebastião e a festa de rua que ocorre antes, durante e depois da Lavagem? Por quê?

4. Nos últimos anos, a festa de rua que ocorre antes, durante e depois da Lavagem das Escadarias da Catedral de São Sebastião conta com a participação de turistas, homens fantasiados de baianas, trios elétricos e bandas de axé music. A senhora considera essa “novidade” uma nova tradição? Por quê?

5. A senhora acredita que essa “novidade” interferiu na realização da Lavagem? Como? Por quê?

6. Atualmente, as tradicionais figuras da boneca Turubibita e Vaquinha não compõem o evento da Lavagem. Além disso, a “Bacalhoada de Barreto”, considerada ponto alto da celebração, não tem sido realizada como no passado. Como a senhora entende essas mudanças?

7. Nos dois últimos anos (2004 e 2005), as baianas não conseguiram lavar as escadarias por conta da interferência do “caminhão-pipa”, do trio elétrico e, por conseguinte, da presença de populares e turistas nas escadas da Catedral. Como a senhora entende esse fato?

8. No início, a celebração em homenagem a São Sebastião constituía uma cerimônia religiosa motivada por uma promessa dos estivadores e pela devoção ao Santo. Atualmente, como a Lavagem pode ser entendida (evento cultural, religioso, comercial, turístico)? Por quê?

9. A participação da Secretaria de Turismo e a divulgação por panfletos, pela Internet, pela televisão e pelas emissoras de rádio têm influência na atração de turistas. A senhora acredita que isso influenciou de modo decisivo nas mudanças que a Lavagem e a festa sofreram?

10. Para a senhora, o que mudou mais, o ritual da Lavagem das Escadarias da Catedral de São Sebastião ou a festa realizada antes, durante e depois da Lavagem? Com essas mudanças, houve algum prejuízo? Para quem? Qual seria esse prejuízo? Por quê?

11. Diante das mudanças sofridas pela Lavagem das Escadarias da Catedral de São Sebastião,

a senhora acredita que hoje os ilheenses respeitam, sentem, entendem e se comportam na Lavagem como se ela pertencesse a eles? No passado era diferente? Por quê?

12. A senhora gostaria de acrescentar algum comentário?

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Roteiro de questionamento ao professor de história regional, da Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC (16/02/2005).

1. Qual o nome completo e a idade do senhor? Há quantos anos mora em Ilhéus?

2. A Festa de São Sebastião ocorre desde a década de sessenta e era conhecida como “Festa do Bacalhau” ou “Festa dos Estivadores”. O senhor considera essa celebração originária uma tradição ilheense? Por quê?

3. A festa originária em tributo ao santo padroeiro dos estivadores foi substituída pela Lavagem das Escadarias da Catedral de São Sebastião há cerca de trinta anos. O senhor considera essa celebração de lavagem uma tradição ilheense? Por quê?

4. Na origem, a Festa de São Sebastião, organizada pelo Sindicato dos Estivadores, tinha motivação notadamente religiosa. Embora fosse também profana, essa celebração era realizada como compromisso de fé. Com o advento da lavagem, a celebração passou a contar com a promoção da Secretaria de Turismo e com uma nuance pré-carnavalesca nos moldes soteropolitanos. Como o senhor entende essas mudanças?

5. A participação da Secretaria de Turismo e a divulgação por panfletos, pela Internet, pela televisão e pelas rádios atraem turistas para a Lavagem das Escadarias da Catedral de São Sebastião. O senhor acredita que essas ingerências interferem na concepção e na realização da celebração em homenagem ao santo patrono? Como? Por quê?

6. Na edição de 2004, o jato d’água do caminhão-pipa, a presença de homens fantasiados de baianas e de populares que ocuparam as escadarias da catedral ao som do trio elétrico impediu a realização da cerimônia. Em 2005, questões políticas afastaram o Sindicato dos Estivadores da Secretaria de Turismo que não participou da realização do evento. Nesse ano, a festa contou com uma pequena participação popular: apenas alguns curiosos e poucas baianas participaram. Como o senhor entende esses fatos?

7. Para o senhor, a atual Lavagem das Escadarias da Catedral de São Sebastião pode ser caracterizada como um fato cultural, uma cerimônia religiosa e/ou um espetáculo comercial e turístico? Por quê?

