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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO BIANCA VIEIRA Mulheres negras no Brasil: trabalho, família e lugares sociais CAMPINAS - SP 2018

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

BIANCA VIEIRA

Mulheres negras no Brasil: trabalho, família e lugares

sociais

CAMPINAS - SP

2018

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BIANCA VIEIRA

Mulheres negras no Brasil: trabalho, família e lugares

sociais

Dissertação de Mestrado

apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Educação da

Faculdade de Educação da

Universidade Estadual de Campinas

para obtenção do título de Mestra

em Educação, na área de

concentração Educação

Supervisora/Orientadora: Profª. Drª Selma Borghi Venco

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO

FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA

ALUNA BIANCA VIEIRA, E ORIENTADA PELA

PROFª. DRª. SELMA BORGHI VENCO.

CAMPINAS

2018

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

Mulheres negras no Brasil: trabalho, família e lugares

sociais

BIANCA VIEIRA

COMISSÃO JULGADORA:

Profa. Dra. Selma Borghi Venco

Profa. Dra.Renata Cristina Gonçalves dos Santos

Profa. Dra. Liliana Rolfsen Petrilli Segnini

A Ata da Defesa assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica do aluno.

2018

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AGRADECIMENTOS

Todo trabalho tem um princípio. E pra quem é de axé, é Exu quem abre todos

eles: Laroye!

À minha mãe, Márcia Luisa Tancredi, por todo o companheirismo e apoio

incondicional, pela sua sensibilidade e amor imenso que nos permitiu reinventar nossa

bonita relação e construir um elo de amizade tão profundo. Ao meu pai, Deocleciano

Vieira Junior, por ser desde sempre minha referência de força, luta e autonomia, que a

partir de sua formação predominantemente autodidata, sempre me incentivou, junto de

minha mãe, a perseguir os estudos.

À minha irmã de coração, Nathália Arcenio de Toledo, pela sua amizade e

lealdade. Por todo cuidado e por me inspirar a ser um ser humano sempre melhor. Por

dedicar tempo e preocupação para tornar possível o sonho de reingressar e permanecer

na universidade pública. Agradeço também ao caro amigo Maurício Moysés, por me

acolher conjuntamente, e me permitir testemunhar a admirável e desafiadora trajetória

acadêmica desse casal de intelectuais tão batalhadores e competentes.

Aos orixás e guias, meus e de minha casa de santo, que me acompanharam até

aqui. À família Oliveira que generosamente abriu as portas de sua casa para me receber

no lado leste da selva de pedra. Por ser este um porto-seguro onde pude reconstruir o

vigor para lutar por essa oportunidade. Ao Jardim Elba. Ao meu ex-companheiro

Eduardo Oliveira de Souza, Duda, pelo apoio e parceria até a fase inicial desse

processo. À Dona Lucia D’Oxum pelo colo aconchegante e pela referência de mulher

íntegra que é para mim. À minha comadre Alexandra pela confiança e por ter me

presenteado com o meu amado afilhado Kayode Jahari. À Marjorie pela entrega e por

aceitar por a mão em minha cabeça. Ao querido Seu Edvaldo pelo carinho. E aos

estimados Dudu e Will por todos os momentos de fraternidade. Adupé!

À minha comadre Thais Caroline Ribeiro, para mim Tata, que deixou de ser uma

colega de trabalho do Call Center para se tornar uma amiga preciosa pra toda vida. Por

partilhar comigo um pouco da permanente luta para cuidar e educar a menina mais

fascinante e perspicaz que eu já conheci. Por ter me permitido assumir o posto de Dinda

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da minha querida afilhada Lara Pyetra. Por ser uma das mulheres que, por sua trajetória,

me inspirou a escrever esse trabalho.

À mana Silmara Cardoso de Lima Silva, minha querida Marilda, amiga de longa

data (desde os tempos dos Fanzines e da nossa primeira formação política: o Hip Hop),

a qual tive o prazer de reencontrar, tanto para entonar palavras de ordem nas ruas como

para compartilhar comidinhas deliciosas e ternos sorrisos. Por ser quem é, pelos abraços

apertados, pelas palavras de incentivo quando a insegurança tomou maiores proporções

e cogitei resignar-me. À mana Tabita Tiede Lopes, por arrancar de mim o melhor do

meu processo criativo, por cada debate empolgante, por acreditar no meu potencial, por

todo cuidado que tem comigo. Ao mano Robson Rodrigues, pela sua amizade genuína,

pela maneira encantadora como torna acessível a mais complexa reflexão filosófica. Por

serem, os três, meu retiro intelectual. Enfim, por me permitirem fazer parte das suas

vidas e me mostrarem o real significado da palavra camaradagem.

À mana Aline Dias, por partilhar as angustias e conquistas do desafiador mundo

acadêmico e me fazer notar que não estamos sós. Pela cumplicidade e pelas piadas que

fizeram desse um percurso mais agradável. Por ter me presenteado com o livro do

Ramatis Jacino, que tanto me provocou a pensar a nossa categoria à época, como

operadoras de telemarketing, e a especificidade dos nichos profissionais endereçados a

população negra. Por me apontar elementos para pensar meu papel na luta anti-racista.

Às minhas amigas queridas que me acolheram na Moradia Estudantil da

Unicamp, na casa G1, que se tornou o meu lar por esses quase 3 anos: Laís Caçula, por

sua serenidade e equilíbrio, Leianne Miranda, por todos os conselhos, Rozi Ferreira, por

todas as risadas e Ana Cláudia, pela leveza e harmonia deste convívio. Uma casa onde

pude reencontrar as saudosas colegas de turma do meu primeiro ano da graduação em

Araraquara. À Letícia Pavarina, amiga e conterrânea, que chegou logo depois em nossa

casa. Sua companhia foi reconfortante para enfrentar as inseguranças da vida de pós-

graduandas. À Elenir Carvalho, cuja amizade, mesmo distante, sempre cumpriu um

papel central na minha trajetória pessoal.

À Luci Praun, minha amiga e professora adorada, que me fez acreditar que a

pesquisa e a carreira acadêmica era um caminho possível para mim. Ao meu professor

do ensino médio, Rodolfo Neves, por me encorajar presenteando-me com livros da

bibliografia do processo seletivo para o mestrado. À professora Selma Venco pela

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paciência, acolhimento e orientação. Ao Professor Ricardo Antunes pela disponibilidade

de ler meus primeiros rascunhos de projeto de pesquisa e por ter me aceitado como

aluna ouvinte de seu apaixonante curso sobre Sociologia do Trabalho.

Aos amigos que fiz na Unicamp: à Caroline Florido, pelos aportes no texto ao

longo de todo o processo e pelo aconchego; à Cristina Santos, por todas as trocas,

verbais e não verbais, ao Hugo Marangoni, pela parceria e cumplicidade; à Fernanda

Lemos, pelo apoio mútuo em todos os sentidos; à Maria Marta, pela partilha e

confiança; à Adriele Duran e à Daiane Silva, por transformarem qualquer lugar em que

estejam em um bom lugar para se estar. À Associação de Pós-graduandos da Faculdade

de Educação. A todos os funcionários do Bandejão (RU) e da Moradia Estudantil,

especialmente pros queridos Ceará, Mineiro, Gustavo, Seu Flor, Iracema, Marcos e Seu

Biu. Às professoras Conceição Nogueira e Sofia Cruz pela acolhida na cidade do Porto.

À CNPq pelo financiamento da pesquisa e à VRERI pela concessão de bolsa para o

mestrado sanduíche.

Aos meus alunos da E.E. Pe. Agnaldo Sebastião Vieira e às comunidades da

Tamarutaca e Palmares por todo o aprendizado no período em que atuei em sala de aula.

Às inspiradoras e competentes professoras e companheiras de luta contra os governos

neoliberais que sucateiam a educação pública: Simone Machado, Chislene Batista,

Joseneide Gomes, Iriê e Olívia Ricci. Às também combativas e feministas amigas Talita

Sousa e Roberta Silva.

Ao NEPAFRO (Núcleo de Pesquisa e Estudos Afro-americanos), por ter me

oportunizado acessar um riquíssimo espaço de debate sobre o Pensando Social

Brasileiro e as Relações Raciais no Brasil. A bibliografia e reflexões do Grupo de

Estudos foram decisivas para a construção desse trabalho. Agradeço especialmente ao

Marcio Farias (Marcinho) e Rafael Domingos Oliveira (Rafa) por promoverem um

espaço de produção de conhecimento instigante, de alto nível e tão democrático. À

todos os colegas que compuseram este grupo, em particular Samira Silva, Denis

Ferreira e Renata Macedo. Ao Kilombagem pelo curso de formação Movimentos de

Libertação na África, que trouxe contribuições importantes para reflexão sobre

colonialidade e racismo no Brasil e em África.

Ao Chá das Pretas (Porto – Portugal) pela amizade e pela confiança. À Bruna

Ferreira, por enxergar em mim uma aliada da luta das mulheres negras e imigrantes em

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Portugal e por dividir comigo momentos de tamanha maturidade. Por ser esse ser

humano lúcido e sensível que me trouxe tamanho acalanto. Às queridas Melissa

Rodrigues, Emanuelle Aduni Goes, Luciene Amorim, Geise Pinheiro, Sara Martins, Bia

Santos e Larissa Lima.

Às minhas meninas, companheiras de morada no Porto, nossa saudosa maloca:

Laryssa Nogueira, Nara Borges, Karyne Nogueira, Jordânia de Cassia, Kamila Franco e

Carla Bastos, pelo ombro amigo e pela reciprocidade de todas as horas. À amiga Ethe

Costa, bolsista do programa de internacionalização da pós-graduação como eu, que

mesmo na distância se tornou uma confidente dos percursos e percalços do processo de

formação. A todos que nesse período de intercambio abriram-me as portas de suas

casas, tornando possível meu trânsito dentro de Portugal: meu parça Renan Inquérito,

Angelo, Deise e Karuline.

E finalmente, à minha família criola. A todos os amigos berdianos que me

abraçaram com tanto carinho em terras portuguesas e me fizeram sentir integrada. Esses

que me permitiram observar tão de perto as alegrias e as dores de ser imigrante negro

e/ou descendente de imigrantes dos PALOPs nas terras dos herdeiros da colonização. À

minha querida irmã Ilselene Frederico, a Txy, por ser esta badia arretada e encantadora,

que mesmo enfrentando a dupla batalha diária, como trabalhadora e estudante, ainda

acha tempo para dar colo às amigas como eu. À Cynthia, ao Roca, à Marybelle, ao

Torquato, ao Willie, à Gandy e toda malta do Bons Vibz Karaka e família Dope. A

esses que me fizeram experimentar um sentimento completamente novo: sentir saudades

de um lugar onde nunca estive. Sodade kel morabeza kin ta xinti na nhos kompanhia

kuando nta obi kel kriolo bunito.

À todas as mulheres negras, algumas delas aqui citadas, cujas histórias de vida

inspiraram esse trabalho.

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RESUMO

O objeto deste estudo consiste na análise da formação e manutenção dos lugares sociais

ocupados pelas mulheres negras na sociedade brasileira. A investigação histórica acerca

da construção do Estado e do mercado de trabalho brasileiro recupera as especificidades

das relações sociais de raça, classe e gênero desde o período colonial. Tem-se como

objetivo examinar como a articulação entre tais relações de poder configuram e

reconfiguram as desigualdades no mundo do trabalho e fora dele. A tese sobre o

alargamento dos níveis de exploração vivenciados pelas mulheres negras orienta nossa

hipótese no que tange à condição de vulnerabilidade que constrange os percursos

profissionais e pessoais dessas trabalhadoras, conduzindo-as a postos de trabalho mais

precarizados.

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ABSTRACT

The object of this study is the formation and maintenance of the social places occupied

by black women in Brazilian society. The historical investigation about the construction

of Brazilian’s State and labor market recovers the specificities of social relations of

race, class and gender from the colonial period. The objective is to examine how the

articulation between such power relations shapes and reconfigures inequalities in and

out the working context. The thesis about the expansion of the exploitation levels,

experienced by black women, guides our hypothesis regarding the vulnerable condition

that constrains these workers’s professional and personal paths, leading them to more

precarious jobs.

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SUMÁRIO

Mulheres negras no Brasil: trabalho, família e lugares sociais

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 12

Procedimentos metodológicos ................................................................................. 15

CAPÍTULO 1 ............................................................................................................. 17

COLONIALISMO, ESTADO E RAÇA: RECONHECENDO ESTRUTURAS DE

HIERARQUIZAÇÃO SOCIAL. ................................................................................. 17

Transição do escravismo para o trabalho assalariado ............................................... 18

Branqueamento e disputas por um projeto de Nação ................................................ 27

Abrasileirar e assimilar: Gilberto Freyre e o mito do bom senhor ............................. 33

A tese do excepcionalismo lusitano ......................................................................... 39

Uma outra leitura a partir da resistência ................................................................... 45

Raça e racismo: algumas considerações ................................................................... 48

CAPITULO 2 ............................................................................................................. 53

MULHERES NEGRAS, TRABALHO E LAR ........................................................... 53

“A parte mais produtiva da propriedade escrava” ..................................................... 53

Pós-abolição: trabalhadoras forras e livres ............................................................... 56

Família negra: trabalho e (re)produção da vida ........................................................ 63

Por um feminismo afro-latino-americano ................................................................. 74

Mulheres negras no mercado de trabalho ................................................................. 87

Mulheres negras e políticas públicas ........................................................................ 93

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 100

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 102

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INTRODUÇÃO

Enquanto mulher branca, criada no interior de São Paulo, filha de um

caminhoneiro e de uma professora e dona de casa, cujas oportunidades e dificuldades

trouxeram-me até essa etapa do percurso escolar e acadêmico, considero pertinente

apresentar as razões pelas quais optei por pesquisar esse tema. Penso que as motivações

podem ser divididas em três principais eixos.

O primeiro está relacionado à percepção do racismo no cotidiano das pessoas

não brancas, sobretudo as mulheres negras, com as quais convivi e estabeleci relações

de diferentes graus e natureza. Os vínculos de solidariedade que se forjaram a partir

dessas relações, que em um primeiro momento se constituíam a partir de uma

identidade de gênero e de classe social, à medida que eu reconhecia a violência com que

o racismo se manifestava, inviabilizando projetos e tolhendo perspectivas, e as

estratégias de sobrevivência corajosamente elaboradas por esses sujeitos na luta

cotidiana, tornaram-me mais atenta e sensível às demandas dos indivíduos vitimados

pelas relações sociais racializadas.

Por outro lado - e em consequência do contato com tais lutas, individuais e

coletivas, expressas nos movimentos negros atuantes no campo cultural, na construção

de coletivos e em grupos de estudos preocupados com a questão racial - fui provocada a

refletir sobre meu papel na reprodução do racismo e sobre os privilégios por mim

desfrutados em função da minha condição racial.

Esse questionamento impôs uma ruptura com a abordagem que tende a racializar

apenas as pessoas negras, e que isenta o grupo branco do reconhecimento de sua

posição nas relações raciais. Essa omissão é responsável por reafirmar o branco como

padrão normativo, perpetuando e naturalizando seus privilégios sem questionar as

origens históricas ligadas à colonialidade, as quais são reelaboradas na dinâmica das

relações sociais. Foi assim, portanto, ao reposicionar meu olhar de modo a abranger a

branquitude1 no exame das relações de raça, que pude compreender o branco, não como

mero objeto passivo dentro de uma estrutura social racista, mas como sujeito agente, ou

1 Ler O “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: Raça, hierarquia e poder na construção da

branquitude paulistana (SCHUCMAN, 2012).

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seja, como protagonista do racismo, que, intencionalmente ou não, perpetua a

discriminação no exercício dos papéis e privilégios com os quais foi socializado.

A escolha do tema é também um ato político ao passo que está intimamente

ligada à reflexão sobre meu papel na luta antirracista enquanto pesquisadora branca.

Nesse sentido, demarcar o lugar social de onde parto para analisar a condição das

mulheres negras na sociedade brasileira é permeado por todas essas questões.

Se não é fácil ser descendente de seres humanos escravizados e forçados à condição de

objetos utilitários ou a semoventes, também é difícil descobrir-se descendente dos

escravizadores, temer, embora veladamente, revanche dos que, por cinco séculos, têm

sido desprezados e massacrados. Para reeducar as relações étnico-raciais, no Brasil, é

necessário fazer emergir as dores e medos que têm sido gerados. É preciso entender que

o sucesso de uns tem o preço da marginalização e da desigualdade impostas a outros. E

então decidir que sociedade queremos construir daqui para frente. Como bem salientou

Frantz Fanon, os descendentes dos mercadores de escravos, dos senhores de ontem, não

têm, hoje, de assumir culpa pelas desumanidades provocadas por seus antepassados. No

entanto, têm eles a responsabilidade moral e política de combater o racismo, as

discriminações e, juntamente com os que vêm sendo mantidos à margem, os negros,

construir relações raciais e sociais sadias, em que todos cresçam e se realizem enquanto

seres humanos e cidadãos. Não fossem por estas razões, eles a teriam de assumir, pelo fato de usufruírem do muito que o trabalho escravo possibilitou ao país (SILVA, 2004,

p. 5).

O último aspecto das motivações de meu trabalho diz respeito às percepções

apreendidas na vivência como trabalhadora e como investigadora da sociologia do

trabalho. Dentre tantas atividades nas quais estive ocupada - todas no setor de serviços,

sendo muitas delas informais e precárias - a experiência vivida no segmento de

telemarketing foi simbólica para mim. Desde os primeiros dias de treinamento foi

possível observar que a maioria das colegas de trabalho eram negras. Posteriormente, a

mesma observação se repetia em outros Call Centers da região metropolitana de São

Paulo, onde morei e trabalhei por muitos anos.

Os baixíssimos salários e o assédio moral eram relevados em função daquilo

que entendíamos como uma oportunidade de ter um vínculo empregatício formal,

convênio médico, trabalhar em “escritório”, ter uma jornada de trabalho que permitia

conciliar os estudos, dentre outras particularidades do trabalho em telemarketing que,

quando comparadas com a trajetória profissional ou familiar da maioria de nós, era

frequentemente compreendido como uma “ascensão social”. Muitas dessas colegas

trabalharam como domésticas, diaristas, entre outros trabalhos informais ou precários,

antes de ingressar nas plataformas dos Call Centes. Mesmo nos casos em que se tratava

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de uma primeira experiência profissional, as famílias das quais as jovens teleoperadoras

eram oriundas raramente destoavam deste perfil.

Esses questionamentos me levaram a constatar que, para compreender essa

categoria profissional e minha própria condição dentro dela, seria necessário investigar

as relações sociais que se articulam produzindo vulnerabilidades de tal ordem que

empurram algumas mulheres, mais do que outras, para ocupações desprestigiadas e mal

remuneradas. Assim sendo, meus primeiros contatos com a sociologia do trabalho, área

na qual iniciei minhas pesquisas, demonstravam, por diversas vezes, carecer de uma

análise atenta ao papel estrutural do racismo na configuração da classe trabalhadora

brasileira, tal como era habitual no que diz respeito às referências à divisão sexual do

trabalho.

A oportunidade de elaborar parte deste trabalho em Portugal permitiu-nos

acessar conteúdos que remetem a representação da colonialidade pelo olhar da ex-

metrópole como também as bandeiras e lutas dos movimentos sociais protagonizados

por indivíduos oriundos de países ex-colonizados e seus descendentes na atualidade. O

contato com essas narrativas, que por vezes partiam de ângulos opostos (história oficial

versus narrativa da resistência), contribuíram em grande medida para nossa análise

acerca da constituição das relações de poder no Brasil.

Por todos esses motivos, o conceito de “raça” pareceu-nos a chave para adentrar

aquilo que Maria da Conceição Nogueira (s.n.), feminista crítica e professora da

psicologia social da Universidade do Porto, chama metaforicamente de espiral das

relações sociais. Segundo Nogueira, a interseccionalidade, conceito que contribuiu

largamente para nossa análise, pode ser pensado como uma espiral que conflui para o

mesmo ponto, cuja porta de acesso é definida pela escolha teórica de cada pesquisador

em função de seu objeto, e que, seja por meio da classe, da raça ou do gênero,

convergem sempre para a mesma direção: a intersecção. Não se trata, portanto, de

hierarquizar relações sociais, mas optar pelo caminho mais estratégico para revelar os

efeitos de suas conjunções.

A pesquisa tem como objeto de análise os lugares sociais ocupados pelas

mulheres negras na sociedade brasileira, e mais especificamente no mundo do trabalho,

desde o período colonial do Brasil. O método de investigação buscou examinar as

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produções do pensamento social brasileiro acerca da formação social, econômica e

política do Brasil, com o intuito de situar as relações sociais de raça, classe e gênero que

se interseccionam e reconfiguram as desigualdades no mundo do trabalho e fora dele.

Tem-se o objetivo de compreender como essas desigualdades se manifestam nos

percursos trilhados por essas mulheres em suas trajetórias pessoais e profissionais. A

hipótese que norteia o estudo consiste na observação de que a intersecção entre raça,

classe e gênero estabelece uma condição de vulnerabilidade que orienta os percursos

profissionais dessas trabalhadoras, conduzindo-as a postos de trabalho mais

precarizados.

O tema centra-se na análise do alargamento dos níveis de exploração

vivenciados pelas mulheres negras no mercado de trabalho brasileiro (CARNEIRO,

SANTOS, 1985). A categoria interseccionalidade é o suporte teórico escolhido para o

exame da especificidade da condição dessas trabalhadoras. Kimberle Creenshaw (2002)

cunhou tal categoria com o intuito de tornar visíveis os efeitos que a conjunção dos

múltiplos sistemas de subordinação acarreta, sobretudo, no acesso aos direitos. A autora

indica que tais relações sociais incidem de maneira articulada, estabelecendo lugares

sociais e oportunidades desiguais que desfavorecem sujeitos discriminados em função

de marcas sociais, sendo, em razão disso, a experiência da mulher negra diversa da

mulher branca e do homem negro.

Procedimentos metodológicos

A pesquisa foi realizada mediante a adoção de dois recursos metodológicos. O

primeiro deles é a pesquisa bibliográfica que consiste na análise de livros e artigos

pertinentes ao tema central (GIL, 2008). Esse tipo de pesquisa oportunizou tanto o

estudo histórico da trajetória das mulheres negras desde os últimos anos antes da

abolição, quanto a revisão teórica da qual, por meio da leitura crítica, foram elencadas

as categorias analíticas fundamentais para esse trabalho (MINAYO, 2000).

O segundo recurso empregado foi a pesquisa documental com fontes de segunda

mão, ou seja, relatórios e tabelas estatísticas produzidos por institutos de pesquisa e

grupos de estudos que examinaram os censos e outros dados sobre as condições de

trabalho, escolaridade, renda, entre outros, considerando os marcadores de raça e

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gênero. Tais relatórios analisam, sobretudo, a base de dados da PNAD (Pesquisa

Nacional por Amostra de Domicílios – IBGE) compreendida na séria histórica entre

2011 e 2015. Outros dados analisados pela ONU, OIT e DIEESE auxiliam-nos na

articulação entre teoria sociológica e dados estatísticos, para a construção de uma

análise mais apurada do objeto de pesquisa (GIL, 2008).

O trabalho está organizado em dois capítulos. O primeiro tem como escopo o

exame do processo de formação da sociedade brasileira e a constituição das estruturas

de hierarquização que produzem lugares sociais. A recuperação histórica indica como as

relações de poder estabelecidas desde o colonialismo contribuem na produção de

linhagens perpetuadoras de desigualdade, as quais são transformadas e atualizadas, em

razão da dinâmica imposta pelos interesses das elites, mas também perturbadas pela

resistência dos sujeitos explorados. O conceito de raça e branqueamento são categorias

que elucidam as disputas pelo projeto de nação assinaladas nas produções do

Pensamento Social Brasileiro.

No capítulo 2, tem-se como objetivo apresentar os percursos trilhados pelas

mulheres negras, fundamentalmente desde a consolidação do Estado burguês brasileiro

e a formação do mercado de trabalho assalariado. Como contribuição para a análise dos

lugares sociais ocupados por essas trabalhadoras, são apresentadas suas atividades e

trajetórias profissionais desde o pós-abolição. Como discutido no capítulo anterior, o

fluxo imigratório de trabalhadores europeus para atividades mais dinâmicas do mercado

empurram essas mulheres para a informalidade.

As atividades exercidas estiveram historicamente ligadas à manutenção do

espaço doméstico e à reprodução da vida, especialmente nas cidades que se

transformavam com o incremento da industrialização. Nesse capítulo é apresentado

também o embate teórico em torno das categorias analíticas que buscam compreender as

imbricações entre as relações sociais de classe, raça e gênero e a leitura e conceituação

adotada a partir da realidade brasileira. Por fim, analisamos os dados mais atualizados

sobre a localização da mulher negra nas estatísticas censitárias e sugerimos um balanço

das políticas públicas mais recentes voltadas para essa parcela da população.

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CAPÍTULO 1

COLONIALISMO, ESTADO E RAÇA: RECONHECENDO

ESTRUTURAS DE HIERARQUIZAÇÃO SOCIAL.

O presente capítulo tem como objetivo resgatar as raízes da formação social,

econômica e política do Brasil, que, aqui se pretende discutir, delineia desdobramentos

no mercado de trabalho brasileiro, destacadamente apoiando-nos na recuperação

histórica do pensamento social brasileiro acerca das relações sociais de raça e classe,

sem pretendermos com isso esgotar as numerosas produções e correntes teóricas

pertinentes ao tema. Para tal fim, faz-se necessária a apresentação dos significados que

o conceito de “raça” assume na conformação de uma identidade nacional pautada nas

ideologias de branqueamento e democracia racial.

É aqui considerada igualmente oportuna a reflexão acerca da formação do

Estado burguês brasileiro e da propriedade como território2, como aspectos

determinantes na composição das linhagens proletárias3 no Brasil, com o intuito de

delinear o contexto no qual estão inseridas as trajetórias pessoais e profissionais das

mulheres negras, como veremos no próximo capítulo.

2 O conceito emprestado da Geografia é aqui utilizado com o sentido de espaço modificado pelas relações

sociais de poder (RAFFESTIN, 1993). 3 O conceito de linhagens proletárias, em Destinos pessoais e estrutura de classes (1979) de Daniel Bertaux, foi um importante ponto de partida para a escrita deste capítulo. Parte desta obra é dedicada à

recuperação histórica da formação do proletariado francês. O autor discute o recrutamento do proletário

fabril no campesinato e a definição do arranjo fundiário e acesso a propriedade no país. A análise percorre

todo processo de expropriação dos camponeses pobres e apropriação dessas terras por parte da

aristocracia rural que se consolidará, posteriormente, como burguesia. O estudo indica que as camadas

sociais onde foram maiores os contingentes arregimentados são aquelas diretamente ligadas a este

processo de desenraizamento. A condição de vulnerabilidade social a qual estes sujeitos estiveram

expostos foi elemento decisivo e coercitivo para a concretização da redistribuição social moderna. Essa

abordagem evidencia a dimensão social dos deslocamentos e seu caráter circunscrito em um modo de

produção, não partindo, portanto da ideia do esgotamento natural do meio rural e da industrialização

como caminho inexorável da história. Em um contexto de restrição do acesso a terra, a posse da propriedade ganha um novo significado: o território. Todo aquele que se apropria deste espaço é também

transformado por ele, e não apenas ele, mas toda uma linhagem de descendentes. Novas filiações e

decisões dos membros da família proprietária sofrerão ingerências pela necessidade de conservação do

território. Ao passo que, aqueles sem perspectivas de posses são empurrados para o único caminho que

lhes parece possível, a fábrica. Sua jornada, tal como nas linhagens proprietárias, não termina em sua

existência. A hereditariedade proletarizante é, nesse sentido, produzida e reproduzida nas novas gerações.

Nosso estudo tem como objetivo compreender as especificidades da formação das linhagens

proletarizantes no contexto da formação do mercado de trabalho brasileiro, tendo-se em consideração os

processos históricos diversos daqueles trilhados no caso francês e europeu e a posição do Brasil enquanto

um país de economia subordinada.

