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Estudos Feministas, Florianópolis, 21(3): 496, setembro-dezembro/2013 883 O labirinto de cristal: as trajetórias O labirinto de cristal: as trajetórias O labirinto de cristal: as trajetórias O labirinto de cristal: as trajetórias O labirinto de cristal: as trajetórias das cientistas na Física das cientistas na Física das cientistas na Física das cientistas na Física das cientistas na Física Copyright © 2013 by Revista Estudos Feministas. 1 Maria Teresa CITELI (2001, p. 1), por exemplo, sistematiza três gran- des vertentes de estudo na área: “(1) os que se dedicam a dar visibi- lidade, interpretar e analisar a pre- sença (ou a ausência) das mulhe- res nas atividades científicas; (2) as investigações epistemológicas que levantam perguntas relativas às implicações do que se entende por empreendimento científico (incluindo aí a autoridade epistê- mica e cognitiva atribuída aos cientistas) para as clivagens de gênero vigentes, sugerindo dúvi- das quanto à possibilidade e às capacidades explicativas das ciências em relação à natureza; e (3) os estudos que focalizam os contextos sociais em que se estru- tura o conhecimento científico, procurando identificar os vieses e as metáforas de gênero presentes no conteúdo do conhecimento produzido por diversas disciplinas, especialmente a Biologia.” 2 Margaret LOPES e Maria Conceição COSTA, 2005; Marta Garcia e Eulália SEDEÑO, 2006; Betina Stefanello Lima Universidade Estadual de Campinas Resumo Resumo Resumo Resumo Resumo: O artigo propõe uma análise sobre os desafios e obstáculos enfrentados, em especial para alcançar posições de prestígio e poder, pelas mulheres na carreira científica na área da Física no Brasil. A análise apresentada foi realizada por meio da observação participante no Second Iupap Conference on Women in Physics e por meio da realização de entrevistas semiestruturadas com pesquisadoras da área. Palavras-chave Palavras-chave Palavras-chave Palavras-chave Palavras-chave: gênero e ciências; carreira científica; mulheres e Física. Na área de gênero e ciências e estudos feministas, as/os pesquisadoras/es têm elencado como principais desafios: 1 a) buscar as razões pelas quais há um pequeno quantitativo de mulheres em algumas áreas do conhecimento ou em posições de prestígio na carreira; 2 b) apresentar os sexismos constituintes dos conhecimentos científicos produzidos, 3 c) destacar as contribuições feministas para o conhecimento científico em diversas áreas; 4 d) pesquisar e divulgar as histórias das mulheres nas ciências; 5 e) denunciar o androcentrismo na forma de produzir conhecimento; f) propor uma crítica feminista à ciência ou, ainda, propor uma epistemologia feminista. 6 Neste artigo, pretendo divulgar as análises empreendidas durante o mestrado em História, finalizado em 2008, na Universidade de Brasília – UnB, 7 sobre os relatos das trajetórias profissionais de pesquisadoras da Física que são bolsistas de Produtividade em Pesquisa. Durante essa pesquisa, foram realizadas dezenove entrevistas semiestruturadas. Utilizaram-se, ainda, as observações realizadas no trabalho de campo durante a especialização, 8 em 2005, no Second Iupap Conference on Women in Physics. Este trabalho também é resultado da minha experiência enquanto analista em ciência e tecnologia do CNPq e como participante do Grupo Interministerial responsável pelo Programa Mulher e Ciência. 9

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Estudos Feministas, Florianópolis, 21(3): 496, setembro-dezembro/2013 883

O labirinto de cristal: as trajetóriasO labirinto de cristal: as trajetóriasO labirinto de cristal: as trajetóriasO labirinto de cristal: as trajetóriasO labirinto de cristal: as trajetóriasdas cientistas na Físicadas cientistas na Físicadas cientistas na Físicadas cientistas na Físicadas cientistas na Física

Copyright © 2013 by RevistaEstudos Feministas.1 Maria Teresa CITELI (2001, p. 1),por exemplo, sistematiza três gran-des vertentes de estudo na área:“(1) os que se dedicam a dar visibi-lidade, interpretar e analisar a pre-sença (ou a ausência) das mulhe-res nas atividades científicas; (2)as investigações epistemológicasque levantam perguntas relativasàs implicações do que se entendepor empreendimento científico(incluindo aí a autoridade epistê-mica e cognitiva atribuída aoscientistas) para as clivagens degênero vigentes, sugerindo dúvi-das quanto à possibilidade e àscapacidades explicativas dasciências em relação à natureza;e (3) os estudos que focalizam oscontextos sociais em que se estru-tura o conhecimento científico,procurando identificar os vieses eas metáforas de gênero presentesno conteúdo do conhecimentoproduzido por diversas disciplinas,especialmente a Biologia.”2 Margaret LOPES e MariaConceição COSTA, 2005; MartaGarcia e Eulália SEDEÑO, 2006;

Betina Stefanello LimaUniversidade Estadual de Campinas

ResumoResumoResumoResumoResumo: O artigo propõe uma análise sobre os desafios e obstáculos enfrentados, em especialpara alcançar posições de prestígio e poder, pelas mulheres na carreira científica na área daFísica no Brasil. A análise apresentada foi realizada por meio da observação participante noSecond Iupap Conference on Women in Physics e por meio da realização de entrevistassemiestruturadas com pesquisadoras da área.Palavras-chavePalavras-chavePalavras-chavePalavras-chavePalavras-chave: gênero e ciências; carreira científica; mulheres e Física.

Na área de gênero e ciências e estudos feministas,as/os pesquisadoras/es têm elencado como principaisdesafios:1 a) buscar as razões pelas quais há um pequenoquantitativo de mulheres em algumas áreas doconhecimento ou em posições de prestígio na carreira;2 b)apresentar os sexismos constituintes dos conhecimentoscientíficos produzidos,3 c) destacar as contribuiçõesfeministas para o conhecimento científico em diversas áreas;4

d) pesquisar e divulgar as histórias das mulheres nasciências;5 e) denunciar o androcentrismo na forma deproduzir conhecimento; f) propor uma crítica feminista àciência ou, ainda, propor uma epistemologia feminista.6

Neste artigo, pretendo divulgar as análisesempreendidas durante o mestrado em História, finalizadoem 2008, na Universidade de Brasília – UnB,7 sobre os relatosdas trajetórias profissionais de pesquisadoras da Física quesão bolsistas de Produtividade em Pesquisa. Durante essapesquisa, foram realizadas dezenove entrevistassemiestruturadas. Utilizaram-se, ainda, as observaçõesrealizadas no trabalho de campo durante aespecialização,8 em 2005, no Second Iupap Conferenceon Women in Physics. Este trabalho também é resultado daminha experiência enquanto analista em ciência etecnologia do CNPq e como participante do GrupoInterministerial responsável pelo Programa Mulher eCiência.9

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A fim de preservar as identidades das entrevistadas,foram-lhes atribuídos pseudônimos,10 e muitas característicase relatos foram omitidos.

Assim, busco descrever e evidenciar os (des)caminhosdas mulheres nas ciências, na tentativa de entender asrelações que condicionam sua pouca representação evisibilidade no campo científico.