8. No passado, além da participação dos estivadores que demarcava a Festa de São Sebastião, a participação dos ilheenses era determinante. O senhor acredita que os ilheenses respeitam, sentem, entendem e se comportam na Lavagem das Escadarias da Catedral de São Sebastião, nos moldes em que se apresenta hoje, como se ela pertencesse a eles? Por quê?

9. O senhor gostaria de acrescentar algum comentário?

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Roteiro de questionamento aos guias turísticos presentes às edições 2004 e 2005 da Lavagem das Escadarias da Catedral de São Sebastião∗∗∗∗ (26/01/2004).

1. Qual o nome completo e a idade da senhora? Há quantos anos mora em Ilhéus e há quanto

tempo atua como guia turístico no município de Ilhéus?

2. No início, a celebração em tributo a São Sebastião constituía uma cerimônia religiosa motivada por uma promessa dos estivadores e pela devoção ao Santo. Mais tarde, essa celebração foi substituída pela Lavagem das Escadarias da Catedral de São Sebastião. Atualmente, como a senhora entende esse ritual de lavagem (evento cultural, religioso, comercial, turístico)? Por quê?

3. A participação da Secretaria de Turismo e a divulgação por panfletos, pela Internet, pela televisão e pelas emissoras de rádio têm influência na atração de turistas. A senhora acredita que isso influenciou de modo decisivo nas mudanças ocorridas no tributo a São Sebastião?

4. Nos últimos anos, a festa de rua que ocorre antes, durante e depois da Lavagem das Escadarias da Catedral de São Sebastião conta com a participação de turistas, baianas, homens fantasiados de baiana e bandas de axé music, de pagode e trios elétricos. A senhora considera essas “novidades” uma nova tradição? Por quê?

5. Nos dois últimos anos (2004 e 2005), as baianas não conseguiram lavar as escadarias por conta da interferência do “caminhão-pipa”, do trio elétrico e, por conseguinte, da presença de populares e turistas nas escadarias da Catedral. Como a senhora entende esse fato?

6. O que mudou mais, a Lavagem ou a festa de rua que a norteia? Com as mudanças sofridas pela Lavagem das Escadarias da Catedral de São Sebastião e pela festa de rua realizada no mesmo período, houve algum prejuízo e/ou lucro? Para quem? Qual seria esse prejuízo e/ou lucro? Por quê?

7. Na Lavagem e na festa de largo, os turistas identificam esses eventos como característico de Ilhéus ou da Bahia? Para a senhora, a que se deve essa percepção?

8. Diante das mudanças sofridas na comemoração realizada pelos estivadores em homenagem a São Sebastião, a senhora acredita que hoje os ilheenses respeitam, sentem, entendem e se comportam na Lavagem como se ela representasse um tributo ao santo? Por quê?

9. A senhora gostaria de acrescentar algum comentário?

∗ Todos os guias presentes no evento foram considerados, mas apenas uma, em 2004, aceitou responder informalmente às questões propostas. Muitos alegaram que por falta de tempo, por não terem conhecimento aprofundado, por impedimento profissional ou por razões de ordem pessoal, não poderiam ou não estavam dispostos a responder.

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Roteiro de questionamento às baianas (ou sujeitos fantasiados de baiana) presentes às edições 2004 e 2005 da Lavagem das Escadarias da Catedral de São Sebastião∗∗∗∗ (18/01/2004).

1. Qual o nome completo e a idade da senhora? Há quantos anos mora em Ilhéus? E há

quanto tempo participa da Lavagem?

2. Por que a senhora participa da Lavagem das Escadarias da Catedral de São Sebastião?

3. Homens fantasiados de baiana também podem participar da Lavagem? Por quê?

4. Nos dois últimos anos (2004 e 2005), as baianas não conseguiram lavar as escadarias por conta da interferência do “caminhão-pipa”, do trio elétrico e, por conseguinte, da presença de populares e turistas nas escadas da Catedral. Como a senhora entende esse fato?

5. Por que a Lavagem das Escadarias da Catedral de São Sebastião acontece? Há alguma motivação religiosa? Qual?

6. Nos últimos anos, a Lavagem tem contado com uma festa animada por um trio elétrico e algumas bandas de axé music e pagode baiano. A festa com trios e bandas interfere de algum modo no ritual de Lavagem? Como? Por quê?

7. A participação da Secretaria de Turismo e a divulgação por panfletos, pela Internet, pela televisão e pelas emissoras de rádio têm influência na atração de turistas. A senhora acredita que esse fato influencia de modo decisivo a realização da Lavagem?

