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UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ JOSÉ JACIR VICTOVOSKI CONTRIBUINDO PARA UMA TEORIA GERAL DOS PROCESSOS COLETIVOS Rio de Janeiro 2008

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UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ

JOSÉ JACIR VICTOVOSKI

CONTRIBUINDO PARA UMA TEORIA GERAL DOS PROCESSOS COLETIVOS

Rio de Janeiro 2008

JOSÉ JACIR VICTOVOSKI

CONTRIBUINDO PARA UMA TEORIA GERAL DOS PROCESSOS COLETIVOS

Dissertação apresentada como requisito para obtenção do título de Mestre em Direito, pela Universidade Estácio de Sá.

Orientador: Prof. Dr. Rogério José Bento Soares do Nascimento

Rio de Janeiro 2008

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO

A dissertação

CONTRIBUINDO PARA UMA TEORIA GERAL DOS PROCESSOS COLETIVOS

elaborada por

JOSÉ JACIR VICTOVOSKI

e aprovada por todos os membros da Banca Examinadora foi aceita pelo Programa de Pós-

Graduação em Direito como requisito parcial à obtenção do título de

MESTRE EM DIREITO

Rio de Janeiro, xx de xxxx de 2008.

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________ Prof. Dr. Rogério José Bento Soares do Nascimento

Presidente Universidade Estácio de Sá

__________________________________________

Prof. Dr. ........ Universidade Estácio de Sá

__________________________________________

Prof. Dr. Universidade.......

Dedico esta dissertação a minha mãe e meus

irmãos, que sempre me deram apoio nas escolhas

profissionais que fiz na vida. E de modo especial,

a minha esposa Gisele, ao Léo e minha filha

Bianca.

AGRADECIMENTOS

Inicialmente, agradeço os ensinamentos de meu orientador, Professor Dr. Rogério José

Bento Soares do Nascimento, que muito contribuíram para a elaboração desta dissertação e que,

acredito, jamais serão esquecidos.

Aos demais professores da Universidade Estácio de Sá, que me fizeram compreender o

Direito de um modo até então ignorado.

Aos colegas e amigos de mestrado pelas memoráveis horas de convivência e aprendizado.

E, principalmente, a minha esposa Gisele, ao Léo e minha filha Bianca pela compreensão

dispensada nas infindáveis horas de afastamento, bem como, pela tolerância diante da habitual

desatenção originária da preocupação para concretizar com o máximo de qualidade possível a

presente pesquisa.

RESUMO

A presente dissertação, desenvolvida na área de concentração do Curso de Mestrado da Universidade Estácio de Sá – Direito Público e Evolução Social – na linha de pesquisa Acesso à Justiça e Efetividade do Processo, tem como objetivo examinar se é ou não necessária a elaboração de uma Teoria Geral dos Processos Coletivos, diferenciada da clássica e tradicional Teoria Geral do Processo Civil, como veículo para uma maior efetividade na garantia dos direitos fundamentais, ou se a realização de adaptações e ajustes, visando manter os processos individuais e os coletivos dentro de uma ótica unitária do processo civil já são suficientes. Parte do reconhecimento de que o século XX foi marcado por diversas e significativas transformações sociais e que motivaram alterações na política, na forma de organização social e no Direito. Entre as mudanças no Direito, destaca-se o surgimento dos chamados novos direitos, entre os quais estão os direitos coletivos lato sensu, considerados típicos das sociedades contemporâneas, o que obrigou os Estados a promover adaptações legislativas e a criação de novos instrumentos processuais, capazes de garantir a tutela jurisdicional dos mesmos. No Brasil, as mudanças legislativas constituem o chamado microssistema processual coletivo, considerado sofisticado e de vanguarda, voltado para a tutela jurisdicional dos direitos coletivos. O microssistema processual coletivo apresenta normas, princípios e institutos próprios, mesmo porque, os mecanismos apresentados pelo processo civil clássico, de cunho individualista, não foram pensados para a resolução de conflitos de ordem coletiva. O aprofundamento teórico da investigação realizada baseou-se em pesquisa bibliográfica, consistindo na análise da legislação vigente, doutrinas e artigos jurídicos, sendo utilizado o método dedutivo. Foi constatado que os institutos, normas e determinados princípios do processo civil clássico mostram-se incompatíveis para a tutela de qualquer outra modalidade de direito que não os de natureza intersubjetiva. Há uma notória inaptidão do processo civil clássico quando aplicado na resolução de conflitos coletivos, visto que as fórmulas e padrões herdados do processo civil individualista não possibilitam ao processo coletivo desempenhar o papel que lhe é cabível em um cenário de Estado Democrático de Direito, o qual congrega entre outros valores primordiais, a garantia de acesso coletivo à justiça e de efetivação ou concretização dos direitos, culminando na transformação da realidade social.

Palavras-chave - Ações Coletivas, Processos Coletivos, Teoria Geral dos Processos Coletivos.

ABSTRACT

The present dissertation was developed in area of concentration of Course – Public Right and Human Evolution – in line of research Access to Justice and Effectiveness Process, the objective is examine if is or not necessary the elaboration of the General Theory of Collective Processes, to act as transmitter for greater effectiveness in guarantee of basic rights, or if the realization of adaptation and adjustments, seeking, keep the individual processes and the collectives within the optics unitarian Civil Procedure are already sufficient. Part of recognition that XX century was marked for differents and significant social transformations and that motivated alterations in politics, in the form of social organisation and the Right. Between the changes in Right, detached the emergence of called news rights, among wich are the collectives rights lato sensu, considered typical of contemporary societies, which forced States to promote legislative adaptations and the creation of the news instruments procedural, capable to guarantees the tutelage jurisdiction the same. In Brazil, the legislative changes, establish the called collective procedural microsystem, considered sophisticated and forefront, face the jurisdiction tutelage of the collectives rights. The collective procedural microsystem present norms principles and own institutes, just because, the mechanism presented for classic civil proceedings, stamp of individualistic, were not thought for the resolution the conflicts of collective order. The deepening theoretical of scientific research based in bibliographic research, consisting in analysis effective, doctrine and juridical articles, being used the deductive method. Was found that the institutes, norms and certain principles of classic civil procedure manifest, incompatible for the tutelage any other modality the Right than the intersubjective nature. There are a notorious inaptness of classic civil procedure when applied in resolution of the collectives conflicts, since the forms and model get by the individualist civil procedure do not enables to collective procedure to play the part it is appropriate in a scenery the Democratic State of Right, which congregate among others primordial values, the guaranty of collective access to justice and effect or accomplishment rights, culminating in transforming of social reality.

Keywords - Collectives Actions, Collectives Processes, General Theory of Collective Processes.

ABREVIATURAS

CF – Constituição Federal

CPC – Código de Processo Civil

CDC – Código de Defesa do Consumidor

LACP – Lei da Ação Civil Pública

LAP – Lei da Ação Popular

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................................................... 11

CAPÍTULO I

1 DIREITOS COLETIVOS E TUTELA JURISDICIONAL ............................................................... 14

1.1 O IDEÁRIO JURÍDICO DO ESTADO MODERNO E A TUTELA PROCESSUAL DOS DIREITOS COLETIVOS .......................................................................................................................................... 14

1.2 DIREITOS FUNDAMENTAIS, DIREITOS DO HOMEM E DIREITOS HUMANOS: DELIMITAÇÃO CONCEITUAL E DEFINIÇÃO TERMINOLÓGICA............................................... 23

1.3 DIREITOS FUNDAMENTAIS: ASPECTOS HISTÓRICOS, A PROBLEMÁTICA DAS DIMENSÕES E OS DIREITOS COLETIVOS................................................................................................. 26

1.4 AS TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS E O SURGIMENTO DE NOVOS DIREITOS.............. 34

1.5 OS DIREITOS TRANSINDIVIDUAIS E OS DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS ENQUANTO DIMENSÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS .............................................................. 36

1.5.1 Direitos e interesses coletivos stricto sensu............................................................................................. 41

1.5.2 Direitos e interesses difusos........................................................................................................................... 43

1.5.3 Direitos e interesses individuais homogêneos ........................................................................................ 46

1.6 DIREITOS VERSUS INTERESSES .............................................................................................................. 49

1.7 A SUMMA DIVISIO E OS DIREITOS COLETIVOS ............................................................................ 52

1.8 A NATUREZA CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS, AÇÕES E PROCESSOS COLETIVOS .................................................................................................................................................................. 55

9

CAPÍTULO II

2 PROCESSOS COLETIVOS.............................................................................................................................. 59

2.1 O CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL NO ÂMBITO DA TUTELA COLETIVA......................... 60

2.2 O MICROSSISTEMA PROCESSUAL COLETIVO.............................................................................. 62

2.3 A ORIGEM DAS AÇÕES COLETIVAS E O MODELO ADOTADO NO BRASIL ............... 66

2.4 AS AÇÕES COLETIVAS ENQUANTO MECANISMO DE ACESSO À JUSTIÇA .............. 74

2.5 AS AÇÕES COLETIVAS ENQUANTO MECANISMO DE ECONOMIA PROCESSUAL 79

2.6 AS AÇÕES COLETIVAS ENQUANTO MECANISMO DE EDUCAÇÃO E EFETIVAÇÃO DE DIREITOS ............................................................................................................................................................... 80

2.7 ASPECTOS DESTACADOS DAS AÇÕES COLETIVAS BRASILEIRAS ................................ 83

2.7.1 Ação Popular....................................................................................................................................................... 84

2.7.2 Ação Civil Pública............................................................................................................................................. 87

2.7.3 Mandado de Segurança Coletivo ................................................................................................................. 90

2.7.4 Ação Coletiva ou Ação Civil Coletiva........................................................................................................ 94

2.8 OS ANTEPROJETOS DE CÓDIGO BRASILEIRO DE PROCESSOS COLETIVOS ............ 99

CAPÍTULO III

3 UMA TEORIA GERAL DOS PROCESSOS COLETIVOS ........................................................... 104

3.1 CONDIÇÕES DA AÇÃO ................................................................................................................................ 106

3.2 LITISPENDÊNCIA ............................................................................................................................................ 113

3.2.1 Litispendência entre ações coletivas ........................................................................................................ 114

3.2.2 Litispendência entre ações coletivas e ações individuais................................................................. 116

3.3 CONEXÃO E CONTINÊNCIA..................................................................................................................... 124

3.4 SENTENÇA E COISA JULGADA.............................................................................................................. 129

3.4.1 A coisa julgada nos casos de intervenção do interessado no processo ...................................... 135

10

3.4.2 Os efeitos da sentença oriundos das ações coletivas e os direitos individualmente considerados ................................................................................................................................................................. 137

3.4.3 A concomitância de ações coletivas e individuais e a coisa julgada ........................................... 138

3.4.4 O modelo de extensão da coisa julgada adota no Brasil e a contraposição com o processo tradicional ...................................................................................................................................................................... 140

3.5 LIQUIDAÇÃO E CUMPRIMENTO DA SENTENÇA....................................................................... 142

3.6 A JURISDIÇÃO NOS PROCESSOS COLETIVOS ............................................................................. 146

3.7 PRINCÍPIOS DA TUTELA JURISDICIONAL COLETIVA ........................................................... 151

3.7.1 Princípio do acesso à justiça....................................................................................................................... 151

3.7.2 Princípio da universalidade da jurisdição ............................................................................................. 153

3.7.3 Princípio da participação ............................................................................................................................. 154

3.7.4 Princípio da economia processual ............................................................................................................ 154

3.7.5 Princípio da instrumentalidade das formas........................................................................................... 155

3.7.6 Princípio da inafastabilidade da prestação jurisdicional coletiva ............................................... 157

3.8 DA NECESSIDADE DE UMA TEORIA GERAL ESPECÍFICA PARA OS PROCESSOS COLETIVOS ................................................................................................................................................................ 158

CONCLUSÃO ............................................................................................................................................................ 164

REFERÊNCIAS ........................................................................................................................................................ 168

INTRODUÇÃO

As últimas décadas do século XIX e todo o século XX foram marcados por significativas

transformações sociais, originárias de fatores e eventos que incluem o agigantamento industrial,

os avanços tecnológico e científico, a globalização da economia, as massificações de produtos,

serviços e dos meios de comunicação, e de acontecimentos com proporções globais,

notadamente, as duas guerras mundiais.

Tais mudanças sociais, que motivaram alterações na política e na própria forma de

organização social, também atingiram o Direito, sendo apontadas enquanto fontes de origem dos

denominados direitos coletivos, típicos da sociedade contemporânea, e que incluem os

amplamente difundidos direitos do consumidor e direitos de proteção e preservação do meio

ambiente.

Por direitos de ordem coletiva, compreendidos com abrangência lato sensu, entendem-se

aqueles originários de ameaças ou efetivas lesões que atingem de forma concomitante conjuntos

determinados ou indeterminados de pessoas.

Ocorre que, inicialmente, o Direito Processual Civil brasileiro não foi pensado para tutelar

tais direitos, eis que concebido sob a influência das teorias que fundamentaram o direito privado,

com filiação nos princípios do positivismo jurídico, cenário em que o Direito é vinculado à figura

da lei e que em prol da segurança jurídica busca estabelecer a priori as conseqüências da conduta

humana.

12

Assim, o clássico Direito Processual Civil não poderia apresentar-se de outro modo, senão

voltado para a solução dos litígios de evidenciada natureza individual. E para garantir que as

decisões judiciais sejam efetivamente norteadas pelos preceitos jurídicos do chamado direito

material, as normas processuais não poderiam ser arquitetadas sem uma sólida base formalista,

objetivando impedir a ambigüidade.

Tendo em vista este cenário e para garantir minimamente a tutela jurisdicional dos

direitos coletivos, notadamente os direitos difusos, coletivos stricto sensu e individuais

homogêneos, diversas criações e modificações legislativas foram efetivadas nas últimas décadas

do século XX, alterando substancialmente o sistema processual pátrio, e que culminou na

organização de um verdadeiro micro ou subsistema processual coletivo, sem prejuízo da

manutenção e até mesmo aprimoramento da legislação atinente ao processo civil clássico, voltado

para a solução dos conflitos de natureza individual.

O chamado microssistema processual coletivo existente no Brasil é considerado rico,

sofisticado e de vanguarda no contexto internacional, o que faz pensar que o mesmo é autônomo

em relação ao Direito Processual Civil tradicional, na medida em que observa normas, princípios

e institutos fundamentais próprios. No que tange aos institutos do processo civil clássico, de

cunho individual, cumpre observar a disparidade apresentada pelos mesmos quando inseridos em

âmbito processual coletivo, mesmo porque, não foram pensados para vigorar nesta seara e

resolver litígios cujos titulares do direito são dezenas, centenas, milhares e, por vezes, até milhões

de pessoas.

E são estes dois fatores que têm motivado entendimentos que ora defendem a idéia de que

no Brasil o Direito Processual Coletivo já constitui um novo ramo do direito processual, com

objeto e método próprios, e ora sustentam a necessidade de elaboração de uma teoria geral

específica para o mesmo.

E é justamente a análise do segundo entendimento que será realizada na presente

dissertação, no sentido de saber se, de modo efetivo, o Brasil já possui elementos que lhe

possibilitam elaborar uma Teoria Geral dos Processos Coletivos, bem como, até que ponto tal

elaboração torna-se necessária por influir em aspectos da tutela jurisdicional coletiva, incluindo o

13

acesso à justiça, a efetivação dos direitos e o papel desempenhando pelos processos coletivos no

Estado Democrático de Direito.

A pesquisa justifica-se na medida em que se constata que a tutela jurisdicional coletiva é

considerada fenômeno recente e apresenta-se permeada de problemas operacionais diversos e

discussões intermináveis que resultam, justamente, das inaptidões e incongruências encontradas

em institutos processuais aplicados nos processos coletivos, os quais foram projetados para

vigorar em processos de tríade individualista e que compreende para fins de formação da relação

processual, os elementos autor (cuja legitimidade ativa lhe é atribuída por ser o titular do direito

lesado ou ameaçado de lesão), réu e Estado-juiz.

Por conseguinte, cumpre saber se tais disparidades demandam de modo efetivo a

elaboração de uma teoria específica e que necessariamente desencadeará na formação de um

novo ramo do direito processual, ou se os conceitos e institutos do tradicional Direito Processual

Civil permitem adequações que lhes tornem aptos a vigorar em ambientes de tutela jurisdicional

coletiva.

A relevância da pesquisa encontra-se na atualidade do tema e o método utilizado é o

dedutivo, sendo que a mesma apresenta adequação com a área de concentração do curso – Direito

Público e Evolução Social – e considera a linha de pesquisa Acesso à Justiça e Efetividade do

Processo.

Para obtenção das conclusões, a pesquisa está dividida em três capítulos, sendo que o

primeiro inclui abordagens sobre o pensamento jurídico moderno e a nova realidade social, o

nascimento e evolução dos direitos fundamentais, os fatores sociais que motivaram o surgimento

de novos direitos, e os diretos coletivos na condição de direitos de terceira dimensão; o segundo

inclui uma análise da legislação brasileira elaborada para garantir a tutela jurisdicional dos

direitos coletivos, a origem das ações coletivas e o modelo adotado no Brasil, as ações coletivas

enquanto mecanismo de acesso à justiça, de economia processual, de concretização de direitos e

de educação social, e uma síntese dos principais aspectos que envolvem as ações coletivas

brasileiras; e, por fim, o terceiro trata de uma análise de diversos institutos e princípios do direito

processual, bem como, o que pensa a especializada doutrina brasileira sobre a possibilidade e até

mesmo necessidade de elaboração de uma teoria geral específica para os processos coletivos.

CAPÍTULO I

1 DIREITOS COLETIVOS E TUTELA JURISDICIONAL

Pelo fato de apresentar os primeiros registros a partir do século XI, a Inglaterra é apontada

pela doutrina especializada como sendo o nascedouro das ações coletivas. Contudo, em que pese

apresentar acontecimentos que motivaram discussões de assuntos coletivos no período medieval,

somente no século XVII o assunto passou a receber a devida atenção do Direito, quando juristas

deram início a justificação e teorização da matéria.

Mas é no século XX que o mundo se deparara com diversas transformações sociais, e que

são apontadas enquanto causadoras de ameaças ou efetivas lesões a direitos de grupos

determinados ou não de pessoas, a ponto de muitos direitos coletivos ou “direitos de massas”

serem considerados típicos das sociedades contemporâneas.

Neste primeiro capítulo da dissertação, é elaborada uma análise do pensamento jurídico

ocidental a partir do século XVII e de que modo tal forma de interpretar e aplicar o Direito se

comportou e se comporta diante destas transformações sociais e dos direitos de ordem coletiva, o

que inclui uma definição das categorias e espécies de direitos coletivos, e de como os mesmos se

inserem no conjunto dos direitos fundamentais.

1.1 O IDEÁRIO JURÍDICO DO ESTADO MODERNO E A TUTELA PROCESSUAL DOS DIREITOS COLETIVOS

15

A moderna cultura jurídica nasceu na Europa Ocidental entre os séculos XVII e XIX,

produto do capitalismo, da organização social burguesa, da projeção doutrinária liberal-

individualista e da centralização estatal como forma de consolidação política. Com o nascimento

da cultura jurídica moderna, a monarquia absolutista e a burguesia suplantaram a ordenação

medieval, caracterizada pelas instituições corporativas e pela pluralidade dos sistemas jurídicos.1

Esta explicação de Wolkmer sintetiza o rompimento que há nos países ocidentais,

efetivado no século XVIII, concernente às formas de Direito até então concebidas, sendo que um

novo cenário jurídico passa a ser implementado e suas diretrizes aceitas até os dias atuais, em que

pese ser objeto de constantes e severas críticas, tendo em vista as diversas mudanças ocorridas na

sociedade a partir do século XIX e intensificadas no século XX, conforme ver-se-á neste

trabalho.

Para maior clareza, cumpre esclarecer, de início, que não será explicitada nesta pesquisa a

evolução histórica pela qual passou o Estado. A abordagem recai sobre o positivismo jurídico e

sua influência na seara processual, considerando a pertinência que há entre o tema e o objeto da

presente pesquisa, o qual remonta aos chamados novos direitos, típicos das sociedades

contemporâneas.

Não dá para falar de positivismo jurídico sem mencionar que Thomas Hobbes é apontado

como sendo o pai ou precursor na elaboração da teoria.2 Também não dá para falar de

positivismo jurídico sem fazer um contraponto com o direito natural, isto porque, a expressão

positivismo jurídico deriva da locução direito positivo, a qual apresenta enquanto idéia síntese,

tudo aquilo que se contrapõe ao que se entende por direito natural.3

Segundo Bobbio, por direito positivo compreende-se o direito posto pelo Estado e que se

torna conhecido por meio de uma declaração de vontade do legislador, enquanto que o direito

natural torna-se conhecido por meio da razão, uma vez que deriva da natureza das coisas. Tendo

1 WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução aos fundamentos de uma teoria dos “novos” direitos. In: WOLKMER, Antonio Carlos; LEITE, José Rubens Morato (org.). Os “novos” direitos no Brasil: natureza e perspectivas. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 1. 2 LEAL, Mônia Clarissa Henning. Estado de direito. In: BARRETO, Vicente de Paulo (coord.). Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo: Unisinos, 2006, p. 287. 3 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. Tradução de Márcio Pugliesi, Edson Bibi e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 2006, p. 15.

16

como base diversos estudos realizados, Bobbio apresenta os seguintes critérios de distinção entre

o direito natural e o direito positivo: a) o direito natural tem validade em qualquer lugar, enquanto

que o direito positivo tem validade no lugar em que é estabelecido (critério da

universalidade/particularidade); b) ao contrário do direito positivo, o direito natural é imutável

(critério da imutabilidade/mutabilidade); c) o direito natural tem como fonte a natureza das

coisas, enquanto que o direito positivo tem na função legislativa do Estado a sua fonte exclusiva

(critério natura-potestas populus); d) o direito natural é conhecido por meio da razão, o positivo

através de uma declaração de vontade alheia (critério ratio-voluntas); e) no direito natural seus

comportamentos são bons ou maus por si mesmos, no direito positivo são indiferentes, ou seja,

justo é aquilo que é ordenado, injusto o que é vetado; f) e, por fim, no direito natural se

estabelece aquilo que é bom, no direito positivo aquilo que é útil.4

Ao longo da história, mais precisamente da época clássica e Idade Média, Bobbio relata

que houve uma co-existência entre o direito natural e o direito positivo, situação que perdurou até

o final do século XVIII. A época clássica caracterizou-se pela não superioridade do direito

natural sobre o direito positivo, sendo o direito natural concebido na condição de direito comum,

e o positivo como direito especial ou particular, baseando-se no princípio de que o direito

particular prevalece sobre o geral. Desse modo, sempre que entre ambos ocorresse um conflito, o

direito positivo prevalecia sobre o natural. A partir da Idade Média ocorreu uma inversão e o

direito natural passou a ser considerado superior ao positivo, já que o primeiro passou a ser visto

“[...] não mais como simples direito comum, mas como norma fundada na própria vontade de

Deus e por este participada à razão humana ou, como diz São Paulo, como a lei escrita por Deus

no coração dos homens.” Bobbio conclui esclarecendo que é desta concepção de direito natural

enquanto um direito de inspiração cristã que derivou a tendência no pensamento jusnaturalista de

considerá-lo superior ao direito positivo.5

Conforme já observado, esta co-existência do direito natural e do direito positivo somente

perdurou até o final do século XVIII, isto porque, é neste momento da história que surgiu o

chamado positivismo jurídico, rompendo com a concepção até então existente, no sentido de

considerar enquanto direito, no mesmo sentido, o direito natural e direito positivo. A partir deste

4 BOBBIO, 2006, p. 25. 5 Ibidem, p. 21-23.

17

momento, segundo esclarece Bobbio, o direito positivo passa a ser considerado como direito em

sentido próprio, o que significa dizer que por obra do positivismo jurídico,

[...] ocorre a redução de todo o direito a direito positivo, e o direito natural é excluído da categoria do direito: o direito positivo é direito, o direito natural não é direito. A partir deste momento o acréscimo do adjetivo ‘positivo’ ao termo ‘direito’ torna-se um pleonasmo mesmo porque, se quisermos usar uma fórmula sintética, o positivismo jurídico é aquela doutrina segundo a qual não existe outro direito senão o positivo.6

Para Thomas Hobbes, o direito natural não era dotado de caráter coercitivo sobre a atitude

do homem. Sob esta ótica e na análise dos contratos, por exemplo, Hobbes concluiu que se uma

das partes cumprisse o que havia sido pactuado, não teria qualquer garantia de que a outra iria

promover o adimplemento da contraprestação, posto que “[...] os vínculos das palavras são

demasiados fracos para refrear a ambição, a avareza, a cólera e outras paixões dos homens, se não

houver o medo de algum poder coercitivo.”7

Na opinião do autor, a ausência de um poder comum, dotado de soberania, capaz de

manter o respeito mútuo, torna a vida uma guerra de todos os homens contra todos os homens.

Com a inexistência de um poder comum não há lei, e onde não há lei não há injustiça. Por

conseguinte, neste estado de natureza, cada homem é governado por sua própria razão, “[...] não

havendo nada, de que possa lançar mão, que não possa servir-lhe de ajuda para a preservação de

sua vida contra seus inimigos, segue-se daqui que numa tal condição todo homem tem direito a

todas as coisas, incluindo os corpos dos outros.”8

Desse modo, para Thomas Hobbes, enquanto o homem tivesse direito sobre todas as

coisas não poderia haver segurança, mesmo para aquele considerado forte e sábio. Com efeito, o

medo e a guerra permanentes somente deixariam de existir num Estado civil, dotado de soberania

e com poder de coerção sobre os homens.9 E como se expressaria tal autoridade soberana? Por

meio da regra ou medidas comuns, assim teorizando o autor:

6 BOBBIO, 2006, p. 26. 7 HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. 3. ed. São Paulo: Editor Victor Civita, 1983, p. 82. 8 Ibidem, p. 75-78. 9 Ibidem, p. 78.

18

Assim, compete à mesma autoridade soberana apresentar regras ou medidas comuns, e declarar de público quais as que fazem o indivíduo saber o que deve chamar seu, e o que é alheio; o que é justo e o que é injusto; o que é honesto e o que é desonesto, o que bom e o que mau, em suma, o que se deve fazer ou evitar no dia-a-dia.10

Hobbes ainda complementa que tais regras ou medidas costumam ser chamadas leis civis,

consideradas os mandamentos daquele que exerce a autoridade soberana. Ou seja, nas palavras do

autor, leis civis “[...] nada mais são do que os mandamentos daquele que está investido no poder

soberano da Cidade, para controle das ações futuras dos cidadãos.”11

É importante mencionar, parafraseando Bobbio, que a origem desta concepção de direito,

que passa a não aceitar outro direito senão aquele posto pelo Estado, está ligada à formação do

Estado Moderno. O fim da Idade Média marca a dissolução de uma sociedade pluralista

(sociedade medieval), constituída por agrupamentos sociais que possuíam ordenamentos jurídicos

próprios e onde o direito era considerado fenômeno social, produzido pela sociedade civil e não

pelo Estado. Com o Estado Moderno, o Estado passa a concentrar em si todos os poderes,

incluindo o poder exclusivo de criação do direito.12

Trata-se do nascimento do chamado Estado de Direito, o qual, segundo observação de

Leal, é originário da Idade Moderna e constituído em forma de variante do Estado Moderno, o

qual sucedeu o período feudal. A autora complementa que a principal característica do Estado de

Direito encontra-se no fato de estar “[...] pautado e vinculado à figura da lei [...]”, com a lei

constituindo os limites e o fundamento necessário de todas as suas ações. 13

Desse modo, o que se construiu na modernidade foi uma estrutura de poder centralizada,

caracterizada pela soberania do Estado, e uma ciência jurídica fundada na norma, técnico-

formalista, com o Direito expressando o que está na lei escrita.14 Em outras palavras, pode-se

dizer que a dogmática jurídica do Estado Moderno buscou estabelecer a priori as respostas aos

problemas originários da sociedade, a partir de uma decisão política cujos efeitos são de

observância obrigatória.

10 HOBBES, Thomas. De Cive: elementos filosóficos a respeito do cidadão. Tradução de Ingeborg Soler. Petrópolis: Vozes, 1993, p.105. 11 Ibidem, p. 105. 12 BOBBIO, 2006, p. 27. 13 LEAL, M. C. H., op. cit., p. 288. 14 WOLKMER, op. cit., p. 2.

19

Para Barzotto o positivismo jurídico “[...] representa a tentativa de compreender o Direito

como um fenômeno social objetivo.” Ou seja, para o positivismo não há outras fontes do Direito

além das fontes sociais e nem a existência de juízos morais particulares, e o Direito nada mais é

do que um sistema de normas e poderes, oriundo de atos de vontade identificados socialmente,

ou, em outras palavras, que no cenário positivista “[...] o Direito é um conjunto de normas que

nasce de decisões no interior da sociedade, sejam elas costumeiras, legislativas ou judiciais (...) O

mundo é caos, e não há uma natureza humana ou natureza das coisas, ou um bem objetivo que

possa ser assumido como fonte de normas.”15

Barzotto ainda observa que com o a priori do positivismo buscou-se prever por meio de

normas as conseqüências jurídicas da conduta humana, objetivando garantir segurança à

sociedade. Com o Direito sendo identificado como um conjunto de normas, sua aplicação não

poderia dar-se de outro modo, senão atrelada ao formalismo, baseada na observância de regras

claras e evidentes, único meio tido como necessário para evitar a ambigüidade dos princípios

jurídicos. Neste modo de pensar o Direito, a separação dos poderes também é apontada como

elemento que visa incrementar a segurança na sociedade, já que só é Direito aquilo que for criado

pelo Parlamento.16

Antes da implementação do positivismo jurídico, em razão da co-existência de direitos, ao

resolver um litígio o julgador não estava obrigado a escolher de modo exclusivo as normas de

direito natural ou de direito positivo. A liberdade permitia escolher entre uma regra de costume,

um critério eqüitativo (obtenção da regra do próprio caso em análise, segundo os princípios da

razão natural) ou efetiva aplicação das normas elaboradas pelos juristas, já que todas eram

consideradas do mesmo nível. Com o positivismo jurídico, esta faculdade é retirada do juiz,

sendo-lhe imposta a obrigação de somente aplicar as normas instituídas pelo Estado, considerado

o criador exclusivo do direito.17

15 BARZOTTO, Luiz Fernando. Positivismo jurídico. In: BARRETO, Vicente de Paulo (coord.). Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo: Unisinos, 2006, p. 643. 16 Ibidem, p. 644. 17 BOBBIO, 2006, p. 28-29.

20

Para Bittar, a partir do direito positivo, todas as experiências de reflexão sobre o Direito

culminam na idéia de validade, enquanto consagração conceitual daquilo que se entende por

ordem. Para ter validade a norma deverá entrar regularmente no sistema jurídico, o que inclui a

observância da forma, do rito, do momento, do modo, da hierarquia, da estrutura e da lógica de

produção prevista para vigorar no respectivo ordenamento jurídico que a produz. O autor observa

que ser válida não significa que a norma é verdadeira ou falsa, mas que se encontra de acordo

com os procedimentos previstos para sua criação. Desse modo, a validade “[...] não submete a

norma ao juízo do certo ou do errado, mas sim ao juízo jurídico, propriamente dito, ou seja, ao

juízo da existência ou não (pertinência a um sistema formal) para um determinado ordenamento

jurídico.”18

Característica do positivismo jurídico são as codificações sendo que a primeira ocorreu na

França em 1804 com o Código Civil francês, chamado Código de Napoleão. As codificações,

alerta Cordeiro, foram essencialmente redutoras e simplificadoras, e evidenciam uma atitude

positivista e formalista, já que buscavam (e ainda buscam) apreender e desenvolver o Direito por

meio de “[...] quadros mentais disponíveis, num apriorismo teorético típico do idealismo.”19

Outra característica é o individualismo, posto que a cultura jurídica moderna passou a

conceber o ser humano enquanto entidade abstrata e autônoma, indivisa ou indivisível. Leal

pondera que foi com a sociedade moderna que o indivíduo ganhou os contornos que até hoje lhes

são empregados, se contrapondo às conotações do ser humano medieval e que estava

indissociavelmente ligado à comunidade a que pertencia, constituindo uma entidade homogênea e

unitária. A cultura jurídica moderna, portanto, foi pensada e preparada para resolver litígios

individuais ou intersubjetivos.20

Porém, por expressar os fenômenos históricos de cada época, vinculado às relações

sociais e às necessidades humanas, o Direito do século XX sofreu os impactos provenientes das

transformações sociais e de fatores até então desconsiderados pela ciência jurídica. Na verdade, já

18 BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. O direito na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 181. 19 CORDEIRO, António Menezes. Apresentação. In: CANARIS, Claus - Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. Tradução de Fundação Calouste Gulbenklan. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, p. XII. 20 LEAL, Márcio Flávio Mafra. Ações coletivas: história, teoria e prática. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998, p. 26-27.

21

no século XIX há registros de que o ideal almejado com o Código Civil francês (Código de

Napoleão), no sentido de buscar na lei todas as soluções para as ocorrências da vida social,

apresentava desajustes entre o que estava codificado e as novas tendências da vida. Segundo

Reale, a todo instante “[...] apareciam problemas de que os legisladores do Código Civil não

haviam cogitado. Por mais que os intérpretes forcejassem em extrair dos textos uma solução para

vida, a vida sempre deixava um resto.”21

No século XX, as mudanças sociais oriundas dos processos de industrialização, da

globalização, dos avanços tecnológicos e do incremento das comunicações, combinadas com

acontecimentos de proporções globais, a exemplo das guerras mundiais e da bomba atômica,

resultaram no surgimento de novos direitos fundamentais, dentre os quais se destacam os direitos

de ordem coletiva (aqui entendidos em sentido amplo), bem como, deram início a um processo

que Bittar classifica de contestação de valores, de despontar de novas idéias, de um renovar dos

modos e práticas sociopolítico-jurídicas. Por conseguinte, complementa o autor, [...] a teoria jurídica passa a se ocupar de problematizar questões de fundo real, social, econômico, de um modo cada vez mais intenso, e será a própria mudança dos hábitos, costumes, valores, economia e política neste período que haverá de demonstrar o quanto o real problema do direito neste momento deixa de ser a justificação da ordem pela validade (garantida por uma ciência pura do direito), e passa a ser a possibilidade de produzir efeitos num campo real cada vez mais coalhado de problemas eficaciais.22

Conferindo destaque à segunda guerra mundial, registra-se a partir de Barroso que a

decadência do positivismo é associada à derrota do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha,

isto porque, tais movimentos políticos e militares chegaram ao poder sem ferir a legalidade

vigente e promoveram barbáries em nome da lei. Neste sentido, para fins de execução de atos

contra outros povos, o autor complementa que os principais acusados de Nuremberg “[...]

invocaram o cumprimento da lei e a obediência a ordens emanadas da autoridade competente.”23

21 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 281. 22 BITTAR, op. cit., p. 92-186. 23 BARROSO, Luis Roberto. O começo da história: a nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In: SILVA, Virgílio Afonso da (org.). Interpretação constitucional. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 278.

22

No que tange ao direito processual do século XX, tendo em vista este novo cenário social

e levando em consideração os novos direitos fundamentais, notadamente os de ordem coletiva,

evidentemente que demandou uma necessária mudança de paradigma, mesmo porque, o direito

processual civil clássico não foi pensado para solucionar demandas cujos interesses pertencem a

uma coletividade de pessoas que, muitas vezes, assim como ocorre com os direitos e interesses

difusos, nem mesmo pode ser determinada.

A mudança de paradigma tornou-se necessária porque a ciência do processo civil nasceu

sob a influência de uma projeção doutrinária liberal-individualista, cujas regras e princípios

foram pensados para vigorar em um cenário onde só haveria conflitos de natureza individual ou

de ordem privada das partes. Neste sentido Silva complementa que a ciência do processo civil

nascera “[...] irremediavelmente comprometida com os ideais do liberalismo político do século

XIX [...]”.24

Por conseguinte, para atender a esta nova realidade, segundo Venturi, há a necessidade de

“[...] superação dos velhos e já insatisfatórios esquemas técnicos, absolutamente inoperantes

quanto à afirmação dos chamados novos direitos, em especial dos direitos meta-individuais.”25

Por esta razão no segundo capítulo desta dissertação serão apresentadas e analisadas as principais

mudanças já realizadas no Brasil visando superar os esquemas do processo civil clássico,

considerados sem aptidão quando aplicados em ambientes de tutela jurisdicional coletiva, de

natureza constitucional.

Por oportuno, adianta-se que o chamado microssistema processual coletivo se apresenta

com evidenciado objetivo de abrir o sistema jurídico, tendo em vista o presente momento

histórico, no qual se preconiza a aplicação dos princípios e normas constitucionais, mediante uma

mínima intervenção legislativa. Neste sentido, cita-se como exemplo o art. 83 do CDC, o qual

dispõe que para a defesa dos direitos e interesses protegidos por tal código, são admissíveis todas

as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela. Ou seja, trata-se de uma

24 SILVA, Ovídio Baptista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996, p. 164. 25 VENTURI, Elton. Processo civil coletivo: a tutela jurisdicional dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos no Brasil, perspectivas de um código brasileiro de processos coletivos. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 32.

23

disposição aberta e que torna mais importante o exercício da função jurisdicional, a qual deverá

estar pautada de forma irrestrita na busca da concretização dos direitos.

Antes, porém, cumpre delinear uma análise dos direitos fundamentais, com ênfase aos

chamados direitos ou interesses de terceira dimensão, e que são objetos das ações de natureza

coletiva.

1.2 DIREITOS FUNDAMENTAIS, DIREITOS DO HOMEM E DIREITOS HUMANOS: DELIMITAÇÃO CONCEITUAL E DEFINIÇÃO TERMINOLÓGICA

Podem as expressões direitos humanos, direitos do homem e direitos fundamentais ser

usadas indiferentemente? Esta pergunta elaborada por Bonavides visa demonstrar que ainda há na

literatura jurídica, uma certa promiscuidade na utilização de terminologias diferenciadas para

conceituar direitos fundamentais.26 Neste mesmo sentido Sarlet adverte que tanto na doutrina

quanto no direito positivo constitucional ou internacional, outras expressões são largamente

utilizadas, todas objetivando conceituar direitos fundamentais. Entre as expressões estão direitos

humanos, direitos do homem, direitos subjetivos públicos, liberdades públicas, direitos

individuais, liberdades fundamentais e direitos humanos fundamentais.27

Autores que buscam uma definição terminológica para direitos humanos fazem a mesma

observação de Bonavides e Sarlet, que tratam de direitos fundamentais. Fernandez observa que há

na teoria dos direitos humanos uma imprecisão do tipo terminológico, posto que ao longo da

história e na atualidade sempre foram utilizadas expressões como direitos naturais, direitos

individuais, direitos do homem, direitos do cidadão e do trabalhador, direitos fundamentais,

direitos públicos subjetivos, liberdades fundamentais e liberdades públicas. Para Fernandez a

expressão que lhe parece mais adequada e que melhor delimita a situação teórica dos direitos

humanos seria direitos fundamentais do homem.28

26 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 515. 27 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 29. 28 FERNANDEZ, Eusébio. Teoria de la justicia y derechos humanos. Madrid: Debate, 1991, p. 78.

24

Em que pese a utilização de termos diversos na condição de sinônimos, há uma distinção

habitualmente empregada para conceituar de forma diferenciada as terminologias. Na doutrina

internacional, Canotilho apresenta os direitos fundamentais enquanto direitos incorporados na

ordem jurídica positiva dos direitos considerados naturais e inalienáveis do indivíduo. Contudo,

acerca da positivação, o autor esclarece que não basta qualquer positivação, sendo necessário

assinalar que tais direitos apresentam dimensão de direito fundamentais, colocados no lugar

cimeiro das fontes do direito, qual seja, as normas constitucionais. Sem esta positivação jurídica,

complementa o autor, “[...] os direitos do homem são esperanças, aspirações, ideais, impulsos,

ou, até, por vezes, mera retórica política, mas não direitos protegidos sob a forma de normas,

(regras e princípios) de direito constitucional (Grundrechts-normen).”29

Quanto aos direitos do homem, Canotilho entende que os mesmos representam os direitos

válidos para todos os povos e em todos os tempos, apresentando, portanto, uma dimensão

jusnaturalista e caráter de universalidade.30

Neste mesmo sentido manifesta-se Alexy, autor que reconhece a relação estreita que há

entre direitos do homem e direitos fundamentais, porém, considera que os direitos do homem

distinguem-se de outros direitos pelo fato de apresentar de forma combinada cinco características

que lhes são peculiares. Para Alexy tais direitos são universais, morais, fundamentais,

preferenciais e abstratos. Em síntese, são considerados universais porque competem a todos os

seres humanos, independentemente do país em que habitam; morais porque têm caráter

suprapositivo; fundamentais porque têm prioridade em todos os graus do sistema jurídico;

preferenciais porque devem ser respeitados, protegidos e fomentados pelo direito positivo; e

abstratos porque devem ser respeitados independentemente de positivação.31

A estreita relação de que fala Alexy, envolvendo os direitos do homem e direitos

fundamentais, é percebida quando estes são analisados pelo autor. Segundo Alexy, direitos

fundamentais nada mais são do que os mesmos direitos do homem, porém, codificados

29 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 5. ed. [s.d.] Coimbra: Livraria Almedina, p. 375. 30 Ibidem, p. 391. 31 ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 45-48.

25

constitucionalmente, ou seja, a partir do nomento que passam a integrar o texto de uma

Constituição os direitos do homem são “transformados” em direitos fundamentais.32

No Brasil, as distinções empregadas doutrinariamente não diferem das apresentadas por

Canotilho e Alexy, no sentido de que os direitos fundamentais contemplam os direitos do ser

humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional de determinado Estado,

enquanto os direitos do homem são apresentados com conotação marcadamente jusnaturalista, no

sentido de direitos naturais ainda não positivados em âmbito constitucional.33

No que tange a expressão direitos humanos, Sarlet entende que a mesma guarda relação

com os tratados de direito internacional, por fazer referência ao reconhecimento do ser humano

como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, com

aspiração de validade universal ou internacional.34

Portanto, mesmo havendo o emprego de terminologias diversas para expressar a mesma

idéia, direitos fundamentais, direitos do homem e direitos humanos apresentam significados

diversos. Entretanto, Sarlet adverte que reconhecer as diferenças não significa desconsiderar a

íntima relação que há, principalmente, entre os direitos humanos e os direitos fundamentais,

posto que a maior parte das Constituições do segundo pós-guerra estabeleceu os direitos

fundamentais inspiradas tanto na Declaração Universal de 1948, quanto nos diversos documentos

internacionais e regionais que a sucederam.35

Nesta dissertação iremos nos ater aos direitos fundamentais, com origem e

desenvolvimento nas constituições em que foram reconhecidos e assegurados, sendo que tais

direitos, em síntese, correspondem às necessidades e interesses materiais primários das pessoas,

sendo garantia de tutela isonômica e que objetiva realizar, ao menos de forma tendente, a

igualdade substancial entre todos.36

32 ALEXY, op. cit., p. 49. 33 SARLET, op. cit., p. 31. 34 Ibidem, p. 33. 35 Ibidem, p. 33. 36 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 815.

26

1.3 DIREITOS FUNDAMENTAIS: ASPECTOS HISTÓRICOS, A PROBLEMÁTICA DAS DIMENSÕES E OS DIREITOS COLETIVOS

A evolução histórica e social de reconhecimento dos diretos fundamentais, embora tenha

raízes ainda mais remotas, apresenta as concepções e inspirações jusnaturalistas dos séculos XVII

e XVIII como marco histórico inicial, as quais consistiam na tese de que o homem, pelo simples

fato de existir, possui direitos naturais inalienáveis, que antecedem qualquer sociedade política,

com caráter de universalidade e como forma de expressão de sua condição humana.37

O reconhecimento e afirmação dos direitos fundamentais representam uma conquista da

sociedade moderna ocidental, pelo fato de ser fruto de reivindicações geradas em situações de

injustiça e violações de bens fundamentais e elementares do ser humano.38 Sarlet apresenta a

evolução histórica de tais direitos em três etapas, até o devido reconhecimento nas primeiras

constituições escritas, sendo que a primeira etapa é considerada a pré-história e se estende até o

século XVI, com as principais idéias legadas pela religião e filosofia no mundo antigo, as quais,

posteriormente, influenciaram o pensamento jusnaturalista. Segundo Sarlet, de modo especial,

“[...] os valores da dignidade da pessoa humana, da liberdade e da igualdade dos homens

encontram suas raízes na filosofia clássica, especialmente greco-romana, e no pensamento

cristão.”39

A segunda etapa, considerada intermediária, teve início no século XVI e corresponde ao

período de elaboração da doutrina jusnaturalista e da afirmação dos direitos naturais do homem, a

qual atinge o ponto culminante de desenvolvimento nos séculos XVII e XVIII por meio das

doutrinas contratualistas. Segundo Lafer, Thomas Hobbes (1588-1679) e posteriormente John

Locke (1632-1704) lançaram as bases do pensamento individualista e do jusnaturalismo

iluminista do século XVIII, por meio da concepção de que os homens têm o poder de organizar o

Estado e a sociedade de acordo com sua razão e vontade, o que culminou no constitucionalismo e

no reconhecimento de direitos fundamentais dos indivíduos.40

37 SARLET, op. cit., p. 64. 38 WOLKMER, op. cit., p. 4. 39 SARLET, op. cit., p. 37-39. 40 LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 122-123.

