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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM BEATRIZ FERREIRA SILVA METADISCURSIVIDADE EM ENTREVISTAS: A INSCRIÇÃO DE MANO BROWN NO CAMPO JORNALÍSTICO CAMPINAS, 2015

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM

BEATRIZ FERREIRA SILVA

METADISCURSIVIDADE EM ENTREVISTAS: A INSCRIÇÃO

DE MANO BROWN NO CAMPO JORNALÍSTICO

CAMPINAS,

2015

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BEATRIZ FERREIRA SILVA

METADISCURSIVIDADE EM ENTREVISTAS: A INSCRIÇÃO DE

MANO BROWN NO CAMPO JORNALÍSTICO

Dissertação de mestrado apresentada ao Instituto de

Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de

Campinas para obtenção do título de Mestra em

Linguística.

Orientadora: Profª. Drª. Anna Christina Bentes da Silva

Este exemplar corresponde à versão

final da Dissertação defendida pela

aluna Beatriz Ferreira Silva e orientada pela Profª. Drª. Anna Christina Bentes da Silva

CAMPINAS,

2015

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Para Maria Genoveva (in memoriam) e Maria,

minhas avós. Mulheres batalhadoras, cujas

histórias e a gana de viver tanto me inspiram.

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AGRADECIMENTOS

Nos momentos de finalização do trabalho, vejo que a gratidão cotidiana, aquela que

nos acompanha de maneira difusa e nos dá o ânimo para seguir, ganha a forma das pessoas com

as quais convivi e que me ajudaram de tantas e diferentes formas ao longo desses mais de dois

anos.

À Anna Christina Bentes, agradeço primeiramente. Para além do aprendizado

acadêmico, pelas oportunidades que tem me dado, por sua presença autêntica, gentil,

inspiradora a seus alunos e orientandos. Também pela compreensão, pelo apoio e pelos

conselhos ao longo desse tempo, nos momentos de dificuldades que enfrentei. Devo a nossa

convivência muito do amadurecimento que posso ter tido.

Aos meus pais, Terezinha e Paulo, marco o agradecimento constante, eterno, por

tudo. São as pessoas que sempre se dedicaram a mim, mesmo que isso significasse renúncias.

Foi por meio deles que primeiramente tomei conhecimento da Linguística enquanto área de

estudo pela qual eu parecia ter alguma afinidade. Intencionalmente ou não, sempre me indicam

os caminhos... Quero expressar minha gratidão também ao Victor e ao Renan, meus irmãos,

sobretudo pela curiosidade que sempre desenvolvemos juntos em relação às coisas, aos eventos,

aos temas do mundo. São duas presenças intrínsecas em mim, não importa a distância.

Ao Guilherme, o Preto, o agradecimento mais difícil de ser posto em palavras: seu

apoio aos meus sonhos tem se dado sob todas as formas possíveis. Seu amor tem sido meu

motivo mais feliz para tentar, todos os dias, ser uma pessoa melhor.

À Rafaela Mariano, amiga que admiro intensamente, obrigada mil vezes! Pelas

vezes em que me socorreu, pela parceria de sempre, pelos momentos em que compartilhamos

nossos sonhos. Que alegria é poder ter sua amizade!

Para Marianna, Cássia, Gabriela, José Rodolfo os agradecimentos são muitos e

felizes. Amigos com quem dividi 4 casas, em 2 cidades, além de conversas, aflições, conquistas,

em diferentes momentos desses últimos oito anos.

Aos professores Renato Cabral Rezende, Rosane Alencar e Mário Augusto

Medeiros da Silva, agradeço profundamente pela leitura do trabalho e pela disposição em

discuti-lo, apesar do pouco prazo para que o fizessem. Sinto-me honrada pela colaboração

desses pesquisadores!

Agradeço também à Profª. Edwiges Morato pelo valioso conhecimento que me

transmitiu em suas aulas ao longo desse tempo, bem como pelas discussões enriquecedoras

sobre meus trabalhos. Aos colegas do grupo COGITES, meu muito obrigada pela acolhida nas

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reuniões das quais tenho participado e pelas discussões interessantes que o trabalho conjunto

proporciona.

Sinto-me agradecida, ainda, pelo convívio com os amigos e colegas pesquisadores

José Cláudio Vasconcelos da Silva, Cláudia Goulart Morais, Vivian Cristina Rio Stella, Cássia

Michela Alves Nogueira, e Lívia Granato, cujas pesquisas colaboraram muito para minha

formação. Um último agradecimento, pelos momentos de discussão de meus trabalhos, devo

ainda à Profª. Vivian e ao Prof. Renato – e fico alegre em perceber que esses pesquisadores que

admiro são interlocutores de meu trabalho desde a graduação.

Muito obrigada também a Capes, cujo apoio institucional no financiamento da

pesquisa garantiu minha oportunidade de dedicação e execução do trabalho.

A todos esses, meus mais sinceros agradecimentos. Faço uma prece para que o

tempo conceda a cada um os sonhos que têm buscado.

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“(...) Meu sonho é coletivo, agora se eu descolar

uma casa no meio do mato para ouvir um som e

pá, é um sonho nem tão distante que eu gostaria de

realizar. Mas a maioria dos meus sonhos são

coletivos, o que eu quero é difícil, eu quero pra

muita gente.”

(Mano Brown, revista Rap Nacional)

“(...) Compreender é primeiro compreender o

campo com o qual e contra o qual cada um se fez.”

(Pierre Bourdieu, Esboço de auto-análise)

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RESUMO: O presente trabalho busca compreender as funções da metadiscursividade como

recurso textual-discursivo presente na produção textual de Mano Brown em duas entrevistas do

campo jornalístico, concedidas ao programa Roda Viva (TV Cultura, 2007) e ao programa Papo

com Benja (L!TV, 2011). Para isso, partimos dos estudos textuais-interativos sobre a

autorreflexividade e sua materialização no metadiscurso (KOCH, 2004; RISSO E JUBRAN,

1998; LIMA, 2009), bem como sobre os trabalhos de Bourdieu (1989a [1975]; 1989b; 1996

[1994]; 1997 [1996]) acerca da noção de campo social e dos mecanismos de organização do

campo jornalístico. A nosso ver, a metadiscursividade consiste em um recurso textual-

discursivo por meio do qual Mano Brown, agente representativo e prestigiado no movimento

hip hop e no campo da produção cultural da periferia, busca lidar com a interação no decorrer

das entrevistas, mas também com sua posição e representação no campo jornalístico. Nossa

hipótese é de que sua participação nas entrevistas selecionadas é marcada por expedientes

metadiscursivos cujas funções estão associadas aos tópicos discursivos em questão e à posição

do entrevistado no interior do movimento hip hop e no campo da produção cultural da periferia.

Para a investigação dessa hipótese, percorremos, primeiramente, os escritos de Bourdieu na

obra Sobre a televisão (1997 [1996]). Além disso, dedicamo-nos a uma observação dos modos

de socialização de Mano Brown (Cf. SILVA, 2012), haja vista que, embora sua trajetória faça

com que disponha de prestígio e representatividade no campo da produção cultural da periferia

e no movimento hip hop, a nosso ver, não deixa de incidir sobre o rapper uma estigmatização

(GOFFMAN, 1988 [1963]) decorrente de sua posição de liderança e de um posterior contato

com outros campos, como o jornalístico. Nossos passos metodológicos envolveram uma

discussão sobre a metadiscursividade em entrevistas jornalísticas e uma reconstrução dos

contextos jornalísticos que compõem nossas amostras. Foram feitos levantamentos dos

expedientes metadiscursivos produzidos por Mano Brown nas entrevistas selecionadas, com

vistas a analisar a incidência desses recursos nos diferentes tópicos discursivos desenvolvidos

nos programas. A partir desses passos, dedicamo-nos às análises de exemplos característicos da

produção do metadiscurso na fala do rapper em alguns tópicos discursivos. As conclusões

demonstram uma manifestação contínua da reflexividade de Mano Brown em ambas as

entrevistas, seja para discutir os pressupostos, perspectivas e valores expostos nas falas dos

entrevistadores, seja para se posicionar sobre diversas questões. Além disso, as análises indicam

a participação do metadiscurso nas tomadas de posição de Mano Brown, sobretudo quando

tópicos que versam sobre sua representatividade ou sua estigmatização são instaurados nessas

entrevistas.

Palavras-chave: Metadiscurso – Entrevistas - Campo social - Teoria da prática - Linguística

Textual.

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ABSTRACT: The purpose of this study is to understand the metadiscourse functions as a

resource on Mano Brown’s speech, in two journalistic interviews granted for TV shows: Roda

Viva (TV Cultura, 2007) and Papo com Benja (L!TV, 2011). To that end, text/interactive studies

related to self-reflexivity and its materialization in metadiscourse (KOCH, 2004; RISSO AND

JUBRAN, 1998; LIMA, 2009), and the studies of Bourdieu (1980; 1989a [1975]; 1989b; 1991;

1996 [1994]; 1997 [1996]) regarding the notion of social field and the organization mechanisms

of the journalistic field were used as a start point to the research. Within this study,

metadiscourse is considered a resource from which Mano Brown – representative and renowned

player of the hip hop movement and the periphery’s cultural production field –, in the course of

the interviews, tries to handle not only his interaction, but his position and representation in the

journalistic field. To research this assumption, Bourdieu’s book, On Television (1997 [1996]),

was used as early reference. Furthermore, Mano Brown’s modes of socialization were also

observed (Cf. SILVA, 2012), considering that, although his trajectory provides him with

prestige and representation in the cultural production field of the periphery and the hip hop

movement, to our understanding, it does not seize to impose on the rapper a stigmatization

(GOFFMAN, 1988 [1963]) resulting from his leadership position and from a later contact with

other fields, such as journalistic. The study methodolgy includes a discussion on the

metadiscourse in journalistic interviews and a reconstruction of the journalistic contexts that

form the samples here used. A survey was performed on the metadiscursive resources present

in these interviews, particularly the ones produced by Mano Brown, to analyze the occurrence

of such resources within the different discourse topics developed in the shows. From these steps,

analyses were performed on characteristic examples of the metadiscourse production in the

rapper speech, regarding a number of discourse topics. Our conclusions demonstrate an ongoing

manifestation of Mano Brown’s reflexivity in both interviews, whether to discuss the

assumptions, perspectives and values present in the interviewers’ speech, or to set his position

on a number of matters. Furthermore, the multiple analyses indicate that metadiscourse takes

part in Mano Brown’s position statement, especially when topics related to his reflexivity or

stigmatization are brought into these interviews.

Keywords: Metadiscourse – Interviews - Social field - Practice theory - Text Linguistics.

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Sumário

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 13

1. SOBRE A NOÇÃO DE CAMPO SOCIAL E O CAMPO JORNALÍSTICO ............. 20

1.1 Propriedades da noção de campo social ....................................................................... 21

1.2 Sobre o papel da linguagem e do metadiscurso nos campos sociais ............................ 27

1.3 O campo jornalístico segundo a visão de Pierre Bourdieu ........................................... 34

1.4 Mecanismos de organização do campo jornalístico na visão bourdiana ...................... 39

1.5 Algumas conclusões ..................................................................................................... 43

2. METADISCURSIVIDADE EM ENTREVISTAS: SOBRE AS CATEGORIAS DE

ANÁLISE, OS RECORTES METODOLÓGICOS E A CONTEXTUALIZAÇÃO DO

CORPUS ................................................................................................................................... 45

2.1 A metadiscursividade como dispositivo analítico de entrevistas jornalísticas ............. 45

2.2 Dos recortes metodológicos.......................................................................................... 53

2.2.1 Seleção e transcrição das amostras de entrevista.......................................................... 53

2.2.2 Identificação e seleção dos expedientes metadiscursivos............................................. 56

3. RECONSTRUINDO O CONTEXTO SOCIAL: A TRAJETÓRIA DE MANO

BROWN E AS ENTREVISTAS JORNALÍSTICAS .............................................................. 60

3.1 Representatividade e estigmatização de Mano Brown ................................................. 62

3.2 O negro drama: trajetória de Mano Brown no campo da produção cultural da periferia .

...................................................................................................................................... 71

3.3 A inscrição de Mano Brown no campo jornalístico ..................................................... 82

3.4 Reconstruindo o contexto das entrevistas ..................................................................... 90

3.4.1 O programa Roda Viva ................................................................................................. 91

3.4.2 O programa Papo com Benja...................................................................................... 103

3.5 Algumas conclusões ................................................................................................... 111

4. EXPEDIENTES METADISCURSIVOS: RECURSOS TEXTUAIS-DISCURSIVOS

NA FALA DE MANO BROWN EM ENTREVISTAS JORNALÍSTICAS ......................... 116

4.1 Analisando o programa Roda Viva de 24/09/2007 ..................................................... 117

4.1.1 Tópicos desenvolvidos no programa .......................................................................... 117

4.1.2 Expedientes metadiscursivos presentes na fala de Mano Brown no programa Roda

Viva .................................................................................................................................... 123

4.1.3 Expedientes metadiscursivos nas falas dos entrevistadores do programa Roda Viva.146

4.1.4 Distribuição dos expedientes metadiscursivos nos diferentes supertópicos do programa

Roda Viva ............................................................................................................................... 149

4.1.5 Algumas conclusões ................................................................................................... 151

4.2 Analisando o programa Papo com Benja de 06/2011 ................................................ 152

4.2.1 Tópicos desenvolvidos no programa .......................................................................... 152

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4.2.2 Expedientes metadiscursivos presentes na fala de Mano Brown no programa Papo

com Benja ............................................................................................................................... 158

4.2.3 Expedientes metadiscursivos presentes na fala do entrevistador no programa Papo

com Benja ............................................................................................................................... 170

4.2.4 Distribuição dos expedientes metadiscursivos nos supertópicos do programa Papo com

Benja .................................................................................................................................... 175

4.2.5 Algumas conclusões ................................................................................................... 177

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 179

BIBLIOGRAFIA: ................................................................................................................... 185

ANEXOS ................................................................................................................................ 193

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13

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como ponto de partida o contato entre as proposições

teóricas da Linguística Textual, enquanto disciplina integrativa voltada para a produção textual,

e conceitos formulados nos estudos da teoria da prática, de base sociológica. Tomaremos como

princípio a ideia de que é preciso, mesmo de dentro da pesquisa e da análise linguística,

reconhecer que os fenômenos linguísticos não são apenas linguísticos stricto sensu, de modo

que nosso campo de estudo, a depender dos interesses de pesquisa, possa recorrer a teorias de

base social mais forte com vistas a dar conta, em alguns níveis, da complexidade das ações de

linguagem, quer sejam mais cotidianas ou mais institucionalizadas.

Na construção desse ponto de contato, parecem fundamentais as asserções de

autores como Koch (2004: 175), ao afirmar que

(…) a Linguística Textual vem-se tornando, cada vez mais, um domínio

multidisciplinar, em que se busca compreender e explicar essa entidade

multifacetada que é o texto – fruto de um processo extremamente complexo

de interação social e de construção social de sujeitos, conhecimento e

linguagem.

Os postulados de Koch (2004) sobre os rumos da Linguística Textual enquanto

disciplina aventam a ideia de que, sendo a língua uma dimensão social e a própria condição de

sociabilidade, recebe a chancela para tratar daquilo atribuído ao “social” enquanto fenômeno

de análise. No entanto, assumir a Linguística Textual como interdisciplinar não significa deixá-

la desprovida de rigor, mas, talvez, estabelecer modos de investigar as relações entre a

materialidade linguística e, por exemplo, a prática e os usos da linguagem, na medida em que

na língua também são manifestas a trajetória e a natureza histórica dos sujeitos.

Dentre outros empreendimentos analíticos desenvolvidos a partir da arbitragem

entre estudos textuais-interativos - que tomam a ideia do texto enquanto fenômeno e enquanto

evento comunicativo (KOCH, 2004, BEAUGRANDE, 1997) - e estudos sociolinguísticos,

encontram-se os trabalhos de Bentes (2008; 2009), Bentes e Rio (2006), Bentes, Mariano e

Ferreira-Silva (2013), Bentes, Ferreira-Silva e Mariano (2013), dentre outros. Embora

interessados em fenômenos assaz diversos, esses trabalhos contém como um segundo ponto

comum o interesse em processos de produção textual e a elaboração de estilos, conforme tratado

por abordagens interacional-interpretativas no âmbito da Sociolinguística.

Os trabalhos sobre a produção de estilos, que contemplam interesses de pesquisa da

“terceira onda” (ECKERT, 2012) dos estudos sobre variação, encontraram embasamento inicial

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sobretudo nas proposições de Eckert (2001), acerca do significado social da variação linguística

e de seu papel na construção dos estilos. Seus estudos trouxeram os processos de estilização,

por meio da linguagem, à agenda da Sociolinguística e contribuíram para um olhar voltado à

fala dos indivíduos compreendidos como ícones sociolinguísticos (ECKERT, 2001).

Na delimitação do recorte analítico do presente trabalho, partimos da compreensão

aludida pelo trabalho de Mariano (2012) acerca dos processos de estilização presentes na fala

de um rapper considerado como um ícone sociolinguístico de parcela assaz significativa de

jovens e adultos. Como sugere a autora, processos textuais podem compor alguns traços da

manipulação estilística de sujeitos representativos como Mano Brown – o que liga o rapper a

nosso interesse em observar as relações entre ações de textualização e ações sociais mais

amplas.

Posteriormente, o trabalho de Ferreira-Silva (2011) envolveu a observação de uma

entrevista concedida por Mano Brown ao programa Roda Viva, da TV Cultura. Ao enfocar o

problema das inter-relações entre referenciação e progressão tópica, seu trabalho demonstrou a

intensa negociação dos objetos-de-discurso que emergem ao longo das falas no decorrer da

entrevista e sinalizou essa negociação como constitutiva às questões de manutenção e reforço

de identidades sociais.

Bentes, Ferreira-Silva e Mariano (2013) demonstraram como certos recursos

textuais-discursivos (como o uso de marcadores discursivos, a gestão do tópico discursivo, a

negociação de referentes e o emprego de estratégias de atenuação e de impolidez) podem

consistir em estratégias mobilizadas por Mano Brown. Segundo as autoras, o rapper e

protagonista de movimento social empregaria tais recursos para lidar com situações

comunicativas ou sociais nas quais precisa, a um só tempo, atender a restrições do contexto

interacional em que está presente e regular implicações mais gerais de suas ações de linguagem

para sua representação social.

Os trabalhos brevemente considerados até aqui partem de pesquisas

sociolinguísticas para compreender os processos de estilização em termos dos papéis e das

atividades que indivíduos como Mano Brown desempenham nas suas relações sociais, no

âmbito das comunidades de práticas. No entanto, o presente trabalho propõe outro locus de

observação da relação entre as ações de textualização e ações sociais mais amplas levadas a

cabo por sujeitos representativos como Mano Brown em contextos específicos. A nosso ver, a

compreensão das relações que se estabelecem nas práticas linguísticas mais institucionalizadas

de Mano Brown faz com que possamos mobilizar conceitos da teoria da prática, tal como

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desenvolvida por Pierre Bourdieu (1980; 1989a [1975]; 1989b; 1991; 1996 [1994]; 1997

[1996]) e, posteriormente, tratada nos estudos de Hanks (2008) sobre a prática comunicativa.

Consideramos que a representatividade de ícones sociolinguísticos como Mano

Brown não o isenta da estigmatização que incide sobre agentes ligados ao movimento hip hop

no campo da produção cultural da periferia. A trajetória de ascensão de indivíduos como Brown,

por meio de uma produção cultural e musical que representa as vivências da periferia, faz com

que disponha de capital simbólico e econômico que o distingue dos demais agentes ligados ao

campo. É possível considerar que sua trajetória, a um só tempo, imprime sua marca como porta-

voz da periferia e também como indivíduo que não mais apresenta um pertencimento exclusivo

ao grupo de indivíduos que convivem com o cotidiano de sanções retratado em suas letras (Cf.

GOFFMAN, 1988 [1963]).

É preciso considerar que a trajetória de ascensão de sujeitos representativos e

estigmatizados como Mano Brown os insere em práticas linguísticas que, a nosso ver, consistem

em contextos privilegiados para a observação de fenômenos linguísticos ligados às ações de

textualização e a seus impactos. Isso porque sua posição de ícone sociolinguístico

representativo do campo da produção cultural da periferia no movimento hip hop1 faz com que

esteja inserido em outros campos sociais fortemente organizados, nos quais o prestígio de sua

posição não está dado a priori. É o que ocorre, por exemplo, com a inserção de Mano Brown

no campo jornalístico, estruturado por uma série de mecanismos que podem conferir mais ou

menos poder simbólico e legitimidade a muitos de seus agentes, sejam internos (como

jornalistas, produtores ou diretores) ou externos (como os participantes convidados).

Nesse sentido, cabe analisarmos contextos específicos de sua inserção no campo

jornalístico, como as entrevistas jornalísticas concedidas por Mano Brown que foram

selecionadas para compor o corpus do presente trabalho. As amostras consistem em entrevistas

concedidas por Mano Brown a diferentes instituições midiáticas: os programas Roda Viva

(transmitido pela TV Cultura, em 2007) e Papo com Benja (exibido pela L!TV, em 2011).

1Ao nos referirmos ao movimento hip hop, consideramos um universo de produção cultural que abrange não apenas

a música. De acordo com Zeni (2004: 230), o hip hop envolve quatro elementos: “o break (a dança de passos

robóticos, quebrados e, quando realizada em equipe, sincronizados), o grafite (a pintura, normalmente feita com

spray, aplicada nos muros da cidade), o DJ (o disc-jóquei) e o rapper (ou MC, mestre de cerimônias, aquele que

canta ou declama as letras sobre as bases eletrônicas criadas e executadas ao vivo pelo DJ). A junção dos dois

últimos elementos resulta na parte musical do hip hop: o rap (abreviação de rythym and poetry, ritmo e poesia, em

inglês)”. Zeni (2004) chama atenção para um quinto elemento considerado presente no hip hop por diversos de

seus integrantes: os valores de conscientização, de compreensão e valorização da etnia e da herança cultural negra,

a luta contra o preconceito racial e uma conduta de rejeição à ganância, ao sucesso fácil e até mesmo à fama por

meio da presença na grande mídia.

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Interessa especialmente a este trabalho a investigação dessa relação entre ações

sociais mais amplas, como as tomadas de posição no campo jornalístico, e ações de

textualização, como o emprego de expedientes metadiscursivos em entrevistas. A nosso ver, a

inspeção da metadiscursividade em contextos como os mencionados acima permite

compreender como Mano Brown gerencia e configura sua posição e representação nas

entrevistas presentes no campo jornalístico. Uma vez que entram em jogo distintos interesses,

habitus e diferentes formas de poder simbólico entre os participantes de uma entrevista, o

emprego do metadiscurso pode se tornar um recurso para as ações sociais mais amplas de

entrevistados como o rapper, cuja participação nesses contextos representa um ponto de

conexão entre campos sociais distintos e fortemente organizados.

Para Koch (2004: 120), a produção textual envolveria “estratégias metadiscursivas”

que “tomam por objeto o próprio ato de dizer”. Nas palavras da autora,

(...) ao colocar em ação tais estratégias, o locutor avalia, corrige, ajusta,

comenta a forma do dizer; ou, então, reflete sobre sua enunciação,

expressando a sua posição, o grau de adesão, de conhecimento, atenuações,

juízos de valor etc., tanto em relação àquilo que está a dizer, como em relação

a outros “ditos”. Em outras palavras: os enunciados resultantes da atuação de

estratégias metadiscursivas têm um estatuto discursivo diferente daquele dos

enunciados veiculadores de conteúdo informacional: enquanto as estratégias

de organização do conteúdo proposicional atuam imediatamente no plano do

enunciado, as estratégias metadiscursivas atuam no âmbito da própria

atividade discursiva. Evidencia-se, nelas, a propriedade auto-reflexiva da

linguagem, isto é, a potencialidade que têm os discursos de se dobrarem a si

mesmos. (KOCH, 2004: 120)

Importa ressaltar que compreender os expedientes metadiscursivos2 como recursos

textuais-discursivos empregados por sujeitos em contextos complexos pressupõe seu

tratamento como estratégias. Contudo, como esclarece Rezende (2010), pressupor a existência

de um sujeito estrategista, cujas ações são forjadas em função de seu diálogo com o espaço

social e das disposições que incorpora e pratica em diferentes contextos, não se confunde com

assumir a ideia de um sujeito mentalista volitivo. Segundo o que demonstra o autor, o

tratamento da metadiscursividade enquanto recurso textual-discursivo presente na prática

2Como exemplificação breve dos expedientes metadiscursivos com os quais nos deparamos, podemos citar

segmentos como “agora também vou falar dos acertos” ou “tem um barato que eu digo sempre”, ou ainda os

trechos “você usa o termo ‘traficante’- vamos usar “comerciante’” e “quem sou eu para dizer o que é...?” – todos

esses presentes nos dados de fala de Mano Brown que coletamos. Quanto aos expedientes presentes nas falas dos

entrevistadores, referimo-nos a expedientes como “Mano, você costuma dizer que...” ou “antes de falar de futebol,

vamos falar de música...”.

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comunicativa corrobora uma noção de sujeito como agente que incorpora possibilidades de

pensar e agir, passíveis de serem ativadas em suas ações linguísticas.

Consideramos que o trabalho de Bourdieu nos ajudará na compreensão das ações

de textualização presentes em nossos dados, haja vista que sua obra nos fornece um grande

arcabouço de categorias para tratar da dinâmica social tal como se apresenta nas entrevistas. A

nosso ver, partir das contribuições de Bourdieu (1980; 1989a [1975]; 1989b; 1991; 1996 [1994];

1997 [1996]), por meio da teoria da prática, permite observarmos os fenômenos textuais-

discursivos sem que se esvaia a materialidade linguística, mas também compreendendo-os

enquanto ações e processos ocorridos numa teia de relações mais amplas que contingenciam

em algum modo a linguagem.

As justificativas para que se delimitasse o recorte analítico do presente trabalho

partiram de um interesse em alinhar o corpus desta pesquisa linguística a dados que nos

desafiassem na busca pela compreensão de realidades e configurações sociais atuais. Nesse

sentido, consideramos que o tratamento de dados nos quais sujeitos representativos como Mano

Brown participam de contextos midiáticos podem ser interessantes, posto, primeiramente, que

as ações midiáticas e a própria atuação do campo jornalístico têm se colocado como questão

frequente, cotidiana (e, por que não, preocupante?), no seio dos debates nacionais atuais.

Uma segunda razão para a delimitação do recorte analítico feito no presente

trabalho pode ser melhor explicada se levarmos em conta o que se anuncia sobre os grupos

sociais do Brasil: após incluir dezenas de milhares de pessoas em um novo status econômico-

social, o país já ocuparia posição entre as grandes economias mundiais. Além disso, fala-se da

ascensão de grupos sociais aos espaços antes ocupados apenas por uma pequena parcela da

população brasileira. No entanto, sabemos que o viés economicista pouco descreve de nossa

realidade social (SOUZA, 2009), sobretudo das ações, sejam cotidianas ou mais

institucionalizadas, das mulheres e homens que se tornaram seres visíveis aos olhos de toda a

população e, mais ainda, aos olhares de campos sociais fortemente organizados e interessados

naquilo que podem representar as trajetórias de ascensão e representatividade de muitos

indivíduos.

Trabalhos como o de Silva (2011) têm compreendido o recente alcance da produção

cultural de sujeitos ligados à periferia e à literatura negra e literatura periférica, mais

especificamente. Como mostra o autor, a repercussão recente da produção cultural desses

sujeitos, se, por um lado, proporciona-lhes novos contextos de exposição e alcance para seu

trabalho – por exemplo, no campo jornalístico, capaz de difundir sua produção, suas vivências

e a própria periferia enquanto ideia –, por outro lado, não logrou livrá-los dos estigmas que

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compõem sua trajetória e sua produção cultural. A nosso ver, considerações como essa sobre a

inserção de sujeitos ligados à produção cultural literária podem fornecer pistas importantes

sobre os modos de inserção de indivíduos como Brown3 nos contextos jornalísticos como os de

entrevista.

Acreditamos que contextos de participação na mídia nos quais estejam presentes

agentes representativos como Mano Brown por vezes podem fazer com que venham à tona os

conflitos constitutivos da posição desses agentes. Por conta disso, são necessárias análises que

lancem um olhar sobre as práticas desses sujeitos e, mais especificamente, sobre as práticas

linguísticas desses sujeitos. Conforme tratamos em estudos anteriores, muitas das situações

comunicativas envolvendo Mano Brown, por exemplo, consistem em contextos nos quais há

um movimento interessante da periferia ao centro (BENTES, FERREIRA-SILVA e

MARIANO, 2013). Nossa hipótese é de que sua participação nas entrevistas selecionadas é

marcada por expedientes metadiscursivos cujas funções textuais-discursivas são semelhantes

em ambos os contextos, apesar das profundas diferenças dessas entrevistas no interior do campo

jornalístico.

Além disso, acreditamos que, ao longo dos contextos analisados, a

metadiscursividade na fala de Mano Brown representa um modo de agir frente aos tópicos

instaurados pelos entrevistadores (em função das perspectivas mobilizadas nesses tópicos e dos

impactos que esses tópicos teriam para sua representação social como um todo) e um recurso

para suas tomadas de posição no interior dos diferentes contextos no campo jornalístico.

Os pressupostos teóricos e os interesses de pesquisa anunciados até o momento

fazem com que possamos delinear os seguintes objetivos gerais: a) caracterizar a(s) função(ões)

da metadiscursividade como recurso textual-discursivo presente nas entrevistas concedidas por

Mano Brown aos programas Roda Viva e Papo com Benja; b) compreender o papel da

metadiscursividade como recurso para que Mano Brown, agente prestigiado no movimento hip

hop do campo da produção cultural da periferia, possa atuar no interior desses contextos

específicos do campo jornalístico. Como objetivos específicos, o presente trabalho se propõe a

analisar os expedientes metadiscursivos produzidos por Mano Brown nas entrevistas,

considerando os seguintes aspectos: (i) suas propriedades de acordo com estudos textuais-

interativos produzidos por Koch sobre as estratégias metadiscursivas (2004) e por Risso e

Jubran sobre o processamento metadiscursivo do texto (1998); (ii) sua ocorrência nos tópicos

3Ligado à produção cultural musical e ao movimento hip hop, Mano Brown pode ser elencado como um dentre

outros diversos atores sociais que ocupam uma posição semelhante, marcada pela representatividade e pela

estigmatização resultantes de suas posições em campos sociais distintos (Cf. SILVA, 2012).

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discursivos desenvolvidos ao longo das entrevistas; (iii) suas funções com relação à interação

estabelecida entre Mano Brown e seus entrevistadores em ambos os programas e (iv) seu papel

como recurso textual-discursivo para qualificar a inserção do rapper no campo jornalístico.

Ainda que tenhamos como objetivo compreender um fenômeno textual-discursivo

específico (a metadiscursividade) enquanto um recurso presente em dois contextos do campo

jornalístico, uma descrição densa (Cf. GEERTZ, 1973) desses dados demandaria outras análises

sobre os processos históricos presentes em ambas as entrevistas. A nosso ver, as limitações do

trabalho nos impedem de produzir (mas, talvez, não de sinalizar e/ou relacionar) uma análise

que reconstrua em sua totalidade o momento histórico das entrevistas selecionadas para

tratarmos do campo jornalístico. No entanto, tais limitações não impedem que lancemos luzes

sobre o papel da linguagem na complexidade das práticas de um ator social inscrito nesse

campo.

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1. SOBRE A NOÇÃO DE CAMPO SOCIAL E O CAMPO JORNALÍSTICO

No presente capítulo, discutimos a contribuição de Bourdieu (1980; 1989a [1975];

1989b; 1991; 1996 [1994]) para os estudos linguísticos, por meio do conceito de “campo social”

e sua relação com a linguagem, bem como algumas questões de seus escritos sobre o campo

jornalístico divulgados na obra Sobre a televisão (1997 [1996]). Além disso, consideraremos

de que modo podemos observar as entrevistas que compõem nosso corpus à luz da teoria da

prática, sem que nosso foco de análise deixe de ser, em última instância, a linguagem. Num

primeiro momento, uma apresentação do conceito de campo social, bem como uma discussão

sobre o campo jornalístico podem auxiliar na compreensão das relações que tomam forma em

nosso corpus de análise.

De acordo com Hanks (2008), dentre os modos pelos quais um estudioso da

linguagem pode ler Bourdieu, um primeiro está ligado às noções de performatividade, língua

legítima, descrição e censura, por exemplo, e mobiliza o que afirmou o autor sobre a língua e a

linguística. Um segundo modo de interpelar a obra de Bourdieu poderia consistir na discussão

acerca de sua visão sobre teóricos da linguagem como Chomsky, Saussure, Benveniste, Labov

ou Austin (HASAN, 1999, apud HANKS, 2008) – embora, para Hanks (2008: 35), esse modo

de leitura revele “mais sobre Bourdieu do que sobre a língua”, já que poderia partir de dizeres

que porventura ocorreram em alguma polêmica na qual se envolveu o autor. No entanto, como

assinala Hanks (2008:35), “uma leitura de segundo nível” da obra de Bourdieu poderia ser mais

produtiva para um estudioso da linguagem, pois permitiria explorar o tratamento dado pelo

sociólogo a uma miríade de fenômenos sociais que, embora não delimitem a língua enquanto

seu opus operatum, compreendem os fenômenos linguísticos como um modus operandi.

Ao circunscrever a obra de Bourdieu como importante à análise linguística, Hanks

(2008) atenta para a “profunda consonância entre muito da teoria da prática e o arcabouço

intelectual da linguística antropológica” (GODDARD, 2002, e HANKS, 1996 apud Hanks,

2008: 56) e cita alguns fenômenos que, a partir da contribuição do sociólogo, fizeram parte do

interesse de pesquisadores da linguagem, como a oficialização, a dominação, a autorização e a

legitimação, por exemplo. No entanto, segundo afirma Hanks (2008: 56), a relação entre os

conceitos de habitus e campo pode delimitar diversos fenômenos – como a ideologia linguística,

o estilo, a interação, assim como outros fenômenos linguísticos correlatos ao conceito de

habitus – nas palavras do autor, ainda lacunares na área, mas “fecundos para pesquisa futura na

prática linguística”.

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Consideramos que o trabalho de Bourdieu nos ajudará na compreensão das ações

de textualização presentes em nossos dados, haja vista que sua obra nos fornece um grande

arcabouço de categorias para tratar da dinâmica social tal como se apresenta nas entrevistas que

compõem nosso corpus. Analisar qual o papel de algumas das ações de textualização do rapper

Mano Brown no bojo das relações que se estabelecem ao longo das entrevistas pode significar

um maior entendimento acerca das dinâmicas próprias do campo jornalístico e da complexidade

da inserção dos sujeitos nesses contextos. Nas palavras de Bourdieu (1989b: 69):

A teoria geral da economia dos campos permite descrever e definir a forma

específica de que se revestem, em cada campo, os mecanismos e os conceitos

mais gerais (capital, investimento, ganho), evitando assim todas as espécies

de reducionismo, a começar pelo economismo, que nada mais conhece além

do interesse material e da busca da maximização do lucro monetário.

Compreender a gênese social de um campo, e apreender aquilo que faz a

necessidade específica da crença que o sustenta, do jogo da linguagem que

nele se joga, das coisas materiais e simbólicas em jogo que nele se geram, é

explicar, tornar necessário, subtrair ao absurdo do arbitrário e do não-

motivado os actos dos produtores e as obras por eles produzidas e não, como

geralmente se julga, reduzir ou destruir.

Quando menciona a compreensão do “jogo da linguagem” como parte da gênese

social de um campo, Bourdieu trata da linguagem como dimensão de significação importante à

análise das ações que se dão no interior de um campo social. É nesse sentido que se constrói a

proposta de articulação teórica do presente trabalho, pois, a nosso ver, partir das contribuições

de Bourdieu (1980; 1989a [1975]; 1989b; 1991; 1996 [1994]; 1997 [1996]), permite

observarmos os fenômenos textuais-discursivos sem que se esvaia a materialidade linguística,

mas também compreendendo-os enquanto ações e processos ocorridos numa teia de relações

mais amplas que contingenciam, em alguma medida, a linguagem.

1.1 Propriedades da noção de campo social

O conceito de campo, cuja reflexão por parte de Bourdieu se inicia nos anos de

1960 (CATANI, 2011), representa uma confluência entre trabalhos do próprio autor sobre a

sociologia da arte e alguns pontos da obra de Max Weber (1992), na qual pode ser vista uma

reinterpretação de termos oriundos da economia (como “monopólio religioso”, “concorrência”,

“oferta”, “procura”). De acordo com Bourdieu (1989: 68), a construção de seus objetos de

análise exigiu uma reinterpretação relacional de propriedades gerais aplicáveis ao campos que

haviam sido assinaladas pela teoria econômica. Para Arribas (2012), a sociologia da religião na

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obra de Max Weber (Cf. WEBER, 1992) talvez tenha sido, dentre os trabalhos clássicos, o mais

marcante para Bourdieu e para outros grandes sociólogos como Norbert Elias e Erving

Goffman. Arribas (2012) lembra a elaboração da noção de “esferas de valor” por parte de Weber

(1992) como um método de regionalizar o mundo social com vistas a compreender as ações

cotidianas dos indivíduos em diversos domínios – o que se aproximaria da regionalização do

espaço social tal como feita por Bourdieu com a noção de campo. Segundo a autora,

(...) ao segmentar o mundo social em esferas autônomas de valor, Weber

mostra que os microcosmos econômico, jurídico, artístico, religioso, etc.

articulam-se, ao longo do tempo, por meio de uma lógica inerente ou, nas

palavras de Weber, conforme sua 'legalidade própria'. (ARRIBAS, 2012: 54)

Tais considerações sobre o trabalho de Weber nos indicam semelhanças com o

empreendimento analítico de Bourdieu (1996 [1994]), tendo em vista que a elaboração da noção

de campo se apresenta como uma proposta do sociólogo francês para analisar de modo

relacional os microcosmos de ação dos sujeitos (BOURDIEU, 1989b: 23-34), à luz das relações

de poder responsáveis pela dominação simbólica nos mais diferentes modos - e não apenas

economicamente, uma vez que uma explicação puramente economicista para o espaço social

parece ser encarada por Bourdieu como um grande reducionismo (Cf. CATANI, 2011;

ARRIBAS, 2012; SOUZA et al., 2009).

É preciso destacar que, para Bourdieu (1989b; 1996 [1994]), um campo é

identificado por “(a) uma configuração de papéis sociais, de posições dos agentes e de estruturas

às quais estas posições se ajustam; (b) o processo histórico no interior do qual estas posições

são efetivamente assumidas, ocupadas pelos agentes (individuais e coletivos)”, tal como

sistematiza Hanks (2008: 43). Encontram-se, na sistematização de Hanks (2008:43),

informações que tratam da relação entre a própria definição de um campo social e a prática de

seus agentes. Essa relação pode ser melhor compreendida se tomarmos as seguintes

considerações de Bourdieu (1996 [1994]: 159):

Todos os mundos sociais relativamente autônomos, que chamo de campos –

campo artístico, campo científico, campo filosófico etc. – exigem daqueles

que neles estão envolvidos um saber prático das leis de funcionamento desses

universos, isto é, um habitus adquirido pela socialização prévia e/ou por

aquela que é praticada no próprio campo.

As posições e os papéis ocupados pelos indivíduos num determinado campo,

segundo Bourdieu (1989b; 1996 [1994]), devem ser observados em termos de sua oposição e

da possibilidade que têm os sujeitos de ocuparem posições específicas num campo: assim é que,

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na esteira desse pensamento, podemos tomar o campo jornalístico, por exemplo, para entender

enquanto posições diferentes aquelas desempenhadas por produtores e jornalistas televisivos

ou por entrevistadores, diretores e entrevistados (estes últimos, como notaremos adiante, podem

se inscrever nesse campo sujeitos a diferentes impactos). Com isso, podemos dizer que

Bourdieu (1989b; 1996 [1994]) constrói uma observação sociológica que busca apreender a

relação constitutiva entre indivíduo e sociedade.

As escolhas que os indivíduos efetivamente podem ou não por em curso nos campos

em que atuam, de acordo com os papéis que ocupam nessa estrutura, são tratadas por Bourdieu

(1996 [1994]: 61) como “tomadas de posição”, que podem fazer com que se inscrevam no

campo de modo mais ou menos prestigiado, por exemplo. É o que expressa o autor no seguinte

excerto:

Vemos que a relação que se estabelece entre as posições e as tomadas de

posição nada tem de uma determinação mecânica: cada produtor, escritor,

artista, sábio constrói seu próprio projeto criador em função de sua percepção

das possibilidades disponíveis, oferecidas pelas categorias de percepção e de

apreciação, inscritas em seu habitus por uma certa trajetória e também em

função da propensão a acolher ou recusar tal ou qual desses possíveis, que os

interesses associados a sua posição no jogo lhe inspiram. (Bourdieu, 1996

[1994]: 64)

Ao tratar das tomadas de posição, vemos que Bourdieu não ignora que a descrição

de um campo necessita levarmos em conta sua relação com os agentes, através dos valores que

os regem, bem como através das trajetórias dos sujeitos e seu habitus durante sua inserção e

experiência no campo. Importa ressaltar que, para o autor (BOURDIEU, 1996 [1994]), a

inserção dos sujeitos nos campos sociais, isto é, suas posições sociais, criam disposições para

agir de determinado modo e não de outro.

As condutas individuais, nesse caso, tanto podem representar a externalização de

um sistema de regras e valores presentes em cada campo como podem ser moldadas em função

das práticas dos sujeitos num determinado campo. Assim é que podemos ligar o conceito de

campo social à noção de habitus formulada por Bourdieu (1996 [1994]), já que vincular-se a

socializações de campos específicos faz com que os sujeitos sejam moldados pelas posições

que ocupam ou tomam nesses campos. Desse modo, por lidar com a relação entre o espaço

social e a prática individual, a noção de campo pode ser vista como ferramenta heurística que

nos auxilia na compreensão dos mecanismos de dominação e de reprodução, na medida em que,

assim como conceitos correlatos de capital simbólico e de habitus, colabora para a

desnaturalização e o desvendamento dessas relações (Cf. CATANI, 2011).

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Como mencionamos acima, para Bourdieu (1996 [1994]), a noção de campo

necessita ser compreendida em sua relação com as categorias de capital simbólico e de habitus.

Compreendemos o habitus enquanto um conjunto de disposições para agir de formas

específicas (BOURDIEU, 1996 [1994]: 21-22). Quando inseridos em socializações nos mais

diversos campos, como o familiar e o escolar, por exemplo, os sujeitos desenvolveriam

esquemas específicos de perceber a realidade e conceberiam perspectivas individuais definidas.

Nas palavras do autor (1996 [1994]: 42),

Os “sujeitos” são, de fato, agentes que atuam e que sabem, dotados de um

senso prático (título que dei ao livro no qual desenvolvo essa análise), de um

sistema adquirido de preferências, de princípios de visão e de divisão (o que

comumente chamamos de gosto), de estruturas cognitivas duradouras (que são

essencialmente produto da incorporação de estruturas objetivas) e de

esquemas de ação que orientem a percepção da situação e a resposta adequada.

O habitus é essa espécie de senso prático do que se deve fazer em dada

situação – o que chamamos, no esporte, o senso do jogo, arte de antecipar o

futuro do jogo inscrito, em esboço, no estado atual do jogo.

As considerações acima sustentam a ideia de que, para Bourdieu, “através do

habitus, o social fica impresso no individual” – conforme afirma Hanks (2008: 36) – em termos

de “estruturas cognitivas” e de “esquemas de ação”. Assim, apesar de Bourdieu (apud

WACQUANT, 2007) atentar-se sobretudo para as disposições corporais advindas do habitus

dos sujeitos, podemos perceber que o autor reconhece a estruturação do habitus também na

definição social do falante em termos mentais e não apenas fisicamente. O habitus designaria

uma habitualidade corporificada e também um esquema incorporado de disposições para agir,

pensar e sentir, como um senso prático pré-reflexivo (Cf. SOUZA et al., 2009). Para Bourdieu

(1996 [1994]), o habitus caracteriza-se como um sistema durável e transponível de disposições,

uma estrutura estruturada, posto que resulta das socializações, e estruturante, dado que pode

configurar as práticas dos indivíduos. Portanto, é por meio do habitus que “o espaço de

posições sociais se retraduz em um espaço de tomadas de posição” (BOURDIEU, 1996 [1994]:

42).

Já à noção de capital (BOURDIEU, 1996 [1994]: 97-114) diz respeito todo recurso

ou poder num acúmulo de bens simbólicos – não apenas econômicos. Desse modo, o capital

simbólico como um todo reuniria a detenção de capital econômico (proveniente da renda ou

facilmente revertido em montantes financeiros através, por exemplo, de imóveis e

propriedades), além de considerar que os agentes são identificados no espaço social e ocupam

posições nos mais variados campos também segundo a mobilização de seu capital cultural

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(resultante dos conhecimentos e saberes reconhecidos, em geral, institucionalmente, através de

diplomas e títulos) e de seu capital social (no qual se convertem as relações sociais dos

indivíduos, assumindo que seu lugar numa teia de relações pode constituir um recurso de

dominação ou uma possibilidade de tomada de posição).

Importa ressaltar que a assunção de certos papéis e posições nos campos sociais não

exclui a existência de disputas, o que confere a esses espaços sociais específicos uma dinâmica

pautada pelo poder e pela legitimidade. Com isso, a relação entre os agentes que constituem um

campo pode ser compreendida, segundo Bourdieu (1996 [1994]), em função de disputa e

competição. Acerca disso, atentamos para as palavras de Arribas (2012: 61), para quem

(...) a corrida pelo poder e pela dominação em cada campo é justamente um

de seus fatores estruturantes, e ela vai depender da maior ou menor capacidade

de movimentação naquele microcosmo e da habilidade no manuseio de

estratégias – habilidade proveniente do habitus dos indivíduos – que consigam

impor uma visão de mundo como legítima sobre as demais.

Nessa situação de competição, organizam-se de forma relacional as posições

entre os que detêm e os que carecem do poder específico ao campo: os que

ocupam posições dominantes, a ortodoxia, e os que pretendem dominar, a

heterodoxia. Essa luta expressa o caráter hierarquizado e a busca incessante

por legitimidade em cada domínio social, cuja dimensão simbólica não deixa

de se referir, em última análise, a fatores de ordem econômica.

As possibilidades de êxito para adquirir certas posições nas disputas internas ao

campo conectam-se às trajetórias dos agentes nessas dimensões sociais e variam também

conforme a convergência entre os valores do campo e aqueles desempenhados pelos sujeitos

em função de seu habitus. Além disso, as disputas e relações de poder que se estabelecem num

campo são norteadas, de acordo com Bourdieu (1996 [1994]), pelo prestígio, pela autoridade e

pelo reconhecimento, bem como pelo capital - seja propriamente econômico, cultural ou social

- do qual os agentes dispõem. Para o autor, esses microcosmos funcionariam de modo seletivo,

considerando os recursos que não se quer ver amplamente compartilhados, mas que funcionam

como modos de diferenciação e distinção entre os agentes do campo e para aqueles que

procuram se inscrever em um campo.

A relação dos agentes com um campo social se constrói, ainda, em função de uma

consciência tácita e profunda dos atores sociais, que atribuem valor às regras e às lutas daqueles

campo. Essa relação de reconhecimento de valor é tratada por Bourdieu (1996 [1994]: 140)

como uma illusio própria do campo:

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Todo campo social, seja o campo científico, seja o campo artístico, o campo

burocrático ou o campo político, tende a obter daqueles que nele entram essa

relação com o campo que chamo de illusio. Eles podem querer inverter as

relações de força no campo, mas, por isso mesmo, reconhecem os alvos, não

são indiferentes. Querer fazer a revolução em um campo é concordar com o

essencial do que é tacitamente exigido por esse campo, a saber, que ele é

importante, que o que está em jogo aí é tão importante a ponto de se desejar

aí fazer a revolução.

Também a relação entre diversos campos é tratada por Bourdieu (1996 [1994]), ao

levar em conta a questão da autonomia. Segundo o autor, a restrição de acesso aos campos

torna-se necessária para sua delimitação própria e seus mecanismos de restrição serão mais

eficazes a medida que atuem tacitamente, apagados e compartilhados. Essas restrições de acesso

auxiliam num funcionamento relativamente autônomo dos campos, na medida em que seus

agentes podem contar com suas próprias regras e validar suas próprias ações. No entanto, esse

funcionamento relativamente autônomo não exclui a necessidade de contato entre os diversos

campos que, apesar de submetidos a disputas e desafios diferentes, dependem uns dos outros

para desempenhar suas ações (e, muitas vezes, para alcançar a legitimação de suas ações) –

assim, trataríamos de campos menos ou mais autônomos que outros, conforme a especificidade

e dependência de seus elementos organizacionais.

Hanks (2008) nos indica que uma leitura de Bourdieu não tem a ganhar com

propostas rígidas de definições para os conceitos-chave elaborados pelo sociólogo. Contudo,

consideramos que vale assinalar algumas propriedades da noção de campo, posto que certas

delas são descritas como fundamentais ou invariantes no tratamento desse conceito (Cf.

ARRIBAS, 2012; LAHIRE, 2002). A partir dos artigos Quelqués propriétés des champs e Les

champs littéraire publicados por Bourdieu, respectivamente, em 1980 (na obra Questions de

sociologie) e 1991, Lahire (2002) extraiu e elencou algumas dessas propriedades importantes

ao estudo dos campos sociais, quais sejam:

Um campo é um microcosmo incluído no macrocosmo constituído pelo

espaço social (nacional) global.

Cada campo possui regras do jogo e desafios específicos, irredutíveis às regras

do jogo ou aos desafios de outros campos (o que faz “correr” um matemático

– e a maneira como “corre” – nada tem a ver com o que faz “correr” – e a

maneira como “corre” – um industrial ou um grande costureiro).

Um campo é um “sistema” ou um “espaço” estruturado de posições.

Esse espaço é um espaço de lutas entre os diferentes agentes que ocupam as

diversas posições.

As lutas dão-se em torno da apropriação de um capital específico do campo

(o monopólio do capital específico legítimo) e/ou da redefinição daquele

capital.

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O capital é desigualmente distribuído dentro do campo e existem, portanto,

dominantes e dominados.

A distribuição desigual do capital determina a estrutura do campo, que é,

portanto, definida pelo estado de uma relação de força histórica entre as forças

(agentes, instituições) em presença no campo.

As estratégias dos agentes são entendidas se as relacionarmos com suas

posições no campo.

Entre as estratégias invariantes, pode-se ressaltar a oposição entre as

estratégias de conservação e as estratégias de subversão (o estado da relação

de força existente). As primeiras são mais frequentemente as dos dominantes

e as segundas, as dos dominados (e, entre estes, mais particularmente, dos

“últimos a chegar”). Essa oposição pode tomar a forma de um conflito entre

‘antigos’ e ‘modernos’, “ortodoxos’ e ‘heterodoxos” (...).

Em luta uns contra os outros, os agentes de um campo têm pelo menos

interesse em que o campo exista e, portanto, mantêm uma “cumplicidade

objetiva” para além das lutas que os opõem.

Logo, os interesses sociais são sempre específicos de cada campo e não se

reduzem ao interesse de tipo econômico.

A cada campo corresponde um habitus (sistema de disposições incorporadas)

próprio do campo (por exemplo, o habitus da filologia ou o habitus do

pugilismo). Apenas quem tiver incorporado o habitus próprio do campo tem

condições de jogar o jogo e de acreditar n(a importância d)esse jogo.

Cada agente do campo é caracterizado por sua trajetória social, seu habitus e

sua posição no campo.

Um campo possui uma autonomia relativa; as lutas que nele ocorrem têm uma

lógica interna, mas o seu resultado nas lutas (econômicas, sociais, políticas...)

externas ao campo pesa fortemente sobre a questão das relações de força

internas. (LAHIRE, 2002: 47-48)

1.2 Sobre o papel da linguagem e do metadiscurso nos campos sociais

Para além das propriedades elencadas acima e dos conceitos de habitus e capital

simbólico, Hanks (2008: 45) afirma que algumas características adicionais encontradas em

qualquer campo foram especificadas pelo sociólogo francês, quais sejam:

(a) uma disputa linguística em que determinados fins são perseguidos

mediante o uso de determinados recursos discursivos segundo normas

estabelecidas; (b) um conjunto de crenças e assunções que preparam a disputa,

e (c) os interesses específicos em jogo (o que pode ser perdido, ou ganho,

como e por quem).

A partir dessas características, observamos que Bourdieu (1996 [1994]) assinala

que as práticas linguísticas são um dos desdobramentos da relação entre campo, habitus e

capital simbólico, pois, menciona o autor, a inserção num campo impacta os recursos

discursivos empregados nas tomadas de posição e nas disputas entre os agentes, por exemplo.

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Alguns trabalhos de Bourdieu se propuseram a analisar com maior densidade os

mecanismos de violência simbólica e sua presença na linguagem, como a Ontologia política de

Martin Heidegger (1989a), por exemplo. Na obra, Bourdieu (1989a) se volta para os aspectos

políticos da filosofia produzida por Heidegger e busca demonstrar como a ambiguidade do

discurso de Heidegger fazia com que o autor circulasse em dois campos, isto é, com referências

não apenas ao campo filosófico, mas também ao campo político enquanto um espaço social que

é também mental e ideológico.

Ao tratar da obra do filósofo alemão, Bourdieu se opõe a autores que tentam traçar

sentidos “únicos legítimos” para os conceitos de Heidegger, pois, segundo ele (BOURDIEU,

1989a [1975]: 95), falta a esses autores a discussão sobre dois pontos-chave:

Primeiramente, o fato de que as palavras e, de maneira mais ampla, o discurso,

só recebem sua determinação completa, e, entre outras coisas, seu sentido e

seu valor, na relação pragmática com um campo funcionando como um

mercado e, de modo mais secundário, o caráter polissêmico, ou melhor,

polifônico que o discurso de Heidegger deve à capacidade particular que seu

autor tem de falar de muitos campos e muitos mercados ao mesmo tempo.

(grifo do autor)

Por meio do excerto acima, Bourdieu destaca que alguns autores não levam em

conta duas dimensões de significado do discurso produzido por Heidegger, quais sejam, suas

propriedades polissêmicas ou polifônicas que o levam a se relacionar, em outra dimensão de

significação, a outros campos que não apenas o filosófico. Interessa a Bourdieu, nessa obra, um

questionamento profundo de um estatuto extra-social à Filosofia, de modo que a pretensa

neutralidade e a autonomia do discurso filosófico sejam postas em xeque (BOURDIEU, 1989a:

12). Para o autor (1989ª: 13), tanto os pensadores que anunciavam uma redução da Filosofia às

condições de sua produção quanto aqueles que pregavam a autonomia absoluta do discurso

filosófico,

(...) todos entram em acordo, por ignorar que a filosofia de Heidegger poderia

ser somente a sublimação filosófica imposta pela censura específica do campo

de produção filosófica, dos princípios políticos ou éticos que determinaram a

adesão do filósofo ao nazismo. (grifo do autor)

O entendimento de Bourdieu (1989a) acerca da obra de Heidegger, portanto, se

baseia na ideia de uma complexa relação do filósofo alemão com um campo político, mas

também com um campo filosófico, no qual sua produção de linguagem encontrava recursos

(como a ambiguidade, a polissemia, a polifonia) para fugir de uma censura própria ao campo.

Para Bourdieu (1989a), Heidegger, intelectual importante de um “humor völkisch” e de uma

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“revolução conservadora”, soube operar as regras do dizer e soube “por em forma” sua

linguagem, de sorte que galgou posições e se inscreveu na história desses campos. Segundo

Bourdieu, esse trabalho de “por em forma” a linguagem permitiu com que Heidegger acentuasse

semelhanças morfológicas entre os conceitos por ele formulados e vocábulos da linguagem

comum. Essa habilidade de Heidegger, afirma Bourdieu (1989ª [1975]: 91-92) pode ser

explicada também com base em evocações que o filósofo alemão é capaz de fazer, inconsciente

e conscientemente, acerca de outros discursos:

O trabalho ao mesmo tempo consciente e inconsciente de eufemização e de

sublimação, que é necessário para tornar dizíveis os impulsos expressivos

mais inconfessáveis em um estado determinado da censura do campo, consiste

em pôr em forma e pôr formas. O êxito deste trabalho e os proveitos que ele

pode obter num determinado estado da estrutura das probabilidades de ganho

material ou simbólico, através do qual se exerce a censura do campo,

dependem do capital específico do produtor, isto é, de sua autoridade e de sua

competência específicas. (grifos do autor)

Conforme expressa a passagem acima, Bourdieu considera que permeiam o

discurso posto em forma por Heidegger ações tantos inconscientes como conscientes de

adaptação a diferentes registros e de evocação de outros pensamentos (como o socialismo, o

positivismo). Assim, seria possível fazer com que seu discurso correspondesse a tomadas de

posição também no campo político, por meio de um discurso adaptado e adequado às censuras

tácitas vigentes no campo da produção filosófica. Pode-se dizer que Bourdieu dá destaque à

habilidade de Heidegger nesse sentido, pois “o filósofo profissional se opõe ao “filósofo

amador” que, como o pintor “primitivo” no seu universo, não sabe propriamente expressar o

que diz nem o que faz (BOURDIEU, 1989b: 52).

Os efeitos retóricos mais notáveis de um estilo como o de Heidegger, de acordo

com Bourdieu (1989a: 92), têm como justificativa a convergência entre dois fatores: seu habitus

relativamente adequado à posição que ocupava no campo e a necessidade do próprio campo,

àquela época, de um novo estado, ao qual Heidegger se ajustava. De acordo com Bourdieu

(1989a [1975]: 129),

Vê-se aí que a entrada em filosofia, a illusio propriamente filosófica, não se

reduz à adoção de uma linguagem, mas supõe a adoção de uma postura mental

que levanta outros sentidos a partir das mesmas palavras. O discurso filosófico

pode ser colocado nas mãos de todos, mas os únicos que o saberão ler

verdadeiramente são os que terão não somente o código conveniente mas o

modo de leitura que fará ressoar o sentido próprio das frases, situando-as no

registro conveniente, isto é, no espaço mental comum a todos os que estão

autenticamente comprometidos no espaço social da filosofia.

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Assim, a inscrição de Heidegger no campo filosófico e no campo político, como

afirma Bourdieu, deu-se em função de sua posição no campo, seu habitus e suas tomadas de

posição que ocorreram também por meio de recursos de linguagem. O modo como Heidegger

soube “por em forma” o seu dizer, contando com construções morfológicas polissêmicas e

adequadas à linguagem comum, isto é, a um registro comum que extrapolava a linguagem do

campo da produção filosófica, fez com que seu discurso ecoasse num espaço mental também

comum a muitos indivíduos, à época da cultura de Weimar e da ascensão do nazismo na

Alemanha.

Ao mobilizar esse trabalho acerca da ontologia política de Heidegger, nosso

interesse reside nas informações discutidas por Bourdieu acerca do papel da linguagem nas

relações que estabelecem nos campos sociais, a partir de questões como:

i. a influência do habitus e da posição ocupada pelos atores sociais sobre seus

dizeres (já que os agentes de um campo desenvolvem, e têm de desenvolver, um

conjunto de disposições que se desdobram em maior ou menor medida sobre a

língua);

ii. o papel da linguagem dos agentes, mais especificamente, para tomadas de

posição num determinado campo, sobretudo em campos fortemente organizados

como o campo filosófico, o campo político ou o campo jornalístico, para o qual

se volta nosso trabalho;

iii. as tomadas de posição de certos indivíduos, intelectuais como Heidegger e

ícones sociolinguísticos como Mano Brown, que parecem reunir disposições

para operar recursos de linguagem importantes em suas tomadas de posição e

em sua trajetória num campo.

Interessa especialmente a este trabalho a investigação dessa relação entre ações

sociais mais amplas, como as tomadas de posição no campo jornalístico, e ações de

textualização, como o emprego de expedientes metadiscursivos em entrevistas. A nosso ver, o

uso de expressões metadiscursivas consiste em um ponto de análise privilegiado para a

compreensão de como os agentes gerenciam e reconfiguram suas posições nos contextos de

entrevista presentes no campo jornalístico. Uma vez que entram em jogo distintos interesses,

habitus e diferentes formas de poder simbólico entre os participantes de uma entrevista, o

emprego do metadiscurso pode se tornar um recurso para entrevistados como Mano Brown,

cuja participação nesses contextos representa um ponto de conexão entre campos sociais

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distintos e fortemente organizados - a saber, o movimento hip hop ligado ao campo da produção

cultural da periferia e o campo jornalístico.

Ainda a respeito da relação entre a linguagem e os campos sociais, cabe lembrarmos

Hanks (2008: 44), para quem “a produção da fala e do discurso são formas de ocupar posições

em campos sociais”, visto que compõem a trajetória dos falantes nos diferentes mundos sociais.

Analogamente, as ações de linguagem podem ainda exibir características da relação entre os

falantes e o campo.

A nosso ver, ações de textualização como as que se engendram no uso do

metadiscurso são, a um só tempo, estruturadas pela inserção dos indivíduos nos campos sociais

e estruturantes de disposições que podem configurar, pela prática, sua inserção no campo –

nesse sentido, a circularidade, atribuída por Bourdieu (1996 [1994]), às ações que se dão no

interior de um campo, bem como a reversibilidade, atribuída por Hanks (2008: 169-201 ) ao

discurso, aplicam-se também ao entendimento do metadiscurso enquanto fenômeno textual-

discursivo. Consideramos que os estudos do texto podem auxiliar a compreender como os

contextos (nas suas dimensões emergencial e incorporada a um campo) estruturam as

interações, mas também a compreender em que medida as ações de textualização que ocorrem

nas interações corroboram para a (re)configuração das dimensões contextuais e, muitas vezes,

fazem com que os sujeitos incorporem novos nuances a sua prática.

Faz-se necessário esclarecer que nossa escolha pela noção de campo social para

tratar de duas dinâmicas sociais (o microcosmo jornalístico e, a nosso ver, a dinâmica presente

no movimento hip hop do campo da produção cultural da periferia) não ignora a

problematização feita por autores como Lahire (2002) que estão, a um só tempo, circunscritos

numa perspectiva convergente e crítica da teoria da prática tal como formulada por Bourdieu.

Para Lahire (2002), seria importante que o tratamento do legado bourdiano se desse

não em função de uma repetição-reprodução de seu trabalho pelos sociólogos contemporâneos,

mas sim a partir de um prolongamento crítico, objetivado pelo autor em seus trabalhos sobre a

pluralidade disposicional dos indivíduos. Para Lahire (2002), uma rediscussão criadora da

herança de Bourdieu exigiria pensarmos, por exemplo, que os modos de socialização dos

indivíduos são bastante complexos. Lahire (2002; 2007) propõe observarmos a realidade tendo

em vista que os indivíduos entram em contato com experiências socializadoras heterogêneas e

até mesmo contraditórias e, por conta disso, seus contextos de ação os levam a desenvolver

disposições e competências plurais (RIO, 2010).

O interesse de Lahire (2007) se baseia na investigação de variações intraindividuais

dos comportamentos culturais em sociedade. Além de assumir uma vertente disposicional e

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contextual para a análise dos comportamentos e habitus, o prolongamento crítico feito por

Lahire (2002: 50) envolve também ressalvas feitas sobre a noção de campo social. Nas palavras

do autor:

A teoria dos campos empenha muita energia para iluminar os grandes palcos

em que ocorrem os desafios de poder, mas pouca para compreender os que

montam esses palcos, instalam os cenários ou fabricam seus elementos,

varrem o chão e os bastidores, xerocam documentos ou digitam cartas etc.

Do mesmo modo, todas as atividades em que nos inscrevemos de modo apenas

temporário (a prática do futebol amador, os encontros e conversas ocasionais

com amigos num bar ou na rua...) não podem ser atribuídas a campos sociais

particulares, porque elas não são sistematicamente organizadas na forma de

espaços de posições e de lutas entre os diferentes agentes que ocupam essas

posições. A teoria dos campos mostra, portanto, pouco interesse para a vida

fora-do-palco ou fora-do campo dos agentes que lutam dentro de um campo.

Ao contrário do que as fórmulas mais gerais podem levar a acreditar, nem tudo

(indivíduo, prática, instituição, situação, interação...), portanto, pode ser

incluído em um campo.

A problematização feita por Lahire (2002) sobre a noção de campo, como vemos

acima, envolve a aplicação desse conceito para contextos nos quais os agentes se inserem de

modo mais externo, ou simultaneamente a sua inserção em outros campos. O autor propõe,

então, que os sujeitos participam dessas práticas como “jogos”, contextos muitas vezes mais

delimitados no que concerne aos impactos para disposições mais duráveis que compõem o

habitus.

Ainda que estejamos de acordo com Lahire (2002) sobre a possibilidade de que os

indivíduos se situem em espaços sociais específicos sem que para eles tais espaços configurem

um campo, isto é, sem que estejam investidos da illusio pertencente a um microcosmo, nossa

escolha pelo trabalho com a noção de campo leva em conta os seguintes pontos:

i. é preciso considerar que a inserção de Mano Brown no que estamos

nomeando como o movimento hip hop no campo da produção cultural

da periferia não se limita ao papel de rapper, mas abrange diversas

práticas4 não delimitadas temporalmente, por exemplo;

ii. o hip hop, movimento de produção cultural ligado às periferias urbanas,

como a paulistana, parece representar um subcampo de produção

cultural, na medida em que reúne a construção de capital simbólico de

4 Sobre a relação de Mano Brown com algumas das práticas presentes no movimento hip hop do campo da

produção cultural da periferia, consultar o capítulo 3.

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diversos tipos (Cf. SILVA, 2012) para indivíduos como Brown - cuja

inserção no hip hop ocorreu ainda durante a juventude; considerar o

movimento hip hop dessa forma pressupõe sua significação enquanto

espaço criador de capital cultural (já que, muitas vezes, representa um

momento em que tantos jovens experimentam um papel de produção

cultural, e não apenas de fruição), de capital econômico (pois o fazer

musical pode ser revertido em atividade profissional pelos rappers,

produtores etc) e de capital social (se levarmos em conta que os jovens

têm no hip hop e no rap uma importante dimensão simbólica provedora

de respeito mútuo e solidariedade, que muitas vezes lhes falta em outros

contextos nos quais se inserem);

iii. algumas tomadas de posição de Mano Brown demonstram que reconhece

o rap e o hip hop na periferia como uma dinâmica de forças que requer

engajamento, “compromisso” e “atitude” – noções frequentemente

citadas por Brown quando se refere ao fazer dos rappers (KEHL, 1999).

A nosso ver, esse reconhecimento afasta a ideia de que seu envolvimento

com esse microcosmo pode ser apenas marginal ou esporádico e,

contrariamente, reforça nossa visão de que sua entrada nesse

microcosmo demanda, por parte do rapper, o desenvolvimento

processual de diversas disposições;

iv. para além do contato de Mano Brown com a dinâmica social ligada à

periferia e ao hip hop, é possível verificar também que sua participação

em entrevistas, isto é, sua inscrição nos contextos jornalísticos, não

parece se dar de modo trivial: pelo contrário, são contextos nos quais

Mano Brown se insere de modo bastante reflexivo e nos quais, por vezes,

a própria participação do rapper é topicalizada – o que, a nosso ver,

corrobora que sua participação na televisão, per se, pode ser tida como

estratégica e/ou extraordinária.

Esses pontos, acerca da inserção de Mano Brown no campo jornalístico, em

entrevistas concedidas pelo rapper, serão tratados por nós num segundo capítulo. Por ora,

importa ao presente trabalho justificar que as questões acima expostas, a nosso ver, indicam

que a noção de campo pode ainda ser adequada ao tratamento que pretendemos dar à inscrição

de Mano Brown tanto no subcampo da produção cultural da periferia no movimento hip hop

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quanto no campo jornalístico. Nesse sentido, entendemos que se faz necessária uma observação

dos contextos de entrevista televisiva enquanto situações comunicativas inseridas no campo

jornalístico. A partir disso, esperamos caracterizar, segundo as observações de Bourdieu

presentes na obra Sobre a televisão (1997 [1996]), alguns dos valores e algumas das posições,

das regras e das estratégias que regem o campo jornalístico e as relações entre os participantes

das entrevistas que analisaremos.

1.3 O campo jornalístico segundo a visão de Pierre Bourdieu

Publicado em 1996 na França, Sobre a televisão reúne três textos de Bourdieu,

dentre os quais dois foram reproduzidos a partir de um curso do Collège de France ministrado

pelo autor e transmitido pela televisão francesa. A obra chegou aos best-sellers da França e

gerou ampla controvérsia, envolvendo jornalistas e editorialistas que durante meses reagiram

para criticá-la – na opinião de Bourdieu, “com extrema violência5” (1997 [1996]: 131). Após

as reações, o autor optou por incluir um posfácio à edição brasileira, no qual buscava responder

às críticas suscitadas por suas análises dos mecanismos presentes nesse microcosmo. Bourdieu,

no prólogo da obra, informa que tais escritos consistem numa “intervenção” sua no campo

jornalístico, cujas razões à época envolviam uma tentativa para que “um extraordinário

instrumento de democracia direta não se converta em instrumento de opressão simbólica”

(BOURDIEU, 1997 [1996]: 11; 13).

Bourdieu (1997) descreve o mundo do jornalismo como um microcosmo provido

de leis próprias e definido por sua relação de aproximação ou distanciamento com outros

microcosmos. Essa caracterização atribui autonomia ao campo jornalístico e, com isso, sinaliza

que será necessária ao entendimento desse microcosmo uma inspeção interna de seu

funcionamento, para além de explicações fornecidas unicamente com base em fatores externos

a ele. Afirma Bourdieu (1997 [1996]) que no século XIX o campo jornalístico formou-se a

partir de duas lógicas de mercado e princípios de legitimação opostos presentes em diferentes

tipos de jornais. Um primeiro modo de organização e legitimação se daria em função do

reconhecimento dos pares, isto é, daqueles agentes internos que reconhecem mais

completamente os “valores” do campo, e se concretizaria na produção de “análises” e

5Podemos considerar que as reações a essa intervenção do sociólogo francês trouxeram consigo a medida do poder

simbólico do campo jornalístico na relação com agentes externos - mesmo os legitimados em outros campos, como

o próprio Bourdieu - que se dispõem a refletir e a desvelar sua dinâmica de forças. Isso porque tais reações, a nosso

ver, não deixam de representar uma tentativa de manutenção da força de legitimação do campo jornalístico - e,

com isso, podem ter colaborado para reforçar as considerações do autor sobre a organização dessas dinâmicas

sociais.

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“comentários” sobre fatos e eventos, baseada num princípio de “objetividade”. Esse valor de

objetividade seria abertamente afirmado para marcar uma distinção com relação ao segundo

modo de organização, voltado para o reconhecimento do campo jornalístico por uma maioria,

formada por leitores, ouvintes e espectadores, norteado pelo alcance de um público vasto e

conquistado, sobretudo, por “notícias”, preferencialmente “sensacionais” ou “sensacionalistas”,

nas palavras de Bourdieu (1997 [1996]).

Salienta o autor que nem sempre a televisão esteve no centro da produção e do poder

no campo jornalístico, posto que ainda nos anos cinquenta mal se pensava nesse meio difusor

ao tratar do jornalismo como um todo. A dependência das subvenções do Estado e a ligação

com os poderes políticos traziam a ideia de que a televisão era dominada econômica, cultural e

simbolicamente; com isso, menos eficiente ou poderosa. Para Bourdieu (1997 [1996]), o

processo de mudança do estatuto da televisão no campo jornalístico “precisaria ser descrito em

detalhe” (BOURDIEU, 1997 [1996]: 59), visto que, com o passar dos anos, a inversão se deu

de tal modo que a dominação econômica e simbólica da TV no campo pode ser atestada

inclusive pela situação de ameaça na qual se encontram muitos jornais.

Por ocasião do curso oferecido pelo sistema audiovisual do Collège de France e

reproduzido em textos que compõem a obra Sobre a televisão (1997 [1996]), Bourdieu utiliza

sua participação para levantar diversas questões sobre o campo jornalístico, descrevendo seus

bastidores e as estruturas tacitamente atuantes para telespectadores e, muitas vezes, também

para agentes internos ao campo, como os jornalistas. Para o autor, sua intervenção na forma de

um desvendamento dos princípios que regem esse campo poderia ser bem vista também pelos

jornalistas que, submetidos à autoridade de outros cargos e posições acima das suas, muitas

vezes não têm a ideia dos mecanismos que estão ajudando a reproduzir no campo.

Alguns eixos de discussão foram destacados por Bourdieu (1997 [1996]) para tratar

do campo jornalístico e, a nosso ver, cabe apresentá-los de modo mais destacado. Assim,

veremos a partir daqui como são tratadas pelo autor questões como o grau de autonomia do

campo, a sua organização em termos das distintas posições ocupadas pelos agentes, as suas

estratégias de conservação e regras invisíveis, os seus dilemas internos e a sua relação com

outros campos.

Consideramos que Bourdieu inicia sua observação sobre o grau de autonomia do

campo jornalístico ao refletir sobre sua própria participação na TV, por ocasião do curso

ministrado pelo Collège de France. Nesse momento, o autor salienta que seu curso consistiu

numa participação incomum na televisão, haja vista que detinha o domínio sobre esse

instrumento de produção (BOURDIEU, 1997 [1996]: 16), ao contrário do que ocorre com a

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grande maioria das exibições na TV, nas quais os sujeitos se inserem de modo extremamente

controlado em relação ao tempo e ao tema de suas falas, sobretudo.

A partir de sua inserção própria nesse contexto, Bourdieu (1997 [1996]) prossegue

se perguntando sobre quais as razões que levam ainda tantos indivíduos a aceitar as condições

impostas por programas de televisão e participar desses contextos. Para o autor, afora questões

como a necessidade de “ser percebido” na e pela televisão, o alcance informacional

proporcionado pelo meio difusor audiovisual apresenta-se como decisivo para que muitos

indivíduos ainda participem desses programas, e decisivo também para que afastemos a ideia

de que os sujeitos devam recusar essa possibilidade ou condená-la. Além disso, vemos que

Bourdieu assume a grande autonomia e a força simbólica do campo, já que lembra o autor que

a oportunidade de participação na TV per se fomenta a produção intelectual e cultural de todo

um contingente de indivíduos esperançosos por serem levados à TV e que veem nisso uma

espécie de consagração.

Embora uma recusa estrita de participações televisivas não seja defensável aos

olhos de Bourdieu (1997 [1996]: 17-18), não é possível dizer que a opção por exprimir-se nesse

meio se deva dar sem a cautela de levantar previamente alguns questionamentos. Quanto a esses

questionamentos, tomemos as palavras do autor:

Penso mesmo que, em certos casos, pode haver uma espécie de dever de fazê-

lo [exprimir-se na televisão], com a condição de que isso seja possível em

condições razoáveis. E, para orientar a escolha, é preciso levar em conta a

especificidade do instrumento televisual. Com a televisão, estamos diante de

um instrumento que, teoricamente, possibilita atingir todo mundo. Daí certo

número de questões prévias: o que tenho a dizer está destinado a atingir todo

mundo? Estou disposto a fazer de modo que meu discurso, por sua forma,

possa ser entendido por todo mundo? Pode-se mesmo ir mais longe: ele deve

ser entendido por todo mundo? (BOURDIEU, 1997 [1996]: 17-18)

Consideramos que as questões indicadas por Bourdieu (1997 [1996]) buscam o

reconhecimento do contexto jornalístico no qual os sujeitos têm a possibilidade de se inserir.

Isso porque permitem que os participantes em potencial tomem conhecimento do público a

quem se destina sua fala, da relação desse público com sua posição enquanto convidado e ainda

das reais possibilidades de uma convergência entre as expectativas de representação social do

convidado e as do meio difusor. Nesse momento, portanto, vemos que as colocações de

Bourdieu (1997 [1996]) se dão no sentido de afastar dos indivíduos um tipo de participação que

esteja inteiramente ao dispor dos ditames do campo televisivo, posto que isso já inscreveria os

sujeitos como dominados nesse campo. Além disso, suas indagações buscam fazer com que os

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sujeitos se inscrevam nesse campo sem se esquecer de refletir sobre sua participação em

contextos televisivos em termos dos impactos possivelmente resultantes para o poder simbólico

que possuem.

Ainda que os indivíduos decididos a se exprimir na televisão não reflitam sobre tais

pontos, questões como as citadas anteriormente, segundo Bourdieu, são feitas por críticos de

televisão e telespectadores, por exemplo, ao se perguntarem: “ele tem algo a dizer? Está em

condições de poder dizê-lo? O que ele diz merece ser dito nesse lugar? Em uma palavra, que

faz ele ali?” (BOURDIEU, 1997 [1996]: 18). Apesar disso, vemos que tais pontos questionam

unicamente o poder simbólico do qual dispõem os participantes da TV, mas nenhum

questionamento fazem a respeito de qual seja efetivamente o estatuto da TV para que escolha

lhes exibir isso ou aquilo como pertinente.