Após décadas de mudanças sociais e de conquistasdos movimentos feministas, os obstáculos que impedem edificultam a maior participação das mulheres no campocientífico, apesar de concretos, não são formais. A literaturasobre a temática11 apresenta dois tipos de exclusões dasmulheres nas ciências: a) exclusão vertical, que se refere àsub-representação das mulheres em postos de prestígio epoder, mesmo nas carreiras consideradas femininas; e b)horizontal, que se refere ao pouco número de mulheres emdeterminadas áreas do conhecimento, em geral, de maiorreconhecimento para a economia capitalista, asconsideradas ciências “duras” – exatas e engenharias.

Sobre a exclusão horizontal, segundo os dados doCNPq, de 2001 a 2010, o percentual das mulheres nas bolsasdo país por grande área, em Ciências Exatas e da Terra,Engenharias e Computação, variou de 29 a 36%. De 2005a 2011, o percentual de mulheres bolsistas de Produtividadeem Pesquisa nas Engenharias variou de 17% a 21%. Mesmonas bolsas de iniciação científica do PIBIC, elas não passamde 33% no ano de 2011.12

Sobre a exclusão vertical, segundo os dados do CNPq,de 2001 a 2011, o percentual de mulheres bolsistas deProdutividade em Pesquisa (PQ), em todas as áreas e em todosos níveis de bolsa, variou de 32,1% a 35,3% e, no nível maiselevado da bolsa – 1A – o percentual de mulheres, nessemesmo período, variou de 22,1% a 23,8%. Em 2011, opercentual de bolsas concedidas ao sexo feminino foi de23,5%. Enquanto o percentual de participação femininasnas bolsas PQ, em todos os níveis, apresenta um discreto,linear e progressivo aumento, no nível 1A a variação é bemmenor e também não é linear. Também se destaca que, em30 anos de existência do Prêmio Álvaro Alberto,13 do total de42 premiados apenas duas mulheres foram homenageadascom o prêmio.14 No caso dos Institutos Nacionais de Ciênciae Tecnologia (INCT) – grupos de excelência que pesquisamem rede e possuem um volume considerável15 de recursos –da soma de cento e vinte e seis16 INCTs, somente dezoito sãocoordenados por mulheres. Esses números não são triviais,porque a bolsa de Produtividade em Pesquisa, a coordenaçãode um INCT e a premiação são exemplos de capitaiscientíficos17 que atraem mais prestígio e maior volume derecursos financeiros, funcionando como multiplicadores para

Anabelle CARRILHO e SilviaYANNOULAS, 2011; Hildete MELOe Helena LASTRES, 2006; CarlaCABRAL, 2006a; Isabel TAVARES,2008; e Márcia BARBOSA eJefferson ARENZON, 2005.3 Por exemplo, o trabalho deFabíola RODHEN, 2001, acerca decomo a ginecologia se estabele-ceu como um campo de sabersobre a diferença sexual a partirdos órgãos sexuais femininos.4 Londa SCHIEBINGER (2001) traçaum panorama das contribuiçõesfeministas em diversas áreas doconhecimento.5 Tais como os estudos sobre BerthaLutz realizados por Margaret LOPESet al. (2005) e o trabalho realizadopor Marisa CORREA (2003) sobreEmilia Snethlage, Leolinda Daltroe Heloisa Alberto Torres.6 Para citar alguns estudos rela-cionados com a proposta de umaepistemologia feminista ou da críti-ca feminista à ciência são: SandraFARGANIS, 1997; Mary GERGEN,1998; Ilana LÖWY, 2000; LourdesBANDEIRA, 2008; e Carla CABRAL,2006b.7 Betina Stefanello LIMA, 2008.8 A especialização foi realizada naárea de antropologia, 2004 a2005, na Universidade Católicade Brasília. O trabalho final: Tetode vidro ou labirinto de cristal? foiuma primeira aproximação sobreas dificuldades de ascensão dasmulheres nas ciências. Nestapesquisa, entrevistei pesquisado-ras de diversas áreas, inclusive daárea de sociais.9O Programa Mulher e Ciência foiimplementado em 2005, a partirdo trabalho realizado por umgrupo interministerial compostopela Secretaria Especial dePolíticas para as Mulheres – SPM,Ministério da Ciência e Tecnologia– MCT, Conselho Nacional deDesenvolvimento Científico eTecnológico – CNPq, Ministério daEducação – MEC, entre outrosparticipantes. Os principaisobjetivos do Programa Mulher eCiência são estimular a produçãocientífica e a reflexão acerca dasrelações de gênero, mulheres efeminismos no país e promover aparticipação das mulheres no

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o reconhecimento do mérito científico. Esse mecanismo deacumulação de reconhecimento foi denominado por Mertonde Efeito Mateus, inspirado na frase bíblica: “Ao que tem, selhe dará e terá em abundância; mas ao que não tem, serátirado até mesmo o que tem”. Margaret Rossiter,18 ao pensarsobre a participação das mulheres nas ciências, propõe oefeito Matilda, que está associado à retirada de capitalcientífico das menos capitalizadas.

Essas duas exclusões – vertical e horizontal –apresentam dois momentos cruciais e distintos na carreiraacadêmica: um em relação à escolha da área e outro emrelação à permanência e à ascensão na profissão. Apesarde as exclusões estarem interligadas, neste artigo as análisessão dirigidas para a exclusão vertical ou para o que proponhodenominar inclusão subalterna, uma vez que as mulheresestão presentes na comunidade acadêmica, porém poucascientistas se tornaram tão reconhecidas quanto seus pares.

O teto de vidro19 tem sido utilizado como metáforapara representar o obstáculo invisível, porém concreto, queimpede as mulheres de chegarem a determinadas posiçõesde prestígio nas profissões. Esse conceito contribui para oentendimento de duas importantes questões: 1) atransparência do vidro, que se refere à ausência de barreirasformais/legais que impeçam a participação de mulheresem cargos e posições de poder, ou seja, as dificuldadesdas mulheres não podem ser medidas somente pelaausência de dispositivos legais contra sua atuaçãoprofissional; e 2) a posição do teto, que representa que háum entrave para ascensão das mulheres, dessa forma, épossível que elas transitem pelas posições dispostas nacarreira até um determinado ponto: o topo de umadeterminada profissão. Assim, o olhar foi deslocado nosentido de observar a ocupação feminina em postos depoder para problematizar e qualificar a participação dasmulheres nas profissões.

Durante meu percurso de pesquisa quando comeceia entrevistar cientistas de diversas áreas, percebi que esseconceito, ainda que ilustrasse parte importante do problema,não era adequado para dimensionar a complexidade dosobstáculos dispostos no decorrer da carreira científica. Pormeio da pesquisa realizada e da literatura sobre a temática,é possível perceber que as barreiras, ainda que não formais,são muitas e diversas, localizadas ao longo da carreira enão apenas no “topo”. A imagem de um teto nos transmite aideia de que existe apenas um tipo de barreira e uma únicaetapa da carreira, no caso, localizada no topo, paraascender a postos de poder. Pode-se ter a errônea percepçãode que não há obstáculos para as mulheres até que desejemascender na profissão.