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A hipótese norteadora da análise consiste em uma condição marginal de inserção

da população negra no mercado de trabalho, a qual é forjada na relação escravizador-

escravizado no Brasil colônia e sistematicamente reelaborada pela dimensão histórica

do racismo não apenas como herança, mas como relação social dinâmica que estrutura e

é estruturada pelas relações de poder. Para a análise nos apoiaremos principalmente nos

autores Florestan Fernandes (1976), Clóvis Moura (1988), Antônio Sérgio Guimarães

(1999, 2002), Andreas Hofbauer (2003), Daniel Bertaux (1979).

Transição do escravismo para o trabalho assalariado

O modelo de produção escravista que perdurou por quase quatro séculos, desde a

colônia à nação emergente, imprimiu marcas profundas na configuração da força de

trabalho brasileira. Com base em Moura (1988) é possível destacar dois aspectos como

decisivos na constituição do mercado de trabalho brasileiro em sua especificidade: a

relação escravizado-proprietário e a posição marginal da economia local no cenário

político mundial.

O primeiro deles designa o núcleo do conflito que caracteriza o sistema

escravista. É a partir da contradição presente na relação escravizado4-escravizador que a

dinâmica social é impulsionada, seja no “Escravismo Pleno”, que vai de 1550 até 1850,

quando a Lei Eusébio de Queiroz proíbe o tráfico internacional de trabalhadores

escravizados, seja no “Escravismo Tardio” que vai até 1888, com a abolição oficial da

escravatura (MOURA, 2014).

A particularidade dessa relação está no fato de ser o trabalho estabelecido no

escravismo de natureza distinta ao assalariado, ainda que comparado com as condições

de trabalho nos países europeus no período imediatamente posterior à Revolução

Industrial, em que a violência extrema dos altos níveis de exploração e os castigos

físicos se faziam presentes. O trabalhador livre participa do mercado como consumidor

de mercadorias e está submetido a um contrato, que lhe dá o direito de trocar de patrão

ou deixar de trabalhar. O escravo era ele mesmo uma mercadoria, socialmente

4 Em função da carga semântica atribuída historicamente ao termo “escravo”, enquanto mão-de-obra

destituída de humanidade, em substituição, ao longo do texto, faremos uso do termo “escravizado” como

recurso alternativo para representação desses trabalhadores como sujeitos. Exceto nos trechos em que

esse sentido esteja sendo instrumentalizado de maneira crítica por mim ou faça referência aos autores

citados.

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coisificado, pois lhe era negada a posse de seu próprio corpo.

O outro eixo, determinante na formação e reposição do mercado de trabalho,

concentra-se na posição de dependência da economia local no contexto internacional.

Uma vez que o lucro da produção, naquele período, era escoado quase integralmente

para a metrópole e estando a produção interna voltada para a exportação, os

proprietários locais eram impelidos a importar produtos para consumo próprio e para o

abastecimento de força de trabalho. É por meio da hiperexploração do trabalhador

escravizado que se faz possível a geração de lucro em proporção suficiente para

usufruto do polo produtor (colônia) e do polo distribuidor e consumidor (metrópole).

A emergência de uma burguesia embrionária torna-se possível somente a partir

da promulgação da Lei Eusébio de Queiroz. Com o fim da legalidade do tráfico

internacional, aqueles setores da economia mais dinâmicos ligados ao alto comércio

foram progressivamente monopolizados pelo capital inglês, e a burguesia local ocupou

uma posição auxiliar por ser incapaz de desempenhar o papel modernizador daquelas

burguesias oriundas de países com economia independente. Ou seja, a subalternidade

das elites brasileiras perdura mesmo após o deslocamento da coroa portuguesa para o

Brasil e, posteriormente, à Independência. Esses dois acontecimentos anunciam a

caducidade do sistema colonial e a constituição de uma economia mercantil escravista,

contudo, não abalam o modelo de produção, pois apenas transfere os mecanismos de

regulação para o que Moura chamará de Estado Nacional (MOURA, 2014).

Ainda que não seja objetivo deste trabalho analisar as produções acerca da

formação do Estado Nacional/Burguês Brasileiro, consideramos ser válido situar a tese

com a qual nos filiamos até o presente momento. Décio Saes (1982) se contrapõe a um

importante setor de pensadores que consideram ser possível qualificar o Estado

Brasileiro como burguês apenas a partir dos anos 1930. O principal defensor dessa tese

é Otavio Ianni (1965) que, em decorrência das profundas transformações nas relações

de produção, atribui ao Estado a designação ‘burguês’.

A crítica de Saes (1982) consiste no entendimento de que essa análise reduz a

formação do Estado burguês a uma determinação direta das relações de produção

capitalista sem considerar o desenvolvimento de uma nova estrutura jurídico política

precedente. Segundo o autor, a interpretação da transformação do Estado como efeito

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retardado perde de vista que “só o Estado burguês torna possível a reprodução das

relações de produção capitalistas” (SAES, 1982, p. 11). Nessa perspectiva, indica uma

periodização distinta: a formação do Estado Burguês Brasileiro teria se processado no

intervalo entre 1831-1891, sendo corolário deste período os episódios da Abolição da

Escravatura, Proclamação da República e Assembleia Constituinte, que se concentraram

entre 1888-1891.

A chamada ‘fase semi-colonial’ (1808-1831) iniciada com a transferência do

Estado Absolutista português para o Brasil, imposta pela invasão das tropas francesas,

acarreta contradições com a estrutura política escravista colonial. A burocracia

absolutista emigrada torna-se mais sensível às pressões dos interesses locais e da

burguesia inglesa e, ao mesmo tempo, desestabiliza a hegemonia das classes dominantes

portuguesas aqui instaladas. A declaração formal de Independência em 1822 não altera

esse status. A presença portuguesa e a expectativa de restauração da colônia eram ainda

muito presentes como se pode notar no Tratado de Reconhecimento da Independência

(1825) entre os governos inglês, português e brasileiro, no qual a burocracia do Estado

brasileiro, com D. Pedro I a sua frente, atua como representante dos interesses das

classes dominantes portuguesas assumindo a divida do Estado português com o Estado

inglês.

Segundo Saes (1982) é somente com a abdicação de D. Pedro I (1831) que a

burocracia portuguesa remanescente (monarcas, militares e funcionários) será expulsa

juntamente com os vestígios coloniais do ‘Estado Escravista Moderno’. Para Caio Prado

Jr. (1957) esse marco consolida o Estado Nacional Brasileiro. O processo que se inicia a

partir de então é o que o Saes (1982) compreende como a formação do Estado burguês

que precede o Estado burguês em si. Em outras palavras, trata-se da revolução política

burguesa, a qual, entre outros aspectos (como surgimento e difusão - mesmo que não

predominante - da grande indústria, formação e desenvolvimento da burguesia industrial

e do proletariado, e estrutura ideológico-jurídica burguesa), transforma o tipo (natureza

política de classe) da estrutura jurídico política em uma formação social. Sendo assim,

compreende-se ser a revolução antiescravista brasileira a responsável pela

transformação do Estado escravista moderno em Estado burguês.

Nesse sentido, assinalamos que a transição do regime colonial para a ordem

competitiva não se estabelece de maneira mecânica e repentina. Ao contrário, ela se

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desenvolve de modo gradual no cotidiano da colônia, que dia-a-dia revela os vestígios

do esgarçamento das relações desvantajosas com a metrópole. Com a abertura dos

portos e a integração do Brasil às relações capitalistas, os proprietários permaneceram

como agentes de um sistema em que as riquezas eram drenadas para Portugal e, por

conseguinte, para Inglaterra. O lucro gerado pela economia escravista era

proporcionalmente menor para o agente interno do que para a metrópole.

Florestan Fernandes (1976) analisa os fatores que impulsionaram parte dos

proprietários a oporem-se ao regime colonial, constituindo, dessa maneira, uma nova e

complexa base psicocultural e política que sustentou aquilo que nomeia como “A

Revolução Burguesa no Brasil”. Por estarem circunscritos em uma economia estanque e

fechada em que a dinamização interna de modo autônomo era cerceada pelo rígido

controle externo, as iniciativas capitalistas locais eram foco de desconfiança e

hostilidade por parte da metrópole, e se limitavam a atender demandas específicas da

plantation. Segundo o autor, as potencialidades econômicas passam a ser melhor

exploradas com a constituição do Estado Nacional5, quando parte dos fazendeiros

rompem com a “homogeneidade aristocrática6” e se lançam no emergente cenário

econômico secularizado, cosmopolitizado e aburguesado.

Contudo, o processo de independência do Brasil adia a extinção da escravidão e

a integração dos trabalhadores escravizados à nação incipiente. Os estamentos

subordinados são alijados dos limites de abrangência dos ideais liberais com o intuito de

evitar uma radicalização popular alinhada com as insurreições da senzala. No que se

refere às relações econômicas com o mercado internacional, o 7 de setembro de 1822,

segundo o mesmo autor, não eliminou a condição de dependência, uma vez que somente

o elemento metrópole é suprimido, mas são mantidas as relações desiguais de produção

em nível mundial. A autonomização política apenas conferiu independência econômica

à classe senhorial onde as posições obtidas representaram a preservação do sistema

econômico vigente, enquanto abastecedor do mercado externo.

5 Que para este autor se consolida com a Independência, simbolizando o “fim da era colonial”

(FERNANDES, 1976, p. 31). 6 O autor faz referência aos estratos de proprietários rurais que, com a organização do Estado, são

extraídos da relativa uniformidade do engenho e passam a apostar em instituições econômicas, políticas e

jurídicas outrora desaprovadas pela metrópole em razão do controle extremado que cerceava qualquer

autonomia. Para Florestan Fernandes essa dinâmica possibilita a remodelação de relações sociais e

culturais no espaço urbano antes mesmo da universalização do trabalho livre e a ilustra mencionando a

transformação no setor de serviços, especialmente nas regiões favorecidas pelo incremento econômico do

café.

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Uma vez tendo a Independência ocorrido à revelia da população escravizada,

decorre que as rebeliões dos cativos perduram até o fim da ordem escravista. Dentre as

inúmeras revoltas protagonizadas pelos trabalhadores escravizados nesse contexto

destaca-se o cenário de agitações do recôncavo baiano no início do século XIX e a

tentativa de tomada do poder na Bahia, liderada pelos Haussas, Tapas e Nagôs em 1835

(MOURA, 1989). Tais rebeliões aliadas à decadência do trabalho escravo que se acirrou

desde a proibição internacional do tráfico, com as Leis Bill Aberdeen, em 1845 na Grã

Bretanha7 e Eusébio de Queirós8, em 1850 no Brasil, revelaram os limites desse modelo

de exploração. O medo das elites nutrido pela desproporção étnica na demografia, na

qual o contingente populacional africano e mestiço supera largamente o de “brancos”9,

leva as elites a temer um desfecho semelhante ao Haitiano10 e um projeto alternativo de

nação, a exemplo da República de Palmares.

A organização social da República de Palmares chocava-se com a ordem

escravista, sobretudo pela sua economia baseada na agricultura intensiva e diversificada

(policultura comunitária com técnicas africanas) que gerava excedentes e uma

produtividade mais dinâmica, em oposição ao monopólio dos senhores de engenho.

Além desse aspecto destaca-se a organização militar que se inicia com a tática de

guerrilha possibilitada pelo nomadismo e posteriormente é substituída pela luta de

posições, definição de um código de costumes, organização familiar não monogâmica, e

comunhão coletiva religiosa sem casta sacerdotal. No que se refere à administração e

estratificação social, a comunidade era liderada pelo rei eleito, o qual possuía poderes

quase absolutos, mas passível de condenação a pena de morte em caso de traição. No

conselho que reunia os chefes dos quilombos, estes podiam deliberar de maneira

autônoma somente quando não se tratava de assuntos que afetavam a todos (nesse caso

o chefe devia submeter à apreciação da comunidade). A mobilidade social e a conquista

da condição de ‘membro livre’ para os escravos estava condicionada à oferta de um

7 Ato Parlamentar promulgado em 1845, no Reino Unido, o qual autorizava os britânicos a prenderem

embarcações que transportassem escravos no Atlântico. 8 A lei que proibia o tráfico de escravos para o Brasil é, entre outras coisas, um desdobramento das

pressões da Inglaterra para que o Brasil acatasse a lei recém-promulgada. 9 No período que se estende de 1492 a 1870, estima-se que foram trazidos para o continente americano

entre nove milhões e meio e doze milhões e setecentos mil africanos, dos quais 40% tiveram como

destino o Brasil (COMPARATO, 2013). 10 A Revolução Haitiana (1791- 1804) foi um dos primeiros processos de independência protagonizados

pela população escravizada que obteve sucesso. A vitória assegurou abolição da escravatura e a

independência definitiva do Haiti como a primeira república governada por pessoas de ascendência

africana. O contingente populacional era majoritariamente composto por escravos negros da África

Ocidental (aproximadamente 30 mil brancos e mais de 430 mil escravos negros) (JAMES, 2000).

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novo cativo para a comunidade, e no caso das mulheres quando se casavam com chefes

ou militares. A tenacidade dessa organização social, fundada em bases democráticas,

estabelecia um ponto de tensão com a ordem vigente, rigidamente hierarquizada,

representando uma alternativa oposta aos interesses das elites (MOURA, 1988).

Para além da forte repressão investida contra essas experiências, o direito foi

uma ferramenta frequentemente acionada para inviabilizar projetos dessa natureza. Com

diferença de apenas 14 dias da proibição oficial do tráfico é publicada a lei que

normatizava o uso da terra no Império: a lei de terras de 18 de setembro de 1850. Essa

lei prescreveu que as terras devolutas no Império passariam a ser exclusivamente

adquiridas por meio de compra. Os artigos versavam sobre: a legitimidade das

sesmarias, não sendo estas enquadradas na categoria de “terras devolutas” (era tolerante,

inclusive, com os sesmeiros que não habitassem o imóvel); a indenização dos posseiros

expulsos, restrito ao ressarcimento de benfeitorias, que quase sempre não eram

reparadas por se tratar, na maioria das vezes, de uma pequena roça e criadouro de

animais para subsistência; o povoamento dos colonos estrangeiros, em substituição ao

trabalhador nacional, através do subsídio público que financiou a vinda de imigrantes

livres para ocuparem-se nos estabelecimentos agrícolas, administração pública, ou na

formação de colônias.

A legislação reflete uma preocupação do Império em criar condições para a

integração do contingente de trabalhadores trazidos. Segundo a lei, o governo estava

encarregado de enquadrar tais colonos em um posto de trabalho assim que

desembarcassem e previa a compra de terras e a introdução de indústria por

estrangeiros, sendo assegurada sua naturalização 2 anos após estabelecidos. Quanto ao

produto da venda das terras devolutas, seria exclusivamente aplicado na medição das

terras devolutas e na promoção do ingresso de colonos imigrantes (JACINO, 2008).

Ou seja, a Lei de Terras (1850) beneficiou sesmeiros respaldando-os legalmente

na apropriação das terras dos posseiros. Estes proprietários, que adquiriram tais terras

por meio de concessão, acumulavam a partir da exploração do trabalho escravo e

compravam mais “terras devolutas”. O fundo gerado dessa transação financiou a vinda

de imigrantes para trabalharem pra estes mesmos grandes fazendeiros em um tipo de

relação inédita dentro dos limites da antiga colônia: ao invés de vendidos, vendiam sua

força de trabalho. Apesar de compor a base da pirâmide social da nação capitalista que

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nascia, na condição de trabalhadores assalariados11 com quase nenhuma proteção

trabalhista, caracterizavam-se como trabalhadores livres e acessavam alguns direitos,

como a compra parcelada de propriedades. Ao trabalhador nacional restou a expulsão da

terra e o impedimento de acessar o trabalho assalariado, constituindo um enorme

exército de reserva de força de trabalho (JACINO, 2008).

Tendo em vista o contexto em que se forma o mercado de trabalho brasileiro é

possível observar que o processo de expropriação operado no Brasil difere do caso

europeu. Em ambos esse processo desenvolve-se tanto pela via violenta quanto pela via

legal. No caso inglês, segundo Bertaux (1977), o recrutamento ocorre, sobretudo nas

famílias camponesas desenraizadas pelos cercamentos das terras comunais, imposto

pela camada mais aburguesada da nobreza. O desenraizamento provoca a dependência

para aquisição de produtos antes obtidos pela agricultura familiar. No caso francês, a

apropriação se dá pela via legal, por meio da qual a camada rica do campesinato, aliada

à burguesia urbana, compravam terras e as revendiam. O acesso à terra foi viável apenas

para uma parcela de pequenos camponeses, enquanto os que nada puderam comprar

foram expulsos do campo. A expulsão ocorria também via endividamento no caso

daqueles que se viam obrigados a arrendar.

Como analisado, o desenraizamento dos trabalhadores brasileiros antecede o

recrutamento para o trabalho assalariado. Ele é anterior, inclusive, à chegada desses

trabalhadores à colônia, uma vez que o tráfico transatlântico de escravos é alimentado

pelo sequestro de pessoas e famílias no continente africano. Desde os primórdios da

colonização os povos originários são também arrancados de suas sociedades comunais

seja pelo extermínio, seja pela exploração do seu trabalho. É necessário, portanto, ter

em vista que os posseiros expulsos pelos grandes proprietários, com o aval da Lei de

11 Esse primeiro período é marcado por uma transição em que o assalariamento começa a se esboçar em

meio às contradições decorrentes do desprestígio das imigrações nos países europeus. A precariedade das

condições oferecidas pelos contratos de locação de serviços de colonos (regulamentados pela Lei nº 108, de 11 de outubro de 1837) originou uma contrapropaganda por parte dos governos europeus para

desestimular ou mesmo proibir a emigração para o Brasil. Os fazendeiros permaneceram por algum

tempo descrentes sobre a viabilidade da substituição do trabalho escravo pelo livre, uma vez que

consideravam o comportamento “pouco produtivo e arredio” do trabalhador livre nacional um entrave

para a “colonização pátria” (COSTA, 1998, p. 170). Em 1855, a urgência de mão-de-obra levou o debate

à assembleia legislativa provincial, no qual a lei de 13 de setembro de 1830, que regulava “os contratos de

serviços de brasileiros e estrangeiros” (COMPARATO, 2013, p. 19), foi criticada por um dos deputados e

fazendeiros por não obrigar o “trabalhador livre ocioso” a celebrar o contrato. Esse cenário provocou uma

revalorização momentânea do escravo e a dinamização do tráfico interprovincial (COSTA, 1998).

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Terras, são resultado de um longo processo de desenraizamento que atravessa toda a

história colonial.

Em razão desse contexto a expropriação dos trabalhadores nacionais configura

um cenário que aprofunda a condição de vulnerabilidade observada nos casos europeus

analisados por Bertaux (1979). No caso brasileiro grande parte dos expropriados não

foram absorvidos pelo mercado de trabalho incipiente, constituindo uma ampla franja

trabalhadores livres sem ocupação e sem terra. Diferente do caso europeu, o princípio

das linhagens mais subalternizadas não será composto por proletários, mas sim por um

exército de reserva de subproletários12, o qual foi impelido a ocupar os postos de

trabalho mais desprestigiados e desvalorizados socialmente (JACINO, 2008).

Entretanto, existem convergências no que tange à institucionalização do

monopólio da terra e o papel do Estado na estruturação dos lugares sociais. Daniel

Bertaux (1977) ao analisar a criação de monopólios na indústria e no comércio francês

na década de 1820 demonstra que a acumulação prévia da burguesia não é oriunda de

uma poupança, mas da acumulação de meios de produção expropriados. O Estado, na

compreensão do autor, é instrumento fundamental para a legitimação da pilhagem, pois

transfere, por meio da legalidade, a regulação do acesso à terra e da violência para a

estrutura jurídico-política. O acesso ao crédito (de fundos públicos ou privados), para o

financiamento dos projetos que atendam a seus interesses, vem da sua capacidade de

ação como classe e não dos capitais prévios. Ou seja, não é o enriquecimento que

propicia o monopólio e sim o monopólio que propicia o enriquecimento.

A classe proprietária do Império, em meados do século XIX, atuou de maneira

similar ao promulgar a lei que restringiu o acesso à terra e autorizou a importação de

trabalhadores imigrantes com fundos do tesouro nacional. Essa medida contemplou, em

alguma medida, todos os setores das elites, pois se antecipou a abolição que figurava

cada vez mais no horizonte daquela classe como futuro inevitável, preservando seus

privilégios e cerceando a possibilidade de um desfecho mais democrático e alinhado

com as reivindicações dos rebeldes (MOURA, 1988; JACINO, 2008; TIEDE, 2015).

12 Subproletários são aqueles que “oferecem a sua força de trabalho no mercado sem encontrar quem

esteja disposto a adquiri‑la por um preço que assegure sua reprodução em condições normais” (SINGER,

1981, p.22)

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No entanto, as elites locais brasileiras estavam marcadas pela supracitada

posição de dependência político-econômica e pelas pressões internas de resistência dos

escravizados. Essa dinâmica faz com que o estatuto colonial, que ainda se fazia presente

nas relações do contexto pós-independência, entrasse em confronto com os interesses de

parte da classe senhorial. Esta, sufocada pelo escravismo e pela ordem patrimonialista

expande suas atividades para o alto comércio (especialmente aquele ligado à

exportação/importação) e se engaja na organização de um Estado nacional

predominantemente urbano. É esta fração dos proprietários, altamente heterogênea e

fluida, que formará a burguesia nacional, unificada pela reação ao regime escravista e

pelo anseio de uma ordem social competitiva (FERNANDES, 1976).

Ainda na monarquia constitucional, este mesmo grupo, insatisfeito com a lógica

colonial, introduziu, segundo Fernandes (1976), de maneira tímida e dispersa a noção de

investimento, inovação e empreendedorismo, mas foi a partir da conformação do Estado

Nacional que passou impulsionar decisivamente um projeto de Nação Moderna em que

esses motes fossem os norteadores da ampla reorganização, que abrangeria a economia,

a sociedade e o Estado. A reelaboração dos valores sociais com base em interesses

imediatos e remotos propicia algum acúmulo de convergências e um relativo apoio

mútuo que aglutina esses atores sociais.

Assim sendo, o ideal da revolução burguesa no Brasil, para Florestan Fernandes

(1976) não se pretendia uma aplicação anacrônica do passado europeu. A implantação

de um projeto de civilização moderna no Brasil se assenta em um processo complexo de

absorção do padrão estrutural escravista em um contexto de tendência à universalização

do trabalho assalariado. É por isso autêntico em relação a países de capitalismo central,

pois agrega elementos revolucionários em termos de racionalização da sociedade

patrimonialista com elementos conservadores quanto à composição do poder.

As bases psicoculturais e políticas que sustentam as transformações no quadro

valorativo que acompanha esse processo são elaboradas em conformidade com os

interesses das elites locais. A leitura dos ideais liberais feita pelas elites remete a uma

ideologia de emancipação dos fazendeiros no que se refere às limitações da condição de

colônia e ao devir da construção de um país em que as classes dominantes fossem

nativas. O elemento senhorial se metamorfoseia para o cidadão e os privilégios se

transformam em fonte de solidariedade política (ibidem).

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A formação de um Estado nacional cumpre papel central na burocratização da

dominação patrimonialista e na manutenção do prestígio senhorial em modelos

racionais. A integração social fica condicionada a uma significação excludente de

cidadania em que as garantias sociais são restritas às classes superiores. Princípios

liberais fundem-se a símbolos e valores sociais difundidos pela tradição patrimonialista

na discriminação entre “gente de prol” e “ralés” (FERNANDES, 1976, p. 84).

Branqueamento e disputas por um projeto de Nação

Apreende-se por meio da bibliografia analisada que os processos de clivagem

foram, desde a invasão do Brasil por portugueses, reforçados pelo ideal de

branqueamento, o qual remonta referências simbólicas anteriores à própria noção de

raça, e que foi historicamente reelaborada pelo modelo de produção escravista. A

interpretação racializada do mundo foi um importante eixo de argumentação e

legitimação do uso da força de trabalho africana escravizada e instrumento de

manutenção da ordem senhorial no Brasil. Essa ideologia irá operar como nexo

valorativo, uma vez mais, nos discursos abolicionistas no sentido de apresentar uma

saída controlada para o “problema racial”, como se verá mais adiante.

Hofbauer (2003), antropólogo brasileiro, destaca que a noção de “branco” e

“negro” estiveram carregadas de conotações morais e religiosas desde os mais antigos

registros das línguas indo-europeias, nas quais o branco se apresenta como

representação do bem e do divino, enquanto o negro estava associado às trevas e ao

diabólico. Na Península Ibérica, marcada pelas Cruzadas, as diferenças fenotípicas eram

interpretadas em função do pertencimento religioso, não remetendo necessariamente à

ascendência africana.

Segundo Jordan (1968) é possível observar a partir da interpretação do Velho

Testamento pelos escritos exegéticos rabínicos, recuperados pelos árabes-muçulmanos

em um contexto de escravidão do povo sub-saariano, o uso da palavra “escravo”

vinculada à cor de pele escura. A estória da maldição de Cannaã, como castigo imposto

por Noé pela imoralidade de seu filho Ham, tornando-o escravo de seus irmãos, não

menciona nos textos originais caracteres físicos. No entanto, é ressignificada pelos

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conquistadores islâmicos e posteriormente adotada pelos cristãos ibéricos para justificar

o tráfico de pessoas no Atlântico. (HOFBAUER, 2003)

Essa significação fica evidente na mudança de classificação das populações

originárias da América por parte dos jesuítas, que, segundo Hofbauer (2013), em um

primeiro contato denominam o indígena como “negro”, considerando aceitável a sua

exploração, mas abandona e abomina tal rotulação quando o abastecimento de força de

trabalho africana está suficientemente consolidado na colônia.

Em sua obra A herança africana em Portugal (2007), a historiadora portuguesa

Isabel Castro Henriques cita um dos primeiros registros escritos da representação

estereotipada do africano negro na Península Ibérica data da segunda metade do século

XIII. A compilação de cantigas do Rei Afonso X, filho de Fernando III13, organizada

por Manuel Rodrigues Lapa, é um documento que faz referência a diversas atividades

desempenhadas pelos escravos à época. Em um de seus poemas associa adjetivos

pejorativos e animalescos a características fenotípicas atribuídas às mulheres negras:

Não quero eu donzela feia

Que ante a minha porta peida

Não quero eu donzela feia

E negra como carvão

Que ante a minha porta peida

Nem faça isso como sisão [ave pernalta]

Não quero e donzela feia

E peluda como cão Não faça como alermã [planta associada à feitiçaria que exala mau cheiro quando

queimada]

Não quero eu donzela feia

Velha de má cor.

Que ante a minha porta peida

Nem me faça ainda pior (HENRIQUES, 2007, p. 25).

Para um continente tomado pelo “pecado” e pela “escuridão”, como enunciado

pelo jesuíta Antônio Vieira (1940, apud HOFBAUER, 2003, p. 72), o sequestro de

pessoas para serem escravizadas em terras americanas era entendido como um ato

salvacionista. O batismo é o certificado de integração junto ao povo cristão, onde o

trabalho forçado em vida seria compensando pela salvação após a morte. A

possibilidade de alcançar tal feito, aliada à estigmatização da cor negra como imoral,

gerava nas próprias vítimas a expectativa de “clareamento”.

13 Responsável pela consolidação da Reconquista do reino castelhano (HENRIQUES, 2007).

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É por meio dos estudos dos cientistas europeus do século XVIII que o conceito

de raça começa a ser gestado com base em critérios e métodos “físicos”, distanciando-se

dos dogmas religiosos e se aproximando da “racionalidade naturalista” 14. Nessa lógica,

as habilidades e a moral são percebidas como produto de fatores naturais externos, mas,

principalmente, como resultado de uma um legado biológico herdado pelo indivíduo. A

biologização da raça acompanha um cenário de consolidação do Estado de Direito nos

países europeus e EUA e se configurou como importante instrumento para a

institucionalização de relações sociais desiguais na definição dos incluídos e excluídos

da concepção de cidadania.