Por meio desses questionamentos acerca das possibilidades de participação de

agentes externos no campo jornalístico, Bourdieu (1997 [1996]: 77) caracteriza o grau de

autonomia do campo jornalístico, também tratado pelo autor, por exemplo, no seguinte trecho:

O universo do jornalismo é um campo, mas que está sob a pressão do campo

econômico por intermédio do índice de audiência. E esse campo muito

heterônomo, muito fortemente sujeito às pressões comerciais, exerce, ele

próprio, uma pressão sobre todos os outros campos, enquanto estrutura.

Tendo em vista as palavras acima, vemos que a relação com outros campos se dá

de modo bastante particular para o campo jornalístico: entendido como meio influenciador de

tantos outros campos, seu grau de autonomia se restringiria pelas demandas do mercado. Apesar

dessa forte autonomia e influência, Bourdieu (1997 [1996]) atenta para o fato de que o campo

jornalístico é também “muito mais dependente das forças externas que todos os outros campos

de produção cultural” (BOURDIEU, 1997 [1996]: 76), visto que suas produções pretendem ter

como objeto os eventos, as informações e as tendências dos demais campos. A nosso ver,

embora o campo jornalístico seja designado como um meio de sanção e de legitimação de outros

campos, não nos parece existir espaços sociais que, ao campo jornalístico, desempenhem com

força semelhante o mesmo papel de aferição ou de sanção, de modo que são escassos os espaços

de crítica ao jornalismo como um todo e à televisão.

Dessa forma, haveria uma relação entre o poder simbólico detido pela televisão e o

fato de que a exibição e consagração de indivíduos e práticas no e pelo campo jornalístico se

constituem como meios de legitimação dos agentes em seus campos outros de atuação. A

respeito disso, Bourdieu (1997 [1996]: 67) salienta:

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Não há discurso (análise científica, manifesto político etc. nem ação,

manifestação, greve etc.) que, para ter acesso ao debate público, não deva

submeter-se a essa prova de seleção jornalística, isto é, a essa formidável

censura que os jornalistas exercem, sem sequer saber disso, ao reter apenas o

que é capaz de lhes interessar, de “prender sua atenção”, isto é, de entrar em

suas categorias, em sua grade, e ao relegar à insignificância ou à indiferença

expressões simbólicas que mereceriam atingir o conjunto dos cidadãos.

Para Bourdieu (1997 [1996]: 28), uma explicação possível acerca do poder

simbólico e de legitimação conquistado pelo campo jornalístico pode advir do “efeito de real”

construído pela televisão, isto é, da particularidade de “fazer ver e fazer crer no que faz ver”. É

preciso lembrar que a televisão evoca ideias e constrói representações sobre uma gama de fatos

e eventos, sobre variedades, incidentes, acidentes cotidianos etc, de modo que mesmo um relato

presencial como o de um repórter consiste numa realidade por ela reorganizada. As evocações

do real transmitidas pela televisão podem ocasionar diversos efeitos sociais, como movimentos

de mobilização e desmobilização, haja vista que a televisão, em poucas horas, pode reunir como

telespectadores um número bastante superior ao de leitores de vários jornais impressos e,

portanto, pode ser grande a circulação de uma realidade reorganizada e homogeneizada.

O “efeito de real” presente nas exibições em televisão faz parte de um processo de

seleção de conteúdo bastante problemático, de acordo com Bourdieu, pois o princípio norteador

das escolhas se daria em função da busca pelo “sensacional”, pelo “espetacular”. Exemplos

dessa construção do real sensacional seriam os modos de dramatização de um acontecimento

por parte do jornalismo disposto a exagerar a gravidade de casos que possam gerar comoção

popular ou as categorizações utilizadas nos anúncios das principais notícias, pois estas carregam

consigo a possibilidade de “causar estragos”6 (BOURDIEU, 1997 [1996]: 26) muitas vezes

criando representações falsas do acontecimento e dos eventos transmitidos.

Um segundo fator a partir do qual se dá a seleção de conteúdo reside nos interesses

dos agentes internos ao campo responsáveis pelas escolhas, como os jornalistas. Na visão de

Bourdieu, os jornalistas têm como alvo os conteúdos excepcionais, afora o fato de que aquilo

considerado excepcional para eles pode ser visto como banal por tantos outros. Segundo o autor,

“os jornais cotidianos devem oferecer cotidianamente o extra-cotidiano, não é fácil...”

(BOURDIEU, 1997 [1996]: 26). Assim, para Bourdieu (1997 [1996]), a seleção de conteúdo

6Nas palavras de Bourdieu (1997 [1996]: 26), “nomear, como se sabe, é fazer ver, é criar, levar à existência. E as

palavras podem causar estragos: islã, islâmico, islamita – o véu é islâmico ou islamita? E se porventura se tratasse

simplesmente de um xale, sem mais? Acontece-se ter vontade de retomar cada palavra dos apresentadores que

falam muitas vezes levianamente, sem ter a menor idéia da dificuldade e da gravidade do que evocam e das

responsabilidades em que incorrem ao evocá-las diante de milhares de telespectadores, sem as compreender e sem

compreender que não as compreende. Porque essas palavras fazem coisas, criam fantasias, medos, fobias ou,

simplesmente, representações falsas”.

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seria limitada pela imposição da perseguição ao “furo” jornalístico. A partir de mecanismos

como esses presentes na seleção de conteúdo é possível observar a estratégia de “ocultar

mostrando” como norteadora do campo jornalístico televisivo. Tal expressão designaria os dois

mecanismos contraditórios presentes no campo jornalístico televisivo, o de se dedicar à

transmissão de informação ainda que ocultando os processos e os participantes que influenciam

a seleção de conteúdo.

1.4 Mecanismos de organização do campo jornalístico na visão bourdiana

Outras regras invisíveis e estratégias de conservação do poder simbólico são vistas

nos mecanismos que organizam a dinâmica social das produções jornalísticas televisivas. Uma

primeira regra apresentada por Bourdieu estaria presente na censura invisível exercida pela

televisão, mecanismo que se dá pelas imposições de certas condições de comunicação aos

agentes presentes do campo, sejam eles convidados ou mesmo jornalistas. Para o autor, essa

censura incidiria sobre os temas e as seleções de conteúdo, sobre o tempo reservado às

discussões, bem como sobre as restrições que são feitas sobre o discurso.

Além disso, é preciso levar em conta as censuras econômicas que se impõem à

televisão, essas através de anúncios e projetos publicitários e das subvenções fornecidas pelo

Estado. Ainda que o objetivo de transmissão de conteúdo seja visto como o primordial ao campo

jornalístico televisivo, a lógica econômica que proporciona esse trabalho é silenciada ou tratada

como não divergente a um princípio de livre informação, de modo que se faz pensar que os

anunciantes e patrocinadores entram em cena apenas em momentos delimitados à publicidade

e não exercem influência sobre os demais conteúdos transmitidos. Para Bourdieu (1997 [1996]),

a ocultação de mecanismos como esse, relativos à verdadeira influência - para além dos

anúncios em intervalos comerciais – da publicidade e do campo econômico na TV adensam a

ideia de uma censura invisível e da estratégia de “ocultar mostrando”, levando a crer numa

conservação da ordem simbólica através do campo jornalístico televisivo.

Se, para a descrição dos mecanismos presentes num campo social, faz-se necessário

observar os agentes que o compõem, importa lembrar também o papel dos jornalistas inseridos

no microcosmo jornalístico. Para Bourdieu, “os produtos jornalísticos são muito mais

homogêneos do que se acredita” (1997 [1996]: 30), de tal modo que algo dizem sobre a

trajetória dos agentes internos ao campo. Ainda que exista concorrência, se diferentes veículos

jornalísticos e televisivos se encontram sob as mesmas restrições e sob a influência dos mesmos

anunciantes, as possibilidades de tomadas de posição para agentes internos, como os jornalistas,

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não seriam dramaticamente distintas – segundo Bourdieu (1997 [1996]: 31), “basta ver com

que facilidade os jornalistas passam de um jornal a outro”. Não se pode dizer que Bourdieu

(1997 [1996]) negligencia as diferenças internas ao campo no que diz respeito às posições de

seus agentes, porquanto seu raciocínio reconhece os conflitos, a concorrência e a hostilidade

que marcam o meio jornalístico. De modo semelhante, o autor considera a existência de

posturas tidas como “subversivas” por parte de jornalistas que se esforçam em semear

diferenças em meio a essa homogeneização do campo. No entanto, para a ideia acerca da

homogeneidade, o pensamento de Bourdieu leva em conta outra particularidade do campo

jornalístico, no qual a pauta é baseada também por aquilo que está sendo dito e pautado pelos

concorrentes. Acerca disso, tomemos as palavras de Bourdieu (1997 [1996]: 34):

As escolhas que se produzem na televisão são de alguma maneira escolhas

sem sujeito. Para explicar essa proposição talvez um pouco excessiva,

invocarei simplesmente os efeitos de mecanismo de circulação circular a que

aludi rapidamente: o fato de os jornalistas, que, de resto, têm muitas

propriedades comuns, de condição, mas também de origem e formação, lerem-

se uns aos outros, verem-se uns aos outros, encontrarem-se constantemente

uns com os outros nos debates em que se revêem sempre os mesmos, tem

efeitos de fechamento e, não se deve hesitar em dizê-lo, de censura tão

eficazes – mais eficazes mesmo, porque seu princípio é mais invisível –

quanto os de uma burocracia central, de uma intervenção política expressa.

A partir do excerto acima, vemos que Bourdieu (1997 [1996]) considera o clipping,

prática jornalística que consiste na seleção de notícias e temas, um instrumento de trabalho que

ocorre muito em função da repercussão de conteúdos anteriormente ou simultaneamente

trabalhados em outros jornais ou emissoras de televisão. Esse mecanismo corrobora a ideia de

homogeneidade entre as ações dos agentes internos ao campo e sua compreensão desvela uma

lógica jornalística pautada pela “circulação circular de informação”, segundo a expressão

cunhada pelo autor para designar esta estratégia de conversação do campo.

Comentamos anteriormente sobre a busca pelo extraordinário e pelo furo no campo

jornalístico. Não podemos deixar de lembrar que esse ponto se liga a outra regra invisível que

permeia a televisão, a pressão pela urgência, e o próprio dilema interno vivido pelo campo, a

busca pela audiência. Para Bourdieu (1997 [1996]), os mecanismos voltados à busca pela

audiência se retraduzem na urgência de primeiramente transmitir certos conteúdos e, com isso,

podemos dizer que os efeitos desse dilema interno são vistos também nas decisões sobre o que

é exibido. Já a pressão pela urgência impactaria diretamente os conteúdos transmitidos na

televisão, sobretudo as falas produzidas por agentes supostamente externos ao campo que são

trazidos para os contextos jornalísticos como especialistas em temas que se discutirá.

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A ideia de Bourdieu acerca da contradição entre a urgência e a participação de

especialistas tem em vista uma impossibilidade de real discussão e de verdadeira

problematização sobre um tema diante de circunstâncias nas quais se deve pensar em

velocidade acelerada. Nesse sentido, as produções televisivas que supostamente se dispõem à

discussão e ao debate seriam marcadas pela participação de fast-thinkers, uma espécie de

agentes de fast-food cultural, pois, pela pressão da urgência, produzem “alimento cultural pré-

digerido, pré-pensado” (BOURDIEU, 1997 [1996]: 41). De acordo com o autor, a presença dos

fast-thinkers nas produções televisivas implicaria na vasta transmissão de “ideias feitas”, a

respeito das quais o autor afirma:

Quando emitimos uma “idéia feita” é como se isso estivesse dado; o problema

está resolvido. A comunicação é instantânea porque, em certo sentido, ela não

existe. Ou é apenas aparente. A troca de lugares-comuns é uma comunicação

sem outro conteúdo que não o fato mesmo da comunicação. Os “lugares-

comuns” que desempenham um papel enorme na conversação cotidiana têm

a virtude de que todo mundo pode admiti-los e admiti-los instantaneamente:

por sua banalidade, são comuns ao emissor e ao receptor. Ao contrário, o

pensamento é, por definição, subversivo: deve começar por desmontar as

“idéias feitas” e deve em seguida demonstrar. Quando Descartes fala de

demonstração, ele fala de longas cadeias de razões. Isso leva tempo; é preciso

desenvolver uma série de proposições encadeadas por “portanto”, “em

consequência”, “dito isto”, “estando entendido que”... Ora, esse

desdobramento pensante está intrinsecamente ligado ao tempo. (BOURDIEU,

1997 [1996]: 40-41)

A visão crítica de Bourdieu (1997 [1996]: 40) sobre esses “pensadores que pensam

mais rápido que sua sombra”, tem como base um julgamento a respeito das trajetórias e dos

habitus desses agentes supostamente externos ao campo jornalístico e supostamente

especialistas em suas áreas de atuação - frequentemente, o campo da produção cultural. Na

visão de Bourdieu (1997 [1996]), esses “especialistas” e “articulistas”7 tornam-se falantes

obrigatórios na televisão, na medida em que são sempre convidados com base numa mesma

lista de contatos sobre “quem chamar” para tratar desse ou daquele tema. Em sua crítica o autor

7A nosso ver, seria possível pensar que a escolha dos especialistas e articulistas ocorre, em larga medida, no sentido

de criar uma convergência entre aquelas perspectivas sobre o fato jornalístico apresentadas por esses agentes e a

perspectiva dos agentes internos à televisão, como os jornalistas e apresentadores desses contextos jornalísticos,

ou da própria emissora como unidade governada por posicionamentos e objetivos específicos dos que ocupam seus

papéis de autoridade. Desse modo, seria possível pensar que esse tipo de participação, por inúmeras vezes, busca

agentes que na verdade possam referendar - revestidos da legitimação de outros campos - os posicionamentos que

o meio televisivo pretende transmitir. Contudo, a tentativa desse tipo de convergência por vezes pode “falhar”, de

modo que certos desacordos se instauram entre agentes internos e externos ao campo. A respeito disso trata o

artigo de Martins (2014) sobre o embate de perspectivas, e sua emergência nas categorizações e no direcionamento

do tópico discursivo, em uma entrevista concedida pelo sociólogo Silvio Caccia Bava ao canal de TV por assinatura

Globo News.

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sinaliza também relações que podem ser feitas entre a frequência desses agentes no microcosmo

jornalístico e sua posição - prestigiada ou desprestigiada? - no campo da produção cultural em

que estão inseridos.

Bourdieu (1997 [1996]) demonstra, ainda, como as estratégias de conservação do

campo se encontram presentes em contextos jornalísticos específicos, como os debates entre

agentes internos (apresentadores e jornalistas) e externos (convidados). Para ele, esses

contextos se configurariam como “debates verdadeiramente falsos” ou “falsamente

verdadeiros”. Acerca do primeiro tipo, o autor destaca a contradição exibida pela presença,

numa interação específica, de indivíduos que à primeira vista colocam em cena pensamentos

bastantes díspares, embora fora dos espaços midiáticos atuem sem as distinções por eles

exibidas na televisão, por vezes tendo relações bastante próximas de amizade. Já ao tratar dos

debates “falsamente verdadeiros”, Bourdieu (1997 [1996]) chama atenção para a figura do

apresentador nesses contextos de interação, pois esses agentes mobilizariam uma série de

recursos – como as categorizações ou as pistas de contextualização (GUMPERZ, 1982) dadas

através do direcionamento do olhar etc –, de modo mais ou menos consciente, para firmar

diferentes posições perante os participantes do debate. Assim, embora o papel desses agentes

seja muito ligado a uma administração justa das “regras do jogo”, nesses debates as regras

possuiriam uma “geometria variável” (BOURDIEU, 1997 [1996]: 44), posto que não são as

mesmas para diferentes sujeitos que detêm distintos tipos de capital simbólico. Na configuração

desses debates “falsamente verdadeiros”, soma-se ao papel dos apresentadores a composição

dos estúdios nos quais essas interações ocorrem, no intuito de criar um ambiente de equilíbrio

democrático, e as regras tácitas que circulam a respeito do próprio discurso, já que os

enfrentamentos devem ocorrer numa linguagem formal e erudita.

Todos esses mecanismos estão presentes na organização tácita do microcosmo

jornalístico e nela se perpetuam, de acordo com Bourdieu (1997 [1996]). No cerne da

problematização feita sobre o mundo do jornalismo e da crítica de Bourdieu a respeito desse

microcosmo não estaria, em verdade, um ataque aos agentes internos ao campo ou aos agentes

externos que o frequentam. As observações de Bourdieu (1997 [1996]) têm como ponto crucial

o desvelamento de uma relação de forças que já nos anos noventa sobrepunha o campo

jornalístico – dominado pela lógica comercial - ao campo de produção cultural. A partir dessa

relação de força, as possibilidades dos agentes do campo da produção cultural frente a um

trabalho desvinculado do meio jornalístico televisivo se tornariam bastante limitadas, e muito

permeadas pelos ditames desses outros campos. É isso que nos mostra o autor em excertos como

o seguinte:

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O objeto, aqui, não é o “poder dos jornalistas” - menos ainda o jornalismo

como “quarto poder” -, mas a influência que os mecanismos de um campo

jornalístico cada vez mais sujeito às exigências do mercado (dos leitores e dos

anunciantes) exercem, em primeiro lugar sobre os jornalistas (e os

intelectuais-jornalistas) e, em seguida, e em parte através deles, sobre os

diferentes campos de produção cultural, campo jurídico, campo literário,

campo artístico, campo científico. Trata-se então de examinar como a

restrição estrutural exercida por esse campo, ele próprio dominado pelas

pressões do mercado, modifica mais ou menos profundamente as relações de

força no interior dos diferentes campos, afetando o que aí se faz e o que aí se

produz e exercendo efeitos muito semelhantes nesses universos

fenomenicamente muito diferentes. (BOURDIEU, 1997 [1996]: 101)

1.5 Algumas conclusões

Até o momento, nossa discussão sobre o campo jornalístico no presente trabalho

pretendia resgatar a caracterização de Bourdieu (1997 [1996]) a respeito desse microcosmo

específico para que pudéssemos compreender como se dá, em ambas as entrevistas que

compõem nosso corpus, a participação do rapper Mano Brown, um dos sujeitos cuja trajetória

está ligada às posições de prestígio no movimento hip hop e no subcampo da produção cultural

da periferia. Os objetivos do capítulo envolveram também uma apresentação da noção de campo

social (assim como de conceitos correlatos como o habitus e o capital simbólico) e da

compreensão de Bourdieu sobre o papel da linguagem para a inserção dos agentes num campo.

Nosso esforço teve como tentativa uma ponderação sobre as análises mais críticas presentes nas

obras Ontologia política de Martin Heidegger (1989a [1975]) e Sobre a Televisão (1997

[1996]), para que pudéssemos construir uma descrição parcimoniosa das relações sob as quais

se fundamentam nossas análises.

As entrevistas jornalísticas são tomadas por nós como interações específicas que

representam um momento de contato entre o campo jornalístico e o movimento hip hop do

subcampo da produção cultural da periferia representado pelo entrevistado Mano Brown. Ora,

ao assumirmos as considerações de Bourdieu sobre a relação de forças entre a televisão e os

demais campos, é possível pensar que a participação do rapper e protagonista de movimento

social nos contextos de entrevista que analisaremos representa um movimento das margens para

o centro (BENTES, FERREIRA-SILVA e MARIANO, 2013), na medida em que poderia

significar o interesse do campo jornalístico televisivo em transmitir conteúdos sobre sujeitos

representativos de boa parte da população brasileira, sobretudo aos jovens das periferias

urbanas.

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No entanto, para compreender as relações que emergem nesses dados de entrevista,

através de recursos textuais-discursivos como os expedientes metadiscursivos, por exemplo,

devemos levar em conta também a trajetória de Mano Brown no movimento hip hop ligado ao

campo da produção cultural da periferia, bem como suas tomadas de posição na relação com o

campo jornalístico. A nosso ver, o rapper ocuparia posição de destaque em meio a diversos

agentes externos à televisão, e dentre diversos agentes internos ao movimento hip hop no campo

da produção cultural da periferia, por conta de como se insere nesses espaços simbólicos que

poderiam impactar de diversos modos sua representação social e poder. Nossa hipótese é de

que sua participação nas entrevistas jornalísticas é marcada pelo emprego de expedientes

metadiscursivos como modo de negociar as ações e perspectivas em jogo entre os participantes

de ambas as entrevistas e como forma de adequar sua participação nos tópicos instaurados pelos

entrevistadores, em função dos impactos que esses tópicos teriam para sua representação social

como um todo.

Além disso, ainda que possamos prever a consonância entre os mecanismos

descritos por Bourdieu que aqui recuperamos e as interações emergentes em nossos dados, será

preciso dar um tratamento mais aprofundado a cada uma das entrevistas em análise - passando

pela contextualização dos programas televisivos e dos órgãos de imprensa nos quais são

produzidos - segundo sua posição e seu peso simbólico nos espaços sociais midiáticos. Será

preciso ter em conta, ainda, certas considerações sobre cada um dos participantes presentes

nesses espaços interativos, para que possamos considerar sua relação (mais interna ou externa,

de maior ou menor prestígio, suas tomadas de posição) com o campo jornalístico. Esses fatores

serão por nós explorados em duas seções do terceiro capítulo, na reconstrução contextual dos

programas Roda Viva e Papo com Benja. Já a relevância da observação dos expedientes

metadiscursivos, para compreendermos essas questões, será abordada no início do capítulo

seguinte.

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2. METADISCURSIVIDADE EM ENTREVISTAS: SOBRE AS

CATEGORIAS DE ANÁLISE, OS RECORTES METODOLÓGICOS E

A CONTEXTUALIZAÇÃO DO CORPUS

No presente capítulo, abordamos a metadiscursividade enquanto fenômeno textual-

discursivo por meio do qual tecemos nossa análise. Para isso, será preciso considerar as

interações em entrevistas como loci relevantes a uma observação do metadiscurso. Ato

contínuo, procuraremos apresentar nossos recortes téorico-metodológicos e a justificativa para

a escolha de nossas amostras.

2.1 A metadiscursividade como dispositivo analítico de entrevistas jornalísticas

Consideramos que a inserção de sujeitos representativos e estigmatizados como

Mano Brown em contextos do campo jornalístico não se dá de modo trivial, já que sua

participação pode gerar diversos impactos para a posição construída pelo rapper no movimento

hip hop e no campo da produção cultural da periferia. Além disso, a configuração das entrevistas

deve ser compreendida também enquanto resultante de certas regras, mecanismos e papeis

atuantes no microcosmo jornalístico, segundo o que nos mostra o trabalho de Bourdieu (1997

[1996]).

Nosso olhar sobre as entrevistas procura conjugar uma reflexão ampla (no âmbito

das relações que se estabelecem entre os agentes e os campos sociais) à compreensão das ações

de textualização nesses contextos, tomando como foco de análise os expedientes

metadicursivos. Para estabelecer essa relação integrativa entre níveis de análise “macro” e

“micro”, cumpre apresentarmos as entrevistas como interações nas quais certos fenômenos

textuais-discursivos, como o metadiscurso, parecem emergir de modo privilegiado.

As entrevistas jornalísticas que compõem o corpus do presente trabalho foram

concedidas por Mano Brown ao programa Roda Viva, da TV Cultura, e ao programa Papo com

Benja, da L!TV. Nossas observações sobre os dados passam a refletir a correlação entre uma

concepção de linguagem como prática comunicativa – tal como evocada pelos trabalhos de

Hanks (2008), capaz de estabelecer relações entre indivíduos e campos sociais. Na esteira dessa

concepção de língua, tomamos o texto enquanto o “evento comunicativo” no qual convergiriam

essas ações linguísticas, cognitivas e sociais – referimo-nos, aqui, ao desenvolvimento da noção

de texto tal como feito por Beaugrande (1997, apud KOCH, 2004: 170).

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Segundo Fávero et al. (2010) e Aquino (2000) as entrevistas jornalísticas

constituem-se como situações interativas complexas, visto que os objetivos dos sujeitos têm

como foco não apenas os participantes presentes (entrevistadores e entrevistado), mas também

os telespectadores que compõem a audiência. Dessa forma, consideramos que há interesse dos

participantes em explicitar ou preservar sua opinião sobre certos tópicos8 tido como

“ameaçadores”, a depender da representação que os sujeitos esperam ter perante a audiência.

Ao tratar da influência da audiência para os papéis de entrevistadores e entrevistados, afirmam

Fávero et al. (2010) que os participantes caracterizam-se como “cúmplices, no que diz respeito

à comunicação, e oponentes, quanto à conquista desse mesmo público”.

No que diz respeito às entrevistas, haveria relação entre a instauração e

desenvolvimento dos tópicos e a estrutura de participação dessas interações. Nesses contextos,

os papéis de entrevistadores e entrevistado pressupõem o par pergunta-resposta, a partir do qual

ficaria a cargo dos participantes entrevistadores a instauração de novos tópicos e a cargo do

entrevistado Mano Brown o acatamento e desenvolvimento destes. Fávero et al. (2010) atentam

para a importância deste último ponto, afirmando que em entrevistas as perguntas são

responsáveis por direcionar o texto, sendo capazes também de modificar as relações entre os

sujeitos participantes.

Segundo Fávero et al. (2010), as entrevistas caracterizam-se como uma “criação

coletiva”, cujos participantes constroem relações especiais de “dominância ou igualdade,

convivência ou conflito, familiaridade ou distância”, de modo que o discurso produzido nesses

contextos frequentemente envolve acordos e negociações (Cf. AQUINO et al. 2000: 69). Com

8Voltando-nos para o tratamento da noção de tópico, primeiramente a afastamos aqui de sua acepção enquanto

“tópico frasal”. Assim, não nos referimos a construções próximas da sintaxe altamente incidentes no português

brasileiro que o fazem uma “língua com proeminência de tópico e sujeito”, tal como postulado por Pontes (1987).

No entanto, partilhamos de algumas considerações trazidas pela autora, na medida em que seus estudos já

afirmavam que construções tópicas na sentença também podem sinalizar a entrada de um novo tópico discursivo.

Como afirma Mira (2012), a dicotomia entre acepções acerca do tópico foi dissolvida pelo empreendimento do

grupo Organização textual-interativa no âmbito dos estudos do Projeto Gramática do Português Falado, que

agregaram à noção de tópico o estatuto de uma categoria textual-interativa. Portanto, tem-se aqui a noção de tópico

tal como postulada pelo grupo Organização textual-interativa do PGPF e, posteriormente, revisitada em Jubran

(2006: 35) qual seja: “tópico é tomado no sentido de ‘acerca de’ que se fala, isto é, um conjunto de referente

explícitos ou inferíveis concernentes entre si e em relevância num determinado ponto da mensagem”. Ao conceito

de tópico discursivo estão atreladas duas propriedades chave, de acordo com Jubran (2006). São elas: centração –

a propriedade definidora, segundo a autora – e organicidade. A propriedade de centração abriga três outros

aspectos: (i) a concernência, que designa a integração e a interdependência de elementos textuais obtidas através

de processos referenciais; (ii) a relevância: determina que os elementos textuais constituintes do tópico são

elementos que se sobressaem, isto é, “são projetados como focais” e (iii) a pontualização: determina que podem

ser encontrados em algum ponto do texto os elementos textuais referentes ao tópico. Quanto à propriedade tópica

de organicidade, esta se refere às relações hierárquicas entre tópicos, bem como às articulações, resultantes das

adjacências e interposições tópicas ao longo do discurso – trata-se, portanto, das relações de interdependência entre

tópicos.

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base em Goffman (1967), Aquino et al. (2000) afirmam que a negociação nas interações é

produto de uma divergência e, ao longo da interação, a finalidade é a de se chegar a uma forma

de acordo – mesmo que esse acordo seja apenas a mera constatação de que se deveria chegar a

um acordo.

As considerações desses autores, inscritos nos Estudos do Texto, não deixam de

chamar atenção para a necessidade de observarmos as entrevistas também pelo modo como se

configuram as relações entre seus agentes. Ao demonstrar as diversas possibilidades de

distribuição de poder nos papeis estabelecidos nas entrevistas, as considerações de Fávero et al.

(2010) e Aquino et al. (2000) indicam o caminho para que possamos articular abordagens

sociológicas como as de Bourdieu (1996 [1994]; 1997 [1996]) a uma compreensão contextual

do papel de recursos textuais-discursivos em interações como as entrevistas.

Fávero et al. (2010) destacam ainda certas questões acerca da progressão textual

das entrevistas e de sua relação com as perguntas, responsáveis por direcionar o texto e por

instaurar os tópicos perante os sujeitos entrevistados. Para os autores, as perguntas são capazes

também de modificar as relações entre os sujeitos participantes, na medida em que mobilizam

informações que podem significar aproximações ou conflitos. Vemos, portanto, que ao longo

das entrevistas as perguntas proporcionam uma reorganização do contexto e conferem um

caráter bastante dinâmico à organização sequencial dos tópicos discursivos desenvolvidos.

Importa lembrar que, segundo os autores, certos tópicos se constituem como “mais

ameaçadores” para certos entrevistados, fazendo com que o entrevistador deva formular os

enunciados de forma mais estratégica e polida.

O papel das perguntas e dos tópicos discursivos no andamento das entrevistas pode

ser articulado ao pensamento de Bourdieu (1996 [1994]; 1997 [1996]) quando, por exemplo,

assumirmos o papel da linguagem nas tomadas de posição dos agentes de um determinado

campo. Se, para o sociólogo, muitas ações para “por em forma” o discurso resultariam em

tomadas de posição, bem-sucedidas conforme a adequação desse discurso ao momento histórico

de um campo, as considerações de Fávero et al (2010) acerca do papel dos tópicos discursivos

parecem algo compatíveis a esse pensamento, haja vista o reconhecimento de que tópicos

ameaçadores são tratados como ações de textualização (ajustáveis, negociáveis) que podem

impactar a representação social dos falantes.

Acerca da metadiscursividade, é preciso, primeiramente, considerar brevemente

diferenças no tratamento do que significa a atribuição do componente “meta” e, por

conseguinte, aquilo que compreendemos no presente trabalhando enquanto uma manifestação

do metadiscurso na língua. De acordo com Morato (2012: 47),

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(...) a metadiscursividade tende a não se identificar com operações

metalinguísticas (como os grupos nominais metalinguísticos ou as

categorizações de referentes) e isso em função do fato de que o metadiscurso

não pode ser subsumido por metalinguagem – pelo menos não no sentido de

uma metalinguagem tomada em termos de uma capacidade mental, uma

metalinguagem dissociada ou separada dos contextos de uso social da

linguagem.

Segundo Morato (2005), alguns autores (Cf. CULIOLI, 1982) postularam

diferentes níveis de consciência sobre o objeto linguístico para sustentar uma dicotomia entre

operações epilinguísticas (hesitações, autocorreções, reelaborações, repetições, frequentes na

fala) e metalinguísticas (que tomam a própria atividade discursiva como objeto de reflexão).

Outros autores afirmaram que, ainda que as operações epilinguísticas demonstrem um trabalho

reflexivo sobre a língua, sobre o “já dito”, há diferenças quando o grau de distanciamento

reflexivo dos sujeitos incide sobre “o dizer enquanto se diz”, introjetando no decurso da fala a

própria instância da enunciação (Cf. AUTHIEZ-REVUZ, 1998). No entanto, ainda para a

autora, torna-se difícil corroborar uma forte diferenciação entre operações epi e

metalinguísticas, ou mesmo entre operações epilinguísticas e metaenunciativas, na medida em

que fenômenos como as hesitações, autocorreções e repetições também representam uma

“capacidade ‘mais ou menos’ consciente que os falantes têm do uso que fazem da língua (e da

linguagem)”9.

Foi a partir do trabalho de Borillo (1985) que a questão da autorreflexividade esteve

recoberta de um maior interesse nos Estudos do Texto. Segundo o tratamento dado por Borrillo

(2005), a autorreflexividade manifesta na língua remeteria "tanto à estrutura da língua enquanto

sistema, quanto à sua ativação em situação de comunicação" (LIMA, 2005). As funções da

metalinguagem ao longo da enunciação foram descritas por Borillo (1985) levando em conta

três modos a partir dos quais a autora compreende o metadiscurso:

a) a que faz referência ao discurso, especificando aspectos do código em uso

na elaboração do texto; b) a que se refere ao discurso como fato enunciativo,

para explicitar algumas de suas condições, ligadas à gestão do diálogo, tendo

em vista sua inteligibilidade; c) a que se refere ao discurso enquanto

construção de enunciados, para explicitar seu desenvolvimento, sua estratégia

e organização argumentativa. (apud LIMA, 2005: 2)

9A abordagem de Morato (2005: 253) não deixa de considerar, por exemplo, que “nem toda reformulação implica

um distanciamento metaenunciativo”, mas trabalha com a ideia de que essas diferenciações devam ser analisadas

nos processos de significação, permeados pela intersubjetividade e pela negociações das intenções manifestas ou

pretendidas pelos falantes.

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No Brasil, Risso e Jubran (1998) se voltaram para o estudo da autorreflexividade a

partir dos pressupostos teóricos desenvolvidos pelos estudos textuais-interativos, segundo os

quais a linguagem é entendida como uma atividade verbal compartilhada, situada e permeada

por relações sociais muitas vezes complexas entre os participantes (RISSO e JUBRAN, 1998).

Posteriormente, Jubran (2005) e Morato (2005), dentre outros autores, tomaram a

metadiscursividade como fenômeno a ser explorado na pauta das discussões sobre os processos

de referenciação e de desenvolvimento do tópico discursivo. Ao analisarem os processos de

referenciação metadiscursiva, por exemplo, Jubran (2005) e Morato (2005) têm como base a

ideia de que o metadiscurso pode ser observado como recurso presente nas atividades

compartilhadas de uso da linguagem, nas constituição da significação pelos interactantes, nos

movimentos intersubjetivos da construção de sentido (MORATO, 2005: 251).

Os autores mencionados, tendo em vista o estatuto assumido pela

autorreflexividade nesses processos, parecem concordar sobre a complexidade envolvida nas

operações que tomam por objeto a própria língua, indicando que por meio dessas operações os

falantes se exibem como observadores e gestores da própria fala.

Como ponto central para o presente trabalho, tomaremos a manifestação da

autorreflexividade tal como discutida no âmbito dos Estudos do Texto por autores como Risso

e Jubran (1998), Risso (2000), Koch (2004), Jubran (2005) e Morato (2005), em termos da

metadiscursividade. Sob essa concepção, a autorreflexividade é compreendida como processo

atinente à construção de sentidos, de sorte que pode incidir sobre diversos níveis da atividade

verbal ou não-verbal e introjetar diferentes aspectos do contexto interacional no próprio

discurso. O metadiscurso estaria abarcado, com isso, pelas ações de textualização por meio das

quais os falantes dão forma a seus propósitos comunicativos.

Koch (2004), Jubran (2005) e Morato (2005) entendem que a manifestação da

reflexividade na língua se relaciona com os propósitos comunicativos dos sujeitos nos contextos

interacionais. Para Koch, a metadiscursivdade revelaria “um trabalho do locutor sobre a língua,

sobre seus efeitos e suas circunstâncias pragmáticas” (KOCH, 2004: 121). Desse modo, a autora

(2004) discute diferentes tipos de estratégias metadiscursivas. A nosso ver, sua abordagem

enfatiza as ações dos falantes e permite compreender como estes se valem do metadiscurso

enquanto um recurso de construção de sentidos, por meio do qual concretizam seus projetos-

de-dizer. A proposta de Koch (2004: 120-128) sobre diferentes modalidades da

metadiscursividade compreende as seguintes estratégias:

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i. metaformulativas (dado que podem exibir a reflexão feita pelos sujeitos

sobre o código usado, sobre a estruturação do texto ou sobre o papel de

um segmento para a organização textual);

ii. metapragmáticas ou modalizadoras (posto que podem inserir ressalvas

ou atenuações e indicar o comprometimento ou afastamento do locutor

com seu dizer, bem como seu grau de certeza sobre o dito);

iii. metaenunciativas (tendo em vista que o metadiscurso pode ter como

glosa a própria a situação de enunciação). Para a autora, podem ser vistos

como modalizadoras, em sentido amplo, todos os três tipos de

estratégias, embora cada um dos tipos se diferencie, por exemplo, pelo

grau de reflexividade (maior no caso das metaenunciativas), pelos

diferentes aspectos que são tidos como escopo (aspectos textuais, no caso

das metaformulativas; relações intersubjetivas estabelecidas a partir das

atitudes em jogo na interação, no caso das pragmáticas; e aspectos

enunciativo-discursivos, no uso das metaenunciativas).

Posto que os dados selecionados consistem em interações face a face configuradas

como contextos de entrevista, importa ressaltar a ligação entre a produção oral e a

metadiscursividade. Lima (2009) atenta para a dimensão particular em que se encontra a língua

falada em relação à possibilidade do uso do metadiscurso: segundo o autor, as condições em

que se estabelece a produção oral estariam mais fortemente relacionadas ao uso do

metadiscurso, fazendo com que os sujeitos manifestassem os próprios fatores enunciativos na

estrutura textual. Segundo Risso e Jubran (1998), a dinamicidade das interações face a face e

sua ancoragem num entorno espaço-temporal favorecem a representação de traços da

enunciação na materialidade verbal. A autorreflexividade, propriedade marcante do

metadiscurso, pode ser encontrada nessa integração entre enunciado e enunciação explicitada

pelo metadiscurso (LIMA, 2005), na medida em que os falantes, simultaneamente, produzem o

discurso e uma glosa sobre o discurso, de acordo com Risso (2000).

Ao considerar que a metadiscursividade não se manifesta apenas no verbal, Morato

(2010) aponta para a necessidade de considerarmos a participação de semioses não verbais nas

ocorrências do metadiscurso. A nosso ver, semioses não verbais podem compor expedientes

metadiscursos (muitas vezes em co-ocorrência com o verbal) por meio de pistas de

contextualização (Cf. GUMPERZ, 1998 [1982]), como o direcionamento do olhar, a postura

corporal, a modulação da fala numa ênfase ou na mudança do fluxo verbal e também por meio

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da gestualidade dos sujeitos. Segundo a autora, as diferentes modalidades do metadiscurso

representam as dimensões de significação que podem ser introjetadas e materializadas

verbalmente, uma vez que o metadiscurso incide

(...) ora sobre o enunciado, ora sobre a enunciação, ora sobre os recursos

linguísticos; ora sobre o contexto interacional, ora sobre outros processos

cognitivos cuja realidade semiológica vincula-se à linguagem, mas não se

manifesta de forma necessariamente verbal. (MORATO, 2010: 105)

Assim, consideramos que tomar "por objeto o próprio ato de dizer" (KOCH, 2004:

120) envolve reflexões e procedimentos que incidem sobre a eficácia comunicativa (JUBRAN,

2003) pretendida pelos sujeitos ao longo das interações. Por conta do modo como refletem e

operam sobre as interações, torna-se possível associar as estratégias metadiscursivas a recursos

dos quais os sujeitos lançam mão para sua inscrição em campos sociais como o jornalístico, por

exemplo, uma vez que a participação em entrevistas pode consistir em momentos nos quais os

entrevistados têm de lidar, simultaneamente, não apenas com as interações face a face

estabelecidas com os entrevistadores, mas também com a representação que será feita sobre seu

papel (previamente trilhado em campos específicos) perante uma audiência telespectadora.

Acreditamos que a autorreflexividade característica do emprego da

metadiscursividade (RISSO e JUBRAN, 1998; KOCH, 2004) pode estar na base das

negociações presentes ao longo das entrevistas e colabora para a participação que os sujeitos

constroem para si durante sua inserção num determinado contexto e campo social. Assim,

consideramos que, na utilização de estratégias metadiscursivas, o entrevistado Mano Brown,

encontra a possibilidade de uma adequação da força ilocutória de seus dizeres, de um

planejamento verbal estratégico alinhado a seus objetivos interacionais e de cumprimento de

seu papel discursivo (RISSO e JUBRAN, 1998). Com isso, o metadiscurso se relacionaria com

sua inscrição cautelosa e refletida no campo jornalístico.

Embora outros fenômenos (como a referenciação, a modalização e o uso de

marcadores conversacionais, os itens e expressões ligados à polidez ou à argumentação)10 se

façam presentes nos expedientes descritos aqui como metadiscursivos - alguns deles tendo sido

objeto de estudo dentre trabalhos recentes (Cf. LIMA, 2009; MODENA, 2009) - a bibliografia

por nós consultada pareceu não contar com estudos que reunissem a compreensão desses

fenômenos sobre o traço da metadiscursividade. Mais do que isso, a nosso ver se demonstraram

10Alguns desses fenômenos utilizados por Mano Brown como recursos atenuadores são abordados na análise de

Bentes, Ferreira-Silva e Mariano (2013).

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escassos estudos que relacionassem fenômenos de propriedade autorreflexiva a uma

compreensão mais ampla das ações de linguagem, de modo que vários trabalhos se voltam para

como esses fenômenos e recursos operam localmente, a nível interacional, mas não os

relacionam às ações que se constroem no interior de um campo social, por exemplo. Diante

disso, o presente trabalho se propõe a uma compreensão integrativa da metadiscursividade, ou

seja, observando-a enquanto recurso textual-interativo com funções delimitadas ao longo das

interações e enquanto recurso linguístico capaz de (re)configurar a participação de certos

agentes nos campos sociais.

A nosso ver, em função das reações aos tópicos instaurados, os participantes,

entrevistadores e entrevistados lançam mão de recursos textuais-discursivos que permitem a

fixação de interesses e (ou) a negociação das perspectivas em jogo nessas interações (BENTES,

FERREIRA-SILVA, MARIANO, 2013). Nesses casos, a metadiscursividade representaria a

textualização da reflexão sobre a situação comunicativa, sobre a participação dos sujeitos, sobre

as perspectivas em jogo, sobre as relações estabelecidas no decorrer da interação, sobre seus

dizeres ou mesmo sobre certas categorizações que são feitas nesses momentos – como veremos

adiante.

Nesse sentido, consideramos válida a tentativa de estabelecer uma correlação entre

o emprego de expedientes metadiscursivos e outros fenômenos textuais-discursivos, como os

tópicos desenvolvidos ao longo das entrevistas jornalísticas. É preciso levar em conta que os

tópicos discursivos instaurados pelas perguntas que são feitas ao entrevistado estabelecem

relações (tanto mais como menos verdadeiras ou consensuais) entre o entrevistado e um sem

número de ações e circunstâncias suas no espaço social, o que pode incidir sobre a posição

social desse agente no campo social da produção cultural da periferia, por exemplo. Contudo,

nessas entrevistas, tais relações e circunstâncias expressas nos tópicos discursivos podem ser

reiteradas ou recusadas pelo entrevistado Mano Brown. Além disso, os tópicos discursivos

instaurados pelos entrevistadores podem também representar atributos sobre a realidade (seja

como um todo, seja sobre a realidade do campo social da periferia e do hip hop, por exemplo)

de modo divergente ao experimentado por Mano Brown.

Uma vez que os expedientes metadiscursivos podem se referir às construções de

sentido que são expressas no interior dos tópicos desenvolvidos ao longo das entrevistas,

decidimos (i) analisar a relação entre os tópicos e os expedientes metadiscursivos e (ii) observar

como esses expedientes se integram às ações textuais levadas a cabo por Mano Brown nesses

dois contextos inseridos no campo jornalístico.

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Como veremos adiante, as relações entre o desenvolvimento do tópico discursivo e

o uso de expressões metadiscursivas podem fornecer pistas importantes para a compreensão de

como se relacionam as ações de textualização e as tomadas de posição de Mano Brown no

campo jornalístico. Assim, por meio da análise desses processos de textualização poderíamos

compreender melhor as estratégias levadas a cabo pelos sujeitos em contextos de fala nos quais

estão em jogo sua posição no campo, seja na forma de sua representatividade, seja na forma de

sua estigmatização).

2.2 Dos recortes metodológicos

2.2.1 Seleção e transcrição das amostras de entrevista

Apresentamos aqui as justificativas para a seleção das entrevistas concedidas por

Mano Brown aos programas Roda Viva e Papo com Benja e os recortes metodológicos que nos

permitiram analisar os expedientes metadiscursivos empregados nas entrevistas em função de

(i) suas propriedades de acordo com estudos textuais-interativos produzidos por Koch sobre as

estratégias metadiscursivas (2004) e por Risso e Jubran (1998) sobre o processamento

metadiscursivo do texto; (ii) sua ocorrência nos tópicos discursivos desenvolvidos ao longo das

entrevistas; (iii) suas funções com relação à participação de Mano Brown em ambos os

programas e (iv) seu papel como recurso textual-discursivo para qualificar a inserção do rapper

no campo jornalístico.

Nossa pesquisa envolveu, primeiramente, uma busca por entrevistas concedidas

pelo rapper Mano Brown divulgadas na modalidade oral. Assim, foram encontradas, além da

entrevista concedida ao programa Roda Viva, sob a qual já havíamos nos debruçado em

pesquisa de iniciação científica, outras sete entrevistas televisionadas ou divulgadas pelos

sistemas de TV online: ao programa YO! MTV, ao programa Papo com Benja, ao canal

Afropress, à TV Folha, ao Catraca Livre, ao programa Manos & Minas (TV Cultura) e à revista

online Rap Nacional.

A escolha pelas entrevistas concedidas aos programas Roda Viva e Papo com Benja

leva em conta a ideia de manter a seleção de uma entrevista pautada mais pela formalidade,

como é o caso da primeira, e selecionar também uma entrevista que pode ser localizada em

outro polo num continuum entre formalidade e informalidade – como veremos adiante. Com

isso, contaríamos também com entrevistas de extensão razoavelmente distinta: 87 minutos, no

caso do programa Roda Viva, e 38 minutos, no caso do programa Papo com Benja. A nosso

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ver, essas escolhas fariam com que déssemos espaço às diferenças que pudessem surgir em

termos da quantidade e da extensão dos tópicos tratados nas entrevistas, assim como em termos

dos expedientes metadiscursivos.

Uma segunda razão para a escolha de ambos os programas consiste no intuito de

privilegiar entrevistas que não passaram por processos de edição prévios a sua divulgação, os

quais poderiam incidir sobre tópicos, sobre semioses verbais ou não verbais (muitas vezes

consideradas, nesses processos, como excrescências linguísticas) ou sobre a própria

manifestação dos expedientes metadiscursivos. Ambos os programas encontram-se registrados

em sua integralidade. A entrevista concedida por Mano Brown ao programa Roda Viva foi

transmitida pelo canal TV Cultura ao vivo, na noite de 24/09/2007, e o programa Papo com

Benja com a presença do rapper data de junho de 2011, conforme as informações divulgadas

no sítio da agência LANCEPRESS! na internet.

Como mencionamos anteriormente, o trabalho com o programa Roda Viva teve

início no projeto de iniciação científica desenvolvido entre 08/2010 e 07/2011. Nesse momento,

por meio da pesquisa nomeada Referenciação e progressão tópica em uma entrevista

jornalística (FERREIRA-SILVA, 2011) foi possível observar como a negociação e a

recategorização dos referentes fazem com que o entrevistado Mano Brown redirecione tópicos

discursivos, propostos pelos entrevistadores, tidos como “ameaçadores”. Além disso, iniciamos

nossas observações sobre a relação entre estratégias de gestão do tópico e aquelas empregadas

pelos sujeitos participantes para a representação de seu “eu” social – nos termos de Goffman

(1995).

Posteriormente, os dados da entrevista concedida pelo rapper ao programa Roda

Viva foram analisados no trabalho desenvolvido por Bentes, Ferreira-Silva e Mariano (2013).

Foram enfocadas as estratégias de atenuação e impolidez empregadas por Mano Brown ao

longo da entrevista – como a utilização de marcadores discursivos, o questionamento de

pressupostos presentes nas perguntas dos entrevistadores, e a (re)categorização dos objetos-de-

discurso, o redirecionamento do tópico discursivo, a inversão do par pergunta-resposta

característico das entrevistas –, como recursos que também corroboram sua construção

estilística. Essa relação entre estratégias de atenuação e impolidez e manipulação estilística nos

indicou possibilidades de um olhar direcionado para as ações sociais mais amplas colocadas em

cena pelos participantes da entrevista, sobretudo focando na participação de Mano Brown,

convidado do programa. Destacamos, a seguir, algumas observações sobre essas ações sociais

mais amplas presentes no artigo produzido por Bentes, Ferreira-Silva e Mariano (2013: 313):

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(...) a construção do estilo por Mano Brown nessa entrevista revela que o

rapper ora faz uso de recursos que exibem de forma aberta o conflito entre ele

e os “de fora”, reforçando sua identidade de ator social comprometido com a

periferia e com os seus moradores, ora faz uso de recursos atenuadores para

se adequar às restrições genéricas. MB, portanto, não se furta ao conflito

interno constitutivo de sua produção discursiva, tal como observou Bentes, já

que, ao mesmo tempo em que procura se adequar à situação comunicativa e

construir uma legitimação para o lugar enunciativo que ocupa, irá se deparar

com momentos nos quais o reforço a uma identidade social (e, por

conseguinte, linguística), local e de classe se mostra mais do que necessário

para expor o ponto de vista daquele que vê de dentro as questões sociais da

periferia, diferentemente da visão “de fora” exposta e defendida pela mídia

sobre essas mesmas questões sociais.

As amostras selecionadas para compor o corpus do presente trabalho contemplam

metodologias distintas de transcrição de dados. Quando do início do trabalho com os dados do

programa Roda Viva, o trabalho de Ferreira-Silva (2011) em seu projeto de iniciação científica

procedeu à transcrição da entrevista concedida por Mano Brown de acordo com a notação

utilizada pelo grupo de pesquisa COGITES (“Cognição, Interação e Significação”) na versão

de 2007. O modelo se mostrou adequado aos interesses do projeto desenvolvido, já que sua

notação permite tratar de dados da língua falada à luz de aspectos textuais-conversacionais e de

semioses co-ocorrentes11. A construção do protocolo de transcrição realizada pelo grupo

COGITES tem como base o “modelo Jefferson” (apud MARCUSCHI, 1986; LODER, 2008),

acrescido de detalhamentos e aprimoramentos contínuos que buscam trazer uma melhor

compreensão das interações em sua dimensão multimodal.

As demais entrevistas pesquisadas para o desenvolvimento do presente trabalho,

dentre elas o programa Papo com Benja, foram transcritas a partir de 2013, em convergência

com as atividades desenvolvidas pelo grupo de pesquisa do projeto “'É nóis na fita': a formação

de registros e a elaboração de estilos no campo da cultura urbana popular paulista”, coordenado

pela professora doutora Anna Christina Bentes. O acervo de dados pertencente ao projeto se

baseia no protocolo de transcrição empregado nos estudos sociolinguísticos do projeto ALIP

(Amostra Linguística do Interior Paulista), coordenado pelos professores Sebastião Carlos Leite

Gonçalves e Luciani Ester Tenani (Unesp). O protocolo de transcrição desenvolvido pelo

projeto ALIP se mostra adequado aos objetivos do presente trabalho, não apenas porque

11O registro de semioses co-ocorrentes em interações face a face se faz importante para a análise do grupo CCA,

Centro de Convivência de Afásicos entre sujeitos afásicos e não-afásicos. Segundo as informações divulgadas no

portal do grupo COGITES (<http://cogites.iel.unicamp.br/p/aphasiacervus.html>), coordenado pela profa. Dra.

Edwiges Morato: “A análise de recursos expressivos de indivíduos afásicos, bem como de pessoas com Doença

de Alzheimer, torna-se mais consistente a partir de um sistema de transcrição multimodal da conversação, capaz

de possibilitar uma investigação mais rigorosa do papel de processos semióticos co-ocorrentes (tais como gestos,

expressões fisionômicas, postura corporal, etc.) nas práticas discursivas.”

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permitiria a convergência entre os dados coletados aqui e aqueles que compõem o acervo do

projeto “É nóis na fita...”, mas também em função das marcações possibilitadas por seu sistema

de notação – desenvolvido para permitir a observação de fenômenos atinentes ao registro dos

falantes, sem que incidam correções gramaticais a nível morfológico ou sintático.

Ambos os protocolos de transcrição utilizados para a transposição do discurso

presente nas amostras contam com marcações gráficas que nos permitem a observação dos

expedientes metadiscursivos. A notação pertencente ao grupo COGITES possibilita a inserção

de sinais para dar conta, por exemplo, de fenômenos segmentais como os truncamentos de

palavras, características prosódicas e ações não verbais simultâneas ao emprego dos

expedientes metadiscursivos (os quais ocorrem, por vezes, em meio à hesitação ou

reformulação nas palavras inicialmente pronunciadas, com entoações e ênfases específicas e

junto a pistas de contextualização que podem ser sinalizadas por comentários do transcritor). O

protocolo pertencente ao projeto ALIP e utilizado pelo projeto “É nóis na fita...” também

possibilita a marcação dos truncamentos de palavras e a inserção de comentários do transcritor,

além de permitir a marcação de mudanças no fluxo discursivo e segmentos característicos da

metalinguagem dos informantes (nos quais mencionam referentes e o código).

Nesse sentido, consideramos que a presença de amostras transcritas a partir de dois

protocolos distintos não pareceu prejudicial à representação e à identificação dos expedientes

metadiscursivos. Os protocolos utilizados para a transcrição das amostras encontram-se em

anexo ao final do trabalho.

2.2.2 Identificação e seleção dos expedientes metadiscursivos

Para os recortes metodológicos dos expedientes metadiscursivos, seguimos os

seguintes passos: a identificação dos segmentos conforme as propriedades apontadas por Risso

e Jubran (1998) e Koch (2004), a separação e listagem desses expedientes, levando em conta

os tópicos e supertópicos nos quais emergem, bem como a contagem e quantificação da

incidência de expedientes em cada supertópico.

Esses passos, alguns deles atinentes a uma abordagem quantitativa, mostraram sua

relevância para o entendimento das funções dos expedientes metadiscursivos em cada um dos

contextos de entrevista e também para uma caracterização mais ampla desses recursos segundo

seu papel nesse momento de inserção de Mano Brown no campo jornalístico.

Como salientam Risso e Jubran (1998) e Rezende (2010), as listagens exaustivas e

a tentativa de tipologias prévias para identificar os segmentos relativos ao metadiscurso se

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mostram pouco produtivas, haja vista que sua composição pode se dar através de categorias e

expressões as mais variadas. Por conta disso, parece adequado aos propósitos do presente

trabalho a identificação dos expedientes metadiscursivos tais como compreendidos pelas

autoras (RISSO E JUBRAN, 1998; KOCH, 2004), que aludem a diversas manifestações da

metadiscursividade pautando-se pelos propósitos mais gerais subjacentes a sua utilização, sem

ignorar os nuances desses propósitos nas interações e os diferentes níveis de linguagem

introjetados pelo metadiscurso.

As transcrições dos dados anexadas ao fim do trabalho contam com destaques em

diferentes cores para os expedientes metadiscursivos presentes nas entrevistas, no intuito de que

o trabalho possa dar acesso à identificação desses dados.

2.2.3 Da contextualização do corpus

Ainda que compreendamos essas entrevistas como práticas sociais relativamente

estáveis (HANKS, 2008), nosso acesso a elas não se deu de forma direta, mas sim mediado

pelos dados já coletados. Sem que tenhamos nos exposto à realidade de Mano Brown no campo

jornalístico, ou no movimento hip hop do campo da produção cultural da periferia, nossas

análises necessitaram de uma reconstrução contextual da posição e da trajetória de Mano Brown

nesses campos. Somente a partir da reconstrução de algumas das dimensões contextuais que

emergem nas entrevistas selecionadas é que poderíamos compreender as ações de textualização

do rapper como ligadas a ações mais amplas no interior desses dois campos sociais.

Nesse sentido, é possível dizer que a articulação proposta pelo trabalho pressupõe,

uma integração entre níveis “micro” e “macro” de análise para a compreensão da

metadiscursividade enquanto recurso textual-discursivo presente nas ações que ocorrem no

interior de um campo. No entanto, tendo em vista que nossos objetivos não residem na

tipificação das entrevistas enquanto gênero discursivo (Hanks, 2008), foi possível tomá-las

enquanto dois diferentes contextos do campo jornalístico, situados em momentos históricos

algo distintos.

Na reconstrução das entrevistas enquanto contextos do campo jornalístico,

tomamos como base a composição analítica de Hanks (2008). A nosso ver, sua abordagem

acerca daquilo considerado como contexto poderia fazer com que a trajetória no campo (e as

disposições para agir que dela resultam) de sujeitos como Brown deixasse de ser tanto

negligenciada quanto tomada como único parâmetro explicativo para tudo o que nas entrevistas

ocorre.

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Para explicitar aquilo que evocamos ao tratar desses dois contextos do campo

jornalístico, importa lembrar que, nas abordagens linguísticas, embora a descrição do contexto

seja de suma importância para a apresentação do dado – podendo refinar ou dar mais relevância

aos fenômenos que queremos estudar -, o contextualismo pode tornar-se perigoso. Isso porque,

muitas vezes, ao buscarmos a remissão excessiva ao contexto, acabamos por perder o

linguístico em si. Contudo, na busca por abordagens do contexto em que este não se apresente

como conceito ontologizado ou simplesmente como “pano de fundo” dos fenômenos

linguísticos, encontram-se propostas teóricas como a de Van Dijk (2012) e também como a de

Hanks (2008).

Para Hanks (2008), algumas abordagens linguísticas tradicionais procuraram

reduzir as estruturas sociais aos comportamentos individuais, restando ao contexto um papel

efêmero em que este estaria localizado no processo emergente da fala, como simultâneo da

conversação e da interação. Outras abordagens tomaram o contexto apenas em seu sentido

global, baseando-se em amplas teorias sociais e históricas e apontando o foco da análise textual

para aspectos anteriores ao momento de produção do enunciado. Ambas as abordagens,

segundo Hanks (2008), culminaram no mesmo problema de distorção da significação e

corroboram a existência de uma dicotomia entre os níveis macro e micro.

Em contrapartida, sua abordagem se apresenta como uma tentativa interdisciplinar

de conceber o contexto fugindo das limitações impostas pela lacuna da dicotomia entre

“interno” e “externo” e através de uma proposta que defende a incorporação da situacionalidade

do discurso às experiências sociais como um todo. Desse modo, com vistas a construir essa

articulação nos são apresentadas as noções de emergência (emergence) e

incorporação/encaixamento (embedding) na constituição do contexto interacional.

Ponto central para o presente trabalho é a ideia de que a entrada de Mano Brown

nos contextos de entrevista se relaciona com a situacionalidade das interações nos programas

Roda Viva e Papo com Benja, mas também com suas experiências sociais como um todo –

indicando a relação entre emergência e incorporação tal como proposta por Hanks (2008).

Desse modo, propusemo-nos a uma inspeção integrativa do contexto, em nível “macro” e

“micro”, isto é, iniciado com uma incursão, neste capítulo, a certas tomadas de posição

ancoradas na trajetória de Mano Brown.

Segundo afirma Hanks (2008), a emergência se configura como dimensão dinâmica

do contexto e designa aspectos estruturais que surgem na temporalidade dos processos de

produção e de recepção dos enunciados. Diz respeito, assim, às ocorrências durante a co-

presença verbal estabelecida entre os falantes. Ao tratar da emergência como uma das

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dimensões do contexto, o autor chama atenção para o fato de que o contexto se constrói em

várias trajetórias e diferentes níveis e incorre, então, na distinção entre situação e cenário:

enquanto aquela se define como o espaço de monitoramento existente na co-presença dos

falantes e por sua possibilidade de percepção e acesso sensório-motor uns aos outros, o

tratamento dado ao que é chamado de cenário pressupõe a existência de um julgamento por

parte dos falantes sobre essa situação vigente e sobre seus respectivos elementos e aspectos

relevantes.

Ao tratar da dimensão “incorporada” como complementar ao nível emergencial, o

autor ressalta o fato de que o contexto é formulado, criado e transformado a partir das dimensões

simbólica e indicial intrínsecas aos enunciados que, por sua vez, são presentes nos cenários

concebidos pelos participantes. Sendo assim, o modelo de análise pressupõe que diferentes

sujeitos agem com base em seus próprios sistemas de relevância e também a partir de “campos

sociais”: estes se relacionam a “formações sociais” que fazem circular valores específicos e

proporcionam contextos incorporados, embora em âmbito não-local. A incorporação dessas

dimensões contextuais envolveria, portanto, a relação existente entre situações, cenários,

campos demonstrativos e campos sociais.

No presente capítulo, nosso percurso se voltou, primeiramente, para a apresentação

da metadiscursividade e daquilo que sejam os expedientes metadiscursivos, categoria de análise

com a qual trabalharemos para a compreensão mais geral da relação entre ações de textualização

e a inscrição de Mano Brown no campo jornalístico. Além disso, foi possível apresentar as

razões que motivaram a seleção das entrevistas concedidas pelo rapper aos programas Roda

Viva e Papo com Benja. Ato contínuo, comentamos sobre os passos metodológicos aos quais

nos lançamos para o tratamento do corpus, tanto na transcrição dos dados quanto no tocante

aos expedientes metadiscursivos. Por fim, buscamos nos postulados de Hanks (2008) a

fundamentação teórica da reconstrução textual que daremos a nossos dados, atentando para a

convergência da perspectiva teórica do autor com a articulação pretendida pelo trabalho, a

saber, entre os trabalhos sociológicos de Bourdieu acerca dos campos sociais e a perspectiva

textual-interativa sobre a metadiscursividade. No capítulo seguinte, procederemos à

reconstrução contextual que acreditamos ser necessária às análises que envolvam o conceito de

campo social e as ações de textualização.

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3. RECONSTRUINDO O CONTEXTO SOCIAL: A TRAJETÓRIA DE

MANO BROWN E AS ENTREVISTAS JORNALÍSTICAS

No presente trabalho, partimos da ideia de que é preciso, mesmo de dentro da

pesquisa e da análise linguística, reconhecer que os fenômenos linguísticos não são apenas

linguísticos stricto sensu, de modo que nosso campo de estudo, a depender dos interesses de

pesquisa, possa recorrer a teorias de base social mais forte com vistas a dar conta, em alguns

níveis, da complexidade das ações de linguagem, quer sejam mais cotidianas ou mais

institucionalizadas.

Analisar as ações de textualização de Mano Brown significa atentar para o fato de

que os sujeitos, com efeito, têm a percepção do impacto de suas palavras e de suas ações de

linguagem no mundo. Não raro, as falar do rapper indiciam com maior nitidez a percepção

sobre o impacto de suas ações de textualização, como ocorre, por exemplo, em uma de suas

afirmações ao programa Roda Viva (2007): “na verdade hoje eu me lembro até de dizer... acho

que discurso é corda pra se enforcar, entendeu?... eu sou/ eu procuro ser livre”. Por meio de

falas como essa, Mano Brown parece indicar que embora os indivíduos sejam, por vezes,

fortemente e rapidamente vinculados a seus discursos – ou a interpretações, errôneas ou não,

que se tem sobre seu discurso e suas falas -, esses indivíduos podem se encontrar em situações

nas quais julgam necessário trazer à tona essa tentativa, por parte de outrem, de relacionar suas

falas a “um discurso” prévio. Em meio a outros indivíduos com os quais a mesma vinculação

acontece, o rapper Mano Brown parece se destacar pelo modo como percebe essa tentativa de

associação entre ele mesmo e “um discurso” e também pelo modo como explicita essa

associação feita por sujeitos que são seus interlocutores (como entrevistadores, repórteres,

jornalistas) com vistas a rechaçá-la.

Essa aguçada percepção da relação entre as ações de textualização e as ações sociais

mais amplas é inúmeras vezes exposta por Mano Brown, como quando indica, em entrevista ao

programa YO!MTV (2002), toda a seriedade e o cuidado necessários para revestir suas palavras:

(...) Vagabundo de antena pa registrar falha de cantor de rap não falta... o rap

hoje é o que fala a re/ é o que fala dos problema... então todo mundo qué(r)

registrá(r) quem fala... os que num fala ninguém vê(r) ninguém vê(r)... os que

fala todo mundo fica registran(d)o qué(r) dizê(r) grupo de rap (es)tá todo

mundo de oio... todo mundo registran(d)o pra vê(r) se dá mancada vê(r) se

fala coisa errada vê(r) se... vai ganhá(r) dinhe(i)ro e vai metê(r) carro

importa::do... essa é a fita hoje todo mundo registran(d)o o rap.

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Segundo o Mano Brown, já que não faltam “antenas” para registrar o que os

rappers falam – sobretudo “antenas” para captar as palavras daqueles “que fala(m)” e que se

atrevem a explicitar12 em suas letras de música as mazelas sociais presentes numa realidade

marcada pela desigualdade -, torna-se necessário não apenas perceber atentamente as relações

entre o código linguístico e a situação de comunicação em si, mas também tentar deter algum

controle das implicações de seus enunciados num sistema simbólico com relações de poder

estabelecidas.

De modo geral, os enunciados apresentados acima, retirados de duas entrevistas

concedidas pelo rapper Mano Brown, indicam-nos a sua reflexão sobre alguns pontos das ações

discursivas praticadas tanto por ele quanto por seus interlocutores. Além disso, sugerem que,

nos contextos interacionais dos quais o rapper participa como convidado, estão presentes ações

discursivas que podem ser compreendidas em diferentes níveis de análise: ora as informações

e os conteúdos instaurados nessas entrevistas somam-se a tantos outros para constituir a

experiência e prática discursiva de Mano Brown, ora os conteúdos desenvolvidos são voltados

para refletir sobre a própria prática discursiva em entrevistas, por exemplo.

No caso das entrevistas concedidas pelo rapper Mano Brown, vemos que os tópicos

discutidos, simultaneamente, mobilizam informações contextuais anteriores, mas também

expõem informações responsáveis por reconfigurar o contexto de entrevista entre os

participantes da situação comunicativa, já que a reflexividade, presente em muitas das falas do

rapper ao longo de contextos interacionais como as entrevistas, atenta para a reversibilidade da

qual o contexto e o discurso são dotados (HANKS, 2008; VAN DIJK, 2012). Consideramos

que a participação de Mano Brown nesses contextos de entrevista, a um só tempo, integra as

inúmeras experiências que compõem sua prática comunicativa e proporciona a configuração de

suas práticas sociais mais amplas, já que permitem reflexões posteriores que, em outros

momentos, são trazidas à tona pelo rapper, conforme veremos adiante.

12Bentes (2008: 211-212) demonstrou como certos recursos multimodais presentes no rap A vítima, dos Racionais

MC's, participam da mobilização de campos semióticos, tendo em vista que “o narrador (um dos integrantes do

grupo) conta, em função do pedido que lhe fez um amigo, o seu envolvimento em um acidente de carro na Marginal

Tietê, em São Paulo, que resultou na morte de um homem jovem”, bem como as consequências do acidente, como

sua presença no Fórum para prestar esclarecimentos sobre o ocorrido. Em Bentes e Rio (2006) temos uma análise

dos tópicos presentes na canção Tô ouvindo alguém me chamar, também de autoria dos Racionais MC's. Nesse

caso, a análise demonstrou que a letra da canção tem como supertópico a “vida bandida” de seu narrador-

personagem. Embora essas duas letras de raps produzidos pelos Racionais MC's não desenvolvam mais

centralmente tópicos ligados à desigualdade social, ambas consistem em histórias em perspectiva (BENTES e

RIO, 2006), retratam tanto a sorte das personagens (jovens das periferias urbanas) como também alguns de seus

processos de subjetivação a partir de determinadas experiências sociais vividas no contexto social da periferia.

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Partindo da percepção de Mano Brown sobre a relação entre suas ações de

textualização presentes nas entrevistas e dos impactos destas como ações sociais mais amplas,

procuraremos, primeiramente, compreender duas visões que comumente incidem sobre o

rapper: sua representatividade e sua estigmatização. Na segunda seção do capítulo,

procuraremos apresentar o rapper e protagonista de movimentos sociais, Mano Brown, segundo

seus modos de socialização, em alguns momentos, com base em informações biográficas

retiradas de declarações feitas pelo músico (em algumas entrevistas publicadas em revistas) e a

partir do que foi discutido por Silva (2012). Em uma terceira seção, caracterizaremos a inserção

de Mano Brown nesses contextos interacionais de entrevista, explorando informações das

mídias entrevistadoras sobre o rapper e também algumas considerações do rapper sobre o

campo jornalístico.

Ponto importante para o presente trabalho é a ideia de que as ações de textualização

(como as que engendram os expedientes metadiscursivos) podem se tornar recursos para que

sujeitos que ascenderam a diferentes campos sociais e que agora têm sua prática linguística

presente em contextos mais formais ou institucionais, como Mano Brown, logrem êxito em

certas tomadas de posição. Assim, tais recursos contribuem também para que esses indivíduos

não vejam seus dizeres, em interações complexas como as entrevistas, apenas enquanto “uma

corda para se enforcar”.

3.1 Representatividade e estigmatização de Mano Brown

Importa-nos nesse momento descrever dois olhares que são, a nosso ver,

comumente lançados a Brown nos campos sociais dos quais participa, ainda que tratemos de

sua posição enquanto agente do próprio campo da produção cultural da periferia, quais sejam:

sua (i) representatividade enquanto sujeito ligado à periferia e enquanto protagonista do

movimento hip hop - característica que ao menos à primeira vista lhe renderia um poder

simbólico maior – e sua (ii) estigmatização, na medida em que sua trajetória de ascensão não

logrou livrá-lo de uma posição intermediária entre diferentes campos – posição cujas

responsabilidades e cobranças se (re)produzem por meio de diferentes facetas.

Consideramos que as canções produzidas pelos raps dos Racionais MC's, grupo

liderado por Brown, constituem-se em um tipo de representação simbólica das vivências dos

moradores da periferia, respeitando ainda a heterogeneidade dos diferentes grupos encontrados

nesses espaços. Nesse sentido é que se pode entender a alcunha comumente dada aos rappers

de “sociólogos da periferia”, como lembra Silva (2012): sua socialização nesses espaços e sua

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dedicação à cultura hip hop e à música fazem com que estejam, a um só tempo, outorgados a

retratar as vivências da população dos bairros pobres com legitimidade e munidos de uma

consciência de grupo ou classe responsável por uma atitude que não deixa de ser reflexiva13, da

qual suas canções são resultantes. Expressões como essa, empregadas para se referir a Brown,

salientam a posição ocupada por Mano Brown enquanto agente interno do campo de produção

cultural da periferia inserido no movimento hip hop e, simultaneamente, parecem sugerir certas

disposições reflexivas como características de sua tomada de posição nesse campo social.

Kehl (1999) lembra que, no caso dos Racionais MC's e do movimento hip hop como

um todo, o retrato e o questionamento do modelo de sociedade atual, tal como presente nas

letras, guarda diferenças com as de outros movimentos musicais, como o movimento punk, por

exemplo. Para a autora, o “discurso de oposição” que reveste as músicas dos Racionais MC's

tem como marca a “consciência” e a “atitude” – inclusive como palavras bastante mencionadas

nas letras do grupo -, ideias atinentes a um conjunto de disposições que incentivam o “orgulho

da raça negra e lealdade para com os irmãos de etnia e pobreza”14. Afirma Silva (2012: 143)

que, nesse caso “a inquietação social estaria ligada à negação da atitude cordial esperada dos

moradores das favelas, morros e periferias”. Nesse sentido, o rap produzido por grupos como

os Racionais MC's também se afasta de um potencial unicamente transgressivo, como lembra

Silva, contrariamente a diversos grupos musicais cujas letras, embora sejam revestidas de

críticas ao status quo, não chegam a representar uma ideia de mobilização das massas retratadas.

Importa ressaltar que o movimento hip hop está ligado a uma série de outras

iniciativas oriundas da própria periferia no sentido de fomentar e legitimar suas produções

culturais. Assim é que podem ser vistas iniciativas, por exemplo, como a Cooperifa15, as rádios

comunitárias16, os jornais que circulam nas próprias comunidades, as obras de escritores da

13A respeito da reflexividade do rapper sobre sua condição de classe, ver Bentes (2009). 14Kehl (1999: 95-96) lembra um trecho da canção Raio X no Brasil: “Sabem para quem estão falando, e sabem

sobretudo de onde estão falando: '―Mil novecentos e noventa e três, fodidamente voltando, Racionais/ usando e

abusando de nossa liberdade de expressão/ um dos poucos direitos que um jovem negro ainda tem neste país./

Você está entrando no mundo da informação/ autoconhecimento, denúncia e diversão./ Este é o raio-X do Brasil,

seja bem-vindo' (grifos da autora)”. 15A Cooperativa Cultural da Periferia (Cooperifa) é um projeto cultural voltado para a poesia, o teatro e a

literatura, idealizado pelo poeta Sérgio Vaz, cujos encontros semanais, livres à população e dedicados à criação e

à leitura de poesia, ocorrem em saraus promovidos às quartas-feiras no Jardim Guarujá, bairro administrado pela

subprefeitura do M'Boi Mirim. Ao descrever o projeto, Sérgio Vaz afirma: “[...] Muita gente que nunca havia lido

um livro, nunca tinha assistido uma peça de teatro, ou que nunca tinha feito um poema, começou, a partir desse

instante, a se interessar por arte e cultura. O sarau da Cooperifa é nosso quilombo cultural [...]”. 16Alguns bairros, como o Capão Redondo, contam com rádios comunitárias desde o fim da década de noventa,

como é o caso do projeto de rádio comunitária e rádio web desenvolvido no bairro pela Associação de Moradores

do Conjunto Habitacionais Chico Mendes. No Capão Redondo e nos bairros da Brasilândia, Jardim São Luís e

Vila Nova Cachoeirinha existem projetos culturais ligados a estúdios de gravação que recebem artistas das

comunidades para o trabalho de produção musical. Ambos esses projetos, ligados à música, têm como objetivo a

inclusão e difusão das manifestações artísticas produzidas pela própria periferia para a comunidade, estando a

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literatura periférica17 e as entidades culturais filantrópicas18 surgidas nas comunidades com

vistas ao estabelecimento de uma identidade cultural legítima de seus bairros.

Com vistas a uma descrição do reconhecimento e da representatividade que

atribuímos a Brown, cabe levar em conta, inicialmente, as palavras cantadas pelo rapper na

canção Negro Drama19. Consideramos que ao dizer “eu vi, eu vivi, eu vivo o negro drama, eu

sou o negro drama”, Mano Brown indica-nos uma reivindicação de autoridade etnográfica

acerca das questões tratadas por ele. De modo complementar, esse pequeno texto parece ser

uma resposta às críticas surgidas após uma trajetória de ascensão, sucesso e estigmatização

narrada pelo eu lírico da canção. Interessa-nos, nesse caso, atentar para o fato de que o rapper,

nesse momento da letra, encena sua representatividade como sujeito que vivenciou e vivencia

os conflitos vividos por milhares de brasileiros, conferindo uma maior legitimidade ao seu

discurso.

Desse modo, cumpre levantar algumas questões importantes acerca das condições

da representatividade de sujeitos como Mano Brown. A nosso ver, é preciso levar em conta que

essa característica atribuída a Brown se dá em função de um conjunto de disposições

desenvolvidas pelo rapper ao longo de sua trajetória capaz de marcar sua maneira de pensar,

sentir e agir de um modo que, se é semelhante às trajetórias de milhares de outros moradores

da periferia, também se diferencia em algo pelo modo como criou as condições para que

assumisse uma posição simbólica de destaque no movimento hip hop do campo da produção

cultural da periferia.

Consideramos que a representatividade, nesse caso, guarda relações também com

uma posição de liderança assumida por Brown na teia de relações que cunhou ao longo de sua

trajetória pessoal e profissional. Assim, a socialização de Mano Brown - seja por uma inserção

a priorística ou por engajamento seu nesse campo - foi capaz de conferir poder simbólico à sua

serviço das necessidades e dos interesses locais desses bairros. 17Como as obras Capão Pecado (Ferrez, 2001) e Colecionador de Pedras (Sérgio Vaz, 2007). Os autores Ferrez e

Sérgio Vaz são expoentes do movimento conhecido como literatura periférica (cf. SILVA, 2011). 18Cabe ressaltar a iniciativa da marca 1DaSul, idealizada por Ferrez, que se volta para a comercialização de artigos

de moda (camisetas, bonés etc) produzidos na própria periferia, cujas receitas ajudam no patrocínio de eventos

culturais (quermesses, shows de hip hop, festas comunitárias, oficinas literárias) realizados na periferia. A marca

também tem como objetivo o fomento à valorização das comunidades associadas, através da construção de uma

estética e identidade autênticas aos moradores, sobretudo aos jovens. O nome 1DaSul faz alusão ao número que

representaria a unidade dos moradores do bairro (“todos somos 1”) e à Zona Sul de São Paulo, região da capital

na qual se situam diversos bairros ligados à marca. 19A canção foi lançada em 2002 e figura no álbum Nada como um dia após outro dia - composta pelo próprio

Brown em parceria com Edy Rock, e sua temática consiste numa reflexão crítica do eu lírico acerca da repercussão

do sucesso alcançado.

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representação social enquanto rapper e protagonista do movimento hip hop. Nesse sentido,

cabe lembrar as palavras de Elias (1994 [1987]: 50), para quem

A pessoa, individualmente considerada, está sempre ligada a outras de um

modo muito específico através da interdependência. Mas, em diferentes

sociedades e em diferentes fases e posições numa mesma sociedade, a margem

individual de decisão difere em tipo e tamanho. E aquilo a que chamamos

“poder” não passa, na verdade, de uma expressão um tanto rígida e

indiferenciada para designar a extensão especial da margem individual de

ação associada a certas posições sociais, expressão designativa de uma

oportunidade social particularmente ampla de influenciar a auto-regulação e

o destino de outras pessoas.