campo das ciências e carreirasacadêmicas. O Programa possuitrês ações: o Edital bianual depesquisas na temática “Relaçõesde Gênero, Mulheres e Feminis-mos”, o Prêmio denominado“Construindo a Igualdade deGênero” e o Encontro trianual“Pensando Gênero e Ciências.”Para acessar informações sobreo Programa: http://www.cnpq.br/web/guest/apresentacao2.10 Para substituir os nomes dasminhas entrevistadas, foram utiliza-dos nomes de cientistas publica-dos em “Pioneiras da Ciência noBrasil”, de Hildete Pereira de MELOe Ligia M. C. S. RODRIGUES, 2006.São elas: Johanna Döbereiner(agronomia), Elza Furtado Gomide(matemática), Neusa Amato(física), Carolina Martuscelli Bori(psicologia), Bertha Lutz (biologia),Eulália Maria Lahmeyer Lobo (histó-ria), Nise da Silveira (psiquiatria),Ruth Sontag Nussenzveig (biolo-gia), Marília Chaves Peixoto (mate-mática), Maria da Conceição deAlmeida Tavares (economia),Victória Rossetti (agronomia), ElisaFrota-Pessoa (física), Marta Vanucci(biologia), Graziela Maciel Barroso(Botânica), Alice Piffer Canabrava(história), Maria Josephina MatildeDurocher (obstetrícia), BlankaWladislaw (química), Maria Josévon Paugartten Deanne (parasito-logia), Sonja Ashauer (física).11 ROSSITER citada porSCHIEBINGER, 2001.12 Alguns dados foram coletadosna página do CNPq, no item: Insti-tucional/Indicadores e Estatísticas/Bolsas e Auxílios/Séries Históricas,em junho de 2012: http://www.cnpq.br/web/guest/series-historicas. Outros dados, maisdetalhados, foram fornecidos pelopróprio setor de Estatística doreferido órgão.13 O Prêmio foi criado em 1981 eé dirigido ao/à pesquisador/a quetenha se destacado pela realiza-ção de obra científica ou tecnoló-gica de reconhecido valor parao progresso da sua área. Éconcedido anualmente, emsistema de rodízio, a uma das trêsgrandes áreas do conhecimento:a) Ciências Exatas, da Terra e

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O labirinto de cristal,20 conceito proposto durante aespecialização e aprofundado no mestrado, indica que osobstáculos encontrados pelas mulheres, simplesmente porpertencerem à categoria “mulher”, estão dispostos ao longode sua trajetória acadêmica, e até mesmo antes, na escolhada área de atuação.

O labirinto tanto simboliza os diversos obstáculosdispostos na trajetória científica feminina quanto apresentasuas variáveis consequências, tais como: desistência de umadeterminada carreira, sua lenta ascensão e estagnação emum dado patamar profissional. Por causa dos diversos desa-fios e armadilhas dispostos no labirinto, os talentos femininossão perdidos ou pouco aproveitados. Assim, as contribuiçõespresentes na metáfora do labirinto são: a) o entendimento deque os obstáculos estão presentes ao longo da trajetóriaprofissional feminina, e não somente em um determinadopatamar; b) a compreensão de que a inclusão subalternadas mulheres nas ciências e sub-representação feminina nasposições de prestígio no campo científico são consequênciascondicionadas por múltiplos fatores; c) a concepção de queas barreiras e armadilhas do labirinto não estão somenteassociadas à ascensão na carreira, mas também ao ritmo doganho de reconhecimento de atuação das cientistas e à suapermanência ou não em uma determinada área.

Apesar de sua concretude, os obstáculos do labirintotambém são transparentes como um cristal e podem passardespercebidos, já que suas armadilhas são construídas namassa cultural. Durante o mestrado, explorei três tipos decomplexos obstáculos dispostos no labirinto: a) o drible dador, por meio de duas representações sociais: a de super-mulheres e a de inteligências descorporificadas; b) apresença dos sexismos automático e instrumental; e c) oconflito entre os discursos sobre “ser mulher” e “ser cientista”e seu consequente efeito Camille Claudel.

O drible da dorO drible da dorO drible da dorO drible da dorO drible da dor

Uma das principais dificuldades dispostas no labirintoé o não reconhecimento ou a minimização dos problemasassociados ao gênero e à ascensão na carreira científicapor parte das próprias cientistas. O drible da dor21 trata dasmanobras utilizadas pelas cientistas na recusa em perceberos obstáculos específicos do gênero dispostos ao longo desuas carreiras. O drible da dor, conforme analisado a partirdo trabalho de campo, é possível por meio de duasrepresentações sociais: a das inteligências descorporificadase a das supermulheres.

O drible da dor é operado pelo discurso meritocrático,firmado na comunidade acadêmica, que permite representar

Engenharias; b) CiênciasHumanas e Sociais, Letras e Artes;e c) Ciências da Vida. O/Avencedor/a recebe um diploma,uma medalha e uma premiaçãoem dinheiro no valor de R$ 200mil, concedido pela FundaçãoConrado Wessel. Fonte: < http://estatico.cnpq.br/portal/premios/2011/paaa/index.html>. Acesso:em 7 jun. 2012.14 Em 1997, foi laureada a Dra.Maria Isaura Pereira de Queiroz,na área de ciências sociais, e em2012, a Dra. Maria ConceiçãoTavares pelos trabalhos emeconomia.15 Na média de 3 a 9 milhões porproposta, pagos em três anos.Neste montante, é possívelsolicitar bolsas de IniciaçãoCientífica, Iniciação CientíficaTecnológica, DesenvolvimentoCientífico e Tecnológico, ApoioTécnico, Pós-doutorado Junior eBolsa a Especialista Visitante.16 São 122 institutos aprovados noEdital MCT/CNPq/FNDCT/CAPES/FAPEMIG/FAPERJ/FAPESP N º 015/2008 – Institutos Nacionais deCiência e Tecnologia mais quatroaprovados no Edital MCT/CNPq/FNDCT Nº 71/2010 – InstitutosNacionais de Ciência e Tecnolo-gia em Ciências do Mar.17 Pierre BOURDIEU (1983), aoanalisar o funcionamento docampo científico, aponta para umtipo especial de capital social, ocapital científico. Esse capital serefere a um tipo de “moeda”contabilizada para o acúmulo dereconhecimento científico ou, naspalavras de Bourdieu, o monopólioda autoridade científica.18 Rossiter (1993) cita o própriocaso de Harriet Zuckerman, esposade Merton, como exemplo.Zuckerman, socióloga e colabora-dora de Merton, não alcançou omesmo reconhecimento dele. Epor irônico que possa parecer, oefeito Mateus foi baseado em suapesquisa com ganhadores doPrêmio Nobel.19 Este conceito é bem conhecidona área dos estudos de gênero efeministas e nas referências quecitam este modelo encontrei tantouma omissão a respeito da “ori-

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o talento enquanto descorporificado. Dessa forma, refletirsobre a desigualdade nas ciências por meio das categoriasde análise, como sexo, raça, etnia e localidade, não fazsentido. Essa representação social da ciência enquantopuramente meritocrática não permite qualquer discussãosobre as dificuldades específicas e impostas às mulheres.

A ciência considerada meritocrática viabiliza arepresentação de inteligências decorporificadas. Cadaqual, em função do seu talento, ocupa o lugar que merece,o qual foi competente para conquistar. O mérito é o únicofator responsável pela alocação dos/as cientistas no campocientífico. O lado avesso dessa representação é que só asincompetentes é que utilizam o discurso sobre discriminaçãoem relação ao sexo para justificar seus fracassos, comoexpresso na fala de Bertha:

Se você é uma minoria, você não quer ser a minoria,você recusa isso. Se você está sendo discriminada,você não aceita que está sendo discriminada.Discriminação é coisa de mulher incompetente, sevocê é incompetente, você põe a culpa nadiscriminação. Como eu sou competente, eu nuncapassei por isso. O que eu faço? Eu sinalizo para elassituações nas quais elas passaram, e elas não sederam conta que aquilo era a discriminação... Coisaspequenas: você é tão palestrante convidada quantoos colegas que têm o mesmo número de publicaçõesque você? Com o teu número de publicações, vocêestá no seu nível adequado no teu órgão definanciamento? Sinalizo comparações entre elas e oscolegas com o mesmo número e elas vão começar ase dar conta que elas têm que trabalhar o dobro parachegar lá. E aí elas começam a se lembrar demomentos... É quase cruel... Muitas ficam com raiva(Bertha).

