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4 - DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

SumárioBloco Temático

1- Seguridade Social

Seguridade Social no Brasil e perspectivas do governo Lula. Ivanete Boschetti / Elaine R. Behring

O valor estratégico da seguridade social pública na realidade brasileira atual. Marcelo Braz

A Previdência e a universidade pública. Nelson Prado Alves Pinto

Reforma da Previdência e docência: os rumos da universidade pública no Brasil. Donaldo Bello de Souza

A falência mundial dos Fundos de Pensão. Osvaldo Coggiola

A aposentadoria do professor que trabalhou em condições insalubres sob o regime da CLT. Aparecido Inácio / José Luiz Wagner

A reforma da Previdência Social e a Universidade. Contribuição da Associação de Pós-Graduandos da UFRJ

2- Financiamento da Educação

A temática - política de financiamento da educação - na revista Universidade e Sociedade. Vera Lúcia Jacob Chaves e Helena Corrêa de Vasconcelos

Tendências recentes nos gastos com educação no Brasil. José Marcelino de Rezende Pinto

O financiamento da educação no governo Lula: o "Ajuste Fiscal" continua. Nicholas Davies

Modernismo neoliberal ou retorno ao nacional desenvolvimentismo? Dilemas e desafios para a construção de um projeto nacional de desenvolvimento. Kátia Regina de Souza Lima

Autonomia universitária, luta docente e a questão dos repasses mínimos para as universidades. Antônio de Pádua Bosi e Luis Fernando Reis.

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DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 5UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

A mercantilização dos direitos e os novos dilemas da educação brasileira. Marcos Marques de Oliveira.

O financiamento do ensino superior público no Brasil: dos jesuítas a FHC Nelson Cardoso Amaral.

A avaliação institucional: uma política para o ensino superior. Olgaíses Cabral Maués.

Entrevista: José Paulo Netto

Debates Contemporâneos

Que fazer? A conjuntura e as nossas tarefas. Edmundo Fernandes Dias

Economia: a guerra é benéfica, desde que seja infinita. Riccardo Bellofiore

A situação do oriente médio após Saddam. Mohamed Habib (Unicamp)

O Conselho Nacional de Educação e a dança das cadeiras.Andréia Ferreira da Silva

Imprensa e "leitura" da luta pela terra no Pontal do Paranapanema. Sônia M. Ribeiro de Souza e Antonio Thomaz Júnior

Lukács, Gramsci e a crítica ao "Ensaio popular" de Bukharin. Alvaro Bianchi

Dialética, diálogo, discussão. François Chatelet

Para onde vai o Brasil? James Petras e Henry Veltmeyer.

Memória do Movimento Docente : Edmundo Fernandes Dias

Ensaio Fotográfico - A Amazônia Negada: Andréia Mayumi, texto Antônio José Vale da Costa

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Ao institucionalizar o sistema deSeguridade Social, aConstituição de 1988 agrupou,

sob esta designação, as políticas deSaúde, Previdência e AssistênciaSocial. A intenção foi criar um sistemade proteção social amplo, com pers-pectivas universalizantes e fundadona ampliação da cidadania social.Após quinze anos, a Seguridade Social não foi implementada conforme previsto na Carta Magna, e as políticas que a compõem são executadas de formadesvinculada e praticamente sem

relação entre si, não conformandoum todo integrado e articulado.Também persiste uma tendência deconfundir e restringir a SeguridadeSocial à Previdência, desconsiderandoas demais políticas sociais (Saúde eAssistência).

A Reforma Previdenciária de 1998e a atual proposta em tramitação noCongresso Nacional exemplificam talafirmação. Ambas diagnosticam a exis-tência de um suposto “déficit” da Pre-vidência, baseado puramente na lógi-ca contratualista atuarial de equilíbrioentre contribuição e benefícios, sem

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 9UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Seguridade Social no Brasil e perspectivas do governo Lula

Ivanete Boschetti*Elaine Rossetti Behring**

Seguridade Social

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mencionar a Seguridade Social e seusprincípios constitucionais de universa-lidade e diversidade de financiamento.Abordar a Previdência como políticaisolada e específica embute uma pers-pectiva de reforço ao modelo de segu-ros que sustentou esta política em suaorigem, na década de 1920. Situar aPrevidência, no âmbito da SeguridadeSocial, ao contrário, significa reconhe-cer que ela é muito mais que um segu-ro individual. Ela é uma política social,integrante de um sistema de proteçãosocial, destinada a garantir direitos econstruir a cidadania.

Que o diagnóstico de déficit naPrevidência e essa incompreensãoconceitual e relação política com a Se-guridade Social, marcas do período emque a programática neoliberal orien-tou uma verdadeira contra-reforma doEstado no país, são condições espera-das. A posição do Governo Lula, eleitocom base em fortes expectativas demudança de rumos, é que tem sur-preendido. Este artigo resgata o con-ceito de Seguridade Social articuladona direção de uma reforma democráti-ca do Estado e da sociedade brasilei-ras, desmistifica o falacioso déficit daPrevidência e analisa as condições po-líticas para a existência de avanços noterritório dos direitos, no próximo pe-ríodo, considerando sinais e tendên-cias apontadas nesses primeiros cincomeses do novo governo.

1- Seguridade Social não é só Previdência

A Seguridade Social não pode sercompreendida sem duas dimensõesque a constituem e lhe dão sentidoenquanto sistema de proteção social.Uma é a “lógica do seguro”, nascida naAlemanha Bismarckiana do final do sé-culo XIX e assemelha-se aos segurosprivados. Os benefícios sustentadospor esta lógica destinam-se principal-mente (e, às vezes, exclusivamente)

aos trabalhadores, o acesso é condi-cionado a uma contribuição diretaanterior e o montante das prestaçõesé proporcional à contribuição efetua-da. Quanto ao financiamento, os recur-sos são provenientes, fundamental-mente, da contribuição direta de em-pregados e empregadores, baseada nafolha de salários. Quanto à gestão, teo-ricamente (e originalmente) os benefí-cios deveriam ser geridos pelos contri-buintes, ou seja, empregadores eempregados1. Outra dimensão susten-ta-se na “lógica da assistência”, basea-da no modelo beveridgiano imple-mentado inicialmente na Inglaterra doPós-Segunda Guerra Mundial. Ao con-trário da primeira, esta preconiza queos direitos devem ser universais, desti-nados a todos os cidadãos incondicio-nalmente ou submetidos a condiçõesde recursos (testes de meios), mas ga-rantindo mínimos sociais a todos emcondições de necessidade. O financia-mento é proveniente majoritariamente(e, às vezes, exclusivamente) dos im-postos fiscais e a gestão é pública, es-tatal. Os princípios fundamentais são aunificação institucional e uniformizaçãodos benefícios (Beveridge, 1943; Palier& Bonoli, 1995, Castel, 1995).

Estes princípios e diretrizes nãoexistem em “estado puro” em nenhumpaís que instituiu sistemas de Seguri-dade Social. As políticas contemporâ-neas conjugam características dos doismodelos, com maior ou menor inten-sidade. No Brasil, os princípios do mo-delo de seguro predominam na Previ-dência Social e os do modelo assisten-cial orientam o atual sistema públicode saúde (com exceção do auxílio-do-ença, tido como seguro saúde e regidopelas regras da Previdência) e de As-sistência Social. É interessante notarque todos os sistemas de SeguridadeSocial existentes, seja na América La-tina ou na Europa ocidental, são cons-tituídos por políticas que incorporam

estas duas lógicas. Quanto mais diluí-das e mescladas forem as característi-cas indicadas acima, maior a justaposi-ção entre Previdência (seguro) e Assis-tência e maior a possibilidade de uni-versalização da seguridade social.

Nos países capitalistas europeus, acombinação entre Previdência destina-da aos trabalhadores contribuintes, As-sistência assegurada com base em cri-térios de necessidades e Saúde univer-sal assegurou proteção social quaseuniversal enquanto predominou o quese denominou de “sociedade salarial “(Castel, 1995). E isto foi possível por-que a associação entre as duas dimen-sões mencionadas garantiu coberturahomogênea aos trabalhadores inseridosno sistema produtivo e também aosque estavam fora dele. A maior expres-são disso são os programas de transfe-rência de renda, largamente difundidosna Europa, após a década de 1980.

No Brasil, a população que não estáprotegida pela Previdência Social totali-za a metade (em torno de 51 milhõesde pessoas) da população ocupada(Dieese, 2002). E isto deve-se, funda-mentalmente, a dois fatores: a existên-cia de um enorme contingente de traba-lhadores no mercado informal que nãocontribuem para a Previdência e perma-nência de regras baseadas no seguroque só protegem os trabalhadores con-tribuintes. Por outro lado, os parcosbenefícios assistenciais não se destinamaos trabalhadores produtivos excluídosdo mercado de trabalho. A SeguridadeSocial, ao privilegiar a dimensão securi-tária, torna-se injusta e provocadora dedesigualdades, sobretudo porque 79%dos trabalhadores não segurados (emtorno de 25 milhões de pessoas) rece-bem menos de dois salários mínimosmensais, e 79% dos trabalhadores quepossuem carteira de trabalho assinada(em torno de 18 milhões de trabalhado-res) recebem abaixo de cinco saláriosmínimos mensais (Dieese, 2002).

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Seguridade Social

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2- A Seguridade Social na Constituição Brasileira

A Seguridade Social aprovada naConstituição de 1988 enfrentou o para-doxo apontado acima, definindo princí-pios que conjugam as lógicas do segu-ro e da assistência e que deveriam bus-car um equilíbrio entre estas duasdimensões, de modo a permitir que aspolíticas de Saúde, Previdência e Assis-tência Social pudessem estruturar umamplo sistema de proteção social.

O princípio da universalidade dacobertura não garante que toda a po-pulação passaria a ter direitos iguais,mas assegura que a política de saúdeé universal, que a assistência é direitodos que dela necessitarem (ainda queo benefício do salário mínimo paraidoso e deficiente associe a necessida-de econômica à incapacidade para otrabalho), e a previdência é um direitoderivado de uma contribuição diretaanterior. Os princípios da uniformida-de e da equivalência dos benefíciosgarantem a unificação dos regimes ur-banos e rurais no âmbito do RegimeGeral da Previdência; mediante contri-buição, os trabalhadores rurais passama ter direito aos mesmos benefíciosdos trabalhadores urbanos. A seletivi-dade e a distributividade, na presta-ção de benefícios e serviços apontampara a possibilidade de instituir benefí-cios orientados pela “discriminaçãopositiva”. Este princípio não se refereapenas aos direitos assistenciais, mastambém permite tornar seletivos osbenefícios das políticas de saúde e deassistência.

A irredutibilidade do valor dos be-nefícios indica que nenhum benefíciodeve ser inferior ao salário mínimo,mas também sinaliza que estes devemser reajustados de modo a não ter seuvalor real corroído pela inflação. A di-versidade das bases de financiamen-to, talvez um dos mais importantesprincípios constitucionais, absoluta-

mente fundamental para estruturar aSeguridade Social, tem duas implica-ções. Primeiro, as contribuições dosempregadores não devem ser maisbaseadas somente sobre a folha desalários. Elas devem incidir sobre o fa-turamento e o lucro, de modo a tornaro financiamento mais redistributivo eprogressivo, o que compensaria a di-minuição das contribuições patronaisocasionadas pela introdução da tecno-logia e conseqüente redução da mão-de-obra, além de compensar o eleva-do mercado informal no Brasil. Em se-guida, esta diversificação obriga ogoverno federal, os estados e os muni-cípios a destinarem recursos fiscais aoorçamento da seguridade social. Final-mente, o caráter democrático e des-centralizado da administração devegarantir gestão compartilhada entre go-verno, trabalhadores e prestadores deserviços, de modo que aqueles que fi-nanciam e usufruem os direitos (os ci-dadãos) devem participar das tomadasde decisão. Isto não significa, por outrolado, que os trabalhadores e emprega-dores devem administrar as institui-ções responsáveis pela SeguridadeSocial. Tal responsabilidade continuasob a égide do Estado.

Tais princípios constitucionais, ge-néricos, mas norteadores da estruturaque deveria sustentar a Seguridade So-

cial, deveriam provocar mudanças pro-fundas na saúde, previdência e assis-tência, no sentido de articulá-las e for-mar uma rede de proteção ampliada,coerente e consistente. Deveriam, en-fim, permitir a transição de ações frag-mentadas, desarticuladas e pulveriza-das para “um conjunto integrado deações de iniciativa dos poderes públi-cos e da sociedade, destinadas a asse-gurar os direitos relativos à saúde, àprevidência e à assistência social” (Ar-tigo 194, da Constituição da RepúblicaFederativa do Brasil). Apesar de tais in-dicações, não foram estes os princípiosque sustentaram a implementação daspolíticas que compõem a SeguridadeSocial, na década de 1990, que orien-taram a “reforma” da Previdência ocor-rida em 1998 nem parecem ser estasas diretrizes que estão dando sustenta-ção à proposta de “reforma” previden-ciária do governo Lula.

3- A Seguridade Social (não) Implementada e a Reforma da Previdência

A lógica do seguro que sustenta aPrevidência brasileira, desde sua ori-gem, não foi eliminada, e vem sendoreforçada nas mudanças ocorridas nadécada de 1990, que reafirmam, cadavez mais, a Previdência como seguro.Não é por acaso que o INPS (Instituto

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Seguridade Social

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Nacional de Previdência Social) foi “re-nomeado” para INSS (Instituto Nacio-nal de Seguro Social) em 1990. Comexceção do salário família, todos osbenefícios assistenciais que estavamsob a guarda da Previdência foramtransferidos para a Assistência Social(renda mensal vitalícia, auxílio natali-dade e auxílio funeral). A Saúde, comexceção do auxílio-doença, desvenci-lhou-se dessa lógica e passou a ser ori-entada por todos os princípios do mo-delo assistencial beveridgiano (univer-salização, descentralização, uniformi-zação dos direitos, unificação institu-cional, financiamento predominante-mente de origem fiscal). A AssistênciaSocial, embora reconhecida como di-reito, mantém prestações assistenciaisapenas para pessoas comprovada-mente pobres (renda mensal familiarper capita abaixo de 1/4 do salário mí-nimo) e incapazes ao trabalho (idososacima de 67 anos e pessoa portadorade deficiência “incapacitada para avida independente e para o trabalho”2)e implementa programas e serviçoscada vez mais focalizados em popula-ções tidas como de “risco social” pelojargão técnico.

A “reforma” da Previdência3 Socialrealizada em 1998 atingiu, não só, mascom maior impacto, os trabalhadoresregidos pela CLT, sobretudo os do setorprivado. Ela caminhou no sentido dereduzir a amplitude dos direitos con-quistados com a Carta Magna. Isso sedeu por meio de diversos mecanis-mos: a transformação do tempo deserviço em tempo de contribuição, oque torna mais difícil a obtenção daaposentadoria, sobretudo para os tra-

balhadores que não tiveram carteirade trabalho assinada, ao longo de suasvidas; a instituição da idade mínima(48 anos para mulher e 53 para ho-mens) para a aposentadoria propor-cional; um acréscimo de 40% no tem-po de contribuição para os atuais se-gurados; o estabelecimento de um te-to nominal para os benefícios e a des-vinculação desse teto do valor do salá-rio mínimo, o que rompe com o prin-cípio constitucional de irredutibilidadedo valor dos benefícios e o fim dasaposentadorias especiais. Em 1999, fo-ram introduzidas novas mudanças nocálculo dos benefícios do RGPS, com acriação do fator previdenciário (FPR),que provoca a redução no montante fi-nal dos benefícios de aposentadoria.

Em relação às aposentadorias dosetor público, as mudanças tambémsuprimiram alguns direitos. Entre asprincipais, ressalte-se: a exigência deidade mínima para aposentadoria inte-gral ou proporcional (60 anos para ho-mem e 55 para mulher); aumento de20% do tempo de contribuição paraaposentadoria proporcional e 40% pa-ra integral; comprovação de cincoanos no cargo efetivo de servidor pú-blico para requerimento da aposenta-doria; fim da aposentadoria especialpara professores universitários; tempode licença prêmio não pode mais sercontado em dobro para efeito de apo-sentadoria; introdução da aposentado-ria compulsória aos 70 anos e implan-tação de um regime de previdênciacomplementar para servidores públi-cos federais, estaduais e municipais.Apesar das tentativas do Governo Fer-nando Henrique Cardoso, não se con-

seguiu acabar com a aposentadoria in-tegral dos servidores públicos (Salva-dor e Boschetti, 2002).

Agora, já em novo contexto políti-co, e após a eleição do presidente LuísInácio Lula da Silva, o discurso sobre a“necessidade” de uma Reforma naPrevidência do setor público é retoma-do com força e a proposta de “refor-ma” previdenciária elaborada pelopoder executivo já foi aprovada noâmbito da Comissão de Constituição eJustiça da Câmara dos Deputados.

A necessidade desta “reforma” éjustificada, basicamente, com dois ar-gumentos. O primeiro, amplamentedivulgado pela mídia, seria a existênciade um déficit na Previdência Social deaproximadamente R$ 70 bilhões, em2002, se considerado o setor público eo setor privado e se não for contabili-zada a devida contribuição da União,estados e municípios como emprega-dores. Este déficit cai para R$ 56,8 bi-lhões (setor público e privado), ao sedescontar a contribuição devida peloEstado em seus diferentes níveis (fe-deral, estadual e municipal)4. O segun-do argumento reside nas mudançasdos padrões demográficos, posto quea tendência de envelhecimento da po-pulação provocaria o aumento dos be-neficiários sem o corresponde aumen-to de contribuintes, ou seja, a relaçãocontribuintes/inativos estaria sendo re-duzida e provocando um desequilíbriona relação receita/despesa.

Na impossibilidade de aprofundaras polêmicas existentes em torno des-tas questões, o item seguinte discutiráo primeiro argumento, visto que a teseaqui sustentada é que uma das causasdo desequilíbrio nas contas (e não dé-ficit, já que este significa ausência derecursos) é a não implementação dosprincípios constitucionais apontadosacima, sobretudo a perspectiva inte-grada de financiamento da SeguridadeSocial. Diversos autores já apontaram

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A assistência social, embora reconhecida como direito,

mantém prestações assistenciais apenas para pessoas

comprovadamente pobres.

Seguridade Social

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que a crise financeira existente é pro-vocada, na verdade, por dois movi-mentos: as mudanças nas relações detrabalho que favorecem a flexibilizaçãoe redução de postos estáveis de ocu-pação, o que reduz as fontes de finan-ciamento (Melo, 1995; Marques, 1997;Soares, 1999; Mota, 1995); e a utiliza-ção dos recursos da Seguridade parapagamento da dívida e manutençãodo superávit primário (Fraga, 2000;ANFIP, 2002).

4- Desmistificando o “Déficit” da Previdência

Seguindo o princípio de diversida-de das bases de financiamento, o arti-go 195, da Constituição Federal, defi-niu que os recursos da SeguridadeSocial devem ser provenientes de trêsfontes: 1) orçamento da União, Esta-dos e DF; 2) contribuições sociais; e 3)receita de concursos de prognósticos.As contribuições sociais, por sua vez,subdividem-se em duas: a) do empre-gador sobre a folha de salário, a recei-ta e o faturamento e lucro; e b) a dotrabalhador e demais segurados.

A ampliação e diversificação dasfontes foram requisitos para atender,coerentemente, à expansão dos direi-

tos sociais e à instituição de um siste-ma amplo de Seguridade Social. A in-clusão de novos direitos como saúdeuniversal, benefícios assistenciais nãocontributivos como salário mínimo pa-ra idosos e deficientes (denominadobenefício de prestação continuada -BPC) e expansão da Previdência Ruralrequisitaram uma base financeira maisampla que a contribuição direta de tra-balhadores e empregadores sobre afolha de salários. Nesse sentido, foi ab-solutamente lógica e coerente suainclusão no Orçamento Fiscal da Uniãoe a criação de novas contribuições so-ciais sobre o faturamento e o lucro. Pa-ra tal fim, foram criadas a Contribuiçãopara o Financiamento da SeguridadeSocial (COFINS), a Contribuição sobreo Lucro Líquido das Empresas (CSLL) ea Contribuição sobre MovimentaçãoFinanceira (CPMF), esta última comdestino exclusivo para o financiamentoda saúde.

Contrariando as teses que susten-tam que a Previdência Social é defici-tária, estudo elaborado pela Associa-ção Nacional dos Auditores Fiscais daPrevidência (ANFIP) analisa o orça-mento da seguridade social em 2001,separando a arrecadação específica da

previdência (setor público e privado)da arrecadação da seguridade socialcomo um todo, com base nas indica-ções constitucionais. O resultado é sur-preendente e revela que a previdêncianão é deficitária. O que ocorre é que asfontes criadas para cobrir a ampliaçãodos direitos relativos à saúde e assis-tência (benefícios não contributivos,portanto sem arrecadação própria)não são completamente utilizadas pa-ra este fim, o que obriga o governo alançar mão das contribuições da previ-dência para custear todo o sistema deseguridade social.

A tabela 1, elaborada com os da-dos do SIAFI, sistematizados pelaANFIP (2002) mostra qual deveria sera arrecadação da Seguridade Social,em 2001, se respeitadas as fontes pre-vistas constitucionalmente.

Chama atenção, nestes dados, quea arrecadação das contribuições (item1) e CPMF (item 3) respondem, apro-ximadamente, por 90% da receita.Também são predominantes, ainda, ascontribuições de empregadores e tra-balhadores sobre a folha de salários erendimentos (43,7%). Embora a Cons-tituição separe a previdência do setorpúblico e do setor privado, quando seanalisa esta política sob o prisma daseguridade social como um sistema deproteção social, conceitualmente am-bas possuem o mesmo significado, demodo que não é absurdo analisar asreceitas e despesas sob este ângulo.Nesse sentido, a tabela revela que ascontribuições dos servidores públicos(item 5) e da União (item 6) não atin-gem 5% do total, indicando uma fontede desequilíbrio, como mostra a tabe-la seguinte. Enquanto as contribuiçõesdos trabalhadores do setor privado to-talizam R$ 136,8 bilhões, aquelas dosservidores públicos federais totalizamR$ 5,8 bilhões. A contribuição daUnião como empregador do setor pú-blico, por sua vez, não chega a 3% do

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 13UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Arrecadação das Fontes Destinadas ao Custeioda Seguridade Social em 2001

Recolhimentos Montante (R$ bi) %

1. Contribuições do Regime Geral de Previdência

empregadores/trabalhadores 62.491 43,77

outras receitas do INSS 0,618 0,43

COFINS 45.679 32,00

CSLL (Contribuição sobre o lucro líquido) 8,968 6,28

2. Concursos de prognóstico 0,521 0,36

3. CPMF 17.157 12,01

4. Receitas próprias do MS 0,962 0,67

Sub-Total 136.877 95,52

5. Contribuição dos Servidores Públicos 2.384 1,67

Civis 1.741 1,22

Militares 0,643 0,45

6. Contribuição da União 3.481 2.43

Sub-Total - Servidores Públicos 5.865 4,10

Total das Receitas 142.742 100,00Fonte, Anfip, 2002. Não estão incluídos aqui os regimes do setor público de Estados e municípios.

Tabela 1

Seguridade Social

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total da arrecadação e não correspon-de ao dobro da contribuição dos servi-dores, conforme preconiza a legislação(Lei 9.717/98).

O segundo conjunto de dados,apresentados na tabela 2, mostra asdespesas detalhadas da Seguridade So-cial e do regime dos servidores públicosfederais, neste mesmo ano, o que pos-sibilita confrontar receitas e despesas.

O primeiro dado a ser ressaltado éo total da despesa em 2001 (R$ 135bilhões), inferior à arrecadação (R$142 bilhões), o que indica um saldopositivo de R$ 7 bilhões. Em seguida, épossível verificar que os benefícios pre-videnciários do setor privado respon-dem por pouco mais de 50% da des-

pesa, enquanto os benefícios do setorpúblico federal respondem por 22%,ficando a saúde com 15% e a assistên-cia com pouco mais de 6%.

Mas, se tais valores mostram quehouve saldo positivo, de onde vem eonde está o “déficit” que vem sendodivulgado amplamente pelos jornais evem sendo a principal justificativa paraa reforma da previdência social?

Segundo a própria ANFIP (2002) etambém outros analistas, como Fraga(2000), uma das principais causas dosuposto déficit é a realocação das fon-tes oriundas das contribuições sociais(COFINS, CSLL e CPMF) pelo TesouroNacional, por meio da Desvinculaçãodas Receitas da União (DRU), antigo

Fundo de Estabilização Fiscal (FEF)5.Nestas fontes, os recursos desvincula-dos em 2001 chegaram a 30%, o queimplicou na redução de recursos daSeguridade Social, conforme mostra atabela 3:

Comparando as áreas que recebe-ram recursos das três principais fontescriadas para diversificar a base de fi-nanciamento da Seguridade Social,constata-se que, em 2001, apenas50% da COFINS, 21% da CSLL e 62%da CPMF foram aplicados nas três polí-ticas que compõem a seguridade so-cial (saúde, previdência e assistênciasocial). O restante foi aplicado em ou-tras áreas ou ficou retido no TesouroNacional. Diversas análises (ANFIP,2002; INESC, 2001; Fraga, 2000, Beh-ring, 2002) já enfatizaram que os re-cursos retidos pelo Tesouro Nacionalsão utilizados para manter o superávitprimário e pagar os juros da dívida pú-blica6. Só neste ano de 2001, R$19.221 bilhões ficaram retidos pelo Te-souro Nacional. Se somarmos a essemontante o total destas fontes aplica-do em outras áreas (R$ 16.924) chega-mos à cifra de R$ 36.145 bilhões quenão foram utilizados para despesas daSeguridade Social. Ora, se descontar-mos este montante desvinculado daarrecadação ocorrida em 2001 (R$142.742 bilhões), veremos que o re-curso efetivamente aplicado no paga-mento dos benefícios da SeguridadeSocial e do regime dos servidores pú-blicos da União foi R$ 106.597 bilhões,

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Tabela 2

Despesas da Seguridade Social em 2001Despesas Montante (R$ bi) %

1. Benefícios Previdenciários 73.692 54,35

Urbanos 59.383 43,79

Rurais 14.309 10,55

2. Benefícios Assistenciais 4.323 3,19

Renda Mensal Vitalícia 1.636 1,22

BPC/Lei Orgânica de Assistência Social 2.687 1,99

3. Encargos Previd. Da União (legislação especial) 0,682 0,50

4. Saúde 21.111 15,57

5. Assistência Social Geral e Defesa Civil 1.875 1,38

6. Custeio e Pessoal do MPAS 3.497 2,57

7. Ações do Fundo de Combate à Pobreza 0.233 0,17

Sub-Total com Previdência do Regime Geral,

Assistência Social e Saúde 105.413 77,74

8. Benefícios dos Servidores Públicos Federais

Civis 19.158 14,13

Militares 11.012 8,13

Sub-total da Previdência Servidores Públicos União 30.170 22,26

Total da Despesa 135.583 100,00

Fonte: ANFIP, 2002.

Arrecadação e Aplicação dos Recursos da COFINS, CSLL e CPMF em 2001

Áreas Montantes e Percentuais Aplicados por Fonte (em R$ bi)

Cofins % CSLL % CPMF %

Saúde 9.478 20,7 1.616 18,0 7.132 41,6

Prev. E AS 13.462 29,4 0,313 3,4 3.656 21,3

Subtotal SS 22.940 50,2 1.929 21,4 10.788 62,9

Outras áreas 11.811 25,8 4.797 53,4 0,316 0,01

Retido TN 10.928 23,9 2.242 24,9 6.053 35,3

Total Arrec. 45.679 100 8.968 100 17.157 100

Fonte: ANFIP, 2002. AS: Assistência Social SS: Seguridade Social TN: Tesouro Nacional

Tabela 3

Seguridade Social

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ou seja, bem menor que as despesasde R$ 135.583 bilhões. Só aqui, cons-tata-se uma diferença entre receita edespesa da ordem de R$ 28.986 bi-lhões, contabilizada como déficit previ-denciário. Claro está, portanto, que umdos motivos do “déficit” é a não utiliza-ção da totalidade das fontes de finan-ciamento da Seguridade Social paracusteio dos direitos sociais garantidosconstitucionalmente.

Além da desvinculação dos recur-sos da seguridade social, conforme de-monstrado acima, outros aspectos,muitas vezes omitidos, também contri-buem para reduzir a receita da seguri-dade social e induzir reformas que pri-orizam o equilíbrio financeiro pela viado corte e redução dos direitos e nãopela recomposição e ampliação da re-ceita. Um destes aspectos, tambémrevelado nas tabelas acima, é a baixa(quase inexistente) contribuição daUnião como empregador dos servido-res públicos e que deveria aportar aoorçamento da seguridade social duasvezes o total da contribuição dos servi-dores públicos (lei n0 9.717/98). Em2001, a contribuição da União foi equi-valente à dos funcionários públicos ecorrespondeu a apenas 11,73% dasdespesas com seus benefícios. Por ou-tro lado, trata-se de uma contribuiçãovirtual (ANFIP, 2002), visto que o mon-tante não é recolhido e agregado ao or-çamento da Seguridade Social que,embora constitucional, acaba existindoapenas no papel, visto que não há umaconta ou um fundo único para a Segu-ridade Social (Piscitelli et al, 2002).

Outro aspecto que concorre para aredução do orçamento da seguridadeé o baixo aporte de recursos fiscaispara o financiamento dos benefíciosnão contributivos instituídos com aConstituição de 1988. Em 2001, o Te-souro Nacional repassou R$ 18,9 bi-lhões (13,99% das despesas) do orça-mento fiscal para custeio da Segurida-

de Social, enquanto a despesa comsaúde e benefícios assistenciais corres-pondeu a R$ 27.542 bilhões. Conside-rando que a CPMF não é utilizada to-talmente no custeio da política de saú-de, e que o aporte do orçamento fiscalé reduzido, ocorre que recursos dacontribuição direta de trabalhadores eempregadores são utilizados tambémpara o custeio da Saúde e da Assistên-cia Social7.

Um terceiro aspecto a ser mencio-nado é a chamada “renúncia previden-ciária” assegurada por meio de subsí-dios a várias entidades de assistência,saúde e educação possuidoras do cer-tificado de entidade beneficente deassistência social (CEBAS) concedidopelo Conselho Nacional de AssistênciaSocial, além de micro e pequenas em-presas e clubes de futebol. Segundodeclaração do Ministro da PrevidênciaSocial, Ricardo Berzoini, ao Jornal Fo-lha de São Paulo, em 25 de janeiro de2003, estes subsídios totalizaram R$8,2 bilhões em 2002. É conhecidatambém a perda de receitas em fun-ção da sonegação e da fraude fiscal.Em 2001, a sonegação fiscal foi de R$115 bilhões (IPEA, 2002) e, em 2002,saltou para R$ 153 bilhões segundo in-formações disponíveis no site doMinistério da Previdência Social e pu-blicadas em todos os jornais de circu-lação nacional, em maio de 2003.

Com tais indicações, não temos aintenção de negar a existência de de-sequilíbrios nas contas e muito menosdefender que a previdência não deveser revista. Ela deve ser reformada,sobretudo para corrigir desigualdades

de tratamento entre trabalhadores epara assegurar direitos iguais aos cida-dãos brasileiros, e não para reduzirdireitos duramente conquistados pelaclasse trabalhadora. As controvérsiassobre o presumível déficit devem, con-tudo ser problematizadas e explicita-das, para que a sociedade possa parti-cipar do debate que se instaura.

Por fim, não podemos deixar deconsiderar o aspecto que, talvez, seja oprincipal responsável pela crise da pre-vidência: a insistente predominância,no Brasil, de elevado desemprego e derelações informais de trabalho, configu-rando o que se convencionou chamarde mercado informal. Segundo dadosdo DIEESE (2002:255), do total dos71,7 milhões de pessoas ocupadas,menos da metade (43,5%) são contri-buintes, ou seja, a maioria dos traba-lhadores que não tem carteira de tra-balho assinada não contribui para aSeguridade Social. Eles não são apenaspessoas que colaboram para engrossaro déficit previdenciário; eles são, sobre-tudo, cidadãos excluídos do acesso aosdireitos da Seguridade Social.

A sustentação financeira com pos-sibilidade de ampliação e universaliza-ção dos direitos, assim, não será resol-vida apenas com ajustes fiscais quenão contabilizam as causas estruturaisdo problema. A consolidação da segu-ridade social depende da reestrutura-ção do modelo econômico, com inves-timento no crescimento da economia,geração de empregos com carteira detrabalho, fortalecimento do setor for-mal, redução de desemprego, transfor-mação das relações de trabalhos flexi-

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 15UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

A sustentação financeira com possibilidade

de ampliação e universalização dos direitos, assim,

não será resolvida apenas com ajustes fiscais que não

contabilizam as causas estruturais do problema.

Seguridade Social

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bilizadas em relações de trabalho está-veis o que, conseqüentemente, produ-zirá ampliação de contribuições e dasreceitas da Seguridade Social.

Nesse sentido, as “reformas” daPrevidência (tanto as já realizadas nadécada de 90, como a que está emvias de acontecer), ao enfocarem aquestão apenas pelo ângulo de umpresumível déficit contábil da previ-dência, estão deslocando o debate da-quele que é o cerne da questão: a con-solidação da seguridade social comonúcleo central de um Estado socialuniversal, justo e equânime. Realizarmudanças na previdência pelo ângulodo corte e redução dos direitos é, nomínimo, render-se à lógica securitáriaatual e restritiva, que subordina o so-cial ao econômico e aos ditames domercado. Portanto, trata-se de fazeruma contra-reforma e não a reformademocrática sugerida no marco consti-tucional.

5- Perspectivas do Governo Lula e o Lugar da Seguridade Social

Cabe observar mais detidamenteos rumos do Governo Lula, conside-rando a herança dos anos 90, o pro-grama eleito e a nova correlação deforças que se abre. Qual será a condi-ção da Seguridade Social nesse novocenário econômico e político? Até on-de ele é realmente novo?

O processo eleitoral de 2002 foicomparado por muitos analistas àseleições de 1989. No entanto, essacomparação não se sustenta paraalém de generalidades. Isto porque ocampo democrático e popular perdeuas eleições em 1989, e, desde então,ocorreu o que pode ser caracterizadocomo uma contra-reforma do Estadobrasileiro, regressiva, destrutiva e anti-constitucional, em nome de nossa in-serção passiva nos processos de mun-dialização e financeirização do capitale de reestruturação produtiva (Beh-

ring, 2002). Em 1989, o Brasil saía deum período de ascenso das lutas con-tra a carestia e pelas liberdades demo-cráticas. Esta movimentação inédita nahistória republicana não conseguiuevitar uma transição democrática “tran-sada” e sob controle das elites, masculminou em algumas conquistas im-portantes na Constituição de 1988, aexemplo dos direitos sob a égide daseguridade social, conforme já foi dito.Em 1989, porém, ocorreu a vitória elei-toral e política de um projeto neolibe-ral e anticonstitucional, que teve conti-nuidade com o Plano Real e as “refor-mas” sugeridas no Plano Diretor daReforma do Estado (PDRE/MARE,1995), e nos Planos Plurianuais Brasilem Ação (1996-1999) e Avança Brasil(2000 - 2003), o que inviabilizou a re-forma democrática do país desenhadaao longo dos anos 80. O que houve apartir de 1990, portanto, foi uma con-tra-reforma.

Esta contraposição entre reforma econtra-reforma, aqui sustentada, me-rece um comentário. Desde o iníciodos anos 90, fala-se tanto na mídiaquanto na academia das reformas. Naverdade, esta avalanche ideológica foiuma operação mistificadora (no senti-do de forjar uma falsa consciência), esignificou a ressemantificação dos con-

ceitos ou sua apropriação indébita. Talcomo outros conceitos, o de reformaperdeu sua história, sendo redimen-sionado num projeto que lhe é alheioou sendo mesmo desqualificado. Aidéia de reforma sempre possuiu umaconotação de ampliação dos horizon-tes humanos, do acesso à igualdadesocial, à melhoria das condições devida. No interior do movimento operá-rio, desde o final do século XIX, cabelembrar, existia um intenso debate en-tre os projetos de reforma e revolução,envolvendo intelectuais e militantesdo porte de Kautsky, Bernstein, RosaLuxemburgo, Bebel, Trotsky e Lenin,dentre outros (Anderson, 1976). Erauma polêmica centrada na melhor for-ma de chegar ao socialismo, ou seja,continha a perspectiva de um avançocivilizatório, com a ampliação do aces-so à riqueza, à política e à cultura. Daídepreende-se que qualquer mudançanão é uma reforma.

Dada a natureza regressiva e des-trutiva das transformações engendra-das nos anos 90 e a ausência de pers-pectivas de ruptura com o drama crô-nico brasileiro da heteronomia e dainiqüidade social (Fernandes, 1987),aquelas configuraram-se como contra-reforma, ao invés de seguirem pela davia reformista social-democrata. Esta

16 - DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Seguridade Social

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caracterização faz-se, obviamente, àrevelia dos protestos de Bresser, FHC ecorreligionários, que se consideraram,ao longo de todo esse período, a es-querda moderna e renovada, a novasocial-democracia, ou a terceira via(Bresser, 1996 e Cardoso, 1999).

Em 2002, as condições eram ou-tras, após uma década de contra-refor-mas neoliberais, com seu rastro debarbarização da vida social (Menegat,2001). Tivemos uma década de: extin-ção de postos de trabalho e desem-prego, aumento da pobreza, da indi-gência e da violência endêmica; quedado investimento produtivo; destruiçãode parte do aparato produtivo cons-truído nos 50 anos anteriores, privati-zações e internacionalização do apara-to produtivo e financeiro brasileiro; eobstaculização da seguridade social,tal como foi concebida em 1988, con-forme se viu nos itens anteriores (Cf.Behring, 2002: Cap.5). A agenda dehoje, portanto, não parece ser - e nempoderia ser - a da radicalização da de-mocracia econômica e política, comoem 1989, mas é a da reconstrução dopaís, processo pelo qual se poderia oupoderá retomar o fio das aspiraçõespopulares dos anos 80.

Este quadro geral é o que permitecompreender os deslocamentos deforças e também programáticos quemarcaram o conjunto das candidatu-ras para a Presidência da República,em 2002, inclusive a principal candida-tura do campo democrático-popular.Aqui destaca-se a política de aliançasde Lula, mas também elementos im-portantes do programa de governo e a

famosa Carta ao Povo Brasileiro, maispara o mercado que para o povo, numcontexto de forte chantagem dos capi-tais sobre o processo eleitoral. O paísandou para trás nos últimos 10 anos:tornou-se mais desigual, mais heterô-nomo e dependente, menos democrá-tico, com as cerca de 5000 medidasprovisórias de FHC (INESC, 2001). Aomesmo tempo, o movimento operárioe popular esteve na defensiva depoisdo duro golpe sobre a greve dos petro-leiros, em 1995. Foram disputados pro-cessos eleitorais, mas num clima me-lancólico, de luta pela sobrevivência.

6- O Significado da Eleição de LulaNeste ambiente econômico, políti-

co e intelectual e moral, portanto, oresultado das eleições representouuma clara rejeição ao neoliberalismoque exauriu a sociedade brasileira, nadécada anterior. Ele significou, tam-bém, uma ruptura simbólica que nãopode ser subestimada, considerando acultura política secular na sociedadebrasileira (Chauí, 2000): o povo brasi-leiro confiou em si mesmo, o que éuma novidade histórica importantíssi-ma. Mas houve, paradoxalmente, con-cessões e recuos programáticos sériosno âmbito do próprio campo demo-crático popular e que foram legitima-dos eleitoralmente. Se o que se vis-lumbra no horizonte é o sonho acalen-tado ao longo de tantos anos de luta,do avanço efetivo no processo de radi-calização da democracia no país, nadireção de uma sociedade mais justa eigualitária, o programa eleito fez gran-des concessões às elites, historicamen-

te descomprometidas com essa pers-pectiva. Nesse contexto, como enfren-tar os desafios colocados pela expecta-tiva de rejeição ao neoliberalismo, aexemplo de recuperar a capacidade deinvestimento do Estado brasileiro, en-frentar o capital financeiro, gerar em-pregos, implementar políticas sociaisredistributivas e erradicar a pobreza, ecombater a violência? Na verdade, osrumos após o pleito eleitoral estão, emparte, nas mãos dos trabalhadores bra-sileiros, nas lutas que terão que travarpara que não prevaleçam as conces-sões do momento eleitoral e, sim, ossonhos de largo prazo dos que nuncativeram o poder decisório. Afinal, che-gar ao governo não é necessariamen-te chegar ao poder, ainda que signifi-que deter um poder significativo. Talconsideração remete as reformas efeti-vas à luta e correlação de forças entreas classes.

Passadas as eleições e a forte emo-ção da posse de Lula, muitos brasilei-ros provavelmente ficaram, nesses pri-meiros meses de governo, esperandoou apostando nos sinais de mudançassignificativas, até porque a palavra mu-dança foi a mais pronunciada nos dis-cursos da posse. Quais? Na direção deuma efetiva reforma democrática nopaís, da reconstrução do Estado brasi-leiro e da sociabilidade, ainda elas queviessem num ritmo mais lento, o daanunciada transição para uma novapolítica econômica, política social erelação política com a sociedade brasi-leira, considerando a herança dos anos90. Lula foi para a mídia pedir paciên-cia após os cem dias de governo, ecomo houve uma contra-reforma doEstado no Brasil, é possível imaginar otamanho e quantidade de problemasencontrados na chegada do novo go-verno no Planalto e na Esplanada dosMinistérios.

Passados cinco meses, já existemrealmente alguns sinais a serem co-

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 17UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Os rumos após o pleito eleitoral estão, em parte, nas mãos dos

trabalhadores brasileiros, nas lutas que terão que travar para que

não prevaleçam as concessões do momento eleitoral e, sim, os

sonhos de largo prazo dos que nunca tiveram o poder decisório.

Seguridade Social

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mentados, sem a pretensão de esgotarsua análise, mas para subsidiar um pro-cesso de reflexão coletiva, necessáriopara definir a agenda de mobilizaçõese de ações dos trabalhadores e docampo democrático da sociedade civilorganizada, especialmente no que refe-re à Seguridade Social e aos direitos.

7- Os Sinais e o que Esperar do Novo Governo

Destacar-se-á, então, alguns aspec-tos e sinalizações fortemente contradi-tórias do Governo Lula, se se tomampor referência o projeto e a expectati-va de ruptura com as políticas neolibe-rais por parte de amplos segmentos dapopulação brasileira.

7.1- Sobre a Política Econômica e a Política Social

No que refere à política econômica,já existia, desde a Carta ao Povo Brasi-leiro, a indicação do respeito aos con-tratos, nitidamente para acalmar osnervosos mercados, e de uma políticade transição para um novo modelo dedesenvolvimento econômico sustentá-vel. Apesar desse compromisso comos chamados mercados, com sua jáconhecida dinâmica de curto prazo, osdocumentos sinalizavam também a re-tomada do planejamento de largoprazo, abandonado na década ante-rior, para isso, apontando a perspecti-va de um Estado estruturador de políti-cas. Acumulou-se, na última década,um diagnóstico profundamente críticoda macroeconomia do Plano Real, apartir das formulações de Beluzzo, deConceição Tavares, César Benjamin,Reinaldo Gonçalves e muitos outros,que nos sinalizava a difícil compatibili-dade entre compromissos com os mer-cados, em especial o financeiro, sem-pre exigente de taxas de juros favorá-veis para a especulação e desinteressa-do do investimento produtivo, e políti-cas ativas de desenvolvimento econô-

mico e social autônomas. Então, comoconciliar objetivos tão antitéticos?

O primeiro documento sobre políti-ca econômica, e de fôlego estratégicono âmbito do Ministério da Fazenda,intitulado “Política Econômica e Re-formas Estruturais” (Ministério da Fa-zenda, 2002), passou ao largo dessacrítica e das proposições do campodemocrático, construindo um diagnós-tico e soluções inteiramente diferen-tes. Veja-se alguns elementos de seuraciocínio, o qual baliza a política eco-nômica em curso e avança em orienta-ções para a política social, a partir, cla-ro, de uma análise crítica.

Para os técnicos do Ministério daFazenda, o ajuste fiscal promovido naera FHC, especialmente entre 1994 e1998, em função da excessiva valoriza-ção cambial, foi responsável pelo in-chamento da relação dívida públi-ca/PIB. No entanto, houve uma corre-ta e bem feita correção de rumos, apartir de 1999. Na intenção de mantera estabilidade, o primeiro compromis-so da política econômica é a resoluçãodos graves problemas fiscais, ou seja,propõe-se um ajuste definitivo dascontas públicas, o que se combinacom as reformas estruturais (previdên-cia, tributária, autonomia do BancoCentral e crédito). O projeto é o derealizar uma melhoria da qualidade doajuste fiscal realizado na era FHC. Odocumento chega a dizer que se a fi-gura do superávit primário existissedesde 1994, a relação dívida públi-ca/PIB seria a metade da observada,mas sem qualquer nota crítica sobreseu impacto em relação aos investi-mentos do Estado brasileiro, que vie-ram sistematicamente sendo cortados,para sustentar a sangria de recursos daagenda da estabilidade.

Portanto, um elemento central doque seria a “nova” (?!) política econô-mica sugerida é a manutenção destemecanismo perverso, ao longo dos

próximos quatro anos, diminuindo oendividamento em proporção ao PIB(hoje em 53% e tendo em perspectivade com essa política baixar para 40%)combinado ao ajuste saudável dascontas públicas, o que geraria condi-ções de investimento em políticas es-truturantes. O documento não explicaa mágica que seria realizada, já que aestratégia do superávit primário nãoconseguiu deter o movimento do capi-tal especulativo até então, sempre in-teressado nos ganhos imediatos pro-porcionados pelas abusivas taxas dejuros. E os impactos do superávit pri-mário sobre a Seguridade Social estãoclaramente demonstrados acima. Con-tudo, segundo o documento, as contaspúblicas foram corroídas por três fato-res, ao longo do tempo: alteração dacomposição demográfica da popula-ção, aumento da taxa de informalida-de da economia e aumento das des-pesas previdenciárias. Percebemosque estes são elementos importantes,mas não necessariamente centrais.Nada se diz sobre a estatização da dívi-da brasileira promovida pelas elitesainda no período da ditadura e asexorbitantes taxas de juros praticadasnos anos 90 como mecanismos essen-ciais do crescimento exponencial doendividamento brasileiro.

A primeira das “reformas” estrutu-rais indispensáveis ao ajuste, como jásabemos, é a da previdência social. Odocumento expressa a posição políticado Governo Lula, de aceitar o diagnós-tico de déficit, falacioso, como já seviu. Na verdade, o que se pretendeaqui é estimular os fundos de pensãoe o Programa de Governo já anunciavaisso, quando dizia textualmente: “Emcomplemento ao sistema público uni-versalizado, aos trabalhadores tantodo setor público quanto do privadoque almejam valores de aposentado-rias superiores ao oferecido pelo tetoda previdência pública, haverá o siste-

18 - DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Seguridade Social

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ma de planos complementares deaposentadorias, com ou sem fins lu-crativos, de caráter facultativo e sus-tentado por empregados e emprega-dores”. E acrescentava: “esta pode serexercida através de fundos de pensão,patrocinados por empresas ou instituí-dos por sindicatos... (são) poderosoinstrumento de fortalecimento do mer-cado interno futuro e fonte de pou-pança de longo prazo para o desen-volvimento do país. É necessário o for-talecimento dessa instituição por meiode mecanismos de incentivo”. Daícompreende-se o apoio do governoneste documento e na Carta de Brasí-lia, costurada com os governadores, aoPL 09/99. Observa-se, no projeto da“reforma”, a penalização dos servido-res públicos e, o mais surpreendente -e isso não estava no programa de go-verno - a taxação dos aposentados em11%, a partir de um teto baixíssimo(R$1058,00), e a instituição de um tetotambém baixo (R$2400,00) para asaposentadorias, de uma forma geral.Ao invés de uma reforma previdenciá-ria para torná-la mais justa e sustentá-vel porque justa, unificada para todosos trabalhadores, com um teto digno,sem penalizar quem trabalhou e con-tribuiu a vida inteira, acabando com asaposentadorias astronômicas de unspoucos, e responsabilizando os sone-gadores que devem mais que o orça-mento de um ano de toda a segurida-de social à previdência, conforme aci-ma demonstrado, temos o aprofunda-mento da Emenda Constitucional 20/-98, e a ampliação da cobertura da leique instituiu o malfadado fator previ-

denciário. A estas propostas estranhasà trajetória da esquerda brasileira, eofensivas aos direitos, acrescenta-se oaçodamento na aprovação das medi-das no Congresso, sem a instauraçãode um debate abrangente.

As demais propostas de mudanças(tributária, BACEN e de crédito) mere-ceriam também um comentário, masque não cabe no espaço deste artigo,que pretende deter-se na relação entreseguridade social e política econômica.E é aqui que o documento do Minis-tério da Fazenda reserva surpresas: elebusca uma compatibilização entre suapolítica econômica restritiva e as políti-cas sociais, claro, as únicas possíveisnesse contexto - extremamente focali-zadas! Reproduz-se, mais uma vez, odiagnóstico da era FHC de que há ummontante de recursos razoável para osgastos sociais - não haveria, dessaforma, um problema de natureza orça-mentária - cuja eficácia e efetividadeseriam discutíveis. O documento opõea má focalização (sem avaliação e combaixa eficácia) à boa focalização (gastosocial mais eficiente, eficaz e focaliza-do). A política econômica sustentável eas “reformas” institucionais seriam ge-radoras de crescimento, emprego erenda, o que se combina à eficazespolíticas focalizadas. Nesse documen-to, não há qualquer referência à Segu-ridade Social e aos princípios já referi-dos, da mesma forma que no PlanoDiretor da Reforma do Estado (1995),tal referência não existia.

Em função desse preocupante do-cumento estratégico, que se concreti-zou em propostas que estão tramitan-

do hoje no Congresso Nacional, duastendências ficam claras: a continuida-de dos fundamentos da política eco-nômica anterior e não a transição paraum outro modelo, como vinha sendoanunciado; e a continuidade de restri-ções orçamentárias e incompreensõesconceituais profundas no campo daseguridade social.

Contudo, há alguns sinais melho-res advindos de outros setores do go-verno. Um deles é a discussão do Pla-no Plurianual Brasil para Todos ( 2004-2007), para o qual há uma agenda deaudiências estaduais e setoriais, nasquais a sociedade já está apresentan-do propostas. O PPA está sendo colo-cado como o momento do planeja-mento de largo prazo de um projetode desenvolvimento, que ultrapassariaa agenda da estabilidade econômica apartir de três eixos: inclusão social eredução das desigualdades; geraçãode emprego e renda em bases susten-táveis e com preservação do meio am-biente; expansão da cidadania e forta-lecimento da democracia. Pela primei-ra vez, a sociedade foi chamada a par-ticipar da formulação do PPA, que é oprimeiro momento do processo orça-mentário, e define o que realmentepoderá acontecer ao longo do gover-no, autorizando gastos públicos. Noentanto, a pergunta que paira no ar éa seguinte: podemos fazer um beloplano, mas como compatibilizá-lo comas restrições econômicas já sinalizadase que impõem uma margem de ma-nobra diminuída para os tomadoresde decisões, especialmente no querefere aos investimentos? Como fazerpara não construir um PPA muito inte-ressante, mas de ficção? Diferente dodocumento anteriormente citado, asOrientações Estratégicas (2003) parao PPA, recém divulgadas pelo Minis-tério do Planejamento, Orçamento eGestão, incorporam o conceito de se-guridade e não falam em focalização.

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 19UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Podemos fazer um belo plano, mas como compatibilizá-lo

com as restrições econômicas já sinalizadas e que impõem

uma margem de manobra diminuída para os tomadores de

decisões, especialmente no que refere aos investimentos?

Seguridade Social

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No entanto, o mesmo documento estásintonizado com as grandes linhas doMinistério da Fazenda, em termos dapolítica econômica e da previdênciasocial. O Programa Fome Zero, apesarde tropeços e declarações iniciais dis-pensáveis e inaceitáveis do gestor, éum projeto abrangente e interessante,que articula políticas compensatóriascom as políticas estruturais para ocampo, a exemplo da reforma agrária,e políticas sociais universalizadas, ouseja, preconiza uma perspectiva deseguridade que inclui a segurança ali-mentar, ao lado de ações que priori-zam determinados segmentos. Nessesentido, pode também ser visto comum sinal interessante, sobretudo se asua implementação ultrapassar açõesemergenciais (CFESS, 2003).

7.2- A Relação com a SociedadeCivil e com o Pacto Federativo

No que refere a uma nova relaçãoEstado/sociedade e de costura dopacto federativo, especialmente sepensamos o que foi essa relação noperíodo anterior - políticas vindas decima para baixo, formuladas por tec-nocratas e forçadas no Congresso pormeio de uma relação balcanizada - hánovidades interessantes. Foi simbolica-mente impressionante a entrega depropostas pelo Presidente da Repú-blica acompanhado de todos os gover-nadores ao Congresso. Essa constru-ção de legitimidade política não existiaantes. Essa articulação com os gover-nadores, que vem passando tambémpor pensar políticas regionais, é umanovidade importante que fortalece ademocracia, apesar do conteúdo daspropostas entregues ser bastante con-trovertido, especialmente a questão daprevidência. Inovação é também oConselho de Desenvolvimento Econô-mico e Social, uma arena de pactuaçãoe de escuta de demandas. No entanto,sua composição não garantiu sequer

uma paridade entre proprietários e tra-balhadores. A representação dos seg-mentos democráticos e populares estáclaramente subdimensionada, o quenão acontece com os segmentos em-presariais, e isso foi decepcionante. Deum ponto de vista setorial, há umacapilaridade nova e uma relação maisdemocrática. Os ministros de váriasáreas têm recebido o movimento so-cial organizado. Para 2003, apresenta-se a perspectiva de realização de váriasconferências setoriais, a exemplo daassistência social e das cidades.

A Luta Continua...O que concluir desses elementos

levantados? O fato de existir uma cor-relação de forças difícil não justificapropostas recuadas e com fundamen-tos equivocados por parte do GovernoLula, depois de tão longa espera. Euma mudança de rumos econômicose no campo da seguridade social e dosdireitos, na direção dos princípiosapontados anteriormente, vai depen-der muito mais da capacidade de mo-bilização dos trabalhadores e dosmovimentos sociais, do que da equipeque hoje estabelece as linhas de forçano governo, apesar de existirem clarassinalizações de pensamentos diferen-tes no seu interior. O fato simbólico deo povo brasileiro confiar em si mesmoe a expectativa de mudanças geradapela chegada de Lula à Presidência -mesmo sendo o “Lulinha Paz e Amor”- são condições novas para a organiza-ção das lutas. Um caminho será o dadisputa social desse governo, em defe-sa dos direitos, nas ruas, fazendo pas-seatas e mobilizações, posicionando-nos na imprensa de forma articulada.Outro caminho é o da construção decanais setoriais de diálogo, fortalecen-do os segmentos comprometidos quelá estão, e tensionando o Governo, nosentido de uma efetiva reforma demo-crática, da qual é elemento fundamen-

tal a implementação das políticas deseguridade, a partir de seus princípiosconstitutivos e com ampliação de di-reitos. Um pouco de reformismo soci-al-democrata - aqui num sentido clás-sico, aquele presente no debate sobrereforma e revolução do início do sécu-lo XX - por parte do governo Lula jáfaria bem para um país que precisa serreconstruído com justiça social... Maspoderá existir uma verdadeira capitula-ção, ao prevalecer a orientação geralda política econômica exposta anteri-ormente.

Pois bem, há um novo patamar dadisputa social no país, sem dúvida. Es-tariam os trabalhadores e o movimen-to social organizado preparados para anova tarefa? Os 10 anos de neolibera-lismo também impactaram o movi-mento sindical e os movimentos so-ciais em geral, que formularam estraté-gias defensivas e de resistência. Agora,cabe combinar a resistência à perspec-tivas propositivas, assegurando maisque nunca a independência e a auto-nomia da organização política dos tra-balhadores, no sentido de engendrar amobilização pelos direitos.

Notas1. Na Alemanha e na França ainda predomi-

na este tipo de gestão, com Caixas por moda-lidade de seguros. As centrais sindicais geramas caixas, mas com forte intervenção e regula-ção estatal. No Brasil, esta conformação este-ve na origem da Previdência Social, com asCaixas de Aposentadorias e Pensões (CAPs),organizadas por empresas. Estas foram substi-tuídas pelos Institutos de Aposentadorias ePensões (IAPs), organizados por ramo de ati-vidades, durante o governo Vargas. Os IAPs fo-ram unificados no INPS em 1966. Os traba-lhadores e empregadores foram sendo grada-tivamente excluídos da gestão, que tornou-seestatizada e centralizada, embora continuemsendo os principais financiadores da Previ-dência Social.

2. Cf. Artigo 20, inciso 3 da Lei Orgânica deAssistência Social - LOAS, de 07 de dezembrode 1993.

3. Para maiores detalhes, consultar Salvador

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Seguridade Social

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& Boschetti, 2002.4. Dados amplamente divulgados pelos jor-

nais. Ver, em especial, a Folha de São Paulode 25 de janeiro de 2003: “Previdência fechou2002 com déficit de R$ 56,8 bi”. Pg. A-4.

5. A Desvinculação de Receitas da União, foicriada em 1999 pela proposta de EmendaConstitucional n0 85/99, para vigorar no pe-ríodo entre 2000 e 2003, e prevê que 20% daarrecadação de impostos e contribuições so-ciais da União podem ser desvinculados deórgão, fundo ou despesa, o que na prática,possibilita redirecionar 20% da arrecadaçãoque, constitucionalmente deveria ser aplicadana seguridade social. Cf. Fraga, 2002.

6. A esse respeito o Jornal Folha de São Pau-lo publicou em 8 de fevereiro de 2003: “Eco-nomia do Governo vai para o pagamento dejuros”, mostrando que em 2002 o setor públi-co (União, Estados e municípios) gastou R$113.978 bilhões com pagamento de juros dadívida pública (interna e externa), pg. B-4.

7. O montante de R$ 18,9 bi não consta natabela de arrecadação da seguridade socialporque, segundo o estudo da Anfip, é transfe-rido diretamente do orçamento da União parao pagamento dos benefícios, não sendo alo-cado no orçamento da seguridade social.

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*Ivanete Boschetti é Assistente Social,Mestre em Política Social pela UnB, Douto-ra em Sociologia pela EHESS/Paris. Coor-denadora do Programa de Pós-Graduaçãoem Política Social (mestrado e doutorado)da UnB.

**Elaine Rossetti Behring é Assistente So-cial, Mestre e Doutora em Serviço Social pe-la ESS/UFRJ, Presidente do CFESS (Gestão1999 - 2002), Professora Adjunta do Depar-tamento de Política Social da FSS/UERJ.

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Seguridade Social

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No âmbito de algumas categoriasprofissionais, dentre elas a dos assistentes sociais, a temática daSeguridade Social vem ganhandoprogressiva relevância seja atravésde estudos teóricos ou de ações políticas que vêm defendendo e reafirmando seu papel estratégico às lutas dos setores mais progressistas da sociedade brasileira,inclusive no interior do combativomovimento docente, organizado em torno do ANDES2.

Tal constatação nos remete a am-pliar ainda mais o debate teórico emtorno da Seguridade Social, de formaa somar esforços ao acúmulo de co-nhecimentos necessário ao tema.Mais especialmente, pensamos a per-tinência de aprofundarmos um aspec-to central no debate que muitas vezesé tratado de forma secundária. Trata-se da relação entre a construção daSeguridade Social Pública e revolu-ção. Referimo-nos à seguinte questão:até que ponto a Seguridade Social pú-blica (e o processo coletivo de cons-trução a ela atinente) pode funcionarestrategicamente para a construçãode uma outra ordem societária? Porsignificar (não só, como veremos a se-guir) uma forma de controle/reprodu-ção da força de trabalho (e mesmo demistificação dessas funções), ela nãoseria mesmo antagônica ao projeto deconstrução de uma nova sociedade?

Qual a sua funcionalidade histórica? Éfuncional ao capital ou ao trabalho?Enfim, qual o seu valor para as classestrabalhadoras?

Estas questões nos remetem auma emblemática frase marx-engel-siana presente no Manifesto do Par-tido Comunista: “A história da socieda-

O valor estratégico da seguridade social pública na realidade brasileira atual1

Marcelo Braz*

Seguridade Social

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de se confunde até a hoje com a his-tória das lutas de classe”. Esta clássicaafirmação nos leva à compreensão deque o parâmetro que deve conduzirnossas análises deve ser sempre o mo-mento histórico da luta de classes. Oque significa considerar algumas dinâ-micas conexas a ela, produzidas emcontextos históricos específicos, taiscomo: o modo de ser mesmo das clas-ses sociais fundamentais, sua materia-lidade (como se expressam, como seorganizam, que perfis têm); a sua sub-jetividade, suas formas de consciênciadiante da realidade (como pensam,que projetos têm); as estratégias e for-mas de luta implementadas emmomentos históricos distintos.

Dessa forma, se a Seguridade So-cial e, antes dela, a política social, sãoresultantes do jogo político forjadopelos interesses de classes antagôni-cas na sociedade capitalista, devemos,antes de tudo, apanhá-las na dinâmi-ca histórica da luta de classes. O desa-fio é ir além das análises politicistaspara as quais a política social (e a Se-guridade Social) aparece como con-quista heróica dos trabalhadores,resultante da pressão sobre o Estadocapitalista e, também, das análiseseconomicistas para as quais a políticasocial (e a Seguridade Social) aparecesimplesmente como uma cooptaçãodos trabalhadores, servindo apenasaos interesses da burguesia.

O entendimento da Seguridade So-cial, a partir de seu caráter ontologica-mente contraditório no movimento darealidade, permite defendê-la comoinstrumento estratégico fundamentalda classe trabalhadora organizada apartir de dois vieses de luta que se com-plementam, quais sejam: a) comogarantia de condições sociais de vidados trabalhadores para a sua auto-re-produção (como estratégia de demo-cratização social); b) como campo deacúmulo de forças para a conquista do

poder político por parte dos trabalhado-res organizados (como estratégia dedemocratização política).

A idéia que desenvolveremos é ade que a Seguridade Social funcionacomo um eixo de interseção entreaqueles dois níveis de democracia - asocial e a política. E, dessa forma,mostra-se extremamente útil às clas-ses trabalhadoras organizadas comoverdadeiro instrumento de luta contrao capital e para a ruptura com seu or-denamento societal.

A Seguridade Social e o estratégico processo de democratização

A construção de um projeto de so-ciedade diferente do que está postona ordem exige, concomitantementeas projeções acerca de tal projeto, umesforço prático-político no sentido deelaborar propostas que possamganhar efetividade no plano histórico-concreto. Em outras palavras, qual-quer projeção macro-societária (proje-to societário3) precisa, sob pena de seesvair em utopias e esperanças, deum conjunto de planos táticos e estra-tégicos em consonância com os obje-tivos maiores. Os projetos coletivosprecisam ser pensados e organizadosno plano concreto das condições ob-jetivas onde operarão de fato, ultra-passando meras prescrições ideal-abstratas. No sentido de Mészáros(1996), os projetos devem ser articu-lados a partir das possibilidades de“sustentabilidade histórica” da realida-de objetiva. Devem ser articulados apartir de análises concretas de situa-ções concretas”, no sentido lenineano.

Ou, a partir de outra compreensãoque não significa colisão teórica com aanterior, os projetos coletivos (e ossocietários aí envolvidos) exigem, parasua oxigenação na realidade, a arqui-tetura de alternativas concretas, articu-ladas a partir das necessidades reaisdas classes em disputa. Esta articula-ção teórico-política demanda o domí-nio das causalidades sociais (dosnexos causais) que imprimem o senti-do histórico de tais necessidades(Lukács, 1976/84).

Ou seja, entre as necessidadessociais reais da classe trabalhadora(de sujeitos sociais potencialmente re-volucionários) e suas projeções cole-tivas societárias (no caso, de seu pro-jeto revolucionário) são necessárioselementos de mediação, calcados eminstrumentos táticos e estratégicos deluta. Aliás, a revolução é ela mesmaum meio para se chegar a um deter-minado fim que exige instrumentospara acumular forças para materializá-la (“A revolução como um meio e acultura como um fim”, diria Lukács).

Foi neste sentido que Lukács pen-sou o processo de democratizaçãocomo fundamental à classe trabalha-dora quando se pensa num processode transformação social. Aliás, é o acú-mulo de mudanças sociais significati-vas na estrutura da sociedade quepode (ou não) levar a um processo detransformação radical, no sentido deuma ruptura que favoreça o surgimen-to de uma sociedade de novo tipo.

A “derrubada da supremacia bur-guesa [e a] conquista do poder políti-co” pela classe trabalhadora depen-dem, no terreno das condições objeti-

Os projetos coletivos precisam ser pensados e organizados

no plano concreto das condições objetivas onde operarão

de fato, ultrapassando meras prescrições ideal-abstratas.

Seguridade Social

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vas históricas e concretas, da constru-ção de estratégias que potencializemas condições subjetivas da classe re-volucionária. Entre as diversas formu-lações marxianas acerca do processorevolucionário, despontam de formaevidente suas preocupações com oEstado, suas relações com a socieda-de civil (que para Marx são as própriasforças sociais econômicas), bem co-mo e notadamente, com o papel doproletariado nessa dinâmica. Dos Ma-nuscritos Econômico-filosóficos e daIdeologia Alemã, à Crítica ao Progra-ma de Gotha, passando pelo Mani-festo do Partido Comunista, Marx (eEngels) apresenta-nos uma trajetóriade continuidades e rupturas que cons-tituem a evolução do seu pensamen-to como uma unidade diferenciada.Para além de um conceito teórico deEstado, Marx o entende no plano on-tológico-social como uma síntese dascontradições e interesses presentes nasociedade civil, constituindo-se, dessaforma, num espaço de poder político(de classe). O Estado, as políticas so-ciais (e a Seguridade Social) são ins-trumentos políticos (de classe) tensio-nados historicamente pela pressão epela organização que as classes dis-põem em determinados contextos.

Assim, depois destas breves pro-blematizações teóricas, podemos afir-mar, com mais firmeza, que a Segu-ridade Social é instrumento político declasse e, desta forma, pode ter valorestratégico como tal para a classe tra-balhadora organizada, como um todo,na realidade brasileira, servindo subs-tancialmente ao indispensável proces-so de democratização anteriormentealudido. Seu valor histórico ontologi-camente contraditório nos permiteconsiderar que, mesmo sob direçãosocial burguesa, pode a SeguridadeSocial servir aos interesses históricosda classe trabalhadora. O processo dedemocratização que envolve níveis

distintos de democracia, a saber, de-mocracias política, social e econômi-ca, tem na constituição de uma Se-guridade Social Pública um instru-mento simultâneo de democracias so-cial e política.4

A necessidade histórica de uma Seguridade SocialPública no Brasil: estratégia dedemocratização social e políticada sociedade brasileira.

São alarmantes os dados sociaisda realidade brasileira. É sabido queocupamos vergonhosos postos nasdiversas pesquisas mundiais que tra-tam dos índices de pobreza e desen-volvimento humano. Ganhamos ape-nas dos mais pobres países africanose perdemos de quase todos os paíseslatino-americanos. Nossos padrões deiniqüidade social despontam como

desafios àqueles setores progressistasda sociedade que se preocupam coma garantia (nunca existente no históriado país) de padrões de vida verdadei-ramente humanos.

A assimetria social marcada na rea-lidade brasileira advém de longos pro-cessos sociais que invariavelmenteestiveram voltados aos interesses dasclasses dominantes. Da Colônia às Re-públicas, passando pelo Império, asclasses dominantes foram alavancan-do formas cada vez mais desiguais deapropriação das riquezas socialmenteproduzidas. As famosas “revoluçõespelo alto” (“façamos a revolução antesque o povo a faça”) são verdadeirasmarcas na cultura política brasileira,com interregnos sócio-políticos queserviram como contraponto à hege-monia das classes dominantes (aquivale destacar o Levante de 35, a movi-mentação política do 62-3 e os movi-mentos pela redemocratização doEstado Autoritário-Burguês do finaldos 70 e início dos 80). Aliado a estequadro histórico extremamente peno-so às classes trabalhadoras, somam-seos resultados catastróficos das políti-cas neoliberais, nos últimos anos, in-clusive nestes primeiros meses do no-vo governo.

Segundo Pereira (1998), a Seguri-dade brasileira tal como é colocada naConstituição Federal de 1988 é umconceito restrito e acanhado frente àidéia de Seguridade concebida porBeveridge, em 1942 - quando a políti-ca social integrava um complexo insti-tucional, base conceitual do WelfareState. A realidade latino-americana emundial, entretanto, aponta elemen-

A assimetria social marcada na realidade brasileira

advém de longos processos sociais que invariavelmente

estiveram voltados aos interesses das classes dominantes.