27

Por fim, a terceira etapa, denominada etapa de constitucionalização dos direitos, ocorreu

nos anos de 1776 e 1789, com as respectivas Declaração da Virgínia e Declaração dos Direitos do

Homem e do Cidadão originária da França (Virginia Bill of Rights, 12-6-1776; e Déclaration des

Droits de I’Homme et du Citoyen, 26-8-1789), frutos das Revoluções Americana e Francesa, por

meio das quais ocorreu o fortalecimento da tese jusnaturalista, posto que direitos civis e políticos

saíram da abstração e foram positivados na Constituição Norte-Americana de 1787 e nas

Constituições Francesas de 1791 e 1793, concretizando reivindicações com origens históricas,

concernentes à liberdade e à dignidade humana.41

Portanto, denota-se que no período que antecedeu as Revoluções Norte-Americana e

Francesa, os direitos civis e políticos positivados nas referidas constituições, já haviam surgido

abstratamente e se afirmado como formas de proteção do indivíduo em face do poder soberano do

Estado absolutista. Representavam por meio do reconhecimento da liberdade religiosa e de

opinião, segundo Lafer, “[...] a emancipação do poder político das tradicionais peias do poder

religioso e através da liberdade de iniciativa econômica a emancipação do poder econômico dos

indivíduos do jugo e do arbítrio do poder político.”42

A partir das primeiras constitucionalizações dos direitos fundamentais, a análise da

evolução dos mesmos no Ocidente passa impreterivelmente pela classificação elaborada por

Marshall, a qual, segundo adverte Wolkmer “[...] tornou-se referencial paradigmático enquanto

processo evolutivo de fases históricas dos direitos no Ocidente”43, e vem sendo utilizada pelos

demais autores que debatem o assunto. Para Marshall, que utilizou a Inglaterra como cenário para

desenvolver a classificação, a cidadania representa um status concedido a todos os membros que

integram uma comunidade, e seu conceito é dividido em três partes ou elementos, chamados de

civil, político e social.44

Para o autor, o elemento civil teria se formado no século XVIII, sendo composto pelos

direitos necessários à liberdade individual, isto é, liberdade de ir e vir, liberdade de imprensa,

pensamento e fé, direito à propriedade, de concluir contratos válidos e direito à justiça. Ao

41 CANOTILHO, op. cit., p. 378. 42 LAFER, op. cit., p. 126. 43 WOLKMER, op. cit., p. 5. 44 MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Tradução de Meton Porto Gadelha. Rio de Janeiro: Zahar, 1967, p. 63-70.

28

elemento político é atribuído o século XIX como período de formação, sendo composto pelo

direito de participar no exercício do poder político, na condição de membro de um organismo

investido de autoridade política ou como eleitor de tal membro. Quanto aos direitos sociais, que

teriam se formado no século XX, Marshall considera o que vai desde o direito a um mínimo de

bem-estar econômico e segurança, até o direito de participar na herança social e levar a vida de

um ser civilizado, de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade.45

Das tipologias apresentadas por Marshall, dois aspectos devem ser considerados. O

primeiro diz respeito à forma como o autor elaborou a classificação, considerando o surgimento

dos direitos por meio de fases ou gerações.

Contudo, esta não é a única forma de entender a evolução dos direitos humanos e

fundamentais. A expressão gerações, segundo Sarlet, “[...] pode ensejar a falsa impressão da

substituição gradativa de uma geração por outra, razão pela qual há quem prefira o termo

‘dimensões’ dos direitos fundamentais [...]”46. O reconhecimento progressivo de novos direitos

fundamentais, acrescenta o autor, tem o caráter de um processo cumulativo, de

complementaridade e não de alternância. No mesmo sentido de Sarlet argumenta Bonavides, para

quem o termo geração representa um equívoco de linguagem, posto que “[...] o vocábulo

‘dimensão’ substitui, com vantagem lógica e qualitativa, o termo ‘geração’, caso este último

venha a induzir apenas sucessão cronológica e, portanto, suposta caducidade dos direitos das

gerações antecedentes, o que não é verdade.”47 Igualmente é a crítica de Brandão, para quem a

evolução apresentada por meio de gerações não contribui para a compreensão dos “novos”

direitos vigentes na atualidade e nem deixa perceber que a partir de determinado momento

histórico eles não poderão ser vistos na forma de gerações “[...] pois o nascimento de direitos

novos ocorre com velocidade e intensidade tal que já não é possível compartimentalizá-los em

momentos estanques.”48 No presente trabalho nos filiamos ao entendimento de que o termo

dimensão representa com mais propriedade o acúmulo de novos direitos e não um processo de

alternância dos já existentes.

45 MARSHALL, op. cit., p. 10. 46 SARLET, op. cit., p. 47. 47 BONAVIDES, op. cit., p. 571-572. 48 BRANDÃO, Paulo de Tarso. Ações constitucionais: “novos” direitos e acesso à justiça. 2. ed. Florianópolis: OAB/SC, 2006, p. 152.

29

O segundo aspecto a ser analisado, diz respeito à utilização da clássica reflexão e

classificação de Marshall para fins de reprodução, atualização e complementação, sendo que

outras tipologias foram elaboradas ao longo da história. Nos termos já explanados, Marshall parte

do conceito de cidadania para elaborar a clássica tipologia, e apresenta os direitos divididos entre

direitos civis, políticos e sociais. Na contemporaneidade esta reflexão foi complementa e os

direitos fundamentais são apresentados em classificações mais abrangentes, que atingem a quarta

e até a quinta dimensões.

Os direitos de primeira dimensão compreendem os direitos políticos, que congregam os

direitos de votar e ser votado; e os direitos civis, notadamente os direitos individuais de liberdade,

igualdade, propriedade, segurança e resistência à opressão do Estado, considerados atributos

naturais, inerentes à individualidade, inalienáveis e imprescritíveis. Posteriormente ao século

XVIII a liberdade de natureza individual foi complementada pelas denominadas liberdades de

expressão coletiva, e que incluem liberdade de imprensa, de manifestação, de reunião e de

associação. São direitos que Bobbio sintetiza chamando de direitos de liberdade ou um não-agir

do Estado, demarcando o espaço entre Estado e não-Estado. Por este motivo também são

considerados liberdades públicas negativas ou direitos negativos.49

Os direitos fundamentais de primeira dimensão encontram fundamento no contratualismo

de inspiração individualista, e origem no racionalismo iluminista, no liberalismo, no capitalismo

concorrencial e na hegemonia da classe burguesa, que alcança o poder por meio das Revoluções

Norte-Americana e Francesa.50 Para Sarlet os direitos fundamentais, ao menos no âmbito de

reconhecimento nas primeiras constituições escritas, são o produto do pensamento liberal-

burguês do século XVIII, de cunho individualista, afirmando-se como direitos do indivíduo frente

à atuação do Estado. Segundo o autor, Os direitos fundamentais da primeira dimensão encontram suas raízes especialmente na doutrina iluminista e jusnaturalista dos séculos XVII e XVIII (nomes como Hobbes, Locke, Rousseau e Kant), segundo a qual, a finalidade precípua do Estado consiste na realização da liberdade do indivíduo, bem como nas revoluções políticas do final do século XVIII, que marcaram o início da positivação das reivindicações burguesas nas primeiras Constituições escritas do mundo ocidental.51

49 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 6. 50 WOLKMER, op. cit., p. 7. 51 SARLET, op. cit., p. 48.

30

Os direitos sociais e políticos foram os primeiros a constar em normas constitucionais nos

períodos que sucederam as Revoluções Americana e Francesa, mais precisamente nos séculos

XVIII e XIX, proclamados nas Declarações de Direitos da Virgínia (1776) e Francesa (1789),

positivados na Constituição Norte-Americana de 1787 e nas Constituições Francesas de 1791 e

1793, inaugurando a fase do constitucionalismo político clássico, consolidando-se ao longo da

história em projeção de universalidade, a ponto de não ser digna de ser chamada de constituição o

documento que não os reconheça em toda a extensão.52

Os direitos de segunda dimensão, que dominaram o século XX, do mesmo modo que os

direitos de primeira dimensão dominaram o século XIX53, são os direitos sociais, econômicos e

culturais, fundados em uma ação positiva do Estado, ao contrário do que ocorre com os direitos

de primeira dimensão que requerem um não-agir do Estado. Por conseguinte, não são exercidos

contra o Estado, mas exigem que este os garanta e conceda a todos os indivíduos. Como bem

esclarece Lafer são os direitos previstos pelo welfare state, considerados créditos do indivíduo

em relação à coletividade, entre os quais estão o direito ao trabalho, à saúde e à educação, e que

“[...] têm como sujeito passivo o Estado porque, na interação entre governantes e governados, foi

a coletividade que assumiu a responsabilidade de atende-los.”54

Para corroborar o ensinamento de Lafer, cumpre trazer à colação, por oportuno, os

argumentos de Cappelletti: Tipicamente, os direitos sociais pedem para sua execução a intervenção ativa do estado, freqüentemente prolongada no tempo. Diversamente dos direitos tradicionais, para cuja proteção requer-se apenas que o estado não permita sua violação, os direitos sociais – como direito à assistência médica e social, à habitação, ao trabalho – não podem ser simplesmente “atribuídos” ao indivíduo. Exigem eles, ao contrário, permanente ação do estado, com vistas a financiar subsídios, remover barreiras sociais e econômicas, para, enfim, promover a realização dos programas sociais, fundamentos desses direitos e das expectativas por eles legitimadas. 55

A princípio, os direitos de segunda dimensão diferem dos direitos de terceira dimensão no

aspecto da titularidade. Enquanto nestes o titular é a coletividade, nos direitos de segunda

dimensão, a exemplo do que ocorre com os de primeira dimensão, o titular continua sendo o

52 BONAVIDES, op. cit., p. 563. 53 Ibidem., p. 564. 54 LAFER, op. cit., p. 127. 55 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Tradução de Carlos Alberto Álvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1999, p. 41.

31

homem em sua individualidade. Contudo, Mancuso apresenta os seguintes exemplos de direitos

sociais positivados: reserva de empregos públicos para deficientes físicos (CF, art. 37, VIII),

reserva de cotas para mulheres nos partidos políticos (Lei 9.504/97), e percentuais de participação

de afrodescendentes, mulheres e pessoas portadoras de deficiência nas contratações de empresas

portadoras de serviços, bem como de técnicos e consultores no âmbito de projetos desenvolvidos

em parceria com organismos internacionais (Decreto Federal 4.228/02). Nestes casos, argumenta

o autor, existindo recusa ou oferta insatisfatória do número necessário, parece cogitável a

utilização de ação coletiva, à semelhança do que vem sendo admitido nos casos de

desatendimento de políticas públicas.56

Os direitos de segunda dimensão são historicamente originários do processo de

industrialização e dos impasses socioeconômicos que ocorreram na sociedade ocidental nos

séculos XIX e XX. Para Leal,

[...] precisamos considerar o impacto da revolução industrial no âmbito dos movimentos políticos do final do século XVIII e ao longo do século XIX e, com ela, a situação da classe operária e de novas outras categorias sociais, revelando a exposição de seres humanos a situações indignas de sobrevivência, sendo exploradas pelos donos do capital e passando profundas necessidades, o que faz irromper problemas sociais ainda não vislumbrados pela modernidade contemporânea.57

Quanto à positivação constitucional, são consideradas as principais fontes legais

institucionalizadoras dos direitos sociais, a Constituição Mexicana de 1917, a Constituição Alemã

de Weimar de 1919, a Constituição Espanhola de 1931 e o Texto Constitucional Brasileiro de

1934. No ano de 1966, em Assembléia Geral das Nações Unidas, foi editado o Pacto

Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, contemplando, entre outros, o direito

das pessoas gozarem de condições de trabalho justas e favoráveis, com remuneração mínima e

sem discriminações; existência decente para o trabalhador e sua família; descanso e lazer; direito

à previdência social e seguro social; e proteção das crianças e adolescentes em face da exploração

econômica.58

56 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação popular: proteção do erário, do patrimônio público, da moralidade administrativa e do meio ambiente. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 32-33. 57 LEAL, Rogério Gesta. Perspectivas hermenêuticas dos direitos humanos e fundamentais no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 39. 58 Ibidem, p. 42.

32

Portanto, também estão incluídos nos direitos de segunda dimensão as denominadas

liberdades sociais, e que contemplam a liberdade de sindicalização, o direito de greve e os

direitos fundamentais dos trabalhadores, entre os quais estão o direito de férias, de repouso

semanal remunerado, de um salário mínimo e de limitação da jornada de trabalho.59

Já os direitos de terceira dimensão são originários das últimas décadas do século XX, não

destinados à proteção dos interesses específicos de um único indivíduo, de forma individualizada,

mas de uma categoria ou grupo de pessoas, como a família, o povo, a nação, as coletividades

regionais ou étnicas e a própria humanidade.60

Ao tratar dos direitos de terceira dimensão, Wolkmer chama a atenção para a diferença

que há entre as interpretações adotadas pelos doutrinadores brasileiros, sendo que a primeira

caracteriza uma interpretação abrangente acerca dos direitos de solidariedade ou fraternidade.61

Não há dúvidas de que são as duas guerras mundiais vivenciadas no século XX, os principais

fatores que ocasionaram o surgimento de tais direitos e, principalmente, com o caráter

apresentado pelos mesmos. Conforme observa Leal, destacando a Segunda Guerra Mundial, a

luta nos campos de batalha da Europa e do Ocidente se desenvolveu contra os modelos de

Estados de Terror de natureza fascista e nazista, denunciando as violações de Direitos Humanos

ocorridas em campos de concentração, com o massacre de milhões de grupos étnicos e

religiosos.62

Por conseguinte, surgiram preocupações com os direitos da solidariedade, e que têm como

destinatário o gênero humano, de titularidade coletiva, o que inclui, entre outros, o direito à

autodeterminação dos povos, o direito ao desenvolvimento, o direito à paz, o direito ao meio

ambiente, o direito à comunicação e o direito ao patrimônio comum da humanidade.63 Para

Bonavides, os direitos de terceira dimensão são dotados de altíssimo teor de humanismo e

universalidade, cristalizados no fim do século XX, enquanto direitos que não se destinam à

proteção dos interesses de um único indivíduo, de um grupo ou de determinado Estado. Segundo

59 SARLET, op. cit., p. 50. 60 Ibidem, p. 131. 61 WOLKMER, op. cit., p. 9. 62 LEAL, R. G., op. cit., p. 43. 63 LAFER, op. cit., p. 131.

33

o autor, “Têm primeiro por destinatário o gênero humano mesmo, num momento expressivo de

sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta.”64

No que tange a positivação, é oportuna a observação de Sarlet quando diz que é preciso

reconhecer que, salvo poucas exceções, a maior parte dos direitos relacionados a fraternidade ou

solidariedade não encontrou reconhecimento no âmbito do direito constitucional, estando em fase

de consagração no âmbito do direito internacional, por meio da assinatura de tratados e outros

documentos transnacionais.65

A segunda interpretação é considerada específica dos direitos transindividuais, também

chamados difusos e coletivos lato sensu, tese que é defendida por Oliveira Jr., no sentido de que

direitos de terceira dimensão são todos aqueles que aglutinam os direitos de titularidade coletiva

e difusa, a exemplo dos amplamente citados direito ambiental e direito do consumidor, mas sem

prejuízo de outros que vem sendo considerados da mesma categoria, especificamente abordados

em momento oportuno desta dissertação.66

Os direitos de quarta dimensão, por sua vez, têm o reconhecimento de existência

encontrada em Bobbio, quando o autor expressamente os reconhece afirmando que há novas

exigências “[...] que só poderiam chamar-se de direitos de quarta geração, referentes aos efeitos

cada vez mais traumáticos da pesquisa biológica, que permitirá manipulações do patrimônio

genético de cada indivíduo.”67 Neste sentido, direitos de quarta dimensão são considerados os

direitos referentes à biotecnologia, à bioética e à regulação da engenharia genética, vinculados

com a vida humana, a exemplo da reprodução humana assistida, aborto, eutanásia, cirurgias intra-

uterinas, transplantes de órgãos, engenharia genética e contracepção. Para Wolkmer tais direitos

são de natureza polêmica, complexa e interdisciplinar, e vêm merecendo a atenção de médicos,

juristas, biólogos, filósofos, teólogos, psicólogos, sociólogos, humanistas e profissionais da

saúde.68

64 BONAVIDES, op. cit., p. 569. 65 SARLET, op. cit., p. 51. 66 OLIVEIRA JÚNIOR, José Alcebíades de. Teoria jurídica e novos direitos. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2000, p. 86. 67 BOBBIO, 1992, p. 6. 68 WOLKMER, op. cit., p. 12.

34

Contudo, é importante observar que Bonavides elenca, enquanto direitos de quarta

dimensão, o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo, os quais o

autor considera imprescindíveis para tornar legítima e possível a globalização política. Para

Bonavides, os direitos de quarta dimensão culminam a objetividade dos direitos de segunda e

terceira dimensões, e absorvem a subjetividade dos direitos individuais, ou seja, os direitos de

primeira dimensão.

Este enfoque atribuído aos direitos de quarta dimensão, representa uma interpretação

contrária a globalização da política neoliberal, extraída da globalização econômica, que segundo

Bonavides, faz parte da “[...] estratégia mesma de formulação do futuro em proveito das

hegemonias supranacionais já esboçadas no presente.” Ainda, segundo o autor, há uma única

política de globalização que interessa aos povos da periferia, a qual está radicada na teoria dos

direitos fundamentais, sendo que a quarta dimensão de direitos corresponde à derradeira fase de

institucionalização do Estado social.69

Por fim, nos direitos de quinta dimensão, estão incluídos os novos direitos originários das

tecnologias de informação (internet), do ciberespaço e da realidade virtual. O marco histórico de

surgimento destes novos direitos são as últimas décadas do século XX e o início do século XXI,

período que marca a transição da sociedade industrial para a era virtual.70

1.4 AS TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS E O SURGIMENTO DE NOVOS DIREITOS

O estudo dos direitos fundamentais no Ocidente está diretamente ligado à história, sendo

que a evolução dos mesmos confunde-se com a história da condição humana, e o

desenvolvimento desta nos diversos modelos e ciclos econômicos, políticos e culturais

vivenciados ao longo de mais de quatro séculos. Leal complementa que em etapas históricas

claramente identificadas, os direitos humanos e fundamentais foram sendo ampliados,

69 BONAVIDES, op. cit., p. 571-572. 70 WOLKMER, op. cit., p. 15-16.

35

acumulando-se em forma de gerações ou dimensões, primeira no campo político e em seguida no

plano jurídico.71

De extrema clareza é o entendimento de Bobbio, para quem os direitos fundamentais são

direitos históricos, nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas,

a partir de determinadas circunstancias, caracterizadas por lutas em defesa de liberdades.

Segundo o autor, os direitos nascem quando devem ou podem nascer.72 Neste mesmo sentido,

Leal complementa que os direitos são produtos da história, “[...] nascidos de lutas pela

preservação da liberdade e pela implementação da igualdade, suas possibilidades estão sempre

em aberto, bastando dizer respeito à natureza humana e sua capacidade de expansão e

realização.”73

A análise das tipologias ou classificações elaboradas, evidencia que não são estanques os

direitos humanos e fundamentais, assim considerados neste início de século XXI, e as mudanças

futuras que ocorrerem na sociedade certamente irão provocar o surgimento de outros, hoje

inexistentes e, portanto, ainda não contemplados.

Porém, segundo apropriada observação de Sarlet, verifica-se que muitos dos novos

direitos em processo de reivindicação e desenvolvimento, correspondem a deduções do princípio

da dignidade da pessoa humana, vinculados à idéia de liberdade e proteção da vida, contra

ingerências do Estado e particulares. Por conseguinte, poderiam enquadrar-se na categoria dos

direitos de primeira dimensão, “[...] evidenciando assim a permanente atualidade dos direitos de

liberdade, ainda que com nova roupagem e adaptados às exigências do homem

contemporâneo.”74

A constatação de Sarlet não é isolada. Na mesma esteira Brandão argumenta que os

direitos individuais assegurados na primeira geração de direitos, tendo em vista a realidade

política contemporânea, já não correspondem aos mesmos direitos individuais vigentes em

nossos dias. Um exemplo citado pelo autor e que guarda grande pertinência com o presente

trabalho são os direitos individuais homogêneos, devidamente conceituados alhures. Tais direitos

71 LEAL, R. G., op. cit., p. 33. 72 BOBBIO, 1992, p. 5-6. 73 LEAL, R. G., op. cit., p. 45. 74 SARLET, op. cit., p. 52.

36

que continuam sendo individuais, mas que recebem na seara processual coletiva tratamento de

direitos coletivos, não foram reconhecidos inicialmente com esta conotação, de forma que,

segundo o autor, “[...] já não se pode mais enunciá-las como integrantes da primeira ou da

segunda geração de direitos.”75

Portanto, a partir de Brandão, conclui-se que por novos direitos devem ser entendidos

aqueles que nasceram e nascem dos típicos conflitos da sociedade contemporânea, como aqueles

que são considerados novos em razão de sua configuração, “[...] e não no momento de seu

enunciado, quando já não mais guardam qualquer correspondência com sua origem.”76

1.5 OS DIREITOS TRANSINDIVIDUAIS E OS DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS ENQUANTO DIMENSÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

Paradoxal, heterogêneo e globalizado: estes são três adjetivos que podem ser utilizados

para caracterizar o mundo a partir das últimas décadas do século XIX e todo o período do século

XX, tendo como base, a diversas transformações vivenciadas pela sociedade e que resultaram no

surgimento de novos direitos fundamentais, dentre os quais, os direitos de ordem coletiva (com

conotação lato sensu), figurando como exemplos típicos, os direitos de proteção e defesa do

consumidor e os direitos à proteção e preservação do meio ambiente, sem prejuízo de outros

surgidos nas últimas décadas, como direitos de gênero, direitos da criança, direitos do idoso,

direitos dos deficientes físico e mental, direitos das minorias e os novos direitos da

personalidade.77

Ao destacar os direitos de proteção e defesa do consumidor, cumpre observar que relações

de consumo sempre existiram na história de qualquer país. Contudo, o fenômeno que extrapolou

as relações de consumo da esfera individual e atingiu a esfera coletiva, é originário,

principalmente, dos processos de industrialização que multiplicaram os níveis produtivos de bens

e dos avanços tecnológicos e científicos aplicados ao setor de produção, e que interferiram

75 BRANDÃO, op. cit., p. 153. 76 Ibidem, p. 156. 77 WOLKMER, op. cit., p. 11-12.

37

profundamente nas práticas sociais, fazendo surgir um mercado de massas com possibilidade de

acesso aos bens e serviços disponibilizados à sociedade.78

No século XX a estrutura social foi alterada e a sociedade passou a ser dominada pela

operação das organizações de grande porte, sendo que estas efetivamente determinam as

condições da vida social contemporânea. O mundo passou de uma sociedade de indivíduos para

uma sociedade de organizações.79 No que tange a produção de bens e serviços, tais organizações

de grande porte formam o que Delmas-Marty chama de “o reino das multinacionais”, fenômeno

resultante da liberalização do comércio internacional pelas aberturas das trocas exteriores após os

anos sessenta, e ampliada nas últimas décadas do século XX e início do século XXI.80

Na contemporaneidade, com o incremento das comunicações de massa, os consumidores

se encontram em constante processo de sedução, chamados por meio de possibilidades

rotineiramente ampliadas a viver novas e não apreciadas aventuras e experiências. É neste sentido

que argumenta Bauman, concluindo que: Nessa mudança de disposição, são ajudados e favorecidos por um mercado inteiramente organizado em torno da procura do consumidor e vigorosamente interessado em manter essa procura permanentemente insatisfeita, prevenindo, assim, a ossificação de quaisquer hábitos adquiridos, e excitando o apetite dos consumidores para sensações cada vez mais intensas e sempre novas experiências.81

Portanto, o agigantamento da indústria, aliado ao avanço tecnológico, científico e outras

formas de transformação social, motivaram o surgimento de lesões a direitos na esfera das

relações de consumo, que atingem de uma só vez, conjuntos determinados ou indeterminados de

pessoas, inibindo ou até mesmo impedindo a tutela dos mesmos no âmbito intersubjetivo, diante

da impossibilidade de divisão do objeto, a exemplo do que ocorre com os interesses difusos e

coletivos stricto sensu. Nos termos observados por Cappelletti, no que tange ao consumo,

78 FORTUNY, María Alejandra. O direito do consumidor: a emergência de um novo paradigma no direito moderno. In: WOLKMER, Antonio Carlos; LEITE, José Rubens Morato (org.). Os “novos” direitos no Brasil: natureza e perspectivas. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 152-153. 79 FISS, Owen. Um novo processo civil: Estudos norte-americanos sobre juridição, constituição e sociedade. Tradução de Carlos Alberto de Salles, Daniel Porto Godinho da Silva e Melina de Medeiros Rós. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 50. 80 DELMAS-MARTY, Mireille. Três desafios para um direito mundial. Tradução de Fauzi Hassan Choukr. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003, p. 134. 81 BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Tradução de Mauro Gama e Cláudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 23.

38

[...] basta que um produto apresente um defeito mínimo, e já milhares ou milhões de consumidores sofrerão um dano. O produto, causante de tal prejuízo, não é somente violador de um direito individual, não está em confronto com uma outra pessoa, ou, no máximo, duas, três, cinco outras pessoas, mas é tipicamente produtor de um dano de massa.82

Na esfera dos direitos à proteção e preservação do meio ambiente, falando

especificamente do Brasil, as agressões ao ecossistema provocaram ao longo da história uma

série de situações desalentadoras. Entre os exemplos citados por Milaré estão as manchas de

desertificação em diferentes pontos do país, a corriqueira mortandade de peixes, a intensa carga

de poluentes lançada diuturnamente por grandes empresas e a constante intoxicação pelo uso

desmedido de agrotóxicos, sendo que tais situações sempre constituíram grave problema de saúde

pública. Para o autor, a causa dos problemas ambientais não é outra senão o processo de

desenvolvimento econômico, que “[...] vem-se realizando, basicamente, às custas dos recursos

naturais vitais, provocando a deterioração das condições ambientais em ritmo e escala até então

desconhecidos [...]”.83

Sem prejuízo dos problemas apontados por Milaré, cumpre registrar que a Segunda

Guerra Mundial (1945-1950) possui expressiva responsabilidade pelo impulso no crescimento de

direitos e interesses ambientais com cunho coletivo. Esclarecedora é a referência efetuada por

Wolkmer, no sentido de que a explosão das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki, a

mutilação e o extermínio de vidas humanas, a destruição ambiental e os danos causados à

natureza pelo desenvolvimento tecnológico, desencadearam a criação de instrumentos normativos

no âmbito internacional.84

Portanto, este novo cenário social mundial fez surgir uma nova categoria de direitos

fundamentais, de cunho coletivo e desse modo tutelados. O sentido atribuído à expressão direitos

coletivos possui, neste caso, uma conotação abrangente, em sentido lato, apresentando como

principal característica o fato de transcender o âmbito do direito estritamente individual e

pertencer a grupos, classes ou categorias de pessoas. No Brasil duas categorias são encontradas: a

categoria dos direitos coletivos transindividuais, formada pelos direitos difusos e coletivos stricto

sensu, considerados essencialmente coletivos; e a categoria dos direitos individuais homogêneos,

82 CAPPELLETTI, Mauro. Tutela dos interesses difusos. AJURIS, 1985, vol. 33, p. 171. 83 MILARÉ, Edis. Tutela jurídica do meio ambiente. Revista dos Tribunais, 1986, vol. 605, p. 20. 84 WOLKMER, op. cit., p. 10.

39

considerados acidentalmente coletivos ou processualmente coletivos, e que, na verdade, não

passam de direitos subjetivos individuais complexos, com titular determinado e materialmente

divisíveis, porém tutelados coletivamente em razão da relevância social apresentada.85

Contudo as duas categorias podem ser consideradas direitos fundamentais de terceira

dimensão, pelo fato de pertencer a uma coletividade que estará em juízo requerendo a respectiva

tutela jurisdicional pelo regime da substituição processual. É importante ressaltar que ao

conceituar os direitos coletivos (em sentido lato), o CDC não faz a mesma distinção elaborada

doutrinariamente (a exemplo de Zavascki)86, no sentido de que há duas categorias de tais direitos.

Neste raciocínio, Pinho observa que o CDC, em seu art. 81, parágrafo único, “[...] ao definir e

distinguir três modalidades do que chama de direitos transindividuais (ou metaindividuais, ou

ainda coletivos em sentido amplo), refere-se a direitos difusos (inciso I), coletivos (inciso II) e

individuais homogêneos (inciso III).”87 Portanto, na legislação brasileira, as três modalidades de

direitos coletivos são apresentadas indistintamente, todas consideradas transindividuais.

Na atualidade, os direitos transindividuais e os individuais homogêneos estão

devidamente conceituados no Código de Defesa do Consumidor. Segundo Watanabe, o legislador

preferiu defini-los “[...] para evitar que dúvidas e discussões doutrinárias, que ainda persistem a

respeito dessas categorias jurídicas, possam impedir ou retardar a efetiva tutela dos interesses ou

direitos [...]”.88 Contudo, diante de uma situação concreta, é comum a falta de consenso entre

doutrina e jurisprudência, notadamente, quando a distinção conceitual envolve interesse coletivo

em sentido estrito e interesse individual homogêneo.89

É importante ressaltar que antes do advento do CDC (datado de 11.9.90), já existiam

questionamentos acerca da acepção técnica dos termos coletivo e difuso. Obviamente não se

85 PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. A natureza jurídica do direito individual homogêneo e sua tutela pelo ministério público como forma de acesso à justiça. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 33. 86 ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 42. 87 PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Teoria geral do processo civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2007, p. 324. 88 WATANABE, Kazuo. Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. In: Ada Pellegrini Grinover [et al.]. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 800. 89 DINAMARCO, Pedro da Silva. Ação civil pública. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 50.

40

falava em direitos individuais homogêneos, já que esta categoria somente foi incorporada ao

cenário jurídico nacional com o próprio CDC (art. 81, parágrafo único, inciso III)90.

Em artigo datado de 1984, falando especificamente dos interesses difusos, Barbosa

Moreira chamava a atenção para o fato da expressão “interesses difusos”, não ter adquirido até

aquele momento um sentido preciso na linguagem jurídica, sendo utilizado para designar figuras

heterogêneas. Contudo, o autor delineava características que acompanham os interesses difusos

até os dias atuais, a exemplo da indeterminação (ou difícil ou até mesmo impossível

determinação) do grupo de pessoas interessadas, da ausência entre as pessoas interessadas de

ligação por vínculo jurídico definido, e do não pertencimento a uma pessoa isolada, isto é, o bem

referenciado é indivisível, não podendo ser atribuídas quotas individuais para cada um dos

interessados, sendo que a satisfação de um implica a satisfação de todos, assim como a lesão de

um constitui lesão de toda a coletividade. Segundo Barbosa Moreira, Pode trata-se, por exemplo, dos habitantes de determinada região, dos consumidores de certo produto, das pessoas que vivem sob tais ou quais condições sócio-econômicas, ou que se sujeitem às conseqüências deste ou daquele empreendimento público ou privado, e assim por diante.91

Até o advento do CDC, a lição de Barbosa Moreira foi o norte para muitos outros juristas

brasileiros, a exemplo de Barbi que no ano de 1988, ao tratar dos novos “interesses difusos”,

argumentava que tais valores econômicos, históricos ou estéticos passaram a ser considerados

interesses dos cidadãos, merecedores de proteção jurídica especial por meio de normas de Direito

Material, “[...] constituindo o que a moderna doutrina denomina interesses difusos, interesses

coletivos, direitos coletivos, etc.” O autor que assumia a despretensão em definir tais direitos e

interesses, dada a fase de imprecisão em que ainda se encontravam (frisa-se que o artigo foi

publicado a apenas dois anos de antecedência do advento do CDC), preferia seguir

expressamente a lição de Barbosa Moreira, que os caracterizou a partir de duas notas essenciais,

sendo a primeira relativa aos sujeitos e a segunda ao objeto.92

90 PINHO, 2002, p. 11. 91 MOREIRA, José Carlos Barbosa. A legitimação para a defesa dos ‘interesses difusos’ no direito brasileiro. AJURIS, 1984, vol. 32, p. 81. 92 BARBI, Celso Agrícola. Mandado de segurança na constituição de 1988. Revista dos Tribunais, 1988, vol. 635, p. 21.

41

Em artigo também datado de 1984, Grinover observava que diversos conflitos surgidos na

sociedade poderiam ser resolvidos macroscopicamente, pelo fato de envolverem ao mesmo

tempo “um feixe de relações jurídicas”, e não apenas microscopicamente ou individualmente,

como era hábito do Judiciário. Grinover não apresentava dúvidas de que a sociedade estava

diante de interesses metaindividuais, supra-individuais ou coletivos. Porém, ao mesmo tempo,

apresentava a seguinte ponderação: “Mas já é ambígua e contraditória a própria terminologia que

acompanha o objeto de nosso estudo: interesses coletivos, interesses difusos, interesses

superindividuais. É preciso distinguir.”93

Para a autora, por interesses coletivos (certamente fazendo referencia aos interesses

coletivos em sentido stricto sensu), entendia-se os interesses comuns a uma coletividade de

pessoas e apenas a elas, repousando sobre um vínculo jurídico definido que os congrega. Entre os

exemplos citados estão a sociedade comercial, o condomínio e a família, que podem em

determinadas situações apresentar interesses comuns, nascidos justamente da relação jurídica

base que congrega seus componentes. Já os interesses difusos eram caracterizados pela

inexistência de relação-base bem definida, “[...] reduzindo-se o vínculo entre as pessoas a fatores

conjunturais ou extremamente genéricos, a dados de fato freqüentemente acidentais e mutáveis

[...]”94

Da análise de Barbosa Moreira e Grinover, é fácil concluir que as acepções técnicas que

começaram a ser construídas doutrinariamente, restaram por prevalecer no momento de formular

o CDC, posto que no mesmo, conforme já mencionado, o legislador optou por definir as

categorias, evitando novas dúvidas e discussões doutrinárias, as quais a seguir serão analisadas,

juntamente com os critérios que compõem cada modalidade de direito ou interesse.

1.5.1 Direitos e interesses coletivos stricto sensu

93 GRINOVER, Ada Pellegrini. Novas tendências na tutela jurisdicional dos interesses difusos. AJURIS, 1984, vol. 31, p. 81. 94 Ibidem, p. 81-82.

42

O conceito de direitos coletivos lato sensu, com conotação mais abrangente, refere-se aos

direitos transindividuais, contemplando os direitos coletivos stricto sensu e os direitos difusos,

considerados essencialmente coletivos. Contudo, o que nos interessa neste momento é o conceito

que guarda relação com os direitos e interesses coletivos stricto sensu, ou seja, aqueles

referenciados pelo artigo 81, parágrafo único, inciso II do CDC, e que compreendem os direitos e

interesses transindividuais de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de

pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base.

Do dispositivo do CDC são extraídos os critérios considerados necessários para a

configuração de tais interesses, sendo que o primeiro critério a ser observado diz respeito à

indivisibilidade do objeto, o que significa dizer que na presença de direitos coletivos stricto

sensu, não há possibilidade de satisfação isolada de apenas uma pessoa do grupo, categoria ou

classe, nem defesa de um sem defesa do outro. A satisfação de um dos membros exige a

satisfação de todos.95

O segundo critério guarda relação com a titularidade das pessoas, que deve pertencer ao

grupo, categoria ou classe. Se a titularidade pertencer a apenas uma ou poucas pessoas do

coletivo, de forma individualizada, não há que se falar em lesão de natureza coletiva stricto

sensu. O grupo, categoria ou classe não precisa estar organizado para promover judicialmente a

defesa do direito lesado ou ameaçado. Neste sentido, esclarece Watanabe: Mesmo sem organização, os interesses ou direitos “coletivos”, pelo fato de serem de natureza indivisível, apresentam identidade tal que, independentemente de sua harmonização formal ou amalgamação pela reunião de seus titulares em torno de uma entidade representativa, passam a formar uma só unidade, tornando-se perfeitamente viável, e mesmo desejável, a sua proteção jurisdicional em forma molecular.96

De qualquer modo, se existir, a organização somente estará presente no primeiro caso

apresentado pelo dispositivo do CDC, ou seja, quando o grupo, categoria ou classe de pessoas

titulares do direito ou interesse, estiver ligado entre si por uma relação jurídica base. Quando tal

relação se der com a parte contrária, inexistirá organização, a exemplo do que ocorre com alunos

de uma escola que discutem o aumento abusivo de mensalidades, proprietários de veículos que

95 SAAD, Eduardo Gabriel. Comentários ao código de defesa do consumidor. 3. ed. São Paulo: LTr, 1998, p. 571. 96 WATANABE, 2004, p. 805.

43

discutem determinado imposto e contratantes de um plano de saúde que questionam o valor das

mensalidades cobradas.97

Considerando que a titularidade pertence ao grupo, categoria ou classe, as pessoas que o

compõe devem ser determináveis, sendo que a determinabilidade pode ser verificada por meio da

relação jurídica base que as une ou por meio do vínculo jurídico que as liga à parte contrária. No

primeiro caso cita-se como exemplo, amparando-se em Watanabe, os membros de uma

associação de classe ou os acionistas de uma mesma sociedade, e no segundo, os contribuintes de

um mesmo tributo ou os contratantes de um determinado seguro com o mesmo segurador.98

Por fim, cumpre observar a relação jurídica base, considerado o terceiro critério que

possibilita caracterizar a existência de direitos coletivos stricto sensu. O elo ou relação jurídica

que une um determinado número de pessoas de forma coletiva, conforme esclarece Baziloni,

“[...] deve preexistir à lesão, que é do grupo, categoria ou classe e não nascer com ela, e não ser

individualmente de nenhum de seus componentes.”99 Portanto, a relação jurídica base não se

confunde com a relação jurídica originária da lesão ou ameaça de lesão ao direito, posto que

aquela deve ser preexistente a ocorrência do fato que gerou o interesse a ser tutelado.100

1.5.2 Direitos e interesses difusos

A partir do CDC, são considerados difusos os direitos e interesses transindividuais de

natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de

fato (art. 81, parágrafo único, inciso I). Do dispositivo do CDC são extraídos os requisitos

necessários à devida caracterização de um direito ou interesse difuso, sendo: a indivisibilidade do

bem jurídico, número indeterminado ou indeterminável de pessoas na condição de titulares, e

ligação comum originária da mesma circunstância de fato. Ou seja, há lesão a direitos difusos

97 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 63. 98 WATANABE, 2004, p. 805. 99 BAZILONI, Nilton Luiz de Freitas. A coisa julgada nas ações coletivas. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, p. 55. 100 WATANABE, 2004, p. 804.

44

quando é atingido um número indeterminado de pessoas, as quais não têm entre si qualquer

relação jurídica base a uni-las na lesão (há apenas uma mesma circunstância de fato) e o bem

jurídico atingido é indivisível (atingida uma pessoa, todas estarão atingidas).101

Quanto a indivisibilidade, significa dizer que na presença de interesses difusos não há

possibilidade de distribuição de quotas da pretensão entre as pessoas que a compartilham, de

forma que “[...] o sucesso da ação compensará todos os envolvidos, e não somente aquele que se

tenha investido em paladino da comunidade; do mesmo modo, o fracasso da investida judicial

frustrará, a um tempo, os autores da ação e os cidadãos que perfilhavam o mesmo

entendimento.”102 A indivisibilidade, portanto, compõe a própria pretensão ou interesse

compartilhado coletivamente.

No que tange às pessoas lesadas, Mazzilli entende que os direitos difusos compreendem

grupos menos determinados, isto é, melhor do que a utilização do termo indeterminado seria a

utilização da expressão pessoas indetermináveis. Segundo o autor, os direitos difusos são como

“[...] um feixe ou conjunto de interesses individuais, de objeto indivisível, compartilhados por

pessoas indetermináveis, que se encontram unidas por circunstâncias de fato conexas.”103

De qualquer modo, é característica dos direitos difusos, a impossibilidade de afirmação

precisa dos indivíduos. Embora os interesses sejam comuns, em razão da abrangência do grupo,

“[...] não se pode afirmar, com precisão, a quem pertençam, tampouco a parcela destinada a cada

um dos integrantes desse grupo indeterminado.”104 Um dos principais fatores responsáveis pela

indeterminação é a inexistência de vínculo jurídico entre as pessoas afetadas, sendo que a

agregação da pretensão ocorre de forma ocasional, a exemplo do que acontece com consumidores

que adquirem um determinado produto de grande consumo distribuído nacionalmente, visto que a

aquisição pode se dar em qualquer um dos Estados da Federação, tornando praticamente

impossível a identificação dos indivíduos.

101 BAZILONI, op. cit., p. 55. 102 MANCUSO, 2004, p. 98-99. 103 MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural, patrimônio público e outros interesses. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 50-51. 104 VIGLIAR, José Marcelo Menezes. Ação civil pública. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 47.

45

Portanto, ao contrário do que ocorre com os direitos coletivos stricto sensu, que exige

ligação das pessoas que formam o grupo, categoria ou classe por meio de uma relação jurídica

base (entre si ou com a parte contrária), nos direitos difusos basta a ligação por meio de uma

circunstância de fato. Isto é, nos direitos coletivos stricto sensu há o efetivo exercício coletivo de

interesses coletivos, por meio de grupos, categorias ou classes, evidenciando a existência de

vínculo prévio entre os indivíduos, enquanto que nos direitos e interesses difusos basta uma

mesma circunstância de fato.105

Ainda, cumpre destacar outras características apresentadas pelos direitos e interesses

difusos, as quais não decorrem de forma direta do que reza o dispositivo do CDC. A primeira

característica diz respeito a sua intensa litigiosidade interna, a qual, segundo esclarece Mancuso,

deriva basicamente da circunstância de que todas essas pretensões metaindividuais não têm por

base um vínculo jurídico definido, mas situações de fato, contingentes, por vezes até ocasionais.

Significa dizer que os interesses difusos não envolvem controvérsias atinentes a situações

jurídicas definidas, mas de litígios que têm por causa verdadeiras escolhas políticas, tornando as

alternativas ilimitadas, posto que o favorecimento de uma posição melindrará os integrantes da

outra106. Os exemplos citados por Grinover acerca do assunto são de extrema clareza: O interesse à contenção dos custos de produção e dos preços contrapõe-se à criação de novos postos de trabalho, à duração dos bens colocados no comércio, etc. O interesse à preservação das belezas naturais contrapõe-se ao interesse da industria edilícia, ou à destinação de áreas verdes a outras finalidades; o interesse ao transporte automobilístico não poluente e barato contrapõe-se ao interesse por um determinado tipo de combustível; o interesse à informação correta e completa contrapõe-se ao interesse político em manter um mínimo de controle sobre os meios de comunicação de massa, etc.107

Diante de um interesse difuso, não há um parâmetro jurídico que permita um julgamento

axiológico sobre a posição certa ou errada, não restando ao Judiciário outra alternativa senão

avaliar os interesses opostos e optar pelo que melhor atinja, naquele momento, a finalidade

pública.108

Por fim, cumpre observar que os interesses difusos encontram-se em constante transição

ou mutação no tempo e no espaço, sendo que tal característica decorre da ausência de um vínculo

105 MANCUSO, 2004, p. 82-93. 106 Ibidem, p. 101-103. 107 GRINOVER, 1984, p. 83. 108 MANCUSO, 2004, p. 103.

46

jurídico básico entre os interessados e da presença de situações contingenciais, repentinas,

imprevisíveis, que podem desaparecer e reaparecer em outro período. Inúmeros são os exemplos

citados, entre os quais, referidos por Mancuso, estão a possibilidade de aprovação de licença para

construção de fábricas poluidoras, experiências com hormônios em rebanho visando apressar o

processo de engorda e plantações de sementes agrícolas geneticamente modificadas. Em todas as

situações, adverte o autor, “[...] verifica-se que é efêmera a duração do interesse difuso daí

decorrente: deve ele ser tutelado prontamente, antes que se altere a situação de fato que o

originara.”109

Portanto, passado o momento do fato, alteram-se os interesses difusos por ele ensejados.