Outra representação social por parte das entrevis-tadas, que constitui o drible da dor, é a da supermulheres.No caso das físicas, que ocupam um lugar frequente deexceção junto aos seus colegas ao longo da carreira, elas sedistanciam da identificação do que foi construído comoestereótipo de mulher. Suas realizações, próprias de umaminoria, permitem que sejam consideradas como umacategoria com atributos superiores ao das “outras” mulheres.Por meio dessa representação, o discurso do mérito é, por umlado, reafirmado e, por outro, evidencia que mulheres comunsnão estão aptas para a ciência. É preciso ter outros atributos,não pertencentes às mulheres de uma forma geral, paraganhar um espaço de prestígio na comunidade acadêmica.Essa representação também permite o distanciamento dascientistas das discussões sobre gênero e feminismo. Sua

gem” do termo quanto divergên-cias sobre as fontes. Uma dasfontes atribuídas ao conceito commaior frequência é a reportagemsobre a ascensão profissional dasmulheres nas empresas, publicadaem 1986 no Wall Street Journal.Essa expressão foi utilizada nesteartigo, pois foi um conceito utiliza-do por parte das físicas reunidasno Second Iupap Conference onWomen in Physics (2005).20 Recentemente encontrei umamatéria sobre o Glass Labyrinth,disponível em: <http://www.management-issues.com/2007/10/15/research/glass-labyrinth—not-glass-ceiling.asp>, acessada emmaio de 2012, referente ao livropublicado em 2007: Through theLabyrinth: The Truth About HowWomen Become Leaders, quepropõe o conceito de labirinto decristal em contraposição ao tetode vidro, conforme propus aindano trabalho final de especializa-ção, em 2005.21 Esse conceito foi inspirado noconceito “drible da culpa”, de RitaLaura SEGATO, 2003c.

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possível identidade comum – em uma categoria construídae diversa como mulher – é fragmentada, o que torna osproblemas relatados e interpretados por boa parte dasentrevistadas como pessoais e privados. Eis uma das falasque apontam para a privatização dos problemas:

Com poucas pessoas conversei sobre meus problemasacadêmicos. Você acaba não sabendo que o seuproblema é o problema de outra. Você fica fechadaali, tenta resolver, acha que é uma coisa sua (Victória).

Na maior parte das entrevistas, a formulação daresposta também representava um processo de tomada deconsciência sobre os problemas específicos das mulheresno campo científico. A inicial negativa para a pergunta,por exemplo, sobre a experiência da discriminação por sermulher, tornava-se um sonoro conjunto de relatos comorespostas a perguntas específicas que levavam à reflexãosobre as dificuldades específicas das mulheres, em suadiversidade, no campo científico.

O drible da dor dificulta a discussão sobre a adoçãode medidas e a implementação de iniciativas como o focono enfrentamento da desigualdade de gênero nas ciências.O drible da dor impossibilita a mobilização das pesquisa-doras e perpetua a situação de inclusão subalterna dasmulheres nas ciências.

Sexismos no campo científicoSexismos no campo científicoSexismos no campo científicoSexismos no campo científicoSexismos no campo científico

Destaca-se que os obstáculos do labirinto sãoconstruídos segundo valores culturais como os papéis eposições definidos para cada sexo. O gênero constrói o sexoenquanto binário, oposto e complementar. Essa lógicacategoriza e aloca cada sexo em um polo no qual umrepresenta os atributos que o outro não possui. Também nessaconstrução, o polo masculino é o de valor positivado, aqueleque retira seu valor do polo negativado, feminino.22 Assim,gênero é relacional, mas de uma relação históricafundamentada na hierarquia.

A ciência é promulgada a partir de valores masculinos,tais como razão, objetividade, competição, entre outros. Apartir desses valores e em função dos papéis sociais atribuídosa cada sexo, as mulheres se deparam ao longo de suatrajetória com uma outra faceta do labirinto: o sexismoautomático.

O sexismo automático é um conceito proposto porRita Laura Segato para abordar a questão da violência degênero:

conjunto de mecanismos legitimados pelo costumepara garantir a perpetuação do status relativo aos

22 Rita Laura SEGATO, 2004.

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termos de gênero. Estes mecanismos de preservaçãode sistemas de status operam também no controleda permanência das hierarquias em outras ordens,como a racial, a de classe, a regional e a nacional.23

O sexismo automático funciona segundo a violênciamoral fundamentada no conjunto de significados quefizeram das diferenças sexuais24 justificativa para adesigualdade entre as pessoas. Segato utiliza o termoviolência moral – em contraste à violência física – paraexplicitar sua especificidade difusa, sutil, de difícilrepresentação. Este sexismo, legitimado pelas tradições,escapa à formalidade da lei e encontra poucas formas deresistência, uma vez que sua naturalização não facilita suapercepção, permitindo que as próprias mulheres sejamreprodutoras de atos sexistas.

No caso das ciências, o sexismo automático operasegundo as representações sociais sobre a definição demulher, em sua forma singular e homogênea, construída nalógica heteronormativa de gênero, e sobre a definiçãoacerca da imagem de cientista baseada na visãoandrocêntrica. Essas representações pautam algumasexperiências contadas pelas pesquisadoras: a) aoresponder sobre sua profissão: “sou física”, o/a interlocutor/aresponder: “educadora física”; b) ao terminar sua primeiraaula na graduação depois de contratada, um estudanteafirmar: “pensei que fosse trote”. São falas forjadas noimaginário que não relacionam a possibilidade de atuaçãodas mulheres em uma ciência como a Física e que marcamo sexo feminino como um ser fora do lugar.

Como já mencionado, o sexismo automático éreproduzido até mesmo entre as mulheres:

Sempre preferi trabalhar com homens. Eu não seriaorientada por mulher de jeito nenhum, não tenhadúvidas. Mas é muito triste constatar isto. Agora eutenho uma colega que a gente trabalha mais emsintonia. Temos feito muitos trabalhos juntas. Ela é doestereótipo masculino, a forma de trabalhar, e eutambém. Então nós trabalhamos muito bem, a gentenão senta para falar da vida dos outros, senta paratrabalhar, nós somos muito objetivas. Eu acho que istofalta na mulher, a objetividade. Esta objetividade quea gente adquire, a gente é muito racional, o afetivo écolocado de lado por muito tempo (Nise).