Seguridade Social

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tos que asseguram à SeguridadeSocial, enquanto um avanço, uma dasmaiores conquistas dos trabalhadoresno âmbito dos direitos sociais (Raiche-lis, 1998:20), pois essa política públicasignifica uma rede de proteção social.Mas, baseando-se novamente emPereira, as três políticas públicas -Saúde, Assistência Social e PrevidênciaSocial - que conformam a SeguridadeSocial não foram unificadas nem orga-nizadas de forma articulada. Cada umadelas se realiza de forma isolada, con-correndo, até certo ponto, uma com asoutras, o que facilita os ataques neoli-berais e o retorno de um modelo deproteção social com ênfase no seguroprivado. Essas políticas vêm - ao longoda década de 90 e neste início de go-verno Lula - recebendo ataques deuma contra-reforma, cujos exemploscabais são: a refilantropização, a Refor-ma da Previdência e a mercantilizaçãodas políticas públicas.

A democratização do acesso aosbens e serviços sociais ganha materia-lidade por meio da reorganização dosmodelos de assistências à saúde e so-cial que são conformados pelos princí-pios da universalidade, eqüidade eintegralidade das ações. A democrati-zação do poder ganha concretude pormeio das inovações democráticas decontrole do Estado por parte da classetrabalhadora organizada, expressa emdiversas entidades presentes no quese chama correntemente e de manei-ra indiferenciada de “sociedade civil”.A dificuldade é, em uma conjunturaatual de extrema pobreza e de redu-ção dos gastos sociais, desenvolver“formas de partilhamento do poder e,portanto, de aprofundamento eexpansão da democracia, [repudiando(...) populismos] da pequena políticaque se move em função de interessesparticularistas, [(...) o que vem demar-cando(...)] a tradição política brasilei-ra” (Iamamoto, 1998).

Verifica-se um inconteste enfra-quecimento das lutas sociais contem-porâneas, que tem dificultado açõescoletivas em torno da defesa dosavanços sociais da Constituição de 88e de seus pressupostos e princípios.Assim, os processos de implementa-ção de políticas e de efetivação dedireitos mostram-se, na trajetória daSeguridade Social tratada, lentos, frag-mentados e tensionados.

Diante do exposto, podemos su-por que não só a defesa e manuten-ção dos princípios da Constituição (eda Seguridade Social pública dela de-rivada) como também, e em graus deadversidades maiores, a concretudedos mesmos no cotidiano das massastrabalhadoras e, quiçá, seu aprofunda-mento e ampliação tornam-se maisdifíceis.

Diversos fatores concorrem paratal quadro. Além dos já citados, doisfatores combinados poderiam serelencados, se pensarmos na decisivaparticipação da sociedade civil organi-zada naqueles processos. São eles: acruzada antidemocrática inerente aoprojeto neoliberal em voga; e a conco-mitante fragmentação das lutas so-ciais atuais.

Não é objetivo deste sucinto textoesmiuçar estes fatores, uma vez queimplicam inúmeras questões associa-das e multideterminadas. Optamos poranotá-los e compreendê-los como de-cisivos no desdobramento de uma Se-guridade Social possível, uma vez quedizem respeito mais diretamente àspossibilidades de luta neste campo.

Os processos políticos neoliberais,aqui e em outras quadras, não têmdeixado dúvidas de que os processosdemocráticos não constituem princí-pios inerentes aos objetivos do capi-tal. Ao contrário, vêm sendo sistemati-camente secundarizados nos reorde-namentos políticos atuais. São consi-derados fatores que dificultam a agili-

dade e velocidade requeridas pelocapital, na contemporaneidade, umavez que a “construção democrática”mostra-se vagarosa e, por isso, estra-nha às necessidades instantâneas docapital se pensarmos no trânsitofinanceiro contemporâneo. Ou seja, aspalavras-de-ordem neoliberais - comoeficácia, eficiência e flexibilidade nãocondizem com a lógica dominante.

Mas não é só por isso que a demo-cracia mostra-se demodé ao neolibe-ralismo. Na verdade, o exercício deprocessos democráticos é, ele mes-mo, antagônico ao ideário neoliberal,exatamente porque sua vivência im-plicaria, no limite, o impedimento dosobjetivos capitalistas. Dessa forma, talcruzada antidemocrática resulta extre-mamente funcional.

Por outro lado, simultaneamenteao exposto, e contribuindo com o quefoi aludido, assistimos entre nós, des-de os anos 70/80, a uma intensa frag-mentação das lutas sociais organiza-das. Concorrem para isso os seguintesaspectos articulados entre si: o des-monte deliberado do movimento or-ganizado dos trabalhadores, com des-taque para o movimento sindical;uma crise de materialidade e conse-qüentemente de subjetividade, noseio da classe trabalhadora que se tra-duz em perda crescente de base so-

Seguridade Social

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cial e de sentido de “pertencimentode classe” (Antunes, 1999).

Isto provocou, quase que inevita-velmente, um claro enfraquecimentodos movimentos sociais organizados,além de uma diluição das demandasa eles inerentes, provocando umaconstituição fragmentada de movi-mentos sociais que assistimos na “so-ciedade civil”. Esta fragmentação apre-senta-se por meio de lutas cada vezmais pontuais, localizadas, imediatis-tas e, portanto, e, no limite, descola-das das lutas mais gerais. A diversida-de de demandas sociais e, conse-qüentemente de movimentos sociaisna “sociedade civil”, em si, não resultana fragmentação. A falta de articula-ção (que só pode ser de classe) entreelas, ou seja, a ausência de unidade(classista, sem prejuízo das particulari-dades atinentes a cada movimentosocial) é que resulta problemática.

A partir do panorama desenvolvi-do é que se reafirma, mais do quenunca, a necessidade de colocarmos aluta por uma Seguridade Social Pú-blica no Brasil como eixo de luta fun-damental aos setores progressistas daclasse trabalhadora. Pelo menos trêsmotivações principais põem esta lutacomo prioritária no cenário atual. Sãoelas: a) a luta pela Seguridade SocialPública é diametralmente oposta àsproposições neoliberais para o setor,configuradas em torno de seus orga-nismos internacionais, principalmenteo Banco Mundial, executadas, no mo-mento, pelo governo Lula, através daReforma da Previdência; b) a reafirma-ção da Seguridade Social Pública vaide encontro às tendências de frag-mentação das lutas sociais, uma vezque envolve várias categorias e váriosgrupos sociais pertencentes aos diver-sos estratos da classe trabalhadora, for-talecendo, ao mesmo tempo, senti-mentos de pertencimento e solidarie-dade classistas; c) a construção de um

padrão de Seguridade Social no Brasilsignifica a promoção de reformas estru-turais, que atingem diretamente as dis-crepâncias sociais historicamente cons-truídas no país, pelas quais as classesdominantes criaram arranjos que obs-taculizaram sistematicamente a partici-pação dos de “baixo”, tanto nas deci-sões políticas (democracia política)quanto no acesso à riqueza socialmen-te produzida (democracia social).

Por fim, esperamos que este artigoauxilie no processo de reflexão sobrea temática e que, ao mesmo, some-sea luta dos trabalhadores brasileirospela construção de outra sociedade,onde não precisemos de afirmar anecessidade de uma Seguridade So-cial Pública, uma vez que seus princí-pios gerais coincidirão com a novasociedade, a socialista.

Notas1. Este artigo faz parte de idéias desenvolvi-das em outros estudos. Dentre eles, o que seintitula: Controle social e o risco da contra-reforma na Seguridade Social: Algumas pro-posições prático-políticas; de Marcelo Braz;Marco Antônio Cruzeiro; Maurílio Matos deCastro e Rodriane de Oliveira Souza, 2000; eSeguridade Social: reafirmação do seu valorestrastégico. Trabalho apresentado ao II En-contro Nacioonal de Serviço Social e Se-guridade, 2000.2. É extremamente salutar quando vemos,nas manifestações públicas e em diversoseventos do movimento docente faixas e car-tazes que expressam valores e concepções osmais avançados de Seguridade Social. Noúltimo Encontro Nacional sobre assuntos deAposentadoria que, aliás, contou com a parti-cipação do CFESS, liam-se, numa das faixasexpostas, os seguintes dizeres: Em defesa daSaúde, Previdência e Assistência Públicas.3. Segundo Netto (1992), os projetos societá-rios têm, historicamente, a classe social comonúcleo central. Eles são estruturas mais oumenos flexíveis e mutáveis condicionadospor fatores históricos e políticos peculiares decada época. A existência e a concorrênciaentre os diferentes projetos societários de-pendem, fundamentalmente, dos níveis dedemocracia política verificados em distintos

contextos.4. A democracia econômica, que envolve acoletivização plena dos meios fundamentaisde produção e a conseqüente democratiza-ção da alocação do excedente econômico,prescinde, necessariamente, do trânsito paraoutra sociedade na qual o domínio de classese inverte. O socialismo caracteriza-se, fun-damentalmente, pela direção social e políticado proletariado sobre os processos sociaisorgânicos da vida social. Diria Gramsci queeste momento significa a hegemonização dopoder por parte da classe trabalhadora, pelaqual torna-se classe dirigente.

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*Marcelo Braz é Professor Assistente edoutorando da ESS/UFRJ; membro da dire-toria do CFESS (Conselho Federal de Ser-viço Social).

Seguridade Social

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Nelson Prado Alves Pinto*

1) Neste sentido, pode ser útil ini-ciar pelas distorções decorrentes deuma visão que insiste em fracionar aexistência humana (dos trabalhadores,naturalmente) numa seqüência deetapas que se articula em torno do

assalariamento capitalista. Vale dizerque, ao invés de reconhecer um conti-nuum durante o qual o ser humanodesenvolve formas distintas de partici-pação na reprodução social, o indiví-duo vê-se reduzido a uma única - e ab-soluta - alternância entre o “produti-vo/ativo” e o “aposentado/inativo” -com toda a carga ideológica/moralque estas qualificações ensejam. Odiscurso é bem conhecido: aos produ-tivos cabe o “ônus” da manutençãodos improdutivos e o seu reflexo é fa-cilmente encontrável na alienação

A Previdência e a universidade pública

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Embora seja difícil afastar aquilo que - construído e difundido pelosmeios de comunicação - se transformou num verdadeiro “sensocomum” sobre o sistema previdenciário - o privilégio dos servidorespúblicos, a inviabilidade do sistema atual, a modernidade dos fundoscapitalizados etc. - é importante, especialmente no âmbito da univer-sidade pública, tratar de (re)examinar algumas destas “verdades reve-ladas” de forma um pouco mais crítica e menos apressada.

Seguridade Social

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UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

individualista do jovem estudante ouno estranhamento do professor apo-sentado que se sente como um incô-modo descartável. É uma concepçãobizarra segundo a qual a sociedadeideal é aquela em que o assalariadosurge já adulto, por geração espontâ-nea e, com o passar dos anos, desapa-rece misteriosamente como num pas-se de mágica. Um mundo, em síntese,cujo tecido social pode prescindir doafeto do recém-nascido e da vivênciado idoso. Ainda mais confuso, sob oaspecto estritamente econômico, é aambigüidade dos rótulos “produtivo”e “ativo” que parecem se aplicar, in-distintamente, a qualquer indivíduoassalariado. Sob este ponto de vista, otrabalho doméstico (não remunera-do) seria “improdutivo” enquanto abalconista do comércio exerceria umafunção “produtiva”.

Neste particular, convém lembrarque as projeções acerca do impactoda evolução demográfica sobre osgastos públicos raramente destacamque tanto velhos quanto criançasconstituem “um fardo” para o univer-so dos “produtivos”. Auxílios-materni-dade, creches e escolas são tão one-rosos quanto pensões e aposentado-rias. Pode-se afirmar que uma socie-dade/economia capaz de oferecercondições materiais adequadas parauma população, com grande propor-ção de crianças, é igualmente capazde sustentar, numa etapa subse-qüente, um largo número de aposen-tados. A escolha de um destes doisgrupos como o “verdadeiro respon-sável” pelo ônus da improdutividadeé inteiramente arbitrária.

Não é difícil identificar a origemhistórico-ideológica desta “sociedadeideal” (aquela que prescinde das cri-anças e dos idosos) pois a própria no-ção de Previdência Social surge doprocesso de urbanização e industriali-zação associadas ao capitalismo. Na

verdade, é da tensão entre a apropria-ção privada dos meios de produção eas aspirações sociais que acompa-nham o crescimento das forças produ-tivas que se desenvolvem as políticasde assistência pública.

Assim é que o Estado torna-se,gradualmente e de variadas formas, oprovedor de uma extensa gama debens e serviços descurados pela inicia-tiva privada, mas imprescindíveis à re-produção social - e, por conseqüência,essenciais à sobrevivência da própriarelação capitalista. A PrevidênciaPública é apenas uma destas dimen-sões que tem na Poor Law elisabeta-na, do século XVI, ou no Sistema Pre-videnciário alemão, dos anos de 1880,alguns de seus marcos históricos maisconhecidos. Tratava-se, como se trataainda hoje, de disciplinar a dinâmicadessas relações sociais cuja lógica - ado lucro máximo - conduz ao desem-prego periódico, ao afastamento defuncionários acidentados/doentes eao abandono do trabalhador idoso àsua própria sorte. A gradual nacionali-zação da assistência previdenciáriaexprimiu, por um lado, a resistênciaao caráter totalitário desta racionalida-de privatista e, por outro, a necessida-de de desenvolver mecanismos depolítica econômica que atenuassemas bruscas oscilações da demandaagregada - e, conseqüentemente, donível de atividade econômica.

2) E aqui reside o segundo aspec-to do tratamento especialmente su-perficial que se vem dedicando ao de-bate sobre a Previdência dos servido-res públicos. Vale dizer que, ao identi-ficar a noção de produtivo/ativo com

a de assalariado em geral, os meiosde comunicação têm confundidoaqueles cuja atividade têm um caráterimediatamente social - o funcionáriodo Estado - com o trabalhador da ini-ciativa privada. A semelhança entreestas duas formas de assalariamento -que refletem a sujeição mais amplado trabalho ao capital - não esconde adiferença na procedência dos recursosutilizados e na finalidade das suas res-pectivas atividades. Enquanto a sub-sistência do trabalhador privado é cus-teada por uma combinação de recur-sos particulares (salários pagos peloempreendedor capitalista) e públicos(gastos sociais em educação, saúdeetc.), aquela do funcionário de gover-no é única e diretamente patrocinadapelo conjunto da sociedade. Enquantoo primeiro se aposenta fora da órbitade seu empregador privado (salvo ra-ras exceções), o segundo permanecesob a responsabilidade do Estado, aolongo dos seus períodos de atividadee de inatividade. Na verdade, o gastocom a aposentadoria dos funcionáriosde governo integra as despesas globa-is com o provimento dos bens e servi-ços públicos.

Ao ignorar esta distinção essenci-al, os meios de comunicação têm seafastado de um debate importante

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É uma concepção bizarra segundo a qual a sociedade ideal

é aquela em que o assalariado surge já adulto,

por geração espontânea e, com o passar dos anos,

desaparece misteriosamente como num passe de mágica.

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sobre a natureza e os recursos mobi-lizados pelo setor público para limitara sua análise a uma fração da remu-neração percebida pelos funcionáriosde governo.

Neste sentido, é interessante ob-servar como a ideologia (e a discipli-na) do assalariamento capitalista seinfiltram no debate sobre a Previdên-cia Pública, ao disseminar a curiosanoção de que o “direito” à aposenta-doria deve se restringir àqueles querecolheram, diretamente, uma contri-buição (imposto ou taxa) com esta fi-nalidade específica. Tratar-se-ia, nessahipótese, da negação do caráter socialdo Sistema Previdenciário, pois oequilíbrio absoluto entre a arrecada-ção e o desembolso de um sistemade aposentadoria/pensão permitiriadispensar a participação do Estado.Este benefício deixaria de se consti-tuir num direito do cidadão para con-figurar um mero diferimento do seusalário ou do seu rendimento corren-te. Instituições financeiras privadas(seguradoras e administradoras defundos de investimento) estariamplenamente capacitadas para prestareste tipo de serviço. Contrariando es-ta linha de raciocínio, a quase totali-dade dos atuais Sistemas Previden-ciários dos países capitalistas se de-

senvolveu, historicamente, ao ampliara abrangência, nacionalizar e diversifi-car as fontes de financiamento de an-tigos fundos setoriais, de caixas depensão profissionais ou de segurosde acidentes fabris.

Não será difícil reconhecer, nestedebate, a investida conservadora quese tem contraposto ao aprofunda-mento dos direitos sociais, em carátermais geral. Também no Brasil, em pas-sado não muito distante, os benefíciosprevidenciários foram estendidos aostrabalhadores rurais e aos persegui-dos pela ditadura militar - para ficarapenas em dois exemplos notóriosmas que poderiam se alongar para in-cluir as pensões estendidas às vítimasda talidomida, da hemodiálise emCaruaru, ao jornalista profissional etc.- numa decisão que hoje pareceriainteiramente incompatível com a polí-tica de elevação do superávit primário.

Assim, ao combinar a idéia de“equilíbrio financeiro” (cuja analogiadoméstica tem um apelo particular-mente intenso) com a indistinção en-

tre o funcionário público e o assalaria-do privado, a grande imprensa desen-volve um raciocínio que raia o despro-pósito quando, por exemplo, pretendecomparar o valor da aposentadoria detrabalhadores rurais àquele que se pa-ga aos professores das universidadespúblicas1. O sensacionalismo provoca-do pela fotografia de idosos aquinho-ados com pensões que contrapõemR$340/mensais (média do INSS) aR$7.300/mensais (média do Judiciá-rio) parece responsabilizar o SistemaPrevidenciário nacional pela espanto-sa desigualdade na distribuição derenda e de riqueza que caracteriza onosso país. É de fato vexatório que ocolhedor de cana do interior paulistaganhe apenas R$300 por mês, en-quanto um alto executivo (ou notóriojogador de futebol) possa receberR$100 mil mensais. É, no entanto,igualmente importante lembrar que adesigualdade das aposentadorias demagistrados e bóias-frias não constituia causa mas, sim, o reflexo dos valoresque esta sociedade atribui ao trabalhoe à dignidade humana. Não é apenasa pensão do trabalhador rural mas an-tes as suas disponibilidades totais (ne-las compreendidas os salários e asaposentadorias de qualquer origemacrescidas pelos bens e serviços públi-cos acessíveis) que são absolutamen-te insuficientes e inaceitáveis.

Essa incongruência na aborda-gem que insiste em tratar a aposen-tadoria do servidor público comouma remuneração compartimenta-da/autônoma fica ainda mais nítidaquando - recorrendo a um simplesexemplo de matemática financeira -se considera a equivalência das se-

Não será difícil reconhecer, neste debate, a investida

conservadora que se tem contraposto ao aprofundamento

dos direitos sociais, em caráter mais geral.

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guintes proposições: a) tome-se um docente de univer-

sidade pública cuja carreira profissio-nal se inicie aos 27 anos de idade,com um salário de ingresso de R$4.500,00 e cuja ascensão funcional re-sulte num incremento de R$ 500 reaisa cada 4 anos. Desta maneira, no tri-gésimo quinto ano de sua carreiraprofissional, seus ganhos mensais se-rão de R$ 8.500,00. Sua aposentado-ria manter-se-á constante nesse pata-mar, ao longo dos 25 anos subse-qüentes, até que ele - ou o seu cônju-ge/pensionista sobrevivente - venha afalecer (86 anos após o seu nascimen-to e 60 anos depois de iniciar a carrei-ra acadêmica);

b) suponha-se que o Estado deci-da cancelar o seu direito à aposenta-doria e, em contrapartida, conceda-lhe um aumento salarial real de apro-ximadamente 17%, sob a condição deque este incremento seja integral-mente aplicado numa conta de pou-pança bloqueada, auferindo um rendi-mento (também real) de 6% ao ano.

Um simples cálculo financeiro per-mite concluir que o saldo bancárioacumulado, a partir deste incrementosalarial de 17% (R$ 4.500,00 para R$5.262,81 na remuneração mensal ini-cial e assim sucessivamente até que osalário dos últimos três anos, tenha seelevado de R$ 8.500,00 para R$9.940,87) será suficiente para garantira mesma aposentadoria de R$8.500,00/mês, ao longo dos 25 anossubseqüentes, ao término de sua car-reira acadêmica.

O exemplo é meramente ilustrati-vo e sem veleidades atuariais, maspretende demonstrar apenas que osreclamos de “eqüidade” para o Sis-tema Previdenciário dos funcionáriosde governo (e as possíveis combina-ções salário/aposentadoria são infini-tas) decorrem de uma falsa com-preensão do significado dos gastos

públicos. Ao “eliminar” a aposentado-ria do professor universitário - propor-cionando a devida contrapartida - ogoverno teria simplesmente antecipa-do uma despesa futura. Se a compen-sação para o cancelamento daquelaaposentadoria (o aumento de 17%)fosse graciosamente estendida ao co-lhedor de cana de um empreendi-mento privado (fazendo com que osalário e a subseqüente aposentado-ria se elevassem de R$ 300 para R$351/mensais), ter-se-ia atenuado a in-justiça social? A resposta é certamen-te negativa, embora desaparecesse adecantada iniqüidade do sistema pre-videnciário nacional - nos termos par-ticularmente superficiais em que ela éapresentada pela mídia.

A peculiaridade desta situação -similar a de todos os funcionários pú-blicos e em contraposição a dos em-pregados privados - é a de que tantoo salário quanto a aposentadoriadeste professor são custeados pelomesmo Tesouro. Na verdade, ao con-

tratar o docente do exemplo anterior,o Estado assume um compromissofinanceiro que deve ser contabilizadocomo equivalente a R$ 5.262,81/mês- em sua fase inicial - embora o salá-rio nominal seja de R$ 4.500,00. Este,aliás, é o procedimento contábil re-comendado (compulsório nos EUA)às empresas privadas que oferecemplanos de aposentadoria custeadospelo empregador.

Ao mesmo tempo, somente aque-les que nunca tiveram contato - aindaque casual - com o mercado de traba-lho, podem ignorar o caráter abran-gente dos termos em que se negociaa remuneração dos assalariados tantodo setor público quanto da iniciativaprivada. Empregados e empregadoresavaliam a totalidade dos elementosque integram as suas respectivas re-munerações e equações de custos aocontratar ou oferecer os seus présti-mos (assistência médica, vale-trans-porte, férias, vale-refeição, gratifica-ções anuais ou qüinqüenais, previdên-

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Ao “eliminar” a aposentadoria do professor universitário

- proporcionando a devida contrapartida - o governo teria

simplesmente antecipado uma despesa futura.

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cia complementar, impostos e contri-buições etc.).

É absolutamente irreal supor que otrabalhador assalariado ignore - oudespreze - a parcela de seus proven-tos constituída pelos direitos previ-denciários. Assim, o verdadeiro deba-te sobre as alterações propostas parao atual sistema previdenciário é aque-le que trata do impacto destas modifi-cações nas condições globais comque se provêem os serviços públicosno País. Ou seja, da definição de umaremuneração integral compatível coma reprodução dos quadros de gover-no, em níveis adequados aos recla-mos da população. E, neste sentido, oquestionamento deve ir além dos pro-ventos para abranger a origem e a na-tureza específica das relações institu-cionais e trabalhistas que disciplinamo serviço público. Ou seja, dos atribu-tos - freqüentemente descritos como“privilégios” - tais como a vedação dademissão imotivada, a dedicação ex-clusiva, a inamovibilidade, a autono-mia universitária etc., cuja caracteriza-ção e abordagem pela mídia tem sidoassustadoramente inconseqüentes;

3) mas há pelo menos uma tercei-ra dimensão da crítica à Previdênciados servidores públicos cujo trata-mento tem sido particularmente ligei-ro e que certamente merece algumasobservações adicionais. Refiro-meaquilo que se define como o “desequi-líbrio” financeiro do sistema de apo-sentadoria dos funcionários de gover-no e ao seu possível equacionamentopor meio dos chamados fundos capi-talizados (aqueles em que se acumu-lam previamente os recursos necessá-rios aos futuros desembolsos).

A primeira objeção a esta noçãode “desequilíbrio” decorre do que jáfoi apresentado anteriormente, aoapontar para a natureza histórica dasdiversas políticas previdenciárias na-cionais. Ou seja, para o fato de que os

sistemas de repartição - onde a arre-cadação tributária é concomitante aopagamento dos benefícios (vigentesna quase totalidade dos países capita-listas) - exprimem valores sociais quese foram construindo ao longo dotempo e que não são redutíveis àidentidade contábil taxa/serviço ou tri-buto/benefício individuais. Assim co-mo não se supõe (até o presente mo-mento) que os pacientes de um hos-pital público tenham contribuído - in-dividual e antecipadamente - com ummontante equivalente ao custo de seutratamento, tampouco é necessárioque isso ocorra com os pensionistasdo sistema previdenciário. Há umsem-número de exemplos, neste sen-tido, tanto internacionais - como os daDinamarca e da Austrália onde os tri-butos de caráter previdenciário sãopraticamente inexistentes ou os daItália e da França onde os impostosgerais financiam uma parte substan-cial dos gastos com aposentadorias epensões - quanto brasileiros cuja ilus-

tração poderia tomar as pensões es-tendidas aos ex-combatentes da FEBou aos seringueiros da Amazônia, apartir de critérios eminentementesociais, sem que tenha havido qual-quer contribuição prévia significativa.

O que se está sugerindo é quenão há como afastar o caráter políti-co-ideológico na seleção deste oudaquele item da despesa pública co-mo o responsável pelo déficit dascontas nacionais. Não há nenhumarazão - apolítica ou “técnica” - paraafirmar que os gastos com a Pre-vidência dos assalariados públicos enão com os juros da dívida mobiliáriafederal, por exemplo, sejam os seus“verdadeiros” causadores.

Isso, no entanto, não excluiria ahipótese de que o financiamento dosdispêndios com a aposentadoria dosfuncionários de governo pudesse seratendido através de um fundo capita-lizado, em substituição ao atual siste-ma de repartição. E aqui deve-se reto-mar o exemplo anterior - do docente

Não há nenhuma razão - apolítica ou “técnica” -

para afirmar que os gastos com a Previdência dos assalariados

públicos e não com os juros da dívida mobiliária federal,

por exemplo, sejam os seus “verdadeiros” causadores.

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cuja aposentadoria foi substituída poruma conta de poupança - para que sepossa compreender a impropriedadedesta alternativa. Assim é que naque-la ilustração pretendeu-se demonstrara equivalência - do ponto de vista dorendimento do professor da universi-dade pública - das opções A (saláriosucedido pela aposentadoria) e B (sa-lário elevado em 17% e cancelamen-to da aposentadoria). Nesta hipótese(B), o Estado estaria antecipando umadespesa - ao integralizar gradualmen-te a poupança do funcionário - que,em condições normais, só ocorreria35 anos após a assunção do docente.

Esta talvez pudesse ser uma deci-são interessante se o Tesouro desfru-tasse de um superávit financeiro cujaaplicação/rentabilidade fosse superiorao seu custo de captação. Não é, po-rém, o caso das Fazendas do Estadode São Paulo e da União; pelo contrá-rio, ambas instâncias enfrentam défi-cits substanciais e taxas de juros ele-vadíssimas. Ao optar pela substituiçãodo atual sistema de repartição pelo defundos capitalizados, o Estado seria le-vado a expandir o seu endividamentoe, conseqüentemente, a elevar a suadespesa com juros.

É bem verdade que alguns defen-sores deste novo modelo têm aponta-do para uma possível “rentabilidadesuperior” das aplicações financeirasdestes fundos como uma futura com-pensação para o aumento dos gastosde curto prazo. Não há, no entanto,nenhuma evidência - nos mercadosinternacionais de ativos financeiros -que justifique esta convicção. Os estu-dos que abrangem a economia norte-americana, ao longo dos últimos 45anos (após a Segunda Guerra Mun-dial), indicam um rendimento real pa-ra as aplicações em ações de compa-nhias privadas, similar àquele que seobteve com os títulos do próprio Te-souro da União.

Talvez seja desnecessário acres-centar que o Brasil não dispõe sequerde parâmetros que permitam umaprojeção confiável para o retorno deinvestimentos, com um horizonte de30 ou 40 anos. O mercado de açõesnacional apresenta dimensões mo-destíssimas e, por conseqüência, umaextraordinária vulnerabilidade às ma-nipulações de grandes especuladorese à prevalência dos interesses de gru-pos controladores em detrimento dosacionistas minoritários. Ao mesmotempo, as taxas de juros reais quetêm sido negociadas pelo BancoCentral superam, em muito, a rentabi-lidade de boa parte dos empreendi-mentos privados.

Vale dizer, em síntese, que os fun-dos capitalizados não se justificamnem como uma medida saneadorada finança pública, nem como umexpediente garantidor do futuro dosservidores de governo. Neste sentido,as fraudes contábeis que recente-mente dominaram o noticiário eco-nômico e a crescente volatilidade dosmercados acionários deveriam servircomo um alerta convincente para es-ta ânsia privatista.

Na realidade, este entusiasmopelos fundos capitalizados é fomenta-do por uma quase imbatível conver-gência de interesses que congrega,pelo menos, três aspectos importan-tes: a possibilidade de reduzir os gas-tos de governo, a ampliação das re-ceitas do setor financeiro e a pressãoda grande empresa nacional por fon-tes de crédito mais acessíveis e demenor custo. Não chega a surpreen-der que, nesta última categoria, se en-contrem alguns dos maiores grupos

de comunicação do País - com desta-que para a imprensa e para as redesde rádio e televisão.

Deve-se reconhecer, no entanto,que este “impulso privatizante” refleteum movimento capitalista em escalaglobal, que transcende as nossas vicis-situdes nacionais. Não é difícil identifi-car uma tentativa mais geral de (re)es-tabelecer o controle privado sobre aparcela dos recursos e da sociabilida-de que parecem ter escapado ao capi-tal, nas economias centrais. Assim éque, por um lado, o avanço dos gastospúblicos - e do conseqüente controlesocial - na composição do produtodos países europeus, vem sendo dura-mente contestado e criticado pelasforças políticas dominantes. Por outro,a fuga do assalariamento capitalistaensejada pelo sistema de proteção so-cial - seguro-desemprego, pensões,aposentadorias, férias, licenças etc. -associada à baixa taxa de natalidade,tem sido vista como obstáculo à acu-mulação privada.

A resposta que estas forças políti-cas tem tentado desenvolver, conduz,em primeiro lugar, à transferência, pa-ra a esfera privada, da administraçãode uma crescente parcela das receitasgovernamentais (através das privatiza-ções e dos fundos capitalizados) e,em segundo, à imposição da “discipli-na do mercado financeiro” aos “des-

Os fundos capitalizados não se justificam nem como

uma medida saneadora da finança pública, nem como

um expediente garantidor do futuro dos servidores de governo.

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preocupados” aposentados ou pen-sionistas da classe média européia enorte-americana - um segmento ma-joritário em alguns deste países. Valedizer, tornar sua subsistência - apo-sentadoria, pensão ou renda de qual-quer natureza - dependente das osci-lações dos títulos privados. Um ato deverdadeira “solidariedade ao capital”que, num futuro não muito distante,surpreenderá o idoso ou o enfermo aconsultar, ansioso, as páginas finan-ceiras do seu matutino, antes mesmode tomar o café da manhã.

A combinação destas observaçõesmais gerais - de caráter reconhecida-mente sintético - indica um quadrono qual é impossível aceitar os ter-mos em que o governo se propõe areformar o Sistema Previdenciáriodos servidores de Estado. O que foianunciado, até o momento, não vaialém de um corte substancial na re-muneração dos funcionários públi-cos, sem outra preocupação que aelevação do superávit primário. A au-sência de qualquer atenção ou estu-do mais aprofundado sobre o impac-to destas medidas na oferta dos bense serviços públicos bordeja a mais

completa irresponsabilidade. Abandonando-se a hipótese, por

infundada, de que o ser humano apre-sente uma conduta absolutamente“compartimentada” - que o servidorde hoje não se reconheça no aposen-tado de amanhã - não é possível es-perar senão uma deterioração do ser-viço público nacional. Neste sentido, éparadoxal que ao mesmo tempo emque se protesta contra a falência dasegurança, nos grandes centros urba-nos do País (e no Rio de Janeiro emparticular), o governo - da “preocupa-ção com o social” - proponha um cor-te genérico na remuneração dos mes-mos policiais, delegados e magistra-dos de quem se pretende um desem-penho mais eficaz. E é ainda mais des-concertante que uma parcela aparen-temente expressiva da população - ajulgar pelas manifestações reproduzi-das pela mídia - não compreenda quea Reforma da Previdência não se fazcontra os “privilégios” do servidor,mas em detrimento do serviço públicoe de quem dele se utiliza.

Convém ressaltar que esse argu-mento não pretende negar ou ocultara existência, entre os funcionários de

governo, de eventuais remuneraçõesmuito superiores ao que seria compa-tível com o interesse coletivo. Esta si-tuação, no entanto, está longe deconstituir um traço dominante no ser-viço público - ao contrário do que amídia faz crer, ao exibir uma cuidado-sa seleção de aberrações e excepcio-nalidades. Um exame menos superfi-cial das condições de trabalho, no âm-bito governamental, redundaria numquadro razoavelmente sóbrio. Masainda que não se acreditasse nesteresultado, não há como justificar o iní-cio de um processo consistente deadequação destes vencimentos pormeio de um simples rebaixamentogeral e indiscriminado.

No contexto da universidade públi-ca, a reação à ameaça de um corte naremuneração dos docentes vem ape-nas confirmar a temeridade desta pro-posta: aceleram-se as aposentadoriasprecoces e agrava-se a carência de re-cursos humanos para a manutenção ea expansão das atividades acadêmi-cas. Igualmente grave é a perspectivade que se atrelem os vencimentos dosseus docentes e funcionários ao resul-tado financeiro das aplicações nos fun-dos de pensão. Aqui é crucial com-preender a cunha que se introduz najá combalida - mas fundamental - au-tonomia universitária. Ao abrir mão dasua competência para fixar a remune-ração integral de seus servidores, a uni-versidade inaugura uma etapa de sub-missão direta ao capital - personificadona Bolsa de Valores - de conseqüên-cias potencialmente funestas.

Notas1. VEJA, Previdência: A Reforma que vale umgoverno. São Paulo, ano 36, nº 3, 22/01/-2003, p. 34

*Nelson Prado Alves Pinto é Professor doInstituto de Economia da Unicamp.

Seguridade Social

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O presente artigo visa refletir acercada Reforma da Previdência Social noBrasil, com foco em alguns de seusimpactos, no âmbito do ensino superior público. Inicialmente, procuradistinguir a Previdência Social daPrevidência Privada, sinalizando parao processo em curso de dissolução daprimeira e de fortalecimento dasegunda. Em seguida, aborda a problemática do déficit docente nasInstituições de Ensino Superior públicas, chamando a atenção paraos perigos do aprofundamento depráticas já disseminadas em torno da adoção freqüente do ContratoPrecário de Trabalho, estabelecendoum paralelo entre o processo de privatização destas entidades e aquele referente à Previdência Social.Conclui, apontando para a necessidade de luta e resistência emrelação a políticas governamentaisque coloquem em risco os espaçospúblicos em questão.Previdência Social X Previdência Privada

Na América Latina, as reformas noâmbito da Previdência Social principia-ram, nos idos de 70, com a privatiza-ção total do sistema chileno (median-te as Administradoras de Fundos dePensão), em meio à “liberdade demercado” e, a um só tempo, profundarepressão social, política e ideológica.Nos anos 80, chegou a vez do Peru, daColômbia e da Argentina seguirem ochamado “modelo chileno”, embora

de modo parcial, enquanto que, no iní-cio da década de 90, Bolívia, Uruguai,Venezuela e México passaram a trilharesse mesmo caminho. Será que che-gou a vez do Brasil? Que marcas serãoimpressas, de modo específico, no en-sino superior público, em meio à heca-tombe de seu funcionalismo?

No ramo do seguro conhecido porSeguridade Social, é possível identifi-car-se os segmentos de PrevidênciaSocial e de Previdência Privada. A Pre-vidência Social, que tende a assumir

maior efetividade em economias nãoliberais (por exemplo, socialistas, oumesmo até no âmbito do chamado ca-pitalismo monopolista de Estado),refere-se a um sistema social de natu-reza institucional de Direito Público,estabelecido, no caso do Brasil, emsua Constituição Federal de 1988, quevisa assegurar o bem-estar dos indiví-duos, que lhes garantam a tranqüilida-de indispensável na sobrevivência, navelhice e na doença. Por seu turno, aPrevidência Privada pode aqui ser defi-

Reforma da Previdência e docência: os rumos da

universidade pública no BrasilDonaldo Bello de Souza*

Seguridade Social

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DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 35UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

nida como um conjunto de coberturascontratuais (pelo menos em tese“voluntárias”), regida pelo Direito Pri-vado, que visa atender, de forma parti-cular, as necessidades previdenciáriasde cada indivíduo, capaz de ocupar os“nichos de mercado” deixados pelaPrevidência Social, o que, em funçãode sua especificidade, pode configurar-se complementar (Previdência Com-plementar), facultativa (PrevidênciaFacultativa), entre outras modalidades.Para muitos especialistas do ramo doseguro (c.f. Molina, 1998), a Previdên-cia Privada é ainda tratada como queinserida no domínio do Seguro de Vi-da, caracterizada por possuir um pe-queno quantitativo de risco e um enor-me componente de poupança, o que atorna ainda mais atrativa enquantonegócio. Assim, é fácil deduzir que,quanto menos presente se fizer a atua-ção do Estado também nesta área,mais efetiva será sua ocupação pelainiciativa privada, mecanismo atravésdo qual determinadas responsabilida-des constitucionais do Estado vãosendo, exponencial e sorrateiramente,deslocadas para o pólo dos interessesnão coletivos da sociedade, processoque leva a “coisa pública” subsumir à“mão invisível” do mercado.

Comparativamente aos trinta anosprecedentes, é somente nos anos 90que o segmento de Previdência Pri-vada toma impulso no Brasil, em meioao início do enfraquecimento da Pre-vidência Social, pilar da Seguridade So-cial da nação. No período 1967-1977,correspondente aos dez anos imedia-tamente anteriores à regulamentaçãoda Previdência Privada no País (Lei no6.435/77), esta se viu parte integranteda chamada “década perdida”, tendosido duramente afetada pela não ado-ção da correção monetária. Já nosanos 80, o segmento de PrevidênciaPrivada se retrai em função do proces-so de estagnação econômica do País

sofrendo, ainda, perdas decorrentesdas altas taxas de inflação (Ramos,1995). Finda a primeira metade dosanos 90, na passagem do governo Ita-mar Franco - Fernando Henrique Car-doso (FHC), as expectativas para aPrevidência Privada tornam-se amplase promissoras. A tão conclamada esta-bilidade monetária, em paralelo às dis-cussões que se iniciaram em torno daReforma da Previdência Social, passa-ram a ser tomadas pelos empresáriosdo setor (crescentemente banqueiros)como fatores decisivos para a alavanca-gem do segmento. No entanto, parasurpresa geral, oito longos anos trans-correram e, apesar do grau de desmon-te sofrido pelo Estado na era FHC, aPrevidência Social, com sua imageminstitucional desgastada, ainda vinharesistindo aos reflexos das medidas pri-vatistas e liberalizantes que diretamen-te afetaram diversos outros setores davida econômica da nação.

Curiosamente, quando menos seesperava, eis que a Previdência Socialpassa a ser alvo de novas tentativas dedissolução, agora protagonizadas porum governo eleito não em função desua possível inclinação econômico-li-beralizante ou de submissão aos dita-mes de organismos internacionais,mas, ao revés, em decorrência de seupotencial anti-privatista e de compro-misso com a autonomia político-eco-nômica (se não com tendências a prá-ticas efetivamente socializantes, pelomenos avizinhando-se de aspiraçõessocial-democratas). Neste novo cená-rio, surge o tão combatido Projeto deLei Complementar (PLP) no 09 que,embora atualmente moribundo, pode

vir a ter seus princípios subjazendo aoutras propostas governamentais con-gêneres (por um lado, aumento da ca-rência no tempo de serviço e na fun-ção e, ainda, da idade mínima paraaposentadorias e, de outro, reduçãodos valores das aposentadorias e pen-sões, pelo artifício de sua tributação).

De forma sintética, tanto o PLP nº09, quanto outros que poderão delederivar, trazem implícita e explicita-mente a noção de que as contas públi-cas (grosso modo, relação receita-des-pesa da União) não se equilibram emvirtude da progressiva e irreversívelcrise da Previdência Social. Curiosa-mente, nos anos 90, esta mesma criseorçamentária era explicada comoresultado da ineficiência técnica, finan-ceira e econômica das empresas esta-tais, o que levou à privatização de maisde 230 instituições federais, cujosrecursos auferidos, ao invés de seremconvertidos em investimentos sociais,conforme na época proclamado, sedirigiram ao pagamento dos encargosda dívida interna e, sobretudo, externa(se quer de seu valor principal, mas,essencialmente, dos juros).

Contudo, em recente evento orga-nizado pelo Sindicato Nacional dosDocentes das Instituições de EnsinoSuperior (22º Congresso ANDES-SN -Terezina-PI, 8 a 13 de março do cor-rente), a diretora da Associação Nacio-nal dos Auditores Fiscais da Previdên-cia Social (ANFIP-RJ), Sra. ClemilceSanfin, nos traça outra realidade. Deacordo com os dados apresentados, aPrevidência Social, ao invés de deficitá-ria e parasitária, consiste numa instân-cia superavitária, que logrou acumular,

A Previdência Privada é ainda tratada como que inserida no

domínio do Seguro de Vida, caracterizada por possuir um

pequeno quantitativo de risco e um enorme componente de

poupança, o que a torna ainda mais atrativa enquanto negócio.

Seguridade Social

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nos últimos três anos, um saldo positi-vo da ordem de R$ 96 bilhões (Refor-ma, 2003). Evocando o mesmo levan-tamento realizado pela ANFIP, a pro-fessora da Universidade do Estado doRio de Janeiro (UERJ), Elaine Bhering,em Aula Pública ministrada em marçodo corrente nesta instituição (quandona Semana de Mobilização contra atramitação do PLP nº 09), destaca quea União vem se valendo, de um lado,dos saldos positivos relativos ao orça-mento destinado à Seguridade Social(como o de R$ 24,4 bilhões, registradoem 1991) e, de outro, dos recursosconcernentes às próprias fontes definanciamento desta Seguridade (co-mo os desvios de parte do COFINS ede percentual expressivo da CPMFpara outras áreas e/ou finalidades nãosociais): “...Os dados levam a concluir(...) que não é a união que tem trans-ferido o orçamento fiscal para o finan-ciamento da seguridade social, massim o contrário.” (Ato, 2003, p. 3).

Debilitação dos cursos e proletarização docente

Na educação, e de modo aindamais específico, na esfera do ensinosuperior público, há de se esperar pro-fundos e desastrosos impactos decor-rentes da efetivação das políticas emquestão. Poderão levar, com certeza, àefetivação de aposentadorias em mas-sa, preconizáveis pelo quantitativoatual de solicitações de contagem detempo de serviço que estão registran-do os setores de RH das Instituições deEnsino Superior públicas (federais eestaduais) - veja-se que já se tem noti-cias de cálculos que indicam a carreirapara a aposentadoria de cerca de 26%de servidores, entre os quais se in-cluem cinco reitores de UniversidadesFederais (Previdência, 2003). A exem-plo do que se deu na segunda metadedos anos 90, no Brasil, corremos o ris-co de, além de perder os colegas pro-

fessores de maior experiência, não vir-mos a ter suas vagas proporcional-mente preenchidas (c.f. Souza & Ga-ma, 2002). Neste caso, testemunhare-mos o aprofundar de um cenário quehá muito se delineia em nosso País: deum lado, o crescimento marcadamen-te acelerado da Previdência Privada, àscustas das constantes tentativas deerosão da Previdência Social e, de ou-tro, a radicalização do processo de ex-pansão do ensino superior privado,mediante a imolação das Instituiçõesde Ensino Superior públicas, majorita-riamente Universidades.

Há cerca de 20 anos atrás, o ensinodito de terceiro grau público respondiaa aproximadamente 60% das matrícu-las, enquanto que o setor privado anão mais do que 40%, quadro contras-tante ao atual, no qual este último che-ga a atender a mais de 70%, enquan-to que as instituições públicas federaise estaduais, em meio aos impactos deuma política governamental a elascrescentemente desfavorável, não che-gam a responder aos 30% das matrí-culas restantes. Nos cinco anos que sesucederam à aprovação da nova Lei deDiretrizes e Bases da Educação Nacio-

nal (LDB) - Lei nº 9.394, de 20 de de-zembro de 1996 -, se verifica um au-mento de cerca de 54,5% na quantida-de de instituições de ensino superiorno Brasil (de 900 entidades, em 1997,para 1.391, em 2001), acompanhadode um incremento igualmente expres-sivo de cursos superiores (100%) e dematrículas (55%) - no primeiro caso,praticamente dobrou a quantidade deinstituições, passando de 6,1 mil para12,155 mil e, no segundo, concernenteàs matrículas, de 1,95 milhões para3,03 milhões, ambos também conside-rados no período 1997-2001, segundoCenso do Ensino Superior realizadopelo MEC/INEP e IBGE. É assim que apropalada expansão do ensino supe-rior brasileiro ocorre: pela debilitaçãodas instituições públicas, pelo minguarprogressivo e lento de seus recursos eprestígio social, em paralelo à oxigena-ção das instâncias particulares que,salvo algumas exceções - em especialas confessionais e as poucas particula-res com tradição acadêmica -, poucocontribuem para o desenvolvimento daciência e da tecnologia do País.

No cenário em questão, os prejuí-zos ao ensino superior público brasilei-ro serão incalculáveis, sobretudo se le-vado em conta que a prática do Con-trato Precário de Trabalho1 se intensifi-cará entre as instituições públicas,agora em decorrência de pedidos deaposentadoria em massa e da falta dehorizontes em torno de novas contra-tações, aprofundando ainda mais odéficit estrutural docente. Nessas uni-versidades, há muito que o ContratoPrecário de Trabalho foi integrado àsrotinas administrativas, pactuado emdiversas áreas da instituição, sobretu-

Na educação, e de modo ainda mais específico, na esfera do

ensino superior público, há de se esperar profundos e desastrosos

impactos decorrentes da efetivação das políticas em questão.

Seguridade Social

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UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 37

do no âmbito da docência. Professo-res, alcunhados de substitutos (aque-les que irão atuar em cursos de gra-duação) e visitantes (aqueles que irãoatuar em programas de pós-gradua-ção), são freqüentemente contratadospara suprir demandas eventuais resul-tantes, por exemplo, da cessão de co-legas efetivos para outras unidades daprópria universidade ou de outras es-feras governamentais, de licenças mé-dicas e congêneres, ou, no caso doscursos de pós-graduação, para o aten-dimento, por exemplo, de necessida-des pontuais relativas a determinadaslinhas ou projetos de pesquisa, a inter-câmbios, entre outros. Não obstanteestas circunstâncias, o Contrato Precá-rio de Trabalho vem contribuindo paraa degradação do ensino superior pú-blico brasileiro, em virtude das disfun-ções e abusos que marcam sua ado-ção institucional: de solução, mesmoque paliativa, para déficits conjuntu-rais, o CPT se transmuta em instru-mento dedicado à manutenção e ci-mentação de déficits estruturais.

No cenário em questão, os prejuí-zos ao ensino superior público brasilei-ro são incalculáveis. Centremo-nos,por ora, em apenas dois aspectos bási-cos: a debilitação da qualidade doscursos e a proletarização involuntáriadocente.

No primeiro caso, de antemãocumpre destacar que a qualidade doscursos ministrados pelas instituiçõessuperiores públicas que hoje, significa-tivamente, operam com docentes tem-porários, torna-se débil. A contrataçãode professores substitutos não prevêseu envolvimento em espaços volta-dos à pesquisa e extensão, tampouco

em atividades administrativas e peda-gógicas, dimensões estas que marcama excelência do trabalho docente e ocaráter acadêmico atinente ao papeljurídico-social das Universidades públi-cas brasileiras. Nestes termos, o ensinouniversitário é qualificável não apenasa partir do cotidiano circunscrito à salade aula, mas também por aquele emque se desenvolve o espírito investiga-tivo - através do qual se pesquisa -, e,ainda, na própria objetivação destessaberes quando no estreitar dos víncu-los entre a instituição universitária e asociedade como um todo, ou seja, pe-la via das atividades de extensão. Con-jugados, ensino, pesquisa e extensãoconstituem esferas, a um só tempo, deelevado potencial pedagógico, rico empossibilidades de desenvolvimentohumano e social, mesmo que, em al-guns momentos, se verifiquem entra-ves que dificultam a integração deseja-da ou a efetividade de uma ou de ou-tra daquelas esferas. Sob outras pala-vras, há uma forte interdependênciaentre estes três pilares da universida-de, a tal ponto que sua dissociaçãocoloca em risco a identidade social emesmo legal destas instituições. Sãojustamente esses espaços que servem,por exemplo, à realimentação dasaulas e cursos, aprimorando-os e atua-

lizando-os, beneficiando, em particu-lar, professores e alunos, e, de modogeral, a sociedade.

Além da questão acima posta, de-ve-se observar que a contratação deprofessores substitutos se dá por umprazo de seis meses, renováveis ematé um ou mais anos, dependendo dainstituição, ou seja, se encerra, de ummodo ou de outro, justo quando o do-cente logra aperfeiçoar o curso que vi-nha ministrando, a melhor interagircom a cultura da instituição, a estreitarlaços de amizade, a consolidar seushorários, em fim, a sentir-se parte inte-grante de um trabalho coletivo. Valeainda destacar que, após o término docontrato, o docente está condenado anão mais poder voltar a “prestar servi-ços” àquela instituição, sob a alegaçãode que tal fato pode vir a caracterizarvínculo empregatício. Desses docen-tes, muitos são imediatamente absor-vidos pelas entidades de ensino supe-rior particulares, se servindo da expe-riência adquirida e do nome da insti-tuição de ensino superior pública emque atuou como substituto. Sob esteaspecto, a universidade pública pade-ce privada de usufruir o aprimoramen-to e maturidade atingidos por seusprofessores substitutos, transferindopara as entidades particulares tal privi-légio, sugerindo que a instituição pú-blica se encontra, em certa medida, aserviço da preparação de recursos hu-manos para o setor privado da educa-ção, afigurando-se como um grandecentro de treinamento docente.

No segundo caso, ocorre o queaqui denominamos proletarização in-voluntária docente. A contratação per-manente, abusiva e desbaratada deprofessores substitutos em uma uni-versidade pública acaba por segmen-tar a classe no interior da instituição,subscrevendo um outro grupo de pro-fissionais da educação que se situa àmargem das prerrogativas, direitos e

A universidade pública padece privada de usufruir o aprimora-

mento e maturidade atingidos por seus professores substitutos,

transferindo para as entidades particulares tal privilégio

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possibilidades de desenvolvimentoprofissional concernentes aos docen-tes estatutários. Nestes termos, o Con-trato Precário de Trabalho assume ca-ráter poupador de contratações de efe-tivos, se portando como instrumentolegal de terceirização do trabalho do-cente. A bem da verdade, o professortemporário entra na universidade, mi-nistra sua aula e, ao final desta vai, co-mo se diz coloquialmente, embora, jáque não há espaços efetivos para oseu engajamento, envolvimento oucomprometimento com o projeto polí-tico-pedagógico da instituição, a nãoser o da sala de aula propriamente di-ta. A um só tempo, esse docente se vêdesamparado, sem os mesmos direi-tos de seus pares, pois a jurisprudênciaentende este tipo de contrataçãocomo um terceiro gênero, ou seja, nãoa configura estatutária, tampouco em-pregatícia. Os direitos e obrigaçõesdestes professores são previstos em leiespecífica (Lei nº 8.745/93), não seaplicando a Legislação Social (CLT),menos ainda o estatuto dos servidorespúblicos (Lei nº 8.112/90).

Conclusões finaisMutuamente imbricados, a debili-

tação da qualidade dos cursos e aproletarização involuntária docentetornam-se mais uma das fontes de es-terilização do ensino superior públicobrasileiro, desfigurando-o, tornando-oinfecundo, exilando-o de sua tradição,vocação e responsabilidades sociais, e,ainda, degradando-o histórico e social-mente. Acaba por assolar, de um lado,a excelência do ensino que promove e,de outro, as conquistas históricas re-sultantes da luta dos profissionais deeducação por melhores condições devida e de trabalho, concorrendo, so-bremaneira, para o processo paulatinoe sorrateiro de privatização destas ins-tituições.

Por tudo isto e mais um pouco, o

NÃO e a RESISTÊNCIA ORGANIZADA àReforma da Previdência que se preten-de levar a efeito, nos termos anterior-mente indicados, significam muitomais do que mera defesa de interessescorporativos, de cunho estritamenteeconômico - ou, como diria AntonioGramsci (1987, p. 53), “egoísta-passio-nal”. Exprime, portanto, uma atitudeético-política em torno do fortaleci-mento da universidade pública e gra-tuita e, por conseguinte, da excelênciade seus cursos, das pesquisas que rea-liza e das ações de extensão que viabi-lizam o rompimento de suas fronteiras.

Ainda evocando-se Gramsci, valeafirmar que “Precisamos ser pessimistasna análise da situação e otimistas aoplanejar nossa intervenção de massa”.

Notas1. O contrato de trabalho para atendimentoda necessidade temporária de excepcionalinteresse público é aquele celebrado por umapessoa física que, de forma pessoal, não-eventual e subordinada, aliena sua força detrabalho, em caráter precário e oneroso, a en-te da Administração Pública Direta, Autarquiaou Fundação Pública. Eis aqui uma entre asmúltiplas definições jurídicas para o chamadoContrato Precário de Trabalho, que se encon-tra previsto na Constituição Federal de 1988,em seu Artigo 37, Inciso IX, cuja regulamenta-ção se deu pela Lei nº 8.745, de 09/12/1993(BRASIL, 1993). Esta, no Artigo 3º, reza que “orecrutamento do pessoal a ser contratado, nostermos desta Lei, será feito mediante proces-so seletivo simplificado sujeito a ampla divul-gação, inclusive através do Diário Oficial daUnião, prescindindo de concurso público”. Nocaso da contratação de professores substitu-tos, visitantes e pesquisadores visitantes es-trangeiros, a Lei nº 9.849, de 26/10/1999(BRASIL, 1999), abre exceção ao processo se-letivo simplificado, prevendo que a contrata-ção poderá ser efetivada mediante apenas daanálise do curriculum vitae.

Referências BibliográficasA REFORMA é um processo irreversível e

continua na pauta do Governo. Revista de Se-guros, Rio de Janeiro, RJ, v. 77, n. 815, p. 36-37,jan./mar. 1996.

ATO contra PL-9 já conquista vitórias. In-

formativo da Asduerj, Rio de Janeiro, 14 a 18abril 2003, p. 3.

BRASIL. Presidência da República. Casa Civil.Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº9.849, de 6 de outubro de 1999. Altera os arts.2º, 3º, 4º, 5º, 6º, 7º e 9º da Lei n. 8.745, de 9de dezembro de 1993, que dispõe sobre acontratação por tempo determinado paraatender à necessidade temporária de excep-cional interesse público, e dá outras providên-cias. Disponível em: <http://www.planalto.-gov.br/ccivil_03/LEIS/L9849.htm>.

BRASIL. Presidência da República. Lei nº8.745, de 9 de dezembro de 1993. Dispõesobre a contratação por tempo determinadopara atender à necessidade temporária deexcepcional interesse público, nos termos doinciso IX do art.37 da Constituição Federal, edá outras providências. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/Leis/L8745.htm>.

GRAMSCI, Antonio. Concepção Dialética daHistória. 7. ed. Rio de Janeiro: Civilização Bra-sileira, 1987.

MOLINA, Nilton. Vida e previdência se tor-nam seguros financeiros. Seguro Moderno,Rio de Janeiro, RJ, n. 6, nº 28, p. 37, 1998.

PREVIDÊNCIA - a reforma que queremos.Informativo da Asduerj, Rio de Janeiro, 14 a 18abril 2003, p. 2.

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REFORMA da previdência é tema de debate.InformAndes, Brasília, nº 116, mar. 2003, p.5.

SOUZA, Donaldo Bello de. A esterilização doensino superior público no Brasil pela via doContrato Precário de Trabalho. Jornal Folha Di-rigida (Caderno de Educação, Coluna SemCensura), Rio de Janeiro, Edição 1.106, anoXVII, p. 13, 18 fev. 2003.

SOUZA, Donaldo Bello de; GAMA, ZacariasJaegger. Reestruturação dos cursos de pós-graduação em educação no Rio de Janeiro:uma análise comparativa entre as propostasda UERJ, UFRJ, UFF e PUC-Rio In: _____.(orgs.) Pesquisador ou professor? o processode reestruturação dos cursos de pós-gradu-ação em educação no Rio de Janeiro. Rio deJaneiro: Quartet, 2001, p. 19-46.

*Donaldo Bello de Souza é Doutor emEducação pela Universidade Federal do Riode Janeiro (UFRJ).

Seguridade Social

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UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 39

Na Argentina, o governo Kirchner(0% de esquerda) propôs, como pri-meira medida de governo, a habilita-ção aos trabalhadores para passardos fundos de pensão privados parao sistema de repartição estatal. Naverdade, na disputa com os fundosde pensão, Lavagna (Ministro daFazenda de Kirchner) busca, com apassagem dos trabalhadores dosfundos privados para o sistema derepartição, ficar com os títulos dadívida que hoje estão nas mãosdeles. Desta forma, cancelaria a par-cela da dívida que se encontra nascarteiras dos fundos e evitaria queestas se apresentem na renegocia-ção da dívida, exigindo a redolariza-ção da dívida que tem em seupoder. Mas o episódio não deixa deilustrar a falência de um sistema, nopaís em que ele foi levado adiante,mais “fundo”. O governo tenta salvaros fundos privados com o dinhei-ro público (ou seja, docontribuinte):

“todos os trabalhadores em atividadecontribuiriam com uma administra-dora privada. Mas, na hora de rece-ber o benefício, o trabalhador rece-beria uma parte da sua aposentado-ria do Estado e outra da AFJP(“fondo de jubilación privado”, nomedos fundos de pensão naArgentina)”.1

Na França, por sua vez, a 13 demaio, dois milhões de pessoas saíramàs ruas contra a privatização da Previ-dência Social, em 115 cidades. A Fran-ça viveu a mais importante greve geraldos últimos anos. Convocadas unita-riamente por todas as centrais sindi-cais, desfilaram pelas principais cida-des do país, mobilizaram-se contra aReforma Previdenciária do governo deChirac-Raffarin. O movimento foi tãopotente que conseguiu paralisar com-pletamente a educação. A Reforma daPrevidência pretende liquidar uma

conquista histórica da

classe operária francesa: pretende-sealongar o período de contribuição, au-mentar a idade para a aposentadoria ereduzir os rendimentos. Como aspatronais francesas estabeleceram anorma não-escrita de demitir todos ostrabalhadores que se aproximam doscinqüenta anos, a conseqüência da“reforma” será a de que ninguém con-seguirá reunir os requisitos para seaposentar (receberão um “subsídiopara a velhice”). Esse subsídio é o querecebem hoje trabalhadores terceiriza-dos e precarizados que chegam àidade de retiro. Como em toda aEuropa, também na França a ReformaPrevidenciária é vital para o grandecapital. Em primeiro lugar, porque per-mitirá elevar os subsídios recebidospelas patronais; ao mesmo tempo, ogoverno de Chirac-Raffarin está empe-nhado em reduzir os aportes e contri-buições patronais à Seguridade Social.Em segundo lugar, porque a reforma

obrigará os trabalhadores a perma-necer por mais tempo no mer-cado de trabalho; a acentuaçãoda concorrência entre os traba-lhadores servirá para que as pa-

tronais baixem os salários eflexibilizem as condições

de trabalho. A destrui-ção da Previdência So-

cial - que caminha demãos dadas com adestruição do con-junto da legisla-ção protetora dotrabalho e do sa-lário - é um pas-

A falência mundial dos Fundos de Pensão

Osvaldo Coggiola*

Seguridade Social

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so no objetivo estratégico de estabele-cer o chamado “contrato individual”.Finalmente, a Reforma da Previdênciaprocura abrir um novo campo para aespeculação financeira, mediante o es-tabelecimento de aposentadorias pri-vadas “complementares”. Por trás daReforma Previdenciária, existe toda aintenção de saída capitalista para a cri-se de seu regime social. O governo pre-tende aumentar a contribuição dos ser-vidores públicos para com a Previdên-cia dos atuais 37,5 anos para 40 (comono setor privado): em 2020 todos osservidores públicos e trabalhadores dosetor privado terão de contribuir por 42anos antes de se aposentar, acabandocom a aposentadoria aos 60 anos.2

Nos Estados Unidos e Europa, aaposentadoria privada está a ponto dequebrar: “A classe média britânica, porexemplo, acredita que sua aposenta-doria privada está mais protegida quea dos europeus do continente, quetêm um sistema estatal de distribui-ção. Três anos de colapso dos merca-dos de valores e ações, de pronto, osdespertou. Agora, essa confiança éuma mera ilusão. Os fundos de pen-são privados não estão mais protegi-dos do que a aposentadoria prometidapelo Estado. E isso é assim tanto paraos esquemas de contribuição definidacomo para os ‘planos ouro’ (gold stan-dart) de contribuições ocupacionais”.3

Em outras palavras, o capitalismo bri-tânico já não poderia evitar que os tra-balhadores e a classe média de seupaís tenham um futuro miserável. Noentanto, a perda da aposentadoria éapenas parte do problema porque,ademais, estão caminhando para a fa-lência as empresas que tinham planosassociados de aposentadoria. A posi-ção financeira dos fundos de pensãobritânicos deteriorou substancialmen-te desde meados dos anos 1990. Arazão é simples: as contribuições dostrabalhadores foram investidas em

ações, bônus e outros títulos que subs-tancialmente perderam valor.

A cada ano alarga-se a brecha entreo que se deve pagar aos aposentadose pensionistas e o valor dos investi-mentos dos fundos de pensão. Essebaque foi estimado por Morgan Stan-ley em 85 bilhões de libras esterlinas.Em alguns casos, esse déficit é tãogrande como o valor das próprias em-presas: a Rolls-Royce tem um déficitprevidenciário de 1,12 bilhões de li-bras esterlinas e o valor em ações dacompanhia é de 1,24 bilhões. Na In-glaterra, quase 40% dos rendimentos

da aposentadoria provêm de fundosprivados e 60% da aposentadoria esta-tal. Como acontece também nos Es-tados Unidos, a aposentadoria privadapode proceder de planos de aposenta-doria de empresas ou de administra-doras especiais, chamados de “benefí-cios definidos”. Isto significa que, ao seaposentar, o trabalhador recebe umaaposentadoria definida (como por-centagem de seu salário) à margemdos rendimentos ou quedas das apli-cações financeiras realizadas com ascontribuições durante toda a sua vidaeconomicamente ativa. Entre 1987 e2001, segundo o Financial Times, ha-via 4.000 planos de aposentadoriadeste tipo com enormes excedentes,porque os ativos financeiros estavamtão exagerados que superavam oscompromissos previdenciários com ostrabalhadores, pelo que as patronaisreduziram suas próprias contribuições.Mas com o desmoronamento debônus e ações, não apenas viraram

fumaça os “enormes excedentes” dosfundos de pensão como também osativos das grandes empresas. Assim, aclassificadora de risco Standard andPoor’s colocou “sob vigilância comperspectiva negativa a classificação dasdívidas de curto e longo prazo de 10grupos europeus em relação às suasobrigações com as aposentadorias deseus assalariados”.4 Os grupos que nãopodem honrar os planos de aposenta-doria de seus trabalhadores são, alémda siderúrgica alemã Thyssen Krupp, aArcelor, Michelin, Deustche Post, GKNHoldings, Linde, Pilkington, PortugalTelecom, Rolls Royce e TPG.

Acontece o mesmo nos EstadosUnidos. O Fundo de Garantia das Apo-sentadorias Definidas (PBGC) passoude um excedente de 7,7 bilhões de dó-lares, em 2001, para um déficit recor-de de 3,6 bilhões, no último ano.5 NosEstados Unidos, a situação é mais gra-ve porque atinge tanto os grupos eco-nômicos como os Estados. Na berlindaestão, por exemplo, a Ford e a GeneralMotors; e afeta não só a aposentadoriacomo também a saúde: a siderúrgicaBethlehem Steel anunciou, em 8 defevereiro, a suspensão de pagamentosde auxílio médico e do seguro de saú-de aos seus 95.000 aposentados e se-us familiares, e isto logo depois de oFundo de Garantia das AposentadoriasDefinidas (PBGC) se encarregar do pa-gamento das aposentadorias por 4bilhões de dólares que o grupo nãoera capaz de cumprir. A conseqüênciaé que agora “os antigos empregadosdo grupo siderúrgico terão um aumen-to explosivo de seu convênio médicode 6 para 200 ou 300 dólares mensais.

Acrescente-se a crise financeira dosplanos de aposentadoria dos Estados,que passaram de um superávit de 112bilhões de dólares em 2001, para umdéficit de 180 bilhões, no final de2002.6 Os mais comprometidos sãoIllinois, Ohio e Texas. Este déficit dos

Por trás da Reforma

Previdenciária, existe toda a

intenção de saída capitalista

para a crise de seu

regime social.

Seguridade Social

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fundos de pensão representa cerca de36% da arrecadação de impostos dosEstados. Diante dessa bancarrota, oque se buscou é que a crise caísse so-bre os trabalhadores. Agora, preten-dem dar um passo mais importante. Oque as burguesias européia e estadu-nidense pleiteam é elevar a idade paraa aposentadoria e, ademais, transfor-mar esses planos de pensão definidosem indefinidos, isto é, que a aposenta-doria privada dos trabalhadores de-penda do valor dos fundos no mo-mento de se aposentar, de tal maneiraque o trabalhador assuma riscos finan-ceiros. Assim funciona na Argentina aprevidência privada. Por isso, apesarde, entre 1994 e 2001, segundo o Mi-nistério da Economia, os recursostransferidos para os fundos (pelos tra-balhadores) capitalizados ao longo doperíodo atingiram 37,376 bilhões depesos ou dólares,7 no início de 2002,com a desvalorização e a queda dosrendimentos, esses fundos valiam 8 bi-lhões de dólares. Assim, os trabalhado-res arcaram com o prejuízo, que se tra-duz em aposentadorias mais reduzidas.

Há risco de insolvência nos fundosde pensão dos Estados Unidos: segun-do Merrill Lynch, até 346 fundos deempresas deste país (75% dos com-ponentes do Standard & Poor’s 500)correm o risco de não ter dinheiro sufi-ciente para honrar seus compromissoscom os partícipes devido à queda dasações de companhias nas quais inves-tiram. No total, poderia faltar 640bilhões de dólares aos fundos de pen-são. Uma cifra que contrasta com ossuperávits de 2000 e 2001, situadosentre 215 e 500 bilhões, respectiva-mente. Entre as empresas afetadas, fi-guram grandes grupos como a GeneralMotors, Ford, SBC, Boeing e IBM que,agora, poder-se-iam ver obrigadas afazer contribuições diretas aos seusrespectivos fundos de pensões. Algoque aconteceu na Europa com empre-

sas como a KPN ou BT Group. Ade-mais, as crises destes afetam a própriageração de renda das companhias. Atéo momento, as respectivas filiais finan-ceiras das empresas eram as encarre-gadas de gerir os fundos de pensão esuas rendas passavam diretamentepara os cálculos de resultados.8

A falência da Enron, o quinto mo-nopólio mundial de energia e o maiorcomercializador de gás e eletricidadedos Estados Unidos, evidenciou quemanejava um fundo de previdênciaprivada de seus trabalhadores de 2,1bilhões de dólares, 60% investidos em

ações da Enron, a própria empresa.Como a falência, reduziu em 95% ovalor patrimonial da Enron, os 2,1 bi-lhões de seus operários agora valem 1bilhão. Como os 40% restantes dofundo também devem ter sido investi-dos na Bolsa, a perda é ainda maior.Em poucas palavras, os trabalhadoresda Enron perderam o salário e a apo-sentadoria. E ainda por cima, cerca de120 das maiores companhias estadu-nidenses têm, pelo menos, um terçodos fundos de pensão de seus empre-gados em ações de suas próprias em-presas: a General Electric tem 75%, e aCoca-Cola 78% em ações.