Todavia, é possível afirmar com base nas análises de Moura (1988) e Fernandes

(1976) que neste contexto internacional as elites brasileiras, embora fortemente

influenciadas pelas concepções raciais europeias, olham para sua própria condição de

nação emergente e projetam na produção científica um campo de disputa de interesses e

de distintas interpretações alicerçadas na experiência particular do modus operandi das

relações raciais na colônia.

A dinâmica colonial, no que diz respeito a essas relações, esteve inscrita em um

sistema no qual o poder senhorial infiltrava-se em todas as dimensões da vida social,

impondo uma rede de dependência e proteção que permitia ampla gerência sobre o

acesso aos status de privilégio por parte desse grupo. O núcleo proprietário-escravizado

foi, de acordo com os estudos realizados por Hofbauer (2003), frequentemente, palco de

uma manipulação das noções de cor, onde as características atribuídas às categorias

“branco”, “negro” e graduações cromáticas intermediárias, são arbitrariamente alteradas

de acordo com as conveniências do senhor.

Os argumentos de inclusão e exclusão orientavam-se também por critérios de

status e dinheiro, fundindo a aspiração pelo branqueamento ao status social, e abrindo a

possibilidade de trânsito entre as categorias racializadas. A expectativa pela alforria

ganhava singular significação àqueles que viam nela a oportunidade de superar a

condição de escravo e ascender à de livre (expressão correlata ao termo “branco”),

pacificando o convívio da colônia, já que era obtida, antes de tudo, por meio do

consentimento do senhor.

14 Buffon (1839, apud. Hofbauer, 2003, p. 74) foi um dos precursores dessa orientação e defendia que a

coloração mais escura da pele era um acidente reversível provocado pelo ambiente.

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Partindo-se desse arcabouço político-cultural a ciência se apresenta como um

espaço no qual intelectuais divergem e concorrem para apresentar suas apreciações e

programas políticos concretos acerca do “problema étnico-racial” e dos caminhos

possíveis para a construção de um povo afinado com os interesses da nação que se

pretende formar. Referências do pensamento social brasileiro assumem papel relevante

na elaboração do projeto de Brasil Moderno, os quais, apesar das discordâncias e

rupturas, aproximavam-se em um ponto fundamental: na defesa da correspondência

entre o elemento “branco” e a ideia de progresso em detrimento do “escravo negro”

como sinônimo de atraso.

No início do século XIX foram pouco ecoadas vozes como a de José Bonifácio

de Andrada e Silva (1823), precursor na afirmação da escravidão como elemento

inibidor do desenvolvimento da nação e de um projeto político de importação de força

de trabalho estrangeira e branca. Intervinha a partir de sua posição política como

ministro dos negócios estrangeiros, atuando na Assembleia Geral Constituinte, na

defesa de um caráter moral e religioso da abolição. Andrada e Silva (1823) foi um dos

primeiros a argumentar a inviabilidade da industrialização em uma economia assentada

no modelo escravista de produção e a propor uma abolição gradual concomitante à

assimilação cristã inspirada na “sábia política de não ter inimigos caseiros” (1823, p.

10).

Joaquim Nabuco (2011), diplomata do Império, será notado proferindo a mesma

máxima de incompatibilidade da escravidão com a modernização e da conceituação do

“branco” como chave para o espírito progressista, mas seu discurso se inseriu em um

contexto de efetiva proibição do tráfico legal onde os senhores de escravos se

depararam com a necessidade de repensar a maneira como a produção estava

organizada.

O cenário colocava a urgência de uma transição menos lenta do que aquela

proposta por Bonifácio, mas o contingente populacional de indivíduos “não-brancos”

expressivamente superior ao de “brancos” exigia cautela. Uma vez mais o projeto

imigrantista se coloca como alternativa para o controlado processo de modernização. O

abolicionismo idealizado pelos brancos não combatia a escravidão em si, mas a

anomalia de uma sociedade que se pretendia nação. Vale lembrar que Nabuco é, antes

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mesmo de Gilberto Freyre, um entusiasta das relações coloniais “harmoniosas” e da

miscigenação entre as raças como uma saída possível para o país.

No trabalho Percursos do branqueamento: Família Prado e Imigração em São

Paulo, Tabita Tiede Lopes (2015) parte de uma proposição de Clóvis Moura (1988), em

Sociologia do Negro Brasileiro, sobre o papel dessa influente família na elaboração e

execução da política imigrantista subsidiada com recursos públicos, para investigar e

traçar os caminhos percorridos pela noção racializada de branqueamento e sua

funcionalidade para o projeto privado de importação de força de trabalho estrangeira,

nomeada por Moura como o segundo tráfico. A autora constata que “o imigrantismo” é

a “solução branca para o problema negro”:

Em suas políticas concretizadas ou imaginadas, de uma forma ou de outra,

todos os caminhos levam ao branqueamento. Se a respeito das teorias

racialistas e sua aplicação no Brasil há divergências e confusões, com relação

à imigração não paira nenhuma dúvida: os imigrantes (europeus) são bem-

vindos e considerados necessários ao progresso e melhoramento do país. (...)

o imigrantismo é a principal estratégia para a qual convergem os entusiastas

do branqueamento no Brasil (LOPES, 2015, p.29).

Ainda em sua obra supracitada, Moura (1988) revela a quem servem os

estereótipos depreciativos referidos aos saberes africanos que reforçam a ardilosa

narrativa de inaptidão da população escravizada. É ancorado nesses discursos, de uma

suposta carência de força de trabalho qualificada, que o programa imigrantista resguarda

o processo de introdução de trabalhadores europeus nos setores mais dinâmicos da

economia e a marginalização da população negra nas mais desvalorizadas ocupações.

O segundo tráfico (MOURA, 1988) é também corroborado pela “síndrome do

medo” senhorial (1988, p. 233) que se agravou em face da desproporção populacional

desfavorável às elites e das lutas protagonizadas pela população cativa. A classe

dirigente manifestou sua resistência a uma abolição respaldada pelos ideais liberais de

Nabuco (2000), levantando diversas ressalvas sobre a introdução do princípio de

cidadania indiscriminada em uma população predominantemente “descendente de povos

inferiores”. Como colocado anteriormente, os cientistas, vinculados a diferentes

interesses dessa nova classe, que se constitui em sua heterogeneidade, oscilam entre

inclinações mais liberais/legalistas e pressupostos das ciências naturais.

Por conseguinte, o médico Nina Rodrigues (1982), na viragem do século XIX

para o XX, posiciona-se assumindo esse viés biológico-essencialista em sua elaboração

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para as conjecturas sobre o devir da nação recém-nascida. Em sua obra Os africanos no

Brasil, manifesta sua preocupação sobre os rumos que a mestiçagem impõe ao país.

Segundo o autor, ainda que se devam reconhecer as contribuições dos povos africanos

em seus diversos níveis de evolução para a cultura e para a economia brasileiras, esse

fenômeno conduziria a uma “involução africanizante” (TIEDE, 2015, p. 17), através do

qual o enegrecimento da população implicaria em um atraso da nação e a uma

degeneração inevitável.

O autor propunha uma racionalização do sistema penal em bases científicas,

através do qual a normatização considerasse os estágios de cada “raça”. Avaliava

equivocado, portanto, o tratamento igual para criminosos com “organisação physio-

psychologica” (RODRIGUES, 1957, p. 85) tão diversa. O direito deveria, nesse sentido,

considerar as “evidências” sobre os níveis de maturidade do intelecto de indivíduos em

diferentes períodos evolutivos. Pouco esperançoso sobre a tendência ao branqueamento

da nação, debruçava-se com maior atenção sobre as “diferenças raciais” e permaneceu

relativamente isolado em relação àqueles que prognosticavam o “futuro branco”.

Em “Os Sertões” (1995), publicado nesse mesmo período, Euclydes da Cunha,

em sua observação sobre a campanha de Canudos, faz uma análise dúbia no que diz

respeito à mestiçagem. Por um lado, reitera que os cruzamentos inter-raciais retardam a

marcha para a civilização devido aos influxos de raças em “fases intermediárias”, sendo

os retardatários extintos pela força inexorável da História. Por outro, denuncia um

subjetivismo na superestima dos resultados do caldeamento das três raças na definição

de uma etnia hegemônica (seja ela a branca, preta, indígena ou mestiça).

Sua abordagem determinista sobre a ação do meio físico irá sustentar a tese da

existência de dois brasis. Esta abordagem se situa em um momento em que a elite

paulista procura fundar uma identidade positiva:

A raça inferior, o selvagem bronco, domina-o [o português]; aliado ao meio

vence-o, esmaga-o, anula-o na concorrência formidável ao impaludismo, ao

hepatismo, às pirexias esgotantes, às canículas abrasadoras, e aos alagadiços

maleitosos. Isto não acontece em grande parte do Brasil central e em todos os

lugares do Sul (CUNHA, p. 93, 1995).

Oliveira Viana (1934) empenhou-se em diferenciar a psicologia da raça de

psicologia da etnia, advertindo que a primeira restringe-se ao aspecto psicofísico,

enquanto a segunda se atém à mentalidade coletiva de um povo/nacionalidade, que pode

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ser composto por diversas raças, somado a agentes externos como clima, economia, etc.

O autor condenava a caracterização de grupos mestiços baseada em médias abstratas,

pois alertava que a falta de rigor no estudo da composição dos tipos levaria a uma

incógnita, que pouco se sabia a respeito, incorrendo o risco de ocultar arranjos em que a

predominância de “temperamentos instáveis” causariam o retrocesso evolutivo (1934, p.

35).

Sobre a tipificação das raças, Viana (1934) associa o negro a características que

se opõem à noção de razão: sensitivo, fantasioso, colérico etc. justificando sua

preocupação em colocar a ciência, mais especificamente da antropologia, a serviço de

um controle da “seleção eugênica”. Sua obra Raça e Assimilação é propositiva, nesse

sentido, pois sugere um criterioso mapeamento dos “tipos reais” de raça (e não as

“médias abstratas” do caldeamento), sua exposição à suposta capacidade degenerativa

do clima tropical, às taxas de “nupcialidade” e “fusibilidade”, em prol dos “imperativos

da formação da nossa nacionalidade” (1934, p. 48).

A formação do racismo brasileiro, compreende-se, é permeada por estas

múltiplas nuances do pensamento da elite branca. Todavia, é possível afirmar que,

dentre as diversas correntes, sobressaem-se àquelas produções alinhadas à teoria da

miscigenação como solução para o problema étnico e para o projeto de progresso e

modernidade nacional, relegando autores como Nina Rodrigues a papéis secundários.

Abrasileirar e assimilar: Gilberto Freyre e o mito do bom senhor

É digna de nota a conclusão a que chega João Baptista Lacerda (1912), que, tal

como Nina Rodrigues (1957), é também médico e adepto das premissas naturalistas.

Contudo, acreditava ser possível “manipular” as “leis da natureza” de modo que o ato

de civilizar, o qual para ele equivalia a catequizar, fosse capaz de interceder pelos

“povos inferiores”, livrando-os de sua extinção (LACERDA, 1912, p. 48-51).

Essa concepção está alinhada com seu argumento acerca dos “cruzamentos”

inter-raciais como caminho para a reversão para se alcançar o branco. No Congresso

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Universal das Raças15, comemora-se o potencial civilizatório do Brasil devido à

presença europeia promovida pela empresa imigrantista e pela seleção eugênica, própria

da miscigenação entre brancos e negros. Segundo Lacerda (1912), o clareamento da

população estava dado e a raça descendente dos povos africanos seria gradualmente

absorvida pelo elemento nacional.

O autor defendeu também o “mito do bom senhor” que será posteriormente

retomado por Gilberto Freyre. Encontrava na especulação de um país com poucos

conflitos uma forma de propagandear as “condições de segurança” ideais para o

investidor externo e para a força de trabalho branca (LACERDA, 1911, p. 27).

O tema da miscigenação, por sua vez, ganha inédita proeminência na obra de

Freyre (1994), Casa Grande e Senzala, na qual se faz notar desde o prefácio a tese do

caldeamento como elemento corretor do sentido aristocrático e desigual que a

monocultura latifundiária promovia. Entusiasmado com o que julgava ser um poderoso

meio de “democratização social” (1994, p. l) e facilitador de uma “dispersão da

herança” e do fracionamento do latifúndio, acabou por romantizar a violação dos corpos

das mulheres escravizadas e superestimar a posição ocupada pelo filho mestiço

ilegítimo na correlação de forças da era senhorial.

Sua tese sobre o acesso mais equânimo à propriedade privada no Brasil em razão

da miscigenação nos parece falsa. Essa controvérsia pode ser elucidada pela já

mencionada Lei nº601/1850, conhecida como Lei de Terras, que normatizou a

obstrução do acesso às chamadas “terras devolutas” para o ex-cativo, privando a

população negra de extrair da agricultura familiar a sua subsistência. Esta lei em

conjunto com as políticas de importação de força de trabalho estrangeira para as áreas

mais prósperas da economia empurra a população recém-liberta para os estratos mais

vulneráveis da sociedade.

15 “O ano de 2011 marcou o centenário de um dos eventos científicos mais emblemáticos e significativos

na história da antropologia (em especial da antropologia física) e do debate internacional sobre nação,

raça e relações inter-raciais no início do século XX. Trata-se do aniversário do Primeiro Congresso

Universal de Raças (First Universal Races Congress), realizado em Londres nos dias 26 a 29 de julho de

1911, promovido no contexto de expansão da política imperialista europeia e das discussões sobre a paz

mundial. Amplamente divulgado no meio científico internacional, mas também entre políticos e ativistas

envolvidos com a questão racial e as relações entre o Ocidente e o Oriente, o congresso reuniu

representantes de mais de 50 países da Europa, América do Sul e do Norte, África e Ásia. O centenário do

congresso pode ser visto como uma oportunidade singular para analisar o significado histórico, político e

científico que o evento representou no conturbado cenário que antecedeu a Primeira Guerra Mundial

(1914-1918)” (SOUZA, SANTOS; 2012, p. 746).

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Ademais, Freyre busca na formação social e territorial de Portugal a justificação

para o fenômeno que ele nomeia como “colonização híbrida” (1994, p. 5). Para ele

existe uma pré-disposição do português à adaptação física e social e atribui isso a sua

capacidade de “mobilidade”, “aclimatabilidade” e “miscibilidade” (idem, p. 8). Nessa

ordem, o elemento colonizador teria: inclinação para o domínio imperialista mesmo

diante do contingente medíocre; aptidão para adaptar-se ao clima tropical devido às

temperaturas do mediterrâneo; e propensão a misturar-se com as “mulheres de cor” ao

primeiro contato, garantindo a eficácia da colonização pela ampliação da prole

(FREYRE, 1994).

A originalidade de sua obra está em colocar sob suspeita a tese biologicista da

raça, amplamente adotada pelos intelectuais que o antecederam, como já exposto

anteriormente. O autor questionou o caráter inato daquilo que entendia por “diferenças

mentais entre brancos e negros”, pois considerava um erro não observar que o fator

ambiental era também, em sua opinião, passível de ser transmitido pela hereditariedade.

Apoiado nessa reflexão repreende a posição da sociologia acusando-a de demasiado

alarmista em sua abordagem empenhada em apontar as “manchas da mestiçagem” e os

efeitos do clima, quando esta deveria, segundo ele, voltar-se para as “causas sociais

suscetíveis de controle e retificação” (FREYRE, 1994, p. 35).

No intuito de fazer um estudo sobre a “eugenia do brasileiro” discorre sobre o

comportamento do escravizado na vida moral da colônia e encontra em Joaquim

Nabuco a caracterização que julga apropriada para explicar a contribuição da população

negra: “Em primeiro lugar o mau elemento da população não foi a raça negra, mas essa

raça reduzida ao cativeiro” (FREYRE, 1994, p.314). Seguindo esta linha de raciocínio

constrói uma imagem do negro como um não-sujeito, a qual definia como um

“deformado pela escravidão” (FREYRE, 1994, p. 316). O autor descreve a participação

do negro como sendo passiva e mecânica dentro de uma estrutura que o impele a

imoralidade.

Com base em Moll (1924) desenvolve a ideia da dimensão social também no que

diz respeito ao “impulso sexual” e infere que a relação entre o colonizador e a mulher

negra e indígena configura uma relação de sadismo, por parte do primeiro, e

masoquismo, pelas segundas. Segundo Freyre (1994), o modelo escravista propiciava

essa configuração devido a um contexto no qual o senhor estava “cercado por escravos e

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animais dóceis, induzindo-o a bestialidade e ao sadismo” e conclui dizendo que a

tradição liberal no país é, sobretudo, aparente, já que o “’povo brasileiro’ ainda goza é a

pressão sobre ele de um governo másculo e corajosamente autocrático”. (FREYRE,

1994, p. 51).

Não obstante, Kátia de Queiroz Matoso (1982) nos apresenta outro enfoque para

os aspectos sociopatológicos do sujeito escravizado ao fazer a “distinção entre o cativo

africano e o escravo brasileiro”:

Abre perspectivas para entender-se o negro, ao ser capturado na África, como

um ser embutido em uma cultura, e os mecanismos de defesa ao ser

incorporado a uma sociedade estranha na qual seus padrões culturais são

inteiramente negados e ele é engastado como coisa. Destacando a sobrevivência, no escravo, da sua interioridade como ser, a autora demonstra

como o escravo pode atuar também como agente ativo do processo de

dinâmica social, pois não perdeu a sua interioridade humana (MATOSO,

1982, p. 48)

A “família colonial” era apontada por Freyre (1994) como o principal fator

colonizador e considerada a unidade produtiva que, com base na exploração agrícola

estável, teria tornado viável o povoamento regular. No entanto, essa suposta família, que

nada mais era do que a conflituosa relação entre Casa Grande e Senzala, possuía um

eixo através do qual a valorização da propriedade e a manutenção deste povoamento se

faziam possíveis: “a parte mais produtiva da propriedade escrava é o ventre gerador”

(NABUCO, 2000, p. 61).

O apagamento da subjetividade dessas mulheres por tais intelectuais não se

limita a animalização que decorre da redução da sua imagem a meras reprodutoras da

mais valiosa mercadoria do modelo de produção escravista. Essa desumanização pode

ser observada também na ideia de uma “domesticação” pautada na absorção de signos e

comportamentos racializados associados ao “branco” e que proporcionariam uma

ascensão a posições presumidamente menos desprestigiadas.

O administrador colonial português Luís Vaía Monteiro, citado por Freyre

(1994) retratou as mulheres Fulás e Minas não só como uma importante fonte de

riqueza, mas também como aquelas preferidas para amantes pelos colonizadores, devido

a sua “familiaridade” com a cultura dos brancos e sua pele mais clara. Ele descreve as

primeiras famílias mineiras formadas pela união do colonizador com “negras Minas,

vindas da África como escravas, mas aqui elevadas à condição ‘de donas de casa’”.

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Todavia assume a permanência destas na posição de escravas mesmo quando viviam em

mancebia. (FREYRE, 1994, p. 306).

Essas contradições se expressavam na maneira como o trabalho estava

organizado. Para esse autor, o deslocamento de trabalhadoras escravizadas da senzala

para a casa grande era percebida como uma “promoção” destinada àquelas que se

fizessem destacar pelas “qualidades físicas e morais”. Estariam mais aptas para o

“serviço doméstico mais fino” aquelas “menos boçais”, priorizando-se as cristianizadas,

as quais, segundo o autor, eram absorvidas pela família patriarcal como “espécie de

parentes pobres” (idem, p. 352).

Em direção oposta estão as conclusões de Sueli Carneiro e Thereza Santos

(1985), que se apoiam em trabalho de Lélia Gonzalez, não publicado, para afirmar que

não houve abrandamento do trabalho da mulher negra no período colonial. Muito pelo

contrário, avançam a partir da contribuição da autora, como se pode notar no trecho

abaixo.

Sua condição biológica propiciou apenas um alargamento nos níveis de

exploração a que estava submetido o negro em geral, já que enquanto fêmea

podia-se extrair-se ainda o leite para amamentar os futuros opressores e

aliviar as taras sexuais dos sinhôs (CARNEIRO, SANTOS, 1985, p. 42).

Ainda sobre o processo de ladinização16, Freyre (1994) se opõe à tese de Nina

Rodrigues sobre a inaptidão da raça negra para apreender as abstrações do cristianismo

e considera a catequese a principal ação educativa e moralizadora no sentido do

“abrasileiramento” dos africanos recém-chegados, seguida pela senzala e pela casa

grande, as quais funcionavam como uma escola de “desafricanização” onde o convívio

com os veteranos os iniciava nos costumes, língua, religião, etc (FREYRE, 1994, p.

357).

A historiadora e africanista portuguesa Isabel Castro Henriques (2011), em sua

obra A Herança africana em Portugal: séculos XV-XX, pontua elementos sócio-

culturais africanos que foram incorporados pela sociedade portuguesa a partir da

chegada do primeiro grande carregamento de escravizados em 1844, em Lagos. Em uma

análise estritamente cultural, na qual a autora afirma que os alicerces africanos são o

16 Ladino era a designação dada ao negro escravizado aculturado, “abrasileirado”, que, na maioria das

vezes falava português. É o contrário de boçal, nomenclatura usada para referir escravos resistentes a

aculturação ou recém-chegados de sua terra de origem.

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parentesco, a religião, a dança e a música, deixando de mencionar a importância das

técnicas e tecnologias, dentre outros aspectos sociais, econômicos e políticos

apropriados pelos colonizadores, interessam-nos o capítulo Estratégias africanas e

respostas portuguesas: as mestiçagens culturais.

Henriques (2011) pontua que a adesão africana às práticas portuguesas e a

criação de cumplicidades e sincretismos “traduzem uma maneira inteligente”

encontrada por esses povos para sobreviverem ao que ela nomeia como “quadro de

portugalização” (2009, p.136). Como manifestação dessa “integração” apresenta o lugar

ocupado pelos “mulatos” na estratificação social desde o século XV. Segundo a autora,

a convivência entre proprietários e escravos no espaço doméstico possibilitava uma

“intimidade” que favorecia o apetite libidinoso dos primeiros, e, por consequência, a

multiplicação dos “mulatos”, os quais teriam o acesso à mobilidade social facilitado

pelos pais brancos. É possível notar que a recente obra é ainda fortemente influenciada

pelo pensamento de Freyre (ainda que caracterizando o contexto da metrópole), pois

defende que a posição “transversal” no “mulato” teria eliminado o estigma somático

enfrentado pelos povos africanos na sociedade portuguesa (ibidem, p. 189).

Em função desta “integração”, Freyre julgava ser a colônia um ambiente

harmônico, no qual estas perversões seriam neutralizadas pelo equilíbrio entre a

“emoção” e a “ciência”, explicitamente atribuída por ele à Europa, e chega a um

diagnóstico condescendente com o modelo de produção organizado pelo latifúndio

escravista:

Teria sido mesmo “um crime escravizar o negro e levá-lo à América?”

pergunta Oliveira Martins. Para alguns publicistas foi um erro e enorme. Mas

nenhum nos disse até hoje que outro método de suprir as necessidades do

trabalho poderia ter adotado o colonizador português no Brasil. Apenas

Varnhagen, criticando o caráter latifundiário e escravocrata dessa

colonização, lamenta não se ter seguido entre nós o sistema das pequenas

doações (...). Mas essas doações pequenas teriam dado resultado em país,

como o Brasil, de clima áspero para o europeu e grandes extensões de terra?

E de onde viria toda a gente que Varnhagen supôs capaz da fundação de lavouras em meio tão diverso do europeu? Terra de insetos devastadores, de

secas, inundações (...). Tenhamos a honestidade de reconhecer que só a

colonização latifundiária e escravocrata teria sido capaz de resistir aos

obstáculos enormes que se levantaram à civilização do Brasil pelo europeu.

Só a casa-grande e a senzala (FREYRE, 1994, p. 243).

Nota-se que a dominação colonialista é presumida e não questionada. O

latifúndio surgiria, segundo o autor, como única saída possível e legítima para

superação dos “obstáculos enormes que se levantaram à civilização do Brasil pelo

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europeu”. O elemento nativo é descartado como protagonista desse projeto, plenamente

realizável apenas pelas mãos do europeu, detentor do saber-fazer necessário para inserir

esse imenso território nos trilhos da história. Nesse sentido, é quase automática a

naturalização e a permissividade com os meios necessários para a execução deste

empreendimento.

A tese do excepcionalismo lusitano

A memória do colonialismo português, segundo Mamadou Ba (2018)17, é

historicamente disputada e oficialmente monopolizada pelo discurso de uma aparente

benevolência moral em comparação com outras empresas imperialistas do colonialismo

europeu. O autor nomeia como excepecionalismo lusitano essa doutrina que

hegemoniza a identidade cultural portuguesa e tenta permanente amenizar a violência

do legado colonial.

Em estudo recente sobre a questão racial nos cinco livros didáticos de História

mais vendidos em Portugal (particularmente no 3º ciclo – crianças de 12 a 15 anos),

Araújo e Maeso (2013) identificaram que são ainda recorrentes as representações do

“colonialismo português brando” e das “relações harmoniosas” entre a população cativa

e os colonos. A análise do material conduziu as autoras a duas perspectivas

complementares: “a) a naturalização do sistema de escravatura e a objetificação da

figura do escravo; b) a inscrição da escravatura numa abordagem individualizadora e

moralizadora que garante o triunfo do humanismo igualitário” (ARAUJO, MAESO,

2013, p. 154).

A narrativa dos livros analisados indicava a escravatura como uma fatalidade do

contexto de expansão europeia e portuguesa. O tráfico de pessoas surgiria, portanto,

como uma necessidade e não como escolha. Dentro dessa lógica, os termos

“importados”, “reexportados”, usados nestes livros para referenciar os trabalhadores

escravizados, expressam a naturalização de uma visão que percebe essas pessoas como

mercadorias que circulavam passivamente dentro da estrutura econômica colonial. As

autoras destacam ainda que o discurso dominante é marcado pelo apelo a uma noção

17 Ba, Mamadou. A obsessão pela absolvição histórica. Expresso, 2018. Disponível em

https://entreasbrumasdamemoria.blogspot.com.br/2018/01/a-obsessao-pela-absolvicao-

historica.html?spref=fb último acesso em 05/05/2018.

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universal da escravatura. Recorre-se frequentemente a exemplos de regiões e povos (por

exemplo, os árabes), os quais adotaram a escravatura antes do império português, sem,

contudo, situar as especificidades históricas, com o intuito partilhar a “culpa original”

(ARAUJO, MAESO, 2013, p. 155).

Tal percepção é aqui compartilhada se analisada à luz das duas principais

mostras do circuito de exposições “Testemunhos da Escravatura. Memória africana”,

com mais de 200 peças e documentos sobre o tráfico de escravos, espalhadas por 43

instituições de Lisboa18. “Prisão para Escravos”, no Museu Nacional de Etnologia, e

“Um museu. Tantas coleções!”, no Museu Nacional de Arqueologia, surpreenderam

pelo tímido porte das instalações quando comparadas com outras exposições dos

museus19.

A instalação no Museu Nacional de Arqueologia exibia trechos da obra

“Escravos em Portugal” de Manuel Heleno, diretor do Museu de Etnologia até os anos

1960 e Professor Catedrático da Universidade de Lisboa, onde lecionava, entre outras,

as disciplinas “História de Portugal” e “História dos Descobrimentos e Colonização

Portuguesa”. Dentre os trechos apresentados, destaco os últimos parágrafos do capítulo

de Conclusão:

Mostra o estudo que acabamos de fazer que a escravidão na Península Ibérica se

manteve da Antiguidade aos tempos modernos, não sendo dêstes (...). Também não foi

instituição privativa de Portugal ou da Espanha, antes existiu na maior parte da Europa,

tanto na Alta como na Baixa Idade Média (...). Também não foram os Portugueses os

iniciadores do tráfico de negros. Ele foi conhecido na antiguidade, existiu entre os

árabes peninsulares, na Andalusia no sec. XIV e até na própria África os nossos

navegadores o foram encontrar. Podemos portanto, concluindo, afirmar que os

Portugueses nem criaram a escravidão moderna, nem a introduziram em África. Em

guerra com os mouros, sujeitaram os Azenegues, parente daqueles, à dura lei da mesma, mas logo que chegaram ao país dos Jalofos puseram de lado a violência e procuraram

comerciar e convertê-los pacificamente. O aprisionamento dos negros obedecia à

necessidade de obter informações e de lhes ensinar português, para utilizar como

interpretes (HELENO, 1933, p.179).