A fala de Nise é rica em representações, pois apresentanão só o que é construído e considerado adequado para umbom profissional quanto automaticamente aloca essasqualidades enquanto masculinas. Suas constataçõesresultam na recusa em ter sido orientada por uma mulher,ainda que competente. A cooperação que realiza com uma

23 SEGATO, 2003, p. 2.

24 Thomas LAQUEUR (2001) propõea discussão histórica sobre aconstrução do sexo – a passagemda visão de um sexo único aodimorfismo sexual. O autor pontuaque essa passagem é produzidamenos influenciada pelos avan-ços científicos e mais condicio-nada pelas mudanças nas esferaspolítica e epistemológica. O autortambém pontua: “Porém desejomostrar, com base em evidênciahistórica, que quase tudo que sequeira dizer sobre sexo – dequalquer forma que o sexo sejacompreendido – já contém emsi uma reivindicação sobre ogênero. O sexo, tanto no mundode sexo único como no de doissexos, é situacional; é explicávelapenas dentro do contexto daluta sobre gênero e poder.”(LAQUEUR, 1992, p. 23).

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mulher, segundo sua fala, só é possível porque ambas agemcomo homens.

Atuar em espaços não considerados como própriospara as mulheres e orientados por valores androcêntricosimpõe uma série de violências e dificuldades. As cientistasfrequentemente reportam-se a momentos em que, para seremaceitas ou mesmo notadas, foi necessário passar por “testes”ou “provas” para garantir sua capacidade para ocuparuma determinada posição.

Existe uma dificuldade inicial em estabelecer oprimeiro contato, uma não valorização a priori. Depoisque conhece, vence esta barreira, e aí sim (Marília).

Outra forma de sexismo automático está associada àviolência moral e sexual, que, legitimada pela lógica degênero, aloca o corpo feminino como apropriável e comoparte do processo de obtenção da masculinidade.25 No casodas mulheres cientistas, o corpo se torna um fardo pelapossibilidade de assédio sexual. Houve relatos sobre asuspeita de que a cooperação com um colega masculinoera de outra natureza que não profissional, que umadeterminada conquista não era devido ao seu esforço etalento, mas atribuída a elementos ou envolvimentos sexuais.Ruth conta como ocorreu esse tipo de assédio e sobre suadecepção:

Principalmente quando eu era mais jovem porque eucomecei a participar de congresso muito cedo. Écomum alunas, principalmente de Iniciação Científica,jovenzinhas, estarem conversando com um cara quevocê leu o artigo, acha o cara o máximo, e o caravem passar cantada e você querer morrer (Ruth).

Um segundo tipo de violência moral a que me refiro éo que denomino de sexismo instrumental, que se refere afalas e comportamentos ancorados na teia sociocultural,como estratégia para assegurar privilégios para manutençãoda hierarquia. Nas ciências, em situações de disputa depoder e quando outros argumentos não são suficientes paragarantir uma determinada posição de poder, são utilizadosargumentos considerados legítimos por si mesmos, como:senioridade, titulação, trajetória acadêmica (prêmios ecargos), localidade, área do conhecimento, raça e sexo.

Nessa ótica, os sucessos das mulheres (a melhor notaem uma matéria, o recebimento de uma bolsa, etc.) sãoreduzidos a atributos do corpo feminino como possíveis armasde sedução. Por exemplo, foi relatado que, após algumaconquista profissional, as pesquisadoras receberamcomentários tais como: “se eu também usasse saia”. Essescomentários remetem a uma tentativa de deslegitimar ossucessos das mulheres no sentido de esvaziar seus méritos e

25 Rita Laura SEGATO (2004) colocaque a masculinidade é um statusa ser obtido. A masculinidade seconquista ao retirar poder dofeminino.

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minimizar qualquer possibilidade de destaque e empodera-mento. A fala de Bertha, por exemplo, apresenta como fatoresligados ao feminino podem ser usados como justificativaspara o não reconhecimento de uma vitória:

Um colega, uma vez, no meio do debate, me acusoude ter ganho o debate porque eu estava usando umperfume perturbativo, eu me virei pra ele e disse: meucaro, você perdeu o debate porque eu sou muito maisinteligente do que tu, e porque os meus argumentoseram bons (Bertha).

Também foram relatados casos como a não indicaçãode uma pesquisadora a um cargo ou posição em função daassociação de elementos relacionados ao feminino, emespecial, quando conjugados com autoridade. A autoridadefeminina também foi frequentemente interpretada comosinônimo de mulher encrenqueira e complicada. Muitas vezes,as afirmações sobre o reconhecimento da competência e doperfil qualificado de uma determinada pesquisadora eramseguidas de argumentos associados ao feminino queimpossibilitavam sua indicação a uma dada posição.

O sexismo instrumental utiliza os valores de gênerodispostos na cultura como estratégia para garantir umaposição de poder ou destaque quando recursos legítimoscomo competência técnica ou argumentação científica nãoforam suficientes para assegurar a hierarquia. Nesse sentido,acionar os atributos de gênero pode funcionar como um golpebaixo para retirar prestígio de uma determinada mulher.

O sexismo automático e o sexismo instrumental estãoassociados, uma vez que o segundo também busca suasjustificativas nas tradições. No entanto, enquanto o sexismoautomático é dirigido contra a categoria de mulheres, osexismo instrumental é dirigido contra uma mulherespecífica. Assim, o sexismo instrumental alimenta-se dahierarquia preconizada pelo gênero para personificar aviolência no sentido de garantir que uma determinadarelação de poder não seja alterada.

Os conflitos entre os discursos sobre “serOs conflitos entre os discursos sobre “serOs conflitos entre os discursos sobre “serOs conflitos entre os discursos sobre “serOs conflitos entre os discursos sobre “sermulhermulhermulhermulhermulher” e “ser cientista”” e “ser cientista”” e “ser cientista”” e “ser cientista”” e “ser cientista”

Outro campo tortuoso do labirinto de cristal se refereaos conflitos advindos entre os valores exigidos para ser uma“boa cientista” e os requisitos considerados necessários paraser uma “boa mulher” dispostos nos discursos hegemônicos.São discursos colocados em contraposição. Assim, o que éconsiderado apropriado e útil na esfera científica e profissionalé inútil e inadequado na esfera do ser feminino26 e vice-versa.

É importante explicitar que as físicas, em suaconcretude feminina, tanto enfrentam dificuldades no que

26 No discurso hegemônico, o femi-nino é conjugado no singular edispõe de características rotularescomo fragilidade, sensibilidade,falta de objetividade, entre outrascaracterísticas construídas comoopostas ao masculino. ThomasLAQUEUR (2001) apresenta comoa mudança de visão do modelode sexo único para o modelo dedois sexos possibilitou a construçãoda diferença, oposição e incomen-surabilidade dos sexos. Essas dife-renças ora depositadas nas dife-renças da genitália são multiplica-das em outros níveis como ocelular e o psicológico. Maria TeresaCITELI (2006) apresenta ummapeamento das tendências emlocalizar as bases do comporta-mento divididas por sexo nas fron-teiras mais avançadas da ciência,em uma determinada época.

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pode ser considerada a esfera profissional – guiada pelocódigo do mundo público ancorada na construída divisãoengendrada público versus privado – quanto enfrentamdificuldades específicas do campo científico e, maispropriamente, da área da física, que vai diferir de outrasáreas do conhecimento. No caso da esfera do trabalho, eisa definição de uma das pesquisadoras:

A primeira coisa para ser aceita como profissional éagir como um27 profissional, é não ficar trazendo seusproblemas particulares (Alice).