Os fundos de pensão baseavam-setambém na valorização das ações decompanhias das “novas tecnologias”:entre 1998 e 1999, o índice Nasdaqsaltou de 1.000 para 4.800 pontos, ouseja, quase quintuplicou em dois anos,numa especulação que parecia não ter

fim. Este crescimento sustentado devalores das ações da Internet permitiuo financiamento quase gratuito de nu-merosas “dot.com”. Em muitos casos,tratava-se de empresas simplesmenteinviáveis que foram criadas para apro-veitar a “Internetmania” e enriquecerseus criadores. Dos 29 milhões depáginas criadas em 1999, apenas 20%se encontram em funcionamento; orestante, só foi registrado. A imensamaioria dessas empresas jamais con-seguiu obter um único centavo de lu-cro. A proliferação de empresas da In-ternet aparece, então, como um refle-xo do movimento da especulação fi-nanceira. A queda dos valores das“ações Internet” confirmou esta carac-terização e pôs a nu todos os elemen-tos da crise capitalista. Para que setenha uma idéia dos riscos da “capita-lização” dos fundos, basta o panoramada lista das mais importantes falênciasocorridas nos EUA, nestes últimosanos:

As falências totalizam 500 bilhõesde dólares: duas Agentina e meia fali-ram nos Estados Unidos como produ-to da crise do capital, levando consigoos fundos de pensões lastreados emsuas ações. Na Europa, a situação nãoé melhor. A OCDE advertiu sobre ograve risco da queda nas Bolsas sobreos fundos privados de pensão, cujaviabilidade está ligada à evolução dosmercados de renda variável: “Existe orisco de que as pessoas que investiramnesses fundos recebam pouco ou na-da depois de se aposentar” (grifonosso).9 As perdas nas Bolsas de Va-lores, nos últimos cinco anos, foramcalculadas em 10 trilhões de dólares(um valor superior ao PIB dos EstadosUnidos), dos quais, segundo Il Sole 24Ore, 1,4 trilhões foram perdidos pelosfundos de pensões. Para evitar a con-centração dos fundos em investimen-tos das próprias empresas, está emaplicação na Espanha uma “externali-

Seguridade Social

O que as burguesias européia

e estadunidense pleiteam

é elevar a idade para a

aposentadoria e, ademais,

transformar esses planos

de pensão definidos

em indefinidos.

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42 - DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

zação” dos compromissos pelas pen-sões: retirá-los do balanço das empre-sas de modo que passem a ser admi-nistrados por companhias de segurosou fundos de pensão.10 Com isso, dis-persar-se-ia o risco de investimento.Mas o problema é que o capitalismoatravessa uma crise generalizada e oschamados “investimentos financeiros”estão todos naufragando. Afirma ElPaís que após o conhecimento de queos planos de renda fixa mista que co-locam na Bolsa entre 15 e 30% de seupatrimônio perderam 5,67 de seu va-lor, os de renda variável mista e rendavariável pura colhem quedas de 14,9 e29%, respectivamente. Na Argentina,depois de obter suculentas comissões,os fundos (AFJP) fizeram com que ostrabalhadores perdessem 10% de seusfundos, o que equivale a aproximada-mente 2 bilhões de pesos. E, ainda as-sim, os fundos estão falidos, pois 90%dos fundos estão em título da dívidaque são insolvíveis, impagáveis e quese desvalorizam no mesmo ritmo dacrise argentina.

Na verdade, tudo depende do mo-mento da aposentadoria. Em períodode alta das bolsas, o cálculo de rendaou capital será alto. Mas, em períodode queda, será baixo também. O eco-nomista Christian Weller calculou que,contribuindo com a mesma somadurante 40 anos, um aposentado, em1966, receberia duas vezes seus depó-sitos. Dez anos mais tarde, outro traba-lhador aposentado, nas mesmas con-dições, não receberia mais que 40%.11

E a situação das bolsas piorou muitode 1976 para cá... Além disso, “os sis-temas privados custam caro ao Estado.Em 2002, as isenções de encargos fis-cais e contribuições de que se benefi-ciaram os fundos de pensão represen-taram, sozinhas, a metade (!) do défi-cit da Previdência Social [da França](4,5 bilhões de euros)”.12

Na Europa, os trabalhadores en-

frentam planos de “reforma da previ-dência” que tanto na Áustria quantona França, na Itália ou na Alemanha,têm objetivos comuns: aumentar osperíodos de contribuição, aumentar aidade de aposentadoria e alterar osmétodos de cálculos dos rendimentospara reduzi-los substancialmente. Acentral sindical austríaca denuncia queas “reformas” reduziram em até 20%os rendimentos da aposentadoria; aCGT francesa, por sua vez, antecipaque como conseqüência das “refor-mas” do governo Chirac, as aposenta-dorias estatais cairão em 30%. O ata-que aos regimes previdenciários pro-cura “liberar” fundos orçamentáriospara o salvamento do grande capitaleuropeu; pretende também abrir ca-minho para os regimes “complemen-tares” (privados), no exato momentoem que o fracasso destes regimes pri-vados na Grã-Bretanha e nos Estados

Unidos evidencia seu caráter confisca-tório. O autoritarismo estatal aumentaem função das necessidades do capi-tal: na França, logo após a rejeição, por53% dos assalariados de EDF-GDF, aum acordo de reforma do sistema deaposentadorias das industrias de ele-tricidade e do gás, o governo fez saberque ignoraria os resultados do referen-dum.13 Pela primeira vez em meio sé-culo, a central sindical austríaca, a OGB(social-democrata) convocou uma gre-ve geral nacional em repúdio à “refor-ma da previdência” impulsionada pelogoverno direitista. A magnitude do ata-que obrigou a burocracia da central so-cial-democrata a romper com sua tra-dicional política de “pacto social”: pa-ralisaram o transporte público, as adu-anas, o sistema bancário, as escolas enumerosas empresas privadas. Umacontecimento inusual: nas principaiscidades, houve grandes manifestações

FALÊNCIAS OCORRIDAS NOS EUACOMPANHIA MÊS DA TOTAL DE ATIVOS

BANCARROTA PRÉ-BANCARROTA

Worldcom, Inc jul/02 $103.914.000.000

Enron Corp dez/01 $63.392.000.000

Texaco, Inc abr/87 $35.892.000.000

Financial Corp.of America set/88 $33.864.000.000

Global Crossinq Ltd. jan/02 $25.511.000.000

Adelphia Communcations jun/02 $24.409.662.000

Pacific Gas and Eletric Co. abr/01 $21.470.000.000

Mcorp mar/89 $20.228.000.000

Kmart Corp jan/02 $17.007.000.000

NTL, Inc maio/02 $16.634.200.000

First Executive Corp. maio/91 $15.193.000.000

Gibraltar Financial Corp. fev/90 $15.011.000.000

Finova Group, Inc., (The) mar/01 $14.050.000.000

HomeFed Corp. out/92 $13.885.000.000

Southeast Banking Corp. set/91 $13.390.000.000

Reliance Group.Holdings, Inc jun/01 $12.598.000.000

Imperial Corp.of America fev/90 $12.263.000.000

Federal-Mogul Corp. out/01 $10.150.000.000

First City Bancorp of Texas out/92 $9.943.000.000

First Capital Holdings maio/91 $9.675.000.000

Baldwin-United set/83 $9.383.000.000

Total $498.062.862.000

Seguridade Social

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UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 43

sindicais. Na Itália, as três centrais sin-dicais convocaram uma “cúpula” paracoordenar as ações comuns contra aReforma da Previdência de Berlusconi,incluída a greve geral. Na Alemanha,no 1º de Maio, os sindicados repudia-ram a “reforma” de Schroëder que,além de atacar as aposentadorias, atin-ge o salário-desemprego e flexibiliza ascondições para demissões.

O governo Lula no Brasil adotou aproposta do Banco Mundial, o queexplica suas similaridades com os regi-mes que os governos “social-democra-tas” da Grã-Bretanha e Alemanha, eaté o que direitistas franceses preten-dem aplicar: “Como na maioria dosoutros países da Europa, o regime deaposentadorias britânico está em crise.O aumento da expectativa de vida, alongevidade da geração nascida nosanos 50 (‘baby-boom’), a vontade dosempregadores de descarregar sobre osassalariados uma parte dos riscos fi-nanceiros e, sobretudo, a menor renta-bilidade dos fundos de pensão, em ra-zão da queda da Bolsa, põem em peri-go os ingressos dos futuros aposenta-dos”.14 Diante dessa situação, a Asso-ciação Nacional de Fundos de Pensão(NAPF) propôs uma “reforma integral”,com base em dois pontos: elevar para70 a idade mínima para a aposentado-ria (atualmente é de 65 anos) e que aaposentadoria estatal garanta uma“renda cidadã” de 100 libras ou 160euros semanais, equivalente a 22% dosalário médio, indexado sobre os salá-rios, e não sobre os preços. Sobre estabase, os trabalhadores britânicos quequiserem uma aposentadoria superiorà “renda cidadã” contribuiriam comum fundo de pensão privado. Como aNAPF desconsidera a recusa dos traba-lhadores a contribuir com esses fun-dos privados, propõe que haja incenti-vos fiscais para alentar a poupança pa-ra a aposentadoria, como deduções deimpostos sobre estes aportes, o que

não é outra coisa senão um subsídioestatal. Na Alemanha, está em marchauma “reforma da previdência”, paraaumentar a idade de aposentadoria de65 para 67 anos. Na França, a grandepatronal busca uma reforma maiscompleta, porque abarcaria toda a Pre-vidência Social - aposentadorias, aci-dentes e saúde. A proposta patronal éde que a Previdência Social deixe decobrir doenças “leves” e que cada fran-cês tenha um seguro complementarpor meio de companhias de seguro oude cooperativas para cobri-las.

Como se pode observar, há umatendência geral do capitalismo de re-

duzir a “seguridade social” a um “be-nefício universal básico” (“renda cida-dã”, “renda mínima” etc.) e que qual-quer benefício acima seja coberto dire-tamente pelo trabalhador com contri-buições obrigatórias ou voluntárias acompanhias ou fundos privados. Aproposta a favor da “renda cidadã” -um salário ou aposentadoria mínimapara todos os cidadãos - inscreve-sedentro da tendência do capitalismo dedestruir a Seguridade Social surgidanos anos 40 e 50. A ponta de lançadesta reforma é o Banco Mundial, quea batizou como a “previsão dos trêspatamares”. Um primeiro patamar se-ria estatal, daria lugar a um benefíciobásico definido fixo ou com um piso eum teto, equivalente a uma cesta bási-

ca de indigência. Este “patamar” seriafinanciado com contribuições dos tra-balhadores ou diretamente pelo Es-tado sobre a base dos impostos gerais.Um segundo patamar seria privado(fundos ou companhias de seguros)com contribuições obrigatórias dos tra-balhadores acima do porcentual decontribuição do primeiro patamar. Oterceiro patamar também seria priva-do, com contribuições voluntárias dostrabalhadores.

Com este esquema, o que se queré reduzir a aposentadoria estatal demodo a diminuir o gasto em aposen-tadorias e aumentar os pagamentosda dívida externa. Assim, o Estado “ga-rantiria”, por exemplo, um “benefíciouniversal”, e qualquer excedente sobreessa soma proviria de contribuições aum fundo, o trabalhador assumindo orisco pelo investimento do fundo. Oaumento da idade para a aposentado-ria é chave: o que se quer é que o tra-balhador contribua por uma maiorquantidade de anos e receba durantemenos anos o benefício. A palavra deordem do BCE (Banco Central da Euro-pa) é: “A Europa envelhece, reformasjá!”.15 Na plataforma eleitoral e durantea campanha presidencial, o PT expli-cou qual reforma queria fazer: “Essaprofunda reformulação deve ter comoobjetivo a criação de um sistema pre-videnciário básico universal, público,compulsório para todos os trabalhado-res brasileiros, do setor público e priva-do”, diz o ponto 46 da Plataforma doPT. E continua: “Como complementoao sistema público universal, os traba-lhadores tanto do setor público comodo privado que aspirem a aposentado-rias superiores às oferecidas pelo tetodo orçamento público, haverá um sis-tema de planos complementares, comou sem fins lucrativos, de caráter facul-tativo e sustentado por empregados eempregadores”. Esta reforma que o PTimpulsiona, Fernardo Henrique Cardo-

O governo Lula no Brasil

adotou a proposta do Banco

Mundial, o que explica suas

similaridades com os

regimes que os governos

“social-democratas” da

Grã-Bretanha e Alemanha,

e até o que direitistas

franceses pretendem aplicar.

Seguridade Social

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UNIVERSIDADE E SOCIEDADE44 - DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003

so começou a colocá-la em prática, esegue as recomendações do BancoMundial. Consiste em estabelecer umsistema estatal básico obrigatório quepague aposentadorias básicas, elimi-nando definitivamente os rendimentoscomo proporcionalidade do salário.Com isso, a burguesia obteria váriascoisas: pagar aposentadorias mais bai-xas, reduzir conseqüentemente a con-tribuição patronal e “obrigar” na práticaos trabalhadores que aspiram a umaaposentadoria conforme aos seus salá-rios a contribuir “voluntariamente” parauma aposentadoria privada. Ao pagarmenos em aposentadorias, aumentariao superávit fiscal que o Fundo exige pa-ra pagar a dívida. Que o objetivo é bai-xar as contribuições patronais, a Plata-forma do PT o diz claramente: “O pesoda contribuição dos empregadores(20% sobre os salários) é um elemen-to de redução da competitividade dosprodutos brasileiros (porque poucospaíses adotam alíquotas tão altas) e,ao mesmo tempo, é um incentivo à fal-ta de registro formal do trabalhador ouao seu registro com salários inferiores”.Esta proposta vem do Banco Mundial:“A redução das diferenças entre o RJUe o RGPS será um grande passo parauma maior eqüidade e uma melhordistribuição do sistema brasileiro dePrevidência Social. As administradoraspúblicas estão impulsionando refor-mas encaminhadas a conseguir harmo-nizar os benefícios de ambos os regi-mes”, diz o Banco Mundial, em infor-mes confidenciais apresentados ao go-verno, entre 1999 e 2000.16 De qual-quer maneira, se isto não avança, oBanco Mundial propõe que “a adminis-tração pública deverá executar as tare-fas difíceis antes de se criarem os pla-nos de aposentadorias. A primeira é re-tirar da Constituição a fórmula de cálcu-lo dos benefícios do RJU, reduzir a taxade substituição (o cálculo do benefício)e aumentar o período de referência

(tempo de contribuição). A segundaconsiste em remediar as debilidades dosistema de regulamentação e supervi-são. Caso os trabalhadores incorpora-dos ao RGPS não respondam aos in-centivos da nova fórmula de cálculodos benefícios, o governo terá que esta-belecer também uma idade mínima deinício dos pagamentos da previdênciasocial” (aumento do tempo de serviço).

Uma intérprete das necessidadesdo grande capital comparou os gastosprevidenciários de diversos países co-mo percentagem do PIB, chegando àconclusão de que o gasto brasileiro émaior (4,7% do PIB, contra 3% daFrança, por exemplo), mas... sem com-parar os PIBs respectivos (e relacioná-los com o número de beneficiários daPrevidência Social)! Para concluir que“a gritaria dos servidores públicos con-tra a Reforma da Previdência já era es-perada. Pode piorar, mas isso em nada

deveria sensibilizar as pessoas que,neste país, são responsáveis por zelarpelo bem-estar da sociedade e peladecência do Estado”.17 Sem saber aquantas anda a decência da senhora,concluímos, ao contrário, que a Refor-ma, ora em pauta, é ditada pelas ne-cessidades do grande capital em crise,inspirada pelo Banco Mundial, e situa-da na contramão da História, pois ado-ta um modelo que está demonstrandoou já demonstrou sua inviabilidade namaior parte do mundo, inclusive nospaíses tomados como modelo pelos“neo-reformadores”.

Notas1. Lanzan un proyecto para reformar las jubila-ciones. Clarin, 17 de maio de 2003.2. 1,1 milhão de franceses contestam reforma.Folha de São Paulo, 14 de maio de 2003.3. Financial Times, 17 de março de 2003.4. Le Monde, 11 de fevereiro de 2003.5. The Economist, 15 de fevereiro de 2003.6. Financial Times, 14 de março de 2003.7. Clarín, 9 de março de 2003.8. América Economia, 1º de outubro de 2002.9. La OCDE alerta sobre el impacto del desplo-me bursátil en las pensiones privadas. El País,1º de abril de 2003.10. El País, 9 de dezembro de 2002.11. EPI Issue Brief, 7 de fevereiro de 2002.12. Martine Bulard. Les retraités trahis par lesfonds de pension. Le Monde Diplomatique,maio de 2003.13. Retraites: une réforme à haut risque. Dos-siers et Documents, fevereiro 2003.14. Le Monde, 12 de outubro de 2002.15. Pensioni, alzare l’età del ritiro. Corriere dellaSera, 11 de abril de 2003.16. Informe Banco Mundial. Dimensiones delReto de la Seguridad Social en Brasil. Parauma análise geral dos efeitos da privatizaçãoda Previdência Social, ver: Riccardo Bellofiore.Il capitalismo dei fondi pensione. La Rivista delManifesto nº 10, Roma, outubro 2002; Julio N.Magri. La Bolsa o la Vida. Buenos Aires, PrensaObrera, 1996.17. Maria Clara R. M. do Prado. Imenso alíviocom a nova previdência. Gazeta Mercantil, 16de maio de 2003.

*Osvaldo Coggiola é professor do Depar-tamento de História da USP e vice-Pre-sidente do ANDES-SN

Esta reforma que o PT

impulsiona, Fernardo

Henrique Cardoso começou

a colocá-la em prática,

e segue as recomendações

do Banco Mundial.

Seguridade Social

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DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 45UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Vários docentes das InstituiçõesFederais de Ensino Superior foramregidos pela Consolidação das Leisdo Trabalho (CLT) até 12 de dezembro de 1990, quando passaram a ter sua situação funcional regulada pelo RegimeJurídico Único, Lei 8.112/90 (RJU).

A realidade fática do tipo de traba-lho a que ficavam expostos era deextrema prejudicialidade à saúde,tendo de conviver, habitualmente, cominumeráveis agentes nocivos à integri-dade física. Na verdade, pela naturezados serviços que prestavam, o ambien-te de trabalho era considerado insalu-bre, perigoso ou exposto ao Raio X,percebendo os respectivos adicionais.

Ocorre que, quando trabalharam

regidos pelas normas da CLT, em con-dições insalubres, perigosas ou expos-tos aos agentes do trabalho com RaioX, todos os trabalhadores (inclusiveos docentes) têm a converter o tempode serviço insalubre, perigoso ou sub-metido a radiações ionizantes, emtempo de serviço comum, com vistasà aposentadoria no seu período regu-lar; isso decorre do fato de que, paraos trabalhadores que tiverem presta-do serviços todo o tempo nessas con-dições, o direito à aposentadoria eradeferido ao completar 25 anos de ser-viço, tendo que haver o cálculo pro-porcional desse benefício quandosomente uma parte do período foi tra-balhado nessas condições.

Assim, por exemplo, o homem que

normalmente se aposenta aos 35 anosde serviço, converte o tempo de serviçoinsalubre, perigoso ou em contato comRaio-X, multiplicando-o pelo fator 1,4.Dessa forma, ao trabalhar 10 anos, terádireito a contar 14 anos para fins deatingir os 35 anos necessários à apo-sentadoria. Já a mulher utiliza o fator1,2, tendo em vista que sua aposenta-doria normal é aos 30 anos de serviço.

No caso dos docentes homens,como na época o tempo de serviço dodocente de ensino superior era 30anos, para fins da aposentadoria, aconversão ocorria multiplicando-se otempo prestado nessas condiçõesespeciais pelo fator 1,2, não havendobenefício para as docentes mulheres,já que o tempo de serviço para a sua

Aparecido Inácio*José Luiz Wagner**

A aposentadoria do professor que trabalhou em condições insalubressob o regime da CLT

Seguridade Social

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UNIVERSIDADE E SOCIEDADE46 - DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003

aposentadoria já era de 25 anos. Cabe destacar, entretanto, que

quando o servidor não tiver prestadotodo o seu tempo de serviço em ativi-dades tipicamente docentes, e por issotiver que atingir o tempo de serviço de35 anos, se homem, e 30 anos, se mu-lher, o fator multiplicador no primeirocaso será 1,4, e no segundo, 1,2.

Com a entrada em vigor do RJU, otrabalhador outrora regido pela CLT, per-deu esse direito à conversão para operíodo estatutário, em face da falta deprevisão legal, mas não perdeu relativa-mente ao período em que era celetista.

Ocorre que, para os servidorespúblicos em geral, e os docentes emparticular, anteriormente vinculados àCLT, que foram enquadrados pelo RJU(Lei 8112/90), esta conversão do pe-ríodo celetista não é feita, sendo ne-gada pelos órgãos públicos encarrega-dos de proceder à certificação e aver-bação do tempo convertido com orespectivo acréscimo.

Essa negativa incorre em equívoco,uma vez que, no período anterior àedição da Lei nº 8.112/90, tendo emvista ser o vínculo de natureza contra-tual (leia-se celetista), o servidor tinhaseu regime previdenciário reguladopela Lei nº 6.439/77 e pelo Decreto nº53.831/64 e, após, pelo Decreto nº83.080/79, que fixavam as regras paraa Previdência Social. Por conseqüên-cia, o seu tempo de serviço era regu-lado pelas regras contidas nos supra-mencionados dispositivos.

O referido Decreto nº 83.080/79,em seu artigo 60, previa a aposentado-ria especial para os trabalhadores quelaborassem em condições insalubres,

fixando, por conseguinte, para estes,regra especial de contagem de serviço.No mesmo sentido, os artigos 2º e 9º,§ 4º, ambos da Lei nº 6.887/90.

É evidente que o tempo de serviço,objeto da legislação referida supra, eque deve ser convertido, é o relativo aatividades profissionais sujeitas a con-dições especiais que prejudiquem asaúde ou a integridade física do traba-lhador, no período regulado pela CLT,de acordo com a tabela de conversãoda legislação da época, que permitia areferida conversão.

Bem por isso, qualquer procedi-mento que acarrete o impedimentoao docente da contagem do tempo deserviço, na forma de tempo converti-do, insalubre ou perigoso, relacionadoao período celetista, também nega aaplicação das regras especiais queregem a matéria.

Felizmente o Poder Judiciário temreconhecido esse direito, do que éexemplo a seguinte decisão, proferidapela 5ª Turma do Colendo SuperiorTribunal de Justiça:

“PREVIDENCIÁRIO. SERVIDOR PÚ-

BLICO ESTADUAL. MAGISTÉRIO. REGI-

ME CELETISTA. CONVERSÃO. TEMPO

DE SERVIÇO ESPECIAL. POSSIBILIDA-

DE. ATIVIDADE PENOSA. RESTRIÇÃO.

OPÇÃO. APOSENTADORIA. SISTEMA

COMUM. RECURSO CONHECIDO EM

PARTE E, NESSA PARTE DESPROVIDO.

1. As Turmas que integram a Egrégia

Terceira Seção têm entendimento con-

solidado no sentido de que o servidor

público, que, sob regime celetista, exer-

ceu atividade considerada penosa, insa-

lubre ou perigosa, tem direito à conta-

gem especial desse período, a despeito

de ter, posteriormente, passado à condi-

ção de estatutário. Precedentes.

2. A conversão ponderada do tem-

po de magistério não encontra óbice,

uma vez que a atividade era considera-

da penosa pelo Decreto n.º 53.831/64,

cuja observância foi determinada pelo

Decreto n.º 611/92.

3. O acréscimo de tempo de servi-

ço decorrente da aplicação do fator de

conversão pode ser utilizado tão-so-

mente se houver opção pela aposenta-

doria segundo o sistema comum a to-

dos os servidores públicos.

4. Recurso especial conhecido em

parte e, nessa parte, desprovido.”1

Ressalte-se, no mesmo sentido,que a 6ª Turma do Superior Tribunalde Justiça, em decisão publicada noDiário de Justiça do dia 27 de maio de2002, reconhece o direito dos servido-res à expedição da certidão com acontagem de tempo de serviço emcondições especiais, ou seja, com omesmo objetivo:

“SERVIDOR. EX-CELETISTA. ATI-

VIDADE INSALUBRE. CONTAGEM DE

TEMPO DE SERVIÇO EM CONDI-

ÇÕES ESPECIAIS. POSSIBILIDADE.

APOSENTADORIA ESTATUTÁRIA.

O servidor que se encontra sob

a égide do regime celetista quando

da implantação do Regime Jurídico

único tem direito adquirido a aver-

bação do tempo de serviço presta-

do em condições de insalubridade,

na forma da legislação anterior.

Recurso especial conhecido e

provido.”2

O Supremo Tribunal Federal, emrecente decisão publicada no DJ de06/06/2003, adotou integralmente atese exposta acima, tratando-a naforma que segue:

“DECISÃO: Discute-se nesses autos

o direito do servidor público federal à

conversão, para fins de aposentadoria,

do tempo de serviço prestado em con-

dições insalubres, em período anterior

Qualquer procedimento que acarrete o impedimento ao docente

da contagem do tempo de serviço, na forma de tempo convertido,

insalubre ou perigoso, relacionado ao período celetista, também

nega a aplicação das regras especiais que regem a matéria.

Seguridade Social

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à instituição do Regime Jurídico Único

(Lei nº 8112/90).

2. A legislação previdenciária, vi-

gente à época em que realizada a pres-

tação do serviço público, expressa-

mente assegurava ao servidor que tra-

balhou em atividade insalubre o direi-

to à averbação do tempo de serviço

prestado nessas condições, com os

acréscimos nela previstas, para fins de

aposentadoria. Importa anotar que a

Consolidação das Leis da Previdência

Social, em seu artigo 84, estabelecia

orientação quanto ao tratamento que

deveria ser dispensado ante a consta-

tação de tempo de serviço prestado

em condições insalubres, perigosas ou

penosas. Por sua vez, o parágrafo 2º do

seu artigo 35 dispunha:

‘O tempo de serviço exercido alter-

nadamente em atividade que seja ou

venha a ser considerada perigosa, insa-

lubre ou penosa é somado, após a res-

pectiva conversão, segundo critérios de

equivalência fixados pelo MPAS, para

efeito de qualquer espécie de aposen-

tadoria’ (grifos nossos)

3. Tem-se, por isso, que tendo exer-

cido suas atividades funcionais em con-

dições insalubres à época em que sub-

metido aos regimes celetistas e previ-

denciário, há direito adquirido do servi-

dor público à computação desse tempo

de serviço, de forma diferenciada e para

fins de aposentadoria, haja vista que em

cada momento trabalhado se realizava o

suporte fático previsto na norma como

suficiente a autorizar sua averbação.

4. Assim sendo, incorporado ao seu

patrimônio jurídico o direito que a legis-

lação específica lhe assegurava como

compensação pelo serviço exercido em

condições insalubres, periculosas ou

penosas, essa vantagem não lhe pode

ser suprimida, tão-só em razão da

imposição de um novo regime jurídico

que, apesar de prever a edição de lei

específica para regulamentar a conces-

são de aposentadoria para os agentes

públicos que exercerem atividades em

tais condições, não desconsiderou ou

desqualificou o tempo de serviço pres-

tado nos moldes da legislação anterior

(Lei nº 8112/90, artigo 103, V).

5. Recordo, ademais, que a Lei nº

8112/90 (Regime Jurídico Único), em

seu artigo 100, expressamente dispôs

que ‘é contado para todos os efeitos o

tempo de serviço público federal,

inclusive o prestado às Forças Arma-

das’, matéria sobre a qual há jurispru-

dência firmada pelo Pleno desta Corte,

por ocasião do julgamento do RE

209.899/RN, de que fui relator (Sessão

do dia 4.06.1998, acórdão pendente

de publicação), quando foi declarada a

existência de direito adquirido do ser-

vidor público celetista, transformado

em estatutário, à contagem de tempo

de serviço que prestou nessa condição,

para todos os fins. E isto porque, ‘é

adquirido todo direito (...) nos termos

da lei sob o império da qual se verifi-

cou o fato de onde se origina, entrou

imediatamente a fazer parte do patri-

mônio de quem o adquiriu’ (Francesco

Gabba, in (Teoria della Retroattivitá

delle Leggi), Roma, 1891, 3ª edição,

volume I, pág. 191).”3

Assim, demonstra-se a legalidadeda devida conversão do tempo de ser-viço insalubre exercido pelo docentedurante o período em que regido pelaCLT, que encontra no Judiciário ampa-ro legítimo para as negativas de con-versão e averbação que se tornaramregra na esfera administrativa.

Medidas judiciais nesse sentido se-rão fundamentais para que muitosdocentes consigam completar seutempo de serviço antes da entrada em

vigor das novas regras constitucionaisdecorrentes da Reforma Previdenciá-ria em curso, com o que poderão ga-rantir melhores condições para suasaposentadorias e pensões.

Cabe destacar, finalizando, que es-ses docentes, mesmo que venhamconseguir converter seu tempo de ser-viço trabalhado em condições insalu-bres, perigosas ou submetidas a Rai-os-X, após a entrada em vigor daemenda da Reforma Previdenciária,terão direito às aposentadorias e pen-sões pelas regras vigentes na data emque completaram as condições deidade e tempo de serviço; em outraspalavras, se daqui a três anos, após adita emenda entrar em vigor, um do-cente conseguir averbar o tempo deserviço especial, e isso, mais a suaidade, fizer retroagir seu direito à apo-sentadoria para data anterior à daemenda, ele terá direito a se aposen-tar pelas regras atuais.

Notas1. Superior Tribunal de Justiça, 5ª Turma, unâ-nime, RESP 494618/PB, Relatora MinistraLaurita Vaz, julgado em 15/04/2003, publica-do no DJ 02/06/2003, p. 342. 2. Resp 413.767-RS. Relator Min. Vicente Leal.DJ. 27/05/2002.3. Supremo Tribunal Federal, Recurso Extraor-dinário 370.534-2/RS, Relator Ministro Mau-rício Corrêa, julgado em 09/05/2003, publi-cado no DJ de 06/06/2003.

*Aparecido Inácio é sócio de AparecidoInácio & Pereira Advogados Associados, as-sessor jurídico do ANDES - Regional SãoPaulo.**José Luiz Wagner é sócio de Wagner Ad-vogados Associados, assessor jurídico deentidades de servidores públicos em di-versos estados.

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 47UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Medidas judiciais nesse sentido serão fundamentais

para que muitos docentes consigam completar seu tempo

de serviço antes da entrada em vigor das novas regras

constitucionais decorrentes da Reforma Previdenciária em curso.

Seguridade Social

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Neste momento, o governo e a

imprensa apresentam à sociedade

brasileira a necessidade de uma

Reforma da Previdência para “salvar”

o sistema de um déficit - 70 bilhões,

segundo estimativa visivelmente

exagerada da revista Veja, de 22 de

janeiro de 20031 - causado pelos

“privilégios” dos funcionários públicos

e colocado como um dos principais

obstáculos para o crescimento do

país. A revista usa de comparações, a

nosso ver, descabidas, para justificar

a supressão de direitos sociais

adquiridos. Urge levantar a verdade

sobre estes argumentos, colocados

até então de modo superficial e

equivocado.

Seguridade e Previdência SocialInicialmente, é necessário esclare-

cer alguns pontos sobre o que é o sis-tema de Previdência Social, uma vezque está inserido no contexto maisamplo da Seguridade Social, definidapela Constituição de 1988, e não emum contexto meramente fiscal, comose procura geralmente colocar, ao afir-mar os enormes déficits no sistemaprevidenciário. A Seguridade Social éum sistema integrado de garantia dedireitos sociais, definido no artigo 195,da Constituição Federal, que abrangetrês componentes: a Saúde Pública(amparo aos doentes), a AssistênciaSocial (amparo a portadores de defici-ência e pessoas em situação de riscosocial) e a Previdência Social (amparoaos que ultrapassam o período de vidalaborativa). Estas definições dos trêscomponentes estão assim expostas

em artigo de César Benjamin, publica-do na revista Caros Amigos, de feverei-ro de 20032. A Saúde e a AssistênciaSocial foram criadas como forma deampliar os direitos sociais do “Estadode Bem-estar Social”, definido pelaConstituição de 88, estendendo-ostambém a quem não pode contribuirpara eles, devendo, portanto, ser finan-ciados pelos impostos pagos pela so-ciedade como um todo. A PrevidênciaSocial é o componente capaz de gerarreceita, pela contribuição paga pelostrabalhadores em atividade. Segundotexto publicado pela Associação dosAuditores Fiscais da Previdência So-cial/RJ - AFIPERJ3, há uma contradiçãoentre o propagado déficit na Previdên-cia e o conceito constitucional de Se-guridade Social.

A AFIPERJ mostra que, em 2001, osistema de Seguridade Social apre-sentou um saldo positivo de mais deR$ 31 bilhões4. Este dado é confirma-do pelo Sindicato Nacional dos Au-ditores da Receita Federal (Unafisco).Segundo a economista Maria LúciaFattorelli e o presidente da Unafisco,Paulo Gil, a Seguridade Social (Pre-

vidência, Saúde e Assistência Social)não é deficitária, ao contrário, tem su-perávit de R$ 32-34 bilhões5,6.

Se há um sistema de SeguridadeSocial, que é superavitário, como podea Previdência Social ser discutida emseparado e ser considerada um dosprincipais problemas do país? Na ver-dade, parte dos principais impostosarrecadados da Seguridade Social, quesão a Contribuição Social sobre o Lu-cro Líquido (CSLL), a Contribuição pa-ra o Financiamento da Seguridade So-cial (COFINS) e a Contribuição Provi-sória sobre Movimentação Financeira(CPMF), foi repassada, em 2001, paraoutros órgãos (desviada da SeguridadeSocial), somando R$ 16,6 bilhões, en-quanto R$ 19,2 bilhões ficaram retidosna conta única do Tesouro Nacionalpara cobertura de gastos de naturezafiscal, como pagamentos de juros e ga-rantia de superávits primários paracumprir os acordos firmados com oFMI7. Estes desvios só são possíveis de-vido a uma artimanha jurídica, deno-minada Desvinculação das Receitas daUnião (DRU), constante na Lei de Res-ponsabilidade Fiscal aprovada no go-verno FHC, que permite que verbas doorçamento sejam desviadas para gera-ção de superávit primário e pagamen-to de juros.

Ou seja, a AFIPERJ denuncia querecursos constitucionalmente desti-nados ao financiamento da Seguri-dade Social (incluída, portanto, aPrevidência) que deveriam ser utili-zados para garantir o pagamento debenefícios previdenciários e assis-tenciais, além de prestações de ser-viços da saúde, vêm sendo desvia-

48 - DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

A reforma da Previdência Sociale a Universidade*

Seguridade Social

Com a estagnação da

economia, os salários dos

servidores públicos foram

praticamente congelados,

o que significou um enorme

corte nos pagamentos

feitos à previdência pelos

seus maiores contribuintes.

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DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 49UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

dos para pagamento de juros. As aposentadorias e pensões do

setor privado são geridas peloINSS (Instituto Nacional da Se-guridade Social), sob o Regi-me Geral da PrevidênciaSocial (RGPS), que contacom 30 milhões de con-tribuintes e 20 milhõesde beneficiários (des-tes, mais da metade ga-nham 200 reais men-sais)8. O desconto doscontribuintes do RGPS élimitado a 11 % do tetomáximo do Salário de Con-tribuição (R$ 1.561,56), ou se-ja, no máximo R$ 171,77. Ocontribuinte que quiser recebermais do que o teto, quando aposen-tado, deve utilizar os planos de previ-dência privada. A reforma da Previdên-cia Privada foi feita durante o governode FHC, em 1998, com a fixação do te-to máximo para o Salário de Contri-buição, que à época equivalia a 10 sa-lários mínimos e, hoje, quatro anosdepois, representa pouco mais de 7salários mínimos9. Já a Previdência queassegura ao Servidor Público é diferen-te. O sistema federal abrange cerca de1 milhão de servidores públicos, quecontribuem com descontos de 11 %da totalidade de seus vencimentos, e 1milhão de aposentados e pensionistas,que podem receber o equivalente aoseu último salário na ativa. FHC, à épo-ca de reforma da previdência privada,não conseguiu impor um teto de bene-fícios aos funcionários públicos, pelaresistência dos mesmos e também dosparlamentares de oposição ao governo.

Verdadeiros motivos do “déficit” da Previdência

A previdência pública no Brasil vi-nha, mais ou menos, equilibrada até1994. Nos oito anos de governo FHC, aeconomia cresceu a taxas inferiores às

dos anos 80. Estes, considerados ospiores anos em termos de ritmo decrescimento.

Com a estagnação da economia, ossalários dos servidores públicos forampraticamente congelados, o que signi-ficou um enorme corte nos pagamen-tos feitos à previdência pelos seus mai-ores contribuintes. O desemprego nosetor privado praticamente dobrou,para 14 milhões de pessoas (quase 10% da população brasileira). Com isso,sete milhões de pessoas deixaram de

contribuir. E com a chamada flexibiliza-ção nas relações de trabalho, que

não gerou emprego, ao contráriodo que se defendia, aumentou

ainda mais o número de tra-balhadores sem carteira

assinada, ou seja, semcontribuição para o sis-tema. Este quadro decrise econômica foi re-forçado pela perda depoder de intervençãodo Estado no setor pro-dutivo na economia (no

governo FHC, 134 esta-tais foram privatizadas).

A arrecadação tributáriadurante o governo FHC saltou

de 24 % para 36%, por causa deaumentos no valor dos impostos e a

criação de novas taxas, com a justifica-tiva de tentar universalizar os direitossociais e que, na verdade, estão sendousados para o pagamento de juros.

Além disso, ainda que usássemos amesma lógica apresentada pela gran-de imprensa, a argumentação de quea Previdência é deficitária porque atu-almente existe um déficit anual é falsa(lembrando que a Previdência Socialfaz parte da Seguridade Social, que ésuperavitária anualmente). Ao contrá-rio do que se propaga, a arrecadaçãoda Previdência compõe um “fundo”, e,portanto, é desonesta a afirmação deque a previdência é inviável porquenão consegue arrecadar no ano o mon-tante que teria que pagar. Por ser um“fundo”, o que se gasta em um anocom aposentadorias não tem, neces-sariamente, que ser arrecadado na-quele mesmo ano. O montante dascontribuições que os servidores reco-lheram entre os anos de 1960 e 1980,quando eram filiados ao regime geral,não foi transferido para um fundo deregime próprio. Se tivessem sido trans-feridos e capitalizados, hoje não have-ria “déficit” na Previdência.

Seguridade Social

Ao contrário do que se

propaga, a arrecadação da

Previdência compõe um

“fundo”, e, portanto, é

desonesta a afirmação de

que a previdência é inviável

porque não consegue

arrecadar no ano o montante

que teria que pagar.

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Os recursos da Previdência Social,em diversos momentos, foram utiliza-dos para outros fins. Juscelino Kubits-chek, por exemplo, tomou 6 bilhõesda Previdência para construir Brasília, ea ditadura militar usou dinheiro daPrevidência para construir a ponte Rio-Niterói10. Não consola nem justifica,mas é bom lembrar que esses mon-tantes foram utilizados no setor produ-tivo, enquanto que, desde a década de90, os recursos têm sido consumidospelo setor especulativo.

As dificuldades da Previdência So-cial se ampliam por vários motivos,alguns levantados pela AFIPERJ: en-quanto o empregador privado é obri-gado por lei a contribuir com 20 % aoRGPS, o governo, enquanto emprega-dor dos servidores públicos, não con-tribui com nenhuma quantia; não hávontade política de recuperar os cré-ditos inscritos na dívida ativa, que jásomam cerca de R$ 150 bilhões; há10 anos, não é realizado concurso pú-blico para procuradores; existem cer-ca de 1.400 processos por procura-dor, para dar conta do complexo pro-cesso de recuperação dos valoresdevidos pelas empresas; o incrívelvolume de recursos que deixa de serarrecadado em função da renúnciafiscal via entidades filantrópicas, clu-bes de futebol, contribuições dosetor rural e empregadores domésti-cos que soma R$ 25 bilhões, apenasno período de 2000-200211. De fato,podemos constatar que a causa prin-cipal é a recessão, o desemprego, otrabalho informal, a diminuição donúmero de funcionários públicos etc,resultado de um modelo econômi-co-social voltado para remunerar ocapital financeiro, a especulação. Opróprio Ministro da Previdência,Ricardo Berzoini, reconheceu queum dos caminhos para “salvar” o sis-tema previdenciário seria a “inclusãodos trabalhadores do mercado infor-

mal”, segundo apresentado na Vozdo Brasil, de 13 de março de 2003.

Quem ganha e quem perde com a Reforma da Previdência

A criação de um sistema de previ-dência privada complementar dasaposentadorias dos funcionários pú-blicos, através da definição de um te-to proposto na reforma da Previdên-cia, como ocorre hoje com o RGPS,abre possibilidades de negócios queenvolveriam 1 trilhão e 400 bilhõesde reais para o setor privado, segun-do a economista Maria da ConceiçãoTavares12. O setor da previdência pri-vada vive uma franca expansão: de1996 até o ano passado, cresceu 10vezes, saltando de R$ 3 bilhões paraR$ 31 bilhões. Só entre 2001 e 2002,quase atingiu cinco milhões de contri-buintes, crescendo 32,53 %. Só paracitar a relevância da ligação entre ocapital especulativo e as aplicaçõesdos fundos complementares privadosdos trabalhadores, este é o tema datese de doutoramento da ProfessoraSara Granemann, da Escola de ServiçoSocial da UFRJ, denominada “CapitalFinanceiro e Fundos de Pensão” 13.

Não por acaso, dez dos doze me-morandos de política econômica queo governo FHC encaminhou ao FMI,desde novembro de 1998, reiteram ocompromisso de promover a reforma

da Previdência. O último memorando,assinado no dia 4 de setembro doano passado, com o aval de todos oscandidatos à Presidência da Repúbli-ca, inclusive o atual presidente, diz oseguinte:

“O governo se compromete aavançar no cumprimento de suaagenda legislativa no restante no res-tante de 2002.(...) Na área fiscal, ogoverno buscará a aprovação delegislação para: (i) criar fundos deaposentadoria complementar paraos servidores públicos e cobrar contri-buições previdenciárias dos servido-res inativos e (ii) definir as carreiraspara as quais os servidores públicospodem ser contratados pelo regimede previdência do setor privado”.14

No curto prazo, o governo tem porobjetivo utilizar a reforma da Previdên-cia para garantir superávit primário, ouseja, fazer economias de recursos, queserão destinados ao pagamento dosserviços da dívida pública. Essa estraté-gia, entretanto, só poderá surtir efeitose houver a cobrança de contribuiçãode inativos associada a medidas comodefinição de um teto salarial e aumen-to do tempo para aposentadoria. Amera criação de um teto para aposen-tadoria dos funcionários públicos,como o atual de R$ 1.561,56 do setorprivado, vai significar um aumento dasdespesas para o Estado no curto prazo,como já admitido pelo Ministro daPrevidência.

Em recente entrevista ao programaRoda Viva, em 30 de janeiro último,Henrique Meirelles, atual presidentedo Banco Central, declarou que ocombate ao déficit da Previdência abri-ria caminho para sinalizar aos merca-dos. Segundo ele, ou o Brasil decideutilizar esses recursos para se desen-volver ou segue a regra atual de conti-nuar pagando aposentadoria integralaos funcionários públicos. Meirellesassocia reforma da Previdência com

50 - DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Seguridade Social

Se anteriormente as

privatizações das estatais

serviram para fazer reserva

de caixa e drenagem de

recursos para pagamentos

de juros e ganhos dos

banqueiros, agora com a

reforma da Previdência

não é diferente.

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imediata redução dos gastos públicos,o que agradaria aos mercados. Comisso, podemos concluir que a concep-ção de desenvolvimento de Meirelles éa mesma do governo FHC, da qual co-nhecemos os resultados.

Entretanto, a previdência privadatransfere para os trabalhadores a incer-teza quanto ao valor do benefício aque terão direito, uma vez que não hágarantia de remuneração mínima, jáque o fundo individual se transformaem aplicações do mercado financeiro(título e ações). Sujeitos à taxa de car-regamento, taxa de administração etaxa de saída. Além disso, se o fundofalir, o dinheiro aplicado não tem ga-rantia de retorno. Como exemplo, ébom lembrar da CAPEMI, que faliu. Equem nela aplicava nunca mais viu acor do seu dinheiro.

A lógica da Reforma da Previdência

Se anteriormente as privatizaçõesdas estatais serviram para fazer reservade caixa e drenagem de recursos parapagamentos de juros e ganhos dosbanqueiros, agora com a reforma daPrevidência não é diferente. Os argu-mentos são bem parecidos. As estataisdavam déficit, eram ineficientes, eramcabides de emprego, eram pesadas,grandes elefantes brancos, que entra-vavam a economia e o desenvolvimen-to do país. A privatização proporciona-ria mais eficiência, menores taxas, me-lhor atendimento ao povo e baratea-mento dos serviços. Além do que, osrecursos seriam utilizados para investi-mentos em educação, saúde, sanea-mento, habitação.

Hoje sentimos o resultado: como amaior parte do dinheiro das privatiza-ções das estatais foi deslocada para opagamento dos juros e mesmo assima dívida interna cresceu de 60 bilhõesde reais (29,2 % do PIB), em 199415,para 893,3 bilhões em 2002 (quase 60

% do PIB)16, para a população, esseprocesso significou aumentos exorbi-tantes, entre janeiro de 1995 a julhode 200117, por exemplo, nas taxas deluz (188 %), gás (107 %), telefone fixo(445 %), água e esgoto (141 %), me-trô (164 %), crescimento do desem-prego, maior dependência do país,pois foram entregues ao capital inter-nacional setores estratégicos para odesenvolvimento nacional. Isso inten-sificou a submissão do país à econo-mia mundial, retomando relações tipi-camente coloniais (submissão batiza-da agora de “vulnerabilidade externa”).Sem falar na deterioração das condi-ções de vida do povo em decorrênciado corte de recursos em serviçossociais básicos.

Na época das privatizações, os gran-des meios de comunicação e o governoespalharam mentiras, manipularam da-dos e esconderam informações impor-tantes, entre elas, a de que parte dosrecursos/lucros arrecadados pelas esta-tais eram desviados para pagamentosde juros da dívida externa brasileira.

A Reforma da Previdência vai pelomesmo caminho. Direitos conquista-dos com a luta dos trabalhadores dosetor público são apresentados comoprivilégios, entraves ao crescimentoeconômico, uma vez que o déficit daPrevidência arrombaria cada vez maiso caixa do país. São mentiras alardea-das com o intuito de colocar a maioriado povo contra os funcionários públi-cos e assim tentar dificultar a uniãodos diversos setores de trabalhadorespara conquistar a extensão e amplia-ção desses direitos sociais para o con-junto da população. É necessário au-mentar a imoral aposentadoria de umsalário mínimo e reverter a situaçãodos milhões de brasileiros que traba-lham sem carteira assinada ou estãodesempregados, e que, inclusive, nãotêm direito a nenhuma aposentadoria.Ao mesmo tempo, é uma tentativa de

dividir os trabalhadores para legitimare facilitar a supressão dos direitos dosfuncionários públicos e ocultar os ver-dadeiros interesses que estão por trásda privatização da Previdência.

Na execução orçamentária de 2002,fica escancarada a prioridade dada pe-lo governo ao setor financeiro. Gastou-se 98 % do que foi programado com adívida pública. Por outro lado, nas áre-as sociais somente foram liberadas2,26 % das verbas previstas para sane-amento básico, 6,71 % das verbas pre-vistas para a infra-estrutura urbana, 69% do previsto para geração de empre-go e renda, erradicação do trabalhoescravo e formação profissional. Para aeducação, 25 % das verbas destinadasnão foram liberadas e dos 26 bilhõesautorizados para a Saúde, 4 bilhões fi-caram retidos18.

O atual governo vai pelo mesmocaminho. Já no início do ano, parahonrar seu compromisso com os acor-dos internacionais, cortou R$ 14,1 bi-lhões do orçamento de 2003. Destetotal, 35,4 % são provenientes da áreasocial: R$ 341 milhões da Educação, R$247,7 milhões da Previdência, R$ 1,620bilhão da Saúde, R$ 261,7 milhões doTrabalho, R$ 407,1 milhões do Desen-volvimento Agrário, R$ 250,7 milhõesda Assistência e Promoção Social. OMinistério das Cidades e o Ministérioda Integração Social foram os maisafetados, perdendo, respectivamente,R$ 1,874 bilhões e R$ 1,85 bilhões19.Vale lembrar que a fata de infra-estru-tura urbana e de saneamento básico éuma das principais causas da mortali-dade infantil no país.

Com o dinheiro dos cortes, no con-texto da DRU e da Lei de Responsabi-lidade Fiscal, o governo justifica pagaros juros da dívida e impedir o “descon-trole” da dívida pública. Entretanto,esta é a política que tem sido postaem prática nos últimos 8 anos e a dívi-da pública se multiplicou. Em relação a

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Seguridade Social

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Seguridade Social

1995 (primeiro mandato de FHC), opagamento de juros da dívida para2003 subiu 266%. Em 1995 foramgastos R$ 25,5 bilhões e o gasto previs-to no orçamento de 2003 é de R$ 93,6bilhões. A prioridade da política econô-mica no pagamento de juros aparecena contabilidade dos bancos. Maisuma vez, em 2002, as instituições fi-nanceiras, estrangeiras e nacionais, ti-veram recorde de rentabilidade. Comrelação a 2001, praticamente dobra-ram o seu rendimento. Na média, ban-cos estrangeiros triplicaram seus lucrosem 2002. Por exemplo, o SantanderBanespa teve ganhos de 12 % emmédia no mundo, enquanto no Brasilseus ganhos foram de 56 %20.

ConclusõesÉ certo que existem distorções no

Sistema Previdenciário. Entretanto, umaverdadeira reforma deveria ter comoproposta ampliar a aposentadoria doconjunto dos trabalhadores, principal-mente aumentar o teto da aposenta-doria daqueles que ganham 200 reais.Esta, a maior das distorções, não énem citada pelo governo ou pela gran-de imprensa. Esta proposta de reformaapresentada atende principalmenteaos interesses dos bancos e do siste-ma financeiro em ampliar o regime deprevidência privada, que é inclusiveum dos objetivos do governo com oempenho da aprovação do PL9, quetem grande rejeição de todas as enti-dades representativas dos servidos pú-blicos desde o envio ao Congresso pe-lo governo FHC.

Para usar os argumentos do reno-mado jurista Fábio Konder Comparato,professor titular da USP, em entrevistana revista Caros Amigos deste mês21,ao colocar em primeiro plano os inte-resses das grandes corporações finan-ceiras, o governo considera direitosfundamentais, conquistados atravésde anos de lutas dos trabalhadores,

segundo a ótica no capitalismo neoli-beral. Ele alerta, ainda, para a tendên-cia mundial de sustentação dos siste-mas de Previdência Social predomi-nantemente na tributação, ou seja, nataxação das grandes corporações fi-nanceiras que vêm obtendo lucros as-tronômicos nos últimos anos. O pro-fessor da Economia da UFRJ, ReinaldoGonçalves, também denuncia no Jor-nal do Brasil22 que a reforma da Pre-vidência proposta não vai atingir a par-cela mais rica da população, mas simaos pobres e à classe média, e propõeque se “deveria fazer antes a reformatributária para definir claramentequem vai pagar a conta de um ajustefiscal que o país necessita, inclusive aconta da seguridade social”.

Notas1. Começou mal a Reforma da Previdência -Revista Veja, Editora Abril, 22 de janeiro de2003, pp. 30-37.Argumentos com a profundidade de umpires apresentados por Veja: a revista com-para a defesa do direito adquirido da aposen-tadoria integral dos funcionários públicos àsqueixas da elite escravagista quando da abo-lição da escravatura pela Lei Áurea, que teriacessado o direito adquirido dos brancos depossuir escravos, garantido pela Constituiçãoda época.2. Reforma ou contra-reforma?, César Benja-min - Caros Amigos, Editora Casa Amarela,fevereiro de 2003, pp. 13.3. A Verdade sobre a Previdência Social - AFI-PERJ (Associação dos Auditores Fiscais da Pre-vidência Social no Estado do Rio de Janeiro) -mimeografado.4. Idem.5. FH gastou 110 bilhões de reais com paga-mento de juros em 2002 - Monitor Mercantil,16 de janeiro de 2003.6. Previdência: Servidor não quer privilégio,mas respeito a direitos, afirma Paulo Gil, paraquem prioridade deveria ser reforma tributá-ria. Reforma agrada a mercado, diz sindicalis-ta - Patrícia Zorzan, da Reportagem Local -Folha de São Paulo, 19 de janeiro de 2003.7. Cf. nota nº 3.8. A reforma da Previdência: a questão do tetodas aposentadorias garantidas pelo poderpúblico - Argumentos de Ocasião - sítio

www.oficinainforma.com.br, janeiro de 2003.9. A proposta de reforma da Previdência dogoverno Lula - Dois passos para trás - sítiowww.oficinainforma.com.br, quinta-feira, 9 dejaneiro de 2003.10. Cf. nota nº 1.11. Cf. nota nº 3.12. Reforma da Previdência para Quem? - reti-rado do sítio da Professora Maria daConceição Tavares, www.abordo.com.br/mc-tavares/, 1998.13. Previdência Social - Previdência é patrimô-nio dos trabalhadores - Jornal do SINTUFRJ(Sindicato dos Trabalhadores em Educação daUniversidade Federal do Rio de Janeiro), feve-reiro de 2003, no 556, pp. 4.14. A receita das seguradoras privadas para areforma da previdência - Um plano de batalhae seus riscos - sítio www.oficinainforma.com.br,terça-feira, 18 de fevereiro de 2003.15. País pagou 700 bilhões de reais com jurosnos 8 anos de FH. Monitor Mercantil, 17 de ja-neiro de 2003.16. Dívida Pública poderá ultrapassar 1 trilhão.Jornal do Brasil, 16 de março de 2003.17. Manifesto. Jornal da Associação de Pós-Graduandos da UFRJ - março/abril de 2003,pp. 2.18. Rodrigo Ávila, da Auditoria Cidadã da Dí-vida. In: Superávit da Previdência de R$ 50 bi-lhões. Mimeografado.19. Cortes no orçamento. Folha de São Paulo,11 de fevereiro de 2003.20. Banco estrangeiro triplica rentabilidade -Érica Fraga, da Reportagem Local. Folha deSão Paulo, 15 de dezembro de 2002.Seis bancos dominam negócio da dívida -Sandra Balbi, da Reportagem Local. Folha deSão Paulo, Caderno Dinheiro, 01 de dezem-bro de 2002.21. Uma aula de democracia - Entrevista comFábio Konder Comparato. Caros Amigos, CasaAmarela, março de 2003, pp. 30-39.22. “A reforma não afeta os ricos” - Professorquer mudança tributária. Jornal do Brasil, 26de janeiro de 2003.

*Contribuição da Associação de Pós-Graduandos da UFRJ. Apresentado noSeminário “A Questão da PrevidênciaSocial e a Universidade” - 18 e 19 demarço de 2003 / UFRJ.

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DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 55UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Financiamento da Educação

IntroduçãoNeste texto, analisamos a discussãosobre a política de financiamento daeducação, a partir de um balanço crítico da produção escrita no período1991-2002, na revista Universidade eSociedade, cujos resumos estãocompilados no Banco de Dados

Universitas/Br ( organizado e editadopelo grupo de trabalho “PolíticasPúblicas de Educação Superior”, integrante da Associação Nacional de Pesquisa Educacional - ANPEd.

Tendo como referência o conjuntode textos publicados nessa revista, noperíodo mencionado, buscamos: a)mapear e identificar o conteúdo e aforma sob a qual se efetua a discussãoacerca da política de financiamento daeducação brasileira; b) aglutinar essemapeamento segundo focos específi-cos dele emergentes, que facilitem aanálise do conteúdo das discussões.

O corpus no qual nos fundamenta-mos foi constituído por 10 textos queconcentraram sua atenção especifica-mente sobre questões relativas a finan-ciamento da educação, com ênfasepara: dotações orçamentárias, distribui-

ção de verbas públicas, custeio das ati-vidades universitárias, dentre outraspreocupações. Além da consulta aos re-sumos - contidos em CD-ROM organi-zado por Morosini (1999), os artigosforam retomados em sua forma integralpara efeito de análise pormenorizada.

Em atenção à natureza discursiva

de nosso objeto, procuramos analisaras seguintes questões: que referênciase indicações refletem a realidade con-textual na qual esses estudos foramproduzidos? Qual o conteúdo dessesartigos? Como se relacionam entre si eque sentidos são estabelecidos nessasrelações?

A temática - política de financiamento da educação - na revista Universidade e Sociedade

Vera Lúcia Jacob Chaves* Helena Corrêa de Vasconcelos**

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A revista Universidade eSociedade e a produção escritasobre educação superior, 1991 a2002: revelações preliminares

A revista Universidade e Sociedadedata de 1991. Surge quando o Sindi-cato Nacional dos Docentes das Ins-tituições de Ensino Superior - ANDES-SN - comemorava seu 10º aniversáriode existência. Conta com um conselhoeditorial; faz tiragem de cinco milexemplares e seus textos são produzi-dos, na grande maioria, por docentesdas Instituições de Ensino Superior doPaís. Na análise de Catani (1998:271),Universidade e Sociedade têm cum-prido os objetivos com os quais foianunciada, pois os textos nela publica-dos explicitam e traduzem reflexões ecríticas sobre a política educacionalbrasileira, “combinando com felicida-de as dimensões política e científicana análise da educação e da socieda-de brasileira e de outros países”. En-tretanto, vale a advertência de Weber(1993, p.114) de que:

Certamente, os editores nãopodem, de uma vez por todas,proibir a si próprios e aos seuscolaboradores que expressemos ideais que sustentam, inclu-sive os seus juízos de valor. Masa partir disso, surgem dois im-portantes deveres. Em primeirolugar, o dever de tanto o autorcomo os leitores terem claraconsciência, em cada momen-to, da questão “quais são os cri-térios empregados para medir arealidade, e para obter - partin-do destes critérios - o juízo devalor. Defendemos este proce-dimento, ao invés de nos enga-narmos acerca do conflito entreos ideais (...)”.

Examinando os vinte e oito títulosda revista Universidade e Sociedade,publicados no período de 1991 a 2002,identificamos um conjunto de duzen-

tos e vinte e cinco textos referentes,especialmente, à problemática da edu-cação, e destes, apenas dez se repor-tam à dimensão financiamento.

É importante assinalar que o perío-do definido para análise neste estudofoi marcado pela implementação deuma série de medidas governamentaisque, no seu conjunto, configura umaverdadeira reforma da educação supe-rior no País. Tal reforma vem sendo rea-lizada através da utilização de umadiversidade de instrumentos normati-vos, como leis ordinárias, decretos, por-tarias, medidas provisórias etc., sendo aLei de Diretrizes e Bases da EducaçãoNacional, n.º 9394, sancionada peloPresidente da República, em dezembrode 1996, a expressão maior dessasações, legalmente instituídas.

Nesse momento histórico, cobertopelo período referencial de nossa aná-lise, as manifestações dos autoresapresentam, em geral, denúncias e crí-ticas às políticas educacionais, relacio-nadas a mudanças profundas noEstado brasileiro - que passara de Esta-do Providência para Estado Avaliador(Morosini, 2000), o que teria repercus-sões diretas no campo da educação,

suscitando críticas ao atrelamento doPaís a diretrizes internacionais paratodas as áreas sociais, inclusive a edu-cacional. Em geral, os textos visam acompreender, esclarecer, resumir, ana-lisar - teórica e politicamente, as medi-das governamentais adotadas para aeducação superior brasileira.

Sobre o formato da produção escri-ta no periódico Universidade e Socie-dade, observamos a predominânciade artigos que, em geral, apresentam

análises sobre a situação vigente daeducação superior, resultado de pes-quisas e/ou reflexões de conteúdo de-nunciativo acerca da política imple-mentada (supostamente) pelo gover-no brasileiro.

Em que pese o fato de a educaçãosuperior possuir várias dimensões ana-líticas, a temática política de financia-mento é uma das fundamentais paracompreendê-la. Entretanto, chama aatenção a baixa freqüência de textosproduzidos sobre essa temática, nointerior desse periódico, onde repre-senta um percentual de apenas 4,4%(10 textos) da produção nele publica-da, durante o período em pauta - 1991a 2002, como é dado a observar na Ta-bela 1.

Observando a distribuição de docu-mentos publicados no período analisa-do, destacam-se os anos de 1991,1995, 2001 e 2002, nos quais a produ-ção sobre a temática política de finan-ciamento atinge o máximo numérico,com a publicação de oito artigos (doisa cada ano), da produção escrita sobrefinanciamento. Chama a atenção o fa-to de que, nos anos de 1992, 1993,1994, 1996, 1999 e 2000, não foi

publicado nenhum texto sobre atemática em questão e, no biênio1997-1998, apenas dois textos tenhamnela se detido.

Em se tratando de uma publicaçãoorganizada por um Sindicato Nacionalda categoria de docentes da educaçãosuperior, resta indagar por que talassunto de extrema relevância paraesclarecer e subsidiar as ações domovimento docente vem sendosecundarizado no conjunto dos textos

Tabela 1 - A Temática Política de Financiamento naRevista Universidade e Sociedade: 1991 a 2002

1991 26 02 7,7

1992 16 00 0,0

1993 09 00 0,0

1994 19 00 0,0

1995 14 02 14,3

1996 22 00 0,0

1997 19 01 5,3

1998 19 01 5,3

1999 23 00 0,0

2000 11 00 0,0

2001 27 02 7,4

2002 20 02 10,0

TOTAL 225 10 4,4

Textos sobre a TemáticaPolítica de FinanciamentoTextos sobre

ANO Educação Superior Absoluto %

Fonte: CD-ROM Universitas/Br- A produção científica sobre educação superior no Brasil, 1968 - 2000. GT POLÍTICA DEEDUCAÇÃO SUPERIOR/ ANPEd. Porto Alegre, Marília Morosini (Org.), 1999. Atualmente disponível em Biblioteca VirtualUniversitas/Br, pelo site http://paganini.ulbra.tche.br:1020

Financiamento da Educação

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DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 57UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

produzidos? Que motivos explicariama baixa densidade discursiva sobreuma dimensão fundamental no con-texto do movimento docente? Eviden-te que não cabe cogitar, no espaçodeste artigo, nenhuma hipótese deresposta a tal questão, mas não pode-ríamos deixar passar despercebido oinstigante fato, sem efetuar pelo me-nos o registro, dada a relevância dessapreocupante escassez de textos sobredimensão tão importante, quanto à definanciamento.

A temática política de financia-mento da educação superior

Um rol de dez textos concentrasuas preocupações em questões espe-cíficas concernentes à política de fi-nanciamento da educação superior, noperíodo compreendido entre 1991 a2002.

No ano de 1991, a revista Universi-dade e Sociedade nº 2 publicou doistextos, que contemplam análises acer-ca do financiamento da educaçãosuperior. A ênfase dos debates recai nacrise da universidade pública, no pro-blema da privatização interna; na re-forma do Estado; na destinação dasverbas públicas; nos embates sobreautonomia; nas denúncias sobre aadoção de políticas governamentaisafinadas com as diretrizes econômico-financeiras externas.Trata-se dos textosde Vieira (1991) e Lima Neto (1991).

O primeiro artigo, sob o título “AUniversidade Federal em tempos som-brios”, de autoria de Sofia Lerche Vieira(1991), focaliza a crise da universidadebrasileira e as sombrias perspectivaspara ela apontadas, pelo abandono dopoder público e pelos conflitos inter-nos que levam a universidade a viverum “lento e progressivo processo dedestruição”.

A autora procura compreender acrise da universidade através de para-lelos traçados com crises anteriores.

Destaca a expansão e a reforma doensino superior ocorrida durante oregime militar como precioso mecanis-mo de conquista de hegemonia. Aofinal dos anos 70, no entanto, os pro-blemas começam a acentuar-se, pois“manter as universidades públicas éum pesado ônus para o governo fede-ral (...). A universidade pública incomo-da, faz crítica veemente ao sistema epor isso mesmo, o governo expressasinais de pretender desvencilhar-se deseu rebento rebelde”. Para tanto, ossucessivos governos promovem areestruturação da universidade públicatraduzida no descomprometimento doEstado com o financiamento das IFES,sob a retórica da “autonomia”.

A autora apresenta dados numéri-cos da crise das universidades federaiscom ênfase para a evolução do siste-ma, ao longo dos anos, e para o finan-ciamento das IFES. Em relação à ex-pansão do ensino superior, chamaatenção para o crescimento do setorprivado (tanto em relação ao númerodas IES como de alunos matriculados),em contraposição à paralisia do setorpúblico, com menor proporção no en-sino estadual que apresenta um certodinamismo. Sobre o financiamentodas IFES, denuncia a queda das dota-ções dos recursos destinados à reposi-ção dos equipamentos de laboratórios,bibliotecas e instalações, uma vez queos recursos de OCC (Outros Custeios eCapital) diminuíram drasticamente, apartir de 1987, além do agravamentodo arrocho salarial e da avassaladoraonda de aposentadoria de docentes etécnicos. Por último, trata do corporati-vismo como mais um dos fatores quecontribuem para a crise da universida-

de e sua relação aos desafios que aatual situação impõe aos que preten-dem resistir a ela.

Conclui que as previsões de cortespara o ano subseqüente incidem so-bre toda a execução orçamentária atin-gindo, de modo específico, os recursosde manutenção e investimento dasinstituições empurrando-as rapida-mente para seu sucateamento. O rápi-do panorama da situação de crisevivenciada pelas IFES aponta para osefeitos alarmantes sobre as condiçõesde sobrevivência do ensino da pesqui-sa e da extensão.

Newton Lima Neto, no texto “Con-dições de sobrevivência das Universi-dades Federais” (1991), apresenta umdiagnóstico da situação das IFES, utili-zando-se de dados oficiais obtidos jun-to ao Ministério da Educação. Para Li-ma Neto, este diagnóstico se tornafundamental quando se pretende ga-rantir a sobrevivência dessas institui-ções. Embora admita a existência deoutros problemas, o autor considera aquestão das verbas o principal a serenfrentado. Destaca que, embora exis-ta um desnível grande no financia-mento do ensino superior público,com algumas instituições e regiões re-cebendo um volume de investimentosmuito maior que outras, todas elas es-tão envolvidas por uma política dedescaso com a educação. Denuncia aqueda de volume de recursos dos últi-

O rápido panorama da situação de crise vivenciada

pelas IFES aponta para os efeitos alarmantes sobre as condições

de sobrevivência do ensino da pesquisa e da extensão.

Financiamento da Educação

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mos anos tanto em relação à compres-são salarial como nos recursos desti-nados à manutenção e investimentosdas IFES. Observa que o quadro é dra-mático, uma vez que a verba disponí-vel, até 1991, para a rede federal deensino superior, representou apenas21,9% do volume de verbas destina-dos em 1987.

Lima Neto afirma que a comuni-dade acadêmica tem sido incapaz detornar realidade seu desejo de pro-mover uma avaliação contextualizadae construtiva. Conclui que, apesar dacrônica escassez de recursos a que foisubmetido, o sistema público federalvem buscando cumprir seu papel so-cial, de “formar profissionais habilita-dos, prestar inúmeros serviços deextensão (hospitais universitários,projetos de alfabetização etc.), capa-citar pesquisadores (mestres e douto-res) e, sobretudo, produzir partesubstancial da pesquisa tecnológica,científica, artística e cultural do país”.Conclama a união de todas as forçasprogressivas da sociedade para ga-rantir a sobrevivência do sistema pú-blico de ensino superior do país.

Decorrido três anos de silêncio, arevista Universidade e Sociedade vol-tou a publicar, em 1995, dois textossobre a temática do financiamento daeducação, apresentados no SeminárioNacional de Ciência, Tecnologia e De-senvolvimento, realizado nos dias 14 e15 de abril de 1994, no Instituto deOceanografia da USP, em São Paulo.Fernando Sklo e Sandra Brisolla ex-põem, em mesa-redonda, sobre “Mo-delos de Financiamento”, com ênfasepara o financiamento do sistema na-cional de ciência e tecnologia.

Sklo (1995) aborda o tema emtrês partes, iniciando com um brevehistórico sobre a FINEP que surgedurante a ditadura militar sob forteplanejamento centralizado cujomodelo de desenvolvimento econô-

mico e industrial exigia a formaçãorápida de recursos humanos altamen-te capacitados. Em seguida, apresen-ta um breve relato do funcionamentoda FINEP, ressaltando a sua influênciano processo de formação do sistemanacional de ciência e tecnologia.Finaliza com algumas consideraçõesacerca da situação atual da política deciência e tecnologia no Brasil.