O material era reproduzido em painéis desacompanhados de uma leitura crítica

dos historiadores e da organização da exposição. Dessa forma acabava por reforçar a

tentativa de atenuar e naturalizar a responsabilidade do Império Português sobre a

tortura, exploração e marginalização de um imenso contingente de pessoas. Essa prática

18 Realizada no mês de abril de 2017. 19 No Museu Nacional de Arqueologia a impressão é de que o espaço havia sido improvisado. Peças de

indumentária e adornos, como miçangas, estavam dispostas logo ao lado de objetos de tortura, como

grilhões, em um espaço de transição entre as exposições permanentes.

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pode ser observada também em monumentos e datas comemorativas. Em um artigo

escrito em 201720 na véspera do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades

Portuguesas, 10 de Junho, proclamado Dia da Raça pelo Estado Novo, a investigadora

Maria Marta Araújo, do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra,

relembrou que, embora a designação “Dia da Raça” tenha sido abandonada a partir de

1978, o monumento inaugurado em 10 de junho de 1971, na “Praça dos Heróis do

Ultramar”, em Coimbra, continua intacto.

Trata-se, segundo descrição oficial, de uma estátua que “representa um soldado

com a indumentária da época, numa posição que denuncia estar a caminhar, segura na

mão direita uma arma, enquanto com a esquerda ampara uma criança de origem africana

que tem sobre os ombros”. O artigo desvela o racismo ocultado pela imagem romântica

do aventureiro do além-mar e a falácia da mensagem da missão civilizadora,

representados nesse monumento pela criança negra, semi-nua, nos braços do herói

português paternal (ARAÚJO, 2017).

É citada ainda neste artigo a Exposição “Racismo e Cidadania”, instalada no

porão do imponente “Padrão dos Descobrimentos”, um dos principais monumentos do

país em homenagem aos navegadores do Infante D. Henrique21. A exposição organizada

por Francisco Bethencourt foi retratada pelo jornal Público, de grande circulação em

Portugal, como “Uma exposição sobre racismo em que o comissário é um optimista”22

No entanto, constata-se que o otimismo não tem como motivação o

reconhecimento dos processos de resistência dos colonizados, uma vez que as

iniciativas protagonizadas por estes são apresentadas apenas a partir das lutas de

independência. A euforia é causada por uma suposta caducidade do racismo

institucional com o fim da ditadura. O último painel exibe, na nossa leitura em tom de

remissão, a lei que normatiza a igualdade formal entre os indivíduos no país: a lei nº

134/99 “proíbe as discriminações por motivos baseados na raça, cor, nacionalidade ou

origem étnica”.

20 Disponível em https://www.publico.pt/2017/06/09/sociedade/opiniao/dia-da-raca-com-final-feliz-1774916 21 Filho de D. João I e entusiasta das navegações foi a figura central da Coroa Portuguesa nas expedições

de conquista dos novos territórios e na promoção do tráfico de escravos, recebendo os primeiros navios

com pessoas sequestradas na Costa Algarviana, em 1441. Disponível em

http://testemunhosdaescravatura.pt/pt/pessoas/figuras/pessoa-exemplo-1423-1487 22 Disponível em https://www.publico.pt/2017/05/08/culturaipsilon/noticia/esta-e-uma-exposicao-sobre-o-

racismo-em-que-o-comissario-e-um-optimista-1771243

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O dirigente do movimento SOS Racismo em Portugal, Mamadou Ba, no artigo

“A fábula de um país com racistas sem racismo” (2017), revela a atualidade da

propaganda do excepcionalismo lusitano, como ferramenta de idealização e legitimação

do legado colonial. Pontua como episódio simbólico a visita do Presidente da República

Marcelo Rebelo à Ilha de Goreé, Senegal, em abril deste ano, um importante entreposto

das rotas do tráfico do Atlântico. Nos últimos anos algumas figuras representativas de

Estados e instituições têm adotado a prática de, nesse local emblemático, reconhecer o

envolvimento destas na escravidão. Rebelo, contudo, optou por persistir no discurso

elaborado no sec. XIX, e popularizado no Estado Novo, de que a abolição partiu da

iniciativa do empreendedor escravocrata Marques de Pombal em 176123, corroborando a

tese do pioneirismo humanitário de Portugal. Esse discurso foi amplamente mobilizado

para legitimar o projeto imperial e responder às pressões de órgãos como a ONU24, em

um contexto em que a colonialidade perdia legitimidade.

Essa “disputa pela memória”, referida por Mamadou Ba, fica explícita no caso

do sítio arqueológico, conhecido como Poço dos Negros, em Lagos. Em 2009, foram

encontrados esqueletos de 155 pessoas no Vale da Gafaria, na região externa das

muralhas da cidade, em uma lixeira urbana. Um pequeno grupo era composto por

leprosos, mas a maior parte das ossadas pertencia a africanos. Os mais antigos datam do

intervalo 1430-1490 e os mais recentes do séc. XVII. Tratava-se do mais antigo

“cemitério” de escravos do mundo. As pesquisas identificaram fraturas que demonstram

a violência da qual eram vítimas e lesões que indicam longos períodos de desnutrição.

Morreram com menos de 40 anos de idade e na maioria das vezes tiveram seus corpos

descartados sem atender quaisquer regras de inumação. Nos casos em que se pôde

observar alguma técnica, reproduziam posições mortuárias africanas, que sugerem ter

sido sepultados por outros escravos.

23 “Como o mesmo marquês de Pombal, que, se é verdade que iniciou o longo processo abolicionista português, também criou, em 1755, a Companhia do Grão-Pará e Maranhão, que promoveu a introdução

de escravos de Bissau e Cacheu na Amazónia e, em 1756, a Companhia de Pernambuco e da Paraíba para

controlar o tráfico negreiro, sobretudo de Angola, para o Nordeste brasileiro”. Disponível em

https://www.dn.pt/portugal/interior/um-regresso-ao-passado-em-goree-nao-em-nosso-nome-

6228800.html 24 Diante das pressões internacionais no Estado Novo pela descolonização, o governo português recorreu

a uma manobra formal para se esquivar das exigências humanitárias. Valeu-se da revogação do “Acto

Colonial”, que transformava as “colônias” em “províncias ultramarinas”, para alegar que não haveria

mais o que ser descolonizado. (TOMÁS, 2017). Disponível em

https://www.publico.pt/2017/05/20/politica/noticia/descolonizacao-e-racismo-a-portuguesa-1772253

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Apesar da relevância histórica deste sítio arqueológico, as ossadas foram

removidas e armazenadas em um sótão de uma casa em Coimbra acessada

exclusivamente por estudiosos. Segundo a autarquia responsável os esqueletos não

serão expostos por se tratar de uma coleção “demasiado chocante”25. O terreno, em

Lagos, atualmente acomoda um estacionamento e um minigolfe. Destaque-se que na

atualidade o espaço está em franco processo de abandono, pois resume-se a um pequeno

canteiro sem qualquer proteção, com grama alta em toda extensão e com uma tímida

placa sinalizando o sítio arqueológico. Uma única fotografia de um dos esqueletos está

exposta no Museu da Escravatura (antigo Mercado de Escravos) da cidade, que tem,

ironicamente, endereço na Praça Infante D. Henrique.

O discurso apaziguador que atribui o racismo aos vizinhos e silencia a memória

do colonizado, produz um tipo de racismo ardiloso, difícil de ser identificado e

combatido. Essa especificidade se faz notar no plano individual, como demonstra o

estudo de opinião efetuado pela Eurosondagem S.A., em abril de 2016, que perguntou

aos portugueses: “Considera-se racista?”. Apenas 16,4% declararam que sim, no entanto

26,1% informam não aceitar que o(a) filho(a) namore com um negro e 43,7% afirmaram

considerar os portugueses racistas26. Em termos institucionais esse discurso pode ser

identificado na resposta dada por Portugal, em 2011, ao relatório da ONU na

‘Convenção Internacional para a eliminação de todas as formas de discriminação racial’

acerca da orientação de adoção da recolha de dados desagregados considerando as

categorias étnico-raciais: Portugal tem uma “abordagem integrada e holística no

combate à discriminação racial, com base na sua profunda crença de que o fenômeno do

racismo é um fenômeno global”27.

O governo português tem demonstrado grande resistência na inclusão do

levantamento étnico-racial nas suas pesquisas estatísticas, invocando uma interdição

constitucional obsoleta e frequentemente burlada em outros recortes, como por

exemplo, a religião (que apesar de ser vedado pela mesma lei é oficialmente

25 Disponível em http://expresso.sapo.pt/sociedade/2015-07-21-Da-lixeira-para-o-sotao-155-esqueletos-

impares-no-mundo-encaixotados-em-Coimbra 26 Disponível em http://expresso.sapo.pt/sociedade/2016-04-16-Mais-de-16-dos-portugueses-dizem-que-

sao-racistas 27 Disponível em https://www.publico.pt/2016/12/05/sociedade/noticia/xxxx-associacoes-de-

afrodescendentes-enviam-carta-a-onu-a-criticar-estado-1753485 e

http://www.unric.org/pt/actualidade/30794-comite-da-onu-para-a-eliminacao-da-discriminacao-racial-

discutiu-relatorio-de-portugal-sociedade-civil-ausente

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reconhecida a recolha de autodeclaração deste quesito). Quando feita a menção a

demandas específicas das pessoas de ascendência africana, o Governo respondeu

apresentando as medidas de integração de estrangeiros. Ou seja, existe uma

manifestação de “portugabilidade” hegemônica que não reconhece pessoas de

ascendência africana como nacionais, e a ausência de dados quantitativos sobre essa

parcela da população portuguesa reforça sua invisibilidade. Essa situação é agravada

pela atual Lei da Nacionalidade, a qual não atribui automaticamente nacionalidade a

todo cidadão que nasça em território português. Filhos de imigrantes nascidos no país

têm seu direito à nacionalidade negado28.

Tais elementos expressam aspectos de continuidade no discurso da

excepcionalidade lusitana acerca do colonialismo brando e de uma institucionalidade

blindada do racismo, apresentado pelas autoridades como domínio da esfera

individual29. Contudo é digno de nota o trabalho de denúncia ao racismo institucional

que os movimentos negros e ciganos30 têm promovido em diversos espaços na

sociedade portuguesa, da mídia à academia. As campanhas “Por uma nova lei de

Nacionalidade” e a pela recolha dos dados étnicos-raciais têm movimentado o debate

acerca da responsabilidade histórica e do devir do Estado português na reparação das

desvantagens acumuladas pela população negra.

O documento redigido pelos peritos da ONU, com base na visita ao país em

2011, reuniu os conteúdos acumulados nos encontros com organizações

28 Mais informações em https://www.publico.pt/2012/09/26/sociedade/noticia/onu-traca-retrato-de-discriminacao-e-racismo-subtil-em-portugal-1564647 29 Pela primeira vez em horário nobre na televisão aberta portuguesa, o Programa Prós e Contras da RTP

recebeu intelectuais e representantes dos movimentos negros e ciganos para discutir “Portugal é um país

racista?”. Os ativistas Mamadou Ba, a Socióloga Cristina Roldão, o Engenheiro Físico Piménio Teles, o

Jurista Abílio Neto e o sociólogo Jorge Vala confrontaram os argumentos do Estado, representado na

figura do Alto-Comissariado para as Migrações. O debate surge de uma antiga demanda dos movimentos

sociais engajados na luta antirracista e em meio a uma investigação do Ministério Público contra 18

agentes da PSP (Polícia de Segurança Pública) pelos crimes de tortura, sequestro, injúria racial e ofensa a

integridade física de 6 jovens, em 5 de fevereiro de 2015, no Bairro Cova da Moura, Almada, bairro

predominantemente cabo-verdiano. Toda a esquadra é acusada de envolvimento, seja dos atos de tortura,

seja na falsificação de relatórios e de testemunhos. Nem mesmo o arquivamento do caso pela Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI) da PSP, a respeito da conduta de agentes que gritavam "Vão

morrer todos, pretos de merda!" e "Vocês vão desaparecer, vocês, a vossa raça e o vosso bairro de

merda!", convenceram o Comissário sobre o caráter estrutural do racismo. Repetidas vezes o

representante do Estado recorreu a uma “narrativa do anti-racismo moral que reduz o racismo a uma

questão de relação interpessoal”, como apontado por Mamadou Ba em nota de balanço do debate, no dia

seguinte, por meio de sua rede social. Disponível em https://www.dn.pt/portugal/interior/ministerio-

publico-acusa-psp-de-racismo-e-tortura-8627061.html 30 Dentre os movimentos sociais engajados na luta anti-racista em Portugal estão SOS Racismo, DJASS –

Associação de Afrodescendentes, FEMAFRO, Roda das Pretas, Coletivo Chá das Pretas, Coletivo Zanele

Muholi de Lésbicas e Bissexuais Negras, entre outros.

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governamentais, não-governamentais, e representantes dos movimentos negros. No

texto destaca-se a exigência pela “criação de programas e instituições centradas nas

pessoas de origem africana, bem como uma mudança na política oficial que se aproxima

mais de uma abordagem de assimilacionismo do que de multiculturalismo”31.

O diagnóstico do Comitê das Nações Unidas para a Eliminação da

Discriminação Racial (CERD) sobre a política oficial sobre o Estado Português, no que

tange ao tratamento dispensando às relações de desigualdade em termos raciais,

apresenta correspondências com a análise feita por Moura (1988) acerca do processo de

colonização português no Brasil baseado na assimilação/aculturação das populações

africanas sequestradas. A romantização dessa política foi desde a colônia um eixo da

ideia da colonialidade branda e da invisibilização do colonizado, ideia esta que, segundo

nossa incursão na sociedade portuguesa contemporânea, demonstra sua atualidade ao

ser frequentemente acionada pelas instituições e pelo Estado.

Uma outra leitura a partir da resistência

Clóvis Moura (1988) chamou a atenção para a dimensão de dominação presente

no sincretismo e denunciou o papel que o cristianismo cumpriu na manutenção e

reprodução da estrutura social desigual. O autor revela que no sincretismo o olhar sobre

as religiões africanas foi sistematicamente através da lente valorativa do dominador e

denuncia que a assimilação segue um único sentido, onde apenas a chamada religião

“animista/fetichista” incorpora e modifica o seu espaço religioso.

Nessa lógica, fará duras críticas ao conceito de aculturação, largamente usado

pelos antropólogos de seu tempo32. O autor sinaliza que, muito mais do que um mero

ponto de contato e troca harmoniosa entre culturas distintas, é o movimento de

infiltração das culturas “primitivas” e “exóticas” pela cultura dominante. Esse fluxo tem

uma conotação política que propaga a ideia de que os aculturados serão integrados e

beneficiados ao absorver os padrões alheios, que pouco a pouco se naturalizam e

31 Disponível em https://www.publico.pt/2012/09/26/sociedade/noticia/onu-traca-retrato-de-

discriminacao-e-racismo-subtil-em-portugal-1564647 32 Sobre a função neocolonizadora da antropologia ler “Sobre educação, política e sindicalismo” de

Maurício Tragtemberg (1982).

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institucionalizam, agindo de maneira eficaz na neutralização da resistência sócio-

política do dominado.

O autor faz a análise a partir de um ângulo distinto daquele adotado pelos

autores que se engajaram pela solução do “problema negro” na construção da nação

brasileira. Em Sociologia do Negro Brasileiro, expõe aspectos estruturais da transição

do Brasil colônia para o Brasil moderno, sem contanto desprezar o peso da resistência

como componente determinante para os rumos desse projeto de nação em disputa.

Em referência ao trabalho de Eric Willians (1943) destaca o nexo entre

escravidão e o tráfico triangular33. Salienta o papel que cumpriu o modelo de produção

escravista na acumulação primitiva que financiou a Revolução Industrial nos países de

capitalismo central, sendo esse mesmo industrialismo o responsável pela decretação do

fim deste sistema. Porém, é apoiado em Otávio Ianni que afirmará que as relações entre

abolição e capitalismo devem ser atribuídas na mesma medida que os “influxos do

capitalismo metropolitano”, aos “elementos internos” (MOURA, 1988, p.200).

Em Dialética Radical do Brasil Negro, Moura (2014) pontua os “rasgos do

escravismo pleno” (período 1550-1850) enfrentados pelo sistema colonial: 1. Produção

exclusiva para exportação, 2. A mediação da metrópole no comércio triangular de

escravos, 3. Total sujeição econômicamar à metrópole, 4. Latifúndio, 5. Normas

extremamente violentas contra os escravizados, 6. Radicalidade e independência das

lutas dos cativos contra a escravidão. Tendo, portanto, a insurgência desempenhado

função decisiva no desgaste político, econômico e psicológico da classe senhorial

(MOURA, 2014, p. 82).

A organização através da “quilombagem” promoveu perdas materiais, uma vez

que o escravizado fugido era um patrimônio subtraído, como também quando

executadas ações de sabotagem em que lavouras inteiras eram destruídas. Mas a ação

organizada dos cativos provocava também a desestabilização psicológica e política dos

proprietários que temiam tanto a represália violenta, quanto a eminência do projeto

político articulado pela quilombagem (a exemplo da República de Palmares) como uma

alternativa àquele concebido pelas elites.

33 Segundo Williams (2012), em Capitalismo e Escravidão, o enriquecimento da Europa se deveu à

exploração do trabalho africano através do tráfico de escravos para as Américas.

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É neste contexto de decomposição da ordem escravista, justaposto ao marco

legal da proibição do tráfico, que a força de trabalho negra é gradualmente afastada do

sistema de produção e substituída pelo trabalho assalariado do imigrante, como visto

anteriormente. O surgimento do abolicionismo branco vem necessariamente

acompanhado pela recomendação da implementação e expansão da empresa

imigrantista, a qual via rejeição do trabalhador nacional favoreceu os interesses de uma

elite heterogênea e mais aburguesada, composta principalmente por fazendeiros de café

e especuladores.

A diversificação e urbanização verificada no sec. XIX vieram acompanhadas de

uma rígida legislação34 capaz de regular a estrutura ocupacional de modo a manter

segmentos em seus “devidos espaços”, promovendo uma divisão racial do trabalho

livre. A abolição, deste modo, racionaliza uma cisão entre os tipos de trabalho

naturalizados como aqueles ocupados por negros ou por brancos. “Todo subtrabalho, o

trabalho não-qualificado, braçal, sujo e mal remunerado” estaria a cargo do trabalhador

negro e todo aquele “qualificado, intelectual e nobre” era exercido pelo trabalhador

branco (MOURA, 1988, p.72).

A ideologia da miscigenação como equivalente de democratização atua no

sentido de criar a expectativa de integração automática dos negros ao conjunto de

direitos e oportunidades advindos da ordem competitiva. No entanto, o que se observa,

com base nas análises tecidas por Moura (1988, 2014) e Jacino (2008), é a dissimulação

dos critérios empregados em um mercado de trabalho que se forja tendo no racismo uma

das diretrizes de diferenciação da classe trabalhadora, empurrando a população negra

para “a grande franja de marginalizados” (MOURA, 1988, p.64) exigida pelo modelo

do capitalismo dependente e responsabilizando o próprio excluído pela “incapacidade”

de desfrutar da gama de oportunidades que a sociedade competitiva oferece. Por essa

razão, o autor combate incisivamente a ideologia da “democracia racial”, produto do

ideal de branqueamento, por entendê-la como dispositivo de neutralização das

resistências e ocultação das desigualdades.

Percorrido este caminho parece-nos mais inteligível a motivação que suscitou

em tantos intelectuais a obsessão pelo controle dos arranjos possíveis para o

caldeamento racial no Brasil e suas implicações para a constituição de uma identidade

34 Sobre isso ver O branqueamento do trabalho, de Ramatis Jacino (2008).

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nacional. O projeto de nação idealizado pelas elites pressupunha uma transição branda,

através da qual as rebeliões protagonizadas pela população escravizada fossem coibidas

e a condição de subalternidade da população negra escravizada mantida. O temor de

uma ruptura radical demandou uma adaptação das teorias raciais e racistas em voga nos

países imperialistas. Diante disso, o conceito de “raça” é reexaminado à luz dos

princípios da nação em construção, adequada ao espírito nacional homogeneizante,

apaziguado pela miscigenação, mas profundamente demarcado pela hierarquização

social.

Raça e racismo: algumas considerações

Hofbauer (2003) propõe uma distinção entre dois tipos de argumentação teórica

acerca das relações desiguais entre “negros” e “brancos”: a tradição sociológica e as

concepções da antropologia social e cultural. Embora reconheça que a redução a esses

dois polos implique em uma simplificação e achatamento das dissemelhanças entre

autores de uma mesma tendência, insiste que tal tipologia contribui na demonstração de

divergências fundamentais entre tais abordagens e na superação e limites teóricos

presentes em ambas.

A primeira é representada pela Escola Sociológica Paulista, a qual mediante

diversos trabalhos empíricos demonstrou a existência de uma “discriminação racial”

sustentada por relações desiguais entre “brancos” e “negros”. Os estudos desenvolvidos

por Florestan Fernandes (1978), Octávio Ianni (1988) e Fernando Henrique Cardoso

(1960) nos anos 1950, foram retomados na década de 1970 por autores como Carlos

Hasenbalg e Nelson do Valle Silva (1988). A segunda tendência atribui a configuração

das “relações raciais” a um estilo de vida especificamente brasileiro. Ainda que admita a

existência das desigualdades, entende que é preciso explicitar as razões pelas quais o

conflito é omitido na sociedade brasileira, sendo por isso mais conveniente negociar as

identidades em cada contexto ao invés de estabelecer categorias fixas. São referências

dessa tendência autores como Roberto Da Matta (1997), Peter Fry (1995) e Lilia

Schwarcz (1993) (HOFBAUER, 2003).

Antônio Sérgio Guimarães (1999, 2002) aproxima-se da primeira tendência, uma

vez que faz uso da diferenciação “essencial” entre brancos e negros como pressuposto

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metodológico. Contudo, partindo da ideia de racialismo construída por Appiah (1992)

para caracterizar a especificidade da ideologia que justifica esse tipo de desigualdade

social, o autor revisa o conceito relativizando a ideia de essência. Para Guimarães,

(...) trata-se de um sistema de marcas físicas (percebidas como indeléveis e

hereditárias), ao qual se associa uma “essência” que consiste em valores

morais, intelectuais e culturais (...) o conceito de raça não faz sentido senão

no âmbito de uma ideologia ou teoria taxonômica à qual chamarei de racialismo (...). Tal conceito é plenamente sociológico apenas por isso,

porque não precisa estar referido a um sistema de causação que requeira um

realismo ontológico. Não é necessário reivindicar nenhuma realidade

biológica das “raças” para fundamentar a utilização do conceito em estudos

sociológicos (GUIMARÃES, 1999, p. 28).

Concordamos com Guimarães (1999) quando afirma que enquanto houver

grupos sociais identificados e discriminados direta ou indiretamente a partir de

marcadores de “raça” a categoria conserva-se indispensável analítica e politicamente. É,

portanto, por meio do reconhecimento da estrutura desse sistema de hierarquização

social que se torna possível apreender e combater as complexas derivações dos tipos de

naturalização acionados como fator de legitimação do mesmo. O autor sublinha que

para compreender o racismo é necessário atentar-se para as formas diversas de

delimitação daquilo que se convenciona “natural”. A naturalização não opera, segundo

ele, apenas por via da biologização, podendo derivar também de uma justificativa

religiosa, científica ou mesmo cultural.

Em razão disso, Guimarães (1999) destaca a particularidade do modelo de

classificação brasileira, o qual, diferente do caso norte-americano assentado na regra da

descendência biológica, é predominantemente demarcado pelas diferenças fenotípicas.

Segundo o autor, a definição da “raça” restrita a aspectos biológicos encobre a dimensão

racialista da ideia de cor no que se refere ao seu viés social e cultural. Sociólogos como

Thales de Azevedo (1955) e Florestan Fernandes (1965) assumiam a ideia de que no

Brasil havia um “preconceito de cor” e não de raça, em função de uma leitura da “cor”

como aspecto objetivo e natural da aparência.

No entanto, compreende-se na presente pesquisa que o equívoco ao interpretar a

“cor” como fato natural e biológico está em não considerar os valores aos quais ela está

associada. É por essa razão que para o autor os variados “grupos de cor” operam como

representações metafóricas do velho conceito de raça. A escolha das características cor

da pele, espessura dos lábios, textura do cabelo e formato do nariz ao invés de altura,

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tamanho dos pés e dimensão das orelhas nada tem de aleatória ou objetiva. Esses

atributos só podem fazer sentido no interior de uma ideologia que confere signos a essas

marcas.

A despeito da convergência aqui firmada com a argumentação teórica

apresentada acima, consideramos ser crucial a crítica feita por Hofbauer (2003) acerca

da complexidade das identidades forjadas em um contexto de racismo com as

especificidades simbólico-culturais do Brasil. O autor discorda de Guimarães (1999) no

que diz respeito à simplificação das diversas categorias cromáticas entre o “branco” e

“negro” como mera falta de consciência ou não reconhecimento da realidade. Em

contrapartida propõe uma mediação entre as duas tradições de modo a substituir o

essencialismo e os chamados ‘sistemas de classificação locais’ por uma análise das

categorias raciais como construções ideológicas situadas em um contexto econômico,

histórico e social, tendo em vista simultaneamente a “ação da elite” e a “(re)ação

popular” (HOFBAUER, 2003, p. 67).

Além disso, ao integrar questões estruturais e simbólicas, Hofbauer (2003)

responde a uma preocupação recorrente na obra de Guimarães (1999, 2003): a

negligência das Ciências Sociais com os aspectos discursivos que escondem o racismo

no status e na classe. A frequente comparação estabelecida com o cenário racial

segregacionista dos Estados Unidos, justificado pelo argumento da hereditariedade,

induziu importantes autores do Pensamento Social Brasileiro a interpretar a realidade

local a partir da lente estrangeira. Contudo, esse modelo deixa escapar a particularidade

de um sistema de discriminação que encontrou na miscigenação a alternativa para o

“problema negro”, substituindo a ideia de degeneração por um projeto de

branqueamento que não contradiz a hierarquização social comum a ambos os sistemas.

No Brasil, o “branco” não equivale a uma mistura étnica de povos europeus

como nos EUA. Essa identidade inclui mestiços claros que podem exibir signos

cromáticos e culturais da europeidade, como o letramento, por exemplo. É por assim

fundir-se às relações de classe e status que a “raça” foi descartada ou compreendida

como anacrônica por aqueles que partiram de uma análise centrada na delimitação de

explicações causais, perdendo de vista a metáfora que escondia o racismo sob o discurso

exclusivamente classista (AZEVEDO, 1955; FERNANDES, 1965).

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Thales de Azevedo (1966) identificou em seu estudo sobre a sociedade baiana

que a população negra era muito mais atingida pela pobreza comparativamente à

branca. Contudo, essa percepção se generaliza na literatura sociológica a partir dos anos

1950 como um diagnóstico para todo o território nacional (PIERSON, 1942; HARRIS,

1966; AZEVEDO, 1953). A justificativa comumente apontada, seja por intelectuais,

seja pelo próprio Estado, remete ao legado do modelo escravista. Essa causa não pode,

porém, ser apresentada isoladamente sem que se incorra no erro de desonerar as

gerações subsequentes da responsabilidade na manutenção das desigualdades

(GUIMARÃES, 2002).

Ao analisar a integração da população negra na sociedade de classes Florestan

Fernandes (1965) sustenta como premissa a tese de que as relações raciais são uma

sobrevivência do passado. Esta concepção deriva da ideia de que o racismo seria

incompatível com os valores econômicos, jurídicos e morais da sociedade de classes

“clássica” e por essa razão a ordem emergente tenderia a integrar a população atingida

por essa “anomalia”. Segundo este autor, a persistência dessa desigualdade no caso

brasileiro seria resultado, portanto, de uma estrutura de classes inacabada. Contudo,

concordamos com Hasenbalg (1988) que esse diagnóstico não apreende as relações de

classe nem tampouco as de “raça”, uma vez que “a sociedade de classes transforma a

dominação racial reelaborando o conteúdo da raça como dimensão adscritiva dentro de

um sistema de estratificação baseado em critérios adquiridos” (HASENBALG, 1988, p.