Nesse sentido, a partir das palavras de Elias (1994 [1987]) acerca da relação

existente entre indivíduo e sociedade, consideramos que a representatividade de Brown deve

ser entendida como caudatária do poder simbólico que adquiriu a partir de relações de

interdependência estabelecidas ao longo de sua socialização. Esse poder simbólico, além disso,

traz novas possibilidades para Mano Brown em termos das tomadas de posição nos campos

sociais, no sentido de que sua margem de ação - seja profissional, musical, pessoal, através do

que diz, veste, consome e de tantas outras atitudes – pode influenciar a trajetória de outrem,

como uma liderança.

Elias (1994 [1987]) salienta que, para grupos sociais desfavorecidos, a discrepância

de oportunidades efetivas para desenvolver instrumentos de poder social faz com que as

condições para a iniciativa pessoal sejam drasticamente reduzidas aos membros desses grupos,

de tal modo que suas lideranças representam para essas classes as únicas possibilidades reais

de iniciativa pessoal capaz de obter êxito na busca por mudanças positivas. A inserção de Mano

Brown no movimento hip hop e no campo da produção cultural da periferia, portanto, faz com

que disponha de capital cultural, social e econômico para agir seja nesse campo ou em outros,

como o jornalístico que, segundo vimos em capítulo anterior, frequentemente tem como

fundamento a busca pelo “extraordinário”, pelo que extrapola o comum. Podemos dizer que a

participação do rapper em entrevistas jornalísticas significa aos meios televisivos a presença

de agentes que ocupam posição de liderança em campos sociais e movimentos sociais influentes

nas ações de inúmeros indivíduos.

No entanto, a representatividade de Brown e a posição de liderança assumida por

ele não são revestidas apenas de aspectos positivos reforçados pelos grupos com os quais tem

contato. Como mencionamos, sua trajetória anterior ao sucesso serve para legitimá-lo e

fortalecê-lo enquanto ocupante de uma posição detentora de relativo poder simbólico no

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movimento hip hop do campo cultural da periferia (e também em outros campos dos quais

porventura participe). Contudo, por conta de seu reconhecimento, sua representação social deve

também frequentemente prestar contas às comunidades, já que, enquanto “porta voz”, não pode

retratar aquilo que não corresponde à realidade e, enquanto músico de sucesso, não mais é

atingido por uma série de restrições econômico-sociais que ainda marcam o cotidiano daqueles

cujas vivências são retratadas em suas canções. A nosso ver, à representatividade de Mano

Brown soma-se sua estigmatização, como trataremos a seguir.

Para Goffman (1988), a identificação de um estigma deve levar em conta uma

análise relacional, na medida em que um mesmo atributo pode tanto estigmatizar quanto atestar

“a normalidade20” de alguém. Desse modo, no caso de MB, é preciso levar em conta tanto sua

socialização no movimento hip hop do campo da produção cultural da periferia quanto sua

posição e representação para além desse campo. A esse aspecto relacional da estigmatização,

Goffman (1988: 13) chama atenção com o seguinte exemplo:

Por exemplo, alguns cargos na América obrigam seus ocupantes que não

tenham educação universitária esperada a esconderem isso; outros cargos,

entretanto, podem levar os que os ocupam e que possuem uma educação

superior a manter isso em segredo para não serem considerados fracassados

ou estranhados. De modo semelhante, um garoto de classe média pode não ter

escrúpulos de ser visto entrando numa biblioteca; entretanto, um criminoso

profissional escreve: 'lembro-me de que, mais de uma vez, por exemplo, ao

entrar numa biblioteca pública perto de onde eu morava, olhei em torno duas

vezes antes de realmente entrar, para me certificar que nenhum de meus

conhecidos estava me vendo'.

Desse modo, é preciso considerar também as diferenças entre os tipos de atributos

de estigmatização. Ao assumirmos a classificação de Goffman (1988), para quem “estigmas

tribais de raça, nação e religião” são transmitidos como atributos involuntários aos sujeitos,

podemos observar a complexidade das relações sociais encenadas por Mano Brown, na medida

em que, por exemplo, sua cor, sua origem e religião (inicialmente professada no camdomblé, e

depois nas igrejas evangélicas), podem não ser vistos como características estigmatizadas aos

grupos presentes nas periferias, mas ser vistas como atributos depreciativos aos indivíduos com

os quais Mano Brown convive em outros contextos.

De modo semelhante, as influências da literatura de líderes como Malcolm X e

Martin Luther King, que sabidamente compuseram o pensamento de Brown acerca das questões

20O autor explica que chamará de “os normais” aqueles que “não se afastam negativamente das expectativas

particulares em questão”, quando analisada a possibilidade de um atributo ser estigmatizante ou não (GOFFMAN,

1988: 14).

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do movimento negro e da condição social da periferia, podem ser vistas como bastante notórias

pelos participantes de contextos como os das entrevistas jornalísticas21, por exemplo, ou como

práticas pretensiosas e egóicas para um homem negro e pobre na visão, até mesmo, de um

homem que também seja negro e pobre. Assim, aos estigmas tribais, dos quais muito

dificilmente se escapa - por conta da externalidade de suas contingências visuais e corporais -

podem somar-se os estigmas relacionados às mais diversas práticas desempenhadas pelos

sujeitos (como os estigmas em relação aos vícios, à orientação sexual, ao desemprego, à

desonestidade, ao comportamento político radical etc).

Na diferenciação que faz quanto aos modelos de socialização nos quais o indivíduo

estigmatizado se inscreve, Goffman (1988) comenta sobre a condição daqueles que mais

imediatamente experenciam a convivência com a ideia de que carregam um atributo

depreciativo. Aos indivíduos com estigmas de cor e origem, por exemplo, a incorporação do

ponto de vista dos outros e a percepção valorativa sob si mesmo incidem desde as primeiras

socializações, de sorte que, desde seu nascimento, esses sujeitos convivem com as ideias de

outrem sobre seu estigma e também com as condições delineadas a ele e resultantes do estigma.

Para o autor, a relação entre essas duas percepções, como duas fases pelas quais os sujeitos

estigmatizados passam, delimitam opções de “carreira moral” disponíveis a esses indivíduos,

dentre as quais se exemplifica o estigma congênito daqueles que são socializados numa situação

de desvantagem, inclusive aprendendo e incorporando os padrões responsáveis por perpetuar

sua posição desfavorável.

Ainda de acordo com Goffman (1988), embora a infância e as primeiras

socializações ainda tenham como característica um certo resguardo em relação aos

estigmatizados, no momento em que esses sujeitos deixam de conviver fundamentalmente no

espaço doméstico – tempo que coincide com a juventude e com as relações de trabalho –

provavelmente as novas relações estabelecidas farão com que tenham de encarar de frente um

momento crítico em relação a seu estigma, consistindo numa experiência moral que pode ser

marcante. Experiências como essa, nas quais o sujeito aprende que é portador de um estigma e

nas quais se vê limitado por ele, segundo o autor, fazem com que os sujeitos possam estabelecer

novas relações com os demais estigmatizados.

Goffman (1988: 36) salienta, além disso, algumas situações pelas quais passam

aqueles que se encontram numa situação de representantes da categoria estigmatizada:

21Como lembra Goffman (1988: 24), essa possível visão se justifica até mesmo pela tendência, aos olhos dos

“normais”, a tornar-se um grande feito mesmo a prática mais prosaica ou natural de um sujeito estigmatizado, do

qual, muitas vezes, não se espera muito.

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Pode-se acrescentar que desde que uma pessoa com um estigma particular

alcança uma alta posição financeira, política ou ocupacional – dependendo a

sua importância do grupo estigmatizado em questão – é possível que a ela seja

confiada uma nova carreira: a de representar a sua categoria. Ela encontra-se

numa posição muito eminente para evitar ser apresentada por seus iguais como

um exemplo deles próprios. (A fraqueza de um estigma pode, assim, ser

medida pela forma pela qual um membro da categoria, por mais importante

que seja, consegue evitar estas pressões.)

O autor comenta ainda sobre a posição delicada na qual se encontram esses “líderes

'nativos'”, pois sua posição de distinção em relação aos demais faz com que tenham que lidar,

por exemplo, com representantes de outras categorias, construindo contatos que aos olhos de

seus grupos se dão com grupos nocivos ou opostos. Nesses casos, os aspectos positivos da

representatividade e da liderança desses sujeitos podem ser revertidos, uma vez que se cria um

entendimento de que “estão rompendo o círculo fechado de seus iguais” (GOFFMAN, 1988:

36). O mesmo entendimento por parte de seu grupo pode levar à impressão de que esses

indivíduos que atingiram uma posição de liderança “em vez de se apoiar em suas muletas,

utilizam-nas para jogar golfe, deixando de ser, em termos de participação social, os agentes das

pessoas que representam” (GOFFMAN, 1988: 36).

Consideramos que uma relação pode ser traçada entre essas observações de

Goffman acerca de “líderes ‘nativos'” e a participação de Mano Brown, indivíduo prestigiado

no movimento hip hop do campo da produção cultural da periferia, em eventos típicos do campo

jornalístico. Isso porque há a possibilidade de que as entrevistas concedidas pelo rapper sejam

compreendidas por demais agentes do movimento hip hop e também do campo da produção

cultural da periferia - e mesmo por tantos outros indivíduos - como uma obtenção indevida de

vantagem ou poder simbólico por parte de Brown, à custa da condição de outros estigmatizados.

A partir de aspectos como esse, é possível verificar a complexidade das relações

nas quais se inscreve Mano Brown, enquanto sujeito estigmatizado tanto por campos sociais

mais distantes em relação ao de suas primeiras socializações, mas com os quais mantém

relações por conta de sua ascensão, como por aqueles com os quais considera ter um

pertencimento de grupo. Nesse sentido é que podem ser compreendidas algumas de suas falas,

como a seguinte, presente na entrevista concedida por Mano Brown à revista Rap Nacional

(2014), encontra-se a seguinte passagem:

[Pergunta:] Qual é a melhor e pior coisa que você criou em sua carreira ao

longo dessa caminhada?

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[Resposta de] Mano Brown: A pior coisa que eu criei foi esse estigma, que eu

nem sei se eu criei, mas sou responsável, que até o rap carrega certo estigma,

acho que foi a pior coisa que eu criei” (grifos nossos).

A nosso ver, falas como essa demonstram que o rapper reconhece os nuances de

sua posição enquanto agente prestigiado. Além disso, segundo a fala de Brown nesse momento,

“esse estigma” se estenderia ao movimento hip hop como um todo. Um segundo exemplo,

presente na entrevista à revista Rap Nacional, no ano de 2014 – posteriormente às duas

entrevistas que compõem nossos dados -, Mano Brown é questionado sobre o que pensa sobre

um possível abandono, tal como dito por alguns, de um “viés social” no rap. Ao longo de sua

resposta, cabe destacar o seguinte trecho:

E eu não acho que o rap tem que ser o único movimento social político, o

samba tem que ser, o funk tem que ser, o forró tem que ser, porque o povo é

o povo, a causa é de todos os brasileiros. Aí é que eu entro no assunto do

estigma, porque que o rap tem que falar de assunto a, b e c e os outros falam

de tudo? Que tira proveito de tudo e praticamente usufrui de tudo, e o rap não

usufrui quase nada. Usufrui da fama e do estigma. Não acho certo isso. Agora,

abandonar a ideia é uma coisa que eu também não apoio não. O rap é a música

da liberdade, você não pode empurrar na boca da juventude o que é que eles

tem que falar, senão eles vão pular o muro da escola e vão embora.

A resposta de Brown faz menção a um estigma do rap, segundo o qual esse gênero

musical estaria decididamente vinculado a um “viés social”, embora, na visão do rapper, essa

vinculação apenas restringiria o gênero musical e o próprio fazer musical dos rappers, além de

cercear a liberdade de mudanças dessa produção cultural.

Cabe destacar ainda uma fala de Brown, presente em seus primeiros versos na

música Negro Drama, quando diz “Crime, futebol, música... [...] eu também não consegui fugir

disso aí, eu sou mais um”. A nosso ver, nesse momento são sinalizados por Brown os estigmas

que, em sua visão, incidem sobre os homens negros de grupos sociais menos desprestigiados: a

eles, as trajetórias possíveis para a valorização social se dariam apenas em torno da

criminalidade, da posição de atleta no futebol ou na produção cultural por meio da música. Ao

colocar-se como mais um dentre esses homens que, ainda que tenham alcançado o sucesso, não

deixaram de escapar ao estigma, é possível perceber que Mano Brown emprega sua produção

cultural para refletir sobre sua própria condição. Assim, esse momento de sua fala pode exprimir

sua posição tanto no campo produção cultural da periferia como no campo jornalístico, marcada

pela ideias de representatividade e estigmatização.

A partir desses estigmas, podemos entender um pouco mais dos impactos

vinculados à ascensão – simbólica, social, econômica – de Mano Brown, como indivíduo pobre

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que, a partir de sua carreira musical, alcançou notoriedade em certos campos sociais. Tais

especificidades acerca dessa condição são constatadas por Goffman (1988: 37), como quando

afirma que

Cada vez que alguma pessoa que tem um estigma particular alcança

notoriedade, seja por infringir a lei, ganhar um prêmio ou ser o primeiro em

sua categoria, pode-se tornar o principal motivo de tagarelice de uma

comunidade local; esses acontecimentos podem até mesmo ser notícia nos

meios de comunicação da sociedade mais ampla. De qualquer forma, todos os

que compartilham o estigma da pessoa em questão tornam-se subitamente

acessíveis para os normais que estão imediatamente próximos e tornam-se

sujeitos a uma ligeira transferência de crédito ou descrédito. Dessa maneira,

sua situação leva-os facilmente a viver num mundo de heróis e vilões de sua

própria espécie, sendo a sua relação com esse mundo sublinhada por pessoas

próximas, normais ou não, que lhe trazem notícias do desempenho de

indivíduos de sua categoria.

O autor atenta para a dualidade da posição desses sujeitos, que podem ser vistos

como “heróis e vilões de sua própria espécie”, a depender, em maior ou menor grau, do modo

como consigam construir sua representação social. No caso de Mano Brown, é preciso

considerar que, à sua estigmatização como homem negro vindo de periferias urbanas,

acrescentam-se os estigmas daqueles que ascenderam socialmente e que, pela própria periferia,

podem ser vistos como figuras rechaçadas por não mais viver na pele e no cotidiano as sanções

da pobreza, ao mesmo tempo em que são vistos pelos “de fora” como pessoas ainda sim

desqualificadas, sobre as quais não deixam de recair toda sorte de preconceitos cultivados pelas

camadas médias e altas.

Desse modo, com base nessa relação entre a representatividade, enquanto

característica fundamentalmente positiva atribuída a Brown, e a estigmatização, quando se leva

em conta os atributos negativos enxergados pelos outros em função da condição do rapper,

devemos considerar os contatos “mistos” das entrevistas jornalísticas na complexidade de

relações que nelas se manifestam, em níveis micro e macro.

Como sinalizado por Goffman (1988), a participação desse indivíduo estigmatizado

nos contextos em que venha a ser o foco, como ocorre com a posição de um entrevistado, guarda

relações com as estratégias mobilizadas pelos sujeitos. Assim, consideramos que situações

como essa fazem com que Mano Brown “leve sua autoconsciência e controle sobre a impressão

que está causando a extremos e áreas de conduta que supõe que os demais não alcançam”

(GOFFMAN, 1988: 24). Assumimos que a “autoconsciência” apontada pelo autor como

consequência dos contatos mistos nos quais se encontram os indivíduos estigmatizados nos leva

à ideia do papel da reflexividade em contextos mistos como os de entrevista televisiva, por

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exemplo, nos quais Mano Brown se insere como o participante fundamental desse tipo de

interação ao tomar a posição de entrevistado.

Um ponto importante do presente trabalho consiste na ideia de que a

metadiscursividade teria, nas interações sob a configuração do gênero entrevista, uma

oportunidade singular para emergir em ações de textualização – e, quando tomamos o

apontamento feito por Goffman (1988) sobre o que ocorre em contatos mistos, o entendimento

desse ponto é facilitado. A ideia dessa “autoconsciência” e sua manifestação em termos da

metadiscursividade vista nas ações textuais de Mano Brown será por nós abordada adiante, mas

não sem antes apresentarmos alguns momentos da trajetória do rapper no campo da produção

cultural da periferia, mais especificamente, e o modo cuidadoso, e certamente bastante refletido,

com que Mano Brown maneja sua participação em entrevistas jornalísticas como as que serão

objeto de nossa análise.

3.2 O negro drama: trajetória de Mano Brown no campo da produção cultural da

periferia

Nascido em São Paulo no dia 22 de abril de 1970, Pedro Paulo Soares Pereira é filho

único de Ana Soares Pereira, que “deixou a Bahia com doze anos após brigar com o pai dela”

(programa Roda Viva, 2007). Mulher negra e empregada doméstica, Ana criou Mano Brown

sem a ajuda do marido branco, que a abandonou22 ainda durante o primeiro mês de gravidez

(KALILI, apud SILVA, 2012). Em diversas entrevistas, Mano Brown é questionado sobre sua

relação com o pai, e afirma a ausência de contato entre os dois:

(...) não na verdade eu não::-eu não: não tive um pai né?... teve um pai mas eu

não::-não conheci não conheço... também não quero conhecer... certo? não

faço questão... eh:::... poucas coisas eu não tenho muita coisa pra falar sobre

pai... não tenho. (Programa Roda Viva, 2007)

Silva (2012) chama atenção para a resposta dada por Brown à revista Teoria em

Debate acerca da ausência de seu pai:

22Algumas letras dos Racionais MC's fazem referências à Ana, mãe de Mano Brown, de modo específico. Como

é o caso da canção “Negro drama”, em cujos momentos finais o rapper canta “É o negro drama/ Eu não li, eu não

assisti/ Eu vivo o negro drama, eu sou o negro drama/ Eu sou o fruto do negro drama/ Aí dona Ana, sem palavras,

a senhora é uma rainha, rainha”. No início da mesma faixa, alguns momentos da letra fazem alusão à trajetória

vivida por Brown e sua mãe: “Uma negra/ e uma criança nos braços/ Solitária na floresta/ De concreto e aço […]

Família brasileira/ dois contra o mundo/ mãe solteira de/ um promissor vagabundo […] gravando a cena vai/ um

bastardo/ mais um filho pardo/ sem pai.” A canção foi lançada em 2002 e figura no álbum Nada como um dia após

outro dia - composta pelo próprio Brown em parceria com Edi Rock, e sua temática consiste numa reflexão crítica

do eu lírico acerca da repercussão do sucesso alcançado.

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Quando eu era criança, pensava nesse fato de eu não ter pai, de o meu pai ser

branco, e eu tinha ódio, o maior ódio. Mas com o tempo, o ódio começa a virar

dor. Você vê que não é só você que passa por isso. Eu nunca fui de ter dó de

mim mesmo, de me sentir coitado. Eu sou um cara guerreiro. O rap para mim

não é jogo, é guerra e nessa guerra eu tenho que conviver com as minhas dores

sabendo que tem mais gente que sofre no mundo e que pelo menos através do

rap pode se aliviar. O rap vai diretamente até os que mais sofrem. (Revista

Teoria em Debate, 2000, apud SILVA 2012: 100)

De acordo com Silva (2012), de fato a ausência paterna foi fator comum na trajetória

de diversos músicos, como Bob Marley23, e também de vários outros rappers como Thaíde,

MV Bill e Dexter24. O autor chama a atenção para as primeiras socializações de Brown, que ao

longo de certo tempo contou com a presença apenas da mãe, da família do primo Paulo Eduardo

Salvador (futuro parceiro dos Racionais MC's, Ice Blue) e de seu Isaac, pai-de-santo que “não

cobrava, por algumas vezes, o aluguel”. Sobre a forte ajuda dada por seu Isaac, Brown afirma

que "como não tinha o pai presente, seu Isac era o homem de barba que beijávamos no rosto”

(revista Rolling Stone Brasil, 2009). Outros membros da família só se tornaram conhecidos25

pelo rapper já depois de sua fama, quando de passagem pela cidade da mãe, na Bahia, no

intervalo de uma turnê:

Brown conta que durante um dos shows de lançamento do CD Sobrevivendo

no Inferno na cidade de Salvador, em 1999, resolveu visitar a cidade em que

mãe nasceu, Riachão do Jacuípe, perto de Feira de Santana, Bahia. ―Indo lá,

eu descobri que tinha muito parente meu em São Paulo que morreu. Durante

a minha infância, eles estavam em São Paulo e eu não sabia. (Revista Rolling

Stone Brasil, 2009)

Nas entrevistas concedidas por Mano Brown, há diversas referências também à

escolarização do rapper. Tendo estudado somente até a oitava série, Brown foi bolsista em uma

escola particular na cidade de São Paulo, através do pagamento feito por Dona Ana e por seu

patrão à época, que custeava metade dos gastos. Silva (2012) atenta para o fato de que Ana

algumas vezes compareceu à escola do filho, convidada à instituição para “conversar com as

23O músico jamaicano Bob Marley (1945-1981) também foi filho de mãe negra com pai branco. Mano Brown

atenta para a semelhança entre a cor de sua pele e a do músico. 24Segundo as informações apresentadas por Silva (2012), Thaíde (nome artístico de Altair Gonçalves), foi criado

somente pela mãe, no bairro Cidade Ademar. Rejeitado pelos pais biológicos, Dexter (nome artístico de Marcos

Fernandes de Omena), desde seus treze dias de vida, foi acolhido e criado por sua mãe, Dona Marina. Na família

de MV Bill (nome artístico de Alex Pereira Barbosa), o pai, dependente químico e trabalhador não qualificado em

diversas funções, deixou a família quando Bill ainda era criança. 25À revista Rolling Stone Brasil (2009), o rapper afirma: “Nunca tive família de sangue. Queria ver se alguém

parecia comigo, se o meu nariz era de lá. Mas eu descobri que não. A minha raiz tem muito a ver com meu pai.

Meus primos são diferentes de mim, são mais escuros. Não tem influência branca no meio deles - talvez muito

pouco, bem menos do que eu. E eles são humildes mesmo. Povo do Nordeste, do Norte, sofredor, guerreirão

mesmo”.

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professoras, que queriam saber porque o menino, sempre calado e pensativo, só usava roxo,

marrom e preto nos seus desenhos” (SILVA, 2012: 104). Após a passagem pelo Ensino

Fundamental, Brown passou a pagar a própria mensalidade para cursar o Ensino Médio, mas

afirma não ter se adaptado à escola, finalizando sua instrução regular na oitava série26.

Criado em bairros humildes da cidade de São Paulo, Brown aproxima-se em

meados dos anos oitenta dos encontros ocorridos na estação São Bento do metrô, no centro da

cidade, onde o movimento hip hop crescia e se consolidava com a participação de vários de

seus protagonistas atuais em rodas de break – Rappin Hood27, Dj HUM, Thaíde, os grafiteiros

Os Gêmeos e diversos músicos eram alguns dos frequentadores. Brown forma a dupla BB Boys

(Black Bad Boys) com seu primo Paulo Eduardo e, em 1988, ambos se unem a Edvaldo Pereira

Nunes (Edy Rock) e Kléber Geraldo Lélis Simões (DJ KL Jay) para formar o Racionais MC's28,

tendo como inspiração alguns grupos estadunidenses (Public Enemy e RMC) e sob a sugestão

do produtor Milton Salles que, segundo o próprio Brown, foi grande responsável por sua visão

de mundo, como um “segundo pai”. Acerca da formação dos Racionais MC's, Silva (2012) dá

destaque às seguintes palavras de Mano Brown em entrevista à revista Teoria em Debate:

Eu sempre gostei de música, mas nunca imaginei que fosse fazer música. Eu

estudava pra tentar ser algum barato, pra não fazer vergonha pra minha mãe.

Tudo o que ela fez sempre foi pra eu estudar. Aí, saí fora do barato, comecei

a ir pra São Bento escondido (estação de metrô em São Paulo onde os

dançarinos de break e fãs de rap da cidade se encontravam na década de 80).

Estava desempregado, derrubado, comecei a me envolver numas fitas, vinha

pouco em casa. Foi quando começou a ter muito pé-de-pato (grupos de

extermínio formados em sua maioria por policiais) na área também, e eu não

podia vir. Tive problema com eles, então comecei a ficar lá mesmo. Conheci

o Kléber (KL Jay, o DJ dos Racionais), falei 'ah, mano, é aqui que eu vou

ficar'. (Revista Teoria em Debate, 2000, apud SILVA 2012: 105)

De acordo com Silva (2012), a entrada de Mano Brown no movimento hip hop se

assemelha à postura de tantos outros jovens das periferias urbanas, haja vista que a essa

juventude de meninos negros e pobres não são abertas a essa idade opções de continuidade de

26Em entrevista ao Roda Viva, quando questionado sobre a oportunidade de continuar estudando, o rapper afirma:

“[...]tive [oportunidade] mas não gostei... tive assim... eu tava empregado resolvi pagar o:: primeiro:: o primeiro

ano colegial... colegial... –- colegial né? -- ... e não gostei da escola... não me adaptei não gostei das-do convívio...

[saí fora]”. 27Rappin Hood (nome artístico de Antônio Luiz Júnior), Dj HUM (nome artístico de Humberto Martins) e Thaíde

são grandes nomes e pioneiros do movimento hip hop no Brasil. Dj HUM atua ainda hoje como produtor musical.

Rappin Hood e Thaíde foram, em temporadas diferentes, apresentadores do programa “Manos e Minas” na TV

Cultura, cujo conteúdo é dedicado ao resgate da cultura brasileira e ao universo jovem da periferia (Cf.

GRANATO, 2011; MARIANO, 2014). 28De acordo com Silva (2012), o nome do grupo faz referência ao álbum duplo Tim Maia Racional lançado em

1975 por Tim Maia. O disco contém letras de exaltação à chamada Cultura Racional, da qual o cantor foi adepto

durante algum tempo, e tem inspiração na sonoridade do soul e do funk norte-americanos.

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estudos ou de ascensão por meio de um trabalho qualificado que lhes confira valorização social.

Nesse sentido é que se pode compreender a decisão desses jovens de se ligar de modo mais

estreito à produção cultural e de se dedicar à dimensão simbólica, bem como às oportunidades

que possam surgir dessas práticas e que possam garantir patamares de segurança contra o risco

da exclusão social. Ao reagirem à falta de formação escolar e de ganhos financeiros

inexpressivos que o cotidiano de um emprego desqualificado lhes daria, o movimento hip hop

passa a representar uma opção que lhes pode atribuir um papel de criação (e não apenas

reprodução) cultural, além de ser construtor de uma identidade cultural distinta.

É preciso compreender também que, ainda segundo Silva (2012), o pertencimento

ao movimento hip hop constitui-se como um espaço de agregação juvenil no qual esses jovens

constroem relações de pertencimento, de modo que os encontros com os amigos para essas

práticas se tornam um dos únicos espaços de sociabilidade externa à família e à exclusão sofrida

nas escolas29. O ambiente de efervescência cultural proporcionado pelo hip hop, além disso, faz

com que os adolescentes nesse momento possam lidar com uma miríade de referências,

símbolos e representações dos quais são protagonistas, conferindo-lhes disposições importantes

ligadas ao respeito mútuo30, à autoestima, ao orgulho.

As considerações de Silva (2012) desenvolvem alguns dos aspectos que assumimos

ao tratar o movimento hip hop como um elemento do campo da produção cultural da periferia.

A nosso ver, a oportunidade de socialização, de produção cultural, e mesmo de reversão dessa

produção cultural em ganhos monetários e profissionais, faz com que possamos pensar num

microcosmo relativamente autônomo da periferia e do hip hop, na busca por capital social,

cultural e econômico para seus agentes. Ainda que o presente trabalho não tenha como objetivo

uma caracterização desse campo social, consideramos que também a dinâmica social da

periferia e do hip hop pode ser analisada com base em seu grau de autonomia, suas regras

29A respeito daquilo que representa o espaço escolar a tantos jovens de setores pobres das classes sociais brasileiras,

ler o capítulo A instituição do fracasso – A educação da ralé, de SOUZA et al. (2009). Para os autores, o espaço

escolar seria reprodutor de uma má-fé institucional e acabaria por apenas conferir a jovens dos setores pobres das

classes sociais brasileiras (chamados provocativamente de “ralé”) o selo que comprova seu fracasso. Isso ocorre,

segundo os autores, porque esses jovens são inseridos no espaço escolar desprovidos das “pré-condições” mínimas

necessárias para o aprendizado (o habitus de sua classe social não foi capaz de assegurar disposições ligadas à

autodisciplina, à autoestima, à concentração, ao pensamento prospectivo e à valoração do capital cultural de um

ambiente escolar poderia proporcionar). 30Cabe lembrar aqui a forma de tratamento “mano” que, ao referir-se ao outro com base numa relação de

“irmandade” e de “confraria”, configura uma relação simétrica e horizontal que parece designar traços de

identificação subjetiva e respeito mútuo dentre os jovens da cultura hip hop (SOUZA, 2009, apud SILVA, 2012),

ainda que o termo se estenda hoje a diversos grupos de jovens, muito provavelmente com diferentes atribuições

de significado.

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invisíveis, as tomadas de posição e disputas que se dão entre seus agentes, sua relação com

outros campos e outros mecanismos que a organizam enquanto um campo no espaço social.

Em relação à carreira musical dos Racionais MC's, são muitos os comentários

encontrados acerca da projeção do grupo ligado aos shows nas periferias e às letras que retratam

o cotidiano marcado pela desigualdade e pela violência nesses espaços. Ainda no fim da década

de 80 e já nos anos 90, a música do grupo alcança as regiões mais pobres de todo o país, como

lembram as informações usadas no início do programa Roda Viva que se referem a Brown:

Líder do maior grupo de rap do Brasil, os Racionais MCs ele é um dos artistas

mais ouvidos nas regiões mais pobres do país... o grupo formado em São Paulo

em mil novecentos e oitenta e oito tem além de Mano Brown Ice Blue Edy

Rock e o DJ KL Jay... nesse ano eles/ participaram com duas faixas na

coletânea “Consciência\ Black” dois anos depois em mil novecentos e noventa

saiu o primeiro disco do grupo o “Holocausto Urbano” com denúncias de

racismo e da miséria na periferia de São Paulo em mil novecentos e noventa

e sete com o disco “Sobrevivendo no Inferno” os Racionais MCs venderam

mais de quinhentas mil cópias sem uma grande rede de distribuição por trás e

ganharam vários prêmios... o DVD “Mil Trutas Mil Tretas” foi lançado em

dois mil e sete com shows extras e um documentário sobre a história dos bailes

black na periferia de São Paulo. (Programa Roda Viva, 2007)

Após o sucesso do álbum Nada como um dia após o outro dia, lançado em 2002,

algumas coletâneas foram lançadas pelo grupo, cujos integrantes se dedicam desde então

também a diversos projetos musicais paralelos. Após doze anos sem o lançamento de um álbum

de inéditas, em novembro de 2014 os Racionais MC's iniciam a divulgação do álbum Cores e

Valores, sexto trabalho produzido em estúdio pelo grupo a partir de 1990, quando da estreia do

primeiro CD.

À revista Rap Nacional, em entrevista no ano de 2014, o rapper comenta reflete

sobre o impacto do rap em sua trajetória, quando questionado sobre “como seria Mano Brown

sem a música”, ao que afirma:

Não seria Mano Brown né?! Seria o Pedro Paulo. Não tinha o que comer, tinha

dificuldade pra arrumar um emprego, e de me relacionar com o patrão. Várias

dificuldades… Através do rap eu comecei a compreender algumas

dificuldades que eu tinha na vida, através do rap eu compreendi, sem o rap eu

não entenderia, seria um louco, um rebelde sem uma causa justa.

Interessa notar que Mano Brown, nesse momento, parece aludir as consequências

de sua entrada no movimento hip hop e nesse campo de produção cultural da periferia em

termos de valores e de disposições que desenvolveu para reconhecer e compreender sua própria

posição como agente, como indivíduo situado no momento histórico. Além disso, podemos

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considerar que sua fala faz uma associação entre o hip hop e algumas das disposições que

puderam ser desenvolvidas por ele nesse movimento do campo da produção cultural da

periferia: disposições ligadas a um modo de compreensão da realidade (e das “dificuldades”) e

disposições que permitiram um direcionamento dos componentes psico-afetivos (resultantes de

sua situação inicial de desprestígio e desigualdade) para uma “causa justa”, para que pudessem

sem revertidos em algo benéfico a si.

Em dezembro de 2005, Mano Brown foi um dos contemplados pelo I Prêmio

Cooperifa, dentre um total de 100 pessoas responsáveis por projetos literários, fotográficos,

teatrais, educacionais e musicais, cujos impactos foram reconhecidamente positivos para a

periferia. O prêmio dado a Brown merece destaque pois, segundo o trabalho de Nascimento

(2006: 141), naquele momento ocorreu a primeira cerimônia de reconhecimento aos que

“contribuíram para uma periferia melhor” organizada por iniciativa da própria periferia. A

premiação marca, com isso, a legitimidade e reconhecimento de Mano Brown junto às ações

culturais desenvolvidas na periferia da Zona Sul de São Paulo. Ainda que a premiação envolva

não apenas o impacto do trabalho musical de Mano Brown no grupo Racionais MC’s, algumas

falas demonstram o resguardo de Brown ao tratar de sua participação como apoiador de projetos

sociais presentes na periferia, como mostra o exemplo a seguir, retirado da entrevista concedida

à revista Rap Nacional (2014):

[Pergunta dos entrevistadores] Você que apóia alguns projetos sociais,

sabemos que nem gosta muito de falar sobre isso, conta um pouco sobre os

projetos aqui no Capão Redondo.

[Resposta de] Mano Brown: A maior revolução que foi feita aqui, e não foi

feita por uma ou duas pessoas só, porque a revolução ou ela é do povo ou ela

não é de ninguém, e o que eu sempre quis é que as pessoas assumissem as

responsabilidades delas. [...] O que me deixa mais feliz é ver os caras que tão

comigo, a família toda. Fundão é uma família, o Rosana Bronx é uma família,

Morro do Piolho… São famílias que criaram esse trabalho social que não é de

um cantor de RAP ou de um político, é de um coletivo. (grifos nossos)

Na passagem acima, é possível notar que Mano Brown se refere aos trabalhos

sociais presentes na periferia e, mais especificamente, na Vila Fundão, região do bairro do

Capão Redondo, como uma “revolução” feita por diversos grupos, e não apenas por “um cantor

de rap”. Nesse momento, é possível compreender a recusa de Brown a deixar com que seu

nome seja diretamente relacionado a algum projeto social, sob pena de que se apagasse o

trabalho coletivo envolvido nessas circunstâncias – assim, fica reiterada a ideia presente na

própria pergunta feita a Brown, de que o entrevistado “nem gosta muito de falar sobre isso”.

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Além da notoriedade da trajetória profissional de Brown ligada à música, algumas

outras práticas pessoais do rapper são discutidas nas entrevistas escritas, de modo geral, com

vistas a abordar os traços mais proeminentes da representação social de Mano Brown, como a

religião e o gosto do rapper pelo futebol, por exemplo. Segundo o próprio Brown, em sua

prática religiosa, já se dedicou ao candomblé ao longo de sua criação e crescimento e frequentou

também igrejas evangélicas na periferia. No entanto, à revista Rolling Stone Brasil o rapper

afirma ser hoje em dia “contra a religião”, criticando o fato de ter “virado empresa” a

promulgação da fé do modo como se dá em nossos tempos atuais – Brown afirma que “Deus

está nas pequenas coisas”.

Mano Brown é conhecido por ser um fervoroso torcedor do Santos Futebol Clube,

clube paulista no qual jogaram grandes ídolos da torcida brasileira a seu tempo, como Edson

Arantes do Nascimento, o Pelé, e Robson de Souza, o Robinho. Filiado à Torcida Jovem (nome

dado à torcida organizada do Santos), em 2007 Brown é preso acusado de envolvimento num

incidente entre torcedores do Santos e de um clube rival – foi solto após a investigação afirmar

que não havia provas de sua participação na briga. Frequentador de muitos jogos do Santos F.

C. e também de eventos promovidos pela direção do clube, em 2011 Mano Brown esteve

presente, por exemplo, na final do campeonato Libertadores da América, quando o Santos F.

C. venceu o time uruguaio Club Atlético Peñarol e conquistou o título como melhor equipe do

continente americano naquele ano. Alguns meses depois, o Santos F. C. chegaria à final do

Mundial Interclubes de futebol, enfrentando o time espanhol Futbol Club Barcelona.

É exatamente nesse período, entre a obtenção do título americano e a partida na

qual o Santos F. C. disputaria o título mundial de melhor clube, que Mano Brown concede a

entrevista ao programa Papo com Benja, uma das entrevistas selecionadas para compor o

corpus do presente trabalho31.

Em 2004, Brown foi detido por desacato à autoridade, após ter sido seguido por

policiais militares até sua casa, sob a acusação de porte de drogas; naquela ocasião, foi solto

após o pagamento de sessenta reais como fiança. Além da acusação de envolvimento no

incidente de 2007, em 2015, Mano Brown foi detido pela polícia militar de São Paulo, mais

uma vez sob a acusação de desacato à autoridade. Parado em uma blitz no bairro do Campo

Limpo, Brown afirmou ter sido agredido pelos policiais durante a abordagem; estes, por sua

vez, alegaram que o rapper teria tentado furar o bloqueio de trânsito organizado pela polícia. A

31Informações mais detalhadas sobre o programa Papo com Benja são apresentadas em seção posterior do presente

capítulo. Sobre o momento histórico no qual a entrevista ocorreu, consultar o capítulo 4 presente trabalho.

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repercussão do caso fez com que o Secretário de Direitos Humanos do município de São Paulo,

o ex-senador Eduardo Suplicy32, comparecesse à delegacia para apuração dos fatos. Ao ser

detido, a polícia militar divulgou informações de que a carteira de habilitação de Mano Brown

encontrava-se com prazo de validade expirado, assim como o documento que comprovava o

licenciamento do automóvel que Brown dirigia. O rapper, nessa ocasião, foi solto após assinar

um termo circunstanciado por “desobediência” e seu automóvel permaneceu apreendido.

Em entrevista à revista Rap Nacional, ainda em 2014 - anteriormente ao episódio

envolvendo a blitz – podemos ver como Mano Brown se posiciona sobre esse assunto:

[Pergunta:] E quando você é parado em uma blitz, em uma geral, eles te

reconhecem, tem um tratamento pior, ou falam não vamos pegar mais leve

porque ele é o porta voz?

[Resposta de] Mano Brown: Eu tenho que tomar cuidado. Eu tomo cuidado,

não posso dizer que é isso ou aquilo, porque eu encontro dentro da PM cara

que queria um autógrafo e cara que queria me matar na hora. Se pudesse me

mataria na hora. Uma vez eu fui enquadrado pela Rota e o cara falou assim

pra mim: “Eu não gosto de você, não gosto de sua música, mas o meu filho,

se eu não comprar o CD pra ele, eu não entro nem em casa”. [...] Há pouco

tempo eu fui abordado por dois policias negros, a gente conversou meia hora

sobre raça, polícia, racismo. Os caras me cumprimentaram e mandaram eu ir

embora, na madrugada. (grifos nossos)

Os conflitos envolvendo Mano Brown e a polícia podem ser melhor compreendidos

ao tratarmos do trabalho musical dos Racionais MC’s no que diz respeito (i) às letras que

descrevem ações violentas e abusivas dos policiais com os homens negros e com a população

da periferia de modo geral, (ii) e no que se refere ao contato dos membros dos Racionais MC’s

com detentos e ex detentos, tanto nos trabalhos musicais do grupo como em suas relações

pessoais. De acordo com Zeni (2004: 233),

A relação do rap com o universo prisional é de intimidade e reciprocidade.

Por ser uma música surgida entre a população pobre, o rap tem, na grande

massa carcerária brasileira, composta majoritariamente de negros e pobres,

um público fiel e rapper em potencial. O movimento é de mão dupla: o rap

tematiza o mundo da cadeia, ponto final daqueles que se envolvem com o

crime e com a violência – ameaça vivida de forma próxima e intensa por

grande parte dos moradores da periferia –, e as prisões produzem rap.

Zeni (2004) destaca ainda a composição da canção Diário de detento, feita em

parceria33 pelos Racionais MC’s e por Jocenir Prado, detento no presídio do Carandiru, em São

32Eduardo Suplicy é conhecedor do trabalho dos Racionais MC’s, já esteve presente em shows do grupo e fez a

leitura de algumas de suas letras em plenário e comissões do congresso nacional. 33Segundo Zeni (2004: 234), Diario de um detento (presente no álbum Sobrevivendo no inferno, de 1997)

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Paulo, à época de seu encontro com os membros do grupo. Os eventos envolvendo a presença

dos membros do grupo Racionais MC’s em alguns presídios, a parceria musical do grupo, por

exemplo, na canção Diário de um detento e, por fim, o “movimento de mão dupla” entre o rap

e os indivíduos encarcerados são fatores que estão na base (Cf. ZENI, 2004) de uma associação

estigmatizada sobre o grupo: a ideia de que os Racionais MC’s e a figura de Mano Brown são

responsáveis por apologia ao crime.

Os fatos envolvendo Mano Brown e a polícia consistem em momentos bastante

polêmicos de sua carreira, somando-se à repercussão negativa após incidentes ocorridos em

dois shows dos Racionais MC's: em um show em 1994, ocorreram conflitos entre os presentes;

e, em 2007, em show do grupo na Praça da Sé, na Virada Cultural de São Paulo, policiais

militares e o público entraram em confronto após 30 minutos do início do show dos Racionais

MC’s. A repercussão dos conflitos envolvendo a polícia e os presentes no show da Virada

Cultural estendeu-se pela grande mídia televisiva, digital e impressa, com questões sobre a

origem das incitações à violência que teriam causado o conflito – dentre os possíveis

responsabilizados pela origem do conflito, questionavam a participação dos policiais, do

público presente, daqueles que estavam no local (embora sem participar como público do

show), bem como da participação do próprio Mano Brown nas “provocações” que teriam

iniciado o incidente.

É exatamente no ano de 2007, cerca de 4 meses após os conflitos ocorridos durante

o show da Virada Cultural na madrugada na Praça da Sé, que Mano Brown concede ao

programa Roda Viva, da TV Cultura, a entrevista selecionada para compor os dados do presente

trabalho34.

A periferia, quase sempre abordada nas entrevistas com Mano Brown pesquisadas

para compor nosso corpus, consiste numa marca forte de sua trajetória musical e pessoal. De

acordo com Silva (2012: 103), “em 1994, depois de conseguir juntar R$ 7 mil ―embaixo do

colchão, quantia ganha com o rap, Brown financia um apartamento de um conjunto habitacional

(COHAB) e deixa, junto com a sua mãe, o aluguel.” Embora o rapper mantenha muito

“descreve os acontecimentos daquele que foi a maior chacina da história das prisões brasileiras. A letra foi

composta numa parceria entre Mano Brown e o ex-detento Jocenir, que, à época de lançamento do disco, ainda

estava preso na Casa de Detenção de São Paulo, o presídio do Carandiru, desativado em 2002. O líder dos

Racionais costumava visitar o presídio com freqüência e, durante uma de suas visitas, soube da existência de um

detento que escrevia poemas e letras de música. Brown pediu para conhecer o preso e, depois de dar uma olhada

nos seus cadernos de anotação, saiu da Detenção com algumas páginas escritas por Jocenir. A partir dessas

anotações, Brown compôs a letra do rap”. 34 Informações mais detalhadas sobre o programa Roda Viva constam em seção posterior deste capítulo. Sobre o

momento histórico no qual ocorreu a entrevista, consultar o capítulo 4 dp presente trabalho.

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resguardada sua vida pessoal, recusando-se a comentar sobre sua família35, algumas reportagens

produzidas sobre Brown informam que o rapper vive hoje em dia no Campo Limpo36, bairro

vizinho ao Capão Redondo situado na Zona Sul de São Paulo, junto à sua esposa Eliane37 e seus

dois filhos, Kaire Jorge38 e Domênica.

Ainda que não mais resida com sua família na região da periferia, Mano Brown

reafirma a lealdade ao público nela presente, responsável, segundo ele, por fazer com que sua

música seja ouvida e pelas mudanças em sua vida. A própria “lealdade à periferia” pergunta

frequentemente destinada a Brown em algumas entrevistas, assim como a responsabilidade que

os Racionais MC's teriam, segundo afirmam alguns entrevistadores, em promover ações que

gerem benefícios à população. Diante dessa postura dos críticos ao grupo e ao próprio rapper

vinda de fora, a reação de Brown expõe o caráter punitivo que a ele parece estar por trás da

cobrança feita ao grupo e a tantos que se atrevem a mostrar a realidade e os problemas vividos

por milhares de pessoas nas periferias urbanas dos grandes centros.

Ao tratarmos de sua trajetória no movimento hip hop do campo da produção cultural

da periferia, cabe ressaltarmos brevemente algumas passagens de suas letras em músicas

gravadas pelos Racionais MC’s. A nosso ver, sua produção cultural não deixa de marcar suas

disposições reflexivas, na medida em que, por meio de algumas letras, Mano Brown também

problematiza sua própria condição e trajetória. Suas letras podem consistir num conjunto de

dados importantes que, embora extrapolem o escopo dos dados deste trabalho, ajudam a

compreender a visão do rapper acerca de diversos tópicos discursivos sobre os quais os

entrevistadores o questionam nos programas que analisaremos. Além disso, a nosso ver, alguns

versos cantados por Brown indicam sua visão acerca dos conflitos atinentes a sua

representatividade e a sua estigmatização enquanto agente prestigiado do movimento hip hop e

do campo da produção cultural da periferia.

35Ao entrevistador Paulo Lima, presente no programa Roda Viva em 2007, Brown afirma: “quanto à família que

cê perguntou da família... uma coisa que eu não gosto é de falar sobre a minha família justamente pra que dure

mais”. 36O bairro do Campo Limpo é conhecido por sua ocupação heterogênea, dividida entre casas populares de

programas habitacionais, moradores de baixa renda que vivem em favelas e grandes empreendimentos residenciais

para as classes média e média alta, conforme informações coletadas nos dados da Fundação Seade (Sistema de

análise de dados do Estado de São Paulo). 37Segundo uma matéria publicada pelo portal de notícias UOL, “Tanto Brown quanto Eliane não conheceram os

pais --foram criados pelas mães. Ela trabalhou como empregada doméstica, e ele, como office boy antes de os

Racionais estourarem. Só anos depois do nascimento dos filhos é que Eliane voltou a estudar. Hoje, ela é advogada,

além de mãe exigente” (ENGLER, 2014). 38Como afirma Silva (2012), o pré-nome dado ao filho, indica a escolha por um primeiro nome de origem africana,

como Kaire, e um nome entendido como alusão a uma das grandes influências musicais que sabidamente norteiam

Brown, o cantor e compositor Jorge Ben Jor.

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Se pudermos tratar algumas passagens de canções dos Racionais MC’s em termos

das noções da teoria da prática, interessa notar, por exemplo, o seguinte verso cantado por Mano

Brown ao fim da canção Negro Drama: “Aê, você sai do gueto mas o gueto nunca sai de você,

morou irmão? Você tá dirigindo um carro o mundo todo tá de olho em você, morou?”. Os

conteúdos dessa passagem parecem fazer alusão não apenas ao estigma, mas também a

estruturas objetivas que, embora sejam mutáveis, são também duradouras, incorporadas à

trajetória e aos modos de ação dos atores sociais (mesmo que esses se inscrevam em outros

espaços) impedindo uma desvinculação total dos indivíduos com seus espaços sociais de origem

e de aquisição de um habitus primário (BOURDIEU, 1996 [1994]).

Ainda que brevemente, podemos tomar um segundo exemplo de como a produção

musical das letras de Mano Brown pode consistir em dado relevante para que compreendamos

sua própria trajetória, representatividade e estigmatização: as expressões utilizadas pelo rapper

para designar a si mesmo em suas letras. Numa passagem da música Negro Drama, sobre a qual

comentamos anteriormente, encontra-se o seguinte trecho: “Eu sou o mano/ Homem duro do

gueto, Brown/ Obá/ Aquele louco que não pode errar/ Aquele louco que você odeia/ Amar nesse

instante”. Nesse caso, destacam-se as expressões referenciais “aquele louco que não pode

errar”, na qual parecem ser mobilizadas características ligadas à estigmatização do rapper, e a

expressão “aquele louco que você odeia amar nesse instante”, na qual se observa uma

categorização da dualidade da visão sobre o rapper.

Sobre as categorizações utilizadas por Brown para definir a si mesmo, podemos

tomar como exemplo também sua resposta concedida à revista Rap Nacional: quando

questionado sobre “como se define”, sua resposta, nesse momento, deu-se apenas pela escolha

da seguinte categorização: “lutador”. A nosso ver, a designação própria de Mano Brown, nesse

momento, consiste numa categorização bastante reflexiva: isso porque o referente “lutador” não

dá como aceitas as características de sua representatividade, mas o inscreve como aquele que

está em meio (talvez permanentemente) a um processo, cujos resultados não podem ainda ser

classificados positiva ou negativamente.

Em oposição a essas designações feita por si, a atribuição de “voz da periferia” dada

a Mano Brown e aos Racionais MC's, apesar de ainda frequentemente negada pelos próprios

integrantes (em função dos encargos com os quais têm de lidar a partir da cobrança resultante

dessa rotulação) sustenta-se em inúmeras letras de rap produzidas e gravadas em seus álbuns.

Os temas abordados se referem ao cotidiano injusto e verdadeiramente desigual e violento com

o qual os moradores da periferia se deparam, à exposição de um verdadeiro “holocausto urbano”

no qual muitos estão “programados pra morrer”, pois não conseguiram escapar da condição de

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“negro limitado” - expressão que se refere àqueles que rechaçam a consolidação de uma

“consciência” e “atitude” para os moradores da periferia a partir, por exemplo, das ações dos

rappers. Ao negro limitado, segundo as letras dos Racionais MC`s, restaria uma vida voltada

ao consumo de drogas, ao trabalho precarizado, às relações com mulheres e à tentativa de

delimitação de um status pessoal marcado pelo consumo de itens associados às classes médias

e altas.

São descritas também as trajetórias errantes dos que não resistiram à influência da

criminalidade, que se apresentava como oportunidade de status e de ganho monetário mais fácil,

sucumbindo ao crime no dilema de escolher entre “viver pouco como um rei” ou “morrer como

um Zé”. Diversas cenas de desigualdade são expostas e narradas nas letras e formam um “raio

X do Brasil”, como o passeio em um fim de semana no parque quando moradores da periferia

se dão conta de sua posição de desprestígio social ao observar as ações dos frequentadores de

um clube voltado para as classes abastadas. Diante da impossibilidade de reverter as diferenças

existentes “da ponte pra cá”, são cantados também os sentimentos de “sobreviventes do

inferno”, cujo cotidiano árduo do trabalho e do que ele representa em termos da possibilidade

de uma vida honesta e digna demonstra que também “no lixão nasce flor”39.

3.3 A inscrição de Mano Brown no campo jornalístico

Num esforço para produzir análises baseadas numa arbitragem entre estudos

textuais-interativos - que tomam a ideia do texto enquanto fenômeno e enquanto evento

comunicativo (KOCH, 2004; BEAUGRANDE, 1997) - e estudos sociolinguísticos, Bentes,

Ferreira-Silva e Mariano (2013) demonstraram como certos recursos textuais-discursivos

(como o uso de marcadores discursivos, a gestão do tópico discursivo, a negociação de

referentes e o emprego de estratégias de atenuação e de impolidez) podem consistir em

estratégias mobilizadas pelos atores sociais para dar conta de situações comunicativas ou sociais

nas quais precisam, a um só tempo, atender a restrições do contexto interacional em que estão

presentes e regular implicações mais gerais de suas ações de linguagem para suas

representações e relações sociais.

Ao retomarmos brevemente as considerações de Bentes, Ferreira-Silva e Mariano

(2013), atentamos para a caracterização anterior a respeito do rapper Mano Brown feita em

39O álbum Holocausto Urbano foi lançado em 1990; a música Negro limitado está no álbum Escolha seu caminho

(1992); a faixa Fim de semana no parque pertence ao CD Raio X do Brasil; o álbum Sobrevivendo no inferno foi

lançado em 1997. Algumas outras expressões usadas nesse trecho foram retiradas das canções Vida Loka I, Negro

drama, Da ponte pra cá e Vida Loka II, pertencentes ao álbum duplo Nada como um dia após o outro dia (2002).

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momentos nos quais é apresentado (aos participantes, à audiência) no início das entrevistas

jornalísticas de que participa como convidado. Saliente-se, por exemplo, a apresentação feita

pelo programa Roda Viva, com o qual as autoras trabalharam. Segundo Bentes, Ferreira-Silva

e Mariano (2013: 18-19), tal caracterização considerava Mano Brown como aquele que:

(i) analisa a realidade e percebe que os maiores conflitos são de ordem social

e racial; (ii) faz da sua música um protesto e uma denúncia contra esses

conflitos (raciais e sociais) e, por isso, é considerado a voz da periferia; (iii)

tem um caráter 'durão' como o da mãe; (iv) é polêmico (pegaria em armas para

fazer uma revolução) e (v) raramente vai à mídia.

Outras caracterizações de Mano Brown presentes nos momentos iniciais de

entrevistas por ele concedidas a algumas revistas, podem ser encontrada nos primeiros trechos

da matéria publicada na revista Rolling Stone Brasil, produzida por André Caramante. Nele, o

jornalista se refere a seu percurso pelo trânsito da cidade de São Paulo para encontrar Mano

Brown, momentos antes de chegar ao lugar agendado para a entrevista, como podemos ver

abaixo:

O roteiro chega pelo celular. É noite abafada, começo de novembro, quando

deixo a porta da Escola de Samba Pérola Negra, na Vila Madalena, em São

Paulo, reduto contemporâneo da boemia paulistana, rumo a um bairro vizinho.

Da outra ponta da linha chega mais uma senha: 'É pique rua de periferia, tem

casinhas humildes'. Nos quase dez minutos para percorrer as ruas da área oeste

de São Paulo, um flashback: a conversa cara a cara prestes a começar, na

verdade, era o desfecho de um debate iniciado três anos antes. (Revista Rolling

Stone Brasil, edição 39, 2009)

O jornalista Renato Rovai, editor da Revista Fórum, expõe uma caracterização

ainda semelhante a essas acima, no trecho de abertura de uma entrevista com o rapper Mano

Brown publicada em 2011. Vejamos o exemplo a seguir:

Ele tem pelo menos 12 anos de rap. E 31 de periferia. Pedro Paulo Soares

Pereira é um sobrevivente do inferno. Preto, pobre e mesmo sem ser craque

de bola ou pagodeiro, Mano Brown ficou notório – como ele mesmo diz. A

força das suas palavras e de seu protesto dão o tom do trabalho do Racionais

MC´s, grupo que não aparece no Gugu, Xuxa, Faustão e que tais e mesmo

assim vende centenas de milhares de CDs. Aliás, mais de 1 milhão deles.

Brown é hoje um dos poucos berros ouvidos na periferia brasileira. Durão no

jeito e no portar-se, não faz discurso bonitinho. E não se acha o bambambam

por ter espaço para expor seus pensamentos. Ao contrário, com clareza, diz

que a imprensa fala dos Racionais por achar o grupo excêntrico: um bando de

pobres e pretos que falam umas coisas diferentes. Sem dó rasga o verbo, dá

porrada e chuta na canela quando é necessário.

Nesta entrevista exclusiva para a Fórum, Brown revela sua profissão de fé

evangélica e ao mesmo tempo diz que pegaria em armas para fazer a

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revolução. De resto, em meio a um ou outro palavrão traduz a agonia da

maioria. Boa nitroglicerina pura, caro leitor. (Revista Fórum, 15/10/2011)

Silva (2012: 94) lembra ainda o comentário presente na revista Caros Amigos sobre

a adesão do rapper a esses contextos:

No segundo especial que a revista Caros Amigos (2005) fez sobre o hip-hop,

na seção ―As grandes figuras, aparece o comentário: ―Mano Brown é hors-

concurs, mas não é por isso que ele não aparece neste grupo de luminares do

hip-hop. É porque ele não quer mesmo aparecer.

Os exemplos retirados de entrevistas com o rapper publicadas em revistas escritas

e presentes no programa Roda Viva nos permitem constatar que, embora haja um espaço da

mídia interessado em produções nas quais Mano Brown seja um convidado, a opção do rapper

se dá, diversas vezes, pela recusa de sua participação em contextos midiáticos ligados à grande

mídia do campo jornalístico. Mais do que o julgamento feito por Mano Brown em relação aos

diferentes veículos de mídia atuantes no país, interessa-nos observar, a partir desses exemplos,

a regulação cuidadosa, estratégica, que parece marcar seu relacionamento com o campo

jornalístico.

Sabemos que, mesmo levando em conta a disposição do campo jornalístico em abrir

espaço aos rappers e protagonistas de movimentos sociais, ou a outros ícones ligados à

periferia, não se pode considerar que a participação desses sujeitos em contextos midiáticos se

dê de modo harmonioso ou vantajoso a ambas as partes. Pelo contrário, é preciso que eles

saibam lidar com situações comunicativas bastante complexas, nas quais operam várias regras

invisíveis e mecanismos estratégicos, como vimos anteriormente.

Bentes, Ferreira-Silva e Mariano (2013) sinalizam que as entrevistas com o rapper

Mano Brown podem ilustrar um movimento da periferia para o centro, no qual são postas à

mesa, simultaneamente, a negociação de diferentes perspectivas e a necessidade de fixação de

interesses dos participantes e dos grupos por eles representados. De acordo com as autoras, a

participação de Mano Brown enquanto entrevistado faz com que o rapper tenha de lidar com

uma mediação que se faz necessária entre um tipo de participação que atenda às normas sociais

pressupostas por esse tipo de entrevista e uma forma de reforçar sua identidade – assim, alguns

recursos textuais e discursivos, bem como estratégias atenuadoras, como afirmam as autoras,

estariam a serviço dessa mediação. Nesse sentido, a visão das autoras (2013) corrobora nossa

ideia, segundo a qual essas entrevistas representam um momento de contato entre o campo

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jornalístico e o movimento hip hop do campo da produção cultural da periferia, já que têm como

entrevistado um agente representativo (e estigmatizado) como Mano Brown.

Dentre os fatores que parecem contribuir para que Mano Brown de fato tenha um

comportamento cuidadoso em relação a sua participação no campo jornalístico, está a sua

percepção tanto do papel de alguns veículos de comunicação ligados à grande mídia, como do

papel dos Racionais MC's enquanto grupo de rap ligado à periferia. Como afirma Kehl (1999:

96),

(...) os integrantes dos Racionais apostam e concedem muito pouco à mídia.

'Não somos um produto, somos artistas', diz KL Jay em entrevista ao Jornal

da Tarde (5/8/98), explicando por que se recusam a aparecer na Globo (uma

emissora que apoiou a ditadura militar 'e que faz com que o povo fique cada

vez mais burro') e no SBT ('Como posso ir ao Gugu se o programa dele só

mostra garotas peladas rebolando ou então explorando o bizarro'?). Até

mesmo o rótulo de artista é questionado, numa recusa a qualquer tipo de

'domesticação'. 'Eu não sou artista. Artista faz arte, eu faço arma. Sou

terrorista'. (Mano Brown)

Assim, a negativa de Mano Brown e dos Racionais MC's de participação em

contextos midiáticos ligados à grande mídia pode ser vista, segundo Kehl (1999), como uma

recusa da ascensão própria para o grupo através dos ditames de uma lógica de mercado da qual

grande meios de comunicação fazem parte e sob a qual se constrói esse “sistema” excludente

criticado em suas canções. Como afirma Kehl (1999), esse tipo de atitude alude a uma escolha

de não reprodução, por parte dos Racionais MC's e de vários outros rappers e hip hoppers, de

processos segundo os quais

(...) dois ou três indivíduos excepcionais são tolerados por seu talento e podem

mesmo se destacar de sua origem miserável, ser investidos narcisicamente

pelo star system e se oferecer como objetos de adoração, de identificação e de

consolo para a grande massa de fãs, que sonham individualmente com a sorte

de um dia também virarem exceção. (KEHL, 1999: 96)

Em entrevista concedida em 2002 ao programa YO! MTV, Brown atenta para os

motivos que, segundo ele, levam à grande procura em geral pelo rap:

(...) eu acho que o Brasil (es)tá de olho no rap... todas as tendência de música

já foi utilizado... foi::... capitalizado em forma de dinhe(i)ro... foi explorado...

foi mostrado e hoje num tem mais eles têm o rap... (es)tá ligado? o rap/ eles

ve/ eles veem o rap como um zoológico... (es)tá ligado? só gente estranha só

gente – engraçado – a gente (es)tá no Brasil desde que o Brasil é Brasil nós

(es)tamo(s) no Brasil... só que a gente é estranho pra eles até hoje... os preto

são estranho no Brasil hoje eles num/ entendeu? eles num conhece eles têm/

eles (es)tão ansioso pra vê(r) o que que os preto pensa... o que que os preto

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qué(r):: qual'é o preto mais perigoso qual'é o mais (…). (Programa YO! MTV,

2002)

As palavras de Brown indicam que a procura e a curiosidade produzidas em torno

do rap e do campo social da periferia e do hip hop podem revelar os conflitos de cor e classe

presentes no Brasil, tendo em vista os movimentos culturais pertencentes ao seio das periferias

urbanas paulistas e ligados, sobretudo, à população negra. A contundência e a dureza que,

segundo muitos, frequentemente estão presentes em suas falas e com as quais exporia esses

conflitos são salientadas por Kehl (1999), ao tratar de algumas letras produzidas pelo grupo

Racionais MCs. Para a autora, não deixa de existir um certo viés autoritário nas letras cantados

por Brown e pelos Racionais MC's, além de uma marca moral (não confundida com

moralismo), posto que alguns versos exprimem “a certeza de que uma causa coletiva está em

jogo”:

Trata-se de estancar o derramamento de sangue de várias gerações de negros,

de barrar a discriminação sem recusar a marca originária. Nada de abaixar a

cabeça, fazer o “preto de alma branca” que a elite sempre apreciou. Trata-se

de produzir “melhoria” na vida da periferia. Mas para isto – aí vem a segunda

razão – é necessário “transmitir a realidade em si”. Isto porque a maior ameaça

não vem necessariamente da violência policial, nem da indiferença dos

“boys”. Vem da mistificação produzida pelos apelos da publicidade, pela

confusão entre consumidor e cidadão que se estabeleceu no Brasil neoliberal,

que fazem com que o jovem da periferia esqueça sua própria cultura,

desvalorize seus iguais e sua origem, fascinado pelos signos de poder

ostentados pelo burguês”. (KEHL, 1999: 99)

Outro modo de referência à representatividade de Mano Brown como ator social

ligado aos problemas da periferia está presente no tratamento dado pelo entrevistador Paulo

Markun, do programa Roda Viva, quando emprega o termo “espelho”:

(...) numa/ da::s- das poucas entrevistas que você concedeu e que: a gente

acompanhou\ aqui pela pesquisa que foi feita para/ o Roda Viva você se define

como uma espécie de esPElho um espelho que retrata a realidade nesses eh

quase vinte anos em que você tá na estrada como:: artista como compositor

eh-o espelho Mano Brown eh:: registra alguma coisa de melhor ou a: realidade

piorou de lá pra cá?

No trecho acima, o apresentador e mediador do programa, Paulo Markun, resgata o

referente “espelho” para se referir a Brown, lembrando que o mesmo termo já teria sido

empregado até mesmo pelo rapper para designar a si mesmo. Nesse caso, observamos que a

representatividade de Mano Brown no movimento hip hop do campo cultural da periferia incide

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sobre a categorização40 que é feita, indicando-nos mais uma vez uma atribuição daquele que

fala sobre a realidade que vivencia como alguém que aos nossos olhos representa e patenteia o

real. Além disso, mais uma vez, deparamo-nos com expressões que caracterizam o rapper

sugerindo suas disposições reflexivas, posto que um homem que logra êxito em empregar sua

produção cultural para dar forma à realidade, “retratando-a”, não se encontra apenas situado em

um meio de fruição de um habitus específico, mas sim como alguém capaz de identificar e

problematizar sua condição.

Os exemplos vistos até o momento nesta seção podem ser tomados para tratar da

caracterização de Mano Brown tal como feita pela mídia. No entanto, poucos foram os

exemplos encontrados que correspondessem a avaliações do rapper sobre a mídia e seu papel.

Com vistas a uma maior ponderação a inscrição do rapper no campo jornalístico, cabe

consideramos também o seguinte trecho da entrevista concedida por Brown à revista Rap

Nacional (2014):

[Pergunta] Você já recusou a participação em eventos, programas de TV e

reportagens em algumas emissoras. Porque você concordou em dar está

entrevista pra nós da revista Rap Nacional?

[Resposta de] Mano Brown: Por motivos óbvios. Mas eu podia também ter

falado “não” se o posicionamento de vocês na caminhada não fosse certo. É

lógico que eu ia olhar com mais carinho, mas se eu não achasse o

posicionamento da revista bom eu não faria. Eu considero a revista Rap

Nacional uma mídia competente, se não for competente pode fazer estrago,

até porque vocês estão lidando direto com a minha rapaziada. A nossa né?!

Na minha visão estamos na mesma caminhada, na mesma luta e por isso eu

aceitei. Agora, se vocês tivessem outra direção, eu não aceitaria. Vocês tem

qualidade, por isso que eu aceitei e por acreditar que vocês podem chegar

ainda mais alto. (grifos nossos)

Apesar de termos recorrido a diversos exemplos para indicar a visão de alguns

agentes e instituições do campo jornalístico sobre a inserção de Mano Brown nesse espaços

social, o excerto acima nos parece exemplo privilegiado para tratar do outro lado dessa relação,

ou seja, da visão do próprio Mano Brown acerca de sua inscrição no campo jornalístico. Isso

porque, sua fala nesse momento nos permite levantar pontos importantes como os seguintes:

40 Os referentes utilizados para designar Mano Brown são analisados, no presente trabalho, a partir de uma

perspectiva textual-interativa, embora sugiram a relação entre o fenômeno da referenciação, tal como o estamos

tratando, e a categorização social ou rotulação de indivíduos estigmatizados, fenômeno abordado por sociólogos

como Becker (2008, [1963]) e Goffman (1988 [1963]). Para Becker (2009 [1963]), um comportamento de desvio

de indivíduos outsiders muitas vezes é precedido da aplicação de rotulações e categorizações de um grupo, como

forma de sanção a esse indivíduo. Assim, a categorização e a rotulação social (que incidem também sobre a

linguagem) agem coercitivamente sobre o indivíduo, de modo a moldar suas ações e motivações para um

comportamento de desvio.

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i. primeiramente, quando adverte que “podia ter falado ‘não’”, Mano Brown

comprova que sua participação no campo jornalístico é vista em termos de uma

“possibilidade” e adverte que tal possibilidade se concretiza a depender “do

posicionamento” da revista – é preciso considerar que seu julgamento sobre a

revista se estende as outras instituições do campo jornalístico.

ii. além disso, quando frisa que “não faria” caso não achasse bom o posicionamento

da revista, o rapper indica que é preciso que haja sintonia entre si e a posição

das instituições midiáticas num espectro de atuação no campo jornalístico. Essa

convergência condicionante é melhor explicada quando Mano Brown afirma que

analisará o posicionamento dessa instituição do campo jornalístico em termos de

sua competência e dos “estragos” que podem ser gerados. Consideramos que,

nesse momento, Brown comprova uma questão importante às análises do

presente trabalho: a ideia de que sua participação no campo jornalístico pode

(re)configurar sua posição neste e em outros campos, em termos positivos

(reiterando sua representatividade) ou negativos ((re)produzindo sua

estigmatização).

iii. por fim, o trecho nos permite concluir que a convergência responsável pela

decisão de Mano Brown em conceder a entrevista à revista Rap Nacional,

especificamente, relaciona-se a uma semelhança (“mesma caminhada”, “mesma

luta”) ou simetria entre as trajetória e/ou as posições ocupadas por esses agentes

e os campos sociais nos quais se inserem.

Outras questões importantes para compreender de modo mais completo a inscrição

de Mano Brown no campo jornalístico podem ser suscitadas a partir da seguinte fala do rapper,

também por ocasião da entrevista concedida à revista Rap Nacional:

[Pergunta] Como está o seu envolvimento com a mídia?

[Resposta de] Mano Brown: Sempre teve assédio. Até nos momentos em que

a gente estava silencioso causava curiosidade em algumas pessoas da mídia.

Apesar de eu estar mais experiente, eu continuou não acreditando na mídia,

porque eu sei que eu posso virar um produto, uma coisa enlatada, uma moda.

Se eu não me posicionar certo, também viro moda, posso virar uma coisa

descartável pela mídia. Por mais que a gente viva um momento de desconstruir

mitos, o Brasil vive querendo construir celebridades, querendo construir

mitos. É talvez uma forma de jogar areia no olho do povo, toda hora lança

uma celebridade nova. Eu estou na condição real, eu estou na condição de

trabalhador da causa, não embaixador. (grifos nossos)

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A partir do trecho acima, podemos destacar alguns dos pontos que parecem nortear

o contato de Mano Brown com o campo jornalístico, quais sejam:

i. sua não compactuação com aquilo que a mídia representa, tendo em vista,

segundo ele, os mecanismos dos quais dispõe para moldar (“enlatar”) a

representação social de sujeitos como Brown;

ii. a ideia de que sua inserção no campo jornalístico requer um “posicionamento”,

isto é, uma participação refletida, estratégica, sob pena de restringir-se aos

ditames e interesses específicos e temporários desse campo;

iii. sua recusa em tornar-se uma celebridade desvinculada de uma trajetória real e

concreta ligada ao lado de certos grupos sociais;

iv. a negação de uma visão do campo jornalístico sobre si, pautada na ideia de que

seria “um embaixador da causa” e não um dentre aqueles que trabalham pela

causa.

As questões evocadas pela resposta de Brown à revista Rap Nacional demonstram

que sua relação com o campo jornalístico não deixa de levar em conta o modo como os

contextos desse campo mobilizam informações sobre sua representatividade no movimento hip

hop e no campo da produção cultural da periferia. Além disso, sua resposta à revista Rap

Nacional indica que sua participação nos contextos do campo jornalístico é marcada pela

mobilização de aspectos ligados a sua estigmatização, na medida em que seria atribuído ao

rapper um papel de “embaixador da causa” ao qual são feitas cobranças específicas.

É preciso considerar que avaliações expressas por Mano Brown sobre a mídia, uma

vez que consistem em pontos que marcam sua relação com o campo jornalístico, podem ser

entendidas como juízos que marcarão suas tomadas de posição nesse campo, por exemplo, em

entrevistas jornalísticas como as que compõem o corpus do presente trabalho. Nesse sentido,

cabe às análises do presente trabalho a observação da metadiscursividade enquanto as ações de

textualização que compõem as tomadas de posição do rapper em dois contextos do campo

jornalístico.

Os dois últimos exemplos acima, portanto, trazem a ideia de que Mano Brown

reconhece suas ações no campo jornalístico como um manejo de forças – desse modo, reforçam

nossa ideia de tomar essas dimensões segundo a visão bourdiana dos campos sociais. As

atitudes de Brown em relação a sua participação em entrevistas estão relacionadas, a nosso ver,

com um modo de agir em relação (i) aos veículos de comunicação ligados à grande mídia, e ao

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90

que esses representam, (ii) ao público telespectador desses contextos midiáticos, abrangendo

tanto a audiência “curiosa” em conhecer o mundo dos rappers, dos hip hoppers e dos negros

quanto a população que forma e que pratica os movimentos culturais nas periferias, e como um

modo de agir em relação (iii) a sua própria trajetória pessoal e à trajetória dos Racionais MC's,

guiadas por um sentimento que de certo modo é marcado por uma moral coletiva, que lhes

permita escapar da condição de “negro limitado” e pela não compactuação com diversos

parâmetros do status quo.

3.4 Reconstruindo o contexto das entrevistas

Nas seções seguintes do presente capítulo, tomaremos como base as considerações

de Bourdieu a respeito dos campos sociais e, mais especificamente, sobre o campo jornalístico

para refletir de que maneira a caracterização desses espaços sociais tal como feita pelo autor se

desdobra nas ações ocorridas nos programas Roda Viva (em setembro de 2007) e Papo com

Benja (em junho de 2011).

Desse modo, pretendemos adensar a reconstrução contextual que acreditamos ser

necessária a um trabalho com as noções de campo (fundamentalmente relacional) e de

metadiscurso (em ações de textualização) que podem estar a serviço de ações sociais mais

amplas. Ainda que não pretendamos exaurir, em termos de uma descrição densa (Cf. GEERTZ,

1973) essa contextualização do campo jornalístico no qual se situam as entrevistas selecionadas

para nossa análise, será preciso levar em conta diferentes dimensões contextuais que abrangem

a interação nos dois programas. De acordo com Barros Filho (2002: 167),

O campo jornalístico é constituído por muitos sub-campos. Embora estes

apresentem aspectos comuns que justifiquem a constituição de um campo

geral do jornalismo – relativamente autônomo em relação a qualquer outro

espaço social – discrimam-se por singularidades que também os constituem

enquanto espaços sociais com autonomia relativa. Assim, os jornalismos

televisivo, radiofônico e impresso aproximam-se e, ao mesmo tempo, se

singularizam como espaços destinados a uma produção específica e, portanto,

a uma subjetivação própria de um certo profissional.

As considerações do autor evocam algumas das diferenças e dos nuances do campo

jornalístico que, a nosso ver, marcam as entrevistas selecionadas para o presente trabalho, como

uma primeira distinção entre o fazer jornalístico televisivo, radiofônico ou impresso, por

exemplo. A nosso ver, as posições ocupadas pelos programas Roda Viva e Papo com Benja no

campo jornalístico são fortemente distintas, por motivos que passaremos a tratar a seguir.

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3.4.1 O programa Roda Viva

Transmitido ao vivo em rede nacional pela TV Cultura (emissora inserida na

televisão pública brasileira e pertencente à Fundação Padre Anchieta) o Roda Viva consolidou-

se como um dos mais tradicionais programas de entrevistas da televisão brasileira. No

programa, são tratados temas de interesse do momento sócio histórico nacional e internacional,

com questões voltadas à política, cultura, economia etc (LIMA, 2009; PALUMBO, 2008). Ao

longo de seus anos de exibição (iniciada em 1986), os participantes convidados caracterizam-

se como personalidades importantes, profissionais do campo jornalístico, ou mesmo de outros

campos, muitas vezes tidos como especialistas em suas áreas de atuação41.

Para que possamos compreender como o programa Roda Viva se situa no campo

jornalístico, tomemos as seguintes informações divulgadas no portal de comunicação da

Fundação Padre Anchieta42. Como mencionamos, a fundação é mantenedora da TV Cultura,

emissora responsável pelo programa de entrevistas Roda Viva:

A Fundação Padre Anchieta - Centro Paulista de Rádio e TV Educativas,

instituída pelo governo do Estado de São Paulo em 1967, é uma entidade de

direito privado que goza de autonomia intelectual, política e administrativa.

Custeada por dotações orçamentárias legalmente estabelecidas e recursos

próprios obtidos junto à iniciativa privada, a Fundação Padre Anchieta

mantém uma emissora de televisão de sinal aberto, a TV Cultura; uma

emissora de TV a cabo por assinatura, a TV Rá-Tim-Bum; e duas emissoras de

rádio: a Cultura AM e a Cultura FM.

Por inspiração de seus fundadores, as emissoras de sinal aberto da Fundação

Padre Anchieta não são nem entidades governamentais, nem comerciais. São

emissoras públicas cujo principal objetivo é oferecer à sociedade brasileira

uma informação de interesse público e promover o aprimoramento educativo

e cultural de telespectadores e ouvintes, visando a transformação qualitativa

da sociedade.

A partir do excerto retirado do sítio de divulgação na internet, é possível observar

uma primeira referência ao grau de autonomia da Fundação Padre Anchieta enquanto

instituição midiática. As informações são expostas de modo a sugerir uma atuação autônoma

tanto em relação à administração e à gestão da instituição, em relação a seu contato com outras

instâncias de poder e também no que diz respeito ao âmbito intelectual, entendido como os

princípios e influências que norteariam a produção e seleção de conteúdo. Além disso, em

função de não se apresentar como uma “entidade governamental” e tampouco “comercial”,

podemos notar que a Fundação Padre Anchieta busca uma localização num espectro de atuação

41 Disponível em: <http://tvcultura.cmais.com.br/rodaviva/sobre-o-programa>. Acesso em: 03/06/2015. 42Disponível em: <http://cmais.com.br/fpa/quem-somos>. Acesso em 03/06/2015.

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midiática que não a identifique como diretamente ligada ao Estado, mas também não

diretamente ligada ao mercado.