O autor afirma que a FINEP, criadacomo uma estatal, com um fundo ge-renciado pelo Banco Nacional de De-senvolvimento Econômico e Social(BNDES), teve um papel muito impor-tante na institucionalização da pesqui-sa e para a expansão do processo depós-graduação, especialmente dasáreas tecnológicas. Destaca os instru-mentos de capacitação tecnológica,vinculados à FINEP, como o Fundo Na-cional de Desenvolvimento Científico eTecnológico (direcionado para as insti-tuições); o Programa de Apoio ao De-senvolvimento Tecnológico da Empre-sa Nacional (destinado ao financia-

mento da empresa nacional para a ca-pacitação tecnológica) e o programaAUSC (financiava a contratação de ser-viços de empresas de consultoria deengenharia nacional). Com a mudançado paradigma tecnológico o modelode desenvolvimento econômico indus-trial se esgotou e surge uma nova polí-tica industrial cujo modelo de conteú-do neoliberal, baseado na tecnologiavis-à-vis, tentou, sem sucesso, repro-duzir no Brasil o modelo oriental deengenharia reversa. A FINEP criou ou-tros mecanismos de financiamento pa-ra empresas que queiram se adequarà nova política industrial voltada para aimplantação de sistemas de qualidade.

O autor denuncia que atualmenteno país inexiste uma política industriale que o sistema financeiro nacionalestá totalmente voltado para o capitalfinanceiro especulativo. Afirma que aFINEP hoje depende de recursos dotesouro para organizar seu orçamentoe, dada a escassez de recursos, ques-tiona sobre a possibilidade da discus-são de uma política científico-tecnoló-gica baseada no modelo FINEP, CNPq,CAPES, sem uma política de desenvol-vimento e sem uma política industrial.Conclui que o problema da política deciência e tecnologia não se resume àquestão do modelo de financiamento,sendo necessária a discussão de umaproposta nacional para a política cien-tífica e tecnológica do Brasil.

Sandra Brisolla (1995), sob o título“Modelos de Financiamento, uma pro-posta para o Brasil”, inicia sua exposi-ção afirmando que, para que a ciênciae a tecnologia tenham realmente prio-ridade, depende não apenas da vonta-

Apesar do crescimento do ensino superior privado,

o ensino superior público forma praticamente metade

dos alunos nas áreas mais difíceis e mais caras que podem

promover o desenvolvimento científico e tecnológico do país.

Financiamento da Educação

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DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 59UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

de dos pesquisadores mas do jogo deforças políticas, nem sempre favorá-veis. Levanta alguns aspectos positivosda política de pós-graduação do país,dentre os quais o favorecimento dapreservação do pessoal docente nasuniversidades, mesmo com o baixo ní-vel salarial. Destaca que, apesar docrescimento do ensino superior priva-do, o ensino superior público formapraticamente metade dos alunos nasáreas mais difíceis e mais caras quepodem promover o desenvolvimentocientífico e tecnológico do país, daí serfundamental a manutenção da gratui-dade do ensino público. Defende anecessidade de intensificar o Progra-ma Institucional de Capacitação Do-cente (PICD) e o financiamento deprojetos com o nível de excelência pa-ra a manutenção de um bom sistemanacional de pesquisa.

Brisolla apresenta alguns pontospara o resgate de programas e proje-tos do sistema nacional de pesquisatais como: a reestruturação dos institu-tos públicos de pesquisa; o incentivo aprojetos conjuntos da universidade edos institutos públicos de pesquisa;melhoria da administração dos proje-tos; revigoramento das linhas de apoioinstitucional a grupos emergentes e arealocação de recursos dos projetosque perderam seu sentido ou cuja pri-oridade seja hoje secundária, para darsustentação a projetos potencialmentecapazes de solucionar os graves pro-blemas nacionais. Finaliza apontandopara a necessidade de resgatar o défi-cit social acumulado de longa data pa-ra que o país possa ser capaz de criare produzir vantagens relativas e me-lhorar sua inserção internacional.

No ano de1997, apenas um textoapresentou discussão sobre financia-mento. Sob o título: “Os recursos fi-nanceiros na LDB”, Nicholas Daviestem por objetivo examinar os artigosda Lei n° 9394/96 que tratam dos re-cursos financeiros, apontando os pon-tos positivos, os insuficientementedefinidos e os negativos.

Davies (1997) destaca, como pon-tos positivos, na referida lei, a vincula-ção de recursos para a educação queobriga a “União a aplicar, anualmente,nunca menos de 18%, e os Estados, oDistrito Federal e os Municípios, 25%,(...) da receita resultante de impostos,compreendidas as transferências cons-titucionais, na manutenção e desenvol-vimento do ensino público”, conformeorienta o artigo 69.

Observa o autor que, apesar doavanço em relação à Constituição Fe-deral de 1988, onde se estabeleceum percentual mínimo a ser destina-do ao ensino público, o própriogoverno (tanto na esfera federalquanto na estadual e na municipal)

vem adotando medidas que reduzemo valor final de aplicação desses re-cursos destinados à educação. Dentreas medidas, destaca a criação do Fun-do Social de Emergência (FSE); oFundo de Estabilização Fiscal (FEF) ea Desoneração das Exportações (LeiKandir), representando perdas bilio-nárias de recursos que deveriam serutilizados para a manutenção e o de-senvolvimento do ensino.

Davies destaca, ainda, a existênciade outros recursos para a educaçãocomo o salário-educação; o arrecada-do em convênios como os da meren-da, transporte escolar, municipalizaçãoe material didático1. Denuncia, no en-tanto, que os governos municipais nãovêm aplicando tais recursos à educa-ção e que os Tribunais de Contas, co-mo o do Estado do Rio de Janeiro, emgeral, não demonstram conhecimentoacerca do assunto, citando exemplosconcretos da prática de irregularidadedo governo do Rio de Janeiro que sig-nificou uma redução na ordem de R$500 milhões na previsão orçamentáriado ano de 1997.

O mérito do texto de Nicholas Da-vies está no fato de analisar os artigosda LDB que tratam da questão do fi-nanciamento da educação, procuran-do estabelecer relações entre as Dire-trizes e Bases e a aplicação prática, noâmbito das três esferas administrativas(federal, estadual e municipal), alémde apresentar denúncias extremamen-te importantes sobre as manobras queos governos utilizam para reduzir osvalores que deveriam ser destinados àeducação.

Ressalta que, apesar dos pontospositivos existentes em alguns artigosda Lei, o mais importante não é a letraou o espírito da Lei, mas a vontade po-lítica das classes e/ou frações de clas-ses que, dentro e fora dos aparelhosdo Estado (no âmbito legislativo, exe-cutivo e judiciário), conspiram ou aju-

A mobilização e organização dos setores populares

da sociedade poderão fazer com que os seus interesses,

contemplados na LDB, sejam cumpridos.

Financiamento da Educação

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dam na implementação ou não de taisdispositivos legais. Conclui assinalandouma certa tradição brasileira, que es-quece as leis de interesse da popula-ção e/ ou retarda a sua aplicação, eobserva que somente a mobilização eorganização dos setores populares dasociedade poderão fazer com que osseus interesses, contemplados na LDB,sejam cumpridos.

No ano seguinte, foi publicado otexto de autoria do professor Sevilha(1998), intitula-se “A herança orça-mentária do que já veio e do que estápor vir”, que tem por objetivo estimu-lar o debate dos docentes das institui-ções federais de ensino superior (IFES)sobre o financiamento. O autor limitasua análise aos recursos provenientesdo Tesouro Nacional e, apesar de afir-mar que tomará como base alguns in-dicadores utilizados internacionalmen-te para avaliar os gastos com a educa-ção superior pública, se restringe àanálise da questão orçamentária,tendo como referência à aplicação derecursos em relação ao produto inter-no bruto (PIB). A partir desses dados,aponta significativas quedas nos recur-sos destinadas às IFES, passando de0,53% do PIB, em 1994, para 0,32%,em 1998. Explica tais índices comoreflexo das medidas de ajustes quesão negociadas com o Fundo Mone-tário Internacional (FMI), impondomais restrições orçamentárias, assimcomo o aprofundamento dos cortes

no financiamento das pesquisas. Se-vilha destaca que o problema do finan-ciamento das IFES reflete a incapacida-de da política econômica do governofederal, que não oferece nem equacio-na soluções para os graves problemassociais que o País enfrenta, mas nãodeixa de evidenciar as articulaçõesdesse fato com a orquestração de polí-ticas externas.

No texto, são denunciadas as ma-nobras do governo federal na divulga-ção de despesas com as IFES, na medi-da em que inclui, na alocação de re-cursos, gastos com pessoal, aposenta-dos e pensionistas, além dos precató-rios. De certa forma, ratifica as denún-cias de Davies (1997). Mas, emboraseja um estudo que se propõe a esti-mular a luta dos docentes nas IFES, es-casseia elementos substantivos paraalcançar tal objetivo; incorrendo na fal-ta de densidade analítica, de funda-mentação teórica e empírica. Emboranão sejam apresentados dados neces-sários para uma crítica mais global eincisiva o texto apresenta o mérito dese propor a estimular a luta dos docen-tes a partir das denúncias feitas,mesmo que de modo incipiente.

No ano de 2001, dois textos apre-sentaram discussões relativas à políticade financiamento da educação. Trata-se dos textos de Fonseca (2001) eDavies (2001).

O exame dos resultados financeirosdos acordos estabelecidos entre oBrasil e o Banco Mundial para o setoreducacional, no período de 20 anos,constitui objeto de preocupação dotexto de Marília Fonseca que analisa aspropostas políticas e resultados de

cinco projetos para a educação básicabrasileira, desenvolvidos no período de1971 a 1992, e financiados pelo BIRD.

Fonseca (2001) inicia com um bre-ve perfil do BIRD, denunciando que,apesar das disposições estatutárias doBIRD que não compete ao Banco in-tervir nos negócios políticos dos Esta-dos, na prática, as exigências estabele-cidas para aceitação dos países sóciosfundamentam-se em critérios políticose, no caso de empréstimos para ajus-tes estruturais, as medidas voltam-separa a estabilização econômica e de-vem ser definidas em estreita colabo-ração com o FMI, constituindo-se emcondição para a concessão de créditodo BIRD. Esclarece que os créditosconcedidos à Educação, integram a dí-vida externa do País para com as insti-tuições bilaterais, multilaterais e ban-cos privados. Ao analisar os dadosfinanceiros dos cinco projetos de edu-cação básica financiados pelo BIRD,mostra que os custos foram altos parao setor educacional e que o Brasil, noperíodo de 20 anos, recebeu cerca decem milhões de dólares mas paraobter essa quantia investiu uma quan-tia muito maior do que o crédito exter-no a título de contra-partida.

A autora após realizar uma breveanálise sobre o desempenho dos cincoprojetos, conclui que, do “ponto devista de sua eficácia em relação às me-tas estabelecidas, ao tempo despendi-do para a execução e às despesas de-correntes mostrou-se aquém do limiteaceitável” para a correção de proble-mas estruturais para a educação brasi-leira. Os resultados apontados levam aautora a questionar a relevância do fi-nanciamento externo à educação bra-sileira, tendo em conta as despesasdecorrentes dos empréstimos e a fracacaptação de recursos para o setor. Porfim, questiona a continuidade dosacordos internacionais, uma vez quenão apresentaram resultados positivos

O problema do financiamento das IFES reflete

a incapacidade da política econômica do governo federal,

que não oferece nem equaciona soluções para os graves

problemas sociais que o País enfrenta.

Financiamento da Educação

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e tem possibilitado influenciar não so-mente o desenho dos projetos, mas aagenda política dos países, cuja tônicaprincipal do Banco é a redução dasdespesas públicas.

Davies (2001), no trabalho “PlanoNacional de educação: muito discurso,nenhum recurso”, examina os aspec-tos financeiros do Plano Nacional deEducação (PNE) previsto na Lei 10.172,fazendo referência aos dois projetosde lei do PNE encaminhados à Câmarados Deputados: o Plano do MEC e oPlano do CONED.

O autor inicia sua reflexão chaman-do atenção para a fragilidade da idéiade plano numa sociedade cujo Estadoé regido pela lógica do capital, em suaânsia de reprodução, e não pela lógicado atendimento das necessidadeshumanas. Ressalta que, “por mais bemconcebido e intencionado que seja umplano, suas possibilidades de realizaçãoserão necessariamente limitadas e trun-cadas dentro da ordem capitalista edependente como é o caso brasileiro”.

Ao realizar uma breve comparaçãoentre o Plano do CONED e o do MEC,afirma que mesmo revelando diferen-tes concepções de planejamento daeducação, ambos apresentam debili-dades. Os PNEs governamentais (cam-po neoliberal) se enredam numa con-tradição interna insolúvel, que consistena elaboração de um plano de açãoestatal como o principal problema epropõe como solução o incentivo e aconvocação da sociedade para sociali-zação da miséria, suprindo e corrigin-do a insuficiência de recursos públicos,usando seus próprios meios e recur-sos. Ressalta que praticamente todosos vetos do presidente ao PNE-substi-tutivo aprovado no Congresso Nacio-nal dizem respeito à previsão de re-cursos para a concretização das dire-trizes e metas do PNE-Lei, demons-trando sua debilidade em estabelecermetas de expansão para todos os

níveis e modalidades de ensino, semprever nem os custos nem a fonte derecursos adicionais para o financia-mento de tais metas.

Davies chama atenção para o PNEdo CONED que, embora se oponhaaos PNEs do governo, reduz o diagnós-tico a problemas conjunturais, nãocaptando a dimensão estrutural do ca-pitalismo dependente. Afirma que denada adianta destinar 10% do PIB pa-ra a educação pública se não tiver as-segurado sua efetiva aplicação na me-lhoria das atividades-fim, além do quea obrigação da destinação desse per-centual será de difícil operacionaliza-ção porque o PIB é uma renda nacio-nal (do governo e da iniciativa privada)e por ser impossível responsabilizar asdiferentes esferas governamentais emtermos de percentual do PIB. Concluique as propostas do PNE do CONED,embora nada revolucionárias - pois

não pretendem mudar a natureza daescola - não seriam realizáveis em suaplenitude, mesmo num governo dediscurso seriamente reformista, pornão enfrentar os condicionantes estru-turais da ação estatal.

No ano de 2002, dois textos apre-sentaram discussões sobre financia-mento, com nítido caráter de denún-cia. Trata-se dos artigos de Miraglia &Smaili (2002) e Davies (2002).

No artigo “O financiamento públicopara a universidade pública é neces-sário”, Miraglia & Smaili (2002) apre-sentam uma reflexão sobre a políticade financiamento do governo federalpara a educação superior pública, cujodebate foi suscitado durante a grevedas federais e das estaduais do Paraná,ocorridas em 2001. Os autores argu-mentam que “as greves dos últimosanos têm também o papel explicitarpara a opinião pública a inadequação

Por mais bem concebido e intencionado que seja um plano,

suas possibilidades de realização serão necessariamente

limitadas e truncadas dentro da ordem capitalista e

dependente como é o caso brasileiro.

Financiamento da Educação

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da política do governo de FHC em rela-ção à educação superior”. A ênfaserecai na destinação das verbas públi-cas, no problema da privatização inter-na das universidades públicas, nasdenúncias sobre reduções orçamentá-rias e no arrocho de salários.

Denunciam as inverdades divulga-das no Brasil acerca do sistema norte-americano utilizado como modelo nopaís, apresentando dados sobre oamplo financiamento do governoamericano em ensino e pesquisa.Exemplificam com o caso do Sistemade Ensino Superior de Maryland (déci-mo terceiro do país) que recebe dogoverno americano anualmente 1,7 bi-lhão de dólares para seus gastos, en-quanto, no Brasil, o custeio de todo osistema federal de ensino superior nãopassa de 2,5 bilhões de dólares.

Com a finalidade de desconstruiros argumentos governamentais utili-zados no Brasil, os autores apresen-tam dados sobre o financiamento depesquisas, cobranças de mensalida-des e salários dos professores, empaíses mais desenvolvidos. Conclu-em afirmando que nos países desen-volvidos não existem desenvolvi-mento e autonomia sem investimen-to maciço em educação e pesquisaem todos os níveis”.

Davies (2002), no texto “O finan-ciamento público às escolas privadas”,examina alguns mecanismos de finan-ciamento das escolas privadas com autilização de recursos públicos diretose indiretos para tal fim. Inicia denun-ciando o caráter estruturalmente priva-tista do Estado capitalista, apontandoos elementos que tornam esse priva-tismo mais nefasto: o patrimonialismoe a ofensiva neoliberal, dos últimos 20anos. Apresenta vários exemplos doprivatismo na educação brasileira tan-to na legislação (constituições, leis edemais instrumentos normativos)quanto nos organismos estatais como

o Conselho Nacional de Educação(CNE), os Conselhos Estaduais deEducação e no Plano Nacional de Edu-cação do MEC.

Antes de analisar as fontes públicasde financiamento das escolas privadas,Davies apresenta um breve comentá-rio desmistificando o discurso acercadas mensalidades serem a única ouprincipal fonte de sustentação das IESprivadas. Afirma que, embora a men-salidade seja a fonte mais visível definanciamento, “as várias fontes diretase, sobretudo indiretas de recursospúblicos para as escolas privadas pro-vavelmente somam hoje bilhões dereais por ano e reduzem, indiretamen-te, as despesas delas, contribuindo pa-ra a sua manutenção e expansão”.

Davies apresenta uma análise exa-ustiva das fontes diretas e indiretas definanciamento das IES privadas. Afirmaque a principal fonte indireta de finan-ciamento das privadas é a isenção tri-butária e previdenciária (garantidasconstitucionalmente) que têm favore-cido a grande expansão dessas institui-ções. Outra fonte indireta de financia-

mento para IES privadas tem sido aisenção do salário-educação, contri-buição social que, embora criada em1964 para financiar o então ensino pri-mário público, serviu para sustentar asescolas privadas. O autor denunciaque, além das vultosas fontes indiretasde recursos públicos para seu financia-mento, as privadas conseguiram obterfontes públicas diretas tais como: sub-sídios, bolsas, subvenções, emprésti-mos, crédito educativo, FIES. Concluique, sem o financiamento público(que deve totalizar alguns bilhões dereais por ano), as IES privadas certa-mente não teriam se expandido tantoe que as duas mais importantes medi-das de privatização do ensino superiorno Brasil são “a omissão do Estado e ofinanciamento público às IES privadas”.

Em resumo, as análises nas quais

A principal fonte indireta de financiamento das privadas é a

isenção tributária e previdenciária (garantidas constitucionalmen-

te) que têm favorecido a grande expansão dessas instituições.

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nos detivemos ( sobre a política de fi-nanciamento, têm em comum o fatode denunciarem a crise das Universi-dades públicas; a redução drástica dasverbas públicas para as IES públicascom cortes no orçamento e arrochosalarial; a privatização da educaçãosuperior; os desvios de verbas públicaspara as IES privadas, dentre outraspolíticas governamentais afinadas a di-retrizes econômico-financeiras exter-nas como as do Banco Mundial.

Considerações finaisOs textos produzidos no período

de 1991 a 2002 e publicados na revis-ta Universidade e Sociedade refletemas questões recorrentes e emergentesdesse período histórico, expressandoimportantes elementos da conjunturapolítica e econômica que o País atra-vessara, historicamente. Em geral, de-nunciam as estratégias que o Estadovem adotando na política de financia-mento as quais, sintonizadas com osorganismos internacionais, têm acen-tuado a crise das universidades públi-cas. As Diretrizes e Bases para a Edu-cação Nacional, no que concerne à po-lítica de financiamento instituída noTítulo “Dos Recursos Financeiros”, tam-bém se tornaram foco dos debates,discussões e denúncias, quanto aonão cumprimento.

Esses estudos traduzem, ainda, orecrudescimento da lógica neoliberalnas políticas sociais do País. Expres-sam a influência externa na políticaeducacional brasileira, demonstrandoo modelo dependente de desenvolvi-mento econômico - assumido pelosgovernantes que, através da criação deregulamentações, via medidas provisó-rias, decretos e leis complementares,estabeleceram a nova organização dapolítica de financiamento, que se arti-cula e materializa à política econômicaorquestrada diretamente pelo FMI e oBanco Mundial, ditada aos países com

eles endividados.Observamos, nas linhas e entreli-

nhas dos artigos, o aprofundamentoda crise econômica que agudiza o su-cateamento das universidades públi-cas, asfixia as instituições de pesquisa,fazendo emergir, com maior vigor, odiscurso da auto-sustentabilidade e doensino superior pago. Ao mesmotempo, a luta da comunidade científi-ca, em defesa da autonomia das uni-versidades e de uma política científicae tecnológica que oriente e dê base aoprocesso de desenvolvimento econô-mico, político e social do País, seja res-tabelecida.

O balanço da produção escrita so-bre política de financiamento da edu-cação, publicada na Revista Universi-dade e Sociedade, no período de1991 a 2002, indica a necessidade deestimular o desenvolvimento deoutros estudos acerca da temática porser de extrema relevância para escla-recer e subsidiar as ações do movi-mento docente.

Notas1 Vale notar que, segundo o art. 68 da mesmaLei, os recursos públicos destinados à educa-ção são originários de: (I- receita de impostospróprios da União, dos Estados, do DistritoFederal e do Municípios); (II- receita de trans-ferências constitucionais e outras transferên-cias); (III- receita do salário-educação e deoutras contribuições sociais; (IV- receita deincentivos fiscais); e (v- outros recursos previs-tos em lei)).

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*Vera Lúcia Jacob Chaves é Professora daUFPA, Doutoranda em Educação da UFMG e1a. Vice-Presidente da Regional Norte II doANDES-SN - gestão 2002-2004.

**Helena Corrêa de Vasconcelos é Profes-sora da Universidade Federal Rural do Riode Janeiro, Doutora em Educação pela UFRJ.

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Este artigo busca apresentar umpanorama recente do financiamentoda educação no Brasil. Na primeiraparte, a reflexão centrará na análisede alguns efeitos do Fundef e, nasegunda, sobre o esvaziamento dacapacidade do governo federal naobtenção de recursos para o ensino,pela via da receita vinculada deimpostos.

I-Um olhar inicial sobre os efeitos do Fundef.

A Tabela 1, a seguir, apresenta osgastos com ensino no Brasil, no pe-ríodo de 1995 a 1997. Neles, estãocontabilizados essencialmente aque-les itens de despesas consideradospela Lei de Diretrizes e Bases da Edu-cação Nacional (Lei 9394/96) comogastos com manutenção e desenvol-vimento do Ensino e não estão incluí-dos os gastos com aposentados quesão estimados em 1% do PIB (Pro-duto Interno Bruto).

Em primeiro lugar, há que se con-siderar que a metodologia de acom-panhamento dos gastos públicos noBrasil ainda está nos seus primórdios,em especial, em virtude da dificulda-

José Marcelino de Rezende Pinto*

Ano Brasil Federal Estadual Municipal

% do PIB % % %

1995 3,9 20 49 31

1996 3,8 17 51 32

1997 3,7 17 49 34

1998 4,2 16 48 36

1999 4,3 17 44 39Fonte: INEPObs: Não estão incluídos os gastos com aposentados bem como aqueles não definidos pela LDB como de Manutenção eDesenvolvimento do Ensino.

Evolução dos Gastos Públicos com Ensino por Esfera de Governo (1995-1999)

Tabela 1

Financiamento da Educação

Tendências recentes nos gastos

com educação no Brasil

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de de se obter os dados referentes aosmunicípios bem como dos efeitos quea introdução do Fundef provocou nacontabilização dos gastos com educa-ção e que, geralmente, provoca umadupla contagem que precisa ser corri-gida na somatória final. Além disto, osdados mais recentes que possuímosainda remontam a 1999, o que nosdificulta aquilatar, com maior precisão,o impacto do Fundef. Feitas estasobservações, constata-se uma peque-na elevação no período, em especial, apartir de 1998, nos gastos com ensinono país. Este crescimento foi puxadobasicamente pelos municípios vistoque os gastos, tanto da União, quantodos estados, decresceram no períodoquando comparados com o PIB: aUnião saiu de 0,78% do PIB, em 1995,para 0,73% do PIB, enquanto osEstados variaram de 1,91% do PIBpara 1,89%. Já os municípios, saíramde um patamar de 1,21% do PIB para1,68%. Este aumento dos gastosmunicipais pode ser explicado basica-mente por dois fatores: maior contro-le, fiscalização e transferência dos re-cursos estaduais decorrentes dosmecanismos de transferência do Fun-def. Contudo, como pode ser visto naTabela 2, este aumento dos gastosfrente ao PIB não propiciou um au-mento dos valores per capita para osalunos da educação básica, quandoconsideramos a inflação período.

Olhando a Tabela 2 mais acurada-

mente, constata-se que o valor per ca-pita, em termos reais, caiu em todas asredes, tomando por base os valores de1995. Aparece, com especial destaque,a redução na rede municipal de Edu-cação Infantil e na rede estadual deEnsino Médio. Curiosamente, ambasrepresentam a maior rede na sua res-pectiva modalidade de ensino e estaqueda pode ser atribuída aos efeitosdo Fundef. No caso dos Estados o queocorreu é que, a despeito do cresci-mento da matrícula no Ensino Médio,boa parte das despesas com este nívelde ensino(em especial, salários dosdocentes) está sendo contabilizadacomo gasto no Ensino Fundamental. Jáno caso dos Municípios, ocorreu umasituação similar com a Educação In-fantil. Observa-se também um fortemovimento de introduzir precocemen-te as crianças de seis anos nas classesde 1ª série, seja como forma de obterrecursos do Fundef, seja como formade liberar vagas na Educação Infantil.

Este conjunto de observações preli-minares nos permite algumas inferên-cias sobre o impacto das medidas re-centes referentes ao financiamento, emespecial, da implantação do Fundef:

* uma mudança na divisão deresponsabilidades entre estados e

municípios no financiamento daeducação, com um aumento signi-ficativo do papel representado porestes últimos;

* esta maior participação muni-cipal é fruto menos de um aumen-to da receita municipal do que deum aumento da transferência dereceitas estaduais decorrente doefeito associado entre a fórmula derepasse de recursos do Fundef e oaumento da municipalização doEnsino Fundamental;

* este fato traz uma forte preo-cupação sobre a capacidade dosmunicípios de arcar com as cres-centes tarefas que têm assumidono campo educacional. Em 2001,das cerca de 47,5 milhões de matrí-culas públicas na Educação Básicano país, os estados respondiam por24,2 milhões e os municípios por23,1, enquanto a União respondiapor menos de 0,2 milhões. Quandoconstatamos que a receita de im-postos dos municípios (contabiliza-das as transferências constitucio-nais e não contabilizado o efeito doFundef) é apenas a metade daque-la dos estados, percebe-se a neces-sidade urgente de se repensar adivisão de responsabilidade entreos níveis de governo;

* esta transferência de recursosdos estados aos municípios induzi-da pelo Fundef também tem umoutro efeito. A melhora, na redemunicipal (em especial, nos pe-quenos municípios das regiõesmais pobres do país), apresentada,em boa parte dos relatórios queanalisaram os efeitos desse fundo,foi feita à custa de uma reduçãodos recursos disponíveis para os

A criação do Fundef não alterou a modesta participação

da União, no financiamento da educação no País.

EVOLUÇÃO DO GASTO PÚBLICO POR ALUNO POR DEPENDÊNCIA ADMINISTRATIVA E NÍVEL DE ENSINO (R$ DE 2.000)

Ano Educação Infantil Ensino Fundamental Ensino MédioEstadual Municipal Estadual Municipal Estadual Municipal

1995 1067 1534 1059 1114 1160 1386

1996 850 1052 765 768 834 887

1997 680 967 625 718 721 972

1998 844 1 038 725 765 723 844

1999 811 1056 692 799 678 812

Fonte: INEPDeflator: IGP-DI da FGV (atualização feita pelo autor)Obs: Não foi considerada a rede federal dado o seu pequeno impacto, em especial nas matrículas da Educação Infantil edo Ensino Fundamental.

Tabela 2

Financiamento da Educação

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alunos das redes estaduais, fatonem sempre lembrado;

* a criação do Fundef não alte-rou a modesta participação daUnião, no financiamento da educa-ção no País, que foi de, cerca de1/6 do total, no período analisado;

* a situação poderia ser outra sea União cumprisse a Lei 9424/96que regulamenta o valor mínimoper capita do Fundef;

* em virtude desta desobediên-cia à legislação, mais de R$ 10 bi-lhões deixaram de ser transferidosao Ensino Fundamental, nos últi-mos 5 anos;

* a insignificante contribuiçãoda União teve como resultado tam-bém um impacto nulo do Fundefem reduzir as diferenças nos gastospor aluno entre os Estados da Fe-deração. Assim, em 1999, para umvalor médio de R$ 474/aluno-ano,Pernambuco apresentava um percapita de R$ 308, enquanto o deRoraima era de R$ 927;

* como o Fundef é contabiliza-do duas vezes nas contas esta-duais e municipais (como despe-sa, quando os recursos são trans-feridos para o fundo, e como re-ceita, quando os recursos sãotransferidos do fundo), este fatotem levado, muitas vezes, a seobservar a dupla contagem dosvalores, tornando ainda maiscomplexa a já difícil tarefa de apu-rar as despesas reais com ensino;

* o Fundef tem induzido esta-dos e municípios a minimizar con-

tabilmente os gastos com EnsinoMédio e Educação Infantil, respecti-vamente, o que torna mais difícil aapuração dos valores per capita. Boa parte dos problemas atribuí-

dos ao Fundef pode ser minimizada oueliminada com a criação do Fundeb,que seria um fundo de caráter perma-nente e que englobaria toda a educa-ção básica. Contudo, para o sucessodeste novo fundo, é pré-condição bási-ca um aporte significativo de novos re-cursos para a educação, em especial,por parte do a União que é quem me-nos contribui com o financiamento daEducação Básica, mas também daparte dos estados e municípios quedeveriam ir além do atual patamarmínimo de 25% de vinculação consti-tucional. A título de exemplo, nos EUA,país que não possui vinculação consti-tucional para educação, os gastos comeducação correspondem, em média, a33% das despesas (aqui incluídas

aquelas feitas com o pagamento de ju-ros e encargos da dívida) das esferasestaduais e locais.

Como vimos, apesar de ser o nívelde governo o de maior aporte de re-cursos, o governo federal é aquele quemenos contribui com o financiamentodo ensino no país. No item a seguir,vamos buscar entender as causasdeste fato.

Por que a União gasta tão pouco com educação?

A Tabela 3, a seguir, mostra o querepresentam os 18% aplicados sobre areceita líquida de impostos da União.

Pelos dados apresentados na Tabe-

RECEITA LÍQUIDA DE IMPOSTOS DA UNIÃO E OS 18% (BASE: ORÇAMENTO DE 2003)

Receita Bruta Desvinculação Transferências Transferências Receita Líquida Mínimo de Impostos das Receitas aos estados aos municípios de Impostos Constitucional

A B= 20% de A C D E= A-B-C-D F=18% de E

100,6 20,1 20,9 19,8 39,8 7,2

Tabela 3

Fonte: SPO-MEC

R$ Bilhão

Financiamento da Educação

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la 3, constata-se que devido às transfe-rências constitucionais a estados emunicípios e à DRU (Desvinculaçãodas Receitas da União, criada pela EC27/2000 e com validade prevista até ofim de 2003), a receita líquida daUnião corresponde a menos de 40%de sua receita bruta, de tal forma quea aplicação do índice de 18% acaba re-presentando um montante muito pe-queno de recursos. Somente a DRUretira cerca de R$ 3,6 bilhões dosrecursos vinculados ao ensino.

A queda do potencial de geraçãode recursos vinculados para a educa-ção do governo federal está relaciona-da não só à criação da DRU (antesFundo de Emergência Social que setransformou em Fundo de Estabiliza-ção Fiscal) mas a um progressivo esva-ziamento da receita dos impostos arre-cadados pela União, em especial, doImposto de Renda e do Imposto deProdutos Industrializados que cresce-ram muito menos no período que oICMS (Imposto Sobre Circulação deMercadoria e Prestação de Serviços detransporte e comunicação), um tributoarrecadado pelos estados. A opção da

União para ampliar suas receitas foiinvestir nas Contribuições Sociais eEconômicas, em que a mais conhecidaé a CPMF (Contribuição Provisória so-bre a Movimentação Financeira) pois,ao contrário dos impostos, estas nãoimplicam compartilhamento com esta-dos e municípios nem vinculação deum percentual mínimo para educação.Somente as contribuições federais re-presentam cerca de 14% do PIB, sen-do a maior delas a Contribuição para aSeguridade Social. Destas, apenas osalário-educação, que representa cerca

de 0,3% do PIB, é vinculado ao ensino.A conseqüência natural deste pro-

cesso de esvaziamento das receitas deimpostos da União é que os gastos fede-rais com educação superam, em muito,os 18% da receita líquida de impostosconforme indica a Tabela 4, a seguir.

ORÇAMENTO DO MEC PARA 2003 POR PRINCIPAIS FONTES E GRUPOS DE DESPESA(R$ milhão)

Ad. Direta 221 195 2.412 269 16 342 3.455

Esc. Técnicas e Cefets 486 0 80 21 0 0 587

IFES e HCPA 7.721 1 1.041 167 2 2 8.935

Escolas Agrotécnicas 194 0 56 4 0 0 254

Capes 10 0 502 8 0 0 520

Fies 0 0 11 0 674 0 685

FNDE 31 0 3.033 147 0 0 3.211

Col. Pedro II 133 0 9,6 0,4 0 0 143

Inep 7 0 154 2 0 0 163

Outros 68 0 16,4 1,6 0 0 85

Total 8.871 196 7.315 620 692 344 18.037

Fonte: SPO-MEC (adaptado) Obs: Em função de arredondamentos, as somas podem não coincidir.

Tabela 4

Juros eEncargosda Dívida

Pessoale

Encargos

OutrasDespesasCorrentes

Total TotalFontesInvesti-mentos

InversõesFinanceiras

Financiamento da Educação

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No confronto entre as Tabela 3 e 4,percebe-se o quanto os recursos davinculação constitucional passaram aperder representatividade frente aoorçamento total do MEC; no total, elessomam apenas 40% do orçamento doMEC. É evidente que os gastos do MECincluem muitas despesas que, pelalegislação, não são consideradas comode manutenção e desenvolvimento doensino, mas mesmos estas, que noorçamento de 2003 somam R$9,8 bi-lhões (e não incluem os gastos cominativos), ainda são 36% maiores queo valor propiciado pela vinculaçãoconstitucional. Isto mostra que qual-quer recurso adicional do governosfederal deverá vir além daqueles míni-mos assegurados por esta vinculação.

Façamos agora alguns comentáriosadicionais sobre os dados da Tabela 4.Praticamente a metade dos gastos doMEC vai para o pagamento dos seus260 mil servidores (150 mil inativos),embora este valor represente apenas11% das despesas da União com pes-soal. Os gastos com inativos e pensio-nistas somam R$ 2,9 bilhões e atual-mente não são contabilizados comogastos com manutenção e desenvolvi-mento do ensino pelo MEC. Por fim,cabe ressaltar que 87% das despesascom pessoal estão concentradas nasIFES. Por outro lado, boa parte dosgastos de custeio concentram-se emprogramas destinados ao Ensino Fun-damental que se concentram no FNDEe na própria Administração Direta, po-dendo-se citar, entre eles, o bolsa-escola, o programa de merenda esco-lar e do livro didático como aqueles demaior impacto.

Um último comentário pode ser fei-

to com relação aos vultuosos recursosdo FIES (antigo crédito-educativo) quepossui recursos superiores ao orçamen-to das escolas técnicas e próximos ao daCAPES. Em tese, tratam-se de recursosque serão reembolsados mas como alonga história do crédito-educativo parao Ensino Superior, não só no Brasil,mostra é que a inadimplência nestesprogramas é muito alta e, na prática,eles se transformam mais em um meca-nismo de subsídio ao setor privado. Tal-vez valesse a pena confeir quantas no-vas vagas adicionais poderiam ser cria-das nas IFES, aproveitando o potencial jáinstalado, com os recursos atualmenteconsignados para o FIES.

Comentários finaisÀ guisa de conclusão, poderíamos

dizer que os grandes desafios para ofinanciamento da educação no país,nos próximos anos, são os seguintes:

* como desarmar a bomba relógiodisparada pelo Fundef com prazo dedetonação marcado para o dia 1º de

Janeiro de 2007, data marcada para ofim deste fundo?

* Como construir um fundo para aeducação básica (Fundeb) que asse-gure uma padrão mínimo de qualida-de do ensino no país e que reduza asdisparidades de gastos por aluno entreos estados da federação?

* Como atender as metas qualitati-vas e quantitativas postas pelo PlanoNacional de Educação (lei 10.172 de9/01/2001) com forte impacto, emparticular, na expansão da EducaçãoInfantil e Superior, níveis de ensino deelevado custo unitário?

* Como conseguir recursos adicio-nais àqueles fornecidos atualmentepela vinculação constitucional parasuprir as necessidades tanto do Fun-deb quanto do Plano Nacional de Edu-cação?

A tarefa é grande e uma coisa écerta, sem um aumento significativodos gastos com educação no país napróxima década, dificilmente superare-mos o atraso acumulado e construire-mos uma escola de qualidade paratodos os brasileiros. Trata-se de umameta difícil mas que países maispobres que o Brasil já atingiram e queé, portanto, plenamente factível.

Referências BibliográficasINEP-MEC, 2003. Gastos com educação: Su-

mário Executivo. (mimeo)Pinto, JMR, 2000. Os recursos para a educa-

ção no Brasil no contexto das finanças públi-cas. Brasília, Editora Plano.

Pinto, JMR, 2002. Uma investigação a respei-to do custo-aluno e da distribuição de respon-sabilidade pelo financiamento da educaçãoentre os diferentes nívies de governo no Esta-do da Califórnia, EUA. Palo Alto, CA. Relatóriode Estágio de Pós-doutorado no exterior. Proc.Fapesp nº 01/02380-8. (mimeo)

*José Marcelino de Rezende Pinto é pro-fessor (afastado) da FFCLRP-USP e Diretorde Tratamento e Disseminação de Infor-mações Educacionais do INEP. Tabelas 1 e2 elaboradas por Ivan Castro de Almeidado INEP.

Os gastos do MEC incluem muitas despesas que,

pela legislação, não são consideradas como

de manutenção e desenvolvimento do ensino.

Financiamento da Educação

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IntroduçãoPretendo a seguir apresentar e exa-

minar alguns elementos para a com-preensão do financiamento da educa-ção no governo Lula. Antes, porém,creio ser fundamental fazer uma brevecaracterização das forças visíveis e ou-tras nem tanto que possibilitaram ouaceitaram a sua eleição, ou mantêmapoio a ele, mais do que a de um par-tido (Partido dos Trabalhadores) eseus aliados formais. De maneira mui-to sintética, podemos dizer que Lulafoi eleito por uma coligação de forçaspolíticas organizadas que “represen-tam” (com todas as distorções que arepresentação política tem nas socie-dades burguesas e sobretudo nas bur-guesas patrimonialistas, como a brasi-leira) setores da classe trabalhadoraorganizada (ou, melhor dizendo, dasua burocracia sindical), aliados a umafração do capital nacional (“represen-tada” pelo vice-presidente, José Alen-car). As forças não tão visíveis são asque, embora possam ter tido maiorpredileção num momento por Serra,perceberam e percebem a importânciade não apostar todas as fichas num sócavalo - perdão, candidato - e sabemque, mesmo candidatos com origem e

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O financiamento da educação no governo Lula:

o “Ajuste Fiscal” continuaNicholas Davies*

Financiamento da Educação

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trajetória popular, têm flexibilidade e“sensatez” suficientes para ouvir o“mercado”, isso quando o candidato eseu partido, ou pelo menos as suascorrentes dominantes, já não adequa-ram seus princípios e programas aoshorizontes fixados pela ordem burgue-sa, através dos meios de propaganda(jornais, emissoras de rádio e televi-são) e das forças invisíveis do “merca-do”. Alguns breves indicadores damaior importância do “mercado” nogoverno Lula: a pauta política (reformada previdência e tributária) foi cons-truída pelas frações hegemônicas dasclasses dominantes “nacionais” e inter-nacionais, o Conselho de Desenvolvi-mento Social e Econômico, criado porLula, contém representantes empresa-riais em proporção três vezes maior doque de entidades de trabalhadores(além de ser marcadamente regionalis-ta - paulista), e a taxa de juros (que re-munera o capital financeiro e não induzo capital “produtivo” a gerar emprego)foi aumentada, e não diminuída.

Esta breve caracterização é maisimportante para se definir como será ofinanciamento da educação e de mui-tos programas sociais no governo Lula,do que os documentos programáticos,iniciativas legislativas (como o Fun-deb) ou quaisquer outras. Pois muitosgovernos, mesmo os de discurso pro-gressista, contrários ao neoliberalismo,têm demonstrado na prática fazer ocontrário do que prometeram na cam-panha. Como diz Perry Anderson(1995, p. 20), a propósito das eleiçõesde Carlos Menem, na Argentina, em1989, Carlos Andrés Perez, na Vene-zuela, em 1989, e Fujimori, no Peru,em 1990: “Nenhum desses governan-tes confessou ao povo, antes de sereleito, o que efetivamente fez depoisde eleito. Menem, Carlos Andrés e Fu-jimori, aliás, prometeram exatamenteo oposto das políticas radicalmenteantipopulistas que implementaram

nos anos 90.” No seu panorama sobrea evolução do neoliberalismo na pri-meira metade da década de 1990, naEuropa, Anderson mostra que mesmogovernos com discursos progressistas,como os de Miterrand, na França, Gon-zález, na Espanha, Soares, em Portu-gal, Craxi, na Itália, e Papandreou, naGrécia, foram “forçados pelos merca-dos financeiros internacionais a mudarseu curso dramaticamente e reorien-tar-se para fazer uma política muitopróxima à ortodoxia neoliberal” (p.13). A dúvida é saber se realmente fo-ram forçados ou se fizeram uma opção

clara pelo grande capital, mais concen-trado, organizado e poderoso do que ostrabalhadores, sobretudo numa épocade crescente desemprego e reestrutura-ção produtiva. O artigo de James Petrase Henry Veltmeyer sobre os rumos dogoverno Lula (disponível em espanholem www.rebelion.org) e publicadoneste número de Universidade e So-ciedade mostra a opção do governoLula pela continuidade e até aprofunda-mento do modelo neoliberal.

A seguir, apresentamos alguns ele-mentos para a compreensão do queserá provavelmente o financiamentoda educação no governo Lula. Num se-gundo momento, analisamos o Fun-deb, proposta do PT que supostamen-te sanaria os males do Fundef.

Financiando a educação ou promovendo o “ajuste fiscal”?

Não é preciso muita sofisticação ouinformação para perceber que o gover-no Lula não promete ser favorável aofinanciamento da educação pública.Os poucos elementos de que dispo-mos até o momento já permitem vis-lumbrar a continuidade do “ajuste fis-cal” perpetrado por FHC, às custas dostrabalhadores, sobretudo dos trabalha-dores organizados, a começar pelaconcessão da esmola a título de au-mento salarial aos servidores federaismuito aquém da inflação oficial desteano, sem falar nas perdas salariais acu-muladas durante o governo FHC, ape-sar do crescimento da receita tributáriafederal, nos últimos anos e tambémnos primeiros meses de 2003. Estamedida concreta já estaria em contra-dição com o programa do governoLula para a educação (Uma Escola doTamanho do Brasil, disponível emwww.pt.org.br), no item “ValorizaçãoProfissional”, que promete a “irreduti-bilidade dos salários, assegurada a re-posição anual de perdas, a integrali-dade dos proventos de aposentadoriae de pensões.”

Em segundo lugar, este documen-to, que entra em muitos detalhes(não financeiros!) sobre níveis emodalidades de ensino nos quais ogoverno federal não atua prioritaria-mente, pelo menos do ponto de vistaconstitucional, como a educaçãoinfantil, ensino fundamental, educa-ção especial, ensino médio, é exces-sivamente lacônico, ao tratar dofinanciamento (que só ocupa cercade 2,5% do documento!) para pro-meter apenas reexaminar os vetosapostos por FHC ao PNE (PlanoNacional de Educação) para que“através do esforço conjunto daUnião, Estados, Distrito Federal emunicípios, o percentual de gastospúblicos em educação em relação ao

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O governo Lula

não promete ser favorável

ao financiamento da

educação pública.

Os poucos elementos

de que dispomos até o

momento já permitem

vislumbrar a continuidade

do “ajuste fiscal”

perpetrado por FHC.

Financiamento da Educação

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PIB sejam elevados para o mínimode 7% no período de dez anos.”

Numa análise dos programas paraa Educação Superior dos candidatos àpresidência da República, em agostode 2002, o Grupo de Trabalho (GT) dePolítica Educacional do Andes já faziaressalvas a esta proposta por defen-der o “re-exame dos vetos de FHC aoPNE, mas não assumir nenhum com-promisso com seu não-acatamento”,legitimando o PNE do governo FHC,“ao se limitar apenas a rever os vetos(...) [e diferindo] da proposta doAndes-SN e do PNE da sociedade bra-sileira, ao não se contrapor à Lei deResponsabilidade Fiscal e ao Fundode Estabilização Fiscal, que retira ver-ba da educação.” (ANDES, GTPE2002). Assim, o programa não pre-tende tomar como referência a metade 10% do PIB (Produto Interno Bru-to) fixada pelo PNE elaborado em no-vembro de 1997, pelas entidades detrabalhadores da educação que parti-ciparam do II CONED (Congresso Na-cional de Educação), também chama-do de PNE da Sociedade Brasileira, eprotocolado como projeto de lei pelodeputado federal Ivan Valente, do PT,em fevereiro de 1998.

Este percentual mínimo de 7%, noentanto, parece estar em contradiçãocom a Carta-compromisso do PT, queprometeria usar como parâmetro oPNE elaborado pela sociedade (10%),segundo a edição especial do JornalMural da CNTE (Confederação Nacio-nal dos Trabalhadores em Educação),de fevereiro de 2003. Não tive acessoa esta Carta-compromisso, mas é pos-sível que essa contradição se deva aofato de o programa de governo ter sidoelaborado, se não totalmente, pelomenos em grande parte, pela ONG deLula, o Instituto de Cidadania, uma ins-tância inexistente na estrutura partidá-ria. De qualquer maneira, qualquerque seja o percentual, 7% ou 10%,

como o prazo para sua aplicação é de10 anos a partir da aprovação da Leido PNE (janeiro de 2001) e como a leinão prevê aumento dos percentuaisao longo dos 10 anos, isso significaque o conjunto dos governos (sim,pois o percentual vale para as três es-feras de governo, e não apenas para ogoverno federal) só seriam obrigados aaplicar este percentual em 2011. Co-mo o governo Lula termina em 2006(no caso de não ser reeleito), ele nãose verá obrigado a cumprir este per-centual (7% ou 10%) até 2006.

Além disso, conforme já salienta-mos em artigo anterior sobre o PlanoNacional de Educação (DAVIES, 2001),como o percentual vale para o conjun-to dos governos federal, estaduais, doDistrito Federal e municipais, e não hánenhuma definição sobre o percentualque cabe a cada governo, não se po-derá cobrar responsabilidade de ne-nhum governo, uma vez que ela é detodos, conjuntamente. Outro proble-ma é que a receita dos governos não éconstituída de PIB, mas sim de impos-tos, taxas etc, sendo o PIB (pelo me-nos o registrado na contabilidade ofi-cial) um bom indicador para aferiruma série de gastos mas não cobrarresponsabilidade de governos.

Um terceiro elemento negativo pa-ra o financiamento da educação é aproposta de emenda constitucional 41(reforma tributária) encaminhada emabril de 2003 ao Congresso Nacional,prevendo a prorrogação do Fundo deEstabilização Fiscal (FEF) até 2007. Poresta proposta, o Art. 76 do Ato das Dis-posições Constitucionais Transitóriaspassaria a ter a seguinte redação: “É

desvinculado de órgão, fundo ou des-pesa, no período de 2003 a 2007, 20%da arrecadação da União de impostos,contribuições sociais e de intervençãono domínio econômico, já instituídosou que vierem a ser criados no referi-do período, seus adicionais e respecti-vos acréscimos legais.” Como é sabido,o FEF - desde sua criação, pela Emen-da Constitucional de Revisão 1, em1994, com o nome de Fundo Social deEmergência, e prorrogações posterio-res (pelas Emendas Constitucionais10, de 1996, 17, de 1997, e 27, de2000) - trouxe imensos prejuízos aofinanciamento da educação ao desvin-cular 20% da receita de impostos econtribuições. Com isso, a obrigaçãoconstitucional do governo federal deaplicação em manutenção e desenvol-vimento do ensino caiu de 18% para14,4%, pois 20% dos 18% significam3,6%, retirados da educação em âmbi-to federal.

Para se ter uma idéia do prejuízoprovocado por essa esperteza contábil,essa desvinculação da receita da União(conhecida como DRU desde a Emen-da Constitucional 27, de março de2000) resultou em R$ 8,3 bilhões amenos na receita de impostos federaisde janeiro a abril de 2003, que totali-zou R$ 40,2 bilhões no período (dadosobtidos em www.stn.fazenda.gov.br,site da Secretaria do Tesouro Nacio-nal). Se não houvesse essa desvincula-ção, a base de cálculo dos 18% seriade mais de R$ 21 bilhões (após astransferências constitucionais de R$18,9 bilhões para os Estados e Muni-cípios), e não de R$ 12,9 bilhões. Pro-jetando-se os R$ 8,3 bilhões desvincu-

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 71UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

A obrigação constitucional do governo federal

de aplicação em manutenção e desenvolvimento

do ensino caiu de 18% para 14,4%, pois 20% dos 18%

significam 3,6%, retirados da educação em âmbito federal.

Financiamento da Educação

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lados para o ano inteiro, isso resultaráem cerca de R$ 33 bilhões a menos nabase de cálculo dos 18%. Em outraspalavras, a educação em âmbito fede-ral perderá R$ 5,94 bilhões (18% de R$33 bilhões) só este ano. Este prejuízopara a educação será ainda maior por-que a DRU irá também desvincular20% da contribuição social do salário-educação, cuja receita de janeiro aabril de 2003 foi de cerca de R$ 1,2 bi-lhão, que, projetada para o ano inteiro,totalizará R$ 4,8 bilhões, 20% dosquais resultam em R$ 960 milhões.Em suma, o prejuízo causado pela PEC41 à educação, só este ano, será emtorno de R$ 7 bilhões.

O que é mais grave no FEF é quefoi criado com o discurso de que sedestinaria a custear ações de saúde eeducação, porém tem sido usadomuito mais para financiar outros seto-res. Segundo o Relatório e Parecer Pré-vio do TCU sobre as contas do governofederal em 1999, os recursos do FEF“por funções em 1999 foram aplicadosem Defesa Nacional e Segurança Pú-blica (R$ 7,7 bilhões), Assistência ePrevidência (R$ 3,8 bilhões), Judiciária(R$ 3,1 bilhões), Saúde e Saneamento(R$ 2,8 bilhões), Administração e Pla-nejamento (R$ 2,6 bilhões), Educaçãoe Cultura (R$ 2,3 bilhões), Agricultura(R$ 1,2 bilhão) e demais (R$ 1,5 bi-lhão)”, (BRASIL. TCU, p. 27).

Fundeb: a nova panacéia?Antes de analisar o Fundeb (Fundo

de Manutenção e Desenvolvimento daEducação Básica Pública e de Valori-zação dos Profissionais da Educação),cabe ressaltar dois fatos que fragilizama proposta ou pelo menos sua inten-ção declarada. Um é que nem o valormínimo anual por matrícula previsto noFundef (o Fundo de Manutenção eDesenvolvimento do Ensino Funda-mental e de Valorização do Magistério),criado pela Emenda Constitucional 14

e regulamentado pela Lei 9.424, estásendo cumprido pelo atual governo,embora este descumprimento tenhasido veementemente denunciado peloPT, durante o governo de FHC. De acor-do com a CNTE, “o governo federaldeterminou valores mínimos para oFundef inferiores ao que determina alei. Segundo especialistas, a correta in-terpretação do art. 6º da Lei 9424/96(...) resultaria em um repasse de R$733,80, para alunos de 1ª a 4ª série, ede R$ 770,50, para os de 5ª a 8ª série ...Mas o decreto 4.580, do presidenteLuís Inácio Lula da Silva, redigido a par-

tir de recomendação do Ministério daFazenda, ... determinou que os valoresmínimos para o Fundef este ano sejamde R$ 446,00, para estudantes de 1ª a4ª série, e R$ 468,30, para os de 5ª a 8ªsérie. (CNTE Notícias, fev. 2003). Porconta dessa discrepância entre os valo-res mínimos fixados pelo governo e osdevidos de acordo com a lei, o governofederal deixará de complementar, em2003, com mais de R$ 3 bilhões aosFundefs estaduais que não consegui-rem alcançar o valor mínimo por matrí-cula, ampliando, assim, a dívida acu-mulada de mais de R$ 12 bilhões de1998 a 2002 de complementação fe-deral legalmente devida pelo governofederal aos Fundefs estaduais.

É pouco provável que haja correçãosignificativa destes valores em 2003,pois o Grupo de Trabalho criado peloMEC, através da Portaria 71, de 27/1-/2003, para apresentar propostas nes-te sentido, se limitou a trabalhar comtrês possibilidades orçamentárias - (a)as fixadas pelo governo FHC (R$ 657,5

72 - DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Basta vontade política,

o que o atual governo

não tem demonstrado,

optando pelo “ajuste fiscal”,

através de propostas

como as reformas

previdenciária e tributária

Financiamento da Educação

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milhões), (b) os R$ 657,7 milhõesacrescidas de novas receitas, e (c) asrevisadas para baixo pelo atual gover-no (R$ 395,0 milhões) - para o cálcu-lo da complementação federal para oFundef, que, reconhece o relatório des-te GT, não só tem sido inferior ao legal,como tem diminuído em termos per-centuais desde 1998, além de nãoacompanhar o índice de inflação.

Outro fato é que o aumento e me-lhoria dos gastos federais em educa-ção não dependem da criação do Fun-deb, que, por ser uma proposta deemenda constitucional, depende daaprovação de 3/5 dos deputados fede-rais e senadores. Basta vontade políti-ca, o que o atual governo não tem de-monstrado, optando pelo “ajuste fis-cal”, através de propostas como as re-formas previdenciária e tributária, paragerar receita adicional para pagar so-bretudo os juros (não necessariamen-te o principal) da dívida interna e ex-terna, em suma, para remunerar ocapital financeiro, também beneficiadocom o aumento da taxa de juros nosúltimos meses. De qualquer maneira,vale lembrar que o Fundeb terá muitasdificuldades de aprovação porque re-presentará perdas de receitas para osgovernos estaduais, que mobilizarãoseus deputados e senadores para im-pedir sua aprovação ou pelo menosdesfigurá-lo de modo a diminuir taisperdas.

Com relação ao Fundeb propria-mente dito, cabe lembrar que não éuma proposta nova, pois foi apresenta-da por deputados do PT, através daProposta de Emenda Constitucional(PEC) 112, em setembro de 1999 (BRA-SIL, Câmara dos Deputados, 1999), pa-ra corrigir muitos dos problemas doFundef. As diferenças básicas do Fun-deb em relação ao Fundef são: (1)25% de todos os impostos dos Esta-dos, Distrito Federal e municípiosconstituem o Fundeb, e não apenas

15% de alguns impostos, como nocaso do Fundef; (2) todas as matrícu-las iniciais da educação básica (educa-ção infantil, ensino fundamental, ensi-no médio), assim como toda a popu-lação de 0 a 17 anos e a de jovens eadultos que não teve escola na idadeprópria são consideradas na distribui-ção dos recursos, e não apenas as doensino fundamental regular, como noFundef; (3) o governo federal faz umasuplementação para garantir um pa-drão mínimo de qualidade nos gover-nos estaduais, municipais e do DistritoFederal cujos 25% dos impostos nãosejam suficientes para os custos-alu-no-qualidade (diferenciados segundoo nível e modalidade de ensino), a se-rem definidos em lei complementar,(4) 80% do Fundeb se destinam à va-lorização de todos os profissionais daeducação básica, ao contrário doFundef, que prevê, através da Lei9.424, pelo menos 60% desses 15%de alguns impostos para os profissio-nais do magistério no ensino funda-mental, (5) instituição de ConselhosGestores com representação do Poderexecutivo estadual e municipal e dasociedade civil, a serem definidos emlei complementar.

Além disso, a PEC 112 obrigaria ogoverno federal a gastar 20% dos im-postos em MDE (ao contrário dosatuais 18%) e os governos estaduais emunicipais a, no prazo de 5 anos, nãousarem os 25% dos impostos para fi-nanciar suas instituições de ensino su-perior, reservando-os apenas para aeducação básica.

A proposta é um avanço em rela-ção ao Fundef porque pensa a educa-ção básica e os profissionais da educa-

ção como um todo e se baseia no cri-tério de custos-aluno-qualidade deacordo com o nível e modalidade deensino. Outro ponto positivo é preten-der fazer um nivelamento por cima(pelo menos em tese, com a idéia decustos-aluno-qualidade), e não porbaixo, como tem feito o governo fede-ral na implementação do Fundef.

Entretanto, a proposta apresentaalguns elementos insuficientes e pou-co claros, talvez sanados ou atenuadospela futura lei complementar, tantasvezes mencionada na PEC 112, masque deveriam estar esclarecidos naPEC 112. Um elemento pouco claro éa operacionalização do Fundo, que àsvezes parece reunir impostos apenasde um governo e às vezes do conjuntodo governo estadual e prefeituras decada Unidade Federativa. A redaçãoproposta para o § 10º do art. 211 daCF, por exemplo, determina que 80%dos Fundos sejam aplicados na valori-zação dos profissionais da educação.Ora, como tais profissionais são vincu-lados juridicamente a governos especí-ficos (estaduais ou municipais), não aFundebs, parece razoável supor quehaverá tantos Fundebs quanto gover-nos estaduais e municipais, para aimplementação do cálculo de 80% pa-ra a “valorização”, termo vago e inepto,pois o correto seria “remuneração”,algo mais definível. Parece, pois, razoá-vel supor que toda prefeitura e gover-no estadual teria o seu Fundeb, alémdo Distrito Federal. Isso é confirmadopor João Monlevade, um dos inspira-dores/formuladores do Fundeb, que,no texto “Por que Fundeb e não maisFundef”, faz referência a conselhos ges-tores de Fundos estaduais e munici-

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 73UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Vale lembrar que o Fundeb terá muitas dificuldades

de aprovação porque representará perdas de

receitas para os governos estaduais.

Financiamento da Educação

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pais (MONLEVADE, 1999).Outros parágrafos, no entanto, dão a

entender que o Fundeb não opera isola-damente em cada ente político (municí-pio, Estado,. União), pois pretende pro-mover uma redistribuição dos recursosvinculados à MDE entre diferentes esfe-ras de governo. A redação proposta parao § 6º do art. 211 da CF, por exemplo,sugere isso vagamente ao afirmar que“A distribuição de responsabilidades erecursos financeiros em educação bá-sica entre a União, os Estados e Municí-pios tomará por base a população dezero a 17 anos de idade, mais a popu-lação de jovens e adultos que não teveeducação na idade própria, as matrícu-las iniciais, a permanência do aluno naescola e as receitas de impostos, nostermos a serem definidos em lei com-plementar e nos Planos Municipais, Es-taduais e Nacional de Educação.” (grifonosso). Em outras palavras, o Fundebredistribuiria os 25% entre diferentes es-feras de governo com base nos parâme-tros citados acima, porém não fica claro,afora a suplementação federal, se essadistribuição é do Estado para os Muni-cípios ou vice-versa, ou de um Municípiopara outro.

Já a redação proposta para os §§ 7ºe 11 do art. 211 da CF dá a entenderque o Fundeb irá operar em âmbito es-tadual, porém não esclarece se os 25%dos impostos do governo estadual ede todas as prefeituras serão reunidosno Fundeb e distribuídos a cada gover-no de acordo com os custos-aluno-qualidade diferenciados (semelhanteao mecanismo do Fundef de distribui-ção de 15% de alguns impostos esta-duais e municipais de acordo com onúmero de matrículas no ensino fun-damental regular). A operacionaliza-ção do Fundeb apenas em âmbito es-tadual (não municipal) fica subenten-dida na redação proposta para o § 7º,que prevê a suplementação federalapenas aos Estados e Distrito Federal,

não mencionando os municípios. Este caráter estadual é reforçado

pelo § 11, que prevê a existência deConselhos Gestores aparentementeestaduais, pois formados por represen-tação do poder executivo estadual emunicipal e da sociedade civil, não ha-vendo menção de Conselhos munici-pais. Se os Fundebs operarem em âm-bito estadual (e não municipal) e fo-rem geridos por um Conselho deabrangência estadual, não fica claro opapel a ser desempenhado pelas Se-cretarias Estaduais e Municipais de

Educação, que se tornarão dispensá-veis. A dúvida que fica é se estes Con-selhos terão estrutura e agilidade paragerir tais recursos. Se forem de âmbitoestadual e constituídos por 25% detodos os impostos estaduais e munici-pais e distribuídos ao governo estadu-al e aos municipais de acordo com oscustos-aluno-qualidade relativos àsmatrículas reais e potenciais listadasna redação proposta para o § 6° do art.211, recebendo a suplementação fe-deral apenas quando os valores dispo-níveis em âmbito estadual não foremsuficientes para garantir tais custos-aluno-qualidade, não resolverão a de-sigualdade tributária entre os diferen-tes governos, enfraquecendo uma daspretensões da PEC 112, que é a “orga-nização do sistema de ensino de for-ma solidária entre a União, os Esta-dos, o Distrito Federal e os Municípios”(Justificativa da PEC 112 - grifo nosso).

Ora, da mesma forma que a com-

plementação federal para o Fundef, asuplementação federal prevista naPEC 112 apenas atenua as desigual-dades, não garantindo uma mesmadisponibilidade de recursos por alu-no em todas as redes estaduais emunicipais brasileiras. A receita dosalário-educação (estranhamentenão incluído na PEC 112) em 2002exemplifica essa desigualdade entreos governos. Dos R$ 3,5 bilhões arre-cadados nacionalmente, 1/3 ficoucom o governo federal (que os redis-tribui através de programas como odo livro didático e da merenda esco-lar), sendo mais de R$ 1 bilhão, umavez arrecadado pelo governo federal,devolvido ao governo estadual deSão Paulo, que, por sua vez, faz a re-partição dele com governos munici-pais. Já o R$ 1 bilhão restante foi de-volvido aos demais 25 governos es-taduais, muitos dos quais (como oRio de Janeiro, com cerca de R$ 300milhões de receita) ficam com toda areceita pois espertamente até hojenão regulamentaram a repartição domínimo de 50% dela com os municí-pios, prevista na Lei Federal 9.766,de 1998.

Outra fragilidade do Fundeb éconsiderar, como critério de distri-buição de recursos, a população de0 a 17 anos e a de jovens e adultosque não teve escola na idade pró-pria. Ora, só faz sentido essa distri-buição com base nos alunos atendi-dos, não na população potencial-mente escolarizável, pois ela muitasvezes não recebe a devida oferta deescola pelos governos.

Outra (grande) fragilidade doFundeb, no entanto, não está no seuconteúdo explícito, mas na sua supo-sição ingênua de que os valores dis-poníveis para o custo-aluno-qualida-de sejam realmente aplicados pelosgovernantes para beneficiar a quali-dade do ensino. Ora, os nossos estu-

74 - DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Outra fragilidade do Fundeb

é considerar, como critério

de distribuição de recursos,

a população de 0 a 17 anos

e a de jovens e adultos

que não teve escola

na idade própria.

Financiamento da Educação

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dos sobre gastos em educação degovernos (estadual e municipais) flu-minenses demonstram a não-aplica-ção de montantes astronômicos, coma conivência da imensa maioria dos ‘-representantes’ do povo (deputadose vereadores) e dos Tribunais deContas (DAVIES, 2000). A não-aplica-ção de bilhões de reais devidos emeducação também foi constatada emSão Paulo, pelo menos de 1995 a1999 (SÃO PAULO, Assembléia Legis-lativa, 1999), tendo inclusive suscita-do uma ação civil pública do Minis-tério Público Estadual de São Paulo,em fevereiro de 2001. Obviamente,este problema é nacional (como re-conhecido pelo Senador João Cal-mon, em depoimento prestado à Co-missão Parlamentar de Inquéritoconstituída em 1988 para apurar aaplicação das verbas da educação) enão se restringe ao Rio de Janeiro eSão Paulo. Por isso, a proposta doFundeb, se aprovada em EmendaConstitucional, pode na prática sersubvertida pelas práticas concretasdos governantes e cumplicidade doLegislativo e do Judiciário.

ConclusãoOs elementos apontados acima,

mais o incentivo ao crédito educativopara financiar os estudantes “carentes”de instituições privadas de ensino, per-mitem concluir que não são nada boasas perspectivas de expansão ou mes-mo manutenção do financiamento daeducação pública, não só com base nosdocumentos e propostas formais do go-verno, mas também e sobretudo nassuas políticas econômicas e sociais, queprivilegiam a geração de superávit pri-mário para pagar os credores externos einternos da dívida pública e outras me-didas para favorecer o capital nacional eestrangeiro, conforme ressaltam JamesPetras e Henry Veltmeyer, no artigomencionado.

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SÃO PAULO. Assembléia Legislativa. CPI daEducação. Uma ampla exposição de motivos.17 de novembro de 1999.

*Nicholas Davies é Professor da Faculda-de de Educação da Universidade FederalFluminense, Niterói, RJ

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 75UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Financiamento da Educação

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Introdução:O final da década de 90 e o início donovo milênio colocam para a esquer-da brasileira dilemas e desafios, nosentido de construção de diferentesprojetos de desenvolvimento social eeconômico para o Brasil. Este textotem como objetivo apresentar algunselementos políticos deste debate apartir da: 1) retomada dos estudosdesenvolvidos por FlorestanFernandes sobre a formação econômico-social brasileira, autor que considero uma referência primordial para se pensar o capitalismo dependente brasileiro, e, 2) apreensão de alguns dos elementos centrais dos estudos elaborados por Plínio de ArrudaSampaio Jr., intelectual que vem construindo importantes eixos do debate contemporâneo.

Estes estudos foram norteadospelas seguintes questões: Que proje-tos de desenvolvimento se apresen-tam em embate na sociedade? De-senvolvimento sob que ótica? A óticado capital, que apresenta como res-posta para sua crise o projeto neolibe-

ral de sociedade? A ótica do trabalho?Será que o debate sobre a construçãode um projeto nacional de desenvolvi-mento deve se limitar à escolha entrea via de “modernização conservadora”proposta pelo capital ou a via queidentifico como de “intenção progres-sista”, na defesa de uma retomada donacional desenvolvimentismo? Quemsão os sujeitos políticos, “os agenteshumanos das grandes transformaçõeshistórico-sociais”, segundo expressãode Florestan Fernandes, que se consti-tuem como sujeitos capazes de efeti-var a construção de um projeto desociedade para além do capital?

Na retomada da obra de FlorestanFernandes, dois elementos políticosme parecem centrais: a) o conceito dedesenvolvimento desigual e combina-do que Florestam Fernandes se apro-pria da tradição marxista, mais especi-ficamente da influência de Leon Trots-ky e, b) o debate sobre a luta de clas-ses, na implementação do projeto dedesenvolvimento nacional.

Das obras de Plínio de Arruda Sam-paio Jr. procurei compreender os se-guintes elementos políticos: a) como o

autor recupera o conceito de capitalis-mo dependente,e b) que desafios epropostas apresenta para a esquerdabrasileira no sentido de construção deum projeto de desenvolvimento nacio-nal que se oponha ao projeto burguêsde sociedade.

Avalio que a articulação destes ele-mentos cria as bases de fundamenta-ção política para se analisar o processode superação do capitalismo depen-dente que atravessa e constitui a histó-ria do nosso país e, conseqüentemen-te, apresenta a necessidade de umavia revolucionária que contenha, comohorizonte político, à construção da so-ciedade socialista.

Estas inquietações, portanto, melevaram a buscar nestes autores nãoas respostas fechadas ou as conclu-sões definitivas, mas as pistas dos ca-minhos a seguir, das lutas que aindaestão por serem construídas.

Capitalismo Dependente e opapel da burguesia brasileira:as contribuições do pensamentode Florestan Fernandes:

Florestam Fernandes analisava

76 - DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Modernismo neoliberalou retorno ao nacional

desenvolvimentismo?Dilemas e desafios para a construção

de um projeto nacional de desenvolvimento.