118).

A tese do racismo arcaico, em última instância invisibiliza e dificulta a

identificação dos processos de desvantagem que se somam à assimetria do ponto de

partida (herança histórica). Em cada etapa da trajetória escolar e profissional a

desigualdade é atualizada por novas discriminações. A partir da análise da desigualdade

de “chances de mobilidade” entre brancos e negros, Hasenbalg (1988) irá concluir que

as práticas de segregação cotidianas, em conjunto com as discriminações estruturais,

induzem a uma auto-imagem depreciativa das pessoas negras. A imposição de “lugares

adequados” (HASENBALG, 1988, p. 141) acaba por influenciar negativamente tais

sujeitos na estipulação de expectativas menos audaciosas em relação aos “destinos

pessoais” (BERTAUX, 1979) previstos para os brancos.

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É nesse sentido que a redução da variável racial à epifenômeno das relações de

classe implica em um esvaziamento de ambas as categorias (classe e raça). Por não

situar historicamente o nexo da posição de classe ocupada pela população negra, essa

tese, entende-se, inviabiliza a resposta da seguinte pergunta: por que a população negra

ocupa lugares marginais dentro de uma mesma classe social? Acreditamos ser esta

respondida por Nelson do Vale Silva (1988) no seguinte trecho:

Revisando criticamente essas análises, a nova linha de pesquisa a que nos

referimos acima tenta enfatizar a funcionalidade da discriminação racial

como instrumento para o alijamento competitivo de certos grupos sociais no

processo de distribuição de benefícios materiais e simbólicos, resultando

obviamente em vantagem para o grupo branco vis-a-vis aos grupos não-

brancos na disputa por esses benefícios. Ou seja, procura-se mostrar como o

preconceito e a discriminação racial são fatores intimamente associados à

competição por posições na estrutura social e, portanto, necessariamente

refletindo-se em diferenças entre os grupos raciais ao nível do próprio

processo de mobilidade social [grifo nosso] (VALLE, 1988, p.144).

Por apresentar-se diluído em características atribuídas, o princípio racial que

orienta as práticas cotidianas discriminatórias não é facilmente detectável. No mercado

de trabalho é frequentemente invocada a noção de “boa aparência” para seleção de

trabalhadores, seguindo um padrão estético atravessado por estereótipos de classe, raça

e gênero. Em termos de escolaridade a população negra enfrenta outra contradição: as

instituições públicas de ensino superior têm maior aceitação no mercado, entretanto, o

sucateamento do ensino público básico, onde se concentram os jovens negros e pobres,

não oferece condições de igualdade para esses estudantes na disputa pelas escassas

vagas na universidade pública em relação àqueles oriundos de instituições privadas

(GUIMARÃES, 1999).

Estes são exemplos de como relações sociais diversas fundem-se de modo a

estabelecer lugares de privilégio ou exclusão na hierarquia social. No Brasil, a classe

social forjou-se no seio da “raça” e são ambas, portanto, coextensivas; ou seja,

produzem-se e reproduzem-se mutuamente (KERGOAT, 2010). Nesse sentindo, é

considerado na presente pesquisa relevante avançar considerando a dimensão de gênero

como fator agravante na definição desses lugares sociais, pois quando as generalidades

são questionadas e as estatísticas são desagregadas por gênero e raça evidenciam-se

aspectos invisíveis que estruturam a divisão sexual do trabalho e o trabalho doméstico

(LOBO, 2011).

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CAPITULO 2

MULHERES NEGRAS, TRABALHO E LAR

“A parte mais produtiva da propriedade escrava”

Embora o trabalho doméstico esteja historicamente associado à mulher, devido à

biologização da “vocação para o lar” (atributo feminino socialmente construído), parte-

se do pressuposto que são distintas as formas como brancas e negras experienciam esse

estereótipo. Pretende-se, portanto, analisar, no presente capítulo, como essas mulheres,

em um quadro de ampliação da participação feminina no mercado de trabalho a partir

dos anos 197035 relacionam-se com este aspecto da esfera reprodutiva. No tocante a

isto, deve-se ressaltar que compreendemos a reprodução como dimensão inerente à

produção capitalista e espaço onde se produz, não só, mas também, energia humana

para ser consumida no processo produtivo (BERTAUX, 1979). Desta maneira, o

trabalho doméstico incumbido à mulher é responsável direto pela produção da única

mercadoria capaz de gerar valor: a força de trabalho.

É necessário, entretanto, remontar a um período anterior à formação do mercado

de trabalho assalariado brasileiro para compreender a participação das mulheres negras

no mundo do trabalho e no lar, já que desde o período escravista, muito antes do

ingresso do grande contingente de mulheres brancas de classes populares, na segunda

metade do século XX, as primeiras já estavam submetidas à exploração do trabalho.

Essa atuação pioneira relaciona-se intimamente com a configuração da família e os

papéis sociais atribuídos a cada sujeito na sociedade colonial e depois dela.

Gilberto Freyre (1994) atribuiu à família escravocrata a designação de principal

fator colonizador. Seria esta, segundo ele, a unidade produtiva responsável pelo

povoamento regular da colônia, assentada no latifúndio e no trabalho escravo. Diferente

do pensamento de Moura (1988) e por não amparar sua análise na contradição

fundamental entre proprietários e escravizados, essa caracterização invisibiliza o fato de

35 A PNAD (IBGE, 2010) indica uma curva ascendente significativa na participação feminina na

população economicamente ativa (PEA) a partir dos anos 1970, quando as mulheres passaram de 9,59%

para 13,23%, enquanto os homens reduziram de 56,40% para 50,51%, no período entre 1950 e 1970. A

partir desse ano a PEA feminina permanece ampliando em ritmo acelerado até 44,58%, em 2010.

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concentrar-se no corpo escravizado o núcleo produtivo vital do modelo de produção

vigente. Quando desvelado tal ponto é possível compreender como se constituem

lugares sociais e os seus reflexos nas configurações familiares.

Joaquim Nabuco (2000) menciona o discurso dos fazendeiros do Piraí, em 1871,

no qual se manifesta o aprofundamento da exploração das mulheres escravizadas em

virtude do seu gênero. Segundo eles “a parte mais produtiva da propriedade escrava é o

ventre gerador”. Dessa forma, além da produtividade no eito, demandada por uma

economia baseada no latifúndio, o proprietário reconhecia em seus corpos uma potência

produtiva capaz de ampliar seu patrimônio.

A imagem dessas mulheres, forjada a partir da perspectiva senhorial, pretendeu

de variadas formas legitimar a negação de seu estatuto de humanidade e imputar a estas

a responsabilidade sobre sua própria condição de subalternidade. Tais representações

foram difundidas, entre outros campos, por autores do pensamento social brasileiro que

por vezes retrataram as relações de poder desiguais como fatalidades. Gilberto Freyre

(1994) destaca-se pela ampla adesão a sua obra e por ter buscado explicitar as causas

para os comportamentos sociais que julgava ser típico deste ou daquele grupo social.

Diz-se, geralmente, que a negra corrompeu a vida sexual da sociedade brasileira, iniciando precocemente no amor físico os filhos-família.

Mas essa corrupção não foi pela negra que se realizou, mas pela

escrava. Onde não se realizou através da africana, realizou-se através da escrava índia (FREYRE, 1994, p. 316).

Pode-se notar que era transferida para a própria trabalhadora escravizada a

responsabilidade pela identidade caricatural da qual era vítima. Tal como a interpretação

da relação proprietário-escrava como uma relação de sadismo-masoquismo,

anteriormente citada, o trecho acima omite os abusos e violações da classe proprietária

ao não explicitar o abismo existente entre os grupos sociais e ao descrever tais

interações conflituosas sem contextualizá-las na estrutura de poder.

O autor menciona ainda arranjos matrimoniais entre mineiros brancos e

mulheres das etnias Fulá e Mina36, no ano de 1730, em Minas Gerais. Nesse contexto

eram consideradas companheiras ideais pelos homens brancos por exibirem signos que

36 Sobre os arbitrários dos termos africanos para delimitação de grupos étnicos no contexto colonial e da

escravatura, ver o artigo Etnias de africanos na diáspora: novas considerações sobre os significados do

termo ‘mina’ disponível em http://www.scielo.br/pdf/tem/v10n20/06.pdf

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se assemelhavam, mais do que outras etnias, ao que se convencionou “ser branco” na

sociedade da época. Além do tom da pele mais claro, a cultura predominantemente

islâmica era considerada mais “adiantada” e passível de ser “domesticada”. No entanto,

o casamento era frequentemente evitado, predominando uniões como concubinagem e

mancebia; e mesmo quando “amasiadas” não eram dispensadas das tarefas que

executavam quando escravizadas (FREYRE, 1994, p. 306).

A representação era manifestada também no imaginário popular, como ilustrado

pela expressão “branca para casar, mulata para fornicar, negra para trabalhar”,

assinalada por Lélia Gonzalez (2011, p.19), na qual o sexo biológico é revelado como

aspecto decisivo no aprofundamento da exploração sustentada pela desigualdade racial.

O posto de mucama ocupado por mulheres mais ladinizadas, e que atendiam a

“qualidades físicas e morais” (FREYRE, 1994, p. 352) requeridas pelos proprietários,

foi por diversas vezes referido como um espaço vantajoso e camuflado pelo recorrente

discurso que as denominava como “quase membros da família”.

No entanto, suas incumbências abrangiam tarefas domésticas como cozinhar,

limpar toda a casa, criar os filhos da sinhá e seus próprios, atender aos caprichos sexuais

do senhor, filhos, padres... Não estavam, nem mesmo, blindadas dos castigos corporais

incididos sobre os trabalhadores da senzala. Portanto, ao contrário de uma exploração

atenuada, observa-se uma complexificação do quadro de subalternidade desses sujeitos

(GONZALEZ, 1984; CARNEIRO, 1985; SANTOS, 1985).

Contudo, para além das iniciativas de resistência organizadas coletivamente, as

estratégias de sobrevivência e negociações protagonizadas pelas trabalhadoras

escravizadas, sejam elas domésticas ou escravas de ganho, foram decisivas para o

processo de transição para o trabalho livre nas cidades. A pesquisa da historiadora

Maria Odila Dias (1983), acerca da multiplicação das alforrias a partir dos anos 1830,

aponta que as trabalhadoras poupavam rendimentos próprios obtidos por meio do

trabalho em domingos e feriados, e/ou procedências outras, com os quais logravam sua

liberdade.

A cidade no final do século XIX, segundo Enidelce Bertin (2004), conformava-

se como um espaço em que a população escrava era predominantemente feminina, já

que os homens eram destinados, sobretudo, para o trabalho no campo. Em função disso,

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a relação estreita entre as escravas domésticas e seus senhores foi também um aspecto

facilitador para a negociação da liberdade, segundo a autora, em seu estudo sobre as

alforrias em São Paulo. A margem de autonomia conquistada pelas escravas de ganho e

o número crescente de forras transitando pelas cidades atuam no desgaste do escravismo

urbano, assim sendo, o próximo item procura analisar a localização da mulher negra no

processo de formação do mercado de trabalho brasileiro, examinando a metamorfose do

trabalho como escravas de ganho em ocupações assalariadas que se difundiram no pós-

abolição.

Pós-abolição: trabalhadoras forras e livres

Dos anos que seguiram a lei que proibia o tráfico interatlântico, em 1850, até a

lei que interditou o tráfico interprovincial, em 1881, foi acentuado o número de

deslocamentos de homens, mulheres e crianças, vindos das províncias do Norte para

região cafeeira. O aumento do fluxo interno é observável desde 1852, ano em que

desembarcaram 1660 escravos no porto do Rio de Janeiro, ao passo que nos mesmos

quatro meses foram comerciados 1376 cativos das províncias do norte, principalmente

da Bahia e Pernambuco. Além das adversidades enfrentadas nessas regiões pela

escassez de força de trabalho o tráfico interprovincial retardava a transição para o

trabalho livre no sul (CONRAD, 1975).

Ainda que o período do tráfico interprovincial (1851-1881) tenha sido marcado

por contingentes majoritariamente masculinos, as trabalhadoras escravizadas

enfrentaram também a migração compulsória. Ao examinar os registros no Livro de

inscrição de empregados do ano de 1886, e as características de gênero, raça e geração

dos trabalhadores emigrados, a historiadora Lorena Féres da Silva Telles (2013)

identificou que o deslocamento forçado e em péssimas condições dessas trabalhadoras

acarretou em rompimentos de vínculos sociais e afetivos. Em 1885, a região cafeeira

tinha mais da metade da sua população escrava proveniente das províncias do norte.

Dentre os registros no Livro de Inscritos deste mesmo ano, 5 mulheres eram naturais de

Alagoas, 3 do Rio Grande do Norte, 5 do Maranhão, 2 de Pernambuco e 2 do Sergipe37.

37 O tráfico interprovincial de domésticas e amas de leite fomentou um lucrativo comércio intermediário

envolvendo negociantes itinerantes, fazendeiros e “agenciadores” urbanos. Os ganhos provinham das

comissões, da venda e aluguel das cativas (CARNEIRO, 2006).

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No entanto, o tráfico interprovincial limitou-se a postergar as pressões

abolicionistas, internas e externas, no Estado Imperial. Finda a Guerra do Paraguai, em

1870, as reformas emancipacionistas retornaram à pauta, mobilizando a classe senhorial

em defesa da propriedade privada. Por meio da atuação na Assembleia do Império seus

interesses foram resguardados nas leis em construção com o intuito de regulamentar o

trabalho assalariado. A Lei Rio Branco de 1871, conhecida também como Lei do Ventre

Livre, a qual libertaria os filhos das escravas e impediria que fossem vendidos, foi um

dos recursos utilizados na indenização dos senhores, uma vez que a tutela sobre os

ingênuos autorizava-os a exploração de seus serviços até os 21 anos:

‘Despreparados para a liberdade’, deveriam permanecer sob os

‘cuidados’ e castigos ‘não excessivos’ dos proprietários de suas mães:

submetidos a alguns anos suplementares de trabalho obrigatório, podendo ainda ser alugados a terceiros (TELES, 2013, p. 60).

Antes mesmo da ascensão do movimento abolicionista na década de 1880, foram

alforriados 35 mil escravos, pela iniciativa privada e com o apoio de associações

religiosas, sem recorrer, deste modo, ao fundo de emancipação estatal instituído pela

mesma lei. O montante de trabalhadores emancipados através do tesouro público, entre

1880 e 1881, não chegou à 6 mil escravos. Em função disso, e apesar de seu caráter

reacionário, a Lei Rio Branco colaborou com a decadência da escravatura, libertando

aproximadamente 500 mil filhos de trabalhadoras cativas (TELES, 2013).

São Paulo, na primeira metade do século XIX, já assenhorava mais escravos de

ganho do que domésticos. Os escravos mais caros eram absorvidos pelo trabalho nas

lavouras, enquanto os pequenos proprietários urbanos tinham poucos cativos mais

baratos, como mulheres, idosos e crianças. O trabalhador escravizado era em alguns

casos o único bem valioso e a sua locação era fonte de renda complementar. O padrão

de exploração do trabalho nas cidades, seja no artesanato, pequeno comércio ou

prestação de serviços domésticos, reduzia a distância entre escravizadas e proprietárias

pobres e manutenção da posse cada vez mais restrita às elites.

A Lei de 28 de setembro de 1885, conhecida como Lei dos Sexagenários,

regulamentava a libertação dos idosos com condicionantes, como a prestação de

serviços mediante contratos de trabalho por 3 anos. Tais disposições indenizatórias são

reforçadas por medidas disciplinadoras que visaram controlar a mobilidade dos libertos.

A lei obrigava os ex-cativos a fixar moradia e a estabelecer contratos de trabalho sob o

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argumento de prevenir a “vagabundagem”, ou seja, procuravam, por via da legalidade,

controlar as transformações no mundo do trabalho (TELES, 2013; JACINO, 2008).

Quando a abolição formal é promulgada em 1888, a província de São Paulo já

apresentava dados demográficos que expressavam a diversidade da população. Em 1886

a Comissão Central de Estatística anunciava em números absolutos 268 escravas, 225

escravos, 205 africanos, 12290 imigrantes, 10275 negros livres, 36334 brancos.

Trabalhadoras imigrantes, forras e escravas dividiam não só o mesmo espaço social e

cultural, como também econômico, expresso nas fileiras do trabalho formal e informal

nas cidades. Em 1886, a população feminina representava 53% dos quase 50 mil

habitantes de São Paulo (TELES, 2013).

A regulamentação das relações de trabalho transcorre progressivamente o

período Imperial38, estabelecendo disposições que resguardavam os interesses

econômicos das elites do café, cujos lucros provinham de um tipo de força de trabalho

rigidamente disciplinada39. Nesse sentido, o decreto que normatiza a locação dos

serviços domésticos na província de São Paulo, em 1886, é representativo para ilustrar

tal período, uma vez que em 1872 o trabalho doméstico ocupava 36% da população

escravizada. No Rio de Janeiro, entre as décadas de 1860 e 1880, aproximadamente

65% das mulheres livres e 90% das escravas eram domésticas (BASTIDE,

FERNANDES, 1955).

As autoridades policiais foram convocadas para fazer cumprir a lei que versava

sobre os deveres e obrigações na relação entre empregadores e trabalhadores livres. Os

registros em contratos e cadernetas de trabalho, sobretudo no livro de matrícula,

alimentavam uma demanda dos patrões exigentes, os quais frequentemente eram

senhores de escravos, por informações detalhadas da força de trabalho. A norma previa

também a punição por multas para empregadores ou empregados que a descumprissem.

No entanto, a pena de prisão era prevista apenas para os trabalhadores (TELES, 2013).

A ausência de especificação das atribuições de cada ocupação e dos limites da

jornada de trabalho concentrava ainda mais autoridade nas negociações e decisões

38 Em 1830 é promulgada a primeira lei de locação de serviços do Império, é a introdução normativa na

passagem para o trabalho livre. Lei de 13 de setembro de 1830 disponível em

http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei_sn/1824-1899/lei-37984-13-setembro-1830-565648-

publicacaooriginal-89398-pl.html 39 Para mais informações ler sobre a Lei de locação de serviços de 1879 (LAMOUNIER, 1988).

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tomadas em âmbito privado. No cotidiano do lar o trabalho doméstico era tratado como

troca de favores e cuidados afetivos, esvaziando o sentido de atividade laboral. Wilson

Toledo Munhós (1997) responsabiliza o padrão de comportamento paternalista

originário da escravidão pela cultura que concilia favor e violência. As relações de

trabalho por vezes se reduziam a episódios nos quais as oportunidades de sobrevivência

eram usadas pelos patriarcas como moeda de troca para obter gratidão e obediência.

Segundo Teles (2013), alguns patrões posicionaram-se contrários a adesão ao

livro de matrículas por considerar esta uma medida fiscalizadora que exerceria

demasiado controle sobre o espaço doméstico. Contudo, as trabalhadoras buscavam

criar espaços de autonomia e negociar suas condições de trabalho. A contratação de

duas trabalhadoras pelo médico Eulálio da Costa Carvalho, no ano de 1886, ilustra os

limites enfrentados por ambas em razão do grau de proximidade com cada uma.

A matrícula de Tertuliana Maria das Dores especifica a atividade de cozinheira,

pelo vencimento mensal de 30 mil réis. Eram admitidas faltas sem descontos por motivo

de doença por até 2 dias. O mesmo contratante renovara o contrato de sua ex escrava

Faustina da Costa Carvalho, que é referida na inscrição pelo patrão como “preta liberta

Faustina”, por um salário de 25 mil réis e com um leque de atribuições muito mais

amplo. À forra era garantido o tratamento médico da própria e de seus dois filhos sendo

descontado valor equivalente quando excedidos 5 dias (TELES, 2013).

A natureza do vínculo de ambas parece distinto. Tertulina, tratada pelo patrão

com nome e sobrenome, tem ocupação definida, salário mais elevado e se encarregava

das próprias despesas médicas. Possivelmente tinha residência em outro local e não

demonstrava uma relação de dependência tão manifesta quanto Faustina, que recebia

comida, teto e trato de doenças pelas mãos do antigo proprietário.

O estabelecimento da moradia fora do local de trabalho foi decisivo na

construção da autonomia das libertas. Os contratos e registros expressam as

condicionantes impostas também pelas trabalhadoras, como é o caso de uma jovem

“habilitada a cozinhar e fazer compras, [que] declarou que só aceitaria uma posição com

a condição de ‘dormir fora’” (GRAHAM, 1992, p. 121); ou o requerimento do patrão de

Thomazia do Espírito Santo em que constava a contratação do serviço de cozinheira

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“por tempo indeterminado, enquanto me convier e a Ella. (...) Não dorme em minha

casa” (TELES, 2013, p. 273).

A partilha da moradia proporcionava a manutenção de vínculos de parentescos e

laços de solidariedade. Os documentos apontam que não era incomum o abandono do

trabalho em função dos cuidados com familiares enfermos. A convivência em

vizinhança com outros trabalhadores em condições semelhantes ultrapassa o alcance da

ajuda mútua e favorece a construção de espaços de pertencimento e identidade. No

entanto, essas conquistas não se dão sem resistência patronal. Posturas municipais

foram formuladas no Rio de Janeiro, nas décadas de 1880 e 1890, com o intuito de

coibir o livre trânsito dessas trabalhadoras. A norma proibia o aluguel de imóveis para

escravas domésticas, mesmo com aval dos seus proprietários (TELES, 2013).

Em São Paulo, o “Beco das Minas” foi, na transição para o trabalho livre, um

simbólico espaço de partilha no qual residiam as quitandeiras africanas, livres e

escravas, que ocupavam o espaço urbano público vendendo doces, frutas e hortaliças,

dialogando entre si em sua própria língua, longe dos olhos de senhoras e patroas

(CAMPOS, 2004). Segundo Maria Odila Dias (1985):

A imagem das negras de tabuleiro evoca independência de movimentos e

liberdade de circulação pela cidade, em oposição à imagem das mucamas domésticas, tal como ficaram na historiografia brasileira associadas a laços

de submissão e dependência. (...) As negras de tabuleiro tinham passagens

frequentes pela polícia, aura de rebeldes, sinais de fugitivas inveteradas

(DIAS, 1985, p. 90 - 97).

As razões da intensa rotatividade das trabalhadoras livres não são expostas nos

livros de registros de saída dos criados. As justas causas que previam o abandono do

emprego pela Postura Municipal de 1886, como, por exemplo, sofrer maus tratos, não

receber pagamento e ser induzido a violar os bons costumes, nunca foram mencionadas

nos documentos. As queixas silenciadas omitem possivelmente a rejeição dessas

mulheres aos abusos dos patrões com comportamentos escravistas. Com frequência

abandonavam os mandos abusivos para dedicarem-se ao cuidado de seus familiares e de

sua própria saúde, ou para casarem-se, como assinalado por Teles (2013) ao analisar o

livro de inscrições de 1886.

Bertin (2004) refere-se à rescisão do contrato da africana Maria, admitida em

1838 por um salário de 4 mil réis, solicitado pela patroa Ana Francisca da Anunciação,

em função das fugas consecutivas. Em 1840, enquanto prestava serviços ao Seminário

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de Santa Ana, foi novamente alvo de críticas, desta vez pelo diretor na instituição: “é

má negra na extensão da palavra, atrevida, de má língua, possuída da liberdade, um

precipício, não tem por onde se lhe pegue” (2004, p. 135). Em São Paulo, 1886, Rosa

Maria de Jezus, mulher idosa e africana, é demitida em poucos dias do sobrado da Sé

por ser demasiado “atrevida”. Segundo a própria empregadora, a cozinheira lhe retrucou

“não tomo conta de sua casa porque não sou sua escrava” (TELES, 2013, p. 208).

As lavadeiras eram também agentes dessa mobilidade no espaço urbano, visto

que transitavam com as imensas trouxas de roupa da casa de seus patrões até os rios e

chafarizes. Não raro os espaços de sociabilidade construídos por essas trabalhadoras e

sua interação com a cidade eram vistos como uma afronta à moralidade da classe

proprietária. Companheiras de ocupação eram frequentemente presas por embriaguez e

tinham seu lazer interrompido pela polícia sob o argumento de ofender o decoro. Os

dados sobre criminalidade envolvendo mulheres na São Paulo do século XIX revelam

que 19, 7% das autuadas por vagabundagem eram lavadeiras (TELES, 2013).

Lavadeira (parte inferior à direita) carregando trouxa de roupas na Praça Antônio Prado (1925). Fonte:

PORTELA, Fernando. A Paisagem Humana: São Paulo, 1860-1960. SP: Terceiro Nome, 2003, p. 147.

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Mulher e criança na Rua Álvares Penteado (1914). Fonte: PORTELA, Fernando. A Paisagem Humana:

São Paulo, 1860-1960. SP: Terceiro Nome, 2003, p. 147.

A inserção e permanência das trabalhadoras pobres e negras no mercado de

trabalho foram cerceadas de diversas formas. O Censo de 1886 aponta que 26% da

população eram de estrangeiros. Destes, 76% eram brancos e o restante dividia-se entre

pardos, negros e caboclos. No mesmo período, quase a totalidade de negros e mulatos

eram livres. No entanto, o ingresso no mercado formal, seja por via do desenvolvimento

industrial, seja através da expansão comercial, era obstruído pelo favorecimento da

contratação de imigrantes europeus. Os comércios, chefiados predominantemente por

portugueses e brasileiros brancos dificilmente empregavam negros, na cidade de São

Paulo (TELES, 2013).

Empurradas para a franja da informalidade enfrentam inúmeras dificuldades

impostas pelo poder público e pela legislação. A urbanização, por exemplo, foi um dos

obstáculos para o exercício da ocupação de lavadeira, uma vez que as obras de

modernização buscavam atender demandas das elites locais que manifestavam profunda

aversão aos “focos de infecção” e “promiscuidade” os quais julgavam serem as beiras

dos rios, onde trabalhavam as lavadeiras, como também vendedores ambulantes. O

projeto de saneamento, de 1893, da Companhia Canteira, ordenou a destruição dos

chafarizes do Largo do Carmo e do Rosário. A obra foi duramente combatida pela

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população que extraía desses espaços sua subsistência, chegando ao confronto direto

com a polícia (MATOS, 1994).

Família negra: trabalho e (re)produção da vida

Em termos de rendimentos auferidos, quando comparados os salários das amas

de leite estrangeiras de origem europeia com aqueles percebidos pelas brasileiras e

africanas, a desigualdade é evidente. Teles (2013) analisou os dados dos certificados e

inscrições da ocupação em São Paulo, no ano de 1886, e identificou 140 trabalhadoras

recebendo menos de 20 mil réis mensais: 1 portuguesa, 4 alemãs, 12 italianas, 14

africanas e 109 brasileiras. Em termos de cor, 85% das estrangeiras brancas recebiam

salários entre 20 e 50 mil réis, e 70% das trabalhadoras negras (africanas e brasileiras)

recebiam abaixo desse valor (TELES, 2013).

Os estudos feministas dos anos 1970 criticaram a separação polarizada entre

esferas produtiva e reprodutiva e apontaram as consequências políticas desse

pensamento para a desvalorização do trabalho doméstico. Ruth Rubbard (1978) assinala

que essa perspectiva delega às mulheres o papel de reprodutora, enquanto aos homens

atribui a função de produtor. Contudo, as mulheres, e sobretudo as mulheres negras, não

foram desobrigadas da produção de mercadorias e serviços. Na verdade, foram lançadas

para as ocupações com mais baixa remuneração e prestígio social.