Contudo, certamente, novos interesses em outras circunstâncias substituirão os anteriores,

ensejando a mobilização dos interessados contrários às atividades desenvolvidas naquele

momento específico, da mesma forma que o mesmo interesse pode nascer em outro tempo e

espaço, a exemplo do que ocorre no Brasil, nos dias atuais, com a constante construção de

hidrelétricas.

1.5.3 Direitos e interesses individuais homogêneos

Os direitos e interesses individuais homogêneos são individuais na origem, mas tutelados

coletivamente. Em razão da relevância social apresentada, são tratados pela lei como direitos e

interesses coletivos. Esta é a análise formulada por Pinho, que buscou na teoria geral do direito

civil a natureza jurídica dos direitos individuais homogêneos, concluindo que o mesmo é espécie

do gênero direito subjetivo, mais precisamente, “direito subjetivo individual complexo”. Segundo

o autor,

É um direito individual porque diz respeito às necessidades, aos anseios de uma única pessoa; ao mesmo tempo é complexo, porque essas necessidades são as mesmas de todo um grupo de pessoas, fazendo nascer, destarte, a relevância social da questão. Distingue-se ele, desse modo, do direito subjetivo individual simples, que se refere apenas a uma pessoa, considerada em perspectiva individual e isolada, sem pontos comuns a outras.110

109 MANCUSO, 2004, p. 106-107. 110 PINHO, 2002, p. 14-33.

47

Portanto, os direitos e interesses individuais homogêneos não são coletivos na essência. O

caráter coletivo somente está presente na forma de exercê-lo, diante da impossibilidade de um

feixe de interesses individuais transformar-se em interesse coletivo. Mancuso esclarece que é a

tutela processual de tais interesses que pode e até deve ser coletiva, já que o CPC prevê

expressamente que a formação de litisconsórcio ativo deve ser evitada quando o número de

autores for muito numeroso. Para Mancuso, Está claro que a vera noção de “interesse coletivo” requer mais do que uma simples adição de interesses individuais. Sempre se pode fazer coletivamente o que já antes se poderia fazer a título individual; todavia, uma simples alteração no modo do exercício não pode mudar a essência dos interesses agrupados, que permanecem de natureza individual.111

De forma sucinta, e porque não dizer precária e defeituosa112, o CDC conceitua os

interesses ou direitos individuais homogêneos, como sendo aqueles decorrentes de origem

comum. Na esteira do disposto no CDC, mas de forma aprimorada, Zavascki conceitua direitos

individuais homogêneos como sendo “[...] os direitos subjetivos pertencentes a titulares diversos,

mas oriundos da mesma causa fática ou jurídica, o que lhes confere grau de afinidade suficiente

para permitir a sua tutela jurisdicional de forma conjunta.”113 Em razão da pertinência cumpre

destacar também o conceito elaborado por Pinho a partir de estudo aprofundado sobre o tema,

concluindo que direitos individuais homogêneos são “[...] espécie do gênero direito subjetivo,

qualificando-o como um direito subjetivo individual complexo (dotado de relevância social

obtida a partir de uma origem comum), relativo, divisível, e imbuído de reflexo patrimonial, na

esfera individual de cada lesado.”114

É considerado relativo porque não é oponível erga omnes, mas somente contra o causador

do dano, e imbuído de reflexo patrimonial na maioria dos casos porque foi introduzido pelo CDC,

no qual predomina esta modalidade de direito.115

111 MANCUSO, 2004, p. 51-54. 112 PINHO, 2007, p. 307. 113 ZAVASCKI, op. cit., p. 43. 114 PINHO, 2007, p. 312. 115 Idem, 2002, p. 38.

48

Da análise dos conceitos, conclui-se que dois são os requisitos indispensáveis para

caracterizar e possibilitar o tratamento coletivo de direitos individuais: a homogeneidade do

direito e a origem comum do mesmo. Quanto ao primeiro requisito, o que possibilita o pedido de

tutela coletiva é a prevalência de questões comuns sobre as individuais. Do contrário, Grinover

adverte: “Prevalecendo as questões individuais sobre as comuns, os direitos individuais seriam

heterogêneos e o pedido de tutela coletiva se tornaria juridicamente impossível.”116

No que tange a origem comum, Pinho esclarece que a mesma encontra-se presente quando

o direito de um indivíduo é semelhante ao de vários outros, sendo que todos os direitos são

decorrentes de uma mesma origem. Por conseguinte, origem comum é entendida como uma

circunstância que estabelece o ponto de contato entre os indivíduos que integram aquele

agrupamento social. Com propriedade o autor complementa que é da origem comum que surge a

extensão social do direito, “[...] pois se diversas pessoas se encontram na mesma situação

jurídica, automaticamente aquela situação passa a produzir efeitos numa coletividade, obrigando

o ordenamento jurídico a tutelar o direito como coletivo lato sensu.”117

Portanto, nos direitos individuais homogêneos basta a ligação das pessoas por meio de

uma circunstância de fato ou de direito, ao contrário do que ocorre com os direitos coletivos

stricto sensu, posto que nestes as pessoas que formam o grupo, categoria ou classe deverão estar

ligadas entre si ou com a parte contrária por meio de uma relação jurídica base.

Nos direitos individuais homogêneos os titulares são determinados ou determináveis e o

objeto da pretensão deve ser divisível, sendo que a divisibilidade pode ser apontada como a

principal característica de diferenciação destes com os direitos difusos e coletivos stricto sensu.

Na verdade, os interesses individuais homogêneos nada mais são que direitos individuais que

foram lesados em decorrência da mesma origem (origem comum). Desse modo, para diferenciar

um direito difuso ou um direito coletivo stricto sensu de um direito individual homogêneo, basta

verificar se, no caso concreto, uma pessoa individualmente pode pleitear a tutela e se a

procedência do pedido beneficiará terceiro.118

116 GRINOVER, Ada Pellegrini. Código brasileiro de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. In: Ada Pellegrini Grinover [et al.]. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 864. 117 PINHO, 2002, p. 37-38. 118 BAZILONI, op. cit., p. 56.

49

No confronto específico entre direitos individuais homogêneos e direitos difusos, a

possibilidade de determinar os titulares do direito também apresenta-se como imprescindível

critério de distinção. Ambos devem ter por base uma circunstância fática específica, porém

naqueles os titulares são determinados ou determináveis, enquanto nestes os titulares são

indeterminados.119

Desse modo, diante do preenchimento dos requisitos caracterizadores, os direitos

individuais homogêneos possibilitam a tutela coletiva, proporcionando benefícios para as partes e

para o Judiciário. Neste sentido, Mendes complementa que os direitos individuais “[...] são vistos,

por vezes, como passageiros de segunda classe, ou até indesejáveis, dentro desse meio

instrumental que é a tutela judicial coletiva.” Porém, segundo o autor, o estigma não passa de

preconceito e resistência diante dos novos instrumentos processuais, sendo que a tutela coletiva

dos direitos individuais homogêneos é garantia de economia processual, representa medida

necessária para desafogar o Judiciário, permite e amplia o acesso à Justiça, e salvaguarda o

princípio da igualdade da lei ao resolver molecularmente causas que seriam repetitivas e que

estariam fadadas a julgamentos de teor variado, se apreciadas de modo singular.120

1.6 DIREITOS VERSUS INTERESSES

Na presente pesquisa não serão apresentados extensos comentários acerca de todos os

sentidos terminológicos atribuídos a expressão “interesse”, a exemplo das acepções laica e

técnica, compreendendo no segundo aspecto, os interesses social, geral e público, mesmo porque,

parafraseando Mancuso, conclui-se que “[...] as diferenças seriam tão sutis que, na prática, não

haveria contribuição relevante para o exame da problemática dos interesses metaindividuais.”121

A análise se restringe ao sentido da expressão no campo jurídico, buscando saber porque o

legislador brasileiro optou por estabelecer igualdade entre as terminologias interesses e direitos.

119 PINHO, 2007, p. 306. 120 MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Ações coletivas no direito comparado e nacional. In: MARINONI, Luiz Guilherme (coord.). Coleção temas atuais de direito processual civil, vol. 4. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 220-221. 121 MANCUSO, 2004, p. 36.

50

No sistema jurídico, a partir das concepções liberais-individualistas da cultura jurídica

moderna, o termo direito é utilizado apenas no âmbito dos interesses juridicamente protegidos,

com valoração ética-normativa, projetada sobre o direito individual e cujo titular deve ser um

indivíduo devidamente identificado (legitimado). Desse modo, Morais complementa que o “[...]

direito seria aquele fato juridicamente definido para o qual temos uma titularidade e um sujeito

definidos, além de um objeto perfeitamente delimitado, ou seja, identifica-se com a noção de

direito subjetivo.” Concernente à relação entre direito e interesse, segundo o mesmo autor, há

uma vinculação entre ambos, na qual a preponderância do direito acarreta uma negação do

interesse, isto é, a hegemonia do direito subjetivo implica a desqualificação do interesse,

enquanto portador de alguma relevância jurídica.122

Entretanto, o legislador brasileiro ao definir as categorias jurídicas tuteladas coletivamente

no sistema normativo, optou por empregar os termos interesses e direitos de forma isonômica, na

condição de sinônimos. E é com esta conotação que a doutrina especializada no estudo dos

direitos coletivos vem reconhecendo as duas expressões, concluindo que não há diferença entre

as mesmas. Segundo entendimento de Watanabe, os interesses assumem status de direitos a partir

do momento em que passam a ser amparadas pelo sistema normativo, “[...] desaparecendo

qualquer razão prática, e mesmo teórica, para a busca de uma diferenciação ontológica entre

eles.”123

Desse modo, Ferreira observa que o legislador brasileiro preferiu não dar margem a

ocorrência de intermináveis discussões que certamente seriam travadas juridicamente, no sentido

de saber se determinada situação concreta configuraria (ou não) direito subjetivo, a partir da

clássica definição de interesse juridicamente protegido, colocando no mesmo patamar as duas

expressões, ambas com o mesmo significado semântico.124

A clássica definição de que fala o autor, conceitua os direitos subjetivos enquanto

interesses juridicamente protegidos a partir dos seguintes elementos: utilidade, vantagem ou

proveito assegurado pelo direito ao respectivo titular; e a ação ou proteção jurisdicional de tal

122 MORAIS, J. L. B. Do direito social aos interesses transindividuais: o estado e o direito na ordem contemporânea. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996, p. 109. 123 WATANABE, 2004, p. 800. 124 FERREIRA, Rony. Coisa julgada nas ações coletivas: restrição do artigo 16 da lei de ação civil pública. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2004, p. 55-56.

51

direito, como forma de garanti-lo. A partir deste raciocínio, Ráo complementa que o conteúdo do

direito “[...] sempre se caracteriza como um bem, material ou moral, que considerado em si

representa um valor e, considerado em relação ao beneficiário, subjetivamente, constitui um

interesse, ao qual a ação se junta para protegê-lo.”125

Neste mesmo sentido, e considerando o aspecto subjetivo de que fala Ráo, Carneluti

argumenta que o interesse representa uma relação que tem por finalidade a satisfação de uma

necessidade, envolvendo a parte que experimenta a necessidade e determinado bem que é capaz

de satisfazê-la, por meio da utilidade apresentada. Carnelutti exemplifica suas argüições do

seguinte modo: A relação entre o ente que experimenta a necessidade e o ente que é capaz de a satisfazer é o interesse. O interesse é, pois, a utilidade específica de um ente para outro ente. O pão é sempre um bem, e por isso tem sempre utilidade, mas não tem interesse para quem não tem fome, nem pensa vir a tê-la. Um ente é objeto de interesse na medida em que uma pessoa pense que lhe possa servir, do contrário, é indiferente.126

Resta evidenciado, portanto, a partir dos conceitos citados, originários da clássica

definição que contempla o direito subjetivo enquanto interesse juridicamente protegido, que há

uma convergência no sentido de identificar no interesse uma relação entre uma ou mais pessoas e

determinado bem que lhes seja útil, pelo fato de suprir-lhes uma necessidade. Neste contexto, a

expressão “bem” equivale a tudo o que serve moral ou materialmente ao ser humano, estando

sempre, portanto, na condição de objeto do interesse.127

Ocorre que alguns dos novos direitos, sobretudo os de natureza difusa, não permitem a

exata identificação da pessoa lesada, o que poderia comprometer a tutela jurisdicional do mesmo

a partir da visão clássica do direito subjetivo, que apresenta enquanto idéia central uma rigorosa

individualização e atribuição do poder subjetivo a uma determinada pessoa ou ente jurídico.

Desse modo, Ferreira esclarece que o ordenamento jurídico brasileiro, “[...] ao perceber que os

interesses de outrora se modificaram e assumiram novas características e novos titulares,

125 RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. 4. ed. vol. 2, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 548. 126 CARNELUTTI, Francesco. Teoria geral do direito. Tradução de Antonio Carlos Ferreira. São Paulo: Lejus, 2000, p. 89-90. 127 FERREIRA, op. cit., p. 51-53.

52

abandona a fórmula clássica ligada ao conceito de interesse subjetivo, para estender a proteção

jurisdicional a toda e qualquer pretensão juridicamente relevante.”128

O legislador brasileiro ao se deparar com a realidade imposta pelas pretensões coletivas,

comuns a toda a coletividade e não imputáveis a ninguém, não as qualificou na condição de

direitos subjetivos, posto não apresentarem os requisitos necessários segundo as fórmulas ou

padrões por estes descritos. Para Venturi a não qualificação de pretensões coletivas como efetivos

direitos subjetivos deriva de justificativas de ordem subjetiva, em virtude de ser impossível

imputar uma titularidade individual e exclusiva a certas pretensões pertinentes a todo corpo social

ou parcela deste; e de ordem objetiva, em razão da natureza das pretensões meta-individuais,

marcadamente extrapatrimoniais, na medida em que não são economicamente apropriáveis por

ninguém, individualmente.129

Por fim, é importante observar que antes do CDC, a própria Constituição Federal já

empregava o termo interesses no patamar de direitos, ao permitir que sindicatos, entidades de

classe ou associação impetrem mandado de segurança coletivo em defesa dos interesses de seus

membros ou associados; e ao legitimar o Ministério Público para promover inquérito civil e ação

civil pública para proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros

interesses difusos e coletivos (CF, art. 6º, LXX, b; art. 129, III).

1.7 A SUMMA DIVISIO E OS DIREITOS COLETIVOS

A divisão entre direito público e direito privado, elaborada pelos romanos, é considerada a

primeira divisão da história da Ciência do Direito. A dicotomia remonta à summa divisio

encontrada em Ulpiano e, posteriormente, em Justiniano, por meio da qual parte-se do princípio

de que há direito público quando o objetivo visado pelo Direito tem no interesse geral a sua

finalidade imediata, e direito privado, quando o Direito busca atingir o que é pertinente ao

interesse individual de cada um, a partir do critério do conteúdo ou objeto da relação jurídica.130

128 FERREIRA, op. cit., p. 56. 129 VENTURI, op. cit., p. 45. 130 REALE, op. cit., p. 339-340.

53

Embora ainda existam autores que defendam a importância da divisão para o Direito, a

exemplo de Reale que expressamente deixa consignado que “[...] a distinção ainda se impõe,

embora com uma alteração fundamental na teoria romana, que levava em conta apenas o

elemento do interesse da coletividade ou dos particulares [...]”131, vem predominando o

entendimento de que não há mais razões para justificar a existência da dicotomia nos sistemas

jurídicos, tendo em vista as diversas transformações sociais que ocorreram nos últimos séculos e

que atingiram o direito de forma substancial e que deram origem a uma sociedade de “massas”,

resultando em constantes demandas coletivas. Por conseguinte, a summa divisio impede a

classificação dos direitos coletivos em uma de suas categorias tradicionais.

Há que considerar também que a própria função jurisdicional, na forma tradicional,

permanecendo baseada na dicotomia dos conceitos público-privado, apresenta dificuldades de ser

exercida no Estado Contemporâneo, tendo em vista as demandas coletivas.132

A insuficiência da tradicional dicotomia apresenta-se notória. A base de tal constatação

também é atribuída ao reconhecimento de que os dois termos apresentam interação constante,

impedindo que sejam compartimentados de modo estanque. Esta é a análise de Mancuso, que

complementa a reflexão argumentando que a constatação é evidenciada pela análise das

expressões “coletivo”, “geral” e “público”, as quais não são noções abstratas e apresentam

significação a partir da síntese dos interesses individuais nelas agrupados, ou seja, um interesse é

considerado metaindividual quando ultrapassa o círculo de atributividade individual e

corresponde à síntese dos valores predominantes num determinado segmento ou categoria social.

Ainda, segundo Mancuso, [...] a realidade é muito complexa e seus elementos estão constantemente interagindo, de modo que não se pode enquadrar todo esse fenômeno em dois compartimentos estanques: público e privado. O “temido” terceiro termo de há muito está presente na sociedade, formado de elementos que depassam esse binômio. Há, portanto, uma zona cinzenta entre aqueles dois pólos [...].133

131 REALE, op. cit., p. 340. 132 CAPPELLETTI, 1985, p.173. 133 MANCUSO, 2004, p. 44-45.

54

Pinho ratifica este entendimento, refletindo que “[...] encontra-se superada a dicotomia

direito público – direito privado, em razão da idéia de unidade do ordenamento jurídico, de modo

a significar na atualidade, uma distinção meramente quantitativa.” Para o autor, na atualidade não

há que se falar em institutos público/privado, mas em institutos onde prevalecem interesses

individuais ou da coletividade, não afastando a presença de ambos. Ou seja, as esferas público-

privado deixaram de ser intangíveis, e a dicotomia perde a razão de ser, mesmo porque, todas as

normas devem ser interpretadas sob a luz dos valores constitucionais.134

Os direitos coletivos lato sensu são considerados uma categoria intermediária entre o

interesse particular e o interesse público. Despojados de sua carga de egoísmo, os interesses

individuais formam um novo ente, chamado interesse coletivo, e que encontra seu lugar a meio

caminho entre os interesses particulares e o interesse público.135

Na análise de Saldanha, esse fenômeno ocorre porque nas sociedades de massificação

padronizada dos séculos XX e XXI houve uma perda da distinção entre as duas dimensões, ou

mais precisamente, “o sacrifício da dimensão privada”. E o problema decorre principalmente

(sem prejuízo de fatores como aumento das populações, avanço desenfreado da tecnologia

hegemônica e saturação das formas urbanas) da onipresença do poder público que atinge com

elevado número de decisões todos os setores da vida pessoal; e do incremento das comunicações

que habitualmente reduzem o indivíduo, por exemplo, às proporções de consumidor, ameaçando

a preservação da privacidade.136

No momento Contemporâneo, Saldanha observa que o cidadão individualizado deixou de

contestar as ações e decisões políticas do Estado, como ocorreu no tempo da Revolução Francesa,

sendo que a defesa dos interesses individuais e coletivos vem sendo executada pelo viés da

substituição, papel assumido pelos partidos políticos, grupos de pressão, sindicatos e associações.

Em lugar do indivíduo estão as associações, representantes das coletividades.137

Portanto, a summa divisio apresenta-se superada pela realidade social Contemporânea, da

qual emergiram novos interesses não classificáveis em nenhuma das categorias tradicionais. São

134 PINHO, 2002, p. 182. 135 MANCUSO, 2004, p. 57. 136 SALDANHA, Nelson. O jardim e a praça: ensaio sobre o lado privado e o lado público da vida social e histórica. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1986, p. 25-31. 137 Ibidem, p. 30.

55

interesses coletivos, de titularidade coletiva, e que revelam inadequada a tradicional concepção

de iniciativa processual monopolizada nas mãos do titular do direito subjetivo. A summa divisio

mostra-se impotente frente a interesses que são, ao mesmo tempo, de todos e de ninguém.138

1.8 A NATUREZA CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS, AÇÕES E PROCESSOS COLETIVOS

A Constituição Federal de 1988 representa um marco na história da tutela jurisdicional

dos interesses e direitos coletivos no Brasil, por ser a primeira Constituição do País a elevar a

tutela coletiva ao patamar constitucional, garantindo a inafastabilidade de apreciação pelo Poder

Judiciário de lesão ou ameaça a direito individual ou coletivo (CF, art. 5º, XXXV).

As Constituições anteriores nada falavam sobre direitos coletivos, se limitando, a partir da

Constituição de 1934, a trazer disposições sobre direitos e garantias individuais, manifestando os

fundamentos da cultura jurídica moderna de cunho liberal-individualista. Portanto, a partir de

1988, o direito constitucional de ação deixa de estar voltado apenas para a tutela individual,

consistindo em clara inovação em relação ao direito anterior.139

No texto constitucional, a legitimidade para defender direitos nas esferas judicial e

extrajudicial, além de ser mantida na tradicional forma individual, foi estendida para as entidades

associativas, as quais podem representar coletivamente seus filiados. Tal legitimidade também foi

conferida aos sindicatos para defender direitos e interesses individuais ou coletivos da respectiva

categoria, ao mesmo tempo em que o Ministério Público recebeu autorização para promover

inquérito civil e ação civil pública para proteção do patrimônio público e social, do meio

ambiente e de outros interesses difusos e coletivos (CF, art. 5º, XXI; art. 8º, III e art. 129, III).

Assim, resta evidenciado que sem prejuízo das inovações relacionadas aos direitos

fundamentais, a Constituição da República também inovou em relação às garantias fundamentais.

138 GRINOVER, Ada Pellegrini. A tutela jurisdicional dos interesses difusos. Revista Forense, 1979, vol. 268, p. 71. 139 MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Ações coletivas nos países ibero-americanos: situação atual, código modelo e perspectivas. In: PRADO, Geraldo Luiz Mascarenhas (coord.). Acesso à justiça e efetividade do processo. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005, p. 7.

56

Ou seja, manteve no nível constitucional as ações populares, elevou ao mesmo patamar as ações

civis públicas e criou as ações de mandado de segurança coletivo, todas consideradas neste caso,

enquanto garantias, meios de defesa, meios de tornar efetivo, de proteger ou salvaguardar direitos

coletivos. Segundo Bonavides, sem as garantias os direitos fundamentais cairiam no vazio das

esferas abstratas, ou perderiam o fio institucional de contato com a realidade concreta. Para o

autor, A garantia constitucional é, por conseguinte, a mais alta das garantias de um ordenamento jurídico, ficando acima das garantias legais ordinárias, em razão da superioridade hierárquica das regras da Constituição, perante as quais se curvam, tanto o legislador comum, como os titulares de qualquer dos Poderes, obrigados ao respeito e acatamento de direitos que a norma suprema protege.140

Tais garantias demonstram que o legislador constituinte preocupou-se em fazer constar na

Constituição da República, os mecanismos jurídicos necessários para proporcionar o devido

acesso à justiça quando o direito tutelado extrapola a esfera meramente individual, e atinge

grupos, categorias ou classes de pessoas, determinadas ou não.

Sem as garantias constitucionais de acesso coletivo à justiça e de tutela coletiva de

direitos, a República estaria feriando um dos princípios básicos do Estado Democrático de

Direito, qual seja, o princípio que garante um sistema de direitos fundamentais, formado pelos

direitos individuais, sociais, culturais e, evidentemente, coletivos. Além de ferir este princípio,

por conseguinte, estaria descaracterizando o próprio Estado Democrático de Direito, que visa em

sua configuração, levando em conta os elementos que os compõem, superar os conceitos de

Estado Democrático e Estado de Direito, mediante a criação de um conceito novo, “[...] na

medida em que incorpora um componente revolucionário de transformação do status quo.”141

Segundo Venturi as garantias constitucionais de tutela coletiva se coadunam com os

princípios do Estado Democrático de Direito, os quais se justificam pela efetiva e constante busca

de transformação da realidade social, exigindo um rompimento com as concepções herdadas do

Estado liberal-individualista. Por conseguinte, adverte o autor, a ostentação de Estado

Democrático de Direito não será alcançada pelo simples fato de assim estar previsto na

Constituição ou porque esta é a vontade de seu povo, eis que neste cenário, a democracia “[...]

140 BONAVIDES, op. cit., p. 524-533. 141 SILVA, José Afonso da. O estado democrático de direito. Revista dois Tribunais, 1988, vol. 635, p. 11-12.

57

não tem um sentido simplesmente formal, como no Estado Liberal, mas precisamente substancial

e se pauta pela efetivação dos direitos fundamentais e pela preservação da dignidade da pessoa

humana.”142

Assim, as ações coletivas passam a ser vistas como condição de existência e prevalência

da democracia, rompendo com barreiras de acesso à justiça, mediante o emprego de tratamento

diferenciado às mais diversas questões processuais, tais como a legitimação ativa por meio da

substituição e a extensão subjetiva da eficácia da coisa julgada, neste último caso, superando em

absoluto as tradicionais e individualistas disposições do Código de Processo Civil.143

Almeida complementa que “[...] não existe efetivamente Estado Democrático de Direito

sem instrumentos eficazes de tutela dos interesses e direitos coletivos.” Para o autor, os processos

coletivos são vias potencializadas de prestação da tutela jurisdicional, sendo um dos

mecanizamos utilizados pelo Judiciário para cumprir sua função constitucional no Estado

Democrático de Direito, contribuindo para transformar a realidade social mediante a

concretização de direitos, objetivando uma “[...] sociedade mais justa, humana, solidária e livre

dos preconceitos que impedem a efetivação de uma ordem constitucional adequadamente

democrática.”144

Utilizando-se de ações coletivas, por meio de uma única decisão o Judiciário compõe

litígios que demandariam nas mais diversas situações, uma infinidade de ações individuais e, por

conseguinte, uma infinidade de sentenças também individuais. Desse modo, evidencia-se que por

meio da substituição processual, há um efetivo aumento do acesso à função jurisdicional do

Estado, incluindo neste processo as pessoas que por razões econômicas deixariam de exercer seus

direitos. Logo, torna-se fácil concluir que por meio das ações e dos processos coletivos, ocorre

uma notória aproximação do Poder Judiciário dos princípios e pressupostos democráticos

estabelecidos na Constituição da República.

Parafraseando Almeida, pode-se concluir que as ações e o processo coletivo têm natureza

constitucional, pertencendo ao chamado direito processual constitucional, do qual faz parte o

142 VENTURI, op. cit., p. 97. 143 Ibidem, p. 102. 144 ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito processual coletivo brasileiro: um novo ramo do direito processual. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 144.

58

conjunto de disposições constitucionais que, entre outras questões, estabelece regras e estipula

quais ações são cabíeis para requerer tutela jurisdicional quando determinados direitos são

lesados ou ameaçados de lesão, in casu, os direitos coletivos.145

Para a tutela de tais direitos, a Constituição da República prevê, entre outras, as seguintes

garantias: o mandado de segurança coletivo (CF, art. 5º, LXX); a ação popular (CF, art. 5º,

LXXIII); e a ação civil pública (CF, art. 129, III), todas adiante detalhadas, juntamente com a

ação coletiva ou ação civil coletiva, inserida no cenário jurídico nacional no ano de 1990 com o

Código de Defesa do Consumidor.

Para maior clareza, é importante destacar que o citado direito processual constitucional

(no sentido processo-Constituição) não se confunde com o direito constitucional processual (no

sentido Constituição-processo). Enquanto este, segundo Dinamarco, contempla a tutela

constitucional do processo e os princípios que devem regê-lo; o primeiro alberga o controle da

constitucionalidade das leis e dos atos administrativos, bem como, a preservação das garantias

oferecidas pela Constituição e “[...] toda a idéia de instrumentalidade processual em si mesma,

que apresenta o processo como sistema estabelecido para a realização da ordem jurídica,

constitucional inclusive.”146

Neste contexto, as ações coletivas aparecem enquanto mecanismos de indispensável

existência no ordenamento jurídico, eis que representam garantias de preservação e efetiva

fruição dos direitos coletivos que a ordem constitucional vigente entende que, neste momento

histórico, devem ser cultuados.

145 ALMEIDA, op. cit., p. 18. 146 DIMARACO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 27.

CAPÍTULO II

2 PROCESSOS COLETIVOS

No primeiro capítulo restou demonstrado que no século XX eclodiu o surgimento dos

denominados novos direitos, entre os quais os direitos fundamentais de cunho coletivo (em

sentido lato), originários de fatores como os processos de industrialização, da globalização, dos

avanços tecnológicos e do incremento das comunicações, os quais motivaram o processo de

massificação social e passaram a provocar ameaças ou efetivas lesões a direitos e interesses que

atingem de uma só vez, conjuntos determinados ou indeterminados de pessoas, exigindo uma

tutela jurisdicional diferenciada da tutela tradicional, de cunho intersubjetivo.

Neste segundo capítulo, cumpre tecer uma análise acerca da legislação brasileira e das

influências sofridas no momento de pensar a tutela jurisdicional coletiva, mesmo porque, a

legislação processual até então existente não foi organizada com mecanismos contempladores dos

direitos coletivos, eis que elaborada sob as influências dos princípios liberais-individualistas.

A análise inclui uma abordagem das ações coletivas enquanto mecanismos de acesso à

justiça, de economia processual, de educação social e de concretização de direitos, bem como, de

aspectos envolvendo as principais ações coletivas e da perspectiva de um Código Brasileiro de

Processos Coletivos.

60

2.1 O CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL NO ÂMBITO DA TUTELA COLETIVA

O Código de Processo Civil brasileiro foi estruturado sob a influência da tradicional e

clássica divisão da tutela jurisdicional, e que compreende a tutela de conhecimento, a tutela de

execução e a tutela cautelar, mantendo os fundamentos da teoria da ação do processo individual,

objeto central dos estudos do processo nos éculos XIX e em parte do século XX, a partir dos

princípios e fundamentos do direito privado. A ciência do processo civil, adverte Adamovich, foi

construída com base em uma filiação positivista.147

Dinamarco também destaca que há um descompasso entre o sistema processual civil e a

ordem constitucional, isto porque, o primeiro foi implantado sob a égide autoritária do Estado

Novo e sobreviveu à redemocratização de 1946 e ao regime militar de 1964, permanecendo na

nova ordem constitucional. Assim, com exceção de determinadas leis especiais, “[...] o

significado maior da evolução havida de 1939 para cá, é de ser creditado ao trabalho da doutrina

(especialmente, dos processual-constitucionalistas, em sua atitude rigorosamente

instrumentalista) e ao bom senso dos juízes.”148

A entrega da prestação jurisdicional por meio do atual Código de Processo Civil, ocorre a

partir de um repertório instrumental atravancador, intrincado e retrógrado, e que encontra-se

voltado quase que exclusivamente, segundo prudente complementação de Santos, aos interesses

individuais e de preservação da propriedade privada, mantendo conservada a concepção burguesa

alicerçada na remota era da Queda da Bastilha.149

Desse modo, o Código de Processo Civil brasileiro apresenta disposições defasadas no

que tange aos direitos de ordem coletiva, e visa tutelar, tão somente, prestações jurisdicionais nos

casos de ameaça ou lesão a direitos subjetivos individuais, remetendo a legitimidade ativa ao 147 ADAMOVICH, Eduardo Henrique Raymundo Von. A justiça geométrica e o anteprojeto de código de processos coletivos: elementos para uma justificativa hostórico-filosófica, ou por uma visão atual do alcance e da função criadora da jurisdição coletiva. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; WATANABE, Kazuo (coord.). Direito processual coletivo e o anteprojeto de código brasileiro de processos coletivos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 55. 148 DINAMARCO, C. R., op. cit., p. 43. 149 SANTOS, Dorival Moreira dos. Anteprojeto do código brasileiro de processo civil coletivo: inovações na prática processual em busca da efetividade. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro;

61

próprio detentor do direito lesado, sendo esta, inclusive, uma das condições indispensáveis para

possibilitar o efetivo exercício do direito de ação.150 Ao receber a petição inicial e constatar a

ausência de tal condição (legitimidade ativa), o CPC autoriza o juiz a rechaçar de imediato a

pretensão do postulante por meio do indeferimento da inicial, o que provoca a extinção do

processo sem resolução do mérito.151 Somente em casos excepcionais e mediante autorização

legal, um terceiro poderá em nome próprio, pleitear direito alheio, pelo regime da substituição

processual.152

Portanto, o Código de Processo Civil não é um instrumento voltado para a tutela de

interesses coletivos, pelo simples fato de não apresentar mecanismos adequados para tal

finalidade. Em meio aos dispositivos processuais, raras são as exceções que podem ser citadas

como exemplos de instrumentos com cunho de tutela coletiva. Conforme observa Zavascki, entre

as exceções está a fórmula tradicional do litisconsórcio ativo, “[...] ainda assim sujeito, quanto ao

número de litisconsortes, a limitação indispensável para não comprometer a defesa do réu e a

rápida solução do litígio (art. 46, § único).”153

O instituto do litisconsórcio ativo, passivo ou misto, é exemplo típico do processo civil

individualista, pelo fato de significar uma mera cumulação de demandas singulares. Segundo

complementação de Mendes, Diante de fatos com repercussão sobre grupos pequenos, o litisconsórcio pode, por certo, representar um meio viável e econômico para a resolução da lide. Mas, diante da massificação moderna, na qual os conflitos e as questões jurídicas e fáticas envolvem milhares ou milhões de pessoas, clara é a incapacidade do fenômeno litisconsorcial para a efetivação da prestação jurisdicional no âmbito coletivo.154

Contudo, diversas modificações legislativas aprovadas paralelamente ao Código de

Processo Civil a partir de 1985 (algumas modificações atingiram o próprio Código de Processo),

alteraram substancialmente o sistema processual, permitindo concluir que o processo civil já não

WATANABE, Kazuo (coord.). Direito processual coletivo e o anteprojeto de código brasileiro de processos coletivos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 39. 150 CPC, art. 3º. Para propor ou contestar ação é necessário ter interesse e legitimidade. 151 CPC, art. 295. A petição inicial será indeferida: II – quando a parte for manifestamente ilegítima. 152 CPC, art 6º. Ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei. 153 ZAVASCKI, op. cit., p. 18. 154 MENDES, 2002, p. 24.

62

se limita a solucionar conflitos de interesses individualizados, por meio da prestação da tutela

jurisdicional na modalidade clássica.

2.2 O MICROSSISTEMA PROCESSUAL COLETIVO

Portanto, sem prejuízo das alterações legislativas que atingiram o próprio Código de

Processo Civil, simultaneamente foi aprovado no Brasil um conjunto de regras que vem sendo

caracterizado de micro, mini ou subsistema processual coletivo, aplicado aos processos judiciais

que tramitam na condição de processos coletivos, os quais são entendidos enquanto mecanismo

de defesa dos interesses de uma pluralidade de pessoas, mediante um ou mais legitimados

extraordinários, que estarão em nome próprio defendendo os interesses ou direitos alheios.155

Assim, da mesma forma que o direito civil passou por uma transição, de um referencial

individual para o coletivo, “[...] o direito processual também não se manteve inerte às profundas

mudanças sociais que se vêm manifestando no mundo moderno.”156

Na reflexão de Zavascki, o primeiro passo em direção à formalização da tutela

jurisdicional de interesses transindividuais, mediante previsão em texto legislativo, ocorreu no

Brasil por meio da Lei da Ação Popular (Lei 4.717 de 29.06.1965). Na análise do autor, “[...] a

ação popular representa, em nosso sistema, além de uma quebra de paradigmas, o instrumento

precursor e pioneiro de defesa jurisdicional de interesses difusos da sociedade, mediante a

legitimação ativa dos cidadãos, pela técnica da substituição processual.”157

No ano seguinte ao advento da Lei da Ação Popular, isto é, no ano de 1966, Meirelles

chamava a atenção para a característica de representatividade coletiva apresentada por tal

diploma legal: É um instrumento de defesa dos interesses da coletividade, utilizável por qualquer de seus membros. Por ela não se amparam direitos próprios , mas sim direitos da comunidade. O beneficiário direto e imediato desta ação não é o autor; é o povo, titular

155 MENDES, 2002, p. 24. 156 PINHO, 2002, p. 41. 157 ZAVASCKI, op. cit., p. 84-88.

63

do direito subjetivo ao governo honesto. O cidadão a promove em nome da coletividade, no uso de uma prerrogativa cívica que a Constituição lhe outorga (art. 141, § 38).158

Há, no entanto, registros anteriores a 1965, de legislações que possibilitavam a defesa de

direitos coletivos por meio da substituição processual. Dinamarco cita a Lei 1.134 de 14.06.1950,

a qual facultava às associações que congregavam funcionários ou empregados de empresas

industriais da União, dos Estados, dos Municípios e entidades autárquicas, a representação

coletiva ou individual de seus associados, nas esferas administrativa e judicial.159 Mendes cita o

antigo Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei 4.215 de 24.04.1963), o qual

possibilitava que a entidade representasse os interesses gerais e individuais da classe dos

advogados, relacionados ao exercício da profissão, em juízo e fora dele. Também registra que a

Constituição da República de 1934 possibilitava que qualquer cidadão, na condição de parte

legítima, pleiteasse a declaração de nulidade ou anulação de atos lesivos ao patrimônio da União,

dos Estados e Municípios, disposição que no ano de 1965 foi regulamentada por meio da Lei da

Ação Popular, sendo que neste período, o País não mais se encontrava sob a égide da

Constituição de 1934, mas sim, da Constituição de 1946.160

Contudo, em que pese a importância de tais registros históricos, e que por mérito devem

ser consignados, é prudente observar que nenhum deles apresentava, mesmo sendo considerados

a partir do direito material os instrumentos pioneiros de tutela de interesses transindividuais,

regras inovadoras que permitam defini-los como marco histórico da regulamentação processual

coletiva, no que tange ao aspecto processual, posto que a aplicação de todos, inclusive da Ação

Popular, encontravam-se ligados às disposições do Código de Processo Civil.161

Somente no ano de 1985 com a Lei 7.347/85, denominada Lei da Ação Civil Pública, os

interesses transindividuais passaram a receber tutela processual diferenciada. Segundo Grinover,

os interesses ligados ao meio ambiente e ao consumidor, receberam tutela diferenciada “[...] por

158 MEIRELLES, Hely Lopes. Ação popular e sua lei regulamentar. Revista dos Tribunais, 1966, vol. 369, p. 14. 159 DINAMARCO, P. da S., op. cit., p. 36. 160 MENDES, 2002, p. 192. 161 BRANDÃO, op. cit., p. 195-196.

64

intermédio de princípios e regras que, de um lado, rompiam com a estrutura individualista do

processo civil brasileiro e, de outro, acabaram influindo no Código de Processo Civil.”162

A Lei 7.347/85 não criou regras de comportamento para as pessoas, no sentido de normas

jurídicas materiais. A mesma contém apenas regras procedimentais, a exemplo de competência,

legitimidade, atuação do Ministério Público e efeitos da sentença. É uma lei que depende das

normas de direito material para que possa ter vida.163

É importante consignar que antes do advento da Lei da Ação Civil Pública, a Lei

6.938/81, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, conferiu de forma pioneira no

País, legitimidade exclusiva ao Ministério Público para a propositura de ações requerendo

condenações por responsabilidade civil e penal, oriundas de danos causados ao meio ambiente.

Todavia, a exemplo da Lei da Ação Popular, a Lei 6.938/81 também não possui força suficiente

para retirar da Lei da Ação Civil Pública o caráter de marco histórico na implementação de

tutelas processuais diferenciadas, atinentes aos processos coletivos.

Inicialmente, apenas interesses ligados ao meio ambiente e consumidores eram tutelados

pela Lei 7.347/85. A partir de 1988, a Constituição Federal estendeu a proteção coletiva a

qualquer interesse difuso ou coletivo, sem limitar o objeto do processo.164 Atualmente, suas

disposições também são aplicadas nas ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais

causados à ordem urbanística, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e

paisagístico, e nos casos de infração da ordem econômica e da economia popular.

Após a Lei da Ação Civil Pública, outras leis foram promulgadas objetivando

regulamentar a tutela de interesses transindividuais, tais como a Lei 7.853, de 24.10.89, que

dispõe sobre a proteção de interesses de pessoas portadoras de deficiência; Lei 8.069, de

13.07.90, denominada Estatuto da Criança e do Adolescente; Lei 8.078, de 11.09.90, que instituiu

o Código de Defesa do Consumidor; Lei 8,429, de 02.06.92, que dispõe sobre a probidade na

162 GRINOVER, Ada Pellegrini. Direito processual coletivo. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; WATANABE, Kazuo (coord.). Direito processual coletivo e o anteprojeto de código brasileiro de processos coletivos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 11. 163 DINAMARCO, P. da S., op. cit., p. 47. 164 CF, art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: III – promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos.

65

administração pública; Lei 8.884, de 11.06.94, que versa sobre a ordem econômica; e Lei 10.741,

de 01.10.03, que tutela interesses de pessoas idosas e é denominada Estatuto do Idoso.165

Além da legislação infraconstitucional, a Constituição Federal de 1988 também representa

um marco na história da tutela jurisdicional coletiva no Brasil, por ser a primeira Constituição do

País a elevar a tutela coletiva ao patamar constitucional, garantindo a inafastabilidade de

apreciação pelo Poder Judiciário de lesão ou ameaça a direito individual ou coletivo. No campo

das garantias fundamentais, a ação popular foi mantida no texto constitucional, a ação civil

pública foi elevada ao mesmo patamar, e o mandado de segurança coletivo, até então inexistente,

foi instituído na esfera constitucional do país.166

Entretanto, de todas as inovações introduzidas na legislação brasileira nas últimas décadas

do século XX e primeiros anos do século XXI, a fim de garantir proteção aos direitos coletivos e

viés jurídico adequado para pleitear tais direitos perante o Judiciário, merece destaque a Lei

8.078, de 11.09.90. Mendes observa que o Código de Defesa do Consumidor é o diploma legal

que apresenta hoje toda a estrutura para o processamento das ações coletivas, na medida em que

“[...] encontra aplicabilidade não apenas para os processos relacionados com a proteção do

consumidor em juízo, mas, também, em geral, para a defesa dos direitos e interesses difusos,

coletivos e individuais homogêneos.”167

Enquanto não se tem no Brasil uma legislação própria e codificada, o que possivelmente

ocorrerá com a instituição do Código Brasileiro de Processos Coletivos, o Código de Defesa do

Consumidor é aplicado na condição de instrumento principal, pois regula os mais diversos

aspectos da tutela jurisdicional coletiva, a ponto de representar no cenário jurídico brasileiro o

modelo estrutural para as ações coletivas. Conforme observa Mendes, Regulou, assim, o Código de Defesa do Consumidor, os aspectos mais importantes da tutela jurisdicional coletiva, desde a problemática da competência e da legitimação até a da execução, passando pela coisa julgada e os seus efeitos, além da questão da litispendência e das definições conceituais pertinentes aos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos.168

165 ZAVASCKI, op. cit., p. 19. 166 MENDES, 2005, p. 8. 167 Ibidem, p. 8. 168 Ibidem, p. 9.

66

Na condição de norma estruturante da tutela coletiva, as disposições do CDC encontram

aplicabilidade nos processos relacionados com a proteção do consumidor em juízo e, de modo

geral, em todos os processos de defesa de direitos e interesses transindividuais e individuais

homogêneos. Sempre que o CDC for omisso em relação a determinada disposição de ordem

processual, devem ser aplicadas as regras da Lei da Ação Civil Pública e do Código de Processo

Civil (CDC, art. 90).

No que tange a aplicação da LACP e do CPC, cumpre observar que a mesma deve ocorrer

de forma subsidiária, permitindo concluir, por oportuno, que ambos os diplomas não poderão

contrariar as disposições do CDC e que a aplicação deste deve ser prioritária. Todavia, o CDC

não esclarece qual das leis tem prioridade na complementação de suas próprias lacunas. Neste

caso, Saad faz a seguinte interpretação: “[...] extraímos a lição de que o intérprete deve socorrer-

se, em primeiro lugar, da Lei n. 7.347 por ser ela uma lei especial que hospeda prescrições

dedicadas ao consumidor.”169 Portanto, somente nos casos em que a LACP for omissa, é que

haverá aplicação do CPC.