Kátia Regina de Souza Lima*

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(1979) o desenvolvimento da socieda-de brasileira a partir do processo de in-dustrialização que caracterizou o capi-talismo no Brasil e a forma de integra-ção do país à economia internacional.O autor parte de análise da economiabrasileira estar inserida no sistema ca-pitalista, uma inserção subordinadaaos interesses econômicos e políticosdas nações hegemônicas. Ao mesmotempo, uma subordinação que nãodeve ser compreendida como imposi-ção “de fora” mas que se articula aopróprio interesse da burguesia brasilei-ra em reproduzir internamente rela-ções de dominação ideológica e explo-ração econômica.

O caráter de combinação de um pro-cesso de industrialização-urbanizaçãocom a ordem rural vigente será aprofun-dado pelo autor, considerando que:

“o que muitos autores chamam,

com extrema impropriedade, de crise

do poder oligárquico não é propria-

mente um “colapso”, mas o início de

uma transição que inaugurava, ainda

que sob a hegemonia da oligarquia,

uma recomposição das estruturas de

poder, pela qual se configuravam, his-

toricamente, o poder burguês e a

dominação burguesa” (1974: 203).

A industrialização brasileira sedesenvolve de forma combinada comcaracterísticas dos ciclos econômicosanteriores e, ao mesmo tempo, subor-dinada econômica, política e cultural-mente à Europa e, naquele momento,em menor escala, aos EUA. No bojo dacrítica ao desenvolvimento desigual -pelas relações que se estabelecemcom as nações hegemônicas - e com-binado - pela presença de pactos dedominação entre a burguesia industriale o setor agrário, é que Florestam Fer-nandes trabalha dialeticamente duasdinâmicas do capitalismo no Brasil: asleis gerais que regem este modo deprodução e ao mesmo tempo as espe-

cificidades da formação social brasileira. Para a constituição do processo de

transição da economia agrária parauma economia urbano-industrial, Flo-restam Fernandes afirmava a existên-cia de saltos históricos: “essa condiçãodeu origem a saltos decisivos na evo-lução histórica da civilização ocidentalno Brasil” (1979:66).

Estes saltos se efetivaram atravésda aquisição de conhecimentos, tec-nologia e produtos produzidos nospaíses centrais e adaptados aos paísesperiféricos do capitalismo, como o Bra-sil. É neste cenário que se coloca odebate sobre um “estado de depen-dência fundamental”, o conceito dedependência construído nos marcosdo desenvolvimento desigual da eco-nomia mundial capitalista e que seexprime na relação centro-periferia.

O autor afirma que o discurso he-gemônico construiu a imagem de queo subdesenvolvimento seria uma con-

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 77UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

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tingência ou uma condição transitóriade determinados países e regiões pa-ra, posteriormente, alcançarem o ple-no desenvolvimento. Assim, a moder-nização das relações econômicas noBrasil disfarçava os laços de depen-dência que se viabilizavam pelo trans-plante de técnicas, instituições sociaise de ideais dos centros hegemônicospara a periferia, porém, um transplan-te que abrigava elementos de origina-lidade inerentes às correlações de for-ças internas.

O conceito de capitalismo depen-dente expressa a dependência econô-mica, política e cultural a que são sub-metidos os países latino-americanos eque esta dependência é reforçada pelaburguesia de cada formação econômi-co-social específica. Este processo ca-racteriza a expansão para os países sa-télites dos vários aspectos da vida so-

cial dos países centrais, evidenciandoque, de fato, os países hegemônicosinvestem no desenvolvimento do capi-talismo nos países periféricos...que aperiferia cresça mas enquanto perife-ria! Isto significa que desenvolvimentoe dependência não foram elementospolíticos excludentes e que se consti-tuem, de fato, nas bases de existênciae aprofundamento do capitalismo de-pendente.

Florestam Fernandes articula o de-bate sobre o regime de classes e o ca-pitalismo dependente para explicar osubdesenvolvimento que caracteriza oprojeto de desenvolvimento no Brasil.Esta relação de dependência e subser-viência da burguesia brasileira se evi-dencia através da sistemática exporta-ção do excedente econômico para a

burguesia dos países centrais: “O controle externo dos “negócios

de exportação e de importação”, bem

como da construção de uma rede

moderna de comércio, bancos e outros

serviços, redundavam num processo de

capitalização para fora, ou seja, de

exportação do excedente econômico

como conseqüência da integração

dependente na economia capitalista

mundial” (1968:46).

A burguesia brasileira associou-seconscientemente à burguesia interna-cional para a manutenção de seus in-teresses econômicos e políticos, bemcomo controlou a participação popu-lar com vistas a impedir qualquer pos-sibilidade de construção de uma revo-lução “fora da ordem”, ou seja, que ti-vesse como horizonte uma revoluçãocontra a ordem burguesa.

“Na acepção em que tomamos o con-

ceito, revolução burguesa denota um con-

junto de transformações econômicas, tec-

nológicas, sociais, psicoculturais e políticas

que só se realizam quando o desenvolvi-

mento capitalista atinge o clímax de sua

evolução industrial” (1975: 203).

Nesse contexto, o horizonte cultu-ral da burguesia brasileira se constituinos limites da absorção de um estilopolítico advindo da oligarquia agráriamarcado por um caráter ultra-elitista epor procedimentos autocráticos. A bur-guesia brasileira, com receio do movi-mento de organização das forças daclasse trabalhadora, optou, assim, pelacomposição entre os segmentos maisconservadores da sociedade. Uma dasmaiores expressões deste pacto dedominação é a forte centralização dopoder pelo Estado brasileiro que: a)

garante o desenvolvimento capitalistaacelerado e controlado pela burguesiabrasileira interessada em ampliar seucapital; b) impede a participação efeti-va das camadas populares e, c) cria asegurança e estabilidade necessáriaspara que o capital da burguesia inter-nacional circule pelo país, por um po-tencial mercado consumidor de pro-dutos e concepções de mundo bur-guesas, garantindo a internacionaliza-ção dos mercados e a proteção destesmercados contra os movimentos so-cialistas.

Consolida-se um projeto de desen-volvimento dependente, associando obinômio pobreza (alívio) e segurança(coerção) viabilizado pelo poder estatal,exercido por grupos modernizadoresque adaptam o país às demandas docapitalismo monopolista, através deacordos e barganhas estabelecidas pelaburguesia brasileira. Assim, não deve-mos entender a burguesia brasileiracomo uma “burguesia fraca” mas quepossuía certo grau de autonomia relati-va para negociar os termos da depen-dência estabelecida com os países cen-trais, pois estes grupos necessitavam deparceiros fortes na periferia para conso-lidar seu projeto hegemônico.

Imperialismo e capitalismo depen-dente são, portanto, duas faces damesma moeda.

“A questão não está como muitos

pensam em distinguir entre uma “bur-

guesia nacional” agente do nacionalis-

mo econômico e uma “burguesia inter-

nacional” agente direto do imperialis-

mo, encarando-se a primeira como um

mal menor e necessário. As qualifica-

ções propostas são inconsistentes e o

problema não é que existam duas bur-

guesias mas uma hegemonia burguesa

duplamente composta” (1975:146).

O que fica evidente na trajetória deação da burguesia brasileira é seucaráter reacionário e ultraconservador,cujas preocupações giravam em torno

78 - DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

O horizonte cultural da burguesia brasileira se constitui

nos limites da absorção de um estilo político

advindo da oligarquia agrária marcado por um caráter

ultra-elitista e por procedimentos autocráticos.

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de seus interesses particularistasdemarcados por um intenso conser-vantismo sócio-cultural e político.

Portanto, o mito do desenvolvi-mento, nos marcos do projeto societá-rio do capital, encobre a luta do capita-lismo pela segurança e controle ideo-lógico para atravessar fronteiras embusca de novos mercados consumido-res e a incorporação de excedenteseconômicos produzidos nas naçõesperiféricas.

A conseqüência da articulação doselementos políticos analisados por Flo-restam Fernandes (exclusão das mas-sas trabalhadoras e associação com aoligarquia agrária interna e com o capi-tal internacional externo) foi, justa-mente, a consolidação do capitalismodependente no Brasil.

Por uma ruptura com o capita-lismo dependente - o socialis-mo como horizonte político dodebate sobre o projeto nacionalde desenvolvimento:

Esses “pactos de dominação” entrefrações da classe dominante, mais doque marcas de determinados momen-tos históricos, demonstram as caracte-rísticas da burguesia brasileira: submis-são e subserviência ao capital interna-cional que só fazem aprofundar a de-pendência do Brasil em relação aospaíses centrais do capitalismo. A com-posição política entre setores conser-vadores e a exclusão ou a busca do“consenso passivo” das massas popu-lares não são fenômenos historica-mente determinados, mas são ineren-tes à ação das burguesias dos paísesperiféricos.

Em “Brasil: os impasses da forma-ção”, Plínio de Arruda Sampaio Jr. afir-ma que a burguesia brasileira foi capazde consolidar um padrão de domina-ção demarcado por dois planos: noplano externo, atendendo às exigên-cias do processo de internacionaliza-

ção dos mercados e “no plano interno,o expressivo crescimento da economiafuncionou como um importante meca-nismo de estabilidade da ordem”.(Sampaio Jr.).

Apesar do processo de industriali-zação-urbanização que se configuranos anos 50 no Brasil, esta consolida-ção se mantém nos marcos da depen-dência externa e objetiva garantir: a) ocrescimento da economia como me-canismo de estabilidade e, b) a expan-são de empregos como estratégia delegitimação do modo de (re)produçãocapitalista junto às camadas popula-res. Mesmo os saltos históricos com aindustrialização pesada foram incenti-vados a partir das parcerias com ocapital internacional e viabilizados pe-la ação do Estado, sob a liderança dossetores modernizadores, adaptando oBrasil às exigências do capitalismomonopolista.

A burguesia brasileira efetiva, nestecenário, um poder de barganha paranegociar, com as grandes empresasmultinacionais das grandes nações he-gemônicas, o ritmo e a intensidade daincorporação dos dinamismos doscentros imperialistas. Assim, não havia,naquele momento, um risco de rever-são neocolonial, à medida que a bur-guesia brasileira contava com uma re-lativa autonomia de negociação.

Atualmente, com o processo demundialização financeira, se configuraa possibilidade de um processo de re-versão neocolonial, pois o Brasil com-bina dependência com malhas neoco-loniais, na medida em que o novo con-texto reduz a autonomia relativa daburguesia brasileira, sua capacidadede negociar sua inserção na economia

mundial e reduz a mobilidade social,conseqüentemente, à legitimidade doregime burguês. Como afirma Sam-paio Jr., as características do processode mundialização financeira (livre co-mércio, privatização, desregulamenta-ção) deixam o Brasil vulnerável às exi-gências do capital financeiro interna-cional e com a crise do socialismo real,os EUA dão livre curso a sua vocaçãoimperial.

No sentido de construção de umprojeto nacional de desenvolvimentoque se oponha ao projeto neoliberal,Plínio de Arruda Sampaio Jr., retoman-do as contribuições de Caio Prado Jr.,Celso Furtado e Florestan Fernandes,ressaltará a necessidade de se rompercom uma perspectiva dualista queapresenta o modernismo neoliberal, deum lado, e o retorno ao nacional de-senvolvimentismo, de outro, como op-ções para se pensar o projeto nacionalde desenvolvimento. Em “Capital inter-

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 79UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Mesmo os saltos históricos com a industrialização pesada

foram incentivados a partir das parcerias com o capital

internacional e viabilizados pela ação do Estado.

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nacional e reversão neocolonial”, Sam-paio Jr. afirma que:

“a desnacionalização acelerada da

economia brasileira reacende o debate

sobre o papel do capital internacional

no desenvolvimento nacional. Para os

neoliberais, o investimento externo é

condição sine qua non do progresso.

Para os nostálgicos do Nacional De-

senvolvimentismo, a associação com o

capital estrangeiro, desde que devida-

mente enquadrada pela política indus-

trial, é fundamental para que o país

possa impulsionar o avanço das forças

produtivas. Os primeiros abstraem as

contradições geradas pela desnaciona-

lização da economia, apresentando

uma visão idílica do processo de globa-

lização. Os segundos superestimam o

raio de manobra das economias de-

pendentes diante do capital financeiro

internacional, ignorando as condições

externas e internas muito peculiares

que permitem conciliar dependência e

desenvolvimento” (Sampaio Jr.).

Neste sentido, destaco alguns doselementos construídos por SampaioJr.,nos marcos de seus estudos sobre aobra de Florestan Fernandes, que con-sidero imprescindíveis para nortear odebate sobre a construção de um pro-jeto nacional de desenvolvimento apartir da ótica dos trabalhadores.

Em primeiro lugar, trata-se de des-mistificar a existência de uma burgue-sia nacional. Na apresentação do livro“Clássicos sobre a Revolução Brasilei-ra”, Plínio de Arruda Sampaio e Plíniode Arruda Sampaio Jr., analisando asobras de Caio Prado e Florestan Fer-nandes, afirmam que estes autores:

“rechaçam a noção - ainda hojemuito difundida nos meios da es-querda - de que existiria uma bur-guesia nacional, com interesses an-tagônicos ao imperialismo, capazde liderar as transformações sociaisdecorrentes da revolução democrá-tica e da revolução nacional” (Sam-

paio e Sampaio Jr., 2000,9).Um segundo elemento importante

sinalizado por Florestan Fernandes eretomado por Sampaio Jr. se constituina “necessidade de uma estratégia deluta de classes que impeça o aburgue-samento da classe operária” (Sampaioe Sampaio Jr., 2000, 14). A incorpora-ção dos direitos civis e políticos à lega-lidade burguesa e ao funcionamentodo sistema político representativo cri-am a possibilidade do “aburguesa-mento” de frações da classe trabalha-dora e obscurecem um elemento polí-

tico central deste debate: a luta declasses.

Esta questão nos leva para o tercei-ro elemento central: não limitar a atua-ção das lutas dos trabalhadores à lega-lidade burguesa.

“Continuando com sua hegemonia

social e política, estas classes poderiam

enfrentar a maré montante, seja fazen-

do concessões e ampliando os direitos

civis, sociais e políticos do proletariado

dentro da ordem, seja aproveitando as

condições favoráveis para reduzir o ím-

peto da pressão operária e, se possível,

neutralizá-la...Elas não precisam recor-

rer à violência exemplar sempre que

desejem autodefender-se, autoprote-

ger-se e contra-atacar. Basta incorporar

um setor mais amplo da vanguarda

operária e das burocracias sindicais ou

partidárias do proletariado às classes

médias, para convertê-los em burgue-

ses e em cavaleiros andantes da demo-

cracia burguesa” (Fernandes, 2000, 82).

O quarto elemento político quedestaco é a necessidade de fortaleci-mento da perspectiva internacionalis-ta das lutas e da edificação da socie-dade socialista como horizonte políti-

co, em oposição a qualquer ação quetenha uma perspectiva reformista natentativa de viabilizar a (impossível!)conciliação das classes. FlorestamFernandes elabora a crítica ao refor-mismo gradual que leva à acomoda-ção passiva com a burguesia, identifi-cando este processo com a ação dacontra-revolução prolongada que atin-ge a consciência das lideranças parti-dárias e sindicais.

“As pressões externas da sociedade

atuam de modo camuflado para identi-

ficar os destituídos e os oprimidos com

as ilusões democráticas e constitucio-

nais, para envolvê-los na trama da

dominação burguesa e da lealdade ao

Estado burguês. O aburguesamento dos

oprimidos e dos deserdados constitui

uma força atuante e multifacetária, que

precisa ser combatida frontalmente”

(Fernandes, 2000, 104).

Florestam Fernandes afirma que épossível a construção de alianças táti-cas com a burguesia se as exigências,os princípios forem socialistas e se oproletariado não colocar para si as ta-refas da burguesia, pois a revoluçãodentro da ordem é meramente instru-mental e conjuntural para o proletaria-do. Portanto, este é o quinto elementopolítico que considero imprescindível:a definição de que alianças devem serconstruídas, para que objetivo, sobque direção.

“Devem as classes destituídas e

oprimidas dar apoio direto aos “setores

nacionalistas da burguesia”, batendo-se

assim ao lado das “forças mais avança-

das”das classes dominantes pelo apro-

fundamento da revolução burguesa?

Tal debate não é novo, no Brasil e em

quase todos os países da América

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É possível a construção de alianças táticas com a burguesia

se as exigências, os princípios forem socialistas e se o

proletariado não colocar para si as tarefas da burguesia.

Financiamento da Educação

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Latina; e ele empolgou a vida política

brasileira através do chamado desen-

volvimentismo...A única saída racionali-

zadora seria a de saber se “taticamen-

te” seria vantajoso apoiar a revolução

nacional, como um expediente para

forçar a burguesia a certas concessões,

mesmo sob a forma de reformas mais

ou menos mitigadas e um fortaleci-

mento indireto do “Estado de direito”;

e “aumentar as contradições”do desen-

volvimento capitalista, abrindo cunhas

entre um setor mais progressista da

burguesia interna e outro mais retró-

grado, e entre ambos e o imperialismo.

Essa saída também constitui um expe-

diente para as “forças da esquerda”, na

medida em que estas deixam de cum-

prir suas tarefas políticas específicas e,

em vez de enfrentarem corajosamente

sua debilidade, buscam no biombo da

revolução nacional uma forma equívo-

ca e evasiva de ilusão constitucio-

nal”(Fernandes, 2000, 111).

As burguesias dos países depen-dentes objetivam acelerar o desenvol-vimento capitalista nos marcos da con-tra-revolução prolongada e defensiva eesta ação pode significar para as lutasda classe trabalhadora um processoque Florestam Fernandes identificoucomo uma socialdemocratização: “Qua-se no fim do século XX, é preciso esco-lher entre a socialdemocratização daesquerda e a paciente e laboriosa cons-trução das vias históricas da revoluçãoproletária na América Latina”. (Fernan-des,2000, 121).

Desta forma, para a sua atuação, opartido proletário deve considerar que“a concessão da legalidade constituiuma autorização para funcionar noslimites da ordem e para ser punido nas”transgressões”. Ela implica uma ten-dência à domesticação política e à so-cialdemocratização, que deve ser repe-lida (ou o partido só será revolucioná-rio na intenção e de nome)” (Fernan-des,2000,139).

Considerações para o debate:Concluo que, para pensar um pro-

jeto de desenvolvimento para o Brasil,duas questões devem ser superadas:1)a retomada do nacional desenvolvi-mentismo e, 2)a construção de alian-ças com setores da burguesia naexpectativa de que estas alianças, soba direção do capital e não do trabalho,teriam como perspectiva qualquertransformação mais profunda nas rela-ções sociais.

Acredito, sim, no fortalecimentodas lutas da classe trabalhadora, ver-dadeiro sujeito revolucionário, e na in-ternacionalização das lutas e resistên-cias. Avalio que, para alguns setores daesquerda brasileira, o que está em jo-go é uma postura neo-reformista quetirou a revolução socialista da pautaem nome de ampliação de espaços noaparelho de Estado, na lógica da de-mocracia e da cidadania, nos marcosdo projeto societário burguês. As alte-rações se dão dentro da ordem e nãoapontam, conseqüentemente, para asuperação da ordem burguesa.

Atuar efetivamente nesta constru-ção é a tarefa que está colocada paratodos nós que acreditamos na supe-ração da barbárie e da exclusão quemarca o início do século XXI, na defe-sa intransigente de um outro projetosocietário, no sonho da edificação dasociedade socialista, como afirma Flo-restan Fernandes: “Quanto ao “so-nho”, o que se deve dizer é que semsonhos políticos realistas não existemnem pensamento revolucionário nemação revolucionária. Os que “não so-

nham” estão engajados na defesapassiva da ordem capitalista ou nacontra-revolução prolongada” (Flores-tam Fernandes, 2000, 140).

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SAMPAIO , Plínio de Arruda e SAMPAIO JR.,Plínio de Arruda. Clássicos sobre a RevoluçãoBrasileira. Caio Prado Júnior e Florestan Fer-nandes. SP: Editora Expressão Popular, 2000.

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_____________. O impasse da “formação na-cional”. In FIORI, José Luis (org) Estados e Mo-edas no desenvolvimento das nações. RJ: Vo-zes, 1999.

_____________. Entre a nação e a barbárie.Os dilemas do capitalismo dependente emCaio Prado, Júnior, Florestan Fernandes e Cel-so Furtado. RJ: Vozes, 1999.

*Kátia Regina de Souza Lima é professo-ra da Escola de Serviço Social, Doutorandada Faculdade de Educação e Pesquisadorado Coletivo de Estudos sobre Política Edu-cacional - UFF.

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 81UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Financiamento da Educação

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O debate sobre a questão de comoviabilizar o financiamento integral dasIES públicas por parte da União e dosEstados é relativamente antigo entrenós. Não há divergências sobre anatureza do financiamento, isto é, deque ele deve ser integral e ter comofonte o Tesouro da União (no casodas IFES) e o Tesouro do Estado(onde houver IEE). Entretanto, quantoà luta pela garantia de tal financia-mento integral, há dois posiciona-mentos. O primeiro, que tem sidomajoritário nos Congressos eCONADs, defende o financiamentointegral a partir da fonte do Tesourodo Estado amparando tal defesa naluta e nos artigos 206, 207 e 212 daConstituição Federal. Em contrastecom esta posição, há a defesa emtorno da necessidade de algum tipode regulamentação do repasse derecursos do Estado para as IES públi-cas, seja por meio da confecção deuma Lei Orgânica para Autonomia oude propostas de destinação de recur-sos fiscais mínimos para o custeio das

universidades públicas brasileiras. Aproposta de regulamentar o artigo207, da CF, em toda a sua extensão,já foi suficientemente debatida erejeitada, não merecendo aqui esfor-ço de análise. A resistência contra aconfecção de uma Lei Orgânica cujoobjetivo seria a regulamentação doartigo 207, da CF, tem sido grande ese ancora na experiência mais recentede luta em defesa da educação públi-ca e gratuita, princípio sistematica-mente atacado pelo governoFHC/Paulo Renato. Reiteradas vezesproposições de regulamentação daAutonomia foram apresentadas emCongressos e CONADs sem, contudo,obter apoio significativo. Com relaçãoà construção de índices para a fixaçãode recursos fiscais mínimos para asuniversidades, cujo exemplo vem deSão Paulo, propostas com este con-teúdo dirigidas às IEES já foram apro-vadas em Congressos e CONADs1.Embora exista, no movimento docen-te, uma determinada crença de quetal fixação possa minimizar o proble-

82 - DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Antônio de Pádua Bosi*Luis Fernando Reis**

Autonomia universitária, luta docentee a questão dos repasses mínimospara as universidades

Financiamento da Educação

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ma do financiamento integral tãoescasso na realidade concreta dasuniversidades, tais resoluções não seconverteram no centro da intervençãodo movimento docente, o que, acre-ditamos, se deve à incerteza de que afixação de índices seja um caminhoseguro. É sobre esta questão que inci-dem nossas reflexões.

O objetivo deste texto é examinar,mais de perto, alguns aspectos destedebate, defendendo uma abordagemsobre a construção e o uso históricoconcreto que o ANDES-SN tem feito daAutonomia Universitária, que é a defe-sa da auto-aplicabilidade do artigo 207e o cumprimento do artigo 212 quedefine que a “União aplicará, anual-mente, nunca menos de dezoito, e osEstados, o Distrito Federal e os Muni-cípios, vinte e cinco por cento, no míni-mo, da receita resultante de impostos,compreendida a proveniente de trans-ferências, na manutenção e desenvol-vimento do ensino”. Nosso esforço é ode, a partir da análise das experiênciasde luta e de formulação sobre esta

questão realizadas pelas IFES, IEES/PRe IEES/SP, argumentar em favor daauto-aplicabilidade do 207, alertar paraos riscos da fixação de repasses míni-mos e apresentar uma proposta quenos permita avançar na luta de defesado financiamento integral das IESpúblicas por parte da União e dos Es-tados. Grande parte dos argumentosdeste artigo foi apresentada comotexto de apoio no 22º Congresso doANDES-SN, mas devido às contingên-cias da pauta do Congresso não sofreuo necessário debate. Para tanto, reco-locamos aqui este assunto.

O significado histórico do Artigo 207 da Constituição Federal.

Um balanço geral sobre o exercícioda Autonomia Universitária certamen-te identificará um quadro em que asua restrição está na ordem do dia. Co-meçando pelas IPES, a regra tem sidoa interferência das mantenedoras nagestão pedagógica dos cursos, redu-zindo e até eliminando qualquer traçode democracia, na definição do coti-diano dos cursos. Nas IES públicas, orespeito às decisões eleitorais dacomunidade universitária para dirigen-tes ainda não é uma realidade genera-lizada. Os próprios processos eleitoraistêm se constituído de acordo com aLDB anti-democrática e não em conso-nância com a vontade da comunidadeuniversitária. A consolidação da gestãoparitária, em todos os órgãos colegia-dos, também ainda está longe de setornar uma realidade plena. Seria ilus-trativo se não fosse trágico reconhecerque, em universidades públicas impor-tantes como a USP e a UFRJ, grassamo clientelismo e fidelidades medievaisna rotinização administrativa. Por últi-mo, como fator generalizado nas IESpúblicas, pode-se mencionar que oseu financiamento integral pela Uniãoe pelos Estados tem sido sistematica-mente mutilado pela Lei de Responsa-bilidade Fiscal e por outros pendurica-lhos jurídicos criados com a intençãode diminuir os gastos públicos com osserviços públicos.

Disso tudo se deriva que a questãoda Autonomia Universitária é um obje-tivo estratégico pelo qual lutamos dia

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 83UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Financiamento da Educação

Seria ilustrativo se não fosse trágico reconhecer que,

em universidades públicas importantes como

a USP e a UFRJ, grassam o clientelismo e fidelidades

medievais na rotinização administrativa.

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a dia. Foi este o sentido do artigo 207,da CF, resultado da intervenção organi-zada e consciente “da ANDES” no anode 19872, durante o processo constitu-inte, e nos anos anteriores, quando oconjunto do movimento docente e ou-tros movimentos sociais e popularesorganizados desenharam e assumirama concepção da indissociabilidade en-tre ensino, pesquisa e extensão. His-toricamente tratava-se do seguinte: norescaldo da “abertura política”, procu-rou-se definir em regra constitucionalo que, consuetudinariamente, expres-sava a vontade da comunidade univer-sitária e de muitos movimentos popu-lares e sindicais que compreenderam,pela experiência de luta contra a dita-dura militar, a importância da autono-mia das Universidades.

O ANDES-SN e a defesa daAutonomia Universitária nadécada de 1990.

Não se pode desconsiderar, por-tanto, que o artigo 207, da CF, foi umaconquista a partir da qual se fixaramparâmetros para a luta pela eleição di-reta e livre para dirigentes das univer-sidades, para a gestão paritária nos ór-gãos colegiados, para a construção deprojetos político-pedagógicos, para aluta do financiamento integral das uni-versidades, enfim, para a defesa doserviço público com qualidade, gratui-dade e referenciado social e politica-mente.

Entretanto, houve uma modifica-ção fundamental na conjuntura queinformou as condições para a luta dedefesa dos serviços públicos após1988. A escalada do neoliberalismosobre a sociedade e o Estado, iniciadano Brasil com o governo Collor, em1989, teve como contrapartida políticauma postura defensiva dos movimen-tos sociais (cujas origens não cabe dis-cutir aqui) que tiveram que lidar com:a) uma violenta subordinação ao capi-

tal financeiro na sua nova fase de inte-gração dos mercados que exigia adiminuição do Estado e de seus servi-ços; b) uma não menos violenta rees-truturação produtiva destruidora depostos de trabalho formais (desindus-trialização); c) um brutal ataque contraa legislação social e trabalhista; d)uma ideologia fascista que tentou jo-gar a “sociedade” contra o “corporati-vismo” dos sindicatos, de suas reivindi-cações e de suas ações.

O resultado disso foi, principalmen-te, o encolhimento dos serviços públi-cos combinado com um aumento ex-pressivo da iniciativa privada em negó-cios do Estado (educação, saúde, setorenergético, telefonia etc). Se de certomodo e mesmo limitadamente o anode 1988 marcou o registro da ascen-dência política dos movimentos sociaise populares, a conjuntura da décadade 1990 foi marcada pelo arrocho sa-larial, em particular no setor público,ponta de lança do desmonte dos ser-viços públicos e da transferência des-

sas áreas para a órbita do capital.Marcou também as esferas jurídica epolítica formal como terrenos minadospara os movimentos sociais e popula-res, onde as medidas provisórias(1994...), a tentativa de Reforma Cons-titucional (1995 ...) e a “ilegalidade” dagreve dos petroleiros (1995) foram ar-mas disparadas contra os trabalhado-res, suas conquistas e capacidade deluta. O movimento docente não esca-pou a isto, como não poderia escaparà luta de classes.

No plano geral, tratava-se, para osgovernos federais de Collor e FHC, dediminuir o Estado e transferir seus ser-viços para o capital. Na questão daAutonomia Universitária isto saltou aosolhos com maior força quando oANDES-SN e outras entidades tenta-ram, em 1994, encaminhando a cha-mada Agenda Autonomia/94, ampara-dos nos artigos 207 e 212, da CF, (oartigo 212 estabelece índices mínimospara educação para a União, os Esta-dos e os municípios), precisar o repas-se orçamentário em duodécimos paraas IFES3. O trabalho realizado pela Co-missão responsável pela Agenda Au-tonomia/94 e consolidado no ProjetoFlorestan Fernandes4 não recebeu aco-lhimento da Comissão de EducaçãoCultura e Desporto, que o modificouem sentido inverso do pretendido pelomovimento, colocando em risco a sus-tentação das IFES. A investida contra asIFES se materializava. A aprovação daLDB reacionária sob o relato de DarciRibeiro sepultava os esforços de seavançar um pouco mais, na legisla-ção, quanto à escolha de dirigentes,de estatuintes cujo foco fosse ademocratização interna das IES e do

84 - DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Financiamento da Educação

No plano geral, tratava-se, para os governos federais

de Collor e FHC, de diminuir o Estado e transferir

seus serviços para o capital.

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financiamento integral das IES.Neste sentido, o ano de 1996 mar-

cou nova investida do governo FHCcontra a Autonomia das universidades.Por meio do Projeto de Emenda Cons-titucional 370-A, FHC/Paulo Renatotentaram alterar o artigo 207, da CF. Senão tiveram completo sucesso, naque-le ano começaram a efetivar o peso de70% para docentes nas eleições dasIES (Lei 9.192/95 aprovada em 1995)e o Provão (Lei 9.131/95 aprovada em1995). Daquele momento em diante,não havia dúvidas sobre o fato de queo ambiente institucional/parlamentarestava tornando-se demasiadamenteinsalubre para o movimento docente.Esta percepção fez com que o ANDES-SN aprovasse, em seu XVII Congresso(1998), a “intensificação da luta con-tra o projeto de reforma constitucionaldo governo FHC” com ênfase para a“defesa da autonomia universitária”5.A partir dali, FHC/Paulo Renato insisti-riam na regulamentação da Autono-mia Universitária, contando com certoapoio da ANDIFES que aderira à idéiapor volta de 1998, quando se aproxi-mou definitivamente do governo comum espírito claro de negociação e deconvencimento sobre a regulamenta-ção de alguns pontos como, por exem-

plo, o financiamento. Sob as vias daregulamentação, o ANDES-SN apro-vou, em seu XIX Congresso ocorridoem Juiz de Fora, no ano de 2000, pro-posta reafirmada nos eventos poste-riores e até o momento, que indica adefesa da “auto-aplicabilidade do arti-go 207, da Constituição Federal, e oprincípio da indissociabilidade entreensino, pesquisa e extensão”, bem co-mo o combate às “propostas de legis-lação infra-constitucional que tenhamo objetivo de regulamentar a autono-mia universitária, tais como a do MECe da ANDIFES”6. Dois anos depois, aANDIFES apresentou Projeto de LeiOrgânica de Autonomia, procurandoviabilizar o avanço do MEC onde aindase esbarrava em grande resistência: “I)cobrança de taxas e mensalidades emdiversas modalidades de pós-gradua-ção e extensão; II) a contratação depessoal fora do RJU, e III) fragmenta-ção da carreira docente, das IFES”7. Noapagar das luzes do governo deFHC/Paulo Renato e enfrentando amobilização do movimento docentetal projeto não foi acolhido.

A experiência do Paraná:“ampliação” do orçamento e arrocho salarial.

Em paralelo ao governo FHC, o go-verno Jaime Lerner buscou, diversasvezes, implantar, no Estado do Paraná,a autonomia financeira das IEES/PR,que pressupunha a introdução do “fi-nanciamento compartilhado” ou “fi-nanciamento misto” (público e priva-do). Tal modalidade de financiamentodesobrigaria o Estado de financiar inte-gralmente as universidades públicascom recursos do Tesouro do Estado,introduzindo o financiamento privadocomo uma fonte alternativa de recur-sos para as universidades. As diretrizesdeste modelo expressam a adesão po-lítica às orientações do Banco Mundialpara a reforma dos sistemas de ensinosuperior, nos chamados países em de-senvolvimento. A idéia era a de diver-sificar as fontes de financiamento doensino superior com a introdução dacobrança de mensalidades e a vendade serviços ao setor privado. Com efei-to, a autonomia financeira das univer-sidades públicas seria um mecanismoa ser utilizado para “estimular” as uni-versidades públicas a arrecadarem re-cursos, permitindo que as mesmas, in-dividualmente, pudessem conservar e

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 85UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

RELAÇÃO ENTRE A RECEITA DO ICMS - COTA PARTE DO ESTADO - E O VALOR ANUAL REPASSADO PELO GOVERNO DO PARANÁ ÀS IEES NO PERÍODO DE 1994 A 2002

ANO RECEITA ICMS VALOR REPASSADO % DO ICMS

COTA PARTE DO ESTADO ÀS IEES REPASSADO ÀS IEES

1994 1.040.909.000,00 71.908.000,00 6,91 %

1995 1.829.451.000,00 162.000.000,00 8,86 %

1996 2.082.779.000,00 178.425.000,00 8,57 %

1997 2.069.973.000,00 266.663.000,00 12,88 %

1998 2.118.420.000,00 268.655.000,00 12,68 %

1999 2.508.332.000,00 267.695.000,00 10,67 %

2000 3.150.997.000,00 286.500.000,00 9,09 %

2001 4.854.435.000,00 304.000.000,00 6,26 %

2002 3.926.964.607,00 380.973.680,00 9,70 %

2003(1) 4.612.500.000,00 391.316.990,00 8,48 %

Fonte: SEFA (Secretaria da Fazenda) e SETI (Secretaria de C&T).

Tabela 1

Financiamento da Educação

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administrar livremente tais recursos.Sob este aspecto, continua ainda bemforte e verdadeiro o argumento centraldas orientações do Banco Mundialque, desde 1995, tem afirmado que“uma base diversificada de recursos éa melhor garantia de autonomia insti-tucional (...) a autonomia resulta numconceito vazio quando as instituiçõesdependem de uma única fonte de fi-nanciamento” 8.

Numa perspectiva histórica, a análisedo montante de recursos que foi repas-sado pelo Governo do Estado às univer-sidades paranaenses nos permite afir-mar que o Governo Lerner foi fiel a estepreceito do Banco Mundial, obtendo su-cesso na “sua” proposta de ampliar oensino superior e, ao mesmo tempo, re-duzir, em termos reais, o financiamentoa esse nível de ensino, conforme podeser visualizado na Tabela1.

Utilizando como parâmetro a arre-cadação do ICMS, cota parte do Es-tado, conclui-se que não houve umaampliação do orçamento das universi-dades. Na verdade, observa-se uma re-dução bastante significativa, se utilizar-mos como referência o orçamento re-passado em 1997 e 1998. conformedemonstra a tabela abaixo (conside-rando ainda que tais valores não estãodeflacionados)

No ano de 2000, se comparado aopercentual do ICMS destinado às IEES,em 1997, houve uma redução real doorçamento na ordem 29,42 %. No anode 2001, essa redução foi de 51,40%.Nos anos de 2000 e 2001, “coinciden-temente”, os servidores das três maio-res universidades do Paraná (UEL,UEM e UNIOESTE) voltaram novamen-te a deflagrar greves, depois de quasedez anos sem mobilizações.

Cabe salientar ainda, à luz destastabelas, os “Termos de Autonomia” ce-lebrados pelo governo estadual e asadministrações superiores das IEESpor um período provisório, em 1999 e

2000, cujo resultado foi experimentara capacidade das reitorias de gerir asIEES, com o arrocho orçamentáriocombinado com as pressões para ocrescimento da captação de verba porprestação de serviços. As administra-ções das universidades e das faculda-des a quem competia em última ins-tância representar as instituições e seopor a esse processo, foram coniven-tes com o governo Lerner e, ainda,equivocadamente, assumiram parcelade responsabilidade quanto ao finan-ciamento das atividades a serem de-senvolvidas nas universidades e facul-dades públicas estaduais. As adminis-trações superiores, representadas pelaAPIESP (Associação Paranaense dasInstituições de Ensino Superior Públi-co), no processo de discussão e imple-mentação dos Termos de Autonomia,acabaram assumindo a tarefa de geriras IEES e buscar a complementação deseus orçamentos por meio de recursosadicionais ao Tesouro do Estado. Aoinvés de reagir e enfrentar o GovernoEstadual, a APIESP optou por subme-ter-se à ação governamental. Ao invésde reivindicar o respeito do governo aoartigo 207, da CF, preferiu discutir etentar melhorar o projeto governa-mental que visava conceder autono-mia financeira às universidades.

Em fevereiro de 2002, o governoLerner, enfrentando uma greve que jácompletava 5 meses, encaminhou pa-

ra a Assembléia Legislativa Projeto deLei 032/02, de Regulamentação daAutonomia Universitária. O argumentoprincipal enfatizava o potencial de rei-vindicação do movimento docente,técnico-administrativo e estudantil: “asparalisações das atividades acadêmi-cas das universidades estaduais quevêm ocorrendo com muita freqüência,e o prolongamento do último movi-mento, iniciado em setembro de 2001,demonstram que há a necessidadeimediata de modificações estruturaisno sistema de ensino superior e nasrelações deste sistema com o Estado ecom a comunidade”9. As linhas princi-pais do projeto estabeleciam: a) a fixa-ção de um índice sobre a arrecadaçãodo ICMS (cota parte do Estado) a serrepassado em duodécimos; b) a exclu-são de alunos e técnico-administrati-vos dos Conselhos Superiores, aumen-tando a participação do setor patronal;c) a ruptura da paridade salarial entreativos e inativos; d) a ruptura da isono-mia salarial entre as IEES; e) cota deingresso no vestibular para paranaen-ses. Ou seja, sob o argumento do fi-nanciamento o governo “regulamenta-va” a autonomia universitária, além dofato de que a fixação de tal índice mí-nimo cristalizava, conforme os dadosexibidos nas tabelas anteriores, o arro-cho salarial e a privatização interna àsIEES/PR. Historicamente, o movimentoestudantil, docente e dos servidores

86 - DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

PERCENTUAIS DA RECEITA DO ICMS (COTA PARTE DO ESTADO) REPASSADOS PELO GOVERNO DO PARANÁ ÀS IEES NOS ANOS

DE 1999-02 COMPARADOS AO ANO DE 1997.

ANO % DO ICMS REPASSADO ÀS IEES REDUÇÃO DO ORÇAMENTO EM RELAÇÃO AO ANO DE 1997

1997 12,88 -

1998 12,68 1,55 %

1999 10,67 17,16 %

2000 9,09 29,42 %

2001 6,26 51,40 %

2002 9,70 24,69 %

Tabela 2

Fonte: SEFA (Secretaria da Fazenda) e SETI (Secretaria de C&T).

Financiamento da Educação

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técnico-administrativos no Paranásempre se posicionou contrariamenteà definição por lei de um percentualdo ICMs a ser repassado às universida-des estaduais. O movimento estadualque se organiza no Comitê em Defesado Ensino Superior Público do Paranános seus dois últimos ENEPs (EncontroEstadual do Ensino Superior Públicodo Paraná) tem denunciado que a de-terminação de um montante máximode recursos - 9% do ICMs - a ser repas-sado às universidades concretizaria aproposta de financiamento comparti-lhado das universidades paranaenses,já experimentado com a celebraçãodos Termos de Autonomia, em 1999 e2000. A proposta de definição de umpercentual do ICMs converge com asorientações do Banco Mundial que es-tabelecem o financiamento misto (pú-blico e privado), como a forma maisadequada de prover de recursos o sis-tema público de ensino superior. Oobjetivo é estabelecer, através da lei, olimite máximo de recursos do Tesourodo Estado que serão disponibilizadosàs universidades e, ao mesmo tempo,indicar a busca de outras fontes derecursos como alternativa para com-plementar o orçamento das IEES. O ex-secretário da Ciência, Tecnologia eEnsino Superior, Ramiro Wahrhaftig, ao

defender a definição por lei do percen-tual de 9% do ICMs (cota parte doEstado) às universidades paranaen-ses, confirmou que os recursos repas-sados seriam o teto máximo que cadauniversidade receberia. Pois, de acordocom o ex-secretário, a expectativa dogoverno era que os recursos fossemreajustados periodicamente, conformeo crescimento da arrecadação doICMS, entretanto admitiu que poderiahaver redução no volume de investi-mentos: “Nossa expectativa é de umaarrecadação crescente. Mas se bai-xar, as universidades recebem me-nos [grifo nosso]. É um risco que terãode correr”10.

No caso da redução dos investi-mentos, o Projeto 032/02 estabeleciaos mecanismos para que as universi-dades pudessem diversificar as suasfontes de financiamento. Quando tra-tava da autonomia de gestão financei-ra, o Projeto definia que “a autonomiade gestão financeira (...) consiste naliberdade de alocação e gestão dosrecursos orçamentários e financei-ros [grifo nosso].” (Art. 5º). Para o cum-

primento de seus objetivos institucio-nais, no exercício de sua autonomiade gestão financeira, caberá à univer-sidade: a “definição de formas e fon-tes de financiamento para os progra-mas e atividades” (art. 5º, I) e a “ofer-ta e cobrança pelos serviços presta-dos” [grifos nossos], conforme a Leiestadual nº 11.50011...(Art. 5º V). Dessaforma se institucionalizaria a desobri-gação do Estado quanto ao financia-mento integral das IEES. O projeto, aose referir a fontes de financiamento e ànecessidade das universidades recor-rerem à cobrança dos serviços, eviden-cia que o ensino superior não teriamais como fonte única de financia-mento o Tesouro do Estado. Em res-posta ao governo Lerner, o movimentode greve recrudesceu e impôs a retira-da deste projeto, conseguindo arrancarreposição de parte das perdas salariais.Além do reajuste do piso salarial, omovimento de greve conseguiu, atra-vés de negociações junto à Comissãode Orçamento da Assembléia Legisla-tiva, ampliar os recursos orçamentáriosdas universidades. No caso da UNIO-

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 87UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

COMPARATIVO ENTRE A PROPOSTA ORÇAMENTÁRIA ENVIADA PELO GOVERNO E O ORÇAMENTO APROVADO NA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA PARA AS UNIVERSIDADES

PARANAENSES - EXERCÍCIO FINANCEIRO DE 2002

UEL 122.742.850,00 125.742.850,00 3.000.000,00 2,44 %

UEPG 47.051.590,00 51751.590,00 4.700.000,00 10,00 %

UEM 93.740.150,00 104.440.150,00 10.700.000,00 11,00 %

UNICENTRO 17.814.600,00 20.814.600,00 3.000.000,00 16,84 %

UNIOESTE 47.711.400,00 55.461.400,00 7.750.000,00 16,24 %

UNESPAR 22.762.890,00 22.763.090,00 200,00 0,0008 %

TOTAL 351.823.480,00 380.973.680,00 29.150.000,00 8,28 %

Tabela 3

UNIVERSIDADES PROPOSTA DO GOVERNO

ORÇAMENTOAPROVADO

% DE ACRESCIMOACRESCIMO EM

RELAÇÃO À PROPOSTA DO GOVERNO

Fonte: Assembléia Legislativa do Paraná.

Financiamento da Educação

Dessa forma se institucionalizaria a desobrigação do Estado

quanto ao financiamento integral das IEES.

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ESTE, por exemplo, o orçamento foiampliado para R$ 55.461.400,00. Aproposta inicial do governo previa adestinação de R$ 47.711.400,00 paratal universidade. Nesse caso, os recur-sos previstos para despesas com pes-soal seriam insuficientes para cobrir in-tegralmente os custos da folha de pa-gamento. Na tabela a seguir, demons-tramos o resultado das negociaçõesrealizadas durante a greve com a Co-missão de Orçamento da Assembléiapara ampliar o orçamento das univer-sidades estaduais paranaenses.

Outra vitória importante obtida pe-lo movimento dos servidores foi a reti-rada pelo governo do Projeto de Lei nº411/00, da Assembléia Legislativa12.Esse Projeto autorizava o Poder Execu-tivo a transformar, por meio de decre-to, os cargos estatutários dos servido-res públicos em cargos celetistas, oque significaria uma precarização mai-or das condições de trabalho e umgrave retrocesso do ponto de vista deuma série de direitos garantidos aosservidores públicos do Paraná, emseus Planos de Carreiras.

Por fim, é preciso destacar que, aomesmo tempo em que se verifica umaredução no valor real que vem sendorepassado às universidades, constata-se um crescimento das IEES/PR. Para-doxo? Não. Isto é um resultado objeti-vo da política do governo Lerner cuja

diretriz foi a de conceber a expansãodo ensino superior (sem conflitar comos cursos rentáveis implantados pelainiciativa privada), a partir de uma re-ceita para as IEES que, comparada aoaumento das IEES e à real arrecadaçãodo Estado, encolhia visivelmente. Istopode ser observado nas Tabelas 2 e 4.

Além disso, para desvendar esteaparente paradoxo, é preciso tomarsempre de modo articulado a evolu-ção do orçamento de cada IES pública,da folha de pagamento e do valor no-minal do salário docente, em seusdiferentes níveis, com a finalidade deidentificar se as custas da expansãonão têm penalizado os servidores do-centes e técnico-administrativos. AADUSP, já há algum tempo, vem discu-

tindo com os docentes como a pro-gressão orçamentária e da folha depagamento (contratação em funçãode novos cursos) é maior do que aprogressão do salário docente. Trans-posta para as IEES/PR, esta questãorevelou relação semelhante à da USP.A partir do gráfico abaixo, tomandocomo base a UNIOESTE (uma das 6IEES do Paraná), foi possível demons-trar como, de 1995 até 2002, tem sidoo congelamento do salário docente,fator que vem permitindo (ou melhor,financiando) o aumento nominal doorçamento (ano a ano) e da folha depagamento (ano a ano), cuja evolu-ção, por exemplo, possibilitou o au-mento na ordem de quase 100% docorpo docente do ano de 1997 para oano de 2002 (uma elevação de 534para 995). O que nos leva a problema-tizar a relação mais geral entre aumen-to de cursos e de vagas nas IES públi-cas e a estagnação salarial.

A experiência da UNIOESTE, emparticular, recoloca, com propriedade,a questão da Autonomia Universitáriae, em especial, do financiamento inte-gral por parte do Tesouro do Estado. Oorçamento desta universidade é cons-truído a partir dos colegiados, que lis-tam suas demandas de pessoal, deinfra-estrutura física, de equipamentos,

88 - DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

EVOLUÇÃO DO Nº DE ALUNOS DE GRADUAÇÃO, DOCENTES E TÉCNICO-ADMINISTRATIVOS, CURSOS DE GRADUAÇÃO E DE

PÓS-GRADUAÇÃO STRICTU SENSU NAS IEES DO PARANÁ (1994-2001).

1994 2001 Crescimento

Nº DE ALUNOS 46.392 61.046 31,59 %

Nº DE SERVIDORES DOCENTES 4.846 5.064 4,50 %

Nº DE SERVIDORES TÉCNICOS 5.401 7.996 48,04 %

Nº CURSOS DE GRADUAÇÃO 173 251 45,09 %

Nº CURSOS DE PÓS-GRADUAÇÃO 24 54 125 %

- MESTRADO 22 43 95,45 %

- DOUTORADO 02 11 450 %

Tabela 4

Fonte: SETI (Secretaria de C&T - Outubro/2001).

1994

1995

1996

1997

1998

1999

2000

2001

2002

2003

05000000

10000000150000002000000025000000

300000003500000040000000

4500000050000000

Folha Pagamento

Orçamento

Adjunto

Comparativo entre as evoluções do Orçamento,

Folha de Pagamento e valor nominal do salário docente (UNIOESTE)

Fonte: (UNIOESTE/GPC/ADUNIOESTE-S.Sind)

Gráfico

Financiamento da Educação

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laboratórios etc., agregando-se às de-mandas dos Centros, passando pelaaprovação sumária dos Conselhos deCampus e, finalmente, recebendo sis-tematização no Conselho Universitário.A partir dali, inicia-se um processo deenfrentamento com a SETI (Secretariade Ciência e Tecnologia) para se con-seguir os valores construídos pelaprópria instituição. Embora o valoraprovado pela SETI e consolidado noorçamento do Estado pela Assem-bléia Legislativa fique aquém do valorapresentado pela instituição, o que seapresenta como processo político dediscussão e concepção de orçamentoé de fato o financiamento integral.Mesmo assim, há mobilização todoano em relação ao orçamento daUNIOESTE.

A experiência de São Paulo: afixação de um índice mínimo.

A trajetória de luta das universida-des paulistas (docentes, técnico-admi-nistrativos e estudantes) que se fez emtorno do financiamento público forma-tado pela fixação de índice fiscal temseu marco inicial no final da década de1980. Exatamente no ano de 1989, emfunção de uma greve nas IEES/SP, oentão governador Orestes Quércia de-cretou o repasse para as IEES de 8,4%da cota parte da arrecadação do ICMS,do Estado de São Paulo. O objetivofora o de deslocar para o âmbito dasreitorias a pressão dos servidores do-centes e técnico-administrativos e, as-sim, se ver livre dos conflitos geradosem torno dos salários13.

O índice, fixado inicialmente em8,4%, aumentou para 9%, chegando a9,57% no ano de 1995, índice que jáfoi considerado razoável pelo Fórumdas 6, em 2002, embora a reivindica-ção do Fórum seja de 11,5% (texto 57do Caderno Anexo). De qualquer mo-do, o aumento do índice não guardarelação direta com a recomposição sa-

larial, dado que a repartição do orça-mento (entre as IEES e entre os itensde OCC) e a escalada inflacionária quecorrói gastos fixos como os salários,geralmente são fatores manietadospelos reitores, situação que impele omovimento docente para a mobiliza-ção e a greve como elementos deter-minantes neste processo. Até mesmoporque, cabe lembrar pela experiênciaatual, não há base jurídica nem am-biente institucional que permitamdebelar com o arrocho salarial a partirde ações de ordem legal. Quanto aoíndice garantido no Estado de SãoPaulo, cumpre salientar que ele nãoeliminou a necessidade de luta peladestinação de verbas para as IEES/SP.Apenas, talvez, tornou esta luta sazo-nal, haja vista que tal percentual é defi-nido na LDO (Lei de Diretrizes Orça-mentárias), que é votada pela Assem-bléia Legislativa anualmente. A partirdessa lógica, desde 2002, o Fórum das6 tenta aprovar, na Assembléia Legisla-tiva, o projeto de Emenda Constitucio-nal nº 14, que estabelece o repassepara as 3 IEES/SP em, no mínimo,9,57% do ICMS anual do Estado. O go-verno Alkhimin “congelou” tal Emen-da, mas a divergência entre o movi-mento e o governo parece ter se insta-lado na definição do “mínimo”, cujasformulações são distintas porque ema-nam de pontos de vista de classe dis-tintos. Tomando como referência o his-tórico dos últimos 10 anos discutidoacima e os “interesses” das classes, éprovável que tal antagonismo não sejadissolvido a partir do registro de qual-quer índice na Lei.

Certo é que este expediente doregistro de um índice mínimo de re-

passe vinculado ao ICMS (cota partedo Estado ou não) não conseguiu evi-tar (cabe discutir se conseguirá) a pro-liferação das Fundações e dos cursospagos, em particular na USP14. Estudosrealizados pela ADUSP têm mostradoque, ao longo desses últimos anos, aschamadas Fundações de Apoio cresce-ram sensivelmente como viabilizado-ras de cursos pagos cujas característi-cas “ameaçam 0 caráter público daUSP”, conforme o título da Revista daAdusp especial que trouxe à tona osresultados de tais estudos. Em síntese,“o levantamento da Revista Aduspestimou que o conjunto das fundações‘de apoio’ vinculadas à USP movimen-ta anualmente valor equivalente acerca de 1/3 da dotação orçamentáriaanual da USP”15. Embora apenas apro-ximadamente 1,5% do montante reco-lhido pelas Fundações seja repassadoà USP, parte considerável dessa “arre-cadação” fica com docentes que traba-lham em projetos vinculados a taisFundações, o que, na prática, implicacomplemento salarial na ordem demais ou menos 100%16.

Este tipo de situação tem gerado,no plano político e sindical, uma fragi-

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 89UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Financiamento da Educação

As chamadas Fundações de Apoio cresceram sensivelmente

como viabilizadoras de cursos pagos cujas características

“ameaçam o caráter público da USP”.

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lização da perspectiva coletiva de orga-nização e defesa de direitos e interessesdos docentes, remetendo as tentativasde solução para problemas salariais, porexemplo, para a esfera atomizada doindivíduo, que parece encontrar, noscursos pagos, a estratégia definitivapara escapar do arrocho salarial. É de sesupor que ao lado de ações políticas ejudiciais objetivando tornar os cursospagos em ensino gratuito, uma políticade recuperação salarial minaria - ten-dencialmente - a capacidade reproduti-va desses cursos pagos. Somos inclina-dos a este raciocínio, tomando compa-rativamente os salários nominais dedocentes da USP, no ano de 1975,quando a proliferação de cursos pagosnão era uma realidade, e na atualidade.Em contraste aos R$4.173,35 percebi-dos hoje por um professor doutor, em1975, o salário girava em torno deR$11.373,0017 (conversão feita para oReal) . Não nos parece que a fixação deíndice possa interferir direta e positiva-mente na recuperação dos salários, res-tando portanto como uma das determi-nações, neste caso, a capacidade políti-ca emanada do movimento. Neste las-tro, a experiência das IEES/SP, no pro-cesso de negociação de salários, temreafirmado as greves como responsá-veis pelas vitórias no caso de algumarecuperação salarial (ou o simplesimpacto que este recurso de luta obtémna negociação com os reitores já que aprática não deixa dúvidas sobre a dispo-sição de paralisação das IEES/SP). Vistoa partir da experiência particular dasIEES/SP, pensamos que o expedienteda fixação de índices se mostra comorealmente ele é: não um fim pelo qualse deve lutar, mas um meio cuja efi-ciência não é clara nem passível degeneralização.

A fixação de índice nas IEES/SP tam-bém não conseguiu garantir verbas sufi-cientes para concursos que preenches-sem as vagas docentes, situação, por

exemplo, que motivou a greve na FFLCH(Faculdade de Filosofia, Letras e CiênciasHumanas) ocorrida recentemente, emmeados de 2002. Também não conse-guiu que a expansão das vagas e de cur-sos nas IEES/SP se efetivasse dentro dopadrão de qualidade defendido peloANDES-SN, principalmente no aspectoda indissociabilidade entre ensino, pes-quisa e extensão, como foi denunciada,no 45º CONAD, a criação, na UNESP, de9 novos campi sem qualquer infra-estru-tura ou contratação de servidores do-centes e técnico-administrativos18. Porocasião desta denúncia, a ADUNESPainda salientou que “um claro indicativode que esta situação tende a se espraiarpara outras universidades estaduais é aaprovação do Projeto de Lei 245/2000,pela Assembléia Legislativa de SãoPaulo, criando salas de aulas da USP nosbairros periféricos da cidade para ‘asse-gurar maior acesso às UniversidadesEstaduais, para alunos de menor poderaquisitivo, vindos da rede pública e queresidam na periferia’” (DOESP 03/10/-2002)19. Vê-se, portanto, os limites en-frentados por uma fixação de um índice

mínimo para o repasse de verbas doEstado para as IEES/SP. Sobretudo, tira-se como lição de que, nesta equação, o“mínimo” será sempre o “máximo”.

Além desses aspectos, merece aná-lise ainda o fracionamento do movi-mento dos servidores públicos estimu-lado pela fixação do índice quando es-ta restringiu a questão salarial ao âm-bito das reitorias. A esse respeito, po-demos adotar, por concordância, a ad-vertência feita por Edmundo Fernan-des Dias, naquele ano de 1989: “Asentidades de classe dos professores efuncionários das universidades têm si-do, na questão salarial, um pólo aglu-tinador do funcionalismo. Quérciaquer agora livrar-se dos problemasque o movimento traz para seu futuropolítico. Para tentar romper essa uni-dade, ele “inventa”, em um momentodecisivo de acúmulo de forças, umaproposta de autonomia”20. A forçadessa posição - principalmente naqui-lo que ela tem de absolutamente pros-pectivo - mantém como advertência esuposto que a luta feita de modo seg-mentado, particularmente quando é aluta dos servidores públicos, fragiliza acapacidade de enfrentamento políticoe sindical e praticamente perde a pers-pectiva de apresentar a questão sala-rial como fundamental para a valoriza-ção, preservação e melhoria do servidopúblico. Portanto, fixar índice significa -pelo menos no plano salarial - isolar auniversidade dos outros serviços públi-cos e vice-versa.

Que fazer?Não regulamentar, como regra de

nossa intervenção, o repasse financei-

90 - DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Financiamento da Educação

Não nos parece que a fixação de índice possa interferir direta e

positivamente na recuperação dos salários, restando portanto

como uma das determinações, neste caso, a capacidade políti-

ca emanada do movimento.

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ro. Se: a) a experiência nas IFES de-monstra que as tentativas de regula-mentar o repasse financeiro desagua-ram em tentativas de privatização; b)a experiência no Paraná demonstrourecentemente que a fixação do índicemínimo, à semelhança das IFES, signi-ficaria também o avanço da privatiza-ção interna e do controle externo docapital sobre as IEES; c) em São Paulo,a despeito da fixação do índice, asFundações e os cursos pagos prolife-raram (como na USP), a expansão dasvagas e de cursos de graduação temse dado de modo a precarizar aindamais o trabalho docente e a qualidadedo ensino (como na UNESP) e todoano é necessário haver mobilização,em torno da Assembléia Legislativa,para garantir determinado índice derepasse. Melhor é não regulamentar.Todas essas experiências não indicam,nem taticamente, a regulamentação.

Por outro lado, é preciso instru-mentalizar o movimento docente nasIES públicas, na luta pelo financiamen-to integral. Neste sentido, vale destacaro reconhecido acúmulo conseguidopela ADUSP no estudo das receitas tri-butárias e no acompanhamento daevolução e composição dos orçamen-tos e dos salários das IEES/SP. Recen-temente, a ADUSP promoveu um Se-minário sobre Finanças Públicas e dasReceitas das Universidades21, apresen-tando metodologia para a produçãode dados sobre orçamento cujo fatorqualificador da intervenção do movi-mento docente é indiscutível. Ama-durecido em reuniões do Setor dasIEES, este seminário permitiu iniciarum processo de fusão entre a experi-ência de luta do Fórum das 6 (que seampara, além da forte mobilização,num conhecimento profundo das fi-nanças públicas do Estado e dasIEES/SP) e as experiências no setordas IFES e de algumas IEES como, porexemplo, as do Paraná. Portanto, ten-

do passado em vista parte das expe-riências do ANDES-SN, na construçãoconcreta da Autonomia Universitária,em particular no aspecto do financia-mento integral, nosso desafio é o deestabelecer uma síntese dessas expe-riências que seja capaz de qualificarainda mais nossa luta.

Notas1. Por exemplo: 17º (1998), 19º (2000) e 20ºCongressos (2001); 38º (1999), 39º (1999) e40º (2000) CONADs.2. Consultar “Plataforma dos Docentes do En-sino Superior para a Constituinte”, In I Con-gresso Extraordinário, Brasília, Maio de 1987.3. “Durante o ano de 1994, estabeleceu-seuma mesa de discussões, a partir de portariado MEC (P.350/MEC/94) para debater a Au-tonomia Universitária. Este processo foi cha-mado AGENDA AUTONOMIA/94 do qual par-ticiparam, como membros de uma Comissãoresponsável: ANDES-SN, FASUBRA, ANDIFES,ANUP, ABRUEM, FÓRUM DAS UNIVERSIDA-DES COMUNITÁRIAS e a SESU. A UNE tam-bém participou dos debates, mas não assinouo relatório”. Conferir “Texto 24 - Contribuiçãodos Sindicalizados Géria M. Franco (ADUFSCarSSind.), Luiz C. Lucas (ADUFPel SSind.),Márcio A. de Oliveira (APESJF SSind) - Au-tonomia Universitária: dados históricos e aluta hoje”, In Caderno de Textos do XIXCongresso do ANDES-SN, Juiz de Fora/MG,21 a 26 de fevereiro de 2000, p.97. 4. PLC 119/92, de Florestan Fernandes, esta-belecia o repasse para as IFES em duodéci-mos e o percentual de Orçamento, Capital ecusteio dentro dos 18% da receita da Uniãoque deveriam ser destinados às universidadesde acordo com o artigo 212.5. Cf. Resoluções do XVII Congresso doANDES-SN, Porto Alegre, 06 a 12 de fevereirode 1998.6. Cf. Resoluções do XIX Congresso doANDES-SN, Juiz de Fora, 21 a 26 de fevereirode 2000.7. Cf. Considerações Gerais sobre a Lei Or-gânica da Autonomia (Proposta de um PL) daANDIFES (Versão de maio de 2002), InANDES-SN, Brasília, 27 de Maio de 2002.8. Cf. La enseñanza superior: las leccionesderivadas de la experiencia (El desarrolloen la práctica). Washington, D.C. Banco Mun-dial, 1995.9. Cf. Mensagem, In Projeto de Regulamen-tação da Autonomia Universitária, Governo do

Estado do Paraná, 18 de fevereiro de 2002, p.2.10. Cf. Jornal de Londrina, 01 de fevereiro de2002.11. Essa Lei, como já referido, foi aprovadadurante o primeiro mandato do governadorJaime Lerner, em 05 de agosto de 1996. ElaLei instituiu a possibilidade das IEES cobra-rem pelos serviços prestados à comunidade.12. A retirada do projeto 411/00 da pauta devotações da Assembléia foi negociada direta-mente pela APP/sindicato com o governo doEstado. Um grupo de trabalhadores das esco-las públicas de 1º e 2º graus do Paraná, coor-denados pela APP/sindicato ocuparam oPlenário da Assembléia Legislativa por quatrodias, no início do mês de outubro de 2001. AAssembléia foi desocupada somente depoisque o governo estadual atendeu algumas rei-vindicações da APP, dentre as quais a retiradado Projeto 411/00.13. Conferir “Decreto nº 29.598, de 2 de feve-reiro de 1989”, In Secretaria de Estado doGoverno, publicado em 02/02/1989. 14. Conferir Revista ADUSP nº 27 - EdiçãoEspecial, São Paulo, ADUSP, Outubro de 2002.15. CORREIA, Ciro e POMAR, P.E.R.. Fundaçõesprivadas na USP, a privatização insolente, InUniversidade e Sociedade, nº 29, Ano XII,Março de 2003, p.161.16. Idem, p.165.17. Dados fornecidos no Seminário de Finan-ças Públicas e Receita das Universidades,Adusp, 30/11/2002.18. Conferir “Texto 21 - Contribuição da ADU-NESP Seção Sindical - Autonomia e Democra-cia Universitária”, In Anexo ao Caderno deTextos do 45º CONAD, Belém/PA, 1º a 3 deNovembro de 2002, p.10.19. Idem, p.10.20. DIAS, Edmundo F.. “Autonomia: projeto ougolpe?”, In Jornal da UNICAMP, 9, março de1989. 21. Cf. Relatório do Seminário de FinançasPúblicas e Receita das Universidades, Setordas IEES/ANDES-SN, São Paulo, 30 de novem-bro de 2002.

*Antônio de Pádua Bosi é professoradjunto da Universidade Estadual do Oes-te do Paraná, presidente da ADUNIOESTE-S.Sind e 1º vice-presidente da SecretariaRegional Sul do ANDES-SN.

**Luis Fernando Reis é professor assisten-te da Universidade Estadual do Oeste doParaná e presidente do SINTEOESTE (Sin-dicato dos Trabalhadores do Ensino Supe-rior do Oeste do Paraná).

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 91UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Financiamento da Educação

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O novo Estado brasileiroEm sua tarefa de instauração cien-

tífica de uma nova sociologia, Flores-tan Fernandes consagra uma firmezade posição na qual transparece o sen-tido revolucionário da fusão que faz“entre o conhecimento rigoroso e aforça da convicção”. Foi isso, segundoCândido (2001), que fez dele o maiorpraticante no Brasil de uma ciênciaque é, potencialmente, um verdadeiroarsenal da filosofia da práxis, já quepermite que o conhecimento deslize

da crítica da sociedade para uma teo-ria de sua transformação. O desfechológico desta militância científica-políti-ca foi melhor traduzida, em nível cole-tivo, pela atividade jornalística tardia.Foi a partir daí que Florestan canalizoua sua prodigiosa cultura e a sua expe-riência intelectual para a reflexão sobreo cotidiano, tornando acessível aogrande público sua visão socialista so-bre os problemas sociais, num períodoque se instaura no Brasil um novo pro-jeto político, descrito a seguir.

Este projeto, constituído ainda deforma não sistemática, nos governosFernando Collor e Itamar Franco, seconsolida durante as duas gestões deFernando Henrique Cardoso, curiosa-mente, o discípulo mais famoso da es-cola uspiana de sociologia, um dosfundadores da chamada “teoria da de-pendência” - cujo débito está na con-cepção de “heteronomia”2 de Flores-tan, mas que, ao enfatizar diferenteselementos, acaba por demandar inter-venções políticas diferenciadas. De for-ma sintética, as duas concepções so-bre a condição de subdesenvolvimen-to do Brasil visam, em última instância,

92 - DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

A mercantilização dos direitos e os novos dilemasda educação brasileira

Marcos Marques de Oliveira*

Financiamento da Educação

Introdução

Sob inspiração dos artigos publicados pelo cientista social Florestan Fernandes,

na Folha de S. Paulo, em 1994 e 1995, este texto tem o

objetivo de analisar o processo de mercantilização dos direitos sociais e seus

efeitos sobre a educação brasileira, nas últimas décadas, quando políticas

públicas de caráter neoliberal iniciaram um processo de reforma

do Estado que redimensionou a ação do aparelho estatal, colocando em

cheque antigas formas de intervenção e financiamento do setor público.

Por sua trajetória de vida em defesa dos princípios democráticos, nos quais

se inclui a universalização do ensino público, a visão sociológica do

intérprete do “dilema educacional brasileiro”1 pode, a meu ver, lançar

luz sobre as dificuldades de um país “periférico” em dar conta de suas

dívidas sociais, num momento de intensificação da mundialização

do capital e de aparente perda de poder político dos Estados nacionais.

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orientar o processo de modernizaçãosocial influenciando visões e condutasde classe, assim como o Estado e suasinstituições, para vencer as resistênciasà mudança, superando, entre outros“bloqueios”, o corporativismo e adominação patrimonial.

A diferença substancial encontra-seno fato de que a “teoria da dependên-cia”, segundo Martins (1998: 170), se-ria uma tentativa de “ajustar o desen-volvimento do país a possibilidades re-guladas fora dele, no plano internacio-nal, pelos grandes conglomeradoseconômicos, pelos governos estrangei-ros dos países ricos”. Seria, portanto,uma política de adesão estratégicapara “cobrar tratamentos preferenciais,agindo simultaneamente no plano daeconomia e da política internacionais”,base de um de um projeto de reinser-ção lateral na economia capitalista co-m a exploração de nossas vantagenscomparativas. Já na perspectiva de Flo-restan está pressuposto que o projeto

de modernização sócio-econômiconão tira do horizonte a luta anti-impe-rialista, o que denota a necessidade deum movimento nacional que pressu-põe a coexistência (não necessaria-mente aliança) de classes para a “civi-lização” do capitalismo periférico, massob a hegemonia da organização pro-letária sedimentada no partido que orepresenta.

De forma contrária, a estratégia de“articulação negociada” dos adeptosda social-democracia brasileira “sóabrangia as elites”, o que, na opiniãode Florestan, é insuficiente para res-guardar seus desígnios. Mais, na con-cepção do bloco de poder que assumea hegemonia das políticas públicas

com Fernando Henrique Cardoso, es-tavam completamente esgotadas aspotencialidades do ideário nacional-desenvolvimentista, principalmente noque diz respeito ao papel destinadopara o Estado, que sofria uma crise detrês faces: a de caráter fiscal, a de es-gotamento da estratégia intervencio-nista e, por fim, a de administração po-lítica burocrática. A superação destacrise demandava a retirada dos entra-ves colocados pela nova Constituição ea implementação de um projeto dereformas que viesse preparar o Brasilpara uma nova inserção no cenário in-ternacional.