O modelo de fragilidade feminina, sustentado pelo discurso da aptidão natural

das mulheres para o lar, não foi acionado para questionar o trabalho duro nas lavouras e

casas grandes efetuados pelas trabalhadoras negras escravizadas, nem tampouco das

mulheres pobres exploradas em longas jornadas de trabalho nas fábricas. Angela Davis

(2016) aponta que no período anterior à Guerra Civil nos EUA a fertilidade das

mulheres negras escravizadas passou a ser progressivamente valorizada, não como a

maternidade comumente idealizada no século XIX para as mulheres brancas, mas como

uma condição de reprodução animalesca: eram para os proprietários meras parideiras.

Patrícia Hill Collins (2000) destaca que a exploração da capacidade reprodutiva

do corpo da mulher negra foi fundamental para a gênese e manutenção do capitalismo

moderno. Em um sistema onde o controle da propriedade privada é um eixo, as

mulheres escravizadas eram administradas como mercadorias. São as responsáveis pela

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produção de força de trabalho que ampliava as posses do senhor. Essa gerência sobre os

corpos das trabalhadoras negras foi o alicerce para consolidação das relações de classe

capitalistas.

Daniel Bertaux (1979) inverte o processo de produção de mercadorias para

melhor compreender a produção da única mercadoria criadora de valor: a força de

trabalho. Segundo o autor, a produção de mercadoria é, sobretudo, o consumo da

energia humana. É o processo de produção dessa energia que ele nomeará como

produção antroponômica.:

É a reprodução cotidiana da força de trabalho humana, ou mais geralmente da

energia humana. No entanto, a produção antroponômica pode assumir outras

formas: a produção inicial, a colocação de um novo rebento no mundo; a

produção material “ampliada” que produz na criança a energia e, ao mesmo

tempo, o crescimento do tamanho do suporte da energia, o corpo; a produção

dita “imaterial”, ou melhor, cultural, que produz no ser não a energia pura,

mas as formas específicas dessa energia; as capacidades, as aptidões para

fazer este ou aquele trabalho, a exercer essa ou aquela atividade (BERTAUX,

1979, p. 56).

A família é, portanto, um importante espaço de formação dessas aptidões,

capacidades e, sobretudo, das aspirações dos lugares sociais a serem ocupados. Bertaux

(1979) enfatiza que as famílias se distribuem em uma pluralidade de níveis na estrutura

de classes e as relações que determinam as práticas de cada uma (ex. família burguesa,

família operária,...) não derivam do arbítrio individual, nem tampouco de um código

civil formal, mas decorrem da posição de classe que essas famílias assumem na

hierarquia social.

Collins (2000) identifica que o ideal de família tradicional, formado por um

casal heterossexual racialmente homogêneo com seus próprios filhos biológicos, foi

sempre um modelo problemático quando aplicado à vivência das mulheres negras nos

Estados Unidos, pois o pressuposto de uma divisão entre o público e o privado, como

sendo o primeiro o espaço do trabalho profissional e o segundo o âmbito do trabalho

doméstico não pago, não se confirma na experiência dessas mulheres. No período

escravista as mulheres trabalhavam sem remuneração na esfera pública e tinham a

privacidade da sua família frequentemente violada.

Emília Viotti (1998) retrata as dificuldades que as mulheres escravizadas no

Brasil enfrentavam para criar seus filhos. Mesmo diante da escassez de braços com o

fim do tráfico, em que as campanhas pelos cuidados com os recém-nascidos tentavam

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estancar a elevada mortalidade infantil, não raro as mulheres levavam seus bebês para

os cafezais. Em um contexto como esse a constituição de uma família em moldes

tradicionais era um rito impraticável.

Mulher negra com o filho, Salvador, em 1884 (Marc Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles).

Lélia Gonzalez (1984) reforça que a construção estável das relações familiares

na escravidão no Brasil foi inviabilizada de distintas maneiras. Desde a chegada das

primeiras embarcações, milhares de famílias foram arbitrariamente desmembradas. Mas

a violência contra as uniões se perpetua mesmo após a travessia e alocação, pois tanto as

famílias que perduraram quanto aquelas que se formaram na colônia sofriam a ameaça

de dissolução. Isso em função da dura repressão promovida pelos proprietários, ou

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mesmo da venda dos companheiros das trabalhadoras negras que eram alvo do fetiche

senhorial (GONZALEZ, 1984).

Mesmo depois de alforriadas, a formalidade das uniões não figurava como uma

prioridade. Teles (2016) identificou que 72% das trabalhadoras matriculadas no livro de

inscrição de empregados de 1886 eram solteiras. A consulta de Dias (1983) às Atas da

Câmara Municipal de São Paulo verificou também uma preocupação daqueles que

cumpriam o mandato, no início do século XIX, em promover a praxe do casamento

naquela sociedade em que os arranjos afetivos eram predominantemente vividos em

regime de concubinato.

Davis (2016) retrata o trabalho doméstico como uma atividade valorizada e de

suma importância para a população escravizada nos EUA, uma vez que era o único

trabalho dotado de sentido por ser voltado para própria comunidade. Segundo a autora

as atividades domésticas não eram exclusivamente executadas pelas mulheres. A

divisão sexual do trabalho que incumbia às mulheres a costura e a preparação da

comida, e aos homens a caça e o zelo com a horta familiar, não era nem rígida nem

hierárquica, ou seja, havia permuta e as tarefas não eram ranqueadas.

A autora critica a recorrente leitura histórica e sociológica de que o impedimento

do reconhecimento à paternidade imposto pelos proprietários (como forma de blindar o

acesso de seus filhos escravos ao patrimônio) implica necessariamente em um arranjo

matriarcal da família negra. Um estudo promovido pelo governo americano em 1965

atribuía a “patologias” do homem negro a sua carência de autoridade. Seria, portanto,

essa a razão das mazelas sociais enfrentadas pela população negra, carecendo da

introdução do poder másculo para remediar tal cenário. Este aspecto também era

considerado a causa da autonomia conquistada pelas mulheres negras.

No entanto, no que diz respeito à divisão de tarefas domésticas no pós-abolição,

no Brasil, a historiadora Teles (2016) encontra registros que indicam que além dos

cuidados com as roupas e refeições dos companheiros libertos, estas mulheres também

sustentavam algumas despesas concernentes à sobrevivência dos mesmos. O embate

entre a masculinidade castrada e a autoafirmação de uma virilidade gerou conflitos entre

homens e mulheres forros que carregavam consigo diferentes vivências do cativeiro. A

independência da mulher liberta é incompatível com o ideal de feminilidade demandado

pelos homens que tentam reproduzir a relação de poder patriarcal. O exercício da

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sexualidade, autonomia e mobilidade daquelas mulheres despertava reações por vezes

violentas de seus companheiros, como o caso de Francisco Cabinda que em juízo

argumentou:

Voltando no fim de semana não encontrou sua mulher e aparecendo ela pouco depois, o interrogado a repreendeu dizendo-lhe que não era regular seu

procedimento visto que ele tinha alugado casa para sua morada: ao que lhe

respondeu a ofendida que ele não a governava porque ela era forra (TELES,

2013, p. 157).

Segundo Carneiro e Santos (1985) a família nuclear burguesa constitui-se como

um fenômeno recente e não consolidado para a população negra, representando em

maior medida um modelo a ser perseguido e em menor uma configuração possível

diante dos obstáculos de integração social enfrentados por esse grupo social. Essa

condição reflete-se na maneira com que vivenciam os papéis de gênero:

As condições de anomia em que vivia a população negra durante a escravidão

não permitiram ao homem negro exercer sobre a mulher negra a opressão

“paternalisticamente protetora” a que estavam submetidas as mulheres

brancas. Igualmente, as relações estabelecidas entre homem branco e

mulheres negras evidentemente estavam longe de reproduzir as formas de

opressão características das relações de gênero entre brancos (CARNEIRO,

SANTOS, 1985, p. 42).

Os vestígios desse contraste analisado por Carneiro e Santos (1985) ficam ainda

mais nítidos quando confrontamos os arranjos da família negra brasileira lutando por

integração na sociedade capitalista emergente e o da família operário-burguesa ou

família nuclear, analisada por Bertaux (1979) no contexto de formação de uma

sociedade francesa industrial. Segundo o autor, no lar operário as relações familiares são

responsáveis pela conversão dos “papéis” de marido e esposa em “lugares de trabalho

no processo de produção” da força de trabalho. São, portanto, as tarefas incumbidas e

desempenhadas pelas mulheres (compras, refeições, limpeza, criação dos filhos...) que

viabilizam essa produção. No entanto, a discrepância está na caracterização de uma

“política familiar e social do capital” que se esforça por manter a mulher na clausura do

lar (1979, p. 91).

Ao analisar o regime salarial da família nuclear, o autor discorre sobre o trabalho

doméstico não remunerado, quase sempre desempenhado pelas mulheres. Para tal, parte

do pressuposto marxiano de que o salário não paga o trabalho e sim a força de trabalho,

ou seja, o trabalhador não recebe pelo que produz, mas sim pela reprodução da sua força

de trabalho. Nesse sentido, uma vez pago somente com as matérias-primas necessárias

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para essa reprodução, o trabalho doméstico não-remunerado é requerido para efetivar a

manutenção dessa força de trabalho: “pois não comemos carne crua” (1979, p. 94).

Bertaux (1979) prossegue em seu raciocínio ao interpretar que o trabalho não-

remunerado, não é, contudo, gratuito, pois o custo médio da reprodução das energias do

casal estaria embutido em um salário familiar, e no caso dos trabalhadores solteiros,

necessitariam empregar a parte concernente à esposa na externalização desses serviços

(contratação de serviços de faxina, restaurante, lavanderia, etc).

Quando essa reflexão é cotejada no contexto brasileiro faz-se necessário precisar

dois pontos. Primeiramente, o Brasil ocupa historicamente uma posição de dependência

em relação aos países de capitalismo central40, a qual deriva da colonização e perdura

com a emergência do Estado nacional que já se forma endividado. Esse cenário tem

consequências nos rendimentos observados pelos trabalhadores do sul do mundo, uma

vez que a exploração se agudiza nas economias periféricas, em função de uma menor

retenção dos lucros pela burguesia local (escoados para os países hegemônicos) e de

uma menor proteção social e trabalhista. Em segundo lugar, e também em virtude desta

especificidade, deve-se considerar que a ideia de confinamento da mulher no espaço

doméstico, como já mencionado, restringe-se a uma parcela da população feminina que,

em geral, é branca e não teve seu trabalho requerido na esfera pública para o sustento do

lar.

Isto posto, se adotarmos a hipótese do autor e considerarmos que o trabalhador

solteiro remunera outro trabalhador com o resíduo que seria destinado à reprodução da

energia de uma eventual esposa, e considerando ainda que essas tarefas são

historicamente realizadas por mulheres, e em sua maioria negras, na figura da

empregada doméstica41, podemos então inferir que essas trabalhadoras percebem um

salário insuficiente, uma vez que são elas mesmas encarregadas pelo sustento de suas

famílias.

Acerca do papel social atribuído à mulher na família, Abramo (2010) revela que

a noção de trabalho feminino como “força de trabalho secundária” persiste no

40 Acerca dos modelos econômicos importados dos países europeus para a economia brasileira Fernandes

(1976) diz que consistiam em manter a incorporação dependente do Brasil à economia mundial, visando

acelerar o desenvolvimento econômico interno segundo interesses das economias centrais. Não tinha,

portanto, as características estruturais do capitalismo vigente nas nações dominantes. 41 Segundo Ipea (2016), em 2014, 92% das pessoas ocupadas em serviços domésticos eram mulheres e

65% negras.

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imaginário dos formuladores de políticas públicas. Essa premissa é sustentada pela ideia

de uma família nuclear na qual o homem cumpriria a função central de “provedor” e a

mulher atuaria como mera “cuidadora”. Contudo, esse argumento contradiz os dados

empíricos que contestam a hegemonia deste modelo, como veremos a seguir

(ABRAMO, 2010, p. 18).

Se de um lado, o percurso histórico acerca da participação da força de trabalho

feminina indica, segundo Abramo (2010), que esta predominava nos primórdios do

século XX na América Latina e formava a maior parte do contingente de trabalhadores

no segmento industrial; do outro, ressalte-se que as mulheres negras no Brasil

estiveram, desde o pós-abolição, ocupadas predominantemente em atividades ligadas à

esfera reprodutiva, como no trabalho doméstico, ou em ocupações informais42. Embora

tenha existido entre os anos 1920 e 1940 um apelo do discurso dominante pela “volta ao

lar”, numa tentativa de “construção da domesticidade feminina como parte do processo

de domesticação da classe trabalhadora”, esse retorno foi restrito a frações de grupos

familiares que tiveram condições mínimas de subsistência para poder prescindir do

trabalho assalariado da mulher. A partir dos anos 1970, a ampliação da atuação das

mulheres no “trabalho remunerado exercido fora do âmbito doméstico” promove a

retomada do debate sobre o conflito entre trabalho e vida familiar presente desde a

formação do mercado de trabalho assalariado no Brasil (ABRAMO, 2010, p.18).

Ao identificar a origem da noção de “força de trabalho secundária” na separação

e hierarquização entre as esferas pública e privada, na qual a mulher é incumbida à

responsabilidade sobre as tarefas ligadas ao cuidado com o lar e a família, Abramo

(2010) defende como aspecto central a superação desse pressuposto para a elaboração

de políticas promotoras de igualdade de gênero. A desvalorização do trabalho feminino,

criticado pela autora, se faz presente no imaginário empresarial, restringindo

oportunidades pela suposição de uma inadequação dessas trabalhadoras para

determinadas atividades profissionais. Assim, a responsabilização da mulher, construída

socialmente, sobre seu papel cuidador produz na compreensão do setor empresarial a

ideia de que as mulheres são menos comprometidas com o trabalho e trarão mais

prejuízo que os homens, pois precisarão faltar mais, não poderão responder às demandas

da empresa por horas-extras, deslocamentos, assiduidade, etc.

42 No livro Mulher Negra, Sueli Carneiro analisa a série histórica dos Censos de 1960 a 1980 sobre as

ocupações no chamado “baixo terciário”.

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Segundo a mesma autora (2010), essa percepção tem como base a ideia de um

“tipo ideal” de trabalhador de dedicação exclusiva a serviço da organização do trabalho,

o qual supõe a existência de outra pessoa encarregada por todos os outros fatores da

vida privada: a mulher. No entanto, por diversas vezes esta possui também uma

ocupação profissional e enfrenta dupla jornada de trabalho.

Atenta a essa condição de desvalorização social da mulher e na tentativa de

suplantar a noção de que o trabalho feminino seja menos produtivo, a autora enfatiza

que a “configuração do mercado de trabalho e das famílias não se caracteriza mais pelo

confinamento da mulher” (ibidem, p.24). Observa um processo de “reconstrução das

imagens de gênero” em que as oportunidades das mulheres deixam de ser associadas

exclusivamente à vida matrimonial e à maternidade, e passam a considerar também sua

atuação na esfera produtiva, enquanto trabalhadoras. Porém, esse movimento não é

acompanhado pelo reconhecimento social usufruído pelos trabalhadores do sexo

masculino uma vez que estas trabalhadoras defrontam-se ainda com a citada rotulação

do seu trabalho como “secundário”, provocando consequências, por exemplo, nas

desigualdades de rendimentos entre sexos (ABRAMO, 2010).

Para Abramo (2010) a década de 1990 representa um marco nas diretrizes das

entidades internacionais. O caso da OCDE é, para a autora, ilustrativo relativamente ao

possível processo de transformação dos paradigmas, pois a partir desse período os

relatórios passaram a apresentar críticas explícitas à ideia de que a força de trabalho

feminina é acessória. O objetivo da autora em subsidiar políticas que promovam “um

maior equilíbrio entre o trabalho, a família e a vida pessoal como condição

indispensável para uma efetiva igualdade de oportunidades e tratamento entre homens e

mulheres no mundo do trabalho” (2010, p. 17) vai ao encontro das análises elaboradas

pelas autoras Daniele Kergoat e Helena Hirata (2007) no que diz respeito ao

questionamento sobre a compreensão funcionalista presente na ideia de

complementaridade dos sexos, a qual tem como base pressupostos como a divisão de

papéis e tarefas dentro das famílias expressa na separação dos “tipos e modalidades de

empregos que possibilitam a reprodução dos papéis sexuados” (2007, p. 603).

No entanto, essas autoras (2007) identificam uma tendência relativa a essa

“reconstrução das imagens de gênero” que contradiz a expectativa de “equilíbrio”

almejada por Abramo (2010) e referida nos documentos oficiais de órgãos

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internacionais. A 4ª Conferência Mundial sobre as Mulheres em Pequim, organizada

pela Organização das Nações Unidas, em meados da mesma década de 1990, faz alusão

ao “paradigma da parceria”. Ainda que este modelo possa estimular a divisão de tarefas

domésticas no plano individual, acaba por omitir a relação de conflito e contradição

entre os sexos expressas nas práticas sociais, onde a “conciliação” entre a vida familiar

e profissional cabe exclusivamente à mulher.

O cenário global, em 2016 aponta, para uma permanência nas desigualdades

observadas entre homens e mulheres no que diz respeito à jornada no trabalho

remunerado e aquela ligada às tarefas domésticas e cuidados. São, em média, duas vezes

e meia mais atividades domésticas do que os homens. Quando se considera o total de

horas elas têm, em média, dias de trabalho mais longos do que os homens (OIT, 2016).

No caso brasileiro, em 2014 as mulheres dedicavam 21h semanais aos afazeres

domésticos e familiares. Quando somados à jornada profissional totalizam 58h

semanais, superando em 6h a jornada masculina. Nesse mesmo período, a PNAD

indicava que 51,3% dos homens e 90,7% das mulheres declararam realizar algum tipo

de trabalho doméstico (em 2004 eram 46,2 e 91,3 respectivamente) (ONU,2016).

Buscando apreender os reflexos das políticas para as mulheres na França, como

também no Brasil e Japão, Kergoat e Hirata (2007) analisam o contexto de

reestruturação produtiva e identificam a ampliação e a feminização dos empregos em

serviços como o cerne do modelo que desenvolverão como hipótese: a “delegação”.

Essa modalidade de organização sexual do trabalho se desdobra do modelo de

conciliação e aprofunda as contradições presentes nas relações de gênero e raça/etnia.

Trata-se de uma prática social realizada por algumas mulheres que, para poderem

permanecer no mercado de trabalho, externalizam “suas” tarefas domésticas e familiares

para outras mulheres.

A delegação é apresentada como um modelo contingente, reflexo das novas

configurações da divisão sexual do trabalho na Europa. Segundo as autoras, a

conjuntura que, por um lado, acomete as mulheres do hemisfério norte por meio da

intensificação do trabalho, ampliação da jornada, investimento na construção das

carreiras e maior envolvimento pessoal demandado pelas empresas, por outro, revela o

agravamento da precarização e pobreza de um número crescente de mulheres

imigrantes. Daí decorre um cenário de “internacionalização do trabalho reprodutivo”

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que agudiza a relação de concorrência entre essas mulheres. As contradições oriundas

das relações de raça/etnia, classe e sexo que se interseccionam resultam em uma

polarização dos interesses e “acentuação clivagens objetivas entre mulheres”

(KERGOAT, 2007, p. 603).

Os arranjos concebidos para garantir o cumprimento das responsabilidades

familiares e profissionais atribuídos às mulheres também são refletidas no cotidiano das

mulheres subalternizadas. Faxineiras, empregadas domésticas, babás e cuidadoras

veem-se impelidas a delegar a outras mulheres suas tarefas familiares, mas com

consequências ainda mais profundas, uma vez que enfrentam por diversas vezes a

ruptura com seus próprios filhos, ficando a criação e o cuidado destes a cargo de outras

mulheres (avós, tias, irmãs...) (KERGOAT, 2007).

Entretanto, no percurso histórico do mercado de trabalho brasileiro, mencionado

anteriormente, a delegação aparece não apenas como contingência, mas como um

sintoma crônico, produto das marcas de sexo, raça e classe que permeiam a organização

do trabalho. Um dos dados que expressa isso com maior clareza é a caracterização da

trabalhadora doméstica, que até 2013 teve negado o acesso a uma gama de direitos

trabalhistas usufruídos pelos trabalhadores celetistas.

A relação entre a natureza da atividade ligada à esfera reprodutiva e a

composição majoritária de mulheres negras desta categoria profissional remonta a

constituição de um mercado de trabalho assalariado que emerge em um contexto de

abolição da escravidão marcado por políticas profundamente excludentes, as quais,

aliadas à política de importação da força de trabalho estrangeira, impuseram aos ex-

cativos condições de vulnerabilidade extrema, com transformações insuficientes na

qualidade da inserção de força de trabalho em relação àquela vivida no cativeiro.

Contudo, vale destacar que o processo de lutas travadas pelos movimentos

sociais, especialmente pelos movimentos negros, alcançou avanços consideráveis em

termos de integração da população negra no mundo do trabalho. Para as mulheres

negras, o cenário colonial no qual “sua condição biológica propiciou um alargamento

nos níveis de exploração a que estava submetido o negro em geral” adquire novos

aspectos e significados no trabalho assalariado com ganhos significativos. Entretanto, a

manutenção das desigualdades de sexo, raça e classe tem como um dos resultados o

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“confinamento no baixo terciário”, o qual perdura, sobretudo, em ocupações ligadas às

tarefas do lar e do cuidado (CARNEIRO, SANTOS, 1985, p. 15).

O perfil das trabalhadoras domésticas no Brasil expressa avanços quando

analisados em relação ao seu percurso histórico, mas ainda demonstram a atualidade do

critério de sexo e raça na composição dessa ocupação. Em 2014, 14% das mulheres

eram empregadas domésticas e a categoria era majoritariamente feminina (92%), mais

de 6 em cada 10 eram mulheres negras (65%). A precariedade nas relações de trabalho

predomina: 68% sem registro, em sua maioria por trabalhadoras com baixa

escolaridade. Soma-se à informalidade o fato de que essas, além do não acesso aos

direitos vinculados ao trabalho, recebiam 42% do rendimento médio das trabalhadoras.

Entre a totalidade de trabalhadoras negras, 17% eram domésticas, sendo essa a atividade

principal para este grupo, contra 10% das mulheres brancas, ocupadas principalmente

no comércio e indústria (ONU, 2016).

Devemos destacar o marco que simboliza a Emenda Constitucional nº 72 de

2013 e a Lei Complementar nº150 de 2015 para a regulamentação da ocupação após

uma lacuna de décadas sem acesso a uma gama de direitos trabalhistas. A legislação

prevê

(...) a fixação da jornada de trabalho de 44 horas semanais; o

pagamento das horas extraordinárias na forma de horas extras ou através de um banco de horas anual; adicional noturno; seguro

desemprego de um salário mínimo por um período de três meses;

intervalo para descanso durante a jornada de trabalho; as horas

relativas a viagens de trabalho remuneradas em, no mínimo, 25% superior à hora normal; FGTS obrigatório.

Os avanços se fazem notar nos índices observados em 2004 e 2014, no qual o

emprego doméstico sem registro caiu de 12,7% para 9,6%. O serviço doméstico total

também caiu de 17% em 2004 para 13,9% em 2014 (ONU, p. 66).

O alargamento dos níveis de exploração vivenciados pelas mulheres negras, nas

reflexões tecidas por Carneiro e Santos (1985), dialoga com as análises de Creenshaw

(2002) acerca da interseccionalidade dos múltiplos sistemas de subordinação que forjam

as desigualdades historicamente. A autora indica que tais relações sociais incidem de

maneira articulada, estabelecendo lugares sociais e oportunidades desiguais que

desfavorecem sujeitos discriminados em função de marcas sociais. O uso da categoria

analítica interseccionalidade (CRENSHAW, 2002, HIRATA, 2014) auxilia a identificar

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as lacunas provocadas por políticas públicas que acabam por excluir essas mulheres,

seja por seu caráter universalista o qual omite a especificidade das mulheres vitimadas

pelo racismo, quanto pela abordagem especifista, a qual percebe o problema como

demanda exclusivamente racial sem reconhecer a dimensão de gênero em seu bojo.

Nesse sentido, os limites apontados por Kergoat e Hirata (2007) acerca das

políticas francesas orientadas para a conciliação da vida profissional e privada, de modo

a permitir o acesso das mulheres ao emprego, sem, todavia, incluir o homem nessa

problemática, são ainda mais contundentes em uma sociedade cuja formação social

estabelece clivagens estruturais marcadas por estas intersecções complexas. Essa

especificidade é responsável pela manutenção e agudização dos modelos de conciliação

e delegação desde antes da formação do mercado de trabalho assalariado brasileiro.

Creenshaw (2002) atribui à articulação das estruturas sociais com a política o

impacto específico sobre as mulheres que são afetadas pela confluência dessas relações

de poder. A autora exemplifica: as mulheres negras e pobres são particularmente

atingidas por políticas de ajuste da economia, desvalorização salarial, retração dos

serviços prestados, especialmente aqueles ligados à educação e aos cuidados com jovens

e idosos. Nessa lógica, aproxima-se das reflexões de Kergoat e Hirata (2007) no que se

refere à dimensão de classe no momento em que questiona qual o perfil socioeconômico

das mulheres que executarão esses serviços e o daquelas que os externalizarão. O

alinhamento das políticas internacionais com as diretrizes neoliberais tem, desse modo,

consequências desfavoráveis às mulheres marginalizadas.

Por um feminismo afro-latino-americano

Em meados do século XIX foi grande a movimentação do debate sobre a

condição da mulher na sociedade americana. A Convenção de Seneca Falls, em 1848,

foi um marco na organização do movimento feminista, levantando bandeiras que

denunciavam, principalmente, a instituição matrimonial. O eixo que orientou a

Declaração de Seneca Falls centrava-se no impedimento do acesso à propriedade e à

autonomia que o casamento acarretava às mulheres burguesas e de classe média. No

entanto, as demandas que diziam respeito, por exemplo, à exploração das mulheres

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brancas pobres nas fábricas e à luta pela liberdade das mulheres negras no Sul foram

ignoradas.

A Convenção Nacional pelo Direito das Mulheres, realizada dois anos após a de

Seneca Falls em Massachusetts, e a Convenção de Mulheres de Ohio, em 1851, não

puderam virar as costas para urgência das questões levantadas por Sojourner Truth, a

mais eloquente oradora desta última reunião duramente atacada por homens que se

opunham ao voto feminino. Na ocasião em que foi provocada por um dos opositores

que satirizava a suposta incapacidade da mulher de participar da vida política, uma vez

que, segundo ele, não prescindiam da ajuda de um homem sequer para “pular uma poça

ou embarcar em uma carruagem”, respondeu com o emblemático discurso que se

tornaria uma das principais palavras de ordem dos movimentos de mulheres negras

desde o sec. XIX:

Arei a terra, plantei, enchi os celeiros, e nenhum homem podia se igualar a

mim! Não sou eu uma mulher? Eu podia trabalhar tanto e comer tanto quanto

um homem – quando eu conseguia comida – e aguentava o chicote da mesma

forma! Não sou eu uma mulher? Dei à luz treze crianças e vi a maioria ser

vendida como escrava e, quando chorei em meu sofrimento de mãe, ninguém,

exceto Jesus, me ouviu! Não sou eu uma mulher? (DAVIS, 2016, p. 71).

O percurso trilhado por essas mulheres que denunciaram as implicações da

condição racial com a sexual e construíram experiências de resistência e politização

pavimentou a estrada que posteriormente foi trilhada por aquilo que o Manifesto do

Coletivo Combahee River classificou como “feminismo negro contemporâneo”. O

coletivo feminista negro, do qual Audre Lorde é uma das principais integrantes, pontua

que a necessidade de construção de uma organização específica para as mulheres negras

surge a partir da segunda onda do feminismo americano dos anos 1960 e das

experiências vividas no interior dos movimentos negros de luta pela igualdade dos

direitos civis entre os anos 1960 e 1970, como, por exemplo, o Partido dos Panteras

Negras.

O documento datado de 1974 revela que foram os limites encontrados em cada

uma dessas experiências, como também dentro das esquerdas brancas e

predominantemente masculinas, que motivaram a auto-organização das mulheres negras

entorno da singularidade de suas demandas. Tais olhares contribuíram na construção de

uma política que identificava e buscava responder a presença do racismo no movimento

feminista, o machismo dentro dos movimentos negros. O manifesto denuncia também a

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ausência de movimentos progressistas ou partidos políticos de esquerda que tenham um

programa político sério voltado para as opressões vividas por essas mulheres.