Joan Scott28 afirma que a noção de indivíduo éambígua: por um lado, é abstrata; por outro lado, estáassociada a um referente concreto e masculino. A autoratambém assinala que masculinidade está conectada àindividualidade, enquanto feminilidade está associada àalteridade e especificidade. A esfera pública ainda operasegundo a noção de indivíduo abstrato. Não há lugar, noambiente de trabalho, para ser particular e pessoal. A divisãosexual do trabalho sustenta o indivíduo profissionaldesejado para o mundo profissional. As múltiplas jornadasde trabalho pelas quais as mulheres são sobrecarregadasainda permanecem invisíveis e naturalizadas.

A carreira científica exige uma longa formação equalificação da pesquisadora, durante a qual, em geral, éapoiada por meio da concessão de bolsas de estudo(iniciação científica, mestrado, doutorado, pós-doutorado,etc.). Diferentemente de outras profissões somenteregulamentadas por relações trabalhistas, a pesquisadoranão conta com a licença-maternidade como um direitoassegurado em todos os níveis da carreira. É um “direito”que também varia conforme o órgão de financiamento dapesquisa ou de formação de recursos humanos.29 Assim, agravidez e manutenção da bolsa não é uma equaçãosimples e resolvida. A questão da gravidez ainda continuacomo um problema privado das pesquisadoras:

A primeira gravidez foi terrível para mim porque eurenovei minha bolsa de pós-doc (pós-doutorado) e nomomento em que engravidei, liguei para a agênciade fomento e perguntei como que ficaria minhasituação: na hora que eu tiver o bebê, posso tirar umalicença-maternidade? Eles me responderam: Ah, tudobem, você tranca sua bolsa, não tem problema, edepois de seis meses você pode retomar. – Eu voutrancar no momento em que mais preciso do dinheiro?Neste momento em que vou ganhar o meu filho. Então,é uma situação terrível. E o que você faz? Então, nãome identifiquei na ligação e não falei para a agênciaque tive meu filho (Victória).

27 Destaque meu para enfatizar aque gênero se refere, o que nãoconsidero coincidência nessecontexto.28 Joan SCOTT, 2002, p. 29.

29 No caso das bolsas de mestradoe doutorado concedidas peloConselho Nacional de Desenvol-vimento Científico e Tecnológico– CNPq, pode-se solicitar umaprorrogação por quatro meses emcaso de gravidez: “No caso departo ocorrido durante o períododa bolsa, formalmente comunica-do pelo coordenador ao CNPq, avigência da bolsa será prorrogadapor até quatro meses, garantidasas mensalidades à parturiente”.Disponível em: <http://www.cnpq.br/normas/rn_06_017_anexo4.htm>. Acesso em: 23 abr. 2012. Essaprorrogação foi, em grande parte,uma conquista das discussões erecomendações do ProgramaMulher e Ciência.

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No caso de Victória, ela conta que fez um acordoinformal com o orientador e, após a quarentena, ela, bebêa ser amamentado e babá já estavam na universidadepara que ela pudesse continuar a pesquisa e não fossepenalizada com o corte da bolsa. No entanto, foi chamadapelo diretor do instituto, porque ele havia recebidoreclamações sobre o barulho do bebê. Afinal, odepartamento não é um local para crianças, conforme lhedisseram. Não houve nenhuma solução institucional para oproblema (nem por parte da universidade, nem por parteda agência de fomento à pesquisa), houve cooperaçãopor parte de alguns colegas que cederam uma sala maisafastada. Assim, a maternidade se restringiu a um problemade mulheres, a ser resolvido como um problema particular.

Gerar e/ou criar filhos, para as cientistas que assumirama maternidade, são contados como principais realizaçõesde suas vidas, mas também foram significados comoimportantes causas de uma desaceleração na carreira. Aescolha da maternidade após o doutorado é conotada comouma alternativa menos prejudicial na carreira.

Alunas que desistiram não, mas que você sabe quevão acabar e que não vão adiante, por quê? Porquenão deram a virada quando deveriam. Já teve umfilho durante o mestrado, durante o doutorado. Então,por exemplo, ela vai defender com um menor númerode publicação que outra pessoa. A chance deconseguir bolsa de pós-doc é mais difícil. Se consegueo ‘pós-doc’, já tem que encarar todo o problemafamiliar, tem que ser na mesma cidade, não dá pramudar de cidade porque o marido tem que acom-panhar. Enquanto a mulher quando está sozinha, elavai para onde ela quer, ela tem a bolsa e escolhe aárea, ela escolhe o assunto, ela faz tudo. Se ela temque conciliar com a profissão do marido, acaba quea pessoa muda de área. Não é assim: ‘ah, vou desistirde física.’ É que ela não consegue a próxima bolsa, aíela tem que se virar, aí começa a trabalhar num banco,começa a dar aula em segundo grau, começa atrabalhar numa coisa que não é da área, mas ela temque se virar. Sempre dizendo assim: ‘Eu estou traba-lhando com isto aqui enquanto eu peço outra bolsa.’Mas você sabe que não vai conseguir mais porqueaquele tempo que ela ficou, ela não vai estarproduzindo mais. Então a chance de voltar... Ruth

Para muitas mulheres, casar e ter filhos são fundamen-tais para sua realização plena. No entanto, o casamento e amaternidade também aparecem em suas falas como impor-tantes empecilhos para o progresso na carreira científica.

Eu conheço pessoas que não se sentem bem, sesentem metade de uma pessoa se não tiverem uma

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família completa: marido, filhos; sentem-se meiapessoa só (Neusa).

Ser mulher já é ser diferenciada, está certo? Então,você é forçada a fazer algumas escolhas que sãomuito violentas como dizer: não vou casar, vou sercientista (Elza)

São falas que tanto apontam para a importância docasamento e da família para a realização pessoal quantodemonstram a dificuldade de conciliar escolhas entreprofissão e família.

Para além dos relatos das múltiplas jornadas detrabalho, no campo da física ocorre o que é chamado deendogamia disciplinar: muitos casamentos entrepesquisadores da mesma área. Percebi três possíveisconsequências da endogamia disciplinar, que chamei deefeito Camille Claudel,30 inspirada por um filme com omesmo nome que recria a biografia da escultora. São elas:1) “carreiras encaixadas”; 2) o possível ofuscamento daesposa em função da lógica de gênero; 3) a relação deconcorrência entre o casal.

O conceito “carreiras encaixadas” se refere a umagama de escolhas feitas pelas mulheres com o objetivo demanter uma determinada relação amorosa e/ou uniãofamiliar em detrimento da carreira. Essa concepção trata deruptura e adequações feitas na carreira em benefício dafamília ou do parceiro. Foram relatos de títulos de doutornão obtidos porque o marido já havia conseguido umemprego no Brasil, doutorados feitos em áreas possíveisporque o marido já havia sido aceito em uma bolsa e/ouposição no exterior, recusa de oportunidades, entre outrosrelatos. Segue uma fala:

Eu conheço mais de um caso de pessoas que mudaramo jeito de gerenciar sua carreira porque ia terminar ocasamento. Fez uma opção pelo casamento. É difícilde conciliar! (Neusa).

O segundo aspecto do efeito Camille Claudel é asuspeita que paira sobre o mérito das cientistas quandoatuam na mesma área do esposo. As conquistas e ousucessos são usualmente retirados delas e são atribuídosao marido, em especial, se ele for um pesquisador maisexperiente. Muitas pesquisadoras adotam a estratégia,inclusive, de não terem sempre o mesmo colaborador oupublicarem sozinhas para não enfrentarem esse tipo dequestionamento.