O “novo Estado”, nesta perspectiva,deixaria de ser o responsável direto

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 93UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Na concepção do bloco de poder que assume a hegemonia

das políticas públicas com Fernando Henrique Cardoso,

estavam completamente esgotadas as potencialidades

do ideário nacional-desenvolvimentista.

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pelo desenvolvimento econômico e so-cial através da produção de bens e ser-viços, e teria fortalecido seu propósitode promotor e regulador desse desen-volvimento. Sua função estaria restritaa uma ação redistributiva dos benssociais e ao cumprimento do objetivohobbesiano de garantir a ordem inter-na e a segurança externa. Para tanto,tornava-se premente a transferênciapara o setor privado das atividades quepudessem ser controladas pelo merca-do. A privatização e a constituição dosetor público não-estatal seriam osgrandes instrumentos de execução dosserviços que não demandariam o exer-cício do poder do Estado, mas apenaso seu subsídio. Neste campo, porexemplo, junto com os serviços desaúde e cultura, estariam a educação(especialmente o ensino superior) e odesenvolvimento da produção de ciên-cia e tecnologia (C&T).

O resultado é que a partir de então,depois de um intervalo que permitiulimites à ingerência estrangeira nas re-lações do Estado com os setores fortesda economia, como era o pressupostodas políticas de industrialização nacio-nal-desenvolvimentista, implanta-seum novo fluxo modernizador, “um pó-lo diversificado de natureza neocolo-nial” que interfere cruamente sobre asoberania nacional. Em 1991, aindadurante o governo Collor, Florestanavisava que a incorporação ao sistemacapitalista mundial de produção e depoder e a privatização das empresasestatais estratégicas, sob a ingerênciado governo e com plena anuência dosempresários e capitalistas brasileiros,sugeria que não estava acontecendouma “ruptura”, mas um processo deperpetuação da situação de depen-dência:

Esse painel sugere que os interes-

ses da iniciativa privada nativa ainda

prevalecem sobre os eventuais interes-

ses da Nação e que permanece delibe-

radamente distante de um projeto his-

tórico próprio de Nação. Aceita a inva-

são externa a sangue frio e especula

com a transição neocolonial ou com as

situações de dependência como uma

fonte imaginária de vantagens relativas,

de lucros e de poder. Falta à burguesia

nativa o impulso “conquistador”, o que

a impediu de liquidar o colonialismo

até suas raízes e a induziu a se aprovei-

tar dele, o que a afasta de um naciona-

lismo militante radical e o que a leva a

encarar a democracia como algo formal

e ritual, não como uma revolução

emancipadora de caráter geral (Fer-

nandes, 1991: 33).

Estaríamos vivendo, nas palavrasde Florestan, uma “Idade Média mo-derna”, num “cativeiro dourado” abar-cado “pela paralisação do ser humanocomo entidade racional e moral e dasociedade como elemento impulsio-nador da mudança social progressivaou revolucionária” (Fernandes, 1995:35). Nesse universo, as pequenas mi-norias privilegiadas se organizamcomo as classes dominantes dessanova modalidade de “sociedade com-petitiva”, detendo um poder colonialque permite incorporar a si próprias eàs suas infortunadas nações nas estru-turas de poder do capitalismo interna-cional. Florestan, entretanto, adverteque “o capitalismo selvagem não re-produz o passado” e que a “revoluçãoburguesa” no capitalismo oligopolista,substituto do monopolista, se apresen-ta de outra forma e com outros objeti-vos fundamentais.

O fulcro desta “era da robotização”está na perversão absoluta do conhe-cimento científico-tecnológico, porampliar os mecanismos de diferencia-

ção social e acumulação de riquezaem detrimento das técnicas racionaisque poderiam extirpar a desigualdadee a violência, funcionando em prol daauto-regulação dos assuntos coletivosda comunidade. Isto porque ao invésde se tentar ir além da importação deprodutos do conhecimento científico etecnológico (assimilando de fato ospadrões de pensamento associados aessas áreas e, desta forma, alcançandocondições de os colocar em prática demaneira original), países como o Brasilacabam por ficar impossibilitados depôr a ciência e a tecnologia científica aserviço de um projeto nacional dedesenvolvimento econômico, social oucultural.

A prevalência dos interessesprivados internacionais

A questão da inserção brasileiraneste processo, portanto, deve tomarcomo ponto de partida o debate sobreo suposto colapso da política nacional-desenvolvimentista e sua substituiçãopor um projeto não refratário às pre-missas neoliberais, ainda que postocomo sua melhor crítica e alternativa -e que tem produzido resultados bas-tante contraditórios. No que se refere àprodução do conhecimento, porexemplo, sob as políticas de privatiza-ção do ensino superior, ficamos restri-tos a uma inclusão subalterna, cuja

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O fulcro desta “era da robotização” está na perversão

absoluta do conhecimento científico-tecnológico, por ampliar

os mecanismos de diferenciação social e acumulação de riqueza.

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permanência desta situação pode le-var ao esgotamento de nossas poten-cialidades de construção de um paísautônomo e não subserviente aos di-tames do capital internacional.

Vale lembrar que o aprofundamen-to da política de empresariamento doensino superior brasileiro, sob o finan-ciamento de recursos públicosiii, veiona esteira da abertura econômica e doprojeto de privatização do patrimôniopúblico, com o qual “o Estado fundiu-se com a empresa econômica, espe-cialmente as grandes e gigantes; o ‘po-lítico’ tornou-se a versão pública dosinteresses privados predominantes”4.O resultado é que o apoio à aberturacomercial, que vinha da expectativa deque os novos capitais estrangeiros cria-riam um embalo e atrairiam aindamais capitais, gerando um círculo vir-tuoso, foi frustrado. Passado o mo-mento de transferência de empresasnacionais para estrangeiros, não surgiua propalada dinâmica que aumentariaas escalas de produção e o tamanhodos mercados, além de inaugurarnovas fontes de financiamento e cami-nhos para o crescimento econômico, ainovação tecnológica e a ocupação demercados mundiais.

Existem duas linhas básicas de ex-plicação para isso. Para os que defen-dem as virtudes da abertura ao capitalestrangeiro, o fracasso se deve a cau-sas externas, como o desaquecimentoda economia mundial, as crises finan-ceiras em mercados emergentes ou apolítica de juros altos e câmbio artificialadotada pelo então governo. Já os críti-cos do neoliberalismo alertam para aprópria lógica dos capitais globais, cen-

tradas nas estratégias das corporaçõestransnacionais para a ocupação domaior número possível de mercadosnacionais. Como é suposto nas rela-ções internacionais, não compete a es-sas empresas planejar a integração dosmercados que dominam a um sistemamundial supostamente mais livre e di-nâmico. O investidor vem, antes de tu-do, para vender mais no mercado local.A hipótese de exportar, a partir da baseinterna, fica em segundo plano e sóacontece em condições excepcionais(sob condição de manutenção do baixocusto da mão-de-obra e o recebimento

de subsídios e incentivos fiscais). No caso brasileiro, onde a tecnolo-

gia de ponta ainda ensaia seu salto de-cisivo, a criação de oligopólios nos se-tores mais avançados, nos quais acomposição de capital se modificabruscamente, o processo de aberturacomercial e privatização tende a gerarcrises de grande envergadura. O fato éque, em países como o nosso, as em-presas estrangeiras ocupam grande es-paço nos setores de média e alta tec-nologia, fazendo com que as estraté-gias de investimento das corporaçõestransnacionais se constituam em ele-mento de risco para a economia - co-mo se comprova com o fato de que nototal de inovações geradas, em 1998, amaioria absoluta foi patenteada porelas. Dessas, 888 foram depositadasno exterior e 924 no Brasil. Contudo,das depositadas no exterior, mais de86% foram concedidas. Aqui, não pas-saram de 17%5.

De acordo com Dreiffus (1996), es-tas corporações são os agentes impul-sionadores da nova fase da divisão in-ternacional da produção, que comseus centros de pesquisa e desenvolvi-mento (P&D) geram novos tipos deprodutos e sistemas de organização dotrabalho. É em alianças com estas cor-porações que os Estados dos paísesdesenvolvidos contam para assegurarpresença ativa e determinante no pro-cesso de constituição social, econômi-ca e política de criação científica, con-versão tecnológica, aplicação produti-va e comercialização. O fato é que es-tas corporações estratégicas, sob a “ló-gica da rapina” imperialista, preservamum tipo de “base nacional”, fazendocom que o Estado continue como atorcentral, buscando responder a interes-ses nacionais e à preservação da suasoberania. Assim, em vez de ter suafunção reduzida, o Estado, e não só noscasos dos países centrais do capitalis-mo oligopolista, surge como orientador

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 95UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Os críticos do neoliberalismo alertam para a própria

lógica dos capitais globais, centradas nas estratégias das

corporações transnacionais para a ocupação do maior

número possível de mercados nacionais.

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das forças do mercado e programadordo espaço público mundial, buscandoa convergência entre os interesses em-presariais e às demandas imediatas dasociedade, quase sempre através dassugestões tutelares das agências inter-nacionais de dominação6.

Em vista disso, no caso dos paísesde capitalismo dependente, qualquersolução que passe pela conversão ao“neoliberalismo” e sua campanha dedemolição da idéia de serviço público,poderá colocar em risco o funciona-mento das incipientes instituiçõesdemocráticas. Ao contrário, torna-seimperioso a definição de estratégiasde desenvolvimento que levem emconta os interesses da maior parte dapopulação, aquela que está mais sujei-ta a sofrer com as irracionalidades domercado. Especialmente ao que se re-fere às políticas de ciência e tecnolo-gia, deve-se rejeitar os projetos quevisam à destituição da universidadepública como locus de produção doconhecimento socialmente relevante,assim como as propostas que buscama fragmentação das atividades univer-sitárias de pesquisa. Caso a sociedadebrasileira não se mobilize, a atual polí-tica nacional de substituição de umsistema de C&T, de base pública e es-tatal, para um sistema de CT&I7, emsintonia com o processo de empresa-riamento do ensino superior, apresen-ta-se como o caminho mais rápidopara a nossa absoluta subordinação a

outros centros científicos. Ressalta-seque não querer estar subordinado àsdiretrizes dos países centrais não signi-fica que se deseja rumar para um regi-me “autárquico”, mas apenas que serejeita a posição de simples importa-dor de matrizes científicas e tecnológi-cas. Sem um desenvolvimento autôno-mo da ciência, da tecnologia e da cul-tura, o Brasil não conseguirá dar umsalto qualitativo e, assim, permaneceráno atraso econômico e social que oimpede de enfrentar, de forma eficaz,os problemas da fome e da miséria.

A mercantilização dos direitos sociais

O mais perverso é que o sucatea-mento das instituições públicas de en-sino e do nosso sistema de ciência etecnologia teve como justificativa a su-posta ênfase na educação básica, queficou restrita à necessária, mas não su-ficiente “universalização” do ensinofundamental promovida durante o últi-mo governo. Mesmo considerando sa-lutar o esforço no atendimento quanti-tativo, a qualidade da escola pública,neste nível de ensino, continua aquémdas necessidades sócio-econômicas,

políticas e culturais, o que se compro-va pelo grande número de repetição eabandono, que faz engrossar o contin-gente de jovens e adultos que, fora daidade escolar, ainda não contam coma atenção de políticas públicas efetivaspara o seu atendimento. Soma-se aisso o ainda ineficiente atendimento àeducação infantil, recém-incorporadaao sistema oficial de ensino, e a cha-mada “bolha” do ensino médio, quesó consegue ser “furada” pelas escolasde elite (publicas e particulares) quefornecem a clientela para os níveis su-periores. O “vestibular das cotas” daUniversidade Estadual do Rio de Ja-neiro (UERJ), no início de 2003, paraalém de seus defeitos e virtudes, teveo mérito de colocar em pauta o dramado difícil acesso ao ensino superior degrande parte da população brasileira,principalmente negros e pobres8. Apermanência do “atraso educacional”,portanto, continua como um sintomada nossa “ausência de cidadania”.

O que deve pautar as políticas edu-cacionais, em todos os níveis, é o de-bate sobre o modelo de desenvolvi-mento sócio-econômico que o novogrupo político que assumiu o governo,

96 - DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

O sucateamento das instituições públicas de ensino e do nosso

sistema de ciência e tecnologia teve como justificativa a suposta

ênfase na educação básica, que ficou restrita à necessária,

mas não suficiente “universalização” do ensino fundamental.

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em 2003, pretende implementar - oque, por sua vez, determinará qual opapel do Estado na promoção dos di-reitos fundamentais do homem, noqual está incluso o acesso à educaçãoescolar. A continuar a sublimação des-te debate, permanecerão as estraté-gias de focalização e privatização dosagora chamados “serviços” públicos,que deixam de ser pensados a partirdas políticas de universalização eigualdade para dar lugar ao voluntaris-mo de uma pretensa sociedade civilhomogênea e à clássica novidade daspolíticas promotoras da denominadaequidade de oportunidades9.

E por falar nisso, os efeitos do tra-balho voluntário e do associativismosolidário no sistema educacional me-recem a atenção dos que se preocu-pam com o ensino público brasileiro,os verdadeiros “amigos da escola”. Épreciso investigar, a fundo, os pressu-postos e as promessas que fundamen-tam o debate sobre o papel do chama-do “terceiro setor”, na atual etapa deacumulação de capital, que coincidecom a suposta derrocada do ideárioneoliberal e o fortalecimento de umnovo ideal societário baseado em ato-res sociais que, em tese, conjugam vir-tudes e benefícios dos setores públicoe privado, sem carregar seus vícios (aineficiência, no primeiro caso, e o de-sinteresse de lucro, no segundo). Ori-ginalmente denominados de organiza-ções não-governamentais (ONG’s), taisatores vêm, nos últimos anos, assu-mindo a execução de inúmeras políti-cas públicas. Sob intensa profissionali-zação, as atualmente chamadas orga-nizações sociais (OS’s) vêm abarcandogrande parte de recursos governamen-tais e privados, com a tarefa de promo-ver ações sociais antes de responsabi-lidade estatal. Como defende Monta-ño (2002), as apologias sobre o papeldo terceiro setor, no trato das questõessociais, é sintoma da hegemonia do

ideário neoliberal, e não o seu contrá-rio. São, desta forma, discursos quejustificam, estimulam e escamoteiam aretirada das políticas estatais de uni-versalização compulsória de acesso efinanciamento dos direitos sociais(principalmente educação, saúde e se-gurança), em prol da proliferação deagentes privados que executam políti-cas sociais mitigadas. Abre-se, assim,um vasto campo para um novo pro-cesso de acumulação capital com amercantilização dos direitos sociais,vistos agora não mais como obrigaçãodo Estado para com seus cidadãos,mas como dever individual de execu-ção ou recebimento (dependendo dequal lugar se ocupa na estrutura declasses)10.

Florestan já afirmava, em 1960,que, sob o disfarce de motivos ideoló-gicos, de fins altruísticos e de realiza-ções econômicas, são organizadosmovimentos sociais que arrastam, emseu bojo, pessoas que poderiam serqualificadas de “inocentes” (com rela-ção à consciência dos fins reais dosmovimentos de que participam ou aoqual aderem), já que é extremamentedifícil para grande parte das pessoas,devido às condições modernas deexistência social, descobrir o real senti-do dos respectivos movimentos. Osprejuízos morais e materiais que so-frem só são percebidos tardiamente. Oexemplo que o sociólogo cita é justa-mente o “modelo” preferido dos ideó-logos do neoliberalismo, o norte-ame-ricano, onde vários “movimentos so-ciais” com fins altruísticos aparentessão organizados para levantar fundos emobilizar as energias humanas reque-

ridas pela luta contra determinadoefeito indesejável, mas que, no fundo,acabam por satisfazer necessidadesegoísticas dos manipuladores profis-sionais (Fernandes, 1976b).

O horizonte das lutas sociais, prin-cipalmente no campo educacional, de-ve ser a universalidade do bem-estarsocial, em todos os seus níveis. No ca-so do ensino superior, isso se expressana possibilidade de acesso de umpúblico cada vez mais amplo a umaeducação de qualidade socialmentereferenciada que justifique sua gratui-dade. Em se tratando da educaçãobásica, o referencial deve ser o investi-mento maciço para o atendimentoqualitativo da população pobre, quetem, na escola pública, sua única pos-sibilidade de acesso aos bens sociais.

ConclusãoTerminando uma de suas teses, o

sociólogo Fernando Henrique Cardosocolocava a questão: subcapitalismo ousocialismo? Sabemos que a opçãopelo segundo modelo não é tarefa dasmais fáceis. No entanto, a persistir oconsenso que paira sob governo, so-ciedade e mídia deste país tupiniquim,as políticas de manutenção do primei-ro estágio permanecerão sendo imple-mentadas. Ao invés de “remar contra a

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 97UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Os efeitos do trabalho voluntário e do associativismo

solidário no sistema educacional merecem a atenção

dos que se preocupam com o ensino público brasileiro,

os verdadeiros “amigos da escola”.

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Page 91: UNIVERSIDADE E SOCIEDADE - ANDES-SN · 1- Seguridade Social Seguridade Social no Brasil e perspectivas do governo Lula. Ivanete Boschetti / Elaine R. Behring O valor estratégico

corrente”, construindo um projeto na-cional de reformas dirigidas a partir deinteresses internos, “o Brasil condena-se (...) a incentivar uma política estrei-ta de continuidade prolongada (secu-lar) e a absorver o tipo de dependên-cia nascido da instrumentalização doEstado, da ciência e da tecnologia uti-lizada pelos países centrais” e seusconglomerados empresariais11.

Entretanto, como nos lembra Flo-restan, há uma espécie de processoeducativo permanente nas relaçõessociais em crise, que, sob condiçõesdemocráticas, pode engendrar a forma-ção de um novo senso comum, contrá-rio e crítico aos pressupostos hojehegemônicos dos adeptos das vias“terceiristas”. Nesse cenário, cabe aoeducador12 combater os instrumentosque bloqueiam as possibilidades de

transformação histórica, a começarpela luta contra a “cotidianidade”, umaspecto da vida cotidiana, que transfor-ma a realidade social numa realidademanipulada, na qual paira uma aliena-ção extrema que provoca a mistificaçãoe a naturalização de um modo de pro-dução de vida. Ao educador, portanto,cabe ir além da “rotina” da dimensãoprivada (o que não significa esquecê-la) e escarafunchar a vida cotidiana dotrabalho, que não deve ser reduzida àidéia de contrato social. Para isso, épreciso recuperar a memória dos seg-mentos populacionais marginalizadose mostrar que eles fazem História com“H” maiúsculo, a história que atravessaa vida de pessoas concretas.

O resgate destas memórias poderevelar a verdade de uma história queo medo, de um lado, e a cobiça, do ou-tro, tendem a disfarçar: a do trabalho

como fonte social de riqueza. O que ahistória oficial aponta como inovaçõesdas elites, inclusive suas estratégias de“solidariedade”, é, na verdade, produtodas lutas trabalhistas: modificação nascondições de trabalho, da jornada detrabalho, elevação dos salários, redis-tribuição da renda e padrões decentesde vida, até a participação simbólicados trabalhadores na administração daempresa, a conquista de códigos detrabalho mais eqüitativos, da segurida-de social, da expansão e democratiza-ção do ensino (Fernandes, 1991).

Um dos maiores méritos da pedago-gia socialista de Florestan, presente emseus artigos de maturidade, está justa-mente na crítica que faz aos argumentosque defendem o fim da centralidade dotrabalho no capitalismo tardio. A estes, osociólogo responde que “o trabalho não

desapareceu. Evoluiu e sofreu alteraçõesnascidas da civilização capitalista comoum todo. Sem o homem - isto é, sem otrabalhador - não há produção e semesta, em constante desenvolvimento,não existe civilização. Automatiza-se aprodução. Mas anula-se o elementohumano? Ou se quer chegar ao ideal defascismo e do nazismo de robotizar oser humano e todas as qualidades dapessoa?”13. Assim, a partir da contribui-ção de Florestan, podemos perceberque o banimento da noção de conflitona esfera das relações entre capital e tra-balho só favorece “a falaciosa utopia dademocracia participativa”, que colocamaior peso nos aspectos formais dacidadania e esquece as questões defundo - àquelas que dizem respeito aoprojeto de emancipação humana dojugo de todas as formas de exploração ede dominação.

Notas1. Segundo Florestan, o tal “dilema”, um sinto-ma das dificuldades de modernização da so-ciedade brasileira, funciona como um perfeitocírculo vicioso no qual as condições de subde-senvolvimento geram problemas cuja gravida-de aumenta em função das dificuldades ma-teriais ou humana em resolvê-los. A interven-ção conjuntural deliberada, ainda que topica-mente bem sucedida, acaba por contribuirmuito pouco para alterar a situação estrutural.O esforço, por isso, precisa ser repetido diver-sas vezes para que não se perca a pequenavantagem conquistada. “Pensamos que esteesboço remata a caracterização do que cha-mamos de ‘dilema educacional brasileiro’. Arelação entre meios e fins, no que concerne àsperspectivas de controle dos problemas edu-cacionais mais prementes, não prenuncia ne-nhuma espécie de êxito seguro e rápido”(Fernandes, 1976a: 420).2. Em entrevista a José Luís Silva (Florestanataca o consenso. Folha de S. Paulo, 28/08-/1995), Florestan explica que o conceito de“he teronomia”, uma inspiração weberiana,pode ser usado como sinônimo de “depen-dência” para fins didáticos, apesar de ter umsentido mais obtuso, ao se referir à condiçãoaguda de submissão de um determinadogrupo a outro. Com referência ao antônimo“autonomia”, pode-se dizer que, em qualquerrelação social, há uma situação de dependên-cia, mas que, em alguns casos, numa situaçãoheteronômica, esta dependência toma umsentido que contraria, em hipótese, uma rela-ção contratual entre iguais. 3. Como demonstra Davies (2002, 175), nolivro do Coletivo de Estudos de Políticas Edu-cacionais (COLETIVO) que trata do assunto,“as IES privadas se expandiram e se expan-dem, não só porque existe uma demandapelo ensino superior, mas também e sobretu-do porque os governos não têm procuradoatender a toda demanda em instituições pú-blicas, desviando-a para as IES privadas. Oapoio oficial às IES privadas tem se concretiza-do não só por omissão, como também pelofinanciamento público direto e indireto a elas,com a isenção de impostos, da contribuiçãoprevidenciária e do salário-educação, e a con-cessão de subvenções, bolsas de estudo, em-préstimos subsidiados, credito educativo, Fiesaos longos das últimas décadas”. O fato é que,em 2002, as 10 maiores IES faturaram R$ 1,7bilhão em 2002, segundo levantamento reali-zado pelo jornal Valor Econômico (22/04/-2003). Uma instituição fluminense, por exem-

98 - DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Ao educador, portanto, cabe ir além da “rotina” da dimensão

privada (o que não significa esquecê-la) e escarafunchar

a vida cotidiana do trabalho.

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plo, registrou um superávit de R$ 2,3 milhõesno mesmo ano, ao qual contribuiu a dispensado pagamento de R$ 953 milhões da partepatronal relativa ao INSS (Jornal de Icaraí,26/04/2003).4. Florestan Fernandes, em Economia políticada crise. Folha de S. Paulo, 11/04/1994.5. Para mais detalhes sobre a política científi-ca do governo Fernando Henrique Cardoso,conferir Oliveira (2002), o capítulo 3 do já ci-tado livro do COLETIVO do Programa de Pós-graduação da UFF.6. Uma análise desta estratégia na área edu-cacional encontra-se no texto de Lima (2002).7. O Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT)do governo Fernando Henrique Cardoso tevecomo centro de sua política o projeto da cha-mada “Lei de Inovação”, instrumento tido co-mo ideal para a aceleração da produção doconhecimento, por prever mecanismos maisflexíveis para que pesquisadores das institui-ções federais possam participar de projetosdo setor privado ou até mesmo abrir suas pró-prias empresas de base tecnológica. Daí aincorporação do “I” de inovação à sigla C&T -agora, portanto, transformada em CT&I (Oli-veira, 2002).8. A grande demanda da população pobre porum ensino superior público e de qualidadepode ser percebida pela multidão que a cadaano busca isenção de taxas nas universidadesfederais e estaduais. Este ano, por exemplo,na UFF, 28 mil estudantes, enfrentando fila,fome e calor, tomaram conta do campus sópara conseguir o formulário de inscrição. Istoé, seis vezes mais interessados do que vagasdisponíveis, uma relação superior há muitasrelações candidato/vagas existentes nas insti-tuições de ensino superior privadas.9. Sobre a ameaça de continuidade de focali-zação e precarização das políticas públicas naárea social durante o governo do Partido dosTrabalhadores (PT), conferir a entrevista daeconomista Maria da Conceição Tavares comGabriela Athias (Economista do PT faz críticasà proposta social de Palocci. Folha de S.Paulo, 21/04/2003).10. A atual celeuma sobre a reforma previden-ciária é bastante elucidativa. Para além do de-bate sobre a existência ou não da crise atua-rial e da necessidade de uma maior eqüidadeentre as aposentadorias públicas e privadas,fica evidente o interesse do setor financeiroem avançar sobre o promissor campo da pre-vidência privada para, desta forma, ampliarainda mais suas margens de lucro conquista-das nos anos de neoliberalismo. Somente

neste primeiro semestre de 2003, por exem-plo, os quatro maiores bancos do país tiveramum lucro líquido de 35,34%, ganhando com aalta taxa de juros, a valorização dos títulos pú-blicos, a intermediação financeira e as altastarifas (Lucro de bancos subiu 35,3% no 1ºtrimestre. O Globo, 13/05/2003). Mais do queos conflitos entre novas e velhas gerações ouentre servidores e empregados de empresasparticulares, o que permanece é a luta entrecapital e trabalho, como se denota da investi-da governamental sobre os direitos sociaisdos cidadãos e a falta de vontade política emnão tocar num dos maiores problemas daprevidência: a dívida do empresariado, pelasonegação e o alto nível de inadimplência nopagamento de suas contribuições (Empresasdevem R$ 153 bi. O Globo, 15/05/2003).11. Florestan Fernandes, em Mudança seleti-va e ruptura histórica. Folha de S. Paulo,14/02/1994.12. E também ao partido, que, segundo Flo-restan, não pode esquecer de somar à repre-sentação institucional a tarefa de educaçãopolítica dos trabalhadores, para a sua “eman-cipação e desalienação” (Os partidos de es-querda. Folha de S. Paulo, 07/08/1995).13. O eclipse do trabalho. Folha de S. Paulo,26/06/1995.

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*Marcos Marques de Oliveira é doutoran-do em Educação Brasileira. Pesquisador doColetivo de Estudos de Política Educacionalda Universidade Federal Fluminense.

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 99UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Financiamento da Educação

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ResumoEste estudo faz uma breve análise

do financiamento do ensino superior

público no Brasil, ao longo de sua

História, desde a chegada dos

jesuítas, em 1549, até o ano de 2001,

sob o Governo Fernando Henrique

Cardoso (FHC). Existiu uma procura

constante por fontes, alternativas aos

impostos, que financiassem as ativi-

dades educacionais, até que se

desenvolveu a metodologia de

vinculações constitucionais dos

impostos que vigora hoje - artigo 212

da Constituição Federal. A trajetória

dessa vinculação é, entretanto, cheia

de percalços e pode-se afirmar que o

estabelecimento do Fundo Social de

Emergência (FSE), depois Fundo de

Estabilização Fiscal (FEF) e, agora, a

Desvinculação de Receitas da União

(DRU), promoveu, mais uma vez, a

retirada da prioridade dada, pela

Constituição de 1988, à aplicação

de recursos do Fundo Público na

educação brasileira.

Introdução A História do ensino superior no

Brasil abarca um período de temponão muito longo, quando comparadocom a idade de instalação do ensinosuperior em outros países da AméricaLatina, que já contavam com universi-dades “...no final do século da Con-quista.” (Fávero, 2000, p. 18). No finaldo século da Conquista, já eram seisuniversidades nas colônias espanho-las: Universidade de São Domingos,1538, Universidade de Lima, 1551,Universidade do México, 1553, Univer-sidade de Santa Fé de Bogotá, 1580,Universidade de Quito, 1586 e a Uni-versidade de Sucre, 1587. (Tobias,1991, p. 58).

O surgimento tardio da universida-de no Brasil (Cunha, 1986, 11) ocorreupor uma conjunção de interesses entrea política de colonização implantadapelos portugueses e a visão da elitebrasileira que preferia enviar seus jo-vens para realizar estudos superioresno continente europeu (Moacyr, 1937,p. 580-581, apud Fávero, 2000).

O bloqueio da ações nesse campo,por parte do colonizador, procura-seentender pelo temor de que o ensinosuperior pudesse ser o ingredienteprecipitador de um movimento de in-dependência que culminasse no rom-pimento dos laços que mantinham oBrasil vinculado aos interesses portu-gueses (Prado Jr, 2000, p. 124):

O Brasil existia para fornecer-lhes

ouro e diamantes, açúcar, tabaco e

algodão. Assim entendia as coisas e

assim praticava. Todos os atos da admi-

nistração portuguesa com relação à

colônia têm por objeto favorecer aque-

las atividades que enriquecem o seu

comércio, e pelo contrário opor-se a

tudo mais. Bastava que os colonos pro-

jetassem outra coisa que se ocupar em

tais atividades, e lá intervinha violenta-

mente a metrópole a chamá-las à

ordem: o caso das manufaturas, da

siderurgia, do sal, de tantos outros, é

bastante conhecido.

Aliado a essa mentalidade, o colo-nizador havia estabelecido, como refe-rência para o ensino superior em todo

100 - DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

O financiamento do ensino superior públicono Brasil: dos jesuítas a FHC

Nelson Cardoso Amaral*

Financiamento da Educação

Page 94: UNIVERSIDADE E SOCIEDADE - ANDES-SN · 1- Seguridade Social Seguridade Social no Brasil e perspectivas do governo Lula. Ivanete Boschetti / Elaine R. Behring O valor estratégico

o seu domínio, a Universidade deCoimbra (Cunha, 1986, p. 12).

A estrutura social e econômica doBrasil, na época colonial, se assentavana economia agrária que se baseavana grande propriedade, na monocul-tura e no trabalho escravo e era volta-da para o exterior, como simples for-necedora do comércio internacional.A imensa maioria daqueles que alme-javam realizar um curso superioreram filhos de colonos europeus quese estabeleceram aqui. Em geral,estes não eram os trabalhadores,mas, sim, os exploradores, grandesempresários e podiam se dirigir àUniversidade de Coimbra para reali-zar seus estudos superiores. Éramos,

portanto, uma “pequena minoria decolonos brancos ou quase brancos,verdadeiros empresários, de parceriacom a metrópole, da colonização dopaís; senhores de terra e de toda suariqueza; e doutro lado, a grandemassa da população, a sua substân-cia, escrava ou pouco mais que isto,máquina de trabalho apenas, e semoutro papel no sistema. Pela próprianatureza de uma tal estrutura, nãopodíamos ser outra coisa mais que oque fôramos até então: uma feitoriada Europa, um simples fornecedor deprodutos tropicais para seu comér-cio.” (Prado Jr., 2000, p. 125).

Não havia nenhuma preocupaçãoem se instalar o ensino superior no

Brasil e os outros níveis de ensinoeram desprezados, pois era o ensinopara a massa dos pobres. Com relaçãoàs atividades relacionadas à ciência e àtecnologia, não há notícia no períodocolonial “(...) de qualquer atividade ci-entífica ou técnica de peso no país(...)” (Fapesp, 2000, p. 3).

Inegavelmente, essa configuraçãoque inibia o ensino superior e nãoimplantou ações em ciência e tecnolo-gia trouxe prejuízos ao País. Por nãoconseguirmos acompanhar o desen-volvimento técnico no setor algodoei-ro, por exemplo, não conseguimosaumentar a produtividade desse setoragrário enquanto outros países, comoos Estados Unidos, o fizeram, provo-cando o declínio de preços e grandesprejuízos para as exportações brasilei-ras (Prado Jr., 2000, p. 147).

O financiamento da educaçãosuperior sob a influência dos jesuítas

Os jesuítas chegaram ao Brasil em1549 com a missão de “cumprir omandato real de conversão dos índiose dar apoio religioso aos colonos” (Cu-nha, 1986, p. 24) e, com uma origemde forte dedicação ao ensino médio -studia inferiora - e ao ensino superior- studia superiora - almejaram abrir noPaís a Universidade do Brasil, a partirda transformação do Colégio da Bahianessa instituição de ensino superior.Entretanto, foram infrutíferas as solici-tações de diversas instâncias da socie-dade baiana, dirigidas a El-Rei, nos sé-culos XVI e XVII, com essa finalidade.Pode-se, entretanto, dizer que, no Co-légio da Bahia, existiu, por volta doano de 1671, de fato, o embrião deuma instituição de ensino superior, ha-vendo por parte da Câmara da Bahia asolicitação para equiparar o Colégio àUniversidade de Évora (Mendonça,2000, p. 132), instituição ligada aos Je-suítas (Conceição, 1998, p. 43). Um

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 101UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Financiamento da Educação

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professor do Colégio da Bahia, Valen-tim Estancel, teve suas observações as-tronômicas citadas no famoso Princi-pia Mathematica, de Isaac Newton,em 1687. (Fapesp, 2000, p. 6).

O financiamento da educação je-suítica no Brasil, de 1550 até 1759, anodo decreto de expulsão dos jesuítas doPaís, se deu através da Corte portugue-sa, com a arrecadação dos dízimos, tri-buto que “incidia sobre a décima partede qualquer produção, com exceçãodos minérios” (Pinto, 2000, p. 8). Oensino, nesse período, era gratuito eos padres não tinham salários. A ma-nutenção das escolas e o pagamentodas despesas de todos os professoresse efetivavam através da Corte (Tobias,1991, p. 103). Entretanto, a procurapor fontes de recursos financeiroslevou os jesuítas a implantarem umaforte organização agro-industrial, utili-zando-se de terras cedidas pelo rei - assesmarias - e pelos donatários dascapitanias (Melchior, 1981, p. 9).

O poder econômico acumuladopelos jesuítas pode ser aquilatadocomparando-se o número de escravosem seus engenhos com outros “ba-rões feudais”(Prado Jr., 2000, p. 145):

O número de escravos empregados

num engenho de primeira ordem é,

segundo Koster (Pernambuco), 80 no

mínimo; Vilhena (Bahia) afirma que

quem não tem mais de 80 é reputado

fraco senhor de engenho, mas este nú-

mero, pelo menos no Rio de Janeiro,

donde possuímos dados específicos,

não é comumente atingido. Naquela

capitania, há os extremos, como o en-

genho seqüestrado aos jesuítas, com

1400; o da Ordem de São Bento, com

432; e o dos Viscondes de Asseca, os

grandes barões “feudais” dos Campos

de Goitacases, com 200. Mas a genera-

lidade é de contigentes mais baixos.

(Grifos nossos)

Com a expulsão dos jesuítas peloAlvará de 28 de junho de 1759, tendo

como motivo o confronto entre o Es-tado Português e a Companhia de Je-sus, ao enfrentar a crise econômicaexistente na colônia (Cunha, 1986, p.39-40), extinguiu-se todo o ensino dosjesuítas e, então, a responsabilidade

por definição de políticas educacionaise financiamento ficou incorporada aoEstado português. Assim, o pequenoembrião do ensino superior no Brasilse transformou em sua completa ine-xistência, no final do terceiro século deeducação, no solo brasileiro.

O financiamento da educaçãono Brasil na era pombalina

O financiamento da educação noBrasil, após a expulsão dos jesuítas, foirealizado através do chamado subsídioliterário que era um imposto pagopela população, incidente sobre aaguardente, vinagre, carne, vinho etc.,criado em 1772, e que tornaria possí-vel a reformulação da educação pro-movida pelo Marquês de Pombal,Ministro de D. José I, no contexto deuma política maior que consistia “(...)de medidas que visavam criar condi-ções para que ocorresse em Portugal aindustrialização que se processava naInglaterra, de modo que se pudessedispor dos requisitos econômicos paraa quebra da situação de subordinação”(Cunha, 1986, p. 40).

Assim se expressava o Alvará de Lei

de 10 de novembro de 1772, de D. José,Rei de Portugal, sobre o chamado subsí-dio literário (Melchior, 1981, p. 25):

Mando que para a útil aplicação do

mesmo ensino público, em lugar das

sobreditas coletas até agora lançadas a

cargo dos Povos, se estabeleça, como

estabeleço o único Imposto a saber:

Nestes Reinos e Ilhas de Açores, e Ma-

deira, de um real em cada canada de

Vinho; e de quatro réis em cada cana-

da de Aguardente; de 160 réis por cada

pipa de Vinagre. Na América, e África:

de um real em cada arratel de carne da

que se corta nos Açougues; e nelas, e

na Ásia, de dez réis em cada canada de

Aguardente das que se safem vias Ter-

ras, debaixo de qualquer nome que se

lhe dê ou venha a dar.

Portanto, até 1772, antes da defini-ção do subsídio literário, o financia-mento do ensino público se estruturouem torno das chamadas coletas napopulação.

Houve toda uma normatizaçãosobre o controle da arrecadação dosubsídio literário e a punição para ossonegadores. Entretanto, a arrecada-ção, após uma grande euforia inicial,foi decaindo até que, no final do sécu-lo XVIII, ela já não é suficiente “parapagar os professores, que eram malremunerados e recrutados sem crité-rios” (Melchior, 1981, p. 27).

Em todo esse período, desde a ex-pulsão dos jesuítas, em 1759, à chega-da da família real no Brasil, em 1808,o ensino superior não recebeu a devi-da atenção do colonizador português.

A efetiva implantação do ensino superior no Brasil

Somente quando o Brasil se tornoua sede da monarquia portuguesa, apartir de 1808, com a vinda da Cortede D. João VI, é que são oficializados,finalmente, os cursos superiores noterritório brasileiro. Esses cursos sedestinavam a formar “burocratas para

102 - DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Somente quando o Brasil

se tornou a sede da

monarquia portuguesa,

a partir de 1808,

com a vinda da Corte

de D. João VI, é que

são oficializados, finalmente,

os cursos superiores

no território brasileiro.

Financiamento da Educação

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o Estado e especialistas na produçãode bens simbólicos; como subproduto,formar profissionais liberais” (Cunha,1986, p. 67). Até então, a colônia vivianum completo isolamento educacio-nal sem “o mais rudimentar sistemade educação e instrução que fosse”(Prado Jr., 2000, p. 138). Só interessa-va aos burocratas a arrecadação deimpostos à população e exploraçãodas pessoas escravas, “o nível culturalda colônia era da mais baixa e crassaignorância” (Prado Jr., 2000, p. 139).

São criados cursos superiores rela-cionados à área médica com objetivode formar médicos e cirurgiões para oExército e a Marinha e cursos na áreade engenharia para formar oficiaisespecialistas que participariam da de-fesa militar e da implantação de infra-estrutura civil da Colônia (Fávero,2000, p. 19). Ou seja, moveu o Rei D.João VI, quando da implantação des-ses cursos, em primeiro lugar os inte-resses relacionados à defesa da Cortee, só depois, os reais interesses doscolonos brasileiros.

O aporte da corte portuguesa noBrasil foi a saída encontrada para asolução do dilema em que ficou oreino de Portugal frente à seguintesituação (Cunha, 1986, p. 70):

Incapaz de derrotar a Inglaterra

devido à potência de sua marinha, Na-

poleão, imperador da França e dirigen-

te de um sistema de alianças de países

da Europa, impôs à Inglaterra um blo-

queio econômico. Com ele, esperava

desorganizar a economia inglesa, volta-

da para a exportação de manufatura-

dos. Portugal, aliada política da Ingla-

terra, por força de antiga dependência

econômica, consolidada pelo tratado

de Methuen, de 1703, encontrava-se

entre dois fogos. De um lado, a pressão

das forças militares de Napoleão, mais

próximas pela adesão da Espanha ao

bloqueio. De outro, a própria pressão

da frota inglesa na foz do Tejo, capaz

tanto de defender quanto de bombar-

dear Lisboa.

Preocupado, portanto, com o futu-ro de seu império, D. João VI priorizou,no Brasil, a criação de cursos que,além da saúde, da defesa e da criaçãode infra-estrutura, pudesse representarum pouco do ensino e da pesquisa nosentido tecnológico. Dessa forma, tal-vez o Rei acreditasse que a competiti-vidade de Portugal estaria mais bempreservada, frente ao poder daInglaterra e à ameaça napoleônico. Eletinha contra ele a imprevisibilidade dotempo de permanência no Brasil, quedurou até 1821; portanto, 13 anosapós a sua chegada. A implantação doensino superior no Brasil foi uma prio-ridade nessa ocasião e pouca atençãofoi dada aos outros níveis de ensino

(Melchior, 1981, p. 13). D. João VI, aoestabelecer escolas isoladas de ensinosuperior, “estaria imitando Napoleão,que procedeu ao fechamento das uni-versidades e criou as escolas isoladasdo Estado para manter o controlegovernamental” (Teixeira, 1968, p. 13).

Além disso, estava em curso o inícioda Revolução Industrial sob o comandoda Inglaterra: “Arkwright constrói o seufuso em 1769, no mesmo ano em queWatt obtém patente para a máquina avapor que tornaria possível o empregodesta energia em larga escala. Em 1787,

Cartwright inventa o tear mecânico”(Prado Jr., 2000, p. 130).

O financiamento do ensino supe-rior, nesse período, se efetivou com re-cursos da Corte portuguesa, produtoda arrecadação do subsídio literário(Mendonça, 2000, p. 134). Entretanto,quando foi criado o ensino médico, aCarta-Régia de 18/02/1808, de D.João VI, estabelecia que “cada alunodeveria pagar de matrícula 6$400 aoseu professor” (Melchior, 1981, p. 27)e outras taxas também deveriam serpagas; por exemplo, por decisão de D.Pedro I, “o porteiro-contínuo da SantaCasa de Misericórdia do Rio de Janeiroganharia o ordenado de duzentos ecinquenta réis, além de trezentos ecincoenta que poderá levar o título deemolumentos aos estudantes por cadacertidão de freqüência que lhes pas-sar” (Melchior, 1981, p. 27)

Iniciou-se, entretanto, nesse perío-do, a procura de fontes próprias para ofinanciamento da educação e, alémdisso, dirigidas para determinadas ins-tituições. Tentou-se vincular, sem su-cesso, em 1812, à Escola de Agricul-tura da Bahia, “o acréscimo de quatro-centos réis à multa sobre as arrobasexcedentes do peso taxado dos rolosde tabaco” (idem, p. 27). Em 1823, im-plantou-se uma loteria, que se mos-trou como uma fonte precária de re-cursos, para custear o ensino da SantaCasa de Misericórdia e do Seminário eSão Joaquim” (ibdem, p. 27).

Em 1821, D. João VI regressa aPortugal e, no dia 7 de setembro de1822, é proclamada a Independênciado Brasil. Todos os problemas educa-cionais brasileiros, incluído aí o ensinosuperior e seu financiamento, passama ser um problema interno ao País,desvinculando-se da corte portuguesa..

O financiamento no período imperialO primeiro fato importante relaciona-

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Financiamento da Educação

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do ao financiamento da educação,nesse novo período, foi o Artigo 179,da Constituição Imperial, de 11 dedezembro de 1823, promulgada porD. Pedro I: “A instrução primária égratuita a todos os cidadãos” (Tobias,1991, p. 155).

D. Pedro I abdicou em 1831 e mu-dou-se em definitivo para a Europa.Em 1834, houve uma grande mudan-ça de filosofia administrativa no Brasil;de uma postura absolutamente cen-tralizadora, partiu-se para a implanta-ção de uma estrutura totalmente des-centralizada e o Ato Adicional, de 6 deagosto de 1834, provocou alteraçõessubstantivas na educação pela transfe-rência de elevadas responsabilidadespara as Províncias que, muitas delaspobres, não conseguiram levá-lasadiante. “As províncias ficaram com asresponsabilidades de ensino em todosos níveis; primário, secundário e supe-rior (excluídas as escolas centrais)”(Melchior, 1981, p.11). Nesse ambien-te hostil, pode-se concluir que o ensi-no superior entrou em um processode degenerescência. Foi, então, inevi-tável que o financiamento do ensinosuperior ficasse sob a guarda do podercentral, uma vez que as províncias ti-nham que, obrigatoriamente, cumprira Constituição Imperial, de 11 de de-zembro de 1823, que estabelecia agratuidade da educação primária atodos os cidadãos.

Até 1879, o ensino superior era detotal responsabilidade do setor públi-co. Em 19 de abril de 1879, pelo De-creto Nº 7247, aparece a Reforma doministro Carlos Leôncio de Carvalho.Sob o espírito liberal, o decreto estabe-leceu que “É completamente livre oensino primário e secundário no Mu-nicípio da Corte e o ensino superiorem todo o Império, salvo a inspeçãonecessária para garantir as condiçõesde moralidade e higiene” (Tobias,1991, p. 158). Estavam, portanto, aber-

tas as portas para a implantação doensino privado por todo o País, permi-tindo-se a abertura das chamadas “Fa-culdades Livres”.

Deve-se ressaltar que, nessa época,as instituições públicas de ensinosuperior cobravam mensalidades e/outaxas de matrícula de seus alunos (Cu-nha, 1986).

A vontade de se obter fontes de re-cursos financeiros especiais para aeducação, além dos impostos já exis-tentes, que se iniciou no período mo-nárquico, se intensificou no períodoimperial.

Em 1823, baseando-se na idéia deque o Brasil deveria ter as suas duasprimeiras universidades e não apenas

faculdades isoladas, discutiu-se umprojeto apresentado pelo Deputadopor Minas Gerais, Antônio GonçalvesGomide, que continha privilégiosfamiliares para aqueles que, num atode benemerência, fizessem o aportede recursos ao Fundo criado com oobjetivo de se implantar e desenvolveras duas universidades, uma em SãoPaulo e outra em Olinda. Nesse proje-to, previa-se que quem fizesse “dona-tivo de um conto de réis teria paraseus filhos o privilégio de matrículas

gratuitas em todas as universidades eacademias do império”; quem doassequatro contos de réis receberia ainsígnia de cavaleiro na ordem do cru-zeiro, matrícula gratuita até os netospor varonia e teria “seu retrato postopara sempre nas salas acadêmicas dasuniversidades do império como seunome, e por baixo a legenda: Gratumest, quod Patriae civem, populo quededisti.” Os privilégios eram crescentesaté os oitenta contos de réis, que dariainclusive o título de Barão do Império(Melchior, 1981, p. 31-32). Entretanto,estas normas não chegaram a serimplantadas.

Um emaranhado de pequenas fon-tes de recursos financeiros se instala:doações, loterias, multas aplicadas aescolas particulares, compra de apóli-ces, cujos juros manteriam as ativida-des escolares, taxas cobradas dos alu-nos etc., sempre à procura de fontesalternativas aos tributos cobrados re-gularmente da população.

Surgiu, no bojo desse movimento,entretanto, a defesa da vinculação deimpostos às atividades educacionais.No ano de 1882, apareceram muitasidéias para a definição de fundos espe-cíficos para o financiamento da educa-ção, destacando-se a de Ruy Barbosaque apresentou detalhadamente umaproposta de se constituir um fundocom essa finalidade (Melchior, 1981).Essa idéia apresentada por Ruy Bar-bosa também não foi implantada. Ne-nhuma proposta de vinculação conse-guiu sucesso durante o Império e esseperíodo da história do financiamentoda educação no Brasil terminou semque uma solução fosse dada para esseimportante tema da vida da Nação.

Anísio Teixeira mostra a sua indig-nação com a inércia do Imperador D.Pedro II, que resistiu à criação da Uni-versidade no Brasil e com a Repúblicaque também resiste, no início, à cria-ção da primeira universidade brasileira

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Financiamento da Educação

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(Teixeira, 1968, p. 4):De sorte que não foi apenas, a meu

ver, a consciência conservadora que se

opôs à universidade; parece ter havido

da parte dos governos brasileiros um

particular e constante propósito de re-

sistir a certos desenvolvimentos pura-

mente ornamentais de educação. Te-

nho refletido longamente sôbre isto.

Sempre estranhei êsse comportamento

do govêrno brasileiro, desde o tempo

do Império. Vejam bem, um Imperador

como Pedro II, um homem razoavel-

mente culto e até altamente inclinado

para as coisas intelectuais, não abriu

uma só escola superior no Brasil; resis-

tiu à idéia da universidade até sua últi-

ma fala no trono, quando afinal reco-

nheceu, por certo que relutantemente,

que seria conveniente uma universida-

de para o Norte e outra para o Sul do

Brasil. Nem por isso se criou qualquer

universidade. A República continuou a

tradição de resistência.

Proclama-se a república, em 1889,e o País possui um pequeno sistemade ensino superior. De 1808 a 1890,eram somente “14 instituições” (Tei-xeira, 1961, p. 3).

A república e, finalmente, a primeira “universidade brasileira”

Surgiram, enfim, no País, as institui-ções de ensino superior que recebe-ram o nome de universidade, “sendo ado Rio de Janeiro (1920) e a de MinasGerais (1927) as que vingaram” (Cu-nha, 1986, p. 147). Em 1920, pelo me-nos formalmente e oficialmente, peloDecreto Nº 14.343, de 7 de setembro,cria-se a Universidade do Rio de Ja-neiro, pela reunião de quatro institui-ções de ensino superior já existentes:Faculdade de Medicina, Escola Politéc-nica e a Faculdade de Direito que re-sultou da fusão de duas Faculdades Li-vres (Mendonça, 2000, p. 136).

Essa forma de criação gerou, naépoca, um ambiente de contundentes

críticas aos governantes que, entretan-to, continuaram a defender o modeloda Universidade do Rio de Janeiro paraoutros Estados como Pernambuco, Ba-hia, São Paulo, Minas Gerais e RioGrande do Sul. Essas novas instituiçõesuniversitárias deveriam possuir “umpatrimônio em edifícios e instalaçõespara as faculdades não inferior a 3 milcontos de réis. Tal criação dependeriaainda de acordo com o Governo dosEstados, a fim de que estes concorres-sem com patrimônio em títulos dadívida pública, cuja renda, destinadaao custeio das diferentes faculdades,dispensasse a subvenção da União pa-ra os estabelecimentos” (Fávero, 2000,p. 33). Nota-se, aqui, claramente aintenção da União de descentralizar o

ensino Universitário para os Estados enão ser mais o responsável pelo finan-ciamento das instituições de ensinosuperior.

A vinculação constitucional de impostos para a educação:1934 a 1988

A procura por fontes de recursosfinanceiros para manter a educaçãolevou ao surgimento de diversas pro-postas de impostos especiais e de vin-culação daqueles já existentes. Entre-tanto, somente no ano de 1934, o me-canismo de vinculação de impostospara o financiamento da educaçãoganhou o status constitucional, tornan-do-se obrigatório para a União, Esta-

dos, Distrito Federal e Municípios. Oartigo 156 da Constituição da Repú-blica dos Estados Unidos do Brasil, de16 de julho de 1934, estabelecia que aUnião e os Municípios deveriam apli-car, pelo menos, 10% de sua renda detributos, e os Estados e o Distrito Fede-ral, nunca menos de 20% “da rendaresultante de impostos na manuten-ção e no desenvolvimento dos siste-mas educativos” (Melchior, 1981, p.40). Entretanto, essa vinculação foi re-tirada da Constituição de 10 de no-vembro de 1937, por força da ditaduraVargas, retornando na Constituição de1946, com outros percentuais míni-mos: 10% para a União e 30% para osEstados e Municípios.

A Constituição de 1946 estabelecia“que a educação é direito de todos;que o ensino primário é obrigatório;que o ensino primário oficial é gratuitopara todos e o ensino ulterior ao pri-mário sê-lo-á para quantos provaremfalta ou insuficiência de recursos”(Teixeira, 1968, p. 51). A Constituição,ao estabelecer percentuais mínimosda receita de impostos a serem aplica-dos em educação - 10% para a Uniãoe 20% para os Estados e Municípios -“teve em vista prover para que não fal-tassem recursos destinados ao cumpri-mento da obrigação do Estado...”(idem, 1968, p. 51).

A Constituição de 1946 estabele-ceu que o País deveria ter uma Lei deDiretrizes e Bases da Educação Na-cional (LDB), que a complementasse.Esta LDB só foi aprovada em 1961 eefetivou uma alteração nos percen-tuais, ampliando a responsabilidadeda União de 10% para 12% e manten-do 20% para os Estados e Distrito Fe-deral.

Novamente, em 1967, sob a dita-dura dos militares, uma nova mudan-ça constitucional voltou a suprimir avinculação de impostos à educação,num movimento, agora, cíclico de

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 105UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Ao analisar todo esse caminho

da vinculação de impostos

para a educação, ressalta-se

ter sido nos períodos de

fechamento político que tal

princípio foi suprimido no

Brasil, depois de instalado

em 1934.

Financiamento da Educação

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comprometimento com o desenvolvi-mento da educação brasileira.

A Emenda nº 01 (de 1969) à Cons-tituição restabeleceu-a no que se refe-re aos Municípios; segundo estaEmenda, os Estados poderiam “intervirnos Municípios, quando estes deixa-rem de aplicar ‘no ensino primário, emcada ano, vinte por cento, pelo menos,da receita tributária municipal’” (Mel-chior, 1981, p. 42). Dois fatos chamama atenção: a vinculação contida nestaversão não atinge o ensino superior,sendo restritiva ao ensino primário e opercentual é sobre a receita tributária,que envolve todos os impostos, taxas econtribuições, e não sobre somente areceita de impostos. Houve, portanto,uma pressão maior sobre os municí-pios para que eles aplicassem maisrecursos em educação primária. Assim,a União poderia diminuir os recursospor ela aplicados. Os dados existentesparecem mostrar que isso realmenteocorreu. Comparando os períodos detempo em que houve a vinculação,com aqueles em que esse fato nãoocorreu, Melchior mostra que a Uniãodecresceu os percentuais da receita deimpostos aplicados em educação, apartir de 1967. Em 1967, eram 11,8%e, em 1970, eram 7,3% (Melchior,1981, p. 44).

Nova vinculação constitucional sóvoltou a ocorrer em 1983,quando foi aprovada, peloCongresso Nacional, a chama-da Emenda Calmon, de auto-ria do Senador João Calmon,após uma longa luta travadapelo parlamentar e os gover-nos do período da ditaduramilitar. A Emenda Constitu-cional 24/83, de 01 de de-zembro de 1983, estabeleceua vinculação de, no mínimo,13% e 25% da receita de im-postos, respectivamente, daUnião e dos Estados e Mu-

nicípios (Calmon, 1995, p. 10).Finalmente, a vinculação volta a fa-

zer parte do texto constitucional, quan-do da aprovação da Constituição Brasi-leira de 1988, que a estabeleceu, emseu artigo 212.

Ao analisar todo esse caminho davinculação de impostos para a educa-ção, ressalta-se ter sido nos períodosde fechamento político que tal princí-pio foi suprimido no Brasil, depois deinstalado em 1934. O fato ocorreu em1937, com a ditadura do Estado Novo,que terminou em 29 de outubro de1945, com a deposição do PresidenteVargas; e em 1967, em meio à ditadu-ra dos militares, que perdurou de 31de março de 1964 até a posse do Pre-sidente José Sarney, em 1985. A dis-cussão sobre a continuidade da vincu-lação constitucional de recursos finan-ceiros é um dos temas polêmicos atu-ais sobre o financiamento da educaçãobrasileira. Romualdo Portela de Oliveiraconsidera que a vinculação deve sermantida e que os períodos ditatoriais,por si só, a justificam (1998, p. 126):

É claro que não podemos desconsi-

derar a hipótese de que, em tempos de

vinculação, nossos governantes apren-

dam a “prestar contas” de acordo com

as normas, sem alterar substantiva-

mente as aplicações de recursos. Nesse

caso, deveríamos aperfeiçoar os meca-

nismos de controle da sociedade sobre

a aplicação dos recursos públicos (...)

em vez de suprimir o mecanismo de

vinculação. (Grifos nossos).

Na verdade, o que ocorreu nos pe-ríodos ditatoriais da história brasileirafoi a retirada da prioridade dada à apli-cação de recursos do Fundo Público,na educação brasileira.

Considerações finais: uma polêmica que não terminou

A Constituição Federal de 1988 es-tabeleceu, em seu artigo 212, os recur-sos mínimos das esferas federal, esta-duais e municipais para o financia-mento da educação brasileira: “A Uni-ão aplicará, anualmente, nunca menosde dezoito, e os Estados, o Distrito Fe-deral e os Municípios vinte e cinco porcento, no mínimo, da receita resultan-te de impostos, compreendida a pro-veniente da transferência, na manu-tenção e desenvolvimento do ensino”(Grifos nossos).

O legislador pretendeu, com essavinculação, colocar a peso da Consti-tuição sobre os “ombros” dos pode-res Executivo e Legislativo, na defini-ção das prioridades, ao serem pro-gramados os gastos do Fundo Pú-blico brasileiro; no mínimo, os recur-sos previstos no artigo 212 deveriamser dirigidos para a execução de

106 - DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Tabela 01 - Arrecadação de impostos do FPF (1989-2001)Valores em R$ milhões, a preços de janeiro de 2002 (IGP-DI/FGV)

Ano II IE IPI IR IOF ITR TOTAL

1989 4,662 129 25,377 51,218 1,728 1,728 84,842

1990 4,208 93 26,237 47,907 14,511 35 92,992

1991 4,647 30 23,966 37,605 6,583 211 73,042

1992 2,697 3 14,271 23,135 3,991 30 44,128

1993 4,322 0 26,364 41,599 8,644 2 80,932

1994 7,289 6 31,868 57,707 11,218 4 108,092

1995 8,967 33 24,895 52,892 5,885 192 92,863

1996 6,937 3 25,494 55,374 4,692 431 92,930

1997 7,825 5 25,636 55,625 5,764 318 95,174

1998 9,593 1 23,904 67,169 5,191 328 106,188

1999 10,425 - 21,732 67,843 6,423 360 106,782

2000 9,850 - 21,806 61,808 3,620 309 97,394

2001 9,531 - 20,406 68,078 3,760 239 102,015

Fonte:Arrecadação da Receita Administrada pela SRF – Período: 1985 a 1999, janeiro a dezembro de 2000 e 2001; http://www.receita.fazenda.gov.br/Arrecadacao/1988/dez/anual85a99.htm,07/03/2001. E http://www.receita. fazenda.gov.br/scripts/srf,07/03/2001 e 06/02/2002.

Financiamento da Educação

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ações no campo educacional.O volume mínimo de recursos do

Fundo Público Federal (FPF) que deve-ria ser aplicado na manutenção e de-senvolvimento do ensino, conformeestabelece a Constituição, considera aarrecadação dos seguintes impostos:(1) Imposto sobre a Importação (II);(2) Imposto sobre a Exportação (IE);(3) Imposto sobre Produtos Industriali-zados (IPI); (4) Imposto sobre a Renda(IR); (5) Imposto sobre Operações Fi-nanceiras (IOF); e (6) Imposto Territo-rial Rural (ITR). A arrecadação des-ses impostos, de 1989 a 2001,atingiu os valores da Tabela 01:

Como percentuais do PIB, as ar-recadações foram as da Tabela 02:

O Gráfico 01 auxilia na análisedo comportamento da arrecada-ção desses impostos, nos gover-nos Sarney, Collor, Itamar e FHC:

Nota-se, em 1990, primeiro

ano do governo Collor, um aumentona arrecadação de impostos do FPF,como percentual do PIB. Entretanto,com o aparecimento das denúncias decorrupção no governo, inicia-se umaqueda vertiginosa nesse percentual,que atinge seu menor valor no perío-do, em 1992, exatamente o ano doimpeachment do Presidente. O Pre-sidente Itamar Franco assume o gover-no e há uma recuperação no percen-tual relativo ao PIB, que atinge o máxi-mo em 1994. Em 1995, assume o

Presidente Fernando HenriqueCardoso, e há uma pequenaqueda no percentual; estabiliza-se em 1996 e 1997, volta asubir em 1998, cai em 2000 ese eleva novamente em 2001.

Uma estimativa do volumede recursos a ser aplicado emeducação, pela União, exigeque sejam retirados da arreca-dação diversos valores, devidoà divisão das receitas tributáriasentre Estados, Distrito Federal eMunicípios, estabelecida peloartigo 157, da Constituição.

Após as devidas transferências aos Es-tados, Distrito Federal e Municípios,são calculados os 18% previstos no ar-tigo 212, da Constituição. A Tabela 03apresenta o cálculo para o ano de1998, baseado em planilha da Se-cretaria de Orçamento Federal (SOF)do Ministério do Planejamento e Or-çamento (MPO):

Portanto, o valor que deveria seraplicado pela União, em 1998, na ma-nutenção e no desenvolvimento doensino, atingiria o montante de R$10.718 milhões, utilizando recursosoriginários dos impostos, constantesdo Fundo Público Federal.

Devido à complexidade da legisla-ção tributária, ilustrada para o ano de1998, e como estamos interessadosaqui numa estimativa dos valores mí-nimos que deveriam ser gastos comeducação pelo Governo Federal, utili-zaremos um modelo simplificado quetransfere 47% do IR, 57% do IPI e 50%

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 107UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Tabela 02 - Arrecadação de impostos do FPF, como percentuais do PIB (1989-2001)

Ano II IE IPI IR IOF ITR % do PIB

1989 0.43 0.01 2.32 4.69 0.16 0.16 7.77

1990 0.38 0.01 2.40 4.38 1.33 0.00 8.51

1991 0.42 0.00 2.16 3.38 0.59 0.02 6.57

1992 0.25 0.00 1.32 2.14 0.37 0.00 4.08

1993 0.40 0.00 2.44 3.85 0.80 0.00 7.49

1994 0.68 0.00 2.98 5.40 1.05 0.00 10.12

1995 0.76 0.00 2.11 4.48 0.50 0.02 7.87

1996 0.54 0.00 1.99 4.33 0.37 0.03 7.26

1997 0.59 0.00 1.93 4.19 0.43 0.02 7.18

1998 0.72 0.00 1.78 5.01 0.39 0.02 7.92

1999 0.82 - 1.71 5.34 0.51 0.03 8.41

2000 0.78 - 1.73 4.91 0.29 0.02 7.74

2001 0.77 - 1.64 5.48 0.30 0.02 8.21

Fonte:Arrecadação da Receita Administrada pela SRF – Período: 1985 a 1999, janeiro a dezembro de 2000 e 2001; http://www.receita.fazenda.gov.br/Arrecadacao/1988/dez/anual85a99.htm,07/03/2001. E http://www.receita. fazenda.gov.br/scripts/srf,07/03/2001 e 06/02/2002.

Gráfico 01 - Total da arrecadação de impostos do FPF, como percentuais do PIB (1989-2001)

1989: Gov. Sarney; 1990-1992: Gov. Collor; 1993-1994: Gov. Itamar; 1995-2001: Gov. FHC

0.00

2.00

4.00

6.00

8.00

10.00

12.00

1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001

Tabela 03 - Recursos que a União deveria aplicar em educação - 1998.Valores em R$ milhões, a preços de janeiro de 2002 (IGP-DI/FGV)

Imposto Principal Fundo IR IPI IOF - ITR Base de Recursos Municipal 47% 57% Ouro 50% Cálculo para a

1.88% 100% para a EducaçãoEducação 18%

II 9,593 0 0 0 0 0 9,593 1,727IE 1 0 0 0 0 0 1 0IR 67,169 1,259 31,569 0 0 0 34,340 6,181IPI 23,904 0 0 13,625 0 0 10,279 1,850IOF 5,191 0 0 0 24 0 5,167 930ITR 328 0 0 0 0 164 164 30TOTAL 106,186 1,259 31,569 13,625 24 164 59,545 10,718

Fonte:Cálculo deste estudo, baseado em planilha da Secretaria de Orçamento Federal

-SOF/MPO - 1998.

Financiamento da Educação

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do ITR para Estados, Distrito Federal eMunicípios. Os valores totais estima-dos, correspondentes aos 18% daeducação, seriam, portanto, os da Ta-bela 04:

Como era de se esperar, os valoreshistóricos apresentam o mesmo perfilda arrecadação de impostos: cresci-mento em 1990, queda vertiginosa em1992, crescimento até 1994, quedaem 1995, estabilidade em 1996 e1997, aumento em 1998, queda em2000 e elevação em 2001.

Entretanto, em 1994, a vinculaçãoestabelecida na Constituição foi altera-da, diminuindo-se a obrigatoriedadede serem gastos, no mínimo, esses va-lores. Os recursos do FPF, obrigatoria-mente vinculados à educação, sofre-ram uma redução, com a aprovação,pelo Congresso Nacional, da EmendaConstitucional de Revisão nº 1/94, quecriou o Fundo Social de Emergência(FSE) que se tornou, posteriormente,em Fundo de Estabilização Fiscal (FEF)e, no ano de 2000, transfor-mou-se em Desvinculação deArrecadação de Impostos eContribuições Sociais da Uniãoou Desvinculação das Receitasda União (DRU). José Mar-celino Rezende Pinto, em “Osrecursos para educação noBrasil no contexto das finanças

públicas”, afirma sobre o Fundo Socialde Emergência: “...logo perdeu o adjeti-vo ‘social’ e o que era emergencial tor-nou-se crônico, de tal forma que setransformou na outra grande muletade que se vale o governo federal paratentar tapar seus buracos orçamentá-rios” (Pinto, 2000, p. 35).

Esses fundos são compostos de re-cursos oriundos dos impostos, dascontribuições e de outras receitas pre-vistas em lei específica. Como os recur-sos da educação estão vinculados aosimpostos, trataremos exclusivamenteda arrecadação destes e de sua vincu-lação ao fundo.

O FEF era composto de 20% dosrecursos do Imposto sobre Importa-ção, 8,6% do Imposto sobre ProdutosIndustrializados, 24,48% do Impostosobre a Renda, 100% do Imposto deRenda dos servidores públicos fede-rais, retido na fonte, 20% sobre o Im-posto sobre a Propriedade TerritorialRural vinculado à União, 20% sobre o

Imposto sobre Operações Financeirase 20% sobre o Imposto sobre a Expor-tação (MF, 1999, p. 45).

Em 1998, o FEF recebeu R$ 16.044milhões e, em 1999, R$ 18.538 mi-lhões, originados dos impostos. De-vemos registrar que o montante de re-cursos do Fundo, em 1998, foi de R$35.369 milhões e, em 1999, de R$31.080 milhões, quando adicionadosos percentuais provenientes das diver-sas contribuições, como as do Finan-ciamento da Seguridade Social (CO-FINS), do Plano de Seguridade Socialdo Servidor (CPSS), dos ProgramasPIS/PASEP, da Contribuição Provisóriasobre Movimentação Financeira (CPMF)etc. (MF, 1998; 1999).

As transferências de impostos a Es-tados e Municípios efetivadas pelo Go-verno Federal devem ser retiradas dovolume total de arrecadação de im-postos antes de se obter o percentualmínimo dos 18% para a educação.Além dessas transferências, depois daaprovação do FEF, devem ser, também,retirados os recursos transferidos a es-te Fundo. Obtém-se, então, os recursosfederais para a educação. A Tabela 05mostra o volume de recursos mínimospara a educação, caso não existisse oFEF; a Tabela 06 os mostra na existên-cia do FEF, num cálculo realizado pelaSecretaria do Tesouro Nacional:

A introdução do FEF significou, por-tanto, uma diminuição drástica nos re-cursos vinculados para a educação, deR$ 4.196 milhões, em 1998, e de R$4.395 milhões em 1999, ou seja, redu-ção de 41% no volume obrigatório de

108 - DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Tabela 05 - Recursos da educação, se não existisse o FEFValores em R$ milhões, a preços de janeiro de 2002 (IGP-DI/FGV)

Discriminação 1998 1999

Receita Arrecadada de Impostos (1) 97,808 97,114Transferências a Estados, DF e Municípios 40,249 38,649Receita Líquida de Impostos (Base de Cálculo) 57,558 58,465Percentual Mínimo para a Educação - 18% 10,360 10,524

Fonte: (MF, 1998, p.53): SIAFI - CCONT/Secretaria do Tesouro Nacional.

(1) A Receita Arrecadada de Impostos é a Receita Líquida, ou seja, a arrecadada menos

os incentivos fiscais e as restituições.