Os reflexos dessa experiência podem ser notados também no Brasil. Esse debate

teve na figura de Lélia Gonzalez (1988, 2011) representante proeminente do feminismo

negro brasileiro a levantar críticas muito semelhantes àquelas feitas pelas ativistas do

Coletivo Combahee River aos movimentos negros, feministas e esquerdas brasileiras.

Em sua atuação no movimento feminista apontava que eram também opressoras àquelas

mulheres brancas que lutavam contra o machismo.

Segundo a biografia da autora, escrita por Ratts e Rios (2010), a denúncia de

Gonzalez consistia em apontar que “a liberdade das mulheres estava assentada na

exploração de classe e raça de outras mulheres que não dispunham dos mesmos

privilégios sociais” (RATTS, RIOS, 2010, p. 104). Para Gonzalez (2011) o feminismo

incorria em grave equívoco ao tratar da divisão sexual do trabalho sem articular com seu

correspondente racial, por endossar uma falsa noção de universalidade, que em última

instância parte de um modelo pautado na branquitude patriarcal.

No que se refere à atuação dentro do movimento negro a Gonzalez (1985)

aponta que a reprodução de atitudes machistas dentro dos coletivos excluía as mulheres

dos espaços de decisão e as impeliam para tarefas secundárias consideradas mais

apropriadas para as mulheres. O incômodo gerado por esses conflitos impulsionou a

criação de agrupações de mulheres negras que, sem abandonar sua militância dentro dos

movimentos negros, buscaram criar espaços mais horizontais e atentos à sua condição

de mulher43.

O caso das irmãs Grimké, filhas da classe proprietária da Carolina do Sul que

romperam com sua família para se integrarem ao movimento abolicionista

estadunidense em 1836, é um exemplo apontado por Angela Davis (2016) de êxito na

unidade da luta entre mulheres brancas e negras. Segundo a autora, por terem a

compreensão da indissociabilidade entre a opressão feminina e negra, as irmãs nunca

incorreram na ideia de priorização de uma luta em detrimento de outra. Pelo contrário,

percebiam o caráter interligado das opressões e defendiam que a resistência devia ser

43 Dentre os coletivos mencionados na entrevista estão Aqualtune (1979), Luiza Mahin (1980), Grupo de

Mulheres Negras do Rio de Janeiro (1982) e Nzinga (1983), coletivo de mulheres do qual Lélia Gonzalez

foi a primeira coordenadora, sediado em associação fora das dependências dos coletivos de movimentos

negros mistos (RATTS, RIOS; 2010).

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igualmente articulada. Sua campanha antiescravista, em meio ao movimento de

mulheres, consistia em advertir que a manutenção de sua própria opressão era

asseverada pelo sistema escravista.

Embora o uso da analogia da escravidão como forma de explicitação da opressão

patriarcal tenha aproximado algumas trabalhadoras brancas devido a suas péssimas

condições de trabalho e tacanhos salários, a comparação era na maioria das vezes

acionada pelas mulheres das camadas médias em relação à opressão sentida pelas

mesmas no interior da instituição matrimonial. Essa comparação instrumentalizada pelo

movimento feminista, por vezes, ignorou que para a população negra escravizada isso

significava cativeiro e tortura. O ponto de vista das irmãs Grimkes não era, portanto,

uma regra. Conforme exposto por Davis (2016) as lideranças do movimento sufragista

não só preteriram a luta abolicionista, como também assumiram, por diversas vezes,

uma conduta racista e reacionária.

Quando, no pós Guerra Civil, Elizabeth Stanton, líder do movimento sufragista

americano, teve frustradas as expectativas de acolhida do sufrágio feminino pelo Partido

Republicano, fez um balanço de que o engajamento na campanha abolicionista foi, na

verdade, um tempo dispendido em uma causa estranha às bandeiras das mulheres. O

apoio à campanha parecia ter sido, nesse sentido, uma moeda de troca para a conquista

do voto feminino. Além disso, a estratégia Republicana para garantir sua hegemonia nos

estados do sul por meio da defesa do voto dos homens negros fora lido pela feminista

como uma extensão dos privilégios da masculinidade branca para os negros e chegou a

se opor abertamente contra a permissão do voto a “africanos, chineses e todos os

estrangeiros ignorantes assim que chegam à costa” (DAVIS, 2016, p. 84).

Os privilégios da supremacia branca foram frequentemente evocados para

favorecer a demanda sufragista em detrimento do voto negro. Henry Blackwell,

importante líder sufragista, sugeria que o acesso ao voto fosse condicionado pela

alfabetização formal como uma solução para o “problema do negro” e do estrangeiro

africano. Em 1867, em campanha no Kansas, chegaram a aceitar o apoio de um político

democrata cujo slogan era “primeiro a mulher, por último o negro” (2016, p. 121). Essa

conduta não contradiz o frequente boicote das pautas levantadas pelas militantes negras

em função do desgaste que a adesão à questão racial provocaria nas relações com as

mulheres brancas do sul, pouco dispostas a romper com a escravidão (DAVIS, 2016).

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A jovem Susan B. Anthony, considerada na bibliografia analisada como uma das

mais importantes referências da militância feminista, pressupunha ser a sujeição das

mulheres a mais grave dentre todas as “oligarquias”, pois segunda ela, as relações de

poder que subjugavam pobres, africanos e iletrados eram passíveis de serem suportadas,

ao contrário da sujeição sexista dentro dos lares americanos (DAVIS, 2016). A

interpretação de Anthony é oposta a não hierarquização das opressões defendida pelo

Coletivo Combahee River. Segundo o manifesto do coletivo, o lugar social ocupado

pela mulher negra dificultava o exame isolado das opressões de raça, classe e sexo, uma

vez que em suas vidas sentiam-nas simultaneamente.

Essa perspectiva acompanhou a história do feminismo branco hegemônico

provocando embates que explicitavam que a pretensa universalidade, reivindicada por

suas lideranças, excluía as demandas suscitadas pelas mulheres não-brancas. A

psicóloga feminista Conceição Nogueira (2017) localiza a emergência da categoria

interseccionalidade e o papel do feminismo negro na desmistificação da homogeneidade

da categoria “mulher”, em sua análise sobre as ondas do feminismo desde o século XIX.

Apesar de Nogueira (2017) alertar que os limites entre as ondas feministas são

permeáveis e fluidos, sendo possível a coexistência entre correntes e posições de

intervalos diversos, a autora considera didática a periodização em função das temáticas

que marcaram predominantemente cada uma delas. A primeira onda compreendida

entre meados do século XIX e os anos 1960, empenhou-se, sobretudo na luta por

igualdade dos direitos civis e políticos das mulheres, tendo como destaque o supracitado

movimento sufragista (NOGUEIRA, 2017).

A segunda onda, a qual se estende dos anos 1960 até meados dos anos 1980

inclui na pauta do movimento as relações de desigualdade vividas não só na esfera

pública como também nas relações interpessoais da esfera privada, especialmente no

interior das famílias. As políticas de reprodução, a exemplo do debate sobre a

contracepção e aborto, ganharam visibilidade para essa geração que se engajou pela luta

contra a objetificação e mercantilização do corpo e sexualidade femininos

(NOGUEIRA, 2017). Angela Davis (2016) assinala que a baixa adesão de mulheres

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não-brancas na campanha pela legalização do aborto nos EUA em 1973 tem como base

as questões eugenistas44 arraigadas no movimento pelo controle de natalidade.

O argumento das lideranças sobre a inconsciência das mulheres de minorias

étnicas sobre a importância desta bandeira não parece coerente com a condição concreta

enfrentada pelas mulheres negras e porto-riquenhas, as quais representavam 80% das

mortes causadas por abortos ilegais em Nova York nos anos que precederam a

legalização do procedimento. Davis (2016) contra argumenta recuperando o histórico

racista do movimento de controle de natalidade o qual advogou pela esterilização

involuntária de pessoas consideradas “inaptas”, evidentemente influenciadas pela

Sociedade Eugenista.

Não se tratava, portanto, de uma oposição das mulheres negras à legalização do

aborto, mas sim da rejeição ao “Projeto Negro” da Federação dos EUA pelo Controle de

Natalidade, interpretado como política genocida pelo movimento negro e endossado

pelo movimento de controle de natalidade dos qual as ativistas pelo direito ao aborto

eram herdeiras. O projeto partia da seguinte premissa:

A massa de negros, particularmente no Sul, ainda procria de forma negligente

e desastrosa, o que resulta no aumento, entre os negros ainda mais do que

entre os brancos, daquela parte da população que é menos apta e menos capaz

de criar filhos de maneira apropriada (DAVIS, 2016, p. 217).

Em resposta às análises estruturalistas da segunda onda, que por vezes partiam

de um pressuposto universalizante, a terceira onda busca superar os essencialismos com

uma abordagem atenta à pluralidade dos sujeitos e seus contextos históricos, que

segundo Nogueira (2017) eram negligenciados na segunda onda. O feminismo negro

ganha proeminência nesse debate, ora somando-se às críticas pós-estruturalistas ao

reforçar a multiplicidade dos contextos e identidades, ora contrastando dessa orientação

ao recuperar a historicidade das relações sociais estruturantes (NOGUEIRA, 2017;

BRAH, 2006).

Jurema Werneck (2010) afirma que “as mulheres negras não existem”,

relativamente à diversidade de identidades. Essa provocação tem como intuito revelar

que a identidade “mulher negra” é forjada social e politicamente em função das

dinâmicas histórico-político-culturais situadas em relações sociais racializadas de

44 Sobre isso ver Racismo, eugenia no pensamento conservador brasileiro: a proposta de povo em Renato

Kehl. GÓES, Werber Lopes. UNESP, Marília – SP, 2015.

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colonialidade. As identidades são, no entanto, contraditórias e dialéticas uma vez que

permanentemente atribuídas pelo dominador e ressignificadas pelo dominado. Segundo

a autora a instabilidade expressa o caráter político dessa identidade que não existiria

sem a junção dos fatores: colonização racista patriarcal, o vigor contemporâneo desses

esquemas de dominação na modernidade capitalista, e a resistência.

A categoria interseccionalidade foi cunhada pela jurista negra, Kimberle

Crenshaw (1989, 1991) nos anos 1980. Com o intuito de discutir as debilidades da visão

fragmentada que orienta algumas políticas públicas para combate às opressões e

desigualdades sociais, a autora coloca no centro da análise as experiências de vida das

mulheres negras norte-americanas. Por meio da explicitação da multidimensionalidade

das experiências dos sujeitos marginalizados é possível identificar a “diferença dentro

da diferença” (CRENSHAW, 2002, p. 9).

A interseccionalidade é definida, nesse sentido, como uma conceituação

metafórica que

(...) busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos de subordinação. Ela trata especificamente da forma

pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas

discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam posições

relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras (CRENSHAW, 2002,

p.177).

Como pode ser notado na breve exposição do percurso histórico do feminismo

negro, vale destacar que a originalidade da proposição de Crenshaw está em

sistematizar um argumento frequentemente mobilizado pelas mulheres ativistas e

intelectuais que a antecederam sobre a fragilidade da noção universal de mulher.

Segundo Nogueira (2017, p. 40), “No fundo, a interseccionalidade deu um nome a um

compromisso teórico e político previamente existente”.

Em 2006, Daniele Kergoat apresenta sua crítica à categoria interseccionalidade

publicamente pela primeira vez no Congresso da Associação Francesa de Sociologia,

em Grenoble, publicada em forma de artigo em 2009. Neste trabalho, a autora faz a

revisão do conceito de consubstancialidade, cunhado no final dos anos 1970, o qual

articulava as relações de sexo e classe para analisar as práticas sociais. A autora define a

dinâmica das relações sociais em sua categorização como: 1) consubstanciais, ou seja,

constituem um nó que apenas pode ser desatado na análise sociológica; 2) coextensivas,

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isto é, produzem-se e coproduzem-se mutuamente. O conceito passa, a partir de 2006, a

incluir a dimensão racial em sua análise da imbricação das relações sociais.

Dentre as principais críticas direcionadas para as intelectuais da

interseccionalidade estão: 1) o entendimento de que a “analogia geométrica” pode

acarretar em uma naturalização das categorias por se tratar de categorias fixas, 2) a

análise tende a ser a-histórica por se restringir ao exame das categorias da dominação ou

ao fenômeno da dominação sem, contudo, considerar as relações sociais históricas e

materiais dessa dominação, 3) a secundarização da dimensão de classe social

(KERGOAT, 2010; HIRATA,2014, 2017; FALQUET, 2008).

Para verificar tais limites apontados pelas feministas materialistas francesas

julgamos válido confrontar tais apontamentos com a produção de algumas das

principais autoras que advogam pela perspectiva interseccional. Em primeiro lugar, o

esquema construído por Creenshaw para explicar como operam os eixos que se

interseccionam merece um exame mais atento. A autora usa a imagem do Grand

Canyon como representação da estrutura pela qual fluem as discriminações. Elege essa

figura por terem sido os desfiladeiros escavados pelos fluxos d’água ao longo do tempo.

A pressão da água simboliza as políticas e práticas que se perpetuam em função da raça

e gênero criando sulcos profundos na estrutura, aquilo que ela compreende como eixos

de discriminação.

O fluido que transita nesses eixos/sulcos são a parte ativa da discriminação.

Aquelas que quando se chocam nos entroncamentos afetam grupos específicos que se

localizam nessa intersecção. Essa colisão é agravada por aquilo que a autora irá definir

como discriminações estruturais, que, a priori, não são direcionadas a grupos

específicos, por não se tratar de políticas pontuais e sim de orientações internacionais de

caráter socioeconômico, que quando combinados com as outras discriminações

penalizam ainda mais estas mulheres que foram posicionadas na base da estrutura

socioeconômica. Essa combinação é o que a autora definirá como “subordinação

estrutural: a confluência entre gênero, classe, globalização e raça” (CREENSHAW,

2002, p. 14).

Avtar Brah (2006) também trata da análise das diferenças, situando os

marcadores sociais tanto no contexto quanto na formação social nos quais estão

inseridos. A autora mobiliza o conceito de “diferença como relação social” para

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articular micro e macro regimes de poder, partindo das formações estruturadas de raça,

classe e gênero. A categoria “classe trabalhadora”, por exemplo, é designada não apenas

em sua dimensão subordinada às estruturas socioeconômicas como também considera

os sistemas de representação da categoria em uma perspectiva cultural.

Essa articulação implica em não analisar temas macro como ‘os legados da

escravidão’, ‘colonialismo’, ‘nova divisão internacional do trabalho’, dentre outros,

como um âmbito mais elevado da abstração. A autora propõe um olhar que observe

essas relações sociais de diferença sem restringi-las ao nível econômico, político e

institucional, mas reconhecendo a sua realização nos espaços cotidianos e na construção

da subjetividade e identidade dos sujeitos. Nesse sentido, as relações sociais “são

constituídas e operam em todos os lugares de uma formação social. Isso significa que,

na prática, a experiência como relação social e como o cotidiano da experiência vivida

não habitam espaços mutuamente exclusivos (BRAH, 2006, p. 364).

Nogueira (2017) identifica na produção teórica das intelectuais negras, que

adotam a categoria interseccionalidade, uma contribuição no sentido de recusar a visão

inspirada pelas teorias pós-modernas de algumas autoras da terceira vaga, que

superestimam a capacidade de transformação e agência individual, afirmando a

existência de constrangimentos estruturais. Collins (1998) critica essa orientação que

parece inverter a palavra de ordem mais significativa da segunda onda de “O pessoal é

político” para o “político é pessoal”. Segundo a autora essa tendência configura um tipo

de resistência voluntarista que ignora as bases materiais da opressão. Em contrapartida a

interseccionalidade avança em relação às teorias estruturalistas por outra via:

articulando a teorização histórica com o exame das especificidades culturais e

contextuais.

Ainda que muitos apontamentos críticos feitos por Kergoat (2010) sejam

respondidos em alguma medida pela produção das autoras interseccionais, o debate

suscitado influenciou e permanece influenciando outras feministas materialistas

francesas e brasileiras, como Jules Falquet (2008), que elaborou a ideia de co-formação

das relações de poder, definida por ela como “imbricadas e consubstanciais” em

oposição à ideia de interseccionalidade. A autora Helena Hirata (2014, 2017), adota o

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uso da categoria interseccionalidade como sinônimo de consubstancialidade45, porém

reforça em seu trabalho as mesmas críticas de Kergoat supracitadas à

interseccionalidade.

O uso das categorias como sinônimos é rejeitado, inclusive, por Kergoat, que em

artigo mais recente (2014) tira os holofotes das críticas aqui mencionadas e passa a

centrar a diferenciação nos contextos em que os conceitos foram forjados. Para a autora

a conjuntura que privilegiava a raça, nos Estados Unidos, em detrimento da classe, e,

inversamente, enfatizava a classe social com prejuízos à raça, na França, elucida as

supostas inclinações de cada teoria. De acordo com a autora a década de 1970 é

caracterizada pelos movimentos de luta pelos direitos civis da população negra e de um

movimento trabalhista e feminista consideravelmente enfraquecido pelo anticomunismo

da Guerra Fria.

No caso francês, ainda do ponto de vista de Kergoat (2014), o movimento

feminista (tanto acadêmico quanto ativista) era herdeiro de uma sociedade do pós-

guerra marcada pelas lutas centradas na relação capital/trabalho e pelos debates

acalorados da esquerda comunista. Por outro lado, a formulação teórica de Creenshaw,

Collins e outras autoras da interseccionalidade, teria como pano de fundo o debate sobre

a história da escravidão e das relações raciais pós-emancipação, e se localiza na

especificidade do racismo americano que, como qualquer outro, é fruto de uma

construção histórica, social e política particular.

A autora atribui a esses fatores aquilo que entende como uma resistência das

americanas à herança marxista e aos estudos da classe, cuja abordagem culturalista teria

preterido o referencial teórico marxiano dialético “desmaterializando” (de materialismo)

o sexo e a raça. Essa divergência de contextos é utilizada também como justificativa

para a atenção ínfima ou pouco visível que as questões raciais tiveram na emergência da

conceituação da consubstancialidade.

Se só pudermos nos alegrar da abertura na França aos problemas de

Feministas minoritárias anglófonas, em sua análise de pós-coloniais e as

oposições resultantes [...] seria lamentável que, nesse novo diálogo,

desistíssemos do que temos para colecionar o que não temos [grifo nosso]

(JUTEAU, 2010, p. 81).

45 A autora propõe “interseccionalidade de geometria variável” como expressão de consenso (HIRATA,

2014, 2017).

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Não obstante, duas questões surgem-nos: Primeiramente, é sabido e assumido

que as teóricas interseccionais são grandes devedoras da obra de Angela Davis,

feminista negra, marxista e integrante do Partido Comunista dos Estados Unidos, que,

como já indicado neste texto, partilhava do compromisso teórico da articulação das

relações sociais de raça, classe e gênero. Além dessa influência, o legado da luta pelos

direitos civis da população negra também não nos parece passível de ser desassociado

de um dos principais partidos, o Black Panther Party, cuja acolhida de diversas

correntes marxistas é uma das principais marcas.

Em segundo lugar, nos anos 1970, a França ainda mantinha colônias em África,

a despeito dos processos de independência que se espalhavam pelo continente. O fluxo

migratório permanente antes e depois das independências dos países africanos para a

França46 atrelado à emergência da teorização pós-colonial, a exemplo da importância do

pensamento de Franz Fannon e seu engajamento na luta argelina, são aspectos que nos

levam a pensar que era este um contexto propício para o debate sobre a colonialidade,

neocolonialidade e racismo.

Heleieth Safioti (2015), socióloga brasileira, converge com as reflexões das

autoras da interseccionalidade e consubstancialidade no que tange ao reconhecimento da

raça, gênero e classe social como eixos estruturantes da sociedade. A autora assume a

categoria nó como metáfora para demonstrar que a inter-relação destes não pode ser

definida pelas características de cada um desses eixos isoladamente. Segundo a autora

“não se trata de somar racismo + gênero + classe social, mas de perceber a realidade

compósita e nova que resulta desta fusão” (SAFIOTI, 2015, p. 122).

Avança ainda advertindo que o nó não pode ser justo a ponto de impedir a

mobilidade dos fios que o compõe. Este nó deve, com efeito, ser frouxo. Com isso

Safioti (2015) que dizer que a imbricação das relações sociais não é fixa e sim

historicamente construída. Para a autora as relações sociais devem ser analisadas

conjuntamente no plano da micro e macropolítica, sem hierarquizá-los. Estas duas

dimensões podem ser retratadas como uma malha grossa e outra fina que, ao contrário

de se excluírem, são o avesso uma da outra.

46 Para mais informações ler A migração pós-colonial e as identidades nacionais de Argélia e França:

nation building e securitização. CESARO, Filipe Seefeldt de. 2015. Santa Maria – RS, Brasil.

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A apreensão do debate sobre as várias interpretações teóricas relativamente às

relações sociais que determinam as dimensões da vida pessoal e profissional das

mulheres negras contribui para reflexão dos instrumentos de análise de que dispomos.

Nesse sentido, identificamos na obra de Lélia Gonzalez (1982, 1988, 2011) um

importante subsídio para o exame da condição da mulher negra na sociedade brasileira.

Sua teoria centra-se no exame da construção dos lugares sociais das mulheres não-

brancas. Segundo a autora, a condição sexual e racial dessas mulheres submete-as a

níveis ainda mais elevados de opressão e exploração pelo capitalismo patriarcal-racista,

constituindo uma discriminação triplamente determinada, ao se combinar com sua

posição de classe.

Em sua obra aprofundou-se nos estudos sobre o racismo estabelecido nas

sociedades latinas, atentando-se para os aspectos que aproximam e distinguem a

realidade dos outros países do caso brasileiro. Gonzalez (1988) identifica no racismo

latino-americano uma sofisticação no que diz respeito às formas através das quais a

população negra e indígena é mantida enclausurada nas classes mais exploradas. A

autora elucida essa especificidade ao situar a formação do “proletariado

afrolatinoamericano” (GONZALEZ, 1988, p. 17) em uma formação social atravessada

pela ideologia do branqueamento, discutida no primeiro capítulo.

Exemplo dessa orientação foi a supressão da recolha dos dados étnico-raciais nas

pesquisas censitárias de vários países latinos pós-independência. A imagem do indígena

é mistificada e mobilizada como símbolo oficial de resistência pelos mesmos Estados

que perpetuam a marginalização desses povos. No caso da população negra, a

abordagem dos historiadores e sociólogos, em seus estudos, frequentemente descreve a

abolição da escravatura como marco da integração negra na sociedade moderna, sendo

consideradas as desigualdades como resquícios anacrônicos dos tempos do cativeiro

(GONZALEZ, 1988).

Gonzalez responsabiliza o mito da democracia racial, também já mencionado

aqui, pela invisibilidade das contradições de matriz racial. Essa negligência propaga-se

nos movimentos sociais, sejam de esquerda, comprometendo suas análises da realidade

social ao reduzi-las às contradições de classe, como no feminismo, que segundo a autora

perde sua força ao “tratar, por exemplo, da divisão sexual do trabalho sem articulá-la

com seu correspondente em nível racial”, perdê-lo de vista significa “recair numa

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espécie de racionalismo universal abstrato, típico de um discurso masculinizado e

branco” (GONZALEZ, 2011, p. 14).

Com o objetivo de compreender o porquê dessa opção por suprimir/não aludir

tal perspectiva a autora recorre ao pensamento psicanalítico lacaniano, de onde empresta

o conceito de infante. Esse conceito é usado pelo autor para analisar a formação

psíquica na infância, fase na qual a criança é referida sempre na terceira pessoa, mesmo

em sua presença. Trata-se, portanto, de um indivíduo que é permanentemente ignorado,

excluído, e que em última instância não é sujeito de seu próprio discurso. Gonzalez

relaciona esta reflexão com a infantilização da mulher negra no interior desses

movimentos:

Da mesma forma, nós mulheres e não-brancas, fomos “faladas”, definidas e classificadas por um sistema ideológico de dominação que nos infantiliza. Ao

impor-nos um lugar inferior no interior da sua hierarquia (apoiadas nas

nossas condições biológicas de sexo e raça), suprime nossa humanidade

justamente porque nos nega o direito de ser sujeitos não só do nosso próprio

discurso, senão da nossa própria história. É desnecessário dizer que com

todas essas características, nos estamos referindo ao sistema patriarcal-

racista. Consequentemente, o feminismo coerente consigo mesmo não pode

dar ênfase a dimensão racial. Se assim o fizera, estaria contraditoriamente

aceitando e reproduzindo a infantilização desse sistema, e isto é alienação

(GONZALEZ, 2011, p. 14)

Comprometida com a superação do capitalismo racista-patriarcal dependente,

típico das economias latinas, e atenta às crises e reestruturações desse modo de

produção, verificou que a crise que penaliza este capitalismo de tipo dependente atinge

cada setor social em proporções diferentes, e, em função disso, acaba por revelar

campos de conflito e atores sociais outrora apagados.

A intensidade e forma com que são sentidas a opressão e exploração de acordo

com posição social dos sujeitos produzem, por outro lado, modalidades de participação

política plurais. A luta pela sobrevivência individual e familiar vivenciada pelas

mulheres amefricanas (GONZALEZ, 2011) e ameríndias oportuniza a organização

coletiva na esfera privada, como também a atuação predominantemente no mercado

informal incentiva novas reivindicações no mundo do trabalho.

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Mulheres negras no mercado de trabalho

A partir de 2010 o Censo passa a registrar a população negra como maioria entre

os brasileiros, atingindo a porcentagem de 50,7%. Em 2015, a PNAD atualizou este

dado para 55% da população brasileira. No mesmo período, as negras passam a ser

maioria entre as mulheres: de 45%, em 2004, para 50,9%, em 2014. Com relação à

população total no Brasil, as mulheres negras representavam 26,5%, das quais 21,5

milhões estavam ocupadas no mercado de trabalho (ONU, 2016; GEMAA, 2017).

O crescimento dos postos de trabalho formais dos últimos anos promoveu uma

maior participação dos negros no total de ocupados em todas as regiões metropolitanas,

no intervalo em 2013 e 2014, acompanhadas pelo Sistema PED/DIEESE47. Em 2014, as

mulheres negras equivaliam a 28,06% da População Economicamente Ativa (PEA), a

27,5% dos ocupados e a 33,92% dos desempregados, das áreas metropolitanas de

Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Salvador e São Paulo (DIEESE, PED, p.3)48.

O rendimento médio dos trabalhadores negros cresceu em proporção maior do

que o dos não negros nas regiões analisadas, entre 2011 e 2014. Embora tenha reduzido

com essa elevação dos rendimentos médios dos negros, persiste significativa a

desigualdade dos rendimentos médios por hora trabalhada entre negros e não negros.

Em 2014, os negros ganhavam entre 62,7% (em Salvador) e 77,5% (em Fortaleza) do

rendimento médio por hora dos não negros (DIEESE, PED). Em 2017 a diferença

salarial por grupos de cor e raça ficou praticamente estagnada R$2736 para brancos,

R$1537 para pretos e R$1529 para pardos49.

Segundo o Relatório das Desigualdades Raça, Gênero e Classe, construído pelo

Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA), a partir dos dados

da PNAD no intervalo que compreende os anos de 2011 e 2015 e a população adulta

entre 18 e 64 anos, os brancos predominam, em 2015, como grupo entre as faixas

47 A análise das informações da Pesquisa de Emprego e Desemprego - Sistema PED é realizada por meio do Convênio entre o DIEESE, a Fundação Seade, o Ministério do Trabalho e Previdência Social

(MTPS/FAT) e parceiros regionais nas regiões metropolitanas de Fortaleza, Porto Alegre, Recife,

Salvador e São Paulo 48A RAIS de 2015 apresenta, no entanto, uma queda nos empregos formais para todas as raças a partir de

2015. “Conforme os anos anteriores, os dados da variável raça/cor na RAIS 2015 tomaram como

referência apenas vínculos empregatícios celetistas. Os vínculos estatutários não serão abordados no

recorte raça/cor por não apresentarem o mesmo nível de confiabilidade das demais variáveis da RAIS”

RAIS 2015 49 Disponível em http://economia.estadao.com.br/blogs/nos-eixos/como-raca-e-genero-ainda-afetam-as-

suas-chances-de-conseguir-emprego-e-bons-salarios/

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salariais acima de 1 salário mínimo. As diferenças entre pretos e pardos são

proporcionalmente menores, mas pretos tem maior inserção na faixa de até ½ salário

mínimo (31%, contra 29% dos pardos e 15% dos brancos), enquanto pardos saltam a

frente na faixa que varia entre ½ e 2 salários mínimos, comparativamente aos pretos

(GEMAA, 2017).