Assim, o CDC complementa o conjunto de normas existentes no País, por meio do qual se

denota que o Brasil possui um verdadeiro microssistema de processos coletivos. Segundo

Zavascki, todo o cabedal normativo brasileiro não deixa dúvidas de que o nosso sistema

processual possui um verdadeiro subsistema específico, rico e sofisticado, aparelhado para

atender os conflitos coletivos, típicos da sociedade moderna.170 Neste mesmo sentido pondera

Leonel, argumentando que nas últimas duas décadas o processo civil brasileiro assumiu lugar de

vanguarda no contexto internacional, sendo que um dos motivos é o tratamento conferido para as

crises de direito material envolvendo situações que extrapolam a esfera individual de cada vítima

do dano.171

2.3 A ORIGEM DAS AÇÕES COLETIVAS E O MODELO ADOTADO NO BRASIL

169 SAAD, op. cit., p. 603. 170 ZAVASCKI, op. cit., p. 39. 171 LEONEL, Ricardo de Barros. Causa de pedir e pedido nos processos coletivos: uma nova equação para a estabilização da demanda. In: GRINOVER, Ada Pellegrini Grinover; MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; WATANABE, Kazuo (coord.). Direito processual coletivo e o anteprojeto de código brasileiro de processos coletivos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 144.

67

O direito inglês, nos países com sistema jurídico da common law, é indicado como

nascedouro do instituto da class action, com finalidade de tutela coletiva de interesses e

direitos.172 Embora o século XVII seja apontado como o período em que são encontrados os

antecedentes da moderna ação coletiva, considerando que foi neste século que os Tribunais de

Eqüidade ingleses (Courts of Chancery) passaram a admitir o bill of peace, um modelo de

demanda que rompia com o princípio que exigia a participação de todos os interessados no

processo, permitindo que na ação individual o autor requeresse que o provimento englobasse os

direitos de todos os demais envolvidos no litígio173, muitos séculos antes a Inglaterra já havia

registrado acontecimentos que são indicados como verdadeiros exemplos de ações coletivas.

Contudo, Mendes esclarece que no período medieval as ações de grupo “[...] não eram objeto de

discussão, justificação ou teorização, razão pela qual se pode dizer que o emprego e

admissibilidade das mesmas eram realizados de modo inconsciente.”174

Na verdade, as discussões e questionamentos é que somente começaram a surgir no século

XVII, sendo que experiências já haviam sido constatadas em períodos anteriores. Desse modo,

torna-se oportuno trazer a colação outra observação de Mendes acerca do momento em que os

primeiros litígios coletivos surgiram na história do Direito: O brotar do debate ensejou, para alguns historiadores, a falsa compreensão de que apenas no século XVII estivessem surgindo os primitivos casos de litígio coletivo, quando, na realidade, as ações de grupo estavam, quase quinhentos anos depois, apenas mais evidentes, tendo em vista as reservas e defesas que foram respectivamente lançadas sobre si.175

Stephen Yeazell, citado por Mendes, aponta um acontecimento de 1199 como sendo o

pioneiro dos litígios coletivos, quando um pároco ajuizou ação versando sobre o direito a

determinadas oferendas e serviços, sendo que em juízo poucas pessoas teriam constituído o pólo

passivo, as quais responderiam por todas as demais que se encontravam em idêntica situação.176

Contudo, Leal cita Edward Peters, autor que teria elaborado uma revisão crítica da obra de

Yeazell, e concluído que o primeiro caso de ação coletiva teria ocorrido em 1179, quando aldeões

172 Neste sentido: TUCCI, José Rogério Cruz e. “Class Action” e mandado de segurança coletivo. São Paulo: Saraiva. 1990, p. 11; MENDES, 2005, p. 43; ZAVASCKI, 2006, p. 29. 173 LEAL, M. F. M., 1998, p. 22-23. 174 MENDES, 2002, p. 44. 175 Ibidem, p. 46. 176 Ibidem, p. 43.

68

reivindicaram o fim da condição de servos, ajuizando ação contra seus senhores, o abade e os

clérigos de Santa Genoveva, em Paris.177

O segundo caso teria ocorrido no século XIII, quando três aldeões de Helpingham

ajuizaram ação contra as comunidades residentes nas cidades de Donington e Bykere, exigindo

que os demandados os assistissem na reparação de diques, restando evidenciado que a defesa

atingia interesse de toda a comunidade de Helpingham, de modo coletivo, extrapolando a esfera

meramente individual.178

O terceiro caso que se tem registro ocorreu no século XIII, enquanto nos séculos XIV e

XV, as ações coletivas tornaram-se mais freqüentes, sem que houvesse, conforme já mencionado,

debate sobre as diversas questões que envolvem a matéria processual, a exemplo da legitimidade

de algumas pessoas para defender o direito das coletividades representadas. Na explicação de

Leal, na ação coletiva medieval não havia questionamento acerca da representação de direitos

alheios, porque o direito material era “mais ou menos” compartilhado indistintamente pela

comunidade. Neste sentido, o autor da ação sempre representava uma coletividade, e não um

conjunto de indivíduos. Para Leal, essa ação medieval “[...] guarda semelhança com a ação para

defesa de direitos difusos contemporânea, pois, também, nesse caso, trata-se da tutela do direito

de uma entidade unitária (a comunidade), que necessita de um representante para efeito judicial

(ACDD).”179

Nos séculos XVI e XVII há uma diminuição no número de processos coletivos na

Inglaterra, em contrapartida, é no final do século XVII que surgem as primeiras dúvidas e

questionamentos envolvendo tais litígios, culminando no desencadeamento das primeiras

teorias.180 Portanto, a partir desta breve análise elaborada a partir de Leal e Mendes, conclui-se

que o que deve ser atribuído ao século XVII é o início do debate e elaboração das primeiras

teorias sobre litígios coletivos, e não o nascimento das ações coletivas na história do Direito,

considerando os casos registrados no período medieval, a partir do século XI.

177 LEAL, M. F. M., 1998, p. 21. 178 MENDES, 2002, p. 44. 179 LEAL, M. F. M., 1998, p. 24. 180 MENDES, 2002, p. 44-46.

69

Da experiência do Direito inglês, são originárias as modernas ações de classe (class

actions), aperfeiçoadas em outros países, objetivando disponibilizar ao Estado os mecanismos

considerados necessários para a promoção da tutela de direitos coletivos. O aperfeiçoamento

ocorreu de forma acentuada nas últimas três décadas do século XX em razão das diversas

transformações vivenciadas pela sociedade, as quais passaram a provocar lesões a direitos que

exorbitam a esfera individual, a exemplo dos amplamente citados direitos de proteção e defesa do

consumidor e os direitos à proteção e preservação do meio ambiente.181

Entre os demais países que instituíram em sua legislação disposições específicas acerca

das ações coletivas (a exemplo da própria Inglaterra, Itália, Alemanha, França e Espanha)182, o

sistema jurídico norte-americano é considerado o mais avançado em termos de aperfeiçoamento,

especialmente a partir de 1938 com a edição da Rule 23 (Regra 23) das Federal Rules of Civil

Procedure, e de sua reforma no ano de 1966. Segundo Gidi, a reforma de 1966 foi necessária em

razão dos problemas apresentados pela versão original de 1938, considerada incompleta e

destinada ao insucesso. Segundo o autor, a redação “[...] era confusa, complexa e

demasiadamente abstrata, em total dessintonia com a realidade prática e a cultura jurídica

americana moderna, principalmente no que se refere às hipóteses de cabimento.”183

Todas as mudanças envolvendo ações coletivas registradas no Direito norte-americano e

nos sistemas jurídicos de outros países, são consideradas por Cappelletti e Garth uma verdadeira

“revolução” dentro do processo civil, isto porque, argumentam os autores,

A concepção tradicional do processo civil não deixava espaço para a proteção dos direitos difusos. O processo era visto apenas como um assunto entre duas partes, que se destinava à solução de uma controvérsia entre essas mesmas partes a respeito de seus próprios interesses individuais. Direitos que pertencessem a um grupo, ao público em geral ou a um segmento do público não se enquadravam bem nesse esquema. As regras determinantes da legitimidade, as normas de procedimento e a atuação dos juízes não eram destinadas a facilitar as demandas por interesses difusos intentadas por particulares.184

181 ZAVASCKI, op. cit., p. 32-33. 182 MENDES, 2002, p. 43. 183 GIDI, Antonio. A class action como instrumento de tutela coletiva dos direitos: as ações coletivas em uma perspectiva comparada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 55. 184 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH Bryant. Acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1988, p. 49-50.

70

Para Adamovich, a retomada no século XX do desenvolvimento teórico dos antigos

modelos de ações coletivas, colocaram em cheque a ciência do processo que mantinha filiação

filosófica positivista, de cunho individualista e instrumental de direito privado. Os movimentos

sociais de reivindicação dos direitos coletivos tomaram impulso nos Estados Unidos da América,

inicialmente relacionados aos direitos trabalhistas e posteriormente aos direitos das minorias e

dos consumidores, estes relacionados às transformações sociais da pós-modernidade.185

E é justamente o modelo do sistema norte-americano que o legislador brasileiro adotou

para disciplinar e aperfeiçoar com maior rigor as ações e os processos coletivos, a ponto de o

Brasil ser considerado, entre os países da civil law, o pioneiro na criação e implementação dos

processos coletivos, e o legislador brasileiro ser apontado como o verdadeiro protagonista da

“revolução” mencionada por Cappelletti e Garth.186

No aspecto técnico, para fins de comparação com os requisitos exigidos na atualidade

para a propositura de ações coletivas no Direito brasileiro, cumpre destacar que a Rule 23 norte-

americana apresenta pré-requisitos ou requisitos vestibulares para qualquer ação de classe, no

sentido de que um ou mais membros de uma classe possam processar ou ser processados como

partes, representando todos os demais, sendo: a) a classe representada na ação deve ser tão

numerosa que a reunião de todos os membros em litisconsórcio ativo verifica-se impraticável; b)

que existam questões de direito ou de fato comuns à classe; c) que as pretensões e defesas sejam

típicas da classe; d) e que as partes representativas protegerão de forma justa e adequada os

interesses da classe.187 Além destes requisitos, Mendes cita um quinto requisito, considerado

implícito ou decorrente, no sentido de que também é necessária a existência de uma classe

identificável, e que possibilite, por exemplo, verificar se todos os indivíduos representados

podem ou não ser considerados seus membros.188

Sem prejuízo destes requisitos, para que possa existir processo coletivo, a Rule 23

apresenta outras exigências, divididas entre as ações possíveis. O dispositivo pertinente a

primeira categoria de ação - b(1) - divide-se em dois – b(1)(A) e b(1)(B) – sendo que a primeira

185 ADAMOVICH, op. cit., p. 55. 186 Neste sentido: GRINOVER, 2007, p. 11; e ZAVASCKI, op. cit., p. 37. 187 GRINOVER, Ada Pellegrini. Da class action for damages à ação de classe brasileira: os requisitos de admissibilidade. In: MILARÉ, Edis (coord.). Ação civil pública: Lei 7.347/1985 – 15 anos. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 22. 188 MENDES, 2002, p. 74-75.

71

subcategoria de ação – b(1)(A) - se assemelha ao litisconsórcio necessário previsto no CPC

brasileiro189. Segundo Leal, o exemplo clássico é aquele em que o Judiciário requer o

litisconsórcio necessário, “[...] mas as partes são muito numerosas para integrarem a relação

processual. Nesse caso, a saída é a fórmula representativa da ação coletiva, dispensando-se o

consentimento daqueles que não fazem parte (formalmente) do processo.”190

Na primeira modalidade ou subcategoria de ação, normalmente se quer que a parte

contrária cumpra uma determinação de fazer ou não fazer algo, sendo cabíveis providências de

natureza constitutiva, mandamental ou condenatória de fazer ou não fazer. Após ajuizada e

admitida uma class action com fundamento no dispositivo b(1)(A) da Regra 23, a decisão atinge

todos os membros da classe, não podendo qualquer interessado solicitar a sua exclusão, sendo,

portanto, atingido pelos efeitos da coisa julgada.191

A segunda subcategoria de ação – b(1)(B) – leva em consideração, conforme esclarece

Mendes, “[...] o risco de julgamentos, proferidos em benefício de indivíduos membros da classe,

que estariam, na prática, dispondo dos interesses de outros integrantes da classe, que não são

partes no processo, ou prejudicando substancialmente ou impedindo a capacidade de proteção dos

seus interesses.” É o que ocorre, segundo o mesmo autor, nos casos de distribuição de dividendos

em razão de liquidação de sociedade ou em virtude de rateio falimentar. O caráter da segunda

subcategoria de ação também é obrigatório, não sendo possível requerer exclusão individual.192

A segunda categoria de class action – b(2) – contempla os casos de pedidos de

condenação de fazer ou não fazer, ou provimentos declaratórios ou mandamentais, também no

sentido de fazer ou não fazer. Leal esclarece que estes provimentos decorrem de um direito

difuso (transindividualidade material) ou de um direito individual tratado coletivamente

(transindividualidade processual), posto que a decisão judicial e a coisa julgada beneficiarão ou

prejudicarão todos os membros da classe envolvida, a exemplo de uma ação que requer a uma

escola, o estabelecimento de quota de matrícula para determinado número de estudantes

189 CPC, art. 47. Há litisconsórcio necessário, quando, por disposição de lei ou pela natureza da relação jurídica, o juiz tiver de decidir a lide de modo uniforme para todas as partes; caso em que a eficácia da sentença dependerá da citação de todos os litisconsortes no processo. 190 LEAL, M. F. M., 1998, p. 156. 191 MENDES, 2002, p. 86-87. 192 Ibidem, p. 88.

72

segregados pelo fato de constituir uma minoria racial.193 A segunda categoria de class action não

contempla direitos indenizatórios e a maioria dos litígios tem natureza constitucional (direitos

fundamentais) ou civil, a exemplo de casos de discriminação racial, religiosa e sexual, ou, até

mesmo, no âmbito do direito comercial ou do consumidor.194

Por fim, a terceira categoria de class action – b(3) - denominada class action for damages,

não apresenta caráter de obrigatoriedade (admite o opt out) e pode ser utilizada por classes que

desejam efetuar pedidos condenatórios por danos materiais, oriundos de responsabilidade civil,

sofridos individualmente, mas que permitem tratamento coletivo.195 O ajuizamento desta

categoria de ação exige que além dos requisitos comuns a todas as ações de classe norte-

americanas, sejam observados dois requisitos adicionais e específicos, sendo: a) as questões de

direito e de fato comuns devem prevalecer sobre as questões de direito ou de fato individuais; b)

a tutela coletiva, no âmbito da justiça e eficácia da sentença, deve ser superior a tutela

individual.196

Grinover conclui que a class action for damages não existia nas Regras Federais de 1938

e pode ser considerada a grande novidade acrescentada no ano de 1966. Para a autora, O espírito geral da regra está informado pelo princípio do acesso à justiça, que no sistema norte-americano se desdobra em duas vertentes: a de facilitar o tratamento processual de causas pulverizadas, que seriam individualmente muito pequenas, e a de obter a maior eficácia possível das decisões judiciárias. E, ainda, mantém-se aderente aos objetivos de resguardar a economia de tempo, esforços e despesas e de assegurar a uniformidade das decisões.197

Portanto, a partir desta breve análise das class actions norte-americanas, é possível

elaborar uma relação das mesmas com o que há previsto no ordenamento jurídico brasileiro. A

duas primeiras categorias de ações - b(1) e b(2) -, sendo que a primeira categoria se subdivide em

duas subcategorias – b(1)(A) e b(1)(B) –, correspondem às ações previstas no Brasil para a defesa

de interesses difusos e coletivos stricto sensu, enquanto que a terceira categoria – b(3) -

193 LEAL, M. F. M., 1998, p. 157-158. 194 MENDES, 2002, p. 89. 195 LEAL, M. F. M., 1998, p. 159. 196 GRINOVER, 2002, p. 24. 197 Ibidem, p. 23-24.

73

corresponde à ação utilizada para a defesa coletiva de interesses individuais homogêneos, para

fins de reparação de danos individualmente sofridos.198

Conforme expressado no capítulo anterior, no Brasil duas categorias de direitos materiais

são tuteladas coletivamente: a categoria dos direitos coletivos transindividuais, formada pelos

direitos difusos e coletivos stricto sensu; e a categoria dos direitos individuais homogêneos.

Desse modo, Zavascki reflete que se há distinção e são inconfundíveis as categorias de direitos

coletivos, também devem ser distintos os instrumentos para tutelá-los em juízo, no que tange,

principalmente, aos modos e limites da legitimação ativa e à natureza das providências adotadas a

partir do que está sendo postulado. O autor considera equivocada o que chama de suposição

largamente difundida, no sentido de que “[...] a ação civil pública, criada pela Lei 7.347, de 1985,

e destinada a tutelar direitos transindividuais, pode ser também indiscriminada e integralmente

utilizada para a tutela de direitos individuais.”199

Por conseguinte, a partir desta reflexão, no microssistema processual coletivo do Direito

brasileiro, os instrumentos processuais adequados para tutelar direitos transindividuais (difusos e

coletivos stricto sensu) são as ações civis públicas e a ação popular, enquanto que os direitos

individuais homogêneos devem ser tutelados por meio das ações civis coletivas, nelas incluído o

mandado de segurança coletivo.200 Neste mesmo sentido Pinho esclarece que com a criação da

ação coletiva ou ação civil coletiva, foi resolvido um problema até então existente, relacionando

ao cabimento ou não da ação civil pública para a defesa de direito individual homogêneo. Para o

autor, nos dias atuais deve-se utilizar a ação civil pública para a tutela de direitos difusos e

coletivos, e a ação coletiva para a defesa do direito individual homogêneo.201

Contudo, não comungam desta conclusão autores como Grinover, que em razão do

disposto no artigo 21202 da Lei da Ação Civil Pública entende que esta deve ser aplicada na tutela

de qualquer direito coletivo, incluindo os individuais homogêneos203; Saad que expressamente

deixa consignado que a ação civil pública destina-se à defesa de direitos e interesses difusos,

198 GRINOVER, 2002, p. 23. 199 ZAVASCKI, op. cit., p. 56-57. 200 Ibidem, p. 58. 201 PINHO, 2002, p. 47. 202 LACP, art. 21. Aplicam-se à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais, no que for cabível, os dispositivos do Título III da lei que instituiu o Código de Defesa do Consumidor. 203 GRINOVER, Ada Pellegrini. Processo civil contemporâneo. Curitiba: Juruá, 1994, p. 38.

74

coletivos e individuais homogêneos204; e Dinamarco, para quem, inicialmente, a ação civil

pública não podia ser utilizada para a defesa dos interesses individuais homogêneos, até que CDC

possibilitou a tutela de tais direitos por meio deste viés jurídico, desde que os direitos ou

interesses sejam oriundos das relações de consumo.205

2.4 AS AÇÕES COLETIVAS ENQUANTO MECANISMO DE ACESSO À JUSTIÇA

A expressão acesso à justiça, na análise de Cappelletti e Garth, não é de fácil definição.

Porém, segundo os mesmos autores, serve para determinar duas finalidades básicas dentro de um

sistema jurídico. A primeira consiste na idéia de que o sistema deve garantir acesso igualitário a

todos os membros da sociedade; e a segunda que o acesso não deve ser apenas formal, no sentido

de poder propor ou contestar uma ação, mas sim, que produza resultados justos, nos aspectos

individual e social.206

Portanto, a expressão acesso à justiça representa mais e não se confunde com a simples

possibilidade de acesso ao judiciário, também chamado de acesso formal, por meio do qual é

garantido o direito de propor e contestar ações. Cappelletti e Garth deixam claro que tal direito

deve estar acompanhado da certeza de que o processo trará resultados justos para as partes e para

a sociedade, mediante a efetiva materialização de direitos.

Cappelletti e Garth também destacam que, muito embora o conceito de acesso à justiça

seja objeto de estudo há vários séculos, os movimentos de reforma dos sistemas legais nos países

Ocidentais, visando à efetividade do acesso e soluções práticas para os problemas existentes,

somente tiveram início na década de sessenta, sendo que os três momentos desencadeados para

tal finalidade são chamados pelos autores de primeira, segunda e terceira “ondas renovatórias”.

Em síntese, a primeira “onda” enveredou esforços para incrementar a devida assistência

judiciária aos pobres, tendo em vista os inadequados esquemas de assistência existentes nos

204 SAAD, op. cit., p. 612. 205 DINAMARCO, P. da S., op. cit., p. 59. 206 CAPPELLETTI, GARTH, op. cit., p. 8.

75

países Ocidentais; a segunda preocupou-se com a tutela jurisdicional dos direitos e interesses

difusos (o que podemos estender para todas as modalidades de direitos coletivos); e a terceira

tratou e ainda trata do próprio conceito de acesso à justiça, que entre outras questões, busca

pensar a advocacia judicial e extrajudicial (a exemplo do que se tem no Brasil com as

experiências de juízo arbitral e mediação), centrando a atenção no conjunto das instituições e

mecanismos, pessoas e procedimentos utilizados, visando além do processamento de ações, a

prevenção de disputas.

Considerando que objeto de pesquisa desta dissertação são os processos coletivos, nossa

abordagem recairá sobre a segunda “onda” renovatória, a qual tratou, justamente, da

representação dos interesses difusos/coletivos em juízo, incluída enquanto parte integrante dos

problemas a serem pensados para melhorar o acesso à justiça. Neste cenário, os autores destacam

que o conceito de acesso à justiça sofreu as influências das transformações sociais ocorridas no

século XX, período no qual, as ações e relacionamentos saíram da esfera individual para atingir

um caráter coletivo, deixando para trás a idéia formalista e individualista do Direito herdada do

Estado de Direito liberal-burguês, típica dos séculos XVIII e XIX. Desse modo, o pensamento

individualista cedeu espaço para uma concepção social ou coletiva do Direito, a qual é

imprescindível para possibilitar acesso às coletividades lesadas em seus interesses.207

Diante desta nova realidade jurídica, os sistemas jurídicos passaram a desenvolver

mecanismos necessários e facilitadores de acesso à justiça e que contemplassem as coletividades,

a exemplo do que ocorreu no Brasil com o chamado microssistema processual coletivo. Tais

mecanismos se tornaram necessários porque a fragmentação de um dano sofrido por cada um dos

lesados é, muitas vezes, demasiadamente pequeno para justificar o custo econômico, psicológico

e de tempo exigidos por uma ação individual. Ou seja, enquanto o dano global pode ser de

significativa expressão social e econômica, o fragmento individual pode ser irrisório208.

No Brasil, Mendes ratifica e apresenta ponderações que vão ao encontro das apresentadas

por Cappelletti e Cappelletti e Garth. Para o autor brasileiro, se os danos resultantes de lesões que

atingem coletividades são de pequena expressão econômica, quando considerados

separadamente, ocorre um desestímulo para o ajuizamento de ações individuais, evidenciando

207 CAPPELLETTI, GARTH, op. cit., p. 9-10. 208 CAPPELLETTI, 1999, p. 59.

76

fragilidade e deficiência no que tange ao acesso à justiça. Daí a importância da existência de

instrumentos processuais adequados para a tutela de direitos e interesses coletivos, isto porque, se

considerados globalmente, as lesões de pequena expressão individual passam a apresentar

relevância econômica, o que estimula a repetição e perpetuação de práticas ilegais e lesivas. Por

conseguinte, argumenta Mendes, [...] tendem a se beneficiar, ao invés de serem devidamente sancionados, os fabricantes de produtos defeituosos de reduzido valor, os entes públicos que cobram tributos indevidos ou não concedem os direitos funcionais cabíveis e os consumidores que realizam negócios abusivamente, apenas para citar alguns exemplos.209

No cenário custo-benefício, a partir do ponto de vista individual, duas questões são

apontadas por Mendes para deixar evidenciada a importância das ações coletivas no que tange ao

acesso à justiça. A primeira considera pessoas lesadas com condições econômicas para custear

despesas processuais e honorários advocatícios, mas que poderão ter uma contra partida igual ou

inferior aos valores despendidos para requerer a tutela jurisdicional. A segunda considera pessoas

desprovidas de tais condições, e que terão gastos excessivos com tempo e dinheiro

(principalmente custas processuais e honorários advocatícios), em detrimento, muitas vezes, da

subsistência própria e/ou da família.210

Com a cumulação de demandas, há uma substancial alteração da situação, entre as quais

se destacam o próprio valor econômico da causa que passa a ser de grande relevância, o interesse

de bons profissionais para patrocinar a demanda, e a existência de recursos necessários para a

propositura e colheita de provas. Desse modo, Mendes complementa que as ações coletivas, “[...]

se bem estruturadas, podem ser, portanto, um efetivo instrumento para o aperfeiçoamento do

acesso à Justiça, eliminando os entraves relacionados com os custos processuais e o desequilíbrio

entre as partes.”211

Além dos obstáculos financeiros que inibem ou impedem o custeio de uma demanda

individual, Cappelletti e Garth ainda destacam a diferença de poder que normalmente há entre os

indivíduos e a contraparte, e que resulta de fatores como diferença econômica, de “capacidade

jurídica” pessoal (principalmente informação) e de organização. Quanto ao poder econômico, os

209 MENDES, 2002, p. 30. 210 Ibidem, p. 30-31. 211 Ibidem, p. 31.

77

autores ressaltam que pessoas ou organizações que possuem recursos financeiros consideráveis a

serem utilizados têm vantagens óbvias ao propor ou defender demandas.212 Entre as vantagens

estão a possibilidade de pagar para litigar e de suportar a demora de um litígio, fatores que se

transformam em arma poderosa já que esta parte terá condições de investir mais do que a outra e,

por conseguinte, apresentar seus argumentos com mais eficiência.

Quanto aos obstáculos de “capacidade jurídica” pessoal, destaca-se neste trabalho o poder

de informação. A partir de uma pesquisa desenvolvida na Austrália Cappelletti e Garth

esclarecem que pessoas que procurariam um advogado para comprar uma casa ou requerer o

divórcio, “[...] dificilmente intentariam um processo contra uma empresa cuja fábrica esteja

expelindo fumaça e poluindo a atmosfera.”213 Este exemplo é de extrema clareza para demonstrar

que a carência de informação das pessoas também é obstáculo a ser superado no aspecto acesso à

justiça a partir de direitos e interesses metaindividuais.

Em razão das condições econômicas em que estão inseridas, da diferença de educação

recebida, do meio e status social, muitas pessoas não conseguem perceber questões mínimas que

estão ao seu redor, a exemplo da própria existência de um direito juridicamente exigível ou da

correta maneira de ajuizar uma demanda.

A partir de outro estudo, realizado em Quebeque, os autores destacam que ainda há uma

grande desconfiança que recai sobre os advogados, especialmente nas classes menos favorecidas,

sem contar o desconhecimento acerca dos procedimentos e do receio de enfrentar o formalismo e

ambientes que intimidam, considerando que tribunais, juízes e advogados são figuras tidas como

opressoras e, por conseguinte, “[...] fazem com que o litigante se sinta perdido, um prisioneiro

num mundo estranho.”214

Galanter, citado por Cappelletti e Garth, desenvolveu uma distinção entre os chamados

“litigantes eventuais” e os “litigantes habituais”, a partir da freqüência com que estão em juízo

litigando, concluindo que os litigantes habituais, a exemplo das empresas e organizações de

grande porte, que frequentemente estão envolvidas com processos, terminam por adquirir

numerosas vantagens que podem ser usadas em desfavor daquelas pessoas que têm contato

212 CAPPELLETTI, GARTH, op. cit., p. 21. 213 Ibidem, p. 24. 214 Ibidem, p. 24.

78

isolado e pouco freqüente com o sistema judicial, e que formam o conjunto dos chamados

litigantes eventuais, a exemplo das pessoas físicas e jurídicas de pequeno porte e poder

econômico. Em razão da pertinência, cumpre trazer à colação as vantagens apresentadas pelo

autor: 1) maior experiência com o Direito possibilita-lhes melhor planejamento do litígio; 2) o litigante habitual tem economia de escala, porque tem mais casos; 3) o litigante habitual tem oportunidades de desenvolver relações informações com os membros da instância decisora; 4) ele pode diluir os riscos da demanda por maior número de casos; 5) pode testar estratégias com determinados casos, de modo a garantir expectativa mais favorável em relação a casos futuros.215

Portanto, não há dúvidas de que as vantagens detidas pelos litigantes habituais lhes

proporcionam maior eficiência nos processos, ao contrário do que ocorre com o litigante

eventual, individualmente considerado. Por conseguinte, Cappelletti e Garth concluem que tais

desigualdades podem ser atacadas se os indivíduos encontrarem maneiras de agregar suas causas

e desenvolver estratégias de longo prazo, que possam de forma efetiva fazer frente a estes

desequilíbrios de poder.216

Todos os obstáculos apresentados, sem prejuízo de outros existentes, são suficientes para

demonstrar que as ações coletivas são mecanismos de efetivo acesso à justiça, não apenas no

sentido formal, mas, principalmente, no sentido de concretização de direitos. As desigualdades

que existem quando o interessado encontra-se sozinho, diminuem ou deixam de existir quando

um legitimado extraordinário com melhor preparo técnico e econômico, postula em nome da

coletividade.

Com efeito, a substituição processual exerce um papel fundamental no cenário processual

coletivo, considerando as inúmeras práticas ilegais que nem mesmo chegariam ao conhecimento

do Judiciário por meio da iniciativa individual, permitindo a perpetuação de práticas abusivas em

detrimento do cidadão lesado, e que na maioria das vezes, se encontra em explícita desvantagem

econômica, política, de informação, de estratégia e de organização perante empresas e

organizações de grande porte.

215 CAPPELLETTI, GARTH, op. cit., p. 25. 216 Ibidem, p. 25.

79

2.5 AS AÇÕES COLETIVAS ENQUANTO MECANISMO DE ECONOMIA PROCESSUAL

Além de todas as vantagens resultantes da facilitação do acesso à justiça, as ações

coletivas também são mecanismos que proporcionam efetiva economia processual. Trata-se de

uma conclusão de ordem lógica resultante da possibilidade de resolver por meio de uma única

ação coletiva e, por conseguinte, por meio de apenas um processo e de uma decisão, questões que

demandariam uma multiplicidade que pode atingir milhares ou até milhões de ações individuais.

Por isso a necessidade não só da existência, mas do real e efetivo funcionamento dos

processos coletivos nos ordenamentos jurídicos de cada Estado. Neste sentido, Mendes

complementa que a inexistência ou deficiente funcionamento de tais processos, enseja uma

multiplicação desnecessária de ações individuais, motivando o agravamento da sobrecarga do

Judiciário. Para o autor, são litígios que guardam enorme semelhança e que seriam decididos de

modo mecânico pelos juízes, “[...] através do que se convencionou chamar de sentenças-padrão

ou repetitivas, vulgarizando-se a nobre função de julgar.”217

Na análise que faz sobre a class action ou ações coletivas norte-americanas, enquanto

instrumentos de tutela coletiva dos direitos, Gidi observa que as ações coletivas promovem

economia de tempo e dinheiro para todos os sujeitos do processo, ou seja, o grupo-autor, o réu e o

Judiciário. Gidi salienta que para o grupo-autor a economia é manifesta eis que o custo individual

de litigar em diversos processos é reduzido a apenas uma controvérsia coletiva, sendo que o

mesmo acontece com o réu que não precisará enfrentar as despesas de inúmeras ações individuais

relacionadas à mesma controvérsia, enquanto que o Judiciário “[...] se desembaraça de uma

grande quantidade de processos repetitivos.”218

Portanto, conclui-se que a inadequada solução de conflitos coletivos também é

responsável pelo número excessivo de processos que tramitam nas mais diversas instâncias do

Poder Judiciário, comprometendo a qualidade da prestação jurisdicional.219

217 MENDES, 2002, p. 33-34. 218 GIDI, 2007, p. 26. 219 MENDES, 2002, p. 34.

80

Por fim, ressalta-se que nesta modalidade de processo o entendimento do que seja

economia processual, no sentido de preconizar a realização mínima de atividades processuais

com o máximo de resultado na atuação do direito, encontra uma intensidade infinitamente

superior àquela encontrada nos processos de ordem individual, e onde a conotação se restringe a

questões de ordem prática, como indeferimento da inicial quando ausentes os requisitos legais,

denegação de provas inúteis, coibição de incidentes irrelevantes para a causa, permissão de

cumulação de ações conexas, possibilidade de julgamento antecipado da lide e saneamento do

processo antes de ingressar na fase probatória ou de instrução.

2.6 AS AÇÕES COLETIVAS ENQUANTO MECANISMO DE EDUCAÇÃO E EFETIVAÇÃO DE DIREITOS

Nas últimas décadas do século XX a expressão “instrumentalidade do processo” passou a

ser amplamente difundida no cenário jurídico nacional. A expressão aplicada a todas as

modalidades de processos judiciais, é traduzida na idéia de que o direito processual deve ser

concebido enquanto instrumento de concretização ou efetividade do direito material e realização

de justiça.

A conclusão de que o processo é instrumento de concretização ou efetivação de direitos

resulta da evolução pela qual passou o direito processual nos últimos tempos. Até a metade do

século XIX viveu-se a chamada fase do sincretismo jurídico, a qual era caracterizada pela

confusão entre os ordenamentos substancial e processual, ou seja, o direito processual não

apresentava autonomia e era considerado ligado ao direito material.220

Na metade do século XIX iniciou-se uma fase de questionamentos e rompimento. O

primeiro questionamento recaiu sobre o conceito civilista de ação e permitiu concluir que o

mesmo é de direito processual e não material, como se pensava. Segundo Dinamarco “[...] a

220 Segundo Dinamarco, “Tinha-se, até então a remansosa tranqüilidade de uma visão plana do ordenamento jurídico, onde a ação era definida como o direito subjetivo lesado (ou: o resultado da lesão ao direito subjetivo), a jurisdição como sistema de tutela aos direitos, o processo como mera sucessão de atos (procedimento); incluíam a ação no sistema de exercício dos direitos (...) e o processo era tido como conjunto de formas para esse exercício, sob a condução pouco participativa do juiz.” (DINAMARCO, C. R., op. cit., p. 18).

81

celeuma provocada por essas afirmações revolucionárias (...) acabou gerando reações em cadeia,

que chegaram até a plena consciência da autonomia não só da ação, mas dela e dos demais

institutos processuais.”221

Contudo, é importante deixar consignado que nesta segunda fase faltou o que Lenza

chama de postura crítica. O tecnicismo aflorou no processo, o qual era visto como mero

instrumento de solução da pretensão de direito material, não existindo preocupação com a justiça

das decisões e com o resultado prático das mesmas, no sentido de efetivação ou concretização do

direito. A busca de solidificação do direito processual distanciou as duas ciências,

supervalorizando a técnica.222

De qualquer modo, na segunda fase de evolução restou evidenciada a autonomia do

direito processual em relação ao direito material, e a ciência processual foi efetivamente

desenvolvida com objeto e método próprios. Foram construídas categorias, conceitos e princípios

fundamentais, até se chegar, em meados do século XX, à terceira fase da evolução ou, conforme

Dinamarco, “[...] terceiro momento metodológico do direito processual, caracterizado pela

consciência da instrumentalidade [...]”.223

Portanto, a terceira fase da evolução do direito processual ou terceiro momento

metodológico é caracterizado pela instrumentalidade do processo. Porém, para uma perfeita

compreensão do que representa a propalada expressão, tornou-se necessária a identificação das

finalidades ou escopos do processo neste terceiro momento evolutivo, isto porque, conforme

acrescenta Dinamarco, responsável no Brasil pela elaboração de tais escopos, é vaga e pouco

acrescenta ao conhecimento do processo, “[...] a usual afirmação de que ele é um instrumento,

enquanto não acompanhada da indicação dos objetivos a serem alcançados mediante o seu

emprego.”224

Desse modo para o autor, os objetivos ou escopos do processo se dividem em político,

social e jurídico. Em síntese, os escopos políticos contemplam o propósito de promoção da

autoridade ou poder do Estado. Contudo, para evitar arbitrariedades na atuação do Estado, os

221 DINAMARCO, C. R., op. cit., p. 18. 222 LENZA, Pedro. Teoria geral da ação civil pública. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 117-120. 223 DINAMARCO, C. R., op. cit., p. 22. 224 Ibidem, p. 181.

82

objetivos também incluem a promoção da liberdade e participação dos indivíduos, visando, em

sendo necessário, limitar a autoridade ou poder que lhe é conferida. Os escopos sociais

contemplam a idéia de pacificação, no sentido de resolução de conflitos, bem como, a promoção

da educação ou conscientização da sociedade, no que tange a seus direitos e obrigações. E, por

fim, os escopos jurídicos contemplam o propósito de concretização dos objetivos traçados pelo

ordenamento jurídico, incluindo aqueles previstos na Constituição da República para a efetivação

do Estado Democrático de Direito, posto que, para Dinamarco, “[...] o processo precisa refletir as

bases do regime democrático, nela proclamados; ele é, por assim dizer, o microcosmos

democrático do Estado-de-direito [...]”.225

Nos processos coletivos, o escopo jurídico de concretização dos direitos materiais e o

escopo social que tem por finalidade promover a educação, de acordo com Gidi, se dá pela

atuação do Estado na análise e julgamento de casos concretos, cujos objetos são ilícitos coletivos.

Neste sentido arremata o autor: “O principal fator de estímulo à prática de ilícitos de pequeno

valor contra um grupo de pessoas em uma sociedade desprovida da tutela coletiva de direitos é a

sua alta lucratividade associada à certeza de impunidade.”226

As conclusões de Gidi resultam da constatação de que quando há ausência de controle

estatal diante de danos considerados relativamente pequenos, que não justificam os custos

financeiros com a propositura de uma ação, em razão de fatores que incluem a falta de tipificação

do crime ou regulamentação por alguma entidade governamental, ocorre um estímulo para a

pessoa intencionada a violar direitos alheios, mesmo porque, previamente, já sabe que estará

imune de qualquer punição.227

Desse modo, as ações coletivas apresentam-se como forma de concretização do direito

material, com o Judiciário conhecendo e resolvendo por meio de um único processo coletivo

todos os litígios que seriam individuais ou que nem mesmo seriam levados ao seu conhecimento,

fazendo com que o autor do delito coletivo responda pela totalidade do prejuízo causado na

sociedade.228

225 DINAMARCO, C. R., op. cit., p. 27-181-197. 226 GIDI, 2007, p. 33. 227 Ibidem, p. 33. 228 Ibidem, p. 34.

83

Nem sempre a atuação administrativa produz o mesmo efeito, considerando que em

determinadas situações a aplicação de multas pode resultar incompatível com o lucro obtido

através de prejuízos coletivos, sem esquecer que os membros do grupo não serão ressarcidos.

Assim Gidi conclui que “Se essa pessoa estiver em posição de poder violar o direito de inúmeras

pessoas, de forma a somar todos os inúmeros pequenos prejuízos do grupo violado, ela pode

contar com a inércia dos lesados e obter, ilícita e impunemente, um lucro extremamente alto.”229

A educação almejada enquanto escopo social, nada mais é do que uma conseqüência

resultante da punição que atinge a parte que praticou a conduta ilícita e que foi levada ao

conhecimento do Judiciário por meio de ação coletiva, servindo de alerta e desmotivação para

toda a sociedade, fazendo com que outros infratores se sintam desencorajados e não pratiquem

condutas que irão lesar direitos e interesses de uma coletividade que, muitas vezes, encontra-se

indefesa e em situação de vulnerabilidade.230

2.7 ASPECTOS DESTACADOS DAS AÇÕES COLETIVAS BRASILEIRAS

A análise de aspectos destacados apresentada neste trabalho se restringe a Ação Popular, a

Ação Civil Pública, a Ação Coletiva ou Civil Coletiva e ao Mandado de Segurança Coletivo,

sendo que as duas primeiras são apontadas enquanto viés jurídico adequado para a tutela de

direitos difusos e coletivos stricto sensu, e as últimas indicadas para a tutela de direitos

individuais homogêneos231, em que pese a opinião contrária de autores já citados, a exemplo de

Grinover, Saad e Dinamarco, que entendem ser possível a tutela de interesses individuais

homogêneos oriundos de relações de consumo por meio de ação civil pública. Na análise de cada

ação, busca-se destacar os respectivos campos de aplicação, legitimidade ativa, competência e

breves notas acerca dos efeitos das decisões, já que este assunto será abordado em tópico

específico no terceiro capítulo.

229 GIDI, 2007, p. 33. 230 Ibidem, p. 36. 231 ZAVASCKI, op. cit., p. 56.

84

Cumpre relembrar, mesmo que em apertada síntese, que as ações coletivas têm natureza

constitucional e pertencem ao chamado direito processual constitucional e que dispõe de um

conjunto de normas constitucionais, as quais, entre outras questões, estipulam quais ações são

cabíeis para requerer tutela jurisdicional quando determinados direitos são lesados ou ameaçados

de lesão, no caso em análise, os direitos coletivos.

2.7.1 Ação Popular

A Ação Popular foi introduzida no constitucionalismo brasileiro no ano de 1934 e ao

longo de mais de setenta anos de existência o rol de entidades cujo patrimônio fica sujeito à sua

tutela sofreu mudança significativa. Inicialmente, a Constituição da República considerava

tutelável apenas os patrimônios da União, Estados e Municípios (art. 113, inc. 38), enquanto que

a Constituição de 1946 acrescentou as entidades autárquicas e as sociedades de economia mista

(art. 141, § 38). As Constituições de 1967 (art. 150, § 31) e 1969 (art. 153, § 31), por sua vez,

fizeram referência genérica aos atos lesivos ao patrimônio de entidades públicas, exemplo que foi

seguido pelo legislador Constituinte de 1988 (art. 5º, inc. LXXIII), ao considerar tutelável por

meio da Ação Popular todos os atos lesivos ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado

participe, bem como, os atos lesivos à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao

patrimônio histórico e cultural.232

A regulamentação do dispositivo constitucional encontra-se na Lei 4.717 de 29.06.1965, a

qual detalha o rol das entidades cujo patrimônio fica sujeito à tutela da ação popular, amplia o

sentido da expressão patrimônio público233 e descreve os atos considerados nulos.234

232 ZAVASCKI, op. cit., p. 83-84. 233 De acordo com o art. 1º, § 1º da Lei 4.717/65, consideram-se patrimônio público para os fins referidos neste artigo, os bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico ou turístico. 234 Conforme o art. 2º da Lei 4.717/65, são nulos os atos lesivos ao patrimônio das entidades mencionadas no artigo anterior 1º, nos casos de incompetência, vício de forma, ilegalidade do objeto, inexistência dos motivos e desvio de finalidade. No art. 4º são descritos outros atos e situações contratuais considerados nulos, enquanto que o art. 3º dispõe que os atos lesivos ao patrimônio, cujos vícios não estejam compreendidos nas especificações dos artigos 2º e 4º, são passíveis de anulação, nos termos das respectivas prescrições legais.

85

No que tange ao ingresso em juízo, a Constituição da República remete a qualquer

cidadão a legitimidade ativa para a propositura de Ação Popular, legitimidade que, aliás,

manteve-se inalterada desde a introdução da garantia constitucional na Constituição de 1934,

sendo que a prova da cidadania é efetuada por meio de título eleitoral ou por outro documento a

ele correspondente (Lei 4.717/65, art. 1º, § 3º). Desse modo, resta evidenciado que a Ação

Popular tem por fundamento o direito político do cidadão, que além de participar do processo de

escolha dos governantes, tem o direito de lhes fiscalizar os atos de administração e requerer a

invalidação dos mesmos quando se revelarem lesivos ao patrimônio público, à moralidade

administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural.235

Após a propositura da ação, é facultado a qualquer cidadão habilitar-se como litisconsorte

ou assistente do autor (Lei 4.717/65, art. 6º, § 5º), e nos casos de desistência do autor deverão ser

publicados editais assegurando a qualquer cidadão ou a representante do Ministério Público, o

direito de promover o prosseguimento da ação (Lei 4.717/65, art. 9º).

Quanto à competência, a Lei 4.717/65 dispõe em seu art. 5º que conforme a origem do ato

impugnado, é competente para conhecer da ação, processá-la e julgá-la o juiz que, de acordo com

a organização judiciária de cada Estado, o for para as causas que interessem à União, ao Distrito

Federal, ao Estado ou ao Município. Portanto, a partir da origem do ato impugnado, a causa deve

ser proposta no foro que, segundo as normas de organização judiciária, corresponde ao ente

político interessado. Assim, tratando-se de ação que objetiva anular ato emanado de Estado-

federado ou Município, a competência recairá sobre a Vara da Fazenda Pública, excetuando-se

outras especificações da lei de organização judiciária local, mesmo porque, no Brasil, nem todas

as comarcas possuem tais juízos especializados.236

Tratando-se de ação que envolve ato da União, a ação será proposta na seção judiciária

competente da Justiça Federal, a partir dos critérios estabelecidos pela Constituição Federal,

podendo ser a seção de domicílio do autor, aquela em que houver ocorrido o ato ou fato que

originou a demanda, aquela onde está situada a coisa ou, ainda, no Distrito Federal (CF, art. 109,

§ 2º).