Tabela 04 - Estimativa dos recursos dos impostos do FPF que a União deveria aplicar em educação (1989-2001) Valores em R$ milhões, a preços de janeiro de 2002 (IGP-DI/FGV)

Ano Estimativa do valor que a União deveria aplicar em educação

1989 8,335 1990 9,994 1991 7,469 1992 4,516 1993 8,343 1994 11,304 1995 9,652 1996 9,350 1997 9,738

1998 10,920 1999 11,187 2000 10,009

2001 10,466

Fonte: Cálculos deste estudo.

Financiamento da Educação

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recursos para a educação, em 1998, ede 42% de redução, em 1999. Comessa redução na obrigatoriedade domínimo, somente o pagamento depessoal e encargos sociais das IFES jáatinge o limite mínimo de gastos doFPF com educação.

O Fundo Social de Emergência(FSE), depois Fundo de EstabilizaçãoFiscal e, depois, Desvinculação das Re-ceitas da União (DRU), estiveram dire-tamente relacionados ao controle dodéficit fiscal do País. O Ministério daFazenda, em documento que discute oFEF, afirma (MF, 2000):

Como se sabe, o controle sobre o

déficit fiscal é decisivo para a consoli-

dação do programa de estabilização.

Enquanto as reformas constitucionais

que tramitam no Congresso não produ-

zirem seus efeitos no fluxo de despe-

sas, o governo estará obrigado a recor-

rer a instrumentos provisórios para per-

mitir o adequado gerenciamento da

situação fiscal. (Grifos nossos).

O controle do déficit fiscal é um im-portante componente econômico paraa manutenção do pagamento, em dia,da dívida externa e, por isso, o País foi“premiado”:

Em 1998, todos os compromissos refe-

rentes à dívida externa mobiliária e contra-

tual da União foram realizados pontual-

mente. Cabe destacar o pagamento dos

compromissos junto ao Banco Mundial,

que premia os devedores que cumprem

suas obrigações pontualmente, ou no má-

ximo com 30 dias de atraso, com uma re-

dução na taxa de juros. Por ter mantido to-

dos os seus compromissos com aquela en-

tidade pontualmente, a União obteve uma

economia de aproximadamente US$ 18,56

milhões [0,1% do total pago de R$ 19.500

milhões] no período de julho de 1997 a se-

tembro de 1998. Ainda no que se refere à

dívida contratual, os compromissos da fase

3-A do Clube de Paris tiveram sua amorti-

zação final, o que acarretou uma diminui-

ção do saldo devedor total junto aos credo-

res do Clube de Paris. ( BGU, 1999, p. B-77,

grifos e acréscimos nossos).

Portanto, para manter em dia oscompromissos com o pagamento dadívida externa o governo federal deixade cumprir obrigações com a Consti-tuição Brasileira e com a população doPaís; a vinculação de impostos do Fun-do Público Federal para a educaçãotem uma história cheia de percalços,desde que começou a fazer parte dostextos constitucionais, em 1934, geran-do uma polêmica que ainda não ter-minou.

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*Nelson Cardoso Amaral é doutor em Edu-cação pela UNIMEP, professor na Univer-sidade Federal de Goiás.

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 109UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Tabela 06 - Recursos da educação, com a existência do FEFValores em R$ milhões, a preços de janeiro de 2002 (IGP-DI/FGV)

Discriminação 1998 1999

Receita Arrecadada de Impostos (1) 97,808 97,114Transferências a Estados, DF e Municípios 40,249 38,649

Transferências para o FEF 23,520 24,413Receita Líquida de Impostos (Base de Cálculo) 34,251 34,052Percentual Mínimo para a Educação - 18% 6,164 6,129

Fonte: (MF, 1998, p.54): SIAFI - CCONT/Secretaria do Tesouro Nacional.

(1) A Receita Arrecadada de Impostos é a Receita Líquida, ou seja, a arrecadada menos

os incentivos fiscais e as restituições.

Financiamento da Educação

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Este texto tem como objetivo ana-lisar a política de avaliação institucio-nal, elaborada pelo Ministério daEducação (MEC), a partir de um proje-to de Universidade e as construçõesfeitas pelos movimentos sociais e sin-dicais em relação aos dois eixos: mo-delo de universidade e política de ava-liação. Para tanto, a tese apresentada éa de que existem projetos diferencia-dos, o oficial e o dos movimentos so-ciais, que têm travado um embate emdiferentes instâncias, sendo que a cor-relação de forças têm sido favorável aoprojeto do governo, havendo, entre-tanto uma tenacidade dos movimen-

tos que continuam reafirmando aspropostas democraticamente construí-das e lutando para a aprovação eimplementação das mesmas.

Avaliar implica a existência de umparâmetro como referência, a partir doqual, os objetos, sujeitos, instituições,ações avaliados deverão se referenciar,isto é, aproximar-se, estabelecendo-secom isso uma classificação que vai daaproximação do padrão até o maiordistanciamento do mesmo. Nestacompreensão, a avaliação não é neu-tra, nem destituída de valor. No casoda avaliação institucional, objeto destetexto, a mesma está vinculada a umapolítica de educação, que define umapolítica para o ensino superior que criaum modelo de universidade ou deoutras instituições referentes a essenível de ensino. Portanto, a avaliaçãoimplementada traduz a concepção deuniversidade dos decisores responsá-veis pela definição das estratégias eações existentes sobre o assunto.

Dentro desta ótica de compreen-são, a avaliação do ensino superiorserá abordada através de uma análisecomparativa entre o modelo de uni-

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A avaliação institucional: uma política parao ensino superior

Olgaíses Cabral Maués*

As políticas educacionais implantadas ao longo da década de 1990, no Brasil ena maior parte dos outros países da América Latina, traduzidas em diferentesreformas em todos os níveis de ensino, trouxeram a marca da regulação e docontrole, numa perspectiva de ajuste às medidas econômicas impostas pelosorganimos internacionais aos países em desenvolvimento, buscando contribuirpara a consecução da reforma do Estado. Aliás, as políticas educacionais nãosão determinadas pelas mudanças no papel do Estado, mas são partes consti-tutivas dessas mudanças, dando visibilidade e materialidade às mesmas e aopróprio Estado.(Peroni, 2000). Desta forma, as políticas para o ensino superior,incluindo diferentes aspectos inclusive o da avaliação, parecem estar dentrodessa intencionalidade, ou seja, de contribuir para o novo papel e funções doEstado, papel esse que deve corresponder às demandas do capital internacio-nal, a partir da lógica do mercado.

Financiamento da Educação

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versidade/avaliação propostos pelaoficialidade, através do MEC/INEP, edo modelo defendido pelos movimen-tos sociais e sindicais, com ênfase nomovimento docente.

O modelo de Universidade do governo

As políticas para a educação brasi-leira, na década de 1990, podem seridentificadas, de forma mais ampla,por duas leis que traduzem os valorese as crenças daqueles que as construi-ram e aprovaram-nas. Os documentos

referidos são a Lei de Diretrizes e Ba-ses da Educação Nacional, n° 9394/96,e a Lei 10172/01 que aprovou o PlanoNacional de Educação. As legislaçõescitadas e outras mais específicas parao ensino superior, (Lei 9131/95, Lei9192/95, Decreto 3860/2001), têm si-do elaboradas e aprovadas sob a égidedos organismos internacionais. A his-tória desses organismos, tais comoBanco Mundial, UNESCO, Programa dePromoção das Reformas na AméricaLatina e Caribe (PREAL), Banco Intera-mericano de Desenvolvimento (BID),

junto aos países em desenvolvimento,tem sido de assessoria na elaboraçãodas políticas públicas, apontando asações que, segundo a ótica das agên-cias financeiras (BM e BID), seriamaquelas que poderiam obter um em-préstimo para sua implantação. Os go-vernos dos países alvos têm aceito aajuda técnica e financeira internacio-nais, elaborando uma política de acor-do com os padrões determinados e,no caso específico do objeto deste tex-to, criando o projeto de ensino supe-rior que esteja de acordo com os prin-cípios defendidos por essas organiza-ções e elaborando uma política deavaliação que passa a ser fundamentalpara a concretização do modelo de-fendido.

O documento do Banco Mundial“La enseñanza superior. Las leccionesderivadas de la experiencia”, datado de1995, mas ainda atual, é pródigo nasdeterminações e configurações que fazpara o ensino superior1. É neste docu-mento que ficam bem explicitadas aconcepção de educação superior e asrespectivas estratégias que são pro-postas por esse organismo. O docu-mento expressa uma preocupaçãocom a necessidade de serem realiza-das reformas para melhorar os resulta-dos do ensino superior, sem as quaismuitos países estariam destinados aentrar o século XXI com uma prepara-ção insuficiente para competir na eco-nomia mundial (BM, 1995, p.28). Co-mo forma de evitar que tal ocorra epara impulsionar os países a atingiremmetas de maior eficiência, qualidade eeqüidade, sem aumentar o gasto pú-blico, o BM aponta quatro orientaçõeschaves : 1. fomentar maior diferencia-ção das instituições, incluindo as insti-tuições privadas; 2. proporcionar in-centivos para que as intituições públi-cas diversifiquem as fontes de finan-ciamento, entre elas a participação dosestudantes nos gastos, e a estreita vin-

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As políticas para a educação brasileira, na década de 1990,

podem ser identificadas, de forma mais ampla,

por duas leis que traduzem os valores e as crenças

daqueles que as construiram e aprovaram-nas.

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culação entre o financiamento fiscal eos resultados; 3. redefinir a função dogoverno no ensino superior; 4. adotarpolíticas destinadas a dar prioridadeaos objetivos de qualidade e eqüidade(Op.cit.p.29).

Parece que essas orientações têmtido uma boa acolhida, em termos bra-sileiros, e estão presentes nas políticaselaboradas e nas estratégias de açãopara a área. Por exemplo, a diferencia-ção das instituições é hoje uma reali-dade (Decreto 3860/01), estando oensino superior brasileiro hierarquiza-do em Universidades (únicas respon-sáveis pela indissociabilidade entre en-sino, pesquisa e extensão), CentrosUniversitários (autônomos como osanteriores, mas sem pesquisa), Facul-dades e Institutos de Ensino. As razõesutilizadas para essa diferenciação es-tão postas de maneiras cristalina: “Omodelo tradicional de universidadeeuropéia de investigação, com seusprogramas em um só nível, tem de-monstrado ser caro e pouco apropria-do para satisfazer as múltiplas deman-das do desenvolvimento econômico esocial, assim como as necessidades deaprendizagem de um alunado diversi-ficado” (Op.cit. p.31).

A diversificação de financiamentotambém está presente nas políticaspara o ensino superior, elaboradas pe-los órgãos oficiais. A diminuição dosrecursos públicos para o ensino supe-rior tem sido significativa, forçando asUniversidades buscarem outras fontesde recursos, tais como a cobrança demensalidades em cursos de especiali-zação, a venda de serviços de toda or-dem, o fechamento de residências uni-

versitárias destinadas aos estudantes erestaurantes universitários, ou a dimi-nuição do subsídio a essas ações. Arecomendação do BM é a obtenção deuma parte do financiamento necessá-rio para o funcionamento da Universi-dade, via estudantes, o que significapagamento de mensalidades, além dacobrança por outros serviços. No to-cante a função do governo, há uma re-comendação explícita de que hajauma redefinição da mesma, passandoa iniciativa privada a ter uma maiorparticipação.

A justificativa é que a função tradi-cional do Estado, em relação ao ensi-no superior, está vinculada a questõespolíticas e econômicas, tais como sis-temas elitistas, emprego garantido nosetor público e economias estáveis, sa-lientando o documento em tela queessas condições sofreram uma mu-dança radical, implicando uma expan-são considerável do setor privado (BM,1995, p.61).Com isso, as funções doEstado devem mudar, deixando de serde suporte financeiro para serem decontrole e fiscalização, o que vai impli-car a necessidade de um sistema deavaliação capaz de supervisionar aqualidade dos resultados do ensino eda pesquisa (Op. cit. p.78). O BM apre-senta, no documento em questão, suaconcepção de qualidade e eqüidade,referindo-se que estas estão vincula-das a uma maior adaptabilidade àsdemandas do mercado. Para tanto, háuma clara necessidade do governo fis-calizar para credenciar as instituiçõesque, segundo sua avaliação, demons-trem melhor qualidade.

Um outro documento que tem

contribuído para o modelo de ensinosuperior instituído é o “Educação Su-perior na América Latina e no Caribe.Documento de Estratégia”, elaboradoem 1998, pelo Banco Interamericanode Desenvolvimento (BID). As análisese propostas apresentadas não diver-gem, na concepção, daquelas apresen-tadas pelo BM. Assim é que o docu-mento explicita que “rejeita a posiçãosegundo a qual a educação superior sópode desempenhar bem o seu papelse puder crescer e fortalecer-se susten-tada por recursos públicos generosos”(BID, 1998, p. 2). Esta afirmativa apon-ta para a diversificação de recursos jácomentada anteriormente.

A privatização do ensino superior ébem evidenciada no documento e ocrescimento do setor das particulares écitado como “um exemplo digno denota” (Op. cit. p.05) e o desempenho,por vezes, fraco, das mesmas tambémé justificado “... a alegação de que asinstituições particulares tendem a seracademicamente fracas, de uma formapor vezes escandalosa, é o fato de queo mesmo também aplica ao setor pú-blico” (p.08) e a preocupação comreformas do ensino superior voltadaspara o mercado é apontada como fun-damental.

O BID cria uma tipologia para fazero que o BM chamou de diferenciaçãodas instituições, justificando que amesma está voltada em grande partepara a contribuição econômica daeducação, devendo dar ênfase ao ensi-no e à aprendizagem. A tipologia clas-sifica as instituições de acordo comsuas funções, sendo elas: 1. a lideran-ça acadêmica; 2. a educação profissio-nal; 3. a formação técnica e 4. o ensi-no superior geral. O BID chama deliderança acadêmica a “uma função deelite (...) que se aplica com precisão anão mais do que 3% das mais de3000 instituições de ensino superiordos Estados Unidos” (Op. cit. p. 12). O

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O BID cria uma tipologia para fazer o que o BM

chamou de diferenciação das instituições, justificando

que a mesma está voltada em grande parte para

a contribuição econômica da educação.

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modelo é, pois, dos centros de exce-lência, o que o Brasil tem propostocom a diferenciação adotada, procu-rando, através de sistemas de avalia-ção, classificar as “melhores” institui-ções, carreando para as mesmas maisrecursos e prestígio.

A segunda instituição, na tipologiado BID, é a educação profissional, cujaprincipal razão de ser é a preparaçãodireta para o trabalho, devendo esteser o padrão para a avaliação de quali-dade (Op. cit. p.13). O documento cha-ma a atenção para o fato que a educa-ção profissional inclui a pesquisa apli-cada em algumas das instituições eenfatiza que o mercado é que devedefinir a competência, não devendoceder às pressões dos estudantes quequerem ter diploma de curso superior.A educação técnica é a terceira tipolo-gia elaborada pelo BID e sua função édesenvolver aptidões específicas parao mercado de trabalho imediato, paratanto deve ensinar os aspectos especí-ficos de uma ocupação e dar menosênfase a disciplinas de caráter geral(Op.cit.15). A diferença desta em rela-ção à segunda tipologia é que estaexige menos qualificações, mas asduas se assemelham no que diz res-peito às medidas de desempenho, àadministração e aos mecanismos definanciamento, que são todos orienta-dos diretamente pelo mercado.

A tipologia de número 4 é a educa-ção superior geral (o ensino quase-profissional), que, para o Banco, “re-sulta menos de uma política do que deum acidente, impelido por mal-enten-didos e por sonhos e devaneios”(Op.cit. p.16). Este tipo de instituição écriticado por produzir um descompas-so entre o ensino e a percepção domercado, o que é considerado peloBID como uma disfunção, produzindoum desempenho medíocre, incapaci-dade para conseguir emprego, masque, de qualquer forma, oferece um

certo valor agregado, menor, é verda-de, do que poderia oferecer pelo in-vestimento feito.

A partir dessa compreensão dasfunções das instituições de ensino su-perior, o BID define os aspectos nor-mativos essenciais para o bom desem-penho do ensino superior. São eles: 1.eqüidade e subsídios; 2. incentivos, fi-nanciamento e gestão; 3. melhoria econtrole de qualidade. Em relação aoitem 1, diversificação de recursos (co-mo no BM), há uma recomendaçãoexplícita de que “[...] ao invés de edu-cação gratuita, o governo promova ocrédito educativo, concedido em mo-dalidades que estimulem o desempe-nho satisfatório dos alunos e a concor-rência entre instituições” (BID, 1998,p.21). Além do crédito educativo, outraforma de diversificar o financiamento éa cobrança de anuidadades. Na óticado BID, apenas as instituições que têma função de liderança acadêmica, oscentros de excelência, devem ter finan-ciamento público, as demais institui-

ções devem se autofinanciar a partirde anuidades, contratos, doações.

Em relação ao segundo aspectonormativo, finanças e gestão, há umaopção para que a reforma universitáriaestabeleça um vínculo estreito entre fi-nanciamento e desempenho, ou entrefinanciamento e prestação de contas.Na realidade, o que o Banco prega é “-apoiar um aumento do financiamentodeterminado pelo desempenho e evi-tar as ciladas das política de isonomiaentre instituições e dentro delas”(Op.cit. p.25). Aí, mais uma vez, se evi-dencia a importância, para esses orga-nismos, da criação de um sistema deavaliação, que possa fazer o acompa-nhamento do cumprimento do “mo-delo”, premiando aqueles que se apro-ximaram do mesmo e punindo aque-les que se “rebelaram”, ou nem isso,mas simplesmente não tiveram condi-ções estruturais de fazê-lo.

A terceira orientação normativa -controle de qualidade- aproxima maiso modelo da necessidade de umamatriz de avaliação que garanta a qua-lidade, através da eficiência e da pro-dutividade. O documento evidenciaque a avaliação deve objetivar “melho-rar a qualidade, reformar os incentivos,coligir e disseminar informações efavorer escolhas bem informadas nosmercados pertinentes” (Op.cit. p.26).

O documento “Educação Superiorna América Latina e no Caribe”, apósconstruir os modelos de instituiçõesde ensino superior que lhes parecempertinentes com os objetivos do BID,indica quais as ações que o Banco es-tará aberto para empréstimos. Os pro-jetos de solicitação de empréstimo só

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Na ótica do BID, apenas as instituições que têm

a função de liderança acadêmica, os centros de excelência,

devem ter financiamento público,

as demais instituições devem se autofinanciar.

Financiamento da Educação

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serão considerados se atenderem asseguintes metas: a) apoiar reformasque busquem a melhoria da qualidadee da eficiência, incluindo sistemas deinformação, avaliação, certificação, exa-mes, desenvolvimento e atualização decurrículos e material didático; b) apoiarprogramas cujos resultados possamaumentar significativamente os benefí-cios individuais dos estudantes, incluí-dos a preparação de lideranças intelec-tuais, mudanças de administração dasinstituições e melhorias no desempe-nho econômico; c) apoiar empréstimosdestinados a aumentar a eqüidade,incluido as bolsas de estudos.

Estas definições de políticas parao ensino superior foram traduzidaspara o Brasil em um documento doPREAL intitulado “A educação para oséculo XXI: o desafio da qualidade eda eqüidade”, no qual são apresenta-das as principais políticas para a área,sendo operacionalizadas pela reogar-nização do sistema de ensino (decre-tos 2306/97 e 3860/01), o que levoua uma diversificação institucional;pela consolidação do sistema de ava-liação do ensino superior com aimplantação do Exame Nacional deCursos; pela elaboração de novasDiretrizes Curriculares para os cursosde graduação; pela criação daGratificação de Estímulo à Docência(GED); pelo incentivo à titulaçãodocente; pela retomada dos investi-mentos na recuperação e melhoriada infra-estrutura das IFES; pela defi-nição de critérios para o processo deescolha dos dirigentes universitários;pela reformulação do sistema de ava-liação da pós-graduação.

Todas estas medidas, tomadas emdiferentes momentos, acabaram cons-tituindo o projeto de ensino superiordefendido e implantado pelo governo,caracterizando-se por uma educaçãoelitista, privatista e com uma qualidadebalizada pelo mercado.

O modelo de Universidade dos movimentos

O ANDES-SN - Sindicato Nacionaldos Docentes do Ensino Superior, jun-tamente com outras entidades da so-ciedade civil, como a Sociedade Brasi-leira para o Progresso da Ciência(SBPC), a Ordem dos Advogados doBrasil (OAB) e a Associação Brasileirade Imprensa (ABI) propuseram, em1982, em plena ditadura militar, umprojeto de Universidade construído deforma democrática e coletiva atravésde encontros, reuniões, congressos eoutros meios de discussões.

Os principais eixos desse projetode Universidade davam ênfase à ma-nutenção do ensino público e gratuito,à autonomia e funcionamento demo-crático da Universidade, ao estabeleci-mento de um padrão de qualidadepara o ensino superior, à dotação derecursos publicos orçamentários sufi-cientes para o desenvolvimento do en-sino e da pesquisa, à garantia do direi-to à liberdade de pensamento. Alguns

anos mais tarde, no chamado períodode transição para a democracia brasi-leira, o ANDES-SN, a União Nacionaldos Estudantes (UNE) e a Federaçãodos Servidores das Universidades Bra-sileiras (FASUBRA) realizaram um Se-minário Nacional sobre a Reestrutura-ção da Universidade, cujas conclusões,juntamente com outras contribuições,constituiram a proposta dos movimen-tos para a Universidade, entregue aoMEC, assentada na educação pública,gratuita, laica e de qualidade, no prin-cípio da autonomia e da gestão demo-crática.

Esses princípios foram reapresenta-dos em 1991, quando o ANDES-SNelabora, após vários debates e Semi-nários, incluindo outras entidades,uma proposta de Lei de Diretrizes eBases da Educação Nacional, com finsde encaminhamento para o CongressoNacional. Nesse projeto, estava posta aconcepção que o movimento tem deuniversidade, enquanto instituição quemantém a indissociabilidade entre en-sino, pesquisa e extensão.

Em 1996, o ANDES aprova uma“Proposta para a Universidade Brasi-leira” cujos principais eixos foram: oestabelecimento do padrão unitário dequalidade2, a responsabilização do Es-tado com o financiamento do ensinosuperior, o regime jurídico definido co-mo autarquia especial, a autonomiadidático-científica, administrativa e degestão financeira e patrimonial comrelação ao poder público, o financia-mento público e a gestão democrática.

Na continuidade das proposiçõesdos movimentos foi construído coleti-vamente um projeto de Plano Nacio-

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Todas estas medidas, tomadas em diferentes momentos,

acabaram constituindo o projeto de ensino superior defendido e

implantado pelo governo, caracterizando-se por uma educação

elitista, privatista e com uma qualidade balizada pelo mercado.

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nal de Educação. A elaboração dessePlano foi realizada através de doisCongressos Nacionais de Educação(CONED), ocorridos em 1996 e 1997,do qual participaram dezenas de enti-dades científicas e sindicais3, às quaisapontaram para a educação superioras seguintes diretrizes e metas: finan-ciamento público com o aumento gra-dativo do PIB, expansão das institui-ções públicas, dos cursos e do númerode vagas, criação de mecanismos deavaliação das Universidades, financia-mento público das pesquisas, garantiado caráter público dos novos conheci-mentos. Para tanto, se exigia uma uni-versidade pública, gratuita, laica e dequalidade.

Este modelo de Universidade estáreafirmado em vários documentos dosmovimentos e foi reiterado junto aogoverno que tomou posse em janeirode 2003, em um Seminário de Tra-balho intitulado “Reafirmando propos-tas para a educação brasileira”, o qualteve a participação do Ministro da Edu-cação, a quem foi o entregue o docu-mento “Propostas Emergenciais paraMudanças na Educação Brasileira”. Re-ferido documento, através de 4 eixos -Organização da Educação Nacional,Gestão Democrática, Financiamentoda Educação, Formação e Profissionali-zação dos Trabalhadores e Trabalhado-ras em Educação - insiste sobre ospontos já defendidos pelos movimen-tos sociais desde o início da década de1980, no tocante à Educação.

A avaliação institucional da oficialidade

Em função dos projetos de Univer-sidade apresentados, oficialidade edos movimentos sociais, vão se confi-gurar dois projetos de avaliação insti-tucional cada um tendo como referên-cia a concepção de universidade ado-tada. No caso do MEC, o mesmo con-figura o processo avaliativo como sen-

do aquele que “compreende a análisedos dados e informações prestadospela Instituição de Ensino Superior(IES) no Formulário Eletrônico e a veri-ficação, in loco, da realidade institucio-nal, dos seus cursos de graduação ede pós-graduação, da pesquisa e daextensão, levando-se em conta trêsgrandes dimensões: o corpo docente,a organização institucional e as insta-lações físicas gerais e especiais, comoos laborátorios, com ênfase na(s) bi-blioteca(s)”.

A avaliação do ensino superior estáexplicitada na lei 9394/96, que diz sercompetência da União “assegurar pro-cesso nacional de avaliação das insti-tuições de educação superior, com acooperação dos sistemas que tiveremresponsabilidade sobre este nível deensino. Autorizar, reconhecer, creden-ciar, supervisionar e avaliar, respectiva-mente, os cursos das instituições deeducação superior e os estabeleci-mentos do seu sistema de ensino”(art. 9° incisos VIII e IX). O decreto3860/01, visando fazer cumprir a cita-da lei, determina que o Ministério daEducação coordene as ações de avalia-ção, que deverão ser executadas peloInstituto Nacional de Estudos e Pes-quisa Educacionais (INEP), através doSistema de Avaliação e InformaçãoEducacional.

No tocante à avaliação institucionaldas instituições de ensino superior, oreferido Decreto recomenda que se-jam considerados os seguintes itens:grau de autonomia assegurado pelaentidade mantenedora; plano de de-senvolvimento institucional, indepen-dência acadêmica dos órgãos colegia-

dos da instituição; capacidade de aces-so a redes de comunicação e sistemasde informação; estrutura curricularadotada e sua adequação com as dire-trizes curriculares nacionais de cursosde graduação; critérios e procedimen-tos adotados na avaliação do rendi-mento escolar; programas e ações deintegração social; produção científica,tecnológica e cultural; condições detrabalho e qualificação docente; a au-to-avaliação realizada pela instituição eas providências adotadas para sanea-mento de deficiências identificadas.(Decreto 3860/01, art. 17).

O objetivo primordial da avaliaçãoinstitucional, a partir do decreto men-cionado e da compreensão do INEP, éde subsidiar o MEC na tomada de de-cisões referentes ao credenciamento erecredenciamento das instituições4,utilizando para tal instrumentos como“o Manual de Avaliação Institucional, oFormulátio Eletrônico, o Roteiro da Ve-rificação in loco, Normas e procedi-mentos”.

O Manual de Avaliação Institucio-nal de Centros Universitários5, na suaversão preliminar, datada de setembrode 2002, afirma que “ a cultura de ava-liação só poderá tornar-se uma tradi-ção quando não mais houver espaçopara a discussão de seu mérito, masapenas das alternativas para a sua rea-lização; quando se fizer permenente,propositora e desafiadora, para melho-ria da qualidade dos cursos e das ins-tituições”. O documento apresenta to-dos os aspectos que são consideradospelos órgãos do governo como impor-tantes para atingir os objetivos busca-dos pela avaliação. Assim é que se faz

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 115UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

O objetivo primordial da avaliação institucional, a partir

do decreto mencionado e da compreensão do INEP,

é de subsidiar o MEC na tomada de decisões referentes

ao credenciamento e recredenciamento das instituições.

Financiamento da Educação

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necessário que a instituição tenha umPlano de Desenvolvimento Institucio-nal e um Programa de Avaliação Insti-tucional. A Avaliação, in loco, deve se-guir um roteiro, minucioso, abrangen-do aspectos relativos à organizaçãoinstitucional, às atividades de gradua-ção e de pós-graduação, às atividadesde pesquisa e de extensão, ao corpodiscente e docente, às instalações, àbiblioteca, aos laboratórios, ao pessoaltécnico-administrativos e outros itensconsiderados importantes.

O Projeto de Avaliação Institucio-nal, encaminhado pela instituição aoINEP, é uma peça importante, deven-do conter o processo de avaliação in-terna ou externa realizado pela institui-ção, o que inclui a gestão, o ensino, apesquisa, a extensão e a prática profis-sional. Caso a instituição já tenha sidoalvo da comissão de avaliação do MECe das comissões de avaliação das con-dições de oferta ou das condições deensino, assim como do Exame Nacio-nal de Curso, tudo isso deverá constardo referido documento, fornecendoassim elementos para completar oquadro avaliativo.

A Avaliação, enfatizamos, não éneutra e deve estar referenciada porum projeto de Universidade. O mode-lo de Universidade produtivista e efici-ente, elaborado pelo governo brasilei-ro sob a tutela dos organismos inter-nacionais, BM, BID, PREAL, tem, naconcepção de avaliação implantada,os instrumentos adequados que po-dem aproximar as instituições do pa-drão estabelecido. A concepção deavaliação em vigor é punitiva, classifi-catória, utilizando os resultados obti-dos para estabelecer um ranking dasinstituições, forçando que as mesmasse adeqüem às exigências e passem arelegar o pedagógico e priorizar o quepossa representar resultados imedia-tos para o mercado. Não ocorre umaanálise das causas dos problemas,

nem um empenho em, após identifi-cados, fornecer os recursos necessá-rios para a solução dos mesmos. NasUniversidades Públicas Federais, a libe-ração de recursos passa a seguir umacontabilidade perversa que consideraos resultados traduzidos sempre emnúmeros: alunos que ingressaram ver-sus alunos concluintes, por exemplo.Em relação aos professores, esse mo-delo de avaliação tem levado os mes-mos a serem produtivistas, precisandopublicar bastante, apresentar trabalhosem vários eventos nacionais e interna-cionais, ter muitos orientandos, o que,muitas vezes, pode incidir sobre a qua-lidade desses trabalhos, pelas exigên-cias da quantidade.

Os movimentos e a compreensão de avaliação

O ANDES-SN tem reiterado umaproposta de avaliação desde o inícioda década de 1980. Naquela ocasião,ainda no período da ditadura militar, osindicato, naquele momento aindauma associação, propunha um projeto

de avaliação coerente com o projetode Universidade defendido. Assim, omovimento docente tem construídoum projeto baseado numa “concepçãode avaliação que tem como foco aqualidade do trabalho universitário, vi-sando ao estabelecimento de um pa-drão unitário de qualidade para o en-sino, a pesquisa e a extensão, que de-ve ser cultural e cientificamente signifi-cativo e socialmente comprometidocom a maioria da população” (AN-DES,1996, p.52).

Um dos pontos de destaque noprojeto de avaliação é de que a mes-ma deve ser interna e externa, envol-vendo na sua construção e execuçãotoda a comunidade acadêmica, estu-dantes, docentes e funcionários técni-co-administrativos, devendo ter um ca-ráter formativo, privilegiando o proces-so e buscando utilizar os resultadospara identificação e resolução dos pro-blemas. A avaliação externa, feita pelospares e por instituições idôneas, tem oobjetivo maior de verificar o cumpri-mento dos compromissos da institui-ção com a sociedade.

O Projeto de Lei de Diretrizes eBases da Educação Nacional, elabora-do pelos movimentos no final da déca-da de 1980, especifica a natureza daavaliação defendida. Em relação à ava-liação interna, a concepção apresenta-da é de uma ação construída demo-craticamente como instrumento para ocontrole social da atividade do Estado,na esfera da Educação, devendo serconsiderado o processo, levando emconsideração os insumos materiais, asverbas destinadas ao setor, os saláriosdo corpo docente e técnico, as instala-ções dentre outras. Também dava-se

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A avaliação externa, feita pelos pares e por instituições

idôneas, tem o objetivo maior de verificar o cumprimento

dos compromissos da instituição com a sociedade.

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destaque para que a avaliação do tra-balho acadêmico dos docentes tivessecomo objetivo “o estímulo ao aprimo-ramento de suas atividades de ensino,pesquisa e extensão e a compreensãode sua articulação com o projeto glo-bal da unidade acadêmica da institui-ção” (Op.cit. p. 54). A avaliação exter-na deveria ser realizada por um Con-selho Social, buscando verificar se osinteresses da sociedade estavam sen-do atendidos.

O projeto de avaliação propostobusca o alcance do padrão unitário dequalidade. Para tanto, a avaliação de-ve ter um caráter acadêmico, o quesignifica que não deve visar punir oupremiar, além de adotar critérios ab-solutamente transparentes e demo-cráticos. Este tipo de avaliação é coe-rente com o projeto de Universidadeproposto pelos movimentos, umaUniversidade pública, gratuita, autô-noma e democrática.

Considerações finaisMiriam Limoeiro (1991, p.4) diz

que “a avaliação pode ser um instru-mento precioso para ampliar e tornarmais eficaz o funcionamento do siste-ma escolar dirigido para a reproduçãoda ordem estabelecida e da ótica docapital, mas também pode ser - emoutras mãos, sob outra perspectiva -um instrumento valioso de elevaçãoda qualidade do trabalho acadêmicono rumo de uma Universidade produ-tora e crítica.” No primeiro caso, aavaliação é um mecanismo de regula-ção e controle, buscando a eficiênciae a rentabilidade das instituições denível superior, procurando atender àlógica do mercado. No segundo as-pecto, considerado por Limoeiro, aavaliação pode ser uma forma deemancipação social.

Os resultados da avaliação, no casobrasileiro, na contemporaneidade,vêm servindo para definir as políticas

publicas educacionais em diferentesaspectos, tais como na gestão, no fi-nanciamento, na organização institu-cional, nos aspectos pedagógicos co-mo a natureza dos cursos e os eixosestruturantes dos currículos acadêmi-cos, a formação profissional, estenden-do-se até à produção docente. Pode-se dizer que, enquanto um mecanis-mo regulador, a avaliação tem efeitospolíticos, servindo portanto para subsi-diar as tomadas de decisão que po-dem implicar políticas para a área.

Dias Sobrinho (2002, p.8) chama aatenção para um aspecto importante:a serviço de quem está a universidade?Da sociedade ou do mercado e do ca-pital transnacional? As respostas aessas questões poderão indicar o pa-pel da avaliação e as funções que amesma desempenha. Parece-nos quea importância que a avaliação passoua ter na educação brasileira tem umarelação direta com o modelo de ensi-no superior que está sendo implanta-do e com o “senhor” a quem o mesmoestá vinculado, numa obediência servilaos preceitos ditados.

A recuperação do Programa deAvaliação Institucional das Universida-des Brasileiras, (PAIUB), criado em1993, nos moldes em que foi concebi-do, tem sido uma reivindicação degrande parte da sociedade civil organi-zada, visando, com isso, ter uma ava-liação globalizante, no sentido deabranger a totalidade das ações insti-tucionais, integradora de todas as di-mensões da instituição, democrática eparticipavia, contextualizada, perma-nente e adapatada a cada realidade.Esta tem sido uma fórmula defendidapor alguns estudiosos do assunto (Bel-

loni 1999, Sobrinho 2001, Ristoff 1995),que vêem outro papel e funções para aavaliação do ensino superior.

O Fórum Nacional em Defesa daEscola Pública, no documento “Pro-postas emergenciais para mudançasna educação brasileira”, já citado, pro-põe, em relação à Avaliação da Edu-cação Nacional, algumas ações ime-diatas tais como “organizar um grupode trabalho para examinar a atual po-lítica de Avaliação Institucional da edu-cação brasileira, com vistas a propordiretrizes para implementação deuma outra política que assegure o pa-drão unitário de qualidade nas insti-tuições educacionais, respeitada suaautonomia”. Outras medidas propos-tas foram a revogação da Lei 9131/95que criou o Exame Nacional de Cur-sos, a revogação do Decreto 3860/01que dispõe sobre avaliação de cursosem instituições.

Estas demandas estão pautadas naexperiência de avaliação a qual estãohoje submetidas às instituições de en-sino superior, que, no dizer de Miraglia

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 117UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

A avaliação é um mecanismo de regulação e controle,

buscando a eficiência e a rentabilidade das instituições

de nível superior, procurando atender à lógica do mercado.

Financiamento da Educação

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(2001), vêm produzindo alienação econcebendo o ensino como treina-mento, numa tradução operacional deum projeto político que visa privatizaresse nível de ensino.

O INEP também realizou um Se-minário “ Avaliar para quê?”, em abrilde 2003, ocasião em que o atual siste-ma de avaliação foi duramente critica-do, tendo sido reivindicada a alteraçãoda forma e dos mecanismos adotados,assim como a possibilidade de mu-danças baseadas em consensos tradu-zidos pela inexistência de um quadroconceitual e de um sistema de avalia-ção. Outro ponto destacado no Semi-nário foi a importância do financia-mento e da gestão democrática comoelementos que devem ser considera-dos na elaboração de uma propostade avaliação do sistema nacional deeducação. No seminário em questão,o ANDES-SN apontou a importânciada construção de um projeto educa-cional para o Brasil, a partir do qual se-rão definidas as políticas e ações paraa educação brasileira, incluindo umSistema Nacional de Avaliação.

Finalizamos, reforçando o que foidito no início: o projeto de avaliação éum corolário do projeto de universida-de. Não se muda o primeiro deixandointocado o segundo, ou vice-versa. Oque se espera é que os encaminha-mentos dados pelos movimentos so-ciais e sindicais possam vir a ser consi-derados pela oficialidade e com isso setenha um outro projeto de Universi-dade, gratuita, laica, democrática, au-tônoma e com um padrão unitário dequalidade. Desta forma, se terá umprojeto de avaliação que seja emanci-patório e socialmente construído.

Notas1. Apesar do BM dizer que referido documen-to “é velho e ultrapassado”, (Folha de S.P.30.03.03), as principais recomendações - di-versificação de fontes de financiamento e di-ferenciação das instituições foram cumpridas

pelo governo brasileiro e regem hoje o ensinosuperior brasileiro.2. O ANDES-SN entende por padrão unitáriode qualidade o estabelecimento de condiçõesque eliminem as distorções o o autoritarismo,permitindo que a Universidade seja capaz deformar profissionais compatíveis com as ne-cessidades de desenvolvimento regional oudo país, devendo, através da pesquisa, produ-zir conhecimento novo, e através da extensão,se relacionar com todos os segmentos dasociedade, cumprindo a sua função social. Opadrão de qualidade está ligado indissoluvel-mente à pesquisa, à extensão e à atividadecrítica e criativa, além do princípio da gratuida-de do ensino, da autonomia didático-científi-ca, administrativa e de gestão, democratiza-ção interna e condições de trabalho. CadernosANDES n° 2, 1996, pp.15,16.3. Dentre as instituições enumeramos, algu-mas: ANPED, ANPAE, ANFOPE, CNTE, ANDES,FASUBRA, CNTE.4. “As avaliações realizadas pelo INEP subsi-diarão os processos de recredenciamento deinstituições de ensino superior e de reconhe-cimento e renovação de reconhecimento decursos superiores”. Decreto 3860/2001, art.17, § 2º.5. O INEP informou, a uma consulta via eletrô-nica, não possuir o Manual de Avaliação paraUniversidades.

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*Olgaíses Cabral Maués é professoraadjunto da Universidade Federal do Pará,Doutora em Educação pela USTL- França.Pós-Doutorado na Université Laval- Que-bec.

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Financiamento da Educação

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DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 121UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

P rofessor Titular da Escola de Serviço Social da Universi-

dade Federal do Rio de Janeiro, intelectual medularmen-

te vinculado à tradição marxista, José Paulo Netto se define

como um professor, um trabalhador dos livros.

Autor de vários livros, textos e artigos na tradição marxista,

bem como no Serviço Social.

Dono de um raciocínio perspicaz e uma loquacidade ímpa-

res, José Paulo Netto nos fala dos sinais emitidos pelo novo

governo e traça projeções para o cenário brasileiro, no qual

será fundamental a organização dos trabalhadores.

Entrevista: José Paulo Netto

JoséPaulo Netto

por Antônio Ponciano Bezerra* e Janete Luzia Leite**

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Universidade e Sociedade (US) -Para começar, uma breve descriçãode sua militância política e de seu tra-balho intelectual.

José Paulo Netto (JPN) - Eu souassistente social e, além disso, fiz oCurso de Letras, fiz uns cursos aí, aolongo da vida. Tornei-me professor uni-versitário em 1972, como professor deuma ESS (Escola de Serviço Social) queestava em processo de incorporação auma Universidade - hoje a ESS, da UFJF.Sempre dei aulas - comecei a vidadando aula em cursinho e em colégiopor causa da minha formação em Le-tras. Trabalho desde 1969. Em 1975,tive que sair do Brasil e retornei em fi-nais de 79. Não voltei em tempo inte-gral para a Universidade - me vinculei àPUC-SP onde dei aulas no Curso deServiço Social na Graduação - depoisfui para a Pós-Graduação, em São Pau-lo. Doutorei-me em Serviço Social, em1990. No período em que estive noexterior, trabalhei como docente noInstituto de Serviço Social de Lisboa eno Instituto Superior de Economia deLisboa. Nos anos 80, voltei para o Brasile fui fazer política e estive lateralmentena Universidade, na primeira metadedos anos 80. A partir de 86, voltei parao trabalho sistemático na Universidade- me tornei professor da PUC-SP, naPós-Graduação. Vim para o Rio de Ja-neiro como professor convidado, em1987; em 88, fiz concurso e, em 92, fizconcurso para Professor Titular - souProfessor Titular desde 92, portanto.Larguei outros compromissos e traba-lho aqui fundamentalmente. Eu entreipara o Partido Comunista em 1963 -PCB, Partido Comunista Brasileiro - efoi o único partido ao qual eu pertenci,ao longo da minha vida. Fiquei nele atéjaneiro de 1992, quando ele se trans-formou nessa legenda de aluguel queestá aí, que é o PPS - e evidente eu nãotenho nada a haver com isso, desde

então, não tenho nenhuma atividadepartidária. Mas tenho atividade política,ou seja, estou sempre fazendo palestrae contribuindo com todos os partidosde esquerda - os companheiros do PT,os companheiros do PC do B, os com-panheiros do PSTU... Eu hoje não tenhomilitância partidária, mas continuo sen-do um marxista, ou seja, ainda não soupós-moderno; sou muito antigo, muitoatrasado. Minha vida intelectual émuito modesta. Devo ter publicado,mais ou menos, uma dezena de livros.Na área do Serviço Social, tenho umaintervenção, mais ou menos, contínuaem revistas especializadas; tenho doislivros que, de alguma maneira, são aminha contribuição ao debate do Ser-viço Social estrito senso. O primeirochama-se Ditadura e Serviço Social,que é uma análise do Serviço Social noBrasil pós-64. Tem um outro livrinhochamado Capitalismo Monopolista eServiço Social e, na discussão do mar-xismo, tenho dado a minha modestíssi-ma contribuição através de uma sériede livros de divulgação - trabalhei mui-to com livros de divulgação - daquelacoleção O que é Marxismo?, O que éStalinismo?. Mas também organizei al-gumas antologias de nível acadêmico -aquela série que o Florestan Fernandesdirigia para a Editora Ática - preparei ovolume sobre Luckács, o volume sobreEngels... sou um modesto trabalhadorintelectual. Estou sempre presente nodebate através de revistas especializa-das, fiz muitas traduções. Traduzi Marx,traduzi Engels, traduzi Luckács, traduziLênin - essa foi uma tradução impor-tante -, O Desenvolvimento do Capi-talismo na Rússia, que é uma obra teó-rica importante de Lênin. Fiz prefácios eintroduções para obras de Marx, En-gels, Lênin... sou um trabalhador doslivros, sou um professor. Não sei atéquando vão me deixar ser, mas isso aínós vamos ver.

US - Quando aconteceu essa trans-formação do PCB em PPS, o senhornão teve nenhuma simpatia, ou tevealguma razão especial para não se-guir nenhuma das outras legendas?

JPN - Eu fiquei velho, mas conser-vo muitas - não as minhas ilusões -mas as minhas idéias de juventude.Sou um comunista - com tudo o queesta palavra significa - de origem mar-xista e o que eu via na esquerda brasi-leira, no final dos anos 80, era a neces-sidade de repensar, no Brasil, o papelde um partido comunista, um partidoque não tivesse medo de dizer o quequeria. O movimento comunista - eisso não é novidade - estava numa cri-se mundial - que não era nova - e essacrise também se refletia no Brasil. Euestava convencido - eu e outros com-panheiros, em 92 - que era precisochamar um grande debate de todos oscomunistas, estivessem eles onde esti-vessem. Não foi possível fazer isso. NoCongresso em que o Partido Comunis-ta Brasileiro se transformou em PPS,eu e outros companheiros apresenta-mos uma moção - que aqui ninguémprestou nenhuma atenção, acho queela nem foi discutida - na qual a gentepropunha que se abrisse um grandedebate nacional para discutir o projetocomunista no Brasil. O que é esse pro-jeto comunista? Como ele toma formade partido? Eu tenho muita simpatiapelas propostas estratégicas - tática éoutra conversa - do PC do B, por aqui-lo que restou com o nome PCB - queé um grupo de dedicados combaten-tes, mas é um grupo pequeno - e te-nho um bom diálogo com alguns com-panheiros do PSTU. Mas eu não mefiliei a nenhum desses partidos porqueacho que nós precisamos repensar tu-do isso. Embora eu tenha uma firmeposição quanto ao futuro de defesa docomunismo, a mim me parece que aquestão da forma partidária tem que

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Entrevista: José Paulo Netto

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ser amplamente discutida. Você deveestar me perguntando quanto ao PT,no fundo. Olha, eu tenho muita simpa-tia por propostas do PT, sempre respei-tei muito algumas lideranças do PT;sobretudo, sempre me chamou aatenção a origem - a extração socialoriginária - do PT. Na década de 90,votei PT - não votei de cima a baixo,mas votei no Lula... no 2º turno, de 89para frente, sempre votei no Lula, co-mo votei agora -, mas sempre olhandocom uma certa cautela. Até porque euacho que o PT tem componentes so-cialistas, componentes muito avança-dos, mas tem componentes de outranatureza - pelos quais eu tenho muitorespeito, muita simpatia -, mas eu nãome identifico com nenhum dessespartidos que estão aí. Mas não preten-do ficar órfão por muito tempo. Eucostumo dizer que estou em disponi-

bilidade; estou doido para entrar numpartido. Porque acho que, com todosos problemas que a forma partidáriatem, um homem sem partido é umhomem que pode contribuir muitopouco. Nós devemos estar em partidopolítico; eu me sinto muito mal estan-do, há praticamente dez anos, semuma inserção partidária. Sou um ho-mem de partido e estou muito mal...eu me sinto muito incomodado nãotendo uma militância partidária.Acho que isso reduz muito a suapossibilidade de contribuir com algu-ma coisa. Eu acho que esse quadropartidário vai mudar muito, a médioprazo - a curto não - a médio prazo.Vamos ver se aí eu entro num parti-do que tenha as seguintes caracterís-ticas: que diga e trabalhe por umasociedade sem exploração do traba-lho pelo capital, uma sociedade que

tão radicalmente democrática sejaque vai superar a questão da demo-cracia - porque vai realizá-la - e que,ao mesmo tempo, tenha os pés naterra para entender que o processode criação de uma nova sociedade,no Brasil, é muito difícil - enfrentaobstáculos de monta e magnitudeque a gente nem sempre avalioucorretamente - e que isso não confi-gura só um problema nacional; é umproblema internacional. O socialis-mo ou é um projeto internacional -mundial - ou está fadado a repetirtristes experiências do pas-sado, que nem por issodeixam de ter valor. Eu nãosou daqueles que achamque a experiência do socia-lismo real já era, que bomque já foi embora... Achoque ali há conquistas

sociais extraordinárias que se perde-ram. O mundo não ficou melhor de-pois da queda do muro; muito pelocontrário, ficou pior, com mais riscos,com mais monstruosidades. Agora,penso que nós vamos ter que reco-meçar tudo de novo.

US - Na sua opinião, professor,como se encontra hoje o Brasil?

JPN - Eu estou convencido que osatos eleitorais de 06 e 27 de outubrode 2002 representaram, do ponto devista político, um enorme avanço.Acho que a derrota do Serra - indepen-dentemente da figura proba do Serra,da figura honrada do Serra, da figuraséria do Serra - a derrota do Serra sig-nificou um rotundo NÃO da populaçãobrasileira aos projetos que, duranteoito anos, foram enfiados goela abaixodo povo brasileiro por Fernando Henri-

que e tudo o que Fernando Henriquerepresentava. Nesse sentido, mais im-portante - penso eu - que a vitória doLula, foi a derrota da continuidade deum projeto econômico-social que alie-na a soberania, que empenha o país eque tende a produzir aqui uma socie-dade com todas as características dele-térias do capitalismo contemporâneoe sem nenhum dos ganhos sociais dahistória do capitalismo. Então, sob esteaspecto, eu acho que a vitória do Lulae a derrota - é preciso insistir nisso - aderrota do continuísmo, da continui-

dade, marcam uma inflexãona história política brasileira.O fato de a massa do povose reconhecer num candida-to de origem popular, deextração operária, penso euque é da maior importânciana história política brasileira.

Eu disse aqui - em sala de aula e empalestras - que, na minha vida, eu vi opovo brasileiro sorrir com a política -não é sorrir da política - muito poucasvezes, pouquíssimas vezes. Uma des-sas vezes, talvez a mais emocionantetenha sido das duas vitórias eleitoraisda coalizão centralizada em torno doPT, em torno da figura do Lula, emoutubro de 2002. Evidentemente, eusei - eu e todos nós sabemos - queaquela vitória foi uma vitória político-eleitoral. Sobretudo, foi uma vitóriaeleitoral que permitiu o acesso aogoverno - não necessariamente aopoder - de uma nova equipe dirigente,num governo de coalizão, num gover-no amplo - a própria frente que elegeuo Lula é uma frente heterogênea doponto de vista partidário - não foi feitauma revolução nesse país. Ninguém -ou, pelo menos, eu - não tinha nenhu-

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 123UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

O PT tem componentes socialistas, componentes muito avançados, mas tem componentes deoutra natureza - pelos quais eu tenho muito respeito, muita simpatia -, mas eu não me identi-fico com nenhum desses partidos que estão aí. Mas não pretendo ficar órfão por muito tempo.

Entrevista: José Paulo Netto

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ma dúvida de que o período de gover-no do Lula será um período de muitaslutas, de muita negociação, de muitaida e vinda, de muita concessão... issopara mim é mais ou menos inevitável.Não penso que o governoLula tenha qualquer com-promisso socialista, nadadisso. O compromisso éoutro: o compromisso com ajustiça social, com a eqüida-de, com o desenvolvimentoetc. Mas uma coisa me era

clara: é que a vitória dessa ampla fren-te democrática, centralizada pelo PT -partido que tinha origens de esquerda,origens populares - seria um claro indi-cador da reversão dos rumos que opaís tomou nos últimos oito anos. Essefoi o discurso - mais do que o discurso- foi o programa do PT, o programaapresentado pelo Lula e pela coalizãode partidos em torno dele. Em janeiro- meados de janeiro - eu escrevi umartigo que publiquei na imprensa, aquido Rio de Janeiro, no Jornal do Brasil,no qual eu falava que o governo do PT- este governo - teria duas almas: umaalma conservadora e uma alma mu-dancista que era o que imaginava queia ocorrer, ao longo de quatro anos,com confrontos, com idas e vindas...até pelo legado que recebeu - nãoapenas do governo Fernando Henri-que, mas um legado de décadas, deséculos - como dizia o Florestan: noBrasil, nós não quebramos o estatutocolonial - a revolução burguesa noBrasil se deu incorporando o estatutocolonial e não o suprimindo. Entre-tanto, o que eu vejo nesses seis me-ses, é algo que - não se pode julgar umgoverno por seis meses -, mas todos

os indicativos mais consistentes quenós temos é de que o PT ganhou aseleições, outros parceiros, outras pes-soas chegaram ao governo, mas háuma plena e inteira continuidade - ple-

na e inteira continuidade -daquilo que era o projetoque se pretendia reverter. Aorientação macroeconômi-ca - ninguém quer que osjuros caiam da noite para odia porque seria loucura,ninguém quer que se dê

calote na dívida pública, na dívida in-terna e externa, nós sabemos que es-sas coisas não se fazem assim (euquero lembrar que nunca fui daquelesque achavam que tinha que dar o ca-lote, partir para uma moratória unilate-ral) - mas esse foi o discurso do PT du-rante longo tempo. O fato é que, nes-ses seis meses, o que se vê é que adireção do PT - não diria o PT, mas acúpula do PT, aquela que está no go-verno - está realizando, com invulgarpertinácia, tudo aquilo que FernandoHenrique não conseguiu. E o que émais grave: dizendo que eles muda-ram. O Presidente da República dizque na oposição se faz bravata; é de sesupor que ele seja um ex-bravateiro. Osenhor Chefe da Casa Civil diz que “eumudei, e daí?”. Como “eu mudei, edaí?” Isso não é uma questão de domí-nio privado. Se o PT tivesse feito umCongresso - grande ironia, não? Essenão era um partido onde tudo se deci-dia democraticamente? - para saber seessa era a mudança, se mudou. A sen-sação que tenho é que o PT percorreu,em meses, o caminho que a social-de-mocracia percorreu em décadas, naEuropa. Acho isso muito ruim. Do pon-

to de vista político, você goza hoje deliberdades democráticas, você podebotar a boca no mundo invocando aspromessas e as palavras de campanhaque foram feitas, os compromissos to-dos... mas vejo uma inteira - pelo me-nos até agora - uma inteira continuida-de com o governo anterior. Sequerpontos expressivos da política brasilei-ra são desse governo. Uma política ex-terna que não é alinhada automatica-mente com Washington, isso não é doFernando Henrique, nem do Lula; é do

Itamarati. Eu lembro que, mesmo soba ditadura, a política externa brasileiranunca foi uma política servil. Acho quevão ser feitos alguns avanços, porexemplo, na questão fundiária, achoque este governo é um governo hete-rogêneo, de forças heterogêneas...Agora, tenho a nítida sensação de quea cúpula do PT que está no governodescolou-se inteiramente, se não da-quilo que eram os anseios do PT - enão posso falar disso com segurançaporque eu não pertenço ao PT, isso éum problema do PT, não é meu; masé um problema meu como cidadãobrasileiro e como eleitor, para dizer omínimo - mas como um militante polí-tico, embora não partidário, eu vejocom muita preocupação esse quadro.Acho que quem tinha razão era o Ser-gio Mota quando disse que o projetode governo dele era para vinte anos.Independentemente - isso ele nãoacrescentou, acrescento eu - das figu-ras que estão lá. Não estou vendo ne-nhuma sinalização - por menor que se-ja - de mudanças substantivas. Achoque a orientação econômico-financeiraque foi implementada no governoFernando Henrique é perfeitamente

124 - DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

O PT, mas a cúpula do PT, aquela que está no governo - está realizando, com invulgar per-tinácia, tudo aquilo que Fernando Henrique não conseguiu. E o que é mais grave: dizendoque eles mudaram. O Presidente da República diz que na oposição se faz bravata; é de sesupor que ele seja um ex-bravateiro.

Entrevista: José Paulo Netto

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compatível com o Fome Zero, Bolsa-Dentadura, Bolsa-Sapato, Renda Míni-ma. É perfeitamente compatível. Nãohá nenhuma incompatibilidade entreaquele tipo de macro-orientação finan-ceira e a ênfase - aspas - no social. Issoé perfeitamente possível. Até esse mo-mento, o que eu vejo é que o 06 e o27 de outubro foram dois grandescalotes eleitorais. Agora, eu posso estarenganado. Gostaria de estar enganado,mas essa é a minha percepção agora.

US - Professor, que papel teriam asoposições - se é que há alguma oposi-ção, - hoje, ao governo?

JPN - Nós estamos numa posiçãofantástica! O PFL é a única oposiçãoque tem aí. Depois vocês têm que da-tar essa nossa conversa. O PFL botouuns spots na televisão que são umasverdadeiras barbaridades, dizendo oque o MST está ofendendo o direito depropriedade. O PSDB está num matosem cachorro. Por quê? Porque essapolítica que está aí é a deles. Qual aoposição? Você não tem oposição. Atéo PP - ex-PPB - está solidário com issoaí. Quer dizer: do ponto de vista insti-tucional, parlamentar, isso aí vai serum trator. Não creio que você tenhaqualquer oposição organizada; achoque houve um processo de incorpora-ção... É uma coisa fantástica: a oposi-ção ao Fernando Henrique foi o PT. Defato, o PT foi oposição. Sem minimizaros companheiros do PC do B, do PDT,mas o eixo daquela oposição foi o PT.Agora, na medida em que o governodo PT incorpora todas aquelas bandei-ras, com cópias literais - literais -, vocêtem um quadro que configura uma di-tadura do executivo. Note: não é umaditadura no país, mas uma ditadura do

executivo. E os métodos para ganhar olegislativo estão muito semelhantesaos do Fernando Henrique. O Fernan-do Henrique desqualificava a oposi-ção; esse governo que está aí desqua-lifica todo mundo que não concordacom ele, e curiosamente é dentro doPT que a gente nota uma enorme insa-tisfação. Eu não creio que - aspas - osradicais - porque isso é uma brincadei-ra: chamar três ou quatro caras queestão reivindicando o programa deradicais - isso aí é a ponta de um ice-berg; eu acho que dentro do PT - peloque posso observar - dentro do PC doB, dentro dos partidos do arco queestá aí, tirando o PL - que, cá para nós,o PL não é um partido ideológico nosentido estrito da palavra - acho quedeve haver um mal-estar generalizado.Um enorme mal-estar. Agora, nãocreio que ele tenha qualquer refração,qualquer impacto por via legislativa.Estou convencido que se há algumacoisa para fazer aí é jogar forte no mo-vimento de massas, é jogar forte naativação sindical. Sem movimento demassa e movimento organizado - nãomovimento desorganizado, perdido -acho que não se vai conseguir travarnenhuma das deletérias propostas -que, aliás, não são novas, nem são ori-ginais, nem são nacionais - que estãoaí pontuadas como agenda. Estamoschegando ao ponto de ter que concor-dar com Fernando Henrique: o gover-no precisa de uma novaagenda, porque a que estáaí é a minha. É verdade. Cu-riosamente, é verdade. Ago-ra, como reverter isso? Doponto de vista institucional,acho que vai ser uma lutamuito difícil. Vamos ver.

Sem o processo de ativação, de mobi-lização do movimento sindical, domovimento operário-sindical, do movi-mento sindical como um todo, a gentevai andar pouco. Curiosamente - e issopode ser um problema da minha per-cepção - não estou vendo isso numhorizonte a curto prazo, até porque es-se é um governo que incorporou mui-tos quadros da vida sindical. Dá umaolhada no primeiro e no segundo es-calão significativos desse governo. Vo-cê tem aí uma figura tão importante -dizem, não sei - como o senhor LuizGushiken, que vem do movimento sin-dical. O Ministro da Previdência vemdo movimento sindical - esse mesmoMinistro que disse, na semana passa-da, que, se dependesse dele, a Re-forma seria mais radical, é bom anotarisso. Acho muito difícil, porque houveum deslocamento sério - que a gentevai precisar analisar com cuidado - umdeslocamento político-ideológico queme parece grave pelo seguinte: por-que no passado, você podia dizer queas pessoas que diziam “esqueçam oque eu escrevi” - isso não vale direta-mente para Fernando Henrique, masvale para vários da sua entourage, secorromperam no poder - mas esse nãome parece ser o caso dos atuais diri-gentes brasileiros. Eu não acho queeles se corromperam, não. Eu achoque eles estão com essas posiçõesporque eles acreditam nisso, o que pa-

ra mim é muito mais graveem termos de pacto. Eu nãoacho que houve uma cor-rupção do cara que diziauma coisa em setembro, ou-tubro, novembro do anopassado e hoje está dizendooutra; para mim, o problema

não se põe nestes termos. Eu achoque boa parte - se não a maioria es-magadora desses dirigentes - são hon-rados e íntegros. E isso é que é o pior.

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 125UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Estamos chegando ao ponto de ter que concordar com Fernan-do Henrique: o governo precisa de uma nova agenda, porquea que está aí é a minha. É verdade. Curiosamente, é verdade.

Entrevista: José Paulo Netto

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Ou seja, eles estão acredi-tando nisso. Eu acho que oquadro brasileiro - do meuponto de vista - é um qua-dro preocupante. Veja: oque eu quero dizer aqui é oseguinte: pela primeira vez,na história republicana des-te país, com cinco meses de governo,fala-se em segundo mandato. Pela pri-meira vez. Aí você vai dizer: é porque areeleição só é possível agora. Mas ago-ra há um continuísmo declarado. Ne-guinho está dizendo: um mandato sónão dá. Caramba! O que é isso? Isso émuito sério! Os caras estão precisandode um time para consolidar aquilo quevão fazer. Isso a mim me preocupamuito. Por outra parte - e isso eu achomais sério - na medida em que essegoverno - que é um governo cujas ori-gens remotas partidárias estavam naesquerda - fizer uma política que inte-ressa ao conservantismo, que interessaaos setores mais conservadores dasociedade brasileiras, eles não estão sedesmoralizando - se eles se desmorali-zassem, eu acreditaria que era um pro-blema deles - eles vão desmoralizar aesquerda, e isso sim, é grave. Vão nosdesmoralizar pelos próximos cinqüentaanos. Todo mundo é igual; FernandoHenrique e Malan tinham razão: só háuma via, não há outra. Isso é muitosério em termos de capital político, emtermos de acúmulo político. Eu queroque esse governo dê certo, quero queele acerte, estou convencido de que oque ele tem feito até agora não vai norumo de acertar e acho que a conta vaiser uma conta para a esquerda - numaconcepção muito ampla de esquerda -vai ser desastrosa. A esquerda, no má-ximo, vai ser vista como uma honesta

gestora da ordem burguesa.Para isso, eu não preciso deesquerda. Se isso se configu-rar, se configura um quadrode hegemonia - o PSDB e oque ele representava, perde-ram a batalha eleitoral, masganhou a batalha política. É

uma pena que também, no Brasil - por-que não é uma experiência inédita,veja a Europa Meridional, nos anos 80,e, nos anos 90, - é a esquerda funcio-nando como o gato que tira as casta-nhas para o macaco da direita. É muitoruim isso. Eu acho um panorama mui-to difícil.

US - O senhor acha que os Sin-dicatos e as Centrais Sindicais vão as-sistir à realização desse governo pas-sivamente?

JPN - Fora do movimento sindical,há que se esperar pouca coisa. Eu con-tinuo achando que o movimento sin-dical - especialmente o movimentooperário-sindical - é vital para você fa-zer qualquer coisa na sociedade brasi-leira - qualquer coisa. O que eu querodizer com isso? Já não se fala maisnisso, mas eu gosto de falar porquesou velho: sem a classe operária e semos trabalhadores - porque não são amesma coisa: nem todo operário é tra-balhador e nem todo trabalhador éoperário - sem eles, não se faz nadanesse país. Contra eles, menos ainda.O problema é que os sistemas de re-presentação sindical hoje passam poruma crise que não é só do Brasil; é domundo todo. Há uma autonomizaçãodas direções sindicais que é uma bar-baridade. A história da CUT... a CUT daentrada do século XXI, a CUT de 2001,2002, 2003 não é a CUT de 89, 90, e

muito menos dos anos 90. Mudou abase social. Veja: o proletariado brasi-leiro estrito senso, ali da região do cin-turão de São Paulo - só para dar umexemplo, do ABC - encolheu. Outrascategorias de trabalhadores ganharampeso. Mudou o eixo social, a extraçãosocial, e isso não vale só para a CUT. AForça Sindical tenho uma visão muitocrítica - e isso não quer dizer que aCUT, para mim, seja celestial, eu teriamuitas observações a fazer - mas eunão tenho dúvidas de que o sindicalis-mo mais à frente, nesses anos, foi osindicalismo cutista, com todos os pro-blemas que ele possa ter tido - e os te-ve - , mas foi aquele sindicalismo que,do ponto de vista do combate político,sempre esteve na frente. Eu não sei seeles vão assistir de braços cruzados,mas, até agora, eu não os vi chiaremmuito. Quem partiu para a oposiçãofoi a Força Sindical - com o Paulinho -que é uma coisa meio complicada, pa-ra dizer o mínimo. Eu estou vendo,com muita expectativa, o posiciona-mento do movimento sindical. Vocênão pode esquecer que, num quadrode desemprego e de pauperização, omovimento sindical, necessariamente,vai para a defensiva. A questão da ma-nutenção do emprego se torna umaquestão vital e há que entender isso.Não sei como vai ser esse comporta-mento. Não creio que as bases sindi-cais vão assistir a isso de braços cruza-dos, mas não sei qual o poder que elastêm de impactar as direções. O que eutenho lido de todas essas direções sin-dicais institucionais é muito ruim.

US - O senhor antes falou - emrelação aos sindicatos - desses qua-dros que estão migrando, estamos

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Pela primeira vez, na história republicana deste país, com cinco meses de governo, fala-se emsegundo mandato. Pela primeira vez. Aí você vai dizer: é porque a reeleição só é possívelagora. Mas agora há um continuísmo declarado.

Entrevista: José Paulo Netto

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perdendo realmente vários quadrospara o governo. Mas o senhor nãousou a palavra “cooptação”.

JPN - Há aí um processo de coop-tação intensíssimo, mas nem tudo écooptação.

US - O senhor falou da ForçaSindical. Na questão dos Fundos dePensão, a Força está pari passus como governo e já tem até o seu Fundo dePensão montado, esperando só auto-rização. A partir do momento que sesabe que a CUT teve a força que tevenos anos 80, e agora, a indicação dopróximo Presidente da CUT parte dogoverno, como o senhor vê?

JPN - Acho muito complicada essaquase identificação. Acho que issotende a travar o movimento sindical.Saiu um livro de um estudioso muitosério, que é o Paulo Tomulo - é sua Te-se de Doutorado -, chama-se, acho -depois posso olhar para dar uma refe-rência mais exata - CUT: da contesta-ção à conformação. É muito interes-sante porque ele mostra estas meta-morfoses. Se será uma Central Sindicalmonitorada pelo governo, será muitocomplicado. Agora, não esqueçam deque o movimento sindical neste país éum troço... basta olhar o caso de SãoPaulo, do Sindicato dos Rodoviários.Houve um processo de mafiosaçãogrande, no movimento sindical brasi-leiro, promovido quase sempre peladireita, não pela esquerda - é bom queisso fique claro. Mas esse quadro émuito difícil. Este governo, nesses seismeses, trocou a sua base social poruma base parlamentar, que não coin-cide com a sua base social. Como éque isso vai se ajustar nos próximosmeses - eu diria, nos próximos dois ou

três anos - não sei como. Suponhoque haverá atritos, haverá conflitos.Mas a redução da política ao plano pu-ramente institucional, à luta puramen-te institucional, acaba por favorecer aprocessos de conformação. Para mim,é claro, isso e eu gostaria que issoficasse enfatizado: hoje, este governotem - o governo federal - uma baseparlamentar que não coincide comsua base social. Como é que isso vai sedar? A massa do povo votou em fun-ção de quê? De mudança, mesmosabendo que não muda em uma se-mana ou em seis meses, mas ela quersinais de mudança. Quando você temum Banco Central dirigido tal comoesse está dirigido, com a história deseu Presidente, com o passado de seuPresidente - que é um passado, pare-ce que é limpo, mas o problema não éesse - que está conotado politicamen-te. Eu brinco dizendo o seguinte: vocêtem várias maneiras de chegar a Paris.Você pode chegar a Paris indo porLondres, pode chegar a Paris indo pelaÁfrica do Sul, pode dar volta pelo Pa-cífico ou pode ir direto. Mas você temque dizer que quer ir a Paris. Esse go-verno quer ir aonde? Não é aquelerumo que ele traçou até o dia 27 deoutubro; é outro. E eles não estão di-zendo isso claramente, a não ser quevocês acreditem num Plano B, ou queisso é tático. Eu estou convencido quenão. Estou convencido que é isso queo governo está fazendo; épara isso que ele está sinali-zando. Posso ser acusado depessimista. Não creio queesteja sendo pessimista.Nunca fui contra um pactosocial claro; sempre acheique este país precisa de um

pacto social, de uma negociação clara,para dizer o seguinte: nós vamos recu-perar o poder de compra dos saláriosem cinco anos, ou em quatro anos.Mas tem que dizer, caramba! O quenão pode é fazer o que está sendofeito do ponto de vista de fidelidade aalgumas - note: não são a dogmas,não são a princípios - a propostas polí-ticas. Quando eu falei em calote eleito-ral... o povo brasileiro comprou umpacote que tinha como aval de credibi-lidade a história do Lula e de seus prin-cipais companheiros. O que está acon-tecendo agora não tem nada a ver comaquilo. E não adianta dizerem “nósmudamos”. Mudaram quando? Onde éque isso foi discutido? Não sou um radi-cal de esquerda; sou um homem queveio do Partido Comunista Brasileiro.Fizemos alianças, as mais amplas,nunca entramos no esquerdismo - doqual vem o PT: trabalhador vota em tra-balhador - vi gente do PT nos chamarde conciliadores, de reformistas. Euacho que faz parte do jogo político, éassim, o PT precisava se afirmar. Agora,o que parece que era um radicalismomuito forte está se mostrando um radi-calismo pequeno burguês de fachadasocialista, mas é só isso, nada mais doque isso.