O que importa mesmo é a qualidade daquilo que agente faz, eu acho. No final das contas, pode todomundo falar sobre mim como “aquela chata”, “ah

30 Filme do diretor Bruno Nuytten,lançado em 1988.

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porque não sei o que”, mas quando vai lá olhar meustrabalhos, quantas citações tenho, onde eu publico, oimpacto que têm minhas publicações, vai falar o quê?Eu tenho algum marido? NãoEu tenho algum marido? NãoEu tenho algum marido? NãoEu tenho algum marido? NãoEu tenho algum marido? Não. Porque isso é outrapraga, tem muitos casais. Aí, por mais que as pessoastenham uma carreira independente uma da outra,ninguém diz ‘aquele marido está vivendo à custa dafama da mulher’, sempre o contrário. Não é verdade,às vezes, mas é um fato, as pessoas não conseguemseparar. Por isso, também não é bom ter semprecolaboração com a mesma pessoa (Neusa).

O terceiro aspecto se refere à relação de concorrênciaque muitas vezes ocorre entre o casal de pesquisadores.Houve alguns relatos sobre a falta de apoio e estímulo porparte deles à carreira delas, como ofertarem oportunidadesprofissionais a amigos, e não à esposa, que possuía asqualificações necessárias para receber o convite.

Algumas pesquisadoras também contaram que umdos fatores e, em alguns casos, o motivo central para o fimde um casamento ou de uma relação estável foi o resultadoda dedicação delas à carreira ou da ascensão alcançadanesta por elas, em especial, quando passam a ocupar umaposição profissional de maior prestígio e visibilidade que ado companheiro. Eis o relato de Johanna:

Tanto assim que, naqueles cinco anos, eu realmentedei uma brecada na carreira, mas não adiantou, eu jáestava muito demais na frente dele. Betina: E a senhorafez de propósito? Johanna: a brecada foi absolutamen-te proposital, só que não adiantou, acabamos nosseparando, eu gostava muito dele, sofri muito. Betina:E depois disso? Johanna: aí foi, agora vai (risos), agoravai! Já que não deu certo, agora vou cuidar dacarreira.

Francesca Cancian31 aponta como o amor é visto deforma feminizada, ou seja, como os elementos associadosao amor são considerados femininos – expressão dasemoções, cordialidade, cuidado são alguns exemplos.Cancian também aborda algumas das consequênciasnegativas sobre a feminização do amor, tais como: oempoderamento masculino, por enfatizar a dependênciafeminina no amor e tornar invisíveis a dependência e anecessidade de amor masculinas; a significação de sexocomo meio de poder masculino; a dificuldade deentendimento entre os casais; a legitimação de relações deexploração no trabalho, uma vez que a lógica das esferasseparadas aloca o afetivo para o privado e o impessoalpara o público.

A partir da discussão proposta por Cancian, proponhoque a feminização do amor tornou as mulheres as principais

31 Francesca CANCIAN, 1986.

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responsáveis pela manutenção do amor. Nessa perspectiva,uma vez estabelecidas as relações amorosas, as mulheres setornam os pilares do amor como também da família. Assim,para as mulheres, o investimento na carreira e nas relaçõesafetivas é construída, muitas vezes, como excludente.

Outra dificuldade do labirinto de cristal é que, aomesmo tempo que as mulheres são cobradas quanto aoseu desempenho materno e compelidas à manutenção darelação amorosa, elas são exoneradas da cobrança socialsobre ascensão na carreira. Existe, inclusive, a lógicacontrária, o estímulo para que se dediquem menos à carreirae mais à vida pessoal. Duas pesquisadoras relataram quese sentem muito menos cobradas em relação a suadedicação à carreira do que seus colegas. Uma delas contaque sempre ouve a pergunta dirigida a outros colegas sobrequando eles vão fazer, por exemplo, a livre-docência e, paraela, o fato de ter filhos é dito como justificativa para que elanão se preocupe tão cedo em fazer o mesmo processo.

Outra armadilha do labirinto de cristal é o conflitoexistente entre a forma de agir esperada dos cientistas e aesperada e construída como adequada para o feminino. Afísica é um campo masculino e exige uma postura masculinatambém daquilo que é considerado um discurso hegemônicosobre o masculino: ser agressivo, falar grosso, ir para oenfrentamento, etc. As pesquisadoras socializadas paraenfrentar as dificuldades de uma maneira dita como feminina– caracterizada pelos adjetivos: docilidade, diplomacia,tranquilidade –, ao ingressarem no meio acadêmico, sofreramum choque cultural, sofreram e ainda sofrem por terem que seadequar aos comportamentos exigidos. Uma pesquisadoracomparou esse processo de socialização da cientista a umcalejamento pelo qual se torna endurecida, insensível.Algumas também relatam que estas mesmas posturas, depoisde aprendidas, transbordam para outros ambientes, como ofamiliar, no qual isso não é bem-visto. Homens que tambémnão apresentam esse perfil exigido sofrem esse mesmoprocesso de socialização acadêmica, conforme apontadopor uma das entrevistadas. Sobre o modo de comportamentonecessário para ser ouvida, transcrevo a fala de Martha:

Se você não impõe a sua forma de falar, você épassada por cima como um trator. Eu não era assim,aprendi ao longo e agora estou fazendo uma volta àsminhas habilidades anteriores. Isto é uma coisa queinclusive você passa para seu outro ambiente... Tenhotrabalhado isso para deixar de ser assim (Marta).

A postura construída como masculina nessa áreatambém incide sobre a forma de se vestir das pesquisadoras.Esse aspecto também se contrapõe a uma socialização

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construída como feminina, em que a vaidade é incentivada.Algumas entendem essa forma como um importante passepara o pertencimento de grupo; outras, como forma deprevenção ao assédio, na qual o corpo feminino deve passardespercebido. Graziela expõe suas justificativas:

Acho que a professora tem que saber vestir, não dápara uma professora como eu que dou aula, que tem60 alunos: 57 meninos e três meninas, não dá para sevestir que não seja como uma ‘mormon’ literalmente.Acho que a questão de se vestir é importante e aquias pessoas reparam. Se a mulher se veste mais assimé pejorativo (Graziela).

O casamento, a maternidade, a manutenção darelação afetiva, as formas de agir e de se vestir são operadoscomo barreiras quando cada um desses itens são vistoscomo operados por códigos de um tipo de “feminidade”hegemônica, aquela construída como oposta,complementar, heteronormativa. Esses códigos são, emvariáveis graus, implantados32 nas mulheres. As mulheres,mais identificadas com o modo de ser e pensar masculinoem sua forma categórica, são mais bem aceitas e sofremmenos violência que as que incorporaram, em larga escala,as tecnologias de gênero. Nessa ótica, ainda que não tenhasido o foco da pesquisa, os homens que não se identificamcom o masculino hegemônico sofrem também violênciasem uma área tão fortemente androcêntrica como o meiocientífico da Física.

Outro elemento do labirinto de cristal é a dificuldadede construção de alianças e articulação políticasnecessárias à aceleração da carreira. Blanka expõe esseconjunto de relações de poder e campo científico:33

Existem critérios externos que são aparentemente muitoobjetivos. Agora é óbvio que o que vale mesmo sãocritérios não explicitados, subjetivos e que envolvemrelações de poder violentíssimas, então tem máfia...A diferença é que em ciência a máfia nunca édesvinculada do conteúdo... Nunca o cara só vaiproteger o amigo ou só ser sacana com os inimigoscomo é na política, por exemplo. Você tem que seguiros critérios, mas a maneira de julgamento sempreacaba tendo um momento que a sua parte subjetivaaparece. Você pode ter boa vontade comdeterminada linha ou com determinada pessoa, comdeterminado país e má vontade com outra linha, comoutras pessoas e com outros países (Blanka).