235 MEIRELLES, 1966, p. 15. 236 MANCUSO, 2003, p. 199.

86

Ainda, o § 1º do art. 5º da Lei 4.717/65, dispõe sobre a competência quando o ato ou

omissão lesiva for imputado a ente paraestatal, ou seja, pessoas jurídicas criadas ou mantidas pela

União, Distrito Federal, Estados e Municípios, a exemplo das empresas públicas, autarquias,

sociedades de economia mista e ente subvencionado. Nesses casos, o critério aplicado segue a

disposição do caput do art. 5º, e o foro competente é o mesmo do ente político que mantém,

subvenciona ou tem interesse patrimonial no ente paraestatal sobre o qual recai a atribuição de

prática de ato ou omissão lesiva.237

Por fim, cumpre observar que nos casos em que o pleito interessar simultaneamente a

mais de um nível de governo, isto é, à União e a qualquer outra pessoa ou entidade, será

competente o juízo das causas da União, se houver; e quando interessar simultaneamente ao

Estado e ao Município será competente o juízo das causas do Estado, se houver (Lei 4.717/65,

art. 5º, § 2º).

Quanto aos efeitos da sentença, cumpre analisar o disposto pela Lei 4.717/65 em seu art.

18, no sentido de que a sentença terá eficácia de coisa julgada oponível erga omnes, exceto se a

ação tiver sido julgada improcedente por deficiência de prova. Neste caso, qualquer cidadão

poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova. Segundo

Mancuso também são aplicados aos efeitos da sentença, porque aplicáveis à ação popular, mercê

do disposto no art. 117 do CDC e do art. 1º da LACP, os artigos 81, 82, 95 e 103 do CDC. Por

conseguinte, esclarece o mesmo autor, fazem coisa julgada material erga omnes as sentenças de

procedência e as de improcedência do pedido, neste último caso, se as pretensões tiverem sido

rejeitadas por serem infundadas no mérito, avaliação que deve ser alcançada após instrução

probatória satisfatória.238

Portanto, resultando a improcedência do pedido da insuficiência de provas, é possível a

propositura de uma segunda ação popular por iniciativa de qualquer cidadão (inclusive o mesmo

que havia intentado a primeira ação), apresentado o mesmo objeto e a mesma causa de pedir.

Entretanto, para não incorrer no mesmo erro da primeira, a segunda ação terá que vir instruída

com novos meios probatórios.239

237 MANCUSO, 2003, p. 199. 238 Ibidem, p. 299. 239 Ibidem, p. 301.

87

No próximo capitulo o assunto coisa julgada ou efeitos da sentença será estudado com

maior profundidade, incluindo o detalhamento do modelo de coisa julgada adotado no Brasil para

os processos coletivos (coisa julgada pro et contra e coisa julgada secundum eventum litis com

extensão in utilibus).

2.7.2 Ação Civil Pública

A ação civil pública destinava-se, quando de seu advento em 1985, a regular as ações de

responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados ao meio ambiente, aos consumidores

e a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico. Em 1988 a

Constituição da República estendeu sua aplicação a qualquer outro dano a interesse difuso ou

coletivo (CF, art. 129, inc. III), e no ano de 2001, a aplicabilidade passou a contemplar os casos

de infração da ordem econômica, da economia popular e da ordem urbanística (Lei 7.347/85, art.

1º, incs. I, II, IV, V e VI).

A legitimidade para a propositura da Ação Civil Pública principal ou cautelar, quando da

origem da lei no ano de 1985, era conferida ao Ministério Público, à União, Estados-federados,

Municípios, autarquias, empresas públicas, fundações ou sociedades de economia mista e

associações. Além da manutenção destes legitimados, no ano de 2007 foram incluídos a

Defensoria Pública e o Distrito Federal (Lei 11.448/07). Cumpre observar que as associações

somente podem propor Ação Civil Pública se estiverem constituídas há pelo menos um ano e

incluam entre suas finalidades institucionais, a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à

ordem econômica, à livre concorrência ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e

paisagístico (Lei 7.347/85, art. 5º, incs. I-V, alíneas a e b). O lapso temporal de um ano poderá

ser dispensado pelo juiz quando entender que há manifesto interesse social evidenciado pela

dimensão ou característica do dano, ou pela relevância do bem jurídico a ser protegido (Lei

7.347/85, art. 5º, § 4°).

Após a propositura da ação, é facultado ao Poder Público e a outras associações

legitimadas na lei, a habilitar-se como litisconsortes de qualquer das partes (Lei 7.347/85, art. 5º,

88

§ 2º), e nos casos de desistência do autor por motivo infundado ou abandono da ação por

associação que se encontra no pólo ativo, o Ministério Público ou qualquer outro legitimado

poderá assumir a titularidade e garantir o prosseguimento do processo (Lei 7.347/85, art. 5º, § 3º).

Ainda, tratando-se especificamente do Ministério Público, deverá o órgão atuar de forma

obrigatória na condição de fiscal da lei, sempre que não estiver atuando enquanto parte no

processo (Lei 7.347/85, art. 5º, § 1º), bem como, é facultado aos Ministérios Públicos da União,

do Distrito Federal e dos Estados a formação de litisconsórcio para atuar na defesa de todos os

direitos e interesses tutelados pela LACP (Lei 7.347/85, art. 5º, § 5º).

Resta evidenciado, portanto, a exemplo do que ocorre com as demais ações coletivas, que

a legitimidade ativa na ação civil pública é conferida em regime extraordinário ou de substituição

processual, isto porque, adverte Zavascki, considerando a natureza transindividual dos interesses

tutelados, não há como imaginar uma hipótese de legitimidade ativa ordinária conforme preceitua

o CPC, no sentido de atribuir legitimidade pessoal para quem se afirma titular do direito

material.240

No regime de substituição pessoal o autor da ação defende em seu nome próprio, direitos

cuja titularidade pertence à coletividade. No capítulo seguinte, em momento oportuno, a natureza

da legitimidade nas ações coletivas será melhor abordada.

Quanto à competência para propositura, tramitação e julgamento da ação civil pública,

dois dispositivos legais devem ser analisados. O primeiro é o art. 2º da LACP, o qual remete para

o foro do local onde ocorrer o dano e, no respectivo foro, ao juízo sobre o qual recai a

competência funcional. O segundo é o art. 93 do CDC, o qual dispõe que ressalvada a

competência da Justiça Federal, é competente o foro do lugar onde ocorreu ou deva ocorrer o

dano, quando for de âmbito local (art. 93, inc. I); e o foro da Capital do Estado ou no Distrito

Federal, para os danos de âmbito nacional ou regional (art. 93, inc. II).

O problema é que tanto a LACP quanto o CDC apresentam outros dois dispositivos que

tornam controvertida a interpretação e o debate sobre a matéria competência no âmbito da ação

civil pública e de outras ações de natureza coletiva. No primeiro estatuto, o art. 21 prevê que são

240 ZAVASCKI, op. cit., p. 76.

89

aplicados à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais, no que for cabível, os

dispositivos do Título III – Da Defesa do Consumidor em Juízo – do CDC. Este por sua vez,

prevê no art. 90 que são aplicadas às ações de que trata o Título III as normas do CPC e da

LACP.

Na avaliação de Mendes o legislador teria “andado melhor” se tivesse revogado

expressamente o art. 2º da LACP. Não o fazendo, “[...] cabe ao aplicador do direito decidir sobre

a subsistência ou não do mencionado comando.”241 E a decisão, pelos entendimentos

apresentados na doutrina especializada, aponta para o caminho da aplicação do art. 93 do CDC

em detrimento do art. 2º da LACP242.

Assim, como regra geral, ressalvando-se em qualquer caso a competência da Justiça

Federal, sendo de âmbito local, a ação civil pública deverá ser proposta no foro do local onde

ocorreu ou deva ocorrer o dano, sendo entendido por dano de âmbito local, segundo Grinover,

aquele que se apresenta mais restrito, “[...] em razão da circulação limitada de produtos ou da

prestação de serviços circunscritos, os quais atingirão pessoas residentes num determinado

local.”243 Sendo o dano de âmbito regional ou nacional, a ação deverá ser proposta no foro da

Capital dos Estados ou no foro do Distrito Federal, de forma concorrente.

No Brasil há quem defenda, a exemplo de Grinover, que a competência para o dano de

âmbito nacional deveria ser exclusiva do Distrito Federal. A idéia seria facilitar para o réu o

exercício do direito de defesa, já que a competência concorrente entre a capital de um Estado e o

Distrito Federal poderá obrigá-lo a litigar em local longínquo de sua sede, pela mera opção do

autor coletivo. Contudo, a própria autora reconhece que esta não vem sendo a posição da

jurisprudência e da doutrina especializada.244 Neste sentido é a manifestação de Mendes que

apresenta entre outros motivos o fato de o art. 93, II do CDC não autorizar a interpretação que se

pretende fazer, sendo que o conectivo “ou” é alusivo à competência concorrente, na forma já

manifestada pelo STJ245. E ainda argumenta:

241 MENDES, 2002, p. 231. 242 GRINOVER, 2004, p. 874. 243 Ibidem, p. 878. 244 Ibidem, p. 878. 245 O autor cita decisão do STJ (Conflito de Competência 17.533, Segunda Seção, DJU 30.10.2000, p. 120) no qual o Tribunal entende que não há exclusividade do foro do Distrito Federal para o julgamento de ação civil pública de âmbito nacional. (MENDES, 2002, p. 238).

90

A designação de um único foro, num país com oito milhões e quinhentos mil quilômetros quadrados e contingente populacional de cerca de 170 milhões de habitantes, representaria, sim, barreira intransponível, desestímulo ou medida encarecedora , para que a maioria das entidades espalhadas pelo Brasil afora pudesse ajuizar a respectiva ação.246

Por fim, acerca dos efeitos da sentença proferida na ação civil pública, remetemos o leitor

para a análise delineada sobre a matéria no terceiro capítulo desta dissertação, tendo em vista,

principalmente, as diferenças apresentadas pelo CDC quando leva em consideração o objeto da

ação, que pode ser de natureza difusa, coletiva stricto sensu ou individual homogênea.

2.7.3 Mandado de Segurança Coletivo

O mandado de segurança coletivo nasceu com a Constituição da República de 1988 (art.

5º, LXX). Porém, muito antes, seu perfil original já se prestava à tutela de direitos coletivos por

meio de determinados mecanismos jurídicos, entre os quais a Lei 4.215/63 (revogada em 1994

pela Lei 8.906), que habilitava a Ordem dos Advogados do Brasil a representar os interesses da

classe dos advogados e os individuais, relacionados com o exercício da profissão, em juízo ou

fora dele (art. 1º, parágrafo único). A Consolidação das Leis do Trabalho de 1946, também

possibilitava aos sindicatos o direito de representar os interesses gerais da respectiva categoria ou

profissão liberal ou os interesses individuais dos associados relativos à atividade ou profissão

exercida, nas esferas administrativa e judicial (art. 513).247

Em 1988, a Constituição passou a possibilitar expressamente que partido político com

representação no Congresso Nacional, organização sindical e entidade de classe ou associação,

desde que legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, impetrem mandado

de segurança coletivo em defesa dos interesses de seus membros ou associados (CF, art, 5º, inc.

LXX, a e b). O mandado de segurança na forma individual já integrava o constitucionalismo

nacional desde 1934 (exceto pela Constituição de 1937), visando proteger direito líquido e certo

246 MENDES, 2002, p. 238. 247 ZAVASCKI, op. cit., p. 208-209.

91

quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de

pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público (CF, art. 5º, inc. LXIX).

Apesar da omissão da Constituição, o Ministério Público também é parte legítima para

propor mandado de segurança nas formas individual ou coletiva, desde que a iniciativa diga

respeito à sua atividade funcional. Exemplo neste sentido é encontrado no art. 201, inc. IX do

Estatuto da Criança e do Adolescente, o qual dispõe que compete ao Ministério Público impetrar

mandado de segurança, de injunção e habeas corpus, em qualquer juízo, instância ou tribunal, na

defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis afetos à criança e ao adolescente.248

Conforme já mencionado, por tratar-se de ação coletiva, no mandado de segurança

coletivo a legitimidade ativa também é conferida em regime de substituição processual ou

extraordinária, isto porque o substituto buscará por meio de uma única demanda, a tutela de

direitos ou interesses pertencentes há várias pessoas, membros ou associados do partido político,

organização sindical, entidade de classe ou associação. Zavascki complementa que o mandado de

segurança coletivo enseja proteção coletiva a um conjunto de direitos líquidos e certos, violados

ou ameaçados por atos de autoridade pública. Em outras palavras, acrescenta o autor, “[...]

transformou-se o mandado de segurança em instrumento para tutela coletiva de direitos. Assim, o

mandado de segurança coletivo é um mandado de segurança, mas é também uma ação coletiva, e

isso faz uma enorme diferença.”249

Quanto à finalidade da ação, a Constituição da República dispõe que a mesma é cabível

para a defesa dos interesses dos membros ou associados da organização sindical, entidade de

classe ou associação, o que permite concluir que este viés jurídico é adequado para a tutela de

direitos subjetivos individuais, conformados na categoria de direitos individuais homogêneos.

Porém, no texto constitucional não há limites quanto à natureza dos direitos tuteláveis

pelos partidos políticos. De conseguinte, a princípio, não se poderia impedir que os partidos

políticos tutelem direitos difusos e coletivos stricto sensu, desde que presentes os requisitos

considerados imprescindíveis, relacionados ao direito líquido e certo e à legitimação, sendo esta

248 BAZILONI, op. cit., p. 133. 249 ZAVASCKI, op. cit., p. 206.

92

relacionada à pertinência entre o direito tutelado e os fins institucionais do impetrante.250 Mesmo

não encontrando o mesmo entendimento no Superior Tribunal de Justiça251, Zavascki faz defesa

desta tese com fundamento na inexistência de limitação no texto constitucional, que entende não

ser uma omissão desatenta, e na natureza do partido político que não tem razão existencial

idêntica à dos sindicatos e entidades de classe. Enquanto estes têm objetivos voltados para dentro

de si mesmos, visando atender interesses de associados, os partidos políticos visam objetivos

externos, que só em situações remotas estão relacionados a interesses específicos de seus filiados.

Segundo complementa o autor,

É natural, portanto, e apropriado à natureza dessas entidades, que, ao legitimá-las para impetrar segurança, o constituinte tenha estabelecido como objeto da demanda a defesa de interesses dos próprios associados, limitação inteiramente compatível como o móvel associativo. O que ocorre nos partidos políticos, entretanto, é um fenômeno associativo completamente diferente. Os partidos políticos não têm como razão de ser a satisfação de interesses ou necessidades particulares de seus filiados, não são eles o objeto das atividades partidárias.252

Sem prejuízo do entendimento que conclui pela possibilidade de partido político impetrar

mandado de segurança coletivo e tutelar direitos transindividuais (difusos e coletivos em sentido

estrito), contrariando a idéia de que mandado de segurança coletivo destina-se, tão somente, para

a tutela de direitos individuais homogêneos dos membros ou associados dos entes

constitucionalmente legitimados, pode ocorrer determinadas circunstâncias que permitam

organizações sindicais, entidades de classe ou associações, tutelar por este mesmo viés jurídico,

interesses com caráter transindividual. Exemplo citado é o do concurso público, cujo edital

exclua a participação de membros de determinada classe ou categoria profissional. Neste caso a

respectiva entidade poderá impugnar judicialmente o ato impetrando mandado de segurança

coletivo, ação que apresenta características de verdadeira tutela de direito transindividual, posto

que os benefícios da decisão atingirão não só seus membros ou associados, mas todos os

membros da classe ou categoria.253

250 ZAVASCKI, op. cit., p. 209. 251 O autor cita decisão do STJ, na qual o Tribunal entende que a exemplos dos sindicatos e das associações, os partidos políticos só podem impetrar mandado de segurança coletivo em assuntos integrantes de seus fins sociais em nome de seus filiados, quando autorizados por lei ou por seus estatutos. (ZAVASCKI, 2006, p. 211). 252 Ibidem, p. 212-213. 253 Ibidem, p. 210.

93

Por fim, no que tange a legitimidade, cumpre observar que por meio da Súmula 629, o

STF pacificou o entendimento de que a impetração de mandado de segurança coletivo por

entidade de classe em favor dos associados independe da autorização destes. E por meio da

Súmula 630, o Supremo Tribunal manifestou entendimento no sentido de que a entidade de classe

tem legitimação para o mandado de segurança ainda quando a pretensão veiculada interesse

apenas a uma parte da respectiva categoria.

Quanto a competência, para o julgamento do mandado de segurança a definição se dá pela

categoria funcional da autoridade coatora e pela sede funcional da mesma, não importando a

natureza do ato impugnado. As situações em que a competência é originariamente atribuída ao

STF e STJ encontram-se previstas na CF (art. 102, inc. I, d e art. 105, inc. I, b, respectivamente),

da mesma forma que encontra-se na CF a competência originária atribuída aos Tribunais

Regionais Federais e aos juízes federais (art. 108, inc. I, c e art. 109, inc. VIII, respectivamente).

Conforme esclarece Meirelles os mandados de segurança contra atos de autoridades federais não

indicadas em normas especiais devem ser julgados pelas Varas da Justiça Federal, nos limites de

sua jurisdição territorial e com recurso para o respectivo TRF.254

Tratando-se de autoridades estaduais ou municipais, o juízo competente será o da

respectiva comarca na qual se encontra a sede da autoridade coatora, segundo as normas de

organização judiciária de cada Estado, que podem instituir juízos privativos para ações

envolvendo a Fazenda Pública. Após a instituição dos mesmos, adverte Meirelles, “[...] o juízo

competente para mandado de segurança será sempre dessas Varas, conforme o ato impugnado

provenha de autoridade federal, estadual ou municipal, ou de seus delegados, por outorga legal,

concessão ou permissão administrativa.”255

No que tange aos efeitos da sentença proferida em sede de mandado de segurança

coletivo, cumpre ressaltar inicialmente que a Constituição apenas inovou no aspecto da

legitimidade ativa, o que vem permitindo concluir que o procedimento aplicado a tais ações

continua sendo o procedimento comum da Lei 1.533/51, e que regula o mandado de segurança na

forma individual. Por conseguinte, a análise dos efeitos da sentença deveria passar pelo que

254 MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de segurança, ação popular, ação civil pública, mandado de injunção, “hábeas data”. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 68. 255 Ibidem, p. 69-70.

94

dispõe o art. 16 da mencionada lei, o qual prevê que o pedido de mandado de segurança poderá

ser renovado se a decisão denegatória não lhe houver apreciado o mérito.

Porém, considerando que o mandado de segurança coletivo é uma garantia constitucional

destinada a tutela de direitos individuais homogêneos; e considerando o entendimento que

preconiza a aplicação das disposições do CDC em todos os processos de defesa de interesses

difusos, coletivos stricto sensu e individuais homogêneos, não se restringindo, portanto, aos

litígios oriundos de relações de consumo256, é possível concluir que a disposição a ser observada

e que incide sobre os efeitos da sentença no mandado de segurança coletivo, é aquela encontrada

no art. 103, inc. III do CDC, a qual prevê que a sentença somente faz coisa julgada no caso de

procedência do pedido, visando beneficiar todas as vítimas e seus sucessores.

Conforme análise efetuada em momento oportuno do próximo capítulo, ver-se-á que nos

casos de direitos individuais homogêneos, mesmo quando o pedido for julgado improcedente

após análise de mérito, é possível a repropositura de ação com idêntico pedido e causa de pedir,

possibilidade que, aliás, vem recebendo críticas da doutrina nacional especializada.

2.7.4 Ação Coletiva ou Ação Civil Coletiva

Os direitos individuais homogêneos foram incorporados ao cenário jurídico nacional no

ano de 1990, com o advento do Código de Defesa do Consumidor (art. 81, parágrafo único, inc.

III). Ao mesmo tempo o legislador inseriu no contexto jurídico a chamada ação coletiva (também

denominada ação civil coletiva) que, tecnicamente falando, é destinada à tutela de tais direitos

(CDC, art. 91 e seguintes).257

Portanto, a finalidade da ação civil coletiva é a tutela de direitos individuais homogêneos,

cujo conceito já foi objeto de análise no primeiro capítulo desta dissertação, tornando-se

necessário nesse momento, apenas relembrar que o caráter coletivo dos mesmos somente está

256 MENDES, 2005, p. 9. 257 PINHO, 2002, p. 11-48.

95

presente na forma de exercê-los. Na origem são direitos individuais, oriundos de uma mesma

causa fática ou jurídica.

Antes do advento do CDC, a legislação brasileira já previa no CPC uma forma de defesa

conjunta de direitos subjetivos, por meio de um único processo. Pelo instituto do litisconsórcio

ativo facultativo, duas ou mais pessoas já poderiam litigar no mesmo processo sempre que, por

exemplo, os direitos ou as obrigações derivassem do mesmo fundamento de fato ou de direito ou

ocorresse afinidade de questões por um ponto comum de fato ou de direito (art. 46, incs. I e IV,

respectivamente). Na verdade, por este viés jurídico, que permanece vigendo, o que existe é uma

mera cumulação de causas, que poderiam estar sendo propostas separadamente.258

Porém, a propositura de ação judicial na forma do litisconsórcio ativo facultativo, adverte

Zavascki, nem sempre é recomendada para todas as situações, tanto que o próprio CPC dispõe

que o juiz poderá limitar o litisconsórcio facultativo quanto ao número de litigantes, quando este

comprometer a rápida solução do litígio ou dificultar a defesa. Segundo o mesmo autor, a

utilidade do litisconsórcio ativo facultativo é extremamente escassa. O mecanismo jurídico serve

aos propósitos de celeridade e eficiência do processo, porém, somente pode ser utilizado quando

se tratar de litisconsórcio de reduzida amplitude. Do contrário, conforme reconhece o próprio

CPC, a utilização torna-se inviável do ponto de vista prático.259

Considerando que no mundo contemporâneo ocorrem com habitualidade fatos típicos de

massa, relacionados a um número expressivo de pessoas, a exemplo de desastres, relações de

consumo, litígios envolvendo funcionários, empregados, aposentados, contribuintes, idosos,

crianças, deficientes e investidores, torna-se sensato não trata-los como questões puramente

individuais, mesmo que a situação possa ser fracionada.260 Daí a importância da inserção das

ações civis coletivas no contexto jurídico nacional, com a missão de dar solução a litígios que, a

partir de uma mesma situação fática ou jurídica, atingem grande quantidade de direitos

subjetivos.

258 ZAVASCKI, op. cit., p. 158. 259 Ibidem, p. 161. 260 MENDES, 2002, p. 221.

96

No que tange à legitimidade ativa para fins de propositura de ação coletiva ou ação civil

coletiva, há atribuição de forma concorrente ao Ministério Público, à União, Estados, Municípios

e Distrito Federal, entidades e órgãos da administração pública direta ou indireta, ainda que sem

personalidade jurídica, e associações legalmente constituídas há pelos menos um ano (CDC, art.

82, incs. I, II, III e IV).

A análise da legitimidade tem início pelas associações, entidades e órgãos da

administração pública direta ou indireta. Para estas, o CDC (art. 82, inc. III) exige que a

constituição seja especificamente destinada à defesa dos interesses e direitos protegidos pelo

próprio CDC, enquanto que para as associações, exige que incluam entre seus fins institucionais a

defesa dos interesses e direitos protegidos pelo CDC. Porém, ao contrário do que possa parecer,

cumpre observar que a ação civil coletiva não é instrumento jurídico aplicado apenas na tutela de

direitos individuais homogêneos decorrentes de relações de consumo. Segundo Zavascki, pensar

que a aplicação é restritiva a tais direitos, embora freqüentemente apareçam posicionamentos

neste sentido, até mesmo na jurisprudência, mesmo que de forma implícita, é fazer “[...] uma

interpretação reducionista das variadas hipóteses legais de legitimação para demandas coletivas,

restringindo-as às do art. 82, do Código de Proteção e Defesa do Consumidor.” Desse modo,

conclui-se que a associação está legitimada a promover ações civis coletivas para a tutela de

qualquer outro direito subjetivo de seus filiados, “[...] desde que tais direitos guardem relação de

pertinência material com os fins institucionais da associação, fins esses que, afinal de contas,

constituíram o móvel propulsor da própria filiação.”261

O mesmo ocorre com as entidades e órgãos da administração pública direta ou indireta,

sendo necessário para fins de propositura de ação civil coletiva, a existência de um elo de

vinculação entre o objeto da demanda e os fins institucionais do demandante, exigência que,

aliás, encontra-se atrelada ao interesse de agir.262

É importante destacar também, nesta mesma linha de raciocínio, que as relações de

consumo não são as únicas responsáveis pela provocação de danos aos direitos individuais

homogêneos. A partir de Venturi conclui-se que um dano ambiental, como derramamento de

substancia tóxica em rio ou mar que lesiona pescadores, habitantes ribeirinhos ou turistas; um 261 ZAVASCKI, op. cit., p. 176-177. 262 Ibidem, p. 174.

97

dano de natureza civil, decorrente da infringência do princípio da boa-fé contratual; ou de

natureza tributária, decorrente da cobrança de tributos criados ou aumentados ilegal ou

inconstitucionalmente, podem gerar uma responsabilidade civil subjetiva ou objetiva e, por

conseguinte, possibilitar o ajuizamento de ação civil coletiva.263

Contudo, assunto que continua chamando a atenção no aspecto legitimidade nas ações

coletivas é a atuação do Ministério Público. Nota-se que o órgão encontra-se no rol dos

legitimados pelo art. 82 do CDC (art. 82, inc. I), porém o texto constitucional apresenta redação

que, inicialmente, fez com que o intérprete concluísse pela inconstitucionalidade de tal

dispositivo. Esta observação de Mendes parte da análise do art. 129 da CF, que enumera entre as

atribuições institucionais do Ministério Público a promoção de inquérito civil e de ação civil

pública para proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses

difusos e coletivos (art. 129, inc. III). Considerando que este dispositivo nada menciona acerca da

legitimidade do Ministério Público quando a ação tem por objeto direitos individuais

homogêneos, estavam presentes para o intérprete todos os requisitos necessários para o início de

uma discussão que, inclusive, debatia “[...] a própria constitucionalidade e alcance do art. 82 do

Código de Defesa do Consumidor, na medida em que dispõe sobre a legitimação do Ministério

Público para a defesa dos interesses coletivos stricto sensu, sem afastar desse rol os direitos

fincados no inciso III, do art. 81, da Lei 8.078/90.”264

Mendes ainda relata que diante do texto constitucional, parte da jurisprudência concluiu

pelo afastamento da atuação do Ministério Público quando o objeto da ação tratava sobre direitos

individuais homogêneos.265 Entretanto, com o tempo, doutrina e jurisprudência passaram a

aceitar a atuação do Ministério Público, tendo em vista a existência de interesses e direitos

individuais homogêneos que assumiam verdadeira dimensão social, a partir das proporções

atingidas, da relevância do bem jurídico e da condição das pessoas afetadas. O fundamento

constitucional para tal aceitação encontra-se no caput do art. 127 da Constituição da República, o

263 VANTURI, op. cit., p. 76. 264 MENDES, 2002, p. 247. 265 O autor cita decisão da 2ª Turma do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, em julgamento proferido em 23.05.1995, no qual concluiu pela ilegitimidade do Ministério Público quando a ação tem por objetivo proteger direitos individuais disponíveis. (MENDES, 2002, p. 247).

98

qual incumbe ao Ministério Público a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos

interesses sociais e individuais disponíveis.266

Registra-se ainda, acerca da legitimidade do Ministério Público para a defesa de direito

individual homogêneo, o aprofundado e esclarecedor estudo elaborado por Pinho. Sobre o tema,

Pinho analisa os aspectos doutrinários, a partir de autores especializados como Kazuo Watanabe,

Rodolfo de Camargo Mancuso, Teori Albino Zavascki, José Marcelo Menezes Vigliar,

Gianpaolo Poggio Smanio, Antonio Gidi, Hugo Nigro Mazzilli e Nelson Nery Júnior; os aspectos

jurisprudenciais e a influência do Direito norte-americano nas ações coletivas brasileiras, para

concluir a partir da conjugação destes três vetores, que os mesmos possuem dimensão

constitucional, e que mesmo a Constituição não sendo totalmente clara quanto a possibilidade do

Ministério Público tutelar direito individual homogêneo através de ação coletiva, lhe parece que

“[...] isto exsurge de forma clara a partir de uma interpretação teleológica e sistemática da Carta,

sempre tendo como perspectiva principal a defesa dos interesses sociais, num contexto civil-

constitucional e processual voltado ao acesso à justiça.”267

Desse modo, Pinho conclui que independentemente da modalidade da ação coletiva,

poderá o Ministério Público ser parte, podendo tutelar todo e qualquer direito coletivo, o que

inclui o individual homogêneo, utilizando-se da ação coletiva neste caso, e da ação civil pública

para os direitos difusos e coletivos stricto sensu. Por conseguinte, complementa o autor, Não haveria assim espaço para divergências acerca da legitimação do Ministério Público, o que hoje é extremamente penoso e custoso à sociedade, eis que ao invés de se examinar o mérito da causa, passam-se anos discutindo-se se o Ministério Público teria ou não legitimidade para aquela demanda.268

Por fim, resta fazer menção a competência para fins de propositura, tramitação e

julgamento das ações civis coletivas. O assunto encontra-se regulado pelo art. 93 do CDC, o qual,

em síntese, dispõe que ressalvando-se em qualquer caso a competência da Justiça Federal, sendo

o dano de âmbito local, a ação deverá ser proposta no foro do local onde o mesmo ocorreu ou

deva ocorrer, sendo de âmbito regional ou nacional, a competência é considerada concorrente

entre o foro da Capital dos Estados e o foro do Distrito Federal. De qualquer modo, remetemos o

266 MENDES, 2002, p. 248. 267 PINHO, 2002, p. 78-101. 268 Ibidem, p. 212.

99

leitor para o estudo realizado neste trabalho acerca da competência para fins de propositura de

ação civil pública, onde a matéria encontra-se delineada com maior profundidade.

2.8 OS ANTEPROJETOS DE CÓDIGO BRASILEIRO DE PROCESSOS COLETIVOS

Neste trabalho não será elaborada uma análise sistematizada de todos os artigos que

integram os Anteprojetos de Código Brasileiro de Processos Coletivos, mas, tão somente,

discorrer sobre a real necessidade de um código específico e da importância do mesmo para o

sistema jurídico nacional.

Conforme já mencionado quando da análise do microssistema processual coletivo

existente no Brasil, o Código de Defesa do Consumidor representa, segundo Mendes, “[...] o

modelo estrutural para as ações coletivas no Brasil [...]”, sendo aplicado em todos os processos de

defesa de interesses difusos, coletivos stricto sensu e individuais homogêneos, não limitando-se,

portanto, aos processos de proteção e defesa do consumidor.269 O CDC é o diploma legal que

regula no Brasil os principais aspectos relacionados aos processos coletivos, dentre os quais, se

destacam a competência, legitimação, litispendência, efeitos da coisa julgada e execução das

sentenças proferidas nos mesmos.

E foi justamente a legislação brasileira que compõe o chamado microssistema processual

coletivo, principalmente o CDC, que serviu de base normativa para a elaboração no ano de 2002

e aprovação no ano de 2004, do Código Modelo de Processos Coletivos para os países ibero-

americanos, a partir de uma iniciativa do Instituto Ibero-Americano de Direito Processual, sendo

que juristas brasileiros270 participaram da comissão que elaborou e da comissão que revisou o

Anteprojeto, visando transformá-lo em Projeto para fins de aprovação.271

269 MENDES, 2005, p. 9. 270 O autor esclarece que formaram a comissão nomeada em 2002 os juristas brasileiros Ada Pellegrini Grinover, Kazuo Watanabe e Antonio Gidi; e que da comissão revisora do Anteprojeto participaram Ada Pellegrini Grinover, Aluisio Gonçalves de Castro Mendes, Antonio Gidi e Kazuo Watanabe, entre outros juristas dos países ibero-americanos. (MENDES, 2005, p. 4). 271 Ibidem, p. 4.

100

Para Mendes o Código Modelo de Processos Coletivos do Instituto Ibero-Americano de

Direito Processual representa um novo marco para o direito processual coletivo no âmbito dos

países ibero-americanos, para os quais o Código-Tipo é considerado fonte de inspiração, servindo

inclusive, como parâmetro para repensar e aperfeiçoar o sistema brasileiro. Segundo o autor, foi

justamente a edição do Código Modelo que reavivou no Brasil a vontade de se avançar e

aprimorar as normas pertinentes à tutela coletiva, tanto que após o seu advento, Ada Pellegrini

Grinover elaborou a primeira versão brasileira do Anteprojeto do Código Brasileiro de Processos

Coletivos, trabalho que foi desenvolvido no âmbito do Programa de Pós-Graduação da Faculdade

de Direito da Universidade de São Paulo – USP.272

Após a elaboração da primeira versão do Anteprojeto brasileiro, outros estudos foram

desencadeados visando apresentar sugestões e propostas para a sua melhoria, dentre os quais,

estão os estudos dos Programas de Pós-Graduação stricto sensu das Faculdades de Direito das

Universidades do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, e Estácio de Sá – Unesa. Mendes

complementa que os estudos realizados no Rio de Janeiro acabaram reestruturando o texto

original, culminando na apresentação de um verdadeiro substitutivo ao Anteprojeto.273

Por conseguinte, após a elaboração, dois Anteprojetos foram encaminhados ao Ministério

da Justiça, sendo um originário do Instituto Brasileiro de Direito Processual - IBDP, que assumiu

a proposta originária do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de

São Paulo; e outro dos Programas de Pós-Graduação stricto sensu das Faculdades de Direito das

Universidades do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, e Estácio de Sá – Unesa. Segundo Lenza, os

Anteprojetos ainda se encontram no Ministério da Justiça para análise e encaminhamentos.274

De qualquer modo, os debates sobre as propostas ainda não cessaram no Brasil, e o

objetivo geral é transformar o Anteprojeto em projeto e encaminhá-lo para análise e aprovação do

Congresso Nacional.275

272 MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. O anteprojeto de código brasileiro de processos coletivos: visão geral e pontos sensíveis. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; WATANABE, Kazuo (coord.). Direito processual coletivo e o anteprojeto de código brasileiro de processos coletivos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 17. 273 Ibidem, p. 17. 274 LENZA, op. cit., p. 420. 275 MENDES, 2007, p. 17.

101

A pergunta que deve ser feita sobre a proposta e possibilidade futura de se ter no Brasil

um código específico para os processos coletivos, caminha no sentido de saber qual a necessidade

e importância deste instrumento processual dentro do contexto jurídico nacional. Venturi entende

que há preocupações de ordem técnica e política que depõem contra a idéia do Código, e aponta

inicialmente, enquanto fundamento, o fato de estarmos em uma época de descodificações, na qual

se preconiza a aplicação dos princípios e normas constitucionais e uma intervenção legislativa

mínima, visando abrir o sistema jurídico “[...] para a pluralidade e multiplicidade de fatores que

sobre ele atuam dinamicamente, através do emprego de conceitos jurídicos vagos ou

indeterminados como forma de fomentar uma necessária integração heterogênea do Direito

[...]”.276

Entre outros fatores indicados pelo autor estão a hipercomplexidade que envolve os

direitos meta-individuais, naturalmente inseridos em uma conjuntura multidisciplinar; e a pouca

experiência doutrinária e judicial relacionada com a tutela de tais direitos, e que pode gerar com o

Código uma sensação de fechamento sistemático. Desse modo, para Venturi, a tutela jurisdicional

brasileira só tem a ganhar se permanecer sob uma ótica unitária do processo civil, desde que

revista segundo um novo modelo que corrija certas distorções (a exemplo de questões atinentes a

competência e extensão da coisa julgada) e que esteja baseada “[..] na aposta da adequada

preparação técnica, cultural e estrutural dos operadores do sistema jurídico, sem a qual nenhuma

inovação legislativa tem condição de implementar as reformas a que se propõe.”277

Contudo, não parece ser este o entendimento que hodiernamente vem prevalecendo na

doutrina brasileira especializada, e ao qual nos filamos. Uma argumentação elaborada por Santos

ajuda-nos a refletir sobre o tema. Segundo o autor ainda é muito forte a influência do direito

individual na prestação da tutela jurisdicional, em detrimento da coletividade. Processos que

envolvem direitos coletivos (em sentido lato sensu) são decididos sob a luz de princípios e regras

do direito individual, resultando em justiça incompleta, justiça distorcida e, até mesmo, em

injustiça. Por tudo isso, o autor conclui que existe no País um ponto de encruzilhada, qual seja,

continuar se asfixiando neste instrumental jurídico atravancador e retrógrado, voltado para

interesses privados, de cunho individualista, ou assumir o comando de uma “locomotiva”

276 VENTURI, op. cit., p. 35. 277 Ibidem, p. 35.

102

moderna, veloz e segura, chamada Código Brasileiro de Processo Coletivo. Santos entende que

este Código irá trazer em seu universo “[...] uma composição integrada por dispositivos afinados

com a nova realidade jurídica, suficientes a amparar a sociedade como um todo e,

conseqüentemente, abriga-la sob o manto sereno da autêntica justiça distributiva [...]”.278

Tudo revela, portanto, que a idéia principal da codificação é superar as dificuldades e

insuficiências apresentadas pelo atual sistema de tutela coletiva. Já foi apontado que sem prejuízo

de outras leis esparsas (LACP e LAP) o CDC apresenta o modelo estrutural para as ações

coletivas no Brasil, sendo aplicado em todos os processos de natureza coletiva, regulando

diversas questões de cunho processual. Porém, segundo analisa Santos, todos os diplomas legais

ressentem-se de normas processuais adequadas a dar efetividade aos direitos coletivos

materialmente tutelados, sendo que o próprio CDC é predominante de direito material, limitado

na prática forense por não estar em conformidade com as normas processuais individualmente

existentes, “[...] obrigando os juízes a autênticos exercícios jurídicos ‘contorcionistas’ à instrução

dos processos coletivos satisfatoriamente.”279

Portanto, todo o trabalho de elaborar e propor um Anteprojeto de Código Brasileiro de

Processos Coletivos, para que seja transformado em Projeto aprovado no Congresso Nacional,

objetiva fortalecer e desenvolver a legislação do direito processual coletivo, a partir da qual, se

espera, a melhoria de aceso à justiça, mais economia processual e judicial, e a garantia de

isonomia e equilíbrio entre as partes no processo, sendo que todos estes benefícios processuais,

concernentes à tutela dos direitos coletivos, são traduzidos em qualificação da prestação

jurisdicional.280

Dentro deste conjunto de benefícios, destaca-se o acesso à justiça, já que um Código

específico poderá popularizar o uso das ações coletivas e, por conseguinte, dar visibilidade social

a grupos e categorias que (ainda) não estão devidamente representados nos poderes políticos do

Estado. Parafraseando Leal, é possível concluir que o Anteprojeto representa de forma efetiva, a

278 SANTOS, D. M. dos., op. cit., p. 39. 279 Ibidem, p. 40. 280 MENDES, 2007, p. 17.

103

esperança de ligação entre dois mundos: o mundo real e o mundo das normas de acesso à

cidadania e do Estado Democrático de Direito.281

281 LEAL, Márcio Flávio Mafra. Anteprojeto de código brasileiro de processos coletivos: aspectos políticos, econômicos e jurídicos. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; WATANABE, Kazuo (coord.). Direito processual coletivo e o anteprojeto de código brasileiro de processos coletivos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 77.

CAPÍTULO III

3 UMA TEORIA GERAL DOS PROCESSOS COLETIVOS

Nos capítulos anteriores, restou evidenciado que as transformações sociais ocorridas nos

dois últimos séculos, originárias da evolução tecnológica, pesquisas científicas, globalização da

economia, agigantamento industrial, produção e comunicação massificada, entre diversos outros

fatores, motivaram a ocorrência de lesões a direitos e interesses que extrapolam a esfera

individual das pessoas, e atingem de forma concomitante conjuntos determinados ou

indeterminados de indivíduos, inibindo e até impedindo a tutela dos mesmos no âmbito

individual, tendo em vista a impossibilidade de divisão do objeto tutelado.

Este novo cenário social mundial fez surgir uma nova categoria de direitos fundamentais,

classificados enquanto direitos de terceira dimensão, de cunho coletivo, o que obrigou os Estados

(a exemplo do Brasil) a promover a criação e adaptações normativas voltadas para as ações e

processos coletivos, as quais vêm garantindo minimamente o exercício jurisdicional diante desta

nova modalidade de demanda, mesmo que em muitos casos de modo inapropriado, considerando

que diversos institutos do processo civil tradicional vêm sendo aplicados de forma deslocada

dentro de um cenário para o qual não foi pensado.

Conforme já anotado, as mudanças legislativas voltadas para a tutela dos direitos

coletivos são consideradas por Cappelletti e Garth uma verdadeira revolução dentro do processo

civil, posto que, até então, o processo somente tratava de assuntos entre duas partes, visando

105

solucionar controvérsias de natureza individual. Por conseguinte, os direitos pertencentes a

coletividades de pessoas ou público em geral ficavam a margem do modelo jurisdicional.282

No Brasil a Constituição Federal de 1988 representa um marco na história da tutela dos

direitos e interesses coletivos, isto porque, foi a primeira Constituição brasileira a garantir

expressamente que o Poder Judiciário não deixará de apreciar as lesões ou ameaças a direitos e

interesses afetos às coletividades de pessoas, sem prejuízo da inafastabilidade de apreciação das

lesões ou ameaças aos direitos individuais. Porém, muito antes do advento da atual Constituição

da República, o Brasil já havia dado início à elaboração de normas que hoje constituem o

chamado microssistema processual coletivo, e que é aplicado aos processos judiciais que

tramitam na condição de processos coletivos.

Tal aprimoramento legislativo se fez necessário porque o modelo do processo civil

clássico, que segundo Adamovich é originário de estudos que tiveram como tema central a teoria

da ação, em uma perspectiva individual, a partir de ferramental oriundo do direito privado, não

foi pensado para dar solução aos conflitos de outra natureza.283 O modelo de solução de

controvérsias até então existente, observa Fiss, é composto por uma tríade altamente

individualista, onde uma ação judicial é visualizada “[...] como um conflito entre dois indivíduos,

o autor da ação e o réu, e um terceiro situado entre as duas partes, como um árbitro imparcial,

para observar e decidir quem está certo e declarar o que deve ser feito.”284

Conforme anotado no capítulo anterior, a história legislativa dos processos coletivos no

Brasil teve início nas décadas de 50 e 60. Grinover observa que até os dias atuais, passado um

período que totaliza mais de cinqüenta anos de experiências, de inúmeros estudos doutrinários

sobre a matéria, de eventos especificamente organizados para debater o tema, de cursos

universitários, de graduação e pós-graduação, acredita-se que o País está preparado para dar um

novo e importante passo rumo à elaboração de uma Teoria Geral dos Processos Coletivos. Este

entendimento, complementa a autora, resulta da análise dos diversos mecanismos que atribuem

autonomia aos processos coletivos, “[...] na medida em que observa seus próprios princípios e

282 CAPPELLETTI, GARTH, op. cit., p. 49-50. 283 ADAMOVICH, op. cit., p. 55. 284 FISS, op. cit., p. 48.

106

seus institutos fundamentais, distintos dos princípios e institutos do direito processual

individual.”285

Para melhor fundamentar este entendimento, cumpre elaborar uma análise de diversos

institutos e princípios que envolvem os processos judiciais, de modo comparativo entre processos

coletivos e o processo civil clássico.

3.1 CONDIÇÕES DA AÇÃO

O clássico modelo de aferição das condições de admissibilidade das ações em juízo,

voltado para a tutela de conflitos intersubjetivos, não se coaduna com o modelo proposto para a

tutela jurisdicional coletiva. Estampada no art. 3º combinado com o art. 267, VI do CPC, a

concepção clássica do processo civil exige para propor ou contestar qualquer ação judicial, as

condições de interesse processual, legitimidade para agir e possibilidade jurídica do pedido, sob

pena de indeferimento da petição inicial (art. 295, II, III e parágrafo único, III) e conseqüente

extinção do processo sem resolução de mérito (art. 267, caput c/c 267, VI do CPC).