Outras informações se referem à relação da Fundação Padre Anchieta com o campo

econômico. Assim, esclarece-se que o custeio dos trabalhos da fundação se dá em função de

um capital econômico oriundo tanto de subvenções estatais quanto de recursos obtidos junto à

iniciativa privada. Quanto a isso, podemos considerar que seu modo de arrecadação e, por

conseguinte, sua relação com o campo econômico não se diferenciam de outras grandes

instituições midiáticas. Além disso, nota-se o fato de que a fundação se dedica à produção

midiática para além do meio televisivo em canal aberto, abrangendo também emissoras de rádio

e de TV por assinatura.

Consideramos que as demais informações expostas no excerto acima fazem

referência aos modos e princípios que norteiam a produção e seleção de conteúdo da Fundação

Padre Anchieta. Destaca-se, assim, o “interesse público” como fator relevante no oferecimento

de conteúdo. Como é possível notar, há ainda uma referência ao modo como a fundação espera

se inserir na sociedade em função de sua atuação no campo, visto que um “aprimoramento

educativo e cultural” e uma “transformação da sociedade” são apontados como os objetivos das

emissoras que compõem essa instituição midiática. A nosso ver, é possível considerar que

haveria diferença entre a TV Cultura, como emissora pertencente à Fundação Padre Anchieta,

e outras emissoras em canal aberto ou da grande mídia em termos dos objetivos e dos conteúdos

produzidos, tendo em vista que as informações expostas acima ligam a produção de conteúdo

da TV Cultura – e das demais emissoras ligadas à Fundação Padre Anchieta – não diretamente

ao entretenimento, mas sim ao próprio campo da produção cultural de modo mais estreito. Essa

ideia de uma proposta educativa ligada a conteúdos do campo da produção cultural poderia

representar importantes diferenças quando comparada a objetivos e conteúdos de outras

emissoras ligadas à grande mídia.

Cabe ressaltar que a informação de que visa “a transformação qualitativa da

sociedade”, a nosso ver, parece apresentar como pressuposto uma crença naquilo que pode

representar a instituição midiática enquanto microcosmo atuante no espaço social, isto é, a

crença numa capacidade das instituições midiáticas em serem atuantes e “transformadoras” da

sociedade – nesse sentido, a informação parece revestir de grande poder simbólico as

instituições de mídia.

Para além de uma caracterização da Fundação Padre Anchieta realizada com base

numa descrição própria, divulgada no sítio da Fundação na internet, cumpre buscarmos

informações outras a respeito dessa instituição do campo jornalístico. A Fundação Padre

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Anchieta, mantenedora da TV Cultura, deve ser situada como instituição a qual pertence uma

concessão pública televisiva e radiofônica, e, a nosso ver, deve também ser tomada em sua

relação com outros campos que não o jornalístico.

Ainda que as informações divulgadas pela Fundação Padre Anchieta delimitem

uma independência da instituição e uma vocação da TV Cultura como emissora voltada para a

elaboração de conteúdo televisivo a serviço da cultura e da educação, não deixa de haver

contrassensos em relação a esse posicionamento auto afirmado. De acordo com Bucci (2010:

13), a respeito das concessões públicas de televisão no Brasil,

A TV Cultura de São Paulo (estado que também possui a Univesp TV, além

de emissoras de rádio em AM e FM) é sem dúvida a mais independente e a

mais influente emissora pública do país. Mas ainda assim, na prática, tal

independência apresenta limitações.

As considerações de Bucci (2010) acercas das limitações de independência e

influência da TV Cultura levam em conta a relação entre sua mantenedora, a Fundação Padre

Anchieta, e poderes políticos e econômicos. É preciso destacar que, uma vez instituída pelo

governo estadual de São Paulo, a Fundação Padre Anchieta vincula-se aos poderes políticos: a

decisão sobre a presidência da fundação estaria submetida a um conselho curador e ao

governador do estado de São Paulo, responsável pela aprovação do nome escolhido pelo

conselho, como lembra Bucci (2010). Ainda que seja expressiva a ideia de um conselho curador

com prerrogativa de voto para eleger a presidência da Fundação, é preciso ressaltar que os

membros desse conselho são agentes de campos sociais distintos, e a distribuição do voto e do

poder de decisão nesse pleito não ocorre de modo igualitário, como lembra Bucci (2010: 12):

Na TV Cultura, dos 44 membros do conselho curador, 22 são eletivos, três,

vitalícios, dezoito, membros natos, e um representa os funcionários da

instituição. Em tese, essa proporção bastaria para impedir que a vontade dos

membros natos, que são secretários de estado e reitores de universidades

públicas e privadas, entre outros — alguns deles ligados ao governador ou

exercendo cargos para os quais contaram com a nomeação do governador —

pudesse definir as deliberações do conselho. Na prática, porém, embora eles

sejam minoritários, a liderança do governo é decisiva. O histórico das

principais decisões do conselho comprova que, de um modo ou de outro, em

momentos agudos, a posição prevalecente é aquela patrocinada pelo governo

paulista. Assim, foi assim com a escolha de todos — sem exceção — os

presidentes da instituição; assim ocorre com a escolha dos membros eletivos.

É raro e bastante improvável, embora não impossível, que um nome que

desagrade ao Executivo estadual seja conduzido ao conselho curador da

Fundação Padre Anchieta.

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Tendo em vista as informações apontadas por Bucci (2010) acerca do poder de

deliberação do Executivo estadual paulista nas decisões sobre a presidência da Fundação Padre

Anchieta, a ideia de uma independência política da instituição e da própria emissora, TV

Cultura, ganha um contrassenso importante, já que essas informações ligam diretamente a

instituição do campo jornalístico ao campo do poder, representado pelo poder público do estado

de São Paulo. Nesse sentido, fortalecem-se as considerações de Bourdieu a respeito do baixo

grau de autonomia do campo jornalístico em relação aos poderes políticos e econômicos –

acerca dos poderes econômicos, é possível ao menos supor sua influência na TV Cultura quando

se afirma uma ligação da Fundação com entidades “comerciais”.

A TV Cultura é frequentemente destacada como “a mais exitosa experiência de TV

pública já realizada no Brasil” (LEAL FILHO, 2009: 324), ainda que existam percalços e

dificuldades, quando se compreende o risco de que a Fundação Padre Anchieta possa se tornar

uma instituição do campo jornalístico utilizada como possibilidade de expansão dos interesses

de outros campos do poder.

A nosso ver, embora sua organização administrativa comprometa sua autonomia,

ainda assim não a impede de se diferenciar da grande mídia, ao menos em termos do capital

simbólico pelo qual luta, das às regras invisíveis presentes e de suas estratégias de conservação.

Isso porque, sua posição administrativa e econômica intermediária, ligada ao Executivo

estadual de São Paulo, faz com que esteja vinculada às fases de um poder público eleito num

sistema democrático; nesse sentido, a emissora guardaria diferenças importantes com outros

grupos midiáticos do país, cujas posições de poder se perpetuam por laços familiares, por

exemplo, dramaticamente menos suscetíveis a mudanças e aos interesses coletivos.

Além disso, na qualidade de emissora pública mais exitosa, a TV Cultura se

diferenciaria das demais, pertencentes à grande mídia, pela tentativa em firmar posição no

campo jornalístico sobretudo pelos ganhos de um capital simbólico ligado ao comprometimento

com a produção cultural e com uma programação educativa, e não apenas pela sobrevivência

advinda dos dividendos econômicos. Com isso -para prosseguir com as questões tratadas por

Bourdieu sobre o campo jornalístico -, as estratégias de conservação e as regras invisíveis da

TV Cultura poderiam (dando destaque ao fato de que a possibilidade pode não se reverter num

fato) inscrevê-la como emissora televisiva mais compromissada com o registro de uma

sociedade democrática. Sua posição no campo jornalístico, apesar da autonomia, ainda abriria

possibilidades para que escapasse à crítica bourdiana, segundo a qual a televisão deixaria de

descrever para prescrever uma ordem simbólica.

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Acreditamos que as considerações com relação à autonomia da Fundação Padre

Anchieta e da TV Cultura podem aventar características importantes do posicionamento dessa

instituição no campo jornalístico. No entanto, como dissemos anteriormente, uma reconstrução

contextual das entrevistas selecionadas para o presente trabalho necessita levarmos em conta

outras dimensões contextuais do programa Roda Viva, a começar pelos agentes presentes na

entrevista, decisivos para as ações que se dão no interior do programa de 24 de setembro de

2007.

Nesse sentido, cumpre ressaltarmos, primeiramente, a presença do apresentador e

mediador Paulo Markun na entrevista concedida por Mano Brown ao programa Roda Viva. É

preciso salientar que Paulo Markun, à época da entrevista, ocupava também a presidência da

Fundação Padre Anchieta – tendo exercido o cargo entre maio de 2007 e fim de 2010. As

muitas informações divulgadas à época informam que o nome do jornalista Paulo Markun para

ocupar a presidência da Fundação foi decisão consensual na votação do conselho curador e

acatada pelo governador José Serra, chefe do Executivo estadual de São Paulo no ano de 2007.

Como ocupante da presidência executiva da fundação e como apresentador e

mediador do programa Roda Viva, Paulo Markun se apresenta como agente importante para

que possamos compreender o contexto de entrevista do rapper Mano Brown ao programa. Isso

porque sua trajetória no campo jornalístico faz com que esteja ligado a uma posição específica,

por exemplo, em relação à seleção dos conteúdos presentes na emissora TV Cultura. Acerca

disso, tomemos as informações divulgadas pela revista Carta Maior43 sobre o jornalista, em

repercussão à sua eleição para presidir a Fundação Padre Anchieta:

Jornalista de reconhecida competência e de longa carreira na TV Cultura,

desde a década de 60 - quando foi convidado à chefia de reportagem por

Vladimir Herzog-, Markun encaminhou uma carta de agradecimentos ao

conselho curador, lembrando passos importantes da trajetória interrompida de

seu chefe daqueles anos duros e de seu próprio caminho que o levou de volta

à casa em 1998, pelas mãos do Jorge da Cunha Lima, para apresentar o Roda

Viva, programa que depois, durante a gestão de Mendonça, dirigiu.

Evocando o estatuto da Fundação e a Constituição Federal, Markun afirmou

categoricamente que se propõe a uma linha que dará prioridade absoluta às

finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas, promovendo a

cultura nacional e regional e estimulando a produção independente.

Esconjurou a censura e relembrou o caráter da TV pública de independência

e autonomia em relação a governos, partidos, correntes, tendências, grupos

políticos, artísticos, culturais, econômicos e religiosos.

Já assuntando a controversa temática da produção e exibição de audiovisual

no Brasil, Markun posicionou-se contra o monopólio do modelo centralizado

43Revista Carta Maior, 28/04/2007. Disponível em: <http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Midia/Paulo-Markun-

foi-o-nome-do-consenso-afirma-Jorge-da-Cunha-Lima/12/13221> Acesso em: 20/07/2015.

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e vertical e evocou a lei aprovada na Câmara, mas que tramita no Senado

desde 2003, de iniciativa da deputada Jandira Feghali, que abre espaço para a

produção regional e independente. Enfatizou ainda que a Cultura terá

compromisso com a sociedade e não com o mercado, buscará participar de

processos de inclusão social e trabalhará pelo direito à comunicação.

As informações divulgadas pela revista tratam de um pronunciamento feito por

Paulo Markun quando de sua eleição. A partir dessas informações, observa-se que o jornalista

delimita para si um posicionamento no campo jornalístico comprometido o jornalismo público,

independente, voltado para a produção cultural e para a inclusão social. Entretanto, é preciso

ressaltar que sua conduta, talvez por representar uma posição de heterodoxia no campo

jornalístico, não garante o sucesso da implantação dessas metas, sobretudo se lembrarmos que

a autonomia da Fundação Padre Anchieta é suscetível aos poderes políticos do estado de São

Paulo, cujos interesses nas atividades da TV Cultura podem ser outros.

De modo geral, as considerações sobre a trajetória e a posição de Paulo Markun no

campo jornalístico interessa ao trabalho na medida em que nos permite evocar mais uma

dimensão do contexto do Roda Viva no momento da entrevista concedida pelo rapper Mano

Brown ao programa. A nosso ver, o convite feito a Mano Brown para sua participação num dos

mais consagrados programas de entrevista da televisão brasileira relaciona-se com algumas das

ações levadas a cabo pela TV Cultura para tentar dar voz à produção cultural da periferia e ao

movimento hip hop numa emissora pública de televisão. É preciso chamar atenção para a

cobertura que a produção cultural da periferia passou a ter na TV Cultura em 2008 – no segundo

ano de Paulo Markun à frente da emissora -, semanalmente, com a estreia do programa Manos

& Minas, apresentado naquele ano por Rappin Hood, agente prestigiado movimento hip hop

(Cf. GRANATO, 2011; MARIANO, 2014).

Como mencionamos, a presença de Paulo Markun na entrevista concedida pelo

rapper Mano Brown ao Roda Viva se dá não apenas em momento no qual ocupa a presidência

da Fundação Padre Anchieta, mas também na posição do jornalista como apresentador e

mediador do programa. Na estrutura de participação do programa, Paulo Markun é responsável

pelo gerenciamento do tempo, pelos agradecimentos feitos aos presentes e ao público, assim

como pela abertura e encerramento do programa. Além disso, fica reservado ao papel do

apresentador-mediador fazer uma breve apresentação do entrevistado e entrevistadores ao

público, bem como intervir na troca de turnos entre os participantes quando há muitas

sobreposições de vozes.

Além da figura do apresentador mediador, a exibição de 24/09/2007 do programa

contou com sete participantes entrevistadores (incluindo o apresentador-mediador) e treze

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participantes ouvintes que, ao longo da exibição da entrevista, não participaram enquanto

falantes.

Quanto aos participantes entrevistadores, salientamos algumas informações, com

o auxílio da tabela a seguir:

Tabela 1- Participantes entrevistadores no programa Roda Viva em 24/09/2007

Entrevistador

Inserção no

campo

jornalístico

Modo de

apresentação

veiculado pelo

programa

Posição

ocupada na

bancada

José Nêumanne (JN):

Nascido em 1951, começou sua

carreira de jornalista em 1968. Foi

crítico de cinema, repórter da polícia e

chefe de redação, tendo trabalhado

também como assessor político. À

época da entrevista com o rapper

Mano Brown, trabalhava como

editorialista, colunista na internet e

comentarista de rádio. É escritor e

poeta, sendo membro da Academia

Paraibana de Letras44.

Jornalismo

cinematográfico;

jornalismo

político;

jornalismo

econômico;

jornalismo

policial.

- Menção feita por

PM: “editorialista do

Jornal da Tarde

comentarista da

Rádio Jovem Pan e

do SBT”

- Inscrição na tela:

“Jornal da Tarde”.

E3

Renato Lombardi (RL):

Nascido na Itália, é especialista em

jornalismo de segurança, justiça e

jornalismo policial. Trabalhou em

diversas emissoras de televisão do

país, tendo sido também apresentador

de programas policiais na TV45.

Comentarista de

segurança;

jornalismo

policial.

- Menção feita por

PM: “jornalista da

TV Cultura”

- Inscrição na tela:

“TV Cultura”.

E5

Paulo Lima (PL):

Formou-se em direito pela USP.

Trabalhou como colunista em diversos

jornais. Aos 24 anos, fundou a Trip

Editora, responsável pelas revistas

Trip e Tpm, por exemplo. Além disso,

trabalha como consultor de programas

de TV e como apresentador de

programas no rádio46.

Editorialista

(Editora Trip;

revista Trip e

revista TPM);

jornalismo

impresso.

-Menção feita por

PM: “editor da

Trip”.

-Inscrição na tela:

“Revista Trip”.

E6

Ricardo Franca Cruz (RF):

Publicitário, trabalhou no jornalismo

impresso em diversas revistas, foi

editor chefe da revista Rolling Stone

Publicitário;

editorialista

(Revista Rolling

Stone Brasil);

jornalismo

- Menção feita por

PM: “editor chefe da

revista Rolling Stone

Brasil”.

E4

44 Disponível em: <http://neumanne.com/>. Acesso em: 03/06/2015. 45Disponível em: <http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,renato-lombardi-assume-o-reporter-

cidadao,20040524p6540>. Acesso em: 03/06/2015. 46Disponível em: <http://bei.com.br/autor/paulo-lima>, <http://jornalismosp.espm.br/geral/jornalista-e-pago-para-

entender-o-mundo-diz-paulo-lima>. Acesso em: 03/06/2015.

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Brasil (2006 a 2011) e atualmente é

editor da revista GQ47.

impresso. - Inscrição na tela:

“Revista Rolling

Stone”.

Maria Rita Kehl (MR):

Nascida em 1951, formou-se em

psicologia pela USP e, posteriormente,

tornou-se doutora em psicanálise pela

PUC-SP. É também crítica literária,

poetisa e cronista. Trabalhou com

movimentos sociais como o MST,

como editora e como colunista em

jornais da mídia impressa. Participou

como integrante convidada da

Comissão da Verdade, instalada em

201248.

Psicologia;

jornalismo

alternativo;

direitos humanos.

-Menção feita por

PM: “psicanalista”.

-Inscrição na tela:

“Psicanalista”.

E2

Paulo Lins (PLS):

Nasceu em 1958, no Rio de Janeiro e

foi criado na Cidade de Deus (bairro

da periferia carioca). Possui formação

em Letras e é autor da obra Cidade de

Deus. É escritor, professor de literatura

e roteirista de cinema49.

Professor;

escritor; roteirista;

literatura

periférica.

- Menção feita por

PM: “escritor

professor de

literatura e roteirista

de cinema”;

- Inscrição na tela:

“Escritor”.

E1

Paulo Markun (PM):

Nascido em 1952, formou-se em

comunicação pela USP, em 1974. Foi

preso em 1975, por “atividades

subversivas” ligadas ao Partido

Comunista. Trabalhou como repórter,

editor, comentarista, chefe de

reportagem e diretor de redação em

diversas emissoras de televisão, jornais

e revistas.

Em junho de 2007, Paulo Markun

assumiu o comando da Fundação

Padre Anchieta, gestora da TV Cultura

– já se encontrava no posto, portanto,

quando da entrevista com o rapper

Mano Brown, datada de 25 de

setembro de 2007.50

Ativismo político;

jornalismo

impresso;

jornalismo

televisivo;

editorialismo;

literatura;

documentarista.

Não é mencionado. E7

47Disponível em: <http://administrativocasper.fcl.com.br/noticias/index.php/2010/09/24/eu-nao-escolhi-o-

jornalismo:-fui-escolhido,n=3995.html >, < http://gq.globo.com/expediente.html>. Acesso em 03/06/2015. 48Disponível em: <http://www.mariaritakehl.psc.br/agenda.php>. Acesso em: 03/06/2015. 49Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa200515/paulo-lins>;

<http://revistaforum.com.br/digital/135/paulo-lins-democracia-nao-e-boa-para-o-negro/>. Acesso em:

03/06/2015. 50 Disponível em:<http://paulo.markun.com.br/>; <http://markun.com.br/memoriacoletiva/>. Acesso em

03/06/2015.

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A Tabela 1 busca descrever informações relevantes sobre os sete participantes

entrevistadores de acordo com um levantamento feito por nós (primeira coluna) acerca de sua

trajetória e segundo a apresentação desses sujeitos tal como feita pelo programa Roda Viva

(terceira coluna), seja pelas palavras anunciadas pelo apresentador-mediador Paulo Markun

(doravante, “PM”) no momento de apresentação dos convidados, seja pelas inscrições que

surgem nas imagens do programa nos momentos em que tais convidados detém o turno de fala.

A segunda coluna se refere a áreas de atuação dos convidados que, a nosso ver, podem ser

encaradas como posições dos entrevistadores ligadas ao campo jornalístico – desse modo,

seriam relações entre o campo jornalístico e posições que justificariam a presença desses

agentes enquanto entrevistadores do rapper Mano Brown.

Acerca do contexto de participação desses entrevistadores no programa Roda Viva,

podemos notar através das informações dispostas na tabela que os diferentes participantes

entrevistadores se inscrevem no campo jornalístico de modos distintos. Assim, José Neumanne

(doravante, “JN”) e Renato Lombardi (doravante, “RL”), por exemplo, possuem em comum

uma trajetória ligada ao chamado “jornalismo de segurança” ou “jornalismo policial”, voltado

para a cobertura e discussão de temas e eventos ligados ao crime e à violência em geral. Já os

entrevistadores Paulo Lima (doravante, “PL”) e Ricardo Franca Cruz (doravante, “RF”)

possuem em comum uma trajetória mais voltada para as revistas impressas de temáticas

destinadas a grupos específicos (sobretudo no caso da revista TPM e revista Trip, nas quais

trabalhou PL) e a coberturas sobre a produção cultural ligada à música (sobretudo no caso da

revista Rolling Stone Brasil que teve RF como editor à época da entrevista).

Já os entrevistadores Paulo Lins (doravante, “PLS”) e Maria Rita Kehl (doravante,

“MR”) parecem se posicionar de modo mais externo ao campo jornalístico quando em

comparação aos demais entrevistadores. Se levarmos em conta as trajetórias brevemente

evocadas na primeira coluna e às inscrições exibidas nas imagens do programa acerca desses

participantes, é possível notar que, dentre todos os sujeitos entrevistadores, apenas PLS e MR

não são apresentados por nomes de instituições jornalísticas de teledifusão (como a TV Cultura,

no caso da apresentação de RL) ou de mídia impressa (como no caso do Jornal da Tarde, em

referência a JN, da revista Trip, em referência a PL e da revista Rolling Stone Brasil, em

referência a RF).

Na reconstrução contextual do programa Roda Viva, é importante considerar

também que os conteúdos exibidos em programas televisivos não são produtos isolados, já que

se inserem, por exemplo, em um espaço cenográfico (construído por produtores e recursos

tecnológicos) gerador de efeitos de sentido (PALUMBO, 2008). Sendo assim, no caso do

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programa Roda Viva, pode-se afirmar que o lugar no qual os interactantes se inserem, assim

como o direcionamento e o público do programa, também são fatores que impactam na maneira

como os participantes produzem seus enunciados. As figuras abaixo reproduzem a organização

cenográfica do programa quando da entrevista concedida por Mano Brown, a partir das imagens

que chegaram aos telespectadores.

Figura 1- Organização cenográfica do programa Roda Viva em 24/09/2007

Figura 2- Organização cenográfica do programa Roda Viva em 24/09/2007

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Figura 3- Organização cenográfica do programa Roda Viva em 24/09/2007

Como mostra a Figura 3 acima, no espaço cenográfico do programa encontram-se

dois níveis de bancadas diferentes em forma circular, sendo o centro dessa circunferência

ocupado por uma cadeira giratória reservada ao entrevistado. Na bancada mais próxima ao

entrevistado situam-se os participantes entrevistadores e, dispostos na bancada superior, os

participantes ouvintes – todos esses, brevemente apresentados ao longo do programa pelo

apresentador-mediador, ocupante da posição E7.

Dentre os ouvintes, encontram-se o cartunista Paulo Caruso (O1), os demais

membros do Racionais MC’s - Ice Blue (O2), KL Jay (O3), Edy Rock (O4) -, músicos

integrantes de grupos promovidos por Mano Brown - Dom Pixote (O13), Negovando (O12),

Do Bronx (O11), Negredo (O10) – e convidados da produção do programa - Caio Blat (ator;

O5), F. E. (bancário; O6), P. C. (estudante de economia; O7), C. Z. (estudante de jornalismo;

O8) e S. R. S. S. (bancário; O9). Importa destacar a presença dos músicos como ouvintes na

bancada programa, como demais agentes da produção cultural da periferia que acompanham de

perto as ações de um indivíduo prestigiado do movimento hip hop.

Lima (2009) destaca que a participação da bancada de entrevistadores durante a

interação se dá de maneira livre, visto que por vezes os participantes entrecortam os turnos uns

dos outros e, não raro, assaltam o turno do entrevistado. Dessa forma, verifica-se ao longo da

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interação que o discurso é produzido de modo bastante participativo e colaborativo – embora

não exclua a ocorrência de conflitos -, conferindo ao programa o caráter dinâmico responsável

por sua peculiaridade como dado interacional. Tal ocupação do espaço acaba produzindo um

tom inquisitorial ao programa – como lembra Lima (2009) -, ao longo do qual o entrevistado

responde a questões propostas pelos componentes da bancada.

A organização cenográfica conta ainda com aparelhos eletrônicos atinentes à

captação das imagens e à produção do programa como um todo, como as três câmeras dispostas

em meio às bancadas, três monitores que permitem aos participantes a visualização instantânea

das imagens captadas e também o microcomputador utilizado por E7 ao longo da entrevista. Há

também a presença fixa nas exibições no programa do cartunista Paulo Caruso, criando charges

que se baseiam nos mais sutis acontecimentos e nos temas abordados na entrevista. Importa

salientar que as charges criadas veiculam um tipo de humor que satiriza os participantes e o

modo como interagem.

Cabe acrescentar as considerações de Palumbo (2008: 21-22) quanto ao nome do

programa:

A respeito do nome do programa e de seu slogan (Roda Viva: o Brasil passa

por aqui), se lembrarmos da história do jornalismo, dos momentos de opressão

ocorridos nas décadas de 60 a 80, sobretudo da questão da liberdade de

imprensa, é possível pensarmos em uma ligação com a peça teatral Roda Viva

escrita por Chico Buarque e estreada em 1968. A peça tornou-se símbolo

contra a ditadura militar e a censura dos palcos dos teatros brasileiros. O

próprio termo rodaviva, no dicionário Aurélio, refere-se à ação de

movimentar, correr, fazer acontecer.

As informações apresentadas até o momento têm o intuito de uma reconstruir

algumas das dimensões contextuais mais amplas da entrevista com o rapper Mano Brown no

programa Roda Viva, por meio de algumas considerações que podem ser retomadas do seguinte

modo:

i. sobre o posicionamento da Fundação Padre Anchieta no campo jornalístico brasileiro,

foi possível notar que, embora se apresente como entidade autônoma, independente

administrativamente e em relação à seleção de conteúdo, é possível dizer que essa

instituição do campo jornalístico ainda está suscetível à influência do poder público do

Executivo estadual de São Paulo, por meio da escolha da presidência da fundação, assim

como de poderes econômicos, por meio das subvenções comerciais e estatais que

garantem o funcionamento da fundação.

ii. sobre o posicionamento da TV Cultura no campo jornalístico, observamos que,

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enquanto emissora pública de televisão no Brasil, sua atuação bem-sucedida de

produção de conteúdo (cultural, educativo e voltado ao interesse público) ainda esbarra

em limitações, por conta da vinculação aos poderes públicos (e seus possíveis interesses

específicos) na emissora.

iii. verificamos que entre 2007 e 2010 a emissora esteve sob a presidência do jornalista

Paulo Markun, agente interno ao campo e comprometido com um ideal de televisão

pública democrática, alçado ao cargo pelos votos consensuais do conselho curador da

Fundação e pela nomeação do governador José Serra, chefe do Executivo estadual de

São Paulo em 2007.

iv. além da posição de presidente da Fundação Padre Anchieta, Paulo Markun esteve à

frente da apresentação do programa Roda Viva no momento da entrevista com o rapper

Mano Brown. Compunham a bancada de entrevistadores, ainda, outros 6 agentes ligados

ao campo jornalístico de distintos modos.

v. foi possível notar também os elementos contextuais evocados a partir da organização

cenográfica do programa, por meio da localização do entrevistado ao centro de uma

arena, na qual deve se movimentar constantemente, seja para ouvir as perguntas, seja

para direcionar sua fala e seu olhar aos entrevistadores.

Em capítulo posterior, buscaremos demonstrar como esses aspectos contextuais se

desdobraram nas ações de textualização presente ao longo da entrevista concedida por Mano

Brown ao programa. Nosso foco incidirá sobre o papel dos expedientes metadiscursivos nas

tomadas de posição do rapper para sua inscrição no campo jornalístico, sem deixar de aludir a

outras semioses que também estiveram presentes nessas ações mais amplas levadas a cabo pelo

entrevistado.

3.4.2 O programa Papo com Benja

No intuito de observar como o programa Papo com Benja está inserido no campo

jornalístico, será preciso partir de algumas considerações a respeito da agência

LANCEPRESS!51, instituição jornalística responsável pelo grupo Lance!. Abaixo, seguem

algumas informações sobre a agência:

Com 14 anos no mercado, a LANCEPRESS! se destaca por ser uma agência

especializada na cobertura esportiva, marca registrada do grupo LANCE!, do

51Disponível em: <http://www.agencialance.com.br/>. Acesso em: 03/06/2015.

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qual compartilha o conhecimento do maior diário esportivo da América

Latina, que dá nome ao grupo.

Por registrar exclusivamente eventos ligados ao esporte, sobretudo do futebol

nacional, disponibiliza conteúdo com olhar diferenciado e especializado no

registro. Com parceiros nas cinco regiões do país, nossa cobertura se

notabiliza pela amplitude, qualidade e agilidade do material oferecido aos

nossos clientes.

A LANCEPRESS! atualmente comercializa conteúdo de texto, foto e vídeo

para veículos do Brasil e do exterior e vem ampliando sua carteira de clientes

entre agências de publicidade e comunicação, assessorias e editoras.

Mais que uma agência convencional, a LANCEPRESS! adapta e desenvolve

projetos personalizados às necessidades do cliente, trazendo soluções no

fornecimento de conteúdo esportivo.

O excerto acima foi divulgado no sítio de divulgação na internet pertencente ao

grupo LANCE!. A partir dele, podemos observar referências a sua posição no campo

jornalístico. Num primeiro momento, é possível observar informações quanto à delimitação do

conteúdo produzido pelo grupo midiático: a cobertura jornalística esportiva, “sobretudo do

futebol nacional”. São também apresentadas informações que se referem à atuação do grupo

em diversos tipos de mídia para a produção desse conteúdo, em fotos, textos e vídeo. Tais

informações, a nosso ver, circunscrevem a produção de conteúdo da agência LANCEPRESS!

ao jornalismo esportivo.

Consideramos que outras informações expostas no excerto acima se referem à

posição da agência LANCEPRESS! no campo jornalístico e a sua autonomia também em relação

ao campo econômico. Se tomarmos a ideia de que “comercializa” conteúdos ligados ao esporte

para diversos “clientes”, será possível compreender que a agência se apresenta como instituição

midiática não inteiramente autônoma, na medida em que fornece as informações produzidas

para outras instituições do campo jornalístico e tem nesse serviço uma fonte de suas receitas e

de seu capital econômico.

Tendo em vista o pensamento de Bourdieu a respeito do campo jornalístico (1997

[1996]), a nosso ver, é possível notar que as atividades da LANCEPRESS! se relacionam mais

estreitamente a lógica empresarial que está na base do campo jornalístico: isso porque a agência

se posiciona como produtora dos conteúdos (fotos, vídeos, notícias) que serão comprados por

outras instituições para elaboração de seus produtos jornalísticos – numa espécie de

terceirização da produção jornalística, que tem na LANCEPRESS! um estágio intermediário

entre o meio de divulgação final e o evento reportado.

Ressalte-se, também quanto a isso, as informações que fazem referência a sua

experiência no “mercado” (de notícias) e que a caracterizam pela adaptação de soluções para

cada cliente, a ampla cobertura em diversas regiões e a “agilidade” na produção de conteúdo.

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Nesse sentido, as informações fornecidas pela agência LANCEPRESS! parecem corresponder à

caracterização feita por Bourdieu acerca de alguns mecanismos de organização do campo

jornalístico, como a produção rápida das notícias e dos “furos” e a “circulação circular de

informação” por várias instituições midiáticas.

Além do excerto de apresentação divulgado em seu domínio na internet, importa

considerar alguns pontos da própria trajetória da agência LANCEPRESS! no campo jornalístico,

iniciada em 1997 com a fundação do jornal LANCE!. Sediada inicialmente no Rio de Janeiro,

a produção se voltou desde sua fundação para o conteúdo esportivo nacional tanto em mídia

impressa (com o jornal LANCE!) quanto pela internet (por meio do sítio denominado

LANCENET52) o qual contava com a divulgação das notícias, das reportagens e com a L!TV

como plataforma de divulgação de programas televisivos produzidos pelo grupo somente para

a internet.

O jornal LANCE! durante diversos anos contou com ampla tiragem em território

nacional, sobretudo no estado de São Paulo onde se encontra ainda dentre as maiores vendagens

realizadas em bancas pelas cidades. Após tempos voltados para impressão do jornal LANCE! e

para a divulgação pela LANCENET e pela L!TV, a produção do grupo passou a envolver ainda

duas outras distribuições impressas, ligadas ao futebol (Fut!Lance) e destinadas ao público

masculino (revista A+), além da produção de conteúdo jornalístico esportivo comercializada

para outras instituições. Desse modo, é possível observar que a ainda recente trajetória da

agência LANCEPRESS! dedicou-se, desde sua fundação, à produção de conteúdo pelos meios

digital e impresso.

Quando observamos a atuação da agência LANCEPRESS!, é possível perceber que

sua posição no campo não pode ser descrita pelas diferenças, muitas vezes estanques, entre

jornalismo televisivo ou impresso. A nosso ver, casos como o da agência LANCEPRESS!

mereceriam uma observação detalhada para dar conta das mudanças que parecem ocorrer no

campo jornalístico em função das possibilidades trazidas pela web. Consideramos que o

trabalho na internet, por meio do jornalismo online, tal como feito pela LANCEPRESS!, tem

feito com que instituições midiáticas combinem práticas antes mais vinculadas à mídia impressa

(como a produção de reportagens escritas, textos, notícias, colunas semanais) a outras antes

restritas ao meio televisivo (como a exibição de programas semanais de entrevistas).

52 Disponível em: <http://www.ejornais.com.br/jornal_lance.html>. Acesso em: 03/06/2015.

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Consideramos que o programa Papo com Benja exemplifica esse tipo de atuação

online no campo jornalístico possibilitada pela web. Exibido em meio digital pela L!TV53, o

programa Papo com Benja tem como entrevistador o jornalista esportivo Benjamin Back. No

programa, “Benja”, apelido pelo qual o jornalista é conhecido, recebe como convidados atletas

profissionais ou ex atletas de futebol, treinadores, dirigentes de clubes de futebol, jornalistas

esportivos e também outros entrevistados que não atuam profissionalmente no esporte. Desse

modo, podemos notar que o programa de entrevistas é composto por agentes internos e

legitimados no campo esportivo, mas também por entrevistados cuja ligação com esse campo

se dá de modo mais externo, como os integrantes de bandas e músicos brasileiros já

entrevistados ao longo da exibição do programa.

Na reconstrução contextual do programa, parece-nos fundamental considerar a

trajetória do apresentador do programa Papo com Benja e o modo como suas ações influenciam

o contexto de entrevista no qual esteve presente Mano Brown. Benjamin Back, segundo as

informações das quais dispusemos, teve toda sua inserção no campo jornalístico voltada para o

jornalismo esportivo, em canais de rádio e de televisão aberta. Economista de formação, sua

entrada no campo jornalístico teve início com as relações profissionais feitas no meio

radiofônico ainda quando a empresa na qual trabalhava divulgava seus anúncios na Energia 97

FM, rádio na qual era transmitido o programa esportivo Estádio 97. Por conta dos contatos

feitos à época, Benjamin Back recebeu um convite para atuar como radialista no programa

Estádio 97, segundo ele54, tanto por seu conhecimento sobre o futebol quanto por seu humor

extrovertido. Após essa atuação, Benja atuou ainda como produtor de conteúdo para o site

Fanáticos FC, também voltado ao jornalismo esportivo. Em 2001, já contratado pelo grupo

LANCE!, tornou-se colunista, mantenedor de um blog no sítio do diário na internet e

apresentador do programa semanal de entrevistas, Papo com Benja55.

De modo geral, podemos considerar que a trajetória de Benjamin Back no

jornalismo esportivo está ligada a uma série de práticas recentes do campo, no âmbito do

jornalismo online. Nesse sentido, acreditamos que sua posição no campo jornalístico deva ser

compreendida como marcada ainda pela busca de oficialização e legitimidade próprias das

práticas jornalísticas na web. Embora as entrevistas em instituições jornalísticas da web nos

53 Disponível em: <http://www.lancetv.com.br/>. Acesso em 03/06/2015. 54 Disponível em: <https://esportes.yahoo.com/blogs/tv-esporte/benjamin-back-onde-e-que-esta-escrito-que-nao-

192829351.html> Acesso em: 20/07/2015. 55 Disponível em: <http://blogs.lancenet.com.br/benja/>,

<http://natelinha.ne10.uol.com.br/noticias/2014/10/10/benjamin-back-sobre-fox-sports-deixaram-eu-brincar-ser-

irreverente-80905.php>. Acesso em: 03/06/2015.

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pareçam ainda pouco estudadas, são vários os trabalhos que se propõem a tratar da atuação no

campo jornalístico dos blogs, como o mantido por Benjamin Back ao longo de 13 anos atuando

profissionalmente pelo jornal LANCE!. Braganholo (2011) afirma que a prática jornalística em

blogs caminha para a regularização e oficialização (enquanto gêneros textuais) por meio de

recursos vários, como, por exemplo, a recorrência à legitimação e a trajetória profissional de

seus autores e também em função das possibilidades de interação dos autores com o público

leitor, por meio dos comentários presentes nos blogs.

As considerações a respeito dos blog jornalísticos, a nosso ver, auxiliam numa

descrição da trajetória de Benjamin Back no campo jornalístico, pois aventam o que parece ser

uma marca importante do fazer jornalístico desse agente: as referências a seu comportamento

extrovertido e informal no campo jornalístico. Outra marca de sua trajetória nesse campo está

na “exclusividade” de algumas de suas entrevistas, tendo em vista que muitos indivíduos pouco

afeitos a participações na mídia fariam concessões ao se tratar de Benjamin Back como

entrevistador. Acerca dessa característica, tomemos o seguinte trecho:

[Entrevistador] E por que você acha que essas pessoas, de conhecidas

personalidades tão fortes, abrem concessões exclusivamente para você?

[Benjamin Back] Acho que é muita arrogância falar isso, certo seria perguntar

pra eles…

[Entrevistador] Mas o poder de persuasão é seu…

[Benjamin Back] Você quer que eu responda? Tá bom, vou te dizer o que eu

acho. É porque respeito os caras. Não trago ninguém aqui pra polêmicas de

15 anos atrás. Eles sabem que não estão vindo pra território inimigo, não trago

os caras pra ferrá-los, não é esse meu objetivo, não gosto disso. (grifos nossos)

Em resposta ao blog TV Esporte, do portal Yahoo de notícias online, Benjamin Back

justifica a exclusividade de algumas de suas entrevistas em função de sua conduta nessas

interações: seu respeito aos entrevistados faria com que não estabelecesse interações pautadas

pelo conflito e por polêmicas anteriores – por meio, por exemplo, da instauração de tópicos

“ameaçadores” – e, nesse sentido, as entrevistas não ofereceriam prejuízos à posição de seus

convidados. Acreditamos que essas características da trajetória de Benjamin Back estão

presentes na entrevista concedida por Mano Brown ao Papo com Benja de junho de 2011, num

primeiro momento, em função da informalidade estabelecida nas interações ao longo do

programa.

Importa ressaltar duas questões suscitadas pela própria nomeação dada ao programa

de entrevistas Papo com Benja. A primeira diz respeito, a nosso ver, a uma centralização ou a

um destaque da figura do entrevistador Benja (alcunha pela qual o entrevistador é conhecido)

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nas interações que se estabelecem no programa, ao sugerir que ações estabelecidas nesse

contexto podem ser compreendidas algo mais por sua relação com o entrevistador, isto é, por

estar num “papo com Benja”. Nesse sentido, o programa parece destacar a figura do

apresentador enquanto agente reconhecido no campo jornalístico esportivo, sobretudo, na

medida em que uma interação com esse agente é usada como expressão referencial para

designar o contexto de entrevista.

Outra questão suscitada pelo nome do programa se refere ao emprego do referente

“papo”56, categorização que, a nosso ver, alude à informalidade e à descontração como

propriedades importantes para a compreensão das relações que se estabelecem sob a

configuração do contexto de entrevista nesse caso. Por conta disso, consideramos que a

nomeação do programa evoca a figura do apresentador como central para essa interação e

algumas das características de como essa entrevista, comandada por ele, localiza-se num

continuum de formalidade e informalidade.

É preciso destacar, ainda, algumas questões da organização cenográfica do

programa Papo com Benja, para compreendermos como se formulam diferentes dimensões

contextuais que corroboram uma interação pautada pela descontração, pela informalidade e pelo

apresentador Benja como figura importante na entrevista. O programa Papo com Benja contou

com exibições semanais entre os anos de 2001 e 2013 e as entrevistas eram realizadas num

estúdio do jornal LANCE! envolto em janelas de vidro pelas quais era possível observar, ao

fundo, outras dependências do local. Outros aspectos do cenário podem ser compreendidos

pelas figuras a seguir:

Figura 4- Organização cenográfica do programa Papo com Benja em 06/2011

56As características elencadas até o momento para compreender a entrevista concedida por MB ao Papo com Benja

demonstram que a configuração do programa parece corresponder às entrevistas conhecidas como “talk-shows”

(FÁVERO et al., 2010).

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Figura 5- Organização cenográfica do programa Papo com Benja em 06/2011

Figura 6- Organização cenográfica do programa Papo com Benja em 06/2011

A Figura 6 representa a organização cenográfica do programa Papo com Benja no

momento da entrevista concedida por Mano Brown. Nela, podem ser vistos dois ambientes: a

Sala 1, representando as dependências (com computadores e mobílias de escritório) do entorno

da sala de entrevista, e a Sala 2, na qual estavam o entrevistador Benjamin Back (BB) e os

entrevistados Mano Brown (MB) e William Magalhães (WM). A partir do direcionamento da

câmera instalada na Sala 2 para a entrevista, era possível que os espectadores visualizassem

também o que ocorria na Sala 1, envolta por aberturas de vidro que proporcionavam a amplitude

da visão desse espaço.

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No momento da entrevista, encontrava-se na Sala 2 também uma mesa,

representada pelo quadrilátero de cor laranja na figura acima. Três objetos estavam dispostos

sobre a mesa no estúdio: duas camisetas de uniformes comemorativos de times de futebol (O1

e O3) e, em meio a elas, um recipiente de bebida energética. Tais objetos compõem o cenário

do programa - portanto, a situação enunciativa como um todo – e foram mencionados pelos

participantes da interação e, por conta disso, sinalizados na figura acima.

A nosso ver, a disposição cenográfica do programa Papo com Benja relaciona-se

com uma maior simetria no que diz respeito à estrutura de participação dessa interação, haja

vista que os lugares ocupados pelo entrevistador e pelos entrevistados encontram-se alinhados

quanto à possibilidade de visão por parte dos espectadores do programa. Além disso,

consideramos que a possibilidade de que sejam avistados outros espaços que compõem a

localidade da instituição midiática atenta para a simultaneidade entre a entrevista e outras

atividades que se dão no seio do campo jornalístico e no cotidiano de seus outros agentes.

Acreditamos que, juntas, essas características da organização cenográfica do programa

proporcionam condições mais ligadas à informalidade para essa entrevista enquanto contexto

situado no campo jornalístico.

Além do entrevistado Mano Brown, o programa contou também com a participação

de William Magalhães, entrevistado levado ao programa a convite do próprio Brown, como

mencionado pelo entrevistador Benja. William Magalhães é instrumentista (pianista),

arranjador e produtor musical. À época, integrava um projeto musical realizado por Mano

Brown57. O entrevistador Benja se refere inicialmente à presença de William Magalhães no

programa como uma “surpresa” e como uma “surpresaça”, o que, acreditamos, vale ser

considerado numa observação sobre o contexto do programa quanto à formalidade ou

informalidade. Isso porque, o fato de que se possa receber um segundo entrevistado no

programa como convidado “surpresa” nos remete a um planejamento menos ritualístico para

essa situação e, por conseguinte, mais flexível no que concerne às regras de produção

estabelecidas pelo campo jornalístico e por essa instituição midiática, especificamente.

As informações apresentadas até o momento têm o intuito de uma reconstruir

algumas das dimensões contextuais mais amplas da entrevista com o rapper Mano Brown no

programa Papo com Benja, por meio de algumas considerações que podem ser retomadas do

seguinte modo:

57 Disponível em: <http://www.dicionariompb.com.br/william-magalhaes/biografia>,

<http://oglobo.globo.com/blogs/amplificador/posts/2012/08/31/black-rio-prepara-trilogia-supernovasambafunk-

462980.asp>. Acesso em: 03/06/2015.

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i. sobre a agência LANCEPRESS!, foi possível notar que a comercialização de seu

conteúdo a outras instituições faz com que ocupe uma posição mais voltada à lógica

comercial do campo jornalístico. Além disso, sua trajetória, ainda recente, dedica-

se exclusivamente à elaboração de conteúdo esportivo, tanto em meio impresso

como pela web.

ii. observamos que o programa Papo com Benja se vincula às práticas do campo

jornalístico na web e que as entrevistas divulgadas pelo canal L!TV correspondem a

conteúdos antes restritos ao jornalismo televisivo que, de modo mais recente, agora

são divulgados online.

iii. para compreender o contexto do programa Papo com Benja, recorremos a algumas

informações da trajetória profissional de Benjamin Back, uma vez que consideramos

de suma importância observar como sua posição no campo jornalístico é marcada

por traços de seu comportamento e de sua conduta enquanto entrevistador.

iv. assim, foi possível notar que a representação social de Benjamin Back é fundamental

na compreensão do contexto do Papo com Benja, em termos da informalidade

presente nas interações do programa e até mesmo para compreender a

“exclusividade” de alguns de seus convidados.

v. notamos também como o nome do programa (uma categorização da interação

informal com o apresentador) e alguns aspectos da organização cenográfica (como

o alinhamento entre o assentos e o próprio local da entrevista) contribuem para a

construção de um contexto pautado pela descontração e informalidade.

No capítulo 4 do presente trabalho, buscaremos demonstrar como esses aspectos

contextuais se desdobraram nas ações de textualização presentes ao longo da entrevista

concedida por Mano Brown ao programa. Para isso, não deixaremos de levar em conta outras

semioses presentes nessas ações do entrevistado.

3.5 Algumas conclusões

Procuramos, no presente capítulo, reconstruir diferentes níveis contextuais da

participação do rapper Mano Brown em entrevistas, tomadas enquanto contextos interacionais

do campo jornalístico. Tal percurso, a nosso ver, faz-se necessário às próximas seções, posto

que nos auxiliará a compreender como as categorias textuais podem ser aventadas para construir

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um empreendimento analítico que articule a materialidade linguística, a nível textual-

discursivo, a uma compreensão mais ampla das relações entre texto e contexto.

Na elaboração do capítulo, perfilamos uma certa estrutura conceptual que não se

esgota numa estrutura linguística stricto sensu. Partimos das noções de representatividade e

estigmatização como características comumente associadas à posição de Mano Brown, seja na

própria periferia ou por agentes que não se inserem nesse campo, e recorremos a informações

sobre sua trajetória pessoal e profissional, no intuito de compreender a construção dessa

representação social em torno do rapper. Esse conjunto de informações, a nosso ver, pode

compor uma descrição contextual mais ampla de sua inserção nas entrevistas, visto que nos

permite relacionar ações e disposições ancoradas nas socializações anteriores do rapper com as

ações de textualização emergentes na temporalidade dos programas de entrevista.

A inscrição de Brown no campo jornalístico também foi evocada no presente

capítulo, já que, a nosso ver, sua participação Brown em contextos midiáticos anteriores nos

indica algumas de suas tomadas de posição no campo. Consideramos, primeiramente, visão do

campo jornalístico sobre o rapper. Nesse momento, foi possível compreender como os

contextos de entrevista podem trazer à tona questões diretamente ligadas à representatividade e

à estigmatização do rapper - seja como “a voz da periferia” ou como aquele que, após sua

ascensão, deve praticar ações em prol da periferia, tendo em vista que conhece e relata os

problemas da população desses espaços. Observamos, ainda, algumas características da visão

do próprio Brown acerca do campo jornalístico e daquilo que sua participação nesse campo

pode significar. Segundo as informações que levantamos, Mano Brown reconhece o campo

jornalístico como um espaço de forças e de distribuição desigual de poder: sua escolha em

conceder entrevistas, portanto, deve levar em conta os prejuízos que o campo jornalístico é

capaz de causar a sua posição, por meio de uma representação de si que seja incoerente àquilo

projetado pelo rapper. Além disso, outros prejuízos podem ocorrer também por sua ligação

com instituições midiáticas cujas trajetória e posição sejam incompatíveis com os interesses de

Brown. De modo geral, a observação de sua inscrição no campo jornalístico nos possibilitou

descrever algumas de suas tomadas de posição e compreender como esse ator social

representativo e estigmatizado percebe sua participação no campo, em recortes cujas dimensões

podem ser tanto locais como mais macro (Hanks, 2008).

Na reconstrução que buscamos fazer, percorremos também diferentes dimensões

contextuais do Roda Viva e do Papo com Benja, no intuito de compreender como se situam no

campo jornalístico esses programas. Os diferentes níveis contextuais, assim como algumas das

características importantes discutidas por nós, podem ser ilustrados pelas figuras abaixo:

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Figura 7- Diferentes dimensões na reconstrução do contexto (Roda Viva)

As informações da Figura 7 indicam que a entrevista concedida por Mano Brown

ao programa Roda Viva pode ser tomada como um ponto de contato, em sentido amplo, entre o

campo jornalístico e o movimento hip hop no campo de produção cultural. Nesse sentido, foi

necessário compreender a posição da Fundação Padre Anchieta como instituição de

reconhecida autonomia, ainda que suas práticas jornalísticas ainda possam estar suscetíveis aos

poderes públicos estaduais de São Paulo. Observamos, além disso, o papel da TV Cultura como

emissora de TV pública com experiência exitosa no Brasil, voltada para conteúdos que possam

promover a educação e a produção cultural, inclusiva e democraticamente. Verificamos, ainda,

que a entrevista concedida por Mano Brown ao programa Roda Viva contou com a presença de

entrevistadores cujas posições no campo jornalístico são distintas, além de ter contato também

com a presença de Paulo Markun, presidente da fundação à época da entrevista e agente

reconhecido no campo jornalístico. Por fim, consideramos como questões relevantes ao

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contexto o cenário do programa Roda Viva e a presença dos ouvintes, outros agentes

reconhecidos do movimento hip hop e do campo da produção cultural da periferia.

Por sua vez, a reconstrução contextual do programa Papo com Benja pode ser

retomada pelas informações dispostas na seguinte figura:

Figura 8- Diferentes dimensões na reconstrução do contexto (Papo com Benja)

Conforme indica a Figura 8, também a entrevista concedida por Mano Brown ao

Papo com Benja é tomada por nós como um ponto de contato entre o campo jornalístico e o

movimento hip hop no campo da produção cultural. Os diferentes níveis contextuais explorados

no presente capítulo demonstraram que a posição da agência LANCEPRESS! parece ser

caracterizada pela lógica comercial própria ao campo, por meio da produção e comercialização

de conteúdo a outras instituições. Voltada exclusivamente para os conteúdos sobre esporte, as

práticas jornalísticas da agência se dão em meio impresso e digital, seja pelo sítio eletrônico do

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jornal LANCE!, seja pela L!TV, canal online no qual se divulgava o programa Papo com Benja.

Observamos como a trajetória do apresentador Benjamin Back está ligada às ações do programa

Papo com Benja, na medida em que sua conduta e seu tratamento aos entrevistados, assim como

as questões evocadas pelo cenário de entrevista, proporcionam a informalidade das interações

ali estabelecidas.

De modo geral, as figuras acima resumem questões que nos permitem localizar os

programas Roda Viva e Papo com Benja em posições fortemente distintas no campo jornalístico

e num continuum de formalidade-informalidade. Em função disso, podemos considerar que

distinções igualmente fortes se dão entre as entrevistas concedidas pelo rapper Mano Brown a

esses programas. Portanto, devemos pensar como se dá o uso dos expedientes metadiscursos

por parte do entrevistado Mano Brown em cada um desses diferentes contextos de entrevista,

inseridos em distintos lugares do campo jornalístico como um todo. Qual a relação desses

expedientes metadiscursivos com as ações mais amplas que se estabelecem em cada um desses

contextos de entrevista? Como o metadiscurso presente nas duas entrevistas, de modo geral,

ajudam a caracterizar a inscrição de Mano Brown no campo jornalístico? Qual, então, o lugar

da textualidade no bojo dessas ações sociais que estamos discutindo? A partir daqui, nosso

enfoque residirá em esboçar respostas a esses questionamentos.

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4. EXPEDIENTES METADISCURSIVOS: RECURSOS TEXTUAIS-

DISCURSIVOS NA FALA DE MANO BROWN EM ENTREVISTAS

JORNALÍSTICAS

Os dados que compõem o corpus do presente trabalho consistem em duas

entrevistas concedidas pelo rapper Mano Brown a diferentes veículos de comunicação nos anos

de 2007 e 2011. Nossa hipótese é a de que as estratégias metadiscursivas qualificam a força

ilocutória da produção textual de Mano Brown de modos diferentes quando levamos em conta

as entrevistas aos programas Roda Viva e Papo com Benja, relacionando-se também à tomada

de posição do rapper no campo jornalístico como um todo. Acreditamos que um tratamento

qualitativo da presença dos expedientes metadiscursivos nas entrevistas jornalísticas que

compõem nossos dados possa se aliar a algumas observações quantitativas sobre a incidência

desses recursos em certos tópicos. Assim, será possível compreendermos como a

metadiscursividade pode estar, a um só tempo, a serviço de relações interacionais locais e de

representações mais amplas de sujeitos como Mano Brown em campos sociais fortemente

organizados, como é o caso do campo jornalístico.

As análises, como mencionamos anteriormente, buscam compreender os

expedientes metadiscursivos empregados por Mano Brown nas entrevistas em função de (i)

suas propriedades de acordo com estudos textuais-interativos produzidos por Koch (2004) sobre

as estratégias metadiscursivas e por Risso e Jubran (1998) sobre o processamento

metadiscursivo do texto; (ii) sua ocorrência nos tópicos discursivos desenvolvidos ao longo das

entrevistas; (iii) suas funções com relação à participação de Mano Brown em ambos os

programas e (iv) seu papel como recurso textual-discursivo para qualificar a inserção do rapper

no campo jornalístico.

Num primeiro momento, será preciso ter em conta quais os tópicos desenvolvidos

nas entrevistas concedidas aos programas Roda Viva e Papo com Benja. Isso nos permitirá,

como segundo passo analítico, focar na observação de exemplos importantes desses expedientes

– nessa observação, tentaremos abordar tanto os efeitos dessas estratégias para os objetivos

mais locais no decorrer das entrevistas como aquilo que seu uso pode representar para a

inscrição de Mano Brown no campo jornalístico.

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4.1 Analisando o programa Roda Viva de 24/09/2007

4.1.1 Tópicos desenvolvidos no programa

O capítulo 3 do presente trabalho envolveu a contextualização de ambas as

entrevistas que compõem os dados selecionados para a análise. Com isso, foi possível observar

algumas questões importantes acerca do programa Roda Viva como, por exemplo, as

informações sobre os diferentes participantes entrevistadores e algumas informações mais

gerais que caracterizam a Fundação Padre Anchieta como instituição do campo jornalístico.

Os participantes entrevistadores têm posições distintas no campo jornalístico,

ligadas ao jornalismo de segurança ou jornalismo policial (RL e JN), ao jornalismo impresso e

a revistas sobre estilo, comportamento e música (PL e RF) e, mais externamente, ligadas a

trabalhos em colunas jornalísticas sobre psicologia, sobre direitos humanos e movimentos

sociais (MR) ou sobre literatura marginal e sobre o campo social da periferia (PLS).

É preciso ter em conta que essas distintas posições dos participantes entrevistadores

no campo jornalístico pode ter impactos para os tópicos instaurados ao longo do programa. Não

somente sua posição no campo jornalístico será fator correlacionado ao desenvolvimento dos

tópicos, mas também a própria inscrição do entrevistado Mano Brown (doravante, “MB”) e os

objetivos do Roda Viva enquanto programa de entrevistas. Para observações mais detalhadas,

tomemos a listagem a seguir, na qual se encontram organizados hierarquicamente os tópicos

desenvolvidos no programa:

Tabela 2- Tópicos desenvolvidos no programa Roda Viva em 24/09/2007

Supertópicos Tópicos Subtópicos

Supertópico

“Mano

Brown”

“Trajetória”

Trajetória de MB

Compra da casa de MB

Problema de moradia de MB

Grau de instrução de MB

“Família”

Pai de MB

MB como pai

Casamento de MB

“Mudanças”

Mudança na realidade (Exemplo 1)58

Mudança no espaço do grupo

Mudança na estrutura de vida de MB

Mudança nos raps de MB

Mudança no discurso de MB

58 Encontram-se sinalizados, na tabela, os subtópicos correspondentes aos exemplos coletados e analisados neste

capítulo.

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“Personalidade”

Separação entre MB (rapper) e Pedro Paulo (indivíduo)

Temperamento de MB (Exemplo 12)

Discussão na torcida do Santos

Contradições de MB

Pensamento socialista de MB

Lembrança do choro de MB

Cobrança de atitude feita por MB (Exemplo 10)

Definição de MB para amor

O apelido Mano Brown

O retorno de Pedro Paulo

“Gosto musical”

Gosto de MB por MPB

Influência da Música Popular na música de MB

Grandes ídolos brasileiros

“Gosto Literário” Gosto de MB por poesia

Leitura de MB sobre Malcolm X

“Entrevista de MB no Roda

Viva”

Entrevistadores do programa

Transmissão do programa

Participação do cartunista

Participação do telespectador

Intervalo comercial do programa

Ida de MB ao Roda Viva

Os sorrisos de MB no programa

Agradecimentos do programa

28 anos do programa Roda Viva

Liberdade garantida do programa

Supertópico

“Sociedade

brasileira”

“Política”

Lula

Derrota de Marta Suplicy na eleição

Bolsa Família (Exemplo 11)

Obrigações do governo com o povo

Importância do ensino superior

“Cor”

Perseguição ao negro no Brasil

Pensamento de negros e brancos

Diferenças culturais entre pretos e brancos

Convivência entre pretos e brancos na periferia (Exemplo 11)

Dívida do Brasil com o negro

Cotas raciais

“Movimentos sociais em SP”

Movimentos sociais em SP (Exemplo 2)

Movimento Capão Cidadão (Exemplo 2)

MST (Exemplo 2)

“Situação atual do Brasil”

Desonestidade da sociedade

Solução da sociedade pela lei

Responsabilidade de MB como exemplo

Classe média no Brasil

O exemplo de Cuba

Pensamento do brasileiro

Integração da classe média

Mudança inicial contra a desigualdade (Exemplo 9)

Males do comércio de álcool

Legalização da maconha (Exemplo 7)

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“Presídios”

Mensagem de MB nos presídios

Sabedoria encontrada nos presídios

Amigos presos de MB

Supertópico

“Periferia”

“Violência e poder”

Vida do criminoso

Entrada na criminalidade

Controle social na favela (Exemplo 5)

Papel da polícia na favela

Mudança dos criminosos na periferia

Organização do poder na favela (Exemplo 6)

Uso do termo traficante/comerciante (Exemplo 6)

Recriminação (ao traficante/comerciante)

“Habitação”

Investimento na periferia

Direito de sair da periferia

Lealdade à periferia

“Honestidade x

Desonestidade”

Presença da desonestidade

Dificuldade em falar de desonestidade (Exemplo 3)

Honestidade dos jovens na periferia (Exemplo 3)

“Igrejas Evangélicas”

Evangélicos na periferia

Contato de MB com a igreja evangélica

Combate dos evangélicos ao candomblé

Acertos dos evangélicos

“Projetos sociais na

periferia”

ONGs na periferia

CEU (Exemplo 8)

“Arte”

Papel da música na periferia

Ritmos ouvidos na periferia

Produção artística da periferia

Boné de MB

Supertópico

“Música”

“Rap”

Surgimento do rap

Discos dos Racionais MC's

Cobrança ao rapper

Espaço da poesia no rap

Unificação do Movimento hip hop no Brasil

Mudança do movimento hip hop no Brasil

Crescimento numérico do movimento hip hop

Ouvintes da classe média

Diferença entre rap americano e rap brasileiro

Discurso social no rap

Tratamento do rap à mulher

Papel do rap

“Racionais”

Começo do grupo no bairro

Os manos nos raps dos Racionais MC's

Traição nos raps dos Racionais MC's

“Sobrevivendo no inferno” e “Vida Loka”

Fórmula mágica da paz

Ações de orientação feitas pelo Racionais Mc's (Exemplo 5)

Mensagem passada pelo Racionais MC's

Significado da letra de MB sobre ele mesmo

Público dos shows de MB

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“Estilo Cachorro”

“12 de outubro”

Pirataria

“MB como músico”

Conselhos de MB (Exemplo 4)

Inveja

Selo musical de MB

Direcionamento artístico de MB aos rappers

Processo de composição de MB

A partir da listagem feita na tabela acima, observamos o desenvolvimento de 4

supertópicos ao longo do programa, abarcando os conteúdos que se referem: ao entrevistado

Mano Brown de modo mais centrado (nos tópicos “Trajetória”, “Família”, “Personalidade”,

“Mudanças”, “Gosto musical”, “Gosto literário”, “Entrevista de MB no Roda Viva”), à

Sociedade Brasileira em diferentes temas (a partir dos tópicos “Política”, “Cor”, “Movimentos

sociais em SP”, “Situação atual do Brasil” e “Presídios”), à Periferia (nos tópicos “Violência e

Poder”, “Habitação”, “Honestidade x Desonestidade”, “Igrejas Evangélicas”, “Projetos Sociais

na periferia”, ”Arte”) e à Música (nos tópicos “Rap”, “Racionais MC's” e “MB como músico”).

Se retomarmos a ideia, tratada de modo mais detalhado no capítulo 2 do presente

trabalho, acerca do interesse e da procura midiática por indivíduos representativos como Mano

Brown (agente de posição prestigiada no movimento hip hop do campo cultural da periferia),

será possível perceber a relação entre essa posição anterior de MB no campo e os tópicos

desenvolvidos ao longo da entrevista. Nesse sentido, interessa notar a presença dos diversos

subtópicos que compõem o quadro tópico “Periferia”, por exemplo. A nosso ver, esses tópicos

proporcionam o acesso dos entrevistadores e da audiência a informações de um campo social

bastante conhecido pelo rapper, no intuito de expor a realidade desse campo social (uma “outra”

realidade?) a partir da perspectiva de um agente interno legitimado. Além disso, os subtópicos

que estão subordinados aos tópicos “Mano Brown” e “Música” se relacionam, com maior ou

menor centração, às trajetórias pessoais e profissionais de MB enquanto músico e vocalista do

grupo Racionais MC's. Consideramos que os subtópicos subordinados aos tópicos “Mano

Brown e Música” são importantes para que a entrevista receba e transmita informações sobre o

rapper, agente alçado ao campo jornalístico nesse momento.

Os subtópicos que se subordinam ao tópico “Sociedade Brasileira”, a nosso ver,

também sinalizam informações importantes. Neles, são abarcados questionamentos feitos a MB

acerca de seu pensamento político ou sobre a questão racial no Brasil, bem como os

redirecionamentos tópicos feitos por MB que o fizeram tratar de temáticas outras. Além disso,

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compõem esse quadro tópico os subtópicos nos quais os entrevistadores questionam MB acerca

de soluções contra a desigualdade e de sua responsabilidade como exemplo.

Acreditamos que os tópicos desenvolvidos considerando o supertópico “Sociedade

Brasileira” dimensionam a posição e o poder simbólico de MB como agente representativo no

campo cultural da periferia e no hip hop, mas também como agente “outorgado” ao tratamento

de questões que extrapolem as temáticas desse campo e que envolvam outros campos, como o

político, por exemplo. Além disso, tendo em vista que o campo jornalístico per se pode consistir

em instância legitimadora (BOURDIEU, 1997 [1996]), a presença de MB num programa de

entrevistas como o Roda Viva para ser ouvido sobre tais tópicos pode ser entendida como um

momento de sua prática linguística que reforça, pelo poder simbólico de que dispõe o

microcosmo jornalístico, sua legitimação como agente a ser consultado sobre essas temáticas.

Se levarmos em conta que a inserção num campo impacta os recursos discursivos

empregados nas tomadas de posição de seus agentes (HANKS, 2008), será possível observar

que os tópicos desenvolvidos no programa parecem convergir com as temáticas pressupostas

nos campos sociais aos quais se ligam os perfis profissionais dos sujeitos entrevistadores:

participam do programa jornalistas especializados em temas afeitos à segurança, à violência -

como os desenvolvidos nos subtópicos que compõem o tópico “Periferia” -, ao comportamento

e ao estilo - como os subtópicos presentes nos tópicos “Personalidade”, “Gosto

musical”, ”Gosto literário” -, à música - como os subtópicos presentes no supertópico “Música”

- e a presença de agentes ligados à periferia e aos movimentos sociais e aos direitos humanos.

As informações evocadas até o momento têm o intuito de situar a entrevista de

24/09/2007 na compreensão dos tópicos discutidos no programa e nesse contexto local do

campo jornalístico. Assim, foi possível notar que o os conteúdos expressos nos tópicos

discursivos instaurados pelos entrevistadores podem também representar atributos sobre a

realidade, seja sobre a realidade brasileira como um todo, seja sobre a realidade do campo da

produção cultural da periferia, por exemplo. Os tópicos identificados por nós como

desenvolvidos ao longo da entrevista concedida por MB de fato corroboram essa asserção. No

entanto, nesse momento os tópicos desenvolvidos ao longo do programa devem ser observados

com base na relação entre os diferentes sujeitos participantes e suas posições em campos sociais

específicos.

Na reconstrução contextual do programa Roda Viva, abordada no terceiro capítulo

do presente trabalho, aludimos ao momento histórico no qual MB está presente no programa.

Foi possível notar que, em 2007, durante o show do grupo Racionais MC’s na Praça da Sé, na

Virada Cultural de São Paulo, policiais militares e o público entraram em confronto. A

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repercussão dos conflitos envolvendo a polícia e os presentes no show da Virada Cultural

estendeu-se pela grande mídia televisiva, digital e impressa, com questões sobre a origem das

incitações à violência que teriam causado o conflito. Cerca de 4 meses após os conflitos

ocorridos durante o show da Virada Cultural na madrugada na Praça da Sé, MB concede ao

programa Roda Viva.

É preciso considerar que a repercussão desse conflito impacta em diversos sentidos

a interação que se estabelece ao longo da entrevista com o rapper:

i. primeiramente, na presença de MB no programa, na medida em que, num

período de grande repercussão midiática (negativa) em torno dos Racionais

MC’s, o rapper comparece a um dos mais tradicionais programas de entrevistas

no Brasil, transmitido ao vivo pela televisão para todo o país;

ii. na instauração e no desenvolvimento de alguns tópicos (sobretudo nos tópicos

“MB como músico”, “Rap” e “Racionais MC’s”, subordinados ao supertópico

“Música”, e no tópico “Personalidade de B”, subordinado ao supertópico “Mano

Brown”), nos quais são a atuação profissional do rapper e seu temperamento são

tratados como temas revestidos de polêmicas e controvérsias;

iii. nas frequentes negociações presentes no programa, na medida em que MB

parece reconhecer sua presença no Roda Viva enquanto um contexto delicado,

no qual sua participação importará tanto em termos da interação com os

entrevistadores quanto naquilo que representar para a audiência como um todo.

Além desses impactos, consideramos que o momento histórico no qual MB está

presente no programa Roda Viva também se relaciona com as atenuações presentes na

entrevista, tais como discutidas por Bentes, Ferreira-Silva e Mariano (2013). Segundo as

autoras, a participação do rapper foi marcada por uma série de recursos para explicitar de modo

mitigado suas discordâncias em relação às perspectivas dos entrevistadores. Soma-se a essas

circunstâncias relacionadas ao momento histórico da entrevista ainda a presença dos demais

integrantes dos Racionais MC’s e de outros agentes prestigiados do movimento hip hop ao

longo do programa, como ouvintes. De modo geral, podemos considerar que todas essas

circunstâncias criam um contexto local de participação do entrevistado no programa Roda Viva

bastante complexo e delicado.

Sua participação como entrevistado representa um ponto de contato entre o campo

jornalístico e o campo da produção cultural da periferia por meio do movimento hip hop,

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largamente estigmatizado e associado a contextos de violência por conta da repercussão

midiática negativa acerca do show de seus agentes mais prestigiados num evento recente. Nesse

sentido, a presença dos demais agentes do movimento hip hop acompanhando a gravação do

programa se alinha à configuração dessa solenidade e daquilo que pode vir a representar (em

termos dos prejuízos ou benefícios) esse momento histórico da entrevista do rapper Mano

Brown ao programa Roda Viva.

A partir daqui, cabe ao presente trabalho considerar como também as ações de

textualização engendradas nos expedientes metadiscursivos impactaram esse momento

histórico do campo jornalístico, ao ponto de se tornarem recursos importantes para as tomadas

de posição desse entrevistado no campo jornalístico.

4.1.2 Expedientes metadiscursivos presentes na fala de Mano Brown no programa

Roda Viva

Os momentos da entrevista concedida por MB ao programa Roda Viva que

apresentamos abaixo foram coletados com base em sua relação exemplar e representativa

perante a totalidade das amostras. Tomemos o primeiro caso, relativo à incidência dos

expedientes metadiscursivos já nos primeiros momentos de entrevista. Nesse momento, o

presidente da Fundação Padre Anchieta à época da entrevista e apresentador do programa Roda

Viva, Paulo Markun (PM), dirige a MB uma primeira pergunta, instaurando um tópico

subordinado ao supertópico “Mano Brown”, como mostra o trecho a seguir:

Exemplo 1- Expedientes metadiscursivos na fala de MB (Roda Viva)

(...)

PM boa noite Mano Brown

MB °boa noite°

PM numa/ da::s- das poucas entrevistas que você concedeu

e que: a gente (.) acompanhou\ aqui pela pesquisa que

foi feita para/ o ““Roda viva”” (.) você (.) se define

como uma espécie de esPElho (.) um espelho que retrata

(.) a realidade (.) .h nesses (.) eh quase vinte anos

em que você (.) tá na estrada como: (.) artista como

compositor (.) eh-o espelho Mano Brown eh:: registra

alguma coisa de melhor (.) ou a: realidade piorou de

lá pra cá?...

Mudança na

realidade

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MB .h ah eu diria diferente... diferente... eh:: .h se

eu dizer que melhorou pode parecer assi::m...

((balbucio)) melhorou um grão de areia entendeu?

PM °sei°

MB do-dentro do que a gente vê como:: do que precisa ser

melhorado então: eu me recuso a dizer que melhorou

(.) mas também não so::u cego de perceber mudanças...

mudou... mudar mudou... entendeu? (.) mudou pra::

agora:...

PM menos do que deveria ser neces[sário?]

MB [bem me]nos do que

deveria (.) bem menos do que poderia [°xx°]

(...)

A partir do Exemplo 1, vemos que a entrevista de MB ao programa Roda Viva se

inicia com a instauração por parte de PM do tópico "Mudança na realidade". É possível notar

que o tópico instaurado por PM mobiliza diretamente a representação social e posição de MB

no campo da produção cultural da periferia, quando o entrevistador inicia sua fala lembrando o

fato de MB ter se definido como um "espelho que retrata a realidade". Assim, vemos que a

pergunta sobre uma possível "mudança na realidade" envolve, por parte de MB, uma resposta

na qual condensará sua própria trajetória como sujeito representativo e protagonista do

movimento hip hop e do campo da produção cultural da periferia. A nosso ver, nesse momento

MB deve tratar de um tópico delicado, tendo em vista que a pergunta demanda um

posicionamento sobre "melhora" ou "piora" na realidade como um todo, de modo que sua

resposta o comprometeria com uma generalização bastante ampla.

Ao responder que a realidade se encontra "diferente", MB de fato evita um

comprometimento com as categorias usadas pelo entrevistador ("melhor" ou "pior") e, em

seguida, dá continuidade a sua resposta afirmando "se eu dizer que melhorou, pode parecer,

assim...". Consideramos que, ao utilizar a expressão "se eu dizer/disser que", MB faz uso de

estratégias metadiscursiva que introjeta comentários sobre um possível enunciado seu. Por meio

desse procedimento metadiscursivo, o rapper reflete sobre os impactos que poderiam advir de

seu comprometimento com um posicionamento mais estanque, de melhora ou piora.

Além disso, é preciso levar em conta as pistas de contextualização (GUMPERZ,

1982) produzidas pelo rapper nesse momento, uma vez que nosso entendimento acerca da

metadiscursividade envolve sua manifestação co-ocorrente em semioses verbais e não verbais,

ambas presentes na prática linguística dos sujeitos. Consideramos que, nesses momentos, a

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disposição corporal de MB corrobora nossa percepção de que já o primeiro tópico da entrevista,

instaurado por PM, pode ser compreendido como delicado, haja vista aquilo que representa na

dimensão simbólica da participação e Brown. Por conta disso, importa salientarmos dois gestos:

antes do início de sua resposta, a expressão facial com os lábios cerrados da Figura 9 (o que a

nosso ver indica sua autorreflexividade sobre um tópico delicado que deverá ser desenvolvido)

e, o direcionamento de seu olhar, na Figura 10, no momento de pronúncia do expediente

metadiscursivo “se eu dizer que melhorou, pode parecer assi::m”, quando, durante o

prolongamento da sílaba (indicado pela notação com os dois pontos, na marcação gráfica

“assi::m”) MB fixa seu olhar para cima (gesto que pode representar todo o planejamento

simultâneo de sua fala que está ocorrendo nesse momento).

Figura 9- Semioses não verbais na produção do metadiscurso (Roda Viva)

Figura 10- Semioses não verbais na produção do metadiscurso (Roda Viva)

Vemos, nesse caso, que os expedientes metadiscursivos produzidos nesses

momentos revelam que a enunciação (bem como a posição de MB) como um todo está jogo,

haja vista que MB faz uma glosa sobre uma possível atitude sua ao longo da interação, isto é, a

de "dizer que a realidade melhorou".

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Após a resposta de PM, vemos que MB procede a uma reformulação durante o

trecho "dentro do que a gente vê como do que precisa ser melhorado". Nesse momento, MB

substitui a formulação anterior (“dentro do que a gente vê como::”) pelo expediente "dentro do

que precisa ser melhorado" - o momento dessa reformulação é indicado pelo alongamento da

vogal final na palavra "como", quando podemos observar o prolongamento da vogal

simultaneamente a outra atitude que está sendo efetuada pelo entrevistado: olhar para cima.

Ainda no mesmo trecho, notamos o expediente metadiscursivo “eu me recuso a

dizer que melhorou". Nesse momento, o expediente tem a função de marcar um posicionamento

mais firme de MB a respeito do tópico "Mudança na realidade", designando uma atitude

declarativa que em sentido estrito não será tomada por MB, apesar de sua percepção sobre os

nuances que permeiam o posicionamento em jogo. O metadiscurso tem como glosa, então, a

introjeção dessa possibilidade de enunciação. Quando diz que "se recusa a dizer que melhorou",

MB reconhece e evidencia esse micro ato do discurso (ADAM, 2008) em questão (de "recusar-

se a dizer" algo), com o qual sua declaração corresponderia também a uma ação inscrita no

campo jornalístico. A produção desse expediente metadiscursivo indica a autorreflexividade de

MB e uma sucessiva "calibragem" dos sentidos que se dão nesse momento e que são

manifestadas na materialidade verbal por meio da explicitação de um posicionamento mais

decisivo nesse tópico.

Acreditamos que ambos os expedientes metadiscursivos presentes nesse exemplo

revelam o controle de MB sobre responsabilizações possíveis de serem a ele atribuídas em

função de sua participação nesse contexto do campo jornalístico. Nesse sentido, o emprego da

metadiscursividade reequilibra sua participação nessa interação e ajusta sua inscrição nesse

contexto do campo jornalístico de forma importante: pois sinaliza que, já na instauração do

primeiro tópico, o rapper decidiu não se comprometer com as categorizações postas por PM

sem, no entanto, deixar de cumprir seu papel discursivo de entrevistado.

Ato contínuo, a entrevista tem prosseguimento com a pergunta de PM acerca da

“Mudança no espaço do grupos” Racionais MC’s e com a exposição de MB sobre a contestação

sofrida pelo grupo mesmo em seu bairro de origem, Capão Redondo, em São Paulo. Ao final

da resposta da resposta de MB, o apresentador e mediador do programa cede o turno de fala à

entrevistadora MR (Maria Rita Kehl), para sua instauração sobre os tópicos que envolvem

“Movimentos sociais em SP”. Tomemos o seguinte excerto:

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Exemplo 2- Expedientes metadiscursivos na fala de MB (Roda Viva)

PM Maria Rita?

MR ºeh- eu queria saber sobre já que você pergunta° de-

eh o Paulo Markun perguntou de melhorias>... o que

que você/ acha de movimentos\ sociais (.) que surgiram

também/ nesse tempo (.) que os Racionais tão aí na

estrada\... tem um movimento lá no Capão (.) quer

dizer não é no Capão é em São Paulo .h mas que é muito

expressivo no Capão (.) que é o MTST eh movimento dos

trabalhadores sem teto [...] eu gostaria de saber sua

opinião sobre: esses dois movimentos sociais se você

é otimista (.) com (.) a: (.) presença deles no Brasil

ou não...