8. Comparadas com as do ano de 2004, a Lavagem e a festa de 2005 contaram com menor participação popular, turística e televisiva. A senhora acredita que essa diferença se deve a uma menor participação da nova Secretaria de Turismo Municipal? Por quê?

9. No passado, o interior da Catedral também era lavado. Por que isso não acontece na atualidade?

10. Para a senhora, o que mudou mais, o ritual da Lavagem das Escadarias da Catedral de São Sebastião ou a festa realizada antes, durante e depois da Lavagem? Com essas mudanças, houve algum prejuízo? Para quem? Qual seria esse prejuízo? Por quê?

11. Atualmente, como a Lavagem pode ser entendida (evento cultural, religioso, comercial, turístico)? Por quê?

12. Diante das mudanças sofridas pela Lavagem das Escadarias da Catedral de São Sebastião, a senhora acredita que hoje os ilheenses respeitam, sentem, entendem e se comportam na Lavagem como se ela representasse um tributo ao santo patrono? No passado era diferente? Por quê?

13. A senhora gostaria de acrescentar algum comentário?

∗ Todas as baianas bem como os indivíduos fantasiados de baiana presentes no evento foram considerados, mas apenas uma baiana aceitou responder às questões informalmente. Os demais não aceitaram gravar ou responder por escrito, alegando falta de tempo e razões pessoais.

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Roteiro de questionamento aos secretários de turismo do município de Ilhéus∗∗∗∗.

1. Qual o nome completo e a idade do senhor?

2. Há quantos anos o senhor mora em Ilhéus? E em quem ano foi (é) Secretário de Turismo?

3. No inicio, a celebração em homenagem a São Sebastião representava um evento de cunho religioso e pautava-se num compromisso de fé dos estivadores. Com a criação da Lavagem, a festa, antes mais religiosa do que profana, apresenta características muito próximas da festa soteropolitana. A Secretaria tem alguma participação na idealização e/ou realização da Lavagem das Escadarias da Catedral de São Sebastião? Qual seria essa participação? Por quê?

4. Há alguma consulta à comunidade, em especial, aos estivadores, para a definição dos investimentos da Secretaria de Turismo na realização da celebração? Se existe, como é feita? Por quê?

5. Para que a Festa-Lavagem das Escadarias da Catedral de São Sebastião conte com trios e bandas há alguma participação do poder público, da Secretaria de Turismo Municipal? Como o senhor entende e avalia a presença dos trios e das bandas de axé music e de pagode? Por quê?

6. Se, no início, a celebração em homenagem a São Sebastião constituía uma cerimônia religiosa motivada por uma promessa dos estivadores e pela devoção ao Santo, na atualidade, como a Lavagem pode ser entendida (evento cultural, religioso, comercial, turístico)? Por quê?

7. A participação da Secretaria de Turismo e a divulgação por panfletos, pela Internet, pela televisão e pelas emissoras de rádio têm influência na atração de turistas. O senhor acredita que esse fato também influenciou de modo decisivo as mudanças que a Lavagem e a festa sofreram?

8. Comparadas com o ano de 2004, a Lavagem e a festa de 2005 contaram com menor participação popular, turística e televisiva. O senhor acredita que essa diferença se deve a uma menor participação da nova Secretaria de Turismo Municipal? Por quê?

9. Nos dois últimos anos (2004 e 2005), as baianas não conseguiram lavar as escadarias por conta da interferência do “caminhão-pipa”, do trio elétrico e, por conseguinte, da presença de populares e turistas nas escadas da Catedral. Como o senhor entende esse fato?

10. Para o senhor, o que mudou mais, o ritual da Lavagem das Escadarias da Catedral de São Sebastião ou a festa realizada antes, durante e depois da Lavagem? Com essas mudanças, houve algum prejuízo? Para quem? Qual seria esse prejuízo? Por quê?

11. Diante das mudanças sofridas pela Lavagem das Escadarias da Catedral de São Sebastião, o senhor acredita que hoje os ilheenses respeitam, sentem, entendem e se comportam na Lavagem como se ela representasse um tributo ao santo patrono? No passado era diferente? Por quê?

12. O senhor gostaria de acrescentar algum comentário?

∗ O secretário de turismo no ano de 2004 não conseguiu ser entrevistado formalmente por não dispor de tempo. Em 2005, com a nova administração municipal, a Secretaria de Turismo de Ilhéus não participou efetivamente da realização da Lavagem das Escadarias da Catedral de São Sebastião e não pôde prestar depoimento.