Quanto à primeira condição, na acepção clássica, traz-se a colação ensinamento de Greco

Filho, o qual esclarece que o termo interesse processual é empregado para definir a necessidade

de requerer a intervenção jurisdicional do Estado na solução de um litígio que tem por objeto

uma pretensão de direito material violado ou ameaçado. Assim, interesse processual caracteriza-

se pela necessidade de requerer o exercício da função jurisdicional, diante da impossibilidade de

obtenção do resultado pretendido por meio extraprocessual. Neste sentido, Greco Filho ainda

complementa que faltará o interesse processual “[...] se a via jurisdicional não for indispensável,

como, por exemplo, se o mesmo resultado puder ser alcançado por meio de um negócio jurídico

sem a participação do Judiciário.”286

A acepção clássica ou postura tradicional do interesse processual deriva da concepção

romana de ação, no sentido de que esta consistia em perseguir em juízo o que pertencia ao autor 285 GRINOVER, 2007, p. 11. 286 GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro. 19. ed., vol. 1. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 82-83.

107

da ação, titular do direito violado. Tratava-se de um meio de proteção de um bem diretamente

afetado a uma pessoa, caracterizando a proteção de uma situação jurídica individual.287

Dinamarco também observa que a preocupação com o interesse de agir evidencia um sinal

de visão privatista do sistema processual, “[...] como se toda pretensão deduzida em juízo fosse

procedente e fosse uma verdade a invariável presença da lesão [...]”. Para o autor, esta idéia faz

parte da teoria civilista da ação e é incompatível com as posturas metodológicas

contemporâneas.288

Exemplo explícito de incompatibilidade ocorre nas ações coletivas. Segundo Mancuso,

diante da impossibilidade de restringir a tutela só aos direitos subjetivos e do enfraquecimento da

personificação do interesse, com caráter direto e pessoal, nasce na tutela coletiva o

reconhecimento de um novo tipo de interesse processual, surgido a partir de dados objetivos. O

autor cita como referência as ações populares e determinadas ações de classe, as quais “[...] têm-

se por relevantes e suficientes para caracterizar o interesse de agir, certos fatos objetivos como a

condição de eleitor ou de cidadão, ou o fato de habitar certa região ou de pertencer a certa etnia,

ou de ser contribuinte de certo imposto.”289

Trata-se da chamada presunção de existência do interesse processual, que encontra-se

presente em qualquer demanda coletiva e que, segundo Venturi, decorre da autorização conferida

a todas as entidades referidas no art. 5º da LACP e no art. 82 do CDC para a propositura de ações

coletivas ou, antes mesmo do advento de tais diplomas legais, quando o legislador implementou

“[...] o sistema de tutela jurisdicional coletiva para a defesa de direitos até então ignorados ou

desprotegidos na via judiciária, em decorrência dos múltiplos obstáculos do acesso à justiça [...].”

A partir desta presunção, o autor complementa que caberia exclusivamente ao demandado

demonstrar no processo coletivo que não se trata de pedido com tal natureza, sendo esta a única

hipótese de não incidência da tutela coletiva por ausência de interesse processual.290

Portanto, pode-se concluir parafraseando Mancuso, que parece ter chegado o momento de

uma nova ruptura no processo civil. Diante de ações de natureza coletiva o interesse processual

287 MANCUSO, 2004, p. 165-166. 288 DINAMARCO, C. R., op. cit., p. 53. 289 MANCUSO, 2004, p. 167. 290 VENTURI, op. cit., p. 229-232.

108

não deve ser buscado na mera aferição da necessidade ou indispensabilidade de se recorrer ao

Judiciário, conforme ocorre na postura tradicional da teoria da ação, mas na relevância social do

interesse a ser tutelado. Para o autor é nessa linha que se pode reconhecer interesse de agir em

tema de interesses difusos, no sentido de que “[...] não importa que seja indeterminado seu titular;

o que conta é o fato de que o interesse em questão é socialmente relevante e, como tal, digno de

proteção jurisdicional.” Mancuso direciona este entendimento aos interesses difusos, podendo,

perfeitamente, ser aplicado aos demais direitos e interesses coletivos.291

A segunda condição de admissibilidade da ação trata da legitimidade para agir, a qual, na

concepção clássica da teoria da ação, é atribuída àquele que detém a titularidade do interesse

contido na pretensão. Nesta seara Greco Filho esclarece que somente podem demandar aqueles

que forem sujeitos da relação jurídica de direito material trazida a juízo, isto é, cada um deve

propor as ações relativas aos seus direitos. O autor ainda exemplifica que quem pode propor ação

de cobrança de um crédito é o credor, quem pode propor ação de despejo é o locador, e quem

pode pleitear reparação de dano é somente aquele que o sofreu. Trata-se, portanto, da chamada

legitimidade ativa ordinária.292

Nas ações intersubjetivas resolvidas por meio das disposições do processo civil clássico, o

direito de ação pode ser comparado a um patrimônio. A partir do chamado Princípio Dispositivo

o titular do direito pode ou não exercer o direito de ação293, exercer o direito de ação e não

requerer tudo o que tem direito294, exercer o direito de ação e no curso do processo pedir a

desistência da mesma ou, ainda, exercer o direito de ação e no curso do processo renunciar ao

direito que fundamenta o pedido, caso não se trate de direitos indisponíveis. Para Leal tais

faculdades expressam o individualismo processual, por meio do qual o direito de agir é visto

como uma propriedade privada. E considerando que na maioria das vezes em âmbito processual

individual as ações se relacionam à obrigações de ordem pessoal ou decorrentes de direitos reais,

291 MANCUSO, 2004, p. 168. 292 GRECO FILHO, op. cit., p. 79. 293 CPC, art. 2º. Nenhum juiz prestará a tutela jurisdicional senão quando a parte ou o interessado a requerer, nos casos e formais legais. 294 CPC, art. 128. O juiz decidirá a lide nos limites em que foi proposta, sendo-lhe defeso conhecer de questões, não suscitadas, a cujo respeito a lei exige a iniciativa da parte.

109

“[...] acentua-se mais ainda o direito de postular como um corolário do jus disponendi desse

indivíduo proprietário e autônomo.”295

Por outro lado, nos processos de ordem coletiva, tendo em vista a natureza transindividual

dos direitos tutelados, a legitimidade ativa é conferida em regime extraordinário ou de

substituição processual, considerando que nestes casos nem há condições para imaginar uma

hipótese de legitimidade ativa ordinária conforme preceitua o CPC, no sentido de atribuir

legitimidade pessoal para quem se diz titular do direito material.296 Para maior clareza, cumpre

colacionar entendimento de Nery Junior, o qual argumenta que “[...] pensar em legitimação para

a causa como instituto ligado ao direito material individual a ser discutido em juízo, não pode ter

esse mesmo enfoque quando se fala em direitos difusos, cujo titular do direito material é

indeterminável.”297

O modelo de legitimação é um dos principais pontos apontados para evidenciar o quanto o

acesso à justiça difere entre os processos coletivos e os processos de cunho individual. Neste

sentido, Grinover ressalta que no processo civil individual a legitimação obedece a esquemas

rígidos (combinação com o interesse de agir e com a possibilidade jurídica do pedido), enquanto

que no processo coletivo ocorre uma abertura de tais esquemas, “[...] prevendo a titularidade da

ação por parte do denominado ‘representante adequado’, portador em juízo de interesses e

direitos de grupos, categorias, classes de pessoas.”298

No Brasil há autores, a exemplo de Watanabe, que defendem a teoria de que mesmo nas

ações coletivas há legitimação ordinária, considerando que tal legitimação decorre de atribuição

constitucional ou legal e porque não há um único legitimado ordinário para propô-las.299 Leal

contesta tal entendimento e considera a polêmica de pouca repercussão prática. Para o autor, “[...]

nem mesmo nas ações coletivas do direito anglo-americano, em que o indivíduo lesado pode

representar os demais, o direito individual do autor se confunde com o direito alheio, embora

295 LEAL, M. F. M., 1998, p. 37. 296 ZAVASCKI, 2006, p. 76. 297 NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na constituição federal. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 114. 298 GRINOVER, 2007, p. 12. 299 WATANABE, 2004, p. 815.

110

tenham o mesmo fundamento.” Leal ainda complementa que se a legitimação fosse ordinária, as

ações não seriam coletivas.300

No mesmo sentido, Mendes observa que a doutrina não é uníssona em relação à

classificação da legitimação pertinente à tutela coletiva, sendo que três posições podem ser

consideradas: a) a que considera a legitimação ordinária; b) a que considerada a legitimação

autônoma; c) e a que considerada a legitimação extraordinária. Segundo análise do autor, vem

prevalecendo na jurisprudência o entendimento de que a legitimação é extraordinária, porém,

observa que a primeira posição (legitimação ordinária) pode em parte ser aceita, desde que o

legislador passe a admitir que o próprio indivíduo lesado, na qualidade de integrante da classe

atingida, atue na condição de legitimado, propondo ações coletivas. Dessa forma, argumenta

Mendes,

[...] estaria ele também defendendo um interesse próprio, embora comum ou coligado com o de outras pessoas integrantes de uma coletividade, grupo, classe ou categoria. Poderia, assim, ser considerada como uma legitimação composta, na qual estariam presentes o interesse próprio conjugado com o alheio.301

Por oportuno, também traz-se à colação entendimento de Dinamarco, o qual observa que

embora a doutrina não seja pacífica acerca da natureza da legitimidade para fins de propositura

das ações coletivas, em especial da ação civil pública, afirmando por vezes tratar-se de

legitimidade ordinária autônoma e por vezes de legitimidade anômala, parece mais adequado

dizer que se trata de legitimidade extraordinária ou de substituição processual, já que ninguém

nega que o interesse sob análise judicial não é do próprio autor da demanda coletiva. Para

Dinamarco,

O interesse poderá pertencer a pessoas determinadas ou indetermináveis, mas sempre pertencerá a terceiros que não fazem parte da relação processual. E é isso que importa para caracterizar a legitimidade como extraordinária, pois alguém será substituto processual sempre que a lei autorizar essa pessoa a ajuizar uma demanda em nome próprio para defender direito alheio [...].302

300 LEAL, M. F. M., 1998, p.125-126. 301 MENDES, 2002, p. 241-244. 302 DINAMARCO, P. da S., op. cit., p. 203-204.

111

Portanto, prevalece o entendimento de que nas ações coletivas, ao contrário do que ocorre

nas ações de cunho individual, a legitimação ativa é extraordinária ou de substituição processual,

resultante da autorização constitucional e legal conferida à terceiros, para que estes demandem e

defendam em nome próprio, direito que no todo ou em parte não lhe pertençam.

É evidente que a legitimidade para cada modalidade de ação é concorrente ou, como

prefere Barbosa Moreira, concorrente e disjuntiva. Significa dizer, utilizando as palavras do

autor, que é concorrente porque os legitimados “[...] ficam habilitados a agir em juízo, na defesa

do interesse comum, quer isoladamente, quer mediante a formação de um litisconsórcio

voluntário.”303 Ou seja, por motivos óbvios, não precisa que todos os legitimados atuem ao

mesmo tempo e na mesma ação, na condição de autores. E é disjuntiva porque quando um dos

legitimados propõe uma ação coletiva, o outro não poderá intentar uma nova ação com o mesmo

objeto e causa de pedir, sob pena de configurar o instituto da litispendência, conforme será

demonstrado em ocasião oportuna.

É importante mencionar também, mesmo que brevemente, a importância da adoção do

modelo de legitimação extraordinária, tendo em vista o grau de independência que é atribuído ao

substituto. Neste sentido Fiss pondera que uma vez que o grupo é considerado vítima, se torna

claro que quem fala em seu favor não precisa e nem poderia ser uma das vítimas. O substituto do

grupo deve tomar uma posição desafiadora do status quo, agindo com coragem e firmeza. A

partir do Direito norte-americano, Fiss cita como exemplo uma ação desafiando a administração

de um presídio, situação em que os indivíduos se encontram em uma posição de exposição e

vulnerabilidade, “[...] que é uma crueldade insistir, como alguns juízes fizeram certa feita, em que

o representante era um membro individual do grupo que foi tratado com brutalidade por

carcereiros, por exemplo.”304

Por fim, cumpre analisar a possibilidade jurídica do pedido, na condição de terceira

condição da ação. No modelo clássico, o direito de ação pressupõe que o seu exercício visa obter

303 MOREIRA, op. cit., p. 83. 304 FISS, op. cit., p. 52.

112

uma providência jurisdicional, cuja pretensão, em abstrato, encontra-se tutelada ou regulada pelo

direito objetivo.305

Nas ações coletivas, a possibilidade jurídica do pedido deve assumir, segundo Venturi,

uma feição verdadeiramente universal, na medida em que tais ações admitem todo e qualquer tipo

de pedido, desde que considerado adequado para a tutela dos direitos e interesses meta-

individuais. Este entendimento decorre do que preconiza o art. 83306 do CDC e, por conseguinte,

na avaliação do autor, reputa-se intolerável “[...] quaisquer denegações de apreciação de

pretensões deduzidas por via de ações coletivas, seja em virtude da matéria envolvida, de sua

pretensa disponibilidade¸ ou de eventuais discussões que possam ser travadas no campo

doutrinário [...]”.307

Portanto, da análise das condições de admissibilidade da ação, de forma comparativa entre

a teoria clássica e a tutela jurisdicional coletiva, é possível concluir que os modelos não se

coadunam. Nenhuma das condições pode assumir nas demandas coletivas o mesmo perfil

organizado para vigorar no contexto das demandas individuais, onde prepondera o interesse das

partes em demonstrar suas próprias razões e obter um resultado favorável na solução da lide e,

somente indiretamente, o interesse do Estado na obtenção da pacificação social.308

Trata-se, portanto, de objetivos que se opõem àqueles traçados para a tutela coletiva.

Nesta, o processo visa disseminar e otimizar a prestação jurisdicional, anulando as barreiras de

acesso à justiça. Conforme complementa Venturi, neste cenário o processo coletivo,

[...] passa a ser compreendido como instrumento que almeja não apenas a pacificação, mas sobretudo a inclusão social, na exata medida em que viabiliza a efetiva atuação dos direitos individuais e sociais imprescindíveis à garantia da dignidade da pessoa humana, valor primeiro e último do Estado Democrático de Direito.309

305 SANTOS, Moacir Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 25. ed., vol. 2. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 178. 306 CDC, art. 83. Para a defesa dos direitos e interesses protegidos por este Código são admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela. 307 VENTURI, op. cit., p. 263. 308 Ibidem, p. 260. 309 Ibidem, p. 260.

113

Desse modo, resta evidenciado que os conceitos originários das condições de

admissibilidade da ação, a partir da teoria clássica, perdem sentido no âmbito processual coletivo.

Aliás, conforme já assinalava Grinover no ano de 1979, na seara da tutela coletiva o próprio

conceito de ação deve ser modificado. Aqui, o direito de ação deixa de ser compreendido

enquanto mera faculdade de requerer a tutela jurisdicional do Estado diante de um litígio, cuja

pretensão encontra-se abstratamente tutelada pelo direito material, e transforma-se “[...] em meio

de participação política, numa noção aberta de ordenamento jurídico, em contraposição à fechada

rigidez que deriva das situações substanciais tradicionais.”310

3.2 LITISPENDÊNCIA

O instituto processual da litispendência tem por objetivo impedir que tramitem ações

idênticas de forma concomitante nos Órgãos do Poder Judiciário, sendo consideradas idênticas

para efeitos de configuração do instituto, a partir do que dispõe o processo civil clássico, as ações

que contenham as mesmas partes, o mesmo pedido e a mesma causa de pedir. Diante da

comprovação de litispendência, o CPC orienta para a extinção do processo ajuizado

subseqüentemente ao original, sem resolução do mérito (art. 301, §§ 2º e 3º c/c art. 267, V do

CPC).

Na seara processual coletiva seria possível ocorrer duas formas de litispendência: a

primeira entre ações coletivas entre si (ação civil pública, mandado de segurança coletivo, ação

popular, ação civil coletiva, etc.); e a segunda entre ações coletivas e ações individuais. Porém,

nesta segunda hipótese, o CDC expressamente declara a sua inexistência, regulamentação que

aparentemente transmite simplicidade, mas que, na prática, tem apresentado implicações.

Para facilitar a exposição sobre o assunto, cumpre iniciar a análise da litispendência em

âmbito processual coletivo a partir da primeira hipótese ventilada.

310 GRINOVER, 1979, p. 70.

114

3.2.1 Litispendência entre ações coletivas

A litispendência entre ações coletivas entre si, na avaliação de Mancuso, traz

complicações maiores do que a concomitância entre ações coletivas e individuais, posto que nesta

hipótese “[...] a inexistência de litispendência fica mais evidente, e o manejo concomitante é

menos complexo [...]”. Para o autor, na litispendência entre ações coletivas os perigos redobram

em razão da projeção da coisa julgada nos planos lógico e prático, exigindo, por conseguinte, a

inexistência de contradição.311

A análise da litispendência na seara processual coletiva passa impreterivelmente pela

abordagem da forma de legitimidade ativa estabelecida para fins de propositura das ações

coletivas. Tal abordagem torna-se necessária na medida em que ainda vigora no Brasil o

entendimento de que inexiste litispendência entre ações coletivas, propostas por diferentes

entidades legitimadas, mesmo que tais ações apresentem idênticos pedidos e idêntica causa de

pedir.312

Com esta forma de tratamento conferida às ações coletivas que se repetem judicialmente,

é evidente que dificilmente haverá constatação de litispendência, já que outro legitimado poderá a

qualquer momento propor uma nova ação com o mesmo pedido e mesma causa de pedir, sem que

esta ação subseqüente seja considerada idêntica à primeira.

Resta evidenciado, portanto, que este tratamento segue ipsis litteris e de forma

equivocada, a lógica estabelecida pelo CPC para funcionar dentro de um sistema processual

individual, no qual é possível apurar que uma ação é idêntica à outra por meio dos elementos

partes, pedido e causa de pedir. Por conseguinte, nos processos coletivos, partindo da citada idéia

de que inexiste litispendência, basta que uma das partes não seja idêntica à outra, mesmo que

311 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A concomitância entre ações de natureza coletiva. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; WATANABE, Kazuo (coord.). Direito processual coletivo e o anteprojeto de código brasileiro de processos coletivos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 164. 312 Venturi cita decisão do TRF-1ª Região, na qual o Tribunal manifestou-se no sentido de que diante de diferentes autores, não há litispendência entre ação civil pública e ação popular. (VENTURI, op. cit., p. 341).

115

presente no rol dos legitimados ativos para propor ação igual àquela que encontra-se tramitando,

para que seja descartada a litispendência.313

Para demonstrar que tal entendimento é equivocado, diversas situações hipotéticas podem

ser apresentadas. Para fins ilustrativos, e amparando-se em Mancuso, cita-se o exemplo do

mandado de segurança coletivo impetrado por um dos legitimados na CF para assegurar o direito

líquido e certo dos advogados de sustentarem oralmente nos Tribunais antes do voto do Relator.

Pelo fato de esse interesse coletivo abranger toda a categoria profissional, não há espaço para

uma segunda ação coletiva, ainda que manejada por outro legitimado ativo. Neste caso, o autor

argumenta que a rigor, “[...] essa segunda ação coletiva seria repetitiva (...) caracterizando a falta

de interesse de agir, na medida que desnecessária e, a bem dizer, inútil.”314 Idêntico argumento é

apresentado por outros autores brasileiros, a exemplo de Grinover315 e de Mendes316.

As teses ora apresentadas decorrem do entendimento de que a aferição da litispendência

nos processos coletivos não deve reger-se pela análise de quem formalmente se apresenta como

autor, mas sim pela análise de quem é qualificado juridicamente na condição de detentor da

legitimidade ativa.317

Para maior clareza colaciona-se esclarecedor ensinamento de Marinoni e Arenhart, no

sentido de que os legitimados para as ações coletivas,

[...] não agem em defesa de direito próprio, mas sim alheio (legitimação extraordinária), pertencente à coletividade ou a certo grupo de pessoas. O sujeito material do processo, portanto, permanece sendo o mesmo, ainda que distintos os legitimados ‘formais’ para a ação. As ações são, por isso, iguais, havendo litispendência desde que sejam uniformes a causa de pedir e o pedido.318

Outro fator que deve ser observado e que Mendes trata com propriedade, diz respeito à

indivisibilidade apresentada pelos interesses difusos e coletivos stricto sensu enquanto

característica fundamental. A indivisibilidade que acarreta a impossibilidade de fracionamento do

313 VENTURI, op. cit., p. 330. 314 MANCUSO, 2007, p. 166. 315 GRINOVER, 2004, p. 940. 316 MENDES, 2002, p. 260. 317 VENTURI, op. cit., p. 331. 318 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual de processo de conhecimento: a tutela jurisdicional através do processo de conhecimento. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 789.

116

objeto da ação determina, por conseguinte, um tratamento e uma solução uniformes para o litígio.

Do contrário inúmeras decisões judiciais diversas ou contraditórias poderiam estabelecer padrões

de conduta incompatíveis, a exemplo de uma permissão e de uma proibição para o mesmo caso.

Por estas razões, conforme já mencionado, diante da identidade de pedido e causa de pedir, o

autor manifesta-se pela presença da litispendência, mesmo que diversos os autores legitimados.319

Portanto, o tratamento que deve ser conferido em caso de repetição de ações coletivas,

mesmo que de diferentes espécies (ação civil pública, ação popular, mandado de segurança

coletivo, etc.) e intentadas por diferentes entidades legitimadas, não pode ser o mesmo que

hodiernamente encontra-se no CPC, e que foi pensado para vigorar em um ambiente de ações

individuais.

Ao permitir que tramitem ao mesmo tempo mais de uma ação coletiva com idêntico

objeto e causa de pedir, ocorre um desvirtuamento da própria lógica e ideologia do sistema

processual coletivo, principalmente quando é levado em consideração a abrangência erga omnes

ou ultra partes de seus julgamentos.320

Por fim, é importante mencionar que diante da litispendência entre ações coletivas, a

dúvida sobre a fixação do foro e juízes competentes deve-se resolver pelo critério da prevenção.

Por oportuno, observa-se que a prevenção, neste caso, não segue os critérios estabelecidos pelo

CPC, no sentido de considerar prevento o juiz que despachou em primeiro lugar321 ou o juízo no

qual ocorreu a primeira citação válida322, conforme trate-se de mesma competência territorial ou

não, mas sim, o critério estabelecido pelo parágrafo único do art. 2º da LACP, o qual dispõe que

será considerado prevento o foro no qual ocorreu a propositura da primeira ação dentre as quais a

litispendência é atribuída.323

3.2.2 Litispendência entre ações coletivas e ações individuais

319 MENDES, 2002, p. 260. 320 VENTURI, op. cit., p. 334. 321 CPC, art. 106. Correndo em separado ações conexas perante juízes que têm a mesma competência territorial, considera-se prevento aquele que despachou em primeiro lugar. 322 CPC, art. 219. A citação válida torna prevento o juízo, induz litispendência e faz litigiosa a coisa (...). 323 MANCUSO, 2007, p. 171.

117

Na análise da litispendência entre ações coletivas e ações individuais, cumpre ressaltar,

inicialmente, que ao contrário do que ocorre com a litispendência de ações coletivas entre si que

não recebem qualquer forma diferenciada de tratamento legislativo, esta modalidade recebe

tratamento legal específico em âmbito processual coletivo. Por conseguinte, além das disposições

do CPC, o julgador deverá observar em primeiro plano o que prevê o art. 104 do CDC, o qual

dispõe em sua primeira parte que as ações coletivas, previstas nos incisos I e II do parágrafo

único do art. 81 do CDC, não induzem litispendência para as ações individuais.

Todavia, cumpre observar que o art. 104 do CDC apenas menciona a não incidência de

litispendência entre ações coletivas e individuais, nos casos dos incisos I e II do artigo 81 do

CDC, excluindo o inciso III que trata das ações que tutelam direitos individuais homogêneos. A

interpretação que vem sendo atribuída ao artigo aponta para um explícito erro de remissão, o

qual, inclusive, pode causar equívocos para quem o interpreta. O fundamento para tal

entendimento resulta do disposto no art. 103, § 2º do CDC, o qual prevê que a coisa julgada

material de uma ação coletiva que tem por objeto direitos individuais homogêneos, não incide

sobre indivíduos que não figuraram como litisconsortes na mesma, sendo-lhes lícito proporem

individualmente as respectivas ações de indenização. Com efeito, conclui-se que se em tais casos

não incide coisa julgada, da mesma forma não deve incidir litispendência, já que os dois institutos

apresentam natureza similar. Assim, entende-se que o artigo deva ser aplicado a todas as

categorias de ações coletivas, o que inclui, portanto, o inciso III do art. 81 do CDC.324

Concernente ao objetivo do art. 104 do CDC dentro do cenário processual coletivo,

conclui-se a partir da cristalina redação apresentada pelo mesmo, que nada mais é do que impedir

a indução de litispendência entre ações coletivas e ações individuais que apresentem o mesmo

pedido e, evidentemente, sejam oriundas da mesma causa de pedir.

É notório que a litispendência nos processos coletivos, segundo menção já realizada,

exerce a mesma função que lhe é peculiar na esfera do processo civil tradicional, ou seja, impedir

que o mesmo ou outro juiz processe e decida um processo idêntico a outro que encontra-se

tramitando. Todavia, segundo pondera Venturi, se a lógica da litispendência na seara do processo

individual está relacionada a um modelo que comporta a apresentação da pretensão individual por

324 VENTURI, op. cit., p. 346.

118

uma única vez, no âmbito das ações coletivas há que se atentar para o fato de que seus

proponentes (legitimados que atuam em regime extraordinário ou de substituição processual),

“[...] agem muitas vezes sem que os titulares das pretensões deduzidas sequer tenham

conhecimento da propositura da demanda, não ficando, por isso, impedidos de buscar proteção

jurisdicional pela via individual.”325

Logo, a hipótese de coexistência de ações coletivas e individuais é possível e aceito no

âmbito das ações coletivas. Conforme complementa o mesmo autor, a necessidade de criar

mecanismos adequados para a tutela jurisdicional dos chamados direitos coletivos, em sentido

lato sensu, levou o Brasil a editar uma legislação específica, não no intuito de sobrepô-la ao

sistema do processo civil tradicional, mas no de somá-la a esse. Entretanto, argumenta Venturi,

“[...] para que tal soma fosse viável, idealizou-se uma verdadeira fusão entre os sistemas de tutela

individual e coletiva, sendo estabelecidas, nesse objetivo, algumas regras de convivência

necessariamente observáveis para que a almejada interação sistemática ocorresse.” O autor ainda

complementa que uma das “regras de convivência” estabelecida encontra-se nos incisos e

parágrafos do art. 103 do CDC, a partir da qual, jamais haverá prejuízo às pretensões individuais

de acesso à justiça por aqueles que não tenham intervindo na ação coletiva na qualidade de

litisconsortes.326

Os argumentos de Venturi resultam do que prevê o § 3º do art. 103 do CDC, o qual faz

expressa referência às ações de indenização por danos pessoalmente sofridos e propostas

individualmente, e que, combinado com a redação do art. 104 do mesmo CDC, permite concluir

que antes ou após a propositura de uma ação coletiva, é permitido ao integrante da coletividade,

grupo, categoria, classe ou nas lesões a direitos individuais homogêneos, propor ação individual

com o mesmo pedido da ação coletiva, tema que será abordado em momento oportuno.

Há, contudo, outras questões contraditórias envolvendo a exclusão da litispendência entre

ações coletivas e ações individuais. A análise inicia pelas implicações envolvendo a matéria

quando concomitantemente tramitam ações coletivas e individuais em defesa de direitos difusos e

coletivos stricto sensu. Analisando tais situações, Grinover apresenta entendimento que permite

concluir que nestes casos, mesmo sem a existência do art. 104, incisos I e II, do CDC, o instituto 325 VENTURI, op. cit., p. 329. 326 Ibidem, p. 344.

119

da litispendência não poderia ser aplicado entre ações coletivas e individuais, isto porque, falta

um dos requisitos elencados pelo CPC para a devida configuração do instituto. Para a autora as

ações não são idênticas porque aqui “[...] o objeto dos processos é inquestionavelmente diverso,

consistindo nas ações coletivas na reparação ao bem indivisivelmente considerado, ou na

obrigação de fazer ou não fazer, enquanto as ações individuais tendem ao ressarcimento

pessoal.”327

Desse modo, a partir dos argumentos delineados por Grinover, seria possível concluir que

em se tratando de concomitância entre ações coletivas e ações individuais, cujo objeto são

direitos difusos ou coletivos stricto sensu, a própria natureza da matéria não permite incidir a

litispendência, tendo em vista a ausência do mesmo objeto, considerado requisito para

caracterizar a presença do instituto.

Ocorre que na hipótese apresentada pela autora, resta evidenciado que a pretensão

individual não apresenta o mesmo objetivo pretendido na ação coletiva, não havendo identidade

entre o objeto de uma e de outra. Todavia, nem sempre é possível identificar com a mesma

facilidade se as pretensões individuais deduzidas em juízo são efetivamente individuais.

Neste sentido, Watanabe adverte que não são todas as situações que permitem perceber se

a relação jurídica de direito material a que faz referência a ação individual, admite a formulação

de vários pedidos individuais da mesma espécie, “[...] ou se, acaso, pela sua natureza e

peculiaridade, é ela de natureza incindível, de modo que, em princípio, são inadmissíveis

postulações individuais.”328

O mesmo autor apresenta diversos exemplos práticos que permitem compreender melhor

os próprios argumentos. Para maior clareza, imagine-se que uma ação de cunho coletivo é

proposta por um dos legitimados extraordinários objetivando a cessação de determinada poluição

ambiental praticada por indústria, e que atinge, portanto, direitos difusos. Concomitantemente,

uma das vítimas propõe ação individual reclamando indenização por danos individualmente

sofridos, em razão da mesma poluição combatida na ação coletiva. Neste caso, é inegável que a

327 GRINOVER, 2004, p. 942. 328 WATANABE, Kazuo. Relação entre demanda coletiva e demandas individuais. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; WATANABE, Kazuo (coord.). Direito processual coletivo e o anteprojeto de código brasileiro de processos coletivos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 156.

120

pretensão individual é própria e inconfundível com a pretensão coletiva, sendo perfeitamente

compatível a tramitação de ambas. Porém, se na ação individual o autor (ou até mesmo outros

autores) veiculasse a pretensão de cessação da poluição, teria escopo coincidente com a ação

coletiva. Neste segundo caso, Watanabe esclarece que a ação individual teria esta conotação

apenas no sentido de que é proposta por um único indivíduo, mas a pretensão é de alcance

coletivo por beneficiar todas as pessoas que se encontram na mesma situação do autor individual,

sendo, portanto, suficiente, mesmo que de origem individual. Por fim, arremata o autor:

A conclusão de que impõe, à vista dessas considerações, é no sentido de que as ações individuais que veiculem a mesma pretensão da ação coletiva ou de uma outra ação individual como o mesmo escopo são inadmissíveis por significarem um bis in idem, que poderá dar origem a conflitos práticos, e não apenas lógicos, de julgados, o que o nosso ordenamento jurídico não tolera (daí os institutos da litispendência e da coisa julgada).329

Há, entretanto, outros posicionamentos mais críticos acerca da matéria ventilada,

principalmente quando envolve ações individuais e coletivas cujo objeto são direitos difusos e

coletivos stricto sensu, e que, em razão de sua pertinência, são trazidos ao presente trabalho. Em

que pese a redação cristalina do CDC excluindo a litispendência e dos diversos entendimentos

doutrinários acerca do assunto, Mendes é enfático ao dizer que a hipótese do art. 104 do CDC,

“[...] só é possível de aplicação em relação aos direitos ou interesses individuais homogêneos,

estes, sim, plenamente divisíveis.” Entende o autor que a indivisibilidade apresentada pelos

interesses difusos e coletivos stricto sensu enquanto característica fundamental, acarretam a

impossibilidade de fracionamento do objeto da ação e, por conseguinte, determinam tratamento e

solução uniformes para o litígio.

Do contrário inúmeras decisões judiciais diversas ou contraditórias poderiam estabelecer

padrões de conduta incompatíveis. Por conseguinte, o autor conclui que o que parece “[...]

inadmissível, em sede de interesses difusos e coletivos, é a possibilidade ventilada pelo art. 104,

de cabimento e coexistência de ações coletivas e individuais, como se o objeto em questão

estivesse sujeito ao desmembramento.”330

329 WATANABE, 2007, p. 157. 330 MENDES, 2002, p. 261.

121

Neste mesmo sentido, Watanabe pondera que a solução que seria mais apropriada, é

aquela que proíbe demandas individuais referidas a uma relação jurídica global incindível.

Porém, o autor complementa que “[...] a suspensão dos processos individuais poderá, em termos

práticos, produzir efeitos bem próximos da proibição, se efetivamente for aplicada pelo juiz da

causa.”331 E, sabemos, a proibição é contrária ao direito constitucional que assegura acesso ao

Judiciário e à justiça (princípio da inafastabilidade).332

Mesmo defendendo a idéia de que o art. 104 do CDC somente “[...] é passível de

aplicação em relação aos direitos ou interesses individuais homogêneos [...]”, Mendes argumenta

que, ainda nesta situação, o dispositivo merece severa crítica, a qual, ao que parece, tem como

pressuposto uma valorização das ações coletivas em detrimento das ações individuais. Mendes

observa que a experiência do Direito Comparado utiliza dois sistemas de vinculação dos

indivíduos ao processo coletivo: o primeiro de inclusão, no qual os interessados deverão requerer

o seu ingresso até determinado momento; e o segundo de exclusão, pelo qual os membros

ausentes devem solicitar o desacoplamento do litígio coletivo, dentro de um prazo fixado pelo

juiz.333

Ocorre que no Brasil o CDC não adotou nenhum dos dois métodos. Para Mendes o

sistema de exclusão se mostra mais eficiente, no sentido de garantir tratamento coletivo para

questões comuns, efetiva economia processual, acesso à justiça e fortalecimento das ações

coletivas. Por conseguinte, sem o direito ou obrigação de exclusão, os interesses menores acabam

minando o sentido das ações coletivas. Para o autor,

A realidade dos últimos anos fala por si só: embora tenham sido ajuizadas ações coletivas, nenhuma delas foi capaz de conter a verdadeira sangria de ações individuais que foram ajuizadas (...) em praticamente todos os casos mencionados, foram centenas e milhares de processos individuais instaurados, sem que as ações coletivas tenham de fato cumprido seu papel.334

O autor conclui que o correto equacionamento do problema apresentado pela

litispendência entre ações coletivas e ações individuais, oriundas de direitos individuais

331 WATANABE, 2007, p. 160. 332 CF, art. 5º, XXXV – A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. 333 MENDES, 2002, p. 261. 334 Ibidem, p. 261-262.

122

homogêneos, seria o estabelecimento de um efetivo sistema de exclusão, acompanhado do

controle de representatividade adequada, medida que lhe parece essencial para que a tutela

coletiva alcance seus objetivos.335

Não é, porém, esta situação que pode ser considerada “a ideal” que vigora no Brasil, já

que o País apenas adotou a possibilidade de ingresso do interessado no processo na condição de

litisconsorte, cuja análise será efetuada em momento oportuno, juntamente com os efeitos da

coisa julgada em sede de ações coletivas.

No que tange a litispendência entre ações coletivas e ações individuais que tutelam

direitos individuais homogêneos, vigora uma situação diferente daquela encontrada nas ações de

defesa de direitos difusos e coletivos stricto sensu, onde o objeto do processo coletivo é diferente

do objeto da ação individual. Grinover complementa que nos direitos individuais homogêneos o

que se tem é uma ação coletiva que visa a reparação dos indivíduos pessoalmente lesados, cujo

objeto do processo é a condenação genérica, visando indenizar as vítimas pelos danos que lhes

foram causados. Para a autora o pedido da ação coletiva já contém os pedidos individuais,

formulados nas distintas ações reparatórias, no que respeita ao reconhecimento do dever de

indenizar. E mais. Segundo Grinover em se tratando de direitos individuais homogêneos há

identidade de sujeitos ativos entre as ações coletivas e as ações individuais, sendo que tal

identidade resulta “[...] da circunstância de que o legitimado à ação coletiva é o adequado

representante de todos os membros da classe, sendo portador, em juízo, dos interesses de cada

um e de todos.” Desse modo, para a autora, o que “talvez” exista nesta hipótese é uma nova

espécie de continência, considerando que o legitimado ativo para a ação coletiva abrange todos

seus titulares, a identidade de causa de pedir é evidente, e o objeto da ação coletiva é mais amplo

e abrange o das ações individuais.336

Outra sugestão da autora, diante da impossibilidade de reunião dos processos, a partir

desta “nova espécie de continência”, seria então, de forma alternativa, a suspensão dos processos

individuais pelas regras da prejudicialidade, ou seja, mediante aplicação do que dispõe o art. 265,

335 MENDES, 2002, p. 262. 336 GRINOVER, 2004, p. 944.

123

IV, a, do CPC337, todas as ações individuais ficariam suspensas pelo período de um ano, prazo

previsto no art. 265, § 5º, do CPC. Decorrido este período, complementa Grinover, “[...] as ações

individuais de responsabilidade civil deverão retomar seu curso, numa fiel aplicação dos

dispositivos do estatuto processual civil.”338

Doutrinariamente, tal proposição recebe opiniões contrárias, e a principal delas vem de

Gidi, que entende, inicialmente, não haver continência entre as ações coletivas e ações

individuais que tutelam direitos individuais homogêneos, pela simples razão de que

conjuntamente, é inviável comparar os elementos objetivos que as compõem, isto é, as partes, o

pedido e a causa de pedir. Também não dá para reconhecer, segundo Gidi, a existência das regras

de prejudicialidade entre as ações, primeiro porque a decisão da ação coletiva não poderá

interferir (nem para beneficiar e nem para prejudicar) no andamento e decisão da ação proposta

individualmente, caso o autor desta decida mantê-la tramitando, mesmo com a possibilidade de

suspendê-la conforme lhe faculta o art. 104 do CDC; e segundo porque não dá para reconhecer as

regras de prejudicialidade entre as ações coletivas e as ações individuais processadas, pelo fato de

que as partes não são as mesmas.339

Desse modo, quanto à suspensão ex officio do processo individual proposta por Grinover,

consubstanciada na idéia de prejudicialidade entre as ações, Gidi conclui que “[...] não se poder

constranger o consumidor a ter o seu processo compulsória e inelutavelmente suspenso, contra a

sua vontade (...) para, ao depois, vê-lo compulsória e inelutavelmente retomar o seu curso

[...]”.340 Assim, o que deve ocorrer é a manutenção dos dois ou mais processos, e para evitar

decisões contraditórias, orienta-se pela adoção do instituto da conexão, conforme será

evidenciado adiante.

Portanto, dos argumentos apresentados na análise da litispendência, tanto entre ações

coletivas entre si e ações coletivas e ações individuais, resta evidenciado que o instituto precisa

ser adequado aos princípios, finalidades e características dos processos coletivos. Neste sentido

argumenta Mendes, alertando que sob a ótica do processo civil clássico, a litispendência é um

337 Entre outros motivos apresentados, prevê o citado dispositivo do CPC que suspende-se o processo quando este depender do julgamento de outra causa. 338 GRINOVER, 2004, p. 946. 339 GIDI, Antonio. Coisa julgada e litispendência em ações coletivas. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 210. 340 Ibidem, p. 210.

124

instituto que está intimamente relacionado à condição de parte no processo, enquanto que nos

processos coletivos, as partes, no pólo ativo, agem em defesa de interesses alheios, na forma de

legitimação extraordinária ou de substituição processual.341

Trata-se, portanto, de um instituto que foi pensado e organizado para vigorar no âmbito

do processo individual, onde se compreende por parte a pessoa que for sujeita da relação jurídica

de direito material trazida a juízo e onde a lógica da litispendência está arquitetada para receber a

pretensão individual em uma única oportunidade, ao contrário da lógica pensada para as ações

coletivas, que em razão de certas peculiaridades permite, expressamente, a concomitância de

ações coletivas e individuais.

Porém, esta lógica, resultante do que disciplina o art. 104 do CDC, tem provocado

embaraços à justiça. Entre os diversos autores que chamam a atenção para este fato está

Watanabe, que complementa o argumento esclarecendo que os embaraços resultam da repetição

absurda de demandas coletivas e de pseudodemandas individuais, “[...] cuja admissão, em vez de

representar uma garantia de acesso à justiça, está se constituindo em verdadeira denegação da

justiça devido à reprodução, em vários juízos do País, de contradição prática de julgados [...]”.342

Desse modo conclui-se que, a exemplo do que ocorre com as condições de

admissibilidade da ação, a partir da teoria clássica, perdem sentido no âmbito processual coletivo

as disposições relacionadas à litispendência, ao ponto de podermos considerar, parafraseando

Venturi, que a aplicação do instituto na esfera processual coletiva é digna de perplexidade, tendo

em vista, principalmente, as constantes e relevantes dúvidas que recaem sobre a matéria.343

Este é, portanto, mais um exemplo que demonstra a necessidade de criação de uma Teoria

Geral dos Processos Coletivos, com institutos pensados para vigorar dentro de uma nova

realidade processual que, definitivamente, não se coaduna com a realidade do processo civil

individual.

3.3 CONEXÃO E CONTINÊNCIA 341 MENDES, 2002, p. 258. 342 WATANABE, 2007, p. 160. 343 VENTURI, op. cit., p. 328.

125

Os institutos da conexão e continência são originários do princípio da economia

processual, o qual preconiza a realização mínima de atividades processuais, com o máximo de

resultado na atuação do direito.

A conexão no processo civil clássico resulta da identidade de objeto ou da causa de pedir,

presente em duas ou mais ações, enquanto que a continência resulta da identidade das partes e da

causa de pedir, mas o objeto de uma das ações, por ser mais amplo, abrange o das outras. As

identidades mencionadas fazem com que as ações conexas e continentes sejam conhecidas e

decididas pelo mesmo juiz.

Na seara privada, a conexão e a continência proporcionam para as partes as vantagens de

menor onerosidade e maior celeridade na tramitação e julgamento do processo, já que o mesmo

juiz realizará de forma concomitante, atos que são comuns para os processos. No que tange a

ordem pública, os institutos são importantes porque evitam sentenças contraditórias,

considerando que todas as ações conexas e continentes serão julgadas pelo mesmo juiz.344

A exemplo do que ocorre com a litispendência, a presença da conexão nas demandas

coletivas também pode ser verificada de duas formas distintas, sendo a primeira entre ações

coletivas entre si; e a segunda entre ações coletivas e ações individuais. Todavia, ao contrário do

que ocorre com a litispendência, pelo menos na segunda hipótese, em razão do disposto no art.

104 do CDC, não há tratamento legal específico para o instituto da conexão na esfera processual

coletiva, restando, por conseguinte, a necessidade de aplicação subsidiária do que dispõe o CPC

acerca da matéria, tendo em vista o que prevê o art. 90 do CDC.345

Do mesmo modo não há na esfera processual coletiva tratamento específico para o

instituto da continência, que ao contrário do que ocorre com a conexão, somente pode ser

constatado entre ações coletivas entre si. A impossibilidade de continência entre uma ação

coletiva e outra individual, resulta da ausência de identidade de partes, considerado requisito

necessário para a configuração do instituto, já que o interessado individualmente considerado não

possui no Direito brasileiro, legitimidade para propor uma ação coletiva.

344 SANTOS, M. A., op. cit., p. 264. 345 CDC, art. 90. Aplicam-se às ações previstas neste Título as normas do Código de Processo Civil e da Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985, inclusive no que respeita ao inquérito civil, naquilo que não contrariar suas disposições.