Movimentos

sociais em SP

MB sim então... eh: (.) junto com esses eh:-o:

((balbucio)) vou dizer os que eu acompanho mais certo?

eh:: tem alguns movimentos que são hoje: sã::o

organizados dentro do Capão (.) que eu acompanho

alguns de perto... esses eu considero como mudança

reAL tipo tem o Capão Cidadão [...] eh:-o que eu

acompanho de perto...

Movimento

Capão Cidadão

os outras (.) organizações talvez eu acompanhe de longe...

MR ((sorrindo)) e de lon:ge que que cê acha do MST? (.)

[perguntando de cara]

MB [o que eu acom]panho de longe... acompanho que tem um

cara preso (.) certo? lutando por uma causa que não é

só dele (.) que é de milhões (.) e ele vai-pelo que

eu to vendo vai pagar sozinho é isso?...

MR ((balcucio)) num sei (.) acho que não ((rindo)) [tem

muita gente presa]

MB

[que tem um] cara preso lutando por uma causa que é

de muitos... né? eu acho que::... que é: José Rainha

é isso?

MR isso

MB eu até eu-tenho que dizer que eu sou um cara que eu

leio pouco mêmo... sou mal informado sobre muitas

coisa (.) mas... as coisa que me interessam (.) eu me

informo... en[tendeu?]

MST

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No trecho acima, é possível notar como incidem os expedientes metadiscursivos

nas construções de sentido que se elaboram conjuntamente ao longo da interação com MB no

programa Roda Viva. Primeiramente, é preciso considerar o impacto da organização

cenográfica do programa, abordado por nós anteriormente, na configuração da interação que se

estabelece: no momento em que um segundo entrevistador instaura um novo tópico no

programa, o entrevistado MB deve se reposicionar para acompanhar o turno de fala de MR,

movimentando-se com a cadeira que ocupa para alinhar sua postura corporal diante da

entrevistadora. Assim, MB, cuja postura se encontra frente a PM (posição E7), alinha-se até

que consiga encontrar a posição na bancada ocupada por MR (E2), cuja fala já estava em

andamento, como mostra a Figura 11:

Figura 11- Semioses não verbais na produção do metadiscurso (Roda Viva)

É preciso considerar que essa movimentação do entrevistado ao longo da interação

ocorre constantemente, sendo de fato atinente ao papel de um convidado e à organização

cenográfica no programa Roda Viva. Consideramos que essa dimensão contextual deve ser

evocada por corresponder a uma semiose que se associa a outras dimensões contextuais da

entrevista concedida pelo rapper. Assim, toda a movimentação do convidado no programa cria

disposições corporais e proxêmicas que sugeririam uma participação arredia para o

entrevistado, já que sempre deverá se reposicionar frente às interpelações (muitas vezes,

simultâneas) dos diversos entrevistadores. Nesse sentido, tendo em vista que os movimentos

corporais de MB se dão em reação ou resposta às ações dos entrevistadores, é possível

pensarmos em disposições subjacentes a contextos de ataque, por parte dos entrevistadores, e

defesa, por parte de entrevistado.

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Voltando-nos para os expedientes metadiscursivos produzidos nesse momento, é

possível notar sua presença já na instauração da pergunta feita por MR: assim, o expediente “já

que você pergunta – eh o Paulo Markun perguntou”. Esse segmento (que também representa

uma reformulação) tem como função permitir que MR se refira aos enunciados precedentes

para promover uma transição entre o tópico instaurado por PM (sobre “melhorias”) e aquele

que ela própria instaura nesse momento – por meio de uma ligação entre “melhorias” e

movimentos sociais surgidos ao longo da trajetória do grupo Racionais MC’s. Desse modo,

uma função desse expediente está ligada à continuidade e progressão tópica da entrevista por

meio de novas perguntas dos entrevistadores. Um segundo expediente metadiscursivo

produzido por MR ainda durante a instauração do tópico está presente em “quer dizer não é no

Capão e em São Paulo”. Nesse momento, o procedimento metadiscursivo está ligado a outra

função, a saber, introjetar, comentar e refazer a formulação do enunciado da própria MR, já que

o movimento social que será mencionado pela entrevistadora (MTST) atua não apenas no

Capão Redondo, mas sim em vários lugares da cidade de São Paulo.

A resposta de MB dá início a negociações entre a entrevistadora e o entrevistado

em torno do tópico instaurado. Observamos, com isso, o papel do expediente “vou dizer os que

eu acompanho mais”, quando o procedimento metadiscursivo de MB se volta para os conteúdos

tópicos em jogo e para seu papel na entrevista. Assim, ao anunciar que falará de movimentos

sociais específicos, MB sinaliza em que sentido sua atitude como entrevistado irá atender a

proposição de MR, redirecionando o conteúdo. Saliente-se que esse momento de produção do

metadiscurso também não ocorre sem que estejam presentes outras pistas de contextualização,

capazes de evidenciar a autorreflexividade que incide sobre a língua em níveis vários. Assim,

essa ocorrência do metadiscurso é acompanhada pela quebra do fluxo informacional da fala de

MB, expressa pelo balbucio produzido nesse momento, e pelo movimento corporal do rapper

ao direcionar seu olhar para baixo, ajeitar o boné59 usado por ele e sua posição no assento que

ocupa (Figura 12).

59 Cabe acrescentar que as disposições corporais de MB, no contexto do programa Roda Viva, também são

marcadas pela produção da periferia, tendo em vista que o boné usado pelo rapper nesse momento corresponde ao

artigo fabricado pela DRR, Defensores do Ritmo da Rua, posse conhecida pela produção de vestimentas ligadas

ao hip hop (em outros momentos da entrevista, MB é questionado sobe o uso do boné).

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Figura 12- Semioses não verbais na produção do metadiscurso (Roda Viva)

Contudo, é possível notar que o redirecionamento do tópico, expresso por MB por

meio do expediente metadiscursivo, não é acatado pela entrevistadora MR, que se vale da

complementação feita por MB sobre os movimentos sociais “que acompanha de longe” para

propor que o entrevistado trate especificamente do MST como movimento social. Nessa nova

tentativa de MR, observa-se a produção do expediente “perguntando de cara”, cujo

procedimento metadiscursivo está na introjeção de uma avaliação de sua atitude discursiva,

bastante direta (“de cara”) nesse momento.

Interessa notar que as respostas dadas por MB trazem novas características a sua

participação nesse contexto de entrevista. Isso porque, quando expõe as informações que possui

sobre o movimento social em questão, MB se vale de algumas expressões para marcar e checar

o cumprimento de seu papel discursivo perante aquilo solicitado pela entrevistadora. Nesses

momentos de checagem é que podemos notar a presença do expediente “ele vai – pelo que eu

tô vendo ele vai pagar sozinho”: a nosso ver, esse expediente metadiscursivo indica que a

formulação do rapper necessita ser ajustada, para marcar que a informação em jogo (“ele vai

pagar sozinho”) consiste numa opinião sua, e não num fato dado como certo. As semioses não

verbais co-ocorrentes às falas da entrevistadora e do rapper (Figura 13), nesse caso, revelam

tanto uma postura mais assertiva de MB (por meio de perguntas dirigidas à entrevistadora)

quanto expressões faciais (sorrisos) com as quais MR procurou atenuar sua pergunta.

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Figura 13- Semioses não verbais na produção do metadiscurso

Na continuidade da interação, as falas de MB ocasionam uma inversão do par

pergunta-resposta característico das entrevistas (FÁVERO et al., 2010), segundo o qual caberia

ao entrevistador a instauração de novos tópicos, por meio dos questionamentos, e ao

entrevistado o desenvolvimento desses conteúdos. Nesse sentido, podemos considerar que as

ações de textualização de MB (re)configuram o contexto de entrevista nesse momento. Quando

dirige seus questionamentos à MR, o rapper circunscreve a entrevistadora numa participação

em que ela própria deverá dar respostas. As semioses não verbais que identificamos nesse

momento (Figura 14) sugerem a posição pouco confortável na qual a entrevistadora se encontra

e, a nosso ver, exprimem sua hesitação (expressa também na transcrição, pelas marcações de

balbucio) em participar como aquela que deve responder ao entrevistado.

Figura 14- Semioses não verbais na produção do metadiscurso (Roda Viva)

Já no término da discussão desses subtópicos, MB apresenta uma informação sobre

o líder do movimento social MST (“é José Rainha, é isso?”) mais uma vez retornada à MR,

para que a entrevistadora possa checar a validade da informação e o cumprimento de seu papel

discursivo no desenvolvimento desse tópico. Diante do fato de que MR dá como certa a

informação de MB, o rapper responde finalizando o tópico por meio da fala iniciada com o

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expediente metadiscursivo “eu até tenho que dizer que eu sou um cara que...”. Nesse momento,

o procedimento metadiscursivo de MB evoca a própria situação de enunciação e seu

engajamento com as informações que estavam em jogo no desenvolvimento do tópico proposto

por MR. Ao colocar-se como alguém “que lê pouco”, MB expressa seu distanciamento perante

os conteúdos que envolvem especificamente o movimento social MST, acompanhado “de

longe” pelo rapper. Desse modo, as informações apresentadas pelo entrevistado nesse momento

funcionam também como ressalvas para que possa justificar como ocorreu o cumprimento de

seu papel discursivo nesse momento.

Para além das funções textuais-discursivas dos expedientes metadiscursivos

presentes nesse momento, interessa notar aquilo que significam esses recursos nas tomadas de

posição de MB já nos primeiros momentos de entrevista. Por meio do Exemplo 1, foi possível

notar como o metadiscurso (nas semioses verbais e não verbais nele presentes) colabora para

que MB possa regular os efeitos de sentido de seus enunciados nesse contexto complexo de sua

participação no campo jornalístico e, por meio desse segundo exemplo, podemos dizer que suas

ações de textualização auxiliam-no a firmar sua posição nessa entrevista como aquele que retém

um certo tipo de informação sobre os movimentos sociais em São Paulo, ainda que não seja

profundo conhecedor de certas atuações como as do MST.

É preciso ter em mente, na compreensão das tomadas de posição do rapper nesse

momento, também a estigmatização atinente a sua posição no campo da produção cultural da

periferia e no movimento hip hop, posição que, em algumas visões, faz com que esteja

associado de modo geral as demandas de grupos outros que se encontram numa trajetória de

reivindicações sociais. Assim, muitas vezes se supõe que a líderes prestigiados como Brown

não faltam informações e conhecimento sobre uma miríade de iniciativas que, na verdade,

podem não ser conhecidas “de perto” pelo rapper. Outro fator importante a ser levado em conta

no desenvolvimento desses tópicos no programa é a posição de MR no campo jornalístico, haja

vista o fato de que a trajetória profissional da entrevistadora está ligada ao trabalho com grupos

sociais diversos, dentre os quais, o MST. Desse modo, confirma-se a correlação entre os tópicos

desenvolvidos no programa e não apenas a trajetória do sujeito entrevistado, mas também

aqueles associados às trajetórias dos sujeitos entrevistadores.

Consideramos que os exemplos analisados até o momento nos permitiram tratar dos

expedientes metadiscursivos levando em conta: as diferentes semioses que co-ocorrem em sua

produção, o modo como emergem em situações de construção conjunta dos sentidos nessa

interação, algumas das diferentes instâncias da enunciação introjetadas por esses recursos, sua

relação com alguns dos tópicos desenvolvidos na entrevista. A partir daqui, passaremos a tratar

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de outros exemplos cuja importância e representatividade nas amostras do programa estão

ligadas aos tópicos nos quais foram utilizados e às diferentes funções textuais-discursivas que

desempenham. Tomemos, então, o exemplo abaixo:

Exemplo 3- Expedientes metadiscursivos na fala de MB (Roda Viva)

(...)

PLS é/ muito difícil falar prum garoto (.) pobre preto...

que vive na periferia (.) que ele tem que ser honesto?

(.) diante dasse-desse exemplo?... .h por que eu falo

isso? porque cê falou que é assim: (.) ele se espelha

em quem tá mais perto... .h agora o exemplo do

Brasil... se a gente for ver do modo geral... é muito

maior do que tá perto... tem muito ladrão no Brasil

todo... .h fica difícil você falar pruma criança (.)

sem pa:I (.) passa fome e tal (.) que ele tem que ser

honesto que ele não pode roubar?

Dificuldade em

falar de

honestidade

MB eu chego a dizer que eu nem considero eles desonestos

né? (.) dentro da realidade da arma-das armas que

eles têm pra lutar (.) e que eles aprenderam como

meio de sobrevivência eles são honesto... eu tenho

certeza que com os parceiro deles eles são honesto...

com a família deles eles são honesto... com os mano

que tá preso eles são honesto... tá ligado? eles são

honesto com quem tem-com quem é honesto com eles (.)

entendeu? onde tá a honestidade são valores/ né?...

(...)

Honestidade

dos jovens da

periferia

O trecho exibido no Exemplo 3 corresponde ao momento em que se desenvolvem

os subtópicos “Dificuldade em falar de honestidade” e “Honestidade dos jovens da periferia”.

Ambos são subtópicos que se subordinam ao tópico “Honestidade X desonestidade”, ligado ao

supertópico “Periferia”. Consideramos importante o tratamento desse excerto, haja vista que

ele exemplifica uma função geral dos expedientes metadiscursivos ao longo do supertópico

“Periferia” na entrevista: intensificar a força ilocucionária dos conteúdos topicalizados por MB

como resposta aos questionamentos dos entrevistadores.

Nesse momento da interação, o entrevistador Paulo Lins (PLS), ligado ao campo da

produção cultural literária da periferia, questiona MB acerca da dificuldade na transmissão,

pelas músicas dos Racionais MC's e por seu exemplo, de uma ideia de honestidade perante a

realidade que circunda os jovens da periferia. O questionamento de PLS, como podemos ver, é

baseado num contraste entre a honestidade pretendida por uma espécie de “mensagem” de MB

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e dos Racionais MC's e a presença de exemplos “desonestos” aos jovens da periferia. No

entanto, é possível notar que a resposta de MB não atende diretamente ao tópico proposto por

PLS, no sentido de que não se volta para afirmar ou negar a “dificuldade” em falar sobre

honestidade aos jovens, mas sim para expor sua perspectiva em relação ao pressuposto presente

no questionamento do entrevistador nesse momento.

No intuito de marcar seu posicionamento acerca da dicotomia entre honestidade e

desonestidade dentre os jovens da periferia, MB emprega primeiramente o expediente “eu

chego a dizer que...”, assim, marcando o contraste de seu comentário em relação ao pressuposto

assumido por PLS – de certo modo, como aquele que vai adiante para enunciar algo para além

do esperado. Momentos depois, MB faz uso do expediente “eu tenho certeza que” como forma

de elencar situações nas quais está presente a honestidade nas ações dos jovens da periferia.

Podemos considerar ambos os expedientes como estratégias metadiscursivas que acentuam a

força ilocucionária dos dizeres de MB nesse momento, dado que a primeira expressão modaliza

uma informação possivelmente inesperada (a de que os jovens da periferia não são desonestos)

e a segunda expressão, por sua vez, marca o grau de certeza e de engajamento desse locutor

relativos à honestidade dos jovens da periferia com seus parceiros. Nesse momento, portanto, é

possível dizer que MB não atende diretamente ao tópico proposto por PLS, questiona o

pressuposto sob o qual se baseia a pergunta e esclarece seu posicionamento com o auxílio dos

expedientes metadiscursivos mencionados.

Para além de observações quanto aos efeitos mais locais, consideramos que ambas

as expressões, nesse caso, colaboram para que MB não se mostre comprometido com asserções

do entrevistador PLS, nesse momento, acerca das vivências dos jovens nas periferias. Saliente-

se o fato de que, durante essa passagem, MB parece por em cena suas ressalvas quanto aos

parâmetros de PLS para marcar a distinção, comumente utilizada para classificar os jovens das

periferias, entre atitudes de honestidade e de delinquência (Cf. SOUZA, 2009). Nesse sentido,

a resposta de MB marcaria uma perspectiva diferente do apresentado por PLS nesse contexto

do campo jornalístico, visto que demonstra uma complexidade outra para lidar com a distinção

entre honestidade e desonestidade (“onde tá a honestidade são valores, né?”).

Interessa notar as diferentes perspectivas acerca dessa questão apresentadas por MB

e por PLS. Dentre os entrevistadores que compuseram a bancada do programa Roda Viva nessa

entrevista, podemos dizer que é PLS o mais ligado às vivências da periferia (e, assim como MB,

ao campo de produção cultural da periferia, embora por meio da literatura) e, por conseguinte,

àquilo que se poderia dizer em termos da honestidade ou desonestidade dos jovens nesses

espaços sociais. No entanto, as diferentes perspectivas expostas por MB e PLS nesse momento

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sustentam que, ao menos nesse caso, não se comprova uma pressuposição de que as

discordâncias ocorridas na entrevista se dariam apenas nas interações entre o entrevistado e

entrevistadores cujas trajetórias e posições fossem mais profundamente distintas das suas.

Uma outra característica parece marcar o emprego dos expedientes metadiscursivos

presentes nas falas do entrevistado. Para compreendê-la, tomaremos como base o exemplo

adiante:

Exemplo 4- Expedientes metadiscursivos na fala de MB (Roda Viva)

(...)

RL [e: qual a mudan]ça do Mano Brown que no começo da

carreira cantava:: raps que/ falavam de amo:r que

falavam dos próprios bailes (...) como é que é isso?

essa mudança

Mudança nos

raps de MB

MB é °isso aí:°... .h bom eh-a gente chama eh:: da onde

a gente chama-da onde a gente vem a gente chama de

oreiada... oreiada é quando a gente dá risada dá uma-

conselho né? (.) espécie/ de conselho não tem outra

palavra a não ser\ isso (.) oreiada é conselho é

tipo como se fosse assim:... conversando com um

parceiro seu (.) dando uma oreiada... dando uma: uma

dura (.) vamos dizer assim uma: (.) uma: (.) uma idéia

(.) mais séria (.) [na vida mesmo]

PM

[e essa dura] emplaca?

MB ahn?

PM cê acha que essa DUra-essas duras emplacam? (.) [elas

fazem a cabeça?]

MB

[sim em (todo lugar)] é eu costumo::... receber né?

((sorrindo))

(...)

Conselhos de

MB

O excerto acima corresponde ao desenvolvimento do subtópico “Conselhos de

MB”, subordinado ao tópico “MB como músico” e ao supertópico “Música”. Nele, MB

redireciona o tópico proposto por RL, ao responder por meio de uma explicação em que se volta

de modo mais explicativo ao significado do termo “oreiada”. Primeiramente, o entrevistado

especifica que a variante utilizada para nomear a expressão subsequente está relacionada a um

registro específico desempenhado por ele, quando afirma “da onde a gente chama-da onde a

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gente vem a gente chama de oreiada”. Nesse caso, o procedimento metadiscursivo se refere a

introjetar e ressaltar propriedades do signo linguístico na própria enunciação.

Além disso, é possível notar a presença de expedientes metadiscursivos que

regulam o sentido dessa expressão, como em “uma espécie de conselho”, “não tem outra

palavra a não ser isso”, “é tipo como se fosse” e “vamos dizer assim”. De modo geral, esses

expedientes operam como articuladores metaenunciativos (KOCH, 2004), inserindo a

enunciação de MB (e suas escolhas lexicais) em seu próprio enunciado e avaliando essas

escolhas em termos de sua eficácia comunicativa. É possível notar, ainda, a presença de um

expediente metadiscursivo na fala do entrevistador PM, correspondente à paráfrase saneadora

“cê acha que essa dura- essas duras emplacam? elas fazem a cabeça?” – tal procedimento

metadiscursivo pode estar relacionado, a nosso ver, com a dinâmica de turnos da entrevista uma

vez que, com a sobreposição do turno de fala de PM à resposta de MB, foi preciso que o

entrevistador reformulasse sua pergunta, diante do fato de que MB não a havia compreendido

(como expressa o marcador discursivo“ahn?” utilizado pelo entrevistado).

A observação de uma outra função para os expedientes metadiscursivos presentes

na fala de MB ao longo da entrevista ocorre quando tomamos os tópicos desenvolvidos abaixo.

Nesse caso, o entrevistador RL tratava das “Ações de orientação feitas pelo Racionais MC's”,

antes que os participantes tivessem dado início ao tópico “Controle social na favela”

(subordinado ao tópico “Violência e poder”):

Exemplo 5- Expedientes metadiscursivos na fala de MB (Roda Viva)

(...)

RL independente das letras né?... das suas músicas/ de

orientação que mais o teu grupo faz... pra poder

orientar... pra poder abrir a cabeça das pessoas né?

(.) que tão da-dessa juventude toda que tá aí com

droga em TUdo quanto é esquina... com violência em

tudo quanto é esquina... que mais cês fazem?...

independente das letras e dos sho-da mensagem que

vocês passam?

Ações de

orientação

feitas pelo

Racionais Mc's

MB .h eu vou te falar um negócio cabuloso agora... por

incrível que pareça... o/ lugar onde tem menos

violência hoje é na favela... entendeu? onde tem menos

violência hoje é numa favela (.) você vai ver

violência no asfalto dentro duma favela tem controle

(.)

RL de quem? do traficante?

Controle social

na favela

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MB não... da população (.) da opinião da maioria... e da

justiça

MR [e a violência da polícia (Mano)?]

MB [e o cer]to (.) o certo tem que

prevalecer

MR [e a violên]cia da polícia?

MB [não interessa que]...((vira-se para MR)) ºnão

entendi°

(...)

No Exemplo 5, podemos notar que a instauração da pergunta feita por RL

(entrevistador ligado ao jornalismo de segurança e ao jornalismo policial) se refere, de modo

semelhante a conteúdos que, ao menos anteriormente, já foram categorizados pelo entrevistado

MB como modos de cobrança aos rappers e até mesmo como um meio de “punição” aos que

expõem a desigualdade social. A pergunta sobre alguma outra atitude feita pelos Racionais

MC's (“que mais cês fazem? independente das letras...”) e pelo próprio MB, nesse sentido,

consiste num tópico visto como “ameaçador”. Interessa notar que, nesse caso, a resposta de MB

se inicia com um procedimento metadiscursivo no qual o entrevistado faz uma glosa sobre o

enunciado que ele próprio desenvolverá (“vou te falar um negócio cabuloso agora”) e um

comentário sobre o impacto das informações que estão por vir (“um negócio cabuloso”) - assim

como o que ocorre no uso do expediente “por incrível que pareça”, que sinaliza um conteúdo

algo inesperado. As informações subsequentes elencadas por MB são organizadas no sentido

de questionar um dos pressupostos presentes nas asserções do entrevistador RL, mais

especificamente, a ideia de que a juventude se depara com “violência em tudo quanto é

esquina”.

A presença do expediente metadiscursivo, nesse caso, parece estar ligada à própria

natureza dos tópicos em questão e à função de exprimir a deliberação de MB a respeito desses

tópicos, seja encerrando um tópico indesejado, seja redirecionando um tópico potencialmente

ameaçador (“Ações de orientação feitas pelos Racionais MC's”) – ou “sabidamente

ameaçador”, tendo em vista sua reflexão prévia sobre as ações discursivas que geralmente

surgem em entrevistas das quais participa no campo jornalístico.

Ainda no tocante a esse exemplo, cabe considerarmos a posição de RL na

instauração de tópicos que mobilizem informações sobre a violência, a criminalidade, e o papel

ou a responsabilidade de MB perante a presença desses problemas na periferia. Na reconstrução

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contextual do programa Roda Viva, comentamos sobre a atuação de RL como agente do campo

jornalístico ligado ao chamado “jornalismo de segurança” ou “jornalismo policial”. Nesse

sentido, a trajetória profissional desse agente se ligaria mais estreitamente a um habitus

profissional (BARROS FILHO, 2002), na medida em que seu trabalho se dá com base em

pautas específicas produzidas por ele no campo jornalístico, assim como considera Bourdieu

(1997 [1996]).

É preciso ressaltar que, a partir desse momento, a interação no programa se volta

para uma maior centração nos tópicos subordinados ao quadro tópico “Violência e poder”,

especialmente para tratar dessas temáticas na periferia. Consideramos, com isso, ser necessária

uma maior compreensão da função dos expedientes metadiscursivos durante o desenvolvimento

desses tópicos. Para isso, importa observar também o excerto a seguir:

Exemplo 6- Expedientes metadiscursivos na fala de MB (Roda Viva)

(...)

MB por exemplo... quem dá segurança pros comerciantes da

favela?... quem:: quem protege a favela?... a polícia

protege?... são perguntas né? perguntas já outras né?

tô perguntando (.) quem protege?

RL não sei... [SI]

PM você acha então você vê a coisa como se fosse uma

guerra

MB não vejo como guerra... eu vejo como uma situação...

[tá]

MR mas o [tra]ficante protege de quem? protege dele

mesmo?

MB não

MR [(porque você fala muito nas suas letras)]

MB [ele protege do sistema ele prote-ele já é o]-o-o-o-

o...

Organização do

poder na favela

o-o –- entre aspas – cê chama de “traficante” (x) chama de

“comerciante”... o cara que comercializa cocaí:na

vamos\ dizer assim já abertamente ou /a maco:nha...

ou qualquer tipo de droga é um comerciante... como

qualquer outro

MR sim [mas eles tem um sistema de impo::r]

Uso dos termos

traficante ou

comerciante

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RL [que leva que leva as pessoas] pra cadeia e

não pro cemitério né?

(...)

No excerto acima, é possível notar a finalização do subtópico “Organização do

poder na favela” e o início do subtópico “Uso dos termos traficante ou comerciante”, do qual

participam três entrevistadores (PM, MR, RL) e o entrevistado. O trecho tem início com o

expediente metadiscursivo “por exemplo”, a partir do qual MB indica a composição textual de

seu enunciado subsequente: uma série de questionamentos elaborados no intuito de gerar a

reflexão dos demais participantes sobre o papel desempenhado por alguns agentes para a

organização do poder na periferia. Em seguida, a pergunta feita por PM sobre a questão da

criminalidade na periferia – retomada a partir da expressão referencial “a coisa” - é respondida

de forma direta por MB, quando o entrevistado explicita seu desacordo (“não vejo como

guerra... vejo como uma situação”).

Destaca-se, aqui, o desacordo de MB sobre as expressões referenciais empregadas

pelos entrevistadores. Assim, o referente “uma guerra”, proposto por PM para demonstrar ou

sumarizar a visão de MB sobre a questão da criminalidade, é explicitamente negado pelo

entrevistado. MB, então, recategoriza empregando a descrição definida “uma situação”.

Após esse primeiro momento, a pergunta de MR se volta especificamente para o

papel do traficante na organização e na segurança da periferia (“o traficante protege de quem?

protege dele mesmo?”) e contém uma justificativa para suas considerações nesse subtópico tido

como “ameaçador”, quando a entrevistadora alude a uma fala anterior do rapper (“porque você

fala muito nas suas letras”).

Saliente-se, em seguida, a presença do expediente metadiscursivo “entre aspas”

(formulado por MB) que, a nosso ver, marca o início de sua reflexão sobre as expressões

referenciais usadas, indicando um distanciamento para promover uma glosa sobre o enunciado

subsequente. Ato contínuo, observa-se que o entrevistado traz à tona a negociação dos

referentes que categorizam os agentes envolvidos nessas ações de poder na periferia, quando

responde no intuito de propor a utilização do termo “comerciante” para nomear o objeto-de-

discurso antes tratado como “traficante”. Vê-se, portanto, que nesse caso o expediente

metadiscursivo tem como glosa a própria categorização dos referentes presentes nesse

subtópico (“cê chama de traficante... chama de comerciante”). Um terceiro expediente

metadiscursivo está presente no trecho “vamos dizer assim já abertamente”, por meio do qual

MB reflete sobre a enunciação do trecho “o cara que comercializa cocaína”: nesse caso, o

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segmento “vamos dizer assim já abertamente” age como articulador para evidenciar que, na

autorreflexão de MB, o enunciado “o cara que comercializa cocaína” corresponde a um modo

de dizer aquilo que pensa “abertamente”, ou seja, segundo aquilo que corresponde mais

fielmente a sua atividade axiológica.

De modo geral, a partir do Exemplo 6 podemos compreender que recorrer à

metadiscursividade pode significar a MB um modo de expor mais claramente (e de regular) as

diferentes perspectivas subjacentes ao problema da categorização referencial nos tópicos em

questão. Por conseguinte, esses expedientes metaenunciativos agem para negociar a

representação dos sujeitos atuantes nas posições de poder no cotidiano da periferia. Tal

posicionamento de MB acerca desses sujeitos é intensamente questionado por parte dos

entrevistadores. Com isso, parece estabelecer-se mais uma importante diferença das

perspectivas presentes nesse contexto do campo jornalístico, além do fato de que se reproduz,

por parte dos entrevistadores nesses momentos, a estigmatização de MB como agente envolto

em polêmicas no que concerne à legalidade de algumas de suas ações.

Os tópicos subordinados ao quadro tópico “Violência e poder” são, em seguida,

redirecionados, uma vez que o entrevistador JN, percebendo as diferentes perspectivas em

relação à legalidade da atuação dos sujeitos “comerciantes” ou “traficantes”, instaura o tópico

“Legalização da maconha”, dando início a momentos da entrevista nos quais se tratará de

tópicos subordinados ao supertópico “Sociedade”. Quanto à presença do metadiscurso nesse

supertópico, tomemos o seguinte exemplo:

Exemplo 7- Expedientes metadiscursivos na fala de MB (Roda Viva)

(...)

JN cê é a favor da legalização?

MB ((suspiro)) se é pra negar todas as droga (.) nega

todas... entendeu? [pra acabar a hipocrisia]

JN [°você° é a favor de legalizar]

MB &não não sou a favor de nada... vamos ser-dizer assim

eu sou a favor que todo mundo vivesse bem... não

precisasse de droga nenhuma... pra entender nada que

você conseguisse entender o mundo que cê vive sem

usar nada... eu sou a favor disso... mas quando você

passa a não entender o mundo que você vive você

reCORre a alguma coisa... quem sou eu pra dizer que

ele é isso ele é aquilo ele é b ele é c ele é

traficante ele é usuário... eu não sou ninguém meu...

Legalização da

maconha

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sã:o situações... você vive numa situação hoje que cê

tá bem (.) cê é jornalista cê opina cê fa-forma

opiniã:o... amanhã\ cê não sabe mano... a vida é

assim... ((sorrindo)) a gente aprendeu isso... a vida

é assim... você tá (.) legal... amanhã cê não sabe...

cê pode estar no beco dos tristes lá... tá ligado? cê

pode estar lá...

(...)

O excerto selecionado representa momentos do desenvolvimento do subtópico

“Legalização da Maconha”. Após diversos momentos em que MB expôs seu pensamento acerca

da organização do poder e do papel da venda de drogas ilícitas na periferia, JN (entrevistador,

como vimos, cuja trajetória esteve ligada ao jornalismo de segurança e jornalismo policial)

questiona MB acerca de seu posicionamento frente à “Legalização da maconha”. Nesse

momento, notamos que MB se vale da negação da formulação utilizada por JN (“não sou a

favor de nada”) para, só então, marcar seu posicionamento. Interessa notar a presença do

expediente metadiscursivo “vamos dizer assim”, introjetando a instância da enunciação nessa

fala de MB.

É preciso considerar que o uso desse expediente revela o controle pari passu de MB

sobre a produção de sentido, já que, por meio da expressão “vamos dizer assim”, o entrevistado

reorienta tanto a significação do que disse antes (mudando um pouco sua opinião de “não sou

a favor de nada” para “sou a favor de que todo mundo vivesse bem...”) como também a

interação com o seu interlocutor, já que ao amenizar a negação direta do pressuposto da

pergunta feita (a possibilidade de ser a favor da legalização), MB coloca-se não apenas como

autocomentador de suas palavras, mas também como um sujeito que se preocupa com o seu

interlocutor ao precisar melhor o que quer dizer nesse momento (KOCH, 2004). Nos momentos

seguintes, podemos notar a utilização de um expediente modalizador que, à primeira vista,

poderia sugerir a ideia de que MB apenas minimiza e atenua seus dizeres (“quem sou eu para

dizer...?”). No entanto, essa estratégia faz mais do que isso, já que ao mesmo tempo em que

atenua a autoridade do locutor em relação ao tópico, também possibilita a sustentação de uma

posição central de MB nesse momento, favorável à ideia de que se prescinda do uso de

substâncias ilícitas em sentido amplo ou então, uma vez que esse consumo existe, que não se

julgue essa conduta sob certo ponto de vista.

Assim como em outros momentos de tópicos relacionados à “Situação atual do

Brasil”, podemos notar que MB busca se posicionar de modo mais direto acerca dos

questionamentos feitos pelos entrevistadores – pois estes, muitas vezes, carregam pressupostos

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e acarretamentos capazes de ligar MB a uma representação e posição por ele indesejadas, seja

perante os participantes da interação em andamento, seja perante a audiência como um todo.

Cabe ressaltar que a negação de MB especificamente acerca de um posicionamento favorável

à “Legalização da maconha” parece se relacionar com críticas feitas ao grupo Racionais MC's,

e a outros grupos musicais, sobre canções suas cujas letras são vistas como apologia às drogas.

Nesse sentido, podemos compreender a resposta de MB como uma adequação a esse contexto

de crítica, procurando um intermédio entre os posicionamentos controversos quanto a essa

questão.

Apesar de responder diretamente ao tópico instaurado por JN, podemos dizer que,

no Exemplo 7, MB procura se afastar de uma discussão que o comprometa com um

posicionamento definido em relação ao tópico “Legalização da maconha” e, para isso, não

apenas se vale da negação para rechaçar os sentidos possíveis das asserções iniciais de JN (“ser

a favor da legalização”) como também rechaça a própria ideia de que alguém em sua posição

deva ou possa opinar sobre o assunto, por meio de expediente um metadiscursivo (“quem sou

eu para dizer isso?”). Com isso, o procedimento metadiscursivo permite-lhe participar desse

contexto jornalístico tentando não se comprometer com perspectivas vistas por ele mesmo como

indesejadas e, simultaneamente, expondo sua própria perspectiva sobre os conteúdos em jogo.

Dando continuidade à observação das manifestações da metadiscursividade no

programa, tomemos agora um exemplo importante e representativo das amostras do programa

Roda Viva, uma vez que representa vários expedientes metadiscursivos produzidos ao longo do

quadro tópico “Projetos sociais na periferia”:

Exemplo 8- Expedientes metadiscursivos na fala de MB (Roda Viva)

(...)

RL mas aí fechou o CEU lá?

MB ahn?

RL fechou?

MB nã::o.. meu filho é usuário do CEU... meu filho vai

no CEU... meus sobrinhos vão no CEU...

PLS (como é que lá tá hoje?)

MB meus priminho vão no CEU

PLS mas o CEU tava co-hoje ele funciona do jeito que-

quando começou? ou tá

CEU

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MB na verdade... os-o jeito que teria que funcionar

realmente eu não sei como que teria que ser... cem

por cento mas o que eu vi lá... acho que só de você

estar lá dentro convivendo com aquelas coisa tendo

aquele: aquele universo pra você viver ali dentro

explorar aquilo ali... já é uma glória... agora se

vai dar resultado daqui vinte ano nós vamos ver... se

vai sair um [Bethoven]

PM [quan]

MB lá do Capão

(...)

O excerto acima diz respeito ao desenvolvimento do subtópico “CEU”, subordinado

ao tópico “Projetos sociais da periferia” e ao supertópico “Periferia”.

Nesse momento, RL produz uma paráfrase saneadora (KOCH, 2004) ao refazer a

pergunta que instaura o subtópico “CEU”: assim, o entrevistador substitui o segmento “mas aí

fechou o CEU lá?” por uma forma condensada da pergunta “fechou?”. PLS dá continuidade ao

subtópico quando questiona MB acerca de seus conhecimentos sobre o “Centro Educacional

Unificado” do Capão Redondo, unidade educacional, esportiva e cultural dentre as pertencentes

ao projeto administrado pela Secretaria Municipal de Educação de São Paulo. É possível dizer

que PLS tenta estabelecer uma relação mais estreita entre MB e um projeto social da periferia,

ao perguntar sobre funcionamento vigente na instituição (“hoje ele funciona do jeito que

quando começou?”).

MB responde ao tópico, dessa vez, por meio de uma ressalva ao tratamento dessa

questão, pois se coloca como pouco conhecedor dos conteúdos necessários para comentar sobre

o funcionamento do projeto social (“na verdade... o jeito que teria que funcionar realmente eu

não sei...”). O procedimento metadiscursivo no uso dessa modalização destacada por nós diz

respeito também ao recurso de topicalização operado por Mano Brown em relação à fala de

PLS, tendo em vista que, ao produzir o segmento “o jeito que teria que funcionar”, MB introjeta

o enunciado de PLS em sua fala reconhecendo-o como um momento anterior de instanciação

da composição textual e da proposição de um novo tópico.

Importa ressaltar que, nesse caso, a conjugação verbal empregada ao mencionar não

saber “o jeito que teria que funcionar”, indica a opção do rapper por negar um conteúdo mais

propositivo a esse tópico, isto é, por demonstrar sua impossibilidade em propor melhoras e

soluções – algo diferente daquilo que havia sido instaurado por PLS ao perguntar sobre a

situação vigente no projeto social.

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Após essa passagem na qual emprega o expediente metadiscursivo, interessa notar

que MB marca seu envolvimento com o projeto social (“mas o que eu vi lá.”) e esboça sua

resposta a partir da ideia de que vale a pena estar incluído num projeto como CEU sob diversos

aspectos, ainda que MB não possa afirmar com certeza como se dá o funcionamento dessa

instituição.

O que parece ser colocado em xeque por MB nesse momento se refere a uma

evocação, feita por PLS, segundo a qual MB, agente prestigiado no campo da produção cultural

da periferia e no movimento hip hop, possuiria não apenas o conhecimento sobre o

funcionamento de um projeto social como o CEU (ou sobre como haveria de funcionar o

projeto), mas também os meios necessários para um melhor desempenho de iniciativas que

beneficiem a periferia. Para compreender a manifestação da metadiscursividade nesse caso,

buscaremos, adiante, ir além dessa situação comunicativa de interação em entrevista,

enxergando-a como um contexto jornalístico no qual certas perguntas mobilizam informações

sobre as quais MB tem um posicionamento prévio – por vezes formado em função de

participações anteriores em entrevistas, a partir das quais teve de realizar procedimentos de

proteção de sua face. Esse tipo de função dos expedientes metadiscursivos usados por MB pode

ser observado em outro exemplo, retirado de momentos posteriores da entrevista:

Exemplo 9- Expedientes metadiscursivos na fala de MB (Roda Viva)

(...)

PLS pra melhorar o Brasil... pra gente conseguir melhorar

assa-assa-essa desigualda:de... esse a-a gente

deveria começar por onde? qual seria o primeiro

ponto... que quando você pensa “não isso aqui tá

mui... deveria mudar a gente deveria começar por

aqui” qual seria a primeira atitude?

MB eu não tô nesse grau de sabedoria... pra saber...

como é que a gente vai resolver entendeu? eu tô no-

eu tô no olho do furacão tá ligado? do problema...

na verdade eu sou-eu faço parte do problema né?...

eu tô igual você porque eu tô procu-procurando uma

solução procurando o que-qual que é a melhor

solução... pra mim... e pros que tão perto de mim...

aí vo-vai ampliando né?... aí os que tão perto os que

tão-vai ficando mais longe que você vai tentando

ampliar... as coisa que você sonha pra você... e fazer

as pessoa sonhar junto com você... tá ligado? mas

aí... você tem aquele

(...)

Mudança inicial

contra a

desigualdade

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O excerto acima se refere ao desenvolvimento do subtópico “Mudança inicial

contra a desigualdade”, subordinado ao tópico “Situação atual do Brasil” e ao supertópico

“Sociedade”. É possível notar que PLS questiona MB sobre ideias suas para por fim à

desigualdade. Assim como ocorreu no exemplo anterior, MB responde atenuando a força

ilocucionária de seus dizeres, como alguém que não reúne as capacidades necessárias para

propor soluções a essa desigualdade e que não está “no grau de sabedoria” exigido ao

tratamento da questão. Desse modo, o segmento “eu não tô nesse grau de sabedoria” tem a

função de deliberar sobre o tópico proposto pelo entrevistado, correspondendo à justificativa

para a recusa de MB em propor soluções.

Nesse momento, MB se volta para sua própria enunciação, por meio do expediente

metadiscurivo, para propor uma outra relação sua perante o problema da desigualdade social:

se antes afirmou estar “no olho do furacão”, do problema, MB se coloca como parte do

problema, na passagem “na verdade eu sou-eu faço parte do problema”. Assim, a ressalva

produzida por meio do expediente metadiscursivo “na verdade” reflete, a nível textual, uma

nova orientação da significação, permite a introdução da justificativa para o seu não saber sobre

como resolver a situação de desigualdade no Brasil. Numa dimensão interacional, o expediente

metadiscursivo também indicia também uma atenuação do não atendimento do tópico tal como

proposto por PLS.

No entanto, seus dizeres nesse momento podem ser relacionados também a uma

outra dimensão de construção de sentido. Se, por meio da ressalva presente no procedimento

metadiscursivo em questão, MB parece conferir a si mesmo uma posição de menor poder

simbólico perante o que foi expressado pelo entrevistador, uma abordagem relacional pode nos

mostrar outro nuance na compreensão de como esse recurso metadiscursivo está a serviço de

ações mais amplas e das tomadas de posição do rapper nesse contexto do campo jornalístico.

Se levarmos em conta nossa proposta de analisar a inserção de Mano Brown nesse

contexto do campo jornalístico a partir da situacionalidade de duas entrevistas e também em

função de uma sua inscrição no campo jornalístico, será possível compreender o expediente

metadiscursivo nesse exemplo acima como um modo não apenas de atenuação da força

ilocucionária das respostas de MB - sobre o funcionamento de CEU ou sobre ideias de ações

contra a desigualdade social -, mas também como uma estratégia para lidar com ações

discursivas por meio das quais os sujeitos entrevistadores (mesmo aqueles que se supõe serem

mais familiarizados com os problemas da periferia e de suas possibilidades de solução, como

PLS) atribuem a MB um papel extremado de reflexão e de resolução dos problemas ligados à

periferia.

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Momentos como esse facilitam a compreensão da complexidade que permeia a

inscrição de MB no campo jornalístico, pois a representatividade desse agente no campo da

produção cultural da periferia se reverte no estigma (GOFFMAN, 1988 [1963]) segundo o qual

teria também a responsabilidade de solução pelos problemas que denuncia. Ao longo da

entrevista com o rapper no programa Roda Viva, não foram escassos os momentos nos quais

se tratou dessas atribuições à posição de MB nas vivências da periferia, de sorte que poderíamos

tratar, talvez, de uma configuração mais comum na representação que esse contexto do campo

jornalístico faz sobre um agente da produção cultural (BOURDIEU, 1997 [1996]). Nesse

sentido, esses movimentos de atribuir certas tarefas à posição de um agente do campo da

produção cultural poderiam representar aquilo que Bourdieu (1997 [1996]) critica fortemente

no campo jornalístico: sua atuação incisiva sobre os campos de produção cultural e o modo

como cria realidades perante esses campos que podem ser entendidas como uma forma de

cerceá-los.

4.1.3 Expedientes metadiscursivos nas falas dos entrevistadores do programa Roda

Viva.

Até o momento, nossas análises estiveram voltadas para os expedientes metadiscursivos

utilizados por Mano Brown ao longo do programa Roda Viva. Para aprofundar a compreensão

das funções desempenhadas pelos expedientes metadiscursivos nas falas dos entrevistadores,

tomemos primeiramente o seguinte excerto, do qual participa a entrevistadora Maria Rita Kehl

(MR):

Exemplo 10- Expedientes metadiscursivos na fala dos entrevistadores (Roda Viva)

(...)

MR [então eu queria te perguntar]... quando cê falou que

não tem um discurso... fiquei meio confusa porque eu

acho que-a-a-tenho impressão como:: ouvinte que os

Racionais tem um discurso... não “discurso” de botar

regra pro mundo inteiro mas... quando você fala

“pensar... a gente como a gente”... ou o negro se

identificar com a sua cultura... queria que você

falasse um pouco de uma coisa que sempre achei muito

com-muito coerente... nas letras... .h que é a

cobrança de atitude... do negro que que é

isso?... °cobrança [de atitude°]

MB

[eu não cobro] atitude... mesmo porque eu não tenho

Cobrança de

atitude feita por

MB

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condições de cobrar nada... certo? eu sou um cara [que

sou cobrado]

MR

[mas que que cês] chamam de atitude?

(...)

No excerto acima, a entrevistadora MR desenvolve seu turno de fala para instaurar

o subtópico “Cobrança de atitude feita por MB”, subordinado ao tópico “Personalidade” e ao

supertópico “Mano Brown”. Podemos observar, nesse exemplo, a presença de expedientes

metadiscursivos. Acreditamos que os expedientes “eu acho que-a-a-tenho impressão” e “achei

muito com- coerente” relacionam-se com as operações de correção e reformulação presentes

num turno de fala mais prolongado, de modo que representam estratégias de construção do

sentido (KOCH, 2004) dos entrevistadores para ajustar seus dizeres e sua eficácia comunicativa.

Já os expedientes metadiscursivos “eu queria te perguntar...” e “queria que você

falasse um pouco...” evocam a enunciação característica do papel discursivo da entrevistadora

(“perguntar”) e do entrevistado (“falar um pouco”), embora sua função nos pareça, lato sensu,

modalizadora, posto que operam como prefaciadores (RISSO e JUBRAN, 1998) para o tópico

que está sendo instaurado nesse momento.

Interessa notar também a presença de outras expressões, como “eu acho que...” e

“uma coisa que sempre achei...”: ambas, a nosso ver, sinalizam o grau de envolvimento e de

certeza da entrevistadora sobre uma possível “cobrança de atitude feita por MB”. Acrescidas

da compreensão sobre os procedimentos metadiscursivos levados a cabo por MB nesse

momento, essas formas podem ser compreendidas como recursos por meio dos quais a

entrevistadora MR fundamenta seu conhecimento sobre a posição de MB como músico e agente

do campo da produção cultural da periferia e do movimento hip hop, bem como modaliza esse

conhecimento e sua demanda nessa interação.

Um outro exemplo, exibido a seguir, pode ser observado para caracterizarmos as

funções dos expedientes metadiscursivos presentes nas falas dos entrevistadores:

Exemplo 11- Expedientes metadiscursivos na fala dos entrevistadores (Roda Viva)

(...)

MB entendeu? cê pode viver lá dentro e não gostar... na

verdade periferia é isso... é mil pessoas e mil

universos diferente mil mente diferente...

Convivência

entre negros e

brancos na

periferia

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PL Brown [falando em]

MB [mil intelingência]

PL & falando em probreza em:: convívio social que cê tá

dizendo agora... tem uma entrevista tua de dois mil

e um aqui que tem uma-uma... uma:-uma:: fala sua o

seguinte “dar condição pras pessoas ganharem o seu

dinheiro o povo não quer ganhar nada de graça...

ninguém quer ser filho de assistência [social]

MB [isso]

PL &favelado tem orgulho...

(...)

Bolsa Família

O excerto acima representa a finalização, por parte de MB, do subtópico

“Convivência entre negros e brancos na periferia”. Nesse caso, cabe destacar o papel do

entrevistador PL (em cuja fala estiveram presentes um conjunto significativo de expedientes

metadiscursivos) que, ao perceber o encerramento do turno de fala do entrevistado, sobrepõe

sua fala a de MB para iniciar o turno com o qual pretende instaurar um novo tópico. O

entrevistador PL recorre, então, à utilização dos expedientes metaenunciativos “falando em

pobreza, em convívio social” e “que cê tá falando agora”, como duas referências à fala de MB

e, para promover uma transição do subtópico anterior para o subtópico “Bolsa família”, faz

referência a temas que – a seu ver – vinham sendo tratados pelo entrevistado (“pobreza” e

“convívio social”). Assim, podemos compreender que os expedientes metaenunciativos

empregados por PL produziram glosas que, por instanciar momentos da composição textual

anterior (RISSO e JUBRAN, 1998), auxiliam o entrevistador na transição entre os tópicos

desenvolvidos, dando continuidade à interação e, simultaneamente, prevenindo-o dos impactos

negativos resultantes de uma possível descontinuidade tópica.

Como último exemplo, vejamos o trecho no qual o apresentador-mediador PM

instaura o subtópico “Temperamento de MB”, pertencente aos momentos finais da entrevista

ao programa Roda Viva:

Exemplo 12- Expedientes metadiscursivos na fala dos entrevistadores (Roda Viva)

(...)

PM nosso tempo tá [acabando]

MB [então não pode] cobrar dele

Temperamento

de MB

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PM &e eu queria fazer uma última pergunta... já que...

((sorrindo)) cê disse que ninguém te provocou... eu

vou te provocar de leve aqui... a essa altura do

campeonato só de leve... eh::: quando eu era...

jovem... a onda era... o movimento de paz e amor...

festival de Woodstock rock pra todo mun:do... né?...

todo mundo numa boa... você é um cara paz e amor?

MB não...

PM você é um cara [de que tipo?]

MB [eu sonho com] paz e amor mas a vida

não é isso

(...)

Nesse excerto, podem ser observados dois expedientes metadiscursivos

empregados pelo entrevistador PM: “eu queria fazer uma última pergunta” e “eu vou te

provocar de leve aqui”. Ambas as ocorrências se referem à ação discursiva levada a cabo nesse

momento por PM, explicitando as propriedades axiológicas que o metadiscurso pode revelar

sobre os enunciados postos em cena. Os expedientes metadiscursivos usados por PM produzem

glosas que classificam o enunciado subsequente como “uma última pergunta” e também como

“uma provocação” do entrevistado ao entrevistador e, por conta disso, é possível dizer que

introjetam também aspectos da natureza da interação que está sendo finalizada.

É possível dizer que a pergunta feita por PM, última da entrevista concedida pelo

rapper ao programa Roda Viva, evoca mais uma vez as características de MB em sua posição

como agente prestigiado, representativo e estigmatizado. Quando tomamos a resposta “eu

sonho com paz e amor, mas a vida não é isso”, podemos compreender melhor a trajetória de

Mano Brown, na medida em que, mais uma vez, o rapper expõe o descompasso visto por ele

entre a realidade na qual se insere e a realidade que busca. O modo como sumariza sua condição,

nesse sentido, faz com que sua fala possa ser entendida como mais um momento de exposição

da profunda reflexividade que parece compor seu conjunto de disposições para agir, seja no

campo da produção cultural da periferia, seja no campo jornalístico.

4.1.4 Distribuição dos expedientes metadiscursivos nos diferentes supertópicos do

programa Roda Viva

Para uma compreensão mais geral acerca da prática do metadiscurso nesse contexto

do campo jornalístico, cabe tecermos também algumas considerações acerca da distribuição

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desses recursos empregados por MB nos diferentes supertópicos desenvolvidos ao longo do

programa. Tomaremos como base a tabela a seguir:

Gráfico 1- Expedientes metadiscursivos na fala de MB nos diferentes supertópicos (Roda

Viva)

O Gráfico 1 foi elaborado a partir da listagem e da contagem dos expedientes

metadiscursivos presentes nos dados da entrevista concedida por MB ao programa Roda Viva.

A partir dela, é possível constatar a presença de um total de 120 expedientes metadiscursivos

na fala do entrevistado MB durante a entrevista. Interessa notar um relativo equilíbrio na

presença do metadiscurso nos diferentes supertópicos que compõem o programa, ainda que

possamos falar num maior número expedientes presentes na fala de MB nos momentos em que

tópicos subordinados ao supertópico “Mano Brown” e (43) ao supertópico “Periferia” (35) estão

em andamento.

É preciso levar em conta a natureza dos supertópico “Mano Brown” e “Periferia”

para que possamos compreender o que representa essa concentração de boa parte dos

expedientes metadiscursivos nesses supertópicos. Os exemplos selecionados para compor

nossas análises demonstraram que o supertópico Mano Brown abrange o desenvolvimento de

temáticas ligadas à posição de Mano Brown no movimento hip hop do campo da produção

cultural da periferia, assim como envolve sua representatividade e estigmatização como agente

prestigiado desse campo. Por sua vez, o supertópico “Periferia”, de acordo com os exemplos

que pudemos analisar, abrange tópicos nos quais os entrevistadores mobilizam suas

perspectivas sobre uma miríade de questões presentes nas vivências desses espaços sociais,

36% (43)

29% (35)

17% (20)

18% (22)

Mano Brown

Periferia

Música

Sociedade brasileira

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sobretudo suas perspectivas acerca de uma presença intensa da violência, da criminalidade e do

tráfico de drogas na periferia.

Nesse sentido, acreditamos que a maior incidência de expedientes metadiscursivos

nesses supertópicos representa a utilização desses recursos textuais-discursivos por Mano

Brown como meio de reação frente a duas ações que ocorrem nessa entrevista: uma

caracterização em certo sentido específica e estigmatizada que é feita sobre o próprio rapper

(segundo a qual a posição de MB no campo da produção cultural atribuiria a ele uma

responsabilidade e um papel na resolução de problemas); uma caracterização também mais

específica e estigmatizada, na entrevista, feita sobre as vivências da periferia (enquanto espaço

social repleto de ações fora da legalidade e marcado somente pela exclusão).

Segundo a incidência dos expedientes metadiscursivos nos tópicos subordinados ao

supertópico “Sociedade” e ao supertópico “Música”, pode-se compreender que a menor

concentração desses recursos textuais-discursivos nesses momentos está ligada ao fato de que

esses tópicos ocorrem na entrevista, de modo geral, no sentido de dar acesso aos entrevistadores

e à audiência ao fazer musical próprio, particular de MB (com isso, pouco envolvido em

conflitos e desacordos) e à situação da sociedade brasileira atualmente na perspectiva pessoal

do entrevistado.

4.1.5 Algumas conclusões

As análises da entrevista concedida por MB ao programa Roda Viva demonstraram

algumas questões importantes que podem ser retomadas do seguinte modo:

i. Quanto aos tópicos desenvolvidos ao longo da interação, vimos que os

conteúdos instaurados extrapolam aqueles que se referem de modo mais

direto ao campo da produção cultural da periferia e, mais

especificamente, ao movimento hip hop, no qual MB se insere como

agente de posição prestigiada. Desse modo, a variedade dos tópicos

presentes na entrevista dimensiona a posição e o poder simbólico do qual

MB dispõe quando apresentado ao campo jornalístico.

ii. Os tópicos discursivos desenvolvidos nesse contexto acabam por

(re)configurar a prática comunicativa de MB e consistem em meios pelos

quais os entrevistadores impõem a MB que tome uma posição sobre

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diversos temas – pelas posições que exibir, sobretudo em relação a certos

tópicos “ameaçadores”, MB poderia, então, receber mais ou menos

prestígio desse contextos e desses agentes do campo jornalístico. Nessa

compreensão, é preciso levar em conta o papel do campo jornalístico na

sanção e na legitimação dos sujeitos.

iii. Podemos dizer que os tópicos discursivos presentes na entrevista são

convergentes às temáticas tratadas pelos participantes entrevistadores em

suas posições no campo jornalístico. Além disso, a variedade dos tópicos

presentes, em certa medida, reflete alguns dos objetivos da Fundação

Padre Anchieta e da TV Cultura, responsáveis pelo programa Roda Viva,

em transmitir conteúdo ligado ao campo da produção cultural.

iv. Contudo, essa convergência entre os tópicos e as atuações dos

participantes, entrevistadores e entrevistado, não configura, a priori, uma

inserção nesse contexto que seja pautada por acordos. É preciso levar em

conta as intensas negociações de sentido que ocorrem ao longo da

entrevista concedida por MB ao programa.

v. As principais características da presença dos expedientes

metadiscursivos revelam a importância desses recursos textuais-

discursivos para o andamento da interação ao longo da entrevista e para

a inserção de MB no campo jornalístico. Essas principais funções, bem

como aquilo que representam para as ações sociais mais amplas de MB

nesse contexto serão sistematizadas em nosso capítulo conclusivo.

4.2 Analisando o programa Papo com Benja de 06/2011

4.2.1 Tópicos desenvolvidos no programa

Nos momentos dedicados à reconstrução contextual dos dados, observamos

algumas características do programa Papo com Benja no que diz respeito aos participantes, ao

cenário do programa e à relação da instituição midiática LANCEPRESS! com o campo

jornalístico. Com isso, foi possível perceber que o programa Papo com Benja se notabiliza pela

produção de conteúdo voltado ao campo esportivo, mais especificamente ao futebol, bem como

que a organização cenográfica do programa favorece uma interação mais simétrica e informal

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153

entre os participantes da entrevista e, ainda, que o apresentador Benja e seu papel discursivo

consistem em marcas importantes para a interação que se estabelece na entrevista.

Ao analisar os tópicos desenvolvidos no programa, buscaremos, primeiramente,

compreender a relação entre os conteúdos que se instauram ao longo da entrevista e esses

elementos contextuais anteriormente abordados. Com o auxílio de trechos exemplares dessas

relações, procuraremos compreender as funções do metadiscurso para que o entrevistado possa

lidar com esse contexto do campo jornalístico.

Primeiramente, tomemos a tabela a seguir, na qual se encontra uma listagem da

organização hierárquica dos tópicos desenvolvidos ao longo da entrevista concedida por MB

ao programa Papo com Benja:

Tabela 3- Tópicos desenvolvidos no programa Papo com Benja em 06/2011

Supertópicos

Tópicos Subtópicos

Supertópico

“Música”

Shows Show do Mario Rogers

Ida de BB ao show de James Brown

Rap

Mudança no rap

Bloqueio sofrido pelo rap

Gosto musical de MB e WM

Músicos que MB admira

Encontro de MB com Guilherme Arantes

Gosto por Guilherme Arantes

Gosto por Silvio Santos

Gosto de MB por MPB

Convivência de MB com a MPB

Gosto de MB por Clube da Esquina

Apresentação de MB à MPB

Comportamento de MB e WM

como músicos

Emoção de MB como torcedor e como músico

Emoção do artista em um show

Importância de MB para a música brasileira

Influência da MPB no som de MB

Importância de WM para a música

Importância de Jorge Ben

Representatividade de MB para a música brasileira

(Exemplo 19)60

Projetos musicais de MB e WM

Participação de WM no Boogie Naipe

Boogie Naipe (Exemplo 16)

Pegada funk (Exemplo 16)

Divulgação da Boogie Naipe por BB

Lançamento do disco da banda Black Rio

Críticas ao novo disco da banda Black Rio

Músicas de MB Música Nego Drama

Música Racionais capítulo 4 versículo 3

Relação entre a letra e Edinho

60 Encontram-se sinalizados, na tabela, os subtópicos correspondentes aos exemplos coletados e analisados neste

capítulo.

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Supertópico

“Futebol”

Comportamento de MB e WM

como torcedores

Torcida/gosto de WM no futebol

Encontro de MB com Pelé

Presença de MB no Pacaembu

Amizade de MB com Edinho

Presença de Pelé no Pacaembu

Geração Pelé

Ida de BB e MB ao estádio do Corinthians

Rivalidade de MB com o Corinthians

Brincadeiras sofridas por MB nas derrotas do Santos

Brincadeiras de MB na vitória do Santos na Libertadores

Sentimento em ver o time campeão

Racismo

Atitude do jogador de futebol ao racismo

Racismo no futebol

Reação ao racismo

Postura de Roberto Carlos

Reação ao protesto do negro

Racismo contra Pelé

Santos

Vitória do Santos na Libertadores

Música para o Santos

Época das vacas magras do Santos

Espaço para ex jogadores nos times

Preferência entre times do Santos (Exemplo 17)

Jogo da estreia do Muricy no Santos (Exemplo 15)

História de reação do Santos

Influência de Muricy no Santos (Exemplo 18)

Santos x Corinthians

Comportamento dos amigos corinthianos

Jogos entre Santos e Corinthians (Exemplo 17)

Gol de Ronaldo na derrota do Santos para o Corinthians

(Exemplo 17) Reação de MB à derrota do Santos para o Corinthians

Derrota do Corinthians para o Juventude

Derrota do Corinthians para o Botafogo

Santos x Barcelona Jogo entre Santos e Barcelona

Time do Barcelona

Ida de MB à final entre Santos e Barcelona

Jogadores

Neymar (Exemplo 14)

Robinho (Exemplo 14)

Zé Love (Exemplo 15)

Acertos de Zé Love (Exemplo 15)

Messi

Contestação de Messi

Supertópico

“Sociedade

brasileira”

Copa do Mundo

Copa do Mundo no Brasil

Sigilo no orçamento da Copa do Mundo no Brasil

Abertura da Copa do Mundo em SP

Relação de MB com SP

Desconfiança nos grandes eventos no Brasil

Realidade atual Temáticas tratadas por MB sobre o Brasil (Exemplo 13)

Mudança no Brasil (Exemplo 13)

Atualidade de músicas antigas (Exemplo 13)

Política Governo Lula (Exemplo 13)

Feitos do governo Lula

Supertópico

“Programa

Papo com

Benja”

Entrevista com MB e WM

Aniversário do Papo com Benja

Programa com MB e WM (Exemplo 13)

Presença de WM no programa

Bebida para MB

Camisetas sorteadas no programa

Audiência do Programa com MB (Exemplo 19)

Próximo programa

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A listagem acima exibe os diferentes supertópicos, tópicos e subtópicos

identificados a partir da transcrição dos dados da entrevista em questão. Nela, está indicada a

existência dos supertópicos “Música” (com os tópicos “Shows”, “Rap”, “Gosto musical de MB

e WM”, Comportamento de MB e WM como músicos”, “Projetos musicais de MB e WM” e

“Músicas de MB”), “Futebol” (abarcando os tópicos “Comportamento de MB e WM como

torcedores”, “Racismo”, “Santos”, “Santos x Corinthians”, “Santos x Barcelona” e

“Jogadores”), “Sociedade brasileira” (a partir do qual se desenvolveram os quadros “Copa do

Mundo”, “Realidade atual” e “Política”) e o supertópico “Programa Papo com Benja”

(indicando os conteúdos que dizem respeito à própria “Entrevista com MB e WM”).

É possível observar que a entrevista de MB ao programa Papo com Benja, apesar

da menor duração quando comparada à entrevista concedida por MB ao programa Roda Viva,

também conta com diversos subtópicos e supertópicos. Destaca-se, nesse caso, a emergência

das temáticas que envolvem o “Futebol” como supertópico no programa e a ausência, por

exemplo, de temáticas que envolvam a periferia e o movimento hip hop como supertópico, ao

contrário do que ocorre na participação de MB no programa Roda Viva.

Além da emergência das temáticas atinentes ao “Futebol” como supertópico, é

possível notar que diversos subtópicos, ainda que hierarquizados nos quadros tópicos

pertencentes à “Música” ou à “Sociedade”, também estabelecem relações com o esporte, como

é o caso, por exemplo, dos subtópicos “Copa do mundo no Brasil” e “Música para o Santos”.

Por conta de relações como essas, consideramos que as temáticas ligadas ao “Futebol” exercem

papel central nas interações que se estabelecem na entrevista e agem como uma espécie de fio

condutor para os supertópicos outros, a partir de transições entre os tópicos que estabelecem

relações entre o campo esportivo, o entrevistado MB e um terceiro tema, por assim dizer.

Interessa observar, ainda com relação aos tópicos desenvolvidos na entrevista, os

poucos diferentes subtópicos ligados ao supertópico “Sociedade brasileira”. Esses conteúdos

mais externos ao campo esportivo contém pouca centração e repercussão ao longo da interação

que se estabelece no programa. O tópico “Política”, subordinado a esse supertópico, cabe

ressaltar, abriga dois subtópicos instaurados pelo próprio entrevistado e desenvolvidos apenas

por ele, sem participação do entrevistador, Benja (doravante, “BB”), ou de William Magalhães

(doravante, “WM”), participante entrevistado convidado por MB.

O supertópico “Música” corresponde a conteúdos que envolvem não apenas o

entrevistado MB, mas também sua relação com WM e os projetos nos quais este se envolve.

Além disso, alguns subtópicos inscritos em “Música” envolvem também a relação do próprio

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entrevistador BB com “Shows” e com as músicas de MB, como ouvinte e fã do trabalho do

entrevistado. Outros conteúdos desse supertópico, como mencionamos, exploram a relação

entre a música, a atuação de MB e o futebol.

De modo geral, a relação que se estabelece na entrevista a partir de BB como agente

ligado ao jornalismo esportivo, e a outros campos e temas, demonstra um alinhamento entre as

temáticas pressupostas nos contextos jornalísticos produzidos pela agência LANCE!PRESS e

pela TV!LANCE. A participação de BB no desenvolvimento dos tópicos também sugere uma

convergência entre as questões comentadas aqui e as características do programa Papo com

Benja enquanto contexto do microcosmo jornalístico, haja vista que muito da centração dos

tópicos de fato envolve o esporte e o futebol e que tais tópicos exploram de modo bastante

razoável as opiniões dos participantes, incluindo as opiniões do próprio entrevistador.

Importa ressaltar que, a nosso ver, essa configuração concernente ao contexto do

programa e aos tópicos nele desenvolvidos parece ser um dos fatores que colaboram para que

os turnos de fala, ao longo da entrevista, sejam turnos curtos e, geralmente, entrecortados, de

modo que a distribuição das falas não necessariamente se baseia numa estrutura de participação

segundo a qual caberia a BB a instauração dos tópicos e, apenas aos entrevistados (sobretudo a

MB) o desenvolvimento dos tópicos.

Na reconstrução contextual a qual procedemos no capítulo 3, evocamos ainda outras

dimensões que impactam o momento histórico da entrevista concedida por MB ao programa

Papo com Benja, algumas ligadas à trajetória do rapper, outras ligadas à posição do programa

no campo jornalístico. Assim, é preciso considerar o fato de que MB é conhecido por ser um

fervoroso torcedor do clube paulista Santos Futebol Clube.

Em 2011 Mano Brown esteve presente na final do campeonato Libertadores da

América, quando o Santos F. C. venceu o time uruguaio Club Atlético Peñarol e conquistou o

título como melhor equipe do continente americano naquele ano. Alguns meses depois, o Santos

F. C. chegaria à final do Mundial Interclubes de futebol, enfrentando o time espanhol Futbol

Club Barcelona. É exatamente nesse período, entre a obtenção do título americano e a partida

na qual o Santos F. C. disputaria o título mundial de melhor clube, que Mano Brown concede

a entrevista ao programa Papo com Benja.

Quando levamos em conta as práticas de MB como torcedor do Santos Futebol

Clube e sua representatividade no movimento hip hop, do campo da produção cultural da

periferia, é possível compreender melhor o convite recebido pelo rapper para participar como

entrevistado nesse contexto. A posição de Brown no campo da produção cultural da periferia

faz com que o programa Papo com Benja possa contar com a participação de um agente bastante

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157

prestigiado perante uma audiência para o programa que também está ligado às temáticas do

Futebol.

Além disso, aquilo que representa a presença de MB no programa não deixa de

refletir a posição da agência LANCEPRESS!, mais ligada à lógica comercial do campo

jornalístico. Isso porque, após a vitória do Santos Futebol Clube num campeonato internacional

importante, o programa Papo com Benja recebe convidado um reconhecido torcedor desse

clube. Consideramos que a participação de Brown se alinha, nesse momento, com os objetivos

do programa na produção de uma maior audiência para o programa, mas também com interesses

na divulgação do próprio Santos Futebol Clube – é preciso levar em conta que, a depender do

bom ou mau desempenho dos diversos times ao longo dos campeonatos, os convidados do

programa seriam outros, a cada semana, para que se pudesse promover uma “boa fase” ou “má

fase” dos clubes.

É possível dizer que o momento histórico de participação de MB nessa entrevista é

ligado à promoção, por parte do programa, da fase pela qual passava o time recém-vencedor da

Libertadores da América e futuro candidato ao título de máximo reconhecimento de um clube

de futebol. Além disso, a presença de WM, convidado levado ao programa pelo entrevistado

MB, revela que o momento histórico da entrevista é permeado pela convivência entre os dois

músicos, em função de uma parceria musical entre eles que ocorria à época. Com isso, a ida do

rapper ao programa Papo com Benja se configura por relações que, a princípio, estabelecem

um contexto de interação mais pautado pelas possibilidades de acordo e de alinhamento de

perspectivas.

Além das questões envolvendo o momento histórico, as características elencadas

até o momento para compreender a entrevista concedida por MB ao programa Papo com Benja,

sejam elas as textuais ou as circunscritas numa dimensão contextual mais ampla, demonstram

que a configuração do programa corresponde às entrevistas conhecidas como talk-shows.

Fávero et al. (2010) mencionam algumas características desse tipo de entrevista, quais sejam:

a proximidade física entre entrevistador e entrevistado, capaz de produzir um efeito de

intimidade entre os participantes; seu aspecto consensual e intimista, baseado numa relação de

confiança entre entrevistador e entrevistado e, ainda, a prioridade pelo divertimento, em

detrimento do informar. Com isso, evidencia-se uma configuração interacional cujo elemento

básico é o apresentador e as relações estabelecidas a partir de si (FÁVERO et al., 2010) e cuja

inserção no campo jornalístico se baseia no entretenimento, segundo as considerações de

Bourdieu (1997 [1996]) acerca das diferentes ênfases de conteúdo e de produtos produzidos

pela televisão.

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Ao levarmos em conta o momento histórico no qual ocorre o programa e o tipo de

interação que proporciona a configuração do programa e seu cenário, podemos dizer que, se no

programa Roda Viva, o contexto local de interação colaborava para que existissem disposições

ligadas a movimentos de ataque dos entrevistadores e defesa do entrevistado, na presença de

Mano Brown ao programa Papo com Benja, essas disposições se estabelecem de outro modo:

nesse caso, uma maior informalidade e simetria no contexto de interação pode proporcionar

disposições ligadas a movimentos de defesa e de ataque de ambos os lados, isto é, tanto por

parte do entrevistador BB como por parte de MB. No entanto, posto que o programa Papo com

Benja está inserido num contexto de promoção e divulgação do futebol e do trabalho dos clubes

e que, além disso, o apresentador do programa se coloca, em sua trajetória profissional, como

entrevistador que não dá espaço a polêmicas e ao desconforto do entrevistado, podemos esperar

que essa configuração de ação e reação ganhe um sentido específico: no qual as ações de

textualização do entrevistador não representarão movimentos de ataque a Mano Brown.

Ao tomarmos como ponto de partida essas características do programa Papo com

Benja e também os tópicos desenvolvidos, às relações entre os participantes e à sua localização

no campo jornalístico, interessa observar, então, quais as funções exercidas pela

metadiscursividade nessa entrevista. Para isso, partiremos à observação dos expedientes

metadiscursivos presentes nas falas dos participantes do programa.

4.2.2 Expedientes metadiscursivos presentes na fala de Mano Brown no programa

Papo com Benja

Ainda que o supertópico “Futebol” esteja abarcando boa parte dos conteúdos

tópicos desenvolvidos na entrevista concedida por Mano Brown ao programa Papo com Benja,

os momentos iniciais da entrevista foram voltados para a discussão sobre outros tópicos.

Consideramos importante partir desses primeiros momentos com os participantes do programa,

uma vez que neles podemos compreender uma utilização mais interativa e negociada dos

expedientes metadiscursivos, como ocorre no exemplo abaixo:

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Exemplo 13- Expedientes metadiscursivos na fala de MB (Papo com Benja)

BB minha camiseta já::... é um(a)' homenagem pos cara aqui

velho... os cara (es)tão feliz hoje já tirô(u) sarro

de mim falô(u) que Deus existe... Mano Brown ((risos

de BB, cumprimentando MB com uma das mãos))

MB salve

BB grande Brown... William Magalhães rapaz... PIanista

né Brown? PIanista... da banda Black Rio

((cumprimentando WM com uma das mãos))... cara::ca

véi olha só

WM ((risos))

BB hoje até quem gosta de black music aqui tem aula

meu... eu num posso nem abri(r) a boca aqui... [...]

Programa com

MB e WM

BB ô Brown... (vo)cê sempre falô(u) né?... cri::me futebol

música... não dá pra sai(r) disso?

MB tem que/ tem que sai::(r) né?... tem que

melhorá(r)::... né:::

BB mas na música "Nego Drama" (es)tá lá... cri::me...

futebol::... 3[mú::sica]

MB 3[si::m]... pode sê(r) tam(b)ém... mas a:::

tendência eu acho que é:: -- e a nossa luta -- é

que amplie né?... advogado médico engenhe(i)ro

arquite::to ((risos))... ((muda a voz))

presiDEN::te

Temas tratados

por MB

BB ô Brown... o Brasil mudô(u)?

MB ah o Brasil (es)tá mudan(d)o (es)tá em transição o

Brasil (es)tá em muda/ (es)tá em mudança (es)tá em

processo de mudança

Mudança no

Brasil

BB a gente ouve músicas... de dez quinze vinte trinta

anos atrás... principalmente músicas... de protesto

que falava de uma realidade... essas músicas

continuam atuais até hoje?

MB sim... guardado as proporções da época certo?...

eh:: pô se você:: você fô(r) vê(r)/

Atualidade de

músicas antigas

tem um barato que eu falo sempre... nós (es)tamo(s) no

terce(i)ro governo de esquerda... né? já são doze/

é:: -- oito com mai(s) -- nove anos aí:: de um

governo eleito de esquer::da coisa que a gente

luTAva... a gente perdeu três eleição c'o Lu::la...

é aquela/ aquele pessoal que começô(u) com o rap em

noventa noventa e um... já veio c'o Lula...

Governo Lula

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lutan(d)o e a gente viu o Lula perden(d)o três

eleição consecutiva... ((sorrindo)) era que nem o

Santos

WM ((risos))

(...)

Nesse primeiro exemplo, é possível notar que o programa tem início com a

topicalização da presença dos convidados MB e WM na entrevista para comentar sobre a

solenidade envolvida de algum modo numa entrevista na qual constem agentes importantes do

campo da produção cultural musical. Importa destacar que, em sua primeira fala, o apresentador

BB evoca uma ação anterior à própria gravação do programa, quando emprega o expediente

metadiscursivo “já tirou sarro de mim falou que Deus existe”. Nesse momento, consideramos

que o procedimento metadiscursivo produz uma glosa sobre toda uma ação anterior de

descontração entre MB, WM e BB, designando, nesse caso uma brincadeira pelos participantes

tendo BB como alvo.

Além disso, a compreensão do segmento “falou que Deus existe” pode se dar

quando evocamos o momento histórico no qual se insere a entrevista, de uma recente conquista

do Santos Futebol Clube num campeonato internacional: nesse caso, o efeito de sentido do

segmento envolve atribuir jocosamente a uma providência e à existência de Deus uma vitória

como a do clube apoiado por MB. Ainda durante a topicalização da própria presença dos

entrevistados no programa, notamos o expediente “eu num posso nem abrir a boca aqui”,

produzido por BB. Interessa notar que, por meio desse segmento, BB se refere ao que representa

seu papel discursivo na entrevista e sua posição nesse contexto, diante da presença de indivíduos

como MB e WM, prestigiados por uma série de práticas suas.

Com isso, quando afirma a impossibilidade de “abrir a boca” no programa, o

entrevistador parece assumir uma posição como alguém a cujos dizeres não será atribuído o

mesmo valor, na comparação com os demais presentes. Importa destacar o papel das semioses

não verbais na produção desse expediente metadiscurso, pois, a nosso ver, tanto a expressão

facial como o gesto de BB, movimentando a mão à frente de seu corpo (Figura 15), corroboram

para que o efeito de sentido do metadiscurso enfatize questões positivas da posição de prestígio

de MB e WM (em função da perspectiva de BB sobre sua posição).

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Figura 15- Semioses não verbais na produção do metadiscurso (Papo com Benja)

Na continuidade desses momentos iniciais, notamos a mudança de subtópicos

realizada por BB, quando o entrevistador instaura o subtópico “Temas tratados por MB”. A

nosso ver, a instauração desse tópico representa várias questões que permeiam a interação entre

BB e WM ao longo da entrevista: ao se referir a “crime, futebol, música” como temas tratados

por MB, BB está, na verdade, aludindo à letra da canção Negro Drama, composta por Mano

Brown, na qual o rapper afirma que, assim como ele, para muitos jovens negros, sobretudo

homens, uma inserção social prestigiada se daria apenas em função da atuação nessas três

esferas sociais (no crime, no futebol ou na música). A nosso ver, esse momento da entrevista é

bastante representativo de outros nos quais BB se coloca como conhecedor da trajetória pessoal

de MB e também como ouvinte e fã de sua produção musical. Assim é que podemos

compreender o expediente metadiscursivo “você sempre falou, né?” produzido por BB: por

meio desse recurso, o entrevistador marca seu conhecimento sobre os temas tratados por MB,

em referência a um momento anterior à entrevista; BB marca também o envolvimento do

próprio MB com essa asserção quando se refere à frequência (“sempre”) com que esse

pensamento foi tratado pelo rapper.