Os dados da PNAD demonstram que, apesar do aumento da renda familiar no

período para todos os grupos, a desigualdade entre brancos e negros permaneceu

inalterada. O rendimento dos brancos é em média 80% maior do que dos negros

(Gráfico 1). Pode-se observar também que a desigualdade é mais destacada quando se

compara o rendimento nos grupos ocupacionais de alto nível, como profissionais

administradores, pequenos proprietários, empregadores, entre outros. Os segmentos

menos qualificados e manuais apresentam menor disparidade de rendimento entre

brancos e negros, embora o grupo branco permaneça beneficiado (GEMAA, 2017).

Gráfico 1 – média da renda familiar per capita por raça/cor entre 2011 e 2015

Fonte: GEMAA, 2017 a partir de dados do IBGE

A desvalorização da força de trabalho da mulher negra é ainda mais acentuada:

apesar da evolução positiva dos rendimentos médios por hora auferidos pelas mulheres

negras, em 2014, em proporção manteve-se inferior em relação ao dos homens brancos,

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correspondendo a 61,7%, em Porto Alegre; 59,0% em Fortaleza; 58,1%, em Recife;

53,6%, em Salvador e; 51,6%, em São Paulo (DIEESE, 2015).

As desigualdades raciais de rendimento se acentuam a medida que a

escolarização das mulheres se eleva, segundo a PNAD de 2014: 31% para as mais

escolarizadas e 13% para as menos. No mesmo ano, a PED/DIEESE apontou a mesma

tendência no que diz respeito à raça, quando os trabalhadores celetistas negros recebiam

remuneração equivalente a 90,7% e 69,9% dos brancos, para os menos e mais

instruídos, respectivamente.

No ano de 2015, a PNAD apresenta discrepância no que diz respeito às médias

de anos de estudos de acordo com os grupos raciais. Brancos atingem 10 anos de

escolaridade contra 8 anos do grupo negro. Comparando-se com os anos médios

percebidos por brancos e negros, 9 e 7 anos, consecutivamente, é possível concluir que

neste período a desigualdade ficou inalterada, embora todos os grupos tenham sido

beneficiados. Quando acrescentada a variável de gênero, observa-se que as mulheres

possuem médias superiores que os homens, no entanto são as mulheres brancas que

possuem maior tempo de formação: 10 anos das mulheres brancas contra 8 anos das

não-brancas (Gráfico 2).

Gráfico 2 – Média dos anos de escolaridade por raça/cor e gênero no Brasil (2011-2015)

Fonte: GEMAA, a partir de dados do IBGE

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O Relatório do grupo GEMAA elaborou, a partir dos dados da PNAD de 2015, a

categorização de grupos a partir da junção dos elementos de posse de propriedade,

autoridade social ou laboral e qualificação. As classificações são: 1) possuidores – são

os que abrangem todos os elementos; 2) não destituídos – que detêm ao menos um dos

elementos; 3) destituídos – não são proprietários, nem qualificados e nem ocupam

cargos de autoridade. Os brancos são maioria nas categorias dos possuidores (três vezes

mais que negros) e não destituídos, ao passo que pretos e pardos predominam no grupo

dos destituídos (GEMAA, 2017).

Em relação à representatividade nas categorias ocupacionais em termos raciais, o

relatório depreende que

Podemos perceber que os brancos representam a maioria nas classes sociais

[lê-se categorias ocupacionais] de maior status e com maiores rendimentos

(profissionais, administradores, trabalhadores de atividades não manuais,

etc.). Pretos e pardos encontram‐se, em contrapartida, mais representados nos

estratos médios e inferiores (trabalhadores manuais, trabalhadores rurais, etc.). Notamos no gráfico uma verdadeira divisão racial do trabalho, com os

brancos super‐representados nas ocupações intelectuais e os não brancos

super‐representados no trabalho manual, com destaque para a alta proporção

de pretos nos serviços domésticos (GEMAA, 2017, p. 11).

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Fonte: GEMAA, a partir de dados do IBGE

O estudo Igualdade de Gênero e Raça no Trabalho: avanços e desafios (OIT,

2010) sugere que os dados acerca da inserção das mulheres e negros no mercado de

trabalho apresentam interrelações entre essas duas dimensões da desigualdade,

revelando que os determinantes de sexo têm maior impacto sobre os índices referentes

ao acesso e à permanência no trabalho (taxas de participação e desemprego) e os

determinantes de raça incidem sobre os aspectos pertinentes à qualidade do emprego

(informalidade). Nesse sentido, as mulheres negras, situadas na intersecção desses

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determinantes, são duplamente desfavorecidas nos diversos âmbitos que compõem sua

condição de trabalhadora.

A evolução do padrão ocupacional, em 2013, apresenta redução da participação

feminina em ocupações mais precárias, como trabalho doméstico e vendedoras

ambulantes. No entanto, o crescimento da participação em ocupações como atendentes

de creche e acompanhantes de idosos (incremento de 79%) e auxiliares e técnicos de

enfermagem (incremento de 71%) demonstra uma possível migração para outras áreas

relacionadas ao cuidado e à esfera reprodutiva (ONU, 2016).

A imagem construída sobre o espectro da mulher mãe e dona de casa continua

contribuindo para forjar uma percepção estereotipada sobre as profissões e ocupações

“adequadas” para as mulheres. Além disso, tais atividades atribuídas a elas são ainda

um obstáculo no acesso, permanência e ascensão profissional. O documento formulado

pela ONU afirma que as mulheres em idade ativa são hoje prejudicadas em menor

medida pela gravidez e mais pelas dificuldades enfrentadas com os cuidados com os

filhos, idosos etc. devido à omissão dos companheiros e à ausência de serviços públicos

que ofereçam condições para isso. Em 2014, mais de 35 milhões de mulheres estavam

empenhadas exclusivamente em atividades voltadas para a reprodução social

(procriação, manutenção da força de trabalho, família etc.).

A configuração das famílias sofreu modificações consideráveis historicamente,

determinada, entre outros elementos, pela taxa de fecundidade, a qual declinou de 6,3,

desde o censo dos anos 1970, para 1,9, em 2010 no Brasil (ONU). Contudo, os papéis

sociais conservam relações intrafamiliares perpetuadoras de desigualdades as quais

extrapolam a vida privada. A porcentagem de jovens negras que não estudam nem

trabalham é um dado ilustrativo, já que a permanência de suas mães no mercado de

trabalho é viabilizada pela transferência de responsabilidades com os cuidados com

familiares (filhos, irmãos, idosos enfermos) para essas jovens.

Com efeito, segundo estudo realizado pela OIT (Constanzi, 2009, dados para

2006), 29% das jovens mulheres negras no Brasil não estudam e nem

trabalham; para as jovens mulheres brancas essa porcentagem era de 22,4%,

enquanto para os jovens homens negros era de 13% e para os jovens homens

brancos era de 10,3%. (ABRAMO, p.22)

Constanzi (2009) indica que as políticas públicas podem ser um importante

instrumento para reverter tal quadro, favorecendo a conciliação da esfera produtiva e

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reprodutiva na vida dessas mulheres. No entanto, procuraremos discutir, a partir da

contribuição dos autores supracitados, a noção de conciliação à luz das políticas

públicas formuladas com o intuito de transformarem as condições de acesso e

permanência das mulheres negras no mercado de trabalho brasileiro, como também

aquelas idealizadas com um escopo mais geral, mas que tiveram desdobramentos na

trajetória profissional e nas condições de vida dessas trabalhadoras.

Mulheres negras e políticas públicas

A luta pela construção de uma institucionalidade que fomentasse

permanentemente uma agenda pública voltada às demandas das populações feminina e

negra no país teve como um de seus marcos o ano de 2003, quando, no então governo

do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, duas secretarias foram criadas com este fim, a

saber: Secretaria de Políticas para as Mulheres e da Secretaria de Políticas de Promoção

da Igualdade Racial (SEPPIR) da Presidência da República. Em caráter complementar

foram formados espaços acessórios para subsidiá-las na formulação das políticas

públicas: Comitê Permanente de Gênero, Raça e Etnia e a Comissão Tripartite de

Igualdade de Oportunidades e Tratamento de Gênero e Raça no Emprego, vinculadas ao

Ministério do Trabalho e Emprego.

O mapeamento das políticas e programas orientados pelo Plano Nacional de

Políticas para as Mulheres - PNPM nesse período é categorizado, por Abramo (OIT,

2010), nos seguintes tipos: 1) Combate à pobreza: transferência condicionada de renda,

extensão acesso aos serviços públicos (Bolsa Família, Luz para todos, Documentação

mulher trabalhadora). 2) Ampliação do acesso das mulheres a terra, crédito e assistência

técnica, dirigidos a mulheres desempregadas, inativas ou na economia informal.

(Programas voltados para a agricultura familiar, titulação conjunta da terra). 3) Politicas

ativas do mercado de trabalho para desempregados e trabalhadores informais de baixa

escolaridade (Plano Nacional de Qualificação Social e Profissional). 4) Condições de

trabalho no interior das empresas. (Programa pro-equidade de Gênero). Estes objetivos

seriam viabilizados por estratégias voltadas para a universalização das politicas

existentes, criação de políticas específicas, transversalização do tema gênero, formação

dos gestores e monitoramento permanente (OIT, 2010).

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A atuação do Estado no combate à pobreza, em princípio um projeto de caráter

universal, tem implicações específicas em grupos sociais mais atingidos por esta

mazela. A criação do banco de dados Cadastro Único50 permitiu um mapeamento das

carências e vulnerabilidades sociais e do perfil da população atendida pelos programas

assistenciais. Dentre as famílias inscritas no CadÚnico, 88% delas eram chefiadas por

mulheres em 2014 (esse dado se eleva para 93% quando consideradas apenas as

famílias contempladas com os benefícios), dessas 68% eram chefiadas por mulheres

negras.

Nesse sentido, os ganhos registrados pelos indicadores sociais têm particular

efeito na melhoria das condições de vida das mulheres situadas na intersecção das

desigualdades estruturais e estruturantes, possibilitando zonas de tensão na reprodução

de lugares sociais por essas estabelecidos. A redução do percentual de pessoas que

viviam em condições de extrema pobreza tem reflexos substantivos na atenuação dos

abismos entre os grupos sociais e na melhoria da vida material das mulheres negras

(ONU, 2016).

O Programa Bolsa Família deve ser destacado como referência no campo das

políticas públicas para assegurar esses resultados, já que promovia a transferência direta

de renda para famílias em situação de pobreza extrema, estabelecendo

condicionalidades nas áreas da saúde e da educação (acompanhamento médico e

frequência escolar dos filhos). O cartão de benefícios fica, prioritariamente, sob posse

das mulheres, oportunizando uma maior autonomia em relação aos homens.

No que se refere às políticas propriamente voltadas para o mercado de trabalho,

o II PNPM avança sobre as metas estabelecidas no plano anterior, e destaca como

primeira prioridade a temática do empreendedorismo. O Programa Trabalho e

Empreendedorismo da Mulher, desenvolvido no âmbito do governo federal, propunha

impulsionar a inserção produtiva das mulheres, com autonomia financeira, apoiando-as

na criação de seus próprios negócios, por meio de capacitação e assistência técnica e da

construção de uma rede de desenvolvimento da economia local com apoio técnico do

50 “O Cadastro Único para Programas Sociais - CadÚnico é instrumento de identificação e caracterização

sócio-econômica das famílias brasileiras de baixa renda, a ser obrigatoriamente utilizado para seleção de

beneficiários e integração de programas sociais do Governo Federal voltados ao atendimento desse

público”. Decreto Nº 6.135, de 26 de junho de 2007.

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SEBRAE. O projeto inicia em 2007, no Estado do Rio de Janeiro e se expande para

Santa Catarina e o Distrito Federal em 2008.

Esse programa se insere em um movimento mais amplo que ocorre no país com

a formalização dos pequenos e microempreendedores, em 2008. Essa intervenção

promove o reconhecimento do trabalhador por conta própria como um trabalhador

formal. A política alcançou 5 milhões de Microempreendedores Individuais MEI em

2015, sendo que, em 2014, as mulheres representavam 63,9% dos contratos e 61% dos

valores concedidos via Plano Nacional de Microcrédito Orientado. Essas mulheres

estavam predominantemente ocupadas em atividades ligadas ao comércio, 41%,

serviços diversos, 18%, e alimentação/alojamento e indústria de transformação, 13%

(ONU).

Embora haja avanços alavancados pela política de formalização, como a relativa

ampliação da cobertura de proteção social das mulheres (como se pode notar na

aproximação do percentual de mulheres beneficiárias da seguridade social, 72,6%, em

relação ao percentual masculino, 72,7%), existem limites no que tange ao acesso efetivo

ao trabalho decente, entendido como todo aquele “emprego e ocupação com proteção

social, respeito aos direitos e princípios fundamentais no trabalho e diálogo social”

(ONU, p.53).

A ampliação dos empregos formais deve-se em grande medida à expansão da

terceirização e da pejotização51, fenômenos ligados a um processo de flexibilização dos

vínculos empregatícios e com consequências onerosas para os trabalhadores no que diz

respeito ao acesso a direitos conquistados e previstos pela CLT. Em 2013, mais de 12

milhões de trabalhadores brasileiros estavam contratados por empresas prestadoras de

serviços, correspondendo a 20% do total dos registros em carteira.

51 “No plano do mercado de trabalho, no qual se estabelecem as relações de compra e venda da força de

trabalho, as formas de inserção, os tipos de contrato, os níveis salariais, as jornadas de trabalho, definidos

por legislação ou por negociação, expressam um recrudescimento da mercantilização, no qual o capital

reafirma a força de trabalho como mercadoria, subordinando os trabalhadores a uma lógica em que a flexibilidade, o descarte e a superfluidade são fatores determinantes para um grau de instabilidade e

insegurança no trabalho, como nunca antes alcançado. Assim, a terceirização assume centralidade na

estratégia patronal, já que as suas diversas modalidades (tais como cooperativas, pejotização,

organizações não governamentais, além das redes de subcontratação) concretizam “contratos” ou formas

de compra e venda da força de trabalho, nos quais as relações sociais aí estabelecidas entre capital e

trabalho são disfarçadas ou travestidas em relações interempresas/instituições, além do estabelecimento

de contratos por tempo determinado, flexíveis, de acordo com os ritmos produtivos das empresas

contratantes e as quase sempre imprevisíveis oscilações de mercado que desestruturam o trabalho, seu

tempo e até mesmo a sua sobrevivência”. ANTUNES e DRUCK. In Doutrina 220 Rev. TST, Brasília,

vol. 79, no 4, out/dez 2013.

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Segundo o DIEESE, os trabalhadores terceirizados recebem, em média, 27% a

menos do que aqueles contratados pela empresa tomadora de serviços. O tempo de

permanência desse trabalhador é de 2,6 anos contra quase 6 anos do trabalhador

contratado52. Esse quadro tende a se agravar com a aprovação da Lei 13.429/2017 que

autoriza a terceirização das atividades-fim53.

O aumento periódico da formalização a partir de 2002 foi observado com maior

intensidade pelas mulheres negras. No intervalo entre 2002 e 2006 elas tiveram um

aumento de 15,8% nos registros em carteira. No mesmo período, a proporção de

homens negros com carteira assinada teve um aumento de 15,1%, mulheres brancas

8,4%, e a de homens brancos aumentou 7,5%. Todavia, a despeito dos ganhos

quantitativos da formalização supracitados, a dimensão qualitativa dos postos de

trabalho criados pelos fenômenos da terceirização, em suas múltiplas formas de vínculo

empregatício, fere princípios caros ao conceito de trabalho decente e ao objetivo de

universalização dos direitos, antes não acessados por essa parcela da população,

considerando-se que os índices de informalidade são historicamente demarcados pelo

determinante racial. Em 2006, 57,1% dos homens negros ocupados e 62,6% das

mulheres negras ocupadas encontravam-se numa situação de informalidade, enquanto

brancos e brancas correspondiam a 42,8% e 47,5%, respectivamente.

Por outro lado, o Programa Pró-Equidade de Gênero, implantado em 2005, atua

no sentido de incentivar novas concepções no âmbito organizacional de modo a

fomentar a igualdade de gênero no acesso, remuneração e permanência no trabalho. O

Programa atua de forma propositiva e monitora os resultados alcançados. Quando

cumpridos tais critérios as empresas recebem, anualmente, o Selo Pró-equidade de

Gênero. No entanto, a adesão é voluntária, comprometendo o alcance dos ganhos

obtidos (a primeira edição contou com 11 empresas estatais e a segunda com 38

organizações privadas e públicas).

A desconstrução das restrições dos nichos profissionais segundo critérios de

sexo é um dos princípios do Programa, o qual estimula a contratação de mulheres em

nichos profissionais masculinizados. Ainda assim a abrangência limitada e a abordagem

52 Brasil tem 12 milhões de trabalhadores terceirizados. Rede Brasil Atual, 2013. Disponível em

letras.up.pt/gapro/default.aspx?l=1&m=137&s=0&n=0 53 Temer sanciona Lei n.º 13.429/17 que regulamenta a terceirização no País.

http://www.febrac.org.br/novafebrac/index.php/noticias/noticias/1645-temer-sanciona-lei-n-13-429-17-

que-regulamenta-a-terceirizacao-no-pais

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por campanhas de corresponsabilização das atividades domésticas entre ambos os sexos

e pela sensibilização do empresariado para superação dos mecanismos de discriminação

para a ascensão profissional das trabalhadoras contribuem muito pouco para uma

transformação mais profunda nas chamadas “profissões de homem e de mulher”. “As

mulheres predominam nas atividades de comércio, serviços e áreas administrativas,

entre as profissionais das artes e de nível médio. E os homens nas atividades agrícolas,

forças armadas e na produção” (ONU, p.60).

A formação profissional e acadêmica recebida por essas mulheres configura-se

como uma socialização preliminar, a qual, frequentemente, endossa tais nichos

profissionais. Programas como PRONATEC - Programa Nacional de Acesso ao Ensino

Técnico e Emprego e PROUNI - Programa Universidade Para Todos oportunizaram

avanços significativos no campo educacional para as mulheres negras. Os ganhos

podem ser observados em todos os níveis: de 2011 a 2014 o PRONATEC teve um

público majoritariamente jovem, negro e feminino (67% mulheres, das quais 53% eram

negras e 45% entre 18 e 29 anos). No intervalo de 2005 a 2013, pouco mais da metade

(52%) dos contemplados pelo PROUNI eram mulheres e 49,8% negros. Segundo a

PNAD (2004-2014), 59,3% das matrículas do FIES eram de mulheres, entre 2004 e

2014, e na educação técnica de nível médio elas representam 54%. O percentual de

mulheres com nível médio completo salta de 16,3%, em 2004, para 26,8%, em 2014

(ONU, 2016).

Nesse mesmo período (2004-2014), as mulheres passaram a estar mais presentes

no ensino superior (passaram de 6,8 e 6,5 anos de estudos, para 8 e 7,5 anos,

respectivamente, para mulheres e homens). As cotas raciais constituíram também uma

importante vitória dos movimentos negros na luta pela democratização do acesso à

Universidade Pública. Contudo os cursos, seja de formação inicial ou continuada,

permanecem fragmentados em nichos fortemente demarcados pelo sexo que refletirão

na cisão observada nas profissões (ONU, 2016).

Além disso, as jornadas de trabalho dificultam a compatibilização com os turnos

das escolas de educação infantil e creches. A flexibilização dos vínculos empregatícios

exacerba essa situação, uma vez que a condição de instabilidade constrange o

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trabalhador a se submeter mais facilmente a extensão da sua jornada de trabalho54.

Como resposta à demanda empresarial pela disponibilidade do trabalhador o governo

elaborou programas de ampliação do tempo de permanência dos estudantes na escola.

Os programas Mais Educação e Educação Integral ampliam para pelo menos 7 horas

diárias a estada do aluno no ambiente escolar. As escolas priorizadas pelo programa são

aquelas localizadas nas regiões mais empobrecidas. Até 2015, dentre as 55,8 mil escolas

no país abrangidas, 31,6mil possuem maioria de estudantes provindos de famílias

assistidas pelo Programa Bolsa Família.

Ainda que os progressos enumerados acima tenham desdobramentos positivos e

imediatos na vida dessas mulheres, não se observa esforço do poder público no sentido

de pautar uma discussão acerca da jornada de trabalho no Brasil de modo que as

famílias, sejam elas compostas por homens e/ou mulheres, possam responsabilizar-se

pela criação e educação de seus filhos. A ausência de intervenções dos governos para

frear a flexibilização do trabalho, expressa entre outras consequências, na extensão da

jornada de trabalho, reflete um favorecimento dos interesses empresariais e uma

naturalização do alargamento do tempo dedicado ao trabalho.

Projetos que se limitam a expandir os tempos no ambiente escolar, que nesses

casos são direcionados às escolas mais vulneráveis, e por essa razão atravessados pelas

desigualdades de raça e de sexo, não enfrentam a responsabilização da figura materna

sobre a criação do filho. Na verdade, o que se pode observar é uma aproximação com a

política de conciliação (e delegação) observadas por Kergoat e Hirata (2007), no que se

refere à formulação de políticas que atribuam exclusivamente à mulher a administração

da vida familiar e profissional, sem que seja acionada a figura masculina.

A adesão a esses modelos pode ser melhor expressa na secundarização da figura

paterna no que se refere à divisão de responsabilidade no cuidado da criança. O

programa Empresa Cidadã, desde 2008, incentiva a extensão da licença maternidade

para 180 dias (organizações aderem voluntariamente, em contrapartida, a empresa

poderá reduzir integralmente, no Imposto de Renda da Pessoa Jurídica, a remuneração

54 “Estudo elaborado pela CUT (Central Única dos Trabalhadores) afirma que os trabalhadores

terceirizados recebem 25% menos em salários, trabalham 7,5% (3 horas) a mais que outros empregados e

ainda ficam menos de metade de tempo no emprego”. Disponível em

http://economia.uol.com.br/empregos-e-carreiras/noticias/redacao/2015/04/09/terceirizados-trabalham-

3h-a-mais-e-ganham-25-menos-aponta-estudo-da-cut.htm

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da empregada nos 60 dias de prorrogação da licença), enquanto a licença paternidade

passou de 5 para no máximo 20 dias.

Nesse sentido, a análise até aqui nos indica que o percurso histórico trilhado

pelas mulheres negras, e a atualização dos papéis sociais perpetuados pelas relações de

raça, classe e gênero, as coloca em uma posição de maior vulnerabilidade em relação à

superexploração55 de seu trabalho. Por meio da recuperação histórica procurou-se

apresentar a especificidade do processo de expropriação responsável pela formação das

linhagens as quais serão posteriormente perpetuadas por um conjunto de mecanismos de

exclusão que alijam essas mulheres dos trabalhos mais valorizados e as conduzem a

ocupações precarizadas.

Dentre tais mecanismos estão o racismo e o machismo estruturais que

atravessam a configuração e trajetória das famílias estabelecendo “destinos pessoais”

(BERTAUX, 1979) que embasam não só aquilo que Gonzalez e Hasenbalg (1982)

nomearam como o “lugar do negro”, mas também o lugar da mulher negra em um

mercado de trabalho marcado por todos os fatores aqui tratados.

Em suma, quando confrontamos o método analítico de Bertaux com o cenário da

sociedade salarial brasileira, e mais especificamente com a participação da mulher negra

nesse contexto, observamos um aprofundamento das condições de exploração em

relação à família operária, razão pela qual julgamos ser mais apropriado adaptar a ideia

de “linhagens proletarizantes” (BERTAUX, 1979, p. 203), que se refere à política de

fixação das sucessivas gerações em uma condição operária, para a de “linhagens

subproletarizantes”.

55 Tendo em vista a constituição do mercado de trabalho em um país de economia periférica, atrelada às

relações sociais que estruturam a sociedade brasileira, consideramos ser explicativo o conceito de

superexploração de Ruy Mauro Marini (1973), aqui compreendido como expressão exacerbada da

combinação entre aumento da jornada de trabalho e a maior intensidade de trabalho, acrescido do

solapamento do poder de consumo da classe trabalhadora. Ou seja, uma potencialização da mais-valia

relativa e absoluta que se estende ao salário do trabalhador, incorporando, inclusive, parte do equivalente

para reprodução da força de trabalho.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesse trabalho, realizamos uma análise abrangente das relações sociais no

Brasil, identificando as estruturas e mecanismos que condicionam, conduzem e, em

alguma medida, definem os destinos pessoais e profissionais das mulheres negras. A

escravização, o racialismo e a exploração de gênero são alguns dos elementos que

atravessam a história desse grupo, que é também alcançado pelo racismo científico

europeu do século XIX e suas reelaborações e adaptações no contexto brasileiro. Assim,

as mulheres negras no período pós-abolição seguem no centro de políticas de Estado

como o branqueamento, além de serem pilares de suas famílias e constituírem parte

fundamental da classe trabalhadora no país.

Buscamos, portanto, traçar um panorama das mulheres negras no Brasil,

localizando os lugares sociais ocupados por elas desde os tempos coloniais até a

sociedade contemporânea, tanto nos espaços públicos como privados. A família negra e

igualmente a família branca foram marcadas pelas relações de raça, classe e gênero

produzidas na colonialidade e reproduzidas com a emergência do Estado nacional. A

política imigrantista assumida por importantes setores das elites e pelo Estado

brasileiro, em fins do século XIX, embranqueceu o mercado de trabalho nas regiões de

economia mais dinâmica no país, contribuindo para a manutenção das mulheres negras

em postos de trabalho precários, subalternos e marginalizados. No entanto, as

estratégias de sobrevivência e resistência dessas trabalhadoras foram decisivas para o

esgotamento do sistema escravista e para o sustento material e subjetivo de suas

famílias, no campo e na cidade.

A análise das representações e leituras historiográficas sobre o colonialismo

marcaram fortemente nosso trabalho: em visita à ex-metrópole, presenciamos narrativas

– via museus, monumentos, exposições – alinhadas com a tese freyriana do

“colonialismo português brando”, naturalizando e justificando o sistema escravista

enquanto evento histórico inexorável, fatal. O mito do “bom senhor” implica também

em uma imagem da mulher negra (e mestiça) carregada de estigmas e estereótipos que

reverberam até hoje. É urgente criticar essa tradição e dizer que a população branca

(tanto em Portugal como no Brasil) necessita olhar com seriedade para sua própria

história e reconhecer seus lugares sociais de privilégio; igualmente é preciso assumir a

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responsabilidade no combate ao racismo e às desigualdades sociais que são, em larga

medida, consequências do colonialismo e do escravismo.

Sem pretender esgotar o tema, apresentamos aqui embates teóricos propondo

como importante ferramenta analítica a articulação das relações de classe, raça e gênero;

a partir da contribuição das autoras com as quais nos filiamos, adotamos a perspectiva

histórica e contextual do Brasil. Buscamos, enfim, acrescentar à reflexão sobre o

passado e os desafios presentes e futuros das mulheres negras na sociedade brasileira.

Esperamos, especialmente, que esse trabalho possa municiar a luta dessas mulheres que,

com as suas estratégias de sobrevivência e resistência, desafiam e afrontam o que Lélia

Gonzalez nomeava como capitalismo racista-patriarcal.

“Se as mulheres negras se libertassem, isso significaria que todos os outros

teriam que se libertar, porque a nossa liberdade exigiria a destruição de todos os

sistemas de opressão” (Coletivo Combahee River, 1977).

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