126

Contudo, nunca é o bastante chamar a atenção para o fato de que o tratamento destes

temas no CPC visa contemplar uma jurisdição individual, envolvendo interesse pessoal das

partes. Logo, acautela Mancuso, “[...] não se podem transplantar, sic et simpliciter, aqueles

elementos para ambiente processual bem diverso, como é o da jurisdição coletiva, onde se cuida

de interesses metaindividuais, concernentes a sujeitos indeterminados, sendo indivisível o objeto

litigioso.”346

No que tange a ocorrência de conexão e continência entre ações coletivas, Venturi

argumenta que “[...] não será pelo fato de se tratar de demandas nominalmente distintas (ação

civil pública, ação popular, mandado de segurança coletivo, ação de improbidade administrativa,

etc.) [...]” que deixará de existir as relações entre todas elas e, conseqüentemente, a reunião

perante o mesmo juízo prevento. Este entendimento de Venturi resulta, além de decisões oriundas

de Órgãos do Judiciário347, do disposto no parágrafo único do artigo 2º da LACP348, o qual

estabelece o critério a ser adotado para fins de reunião de processos coletivos idênticos ou

similares. Para o autor esta regra da LACP “[...] pertence ao microssistema de tutela coletiva e,

portanto, aplicável a todas as hipóteses de conexão ou continência entre quaisquer ações

coletivas, ainda que de espécies diferentes.”349

Visando evidenciar a possibilidade de ocorrer conexão e continência entre ações

coletivas, mesmo que de origens diferentes, busca-se em Mazzilli dois exemplos práticos. No

primeiro, de conexão, o autor diz que é possível uma associação civil propor ação civil pública

visando o encerramento das atividades de uma empresa que polui, e, paralelamente, o Ministério

Público propor outra ação civil pública contra a mesma empresa, visando obter condenação na

obrigação de fazer, no sentido de colocar um filtro adequado na chaminé da fábrica. Neste caso,

as ações apresentam identidade na causa de pedir, porém, com pedidos diversos, caracterizando a

conexidade.

346 MANCUSO, 2007, p. 167. 347 O autor cita decisão do TRF-1ª Região, 1ª Seção (DJU 22.3.1999), na qual o Tribunal manifestou-se no sentido de que entre uma ação civil pública e uma ação popular, não se recusa a conexão em função dos nomes com que sejam rotuladas. (VENTURI, op. cit., p. 340). 348 LACP, art. 2º, parágrafo único – A propositura da ação prevenirá do juízo para todas as ações posteriormente intentadas que possuam a mesma causa de pedir ou o mesmo objeto. 349 VENTURI, op. cit., p. 340.

127

No segundo, adaptando-se o exemplo para o instituto da continência, imagine-se que uma

associação civil propõe ação civil pública visando o fechamento de uma empresa que polui, e

simultaneamente o Ministério Público ajuíza outra ação civil pública, também visando, por

idêntico motivo, o fechamento da mesma empresa, porém, acrescentando o pedido de

indenização pelos danos já causados. Neste caso, a causa de pedir é a mesma, contudo, o pedido

da segunda é mais abrangente do que a primeira, caracterizando, por conseguinte, o instituto da

continência.350

No segundo exemplo, que trata da continência, já foi mencionado que a identidade das

partes também é requisito exigido pelo CPC para a configuração do instituto. Sobre este assunto,

remetemos o leitor para o estudo da litispendência, onde o tema já foi abordado com maior

profundidade, no sentido de esclarecer qual o entendimento que predomina quando diferentes

legitimados para ações coletivas ajuízam ações idênticas ou assemelhadas. Contudo, cumpre

relembrar, mesmo que de forma breve, o esclarecedor ensinamento de Marinoni e Arenhart, no

sentido de que nestes casos os legitimados não agem em defesa de direito próprio, mas sim de

direito alheio, sendo que o sujeito material do processo permanece sendo o mesmo, ainda que

distintos os legitimados formais.351 Desse modo, os autores devem ser considerados iguais para

efeitos de litispendência e continência.

Quanto à hipótese de conexão entre ações coletivas e individuais, a própria inexistência de

litispendência entre tais ações, vedada pelo art. 104 do CDC, reforça a ocorrência do instituto na

esfera processual coletiva. Para Venturi, a reunião de processos coletivos e individuais, cuja

identidade apresenta-se parcial, é considerada medida salutar, na medida em que favorece a

efetividade da tutela jurisdicional, viabiliza o processamento e julgamento simultâneo das

demandas conexas, e afasta aquilo que para o autor é, talvez, o “[...] mais grave problema

enfrentado pelo sistema de tutela coletiva, qual seja, o da contradição lógica entre os

julgamentos.”352

Embora a legislação que compõe o microssistema processual coletivo nada ventile sobre a

possibilidade de conexão entre ações individuais e coletivas, já que o parágrafo único do art. 2º

350 MAZZILLI, op. cit., p. 229. 351 MARINONI, ARENHART, op. cit., p. 789. 352 VENTURI, op. cit., p. 360.

128

da LACP apenas faz menção ao critério de reunião das ações coletivas entre si quando guardem

relação de pertinência objetiva, uma interpretação sistemática e teleológica permite concluir que

esta solução é plenamente viável diante da aplicação subsidiária do disposto no CPC, o qual

regula, mesmo que dentro de um universo de ações individuais, a reunião de ações conexas.353

Considerando, portanto, as diversas possibilidades de conexão, continência ou

litispendência no âmbito processual coletivo, torna-se importante que no momento de propor uma

ação coletiva, seus elementos objetivos (pedido e causa de pedir) estejam devidamente fixados ou

fixados com exatidão, isto porque, complementa Watanabe, são esses dados que irão determinar

o legitimado passivo da ação, a correta fixação da abrangência da demanda e, o que mais nos

interessa neste momento, “[...] se, no caso concreto, ocorre mera conexidade entre as diversas

ações coletivas ou, ao contrário, se trata de caso de litispendência ou até mesmo de coisa julgada

a obstar o prosseguimento das ações posteriores.”354

Por fim, cumpre efetuar uma análise acerca do critério que deve ser empregado pelo

Judiciário para reunir ações conexas ou continentes. Já foi mencionado que a presença dos

institutos entre ações coletivas entre si, mesmo que nominalmente distintas, deve resultar na

reunião dos processos perante o mesmo juízo, no caso, o juízo prevento, e que este entendimento

resulta do disposto no parágrafo único do artigo 2º da LACP, o qual deixa consignado de forma

expressa que a simples propositura de uma ação (entenda-se coletiva) prevenirá a jurisdição do

juízo para todas as outras ações coletivas posteriormente intentadas com mesma causa de pedir

ou mesmo pedido.

Portanto, a LACP nada menciona sobre o critério a ser utilizado quando a conexão ocorre

entre ações coletivas e individuais. Todavia, o entendimento que vem sendo atribuído à hipótese,

aponta para a aplicação do mesmo critério estabelecido para a reunião de ações coletivas, no

sentido de que as ações devam ser reunidas perante o juízo prevento, porém, com uma diferença

substancial. Aqui, segundo Venturi, são as ações individuais que deverão migrar para o juízo no

qual tramita a ação coletiva, tendo em vista a natureza absoluta da competência das ações

coletivas em detrimento da natureza relativa da competência do juízo das ações individuais,

mesmo que esta seja precedente àquela. Neste sentido complementa o autor: 353 VENTURI, op. cit., p. 360-361. 354 WATANABE, 2004, p. 807-808.

129

Desta forma, apesar da eventual precedência do processamento de ações individuais em relação a uma ação coletiva que lhes seja objetivamente pertinente, é o juízo da demanda coletiva (fixado pelo local do dano, recorde-se) que atrai todas as individuais para fins de julgamento simultâneo [...].355

Desse modo, restam demonstrados os principais problemas que afetam os institutos da

conexão e da continência na esfera processual coletiva, oriundos, principalmente, da ausência de

regulamentação específica, o que obriga os Órgãos do Judiciário a aplicar as disposições do CPC,

e que foram pensadas para vigorara em um cenário de ações individuais e que envolve meros

interesses pessoais das partes.

Há que se levar em consideração as significativas diferenças que há entre os objetos de

uma ação coletiva e de uma ação individual. Para estas foram arquitetados conceitos de

conexidade e continência extremamente rígidos, e que em razão de todos os fatores já

apresentados, dificultam a identificação dos processos coletivos, embaraçando a necessária

reunião dos mesmos.356

3.4 SENTENÇA E COISA JULGADA

De todos os institutos processuais, sem qualquer margem de dúvida, encontra-se em lugar

de destaque a falta de conformidade que há entre os postulados dos efeitos da sentença na seara

do processo civil tradicional e aqueles encontrados no âmbito processual coletivo, tendo em vista

a completa falta de compatibilidade entre as lógicas de um e de outro processo.

Inicialmente, é importante relembrar que no modelo do processo civil clássico, a sentença

somente estende seus efeitos, após atingir o status de coisa julgada, a aqueles que são

considerados partes do processo, não beneficiando e nem prejudicando terceiros.357 Tratam-se

dos chamados limites subjetivos da coisa julgada que, conforme evidencia o próprio dispositivo

355 VENTURI, op. cit., p. 362. 356 GRINOVER, 2007, p. 13. 357 CPC, art. 472. A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando terceiros (...).

130

do CPC, não podem ultrapassar aqueles que são considerados partes do processo, ou seja, as

pessoas que pedem a tutela jurisdicional (autores) e aquelas contra quem os pedidos são

formulados (réus).358

A análise de quem é considerado parte no processo civil tradicional faz retomar, mesmo

que brevemente, o estudo já elaborado acerca das legitimidades ativa e passiva dentro deste

mesmo cenário, em cuja ótica, somente serão partes aqueles que detiverem a condição de

legitimados ativos e passivos. Neste sentido esclarece Santos:

[...] o autor deverá ser titular do interesse que se contém na sua pretensão com relação ao réu. Assim, à legitimação para agir em relação ao réu deverá corresponder à legitimação para contradizer deste em relação àquele. Ali, legitimação ativa; aqui, legitimação passiva.359

Portanto, a exemplo dos demais institutos, no Código de Processo Civil brasileiro a coisa

julgada também está inserida em um universo de litígios individuais, posto que filiada ao sistema

processual romanístico, no qual o interesse de agir era pessoal, conferido de modo exclusivo ao

respectivo titular do direito tutelado.360

Logo, não é difícil perceber que a lógica da coisa julgada na seara do processo clássico

não pode ser a mesma aplicada aos processos coletivos, onde os legitimados ativos atuam, em

nome próprio, na condição de substitutos processuais dos verdadeiros titulares dos direitos ou

interesses pleiteados judicialmente. Trata-se da já abordada legitimidade extraordinária, por meio

da qual um substituto processual devidamente autorizado pela CF ou lei, estará em juízo

defendendo interesse de terceiros e que não fazem parte da relação processual.

Para Venturi, numa concepção de prestação jurisdicional que recai sobre direitos

individuais, é logicamente aceitável que a decisão não possa estender seus efeitos a terceiros,

nem para prejudicar nem para beneficiar, mesmo porque, trata-se de um julgamento alheio e em

linha de princípio, terceiros não teriam vinculação direta com a relação jurídica de direito

material discutida judicialmente. Contudo, no âmbito da tutela coletiva que incide sobre

pretensões indivisíveis, complementa o autor,

358 SANTOS, M. A., op. cit., p. 356. 359 Ibidem, p. 179. 360 MANCUSO, 2003, p. 295-296.

131

[...] a titularidade supra-individual do direito referente a pessoas que não têm condições de comparecer pessoalmente ao procedimento judicial torna, a um só tempo, extremamente ambígua a própria conceituação de terceiros e absolutamente insatisfatória a fórmula do confinamento da coisa julgada às partes.361

Por conseguinte, parafraseando Gidi, anota-se que os limites da coisa julgada são

considerados um dos elementos mais importantes em uma legislação processual coletiva, isto

porque, ao mesmo tempo em que se deve promover um fim para as controvérsias coletivas, “[...]

deve-se reconhecer que os interesses de pessoas ausentes estão em jogo e devem ser

protegidos.”362 É por isso que ao disciplinar os efeitos da sentença dentro dos processos coletivos,

o legislador brasileiro deixou expressamente consignado que produzirá efeitos erga omnes a

sentença que tiver por objeto os direitos difusos e individuais homogêneos; e efeitos ultra partes

a sentença que tiver por objeto os direitos coletivos stricto sensu.363

Da leitura dos incisos I, II e III do artigo 103 do CDC, verifica-se que o legislador tratou

de modo diverso os efeitos da coisa julgada quando o objeto da ação são direitos difusos ou

coletivos stricto sensu e quando o objeto é direito individual homogêneo. Assim, para facilitar a

explanação e conseqüente compreensão acerca do assunto, tendo em vista as peculiaridades

apresentadas em cada caso, cumpre analisar, inicialmente, os efeitos nas duas primeiras

categorias citadas e, por fim, os efeitos quando a tutela recai sobre direitos individuais

homogêneos.

Analisando os incisos I e II do art. 103 do CDC, observa-se que a única diferença que há

em termos de redação entre os mesmos, encontra-se nas expressões erga omnes, que é aplicada

aos direitos difusos, e ultra partes quando a coisa julgada atinge direitos coletivos em sentido

estrito. A título de observação, cumpre mencionar que até o advento do CDC, a expressão erga

361 VENTURI, op. cit., p. 382. 362 GIDI, 2007, p. 282. 363 CDC, art. 103. Nas ações coletivas de que trata este Código, a sentença fará coisa julgada: I – erga omnes, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação, com idêntico fundamento, valendo-se de prova, na hipótese do inciso I do parágrafo único do art.81; II – ultra partes, mas limitadamente ao grupo, categoria ou classe, salvo improcedência por insuficiência de provas, nos termos do inciso anterior, quando se tratar de hipótese prevista no inciso II do parágrafo único do art. 81; III – erga omnes, apenas no caso de procedência do pedido, para beneficiar todas as vítimas e seus sucessores, na hipótese do inciso III do parágrafo único do art. 81.

132

omnes era indistintamente utilizada para fazer referencia à incidência da coisa julgada em

qualquer ação coletiva, independentemente de tutelar direito difuso ou coletivo stricto sensu.364

A partir de Mendes constata-se inicialmente que nos dois casos a extensão decorre da

indivisibilidade do objeto, na medida em que não poderá haver fracionamento em relação aos

interessados. O autor complementa que em relação aos direitos coletivos em sentido estrito, o

dispositivo do CDC (também em função da indivisibilidade), não limitou os efeitos aos

associados ou filiados, mas a todo o grupo, categoria ou classe. Do contrário, complementa

Mendes, “[...] os interesses seriam divisíveis e qualificáveis como individuais homogêneos,

recebendo tratamento diverso, ainda que, para fins de propositura da ação, haja organização

identificável com grupo, categoria ou classe.”365

Portanto, a expressão ultra partes significa que a coisa julgada da sentença somente

abrange os integrantes do grupo, categoria ou classe titular do respectivo direito ou interesse

coletivo, objeto da decisão. A utilização de tal expressão, adverte Venturi, foi utilizada a partir de

dois aspectos: primeiro para diferenciar-se de erga omnes, que é empregada em um cenário de

pessoas indeterminadas ou indetermináveis (tendo em vista a natureza dos direitos difusos),

enquanto que ultra partes está inserida em universo de pessoas determinadas ou determináveis,

posto que ligadas a grupos, categorias ou classes, caracterizando, por conseguinte, os direitos

coletivos stricto sensu; e segundo, conforme já mencionado a partir de Mendes, para esclarecer

que os beneficiários da tutela jurisdicional são todos os que, embora não ligados formalmente à

entidade de classe representativa, pudessem ser considerados “[...] integrantes do mesmo grupo,

pela identidade do regime jurídico comungado por todos os seus componentes.”366

Contudo, Gidi chama a atenção para o fato de que, ontologicamente, a distinção

empregada pelo CDC efetivamente não existe. Segundo o autor, os incisos do art. 103 do CDC

“[...] poderiam ter sido redigidos de duas formas dogmaticamente indiferentes, no que diz com as

expressões latinas empregadas (erga omnes ou ultra partes), que acarretariam, inelutavelmente, a

mesma e uma única interpretação.”367

364 VENTURI, op. cit., p. 390. 365 MENDES, 2002, p. 263. 366 VENTURI, op. cit., p. 390. 367 GIDI, 2007, p. 108.

133

Em que pese a existência dessa discussão, o aspecto mais importante a ser analisado

acerca do assunto, guarda relação com a coisa julgada material e com a coisa julgada formal,

tendo em vista as exceções apresentadas pelos incisos I e II e do art. 103 do CDC, os quais,

expressamente, ressalvam os efeitos erga omnes e ultra partes, se o pedido for julgado

improcedente por falta de provas. Da cristalina redação apresentada pelos dispositivos, fácil é

concluir que somente nos casos em que o processo for extinto sob fundamento de que o conjunto

probatório é insuficiente, torna-se possível a qualquer legitimado (autores ideológicos) intentar

outra ação com idêntico fundamento, desde que, evidentemente, apresente novas provas para não

incorrer no mesmo erro. Resultando a improcedência do pedido de fatos infundados, segundo

avaliação alcançada pelo Judiciário após pertinente e adequada instrução probatória dos autos, a

coisa julgada também produzirá efeitos erga omnes e ultra partes. Neste sentido, Ferreira observa

que havendo decisão de improcedência do pedido por qualquer outro motivo que não seja

insuficiência de prova,

[...] ocorrerá coisa julgada material, mas limitada aos autores ideológicos. Sendo assim, nenhum outro co-legitimado poderá propor nova ação coletiva sobre o mesmo fato, com o mesmo pedido e a mesma causa de pedir, proibição essa que, entretanto, não atinge os interesses individuais dos integrantes da coletividade, aos quais é permitido o ajuizamento de ações individuais para resguardar esses interesses [...].368

No Brasil, há autores que entendem necessário que o juiz deixe devidamente consignado

na sentença, que o motivo da improcedência do pedido é, efetivamente, a insuficiência de provas.

Neste sentido Mancuso argumenta que em tais casos é dever do juiz “[...] consignar

expressamente essa circunstância no dispositivo do julgado [...]”, já que este é um critério legal

especialíssimo que derroga do sistema comum e, para sua incidência, exige que o próprio

julgador esclareça que está julgando conforme o estado do processo.369

Deste modo, levando em consideração esta análise, a incidência ou não da coisa julgada

nas ações coletivas que têm por objeto direitos difusos ou coletivos em sentido estrito, dependeria

necessariamente de afirmação expressa na decisão, no sentido de esclarecer se a improcedência

do pedido resulta ou não da insuficiência de provas. Significa dizer que se o juiz afirmasse na

fundamentação e dispositivo da sentença que a decisão resulta de insuficiência de provas, não

368 FERREIRA, op. cit., p. 112. 369 MANCUSO, 2003, p. 308-309.

134

haveria incidência de coisa julgada; do contrário, se afirmasse que a improcedência resulta de

suficiente conjunto probatório, haveria incidência de coisa julgada.370

Gidi critica este entendimento, considerando que em muitos casos o juiz não tem como

saber se alguma prova relevante não lhe foi apresentada. Por esta razão, propõe o autor: “[...] se a

qualquer momento depois da decisão uma nova prova for descoberta que possa alterar a decisão

do caso, a ação coletiva poderá ser reproposta.” Gidi entende que esta interpretação é imperativa

para que a norma seja efetiva “[...] e não seja indevidamente limitada por uma exigência que não

está na lei nem deriva do bom senso.”371

Portanto, duas propostas são apresentadas. A primeira sugere que o juiz explicite na

própria sentença se a rejeição é ou não oriunda de insuficiência de provas; e a segunda no sentido

de aceitar que uma nova prova possibilite ao juiz modificar o resultado da primeira ação coletiva,

desde que, obviamente, uma nova prova lhe seja apresentada.

No que tange aos direitos individuais homogêneos, o CDC também determina que a

sentença faz coisa julgada erga omnes, porém, apenas no caso de procedência do pedido para

beneficiar todas as vítimas e seus sucessores. Com efeito, no que tange a tais direitos, o CDC

apresenta uma diferença substancial em relação ao modelo adotado para os direitos

essencialmente coletivos.

Conforme já analisado, tratando-se dos direitos difusos e coletivos em sentido estrito, o

CDC expressamente ressalva dos efeitos erga omnes e ultra partes oriundos da sentença,

respectivamente, se o pedido for julgado improcedente por falta de provas, o que possibilita a

qualquer legitimado intentar outra ação com idêntico fundamento, desde que munido de novos

meios probatórios.

Ao disciplinar os direitos individuais homogêneos, o CDC não apresenta a mesma

ressalva. Por conseguinte, esclarecem Wambier e Wambier, tenha ou não a sentença decorrido de

insuficiência de provas, “[...] não gera eficácia vinculativa para os outros legitimados de que fala

370 VENTURI, op. cit., p. 387. 371 GIDI, 2007, p. 285-286.

135

o art. 82, que poderão repropor a ação coletiva para a defesa dos direitos individuais

homogêneos.”372

O sistema adotado pelo legislador é motivo de crítica da doutrina especializada. Para

Mendes “[...] o julgamento contrário à parte que efetuou a defesa coletiva não produzirá efeitos

erga omnes, o que merece ser criticado, pois viola o princípio da isonomia.” O autor ainda

complementa que é desproporcional a diferenciação dos efeitos, posto que no julgamento dos

direitos individuais homogêneos não é levado em consideração motivo significativo, como a falta

ou insuficiência de provas, a exemplo do sistema adotado para os direitos difusos e coletivos em

sentido estrito (CDC, art. 103, incs. I e II).373

Neste mesmo sentido argumenta Gidi, sendo enfático ao afirmar que “Não há qualquer

justificativa para essa diferenciação: andou mal o legislador brasileiro em distinguir situações por

tudo semelhantes.”374 Portanto, nenhuma reserva foi apresentada pelo legislador, e qualquer que

seja o motivo do julgamento contrário à parte que efetuou a defesa coletiva, não haverá efeitos

erga omnes e, logo, a mesma ação coletiva poderá ser novamente ajuizada.

3.4.1 A coisa julgada nos casos de intervenção do interessado no processo

No sistema dos processos coletivos adotado no Brasil, após a propositura de ação civil

coletiva, deve ocorrer a publicação de edital em órgão oficial, possibilitando aos interessados a

intervenção no processo na condição de litisconsortes375. Esta sistemática, conforme alerta

Venturi, somente faz referencia às ações que visam a tutela de direitos com origem comum, ou

seja, direitos individuais homogêneos, entendimento que resulta da leitura do art. 103, § 2º do

372 WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Anotações sobre a liquidação e a execução das sentenças coletivas. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; WATANABE, Kazuo (coord.). Direito processual coletivo e o anteprojeto de código brasileiro de processos coletivos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 263. 373 MENDES, 2002, p. 263. 374 GIDI, 2007, p. 287. 375 CDC, art. 94. Proposta a ação, será publicado edital no órgão oficial, a fim de que os interessados possam intervir no processo como litisconsortes, sem prejuízo de ampla divulgação pelos meios de comunicação social por parte dos órgãos de defesa do consumidor.

136

CDC376. Contudo, o autor opina pela publicação de edital em qualquer ação de natureza coletiva,

mesmo que originalmente tutelem direitos essencialmente coletivos, como são os difusos e os

coletivos stricto sensu.377

Esta conclusão parece ser a mais correta, tendo em vista os entendimentos encontrados na

doutrina especializada e que opinam pela aplicabilidade das disposições do CDC na proteção de

qualquer direito coletivo (difusos, coletivos stricto sensu e individuais homogêneos), e não

apenas nos processos relacionados com a proteção do consumidor em juízo.378

Com a sistemática do CDC, o legislador brasileiro optou pelo caminho inverso daquele

adotado pelo modelo norte-americano, no qual, uma vez aceita a class action for damages pelo

Judiciário, os possíveis titulares dos direitos subjetivos são dela notificados. Após a notificação,

vigora o critério do opt out, por meio do qual as vítimas que não optarem pela exclusão serão

automaticamente abrangidos pelos efeitos da sentença, não havendo, portanto, a necessidade de

anuência expressa.379 Aqui, esclarece Grinover, o legislador deixou de lado as intimações

pessoais, impraticáveis e até impossíveis na hipótese de ação coletiva, tendo em vista a

indeterminação das vítimas e de seus sucessores no momento de propositura da ação.380

Evidentemente que o fato de ingressar no processo na condição de litisconsorte trará para

o interessado/litisconsorte certas conseqüências que não atingem aqueles interessados que

optaram pela não intervenção, sendo que a principal delas está justamente relacionada aos limites

subjetivos da coisa julgada. Levando-se em consideração o fato de ter o Brasil adotado o modelo

de extensão secundum eventum litis, a sentença favorável beneficiará a todos os interessados,

incluindo aqueles que não estão atuando como litisconsorte no processo coletivo. Porém, se a

sentença rejeitar a demanda pelo mérito, somente aqueles que não intervieram no processo na

condição de litisconsortes, poderão propor individualmente suas respectivas ações reparatórias.

Para maior clareza colaciona-se explicação apresentada por Grinover, sintetizada nos

seguintes termos: a) o interessado não intervém no processo coletivo e será igualmente

376 CDC, art. 103, § 2º. Na hipótese prevista no inciso III, em caso de improcedência do pedido, os interessados que não tiverem intervido no processo como litisconsortes poderão propor ação de indenização a título individual. 377 VENTURI, op. cit., p. 395. 378 MENDES, 2005, p. 8. 379 ZAVASCKI, op. cit., p. 170-171. 380 GRINOVER, 2004, p. 881-883.

137

beneficiado pela decisão quando o pedido for julgado procedente. E sendo a demanda rejeitada

(improcedência após análise do mérito), ainda poderá o interessado ingressar em juízo com ação

individual de responsabilidade civil, pleiteando a respectiva reparação (CDC, art. 103, § 2º); b)

porém, se o interessado intervém no processo a título de litisconsorte, será normalmente colhido

pela coisa julgada, favorável ou desfavorável, não podendo, neste último caso, renovar a ação a

título individual para pleitear a respectiva reparação.381

No que tange aos efeitos da sentença sobre os direitos individualmente considerados, bem

como, o tratamento que deve se adotado quando há coisa julgada em ação coletiva e há ações

individuais tramitando, para maior clareza, cumpre efetuar análise em tópicos separados, para o

fim de facilitar, por conseguinte, a compreensão acerca dos assuntos.

3.4.2 Os efeitos da sentença oriundos das ações coletivas e os direitos individualmente

considerados

O art. 103, § 1º do CDC, dispõe que os efeitos da coisa julgada previstos no inciso I do

mesmo artigo, o qual faz referência aos direitos difusos; e previstos no inciso II, também do

mesmo artigo, e que faz referencia aos direitos coletivos stricto sensu, não prejudicarão os

direitos e interesses dos integrantes da coletividade, do grupo, categoria ou classe. Embora

atinentes apenas aos direitos difusos e coletivos stricto sensu ̧Gidi esclarece que a regra do § 1º

do art. 103 do CDC, é a mesma para os direitos individuais homogêneos, salvo, em qualquer

caso, se o membro da coletividade (conforme já estudado no item anterior) optou por ingressar no

processo na condição de litisconsorte, entendimento que, conforme já explanado, resulta do

disposto no art. 103, § 2º do CDC.382

Para esclarecer o assunto, Gidi ensina que de acordo com a redação do § 1º do art. 103 do

CDC, “[...] a sentença coletiva vinculará todos os membros do grupo, mas essa decisão não

poderá prejudicar os seus direitos individuais.” O autor complementa que se a ação coletiva for

381 GRINOVER, 2004, p. 882. 382 GIDI, 2007, p. 284.

138

procedente, todos os integrantes da coletividade serão beneficiados pela decisão. Porém, se a

mesma for improcedente, os membros do grupo não serão atingidos pelos efeitos da sentença em

suas esferas individuais e poderão propor as ações respectivas, requerendo proteção aos direitos

individualmente considerados.383

Portanto, o legislador brasileiro ressalvou dos efeitos da coisa julgada, oriunda de

decisões proferidas em ações coletivas, os prejuízos a direitos e interesses individuais dos

integrantes da coletividade, grupo, categoria ou classe substituída no pleito judicial. Com efeito,

mesmo que o pedido tenha sido julgado improcedente após análise do mérito, e não, somente,

pela mera insuficiência de provas, os integrantes da coletividade poderão promover ações

pessoais, de natureza individual, requerendo reparação por danos sofridos.

3.4.3 A concomitância de ações coletivas e individuais e a coisa julgada

Já restou amplamente estudado nesta pesquisa que no cenário processual coletivo não há

indução de litispendência entre ações coletivas e ações individuais, devendo o Judiciário, nestes

casos, aplicar o instituto da conexão. Por conseguinte, cumpre saber de que forma o

microssistema dos processos coletivos regulamenta o assunto, buscando elucidar, principalmente,

o efeito das decisões proferidas nas ações coletivas em relação às ações propostas

individualmente.

Inicialmente, é importante esclarecer que a concomitância pode resultar da propositura de

uma ação individual antes do ajuizamento da ação coletiva, como pode resultar de uma

propositura posterior ao pleito coletivo. Em qualquer das hipóteses, o autor da ação individual

deverá ser cientificado da existência de uma ação coletiva conexa e, querendo, requeira no prazo

de trinta dias a contar da data da ciência, a suspensão do processo proposto individualmente.384

383 GIDI, 2007, p. 283. 384 CDC, art. 104. As ações coletivas previstas nos incisos I e II do parágrafo único do art. 81, não induzem litispendência para as ações individuais, mas os efeitos da coisa julgada erga omnes e ultra partes a que aludem os incisos II e III do artigo anterior não beneficiarão os autores das ações individuais, se não for requerida sua suspensão no prazo de trinta dias, a contar da ciência nos autos do ajuizamento da ação coletiva.

139

Segundo Venturi, a intimação deverá ser instruída, por exemplo, com informações acerca

do autor da ação coletiva, dos pedidos e da causa de pedir, da fase processual em que se encontra

e das provas já produzidas pelas partes, enfim, “[...] dados que possam influenciar na decisão do

autor individual de prosseguir com sua demanda ou suspendê-la, apostando no êxito da

empreitada coletiva.”385

O mesmo autor ainda esclarece que este regime de suspensão deve ser único para todas as

hipóteses de concomitância entre ações individuais e coletivas, não importando o objeto que deu

origem à ação. Ao mesmo tempo, arrola os escopos da suspensão, dentre as quais estão economia

processual a partir do menor número de ações tramitando, evitar contradição entre julgados

individuais e coletivos e aproveitar a condenação genérica obtida na demanda coletiva para fins

de liquidações e execuções individuais subseqüentes.386

A decisão do autor individual de prosseguir ou não com a respectiva ação proposta, lhe

trará conseqüências que implicam, justamente, no fato de ficar ou não sujeito aos efeitos da

decisão proferida no âmbito da demanda coletiva, isto porque, nos termos do art. 104 do CDC, os

efeitos da coisa julgada erga omnes ou ultra partes previstos no art. 103 do CDC, não

beneficiarão os autores das ações individuais se não for requerida por estes a suspensão do

processo individual no prazo de trinta dias, a contar da cientificação já mencionada.

Para maior clareza, busca-se em Grinover explicação didaticamente elaborada sobre o

assunto. Primeiro o autor individual pode optar em dar prosseguimento à ação individual,

situação que o deixará excluído dos efeitos da sentença que vier a ser proferida na ação coletiva,

mesmo que ela seja favorável e produza efeitos erga omnes ou ultra partes. Assim, mantendo em

curso a ação individual, o autor assume os riscos do resultado desfavorável. Trata-se, portanto, de

uma verdadeira exceção apresentada pelo CDC ao princípio geral da extensão subjetiva do

julgado, in utilibus, por meio do qual se entende que as decisões nos processos coletivos não

poderão prejudicar os direitos individuais dos membros do grupo que estão sendo substituídos

por meio de um legitimado extraordinário.

385 VENTURI, op. cit., p. 351. 386 Ibidem, p. 359.

140

Segundo, se o autor preferir, poderá requerer a suspensão do processo individual. Nesse

caso será beneficiado pela coisa julgada favorável originária da ação coletiva. Todavia, sendo

esta improcedente, Grinover complementa que “[...] o processo individual retomará seu curso,

podendo ainda o autor ver acolhida sua demanda individual. Tudo coerentemente com os critérios

da extensão subjetiva do julgado secundum eventum litis adotados pelo Código.”387

3.4.4 O modelo de extensão da coisa julgada adota no Brasil e a contraposição com o processo

tradicional

Ante todo o exposto, constata-se que a solução empregada no Brasil para os efeitos da

coisa julgada, segundo Gidi, é considerada complexa pelo fato de envolver “[...] tanto a coisa

julgada pro et contra como a coisa julgada secundum eventum litis com extensão in utilibus para

a esfera individual dos membros do grupo.”388

É pro et contra porque em todos os processos coletivos, havendo a análise de mérito pelo

Judiciário e a decisão entender que há procedência no pedido, é inaceitável que idêntica ação

coletiva seja novamente aforada. Ao mesmo tempo, com exceção das ações que versam sobre

direitos individuais homogêneos em que haverá efeito erga omnes somente nos casos de

procedência do pedido, os legitimados nas ações coletivas brasileiras têm apenas uma

oportunidade para propor uma ação coletiva, salvo evidentemente, os casos de declaração de

improcedência por insuficiência de provas, aplicados aos direitos difusos e coletivos stricto

sensu.

Portanto, com exceção dos direitos individuais homogêneos, nos demais casos se a ação

coletiva for julgada improcedente após análise de mérito, o direito estará perdido e a

possibilidade de repetir a mesma ação coletiva estará definitivamente precluso. Neste caso,

387 GRINOVER, 2004, p. 942-943. 388 GIDI, 2007, p. 283.

141

segundo complementa Gidi, a coisa julgada coletiva forma-se erga omnes independentemente do

resultado da demanda, ou seja, é pro et contra.389

Também é secundum eventum litis porque depende do resultado do julgamento.390

Significa dizer que nos casos em que a ação tem por objeto direitos difusos e coletivos stricto

sensu, sendo a sentença desfavorável ao pedido fundamentada na falta ou insuficiência de provas,

é possível ao mesmo autor coletivo ou outro legitimado coletivo propor ação idêntica àquela já

decidida sem apreciação de mérito. Tratando-se de direitos individuais homogêneos em qualquer

hipótese de improcedência do pedido uma nova ação com mesmo objeto e causa de pedir poderá

ser ajuizada.

E é com extensão in utilibus porque as decisões nos processos coletivos não poderão

prejudicar os direitos individuais dos membros do grupo que estão sendo substituídos por meio

de um legitimado extraordinário. Com efeito, se a ação coletiva for julgada procedente, todos os

membros do grupo serão beneficiados pela sentença coletiva. Porém, sendo improcedente, os

membros da coletividade não serão atingidos pelos efeitos da sentença em suas esferas

individuais e poderão propor as respectivas ações individuais visando a proteção de seus

direitos.391

Portanto, o modelo de extensão subjetiva da coisa julgada adotado para os processos

coletivos no direito brasileiro em nada se coaduna com o modelo empregado no processo civil

clássico. Enquanto neste modelo os limites subjetivos da coisa julgada não podem ultrapassar

aqueles que são partes do processo (legitimado ativo e passivo), nem para beneficiar, nem para

prejudicar terceiros, nos processos coletivos os efeitos são estendidos a todo e qualquer

interessado (efeito erga omnes e ultra partes), mesmo que não figure na condição de autor na

ação coletiva, tendo em vista que nestes casos, a legitimidade é conferida em regime

extraordinário ou por substituição processual.

389 GIDI, 2007, p. 283. 390 MENDES, 2002, p. 263. 391 GIDI, 2007, p. 283.

142

Acerca da coisa julgada, tudo o que vem sendo empregado nos processos coletivos, a

exemplo da coisa julgada pro et contra e coisa julgada secundum eventum litis com extensão in

utilibus, não encontra semelhança com o sistema empregado no processo civil tradicional, de

cunho individualista. Por conseguinte, o modelo de coisa julgada que recai sobre as ações

coletivas, se equipara aos demais elementos já citados e estudados nesta pesquisa, os quais

justificam a possibilidade e necessidade de elaboração de uma Teoria Geral específica para os

Processos Coletivos.

3.5 LIQUIDAÇÃO E CUMPRIMENTO DA SENTENÇA

Outra característica peculiar dos processos coletivos é divisão dos mesmos em duas fases

cognitivas, não encontrando similaridade em qualquer outro instituto do processo civil

tradicional. A primeira fase é constituída pela análise do objeto da ação coletiva, recaindo sobre

questões fáticas e jurídicas comuns à universalidade dos direitos tutelados, enquanto que a

segunda é destinada para a análise específica das situações individuais de cada um dos

interessados lesados individualmente, caso o pedido formulado na ação coletiva (analisado na

primeira fase) seja julgado procedente.

Por oportuno, cumpre observar que o CDC apenas disciplina a liquidação de sentença

para os processos que tratam de direitos individuais homogêneos. Contudo, Wambier e Wambier

advertem que os dispositivos do CDC também são aplicáveis à liquidação de sentenças cujos

processos versam sobre direitos difusos e coletivos stricto sensu, isto porque, entendem os

autores,

[...] a liquidação de sentença e a execução das condenações havidas em ações coletivas sempre serão feitas individualmente, ressalvada apenas a hipótese de reversão para o fundo de direitos difusos, única hipótese em que se pode falar de liquidação propriamente coletiva. Nos outros casos, trata-se de liquidação da sentença coletiva e não de liquidação coletiva da sentença.392

392 WAMBIER, WAMBIER, op. cit., p. 272.

143

Os autores citam o exemplo de uma ação coletiva de direitos difusos relativos à poluição

ambiental. As eventuais vítimas com pretensões individuais decorrentes de tal dano (causados à

saúde, por exemplo), deverão promover a respectiva liquidação individual, com a prova do nexo

causal e do dano sofrido.393

Este entendimento não se mostra tranqüilo dentre os autores que se dedicam ao estudo e

aprimoramento das ações e processos coletivos. Leal apresenta opinião contrária àqueles que

concluem pela possibilidade de vítimas e sucessores promoverem a liquidação e execução da

sentença quando a decisão recai sobre direitos difusos. Tratando-se de direitos coletivos stricto

sensu o autor não vê problemas já que, em sua maioria, os mesmos são materialmente

individuais. Porém, quando o objeto são direitos difusos, Leal entende que “[...] não há direitos

individuais em jogo [...]”.

Ao exemplificar com um hipotético dano ambiental, conclui que, nestes casos, aquele que

se diz titular do direito individual terá de apelar para o direito civil clássico já que o juiz “[...]

pedirá o rol de danos (morais, à propriedade ou à saúde) e a conexão com a poluição e aí não se

trata mais de liquidação, mas de ação ordinária de danos.”394

O questionamento do autor é pertinente já que os direitos difusos e coletivos stricto sensu

têm natureza indivisível, ou seja, em se ratando de direitos difusos, conforme já mencionado, não

haveria possibilidade de distribuição de quotas da pretensão entre as pessoas que a compartilham,

posto que nas ações que discutem tais direitos, o objeto não está sujeito ao desmembramento.

Tratando-se de direitos coletivos stricto sensu, do mesmo modo, não haveria possibilidade de

satisfação isolada de apenas uma pessoa do grupo, categoria ou classe, nem defesa de um sem

defesa do outro. Com efeito, a satisfação de um dos membros exige a satisfação de todos.

Desse modo, nos parece que quem deveria promover a liquidação e execução nos casos de

direitos difusos e coletivos stricto sensu seriam os legitimados coletivos, enquanto que nos casos

de direitos individuais homogêneos os dois atos poderiam ser feitos a título individual ou pelos

legitimados coletivos, conforme dispõe o CDC.

393 WAMBIER, WAMBIER, op. cit., p. 277. 394 LEAL, M. F. M., 2007, p. 74.

144

Contudo, não parece ser este o entendimento que vem predominando, posto que em caso

de procedência do pedido a sentença proferida na primeira fase de cognição deverá ser sempre

genérica e seus efeitos estendidos a toda coletividade de maneira uniforme (efeito erga omnes ou

ultra partes), correspondendo a uma sentença certa, porém ilíquida.395 Quanto ao cumprimento

de tal decisão, deverá ocorrer o ajuizamento de uma nova demanda, que Zavascki detalha do

seguinte modo: o cumprimento é dividido em duas fases distintas, sendo a da liquidação,

destinada a complementar a atividade cognitiva e onde é apurado o que é devido para cada

interessado; e a da execução, “[...] em que serão promovidas as atividades práticas destinadas a

satisfazer, efetivamente, o direito lesado, mediante a entrega da prestação devida ao seu titular

(ou, se for o caso, aos seus sucessores).”396

Assim, por meio dos processos de liquidação, esclarece Grinover, “[...] ocorrerá uma

verdadeira habilitação das vítimas e sucessores, capaz de transformar a condenação pelos

prejuízos globalmente causados do art. 95 em indenizações pelos danos individualmente

sofridos.”397

Na chamada fase de liquidação não mais se discute se o réu tem ou não o dever de

indenizar as vítimas ou cumprir outra determinação compatível com o caso, mas sim, apurar

aquilo que é devido para cada liquidante a partir dos danos sofridos. A estes, incumbe o dever de

provar a existência de dano pessoal, o nexo causal com o dano globalmente provocado e o que ou

o quantum lhe é devido, sendo uma fase necessariamente personalizada e divisível.398

É importante consignar que no art. 100 do CDC, o legislador trabalhou com a hipótese de

a sentença condenatória não ser objeto de liquidação pelas vítimas ou o número de liquidantes ser

em número incompatível com a gravidade do dano. Grinover cita como exemplo as relações de

consumo com danos globalmente ponderáveis, porém, insignificantes em sua individualidade.

Neste caso, o prejuízo pode ser de nenhuma importância para cada consumidor lesado, os quais

poderão optar por não se habilitar em processo de liquidação. Desse modo, decorrido o prazo de

um ano sem habilitações ou se neste período a quantidade das habilitações realizadas forem

395 GRINOVER, 2004, p. 886. 396 ZAVASCKI, op. cit., p. 192. 397 Ibidem, p. 192. 398 GRINOVER, 2004, p. 886-887.

145

consideradas inferior à gravidade do dano, os mesmos legitimados coletivos poderão promover a

liquidação e posterior execução da indenização devida.399

Das redações apresentadas pelos dispositivos do CDC, principalmente o art. 100,

Wambier e Wambier concluem que os legitimados do art. 82 do CDC somente poderão promover

a liquidação e posterior execução se houver decorrido o lapso temporal de um ano sem iniciativa

dos interessados. Assim, “[...] só ‘nasce’ a legitimação para o pedido de liquidação e para

posterior execução, se não tiver ocorrido iniciativa dos interessados.” Ainda ressaltam que faltará

legitimidade para os autores coletivos requerer a liquidação antes do fim do prazo estabelecido

pelo CDC.400

O entendimento de que os legitimados coletivos devem esperar a iniciativa dos

interessados (individualmente considerados), se coaduna as conclusões apresentadas por

Grinover, no sentido de que a indenização destinada ao Fundo criado pela LACP é residual no

sistema brasileiro, “[...] só podendo destinar-se ao Fundo se não houver habilitantes em número

compatível com a gravidade do dano.”401

Tratando especificamente da execução promovida pelos legitimados coletivos, cujos

objetos executados são indenizações individualizadas, em seu art. 98 o CDC observa que o

pedido de cumprimento da decisão abrange as vítimas que já têm suas respectivas indenizações

fixadas na sentença de liquidação. Contudo, não haverá prejuízo para o ajuizamento de outras

execuções, cujas liquidações foram concluídas posteriormente aos pedidos de execução já

formulados.

Por fim, é importante mencionar que também é possível a presença em um mesmo

processo da chamada fluid recovery do Direito norte-americano, isto é, uma reparação fluida, a

qual se dá quando vítimas promovem liquidações por danos pessoalmente sofridos, em número

incompatível com a gravidade do dano, e ao mesmo tempo, qualquer legitimado coletivo

promove a liquidação para fins de apuração do prejuízo globalmente causado.

399 GRINOVER, 2004, p. 893. 400 WAMBIER, WAMBIER, op. cit., p 274. 401 GRINOVER, 2004, p. 894.

146

Neste caso, o resíduo dos valores que não forem destinados às vítimas individualmente

consideradas a partir das respectivas habilitações, liquidações e execuções, levando-se em

consideração o valor global do prejuízo, deverá ser revertido a um fundo gerido por um Conselho

Federal ou por Conselhos Estaduais, sendo que tais recursos têm por finalidade a proteção dos

bens e valores da coletividade lesada (Lei 7.347/85, art. 13).402

3.6 A JURISDIÇÃO NOS PROCESSOS COLETIVOS

A análise dos institutos processuais efetuada nesta dissertação demonstra as significativas

diferenças apresentadas pelos mesmos quando inseridos em processos civis de cunho

tradicional/individual e quando inseridos em processo de tutela jurisdicional coletiva. Logo, uma

sucinta reflexão já permite concluir que a própria jurisdição no âmbito processual coletivo, do

mesmo modo, não apresenta o mesmo caráter apresentado na seara processual clássica. Aliás,

conforme anota Salles, as ações coletivas têm marcado no Brasil uma significativa transformação

das funções judiciais.403

Os processos coletivos resultam de conflitos coletivos e, por conseguinte, exigem um

tratamento jurisdicional diferenciado daquele projetado para vigorar em um ambiente de litígios

individuais. Neste sentido, diversos aspectos devem ser avaliados, sendo que o primeiro guarda

relação com o caráter de universalidade da jurisdição.