Já nos momentos em que MB desenvolve o tópico instaurado por BB, notamos a

presença do expediente “e a nossa luta”. Nesse caso, o procedimento metadiscursivo se refere

à introjeção de uma complementação simultânea ao desenvolvimento da ideia que está sendo

construída pelo entrevistado. As semioses não verbais produzidas por MB nesse momento,

presentes na Figura 16, indicam a quebra do fluxo informacional do que estava sendo

pronunciado, pois ocorre uma mudança tanto na modulação da voz do entrevistado como no

direcionamento de seu olhar, que, fixado até o momento para baixo, volta-se, então, para BB.

As pistas de contextualização que estamos tratamos como semioses não verbais nos permitem

compreender como o metadiscurso se elabora como uma construção parentética (JUBRAN,

2005), frequentemente causadora de uma quebra do fluxo informacional da fala.

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Figura 16- Semioses não verbais na produção do metadiscurso (Papo com Benja)

Assim, MB marca seu envolvimento com uma ideia de ampliação do papel dos

jovens negros na sociedade: essa ampliação e inclusão dos jovens negros não se trataria apenas

de uma tendência, mas sim de uma “luta” na qual o próprio entrevistado se insere para esses

grupos sociais frequentemente marginalizados possam ocupar posição de “advogado, médico,

engenheiro, arquiteto”. Importa destacar que, na continuidade desse momento em que elenca

posições sociais de prestígio que já estão sendo e devem ser ocupadas pelos grupos sociais em

questão, MB produz, simultaneamente à ao termo “presidente”, algumas semioses não verbais

ligadas à descontração, como a expressão facial marcada pelo riso e a modulação de sua voz

com timbre mais grave, como mostra a figura abaixo:

Figura 17- Semioses não verbais (Papo com Benja)

Nos momentos seguintes, MB realiza uma transição do subtópico “Atualidade de

músicas antigas”, subordinado ao supertópico “Música”, para o subtópico “Governo Lula”,

subordinado ao supertópico “Sociedade”. Conforme mencionamos anteriormente, a maioria dos

subtópicos presentes no supertópico “Sociedade” foi desenvolvida apenas pelo entrevistado

Mano Brown, de sorte que resultam de redirecionamentos tópicos produzidos por ele mesmo,

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como mostra o excerto acima. O redirecionamento tópico, nesse caso, ocorre quando, ao ser

perguntado sobre a “atualidade de músicas antigas” (“essas músicas continuam atuais até

hoje?”), MB pondera, em sua resposta, que a atualidade dessas músicas existe, embora leve em

conta as “proporções da época”. A partir desse momento, o entrevistado se volta para

caracterizar as mudanças acompanhadas pelos rappers, centrando-se no “Governo Lula” como

desencadeador dessas diferentes “proporções” entre as épocas.

Interessa notar, no momento de redirecionamento do tópico, a presença do

expediente metadiscursivo “tem um barato que eu falo sempre”. A nosso ver, esse segmento

revela o procedimento metadiscursivo de produzir uma glosa sobre a porção textual

subsequente, com vistas a marcar o grau de envolvimento do locutor em relação ao enunciado.

Nesse caso, o expediente marca a frequência com que o entrevistado MB aborda as mudanças

acompanhadas pelos rappers ao longo do “governo Lula”. No momento de transição entre os

subtópicos, o planejamento verbal de MB (na checagem que faz da informação de “doze anos”

de um governo de esquerda) consiste num segundo expediente metadiscursivo visto nesse

exemplo: dessa vez, é possível notar, por meio do expediente “já são doze/ é:: – oito com mais

– nove anos” a reflexão de MB acerca da validade das informações imediatamente expostas

sobre a duração do governo de esquerda vigente no país. Outros expedientes metadiscursivos

presentes no excerto apontam, mais uma vez, para as correções e reformulações dos enunciados

que vão sendo feitas pelo entrevistador, como as que ocorrem no segmento “é aquela/ aquele

pessoal que começou...” e no segmento “a grande mu/ a grande PÁ”.

É preciso levar em conta, acerca desse exemplo, tanto a instanciação de um

expediente metadiscursivo (“tem um barato que eu falo sempre”) para comentar sobre um

enunciado subsequente, por meio do envolvimento do locutor com esse enunciado, quanto a

presença desse segmento num momento de redirecionamento tópico realizado pelo próprio

entrevistado. A nosso ver, ambos esses fatores fazem com que possamos pensar em uma ênfase

pretendida pelo entrevistado ao se referir a esses conteúdos que marcam o subtópico “Governo

Lula”, sobretudo quando levamos em conta a relação estabelecida pelo rapper entre o governo

Lula e a trajetória dos grupos aos quais ele mesmo pertence (“a gente lutava... a gente

perdeu...”).

É preciso considerar, ainda, o papel das semioses não verbais durante a produção

dos expedientes metadiscursivos por MB, no desenvolvimento do tópico “Governo Lula”.

Quando realiza a transição entre os subtópicos em questão, a produção do metadiscurso ocorre

em simultaneidade à mudança do direcionamento do olhar de MB, mais uma vez, de baixo,

voltado ao chão, para o entrevistador BB (Figura 18). Já no momento em que a produção do

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metadiscurso envolve a checagem das informações que está enunciando, ocorre a mudança de

sua expressão facial (Figura 19), de modo que fica cerrado um de seus olhos, enquanto seu olhar

se volta para cima (nesse sentido, a expressão facial de MB indica o próprio cálculo e

recobração das informações necessárias à reformulação que está sendo feita).

Figura 18- Semioses não verbais na produção do metadiscurso (Papo com Benja)

Figura 19- Semioses não verbais na produção do metadiscurso (Papo com Benja)

De modo geral, o tratamento desses momentos iniciais da entrevista concedida por

Mano Brown ao programa Papo com Benja nos permite compreender os seguintes traços

importantes: a descontração e informalidade como marcas do programa em vários momentos e

a relação que se estabelece entre o apresentador BB e o entrevistado MB, pautada por um

posicionamento de BB como conhecedor e admirador do trabalho de MB no campo da produção

cultural da periferia. Além disso, foi possível compreender o papel de algumas semioses co-

ocorrentes na produção do metadiscurso, por meio de expressões faciais, gestos e do

direcionamento de olhar dos participantes. A partir daqui, voltaremo-nos para o tratamento de

alguns exemplos que expõem algumas outras funções e especificidades dos expedientes

metadiscursivos produzidos por MB ao longo da entrevista ao programa Papo com Benja.

Com o prosseguimento da entrevista, os tópicos instaurados rapidamente se voltam

para o supertópico “Futebol”, o qual levaremos em conta nesse momento para tratar da

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produção de expedientes metadiscursivos por parte de Mano Brown. A nosso ver, o

desenvolvimento dos subtópicos “Neymar” e “Robinho” sugerem uma outra função para o

metadiscurso do entrevistado ao longo da entrevista:

Exemplo 14- Expedientes metadiscursivos na fala de MB (Papo com Benja)

(...)

BB mas (vo)cê viu Neymar né?

MB ((abre os braços)) porra

BB pra você o Neymar da tua geração.. [...]

Neymar

(vo)cê considera pós Pelé da geração de vocês o Neymar é o

maior jogador que (vo)cê viu jogá(r) no Santos o(u)

não?

MB Neymar:: Robinho

BB não... escolhe um

MB não/ aí é difícil... nã::o aí seria injustiça... que

o:: o::s dois pa torcida do Santos têm um peso muito

parecido... próximo

Neymar

BB (vo)cê (vo)cê num acha que o Robinho virô(u) um

jogador comum?

MB não

BB eu num vejo o Robinho jogá(r) bola há muito tempo

MB eu acho que o Robinho tin/ tinha que vim embora pa

casa dele rápido... virá(r) rei no Santos que é o

lugar dele... ocupá(r) o lugar dele que é de

destaque... sê(r) campeão uma vez um ano sim um ano

não pelo Santos... depois virá(r) dirigen:::te

(...)

Robinho

O Exemplo 14 exibe a instauração de pergunta feita pelo entrevistador sobre “o

maior jogador pós Pelé” na equipe do Santos. Podemos notar que MB responde ao

questionamento referindo-se tanto ao jogador Neymar quanto a um segundo jogador, Robinho.

Nesse momento, podemos ver a utilização do expediente metadiscursivo “não... escolhe um”,

por meio do qual BB produz uma glosa que comenta o enunciado anterior do entrevistado: a

seu ver, a resposta de MB não se adequa à escolha de “um maior jogador”, de modo que o

entrevistado deveria decidir entre apontar ou Neymar ou Robinho como o maior jogador do

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Santos F. C., depois da atuação de Pelé no clube paulista. Importa ressaltar, nesse caso, o papel

do verbo “escolher”, que é utilizado para se referir, na verdade, à produção textual tal como BB

pretende que seja feita por MB, isto é, refere-se ao fato de que ele deve “falar apenas de um”

dos jogadores como o maior jogador do Santos F. C. após Pelé.

Na resposta de MB, podemos ver a presença de dois expedientes metadiscursivos:

ao afirmar que “não/ aí é difícil” e que “não, aí seria injustiça”, MB avalia como negativa a

produção de um possível enunciado no qual devesse “escolher um” dos jogadores e, nesse

sentido, comenta sobre os possíveis impactos resultantes de sua resposta. De modo semelhante

ao que vimos ocorrer ao longo da entrevista concedida por MB ao programa Roda Viva,

podemos dizer que nesse momento o entrevistado exibe sua reflexão sobre os impactos de seus

dizeres para sua posição e representação social e que, ao avaliar os possíveis prejuízos dessa

resposta, emprega os expedientes metadiscursivos como forma de exprimir que esse se constitui

como um subtópico “ameaçador” e que, portanto, não será desenvolvido do modo como

proposto pelo entrevistador.

Para compreender aquilo que representa um comprometimento maior de MB no

tópico em questão, é preciso lembrarmos seu reconhecimento como torcedor do Santos Futebol

Clube e evocarmos o fato de que, não raramente, MB comparece como convidado do clube a

eventos internos realizados entre jogadores e dirigentes. Desse modo, quando compreendemos

o fato de que o rapper tem relacionamento mais próximo com os jogadores sobre os quais se

está comentando no desenvolvimento desses tópicos, é facilitada a nossa compreensão de sua

recusa em apontar apenas um único maior jogador da história do Santos Futebol Clube visto

por ele

Segundo o que foi possível acompanhar por meio do levantamento dos expedientes

metadiscursivos, o tópico “Jogadores”, subordinado ao supertópico “Futebol”, concentra

diversos expedientes metadiscursivos presentes na fala de MB ao longo do programa. Para uma

observação detalhada do funcionamento da metadiscursividade nesses casos, tomemos o

exemplo a seguir:

Exemplo 15- Expedientes metadiscursivos na fala de MB (Papo com Benja)

(...)

BB e o Zé Love?... (vo)cê acha bom jogador?

MB gosto ((faz sinal de positivo com a cabeça))

BB jura?

Zé Love

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MB bom jogador po time... bom jogador

BB quando ele perdeu aquele gol ali (vo)cê acha que ele

perde gol PA caramba meu?

MB perde... perde porque participa muito tam(b)ém... mas

abre muito espaço pos jogadores ele ele tem sintonia

c'o/ c'o Neymar... eles são ami::go ele jo/ o mole/ o

moleque procura ele sempre ele erra dez vez o moleque

procura ele de novo... (es)tá ligado? e:::... e eles

vai/ --

pô agora também vô(u) pe/ falá(r) dos acerto -- ele... pô o

cruzamento do gol contr(a)'o Corinthians foi do Zé

Love no começo do jogo... ali definiu... certo? foi

de::le... aquele prime(i)ro gol lá no:: -- aonde foi

no Chile?... de cabeça de ca/ logo no começo?... Chile

né?... Colo Colo... Chile?... -- foi gol do Zé Love

de cabeça

Acertos de Zé

Love

BB naquele jogo lá que o::: a estréia do Muricy... que

puta (es)tava/ a coisa (es)tava feia po 30[Santos]

desfalcado tal (vo)cê acreditava ou (vo)cê (es)tava

meio (vo)cê falô(u) "puta aqui num vai dá(r) meu"?...

porque aquele jogo pra mim... acho que foi o jogo que

mudô(u) a história do Santos na Libertadores não foi

não?

MB 30[(es)tava]...

(...)

Jogo da estreia

de Muricy no

Santos

No excerto acima, têm início os subtópicos que se referem a um dos jogadores que

compunham, à época da entrevista, a equipe do Santos Futebol Clube, clube do qual é MB é

torcedor. É possível notar que os conteúdos se desenvolvem, nesse momento, a partir de um

questionamento de BB para que MB comente a atuação do jogador, conhecido pelo apelido de

“Zé Love”. Podemos perceber que a resposta de MB comenta positivamente a atuação do

jogador para o time (por meio dos segmentos “gosto” e “bom jogador po time”). No entanto,

BB mobiliza novas informações que buscam fazer com que o entrevistado considere uma

segunda vez seu julgamento positivo sobre o jogador e, nesses momentos, observamos a

presença da pergunta “você acha que ele perde gol pra caramba...?”, acompanhada de uma

asserção que conduzirá a resposta do entrevistado – visto que MB deverá julgar mais uma vez

o desempenho do jogador.

A resposta que MB, nesse excerto, exibe seu julgamento sobre a asserção presente

na pergunta de BB, quando o entrevistado afirma que o fato de que o jogador “perde” gols se

deve a uma maior participação sua nas jogadas da equipe (“perde porque participa muito”).

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Vemos, então, que MB de fato procede ao julgamento da asserção elaborada por BB, mas faz

com que essa asserção não seja vista como contraponto a sua posição, de Zé Love como um

bom jogador para o time do Santos F. C.. MB, em seguida, busca exemplificar boas atuações

de Zé Love a partir de sua relação com o jogador Neymar.

A continuação da resposta de MB dá início ao subtópico “Acertos de Zé Love”: é

nesse momento que podemos perceber a produção de uma série de expediente metadiscursivos.

O primeiro deles encontra-se em “pô agora também vou falar dos acertos”, quando MB produz

uma glosa sobre a enunciação em andamento e sinaliza que redirecionará do tópico. Assim,

quando passa a enumerar situações que exemplificam a atuação positiva do jogador, MB se

refere a um “primeiro gol” da equipe do Santos e, nesse momento, outros expedientes

metadiscursivos explicitam a busca do entrevistado pelas informações corretas no enunciado

que está sendo formulado. A transcrição dos dados indica a quebra no fluxo informacional, por

meio do sinal “--”, bem como a entoação interrogativa nos expedientes “aonde foi, no Chile?”,

“de cabeça no começo?”, “Chile, né?”, “Colo-Colo... Chile”. Tais expedientes refletem,

portanto, o acúmulo de uso e menção (KOCH, 2004: 127) para essas expressões que vão sendo

enunciadas por MB, no intuito de procurar, perguntar a si mesmo se essas informações ditas

são de fato as corretas para compor o enunciado que se desenvolve. Com isso, é possível dizer

que nesse momento os expedientes metadiscursivos são usados para refletir sobre o “dizer

enquanto se diz” (KOCH, 2004: 127) e demonstram a autorreflexividade de MB incidindo sobre

a interação e seu enunciado.

Com relação aos expedientes metadiscursivos presentes na fala de MB ao longo do

desenvolvimento do supertópico “Música”, tomemos o seguinte exemplo:

Exemplo 16- Expedientes metadiscursivos na fala de MB (Papo com Benja)

BB pra quem não sabe... pa quem não sabe né Brown? eu

vô(u) explicá(r)... Boogie Naipe é o/ é o::: projeto

novo do Brown... SÓ com cara fera... e é po pessoa::l

é um black::: pos cara dançá(r):: é isso Brown?...

swin:::g... pos cara se diverti(r):::... essa é a

pegada?

MB é o lance é fazê(r) o funk né? o som de/ o som negro

38[né?]

Boogie Naipe

BB 38[o funk funk né?]... que o funk carioca 39[deu uma

banalizada no termo]

WM 38[o funk das]... 39[não]

Pegada funk

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MB 39[tam(b)ém ma(s) é funk tam(b)ém]

WM é::

MB na tradução da palavra é funk tam(b)ém agora o funk

que eu quero fazê(r) é aquele funk do::

WM setentista né?... 40[funk da década de setenta...

disco rock]

MB 40[é:: aquele funk::... aquele funk] do James Bro::wn

aquilo:: -- sem pretensão quem sô(u) eu pa fazê(r) o

funk do James Brown? --... mas... eu quero (es)tá(r)

perto dos cara ((aponta para WM)) que saiba fazê(r)

acredito nesse::... eh::: nessa tendência... pa

periferi::a essa tendência de som pra/ pa juventude

essa tendên/ pos estuDAN::te... morô(u)?... pra:: pa

quem traba:::lha pa quem (es)tá lá na pista luta pela

vi::da são músicas que fala da vi::da... das pequenas

co:::isas... ((sorrindo)) a revolução é feita de

pequenas coisas

O trecho em questão diz respeito ao momento em que o entrevistador BB se volta

para a explicação (marcada pelo procedimento metadiscursivo presente na passagem “eu vô(u)

explicá(r)...”) sobre o novo projeto musical no qual MB está envolvido, em parceria com WM,

a saber, conhecido como Boogie Naipe. A fala de MB nesse exemplo dá início ao subtópico

nomeado como “Pegada Funk”, tendo em vista que se instaura uma breve discussão sobre o

escopo do referente “funk” para designar diversos nuances da produção musical.

Quando MB afirma que o projeto está ligado ao “lance de fazer o funk”, o

entrevistador BB procura enfatizar o termo “funk” tal como mencionado por MB: em sua visão,

uma manifestação mais genuína daquilo que pode ser chamado de “funk” corresponde ao que é

produzido por MB, mas não pelo funk carioca, por exemplo (como mostra o trecho “o funk

carioca deu uma banalizada no termo”). Interessa notar, no entanto, que essa distinção

estabelecida por BB não é sustentada por MB em sua resposta, quando afirma que a produção

musical carioca “também é funk também” e que “na tradução da palavra é funk também”.

Podemos considerar que os procedimentos metadiscursivos, nesse caso, justificam-

se pelo uso, tanto de BB como de MB, desse momento de enunciação para trazer à tona as

questões da categorização referencial expressa pelo termo “funk”, e da adequação desse

referente a vários escopos de significação que compuseram os enunciados dos participantes -

de modo semelhante ao que vimos ocorrer no programa Roda Viva, em seção anterior deste

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capítulo. Saliente-se que, também nesse caso, há um contraponto manifestado por MB quanto

à categorização feita pelo entrevistador, haja vista que, se para BB o referente “funk” segrega

outras produções musicais (como o “funk” carioca, por exemplo), para MB, ainda que as

diferenças entre as produções musicais existam, o referente “funk” poderia ser usado numa

aplicação mais ampla. Nesse sentido, as falas posteriores de MB nesse exemplo se dão no

sentido de incluir modificadores ao referente funk para especificar, por grau de semelhança, o

tipo de música que compõe seu projeto musical: assim é que podemos entender o emprego do

expediente “aquele funk do James Brown”, na qual se vê a combinação Det + N + Mod (o

determinante “aquele”, acrescido do nome, “funk”, e da expressão modificadora “do James

Brown”).

Após estabelecer uma semelhança entre a sonoridade de seu projeto musical e

“aquele funk do James Brown”, as falas subsequentes de MB se dão no sentido de modalizar

uma ação potencialmente pretensiosa: o procedimento metadiscursivo do expediente “sem

pretensão quem sou eu pa fazê(r) o funk do James Brown?” denota a reflexão normativa de MB

sobre sua ação anterior, no sentido de atenuar a força ilocucionária do que havia dito

anteriormente.

Acreditamos que os diferentes exemplos observados até aqui demonstram as

principais funções promovidas pela presença dos expedientes metadiscursivos nos diferentes

tópicos que foram desenvolvidos durante a entrevista de MB ao programa Papo com Benja.

Adiante, tentaremos sistematizar essas características, mas não sem atentar, antes, para os

expedientes metadiscursivos presentes na fala do entrevistador BB.

4.2.3 Expedientes metadiscursivos presentes na fala do entrevistador no programa

Papo com Benja

Os levantamentos dos tópicos desenvolvidos ao longo do programa demonstraram

uma maior centração dos conteúdos que se referem “Futebol” enquanto supertópico. Importa

observar uma maior incidência de expedientes metadiscursivos por parte do entrevistador BB

nos tópicos “Santos” e “Santos x Corinthians”, ambos subordinados ao supertópico “Futebol”.

Para ilustrar a função dos expedientes metadiscursivos nesses momentos, tomemos o

desenvolvimento dos seguintes subtópicos:

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Exemplo 17- Expedientes metadiscursivos na fala de BB (Papo com Benja)

(...)

BB qual time (vo)cês preferem o de dois mil e dois ou

esse de a/ ou esse de agora?

MB ah::: os dois

Preferência

entre times do

Santos

eu (es)tava no dois mil e dois lá no Morumbi eu (es)tava

BB não vamo(s) lembrá(r) o passado aqui não

MB eh::: então... e agora tam(b)ém dois mil e onze

tam(b)ém cont(r)a o Corinthians eu (es)tava

BB eu (es)tava em dois mil e nove... ahn::: conta/

contra o Santos tam(b)ém

MB ((risos))

BB ((risos de todos)) ah chega pô só (es)tô(u) toman(d)o

porrada de você Brown (es)tá de sacanagem comigo meia

hora de (vo)cê só me zuan(d)o

Jogos entre

Santos e

Corinthians

MB então aquele/ aquele gol ali foi foda... a matada do

Ronaldo quando ele dominô(u) a bola que o zague(i)ro

foi pum lado a bola po o(u)t(r)o ali já vi o gol...

ali é veneno a maldade pura...

(...)

Gol de Ronaldo

na derrota do

Santos para o

Corinthians em

2009

No exemplo 17, a fala inicial de BB propõe a instauração do subtópico “Preferência

entre times do Santos” a partir de do julgamento entre a equipe do ano de 2002 ou a equipe de

2011, que havia obtido o título do campeonato Libertadores dias antes da entrevista concedida

por MB ao programa Papo com Benja. Em sua resposta, podemos observar que MB redireciona

o tópico proposto pelo entrevistador, já que, além de afirmar que prefere ambas as equipes de

anos diferentes do Santos F. C., esteve “no 2002 lá no Morumbi”. Nesse momento, é preciso

levar em conta o conhecimento compartilhado entre os participantes da entrevista acerca do

tópico instaurado a partir desse redirecionamento de MB. Quando se refere a um jogo em 2002

no Morumbi, o entrevistado MB mobiliza as informações sobre o ano e o local (“estádio

Morumbi”) de uma partida entre o Santos F. C. e o Sport Club Corinthians Paulista: é preciso

lembrar, portanto, que MB é reconhecido como torcedor santista, enquanto o entrevistador BB

é conhecido por ser torcedor de um time rival, o Sport Club Corinthians Paulista. Assim, será

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possível compreender que as informações mobilizadas por MB se referem a uma vitória do

Santos F. C. sobre o time apoiado por BB em sua torcida – a vitória do Santos F. C. sobre o

Sport Club Corinthians Paulista, nesse caso, ocorreu na partida de dispusta pelo título do

Campeonato Brasileiro de Futebol da série A, em 2002, jogo marcante para esses torcedores.

Interessa notar que o compartilhamento dessas informações por parte de ambos os

participantes se reflete na produção do expediente metadiscursivo por parte de BB, no trecho

“não vamos lembrar o passado aqui não”. Nesse momento, é possível dizer que BB reconhece

a referência de MB sobre a derrota de seu time na ocasião de 2002. O procedimento

metadiscursivo, nesse caso, diz respeito, primeiramente, ao reconhecimento de BB sobre a

topicalização, feita por MB, dessas informações acerca da derrota de seu time; além disso, o

procedimento metadiscursivo de MB inclui avaliar o enunciado de MB em termos de outras

propriedades, como, por exemplo, uma forma de “lembrar o passado”. Desse modo, recusando-

se “a lembrar o passado”, BB poderia se recusar a desenvolver esses conteúdos que se referem

à derrota do time que apoia.

Esses momentos da entrevista corroboram, de modo geral, uma ideia de

descontração para a entrevista, com sucessivas brincadeiras entre o entrevistado MB e o

entrevistador BB acerca de derrotas e vitórias nas disputas entre seus times, até o momento em

que BB se refere, dessa vez, a uma vitória do Sport Club Corinthians Paulista sobre o Santos

F. C. pela final do Campeonato Paulista de Futebol série A (“eu (es)tava em dois mil e nove...

ahn::: conta/ contra o Santos tam(b)ém”). Como mostram as notações da transcrição, no

momento em que BB também se refere a uma vitória de seu time sobre o time do entrevistado

MB, a interação passa a contar com os risos de seus participantes, o que exprime a continuidade

da descontração estabelecida nesse momento.

O entrevistador BB, nessa passagem, produz expedientes metadiscursivos que, a

nosso ver, avaliam e justificam sua devolutiva na brincadeira com MB sobre os times. A reação

do entrevistador - às ações que teriam sido produzidas por MB até o momento e que tiveram

como alvo o próprio entrevistador – é justificada pelos expedientes “só tô toman(d)o porrada

de você Brown” (para refletir e avaliar os enunciados de MB e as brincadeiras já ocorridas como

“porradas”), “tá de sacanagem comigo” (para refletir e avaliar sobre os enunciados de MB que

topicalizaram derrotas do Sport Club Corinthians Paulista) e “meia hora de cê só me zoando”

(para avaliar os efeitos dos enunciados e das brincadeiras de MB para a interação antes dos

momentos de reação de BB).

Muitos dos expedientes metadiscursivos produzidos por BB tiveram função

semelhante a essa observada no exemplo 17, de modo que consideramos como característica da

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entrevista a relação entre tais expedientes e os momentos de descontração ao longo do

programa. Podemos dizer, então, que os expedientes metadiscursivos presentes nessas falas de

BB produzem glosas sobre os enunciados e sobre aspectos da própria interação, pautados pela

ideia descontração e de brincadeira entre os participantes.

Ainda dentro do supertópico “Futebol”, pode ser elencada uma última função para

os expedientes metadiscursivos utilizados pelo apresentador BB, como mostra o seguinte

exemplo:

Exemplo 18- Expedientes metadiscursivos na fala de BB (Papo com Benja)

(...)

BB ((dirige o olhar a alguém atrás das câmeras))

(es)per(a)' aí só pra terminá(r) a última

rapidinho... qual a influência do/ o Muricy pra você

é um dos grandes responsáveis dessa mudança? (vo)cê

acha que o Muricy quando chegô(u) no Santos a pegada

mudô(u)?

MB então chapa eu penso assim ó(lha)... eh::: de u(m)a

liga né?... deu u(m)a liga... (vo)cê percebe de longe

que deu u(m)a liga tipo paizão dos cara né?... ele é

um malan::dro... que pôs os moleque malandro pa

jogá(r) que os moleque são malandro (vo)cê vê(r)

qu(e)'é:: o clima é malandro quem num (es)tá na

sintonia dos moleque é ro/ é roça... entendeu?

(...)

Influência de

Muricy no

Santos

O trecho em questão corresponde a momentos finais da entrevista, nos quais BB

propõe ainda a instauração de alguns tópicos, como o subtópico “Influência de Muricy no

Santos”, subordinado ao tópico “Santos”. No excerto, é possível notar a presença dos

expedientes metadiscursivos “só pra terminar” e “a última rapidinho” que se referem à situação

de enunciação: no caso do primeiro, BB comenta sobre o andamento e a finalização da

entrevista por meio de uma pergunta que seria “a última” feita por ele no programa, como indica

o segundo expediente destacado.

Consideramos, nesse caso, que os expedientes metadiscursivos presentes na fala

de BB possibilitam que o entrevistador se refira ao andamento da entrevista enquanto situação

de enunciação e que comente sobre sua atividade como aquele que conduz os tópicos, o início

e o fim da interação.

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Exemplo 19- Expedientes metadiscursivos na fala de BB (Papo com Benja)

(...)

BB (o)brigado Brown pela presença pela moral aí...

falá(r) de Santos falá(r) com você é sempre uma

puta duma alegria...

Programa com MB

e você sabe (vo)cê num gosta que eu falo mas pra mim é

me(s)mo pra mim é Jorge Ben Tim Maia e Mano Brown

MB que isso

WM ((risos))

BB a continuação a saga continua... ele num gosta que

eu fale mas é verdade

WM ((acena com a cabeça em sinal de positivo)) tem

uma representatividade muito grande

(...)

Representatividade

de MB para a

música brasileira

Nos momentos finais do programa, o entrevistador retoma as ações ocorridas ao

longo da entrevista a partir do subtópico “Programa com MB”, no qual comenta sobre a

presença dos entrevistados e, em seguida, sobre a representatividade do convidado MB para a

música brasileira. Nesse caso, podemos notar a presença de expedientes metadiscursivos como

“falar de Santos” e “falar com você”, por meio dos quais BB produz glosas nas quais classifica

a enunciação ocorrida até o momento e os tópicos que se fizeram presentes. Além disso, os

expedientes metadiscursivos “você num gosta que eu falo” e “ele num gosta que eu fale” se

referem a avaliação do entrevistador sobre a impressão de MB acerca dos enunciados

subsequentes nesse momento, quais sejam, os comentários de BB sobre a importância de Mano

Brown para a música brasileira.

Vemos, nesses casos, que o entrevistador, apesar de reconhecer e avaliar uma

possível reação de MB frente aos elogios sobre sua representatividade, não deixa de comentar

positivamente a posição do entrevistado por meio, dessa vez, da passagem “pra mim é mesmo,

pra mim é Jorge Bem, Tim Maia e Mano Brown”, na qual se vê o entrevistado situado como o

terceiro da hierarquia construída por BB sobre grandes nomes do campo da produção cultural

e da música brasileira.

Desse modo, podemos observar que, no tratamento do supertópico “Música” e,

sobretudo, nos subtópicos que se referem à posição e à representação social de Mano Brown, a

função dos expedientes metadiscursivos produzidos pelo entrevistador BB se diversifica e

assume nova característica ligadas a esse contexto do campo jornalístico.

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175

4.2.4 Distribuição dos expedientes metadiscursivos nos supertópicos do programa Papo

com Benja

Para uma compreensão mais geral acerca da prática do metadiscurso nesse contexto

do campo jornalístico, importa considerarmos algumas observações acerca da distribuição

desses recursos na fala de MB nos diferentes supertópicos desenvolvidos ao longo do programa,

como mostra a tabela a seguir:

Gráfico 2- Expedientes metadiscursivos na fala de MB nos diferentes supertópicos (Papo com

Benja)

Gráfico 3- Expedientes metadiscursivos na fala de BB nos diferentes supertópicos (Papo com

Benja)

O Gráfico 2 e o Gráfico 3 acima mostram uma maior incidência de expedientes

metadiscursivos na fala do entrevistador (total de 42 expedientes) em comparação à fala do

entrevistado Mano Brown (total de 20 expedientes). Saliente-se, com isso, uma importante

45% (09)

35% (07)

20% (04)

0% (00)Futebol

Música

Sociedade

Programa Papo comBenja

50% (21)

24% (10)

2% (01) 24% (10)

Futebol

Música

Sociedade

Programa Papo comBenja

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diferença com relação à produção do metadiscurso nesse contexto do campo jornalístico. A

nosso ver, essa alta incidência de expedientes metadiscursivos na fala do apresentador está

relacionada ao contexto interacional do programa, evocado anteriormente por nós, no qual se

estabelece uma estrutura de participação que prevê o papel de BB como central para as

interações estabelecidas no programa, bem como para o contexto de informalidade e

descontração ao longo do programa. Importa ressaltar a concentração de expedientes

metadiscursivos (somados os presentes na fala de BB e de MB) durante o desenvolvimento dos

tópicos subordinados ao supertópico “Futebol”, o que, a nosso ver, pode indiciar o fato de que

quanto mais associado o tópico à posição do indivíduo em um determinado campo, mais os

recursos metadiscursivos terão condições de emergir na fala.

Quanto às falas do entrevistado MB e de BB, cabe destacar a presença dos

expedientes metadiscursivos ao longo do desenvolvimento dos tópicos ligados à “Música”.

Ainda que a distribuição do metadiscurso ocorra de modo semelhante na fala do entrevistador

e do entrevistado no supertópico “Música”, a mesma proporção não se repete quanto tomamos

a presença do metadiscurso na produção dos tópicos ligados à “Sociedade”. Isso pode refletir

inversamente a nossa proposição acima, uma vez que quanto menos associado o tópico à

posição do indivíduo em um determinado campo, menos possibilidade haverá de emergência

de expedientes metadiscursivos na fala.

Sendo assim, é preciso que consideremos a natureza dos supertópicos em questão

para melhor compreendermos a distribuição dos expedientes metadiscursivos ao longo do

programa. Isso porque, ao longo do desenvolvimento dos tópicos atinentes à “Música”, por

exemplo, a produção do metadiscurso na fala de MB esteve ligada à exposição de informações

sobre seu projeto musical com WM e daquilo de como esse projeto de situa numa produção

musical ligada ao funk. Já a produção do metadiscurso nos tópicos abarcados pelo supertópico

“Sociedade” conecta-se à trajetória de MB e a sua posição de engajamento constante com certos

temas mais gerais, como a estigmatização e inclusão dos jovens e os efeitos do governo Lula.

Em relação ao supertópico “Futebol”, os expedientes presentes na fala de MB se relacionam às

discordâncias entre ele e BB acerca de certas questões que envolvem jogadores e a fase pela

qual passava o Santos F. C.

Além disso, nesses tópicos, a produção do metadiscurso por parte de MB parece

estar ligada à possibilidade, nesse contexto, de expor o planejamento verbal simultâneo à

própria interação, calibrando o sentidos procurados pelo entrevistado. Nesse sentido,

acreditamos que a produção dos expedientes metadiscursivos no supertópico “Futebol” é

bastante associada ao contexto de informalidade e descontração do programa, no qual é possível

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que MB exponha suas discordâncias e, até mesmo, aja de modo a circunscrever BB como aquele

que “está tomando porrada”.

4.2.5 Algumas conclusões

Na análise do programa Papo com Benja, optamos por observar de modo mais

detalhado tanto os expedientes metadiscursivos produzidos por Mano Brown quanto aqueles

presentes na fala do entrevistador BB. Isso porque, a nosso ver, as informações contextuais

sobre o programa, vistas anteriormente, indicam o papel central do apresentador enquanto

agente do campo jornalístico envolvido nesse contexto de entrevista. Quanto à organização do

programa, aos tópicos desenvolvidos e à presença dos expedientes metadiscursivos, faz-se

necessário atentarmos para as seguintes considerações até o momento:

i. O desenvolvimento das temáticas que envolvem o “Futebol” compõem

supertópico com maior centração ao longo do programa. Além disso, são

ausentes as temáticas que envolvam a periferia e o movimento hip hop

como supertópico, ao contrário do que ocorre na participação de MB no

programa Roda Viva.

ii. Os turnos de fala, ao longo da entrevista, são geralmente turnos curtos e

entrecortados, de modo que a distribuição das falas não necessariamente

se baseia numa estrutura de participação segundo a qual caberia a BB a

instauração dos tópicos e, apenas aos entrevistados (sobretudo a MB) o

desenvolvimento dos tópicos.

iii. A participação de BB no desenvolvimento dos tópicos também sugere

uma convergência entre as questões comentadas aqui e as características

do programa Papo com Benja enquanto contexto do microcosmo

jornalístico, haja vista que muito da centração dos tópicos de fato envolve

o campo esportivo e do futebol e que tais tópicos exploram de modo

bastante razoável as opiniões dos participantes, incluindo as opiniões do

próprio entrevistador.

iv. A configuração do programa parece corresponder às entrevistas

conhecidas como “talk-shows”, quando levamos em conta características

como: a proximidade física entre entrevistador e entrevistado; o aspecto

consensual e intimista da interação, baseado numa relação de

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descontração entre entrevistador e entrevistado e, ainda, a prioridade pelo

divertimento, em detrimento do informar.

v. Evidencia-se uma configuração interacional cujo elemento básico é o

apresentador e as relações estabelecidas a partir de si (FÁVERO et al.,

2010) e cuja inserção no campo jornalístico se baseia no entretenimento,

segundo as considerações de Bourdieu (1997 [1996]) acerca das

diferentes ênfases de conteúdo e de produtos produzidos pela televisão.

vi. Quanto à presença dos expedientes metadiscursivos, destacam-se tanto o

apresentador BB quanto MB como responsáveis por falas marcadas pela

presença do metadiscurso.

vii. As análises dos expedientes metadiscursivos nos supertópicos refletem

diferenças importantes entre a função desses expedientes e seu uso

enquanto recurso textual-discursivo para lidar com a interação em

andamento e com um contexto mais amplo do campo jornalístico. Essas

funções serão sistematizadas em nosso capítulo conclusivo.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Até o momento, os diferentes contextos de entrevista demonstram a diversidade das

funções do metadiscurso como recurso textual-discursivo presente na produção textual de Mano

Brown nas entrevistas ao Roda Viva e ao Papo com Benja. As observações demonstram também

uma manifestação contínua da reflexividade de Mano Brown em ambas as entrevistas, seja para

discutir os pressupostos, perspectivas e valores expostos nas falas dos entrevistadores, seja para

se posicionar sobre diversas questões – até mesmo sobre sua posição e representação tais como

mencionadas pelos agentes internos do campo jornalístico.

As funções do metadiscurso organizadas por nós indicam relações importantes

entre a presença desses expedientes e a própria configuração dos programas analisados, em

termos da posição dos programas Roda Viva e Papo com Benja no campo jornalístico. Por meio

dos exemplos representativos que selecionamos, foi possível observar que os expedientes

metadiscursivos:

i. organizam as porções textuais precedentes e subsequentes, indicam o

automonitoramento de Mano Brown durante a entrevista e o planejamento verbal

simultâneo a sua fala;

ii. atenuam a força ilocucionária do discurso de Mano Brown; exprimem que o rapper não

é capaz de responder ao tópico ou não possui conhecimento suficiente para tal;

iii. ponderam sobre as categorizações dos entrevistadores; expõem a perspectiva das

categorizações feitas por Mano Brown;

iv. negam os pressupostos presentes nas perguntas dos entrevistadores; deliberam sobre os

tópicos e os redirecionam;

v. explicitam as categorizações referenciais utilizadas pelos entrevistadores; fazem

referência ao seu envolvimento anterior e à frequência com que certos tópicos estão

presentes em sua fala.

Já em relação aos impactos desses expedientes nos contextos do campo jornalístico

dos quais tratamos, foi possível notar que, por meio desses recursos, o entrevistado Mano

Brown:

i. regula os efeitos de sentido de seus enunciados;

ii. demonstra sua autorreflexividade operando a nível dos signos e marca seu engajamento

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e atenção nesse contexto;

iii. procura recusar cobranças e responsabilidades que, a seu ver, não cabem a seu papel no

campo;

iv. controla os possíveis impactos de suas respostas para sua representação e posição no

campo;

v. expõe seu planejamento verbal ao longo da interação.

Importa retomar a utilização dos expedientes metadiscursivos pelos participantes

entrevistadores: como vimos, parte dos expedientes metadiscursivos se relacionaria à extensão

dos turnos de falas dos entrevistadores nos momentos de propor e instaurar os tópicos

discursivos. Já alguns outros se relacionariam às modalizações e aos segmentos prefaciadores

aos quais esses participantes recorrem no momento da instauração dos tópicos. Alguns

expedientes presentes nas falas dos entrevistadores, por sua vez, fazem referência às ações de

linguagem circunscritas na instauração dos tópicos (exprimir uma avaliação acerca do que esses

tópicos representarão à interação) e permitem aos entrevistadores realizar transições de um

tópico a outro (na medida em que produzem glosas sobre os conteúdos anteriores e os

relacionam aos subsequentes). Outra característica dos expedientes metadiscursivos na fala dos

entrevistadores consistiu na função de exprimir avaliações e comentários positivos acerca da

entrevista como um todo, chamando atenção para a representatividade de Mano Brown e

tecendo elogios diretos e abertos ao rapper

Para compreender as relações que emergem nesses dados de entrevista, por meio

de recursos textuais-discursivos como os expedientes metadiscursivos, o percurso do presente

trabalho considerou diferentes níveis contextuais capazes de apontar relações entre as ações de

textualização que se engendram nos expedientes metadiscursivos e as tomadas de posição de

Mano Brown em dois contextos do campo jornalístico. Assim, foi preciso: discutir como o

trabalho de Bourdieu (1996 [1994]; 1997 [1996]) com relação aos campos sociais e ao campo

jornalístico poderia nos ajudar a tratar da dinâmica social na qual se inserem as diferentes

entrevistas; descrever em que medida o metadiscurso poderia ser visto como apresentando não

apenas funções textuais-discursivas, mas também funções de natureza social, relacionadas à

inscrição dos indivíduos num contexto mais amplo. Esses recursos são responsáveis por indiciar

dimensões importantes de significação das trajetórias e posições ocupadas por Mano Brown em

determinadas práticas de linguagem do campo jornalístico, como as entrevistas em dois

diferentes programas televisivos.

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Além disso, foi preciso também compreender que a trajetória de Mano Brown está

ligada a representações mais específicas feitas sobre si, em termos de sua representatividade

como agente prestigiado do movimento hip hop no campo da produção cultural da periferia e

também da estigmatização na qual essa mesma trajetória se reverte. Nesse sentido,

consideramos também aquilo que pode significar a presença de Mano Brown em contextos do

campo jornalístico, em termos dos impactos decorrentes de uma participação em entrevistas

que crie ou reproduza certas representações e expectativas feitas em torno do rapper.

Nesse momento, com vistas a sistematizar algumas considerações mais gerais às

quais foi possível chegarmos, passaremos a relacionar alguns pontos importantes,

anteriormente discutidos no trabalho, a observações mais gerais.

No primeiro capítulo do presente trabalho, foi possível compreender um pouco

mais sobre as possibilidades de aplicação da noção de campo em um estudo que privilegia o

papel da linguagem nas tomadas de posição dos agentes. Ao discutirmos o papel da linguagem

nos campos sociais, com base nas proposições de Bourdieu (1996 [1994]; 1997 [1996]), foi

possível notar a importância das ações de textualização para tomadas de posição, sobretudo em

campos fortemente organizados como o campo jornalístico, para o qual se volta nosso trabalho.

Além disso, chamamos atenção para as especificidades que parecem estar presentes nas

tomadas de posição de certos indivíduos, intelectuais como Heidegger e ícones

sociolinguísticos como Mano Brown, que parecem reunir disposições para operar com recursos

de linguagem importantes em suas tomadas de posição e em sua trajetória num campo.

Para retomarmos o papel das ações de textualização num campo social, cabe

diferenciarmos, nesse momento posterior às análises, em que sentido se diferenciam as tomadas

de posição de agentes como Heidegger e Mano Brown por meio dos recursos de linguagem. Se,

no caso de Heidegger, o filósofo alemão soube “por em forma” as palavras para que pudesse

ser alçado a posições (para além do campo de produção filosófica) também no campo político,

como poderíamos caracterizar os objetivos de Mano Brown nas tomadas de posição por meio

das ações de textualização analisadas? O percurso do presente trabalho nos permite considerar

que, ao contrário de Heidegger, não se pode dizer que Mano Brown emprega os recursos

metadiscursivos para lograr êxito em atingir posições nesse campo com o qual está em contato,

o campo jornalístico. Antes, suas ações de textualização nos dois contextos que observamos

“põem em forma” questionamentos vários em relação a ações discursivas performatizadas por

determinados agentes do campo jornalístico.

Quando tomamos as características relativas aos impactos mais gerais dos

expedientes metadiscursivos em ambas as entrevistas, verificamos que as ações de textualização

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de Mano Brown estiveram ligadas a objetivos semelhantes, muito relacionados com a natureza

dos tópicos discutidos nessas entrevistas. Para isso, é preciso considerarmos as tematizações

mais gerais dos tópicos desenvolvidos em ambas as entrevistas:

i. certos tópicos mobilizam diretamente questões atinentes à representatividade e

à estigmatização do rapper;

ii. outros, voltam-se para as vivências da periferia, suas formas de organização,

seus projetos sociais, seus problemas com relação à violência e ao tráfico;

iii. há também tópicos que envolvem as opiniões de Mano Brown sobre a sociedade

e sobre o futebol;

iv. e, em ambas as entrevistas, tópicos ligados à carreira musical de Mano Brown e

à atividade profissional cotidiana do rapper.

Como foi possível observar nas análises, nos tópicos envolvendo a

representatividade e estigmatização de Mano Brown (cuja presença foi intensa no programa

Roda Viva), a utilização de expedientes metadiscursivos ocorreu de modo mais intenso. Como

vimos anteriormente, a mobilização desses tópicos se relaciona com as ações dos

entrevistadores que atribuem a Mano Brown uma posição de prestígio e de responsabilidade na

proposição de ideias e na solução de problemas na periferia. Já nos tópicos que envolvem as

vivências da periferia e sua organização, os expedientes metadiscursivos são usados como

reação de Mano Brown frente às atribuições dos agentes do campo jornalístico sobre a periferia,

vista por eles como espaço social marcado pela violência, criminalidade e pelo tráfico. Nos

tópicos que envolvem as opiniões de Mano Brown sobre a sociedade, de modo geral, a

incidência dos expedientes metadiscursivos diminui, tendo em vista que, apesar das

discordâncias expostas, os agentes do campo jornalístico, em ambas as entrevistas, não

desenvolvem os tópicos no sentido de estabelecer um contraponto às opiniões do rapper. Por

fim, no caso dos tópicos que envolvem a atividade profissional de Mano Brown e sua carreira

musical, diminui ainda mais a incidência dos expedientes metadiscursivos, tendo em vista que

esses momentos parecem ser guiados por uma intenção de transmitir ao público informações

sobre os projetos musicais atuais de Mano Brown e sobre os momentos que lhe permitiram

chegar à posição de agente prestigiado no movimento hip hop do campo da produção cultural.

Considerando as informações retomadas acima sobre as funções e a presença dos

expedientes metadiscursivos nos tópicos de ambas as entrevistas, chegamos à ideia de que a

utilização do metadiscurso por parte de Mano Brown pode ser entendida como meio para reagir

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frente a duas ações específicas nesses contextos do campo jornalístico: à representação feita

pelos agentes do campo jornalístico sobre a posição de Mano Brown (e os deveres caudatários

dessa posição); à representação feita pelos agentes do campo jornalístico, nesses contextos

analisados, sobre as vivências da periferia (sua organização e os problemas enfrentados).

Uma vez que compreendamos essas ações de textualização como recurso para que

Mano Brown reaja às representações feitas nesses dois contextos do campo jornalístico,

podemos ver confirmadas as ideias iniciais de que, de fato, as entrevistas com o rapper Mano

Brown parecem corresponder a um momento de contato entre o movimento hip hop, do campo

da produção cultural da periferia, e o campo jornalístico. Nesse sentido, os expedientes

metadiscursivos demonstraram-se recursos válidos para que o rapper pudesse obter êxito em

suas tomadas de posição nesse campo. Além disso, analisar como tais recursos textuais-

discursivos impactam contextos do campo jornalístico nos permite lançar luzes a uma relação

intrínseca e complexa entre níveis “micro” e “macro” de análise, na medida em que nos permite

compreender qual o estatuto das ações de textualização numa miríade de fenômenos que não

são apenas linguísticos stricto sensu e que são co-ocorrentes num microcosmo de ação dos

sujeitos.

De modo geral, esperamos que o presente trabalho tenha contribuído para a

compreensão das relações entre texto e contexto, uma vez que seu esforço analítico deu-se

também no sentido de chamar atenção para a participação de recursos textuais-discursivos em

ações e relações sociais mais amplas. Essas ações e relações mais amplas, como a complexa

inscrição de um sujeito em contextos de um campo social fortemente organizado, não apenas

emergem na língua, mas também têm na língua um meio influenciador e impactador cuja

riqueza deve ser analisada de forma sistemática.

Esperamos, além disso, que o presente trabalho tenha conseguido o mérito de

considerar de modo consistente, em dois contextos específicos, as asserções de Bourdieu (1997

[1996]) acerca do campo jornalístico. Isso porque, acreditamos que a observação mais detalhada

dessas entrevistas, em certo sentido, demonstra a pertinência, ainda dramaticamente real, da

seguinte asserção do autor: “Caminha-se cada vez mais rumo a universos em que o mundo

social é descrito-prescrito pela televisão (BOURDIEU, 1997 [1996]: 29)”. Embora haja

movimentos do campo jornalístico no sentido de criar ou reproduzir “efeitos de real” sobre os

deveres de um agente do movimento hip hop e sobre a realidade da periferia em termos das

desigualdades sociais presentes, a inscrição de Mano Brown no campo jornalístico pode

demonstrar que, igualmente, há sujeitos dispostos a reunir uma série de recursos, dentre eles

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recursos de linguagem como os observados aqui, para resistir e se contrapor à prescrição de

uma realidade tal como feita por campos fortemente organizados.

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189

______________. Marcadores discursivos e sequências textuais: uma análise das ações de

textualização em programas midiáticos. Dissertação (Mestrado em Linguística). Orientadora:

Profa. Dra. Anna Christina Bentes da Silva. Instituto de Estudos da Linguagem, Unicamp,

Campinas, 2014.

MARTINS, E. F. M. Estratégias de ação e manipulação tópica: o embate de perspectivas em

uma entrevista jornalística. SCRIPTA: Belo Horizonte, v. 18, n. 34, p. 141-162, 2o sem. 2014.

MIRA, C. C. C. R. Afasia e interação: uma análise da dinâmica de turnos e da gestão do tópico

nas práticas conversacionais de sujeitos afásicos e não-afásicos. Tese (Doutorado em

Linguística). Orientadora: Profa. Dra. Edwiges Maria Morato. Instituto de Estudos da

Linguagem, Unicamp, Campinas, 2012.

MODENA, M. E. M. Faces do Edifício Master: um estudo sobre as faces em entrevistas de

cinema documentário. Dissertação (Mestrado em Língua Portuguesa). Orientador: Prof. Dr.

Dino Preti. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2009.

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referenciais. In: KOCH, I.G.V.; MORATO, E.M.; BENTES, A. C. (Ed.). Referenciação e

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MORATO, E. M. A noção de frame no contexto neurolinguístico: o que ela é capaz de explicar?

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NASCIMENTO, E. P. do. É tudo nosso! Produção cultural na periferia paulistana. Tese

(Doutorado em Antropologia). Orientador: Júlio Assis Simões. Faculdade de Filosofia, Letras

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PALUMBO, R. Referenciação e Argumentação: a dinâmica nas orientações argumentativas em

debates políticos televisivos. Dissertação (Mestrado em Filologia e Língua Portuguesa).

Orientador: Profa. Dra. Zilda Gaspar Oliveira de Aquino. Faculdade de Filosofia, Letras e

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PONTES, E. O tópico no português do Brasil. Campinas: Pontes, 1987.

REVISTA FÓRUM. Entrevista com Mano Brown, no 1, setembro de 2001.

REVISTA TEORIA E DEBATE. Entrevista com Mano Brown, no 46, nov./dez. 2000 a jan.

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REVISTA TRIP. Entrevista com Mano Brown, setembro de 1999.

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190

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RIO, V. C. As dimensões contextuais das práticas de linguagem e os processos de elaboração

do conhecimento sobre gêneros midiáticos de jovens universitários. Tese (Doutorado em

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Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2012.

SOUZA, J. & GRILLO, A.; SILVA, E.; ROCHA, E.; MACIEL, F.; SANTOS, J. A. F.; LUNA,

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<http://www.dicionariompb.com.br/william-magalhaes/biografia>. Acesso em: 03/06/2015.

<http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/tv/materias/CASA-DAS-PALAVRAS/483558-

ENTREVISTA-ESPECIAL-COM-OS-JORNALISTAS-PAULO-MARKUN-E-FROTA-

NETO.html>. Acesso em: 03/06/2015.

<http://oglobo.globo.com/blogs/amplificador/posts/2012/08/31/black-rio-prepara-trilogia-

supernovasambafunk-462980.asp>. Acesso em: 03/06/2015.

Documentos disponíveis somente em suporte eletrônico:

DVD 100% Favela. Direção: Sophia Bisilliat. Produção: Negredo produções, Ale, Arnaldo,

To, Yilsão, 1 da Sul e Ferréz, 2005. DVD (97 min). Apresentações musicais e depoimentos

extras, língua original: português.

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192

RACIONAIS MC‘S. Holocausto urbano. Gravação: Zimbabwe. Produção: Alexandre e

Marcelo, Racionais MC's. Formato: LP. Lançamento: 1990.

_________________. Escolha o seu caminho. Gravação: Zimbabwe. Produção: Alexandre e

Marcelo, Racionais MC's. Formato: LP. Lançamento: 1992.

_________________. Raio X do Brasil. Gravação: Zimbabwe. Produção: Newton Carneiro,

Racionais MC's, Wander. Formato: LP. Lançamento: 1993.

_________________. Sobrevivendo no inferno. Gravação: Cosa Nostra. Produção: Gertz

Palma, Racionais MC's. Formato: LP, CD. Lançamento: 1997.

_________________. Nada como um dia após o outro dia. Gravação: Cosa Nostra. Produção:

Racionais Mc's, Zé Gonzales. Formato: CD, LP. Lançmento: 2002.

_________________. Cores e valores. Gravação: Cosa Nostra, Boogie Naipe, X-File Records.

Produção:DJ Cia, Mano Brown, Bood Beatz, Lino Krizz, DJ Skrit, DJ Rick Dub, Irmão

Arabico, Willian Magalhães, Juliano Kurban. Formato: CD, LP, download digital. Lançamento:

2014.

RODA VIVA. Produção: TV Cultural. Apresentação: Paulo Markun, 2007. WMV (87 min).

Entrevista com Mano Brown, língua original: português.

TIM MAIA. Tim Maia Racional, volume 1. Gravação: Seroma, Trama. Produção: Tim Maia.

Formato: LP, CD (relançamento). Lançamento: 1975.

TIM MAIA. Tim Maia Racional, volume 2. Gravação: Seroma, Trama. Produção: Tim Maia.

Formato: LP, CD (relançamento). Lançamento: 1975.

YO! MTV. Direção: MTV Brasil. Produção: Tatiana Ivanovici. Apresentação: Thaíde, 2002.

WMV (60 min). Apresentações musicais e entrevistas, língua original: português.

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193

ANEXOS

ANEXO 1 – Protocolo de transcrição do grupo GOGITES (versão 2007)

CONVENÇÃO DE TRANSCRIÇÃO DO GRUPO DE PESQUISA “COGNIÇÃO, INTERAÇÃO e

SIGNIFICAÇÃO”/ COGITES

(Coordenação Prof.a Edwiges Maria Morato- IEL/Unicamp)

Versão 2007

1. Informações gerais:

a) transcrição em formato lista;

b) os participantes são identificados por duas letras maiúsculas correspondentes às iniciais dos

dois primeiros nomes;

c) indicação de letras minúsculas nas linhas correspondentes às descrições de aspectos não-

verbais sincronizados e/ou relacionados à fala;

d) a transcrição é efetuada em ortografia standard adaptada.

OCORRÊNCIAS NOTAÇÃO EXEMPLOS

1. Fenômenos sequenciais

overlap/encavalamento/superposição

de turnos

[ inicio do overlap

] fim do overlap

Exemplo 1.

MA é:

EM [.h

JM [nã:o num ve-num

veio\

Exemplo 2:

MA [é u que/]

AN [é intru]so (.)

NA e:[i:n:: ]

MA [para de] cumê pra

falá

palavra final=

=palavra inicial

EM [.h

JM [nã:o num ve- num veio\=

EM =ela falou pra mim/ (.) ela

tem um parente fazendo uma

cirurgia\

2. Pausas

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194

micro pausas, inferiores a 0,3

segundos (.)

pausas medidas com ajuda de

programas editores

de som, como Audacity, Praat, etc.

unidade em segundos

(0,4), (1,0), (2,3)

MG a:nã:o/(0,2) a a a era-

(0,2)

3. Fenômenos segmentais

alongamento silábico : MG .h a: p-prefessora

nu:m ve:io\

truncamento de palavras - MG .h a: p- prefessora

nu:m ve:io\

inspiração do locutor .h MG .h a: p-prefessora nu:m

ve:io\

expiração do locutor H MS H °ahn°/

3. Prosódia

entonação crescente/ ascendente /

EM ela falou pra mim/ (.)

ela tem um parente fazendo

uma cirurgia\

entonação decrescente \

EM ela falou pra mim/ (.)

ela tem um parente fazendo

uma cirurgia\

ênfase particular segmento sublinhado

AD no:ssa/ isso ai oh/

(0.4) que: qué isso hein/ (1.6)

a sinhora vai bater um pra:to

(.) que eu vô tê fala hein/

volume forte de voz segmento em MAIÚSCULA

EM a dona ROSAUra//

MG : é:

COMENTÁRIOS E

DESCRIÇÕES

em itálico e entre parênteses

encontram-se os

comentários do transcritor e

fenômenos e atividades

não-transcritos, como risos, leitura,

mudança de lugar, saída da sala,

conversas de fundo não

transcrita etc.

((comentários))

MH pra carregar trouxa\ ma

((risos))

MA aí tá certo

delimitação do segmento de fala

correspondente à descrição feita

(quando houver)

< >

MH <fui no tororó/(.)

beber mh <((cantando))> ou

MH <((cantando))fui no

tororó/ (.) beber>

INCERTEZAS DO

TRANSCRITOR e

IMPRECISÕES

quando o transcritor apresenta (hipótese do que se MA depois chegô uma

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195

dúvida com relação ao segmento

produzido

ouviu)

mãe cum uma (criança)/

(hipótese1 /hipótese2) MH a gente

fazia(trouxa/colcha)

Segmentos incompreendidos/

inaudíveis

indicar com x,

correspondente,

sempre que possível, ao

número de sílabas produzido

AD mas ela num xxx/

MA naum xx ali hum/ ele

atendeu sou:(.) marido\

DESCRIÇÃO DE AÇÕES (como

gestos de

apontar, direcionamento do olhar,

postura

relacionados à fala)

* delimitação da ação

descrita na

linha seguinte relacionada à

fala

MG +é:+ mg +balança

afirmativamente a cabeça+

------ continuação da ação.

MA +.h a: p- prefessora

nu:m ve:io\+ ma +volta-se

para JM

- --------+

----> (linha x) indica que a

ação descrita continua até

determinada linha

DA tá\ (.8) seu valmir/

+eu quero

que o senhor desenhe pra

mim aqui um relógio /+ da

+entregando à VM uma folha

de papel—--- ---->+

$(.)marcando oito e vinti\

da *faz anotações no

prontuário

vm * ------desenha--- ------>>

(line 33)

MARCAÇÕES GRÁFICAS

continuação do turno de fala pelo

mesmo locutor após uma quebra da

linha da transcrição para

introduzir um overlap de outro

interlocutor

MA sai da[i: não]&

IS [eu não\ to vendo/]

MA &mexe aí

IDEOFONES e INTERJEIÇÕES

(extraído do

NURC/SP No. 338 EF e 331 D2)

Para manifestar concordância

hum, hmm, hm-hm,

hum-hum

EM num é/ (.)

NS °hm-hum°

Fáticos

ah / eh/ éh/ ahn/ ehn/

uhn/ tá/

JM °eu VI°(0,5)

EM Ahn/

JM &um se-cretário da

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justi:ça°

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197

ANEXO 2 – Quadro de sinais de transcrição do projeto ALIP

OCORRÊNCIAS SINAIS Observações/Exemplos

Sobre a grafia das palavras

Nomes próprios em geral Iniciais maiúsculas ...a festa foi na casa do

Carlos...

Não se usam maiúsculas após

os sinais ... ?

Nomes próprios que

identificam o informante ou

pessoa do relacionamento do

informante

Não transcrever o nome e

grafar apenas as iniciais

maiúsculas

Doc: Dona M., a senhora falou

que o J. seu marido....

Nomes de obras (livros,

revistas, jornais) e/

ou palavras estrangeiras

Em itálico e grafia da língua

de

origem, quando for o caso.

... adorava ouvir Purple Rain..

... gostei de ler Cem Anos de

Solidão...

Marcadores discursivos Ocorrência seguida do

ponto “?”, quando for o

caso.

... é pra deixar aqui né?...

... então acho que aí é o ponto

Fáticos/Interjeições Ocorrência seguida do

ponto “!”

... ah! ... que alívio...

Interjeições já dicionarizadas Vixe!, ixe!, pô!

Numerais e letras Por extenso ... foram trinta e três alunos...

... marca com um xix a

alternativa bê na a questão

dez... marquei a alternativa bê

e não a dê

Siglas e abreviaturas

Importante: siglas não se

confunde com redução de

palavras, como por exemplo,

depê, para ‘dependência’, que

devem ser grafadas na sua

forma reduzida, em minúsculas.

Grafar conforme a

pronúncia do informante.

Se pronunciada letra a

letra (ex.1), grafar em caixa

alta, separando as letras

por ponto. Se pronunciada

como palavra (ex.2), seguir

a grafia prevista pela

ortografia, em caixa alta e

sem pontos entre as letras.

Ex. 1: B.O., I.N.S.S., I.N.P.S.,

U.F.R.J, R.G., C.P.F.

Ex.2: USP, IAMSP, TAM, SUS,

UFSCAR, CIC.

Truncamento (palavras

incompletas)

/ ... ca/ casou semana

passada...

Metalinguagem do informante ‘aspas simples’ ... o ‘mesmo’ do carioca

Citação “aspas duplas” ... Armstrong disse “pequeno

passo para o homem...

gigantesco salto para a

humanidade”

Sobre alguns aspectos morfo-fonológicos

Indicar a inserção de segmentos

vocálicos

Registrar a forma realizada alembrá(r), avoá(r), drento,

despois, revórve

Indicar o apagamento de

segmentos, quando for:

Colocar o segmento não

realizado entre parênteses

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Segmento vocálico e/ou consonantal em início, meio ou final de palavra;

(a)rrancô(u), tam(b)ém,

me(s)mo

Ditongo; ca(i)xa, pe(i)xe, po(u)co

Redução de ‘s’ do morfema de primeira pessoa plural;

ca(i)xa, pe(i)xe, po(u)co

Redução de gerúndio ou seqüência –nd–;

cantan(d)o, propagan(d)a

Redução de infinitivo de verbos.

Colocar o segmento não

realizado entre parênteses

e marcar a tonicidade da

sílaba final com acento

agudo.

cantá(r), vendê(r), sorrí(r)

Indicar as realizações não-previstas das preposições, quando houver:

a) Contração da preposição

com + artigo

Indicar a contração com

uma aspa

c’a (=com + a), c’o (=com + o),

c’um (=com + um)

c’uma (=com + uma)

b) Contração da preposição de

+ artigo indefinido

d’um (=de + um), d’uma (=de

+ uma)

c) Contração da preposição de +

pronome eu

d’eu (= de + eu)

d) Contratação da preposição

de + palavra iniciada por vogal

d’oeste (=de + Oeste), d’água

(=de água), d’onde (de

+ onde)

e) Redução da preposição para Registrar a forma realizada pra (sem acento), pa (sem

acento)

f) Contração da preposição para

reduzida + artigo

Registrar a forma realizada pra (=para + a), pa (=para + a),

pro (=pra + o), po

(=para + o), pr´um(a) (=pra +

um(a)), pum(a) (=pa +

um(a))

g) Modificação da preposição

em

Grafar como ela é

realizada (em > ne)

a gente vai muito ne rio pa

pescá(r)

h) Inserção/modificação de

preposição

Registrar a forma realizada eu penso de que ele não deve

ir...

eu perguntei na onde ele

morava...

eu perguntei da onde ele

vinha...

Sobre alguns elementos prosódicos

Silabação Hífen entre as sílabas (sem

espaço)

... foi quando ele disse... –fi-

que-a-qui-...

Pausa Reticências para qualquer

tipo

... ele... voltou feliz...

Alongamento (de

vogais/consoantes)

Dois pontos digitados duas

vezes

... ele a::cha...

Interrogação Ponto-de-interrogação ... você vai à festa?...

Sobre alguns aspectos da interação

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Identificação dos participantes

da interação

Documentador (Doc.)

Informante (Inf) e

Interveniente (Int)

Doc.: o senhor gosta de

pescar?

Inf.: eu não sei pescar... eu

não aprendi...

Início de turno Minúsculas

Discurso direto Aspas duplas e duplo

travessão

... ela disse -“vamos à festa?”-

eu respondi - “talvez”-

Sequência de discurso direto Separar por travessão cada

um dos turnos

Inf.: aí ele falou – “cadê o

dinheiro” – ... – “ta lá

atrás” – o outro falou.

Mudança do fluxo discursivo Duplo travessão ... eu não tinha – fique quieto

((falando com o cachorro)) –

tempo de estudar...

Superposição/simultaneidade

de vozes

Texto entre colchetes, com

índice sobrescrito à

esquerda do colchete

inicial. Todas as

sobreposições devem ser

indicadas

sequencialmente em toda

a transcrição (1, 2, ..., n)

Inf.1: eu não tinha saído de

lá... 1[e foi então...]

Doc.: 1[cê tava] em casa

ainda?

Inf.1: eu tava... e foi então que

ele ligou...

Intervenção do documentador

no fluxo de fala do informante

Se não houver

sobreposição de vozes

Inf: outro dia eu estava na

casa do João [Doc.: ahan]

quando...

Se houver sobreposição de

vozes:

Inf: outro dia eu estava na

casa do 1[João] 1[Doc.: ahan]

quando ...

Risadas simultâneas de

documentador e informante

Doc e Inf: ((risos))

Sobre os comentários do transcritor

Hipótese do que se ouviu Entre parênteses simples

(hipótese)

... foi então que ele (fez) a

prova...

Comentário descritivo do

transcritor

Entre parênteses duplos ... eu não gosto de pescar... é

que não sei pescar... ((risos))

por isso que não gosto...

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ANEXO 3 – Transcrição do programa Papo com Benja em 06/2011

Situação comunicativa: entrevista ao programa “Papo com Benja”

Data: 06/2011

Tempo total: 38min 16s

Participantes: BB: Benjamin Back

MB: Mano Brown

WM: William Magalhães

TEXTO Subtópico

correspodente

((é exibida a vinheta com a inscrição “Papo com Benja”))

BB começando mais um “Papo com Benja” agora o “Papo com

Benja” desse mês especial né? porque é o mês que eu (es)tô(u)

comemorando agora DEZ anos de Lance quem diria... DEZ anos

de Lance

e aqui ó(lha) ((olha e aponta a camiseta que está

vestindo))... minha camiseta já::... é um(a)' homenagem pos

cara aqui velho... os cara (es)tão feliz hoje já tirô(u)

sarro de mim falô(u) que Deus existe... Mano Brown ((risos

de BB, cumprimentando MB com uma das mãos))

MB salve

BB grande Brown... William Magalhães rapaz... PIanista né

Brown? PIanista... da banda Black Rio ((cumprimentando WM

com uma das mãos))... cara::ca véi olha só

WM ((risos))

BB hoje até quem gosta de black music aqui tem aula meu...

eu num posso nem abri(r) a boca aqui...

Aniversário do

Papo com Benja

Programa com MB

e WM

ô Brown... antes de falá(r) de futebol dizê(r) um negócio

p(r)o (vo)cê meu... semana passada teve show do Mario

Rogers ... foi emocionante não foi não cara?

MB certo... mais... bom demais... convidado aos quarenta

e cinco do segundo tempo... foi lo(u)co... valorizô(u) mais

ainda

BB vê(r) o Mario Rogers no palco é tão emocionante quanto

vê(r) um jogo do Santos o::::u... a 1[pegada é o(u)tra?]

MB 1[nã::o tão emocionante] quanto é... bom... coisa rara

né? se o:/ apesar que o Santos a gente acompanha mas...

aconteceu um evento né?... mexe com a emoção né?

Show do Mario

Rogers

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BB William Magalhães Black Rio rapaz olha só... olha::

foi uma supresa pô o Brown tro(u)xe você aqui convidado

surpresaça...

Presença de WM

no Papo com Benja

santista tam(b)ém?

WM santista e no Rio sô(u) vascaíno... graças a Deus o

Vasco... (es)tá me dando 2[essa (inint.)]

BB 2[pô então (vo)cês] (es)tão bem pa caramba né?... pô

Vasco campeão da Copa do Brasil (vo)cê acompanha William

(vo)cê vai em jo::go tudo?

WM eu já fui mais né?... u(l)timamente eu acompanho... de

vez em quando na televisão né?... gosto muito eu gosto de

futebol... futebol faz parte da nossa formação aí né?...

Black Ri::o né? Black Rio tem tudo a vê(r) com futebol

BB tudo a vê(r)...

Torcida/gosto de

WM no futebol

ô Brown... (vo)cê sempre falô(u) né?... cri::me futebol

música... não dá pra sai(r) disso?

MB tem que/ tem que sai::(r) né?... tem que

melhorá(r)::... né:::

BB mas na música "Nego Drama" (es)tá lá... cri::me...

futebol::... 3[mú::sica]

MB 3[si::m]... pode sê(r) tam(b)ém... mas a::: tendência

eu acho que é:: -- e a nossa luta -- é que amplie né?...

advogado médico engenhe(i)ro arquite::to ((risos))... ((muda

a voz)) presiDEN::te

Temas tratados por

MB sobre o Brasil

BB ô Brown... o Brasil mudô(u)?

MB ah o Brasil (es)tá mudan(d)o (es)tá em transição o

Brasil (es)tá em muda/ (es)tá em mudança (es)tá em processo

de mudança

Mudança no Brasil

BB a gente ouve músicas... de dez quinze vinte trinta

anos atrás... principalmente músicas... de protesto que

falava de uma realidade... essas músicas continuam atuais

até hoje?

MB sim... guardado as proporções da época certo?... eh::

pô se você:: você fô(r) vê(r)/

Atualidade de

músicas antigas

tem um barato que eu falo sempre... nós (es)tamo(s) no

terce(i)ro governo de esquerda... né? já são doze/ é:: --

oito com mai(s) -- nove anos aí:: de um governo eleito de

esquer::da coisa que a gente luTAva... a gente perdeu três

eleição c'o Lu::la... é aquela/ aquele pessoal que começô(u)

com o rap em noventa noventa e um... já veio c'o Lula...

Governo Lula

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202

lutan(d)o e a gente viu o Lula perden(d)o três eleição

consecutiva... ((sorrindo)) era que nem o Santos

WM ((risos))

MB perdia e/ a gente pô continuava e quando o Lula foi

eleito a prime(i)ra vez tam(b)ém foi a::... a grande mu/ a

grande PÁ... foi um governo de esquerda eleito pá... e a

gente apoiava... uma coisa é você sê(r) é:: o:: oposição

o(u)t(r)a coisa é quando o governo que você apoia... elege...

que era o Lu::la pá toda aquela ideia e tudo aquilo...

isso tam(b)ém fez o segundo/ a segunda eleição do Lula o

segundo mandato tam(b)ém que ele deu u(m)a/ o Brasil deu

u(m)a:: ((faz movimento com as mãos para frente))... u(m)a

movimentada uma movimentada no Brasil... mexeu com a economia

pagô(u) dívida emprestô(u) dinhe(i)ro fez o/ fez acontecê(r)

muita coisa o Lula fez...

Efeitos do governo

de Lula

então o Brasil é lógico que reflete na rua... reflete no dia

a dia reflete nas pequenas e grandes coisas... entendeu?

quem (es)tá na rua percebe que mudô(u)

Mudança no Brasil

BB e o rap mudô(u)?

MB tem que mudá(r) eu acho... talvez... é necessário

4[(inint.)]

BB 4[mas ele mudô(u)?]

MB ((respira fundo)) e 5[o o ((balbucio))]

BB 5[tem mais espaço] hoje::?

MB não/ tem menos espaço hoje... por incrível que pareça

tem menos espaço hoje o rap hoje... que o rap só/ o rap...

ele sofre embargo... cultura::l embar/ embargo racia::l

Mudança no rap

BB (vo)cê acha que ainda continua?

MB exi::ste calado silencioso hipócrita existe...

existe... eh:::: difícil te prová(r) é coisa que se VIve..

e se sente e você::: eh e você vê:: pelo/ pelo investimento

que é feito em cima... quem mantém eh/ esse movimento são os

PRÓp(r)ios integrantes... não tem movi/ dinhe(i)ro externo

praticamente... todo dinhe(i)ro é feito pelos próprios é uma

república À parte... da música... entendeu? que tam(b)ém não

consegue:: furá(r) certos bloqueio... pela própria postura

política que tem não fura o bloqueio e também o bloqueio se

((faz expressão facial fechada))... fica mais ((aperta as

mãos e continua com a expressão facial fechada))

WM mais acirrado né?

Bloqueio sofrido

pelo rap

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203

MB mais acirra::do... e a gente tam(b)ém ((faz movimento

com as mãos puxando)) do lado de cá a gente tam(b)ém... mas

é lógico que::... OUtros que virão... eles vão tê(r)

alternativas pa podê(r) tam(b)ém chegá(r) aonde eles querem

BB ô Brown e William... (vo)cês não acham que às vezes o

jogador de futebol... pelo poder que ele tem... eh:: com a

mí::dia o apelo popular que eles têm... pô hoje qualqué(r)

-- qualqué(r) não mas pô (vo)cê pegá(r) um Neymar (vo)cê

pegá(r) um Ronaldo (vo)cê pegá(r) um Adriano... Roberto

Carlos... -- pô esses cara na hora que levantam a mão pa

dá(r) uma entrevista... pô o mun/ -- é ((balbucio)) modo de

falá(r) -- o mundo PAra pa vê(r) os caras

WM uhum

BB e a gente tem visto muito na Europa principalmente os

lances de racismo assim que são coisas... absurdas

recentemente teve agora... lá na Ucrânia que o cara jogô(u)

uma banana po Roberto Carlos... no no meio do jogo

WM no::ssa

BB na Espanha na Itália tem tido muito quando o cara

vai... vai batê(r) um escanteio uma falta a torcida fica

chamando de macaco... (vo)cê não acha -- isso é um abSURdo

--

Casos de racismo

no futebol

(vo)cê não acha que o/ o jogador por tê(r) essa força... ele

deveria também se e::... se pronunciá(r) também tê(r) mais

atitude?

MB ó(lha) chapa vô(u) te falá(r) s::... eu acho que cada

um sabe onde o calo aperta... certo? ele sabe o::... o mundo

que ele convive... e ninguém é obrigad(o)'a fazê(r) a vontade

de ninguém eu acho que o jogador... como qualqué(r) o(u)t(r)o

cidadão... ele tem que reagi(r)... certo? ele não pode se

omiti(r)... num (in)teress(a)' (s)e (e)le é jogador se ele

é rapper se ele é... sambista se ele é negro se ele é branco

e num concorda com a injustiça...

Atitude do jogador

de futebol ao

racismo

((sorrindo)) porque o branco também tem que reagi(r) a

isso... tá ligado? racismo é um branco vê(r) e ficá(r)

quieto... (vo)cê achá(r) que o o(u)t(r)o preto tem que

protestá(r) eu acho que contra o racismo branco tam(b)ém tem

direito de protestá(r)

BB sim mas -- eu concordo -- só que em vez desse caso em

específico... por exemplo eu vô(u) falá(r) do meu caso... eu

toda vez que vejo um lance desse eu critico veementemente

MB certo

BB mas eu ((balbucio)) eu/ porque eu considero isso um

absurdo pra mim preconceito racial qualqué(r) tipo de

Reação ao racismo

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204

preconceito... pô isso é u(m)a:: é uma estupiDEZ sem

limite... mas ô Brown mas quem é atingido também tem que se

pronunciá(r)

MB tem que se pronunciá(r) e pronunCIa... pronuncia...

eh::: agora... a postura do Roberto Carlos... o Roberto

Carlos que é um cara que tem a me(s)ma tonalidade de pele

que eu... a gente tem/ certo? a gente::... é um cara que

dent(r)o do Brasil ele poderia se senti(r) até bran::co...

como muitos aí se sente... lá ele foi senti(r) na pele o que

que é você sê(r) um... ((sorrindo)) um brasile(i)ro de...

raça misturada e tal o cara identificá(r) de longe você...

((risos)) 6[(inint.)]

Postura de Roberto

Carlos

WM tem uma questão cultural também dessa questão do

protesto né? que toda vez que o... o negro é atingido... e

ele protesta sempre... as pessoas dizem "não... porque essa

coisa do racismo é... a coisa do negro exigi(r) um respeito

é muito violento... se coloca com muita violência"... e aí

nessa hora a gente tem que:: botá(r) na balança né? realmente

se... se ela violência num/ num é necessária... nu/ nu/ num

digo nem a violência física em si mas a... realmente essa

colocação né? a "o cara (es)tá ali eu vô(u) falá(r) 'num

faça isso'" sabe?

Reação ao protesto

do negro

BB é que eu acho que o músico ele se expressa/ eh as vezes

ele se expressa o protesto dele a revolta dele através da

música

WM é é ((movimenta a cabeça em sinal de positivo))

BB ele passa o recado dele na onde é a praia dele

WM exato

BB e às vezes eu acho no futebol eu acho que 7[o jogador

deveria tê(r)] um po(u)co mais de

WM 7[é uma situação]... mas é uma situação meio difícil...