O engajamento político permanece como barreirapara as mulheres que não conseguem se desvencilhar dasmúltiplas jornadas de trabalho e que, de acordo com aconfiguração do sistema, têm dificuldade de formar

32 Teresa de LAURETIS (1994)denomina tecnologias de gêneroas várias formas de implante degênero (por exemplo: o cinema)e discursos institucionais (ex.: asteorias científicas) como modosde controlar o campo dosignificado social e, assim,produzir, fabricar, implantargênero. As tecnologias de gêneropodem ser entendidas comoengenharias de inscrição dadiferença sexual na ordem dodiscurso. Tecnologias que fazemcorpos e comportamentos, quedefinem posições e papéis.33 BOURDIEU, 1983.

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alianças. As alianças com outras mulheres nem sempre sãopossíveis porque, muitas vezes, são inviabilizadas peladinâmica do sexismo automático. As alianças com oshomens, às vezes, são evitadas para esquivar-se da possívelsuspeita sobre o resultado sobre seu trabalho ou areprodução de uma hierarquia desfavorável a elas. Sãofatores que apontam para uma trajetória mais solitária elenta.

Considerações FinaisConsiderações FinaisConsiderações FinaisConsiderações FinaisConsiderações Finais

É importante perceber que muitas das dificuldadesanalisadas neste artigo são comuns em outras áreas daciência e tecnologia,34 e também em outras profissões, comonas engenharias,35 nas carreiras militares36 e em altos cargosexecutivos empresariais.37 Os obstáculos estão presentestanto na progressão das carreiras quanto na atuação emáreas eminentemente masculinas. Algumas dascaracterísticas comuns, que podem ser destacadas, são: oentendimento isolado de suas trajetórias profissionais(obstáculos e superações); o relato de terem suashabilidades e competências postas à prova ao ocuparemdeterminadas posições na carreira; a dificuldade emconciliar maternidade e família; a pressão do meio emadequar seu comportamento à cultura androcêntrica, quedefine critérios para atuação e ascensão na carreira comreferência ao padrão masculino hegemônico; e o relato dediscriminações implícitas e estruturais. No entanto, tambémdestaca-se que alguns obstáculos são específicos do meioacadêmico e, mais propriamente, da área da física. Odiscurso meritocrático, ainda que presente em outrosambientes profissionais, é central no meio acadêmico. Nocaso da física, é possível enfatizar algumas peculiaridades,como a exigência de posturas agressivas para atuar nocampo e a frequência de casamento entre pesquisadoresdessa área. Assim, as análises aqui apresentadas ecentradas na pesquisa com as pesquisadoras da físicatambém contribuem para uma reflexão mais ampla sobre aparticipação feminina nos diversos ambientes profissionais.

A análise dos obstáculos e desafios do labirinto decristal é igualmente importante para contribuir com acompreensão de que o sucesso na carreira científica,embora não seja desvinculado do mérito acadêmico, nãopode ser reduzido ao fator talento como determinante. Sãomuitos os elementos que definem uma trajetóriacontemplada pelo prestígio e reconhecimento dacomunidade científica. É importante salientar que aconcepção meritocrática da ciência é associada a umavisão de ciência de cunho positivista, em que o real é

34 CABRAL, 2006; e Ângela MariaFreira LIMA E SOUZA, et al., 2002.35 Rosa Maria LOMBARDI, 2006a e2006b; CARRILHO e YANOULAS,2011.36 LOMBARDI, 2010; e MarinaMiranda Lery SANTOS e MariaLúcia ROCHA-COUTINHO, 2010.37 Maria Cristina BRUSCHINI eAndréia Brandão PUPPIN, 2004.

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desvelado e os saberes produzidos são neutros e objetivos.Esse modelo tem sido criticado por várias vertentes, como osestudos feministas, os estudos sociais da ciência,38 os estudossobre a colonialidade dos saberes39 e pelos estudos sobreracismo nas teorias científicas.40 A persistência do labirintode cristal, em parte, se deve à recusa de sua existênciafundamentada na interpretação de um sistema científicoenquanto puramente meritocrático.

Conforme apresentado, as barreiras e armadilhasdesse labirinto, internalizadas e externas, têm muitas formas,e não são poucos nem triviais os obstáculos: a representaçãosocial de quem faz ciência e do que é ciência, a divisãosexual do trabalho, o conflito entre as culturas científicas efemininas, a hostilização do feminino e suas consequentesviolências, o androcentrismo na construção de saberescientíficos, a produção e divulgação de conhecimentocientífico sexista. No entanto, não é porque os obstáculos sefundam na massa cultural que não são derrubáveis. Nãopodemos cultuar qualquer argumento do tipo deterministacultural. A cultura é dinâmica, ainda que seja de umahistoricidade não linear: de avanços e recuos. As políticaspúblicas, nesse sentido, podem contribuir com avanços maisrápidos para a igualdade de gênero nas ciências. Diantedos desafios, às vezes não é difícil imaginar comosupermulheres as cientistas que conseguiram prestígio ereconhecimento dos seus pares.

Reconhecer a existência do labirinto enquanto umpercurso cheio de obstáculos ao longo da carreira dascientistas e mapear suas armadilhas são parte fundamentalda estratégia para superar seus desafios e mesmo paraconstruir um caminho menos tortuoso, no qual as mulheresnão sejam barradas por pertencerem ao construído sexofeminino. Nesse sentido, a promoção da igualdade degênero nas ciências viabilizará a participação ampla dasmulheres, que poderão melhor contribuir para a ciência etecnologia e serem reconhecidas por suas contribuições.

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38 Algumas referências para estaabordagem são: David BLOOR,2009; Bruno LATOUR, 2008; LudwigFLECK, 2010; Andrew PICKERING,1995.39 Por exemplo, nas ciências sociais,o artigo de Edgardo LANDER (2005)oferece um panorama dasdiscussões sobre a colonialidadedo saber nessa área.40 Ver, no caso da psicologia, IrayCARONE e Maria Aparecida S.BENTO, 2002.

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BETINA STEFANELLO LIMA

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[Recebido em 11 de junho de 2012,reapresentado em 21 de janeiro de 2013 e em 6 de abril2013, e aceito para publicação em 18 de abril de 2013]

The Glass Labyrinth: the The Glass Labyrinth: the The Glass Labyrinth: the The Glass Labyrinth: the The Glass Labyrinth: the WWWWWomen omen omen omen omen SSSSScientific’s cientific’s cientific’s cientific’s cientific’s TTTTTrajectories in Physicsrajectories in Physicsrajectories in Physicsrajectories in Physicsrajectories in PhysicsAbstractAbstractAbstractAbstractAbstract: The article presents an analysis of the challenges and obstacles, faced by women inscientific career in Brazil, particularly in the field of Physics, in their attempts to achieve positionsof prestige and power. The analysis was made by participant observation in Second IUPAPConference on Women in Physics and by conducting semi-structured interviews with researchersin the area.Key Words: Key Words: Key Words: Key Words: Key Words: Gender and science; Scientific career; Women and physics.