Os processos coletivos representam no Estado Contemporâneo, viés jurídico adequado

para a população, coletivamente pensada, submeter novas causas aos tribunais, as quais, em razão

de entraves seculares, resultantes, por exemplo, do excesso de despesas processuais, do

desequilíbrio entre as partes e da contra partida, muitas vezes, inferior ao investimento

402 GRINOVER, 2004, p. 895. 403 SALLES, Carlos Alberto. Apresentação geral: por uma nova abordagem do Direito Processual Civil. In: FISS, Owen. Um novo processo civil: estudos norte-americanos sobre juridição, constituição e sociedade. Tradução de Carlos Alberto de Salles, Daniel Porto Godinho da Silva e Melina de Medeiros Rós. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 7.

147

psicológico, financeiro e de tempo realizados, considerados individualmente, certamente não

seriam levadas ao conhecimento do Judiciário por meio do processo individual.404

No processo civil clássico, de cunho individualista, a universalidade da jurisdição tem

alcance restrito, limitando-se a garantir que todos os conflitos de interesses levados ao

conhecimento do Judiciário recebam resposta jurisdicional adequada. Nos processos coletivos,

conforme complementa Grinover, a universalidade está ligada ao acesso à justiça, no sentido de

que tal acesso “[...] deve ser garantido a um número cada vez maior de pessoas, amparando um

número cada vez maior de causas.”405

Portanto, esta característica da jurisdição nos processos coletivos resulta do adequado

tratamento coletivo de direitos e interesses que extrapolam a esfera individual das pessoas, e

atingem ao mesmo tempo grupos, classes e categorias, abrindo espaço para a efetiva

universalidade da jurisdição.

Outro aspecto a ser destacado na jurisdição processual coletiva diz respeito ao

afastamento da subjetividade, também contrariando o que se constata no processo civil clássico,

onde o papel pacificador da jurisdição se restringe aos litigantes, no intuito de eliminar o conflito

intersubjetivo e fazer cumprir o preceito jurídico pertinente ao respectivo caso que está sendo

levado ao conhecimento do Judiciário em busca de uma solução. Nos processos coletivos a

atividade jurisdicional não está voltada para os sujeitos, titulares dos interesses em litígio, mas

sim, a um “[...] plano transcendente do individual e por vezes até do público e do privado.”406

Adamovich complementa que na forma coletiva de processo, a preocupação com as

pessoas não se dá na dimensão intersubjetiva, mas num plano transcendente em que se cogita não

apenas resolver um conflito. Nesta seara, toda a lógica da jurisdição encontra-se pensada e

voltada para a preservação e efetivação de direitos, e não apenas, para fazer cumprir um preceito

normativo.407

404 GRINOVER, 2007, p. 12. 405 Ibidem, p. 12. 406 ADAMOVICH, op. cit., p. 57. 407 Ibidem, p. 57.

148

Por este motivo, o papel criador do juiz no processo coletivo não se restringe ao mesmo

papel desempenhado pelo magistrado no processo civil tradicional. Nos processos coletivos os

provimentos assumem outra dimensão, tendo em vista a significativa complexidade que

acompanha as demandas e que envolvem ao mesmo tempo um número quantificável ou não de

interessados. Por conseguinte, complementa Adamovich, a jurisdição é elevada a outra dimensão

de reflexão, “[...] que não se haverá de supor obviamente resolvida por textos legais de

elaboração lacunosa, defeituosa ou até canhestra.”408

Neste aspecto, cumpre chamar a atenção para o art. 83 do CDC, o qual dispõe que para a

defesa dos direitos e interesses protegidos por este código são admissíveis todas as espécies de

ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela. Para Medina, por meio deste dispositivo

restou positivado o princípio que deve nortear a atuação jurisdicional de todos os direitos

coletivos, no sentido de garantir que tais direitos, quando tutelados pelo viés das ações coletivas,

efetivamente produzam resultados. O autor também complementa que falar em jurisdição

destituída de instrumentos que permitam realizar materialmente o direito, “[...] implicaria reduzir

significativamente sua importância e razão de ser, especialmente se considerar que, na sociedade

moderna, cada vez maior tem sido a preocupação com a materialização dos direitos.”409

O art. 83 do CDC atribui ao juiz na análise de uma ação coletiva, maior liberdade

interpretativa, regra que vai ao encontro dos entendimentos que apontam para a incapacidade de o

legislador regular em leis todas as situações carentes de tutela oriundas na sociedade. Marinoni

observa que embora já tenha constituído ditado vulgarizado, continua presente em nossos dias a

evidência de que o legislador não pode andar na mesma velocidade da evolução social. Por isso,

“[...] o surgimento de novos fatos sociais dá ao juiz legitimidade para construir novos casos e

para reconstruir o significado dos casos já existentes ou simplesmente para atribuir sentido aos

casos concretos.”410

408 ADAMOVICH, op. cit., p. 58. 409 MEDINA, José Miguel Garcia. Sobre os poderes do juiz na atuação executiva dos direitos coletivos: considerações e perspectivas, à luz do anteprojeto de código brasileiro de processos coletivos. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; WATANABE, Kazuo (coord.). Direito processual coletivo e o anteprojeto de código brasileiro de processos coletivos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 281. 410 MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de processo civil. 2. ed., vol. 1. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 97.

149

Assim, na elaboração da legislação voltada para a tutela coletiva o Brasil aplicou uma

técnica que cada vez mais vem sendo utilizada pelos legisladores. Trata-se do chamado conceito

vago ou indeterminado, o qual, segundo Wambier e Wambier possibilita a criação de textos

legais adaptáveis à realidade contemporânea e à velocidade das transformações sociais. Os

autores complementam que diante de um conceito vago, o papel dos juízes se torna muito mais

importante, considerando o fato de que em tais situações encontram-se inseridos em uma lógica

que contraria a idéia que embasava a dogmática jurídica clássica, “[...] no sentido de que a

solução para a grande maioria dos problemas sociais estaria no texto da lei, que deveria, portanto,

ser claro e minucioso e vincular o juiz de forma absoluta e direta.”411

É evidente que esta atividade criativa do juiz não pode ser realizada sem parâmetros. E

neste ponto chegamos àquele que, sem dúvidas, pode ser apontado como o principal aspecto

atinente à jurisdição no âmbito das ações coletivas. Na análise e julgamento de processos com

esta natureza, deve o juiz pautar o exercício jurisdicional como sendo parte integrante de todo o

esforço empregado pelo Estado, para o fim de realização prática dos objetivos apontados na

Constituição da República, ditos essenciais para a efetiva concretização de um Estado

Democrático de Direito (CF, arts. 1º e 3º, entre outros).412

E isto não ocorre, como bem observa Marinoni, porque o juiz deixa de tutelar

exclusivamente os direitos individuais e passa a proteger direitos coletivos, mas, sobretudo, “[...]

porque a jurisdição toma o seu lugar para a efetivação da democracia, que necessita de técnicas

de participação ‘direta’ para poder construir uma sociedade mais justa.” Portanto, segundo o

autor, não basta compreender e conformar a lei de acordo com as normas constitucionais (o que,

aliás, devem fazer todos os juízes diante de qualquer processo a ser julgado), concluindo que o

autor tem um direito que deve ser tutelado. Cabe à jurisdição “[...] dar tutela aos direitos, e não

apenas dizer quais direitos merecem proteção.”413

E dar tutela a um direito, segundo Marinoni, significa outorgar-lhe proteção, não

admitindo a sentença como mecanismo suficiente para o juiz se desincumbir do seu dever de

prestar a tutela jurisdicional. Neste ponto, relembra-se a já citada conclusão de Medina, no

411 WAMBIER, WAMBIER, op. cit., 278. 412 MEDINA, op. cit., p. 282. 413 MARINONI, op. cit., p. 116.

150

sentido de que o art. 83 do CDC deve nortear toda atuação jurisdicional dos direitos coletivos, a

fim de garantir que tais direitos efetivamente produzam resultados, posto que, na sociedade

hodierna, os direitos devem ser materializados.

Portanto, é deste modo que deve se pensada e exercida a função jurisdicional nas ações de

cunho coletivo. Enquanto o modelo tradicional de solução de conflitos visa manter o status quo

dentro de uma visão individualista, o modelo de jurisdição coletiva tem a tarefa de efetivar os

valores constitucionais e principalmente, promover alterações no status quo.414 Neste Sentido

Fiss observa que o clássico modo de solução de controvérsias descreve um universo

sociologicamente empobrecido, isto porque, não concede espaço para a manifestação de

entidades, como internos de um presídio ou pacientes de um hospital, bem como, não reconhece a

existência de grupos que transcendem instituições, a exemplo das minorias raciais e deficientes

mentais, entre tantos outros grupos tão familiares aos processos judiciais contemporâneos. Por

conseguinte, Fiss conclui sua crítica argüindo que “[...] no âmbito dessa história, o mundo é

composto exclusivamente por indivíduos.”415

Esta manifestação evidencia a preocupação do autor norte-americano com as minorias e

com o descompasso que há entre o processo civil tradicional e as novas demandas sociais,

principalmente as dotadas de cunho coletivo. Para Fiss encontra-se obsoleta a idéia de uma

estrutura processual tripartite, representada pelo ícone da Justiça segurando a balança. E a

exemplo dos demais autores já citados, Fiss também é enfático ao afirmar que a função do juiz

“[...] é conferir significado concreto e aplicação aos valores constitucionais.”416

Assim, diante de todo o exposto, é possível concluir que a jurisdição no âmbito processual

coletivo deve ser pautada e condicionada pelo princípio democrático417, no sentido de garantir

viés jurídico adequado para o efetivo acesso das coletividades à justiça e servir de instrumento

para a concretização de direitos fundamentais e de valores constitucionais atinentes às

coletividades.

414 SALLES, op. cit., p. 9. 415 FISS, op. cit., p. 108. 416 Ibidem, p. 36-64. 417 VENTURI, op. cit., p. 99.

151

3.7 PRINCÍPIOS DA TUTELA JURISDICIONAL COLETIVA

Os institutos processuais analisados evidenciam as abissais diferenças que há entre os

mesmos quando inseridos no âmbito do processo civil tradicional, de cunho individual, e quando

inseridos no âmbito processual coletivo.

Além dos institutos, cumpre trazer à colação determinados princípios processuais, os

quais demonstram que os processos coletivos já detêm uma gama de princípios próprios, total ou

parcialmente distintos daqueles aplicados ao direito processual civil clássico, corroborando a tese

de que o Brasil está preparado para a elaboração de uma Teoria Geral dos Processos Coletivos.

Antes, porém, é importante mencionar que a idéia de uma Teoria Geral dos Processos

Coletivos não elimina para esta seara, a incidência dos demais princípios processuais,

notadamente os de origem constitucional, aplicados a todos os ramos do processo e que permitem

a elaboração da Teoria Geral do Processo.418 Ou seja, além de observar princípios que lhes são

peculiares, os processos coletivos também são norteados pelo direito constitucional processual,

entendido como o “[...] conjunto de normas e princípios processuais, de natureza essencialmente

constitucional, estabelecido na Constituição, para tutelar a essência e o espírito do direito

processual.”419 Entre tais princípios destacam-se, entre outros, os princípios do devido processo

legal, do juiz natural, do contraditório, da ampla defesa, da publicidade dos atos processuais e da

motivação das decisões judiciais.

3.7.1 Princípio do acesso à justiça

O tema acesso à justiça já foi conceituado e abordado com maior profundidade no

Capítulo II deste trabalho. Aqui, para evitar prolixidade, cumpre observar que sem prejuízo dos

fatores que atingem qualquer modalidade de processo, a exemplo da sobrecarga dos tribunais, da

418 GRINOVER, 2007, p. 12. 419 ALMEIDA, op. cit., p. 33.

152

morosidade dos processos, do valor elevado das despesas, da burocratização e complicação dos

procedimentos, nos danos de ordem coletiva outros fatores devem ser considerados, os quais

inibem e até impedem o exercício individual do direito de ação.

Por isso, a nova realidade jurídica presente no âmbito dos processos coletivos exigiu que

mecanismos diferenciados e facilitadores do acesso à justiça fossem pensados e efetivados,

rompendo com as concepções e estruturas puramente individualísticas do processo

jurisdicional,420 a exemplo do que ocorre no Brasil com o microssistema processual coletivo.

Entre os fatores de inibição ou impedimento, citados por Cappelletti, está o desinteresse

da pessoa lesada em promover uma ação individual, posto que muitas vezes a fragmentação do

dano sofrido por dezenas, centenas, milhares e até milhões de pessoas, o torna demasiadamente

pequeno para justificar, por exemplo, o custo econômico, psicológico e de perda de tempo

despendidos em uma demanda judicial. Enquanto o dano total pode ser enorme, o fragmento

pode ser irrisório. Outro fator apontado pelo autor é a diferença de poder econômico, de

informação e de organização da parte contrária, que normalmente é maior do que aquele

apresentado pelo indivíduo.421

Estes exemplos evidenciam que o conceito de acesso à justiça sofreu as influências das

transformações sociais ocorridas no século XX, período em que as ações e relacionamentos

saíram da esfera individual para atingir um caráter coletivo, obrigando os juristas a pensar o

acesso para além de um contexto restrito “do indivíduo”, e atingir uma concepção coletiva do

Direito.422

Portanto, o acesso à justiça assume, segundo Grinover, “[...] feição própria e peculiar no

processo coletivo.” A autora conclui que no processo individual o princípio somente diz respeito

ao cidadão, visando a solução de um litígio que se limita ao círculo das pessoas interessadas,

enquanto que no processo coletivo transmuda-se para um princípio de interesse de uma

coletividade, que muitas vezes, nem mesmo pode ser mensurada.423

420 CAPPELLETTI, 1999, p. 59. 421 Ibidem, p. 59. 422 CAPPELLETTI, GARTH, op. cit., p. 9-10. 423 GRINOVER, 2007, p. 12.

153

Por conseguinte, a legitimação extraordinária exerce um papel fundamental no cenário

processual coletivo, considerando as inúmeras práticas ilegais que nem mesmo seriam levadas ao

conhecimento do Judiciário por meio da iniciativa individual, permitindo a perpetuação de

práticas abusivas em detrimento do cidadão lesado, e que na maioria das vezes, se encontra em

explícita desvantagem econômica, política, de informação, de estratégia e de organização perante

empresas e organizações de grande porte.

3.7.2 Princípio da universalidade da jurisdição

De certa forma, este princípio já foi objeto de estudo quando da análise da jurisdição no

âmbito da tutela jurisdicional coletiva, na qual foi mencionado que a universalidade da jurisdição

nos processos coletivos apresenta características peculiares, diferenciadas das encontradas no

processo civil clássico, que, em síntese, se limita a garantir resposta jurisdicional adequada aos

conflitos intersubjetivos levados ao conhecimento do Judiciário.424

Para não repetir tudo o que já foi mencionado, cumpre apenas relembrar a partir de

Grinover, que nos processos coletivos a universalidade está ligada ao acesso à justiça, no sentido

de que tal acesso deva ser estendido a um número cada vez maior de pessoas, o que inclui um

número cada vez maior de causas.425 A dimensão distinta da universalidade da jurisdição nos

processos coletivos é garantir às coletividades a efetiva oportunidade de submeter aos tribunais as

causas que, individualmente, permaneceriam no anonimato, tendo em vista os fatores já

explicitados a partir de Cappelletti.

Portanto, é garantindo tratamento coletivo aos interesses tansindividuais que efetivamente

haverá acesso à justiça e, por conseguinte, um caminho judiciário viável para a universalidade da

jurisdição.426

424 GRINOVER, 2007, p. 12. 425 Ibidem, p. 12. 426 Ibidem, p. 12.

154

3.7.3 Princípio da participação

No processo civil tradicional a possibilidade de participação no processo é garantida às

partes (autor e réu) através do princípio constitucional do contraditório, que nada mais é, segundo

Marinoni, “[..] do que o direito que confere às partes a possibilidade de atuar no processo com o

objetivo de obter uma tutela jurisdicional favorável.”427 Portanto, na lógica do processo civil

tradicional as partes participam “no processo” objetivando influir no convencimento do juiz por

meio dos argumentos e provas produzidos durante a tramitação do feito.

Na lógica processual coletiva, a participação não se faz apenas “no processo”, o que é

possível por meio da intervenção dos interessados na condição de litisconsortes dos autores que

atuam na forma da legitimação extraordinária ou por substituição processual. Nos processos

coletivos os interessados atuam mais “pelo processo”, já que estarão em juízo em quantidade

muitas vezes imensurável, sendo substituídos pelo “representante adequado”, usando aqui as

palavras de Grinover.428

Portanto, o princípio da participação no processo coletivo garante que as coletividades

acessem a justiça de forma efetiva, mesmo que não atuem na condição de autores ou

litisconsortes, e estejam em juízo, tão somente, por intermédio dos legitimados ativos, de acordo

com a respectiva modalidade de ação coletiva proposta.429

3.7.4 Princípio da economia processual

A economia processual nos processos coletivos resulta de uma conclusão de ordem

lógica, considerando que por meio desta modalidade de processo o Judiciário poderá resolver

427 MARINONI, op. cit., p. 270. 428 GRINOVER, 2007, p. 13. 429 Ibidem, p. 12-13.

155

através de uma única ação coletiva que é levada ao seu conhecimento, litígios que demandariam

dezenas, centenas, milhares e até milhões de ações individuais.

No segundo capítulo desta dissertação já restou demonstrado a partir de Mendes, que a

inexistência ou deficiente funcionamento dos processos coletivos enseja uma multiplicação

desnecessária de ações individuais, acarretando agravamento na sobrecarga do Judiciário e

incentivo a produção de decisões padronizadas ou repetitivas, típicas de um trabalho mecânico.430

Gidi também observa que as ações coletivas promovem economia de tempo e dinheiro

para todos os envolvidos no processo. Para o grupo-autor a economia é manifesta em razão do

custo individual que cada autor teria se a ação fosse promovida na forma individual. Da mesma

forma o réu que não precisará enfrentar as despesas de inúmeras ações individuais relacionadas à

mesma controvérsia, enquanto que o Judiciário resolverá por meio de um único processo

coletivo, um ou mais litígios que demandariam grandes quantidades de processos repetitivos.431

Portanto, nos processos coletivos a economia processual apresenta uma intensidade

infinitamente superior àquela encontrada nos processos de ordem individual, onde a conotação se

restringe à questões de ordem prática, como indeferimento da inicial quando ausentes os

requisitos de admissibilidade, denegação de provas inúteis, coibição de incidentes irrelevantes

para a causa, permissão de cumulação de ações conexas, possibilidade de julgamento antecipado

da lide e saneamento do processo antes de ingressar na fase probatória ou de instrução.

3.7.5 Princípio da instrumentalidade das formas

Para falar da instrumentalidade das formas nos processos coletivos, cumpre, por oportuno,

novamente mencionar o art. 83 do CDC, já referido na análise da jurisdição em tais processos.

Tal dispositivo demonstra que a sistemática processual adotada pelo CDC, e aplicada a todas as

ações coletivas, busca conduzir a uma satisfação plena dos direitos coletivos, compreendidos em

sentido lato sensu. Para tanto, segundo análise de Venturi, os legitimados podem se utilizar de 430 MENDES, 2002, p. 33-34.

156

qualquer ação considerada idônea para a consecução do direito pleiteado, assim como os

magistrados estão autorizados a inovar nos provimentos concedidos. Por conseguinte, conclui o

autor, “[...] incentiva o dispositivo analisado a criatividade tanto por parte daqueles que buscam a

tutela como daqueles imbuídos da função de prestá-la em nome do Estado.”432

De forma bastante resumida, a partir de Dinamarco, é possível atribuir ao princípio da

instrumentalidade das formas o seguinte sentido: as formas dos atos processuais constituem

instrumento que está a serviço dos objetivos.433 E é por isso que o CDC, enquanto diploma legal

que apresenta toda a estrutura para o processamento das ações coletivas, oferece ao magistrado a

possibilidade de se utilizar de qualquer provimento que julgar necessário para garantir efetividade

ou materialização dos direitos tutelados.

Este é, portanto, o princípio que deve nortear a atuação do Judiciário na análise e

julgamento de processos que tutelam direitos coletivos. Para Venturi a liberdade interpretativa

atribuída aos juízes foi pensada em prol da efetividade, da proteção mais adequada possível dos

direitos metaindividuais, “[...] mediante o emprego das técnicas e procedimentos mais idôneos

para propiciar a tão almejada efetividade da prestação jurisdicional.”434

O mesmo autor ainda apresenta exemplos a partir de fatos que vêm sendo constatados na

quotidiana prática jurisdicional, concluindo que a instrumentalidade desejada para os processos

coletivos não se coaduna com as inaceitáveis decisões que extinguem ações coletivas sem

apreciar o mérito, fundamentadas em falta de legitimação ativa ou de interesse processual dos

autores, sem que o Judiciário busque (ou ao menos tente) suprir a carência constatada. E

complementa destacando que a assustadora freqüência com a qual o Poder Judiciário nega-se a

analisar um conflito meta-individual, apegando-se ao formalismo das tradicionais lições da

Teoria Geral do Processo Civil, notadamente ao tratamento conferido às condições da ação

idealizadas por Liebman para filtrar o acesso à justiça, revela “[...] um verdadeiro

431 GIDI, 2007, p. 26. 432 VENTURI, op. cit., p. 152-153. 433 DINAMARCO, C. R., op. cit., p. 325. 434 VENTURI, op. cit., p. 154.

157

amesquinhamento da função jurisdicional, vital à sobrevivência do Estado Democrático de

Direito.”435

3.7.6 Princípio da inafastabilidade da prestação jurisdicional coletiva

Seguindo exemplo dos demais princípios já apresentados, o princípio constitucional da

inafastabilidade da prestação jurisdicional apresenta nos processos coletivos contornos

diferenciados daqueles encontrados na esfera processual individual.

O princípio que decorre do art. 5º, inc. XXXV da CF, e que prevê a impossibilidade de

exclusão por meio de lei da apreciação do Poder Judiciário de qualquer lesão ou ameaça a direito,

ocupa nos processos coletivos um sentido mais ativo e de investigação, objetivando a plena

efetivação das tutelas jurisdicionais.436

Segundo Venturi a garantia constitucional da inafastabilidade deve ser reinterpretada a

partir de uma alteração paradigmática, “[..] traduzida na efetividade da tutela preventiva e

repressiva de quaisquer danos provocados a direitos individuais e meta-individuais, através de

todos os instrumentos adequados [...]”. O autor complementa que esta nova interpretação visa

incumbir ao Poder Judiciário não só a garantia de acesso formal à justiça, mas sobretudo, afirmar

os direitos meta-individuais mediante o contínuo manuseio do processo coletivo.437

Portanto, na seara dos processos coletivos, a inafastabilidade da prestação jurisdicional

inclui além da possibilidade de acesso formal, a certeza de que haverá efetividade tanto na

resolução dos conflitos, como na entrega da respectiva tutela preventiva e repressiva, garantindo

de forma plena a necessária materialização dos direitos.

435 O autor fundamenta este entendimento em pesquisa de campo sobre a ação civil pública, coordenada entre 1996 e 1999 por Paulo César Pinheiro Carneiro, por meio da qual constatou que o número de extinções sem julgamento do mérito é praticamente quatro vezes superior ao número de pedidos julgados improcedentes, e que o número significativo de extinções decorreu ou do reconhecimento da ilegitimidade (50%), ou de perda de objeto (27,77%). (VENTURI, op. cit., p. 154). 436 VENTURI, op. cit., p. 136. 437 Ibidem, p. 136.

158

3.8 DA NECESSIDADE DE UMA TEORIA GERAL ESPECÍFICA PARA OS PROCESSOS COLETIVOS

A idéia de que o Brasil encontra-se preparado para avançar na seara processual coletiva e

elaborar uma Teoria Geral dos Processos Coletivos, decorre de duas diretrizes básicas. A

primeira não evidencia uma real necessidade de elaboração de tal teoria, no sentido literal do

termo, mas uma conclusão lógica e que resulta do significativo avanço pelo qual passou nos

últimos anos, o conjunto de normas brasileiras (regras e princípios) atinentes às ações e processos

coletivos.

Parece ser uníssona na doutrina especializada do País, a exemplo da já citada observação

de Zavascki, o entendimento de que todo o cabedal normativo construído no Brasil ao longo de

várias décadas caracteriza no sistema processual um subsistema específico, rico e sofisticado, e

que aparelha o Judiciário na tutela dos conflitos coletivos, oriundos da sociedade moderna.438 Por

conseguinte, facilmente são encontradas afirmações que sustentam a tese de que o País possui na

atualidade, um efetivo direito processual de tutela de conflitos coletivos, o qual caminha de forma

paralela ao tradicional e clássico direito processual de tutela de conflitos interindividuais.439

E é justamente a qualidade do aparato normativo voltado para a tutela dos direitos

coletivos (em sentido lato sensu), que aparece em um primeiro momento enquanto fundamento

para a defesa da tese de que o Brasil já está preparado para elaborar uma Teoria Geral dos

Processos Coletivos. Neste sentido e para maior clareza, é importante colacionar a análise

elaborada por Grinover acerca de tal compreensão:

Vinte anos de experiência de aplicação da Lei da Ação Civil Pública, quinze de Código de Defesa do Consumidor, numerosos estudos doutrinários sobre a matéria, cursos universitários, de graduação e pós-graduação, sobre processos coletivos, inúmeros eventos sobre o tema, tudo autoriza o Brasil a dar um novo rumo à elaboração de uma Teoria Geral dos Processos Coletivos [...].440

438 ZAVASCKI, op. cit., p. 39. 439 ALMEIDA, op. cit., p. 17. 440 GRINOVER, 2007, p. 11.

159

A autora ainda complementa que esta compreensão resulta do entendimento de que o

Brasil já possui um efetivo e novo ramo da ciência processual, “[...] autônomo na medida em que

observa seus próprios princípios e seus institutos fundamentais, distintos dos princípios e

institutos do direito processual individual.”441

Almeida é outro autor que defende a idéia de que o Direito Processual Coletivo do País

constitui um novo ramo do direito processual, sendo que tal entendimento resulta da constatação

de que o direito processual coletivo já detém objeto e método próprios. O que interessa para o

presente trabalho de pesquisa é o direito processual que o autor denomina “direito processual

coletivo comum”, o qual “[...] tem como objeto material a tutela de direito coletivo lesado ou

ameaçado de lesão em decorrência de conflitos coletivos que ocorrem no mundo da concretude -

é a tutela de direito coletivo subjetivo [...]”.442

Juntamente com o avanço que atingiu o conjunto de normas aplicadas às ações e

processos coletivos, e que deverá ser melhorado com a futura aprovação do Código Brasileiro de

Processos Coletivos, há a segunda diretriz que fundamenta a idéia de uma teoria geral específica,

não menos e talvez mais importante do que a primeira.

A segunda concepção resulta da constatação de que a Teoria Geral do Processo aplicada

aos processos tradicionais de natureza cível, elaborada sob a influência individualista e formalista

do Estado de Direito e positivismo jurídico, não se coaduna com os processos coletivos, a ponto

de se tornar obsoleta perante estes, utilizando neste argumento as palavras do norte-americano

Fiss.443 Para corroborar este entendimento, cumpre trazer a colação a explanação de Nery Junior:

[...] os institutos ortodoxos do processo civil não podem se aplicar aos direitos transindividuais, porquanto o processo civil foi idealizado como ciência em meados do século passado, notavelmente influenciado pelos princípios liberais do individualismo que caracterizam as grandes codificações do século XIX.444

441 GRINOVER, 2007, p. 11. 442 O autor esclarece a diferença que há entre o que denomina direito processual coletivo comum e direito processual coletivo especial. Pelo primeiro, o autor entende ser o direito processual que tutela os direitos coletivos subjetivos, em sentido amplo ou lato sensu, o qual é objeto da presente dissertação, e pelo segundo, entende ser o direito processual que tem como objeto material o controle abstrato da constitucionalidade. É, segundo o autor, “[...] a tutela jurisdicional exclusivamente de direito objetivo, mais precisamente de interesse coletivo objetivo legítimo.” (ALMEIDA, op. cit., p. 614). 443 FISS, op. cit., p. 36. 444 NERY JUNIOR, op. cit., p. 114.

160

A análise elaborada neste capítulo acerca das condições da ação e de diversos institutos

processuais evidencia que a elaboração de uma teoria geral específica já pode ser considerada

uma verdadeira necessidade do sistema jurídico nacional, mesmo porque, o Brasil precisa

aprimorar os diversos mecanismos atinentes a esta seara jurisdicional, sempre objetivando

qualificar os aspectos da efetividade dos processos coletivos e da ampliação do acesso à justiça.

Opinam neste sentido, a exemplo da já citada Grinover, autores como Brandão, Almeida e

Santos. Para Brandão, a criação de uma teoria geral própria resulta de uma necessidade urgente,

“[...] que mais do que ser diversa da teoria geral do Processo Civil, deve levar em conta a

especificidade dos instrumentos processuais que constituem seu objeto.” E ainda, complementa o

autor:

Assim, mais adequado dizer que deverá fundar-se a nova teoria numa perspectiva ampliativa, no sentido de construir conceitos abertos para a efetivação dos instrumentos, abandonando a concepção e a postura de conceitos limitativos e rígidos que, por vezes, servem mais para restringir o âmbito de atuação do instrumento, como ocorre, por exemplo com as condições da ação no Processo Civil.445

Conforme já analisado nesta dissertação, no Estado Democrático de Direito o Direito

deixa de ser um mero instrumento de resolução de conflitos e assume um papel de transformador

da realidade social, de onde decorre a necessidade de um efetivo rompimento com muitas

concepções herdadas do Estado liberal-individualista. E é justamente em razão deste

entendimento atribuído ao Direito no Estado Democrático que na defesa de uma Teoria Geral dos

Processos Coletivos, Almeida argumenta:

Somente uma nova postura interpretativa com uma teoria geral própria para o direito processual coletivo poderá fazer com que o direito processual cumpra a sua verdadeira função social como instrumento de realização de justiça e de transformação positiva da realidade social.446

E ainda reitera o mesmo autor:

[...] de nada adianta a criação de instrumentos poderosos, como as ações coletivas e a própria coisa julgada coletiva, se o instrumento formal existente de viabilização de uma e de outra não é capaz de dar efetividade a esses novos institutos, seja pela falta de princípios ou de regras interpretativas específicas, seja pela inexistência de estudos que

445 BRANDÃO, op. cit., p. 302-303. 446 ALMEIDA, op. cit., p. 29.

161

desenvolvam a concepção de tutela jurisdicional coletiva por intermédio de método e objeto próprios.447

Para Santos o fato de saber que o Direito Processual Civil foi concebido para promover a

defesa de direitos individuais, faz pensar as bases teóricas e principiológicas da tutela

jurisdicional coletiva, no sentido de que há a necessidade de elaboração de uma teoria processual

própria para as ações coletivas, adequada ao novo instrumental processual e às características dos

novos direitos tutelados,

[...] buscando, assim, contribuir para o desenvolvimento de um pensamento jurídico processual coletivo e alertar para a necessidade de que sejam fincadas, desde já, as bases para uma futura elaboração científica de um Direito Processual Coletivo, ramo autônomo da Ciência do Direito Processual que se dedicará ao estudo da tutela jurisdicional dos direitos coletivamente considerados.448

Contudo, mesmo resultando de argumentos que demonstram tratar-se de uma verdadeira

necessidade para o sistema processual brasileiro, a idéia de elaboração de uma teoria geral

própria para os processos coletivos não é uníssona na doutrina especializada do País. Neste

sentido, ao tempo em que reconhece os consideráveis avanços produzidos na prática forense e

nos campos legislativo e doutrinário, e defende a elaboração de um Código Brasileiro específico

para os Processos Coletivos, com o propósito de acabar com os problemas que ainda persistem na

prestação da tutela jurisdicional coletiva, Leonel discorda das posições que consideram os

processos coletivos enquanto ramo distinto do direito processual. Em seus argumentos, pondera o

autor:

Aceitamos a ponderação de que a tutela jurisdicional dos interesses metaindividuais, de fato, apresenta peculiaridades que devem contar com regulamentação própria. Mas as vigas mestras para a compreensão do processo civil (seja ele individual ou coletivo) encontram-se assentadas na doutrina tradicional, bem como no nosso Código de Processo Civil.449

Leonel também conclui que o processo coletivo permite a adequação dos conceitos e

institutos do processo civil clássico, no sentido de que o trabalho já elaborado deve ser

447 ALMEIDA, op. cit., p. 29. 448 SANTOS, Christianine Chaves. Ações coletivas & coisa julgada. Curitiba: Juruá, 2006, p. 20-21. 449 LEONEL, op. cit., p. 144.

162

aproveitado e modernizado, “[...] adaptando-se às exigências da atualidade e dos conflitos

coletivos.”450

Venturi é outro autor que depõe contra uma teoria geral específica, argumentando que o

ideal é a permanência de uma ótica unitária do processo civil, desde que revista para corrigir as

distorções apresentadas pela teoria clássica, concluindo que as pretensões de autonomização do

Direito Processual Coletivo parece soar descontextualizada.451

No entanto, parece ser contraditória a opinião do mesmo autor quando deixa consignado

que muitas das perplexidades encontradas na prestação jurisdicional coletiva, resultam da

resistência em se considerar o modelo processual coletivo diferente do processo civil clássico e

da “insistência estéril” de tentar transpor ao sistema de proteção meta-individuais “[...] as

mesmas premissas nas quais se funda o sistema processual de tutela dos direitos individuais.”

Ainda observa que questões como a representatividade do autor, a legitimidade ativa, o interesse

de agir e a indisponibilidade do uso da tutela coletiva, demonstram a disparidade existente entre

os princípios da tutela coletiva e os critérios de aferição das demandas coletivas, viciados pelo

formalismo resultante da cultura enraizada nos critérios de aferição das ações individuais. E por

fim, ressalta que enquanto se tratar o processo coletivo a partir dos mesmos paradigmas que

regem o processo de cunho individual, “[...] não se conseguirá extrair do sistema de tutela

coletiva seu real sentido e alcance, tornando inviável a própria convivência entre as ações

individuais e coletivas.”452

Com o devido respeito que merecem as opiniões ora transcritas, não nos parece ser este o

melhor entendimento que deve receber a matéria, isto porque, conforme argumentos já

esboçados, os institutos do processo civil clássico mostram-se incompatíveis para tutelar qualquer

outra modalidade de direito que não os de natureza intersubjetiva. Trata-se, portanto, de um

equívoco apresentando por tais doutrinadores, equívoco que, segundo Brandão “[...] se espraia

para a interpretação dos modernos institutos colocados à disposição dos operadores jurídicos

quando se faz necessário interpretar os dispositivos legais que os consagram.”453

450 LEONEL, op. cit., p. 145. 451 VENTURI, op. cit., p. 36. 452 Ibidem, p. 20-24. 453 BRANDÃO, op. cit., p. 225.

163

Neste mesmo sentido, ao tempo em que chama a atenção para a notória inaptidão do

processo civil clássico quando aplicado na resolução de conflitos coletivos, Santos observa que a

posição inicialmente assumida pela doutrina, no sentido de promover adaptações e corrigir

distorções nos conceitos, princípios e técnicas seculares do processo civil, visando aplicá-lo em

âmbito processual coletivo, resulta de dois aspectos: o primeiro da constatação de que os

primeiros estudiosos a se depararem com os problemas da tutela jurisdicional coletiva, foram

justamente, “[...] os cientistas do Direito Processual Civil, onde ser natural que pretendessem

resolver esses problemas a partir das estruturas do processo civil [...]”; e o segundo, da concepção

de que o Direito Processual Civil seria dotado de universalidade, estando apto a fornecer “[...]

solução para as lides oriundas das mais diversas áreas do direito material.”454

Portanto, não restam dúvidas de que há uma efetiva necessidade de se ter no Brasil uma

Teoria Geral dos Processos Coletivos, visto que as fórmulas e padrões herdados do velho e

individualista processo civil não possibilitam ao processo coletivo desempenhar o papel que lhe é

cabível em um cenário de Estado Democrático de Direito, o qual congrega entre outros valores

primordiais, a garantia de acesso coletivo à justiça e de efetivação ou concretização dos direitos,

culminando na transformação da realidade social.

Uma teoria geral específica servirá de base e estratégia para promover a difusão do estudo

e debate dos instrumentos destinados à tutela dos interesses e direitos coletivos, que nem mesmo

aparece na maioria dos currículos universitários, potencializando, por conseguinte, o uso das

ações coletivas e a qualificação do acesso à justiça e da prestação jurisdicional nesta seara, que

apesar dos avanços, ainda apresenta dificuldades e insuficiências.

Com a difusão do conhecimento de tal teoria, o Brasil poderá diminuir o número de

práticas ilegais que hodiernamente ocorrem na sociedade e que nem mesmo são levadas ao

conhecimento do Judiciário por meio da iniciativa individual, tendo em vista os diversos fatores

que inibem e até mesmo impedem o consagrado direito de ação, evidenciando um afastamento do

Poder Judiciário dos pressupostos que norteiam uma democracia.

454 SANTOS, C. C, op. cit., p. 220.

CONCLUSÃO

A cultura jurídica ocidental pensada para vigorar a partir do advento do Estado Moderno

nos séculos XVII e XVIII, apresenta características que acompanham o pensamento jurídico até

os dias atuais, entre elas, o individualismo do ser humano e a preocupação voltada para as

questões de ordem privada. Significa dizer que as normas produzidas pelo Estado enquanto

detentor do monopólio de elaboração das mesmas, foram projetadas para vigorar em sociedades

cujos conflitos teriam natureza única, de cunho individualista.

E foi com base nesta perspectiva que o Direito Processual Civil brasileiro foi organizado

para regular a atividade jurisdicional do Estado. O próprio Código de Processo Civil é um

exemplo que evidencia tal conclusão, por ser um instrumento que não apresenta mecanismos para

resolver outros litígios, além daqueles com natureza individual. O instituto do litisconsórcio ativo

que poderia ser apresentado na condição de exceção, não passa de um meio de cumular demandas

individuais e, ainda assim, podendo ser limitado quanto ao número de litisconsortes para não

comprometer a defesa do réu e a rápida solução do litígio.

Ocorre que as transformações sociais ocorridas na sociedade, principalmente no século

XX, originárias do agigantamento industrial, dos avanços tecnológico e científico, da

globalização da economia e das massificações de produtos, serviços e dos meios de comunicação,

entre outros fatores, deram origem aos chamados “conflitos de massa” e que envolvem de forma

concomitante dezenas, centenas, milhares e, por vezes, até milhões de pessoas.

Por conseguinte, o Direito Processual Civil organizado para vigorar em ambiente de

conflitos individuais, não apresenta disposições capazes de garantir a tutela jurisdicional do

165

Estado quando os conflitos que são levados ao seu conhecimento têm origem coletiva (com

conotação lato sensu), tanto que o surgimento destas novas categorias de direitos levou o próprio

Estado a criar um conjunto de regras para possibilitar a prestação jurisdicional em ações de

origem coletiva, a exemplo da Lei da Ação Civil Pública e do Código de Defesa do Consumidor.

Todo o conjunto normativo inserido no sistema jurídico nacional, constitui o que se

convencionou chamar micro ou subsistema processual coletivo, especificamente voltado para os

conflitos coletivos. As disposições de tal sistema conjugadas com a atuação forense, com os

destacados estudos doutrinários e com as sérias pesquisas universitárias realizadas no Brasil nas

últimas décadas, deixa o País em lugar de destaque no cenário das ações e processos coletivos, a

ponto de podermos afirmar que os elementos já produzidos são suficientes para a elaboração de

uma Teoria Geral dos Processos Coletivos.

Sem prejuízo deste fundamento, a necessidade de elaboração de uma teoria geral

específica também resulta (e talvez com maior intensidade) da notória e abissal disparidade que

há entre determinados princípios fundamentais e os institutos do processo civil clássico, de cunho

individual, e os princípios e institutos dos processos coletivos.

Quanto aos institutos, a análise comparativa realizada no terceiro capítulos desta

dissertação, evidencia que nem mesmo as condições da ação do processo civil tradicional podem

ser aplicadas sem ressalvas em âmbito processual coletivo. Enquanto nesta modalidade de

processo o interesse de agir encontra-se na relevância social do direito tutelado, a legitimidade

ativa é conferida em regime extraordinário ou de substituição processual, e a possibilidade

jurídica do pedido assume uma feição universal, visando disseminar o uso das ações coletivas,

agilizar a prestação jurisdicional, facilitar o acesso à justiça e promover inclusão social; na

tradicional Teoria Geral do Processo Civil as condições da ação apresentam-se de forma fechada

e rígida, estando o magistrado autorizado a rechaçar de imediato o exercício do direito de ação e

de acesso formal à justiça, caso inexista a evidenciada necessidade de intervenção jurisdicional,

não houver comunhão entre o autor e o titular do direito lesado ou ameaçado, ou o pedido não

encontre previsão abstrata no ordenamento jurídico.

Os demais institutos analisados e que compreendem a litispendência, conexão,

continência, extensão da coisa julgada, liquidação e cumprimento da sentença, demonstram que

166

há uma evidente perda de sentido quando são extraídos do processo civil clássico e aplicados em

âmbito processual coletivo. A aplicação pura e simples é motivo de intermináveis discussões

doutrinárias, mesmo porque, determinadas situações práticas são dignas de embaraços e

verdadeira perplexidade, a exemplo dos absurdos entendimentos de apontam para a inexistência

de litispendência entre ações coletivas entre si, propostas por diferentes entidades legitimadas,

mas com idênticos pedidos e causa de pedir.

A pesquisa doutrinária realizada nesta dissertação constatou que é elevado o percentual de

ações coletivas que nem mesmo tem o mérito analisado pelo Judiciário, isto porque, os problemas

de ordem processual atraem de tal modo a atenção dos sujeitos do processo, que termina por

desviar o foco daquilo que realmente é importante, evidenciando um notório prejuízo ao direito

que assegura o acesso material à justiça.

O processo coletivo está preso às normas e institutos de uma teoria elaborada sob os

fundamentos individualistas da cultura jurídica moderna, arquitetada para resolver litígios

intersubjetivos, comprometendo, até mesmo, a compreensão de que as ações coletivas têm

natureza constitucional e foram pensadas para garantir a defesa e concretização de direitos

fundamentais, projetados em favor das coletividades.

Com as ações e processos coletivos sendo estudados a partir de uma teoria própria haverá

uma inegável difusão dos mesmos entre aqueles que se dedicam ao aprimoramento e aplicação do

Direito, efetivando em maior número a utilização de seus mecanismos e qualificando os objetivos

almejados com esta forma de prestação jurisdicional, e que incluem a própria facilitação do

acesso à justiça, a promoção de economia processual, a educação social e, principalmente, a

concretização dos direitos.

O rompimento com as concepções herdadas do Estado liberal-individualista é primordial

no Estado Democrático de Direito, cenário em que o processo deve abandonar a concepção de

mero instrumento de resolução de conflitos e assumir o papel de transformador da realidade

social, mesmo porque, apresenta-se enquanto mecanismo a disposição do Estado para a

efetivação dos objetivos fundamentais traçados para o País na Constituição da República.

167

As dificuldades e insuficiências hoje encontradas no processamento das ações coletivas

poderão se superadas com o incremento dos estudos e discussões nos meios universitários, os

quais ainda estudam uma Teoria Geral do Processo Civil que reproduz os conceitos da doutrina

liberal-individualista e que não contempla as diferenças entre os institutos, conceitos e princípios

especificamente aplicados aos processos coletivos.

Portanto, uma Teoria Geral dos Processos Coletivos é fator determinante para a ampliação

do conhecimento e, por conseqüência, para a efetivação dos direitos coletivos e transformação do

status quo¸ função primordial dos processos coletivos no Estado Democrático de Direito. Uma

teoria que apresente institutos menos rígidos do que aqueles encontrados na teoria do processo

civil tradicional, mesmo porque, torna-se necessária neste momento da história a contínua

abertura do sistema jurídico nacional, no qual deve prevalecer uma mínima intervenção

legislativa e o Judiciário deve pautar-se pela aplicação dos princípios e normas constitucionais.

REFERÊNCIAS

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