Atitude do jogador

de futebol ao

racismo

meio:: assim porque a gente fica pensando também no Pelé que

foi o grande... isso nunca aconteceu com o Pelé ou com

o(u)tros jogadores entendeu

MB ((levanta a cabeça)) VAI sabê(r)

BB é isso que eu ia falá(r) não sei... 8[mas naquela

época]

WM 8[não/ mas que]

BB a gente não tinha tanta informação... num tinha 9[a/

a/ a]

Racismo contra

Pelé

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205

MB 9[talvez o cara] tenha ignorado... na al/ na altura da

majestade que ele era ele ignorava... 10[vai sabê(r) se os

cara não tentô(u)]

WM pô mas a Copa... 10[mas o Pelé desde que ele pintô(u)]

((sorrindo)) dentro da Copa do Mundo teve muita coisa

televisiva se tivesse ((corte de imagem, é exibida a vinheta

do programa)) tido alguma coisa nesse... nesse sentido

teria... entendeu?

BB ô Brown (vo)cê já trombô(u)/ (vo)cê conhece o Pelé

pessoalmente?

MB nunca conheci pessoalmente eh ainda não tive essa

satisfação de conhecê(r)

BB (vo)cê acha que no dia que (vo)cê encontrá(r) eles vai

sê(r) uma emoção assim daquelas sem limite? o:::u o(u) (vo)cê

não tem muito disso?

MB 11[nã:::o não eu sô(u)/] não eu tenho as pessoas que

eu gosto eu ab/ abra::ço... 12[faço questão assim/

cumprimentá(r)::]

WM 11[nã::o com o Pelé]... 12[o Pelé é nosso herói total]

Encontro de MB

com Pelé

BB na música 13[(vo)cê tem esses cara que (vo)cê "pô"]...

que (vo)cê paga o maió(r) pau que (vo)cê fala "caraca

(es)tô(u) aqui com o cara"? Jorge Ben?

MB 13[si:::m já fiz isso ah sim]... Jorge Ben/ não/

qualqué(r)/ qualqué(r):: pessoa que eu gostá(r) eu vô(u)

cumprimento... abra::ço

BB mas (vo)cê tem esse lance tam(b)ém de falá(r) "pô

de(i)xa eu tirá(r) uma foto c'o ca::ra... 14[arrumá(r) um]

autógrafo se fô(r) 15[o ca::so]... essas coisa (vo)cê tem?

MB 14[ti::ro foto]... 15[pego]... pego... pego claro

WM ((risos))

MB pego... Pelé fácil... pô foto autógrafo tudo

WM 16[((risos))]

BB 16[e na música]... é só o Jorge Ben?

MB 17[nã::::o]

BB 17[o cara p(r)o] (vo)cê falá(r) "pô quero tirá(r) uma

foto" -- porque (vo)cê sabe eu gosto de falá(r) com você de

MÚsica Brown... eu gosto de te enchê(r) o saco de música --

Músicos que MB

admira

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206

MB ((sorrindo)) não/ de vários eu de vez em quando/ a

gente encontra... eh né/ na/ na... nas pista assim a encontra

assim eu aeroporto pá eu vô(u)... vô(u) rápido... ((muda a

voz)) "pô sô(u) seu fã" 18[falo rápido]

BB 18quem Brown?] pa 19[quem que (vo)cê já]

MB 19[pô Guilherme] Arantes 20[nós encontramo(s)...

isso... isso]

BB 20[((rindo)) pô eu adoro Guilherme Arantes tam(b)ém...

jura que (vo)cê falô(u) isso] po Guilherme Arantes?

MB a gente (es)tava nuns vinte... morô(u)? aí/ porra quase

todos fora(m) lá aí abraçô(u) falô(u) "pô a gente é seu fã

pá pô lega::l meu pô... firme::za? legal?" falei "pô olha

Guilhé"/ 21[começamo(s) a cantá(r) (com ele)]

BB 21[((cantando)) nas po(u)cas horas] com você

MB Guilherme Arantes

BB ((cantando)) eu me:: (inint.)... olha que lo(u)co

Brown eu adoro Guilherme Arantes

Encontro de MB

com Guilherme

Arantes

MB vários gostam... Dexter falô(u) que gosta de Guilherme

Arantes ((risos de todos))... olha que firmeza... aquela

minoria assim que o:: que os cara não se declara né?...

Guilherme Arantes é::: um som pô dos anos oitenta... quem

cresceu nos anos oitenta curtiu 22[Guilherme Arantes]

WM 22[não/ essa essa geração] pessoal do Ri::o de uma

forma geral ama Guilherme Arantes quando eu cheguei quando

eu cheguei aqui em São Paulo que eu moro em São Paulo há

cinco anos... eu cheguei aqui eu comecei a vê TEM uma galera

que não gosta de Guilherme Arantes... em São Paulo eu falei

23["ma(s) como?"]

BB 23[mas acho que] é uma coisa que o Brown falô(u) acho

que é uma coisa meio Sílvio Santos

WM ((risos))

Gosto por

Guilherme Arantes

BB antigamente (vo)cê lembra que os cara falava ((muda a

voz)) "ah eu não assisto Sílvio Santos" parece que era

vergonha falá(r)... e a audiência do cara era ((levanta alto

uma das mãos, para cima do corpo)) (vo)cê falava "pô 24[como

ninguém assiste?"]

MB 24[como ninguém assiste?]

BB é... domingo só dava o cara na televisão

WM é só dava o cara né?

Gosto por Sílvio

Santos

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207

BB ô Brown falan(d)o um po(u)co de Santos

MB certo

BB sonho realizado meu?... (vo)cê (es)TAva lá no

Pacaembu?

MB (es)TAva

BB e Deus existe Brown?

MB ((rindo)) Deus existe ((risos de todos))

BB ((sorrindo, olha para a câmera)) depois ele ficô(u)

bravo fica me zuan(do) falan(d)o "pô"... que eu o meu time

ainda vai:: ((volta-se para MB)) (vo)cê acha que eu 24[vô(u)

vê(r) o Corinthians campeão da Libertadores?]

Vitória do Santos

na Libertadores

MB 24[eu tenho uns amigo corinthiano] que já na na na/ os

cara na no mártir eles são o campeão né meu... no o(u)tro

dia após o jogo eles falan(d)o ((muda a voz)) "é nóis mano...

que cem ano num ganhamo(s) nada" eu falei "que isso? vai

começá(r) com isso agora?"

BB ((risos)) é assim me(s)::mo

MB pô... rei rei eh:: rei morto rei posto os cara já

(es)tão com uma ideologia nova

WM ((risos))

MB pós Libertadores do Santos... "agora nós somo(s) os

únicos que não temo(s) na::da" pá:: sofredor

BB é o marketing do drama que (vo)cê sempre fala né?

MB nã::o... o Santos pa ((balbucio))/ o Corinthia(ns) pa

reconhecê(r) o Santos pa ganhá(r)) alguma coisa teve que

ganhá(r) uma Libertadores... os cara se curvô(u)... até aí

não eles não aceitava não

Comportamento

dos amigos

corinthianos

BB ô Brown mas (vo)cê foi/ (vo)cê viu/ (vo)cê conseguiu

i(r) no jogo no Pacaembu? que (vo)cê (es)tava sem ingresso

e tal... conseguiu fazê(r) a correria conseguiu i(r)?

MB fizemo(s) uma corrida lá na porta lá e... graças a

Deus né?

BB ah Brown para vai meu 25[fazê(r) correria na porta

vai] ((sorrindo))... (vo)cê foi na torcida jovem?

MB 25[((risos)) (inint.)]... na torcida jo::vem

((sorrindo))

Presença de MB no

Pacaembu

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208

BB e a emoção Bro?/ vai rolá(r)/ (vo)cê vai fazê(r) u(m)a

música... sobre esse título do San::tos alguma coisa especial

ou não?... que é u(m)a coisa histórica cara

MB então num fiz meu eu tenh(o)' um:: eu tenho uma

música:: do Santos que eu fiz em noventa e quatro numa época

que era se::/ uma seca né?... época das vacas magras

Música para o

Santos

BB noventa e quatro?

MB noventa e quatro... noventa e três pa nove quatro era

aquele time sofri:::do

BB época boa né Brown?

MB ganhava um casco por a:::no

BB ma(s) Deus existe né Brown?

WM ((risos))

BB a persistência né?

Época das vacas

magras do Santos

MB aí tinha uma música pra é::poca aí de/ lá pra cá/ só

que a música fala duma época que não ganhava mas ((sorrindo))

(vo)cê percebeu que não tem mais sentido né?... ((risos))...

contusão no ombro ((toca o ombro direito como se estivesse

com dores)) de tanto levantá trofé:::u

WM ((risos))

BB ((risos))

MB não cu:::ra... é i::sso cara... o futebol é iss(o)' aí

meu

BB ô William (vo)cês vão fazê(r) um som? o Brown (es)tá

encondendo o jogo vai rolá(r) um som depois (vo)cês vão

fazê(r) um som po Santos ou não?... vai tê(r) uma homenagem

ou não?

WM olha:: eh:: esse esse esse projeto ele:: na:: desde

que eu conheci comecei a trabalhá(r) com o Brown ele sempre

fala "vamo(s) fazê(r) um hino po Santos"... 26[eu falo]

27["tem que sê(r) uma produção histórica]

MB 26[falei]

BB 27[((dirige-se a MB)) (vo)cê lembra um po(u)co dessa

música] 28[ou não?]

Música para o

Santos

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MB 28[não/ da mu/] da que eu fiz sim... não que/ é que

agora eu num num:: acho que nem pá mas era legal era bonito...

era bonito...

então era uma época que eu era:: a gente:: o Edinho é meu

amigo né? o::

BB o Edinho é gente boa pa caralho

MB é:: gente boa

Amizade de MB

com Edinho

BB e ele nun/ (vo)cê nunca pediu pra ele te apresentá(r)

o pai?

MB não porque o pai dele viajava muito ele também tem os

horários dele também era bem corrido... e o meu também...

então quando a gente se encontrava geralmente o pai dele não

(es)tava... o pai dele (es)tava sempre viajan(d)o a gente

num num teve aquela sorte pá:: as vez(es) eu tinha acabado

de sai(r) o pai dele chegava... ((muda a voz)) "pô meu pai

chegô(u)" "ah já (es)tô(u) aqui em São Paulo chapa... já

subi"... aí:: tipo num:: nunca pá...

Encontro de MB

com Pelé

mas aí quando a gente viu ele no Pacaembu acabô(u) o jogo

ali perto ele saiu na direção que a gente (es)tava assim foi

emocionante arrepiô(u)

BB que ele pegô(u) o Muricy tam(b)ém:::

MB eh::: porque eu vi os cara/ aqueles cara mais velho

gritá(r) "Pelé Pelé" eu a/ na época... devia tê(r) sido da/

daquele jeito né?...

Presença de Pelé

no Pacaembu

a gente num pegô(u)/ minha geração não viu Pelé mano... a

gente ouviu falá(r) Pelé num vimo(s) Pelé jogá(r)... ((faz

aceno com a cabeça))

Geração Pelé

BB mas (vo)cê viu Neymar né?

MB ((abre os braços)) porra

BB pra você o Neymar da tua geração..

Neymar

. ((dirige-se a WM)) (vo)cê viu Pelé William?... (vo)cê

pegô(u) um po(u)quinho o finalzinho ou tam(b)ém não?

WM ((balbucio)) peguei o finalzinho né? Pelé:::...

((balbucio)) eu sô(u) mais o(u) menos 29[contemporâneo do

Brown]

BB 29[pra vocês] pra vocês o Pelé/ o::: Neymar...

Geração Pelé

(vo)cê considera pós Pelé da geração de vocês o Neymar é o

maior jogador que (vo)cê viu jogá(r) no Santos o(u) não?

Neymar

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MB Neymar:: Robinho

BB não... escolhe um

MB não/ aí é difícil... nã::o aí seria injustiça... que

o:: o::s dois pa torcida do Santos têm um peso muito

parecido... próximo

BB (vo)cê (vo)cê num acha que o Robinho virô(u) um jogador

comum?

MB não

BB eu num vejo o Robinho jogá(r) bola há muito tempo

MB eu acho que o Robinho tin/ tinha que vim embora pa

casa dele rápido... virá(r) rei no Santos que é o lugar

dele... ocupá(r) o lugar dele que é de destaque... sê(r)

campeão uma vez um ano sim um ano não pelo Santos... depois

virá(r) dirigen:::te

BB pô mas o Robinho tem essa moral toda?

MB te::::m pô...

Robinho

o Santos é o time que mais eh::: abre espaço pa ex jogadores

né? (vo)cê já reparô(u)?

BB isso sim isso é verdade... o São Paulo também tem

MB então

BB e o Santos... o resto é difícil

Espaço para ex

jogadores nos

times

MB e o Robinho esses cara tem o perfil do Santos... ia

sê(r) um cara que ele ia atuá(r) perto da torcida do/ a

torcida ama ele ia tê(r) sem/ tê(r) sempre prestí::gio...

até morrê(r)

WM como os o(u)tros jogadores tam(b)ém

Robinho

BB qual time (vo)cês preferem o de dois mil e dois ou

esse de a/ ou esse de agora?

MB ah::: os dois

Preferência entre

times do Santos

eu (es)tava no dois mil e dois lá no Morumbi eu (es)tava

BB não vamo(s) lembrá(r) o passado aqui não

MB eh::: então... e agora tam(b)ém dois mil e onze

tam(b)ém cont(r)a o Corinthians eu (es)tava

Jogos entre Santos

e Corinthians

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BB eu (es)tava em dois mil e nove... ahn::: conta/ contra

o Santos tam(b)ém

MB ((risos))

BB ((risos de todos)) ah chega pô só (es)tô(u) toman(d)o

porrada de você Brown (es)tá de sacanagem comigo meia hora

de (vo)cê só me zuan(d)o

MB então aquele/ aquele gol ali foi foda... a matada do

Ronaldo quando ele dominô(u) a bola que o zague(i)ro foi pum

lado a bola po o(u)t(r)o ali já vi o gol... ali é veneno a

maldade pura... só a matada do cara já fala ((faz sinal com

as mãos cruzando-as a descruzando-as))

Gol de Ronaldo na

derrota do Santos

para o Corinthians

em 2009

BB mas você não me respondeu qual ti/ qual time é melhor

o de dois mil e dois ou esse?... tivesse que escolhê(r) um

time do Santos

MB esse

WM ah esse é melhor... o resultado de um a um

BB porque foi campeão da Libertadores ou porque o time

mesmo é melhor?

MB porque foi campeão da Libertadores

BB ô Brown (vo)cê é:::...

Preferência entre

times do Santos

e o Zé Love?... (vo)cê acha bom jogador?

MB gosto ((faz sinal de positivo com a cabeça))

BB jura?

MB bom jogador po time... bom jogador

BB quando ele perdeu aquele gol ali (vo)cê acha que ele

perde gol PA caramba meu?

MB perde... perde porque participa muito tam(b)ém... mas

abre muito espaço pos jogadores ele ele tem sintonia c'o/

c'o Neymar... eles são ami::go ele jo/ o mole/ o moleque

procura ele sempre ele erra dez vez o moleque procura ele de

novo... (es)tá ligado? e:::... e eles vai/ --

Zé Love

pô agora também vô(u) pe/ falá(r) dos acerto -- ele... pô o

cruzamento do gol contr(a)'o Corinthians foi do Zé Love no

começo do jogo... ali definiu... certo? foi de::le... aquele

prime(i)ro gol lá no:: -- aonde foi no Chile?... de cabeça

de ca/ logo no começo?... Chile né?... Colo Colo... Chile?...

-- foi gol do Zé Love de cabeça

Acertos de Zé

Love

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212

BB naquele jogo lá que o::: a estréia do Muricy... que

puta (es)tava/ a coisa (es)tava feia po 30[Santos] desfalcado

tal (vo)cê acreditava ou (vo)cê (es)tava meio (vo)cê falô(u)

"puta aqui num vai dá(r) meu"?... porque aquele jogo pra

mim... acho que foi o jogo que mudô(u) a história do Santos

na Libertadores não foi não?

MB 30[(es)tava]...

Jogo da estreia de

Muricy no Santos

então meu é a/ a história do Santos mostra isso tam(b)ém o

Santos ele:: ele:::... se de(i)xá(r) aparecê(r) no

retrovisô(r) embaça meu... de(i)xô(u) de(i)xô(u) um:::

31[ele]

BB 31[chama] no farol... põe o pisca

MB não... põe o pisca não ((risos de todos))

BB não consigo pegá(r) o cara ((sorrindo))

MB não não não não não... ó(lha) ele de(i)xô(u)::: um

po(u)quinho de vida... ((balança a cabeça em sinal de

negativo)) de(i)xô(u) um po(u)quinho de vida po Santos vira

iss(o)'aí:::... tem time que é assim né?... Corinthians num

era assim? ((corte de imagem; é exibida a vinheta do

programa))

História de reação

do Santos

BB ô Brown... qual que:::: ((pigarro)) pô (es)tô(u)

ligado que (vo)cê é santista ro::xo (vo)cê vai em jogo pa

caram::ba (vo)cê chora (vo)cê vibra c'o Santos tal... (dei)xa

te falá(r) meu qual que::... emoção que pode sê(r) maior meu

você:: (es)tá(r) no estádio... e vê(r) teu time sê(r)

campeã::o (vo)cê (es)tá(r) lá na arquibancada c'a gale::ra

na torcida jovem ou (vo)cê fazen(d)o um show pa uma

multiDÃO... e tê(r)::: num sei quantos mil cara cantan(d)o

tua música?

MB bom

Emoção de MB

como torcedor e

como músico

BB porque essa deve sê(r) uma emoção po artista que deve

sê(r)... uma puta coisa lo(u)ca né Brown?... eu tenho o DVD

teu... do Racionais... até nessa parte... que é::: é uma

coisa que chama muita atenção... que é na hora que (vo)cê

vai tocá(r) "Nego Drama"

MB uhum

BB e tem o telão aparecen(d)::o Tim Ma::ia Chula::pa...

Bo::b Bob Mar::ley Mike Tyson aquela galera tal... e quando

você entra ali né?... que co/ na ara/ na hora que (vo)cê vai

cantá(r) que a câmera pega a multidão... é uma coisa muito

lo(u)ca cara porque (vo)cê vê(r) a cara das pessoas os cara

(es)tão vibran(d)o com você quando (vo)cê 32[entra] né?...

(vo)cê fala ((muda a voz)) cri::me futebo::l mú::sica...

Emoção do artista

em um show

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né?... 33[(es)tá frio] em São Paulo (vo)cê fa/ cara os caras

(es)tão comemorando a galera grita parece que é um gol...

que comemora né? deve sê(r) uma puta duma emoção

MB 32[certo]... 33[certo]... não/ é... é emoção pu/ o

tempo todo... ali pra mim veja bem... eu (es)tô(u) ali

(es)tô(u) c'o/ (es)tô(u) c'o eles... emocionalmente nós

(es)tamo(s) ligado mas eu tam(b)ém (es)tô(u) preocupado com

a situação ali que eu não posso errá(r) c'o eles... e eu

(es)tô(u) naquela situação de administração ali de... do que

(es)tá acontecen(d)o que... eu divido essa emoção com

preocupação... então nem SEMpre eu flagro tudo... eu flagro

muita coisa... quem vê(r):: que as vez(es) tem/ tem mais

tempo pra vê(r)... eu tenho que cuidá(r) de várias coisa tem

que acontecê(r) tudo certinho e 34[(es)tô(u) naquela]

operan(d)o a situação ali se fô(r) mal ali... reflete lá...

e eu num posso errá(r)... ((sorrindo)) pra que num::: num

perca esse clima... entendeu? então nem sempre eu vejo ma(s)

porra a gente... eh:: faz de tudo pra que a gente pode...

eh::: sei lá... sê(r) mais transparente possível fazê(r) o

barato chegá(r)::: natural... entendeu?

MB (es)tá atua::n(d)o me(s)mo então

BB muito sincero... (vo)cê um dia imaginô(u)... fazê(r)

u(m)a banda... os Racionais... e sê(r) considerado a maió(r)

banda de rap do Brasil você/ você é considerado por muitos

inclusive por mim pra mim um dos maiores NOmes da música

brasile(i)ra um dos maiores nomes um dos caras mais

inteliGENtes... (vo)cê imaginô(u) um dia isso Brown? na real

ou você não tem essa noção (vo)cê acha que num é tudo isso?...

que quem (es)tá dentro as vezes fala ((muda a voz))

"nã:::::o"

MB não/ agradeço as palavras aí... num é/ acho que num é

tudo isso não... eh:::... num sei cara as vez(es) eu penso

assim... tem muita gente boa no Brasil entendeu mano? a

gente:: sabe quem é bom... a gente sabe quem é bão... Brasil

tem gente boa pô Chi Buarque de Holanda é um MONStro... então

a gente tem boas referên:::cias morô(u)?... tem o Caetano

Veloso que é um mons:::tro

Importância de MB

para a música

brasileira

BB (vo)cê ouve MPB Brown?

MB então alguns amigo me ensinaram a ouvi(r) MPB... e

chegô(u) nu(m)a época que eu já (es)tava até mais... mais

maduro e entendi melhor...

Gosto de MB por

MPB

a minha infância essas música semp(r)e tocô(u)... tocô(u)::

tocava:: MPB tocava fun::k samba de... samba de raiz que era

o/ era o som de coisa dos anos setenta oitenta mas essas

música semp(r)e (es)tiveram nas nove:::la né meu?

((sorrindo))... no convívio do povão semp(r)e rolô(u) essas

música... MPB... Maria Betânia Gal Costa pá pá::

Convivência de

MB com a MPB

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BB mas (vo)cê consegue botá(r) no::: ((aponta para

frente))

MB si::::m

BB (vo)cê consegue botá(r) e ouvi(r)?

MB nã::o/ agora eu consigo... agora eu consigo...

Gosto de MB por

MPB

eu nu:: eu num conhecia assi:::m afundo e tal talvez a::

barre(i)ra da ida::de... eu num vivi aquelas le::tra e tal...

aí (vo)cê vai eh::: conviven(d)o mais... identifican(d)o

mais... com as ide::ias/ ah isso é gente do Brasil né meu?

gente que canta coisa do Brasil (vo)cê é brasile(i)ro

tam(b)ém (vo)cê vai vê(r) que tem a vê(r) com você e (vo)cê

descobre que tem a vê(r)

Convivência de

MB com a MPB

WM Brown atualmente é fã do Clube da Esquina né?

MB Clube da Esqui::na ((abre os braços))... 35[certo?]...

36[si::m]

BB 35[jura?]... Lô Borges 36[Beto Guedes?]...

((cantando)) "na janela lateral"

Gosto de MB por

Clube da Esquina

MB então o(u)t(r)as músicas foi um amigo meu que me

37[apresentô(u)]

BB 37[é me(s)mo Brown?]

MB ué quem me apresentô(u) essas música foi um amigo

meu... que é o Nelsã::o ta::l já é da/ ((aponta para trás

com um dos braços)) dois mil...

WM ((risos))

MB num foi agora... noventa e nove ele falô(u) assim "ouve

essas música aqui" e ele explicava a música pra mim... "CALma

aí paciência... ouve o som"... e começava a explicá(r) "isso

aqui ó(lha)... Tom Jobim... ouve aí"... pá e ((faz movimento

cruzando os braços com a expressão facial fechada)) ficava

ouvin(d)o... aí ele explicava "ó(lha) isso aqui:: (es)tá

fazen(d)o alusão a um PÁssaro do Norde::ste ta::l (es)tá

contan(d)o a história do cangace(i)::ro que (es)tá sen(d)o

perseguido no... os cara (es)tão queren(d)o matá(r) o ca::ra

e o cara"/ entendeu? eu falei pra ele/ fui vê(r) o clima

falei "puta pode crê(r) mano"

WM uhum

MB foi assim

Apresentação de

MB à MPB

BB e (vo)cê consegue jogá(r):: um po(u)co dessa

influência/ (vo)cê (es)tá jogan(d)o nas coisas novas o(u):::

uma coisa é uma coisa o(u)t(r)a coisa é o(u)t(r)a coisa?

Influência da MPB

no som de MB

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MB então... esse cara que (es)tá do meu lado ((apontada

para WM) William... ELE que é isso... ele é a músi/ ele::

BB pô Black Rio né?

MB banda Black Rio a música ele sabe fazê(r) música

brasile(i)ra na esSÊNcia dele e ele sabe foi pô(r) do funk...

que é o que::... me interessa... tudo isso em ritmo do funk

certo? ((olha para WM)... é o que ele faz

Importância de

WM

BB o Boogie Naipe o William (es)tá junto?

MB eh o William é:: a estrela maió(r) do Boogie Naipe

((risos de MB e WM))

Participação de

WM no Boogie

Naipe

BB pra quem não sabe... pa quem não sabe né Brown? eu

vô(u) explicá(r)... Boogie Naipe é o/ é o::: projeto novo do

Brown... SÓ com cara fera... e é po pessoa::l é um black:::

pos cara dançá(r):: é isso Brown?... swin:::g... pos cara se

diverti(r):::... essa é a pegada?

MB é o lance é fazê(r) o funk né? o som de/ o som negro

38[né?]

Boogie Naipe

BB 38[o funk funk né?]... que o funk carioca 39[deu uma

banalizada no termo]

WM 38[o funk das]... 39[não]

MB 39[tam(b)ém ma(s) é funk tam(b)ém]

WM é::

MB na tradução da palavra é funk tam(b)ém agora o funk

que eu quero fazê(r) é aquele funk do::

WM setentista né?... 40[funk da década de setenta...

disco rock]

MB 40[é:: aquele funk::... aquele funk] do James Bro::wn

aquilo:: -- sem pretensão quem sô(u) eu pa fazê(r) o funk do

James Brown? --... mas... eu quero (es)tá(r) perto dos cara

((aponta para WM)) que saiba fazê(r) acredito nesse::...

eh::: nessa tendência... pa periferi::a essa tendência de

som pra/ pa juventude essa tendên/ pos estuDAN::te...

morô(u)?... pra:: pa quem traba:::lha pa quem (es)tá lá na

pista luta pela vi::da são músicas que fala da vi::da... das

pequenas co:::isas... ((sorrindo)) a revolução é feita de

pequenas coisas

Pegada funk

BB (vo)cê falô(u) do James Brown... o(u)tro mito que eu

vi

Ida de BB ao show

de James Brown

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MB é::?

BB eu fui no James Brown em chic show

WM ((riso)) aonde?

BB no Palme(i)ras

MB eu tam(b)ém... 41[(es)tava lá]

BB eu assisti o show... chic show... 41[era feito no]

ginásio do Palme(i)ras... ((cantando)) "everbody chic? chic

sho::ow everbody chic?" lembra disso?

WM 41[ah::::]

MB tem mais um desse aí chá ma/ ó(lha)?

BB ahn?

MB tem mais um desse aí? geladinho aí?

BB o Red Bull?

MB é será que tem?

BB puta eu num tro(u)xe eu peguei e num abri qué(r) o

meu?

MB ((bate na perna com uma das mãos)) não

BB pode tomá(r)::

WM ((risos))

MB num p(r)ecisa não

BB nem tome::i tomei um gole... na próxima vez eu trago

mais p'o (vo)cê

MB num esquenta

Bebida para MB

BB ô Brown... mundial... Santos e Barcelona

MB unh

BB Messi e Neymar... você a/ olhando os dois times aí pra

mim o Barcelona é o maió(r) time do mundo esse Barcelona e

um dos maiores que eu vi jogá(r) na VIda... na vida... Xavi

Iñiesta Messi... aquele time é sacanagem ma(s) o Santos tem

Neymar tem Ganso tem o Elano tem o Arouca (es)tão jogan(d)o

muito... é sonho?... falta muito o Santos precisa contratá(r)

ou dá pra jogá(r) de igual pra igual com os caras?

Jogo entre Santos e

Barcelona

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MB ô mano eu já vi grandes times mano... tam(b)ém no

Brasil... no nível do Barcelona... e acho que o Santos não

fica atrás do Barcelona

BB em nada? 42[nem a defesa?]

MB 42[não/ em algumas] coisas mas eles ficam tam(b)ém

atrás da gente em o(u)tras coisa

BB no que?

MB ah::: eu acho que eles não (es)tão a:: acostumado e

lidá(r) com as dificuldade que nois (es)tamo(s)... pode

acontecê(r) qualqué(r) coisa/ eles vão sabê(r) se

recuperá(r)? tomá(r) um:: o time levá(r)/ começá(r) a

esculachá(r) logo de cara?

WM ((risos))

MB eles sabe recuperá(r) buscá(r)? os cara sabe

atropelá(r)

WM ((risos))

MB envolvê(r) e se eles fô(r) envolvido?... e se os

zague(i)ro dos cara não achá(r) nois?... a marcação deles de

longe lá que eles faz

Comparação entre

Santos e Barcelona

BB bom se de(i)xá(r) o Neymar jogá(r) igual o Fredson

che/ cho/ de(i)xô(u) na final da Champions que o Messi olhava

até pa torcida pa fazê(r) tchau

MB então o Messi é um jogador tam(b)ém igual o Neymar ele

é ser humano

WM ((risos))

MB (vo)cê viu o jogo da Argentina lá... (vo)cê viu o quan/

na/ na Argentina ele é contestado ainda... 43[(inint.)]

Messi

WM e Deus existe... 43[(inint.) ((risos))]

BB 43[(inint.)] e Deus existe

MB Deus existe

WM ((risos))

MB tenha fé cara... tenha fé::

Jogo entre Santos e

Barcelona

BB mas o Messi é contestado porque o Messi foi embora pa

Espanha com treze anos de idade... então o argentino... ele

é:::: é argentino mas não é argentino 44[pos cara os cara

Contestação de

Messi

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considera pa caramba] mas os cara têm um po(u)co de birra

(vo)cê viu que na estréia da Copa América a torcida gritava

mais o nome do Tevez que do:::... do Messi

MB 44[(patrio/ (inint.) certo]... porque o do/ o Tevez é

mais... mais local né?

BB (vo)cê vai po Japão vê(r)?

MB eu num garanto cara eu num gosto de avião... num gosto

de tanto tempo de avião não vinte e quat(r)o hora eu amo o

Santos de 45[pa(i)xão]

BB 45[pô mais uma] final de mundial contra o Barcelona

não vale o ri/ não vale o sacrifício?

MB ô mas eu vô(u) te falá(r) meu na na leGAL... eu vô(u)

ten/ vamo(s) armá(r) uma festa leGAL lá na nossa quebrada...

chamá(r) os amigo fazê(r) um churrascão pendurá(r) as

bande(i)ra... comprá(r) tudo os fogos

Ida de MB à final

entre Santos e

Barcelona

BB (vo)cê é a favor ou contra a Copa do Mundo no Brasil?

MB ((olha ao redor)) porra mano... ah eu gosto de/ eu

gosto de futebol cara e acho que São Paulo p(r)ecisa de

melhoria tam(b)é:::m... eh::: eu num parei pa pensá(r) muito

a respeito não meu... se:: enconomicamente ia sê(r) bom po

Brasi::l se ia sê(r) o ci:::rco né?... os cara fala que ia

sê(r) o lado do pão e circo... ma::s eu acho que::... eh o

Brasil (es)tá na rota dos grandes negócios do mundo tam(b)ém

já... entendeu? dos grandes even::tos e tal e:::... vai tê(r)

sempre essa dúvida se compensa ou nã::o se o Brasil vai

gastá(r) mais vai ganhá(r) mais entendeu?

Copa do mundo no

Brasil

BB mas esse negócio do sigilio no orçamen::to que... tem

que guardá(r) a sete cha:::ves que ninguém pode sabê(r)

quanto (es)tá gastan:::do

MB errrado... orçamento tem que sê(r)/ tinha que sê(r)

num:: num digital no meio da Praça da/ da Sé gigante...

de(i)xô(u) uma moeda um número mudava ((olhando pra cima))

WM mudava um cenTAvo que fosse gasto

BB SENsacional Brown puta ideia do cacete

MB dia inte(i)ro acompanhan(d)o a mudança da moeda... ah

comprô(u) mil blocos pa::: ((balbucio))

WM o estádio (Pacaembu))

MB é taca lá ((olha para cima e indica acima com uma das

mãos))

Sigilo no

orçamento da Copa

do Mundo no

Brasil

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WM ((risos)) mil blocos

MB ((olhando para cima)) menos... duzentos e cinquenta

reais

BB achei legal pa cacete cara... puta ideia 46[vai

giran(d)o]

MB 46[eu acho que] o orçamento tinha que sê(r) assim num

num::

WM às claras né?

MB uma placa ((apontando acima com os dois braços))

gigante po povo lê(r) de longe... a um quilômetro assim

ó(lha)

BB e você como pauLISta paulistano da gema... Capão

Redondo

MB eh::

BB (vo)cê acha que São Paulo tem que tê(r) uma abertura

da Co::pa... ou (vo)cê tam(b)ém não liga pra isso tanto faz?

MB te falá(r) pa mim tanto faz... si/ sinceramente assim

num 47[sô(u)::]

Abertura da Copa

do Mundo em SP

num sô(u)::: defensor de nada em São PAulo ((balbucio)) eu

sô(u) filho de baia::no... entendeu? minha bande(i)ra

é:::... num é nem São Paulo chapa... entendeu? moro em São

Paulo minha minha minha mãe/ nasci em São Paulo certo?...

ma(s) a gente::: é do povo do norte tam(b)é::m... então nois

temo(s) um lance do norte um um amor tam(b)ém pelas coisa

do::/ da nossa raiz tam(b)ém... eu num:::/

Relação de MB

com SP

sei lá meu... (es)tá bom... pode sê(r) no Rio... pode sê(r)

em Minas... Bahia... se num fô(r):: esquema pa pa ro(u)bá(r)

dinhe(i)ro... pa... entendeu?... pode fazê(r)... demorô(u))

do Corinthians lá

Abertura da Copa

do Mundo em SP

o grande problema no Brasil toda vez que fala de grandes

eventos parece que vai tê(r) grandes roubos né?

BB 47[por quê?]

WM ((risos))... 48[verdade]

BB 48[é que o histórico]... 49[o histórico né:::?]

MB então 49[então essa preocupação] (vo)cê acha que é bom

tê(r) isso no Brasil tal por quê? porque se fosse na

Inglaterra mano... lógico que seria bom... mas po Brasil por

quê que tudo que mexe parece que vai sê(r) ruim? porque já

tem aquela desconfiança PRÉvia... iss(o)'aí já vai tê(r)

Desconfiança nos

grandes eventos no

Brasil

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um:: ROUbo né?... os cara vai superfaturá(r) um monte de

coi::sa vai aconte/ e num vai beneficiá(r) a população que

mora num lugá(r) e tal... eh::: vai inflacioná(r) todos os

imó::veis vai tirá(r) todas as pessoa dali vai jogá(r) lá po

fundão da cara do caram::ba... entendeu? igual/ aconteceu

isso lá no estádio

BB nós vamo(s) lá Brown um dia vê(r) Corinthians e Santos

o(u) não?

MB ah se dé(r) lá o::... as cota do ingresso justa né?...

pel(o) amor de De::us essas/ vamo(s) repensá(r) essas

50[((risos))] essas cota de ingresso (es)tá injusta

WM 50[((riso))]

Ida de BB e MB ao

estádio do

Corinthians

BB ô Brown teu grande teu grande rival é o Corinthians?...

o time que (vo)cê gos::ta de ganhá(r)::

MB os três

BB ah:::: 51[PARA Brown ah] num é os três semp(r)e tem um

WM 51[((risos))]

MB 51[os três nã:::]... eu tenho um pa cada camarada

WM ((risos))

MB um pa cada camarada certo... tem semp(r)e um

palme(i)rense mais chato um 52[corinthiano mais chato um são

paulino] mais chato... (vo)cê sempre tem um escolhido no

casco... hoje é pa VOCÊ ((aponta para frente, sorrindo))

WM 52[((risos))]... ((risos))

BB ((risos))

MB os trê:::s

Rivalidade de MB

com o Corinthians

BB ô Brown e quando por exemplo o Corinthians ganha do

Santos... os cara te enche 53[o saco pa cacete?] e (vo)cê

leva na boa (vo)cê tem... senso de 54[humor pra isso ou tem

limite?]

MB 53[enche o saco pa caralho]... 54[leva na boa não]...

não/ 55[assim::: dent(r)o do::]

WM 55[((risos))]

BB 55[((risos))]

Brincadeiras

sofridas por MB

nas derrotas do

Santos

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MB ((sorrindo)) dent(r)o do futebol ali nós vamo(s)

conversá(r) na medida do:: possível dent(r)o do futebol...

(inint.) ((risos))

BB tipo os cara vão na porta da tua casa solta 56[rojã:::o

buzi::na]

MB 56[não... não] porque eu fico po(u)co em casa mas eu

vô(u) em direção aos cara... eu vô(u) aos cara... não tem

esse problema... o Santos perde eu vô(u) aos cara... eu mato

na na raiz ((gesticula como quem usa uma faca e está cortando

algo))... enfia... sem problema... 57[dô(u):: parabéns::]

BB 57[os cara pega pesado c'o] (vo)cê? os cara pega

pesado?

MB até ten::ta mas tam(b)ém eu sô(u) sarcástico... eu

sei:::

BB o Santos campeão da Libertadores (vo)cê enCHEU O SACO

meu?

MB eu fui/ o que que eu fiz? eu fiz silên::cio cara

BB 58[AH:::: Brown/ ô coisa de mala hem Brown]

WM 58[((risos))]

MB peguei a bande(i)ra enrolei a bande(i)ra... sério/ os

cara sabe lá quem (es)tivé(r)/ quem vê(r) amanhã vai vê(r)/

que (es)tá lá sabe eu peguei uma bande(i)ra do Santos igual

essa camisa listradona assim... c'o agasalho do Santos

azu(l):: meti a bande(i)ra e fui lá pra cima pa quebrada

fiquei lá com a bande(i)ra enrolada no corpo o dia inte(i)ro

WM 59[((risos))]

BB 59[((risos))]

MB 59[parecen(d)o um mendigo... com a bande(i)ra do

Santos o dia inTE(i)ro... sem falá(r) nada]

BB sem abri(r) a boca? puta 60[coisa de lo(u)co]

MB 60[falá(r) o que?]

WM 61[((risos))]

BB 61[nossa QUE MALA] Brown que MA:::LA véi

MB os cara vê(r) eu com aquela ro(u)pa preta vem falá(r)

"porra parabén:::s" falei "pode crê(r)"

Brincadeiras de

MB na vitória do

Santos na

Libertadores

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WM ((risos))

MB Santos é (inint.)

WM 62[((risos))]

BB 62[((risos))]... pu:::ta ca/ cara:::ca (vo)cê ficô(u)

marren/ (es)tá marrento hem Brown? ((pega uma caneta que

estava na frente dos convidados e a destampa))

MB falei... não/ eu falei

BB (dei)xa eu te 63[falá(r) se fosse pra::] ((pega uma

camiseta que estava na frente dos convidados))

MB 63[mas é na zue(i)ra no] respeito sem::p(r)e né?

BB que música ((entrega a camiseta a MB enquanto fala))

(vo)cê autografa aqui Brown 64[vô(u)] sorteá(r) duas camisa

do Santos... RÉplica do Pelé ((pega uma segunda camiseta))

MB 64[lógico]... isso ((pega uma das camisetas))

WM nossa sensacional

BB olha isso hem Brown? ((mostra uma das camisetas a WM

e MB))

WM ((pigarro)) linda

MB linda ((acena com a cabeça em sinal de positivo))

WM linda linda

BB prime(i)ro gol (vo)cê sabe né? essa réplica aqui

((aponta para uma das camisetas que está agora sobre suas

pernas)) é uma réplica da prime(i)ra camisa que/ o prime(i)ro

gol do Pelé... com a camisa do Santos... pedi(r) pro (vo)cê

autografá(r) ((entrega a caneta a MB))... ô Brown se fosse

pra::

MB ((aponta para as camisetas que ele mesmo e BB seguram))

essa ou essa?

BB as/ as três ((aponta também para uma camiseta que resta

na frente dos convidados e pega essa terce(i)ra camiseta))...

Camisetas

sorteadas no

programa

ô Brown se fosse pra dedicá(r) se fosse/ que música (vo)cê

acha que cairia bem... qualqué(r) música de qualqué(r)

artista... que música cairia bem pr(a)'esse título do Santos?

MB uma música?

BB se (vo)cê tivesse que escolhê(r) fazê(r) um clipe

Música para o

Santos

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65[um(a)'homenagem?]

MB 65[uma do Jorge Ben]... uma do Jorge Ben

BB qualqué(r) uma? ou alguma em especial?

MB ah uma bem ZIca me(s)mo... pegá(r) aquelas bem::: "Oba

oba Charles"... ((risos))

WM 66[((risos))]

BB 66[sucesso hem?]

MB tudo a vê(r) c'o Santos... 67[com o Neymar]

BB 67[sonze(i)ra]... sonze(i)ra

MB eh:::: entendeu? ((sorrindo, autografa a camiseta))

BB Jorge Ben Jorge Ben/ Jorge Ben pa você continua sen/

Jorge Ben é o Pelé da música p(ra) (vo)cê?

MB é eTERno... Jorge Ben James Brown Marvin Gaye... Bob

Marley... esses é os MONStro rapá(z)

BB mas brasile(i)ro Jorge Ben ou Tim Maia?

MB Jorge Ben prime(i)ro... Tim Maia na continuação...

Cassia:::no dos que/ né? graças a Deus (es)tão vivos aí...

e vão vivê(r) muito ainda... né? ((termina de autografar a

primeira camiseta))... 68[Hyl::don]

BB ((entrega a segunda camiseta para MB)) 68[(vo)cê

também] William? Jorge Ben?

WM ah Jorge Ben com certeza acho que é o::: artista mais

emblemático assim né? e toda essa relação que ele tem...

eh:: aqui aqui com São Paulo né? é muito lo(u)co porque ele

morô(u) uma época aqui em São Paulo né? mas que ele tem de

uma certa forma com o Brasil... com essa questão da

Tropicá::lia né? é um artista:: acho que mais emblemático

assim da música negra né? da história da música negra

Importância de

Jorge Ben

BB ((dirige o olhar a WM)) se (vo)cê fosse escolhê(r) uma

música po Santos tam(b)ém p(ra)'esse título seria Jorge Ben

tam(b)ém? ((entega a terceira camiseta para MB))

WM ((sorrindo)) não sei se eu escolheria uma do Racionais

MB ((risos))

WM "Nego Drama"... ((risos))

MB pode/ tem a vê(r)

Música de WM ao

título do Santos

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WM tem a vê(r)

BB pra MIM é a melhor música dos Racionais

WM com certeza

BB as duas que eu mais gosto "Nego Drama"

Música Nego

Drama

e "Racionais capítulo quatro versículo três"

WM 68[((risos))]

MB 68[((risos))]

BB 68[((cantando)) "alelu::::ia"]... hem Brown?

Música Racionais

capítulo 4

versículo 3

MB é essa música fala do Edinho... o príncipe guerre(i)ro

que defende o gol o Ed Rock canta é o Edinho

BB eu lembro porque quando vocês tocaram em mil novecentes

e noventa e oito naquela festa na MTV quando (vo)cês ganharam

o prêmio

MB ele (es)tava ((sorrindo, acena com a cabeça em sinal

de positivo))

BB ahn?

MB o Edinho (es)tava ((sorrindo))

BB o Edinho (es)tava... (vo)cê vê(r) eu sei tudo de você

((toca MB na altura dos ombros com uma das mãos; pega a

terceira camiseta autografada por MB e a deixa na frente dos

convidados)) hem Brown? 69[((risos))]

WM 69[((risos))]

MB 69[((risos))]

Relação entre a

letra de Racionais

cap 4 vers 3 e

Edinho

BB Brown ((cumprimenta MB com um aperto de mão)) ... ((dá

palmadas nas costas de MB)) você é DO cacete... William

((cumprimenta WM com um aperto de mão))... pô Black Rio sem

palavras

WM valeu

BB (o)brigado Brown pela presença pela moral aí...

falá(r) de Santos falá(r) com você é sempre uma puta duma

alegria...

Programa com MB

e você sabe (vo)cê num gosta que eu falo mas pra mim é

me(s)mo pra mim é Jorge Ben Tim Maia e Mano Brown

Representatividade

de MB para a

msica brasileira

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MB que isso

WM ((risos))

BB a continuação a saga continua... ele num gosta que eu

fale mas é verdade

WM ((acena com a cabeça em sinal de positivo)) tem uma

representatividade muito grande

BB e vamo(s) vê(r) né? se Deus existe/ 70[Deus existe

né?]... vô(u) vê(r):: final do ano... Santos e Barcelona

WM 70[((risos))]

Jogo/ final entre

Santos e Barcelona

MB vai tocá(r) Black Rio lá na noventa e sete lá pra nois?

BB va:::i... 71[e vai tocá(r) numa festa] tam(b)ém que

nós vamo(s) fazê(r)... 72[Boogie Naipe... né?]

Divulgaçãoo da

Boogie Naipe por

BB

MB 71[(energia fun::k)]... 72[a gente (es)tá lançan(d)o

o disco hem?]

BB ahn?

MB (es)tá lançando um discão

BB Black Rio lançando?... 73[quando?]

WM 73[(es)tá lançando]

MB 73[três fa(i)xa]... agora

WM (a)cabô(u) de lançá(r) um na Inglaterra 74[que saiu

ho/] ontem na verdade

BB 74[porra]... que legal

WM "Supernova Sam Funk" né?

Lançamento do

disco da banda

Black Rio

MB e as crítica 75[que tem lá da?/ das coisa dele]

WM 75[saiu uma crítica muito boa] no The Guardian né?

BB cara76[::ca]

WM 76[jornal] da Inglaterra... 77[em vários jornais]

BB 77[então p(ra)'essa] molecada que (es)tão aí... Black

Rio bicho... é LENda... pa quem gosta de black music daquela

música ((balbucio)) FUNKÃO me(s)mo

WM eh::

Críticas ao novo

disco da banda

Black Rio

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BB é Black Rio tem pa ninguém né Brown?

MB é então tem participação do Seu Jor::ge... Mano Brown::

do Pixo::te do Bron::x... Caetano Velo::so Gilberto Gi::l...

Elza Soa::res Chico Cé::sar... quem ma::is?... Ba::pt tem

um:: batalhão aí só de cara zica aí... vários compositores

diferentes vários nomes... consagrado e novos nomes

BB ((olhando para a câmera)) puta dica... pode comprá(r)

porque Black Rio bicho ainda c'o esses cara todo aí...

Lançamento do

disco da banda

Black Rio

ô isso aí é::/ é MELHOR do que vê(r) o time campeão ou não?

WM 78[((risos))]

MB 78[não/ (es)tá ali] vê(r) o Santos campeão é impagável

né? é uma coisa assim que::: a gente só ten/ só tende:: a

aceitá(r) que esse ano vai sê(r) muito bom né?... começa o

Santo sen(d)o campeã::o Black Rio lança o disco de::les eu

lanço o me::u... e todo mundo trabalha::n(d)o fazen(d)o o

seu dinhe(i)ro girá(r)::: morô(u)? sobreviven(d)o

Comparação entre

lançar disco ou ver

o time campeão

BB ((dirige o olhar a alguém atrás das câmeras))

(es)per(a)' aí só pra terminá(r) a última rapidinho... qual

a influência do/ o Muricy pra você é um dos grandes

responsáveis dessa mudança? (vo)cê acha que o Muricy quando

chegô(u) no Santos a pegada mudô(u)?

MB então chapa eu penso assim ó(lha)... eh::: de u(m)a

liga né?... deu u(m)a liga... (vo)cê percebe de longe que

deu u(m)a liga tipo paizão dos cara né?... ele é um

malan::dro... que pôs os moleque malandro pa jogá(r) que os

moleque são malandro (vo)cê vê(r) qu(e)'é:: o clima é

malandro quem num (es)tá na sintonia dos moleque é ro/ é

roça... entendeu? colocá(r) um cara de cintura quadrada pa

lidá(r) c'o Neymá(r) c'o esses moleque vai pô(r) (vo)cê::

mano tipo/ ah... amarrá(r) o cadarço do seu tênis pa (vo)cê

cai(r) de cara no chão os moleque é terrí::vel

BB o Dorival Júnior que o diga?

MB entã::o... faltô(u):: jogo de cintura o Muricy ele viu

o malandro ali fora ((balbucio))/ o Muricy é malandro ele

viu os cara falô(u) "(es)pera'(a)í... eu vô(u) dá(r) espaço

até aonde (vo)cês pode tê(r) daqui pa frente... acabô(u)...

comigo é sem chance" e foi iss(o)'aí::... lega::l meu...

autoritário mas ele ele sabe que ali ele (es)tá no meio só

de malan::dro... ele num quis sê(r) mais do que ninguém...

tam(b)ém

Influência de

Muricy no Santos

BB ((dirige o olhar a alguém atrás das câmeras)) puta é

difícil fazê(r) a última pergunta ((dirige o olhar a MB)) ô

Brown naquele dia do sete a um (vo)cê também botô(u) a

bande(i)ra e ficô(u) quieto ou os cara te zuaram?

Reação de MB na

derrota do Santos

para o Corinthians

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WM 79[((risos))]

MB 79[nã::::o ali foi um dia] fatídico

BB ((rindo, toca MB no braço esquerdo))

MB ((risos)) mas eu... eu vô(u) te falá(r) a (es)tá pa/

(es)tá pa/ a virada (es)tá por vir meu... (vo)cê sabe que a

gente não de(i)xa nada pa::

BB sete a um?

MB por vocês... 80[eh::::]... 81[é questão de/ é questão

de tem::po]... 82[((risos))]... 83[ pô:::]

BB 80[sete a um esquece]... 81[esquece... esquece

esquece] esquece 82[essa::: (vo)cês (es)tão vindo] da

Libertadores do cacete foi justo honesto

83[merecidíssimo]... mas 84[sete a um não vai tê(r) não

Brown]

WM 84[é que o Deus existe né?]

BB ahn?

WM Deus existe

BB segundo o Bro/ o 85[Brown diz aí que]

MB 85[(vo)cês tomaram] SEIS do Juventude tem SEIS anos aí

cara com gol de chale(i)ra do Vitor

BB pô qual'é o/ ô::: (vo)cê (es)tá de/ (vo)cê é lo(u)co

(vo)cê vai lemBRÁ(R) véi

WM seis do Juventude

MB gol de chale(i)ra do Hugo... eu lembro

BB da onde (vo)cê tirô(u) isso cara?

MB ((move os ombros)) SEIS a zero pô

WM ((risos))

MB Juventude já pensô(u)?

BB porr(a)'o Brown (es)tá de sacanage(m) vamo(s)

terminá(r) essa porra aqui o Brown (es)tá de sacanage(m)...

olha o que ele vai lembrá(r) meu

WM ((risos))

Derrota do

Corinthians para o

Juventude

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MB puxa nos arquivo... BOTAFOGO de São Paulo é/ SEIS a um

no Corinthians

WM eh:: é verdade

BB é mas tem um sete a um eterno e num tem jeito 86[Brown

esse] (es)tá na 87[memó:::ria]... derrubô(u) treinador

derrubô(u) (inint.) ((tocando MB no braço esquerdo algumas

vezes, muda a voz)) né Brown:::?

MB 86[eh:::]

WM 87[((risos))]

Derrota do

Corinthians para o

Botafogo

BB SENSACIONAL puta papo legal começan(d)o esses DEZ anos

que eu (es)tô(u) comemoran(d)o esse mês DEZ anos de Lance...

programa fora de sério e o Brown... a maiOR audiência que eu

tive até hoje aqui

MB ((balbucio)) ((acena com a cabeça em sinal de

positivo)) 88[(inint.)]

BB 88[sabia?] Mano Brown... então obrigado Brown...

William Magalhães Black Rio showzaço os cara lançando CD

maravilhoso...

Audiência do

programa com MB

e semana que vem tem mais um convidado aê meu ((pisca

olhando para a câmera e, com o punho fechado, balança um dos

braços))... ((muda a voz)) "Papo com Benja" URRU:::l

((risada))

((corte de imagem; é exibida e vinheta do programa))

Próximo programa

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ANEXO 4 – Transcrição do programa Roda Viva em 24/09/2007

TEXTO Subtópico

correspondente

PM boa noite (.) ele considera: que o principal

conflito de hoje no Brasil é <((lendo)) em primeiro

lugar o do rico com o pobre (.) e em segundo... do

preto com o preto e em terceiro lugar (.) o do

branco com o preto (.) a frente de um dos mais

importantes grupos do rap brasileiro (.) .h o que

mais/ público atrai para seus\ shows de rua (.) e

que já vendeu mais de um milhão de CDs (.) .h ele

é considerado a voz/ da periferia pobre de São Paulo

(.) e faz da sua música um protesto/ .h e uma

denúncia\ contra o racismo o crescimento urbano

caótico e a dura vida nos bolsões de pobreza na

cidade (.) .numa rara aparição na TV /Mano Brown

está hoje no centro\ do ““Roda viva”” (.) ele é

líder e vocalista dos Racionais MCs... grupo de rap

que surgiu há mais de vinte anos no Capão Redondo

(.) .h região de Campo Limpo numa das áreas mais/

populosas (.) e pobres da Zona Sul de\ São Paulo...

a/ música de Mano Brown e dos Racionais\ MCs deixa

CLAro/ o conflito entre o centro e a periferia (.)

entre o Brasil dos incluídos e dos excluídos (.) o

grupo se transformo:u numa expressão das idéias

sobre consciência negra no Brasil (.) e fez dessa

percepção sua marca no: rap brasileiro> ((corte de

imagem))

Trajetória de Mano

Brown

LC <((voz feminina de um locutor)) ((imagens de

diversos rappers, shows, etc)) o rap... surgiu na

Jamaica na década de sessenta (.) fora/ dos Estados

Unidos e\ muito antes de estrelas como (.) Eminem

Surgimento do rap

Situação comunicativa: Entrevista

Duração:

Data:

87 min

24/09/2007

Participantes:

PM - Paulo Markum

MB - Mano Brown

MR - Maria Rita Kehl

PL - Paulo Lima

PLS - Paulo Lins

JN - José Nêumanne

RL - Renato Lombardi

RF - Ricardo Franca Cruz

RP - Rappin-Wood

FE - Ferrez

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(.) Snoop Dog (.) e Public Enemy (.) ganharem

prêmios\... com aparelhos de som colocados nas ruas

(.) líderes/ aproveitavam os intervalos das músicas

para falar sobre a violência das\ favelas (.)

racismo (.) drogas (.) sexo (.) e a\ situação

política... com letras duras (.) o/ estilo do rap

conquistou espaço\ (.) e em pouco tempo estava

presente em outros países (.) como França Japão e

Brasil (.)

o/ maior ícone do rap no país> <((imagens da trajetória

do entrevistado)) é (.) Pedro Paulo Soares Pereira

(.) pouco conhecido por esse\ nome (.) mas que/ não

passa pela periferia sem ser reconhecido como Mano

Brown (.) líder do maior grupo de rap do Brasil (.)

os Racionais MCs (.) ele/ é um dos artistas mais

ouvidos nas regiões mais pobres do país...

Trajetória de Mano

Brown

o grupo formado em/ São Paulo em/ mil novecentos e

oitenta e oito tem\ além de Mano Brown Ice Blue (.)

Edy Rock (.) e o DJ (.) KL Jay... nesse ano (.)

eles/ participaram com duas faixas na coletânea

“Consciência\ Black” (.) dois anos depois (.) em

mil novecentos e noventa (.) saiu o primeiro disco

do grupo (.) o “Holocausto Urbano” (.) com/

denúncias de racismo e da miséria na periferia\ de

São Paulo (.) em mil/ novecentos e noventa e sete

com o disco “Sobrevivendo no\ Inferno” (.) os

Racionais MCs venderam/ mais de quinhentas mil

cópias sem uma grande rede de distribuição por trás

(.) e ganharam vários prêmios... o DVD (.) “Mil

Trutas (.) Mil Tretas” (.) foi/ lançado em dois mil\

e sete (.) com/ shows extras e um documentário sobre

a história dos bailes\ black na periferia de São

Paulo...

Discos dos Racionais

MC's

o vocalista do grupo Racionais MCs (.) diz/ que a

consciência de raça do líder negro americano Malcom

X (.) o fez entender coisas que estavam ao seu lado

(.) e\ que ele não entendia... já/ interrompeu shows

para conter brigas na platéia (.) e para fazer

discurso contra o álcool (.) após ver um jovem

bêbado entre\ os espectadores... avesso às

tecnologias (.) não sabe mexer em computador (.) e

se considera uma pessoa rústica... o caráter durão

(.) herdou da mãe (.) que deixou a Bahia com doze

anos\ após brigar com o pai dela (.) classifica/ o

povo brasileiro como pacífico... mas já afirmou que

pegaria em armas para fazer uma\ revolução... Mano

Brown raramente concede entrevistas e quase nunca

faz shows fora da periferia... já/ declarou que o

seu verdadeiro público está lá (.) foi quem o

colocou no topo e precisa ouvir o que ele tem a

Trajetória de Mano

Brown

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dizer (.) atualmente atinge também a classe média

(.) falando de drogas (.) e marginalidade (9,0)>

PM .h para entrevistar <((lendo)) o líder do:s

Racionais MCs Mano Brown nós convidamos> ((corte de

imagem para cada participante citado)) Paulo Lins .h

escritor professor de literatura e roteirista de

cinema....h convidamos Renato Lombardi jornalista

da TV Cultura (.) Maria Rita Kehl (.) psicanalista

(.).h Ricardo Franca Cruz editor chefe da revista

Rolling Stone Brasil... José Nêumanne editorialista

do Jornal da Tarde comentarista da Rádio Jovem Pan

e do SBT... Paulo Lima .h editor da Trip (.)>

Entrevistadores do

programa

temos também a participação do cartunista Paulo Caruso

(.) .h registrando em seus desenhos os momentos e

os flagrantes do programa (.)

Participação do

cartunista

o ““Roda viva”” é transmitido em rede nacional de TV

pela rede pública para todo o Brasil (.) e também

(.) por meio da Rádio Cultura AM mil e duzentos

kilohertz

Transmissão do

programa

para você participar (.) do programa você pode fazer

sua pergunta pelo telefone <((lendo sequência

numérica)) ou pelo fax ((lendo sequência

numérica))>... e pode també:m mandar a pergunta sua

crítica sua sugestão pela internet (.) acessando o

site do programa <((lendo endereço da web))> (.) e

você manda (.) o seu (.) e-mail ((vira-se para o

entrevistado))

Participação do

telespectador

boa noite Mano Brown

MB °boa noite°

PM numa/ da::s- das poucas entrevistas que você

concedeu e que: a gente (.) acompanhou\ aqui pela

pesquisa que foi feita para/ o ““Roda viva”” (.)

você (.) se define como uma espécie de esPElho (.)

um espelho que retrata (.) a realidade (.) .h nesses

(.) eh quase vinte anos em que você (.) tá na estrada

como: (.) artista como compositor (.) eh-o espelho

Mano Brown eh:: registra alguma coisa de melhor (.)

ou a: realidade piorou de lá pra cá?...

MB .h ah eu diria diferente... diferente... eh:: .h se

eu dizer que melhorou pode parecer assi::m...

((balbucio)) melhorou um grão de areia entendeu?

PM °sei°

MB do-dentro do que a gente vê como:: do que precisa

ser melhorado então: eu me recuso a dizer que

Mudança na realidade

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melhorou (.) mas também não so::u cego de perceber

mudanças... mudou... mudar mudou... entendeu? (.)

mudou pra:: agora:...

PM menos do que deveria ser neces[sário?]

MB [bem me]nos do que

deveria (.) bem menos do que poderia [°xx°]

PM [e na] arte? (.) quer dizer você (.) começou fazendo

música (.) eh: sim na periferia mas so-só era ouvido

lá... hoje você tem um:-um: (.) e o seu grupo tem

um espaço (.) .h eh-na chamada grande mídia (.)

[isso mudou?]

Mudança no espaço do

grupo

[antigamente] não era ouvido nem lá

PM nem lá?

MB entendeu? (.) não era ouvido nem lá porque...

periferia... é onde te:m... mais critério (.) mais

bom gosto... pra música... entendeu?... é onde se

analisa mais... se ouve mais... se dá mais atenção

(.) eu acho (.) então quando num é (.) num é (.)

entendeu?... não tem meio termo... é é (.) num é

num é (.) periferia é assim...

Música na periferia

MB entã:o quando a gente começou

simplesmente não existia... então não tem-

((balbucio)) a:s pessoa não entendia... aquele

barato daquela ro:upa... as corrente gro:ssa...

porque: também no nosso bairro... eh:: justamente a

gente começou numa época onde o bairro nosso tava

numa transição também... numa transiçã:o (2) vamos

dizer assim até violenta mesmo... entendeu? naquela

é-hoje em dia... você usa o boné (.) usa uma roupa

você anda numa banca de dez quinze cara tranqüilo

antigamente você tinha que... .h num vou dizer

disfarçar mas houve uma época que::: (.) na nossa

quebrada você era um alvo... assim justice::iro...

extermí:nio... e é foi justamente quando nasceu o

Racionais (.) nessa fase aí... então lá era mais

difícil... até do que nos outros lugares mêmo (.)

lá na nossa quebrada era mais difícil (3,0) <((corte

de imagem mostrando o desenho feito pelo cartunista

RC))

Começo do grupo no

bairro

PM Maria Rita?

MR ºeh- eu queria saber sobre já que você pergunta°

de-eh o Paulo Markun perguntou de melhorias>... o

que que você/ acha de movimentos\ sociais (.) que

Movimentos sociais em

SP

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surgiram também/ nesse tempo (.) que os Racionais

tão aí na estrada\... tem um movimento lá no Capão

(.) quer dizer não é no Capão é em São Paulo .h mas

que é muito expressivo no Capão (.) que é o MTST eh

movimento dos trabalhadores sem teto (diz) que tem

até uma ocupação lá que tá brigando bastante (.) .h

e do MST mesmo eu gostaria de saber sua opinião

sobre: esses dois movimentos sociais se você é

otimista (.) com (.) a: (.) presença deles no Brasil

ou não...

MB sim então... eh: (.) junto com esses eh:-o: vou

dizer os que eu acompanho mais certo? eh:: tem

alguns movimentos que são hoje: sã::o organizados

dentro do Capão (.) que eu acompanho alguns de

perto... esses eu considero como mudança reAL tipo

tem o Capão Cidadão (.) [que é um:a]

MR

[unh-unh?]

MB & ação (.) dos próprios moradores (.) pelos (.)

moradores tipo nóis por nós tá ligado?... deles (.)

lá de moradores lá:: pessoas que são criado lá

nascido lá... para com:: (.) a população deles os:

próprios paren:tes filhos... afilhados entendeu?

família no-família nossa que todo mundo tem lá então

a gente: eh:-o que eu acompanho de perto (.)

Movimento Capão

Cidadão

os outras (.) organizações talvez eu acompanhe de

longe...

MR ((sorrindo)) e de lon:ge que que cê acha do MST?

(.) [perguntando de cara]

MB [o que eu acom]panho de longe... acompanho que tem

um cara preso (.) certo? [(.)]

MR [(xxx)]

MB & lutando por uma causa que não é só dele (.) que

é de milhões (.) e ele vai-pelo que eu to vendo vai

pagar sozinho é isso?...

MR ((balcucio)) num sei (.) acho que não ((rindo)) [tem

muita gente presa]

MB

[que tem um] cara preso lutando por uma causa que

é de muitos... né? eu acho que::... que é: José

Rainha é isso?

MR isso

MST

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MB eu até eu-tenho que dizer que eu sou um cara que eu

leio pouco mêmo... sou mal informado sobre muitas

coisa (.) mas... as coisa que me interessam (.) eu

me informo... en[tendeu?]

PL [ô Brown] nessa linha ce-cê-por exemplo o

que tá/ acontecendo em Brasília é um negócio que cê

presta atenção nessa movimentação toda esses

escândalos\ de corrupção (.) cê se liga nisso

acompanha de perto?...

MB não de perto mas eu acompanho

PL que que cê tá achando por exemplo da:: .h da forma

como o presidente Lula tem se posicionado diante

dessas confusões envolvendo PT:: dessas (.)

denúncias de corrupção e tal\... .h eu vi/numa

dessas entrevistas suas aqui dizendo que: talvez o

Lula tivesse melhor fora daquela cadeira de

presidente que na tua opinião é a cadeira mais

solitária do país né\? (.) queria que cê/ falasse

um pouquinho do Lula especificamente\

MB eh::: eu gosto do Lula (.) sou eleitor do Lula (.)

apóio o Lula falo (.) bem do Lula em qualquer lugar

((balbucio))... e nã::o... e não espero bene-

benefício por isso (0.9) não conto com nenhum

benefício vindo do Lula (.) ou de (.) qualquer que

venha do PT se vie::r firmeza mas eu não-não é o-

não espero por isso...

Lula

eu acho que o Lula:: (.) é um cara que ele veio de baixo

certo?... ele sabe que::... dar a cabeça dos amigo

dele (.) pros inimigo ele não vai dar...

entendeu?... ele vai esperar a justiça se fazer por

conta própria eu acho que ele tá posicionado

certo... acho que não é da índole dele entregar um

amigo dele que deu mancada (.) entendeu?... ele não

faria isso eu acho que ele (.) ele sabe o que que

é isso... ele não faria isso... agora: ele vai

deixar descobrir... e se descobri:r é pau no gato

é lamentável\

PL [(xxx)]

Lula

PLS [ô Brown] eh tem:: tem/ bandido no poder

legislativo... tem ladrão no judiciário... tem

ladrão no executivo... .h tem empresário que rouba

(.) que sonega impostos... que bota dinheiro pra

fora... cartola de futebo:l até jogador tá fazendo

isso... então a gente vive nisso há muitos anos (.)

todo\ mundo sabe disso\...

Presença da

desonestidade

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é/ muito difícil falar prum garoto (.) pobre preto...

que vive na periferia (.) que ele tem que ser

honesto? (.) diante dasse-desse exemplo?... .h por

que eu falo isso? porque cê falou que é assim: (.)

ele se espelha em quem tá mais perto... .h agora o

exemplo do Brasil... se a gente for ver do modo

geral... é muito maior do que tá perto... tem muito

ladrão no Brasil todo... .h fica difícil você falar

pruma criança (.) sem pa:I (.) passa fome e tal (.)

que ele tem que ser honesto que ele não pode

roubar?...

Dificuldade em falar

de desonestidade

MB eu chego a dizer que eu nem considero eles

desonestos né? (.) dentro da realidade da arma-das

armas que eles têm pra lutar (.) e que eles

aprenderam como meio de sobrevivência eles são

honesto... eu tenho certeza que com os parceiro

deles eles são honesto... com a família deles eles

são honesto... com os mano que tá preso eles são

honesto... tá ligado? eles são honesto com quem tem-

com quem é honesto com eles (.) entendeu? onde tá

a honestidade são valores/ né?...

Honestidade dos

jovens da periferia

quando você fala/ que um assaltante de banco é desonesto

(.) cê tem que olhar pa sociedade (.) se a nossa

sociedade é honesta a nossa sociedade é uma-eu-eu

costumo falar pos mano quando a gente tá

conversando\ .h que a minha-a nossa sociedade é

criminosa... é omissa... ela é cega quando quer

surda quando quer... omissão é crime né?... né?

então eu acho que se você for ca-(.) fo:r categoria

de criminosos... cê viu tá todo mundo na mes-na

igual... [xxx]

Desonestidade da

sociedade

PM [mas a sa]ída não seria (.) lei (.) pra todo mundo?

MB mas a/ lei não é pra todo mundo\... a lei não é pra

todo\ mundo (.) nunca/ vai ser pra todo mundo\...

nunca vai ser pa todo mundo

Solução da sociedade

pela lei

JN mas pera aí a maioria do po:vo lá no Capão Redon:do

na periferia de São Pa:ulo eh-((balbucio)) nos

bairros pobres a maioria é honesta\... a maioria

trabalha a maioria caminha vai a pé da sua casa (e

tal) e esse é o verdadeiro herói\ brasileiro o

herói/ brasileiro não é o que delinque... não é o

que se torna bandido... pra:: se dar bem (.) o

herói/ brasileiro é aquele que trabalha... e lá no-

no Capão Redondo de onde você vem (.) você sabe

disso\ quer dizer/ o Brasil é um país de/ cento e

quarenta milhões de honestos... reféns de vinte

milhões\ de desonestos nós não podemos\ (.) eh:: .h

considerar como uma regra... o fato de have::r o

Honestidade do povo na

periferia

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fato de /haver políticos bandidos e há muitos (.)

empresários bandidos não quer dizer que nós eh::

vivamos numa sociedade/ ao contrário nós .h nós-o

verdadeiro herói brasileiro é aquele (.) que se

levanta/ às quatro da manhã: e caminha a pé (.) de

sua casa lá em Capão\ Redondo até o trabalho dele

(.) as vezes/ lutando com a maior dificuldade pra

ser honesto ([xxx])

MB ([pare])ce letra de rap isso aí que cê tá falando

((risos))

JN [((risos))]

MB [a utopi]a (igual) (.) infelizmente na realidade a

gente sabe que:: os heróis tão cada vez mais

humilhados né?... sem direito sem:: escola sem

hospita:l então/ os moleque passa a ver que ser

herói não vale tanto a pena entendeu?... herói que

só apanha?... [(xx)]

(PLS) [mas olha]

JN

[mas o ca]ra/ também que vai pro crime (.) eh-

((balbucio)) a vida dele é cu:rta também não é uma-

não é uma (.) ele tem um lu:cro ali imediato (.)

mas também ele não tem:-a longo prazo ele não tem

um: um benefício assim tão grande não né Mano?

MB [.h]

PLS [mas é] o seguinte é-quando o sujeito tá no inferno

(.) ele resolve dar um tapa na cara do diabo...

Vida do criminoso

porque/ a periferia não é tudo igual nem todo mundo é\

igual (.) e quando a gente vê-quando uma/ pessoa

vai entrando pro crime quando você olha (.) que você

vive\ na favela quando você vê a família (.) você

vê o aspecto cê já sabe quem é que vai entrar que

é co-que não vai entrar... então aqui assim/ ah::

o fulano aqui trabalha... mas tem outro ali que tem/

uma família mu-em situação muito pior (.) a favela

não é todo igual... né? tem as famílias organiza:das

(.) tem as pessoas e tal mas tem gente que não tem

geralmente (.) QUEM vai dar (.) quem/ entra na

criminalidade é aquele que tá na pior situação...

RL ô Mano

PLS & disso eu tenho certeza

Entrada na criminalidade

RL ô Mano... você costuma dizer (.) que você é um

sobrevivente do\ inferno... você citou aqui (.) que

Mudança na estrutura

de vida de MB

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você é do Capão Redondo... .h e eu acompanhei há

muitos anos o Capão Redondo o Capão Redondo chegou

a ser o bairro mais violento do [Brasil]

MB

[(°isso era°)]

RL & quem/ sabe um dos bairros mais violentos do\ mundo

(.)

e você sobreviveu... o/ que muDOU (.) de (.) Pedro Paulo

Soares Pereira (.) pra\ Mano Brown? (3,0)

MB ah:((balbucio)) (.) o Pedro Paulo não tinha uma casa

certo?... não tinha:: uma:: (.) uma estrutura

mínima... nem de::: (.) .h o/ mínimo do mínimo (.)

tínhamos o que (.) minha família ah os irmãos tá\

ligado? (.) os amigo... esses fortalecia (.) era o

que-a/ riqueza maior/ é o que eu quero ter até: (.)

enquanto/ eu tiver assim: condições ter minha maior

riqueza que é meus amigo é o que eu tinha...

entã:o o que mudou hoje? hoje eu tenho meu carro

certo?... hoje minha mãe mora numa casa que eu

comprei com o meu dinheiro... certo\? /com o rap...

comprei a casa... que:: pode até parecer pô o cara

tá falando que ganhou dinhe:iro (.) uai ma-mas é

melhor do que enterrar meu dinheiro numa boate no\

que entendeu? (.) que é: parece que todo preto

cantor tem que acabar na boa::te acabar no

bote::co... na sarjeta e não vai ser assim meu (.)

depender de nós... mudou isso vai aca-tem que acabar

meu entendeu? então a gente procurou o que? procurou

fazer estrutura comprar uma casa pra morar tá

ligado? (.) dar a condição mínima pum: (.) eh:::

uma condição mínima... entendeu?...

RL esse é o Mano Brown de hoje?

MB eh:: ter uma condição razoável assim de:: que pode

dizer assim agora dá pa viver dá pra tentar criar

um filho e pá (.) [antigamente não tinha isso não]

Compra da casa de

MB

RL [e: qual a mudan]ça do

Mano Brown que no começo da carreira cantava:: raps

que/ falavam de amo:r que falavam dos próprios

bailes (.) e:: passou pra dizer o seguinte (.) eu

t-tenho um trecho aqui que você diz (.) .h você é

fogo que vem: (.) entope o nariz (.) bebe tudo que

vê (.) faz o diabo feliz... como é que é isso? essa

(.) mudança

Mudança nos raps de

MB

MB é °isso aí:°... .h bom eh-a gente chama eh:: da onde

a gente chama-da onde a gente vem a gente chama de

Conselhos de MB

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oreiada... oreiada é quando a gente dá risada dá

uma-conselho né? (.) espécie/ de conselho não tem

outra palavra a não ser\ isso (.) oreiada é conselho

(.) é tipo como se fosse assim:... conversando com

um parceiro seu (.) dando uma oreiada... dando uma:

uma dura (.) vamos dizer assim uma: (.) uma: (.)

uma idéia (.) mais séria (.) [na vida mesmo]

PM

[e essa dura] emplaca?

MB ahn?

PM cê acha que essa DUra-essas duras emplacam? (.)

[elas fazem a cabeça?]

MB

[sim em (todo lugar)] é eu costumo::... receber né?

((sorrindo)) assim ouvir: e também meus parceiro eu

tenho sócio meus parceiro certo? que eles também

eles cobra de mim: eu ouço deles então também falo

pra eles e outros falam pra mim eu falo pra

outros... a gente tem que falar... tem que falar

PL ô Brown na pergunta do Lombardi e na tua resposta...

Pedro/ Paulo e Mano Brown não parecem ser a mesma

pessoa\ né? (.) .h me lembrou um pouco o::: a

história do Pelé que criou (.) essa/ separação entre

o Edson e o Pelé quase como uma defesa de uma persona

pública (.) né? (.) o Pedro Paulo e o:: Mano Brown

são a mesma pessoa ou não [são?]

MB

[são] a mesma pessoa...

Separação entre MB e

PP

MR Brown quero te perguntar sobre essa coisa exatamente

do: da-dos amigos (.) dos manos (.) que eu acho/

que é uma das coisas mais bonitas no rap dos

Racionais e:: de outros\ grupos... .h eh: exatamente

essa idéia de quem não é um astro (.) ahn: que quer

se destacar mas ao contrário quer tá cada vez mais

junto dos amigos eu acho isso (.) como: como:: (.)

referência que você cria pro jovem muito mais

importante do que o cara que (.) .h se põe aCIma de

todo mundo e os outros que tem que admira::r e

Os manos nos raps dos

Racionais MC's

.h agora (.) você disse agora há pouco que o honesto...

é aquele que não trai os ami:gos\ agora há pouco na

outra pergunta né? (.) .h e no “Jesus Chorou” ali

você tá claramente falando de traição (.) jesus

chorou [no::]

Traição nos raps dos

Racionais MC's

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MB

[°certo°]

MR & “Nada Como Um Dia Após Outro Dia” né?... você pode

dizer um pouquinho no seu meio e com tudo que você

conquistou de (.) de amiza::de de gente que (.)

solidária a você o que que é traição atualmente?...

[porque aquela música é bem triste né? naquela

música você tá: magoado]

MB

[traiçã::o nessa música em si: (.) não se trata]

nem de uma traição (.) porque:: a pessoa/ que fala

na verdade ela não conhece... ela tá falando duma

pessoa-ela não me conhece...

MR ela ouviu di[zer então né?]

MB [é::] então ela tá falan-tá passando

uma idéia ali ahn o que que acontece ali não é::

uma traição né? (.) traição é quando você me-quando

você menos espera você (.) mas não é um assunto que

tão me- tão me:: que:: que:: me:: (.) não-esse

assunto traição essa-esses problema da vida que é

um problema comum a todos (.) e não só a mim não

sou diferente de ninguém não é um barato que também

que me preocupa tanto entendeu?... tem coisa

assim:... mais (.) que me preocupa mais do que

isso... [hoje eu sou um cara muito tranquilo não

tem medo disso]

MR [e o

lance da inveja das pessoas?]

MB & não tenho medo também (.) de inveja...

MR de tá meLHOR de ter conquis[tado todas essas

co:isas]

MB [nã::o não te]nho

medo... não tenho [porque::]

RF

[Brown (.) cê]

MB & não pode [ter medo]

Inveja

RF tava falando dos parceiros agora (.) você tem um

selo (.) que você lançou alguns discos agora tá até

rapazeada aí: do Rosana Bronks e:... ouvindo os

discos e vendo os discos percebe-se a sua mão ali

o seu dedo na produção executiva (.)

Selo musical de MB

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MB °certo°

RF como que você traba:lha o que que cê passa pra eles?

pra esses seus amigos o eh-eh-eh-eh:: que tipo de

direcionamento artístico cê passa pra eles?...

MB eh::: pra eles nunca te::r vergonha de-de mostrar

o que eles aprenderam (.) o que eles sabe fazer...

nunca ter receio de-de:: de se expressar de falar

o que sente... não ter medo de arriscar de ser novo

(.) de ser diferente né?... amar música... ama:r a

música amar o que eles fazem... e estudar o que eles

fazem... eu acho que:: (.) eles são rappers né? são

músicos... e: eles têm que ouvir (.) a música e não

só o rap ouvir a música (.) pra fazer o melhor rap

entendeu? é o que eu falo pra eles eu falo pro U-

Time (.) que também é o (.) do grupo do::

RF °(U-Time)°

MB do Cosa Nostra que é o:: (.) é o “Trutas e

Quebradas”... eh:::... eu falo pra eles ser honesto

né? ... não falar coisa que eles não viveram... não

falar o que eles não são...

Direcionamento

artístico de MB aos

rappers

porque na verdade o rap ele é-é uma fronteira disso aí

também... certo o-o próprio rap americano já nasceu

fazendo isso (.) fantasiando né? (.) misturando

realidade com fantasia... só/ que na cultura deles

(.) é lindo na nossa (.) é cobrança na\ rua... se/

a gente falar alguma coisa que não é a gente vai

ser cobrado na rua porque a gente canta a rua e a

gente vive\ a rua... encontra as pessoa da rua então

pra nós... e-ela é uma profissão perigosa entendeu?

(.) tudo que você fala... volta (.)

Cobrança ao rapper

e eu falo pra eles tudo que você falar você vai ser

cobrado então você tem que pensar (.) mas também

tem que ser espontâneo também não pode ser tudo

pensado com:: recei-não... seja espontâneo

Direcionamento

artístico de MB aos

rappers

PM [tem espa]ço

[mas lá]

PM &pra poesia no rap?... quer dizer o rap a força dele

eh:: a denúncia... né::? a retratação de uma

realidade que (.) .h nem sempre::: eh-aparece...

mas tem espaço pra poesia?

Espaço da poesia no

rap

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MB tem: (.) tem grupos que são bem as-que tem esse lado

poético (.) forte [(acho que)]

PM

[no seu] trabalho tem?

MB &o Z’África Brasil::... eh:: (2) tem alguns grupo

que tem:: eh (.) escreve linha nesse jeito assim:

poé:::tico

JN (você é ligado assim em algum poeta Mano?)

MB ahn?

JN você é ligado assim a algum poeta?... [(xxx)]

MB [pra falar] a

verdade não

Gosto de MB por

poesia

JN algum letris::ta de música popular?

MB não (.) admiro vários né?

PLS qual música que você ouve assim?

MB ahn:::

PLS os composito:res

MB brasileiro?

PLS é

MB Jorge Bem (2) o primeiro que vem na mente Jorge

Bem:: Cassia:no Tim Maia... eh:::: Bebeto...

PLS aproveitando ainda

MB Banda Black Ri::o

PLS [(xxx)]

Gosto de MB por

MPB

JN [alguns] tem influência sobre:: o que você faz?

MB ah sim com certeza

JN a música do: Cassiano por exemplo?

MB com certeza

JN Cassiano tem muito a ver com a (xxxx)

Influência da MP na

música de MB

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MB cada vez mais né? (.) Jorge Bem desde o começo (.)

Tim Maia desde o começo... Cassiano também (.) eu

fu-a gente foi eh-apre- foi influenciando com o

tempo... e outros músicos Gilberto Gil também::

PLS no Brasil... o hip-hop tá unificado no Brasil? há

uma comunicação (.) entre o pessoal que... faz rap

que faz hip-hop (.) no sul (.) no norte (.) há uma

comunicação (.)

MB há

PLS &entre o pessoal?

MB há uma comunicação

PLS tá... sempre::

MB não sempre

MB trocando idé::ia?

MB não sempre as mesmas pessoa mas existe:: outras

pessoas né?... se não tá o-o Brown... tem outro...

se não tá o outro tem o outro (.) tipo nesse exato

mome:nto acho que os mano do Ceará tão ouvindo...

ou:-tão vendo pela internet ou pelo algum meio eles

tão vendo... Zezé lá os mano os de Natal... tão

vendo... os mano lá do sul... eles são tudo

interligado o-a... eu/ já fui em encontro deles onde

tava um de cada estado... e/ isso encontrou todo

mundo no sul os cara “pô marca em São Paulo que é

no meio”\... pá “que é neutro”... tipo assim que é

longe o cara mora lá no alto e:: marcou no sul mas

é louco isso cê vê os mano de sotaque diferente...

falando das mesmas coisa dos mesmos problema

PLS agora assim eu tive lá-eu tive lá em Pelotas junto

com-junto com o Ferréz (.) até por sinal... e (.)

fomos ver um:: um grupo de rap lá (.) e::: vi que-

que assim... é realmente (.) funciona (.) as

idéias... a-a-a-as conversas são as mesmas (.) do

Nordes:te (.) do Sul...

Unificação do

Movimento hip-hop

no Brasil

tudo igual... como-nesses vinte anos... de

Racionais... como é que você avalia o movimento que

((balbucio)) como é que... hip-hop tá no Brasil...

desde quando começou

PM aliás

PLS até hoje?

Mudança do

movimento hip-hop no

Brasil

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PM aliás Paulo (.) só queria imendar (.) aqui eh:: a

pergunta do:: rapper e colaborador do Metrópolis

aqui da TV Cultura Rappin-Hood... que/ é mais ou

menos nessa linha a gente junta as \duas (.) vamos

ver ((corte de imagem para mensagem gravada))

RR salve/ salve toda a rapazeada do ““Roda viva””...

satisfação estar aqui (.) vendo Mano Brown sendo

entrevistado... Brown... satisfação estar falando

conti:go parceiro cê tá ligado (.)(xxxx)... pra você

que é um rapper da anti:ga... que veio daqueles bons

tem:pos do metrô São Ben::to... do começo início da

galeira vinte e quatro de maio... eu queria saber

de você... qual a principal mudança (.) que você vê

no rap... no hip-hop daquele tempo pra hoje em

dia... e queria saber (.) se você acha que essa

mudança (.) é positiva ou negativa... valeu (4)

MB Rappin-Wood é parceiro... ((pigarro)) eh:: o ma-o

mu-o::...

primeira/ coisa que eu acho positiva foi o número (.)

cresceu numericamente isso daí::\ se falar que é

negativo num::... é:: positivo... cresceu em número

né? hoje:: a gente vai no::... no-de norte a sul do

Brasil (.) e tem grupo de rap... tem::: posse...

tem organização:: tem uma ONG... tem um:: um

quarti:nho... tem um escritoriozi::nho... ou o

escritório é na esquina mas os moleque tão fazendo

as coisa... então a gente::... pô mano eh:: eles

tem que ver que os números são a nosso favor... e

eu falava isso aí há vinte ano atrás... números...

pesam pro nosso lado... nós tem que saber trabalhar

os número (.) os número são nosso... quem tem a

maioria é nós quem tem o-a MASsa... somos nós né

tem que fazer esse peso (.) virar pra nós...

MR então e esse número... tá ganhando/ mesmo que você

queira ou não queira os Racionais tão ganhando um

número muito grande de:: (.) .h de ouvinte de fãs

na classe média... né? (.)

Crescimento numérico

do movimento hip-hop

e tem uma mudança aí talvez nu-na atitude do grupo...

porque/ no “Sobrevivendo no Inferno” acho que tinha

um rap que dizia que não adiantava o bo:y querer:

por: o: CD de rap no carro pra se fazer de malandro

(.) .h e aí no-no-no “Vida Loka”... tem uma hora

que você disse acho que tá no:-no:: no::... bom não

lembro qual faixa você diz o seguinte do::... “eu

entrei pelo seu rádio peguei o seu filho”... né? o-

a... “seu filho me imita” como se... tivessea

percebendo que também interessa... ganhar essa

adesão... de:: gente da classe média que gosta de

Sobrevivendo no

inferno e Vida Loka

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rap e não tá só querendo se bancar... eh de malandro

(.) de:: playboy que tá querendo bancar de

malandro... porque tem uma::... aquilo que vocês

dizem... toca muita gente (.) né?

eu queria saber se houve de fato uma mudança e se

interessa essa... esse público de classe média que

agora gosta de vocês mesmo que vocês não queiram\

né?

Ouvintes da classe

média

MB a fiNAda classe média

MR ((risos))

MB a finada classe média... que: que... existia os

emergente e os decadente\ né?... os decadente...

que tão que:: a crise aperto:u a vários setores

inclusive os classe média certo? eles/ TEM que...

entender o mundo que cerca eles... eles tem que

entender o que pensa o porte:iro... o que pensa o...

o filho da conzinheira... a cozinheira... o

jardineiro ele tem que entender:: as pessoa que

cuida dele... tem que saber tem o mundo ele vai ter

que sair pra fora do portão... ele vai ter que pegar

ônibus ele vai ter que pegar trân:sito ele vai ter

que conviver com os motoboy... ele vai ter que

conviver com o... com o que tá ao redor dele então

não é que ele tá... o Raciona::is ocupou nã::º.. o

Racionais é que nem: como se fosse::...a voz de um-

alguns... existe outros... certo? se o cara fa-

achar que o mundo também- o Racionais resumiu o

mundo ele tá errado tá de chapéu... ele vai se

surpreender quando ele descobrir que além do

Racionais existe muita coisa que (.) nem foi falada

em rap... não foi falada em letra de música ainda...

então ele tem que se informar sobre o mundo que

cerca ele (.) pra ele poder sobreviver...

Situação da classe

média no Brasil

então o Racionais (.) o rap... até o rap america:no e\

toda essas coisa essa cultura... é um meio do cara

se integrar:: integrar:: ao mundo saber o que a

rapazeada tá pensando (.) como é que (.) porque que

os caras de vestem desse jeito que que a gíria

fa::la\ qual é que é pá...

Integração da classe

média pelo rap

entendeu? é normal (.) é normal desde que música é

música todo mundo (.) cê não vai por... um selo

“probido playboy comprar CD”... entendeu? mas...

já/ e-existiram outros movimento que os playboy

curtia também e nem\ por isso eles beneficiaram nós

em nada

Ouvintes da classe

média

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PM Raciona-ahn... Mano Brown vamos fazer um rápido

intervalo nós voltamso em instantes... com o ““Roda

viva”” que hoje tem na platéia... os parceiros (.)

de Mano Brown do Racionais MC’s... Ice Blue o

vocalista (.) KL Jay o DJ e Edy Rock vocalista

((corte para imagens de shows do grupo))

PM bem esse é o trecho da música “Fórmula Mágica da

Paz” dos Racionais MC’s grupo (.) do qual faz parte

Mano Brown (.) entrevistado de hoje no ““Roda viva””

aliás (.) .h o/ programa completa nessa próxima

sexta-feira vinte e um\ anos... Mano Brown a música

fala que::: não dá pra sair que fugir... não é...

a (.) solução (.) qual é a solução?

Fórmula mágica da

paz

MB .h cê vê... essa música foi feita em noventa e::...

noventa e oito... noventa e seis... eu/ morava na

COHAB já não moro\ mais... pode parecer até

contraditório... é o que que acontece... .h o/

problema de moradia na minha vida sempre foi muito

constante... sempre foi o que:: o-o problema da

minha vida foi moradia (.) então hoje eh:: eu/

jurando lealdade a uma quebrada... tá? é até

estranho porque eu morei em trezentas quebrada...

eu morei de aluguel a vida toda: na mesma rua morei

em três casas assim\ as vezes...

Problema de moradia

de MB

entã::o eu... optei... por ser leal... entendeu?

RL e o que que é ser leal a periferia?

MB ser leal é:: tentar investir tentar::... participar

tentar::... tenTAR pelo menos... não é executar --

também é pretensão eu vou executar -- não é assim...

isso aí depende da opinião de ter-mil pessoas...

mil mentes diferentes... tem gente que é inteligente

igual a você e que pensa diferente... e tem co-

negociar...

Lealdade à periferia

periferia sei lá vamos fazer e tá feito cê tem que

negociar tem que explicar por que... o dinheiro é

escasso pra investir tem que ter o... porquê... tem

que investir certo não pode errar... não tem espaço

pra errar não tem dinheiro sobrando pra errar...

então você conhecer as pessoa que dá pra investir

no bairro... é um:: é um barato que eu tinha na

minha mente aquela época... hoje eu acho que dá pra

você::..

Investimento na

periferia

eu até entendo essas pessoas se quiser sair do

bairro... eu aprendi a entender isso... porque

existe lugares onde o problema é crônico (.) não

vai resolver... como você vai resolver uma situação

de uma favela?... que é construída... eh:: num

Direito de sair da

periferia

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terreno:... eh:: vamos dizer assim uma palavra....

“íngrime” vai... que se usa né? “íngrime”

PM uma “pirambeira”

MB barrancã:o o cara constrói a casa dele com a es-

eh... gasta o dinheiro dele sei lá duma-duma-duma-

duma carreira numa empresa... pra construir uma

estrutura duma casa construir (.) fazer um sobrado

(.) dar um acabamento legal... eu falo pô tem gente

que investiu a vida ali... ele vai ter que melhorar

aquilo ali... ele vai viver ali... mas quem não

quiser também tem o direito de sair... cê entendeu?

eu passei a ter essa visão depois dessa música...

entendeu? quem quiser sair tem direito de sair...

tem direito de procurar um jeito de\... situar

melhor porque/ eu também fui obrigado a sair... não

saí por opção fui obrigado a sair... procurar um

jeito de morar...

RL independente das letras né?... das suas músicas/ de

orientação que mais o teu grupo faz... pra poder

orientar... pra poder abrir a cabeça das pessoas

né? (.) que tão da-dessa juventude toda que tá aí

com droga em TUdo quanto é esquina... com violência

em tudo quanto é esquina... que mais cês fazem?...

independente das letras e dos sho-da mensagem que

vocês passam?

Ações de orientação

feitas pelo Racionais

Mc's

MB .h eu vou te falar um negócio cabuloso agora... por

incrível que pareça... o/ lugar onde tem menos

violência hoje é na favela... entendeu? onde tem

menos violência hoje é numa favela (.) você vai ver

violência no asfalto dentro duma favela tem controle

(.)

RL de quem? do traficante?

MB não... da população (.) da opinião da maioria... e

da justiça

MR [e a violência da polícia (Mano)?]

MB [e o cer]to (.) o certo tem que

prevalecer

MR [e a violên]cia da polícia?

MB [não interessa que]...((vira-se para MR)) ºnão

entendi°

Controle social na

favela

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MR e a violência da polícia?

MB [si::m]...

MR [que você] fala bastante nas letras

MB &isso aí já é uma-é uma-já é um outro assunto (.)

longo né?

MR ((sinal de afirmativo com a cabeça)) é não eu [per]

MB

[que] faz parte (.) se a comunidade não se une (.)

se não tem alguém pra unir a comunidade (.) e te:r

(.) uma organização mínima (.) vira alvo fácil pra

qualquer tipo de: força exterior polícia... ou...

outras forças... ruins... entendeu? a polícia é a

maior delas... a favela tem como eleita a fo-o

inimigo número um a polícia... por que? não/ é rap

que decretou isso – o Mano Bown não inventou isso

– (.)

MR °claro°

MB eu já nasci... as pessoas mais velha falava pra mim

“fica longe de polícia (.) cuidado eles não gosta

de nós” (.)

RL mas a [mensa]/gem

MB [°cuidado°]

Papel da polícia na

favela

RL &que vocês passam me explica-eu queria\ que ce

falasse um pouco disso essa/ mensagem que vocês

passam... conSEgue... entrar na cabeça (xx) dizer o

seguinte... olha... a letra é essa... o caminho é

esse eu vou cair fora das drogas quer dizer eu vou

cair fora do roubo e vo:::u seguir meu caminho (.)

você é um exemplo disso

Mensagem passada

pelo Racionais MC's

MB eu sou uma e-uma exceção... eu/ não diria que eu

sou um exemplo porque eu não\ sou um exemplo... nem

pro meu filho

RL sim mas você tem uma legião (.)

MB [não assim sim::]

RL [que acredita] no que você canta você passa...

MB amigos... pessoas que gostam da música como eu gosto

de outros músico mas eu não vou seguir a vida que

Responsabilidade de

MB como exemplo

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os músico que eu gosto viveram... entendeu? eu gosto

de Marvin Gaye (.) eu viver a vida dele eu se-

((balbucio)) impossível viver a vida que ele

viveu... entendeu? então o que eu digo qual que é

o meu exemplo?... as pessoa que tão perto de mim

ela me vê elas conhece os meus defeito... conhece

minhas qualidade... elas sabe até onde a palvra vai

ter efeito eu não posso... achar... que:: realmente

eu tô... cativando... um exército de pessoas porque

isso aí vai me atrapalhar...

RL mas cê sabe a responsabilidade que você tem?

MB não sei

RL (xxx)

MB e não quero ter... entendeu?... quero ser livre eu

sou um cara livre

RL [quando você canta... quando]

MB [esse fardo eu não aceito não pego (xxxxxx)]

RL você canta ((lendo)) “nas ruas do sul eles me chamam

Brown... maldito vagabundo... mente criminal... o

que dá uma taça de champagne e também curte

tubaína... fanático... melodramático... bom

vivant... depósito de mágoa” °que que° cê quis dizer

com isso aqui?

MB sim::... eh-eh::... nossa é muita idéia né?

RL ((risos)) é mas eh::: me chamou a atenção aqui

realmente é

MB ah eu te falo é::::

RL vamos lá então vamos separar aqui vamo lá

MB °certo°

RL ((lendo)) “nas ruas do sul eles me chamam Brown...

maldito vagabundo mente criminal” (.)

MB °certo°

RL fala um\ pouco sobre isso

MB bom antes de mais nada é uma rima certo?

RL claro

Significado da letra de

MB sobre ele mesmo

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PM [((risos))]

MB [a gente faz] uma rima certo?

RL [sim claro mas (xx) é pesado]

(xx) [((pigarro/tosse))]

MB [pra ficar legal certo pra ficar] bem pá mesmo

RL [mente criminal é:]

MB [certo? cê curte música cê tá ligado ((dirige-se a

RF))]

RL pesado

MB e também o:: a realidade também é explícita (.) a

mente é isso mesmo as pessoa que chamam de Brown

mesmo... eu sou criminoso sem ser... ou SOU...

entendeu?... po-talvez eu seja realmente... na/

verdade nós somos todo mundo aqui\ é criminoso...

quando a gente aceita o Brasil que a gente vive e

a gente tá... tira onda vai tomar cerveja comer

pizza vai fazer samba [(xxxx)]

RL [foi por isso que eu acho-por] isso que eu te falei

da responsabilidade que assim... eu sou jornalista

então... a gente denuncia... a gente critica... a

gente investiga... é o que é o teu caso... você

passa mensa::gem... a tua mensagem ela vai-vai pra

um-pra muita gente vai do garoto de doze treze

anos... até um adulto... que tá naquele pe-no barco

que tá:: que tá pra:: pra ir e não vai...[e aí::]

MB mas [veja bem] o mundo que a gente vive né?...

o::: eu tenho que ter uma consciência que é o

seguinte... o Racionais é um grupo de rap (.) o rap

é um gênero... existe outros vários gêneros

musicais... onde a juventude ouve... não ouve só o

rap...

Responsabilidade de

MB como exemplo

periferia não ouve só rap... dentro/ da música negra

tem pelo menos uns outros (.) oito ritmos... que

disputam... a preferência das mesmas pessoas... tá

ligado?... dentro de periferia tem o forró forró

isso forró universitário... samba... samba

aquilo::... eh:::: reggae... reggae não sei o que::

tá ligado? tem vários som todo mundo curte um som

negro algum som (.) periferia \curte som negro mesmo

(.) forró pá... certo? e o rap é mais um o rap

nacional é um (.) ainda tem o rap americano ainda...

Ritmos ouvidos na

periferia

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RL quantas/ pessoas vão nos show-nos shows que vocês\

apresentam em média?

MB relativo... já cantei pra vin:te já cantei pra vinte

mil

RL [vinte mil (xx?)]

Público dos shows de

MB

PM [uma coisa aliás] em relação ao rap eh::: A. F. aqui

de São Paulo pergunta o que é diferente entre o rap

americano e o brasileiro?

MB acho/ que o rap americano é mais evoluído... eles/

alcançaram um lugar onde eles deveriam estar

mesmo... hoje eles usam a mídia a favor deles...

eles usa a máquina a máquina é podre e eles usa pra

fazer no favor-já que é podre e não vai melhorar...

eles fazem o dinheiro vir pro lado deles... a gente

sabe [que:::]

Diferença entre rap

americano e rap

brasileiro

PM [mas] o discurso social lá não é tã::o forte que

nem aqui no

MB eu já não tô nessa fase de exigir de um cantor de

rap discurso social... por que? porque o rap ele é

um músico... eu acho que ele tem que falar de

sociedade o que ele sente... o que não sente não

tem que falar (.) não é porque é rapper que tem que

falar de problema crô:nico sociedade e tal acho que

o cara tem que ser livre... o compositor:: o le-o

letris::ta cê não pode chegar pegar um moleque que

tá agora começando dentro da casa dele num cômodo

e jogar (x)-“fala desses problema aqui que é a sua

cara” jogar um fardo de duzentos quilos nas costa

do moleque (.) sendo que dentro da casa deles mesmo

ele não tem... o mínimo pra ele... entendeu? ele

tem que lutar pela vida dele e o rap é isso também

(.) é lutar pela sua própria vida também

individual... lutar pela sua sobrevivência [é isso]

Discurso social no rap

JN [ô Mano] como é

que você compõe (x)?... como é-como é que o-o

processo de composição pra você?... como é que cê...

bola uma letra dessa como é que cê chega nessas

rimas? como é-como é que era a tua rotina nisso aí?

MB ah primeiramente necessidade se eu não canta rap eu

não como... certo?... eu tenho filho pra criar::...

eu preciso cantar pra viver né?... então eu

preciso::: de alguma forma eu ia fazer o meu tipo

de som de música... se fosse que Deus me permitisse

mesmo de eu estar na rua... livre... trabalhando eu

Processo de

composição de MB

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ia tentar música... certo? e:::... geralmente

meu... eu escrevo de dia... de noite eu não escrevo

não tenho saúde pra escrever a noite (.) não tenho:

resistência... de noite eu faço outras coisas vou

pra rua... pra escrever meu cérebro não funciona

bem eu escrevo de dia... eh::: não precisa ser lugar

tranqui::lo nem:: beira de praia essas pegada eu

não curto...

JN mas é uma coisa que pinta assim uma inspira[ção ou

é trabalho em cima?]

MB

[nature::za vendo árvore essas coi-]eu não sou

assim... ahn?

JN é uma coisa que pinta assim uma inspiração? (.) ou

é uma coisa que cê fica trabalhando “eu vou fazer

eu vou escrever”?

MB não inspiração... eu pe-eu:: inspiração é assim

inspiração é aqueles dez por cento que quando cê

tá:: tá acabando o que cê sabe aí: deus manda

aqueles dez por cento que isso ajuda cê terminar o

som... inspiração não vem toda hora... ce tem que

estar trabalhando o cérebro mesmo...

PL ô Brown por que [que cê resolveu]

MB [tem que estar] praticando

PL por que que cê resolveu vir aqui hoje?... eu sei

que cê:: /cê acabou de falar os americanos usam

melhor a mídia\ e et cetera né?: e a/ gente sabe

que cê controla bastante a tua exposição... na

mídia\ o grupo inteiro et cetera... por que que cê

resolveu vir aqui hoje... no ““Roda viva””?

MB ah porque é um programa que eu já assisti... várias

vezes certo? (.) mesmo sem ter muita noção do:: as

vezes eu não tinha muita noção do assunto as

palavras são meio difícil... .h mas eu ficava (.)

prestando atenção no comportamento do cara que tava

sendo entrevistado já vi\ uns cara que tomou pancada

aqui

((vários risos))

MB eu tô achando suave

PM hoje tá light...

Ida de MB ao Roda

Viva

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MB tá sua::ve... não sei por que meu...tá suave tô até

estranhando

PLS agora

MB [então]

PLS [eh]-religião... vamos falar um pouco de

religião... por exemplo samba –- a questão do negro

no Brasil – desde/ que o negro chegou no Brasil foi

perseguido\ foi escravo (.) e tal e depois... pós

escravatura foi perseguido... a umbanda foi

perseguida o candomblé foi perseguido... e hoje...

né? o negro ainda é perseguido...

Perseguição ao negro

no Brasil

e hoje a-a periferia:... tem uma boa parte que é

evangélica

MB °sim°

PLS e por que isso? como é que você vê essa situação

da-da periferia... ter: esse levante evangélico?

Evangélicos na

periferia

MB agora veja bem né meu... eh:::... a nossa cultura

sempre foi as-sempre foi associada a muita coisa

entendeu?... a nossa cul-a-desde o rap... o samba

o candomblé::... o-o-o:: toda a-toda a-as nossas

coisas... são relacionado de uma certa forma a

coisas negativa... e/ muitas vez essas coisa

realmente convence as\ pessoa porque a::-o

massacre... o massacre de informação de::... eh::

as pessoas vão se afastando realmente... e isso::

ao longo dos anos cê vai perdendo número...

aconteceu isso com o candomblé... entendeu?

Perseguição ao negro

no Brasil

eu acho que::... e também essa:: eu sou um cara que eu

vou em igreja evangélica certo? deixar aqui já::...

bem:::... gos::to admiro mas nasci dentro do

candomblé...

Contato de MB com a

igreja evangélica

MR e os evangélicos com-combatem o candomblé né?

MB sou contra quem combate

MR mas eles combatem

MB acho que: Jesus não pregava isso... Jesus não

pregava opressão... que eu tô certo você tá errado

eu tô salvo você tá perdido (.) eu/ acho que nesse

posicionamento os crente erra... não/ existe

Combate dos

evangélicos ao

candomblé

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ninguém melhor do que ninguém não existe ninguém

SALvo... ainda... e nem:\ condenado ainda... e

quanto a [isso pior né?]

JN mas isso que a Maria Rita perguntou é-é que-é-veja

bem o candomblé é a religião mais livre que

existe... é uma religião que respeita muito as

outras –- não\ é isso Maria? --... enquanto/ que os

evangélicos são exatamento o [contrário quer

dizer]...

MR [não no

(Rio)] eles se juntam com os (políticos) [pra fechar

a tenda de candomblé]

JN [pra fechar as

tendas de candomblé]... fazem exatamente o

contrário do que o

MB [(xxxxxx) é o homem] o homem ele usa errado tudo

que ele põe na mão né?... Jesus não pregava isso...

oprimir: fechar: bater: mandar prender:... usar o

governo usar o prefeito... tá ban-tá errado...

PM e/ onde é que você acha que os evangélicos

acertam?... porque/ por alguma razão você deve ter

essa proximidade\

MB eles acertam quando eh::::... eh::... a deus sobre

todas as coisa é o que eles fazem certo... adorar

a deus sobre todas as coisa... a partir daí: pode

ter erros né?...

Acertos dos

evangélicos

PM e os evangélicos te aceitam bem?

MB vamos dizer/ assim:: é uma porta aberta né?... onde

aceita pessoas: assim que tão precisando...

certo?... de paz tão precisando de-de-de uma

tranquilidade um:: um lugar onde você acredita que

cê vai estar... ambientado (.) e a igreja é um lugar

onde cê pode entrar sentar e\ ficar lá...

PL Brown você falou-tamos falando [de igreja]

MB [ouvir]

Evangélicos na

periferia

PL &vamos falar de casamento um\ pouco... você:... é

casado há muito tempo já né? é um aspecto da tua

vida interessante (.) porque: eh:: hoje cê vê

artistas e tal dificilmente o cara tem um

casamento... estável e-e::-e\ muito tempo eu/

queria saber a importância disso pra você se

Casamento de MB

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manter... inteiro... né? ter uma:-um casamento

sólido... e já com:-com longo tempo...

queria saber também... de onde vem esse tipo de::...

idéia por exemplo numa das tuas músicas aqui tá::-

tá dito o seguinte “fale o que quiser... o que é

é... verme ou sangue bom tanto faz pra mulher... .h

não importa de onde vem nem pra que... se o que ela

quer mesmo é sensação de poder”... acho que é

“Estilo Cachorro” né?

MB (urru)

“Estilo Cachorro”

PL queria/ que cê falasse um pouquinho da importância

da mulher da sua mulher na sua vida (.) e da mulher

como um todo como é que é a:... que o rap encara e\

trata a mulher..

Tratamento do rap à

mulher

MB ah então... deixar uma coisa bem clara né? esse

rap... deixa ele de lado aqui...

“Estilo Cachorro”

e agora vamos falar da minha mulher ((sorrindo))

((vários risos))

MB não tem nada a ver uma coisa com a outra... certo?

((pigarro)) são assuntos diferentes... bom...

eh:::... no caso do rap... eh: além da brincadeira

–- é claro –- pra/ mexer com as mulher pra trazer

um\ pouco de mulher pro rap também porque/ elas

gostam de provocação a realidade é essa (.) elas

gosta (.) a partir do momento que você trata pelo

menos você relata ela como um:: um ser inteligente

que já em:: outras música já retrata como animal

mesmo como:... [objeto]

PL [imagino]/ aquela

história da loira burra por\ exemplo né?

MB não vou dizer nomes de músicas que eu nem pensei

nessa música mas por exemplo assim:: (.) nessa

música dos Raciona:is a gente não põe a mulher

como:: também uma coisa desprezível é uma-é uma...

ela usa a beleza dela ela usa o charme ela usa...

e ela sabe usar também (.) tá ligado? e tem mulher

também que nem precisa usar nada usa a inteligência

só e já era... né? é só música mesmo entendeu?...

quanto a famí:lia que cê perguntou da família...

uma coisa que eu não gosto é de falar sobre a minha

família justamente pra que dure mais...

((vários risos))

MB certo? quanto menos expo:r... mais dura

Tratamento do rap à

mulher

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RL e o que que te tira do sério hem... Brown?...

Futebol te tira do sério?

MB tira do sério

RL o Santos?

MB tira do sério... o Santos tira do sério demais

(x) ((risos))

MB rouba várias... várias brisa vários domingo...

vários... domingo triste

RL mas te leva a discussã::o te leva::?

MB ah a discussã:::o

O que tira MB do sério

RL conta aí o último incidente que aconteceu com você

(.) que você

MB ((sorrindo, cobre o rosto com uma das mãos)) nã:::o

aquilo lá não foi... besteira... não tinha nada a

ver não

(x) [os corinthiano]

RL [cê foi apar]tar a história ou como é que foi?...

ou você se [envolveu na história]?

MB [não na verda]de::: é todo mundo uma família só

a torcida jovem-a torcida jovem todo mundo é uma

família certo? teve uma discussão lá quando o Santos

tomou um gol do Corinthians ficou todo mundo

bravo... e começou-todo mundo se ofender mutuamente

(.) entendeu? os mais bravo já saíram se atracando

(.) aí... foram pra delegacia entendeu? (.) aqueles

cara que tava mais... nervoso mesmo... fanático é

eu fui um deles né?... tava nervoso também outro

mano tava nervoso\ também outro também todo/ mundo

nervoso e ia dar no que? coisa de jogo... [tem nada

a ver]

Discussão na torcida

do Santos

PL [ô Brown] tem uma notícia muito engraçada aqui

na:: a manchete na verdade é\ engraçada... ou

curiosa (.) é: de dois mil e quatro junho de dois

mil e quatro “Mano Brown paga fiança é solto e

chora”... não vou nem entrar nesse assunto aqui

dessa\ notícia mas eu/ queria saber a última coisa

que cê chorou se cê se lembra e por que\ que foi

MB essa manchete foi mentira... chorei nada...

((balança a cabeça em sinal de negação))

Lembrança do choro

de MB

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((vários risos))

JN cê nunca chorou Mano?

MB nã::o lógi-já chore:i

((muita sobrepsições))

PL qual foi a última vez? [cê se lembra? quando cê

chorou ou não?]

MB [quem nunca chorou?]

PL cê se lembra da última vez?

MB que eu chorei?

PL é

MB ah quando::... Sabotage morreu (3) eu lembro que eu

chorei... chorei de-assim... bem discretamente né?

teve uns irmão que::... chorou muito mais né? mas

eu:: eu/ chorei por dentro e cheguei\ a chorar

também porque: foi um dia muito triste assim pra

nós né?... um dia muito:: marcou muito... de/ lá

pra cá graças a Deus não... °né°? não precisou não

careceu né?...

MR Brown deixa eu te perguntar uma coisa sobre a sua::

a/ questão \com as crianças porque/ as vezes tá-dá

a impressão que tá todo mundo aqui achando que os

Racionais poderiam (.) resolver o problema da

criminalidade (.) as perguntas são muito:: assim…

se você pode dar exemplos se você pode convencer

(.) acho que não é por aí mesmo é a arte... você é…

excelente poeta... acho que é por isso também que

a sua música ultrapassa a questão da realidade

local... °né°? agora tem uma mú:sica que no:: “Nada

Como Um Dia Após Outro Dia” que chama “Doze de

Outubro”... que a:: o tema é uma crian:ça que tá

revoltada no dia da criança porque... ahn:: xingou

a mãe que não deu presente levou um tapa... lembra

dessa música?

MB °sim°

MR e:: aí você... na música não sei se ela-é sua?

MB °sim°

MR você começa a dizer que é por isso que se-ahn pode

nascer um crimino::so aí tá revoltado porque levou

“12 de outubro”

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um tapa... e eu fiquei pensando bom (.) se essa cena

é verdade ou não não importa (.) pode ser inventada

mas... que/ essa mãe que também deu o tapa também

pode tá desesperada porque justamente não

conseguiu... comprar o presente... né?... então eu

penso se... o que levaria essa criança pro crime

essa revolta que levou um tapa... essa criança...

inventada\ aí... ou se é porque ela... se vê numa

sociedade em que tem tanta coisa sendo exibida pra

ela... que ela devia ter-eh:: que ela acha que ela

não vale nada porque não tem...

MB urru

MR né? isso me preocupa muito pela questão de como a

gente… o valor das pessoas tá ligado a isso

MB °certo°

MR as/ vezes o tapa da mãe não é tão grave… pra revoltar

quanto esse sentimento de… não\ valer nada

MB olha essa música:: ela é minha (.) em parceria com

o Silveira né? é o homem que toca o violão... a

música é mais [dele] do que minha né?

MR [é]... urru

MB deu certo... e:: eu só fui

narrando uma coisa que tinha acontecido no caminho

nós tava indo pra [gravar mesmo]

MR [tinha acontecido]

MB no caminho era dia doze de outubro e aconteceu

isso... eu falei eu já cheguei ali pensando e já

cheguei já tava o violão tocando e já saí falando...

foi meio assim: ((estalo com o dedos))... eh::::

aconteceu rápido... e::: quanto... ao que eu-a

realidade do que tava acontecendo naquele momento o

que também o-o::... o que ali de uma certa forma-

os mano que tava jogando bola com ele não tava na

revolta que ele tava... ele tava

MR unh? ((sorrindo))

MB os outros mano já falou ((muda a voz)) “ó ele tomou

um tapa na cara xingou a mãe dele” – os moleque é

que falou pra mim -- ... aí eu chamei ele falei “ó

mano cê brigou com a sua mãe?” “é me bateu pá não

sei que” (.) contou a história meio assim também

não que-quis também se expor muito... falei “porra

mano toma um tapa na cara no dia das criança né?

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(.) que presentão né meu?”... embaçado né? (pelo

menos) não ganha nada né meu (mas também) sei lá

né?... um tapa na cara marca também... seja da mãe

né?... minha mãe mesmo nunca bateu na minha

cara... °já bateu° quebrava mesmo (só não) batia na

cara entendeu?... então eu acho que certas coisa

humilha assim marca... e pode ser também um caso:

esse caso também não é que vamos exploRAR esse caso

que foi um caso que (ma)-vai ser-não é todo mundo

que é assim mas isso é pessoas que vive assim

PM você [fala]

MB [né?]

PM &muito da sua mãe... fala... do seu pai com mágoa...

por quê?

MB não na verdade eu não::-eu não: não tive um pai

né?... teve um pai mas eu não::-não conheci não

conheço... também não quero conhecer... certo? não

faço questão... eh:::... poucas coisas eu não tenho

muita coisa pra falar sobre pai... °não tenho°

PM [e você como pai?]

MB [(xxxxxx pai eu acho] da hora) ainda mais quando o

pai parece com a gente né? torce pro mesmo ti:me

assim:: a gente conversa é da ho::ra (.) eu não tive

isso... mas não tem problema entendeu?... não

tenho:: não tive problema... relacionado a falta do

meu pai

Pai de MB

PM e você hoje:... tenta suprir isso com seu filhos...

cê é um pai presente?

MB °não°

PM °não°?

MB sou ausente... ((pigarro)) infelizmente eu sou

ausente

PM por causa do trabalho por causa da mú:sica?... ou

é mesmo por que não... [não tá sempre por perto]

MB [por causa do ins]tinto... talvez... de ficar

longe... ((pigarro)) e o trabalho né?

PM como “do instinto”?

MB (não) sei talvez (eu) (não):::: não saiba lidar com

essas tralha eu não so::u-eu não SEI ser presente...

MB como pai

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eu não SEI... ser... presente... eu acho que eu sou

um cara que eu::... aonde eu tô... muda-muda-

o::...((rotaciona o pulso, movimentando polegar e

indicador)) tira a paz do lugar entendeu?... e a

minha casa tem que ter um ritmo... eu sou outro

ritmo... eu não quero que eles vivem na minha

função... em função do que:: eu tô vivendo agora...

que eles tem a vida deles... meu filho tem a vida

dele eu não quero que ele seja o Brownzinho (.) ele

não é

PL Brown/ e que que é amor pra você? pegando um ganho

nessa história de\ filho família e etc... que que

é amor? como é que cê define isso? que que isso

representa na tua vida?

MB ah/ amor é::::... é lealdade... compromisso...

seriedade... responsabilidade com seu irmão com a

sua mulher\ com seu filho °pá°...

PM quer dizer não é um negócio muito divertido...

((risos))

MB é divertido quando cê gosta... é divertido quando

cê gosta... quando:: você não gosta passa a ser::...

trabalhoso né?... quando você gosta... você faz por

amor entã:o acho que amor é isso... eu amo meu filho

eu a-amo minha mulher amo minha mãe... amo meus

amigo também entendeu?... não tem como você “ah eu

gosto do meu amigo e amo minha esposa” -- cê gosta

do seu amigo uma dia cê separa da sua mulher e seu

amigo fica... ou vice-versa entendeu? ((rindo))

entendeu? então cê tem que-ah mas eu-o que que é

amor né?... como é que cê vai falar (pro seu) “ah

você eu gosto... você eu amo”... ((rindo)) acho que

você gosta né? cê gosta ou cê gosta né? cê ama...

gostar e amar pra mim é a mesma coisa... agora::

(x) [ô Brown]

Definição de MB para

amor

PM [a propó]sito agora da:: da cultura da periferia o

Ferrez que é um autor de livros... sobre o

cotidiano... violento do Capão Redondo (.) em São

Paulo tem uma pergunta °vamos ver°... ((corte para

imagem pré-gravada))

FE ê Brown... queria te fazer a seguinte pergunta (.)

de uns tempos pra cá (.) a periferia vem fazendo

sua própria arte... ta ligado? a gente tá fazendo

os próprios CDs: a próprias roupas... as próprias

músicas (.) e/ eu queria saber... se esse é o

caminho certo realmente se a gente tá fazendo a

Produção artística da

periferia

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coisa certa... se esse é o caminho viável pra

periferia... ((corte para local da entrevista))

MB sim... Ferrez é um cara importante hoje... ele tem

uma loja no... no Capão... que é um fenômeno de

venda na minha opinião... de::... coisas

relacionado a marca dele né? (xx) sul:: boné camisa

pá\ moleton foi/ uma coisa que deu certo... e:::...

é um exemplo... porque:: outras grifes nasceram a

partir dessa também... apesar que a primeira grife

foi a nossa certo? nós lançamos a “Vida Loka”...

que a gente não vende... não temos loja...

comercializa nada da “Vida Loka” mas foi a primeira

grife... a partir dessa veio outras... né?... e

outras com fins lucrativo... o [que é justo]

JN [esse boné] tem alguma coisa a ver com a grife?

MB ((pigarro))

JN o:: esse negócio de usar boné?

MB não esse boné é duma:::... duma família da Zona

Leste... “DRR”... é um::: uma posse né?... que

inclui vários grupos de rap aqui de movimento

cultural: né? do bairro... e “DRR” um salve pros

mano é Consciência Huma:na... o Negro::... eh:: e

outros irmão né? (xxx Cri::me)... os mano de São

Matheus

PLS [(xx)]

[(xx)]

Boné de MB

PLS [a criminalidade]

MB [foi pra] homenagear os cara mesmo...

PLS a ques-a questão da criminalidade dos bandidos\

realmente... que tão ali de frente que... tão

armados\ que tá-ºtão lá... a gente vê que-que eu

te-eu tenho vou fazer cinquenta anos... e::: trinta

de favela... né? e vi que mudou bastante... né?...

e sobretudo pela questão das armas... né?

antigamente pessoal resolvia com trinta e oito

trinta\ e dois trinta/ e oito era o barra

pesada... .h como é que você vê assim: nesse tempo

que você tem você tem de... você começou analisar

a vida... .h como é que a-a malandragem mudou muito

a-a::: o traficante mudou muito? ladrão mudou

muito?... como é que tá hoje?

MB ((sorrindo)) ô Mano... vou te falar (.) falar de

traficante é foda eu eh::... mesmo porque é como se

Mudança dos

criminosos na periferia

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a gente tivesse falando até dos nossos... entendeu?

os nossos amigo da nossa família dos nossos parceiro

os cara tá lado a lado... muitas vezes é o

traficante que nós tá falando

PLS mas tô falando de sofrimento... por exemplo aqui

assim:... hoje em dia... né? são mais novos são mais

velhos?... essa é a questão não é falar da-do

traficante mas

MB [os mais] Sábios

PLS [&da dificuldade]

MB [os mais sábios]

PLS [da (xxxx)]

MB [conseguiram] ficar mais velho... e::: os que

conseguiram se manter... pegaram uma fase

diferente... eles com certeza eles acha mais fácil

hoje os mais velho... eles acha mais fácil.. porque\

hoje:... eh::: cê tá falando sobre favela né? sobre

vida

PLS é::

MB dentro da favela... que que é uma favela? como é

que é uma organização duma favela?... a gente sabe

que a favela precisa da organização co-como é a

organização\ da favela hoje?... quem é que:::...

Sabe... dos problema da favela?... o governo

sabe?... não sabe... o assistente social... sabe

o... setenta por cento... ciquenta... o cara da

ONG?... sabe oitenta

RL e quem é que sabe?

MB quem tá lá dentro... e\ mora lá dentro que conhece

todo mundo... que... conhece quem nasceu... que...

sabe dos proble:ma... sabe quem tá pre:so sabe quem

tá precisando duma aju:da... o filho de quem tá

precisando... [eh::]

RL [e] o traficante entra nessa-nessa

fatia aí?

MB eu não em-não/ falo só o traficante mas vamos dizer

assim a favela tem sua-a sua organização... certo?

a gente fala o “traficante”... vamos falar

“comerciante”...

PM mas não tem não tem

Organização do poder

na favela

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MB [(pra) trocar esse termo]

PM [só pra entender]

MB [o cara quis usar o termo “traficante” (vamos usar

“comerciante”)

(x) (SI)

PM [não tudo bem]... mas não tem não tem favela em que

você tem... confronto... entre... que é a

organização da favela... eh:: os morado:res

associação dos morado:res e os “comerciantes” --

como você chama -- ?

MB por exemplo... quem dá segurança pros comerciantes

da favela?... quem:: quem protege a favela?... a

polícia protege?... são perguntas né? perguntas já

outras né? tô perguntando (.) quem protege?

RL não sei... [SI]

PM você acha então você vê a coisa como se fosse uma

guerra

MB não vejo como guerra... eu vejo como uma situação...

[tá]

MR mas o [tra]ficante protege de quem? protege dele

mesmo?

MB não

MR [(porque você fala muito nas suas letras)]

MB [ele protege do sistema ele prote-ele já é o]-o-o-

o-o...

o-o –- entre aspas – cê chama de “traficante” (x) chama

de “comerciante”... o cara que comercializa

cocaí:na vamos\ dizer assim já abertamente ou /a

maco:nha... ou qualquer tipo de droga é um

comerciante... como qualquer outro

MR sim [mas eles tem um sistema de impo::r]

RL [que leva que leva as pessoas] pra cadeia

e não pro cemitério né?

Uso do termo

traficante/comerciante

MB agora o dono da “Ciquenta e Um” não leva cadeia

pelos litro que ele vende... a Ambev ninguém vai

Males do comércio de

álcool

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pra cadeia... toma quatro garrafa de cerveja cê vai

ver se não bate o carro cê vira o Super-Homem na

marginal meu?... ele não vai tirar uma cadeia... o

filho dele não vai ficar manchado como o filho dos

presidiário... que que faz mais mal uma dose de

Cinquenta e Um ou um cigarro de maconha?

MR [não mas a gente tem uma discussão aí que é sobre

a legalização né (xx)?]

RL [não uso nenhuma das duas coisas?]

MB [não mas eu não tô te perguntando se cê usa...]

JN [aí

é entra a questão da (organização)]

MB [tô falando “você” porque certo?] o que que faz mais

mal? tem um médico aqui... [se for falar de droga

tem que ter um médico]

PL [não nem precisa usar pra saber...

isso dá pra responder]... é o Cinquenta e Um...

[disparado]

MB [certo?] então não tá preso... esses cara

não vão preso... porque eles não são pre::to... não

são... certo? não são morador de fave::la não são

morador de periferia eles não vão preso... agora

((sorrindo)) um comerciante de maconha (.) ele vai

preso um fumar um usuário ele vai preso... agora

não vai mais porque a justiça é flagrante...

JN cê é a favor da legalização?

MB ((suspiro)) se é pra negar todas as droga (.) nega

todas... entendeu? [pra acabar a hipocrisia]

JN [°você° é a favor de legalizar]

MB &não não sou a favor de nada... vamos ser-dizer

assim eu sou a favor que todo mundo vivesse bem...

não precisasse de droga nenhuma... pra entender nada

que você conseguisse entender o mundo que cê vive

sem usar nada... eu sou a favor disso... mas quando

você passa a não entender o mundo que você vive você

reCORre a alguma coisa... quem sou eu pra dizer que

ele é isso ele é aquilo ele é b ele é c ele é

traficante ele é usuário... eu não sou ninguém

meu... sã:o situações... você vive numa situação

hoje que cê tá bem (.) cê é jornalista cê opina cê

fa-forma opiniã:o... amanhã\ cê não sabe mano... a

Legalização da

maconha

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vida é assim... ((sorrindo)) a gente aprendeu

isso... a vida é assim... você tá (.) legal...

amanhã cê não sabe... cê pode estar no beco dos

tristes lá... tá ligado? cê pode estar lá...

então... os-os triste tão lá no beco vamos ver que que

eles tão pensando? em vez de recriminar falar que

eles são... o lixo ou falar que... né? vamo lá ouvir

o que que eles tão-por que que eles não se adapta

a nada? eles não gosta de nada... por que que ele

prefere esse caminho... e não o outro que cês

inSISte que tem que ir?

PL [Brown você]

Recriminação (ao

traficante/comerciante)

PM [Mano eu... queri:a]... só pedir (.) licença a gente

fazer um rápido intervalo nós vamos continuar

tratando desses e de outros assuntos... no ““Roda

viva”” que é ((lendo)) acompanhado na platéia por

integrantes... de BANdas produzidas por Mano

Brown... Dom Pixote do grupo U-Time Negovando que\

é também do U-Time Do Bronxs/ e Negredo ambos do

grupo Rozana Bronxs

((corte de imagem))

Intervalo comercial do

programa

PM Mano: ((lendo)) a pergunta é de: M.M. ele pergunta

o seguinte “você já cogitou... que preto pode pensar

como branco e branco pode pensar como preto?... e

que/ as idéias podem acontecer independentemente da

cor de\ quem pensa?

Pensamento de negros

e brancos

MB na verdade °é isso mesmo°... agora as-são culturas

diferentes né?... com a exceção dos maninho que são

branco e mora na quebrada mora ali dentro da favela

ali: no cotidiano que ouve samba curte rap já anda

igual usa camisa listradinha bombetinha já é preto

também... fora do nosso mundo... você pode fa-aí

você fala assim “o resto é branco”... [da ponte pra

lá]

PM

[seja preto ou branco?]

MB &vamos dizer assim não tem branco eu tenho um amigo

que é loiro do olho verde eu falo “mas cê é negão”

por que? porque ele é: ele fala ele come ele anda...

igual... ele se veste ele curte ele é... ele é:: o

mundo que ele vive...

PM é uma questão de classe

MB [((pigarro))]

Diferenças culturais

entre pretos e brancos

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PM &social então? [branco e preto]

MB [convive a cultura]... não basta ser

pobre também cê pode estar aci-ter lá::-cê pode

estar lá convivendo e não gostar... cê pode estar

vivendo lá e não gostar tem cara que mora lá dentro

e vira polícia justamente/ porque ele não gosta do

que ele tá vendo... ele não gosta dos cara que ele

vê na rua ele não gosta... entendeu? cê pode viver

lá dentro e não gostar... na verdade periferia é

isso... é mil pessoas e mil universos diferente mil

mente diferente...

PL Brown [falando em]

MB [mil intelingência]

Convivência entre

pretos e brancos na

periferia

PL & falando em probreza em:: convívio social que cê

tá dizendo agora... tem uma entrevista tua de dois

mil e um aqui que tem uma-uma... uma:-uma:: fala

sua o seguinte “dar condição pras pessoas ganharem

o seu dinheiro o povo não quer ganhar nada de

graça... ninguém quer ser filho de assistência

[social]

MB [isso]

PL &favelado tem orgulho... se o PT ganhar a eleição...

e começar a doar salário pras famílias que estão

desempregadas com o tempo não vai mais dar

resultado... o cara que vive do seguro do governo

é a parte mais baixa da sociedade”... que que cê tá

achando dessa Bolsa Família e dessa política:...

do:: governo atual quer dizer o PT ganhou a eleição

e tá fazendo exatamente isso que cê falou... como

é que é a tua análise de hoje dessa história de

Bolsa de-Bolsa Família\ por exemplo?

MB bom... tá ruim mas tá bom né?... o-o-o-ou o invés...

tá bom mas tá ruim (.) vamos dizer assim não é a

solução ideal... eu acho que o:-o:: o trabalhador

o pai de família ele ter orgulho próprio ele quer

manter a família dele independente da ajuda do

governo... não é uma coisa que ele vai se orgulhar

e-e pelo contrário ele vai procurar até... deixar

de-ser discretamente se ele for um usuário desse

benefício ele vai ser discreto ao máximo... [não é

um]

PL

[isso balança]o orgulho do

Bolsa família

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MB é vamos dizer assim não é uma coisa que humilha

também a pessoa... e o governo tem certas

obrigações... com: o seu povo... e do-dar o mínimo

de estrutura de escola... de::: ensino básico...

ou:: de um hospital decente de uma creche decente

uma escola... decente é o mínimo... e/ uma renda

mínima pra você poder por seus filho na escola ter

um material uma roupa de escola... e eles poder tem

alimentação... que uma criança precisa pra poder

aprender... uma coisa é você comer outra/ coisa é

você coMER... pra-e poder se desenvolver com o que

cê come... tem certoz tipo de comida que cê nem:

mano-cê... come e daqui a pouco cê já tá com fome

nem aprende nada que a concentração é o básico da

escola é a concentração... se você tá com fome só

aquela comida que você comeu não fez... não fez a

diferença... cê não se concentra... então você não

aprende

Obrigações do

governo com o povo

PL e essas ONGs todas que tão entrando nas periferias

do Brasil inteiro né? aparentemente o... o lado::

rico da sociedade tá:: entrando através das

organizações não governamentais etc... primeiro/

queria saber se-se-se- se você tá vendo o êxito nas

ações dela segundo eu queria saber se você acha que

a motivação é uma-uma é deliberada é uma-uma::-uma

tomada de consciência ou é mais culpa\ e medo

MB .h não... eu tenho por exemplo assim... por exemplo

tem-lá-lá-no-lá no Capão tem a “Casa do Zezinho”...

certo?... que eu já visitei conheci conheço a... a

tia D. ... uma pessoa que a gente:: vê o trabalho

a gente vê que ali não tem por que estar fingin::do

não tem por que estar querendo o-o mundo dela é

aquele ali mesmo ela quer aquilo ali mesmo os troféu

dela tá ali mesmo... e a gente vê (.) eu não vou lá

todo dia eu SEI que\ é assim... então eu acredito

que::... eh::: e-existe pessoas realmente que tão

afim de... mudar... de participar e fazer a

mudança... tá ligado? existe... no Capão... eh:: se

eu falar que o-que o-que o Capão é um lugar

desassistido eu vou estar mentindo... é o lugar

talvez hoje dentro das periferia de São Paulo um

dos lugar MAIS assistido... por ONG... tá ligado?

por movimen:to tem vez que eu tá andando com uma

turma uns cara com câmera no Capão falando francês

falando inglês os cara “mas o que que tá acontecendo

aqui?”

RL a criminalidade caiu lá completamente

MB sim::: agora pergunta o porquê

ONGs na periferia

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RL porque a comunidade também ajudou né?

MB a comunidade é que faz acabar a violência... polícia

não faz

PLS [agora você quando]

(x) [você]

[xxx]

PLS [você]... você assim o:: (oficial) aquele negócio

da Marta... daquela escola... eu visitei a escola

eu gostei muito na época... né? como é que tá o CEU

ho::je que que você acha daquele projeto?

MB assim o CEU é um: castelo né? assim é o sonho do::

do rapper... acho que quando eu comecei a fazer

letra de rap eu imaginava um lugar que nem o CEU...

assim “pô:: não tem isso não tem aquilo” você pegar

“Fim de Semana no Parque” fala daquilo ali...

CEU

e::: pô quando a Marta perdeu a eleição... eu:: eu

cheguei a desacreditar até de mim mesmo °falei não°

é possível... mulher fez esse monte de escola aí

pra nós meu... pra nós e pros pivete nossos

moleque... e ela perdeu a eleiçã-aí eu descobri o

que... que a nossa classe é desunida... e a

classe... rica... é unida... a classe: média... a

finada classe média né? (xx) que ainda se julga

ser... e a classe b e a... eles... fizeram a Marta

perder a eleição... e a nossa classe... que tinha

que fi-ter elegido ela a gente tava dividido...

PM mas [o CEU continua né?]

MB [no momento da eleição]... eu encontrei meus

amigo dividido na boca da urna...

MR [mas o que que dividiu]

PM [o CEU continua]

MR que que dividiu? que tipo de

MB valores... diferentes... valores que não deveriam

nem ter vindo à tona tipo assim “ah a mulher separou

do mari::do e: tá com outro cara um argenti::no”

umas pegada que tu [tá ligado?]

MR

[((risos))]

Derrota de Marta

Suplicy na eleição

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MB que foi juntando coisa com ou::tra e foi de-tipo

gerando não-não-não vou dizer uma antipatia mas

vamos dizer assim... um::: desafeto... assim tá

ligado? falar “não prefiro aquele outro lá com cara

de... que não tá com nada mesmo e vamos votar nele

mesmo”... ma todo mundo sabia que a Marta ia fazer

a diferença mas votou contra... °tá ligado°? é/ um

tipo de revolta que eu não entendo... eu falei “ô”

eu cheguei a discutir com os cara na boca da (xx)

eu falei “como assim cê vai votar... ((sorrindo))

no Serra mano? como assim... cê vai votar no

Serra?”...

RL mas aí fechou o CEU lá?

MB ahn?

RL fechou?

MB nã::o.. meu filho é usuário do CEU... meu filho vai

no CEU... meus sobrinhos vão no CEU...

PLS (como é que lá tá hoje?)

MB meus priminho vão no CEU

PLS mas o CEU tava co-hoje ele funciona do jeito que-

quando começou? ou tá

MB na verdade... os-o jeito que teria que funcionar

realmente eu não sei como que teria que ser... cem

por cento mas o que eu vi lá... acho que só de você

estar la dentro convivendo com aquelas coisa tendo

aquele: aquele universo pra você viver ali dentro

explorar aquilo ali... já é uma glória... agora se

vai dar resultado daqui vinte ano nós vamos ver...

se vai sair um [Bethoven]

PM [quan]

MB lá do Capão

CEU

PM quando você diz que:: que leu a biografia do

Malcolm-X... aquele\ líder negro americano você

quer dizer na-numa das entre-poucas entrevistas\

que eu li sua eh:: você mencionava que... queria

sair de lá fazendo a revolução... o discurso que

você faz hoje:: é: não é exatamente o da revolução\

né?... o que que te mo-[o que que-o que é que vamos

dizer assim que mudou?]

MB [vamos dizer

assim que um não-eu-eh] na verdade hoje eu me lembro

até de dizer (xxxx)... acho que discurso é corda

Mudança no discurso

de MB

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pra se enforcar °entendeu°?... eh::: eu so:-eu

procuro ser livre... eu opino como cidadão... não

como político ou... o::u... eh::: líder de nada eu

sou um cidadão eu opino... eu falo o que eu o que

eu acho... e::: então já não me julgo-eu tô dando

um discurso porque na verdade eu tô falan-alguma

coisa que eu sinto pode soar como discurso pra

outras pessoa\ pra mim não é discurso... entendeu?

então eu nunca disse que eu tenho um discurso... ou

que eu vou mudar meu discurso... eu não tenho um

discurso

RF cê conseguiu [Brown]

MB [((balbucio))]

RF &fazer uma revolução... interna... no seu jeito de

se:r de pensar... cê conseguiu::... lutar contra os

seu-suas próprias... contradiçõ::es seus próprios

me::dos... cê consegue isso hoje?

MB na verdade as contradições acho que só acaba quando

morre né?... eu era um cara que eu:: hoje eu tô de

Nike no pé mas eu já fiz:: eu já xinguei a Nike

muito... por aí... entendeu? mas eu também::

descobri também que a Adidas não me dá nada se eu

fa-ficar falando mal da Nike [entendeu?]

[((diversos risos))]

MB &eu derrubo um mas levanto outra... entendeu? a ni-

a Adidas também é dos alemão lá eles não são NAda

meu também... entã:o entendeu? tô de Nike... o-KL-

Jay na usa Nike ((sorrindo e apontando para KL-

Jay))... ah mas vai ver o (Blue) Nike que o Blue tá

no pé

((diversos risos))

MB entendeu? é contradição pô o Racionais é isso é

quatro cara quatro ca-quatro mente... quatro idéias

entendeu?... eu sou o mais confuso dos quatro sou

eu mesmo

Contradições de MB

RF como que cê vê a:: a pirataria hoje Brown? eu queria

saber essa-essa-eh::... tem uma história de que na

época do so-do “Sobrevivendo no Inferno”... houve

um acordo... eh: entre Racionais e:: bi-ou camelôs

ou que fazia discos pra::... eh-eh-eh::: vocês não

perderem com essa venda dos pira:tas... e parece

que isso-isso... um boato um rumor e na é-agora no

e na época do DVD também ouvi isso queria saber se

Pirataria

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isso é verdade e como é que cê vê a pirataria como

é que cê protege da pirataria porque afinal você é

um artista

MB eh não tem como se proteger da pirataria eu sou um

cara que eu o-eu tenho vários amigo que trabalha no

ramo né?... °no ramo da°

PM [comerciais]

MB [da pirataria] do [comércio da pirataria]

JN [do comércio]

MB os ir-os irmão tão na rua vendendo um dia eles vem

“ô Brown assina aí” “pô pirata eu não assino irmão”

“pô mas ele nas é pô sobrevivência eu entendo cara”

na verdade quem fica rico é o chinês... mas é o

ganha pão do irmão também... então como eu não sou

polícia e também não vou mandar polícia prendendo

pirateiro que não é a minha... eu já uso aquele::

slogan “não vocês é a minha rádio né? cês tocam o

dia inteiro a minha música no centro da cidade lá...

e divulga aí me ajuda”... eu não vendo- o que eu

não ganho... em venda eu ganho com outras coisa que

eles me dão... a pirataria me dá... notoriedade me

dá::: põe minha música na rua

RF esse papo de acordo é::: [chapéu]

MB [não] não existe acordo...

tem um:: respeito... certo? porque é uma classe

também... certo? são trabalhadores também... se/

tivesse um meio melhor pra trabalhar eles com

certeza eles estariam lá

PM Brown

MB em vez de ficar correndo da GCM no centro... certo?

PM vamos fazer mais um intervalo lembrando que a

[entrevista de hoje]

MB

[((pigarro))]

PM &é acompanhada na nossa platéia por S. R. S. S.

bancário (.) C. Z. ... estudante de jornalismo P.

C. estudante de economia da PUC F. E. bancário (.)

e C. B. ator

((corte de imagem))

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PM eh:: pergunta/ de E. S. C. de Ribeirão\ Pires o que

você acha das cotas para negros?

MB acho importante... acho que:: o mo-o movimento negro

tá na vanguarda... porque::: o ensino deveria ser

realmente gratuito para todos... os negro tão na

linha de frente... essa-essa parte aí eu acho que

particularmente nós tamos mais adiantados... porque

na verdade o ensino::... eh:: faculdade::-

faculdade... esse ensino superior (.) ele deveria

ser... gratuito... na minha visão... porque já

países que fa-Cuba deixou de ser:... Nova York...

pra ser pelo menos Cuba... Brasil não (.) quer ser

Nova York...

Cotas raciais

então a gente esquece de fazer as coisa... eh mais

simples... bo-dar condições pras-pras-pras pessoas

serem... eh... o máximo que elas puderem ser... não

tentar ser... francês... tipo assim se você dá

condição pra um brasileiro ser... um-um:... um

homem... no mundo – não digo só dentro do Brasil

não (xxxxxxx) brasileiro – ter uma faculdade e ele

ter um ensino superior... um ensino decente vai ser

superior (xx) um ensino... uma cultura... que ele

vai poder concorrer... eh::: no mundo né? no

mercado\ no mundo né? pelo... pelo... pelo emprego

dele... você vai ter um país forte... cê vai ter um

país bom se todos os-se todas as pessoas tiver um

ensino... a partir do momento em que você... eh...

renega o ensino pra grande maioria... e deixa uma-

uma minoria... no poder... perpétuo... trocando pai

pra filho na mesma cadeira.. só trocando as pessoa

aquela família continua a mesma... os donos...

entendeu? então eu acho-isso faz o Brasil...

perder... quando todos tiverem condição de ter um

ensino... o Brasil vai ser-vai crescer o Brasil

TOdo... entendeu?

Importância do ensino

superior

então a cota pra negro... eu acho que deveria mudar

esse-esse termo... porque na verdade (.) o movimento

negro: lançou uma-um desafio pro governo...

cabuloso... porque::... o Brasil deve para os

negros... muito... deve muito... mas/ não deve só

a faculdade deve muito\ mais... a faculdade é só...

um detalhe o ensino para que: o negros... possam

competir de igual... no mercado... mundial -– na

digo nem brasileiro –- mundial... por que não

disputar um emprego com uma cara lá na... em Paris

por que não?... os ricos eles mandam os filhos

estudar\ fora né?... entendeu? não manda? e por que

também a gente também não poderia disputar um

emprego com o-fora ou dentro... ou: qualquer

lugar... desde que você tenha condições... você/

tenha condições de\ disputar quando você não tem

Dívida do Brasil com

o negro

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condições... aí você se torna um

problema... °entendeu°?

então a cota pra negro é o mínimo... [demorou] Cotas raciais

JN [mas não é bom

exemplo] pra isso não –- Cuba --... tem um ditador

lá há quarenta e sete anos... e não é propriamente

um exemplo de prosperidade nem de competi[çã::o ]

MB [sim]... depois que todo mundo

ajudou a afundar Cuba... é fácil... mas por

exemplo... eu usei num exemplo assim:: Cuba

valorizou mais as pessoa e menos as máquina... então

você tem lá:... eh::: médicos... você tem: os

atle::tas você tem as pessoa e o mundo tratou de

boicotar Cuba pra que isso acabasse né?... certo?

de uma certa forma:... isso infelizmente vai acabar

e Cuba vai ser um exemplo de fracasso mas não é um

fracasso... °tá ligado°? não/ é um fracasso deu

errado porque:... foi embargado... [boicotado...

boicote]

O exemplo de Cuba

(Cuba)

PM

[mas você é socialista?]

MB &ahn?

PM você é socialista? você... acha que todo mundo tinha

que [ser igual ganhar]

MB

[eu acho que é]

PM &igual trabalhar igual

MB deveria ser igual – lógico --... mas eu não vou

falar “eu sou isso eu sou socialista” eu sou eu...

por exemplo agora eu penso assim... as pessoas não

deveriam-não deveria faltar comida pra alguns e

sobrar pra outros... tipo eu fui pro exterior... eu

já viajei pra fora... eu vi os cara jogando prato

de comida fora assim ((gesticula como se lançasse

um objeto ao chão))... duas colherada e joga fora...

aí eu falei pro cara “pô mas no Brasil cê alimenta

duas família” ele falou “irmão aqui é Nova York”...

tá [ligado?]

MR [mas

aqui] também se desperdiça muito

MB tem::

Pensamento socialista

de MB

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MR [aqui se desperdiça]

MB [mas tem gente que pensa] que tá em Nova York

MR °é°

MB é o que eu te-é o que eu falo eu acho que o:-o

grande problema do Brasil... o grande problema do

Brasil é que a gente nunca se aceitou nem como

Brasil (eu diria)

PLS [agora qual que é o grande problema]

Pensamento do

brasileiro

MR [então eu queria te perguntar]... quando cê falou

que não tem um discurso... fiquei meio confusa

porque eu acho que-a-a-tenho impressão como::

ouvinte que os Racionais tem um discurso... não

“discurso” de botar regra pro mundo inteiro mas...

quando você fala “pensar... a gente como a gente”...

ou o negro se identificar com a sua cultura...

queria que você falasse um pouco de uma coisa que

sempre achei muito com-muito coerente... nas

letras... .h que é a cobrança de atitude... do negro

que que é isso?... °cobrança [de atitude°]

MB

[eu não cobro] atitude... mesmo porque eu não tenho

condições de cobrar nada... certo? eu sou um cara

[que sou cobrado]

MR

[mas que que cês] chamam de atitude?

MB eu sou cobrado... “atitude”

MR [tem aquela (xx) Racional por exemplo em que o negro

é julgado]

MB [“atitude” vem de que? de “agir” né?]... “atitude”

vem de “ato” né?... “ato” “agir”... “agir”...

atitude nem sempre tem que ser::... da forma que eu

faço... não é isso que é atitude “atitude” é agir...

simplesmente “agir”... atitude... você vê um saco

de lixo certo? tá na frente da sua casa... você/

sabe que o carro vai passar em cima e vai acabar

com a sua rua (.) você vai lá só-e simplesmente

troca o saco de lixo de lugar... isso é atitude...

tá ligado?

MR [é uma responsabilidade pelo seu lugar]

MB [você vê uma criancinha]... você...

entendeu? cuidar de você meu... cuidar da sua so-

Cobrança de atitude

feita por MB

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cuidar da sua família cuidar dos que tão perto de

você [é atitude]

RL

[Brown... qual é seu] grau de instrução?

MB oitava série

RL você não teve oportunidade mais de continuar

estudando? ou

MB ((pigarro)) tive mas não gostei... tive assim... eu

tava empregado resolvi pagar o:: primeiro:: o

primeiro ano colegial... colegial... –- colegial

né? -- ... e não gostei da escola... não me adaptei

não gostei das-do convívio... [saí fora]

RL [você acha então] que até onde você estudou foi

suficiente pra você [continuar (xxx)?]

MB [não não foi] suficiente...

insuficiente

Grau de instrução de

MB

RL que tipo de mensagem você passa quando você visita

seus... seus manos nos presídios e nas unidades da

FEBEM... que tipo de mensagem você?

Mensagem de MB nos

presídios

MB olha por incrível que pareça... é-eh::... você

encontra muita sabedoria dentro desses lugar aí...

dentro de presídio dentro de cadeia... você encontra

sabedoria cê encontra: inteligência... acima do

normal até porque... é-é na-naqueles momentos o

homem realmente se-ele realmente se descobre... tá

ligado? ele descobre acho que ele descobre o:...

aquele lado que na rua era adormecido ou distraído

né?... o lado distraído que ele tem na rua... lá

dentro você ouve coisas impressionante... entendeu?

PLS [pra melhor]

MB [xxxx] como é que cê tá preso com essa

inteligência °meu°?... entendeu?...

Sabedoria encontrada

nos presídios

então que-idéia que eu levo? eu levo companhia quando

eu vou... também não sou frequentador que nem parece

eu já fui... em várias cadeias eu tenho amigos

presos... certo?

Mensagem de MB nos

presídios

eu tenho o D. ... que é um amigo meu que tá preso...

eu tenho o A. ... que é rapper os dois são rapper

são artistas... e tão preso... é/ gente que ia estar

fazendo muito melhor pra sociedade na rua... lá

dentro... eles tão inutilizado... o sistema

inutilizou eles... o D. o A. ... e outros irmãos

que são músico... ou não são artista de alguma forma

Amigos presos de MB

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PLS pra melhorar o Brasil... pra gente conseguir

melhorar assa-assa-essa desigualda:de... esse a-a

gente deveria começar por onde? qual seria o

primeiro ponto... que quando você pensa “não isso

aqui tá mui... deveria mudar a gente deveria começar

por aqui” qual seria a primeira atitude?

MB eu não tô nesse grau de sabedoria... pra saber...

como é que a gente vai resolver entendeu? eu tô no-

eu tô no olho do furacão tá ligado? do problema...

na verdade eu sou-eu faço parte do problema né?...

eu tô igual você porque eu tô procu-procurando uma

solução procurando o que-qual que é a melhor

solução... pra mim... e pros que tão perto de mim...

aí vo-vai ampliando né?... aí os que tão perto os

que tão-vai ficando mais longe que você vai tentando

ampliar... as coisa que você sonha pra você... e

fazer as pessoa sonhar junto com você... tá ligado?

mas aí... você tem aquele...

Mudança inicial contra

a desigualdade

eh:: por exemplo eu não posso... aceitar... um negócio

assim... que eu so::u... um cara que::... sou um

exemplo... porque:: fazendo o que eu fiz...

dificilmente a pessoa conseguiria... as coisa que

ela... que ela precisaria... °tá ligado°?

RF mas já era né Brown? você é um exemplo... né?

querendo ou não apesar do fardo não-te incomodar de

alguma maneira... sei lá cê pega ((balbucio)) o seu

disco mais recente tem um encarte lá a foto da-

da... molecadinha... tal e tá você lá:... eh::

MB então

RF em que sem-não tem mui-não assim o cara se espelha

em você de alguma maneira o cara ou quer se vestir

como você: ou quer ter atitude que você tem: [ou o

som]

MB [eu gostaria de outras coisa]

RL [por isso que eu falei da]

MB [ eu gostaria de outras

coisa]

RL &responsabilidade [que você tem]

MB [esse tipo]

RL é uma grande [responsabilidade]

Responsabilidade de

MB como exemplo

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MB [esse tipo] de espelho... é::

eh::... é profundo porque é coração certo?... o cara

quando ele gosta de você e quer... usar uma roupa

que parece a sua... é profundo... mas é superficial

quando o cara só quer parecer com você... isso não

é bom pra ele... eu acho que... eu sou eu... você

é você o mano é o mano... ele vai descobrir o talento

dele aonde tá... ele não é o Mano Brown... mas ele

também não precisa ser o Mano Brown (.) ele pode

ser ele... e descobrir... que é e-o verdadeiro...

lado dele... como eu fui buscar o meu... [e tô

buscando]

RF [quando] quando você leu... o Malcolm-X... você –-

sei lá -– ouviu 2Pac

MB ((pigarro))

RF essas coisas cê... se viu ali de alguma maneira?

MB ah quando eu li Malcolm-X eu me vi... vi e vi

((balançando a cabeça em sinal de negação))...

tudo... vi tudo... pelo menos o mundo o universo

que eu vivia... tava ali naquele livro

Leitura de MB sobre

Malcolm X

RF pra você quem são os grandes ídolos brasileiros?

MB [sim:::]

RF [de to]dos os tempos

MB eu sou-eu vou te falar eu sou um cara até ignorante

se eu te falar-citar nomes... eu vou ser::...

leviano... o s-o J. tá aqui presente ele vai te dar

uma lista se você perguntar pra ele... o J. te dá

uma lista de líderes nervoso que vieram... pelo

menos cem anos antes do Brown... antel do Bill antes

do Thaíde... antes do... Facção Central (.)

Realidade Cruel... Mr. Catra que vêm dessa geração

de músico... falando dessas coisa do-né?...

existiram outras pessoas antes... que não-não:-não

gravaram disco... não vie-vieram antes do

vídeoclipe... vieram antes da o-da m-MTV vieram

antes dessas coisa... e lutaram

Grandes ídolos

brasileiros

RF fa-fala-se muito da::... do papel:: ahn: que o:-que

o: tráfico... ahn os traficantes eles ocupam um

papel que deveria ser do estado... né? um-um lugar

que deveria ser do estado cê acha que a música::

ocupa isso também de\ alguma maneira?

Papel da música na

periferia

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MB sim a música é presente né?... a música é aquele::

é quando-ela tem que ser pelo menos companheira do

cara... ela não precisa ser o pai... nem o psicólogo

mas ela tem que ser pelo menos companheiro...

muitas/ vezes você quer ter do seu lado um

companheiro não um psicólogo... e não um pai nem um

padre nem um pastor... cê quer ter um companheiro...

que pelo menos vive as mesmas coisa... e vai trocar

idéia com você a altura... não de cima pra baixo...

então eu falo pros mano do rap “nosso rap não tem que

ser professor nem ser exemplo nem tem que ser

líder”... mas tem que ser pelo menos companheiro

dos mano... companheiro das pessoa porque ele tá de

igual... ombro a ombro entendendo os mano...

Papel do rap

e eles entender nossas falha também... porque o rapper

de tanto ele-as pessoa falar “ele é o exemplo ele

é o lider ele é pai” –- ele é coBRAdo... ferozmente

PM [Brown]

PL [Brown] Brown… [cê-cê]

MB [cobrado] ferozmente a atitude que

ele deveria ter que ninguém tem também

Cobrança feita ao

rapper

PM nosso tempo tá [acabando]

MB [então não pode] cobrar dele

PM &e eu queria fazer uma última pergunta... já que...

((sorrindo)) cê disse que ninguém te provocou... eu

vou te provocar de leve aqui... a essa altura do

campeonato só de leve... eh::: quando eu era...

jovem... a onda era... o movimento de paz e amor...

festival de Woodstock rock pra todo mun:do... né?...

todo mundo numa boa... você é um cara paz e amor?

MB não...

PM você é um cara [de que tipo?]

MB [eu sonho com] paz e amor mas a vida

não é isso

Temperamento de MB

PL você sorriu oito vezes aqui no programa hoje isso

te incomoda?

MB já foi a fase deu:-deu:: me preocupar com::...

assim: sorrir ou não... quando a gente vai ficando

mais velho... vai vendo que as coisas não são:-os

monstro não são tão feio né? ne-nem tão forte que

nem parece...

Os sorrisos de MB no

programa

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PM nem o Mano Brown? ((sorrindo))

MB ninguém... ninguém... ninguém ué... Mano Brown é:

um ser humano meu... Mano Brown (é o que?-um)

rótulo... eu e-quando eu comecei eu era Brown do

Capão... aí no-na caminhada me apelidaram de Mano...

que “mano” é irmão entendeu?

O apelido Mano

Brown

RL e o Pedro Paulo Soares Pereira ficou no caminho?

MB não entendi ((com entoação interrogativa))

RL Pedro Paulo Soares Pereira... ficou no caminho

MB não... eu... ele:::... o Pedro Paulo ele vai assumir

o cargo dele daqui a alguns anos ele vai vol-vai

voltar ao posto dele de novo... ele vai tomar o-o

rumo da vida\ dele de novo

O retorno de PP

PM Mano Brown muito obrigado pela sua entrevis:ta (.)

obrigado aos nossos entrevistadores...

Agradecimentos do

programa

lembro que... o Roda Vida... completará... no próximo

dia vinte e oito... vinte e um anos... °no ar°... 28 anos do programa

sempre: trazendo entrevistas... eh: as mais diversas...

nesse::... nessa condição absolutamente livre... e

que nem sempre a gente concorda com tudo que é dito

ali::... e sempre a gente garante... que tudo que

seja dito... no centro do Roda Vida chegue... até...

o público... que acompanha a TV pública: no

Brasil... eh:-uma ótima semana e até a próxima

segunda com... o Ministro da Defesa Nelson Jobim...

até lá ((corte de imagem enfocando Mano Brown e,

então, corte de imagem para a vinheta do programa))

Liberdade garantida do

programa