US - Professor, como ficam os mo-vimentos sociais nisso tudo, sobretudoos mais organizados?

JPN - Eu não sou movi-mentista, nunca fui. Achoque o movimento social éimportantíssimo, mas parti-do político é indispensável.Eu sou um velho comunista.Acho que os movimentossociais funcionam para revi-

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 127UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Este governo tem - o governo federal - uma base parlamentar que não coincide com sua basesocial. Como é que isso vai se dar? A massa do povo votou em função de quê? De mudança,mesmo sabendo que não muda em uma semana ou em seis meses.

Entrevista: José Paulo Netto

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talizar os partidos políticos, para criaruma agenda que os partidos que têmgrandes responsabilidades, incorpo-ram. Mas movimento social é semprealgo que tem um sentido, mais oumenos, particularista e quem podeuniversalizar a esfera da política é opartido. Mas, como nós somos teste-munhas, nos últimos vinte, trinta anos,os movimentos sociais tiveram um pa-pel muito importante nesse país.Forçando partidos, indo além dos parti-dos, redefinindo os partidos, eu tenhoa impressão de que essa dinâmica nãovai se esgotar. Agora, tenho a impres-são de que esses movimentos vão en-contrar barreiras. O mais importantedesses movimentos, sem dúvida ne-nhuma, é o MST; é um movimentoorgânico. Pode-se discutir o que quiser,mas é um movimento de abrangêncianacional. E é um movimento sério. Asemana passada, eu li uma declaraçãodo Presidente da República, em OGlobo, dizendo o seguinte: a ReformaAgrária vai ser feita, mas que tem queser feita sem conflito e sem luta. Estavanos jornais, a propósito de umas inva-sões - ou o que eles chamam de inva-sões - do MST. Isso me lembrou muitoo Antônio Cabrera, quando falava dadesideologização da Reforma Agrária,porque era um problema técnico e nãoum problema ideológico. Um “frisson”corre em minha espinha quando ouçodizer que não tem que terluta. Tem que ter luta, sim.Eu acho que o MST não estáradicalizando; é um movi-mento sério e espero queele prossiga na sua luta pelaReforma Agrária, porque, senão tiver movimento, não

sai. Embora o Ministro responsável poresta área - o Rosseto - é um homemque me parece inteiramente sério econfiável; me parece que é um tipoque não capitulou. Eu não vi, até agora,da parte dele, nenhuma postura que sepossa, em princípio, questionar. Pa-rece-me um homem muito sério. Éuma das contradições desse governo.Não é a mesma coisa se ter um Ros-seto num canto e um Palocci, noutrocanto. São coisas diferentes, são quali-dades diferentes, são perspectivas dife-rentes. Eu acho que os movimentos so-ciais não têm a sua função, o seu papelesgotado, pelo contrário.

US - Professor, voltando um pou-quinho ao início de nossa conversa,que avaliação o senhor faz das pro-postas de Reforma do Presidente? So-bretudo, as que estão já em anda-mento?

JPN - Eu quero dizer o seguinte:ouço duas - a Previdenciária e a Tribu-tária. Parece que vem uma outra, a daLegislação Trabalhista. Não sei se vai serecozinhar aquilo que Fernando Hen-rique já mandou, mas o que me cha-mou a atenção foi o fato de que os jor-nais, as folhas - Machado de Assis seestivesse aqui diria: as folhas - as fo-lhas noticiaram que a proposta daReforma Trabalhista vai ser apresenta-da à sociedade, na sede da CNI, da

Confederação Nacional daIndústria. Isso está nas fo-lhas da semana passada. Seé verdade ou não, não sei,mas me parece que só issojá e emblemático. A Refor-ma Previdenciária: estouconvencido de que é preciso

mexer no Sistema Previdenciário brasi-leiro; não sou daqueles que defendeisso como algo intocável. Eu acho quehá uma série de questões novas, quecomeçam desde os problemas de na-tureza demográfica até as questõesatuariais. Não tenho nenhum medo dedizer - falando, por exemplo, de pro-fessores universitários. Acho um absur-do um professor universitário se apo-sentar aos cinqüenta anos de idade.Ele está chegando na sua maturidade,acho que ele tem muito mais para dar.Então, é preciso fazer uma Reforma,mas não esta. Essa Reforma vem nobojo de tudo o que este governo estádizendo e fazendo nesses meses. Oscontratos com o capital, esses são into-cáveis; aqueles que dizem respeito aotrabalho, esses nós podemos descer omalho. Então, não me preocupamaspectos da Reforma Previdenciária.Preocupa-me, é a concepção deEstado e de papel de Estado que estáprenunciada e configurada nela. Querodizer o seguinte: há espaço para planode Previdência Complementar, desdeque seja opcional. Veja se me façoentender: que seja dado ao servidorpúblico o direito de optar. Se ele quiserfazer Previdência Complementar, que ofaça, desde que informado sobre o queisso significa. Se ele quiser continuarcom o Estado, que continue. Agora, naverdade, o que está embutido aí? Acriação de um monumental mercadosecuritário e é esse o sentido dessa Re-forma. O sentido dessa Reforma é criar,para o grande capital privado - nacionale estrangeiro - um enorme mercadosecuritário. Então, está embutida umalógica de minimização efetiva do Es-tado, de colocar o Estado a serviço dogrande capital e aprofundar isso, que évisível na proposta de Reforma Previ-denciária. No grosso, diria que essasduas Reformas - inclusive a Tributária,estão no seguinte horizonte: os contra-

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O mais importante desses movimentos, sem dúvida nenhu-ma, é o MST; é um movimento orgânico. Pode-se discutir oque quiser, mas é um movimento de abrangência nacional. Eé um movimento sério.

Entrevista: José Paulo Netto

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tos do Estado com o capital, esses sãointocáveis. Os contratos do Estado como grande capital, isso tudo é negociá-vel, flexibilizável. Essa ótica me pareceque já estava embutida nas propostasdo governo Fernando Henrique. O queé preciso dizer? Isso não é nem a pro-posta do governo Fernando Henrique;essa é a terapia das agências interna-cionais. Esse modelo que estão que-rendo impor, com variações adjetivas, é

substantivamente a mesma terapiaque foi apresentada para a Argentina,para o Uruguai, para a América Latina epara os países do sul da Europa. Dáuma olhada para o que está se passan-do na França e na Itália. A agenda é amesma. A proposta não é do PT, a pro-posta não é do PSDB. Essa é a propos-ta do grande capital.

US - Professor, a gente já falou umpouco disso, mas gostaria que osenhor colocasse com mais de deta-lhe, qual o grau de harmonia e dedivergências entre o governo e Lula eo de FHC, no aspecto político?

JPN - Comecemos dizendo o se-guinte: a primeira eleição de FernandoHenrique foi uma eleição em que se-tores amplamente democráticos e pro-gressistas da sociedade brasileira se vi-ram em Fernando Henrique. Costumodizer o seguinte: o grande capital, em1989, sacou que se ele aparecessecom a cara dele, perdia as eleições noBrasil. 89 mostrou o quê? Os candida-tos do grande capital, que expressa-vam os interesses do grande capital,que expressavam a política do grandecapital, foram derrotados. Collor nãoera o candidato das elites. Mas elas jo-garam em Collor para deter a possibi-

lidade de Lula, do PT, e de um blocoque envolvia o PDT - lembre-se, em89, o PDT, o PCB, o PC do B, no segun-do turno. Os setores da oligarquiafinanceira brasileira são muito compe-tentes; sabem fazer política. Entende-ram que um candidato com a cara de-les não passava. Em 94, apresentaramquem? Um homem com um passadoprogressista, democrático, de esquer-da, um perseguido da ditadura, um

homem que tinha um dis-curso mudancista e issolevou a massa da populaçãoa votar em Fernando Hen-rique. A eleição de FernandoHenrique foi aquela máqui-na brutal de manipulação -tanto que se resolveu no pri-meiro turno. Essa aliança não agregounada ao PT - nada - não aumentounem tirou. José de Alencar está no PL,como podia estar no PMDB ou emqualquer outro lugar. Mas esse bloco éum bloco que veio com um apelo fortede mudança. Não o vejo substantiva-mente... E o que é substantivamentepara mim? É a orientação macroeco-nômica. Não vejo nenhuma mudança,nenhuma sinalização de mudança. Pe-lo contrário: vejo que se agregam, sus-tentando esse governo, aqueles mes-mos segmentos que sustentaram,apoiaram e se beneficiaram com osdois governos de Fernando Henrique.Ou seja, é a hegemonia do capital fi-nanceiro. Há diferenças? Há. Não hádúvida nenhuma de que a política ex-terna está tendo uma inflexão queacho bastante positiva, no caso daAmérica Latina. Não tenho dúvida dis-so. Acho, por exemplo, que a relação,o enfrentamento da problemática da

ALCA vai ser mais afirmativa do queseria com o Serra. Mais afirmativa.Uma abertura para a África - pareceque está nos planos, com a União Eu-ropéia - ou seja, uma política que nãoé automaticamente alinhada a Wa-shington. acho que isso está mais visí-vel. Mas atenção, eu insisto: a políticade Fernando Henrique nunca foi aliadade Washington, incondicional. Achoque há uma ênfase - no caso da políti-

ca externa - uma ênfasemaior agora, mas é umaênfase. Acho que parte doItamarati, que sempre reve-lou uma grande autonomia.Não é de hoje. Vejo, comcerto cuidado, uma certaênfase no trato - do ponto

de vista formal - da dívida social, dasquestões sociais, que não tinha omesmo sublinhado no governo Fer-nando Henrique. Mas isso em nadacolide com o que me parece o caroçode tudo isso, que é a orientação ma-croeconômica, que é a mesma. Aliás,não é a mesma; está mais acentuada.Veja-se o problema do superávit pri-mário, só para dar um exemplo. O quequero dizer com isso? Estou convenci-do de que uma determinada orienta-ção macroeconômica abre certas pos-sibilidades de políticas sociais. Note:certas possibilidades. As políticas so-ciais não são uma derivação imediatada orientação macroeconômica. Masa orientação macroeconômica é deci-siva para a orientação das políticassociais. Você pode ter Fome Zero,Fome 100, bolsa, o escambau, pro-gramas focalizados ou não. Mas umacoisa é clara: com esta orientaçãoeconômico-financeira - esta - não há

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 129UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Vejo, com certo cuidado, uma certa ênfase no trato - do ponto de vista formal - da dívida so-cial, das questões sociais, que não tinha o mesmo sublinhado no governo Fernando Henrique.Mas isso em nada colide com o que me parece o caroço de tudo isso, que é a orientação ma-croeconômica, que é a mesma. Aliás, não é a mesma; está mais acentuada.

Entrevista: José Paulo Netto

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nem geração de empregos, nem hácondições de implementar políticassociais que sejam, de fato, impactan-tes na vida da população. Não há.Quando o Presidente da Repúblicadiz que não tem milagre, que nãotem mágica, tinha toda a razão. Ago-ra, isso está na ótica da formulaçãode uma pessoa importante neste go-verno que é o Prof. Dr. Cristovam Bu-arque. Em 1998, no período eleitoral,Cristovam Buarque deu uma entrevis-ta nas Páginas Amarelas da revistaVeja, na qual dizia o seguinte: Lulapode ganhar a eleição e nós pode-mos até conservar a equipe econômi-ca - leia-se Malan e mais não seiquem -, porque a política econômicapode ser essa, mas a nossa políticasocial vai ser outra. Não vai ser. Nãohá substantivas alterações na orienta-ção das políticas sociais, a manter-seessa orientação macroeconômica.Isso para mim é o eixo de continuida-de. Ponto. O resto é adjetivo. Agora,há similitudes. A desqualificação dequem discorda. Lembram de Fernan-do Henrique? É neobobo, é não-sei-o-quê. É a mesma coisa: é radical;mesmo tipo de desqualificação. Amesma coisa. Uma arrogância! A arro-gância de Fernando Henrique era ex-plícita. Fernando Henrique é um ho-mem arrogante, é ontologicamentearrogante. Esses aí são conjuntural-mente arrogantes. Aquela máscara doMalan é o sorriso do Palocci.

US - Professor, gostaria que o se-nhor tocasse mais num ponto queanotei. Nos países desenvolvidos, aEducação, Saúde, Ciência, Tecnologia,Transporte foram investimentos quecontribuíram para o aumento da qua-lidade de vida da população. Por queno Brasil isso é tão difícil? Essas são asáreas preferidas como alvo dos cortesde orçamento e outros cortes.

JPN - A gente tem queconsiderar isso de duas ma-neiras. Em primeiro lugar, sese está pensando - eu creioque sim - na Europa Oci-dental, na Alemanha, Fran-ça, Inglaterra, tem que lem-brar que houve um ciclo dedesenvolvimento capitalista entre areconstrução do 2º pós-Guerra até fi-nais da década de 60, em que parausar aquela linguagem do Mandel - seteve uma onda longa expansiva. Istofoi condição, por exemplo, de grandesconquistas e, dependendo da ótica, degrandes concessões - não quero entraraqui neste debate - mas a constituição,por exemplo, dos Estados de Bem-Es-tar Social. Hoje - e este hoje é o pós-70 - com mudanças nos padrões deacumulação, o surgimento daquiloque o Mandel ia chamar - não mais deum longo ciclo expansivo do capitalis-mo - de “um longo ciclo recessivo”, es-sas condições mudam substantiva-mente. Eu diria que mudaram inclusi-ve nos países cêntricos. E mudaram deuma maneira - pensar a reiteraçãodisso hoje no Brasil é muito complica-do. Mas acho que há um outro ele-mento, um elemento que me parecefundamental: o caráter historicamentedependente, a dependência associadadas nossas franjas burguesas, da nossaoligarquia financeira aos desígnios dospaíses cêntricos. O que ficou aqui sem-pre foi migalha, o que ficou aqui sem-pre foi resto. Você nunca teve um in-vestimento pesado nisso; fora algunsmomentos muito localizados na histó-ria brasileira, isso sempre foi visto co-mo gasto e não como investimento. Eudiria que sobretudo, o que se tem apartir de final dos anos 80, com essa

retórica neoliberal, é meter atesoura nos fundos públicospara gastos sociais, mas nãonos países cêntricos. Aqui. Oneoliberalismo é para usoexterno. O neoliberalismotatcheriano - quero lembrarque ela causou um desastre

danado na Inglaterra - não acaboucom o National Health, com o ServiçoNacional de Saúde. Dizer que o Estadode Bem-Estar acabou é um negóciomeio complicado. Os investimentossociais - se olhar os dados da OCDEvê-se que, na Europa Ocidental e naEuropa Nórdica, não caíram substanti-vamente e, em alguns países, até cres-ceram. A idéia dos cortes é, aqui, paranós. E por quê? Porque é aqui queestão botando dinheiro a juros estra-tosféricos. Então se tem que cortarpara implorar - entre aspas - o paga-mento da dívida. Então, nesse sentidoé que aqui, não se faz investimentomais; faz-se o possível para custearessa porcaria que está aí, quando nãoa sucateia ou quando não a privatiza.Por quê? Porque esse investimento,aqui, não é rentável para o capital in-ternacional. Até o fim deste ano, vãoespalhar 13 bilhões da dívida. Das re-servas de quarenta e tantos, queremfechar reserva com divisas em 30 bi-lhões. Por quê? Porque 13 bilhões vãoser sangrados. Não há investimentofundamental nessas áreas, por quê?Porque isso seria estancar a hemorra-gia da dívida. Eu não tenho dúvida deque essa é a questão central. Há ou-tros problemas menores. Essa concep-ção de que tem que se pagar tudo oque eles lá fora, querem, correspondeuma certa concepção de desenvolvi-mento tecnológico. Para que desen-

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Não há substantivas alterações na orientação das políticassociais, a manter-se essa orientação macroeconômica. Isso paramim é o eixo de continuidade. Ponto. O resto é adjetivo.

Entrevista: José Paulo Netto

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volvimento tecnológico? Compra-se opacote pronto.

Nenhuma veleidade de - não é in-dependência, autarquia, não é isso -desenvolvimento tecnológico.

De fato, é mais barato comprar opacote; eles pensam gerir uma socie-dade com a lógica do caixa do bote-quim lá da esquina: é o deve e o ha-ver, aquilo que vai pagar e o que vaisair. É evidente que, com essa lógicagerencial microscópica, é mais baratocomprar pacote tecnológico do queconstituir uma massa crítica. Eu nãotenho dúvida de que esse é o caroçodo problema. Para que se ter Uni-versidade e Centro de Pesquisa? Porque se vai investir na pesquisa? Custacaro, vai ter conflito, vai ter projetosindustriais... Não tem importânciaessa porcaria. Tranca-se o Centro dePesquisa, avilta-se salário de pesqui-sador, não se renova equipamento.

Aí, das duas, uma: ou o se vai para aempresa privada ou se vai para oexterior. E aí se passa a ter, nas Uni-versidades, verdadeiros escolões.Pode-se até fazer ensino à distânciauniversitário. Desse jeito, não tem in-vestigação, não tem pesquisa, nãoprecisa de investimento. Eu estouconvencido de que se começa - oPaulo Renato disse uma vez que eramais barato comprar tecnologia.Então por que vai reiterar a pesquisaaqui? Ela está pronta! Esse troço seadequa, se encaixa: se tem uma tec-nologia de baixo custo - o que elaimplica de dependência é outra con-versa, isso não aparece - mas você vaiter uma tecnologia de baixo custo, vaiinvestir pouco e vai sobrar mais parapagar juros e juros estratosféricos.Tanto da dívida externa quando da

interna. Atenção! Não esqueça que ogoverno Fernando Henrique - eu nãosei se triplicou, quaduplicou ou sextu-plicou - a dívida interna. Do ponto devista efetivo, isso é impagável. Maseles também não querem receber; sóquerem receber os juros. E não es-queça que se tem um problema, pri-vatiza-se a Previdência: cria-se ummercado securitário excelente. Nãoprecisa nem botar a mão na Petro-brás, já que dá tanto rolo botar a mãona Petrobrás, bota-se a mão noutracoisa. Agora, a hipoteca disso para ofuturo é claríssima, sobretudo nummundo onde o imperialismo norte-americano sequer busca, ao contráriode dez anos atrás, validação emfóruns multilaterais. Para fazer aqueletroço, no Kosovo, eles buscaram o mí-nimo de legitimação; agora manda-ram a ONU ao diabo e não se deramnem ao trabalho de levar as armas

químicas e enterrar lá. Opretexto desapareceu. Adiscussão hoje, qual é? É opetróleo. Amanhã são osrecursos hídricos. Eu querolembrar que esse país aquitem 15% dos recursos hí-dricos superficiais do mun-do. Chega? A biodiversidade amazô-nica. Para isso você mete o Plano Co-lômbia, para isso você enfia a ALCAgoela abaixo.

US - Como o senhor faria uma ava-liação do nosso instrumento de luta,talvez o mais eficiente até hoje para oMovimento Docente, que é a greve?Estamos com alguns indicativos degreve, gostaria que o senhor discorres-se sobre esse recurso.

JPN - Eu entrei aqui em 87. Todas

as greves que foram declaradas, eu mesolidarizei, mesmo não concordandocom elas. A última greve - você partici-pou de debates aqui e conhece a mi-nha posição [virando-se para Janete] -eu sou contra greve por tempo inde-terminado. Acho que, na universidadebrasileira, greve por tempo indetermi-nado tem resultados muito complica-dos: a gente sabe quando entra, masnão tem a menor idéia de quando sai.Também acho pouco eficaz aquele ti-po de greve “contra o FMI, contra ocapitalismo e até a vitória final”. O queeu quero dizer com isso? Uma grevenuma instituição como a Universidadeé diferente de uma greve num setorimediatamente produtivo. Num setorimediatamente produtivo, quando sefaz uma greve, pode-se ter um blo-queio da mídia, mas se traz proble-mas. Uma greve, no setor produtivo,cria problemas porque interrompe flu-

xos de produção, atrapalhao movimento do capital. En-tão, mesmo que seja isola-da, do ponto de vista dainformação, ela constitui umproblema real. Numa insti-tuição como a universidadebrasileira, se a mídia não re-

percute a greve, ela tende a se isolar;tende a ser alvo do conhecimento deestudantes, professores e servidoresda universidade. Então, é facilmentebatível. Estou dizendo tudo isso paraafirmar o seguinte: acho que este é uminstrumento fundamental da nossa lu-ta, mas há que tomar três cuidadoscom ele: 1º) não banalizá-lo; 2º) sópartir para ele quando se tiver condi-ção de sustentá-lo; 3º) para mim omais importante - trabalhar com umaavaliação de conjuntura para saber

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 131UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

E não esqueça que se tem um problema, privatiza-se a Previdência: cria-se um mercado secu-ritário excelente. Não precisa nem botar a mão na Petrobrás, já que dá tanto rolo botar a mãona Petrobrás, bota-se a mão noutra coisa.

Entrevista: José Paulo Netto

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como o outro lado vai responder. Nós- desde que eu estou aqui; não querocontar os dois anos que trabalheiantes, em Minas, porque erasob a ditadura e não se fezgreve nenhuma - mas todasas greves de que participei,sempre recebi o meu salário.Gostaria de saber como éque nós conduziríamos umagreve se, ao cabo do 35º dia

de greve, o governo cortasse os salá-rios. Nós não temos Fundo de Greve,não temos tradição de solidariedade -pelo menos desconheço isso, ao me-nos nos mesmos padrões que conhe-cemos do trabalhadores do setor ime-diatamente produtivo - então há de seconsiderar a conjuntura, antes de pen-sar em greve. Quero dizer o seguinte:se partirmos para uma greve, vou ser,o último homem do mundo a furaruma greve, mesmo não concordandocom ela. Vou tentar, nos fóruns ade-quados, dizer que sou contra. Decre-tada por um organismo de categoria,não serei eu - pelo contrário, sou mui-to disciplinado - a furá-la, mas achoque isso tem que ser tratado commuito cuidado. E quero dizer mais:acho que, sob esse governo, greve deprofessor vai ter um tratamento dife-rente. Direi mais: vai ter um tratamen-to pior, porque esses caras precisamdemonstrar que são bons moços, quejá esqueceram o radicalismo de algumtempo atrás. Posso estar enganado,gostaria de estar. Por isso, acho quedevemos encontrar formas contínuasde chatear esses caras; paralisações,reiteradas paralisações. Agora, parali-sações que tenham reverberação narua, tenham reverberação em aliançassindicais. Não podemos ficar nos

campi; se ficarmos nos campi, estare-mos derrotados, até porque, com aimprensa oficialista brasileira - que co-

nhecemos bem - seremosisolados e o Governo Fede-ral vai ser vítima desses va-gabundos, desses marajás,desses privilegiados. Não seise recordam, mas na nossaúltima longa greve, o quesaiu de salário de professor

absolutamente astronômico, isso tudovoltará. Agora, acho que esse governocorta salário. Agora, temos que obrigaresse governo a mostrar a cara dele. Voudar um exemplo: esse governo diz queé pela autonomia universitária. Então,temos que exercitar essa autonomia,que eles venham nos dizer que não.

US - Na greve passada, em 2001,nós tivemos salários cortados.

JPN - Quinze dias.

US - Não foram quinze dias, maisde um mês.

JPN - Quero ver esse governo fazerisso: botar o pau na mesa e dizer “nãopago”. Não pago. Nós fomos a base deapoio deles. Se eles não exemplariza-rem em nós, vão exemplarizar emquem? Pensa o seguinte: FernandoHenrique com os petroleiros, fez o quea ditadura não fez; botou-os lá paradar porrada. Por quê? Isso é extrema-mente perverso, cruel, mas do pontode vista dele, era isso mesmo, porqueali estava a base do que era a sua opo-sição. Então, bate forte. Foi isso o queele fez. Tentou quebrar a espinha domovimento sindical. E teve sucesso.Moveu o Judiciário politicamente...lembram daquelas condenações a tre-zentos e tal de dinheiro por dia que o

Sindicato tinha que pagar? Não sei emque deu isso, porque era inviável. Masde qualquer maneira, era uma chanta-gem horrorosa. Mas, por que ele fezisso? Porque estava ali a espinha doque era a articulação da oposição aele. Nesse momento, o que é a intelec-tualidade? É o que está “enchendo osaco” deles. Vocês acham que o trata-mento vai ser qual? Vai ser de exem-plarização. Eu não tenho dúvida disso.

Então, quem entrar na greve, não podeentrar aventureiramente; tem que sa-ber o que vai enfrentar. Esse não é onegócio da Alegria, Alegria, Alegria Li-mitada. Por isso, acho que, antes de irpara a greve, deveríamos trabalhar su-cessivas paralisações, que se infernizebastante a vida deles, com uma pro-gramação que extravase os campi -não pode ser paralisação para ir para apraia -, tem que ser paralisação paradarmos aulas abertas, inventar umauniversidade aberta durante a greve.Uma universidade aberta. E tentar am-pliar o raio de alianças. Trazer para cáo movimento sindical e ir lá. Fora dis-so... até pela extração social nossa, queé outra coisa complicada. Até pelonosso conservadorismo, até pelo pâni-co de não poder pagar as contas nofim do mês, porque isso para nós é umproblema. Eu sou sócio do Olavo Se-túbal; nós dois temos um apartamen-to. Se eu atraso a minha prestação, ocara vem, me cobra... Isso para a pe-quena burguesia é um desastre, umhorror. Então, esse poder de pressão,eles têm. Se a gente sair para umagreve agora? Sabe qual a popularida-de do Luiz Inácio Lula da Silva? 70%.Eu estava na Argentina, na primeirasemana de abril, na semana imedia-tamente anterior ao primeiro turno. A

132 - DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Sob esse governo, greve de professor vai ter um tratamento diferente. Direi mais: vai ter umtratamento pior, porque esses caras precisam demonstrar que são bons moços, que já esque-ceram o radicalismo de algum tempo atrás.

Entrevista: José Paulo Netto

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população argentina queria votar noLula, 56% de intenção de votos noLula. Vocês acham que vai acontecero que com a gente? Eles todos sãopolíticos qualificados; aprenderamcom Maquiavel “tem que bater du-rante posse, porque depois esquece”.Por isso, essas duas Reformas ime-diatas; daí essa pressa. Vão ter trêsanos depois para botar panos quen-tes. Isso aí não tem nada de acaso,não tem acaso nisso. Está tudo orga-nizadinho. Temos que ter clareza daarapuca que vamos entrar. Se entrar,estarei lá, como sempre estive. Ago-ra, tendo clareza do seguinte: temosque esgotar - ou, pelo menos, treinar- outros mecanismos. Vou contaruma historinha. Na nossa última gre-ve, um militante acadêmico-sindical,que é da Medicina, estava puxandoprofessor para ir às Assembléias, noAuditório do CT. Então, foi atrás deum velho Professor Titular de suaárea, um grande conservador, mas deenorme prestígio, foi professor dele.Eles se gostam muito, apesar dasdiferenças políticas e disse: “profes-sor, é importante para o senhor. Essagreve não é só por salário; é, tambémem defesa da universidade, que estáhumilhada, especialmente a UFRJ,com esse Interventor que botaramaqui”. E o professor, que gostava mui-to dele, sabe quem é ele, dizia: “eu teconheço; isso é coisa de co-munista. Você está queren-do me levar para coisa decomunista”. E o outro dizia:“não é, professor; é ummovimento saudável”. Essehomem conseguiu arrastaro outro para lá. Ele foi, sen-

tou-se e começaram as intervenções.Um dos oradores tomou a palavra ecomeçou a falar da luta dos trabalha-dores, que a luta dos trabalhadoresvinha desde a Comuna de Paris, pas-sou pela Revolução Socialista de1917..., o velhinho se levantou, olhoupara a cara do outro e disse: “eu nãofalei que você estava me trazendopara coisa de comunista? Isso nãotem nada de universidade; vou-meembora para casa”. E se foi. Quandose faz uma greve universitária e, parajustificá-la, vai-se lá na Comuna deParis, não dá. Isso é conversa paraconvertido, não para quem está aliquerendo discutir o salário, os labo-ratórios. Temos de relacionar issocom o quadro econômico-social, masde forma que fiquem bem claros osentido e o significado dessa luta,que é de uma corporação, mas não énecessariamente corporativa; que éparticular, mas não é necessariamen-te particularista. O governo vai passarpor cima de nós como um trator. Àsvezes a gente tem que ficar mesmodebaixo do trator; faz parte da nossaluta. Mas tem que calcular isso bem.Partir para uma greve, agora... Escuta,quantas pessoas havia no ato do dia15 de maio, na Cinelândia? Eram 600a 700 pessoas. Por quê? Vamos pararpara pensar; não vamos dizer que amassa é atrasada e ignorante. Não é

isso. Por que é na Cinelân-dia? Quantos campi nós te-mos? Tem que se levar emconta quem é o professoruniversitário, e não propora ele uma luta que é pró-pria de operário. Ele nãovai. Ele tem outras expec-

tativas, tem outra inserção sócio-urbana. Nós temos que considerar is-so, porque senão vamos querer for-mas de luta ou avançadíssimas ouatrasadíssimas para um sujeito políti-co que não vai lá. Nós temos queganhá-lo e não culpabilizá-lo; eletem que ir sabendo que é importan-te para ele. Então nós temos queinventar a utilização desse campusaqui; abrir para a população, ir nosvelhinhos da Lauro Muller, ali para omorro e fazer atividades, abrir a uni-versidade, dizer o que se passa ládentro. O pessoal mora ali do lado enão sabe que unidades têm aqui.Vamos utilizar esse equipamento,que é dinheiro do povo brasileiro.Por que só nós? Esse é um troço queeu conversei muito com o Aloísio eque ele está disposto a patrocinar.Esse é um grande equipamento! Issoaqui fecha seis, sete horas da noite,na sexta feira, e acaba. Não tem na-da aqui no sábado e no domingo.Um equipamento como esse!

US - Nós, como sindicalistas, esta-mos vivendo um período de frustra-ção. Estamos, de certa forma, órfãos,porque o nosso trabalho é um traba-lho junto ao Parlamento, que se achadesfigurado. Gostaríamos que o se-nhor deixasse uma mensagem paranós, nesse momento de apreensão,de ausência de perspectiva, no senti-do de um maior alento para o nossomovimento sindical.

JPN - Eu acho que o que a gentetem -você usou bem - é um desalen-to, um desconsolo, uma sensaçãoque é uma sensação - não é de quea gente foi enganado - de que a gen-te se enganou. Quando você senteque outrem te engana, você fica re-voltado, você mobiliza a tua reação.Eu acho que o que se passa hoje,com setores democráticos, setores

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 133UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

O governo vai passar por cima de nós como um trator. Àsvezes a gente tem que ficar mesmo debaixo do trator; fazparte da nossa luta. Mas tem que calcular isso bem. Partirpara uma greve, agora...

Entrevista: José Paulo Netto

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progressistas e a esquerda, mas es-pecialmente a esquerda, - num senti-do muito amplo de esquerda - é essasensação de desalento, de desconso-lo e de que a gente se enganou. Nãoé que a gente foi enganado; é que agente se enganou. Euquero dizer o seguinte:nunca tive ilusões comrelação ao governo decoalizão - porque esseé um governo de coali-zão democrática e nãovejo como não tenhaque ser, - nunca tiveilusões acerca dos limi-tes do reformismo doPT - e uso reformismo

aqui não com sentido pejorativo -,acho que reformas são importantes eluto também por reformas; a opçãopara mim não é reforma ou revolu-ção: é reforma e revolução. Acho quehá reformas que abrem o caminhopara transformações substantivas, navida social. Há uma sensação dedesalento. Esse movimento sindicalnão é um movimento sindical qual-quer, é um movimento sindical do-cente. A universidade brasileira, como monte de problemas que ela tem -e não são poucos - ainda é um espa-ço onde há vida inteligente. Tenhodemonstrações diárias de que aindahá vida inteligente na universidade.Cabe a nós, intelectuais - porque é oque somos -três tarefas, nesse mo-mento, que não são novas, mas queganham importância. Primeiro, conti-nuar a exercer a crítica, a mais radicalpossível. A crítica teórica, a críticapolítica, crítica entendida não no sen-tido de ser contra, mas de procurarentender o conjunto de causalidades,

procurar entender a realidade brasi-leira. Essa é uma tarefa nossa da qualnão podemos abrir mão. Segundoesse é o passo que é fundamental -entender que as dificuldades paradesbloquear o caminho das reformas

sociais - notem queestou falando em re-formas sociais - masreformas sociais quetenham um significa-do capaz de ir alémdelas. Os obstáculos,as dificuldades sãoenormes nesse país e,portanto, isso não sefaz da noite para odia, isso não se faz

tendo apenas o governo, do pontode vista institucional. Então, nós,fazendo e exercendo aquela críticaradical, temos que entender, com cla-reza, distinguir aquilo que é possíveldo que é desejável. Não para noscontentarmos com o possível, só;mas para entender que o possível sóo é verdadeiramente se tiver umarelação com o desejável. É isso quepode evitar que a gente caia no es-querdismo tolo, no radicalismo ver-bal ou então na complacência e nacumplicidade. Mas acho que a gentetem que dar um outro passo, que éentender que, na história das socie-dades, na história dos povos, na his-tória do Brasil, há momentos de apa-rente acalmia, nos quais a gente tema impressão de que está tudo retro-cedendo, que está tudo voltando pa-ra trás. Mas a gente tem que afinar oolho para entender - e isso é umapassagem da adaptação cinemato-gráfica do início dos anos 80, doLeon Hischmann, um dos mais lúci-

dos intelectuais brasileiros, numaadaptação que fez da peça do Guar-nieri Eles não Usam Black Tie, ondeo pai diz para o filho: “a vida não éum lago; a vida é um rio. Esse negó-cio não está parado; esse negócio es-tá andando”. A gente tem que teressa percepção. É por isso que, sesou pessimista, a curto prazo, o meupessimismo não me leva ao imobilis-mo e à catatonia, porque sou pessi-mista com relação a tudo isso é quequero agir, que quero intervir. E soumuito otimista no médio e no longoprazo. O Brasil é muito mais que umpaís viável. É um país que, viável, se-rá maravilhoso e vai girar com toda aAmérica Latina e vai girar com o

mundo. Sabe por quê? (Acho queesse é o dilema desse governo, sópara voltar a ele) cada vez é mais difí-cil reformar o capitalismo e, a cadavez, o dilema se põe quando se vaidar um passo: ou o socialismo ou abarbárie. Não tem alternativa. Se agente vai realizar o primeiro ou mer-gulhar na segunda também dependede nós. E acho que nós - trabalhado-res brasileiros, docentes brasileiros -estamos longe de dizer a última pala-vra, ainda vamos falar muito.

Entrevista com José Paulo Netto. Universidade e Sociedade nº 30.Data: 26 de junho de 2003.Local: Escola de Serviço Social/UFRJ

*Antônio Ponciano Bezerra é professordoutor na Universidade Federal de Sergipe,2º vice-presidente da Regional NE-III doANDES-SN e editor da revista Universidadee Sociedade.

**Janete Luzia Leite é professora doutorana Escola de Serviço Social da UniversidadeFederal do Rio de Janeiro, 1ª vice-presiden-te da Regional RJ do ANDES-SN e editoraadjunta da revista Universidade e So-ciedade.

134 - DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

É essa sensação de desalento, de desconsolo e de que a gente se enganou. Não é que a gentefoi enganado; é que a gente se enganou. Eu quero dizer o seguinte: nunca tive ilusões com rela-ção ao governo de coalizão.

Entrevista: José Paulo Netto

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Observação preliminarEste documento padecerá de algumasdificuldades. Normalmente, começa-ríamos com a análise da conjunturainternacional para termos o quadrogeral onde se movem os sujeitos naação concreta seja na América Latina,seja no Brasil. Dado que o momentobrasileiro atual apresenta um semnúmero de “novas” facetas, nos limi-taremos, desde logo, a trabalhar duasgrandes questões: a da natureza dogoverno e o modo pelo qual eleimplementa suas políticas sociais,destacando-se a Reforma daPrevidência. Isto nos permitirá perce-ber o grau da novidade (ou não) daconjuntura e entender os passos queo movimento sindical deve realizar.

Mudança ou Transformação?Lewis Carrol, ao escrever as aventu-

ras de Alice, estava longe de imaginaro quanto a política de um país, comoo nosso, poderia copiar o seu texto.Alice e Humpty Dumpty - o ovo que seequilibrava no muro - travam um ilus-trativo debate. Alice objeta o sentido

de uma palavra, ao que Humpty Dum-pty responde: “quando uso uma pala-vra ela significa exatamente aquilo queeu quero que ela signifique... nem

mais nem menos”. Alice não se confor-ma e, segura de sua lógica, retruca: “aquestão é saber se o senhor pode fa-zer as palavras dizerem coisas diferen-

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 137UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Que fazer? A conjuntura

e as nossas tarefas1

Edmundo Fernandes Dias*

Debates Contemporâneos

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tes”. Humpty imperialmente sentencia:“a questão é saber quem é quemanda. É só isso”. Sob a aparência doparadoxo, esse curto diálogo fala dopoder das palavras e das palavras dopoder, vale dizer, das concepções demundo, dos projetos políticos, enfim,da materialidade da vida social.

As ideologias (e as palavras que asexpressam e viabilizam) nunca são in-gênuas. Delas decorrem, entre outras,as formas de realização da dominação.É óbvio que quando alguém usa aspalavras de um discurso e realiza osseus enunciados está, de fato, aindaque afirme estar realizando o seuoposto, implementando uma dadavisão de mundo e os projetos políticosdela decorrentes, mesmo que não osaiba e mesmo que estes sejam os doseu adversário.

A Carta de Belém, sabiamente, pro-clamou: “é preciso dar à palavra mu-dança o significado da transformaçãosocial”. Apesar de tantos aggiorna-menti de posições, de rupturas (osmais otimistas afirmarão que são ape-nas táticas) em relação ao programahistórico da oposição, alguns militan-tes vêm manifestando publicamente acrença de que, com o resultado doprocesso eleitoral, teremos a possibili-dade de realizar as transformações ne-cessárias à nossa sociedade e que, porisso, devemos... dar um tempo!. Afinal,o novo governo tem pouco mais deum mês e não dá para dizer que tudojá está escrito: nem que as medidasrecentes são a sua tônica nem que, se-guramente, as mudanças não virão.

O novo discurso é o da adequação,tática (dizem) aos problemas coloca-dos pela situação internacional. Aspropostas históricas da militância ce-dem terreno aos especialistas. A razãotécnica reduz a política à retórica, tra-zendo assim para uma racionalidadeaparentemente desprovida de proje-tos. Em tempos de discurso único e de

pseudo-inexorabilidades, a históriaaparece como natureza. Rupturas sãoanticientíficas e mesmo subversivas,como afirma Norberto Bobbio (Cf. Ofuturo da democracia. Uma defesadas regras do jogo, Paz e Terra, Rio deJaneiro, 1986). Quando falarmos doConselho de Desenvolvimento Econô-mico e Social (daqui para frente citado

como Conselho do Pacto), examinare-mos o alcance desta tese.

Quando alguém se elege em nomedas esperanças de mutação de práti-cas e discursos e acaba por implemen-tar a racionalidade que anteriormentenegava, realiza o chamado transfor-mismo. Imortalizado no célebre ro-mance Il Gatopardo, de Tomaso diLampedusa, esse procedimento, cen-tral na política burguesa, expressa anecessidade de obter a legitimidadedas massas e atender às necessidadesreais do capital. É preciso que tudomude para que tudo permaneça: eis asua síntese. As contorções ideológicas,os usos metafóricos de palavras e ges-tos, não conseguem, apesar da repeti-ção e do “talento” desses atores, negara natureza desses atos. Lembremos adiferença entre atores e sujeitos. Osprimeiros, por mais talentosos que se-jam, realizam um papel, vivem as falase os gestos determinados pelo autorque é sempre um outro, externo. Ossujeitos, pelo contrário, determinamsuas falas, não representam2. Os atoresnão falam de embates de projetos, vi-vem “ocho cuartos de lo mismo”.

Disso se trata neste documento. NoBrasil, todos, absolutamente todos -dos mais reacionários aos chamadosdemocratas - são mudancistas, a favordas reformas. Ninguém se afirma umreacionário conseqüente. E este é umdos X da questão: mudanças, refor-mas, claro. Mas, qual reforma? Qualmudança? Para que e para quem?

A tese defendida por nós em Be-lém continua mais atual que nunca: “Aconstrução de um projeto nacional éhoje uma necessidade crucial. Mas,podemos fazer tal construção se per-dermos nossa identidade? Penso quequando adotamos uma determinadalinguagem, estamos incorporando a vi-são política que ela traz embutida.Exemplo: nosso problema é a gover-nabilidade? Ou é a reconstrução da so-ciedade? Será que acreditamos mes-mo que isso seja um mero jogo depalavras de radicais? Ou será que nãoaprendemos com a história da huma-nidade que nenhuma classe dominan-te se suicida ou abdica do seu poderreal? Quando Delfim Neto elogia oprograma de um partido do campodos trabalhadores, ele o faz em nomedo seu projeto e não do nosso. Ouserá que passamos a acreditar que ahistória terminou, de que não existemmais conflitos de classe, mas, apenasde classificação, como dizem os regu-lacionistas (patrocinadores do progra-ma que levou Jospin à derrota)?”

A conjuntura pós-eleitoralMuitos companheiros, quando do

45º CONAD, viviam um misto de eufo-ria e segurança sobre o futuro que nosesperava. Críticos de governos anterio-res, eles supunham que, com a vitóriade Lula, o horizonte se mudaria comuma relativa rapidez. Ninguém, é ob-vio, falava de milagres ou os esperava.Mas a tranqüilidade era uma constan-te, quase como se o futuro já estivessetraçado. Os que não compartilhavam

138 - DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Ninguém se afirma um

reacionário conseqüente.

E este é um dos X da questão:

mudanças, reformas, claro.

Mas, qual reforma?

Qual mudança?

Para que e para quem?

Debates Contemporâneos

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desse clima eram vistos como incapa-zes de perceber que mudara a realida-de. Chegou-se mesmo a dizer que nãopoderíamos nos contrapor ao governo“democrático-popular”. Apesar disso, osindicato, sábia, coletiva e democrati-camente, manteve sua posição históri-ca de autonomia.

Vivíamos e vivemos uma conjuntu-ra marcada por uma perspectiva de re-alização de projetos pelos quais luta-mos desde a implementação da dita-dura e, para alguns, mesmo desde an-tes. O século vinte parecia ser o séculoda derrota total. Pelo menos isso eradito e repetido por muitos e massifica-do pela mídia e pelos poderes. A déca-da de 80 estimulara, de maneira vívi-da, nossa imaginação fortementecombalida pelo terror do AI-5. Muitosafirmávamos que, a cada nova tentati-va eleitoral, o programa da oposição,com as exceções de praxe, ficava maise mais diluído. A crise das organiza-ções democráticas parecia não ter fim.Os dominantes - da direita clássica aotucanato - quiseram nos fazer crer quea história terminara. No justo momen-to em que o tucanato imaginava em-placar os seus “vinte anos gloriosos”,refundando, a seu modo, o capitalis-mo, não contavam que a populaçãofizesse ainda um renovado e decisivoesforço para afirmar-se e que umaimensa massa de vontades, díspares,contraditórias, resolveu dar um para-deiro ao pesadelo.

Os dominantes reagiram. Ogolpe da transição foi fantástico. Apretexto de uma passagem civiliza-da no comando da nação, a transi-ção teve o efeito de neutralizar ascríticas ao governo anterior. Os tuca-nos, confiantes na ausência de críti-ca, reagiram fortemente às poucas eparcimoniosas críticas que foramfeitas então. Perdeu-se, assim, apossibilidade efetiva de apresentarum primeiro balanço da situação

real que o novo governo encontrou.Sob a égide da palavra de ordem “A

esperança venceu o medo”, uma marévermelha tomou as ruas e as praças.Nunca se vira coisa igual. Manifesta-ções como essa, talvez, só no clima daconquista da Copa do Mundo. O desa-fio agora era outro: o de governar estepaís. Cada um parecia ser um gover-nante. A posse foi apoteótica. Os traba-lhadores romperam o protocolo e, sim-bolicamente, tomaram posse também.

A questão agora premente é a deentender a natureza do governo. Veioa composição do ministério e, logo de-pois, as primeiras medidas. O segredoda esfinge se revelou. O ministériocontemplou posições políticas muitodiversificadas. A Agricultura e o Desen-volvimento diretamente sob o controledos empresários. A Fazenda reafirmoue radicalizou o acordo com o FMI. OBanco Central, ao qual o novo governopretende conceder autonomia, foi en-tregue a um ex-dirigente máximo doBank of Boston, segundo maior bancocredor do Brasil e deputado eleito pelo

PSDB. Sobre ele, os conhecedores daárea financeira dizem que, comparadoa Armínio Fraga, se trata de persona-gem menor. O projeto de autonomiado Banco Central, que o governo dasmudanças colocou no seu programa,concederá a essa instituição poderesdecisivos na determinação das nossaspolíticas macroeconômicas. Livre, ébom que se diga, de toda e qualquerpressão política das classes trabalha-doras. Sobre isso Chico de Oliveira nasua aula “Em busca do consenso per-dido” (Folha de São Paulo, 19 de feve-reiro de 2003, p. A-6) expressa, comtoda a clareza, os limites sociais daproposta. Para ele a autonomia é “aanulação da política” (idem) e maisadiante: “elege-se o presidente paranão governar”. O governo Lula se auto-limita em um dos locais essenciais,não apenas para a vitória ou derrotado seu projeto mas, mais do que isso,vitais para a população brasileira. O“mercado” ficou bem contemplado.Em grande medida, o segundo time,desse e de outros ministérios, mantêmboa parte da equipe de Cardoso.

Embora muitos militantes procla-mem em alto e bom som “somos go-verno”, o clima generalizado de euforianão é vivido por todos. Aos militantescabe, e caberá sempre, a responsabili-dade maior de não se deixar cegar pe-los êxitos reais ou aparentes. Uma vitó-ria eleitoral não apaga a história nemelimina as próprias diferenças existen-tes no núcleo duro dos vencedores. Eisto está cada vez mais claro com os“enquadramentos”, as “punições” aos“radicais” do próprio partido vencedor.Um partido democrático que nãopode conviver com a diferença, sequeré formalmente digno desse nome.

Já no CONAD afirmamos nossa cer-teza de que uma eleição, por maislegítima que tenha sido a vitória e pormaior que tenha sido o número devotos, fosse capaz de mudar o cenário

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Aos militantes cabe,

e caberá sempre, a

responsabilidade maior

de não se deixar cegar pelos

êxitos reais ou aparentes.

Uma vitória eleitoral

não apaga a história

nem elimina as próprias

diferenças existentes no

núcleo duro dos vencedores.

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político de forma considerável. Obvia-mente, as alianças feitas para ganhar aeleição tinham um preço que, já desdea posse e antes mesmo dela começoua ser cobrado. E isso vem gerando,como não poderia deixar de ser, umaclara inflexão no programa governa-mental. O postergar para um futuroincerto, dos nossos programas históri-cos enquanto oposição, sob a capa degarantir a sua governabilidade, a afir-mação de que “agora isso não é possí-vel” não é apenas um adiamento, mas,um afastamento. O discurso ambíguodo ritmo governamental é claro. Se,por um lado, temos que ir com calma“porque não podemos errar”, poroutro, quando se fala da contra-refor-ma da Previdência, ele é exigido hic etnunc, aqui e agora, porque, senão, asfuturas gerações não terão como seaposentar. Esse terrorismo simbólicoganha sua real dimensão quando sesabe que a Itália gastou mais de cincoanos e a França mais de oito para fazer“reforma” similar. Aqui se chegou a fa-lar em noventa... dias. Fala-se agoraem prazo até menor, pelas conseqüên-cias que a intervenção americana trarápara a economia mundial. O PFL, tra-vestido de oposição, se dá ao luxo ide-ológico de exigir pressa na apresenta-ção das propostas. E dando uma gran-de mostra de “sensibilidade política”João Vaccari Neto, do Sindicato dosBancários afirmou, segundo O Estadode São Paulo, de 22 de fevereiro: “Atéo dia 10 de abril dá para fazer umarevolução. Se tiver vontade política faz-se muito em pouco tempo”. Diagnós-tico que, no mínimo, subestima a ca-pacidade de resistência dos trabalha-dores. E dá mostras claras de perda deautonomia desse dirigente sindical.

Consolidada a nova situação de ex-pressão da continuidade, o futuro terá,no mínimo, que ser parido com sacrifí-cios mais imensos que muitos possampensar. Destruídos os serviços públi-

cos, enfraquecidos os organismos derepresentação e defesa da sociedade,como será possível, mais tarde, cons-truir uma sociedade solidária, sem ex-ploradores, sem explorados? Só colhe-mos o que plantarmos. Na citada aulaChico de Oliveira é enfático: “está emgestação uma sociedade de controleque escapa aos rótulos simples doneoliberalismo e do totalitarismo”(idem, grifos nossos). E mais: uma so-ciedade onde “as instituições demo-cráticas e republicanas são o pão es-casso do circo amplo para manter asenergias cidadãs entretidas enquantoos grupos econômicos decidem o queé relevante” (idem, grifos nossos).Caberá à militância dos movimentossociais lutar por inviabilizar essa ten-dência. E isso implicará em uma pos-tura autônoma em relação ao Estado ede compromisso máximo com a maio-

ria da sociedade.A passagem dos cargos de ministro

foi exemplar: Cristovam Buarque elo-giou o grande ministério de Paulo Re-nato; Palocci elogiou o competentíssi-mo Malan e sua política. E as críticasanteriores? Palavras, leva-as o vento.Outro elemento não menos importan-te foi a questão do Orçamento. A equi-pe de transição mexeu aqui e ali, maso fundamental estava organizado pelaequipe de FHC. Golpe de mestre. Paraevitar perda de arrecadação, o novogoverno lutou por aquilo que conde-nou como oposição: a CPMF, a alíquo-ta do imposto de renda etc. Tudo issoao preço do foro privilegiado para FHC,logo generalizado para governadores eprefeitos.

O novo governo parte de um pata-mar claro. A contra-revolução preventi-va, eufemisticamente chamada de Re-forma do Estado, moldou um conjun-to de relações de poder, redesenhan-do a vida social, buscando redefinir edar maior eficácia ao Estado sem, con-tudo, alterar a sua natureza. O Estadobrasileiro não é um país qualquer: eleé central para os destinos do capitalis-mo. Georges Soros, ao aplaudir a falade Lula em Davos, comentou que apóso desastre da Argentina, o sucesso bra-sileiro (do ponto de vista do capital, é

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O aumento do superávit

primário anunciado

por Palocci demonstra

a vontade férrea de “honrar

os contratos”. Os feitos com o

FMI, é claro. Já os contratos

com a sociedade...

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óbvio) é vital para impedir a falênciapolítica do FMI. Ele sabe muito precisa-mente do que está falando. Tanto Pa-locci quanto Meirelles indicaram que oaumento da taxa de juros nada tinha aver com a inflação, mas destinava-se areforçar a confiança dos mercados. Porduas vezes sucessivas, o COPOM au-mentou a taxa SELIC. Ao preço, obvia-mente, da miséria crescente da nossapopulação, da radicalização aindamaior do endividamento interno e dacrucial dívida externa. O aumento dosuperávit primário anunciado por Pa-locci demonstra a vontade férrea de“honrar os contratos”. Os feitos com oFMI, é claro. Já os contratos com asociedade...

A resposta à quadratura do círculoé clara. Aquilo que falamos, por maisde uma década, de que era impossívelpagar a dívida e(x)terna é ironicamen-te comprovado por uma empresaamericana (a AES, controladora daEletropaulo) ao declarar recentementeque não poderia pagar o empréstimo(melhor seria dizer, doação) do BNDESda ordem de US$ 85 milhões e querdar um calote ainda maior: US$ 1,1 bi-lhões. E tem a coragem de afirmar quenão pode pagar a dívida porque o pre-ço dos seus “serviços” é cobrado emreal, mas o contrato que lhe garantiuas benesses é atualizado em dólares,embora tenha feito grossas remessasde lucro para a matriz. Ora, por umlado nos cobram mais e mais viaaumento da taxa SELIC, e, por outro,com base em algo que sempre disse-mos - a dívida é impagável - praticamo calote. Eles, os capitalistas, podem epraticam; nós, as classes trabalhadorase as nações endividadas, não, porquese trata de um crime de lesa-capitalis-mo. Não satisfeitos com a situação, osnovos governantes expressam a“necessidade” de aumentar o superá-vit primário para além do fixado com oFMI. Nenhuma das políticas econômi-

cas foi alterada, pelo contrário, foramreforçadas. Como falar em políticas so-ciais sob este pano de fundo?

A caracterização do governoÉ preciso, inicialmente, dizer que,

apesar de ser um governo com enor-me apoio nas massas trabalhadoras,Lula vem implementando uma políticade radical continuidade do programade FHC. E não dá o menor sinal de re-versão do quadro. Muito pelo contrá-rio. Tarso Genro, em recente artigo naFolha de São Paulo, formulou com cla-reza esse projeto: “moratória da uto-pia não para esquecê-la mas para re-generá-la” (Folha de São Paulo, 30-1-2003. Grifos nossos). Pode haver mo-ratória de utopias? O problema está naclara confusão que ele, como ideólogodestacado do atual governo, faz entresocialismo - que deve ser regenerado -e os chamados regimes do Leste - quedevem ser esquecidos. Como chegarlá a partir do que vem sendo pratica-do? Eis a questão.

Agregue-se a isso a forma da políti-ca praticada por Lula. Trata-se de umafala messiânica, que leva necessaria-mente à despolitização e à desorgani-zação. Ele realiza, cristalinamente,aquilo que a velha UDN acusava aos“populistas”: fala diretamente às mas-sas passando por cima das organiza-ções. Desqualifica os partidos, os sindi-catos, enfim, as organizações das clas-ses trabalhadoras. Típico desse proce-

dimento foi o seu encontro com ascentrais sindicais, quando afirmou queestava na hora de parar de trabalharcom o carro de som e passar a discu-tir os interesses da nação. Nação? Masqual? A dos eternos governantes ou adas classes trabalhadoras? Ao contra-por nação à classe, Lula reproduz, emoutro nível, a discussão, tão cara à bur-guesia, do combate ao corporativismo:faz dos trabalhadores o reduto destemal e se transforma, ipso facto, em sal-vador, em porta voz da totalidade so-cial. Desqualifica as centrais e ajuda oscapitalistas a combater as organiza-ções sindicais e populares, ao mesmotempo em que tem em alta considera-ção as ONGs, aquelas que, segundoele, trabalham com o coração.

O traço messiânico não apenasdesorganiza mas, sobretudo, desedu-ca, acaba por mitificar a política. Asclasses trabalhadoras são chamadaspara apoiar. A decisão, ou fica com ostécnicos ou com o Conselho do PactoSocial, cuja composição revela o pesoda fina flor dos capitalistas. Recria as-sim, perversamente, e sem sabê-lo,uma noção de “classes produtivas”que reúne exploradores e exploradosirmanados pela idéia de nação. Idéia,no mínimo, tipicamente liberal, por-que reduz classes a indivíduos atomi-zados. Este movimento permite que apolítica passe da arena dos conflitos edos movimentos para o espaço dostécnicos, terreno privilegiado da domi-nação burguesa, não obstante as fre-qüentes contradições nas falas de seusministros. O Estado, vale dizer, o Pre-sidente, encarna a sabedoria política eos grandes projetos. O economicismopresente nas práticas e nas falas gover-namentais dificulta enormemente aconcretização da chamada socializa-ção da política e a nega como ativida-de fundamental.

Muitos serão tentados a pensar ogoverno como bonapartista; não nos

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Ao contrapor nação à classe,

Lula reproduz, em outro nível,

a discussão, tão cara à

burguesia, do combate ao

corporativismo: faz dos

trabalhadores o reduto deste

mal e se transforma, ipso

facto, em salvador.

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somamos à estes. Para que haja bona-partismo faz-se necessário (Cf. O 18Brumário) que as forças em presençatenham um tal equilíbrio que necessi-tem de um árbitro o que, diga-se depassagem, não encontra sustentaçãono real. A arbitragem configura, não aforça do árbitro, mas sua relativa debi-lidade. Afinal, tendo conseguido maisde 50 milhões de votos e gozando deuma legitimidade praticamente incon-testável, por que se abandona o pro-grama e se realiza a plataforma quenegou?

Graças ao desequilíbrio geral dasforças na sociedade, o peso eleitoralna composição do Parlamento e dosexecutivos (seja o nacional, sejam osestaduais), a nova correlação de forçasnão se pode apresentar como umcorte radical. A necessidade de com-por uma “base de sustentação” levou auma sucessão de acordos pelos quaiso projeto histórico das esquerdas, daoposição, vem sendo rifado, pura esimplesmente. Daí, o apoio ao fisiolo-gismo peemedebista e o patrocínio dacandidatura, para a Secretaria da MesaDiretora da Câmara, de conhecido“anão do Orçamento” (Geddel Vieira,do PMDB-BA), indicado para cassaçãoe salvo pela intervenção de Luiz Edu-ardo Magalhães, filho de ACM, articula-dor mor de FHC. Ao mesmo tempo emque se faz essa “articulação” política,fala-se em punições contra os parla-mentares petistas que defendem as te-ses aprovadas no último Congresso doPartido. Que tipo de aliança é essa?Tudo isso é uma opção, nunca uma fa-talidade. E as opções acabam por tra-çar seus limites e não apenas suaspossibilidades.

Ganhar a eleição ou avançar o pro-jeto de reconstrução da sociedade edas condições de vida da população?Essa polaridade real não apareceu du-rante o processo eleitoral em toda asua dramaticidade. Tudo se passou co-

mo se existisse um automatismo talque, ganhando as eleições, avançaría-mos em marcha forçada para a cons-trução do nosso projeto. As ilusõessempre são pagas muito duramente.Essa construção de uma “base de sus-tentação” no Parlamento tem um outroóbice fundamental. O governo torna-se, na prática, refém dela. E, como no(des)governo FHC, essa base fisiológica(do PL ao PMDB, entre outros) cobraráseu preço. O governo, dependentedela, acabará por pagá-lo em detrimen-to das propostas de mudança. Liberadado “ônus” de governar de forma direta,a direita tentará implementar seugoverno parlamentarmente.

O que dizer àqueles que, porexemplo, combateram a oligarquiaSarney? Que ele é fundamental natransição? Sarney é apenas um dosnumerosíssimos adversários dos traba-lhadores que hoje “garantem” as... re-formas neoliberais da previdência e daestrutura trabalhista e sindical. Não ésem certa ironia que os tucanos falamem síndrome do violinista: “seguracom a esquerda e toca com a direita”.

Alianças? O problema reside, fun-damentalmente, em como concebê-las e construí-las. Elas poderão ser de-cisivas no atual momento político ouserem um óbice à transformação so-cial. Alianças se constroem, obviamen-te, com visões diferentes da nossa oudo nosso partido, como gostam deafirmar os nossos governantes, masdentro de um campo político determi-nado. Obviamente que alianças locali-zadas em cima de “donos de votos”são muito perigosas. O que acrescen-tam ao projeto “democrático-popular”as alianças com Sarney e outros domesmo naipe, para além dos votos emsessões parlamentares? Seguramenteeles apoiarão as reformas que querem(a da Previdência, a Trabalhista e aSindical) lembrando que esse era oprograma de FHC e dos partidos da

sua “base”. Obviamente, na hora emque estiver colocada a proposta deuma Reforma Tributária que ponha fre-ios na sonegação e tribute, por exem-plo, as grandes fortunas, esses mes-mos aliados terão “razões de consciên-cia” (leia-se: interesses materiais) an-tagônicos àquela reforma pois esta,para ser efetiva e real, limitaria a liber-dade do mercado.

Jogar todas as cartas na institucio-nalidade sem mobilização popular éaceitar travar um embate entre David eGolias, em que este último tenha, apriori, na prática, quase todas as condi-ções de êxito. Com essas alianças, con-traditórias com o programa histórico emesmo entre si, o governo acaba porabrir mão daquele programa. Por quee para quê? Para ter a confiança domercado e realizarmos o programadesse mesmo mercado, leia-se, do ca-pitalismo? Os aplausos de Davos sãosintomáticos. Os organismos financei-ros internacionais já compreenderamque a questão da miséria é grave e,por isso mesmo, deve ser enfrentadacom políticas... focalistas, assistencia-listas. Mas nada que altere a ordem ca-pitalista na sua essência.

A sofreguidão pelas reformas, semo menor debate público, veio confes-sada na proposta do deputado JoãoPaulo, presidente da Câmara, de modi-ficações no regimento. Não comenta-remos a obviedade - aproveitada poli-ticamente pela direita parlamentar - dealteração das regras do jogo para trato-rar o debate e aprovar as famosas re-formas. Mais relevante e sintomáticafoi a proposta da redução do númerode sessões para as... audiências públi-cas! O espaço, democraticamente obti-do pela sociedade para debater asgrandes questões antes que elas fos-sem à votação, era assim alegrementeabandonado para gaudio dos antigosgovernantes e sua base parlamentar.Cidadania? Ora, a cidadania!

142 - DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

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Mas é bom não exagerar. O Secre-tário de Segurança Alimentar e Com-bate à Fome, José Graziano afirmou,em debate na FIESP, que: “Temos quecriar emprego lá, temos que geraroportunidades de educação lá, temosque gerar cidadania lá. Porque, se elescontinuarem vindo pra cá, nós vamoster de continuar andando de carroblindado”. As justificativas posterioresnão resolveram o problema. O ato fa-lho, de uma violência simbólica terrí-vel, mostra uma concepção de comose enfrentam os problemas sociais.Mesmo para os defensores da cidada-nia do consumidor é de uma brutalida-de exemplar: revela não apenas o cará-ter instrumental dessa cidadania mas,acima de tudo, o caráter de desconfian-ça e medo em relação aos migrantespobres. Sintomático, principalmentevindo do Ministro da Fome do governodemocrático e popular. Chico de Oli-veira em sua já citada aula advertiu “so-mos uma nação e não um aglomeradode consumidores” (Folha de SãoPaulo, 19 de fevereiro de 2003, p. A-6).

A riqueza de questões do período étal que nos obriga a analisar preferen-cialmente algumas delas. Contudo,mesmo sem aprofundar o debate so-bre a ALCA, sobre a Base de Alcântara,não podemos passar em marcha bati-da, ignorando-os. O plebiscito oficialproposto a partir da manifestação dequase dez milhões de brasileiros sobrea ALCA e a Base de Alcântara é recusa-do pelo governo por colocar em riscoas políticas macroeconômicas pactua-das com os organismos internacionais.Também não é defensável, por quemfala em soberania nacional, a aceita-ção da criação de um enclave colonial-militar em Alcântara.

O que se coloca hoje é a necessi-dade imperativa de manter as lutas emobilizações, de se perceber que todoe qualquer processo só pode ser obracoletiva de militantes de diversas ori-

entações, unificados em torno de umprojeto de transformação social e nãode uma vitória eleitoral. Aqui fica claroo verbo, o discurso de Genro. Morató-ria da utopia. Obviamente, o governonão abandonará, pelo menos no dis-curso, a utopia. Mas deve regenerá-la,ou seja, adequá-la aos seus projetosatuais. Uma utopia regenerada é umoutro projeto. As palavras podem seras mesmas, as práticas não. Daí a sen-sação de que existe uma “esquizofre-nia” nas ações governamentais. Mas,lembrava o velho Marx, o segredo dasagrada família estava na prática ter-restre. Os programas “sociais” de FHCserão mantidos, recauchutados. O Pro-grama Fome Zero, excelente como agi-tação e propaganda, não parece enca-minhar a resolução dos problemasreais e pode ficar, inclusive, abaixo dosvalores pagos pelo assistencialismo

tucano. E nem mesmo este escapoudos cortes draconianos que visam osuperávit primário. Pior: chegou-se afalar (Folha de São Paulo, 3 de feverei-ro de 2003) em aumentar a Bolsa-Escola em detrimento de um aumentomaior do salário mínimo. Isso porqueesse programa não tocaria na questãoda Previdência. É preciso dizer mais?

Exemplo típico dos limites auto-consentidos pelo governo atual já sedesenhavam na campanha eleitoral. Ocoordenador da campanha advertia jánaquela época: “Estamos comprometi-dos com a meta do superávit que fornecessária para garantir a estabilizaçãoda relação dívida pública/PIB” (Folha,18-10-2002). Com a simples especula-ção do dólar, a dívida pública teria pas-sado, naquele período de poucas se-manas, de 58% para algo próximo a66%. Lembremos que segundo Merca-dante (idem), a economia da ordemde R$ 49 bi é duas vezes o orçamentoda Saúde e três vezes o da Educação.Apesar das brutais conseqüências queisso traz, o governo ampliou, volunta-riamente, ainda mais esse superávit.Vale dizer: cortaram ainda mais fundonas políticas sociais.

A busca de legitimidade coloca umnovo e decisivo problema. A propostaclaramente colocada de um “laborató-rio” para promover o “pacto pela pro-dução contra a especulação”, espéciede câmara setorial a nível social, impli-ca na articulação de setores cujosantagonismos acabarão por impossibi-litar os avanços sociais na medidanecessária às classes trabalhadoraspermanentemente espoliadas. Pactopela produção significa, é claro, quecapitalistas e trabalhadores têm, nofundamental, os mesmos interesses.Essa curiosa reedição do par antagôni-co povo x antipovo vivido nos anos cin-qüenta e início dos sessenta, não éapenas anacrônica, mas desconhece aforma do capitalismo atual. Neste, não

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O Programa Fome Zero,

excelente como agitação e

propaganda, não parece

encaminhar a resolução

dos problemas reais e pode

ficar, inclusive, abaixo dos valo-

res pagos pelo

assistencialismo tucano.

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existe nenhum grupo que não o inte-gre do primário ao terciário, passandopelo financeiro. Não pode, portanto,haver antagonismos entre produção eespeculação do ponto de vista capita-lista, mas, apenas, contradições locali-zadas entre eles. Essa questão suscitauma dúvida: será que eles acreditammesmo na possibilidade de um con-senso entre exploradores e explora-dos? A fala de Lula tem sido absoluta-mente clara: empresários, ONGs, pes-soas ligadas ao mercado etc., estarãopresentes nos organismos da políticaeconômica etc. Tudo isso leva à agudi-zação de contradições no interior daequipe que tem que responder às ca-rências e necessidades das classes quedisseram querer mudar.

A composição do Conselho do Pac-to é decisiva para a caracterização danatureza do Governo. Nele, os empre-sários têm um peso decisivo sendomesmo mais da metade: 5 represen-tantes do setor agropecuário, 7 do se-tor financeiro (inclusive representantesde bancos internacionais como o San-tander e o City Bank), 23 da indústria,2 do comércio, 4 nomes do setor deserviços, 10 “personalidades notáveis”- denominação genérica que envolveoutros empresários (como Milu Vile-la/Banco Itaú), o governo terá 10 mi-nistros, 13 sindicalistas, 2 da cultura, 3de entidades de classe, 11 represen-tantes de movimentos sociais (aquientra Viviane Senna, o que mostra queas ONGs, além de serem confundidascom a Sociedade Civil, também o sãocom os Movimentos Sociais) e 2 reli-giosos. Participam ainda, além do Pre-sidente, 2 representantes do Congres-so Nacional: os deputados Delfim Net-to (PPB-SP) e Armando Monteiro Filho(PMDB-SP).

Oficialmente, os partidos não apa-recem. É claro que inúmeros dos indi-cados têm filiação partidária, mas ésintomática essa “informalidade”. Nem

somos ingênuos a ponto de desconhe-cer isto. Mas, certamente, isto atua co-mo uma certa forma de desqualifica-ção. E o papel das “personalidades”?Na prática, uma personalidade - crité-rios de escolha não definidos ou, pelomenos, tornados públicos - tem omesmo peso formal da CUT! Por maisdoloroso que possa parecer a muitos,o caráter do Conselho é inteiramentebiônico. Lula tem insistido que o Con-selho é um avanço democrático, queexiste em outros países. Só se esquecede dizer que naqueles locais onde es-se Conselho (ou algo parecido) existe,seus membros são indicados pelafamosa “sociedade civil” e não pelo

governo. Chico de Oliveira faz algumasconsiderações sobre o Conselho quemerecem nossa atenção: “o que estáali é o que o governo entendeu por so-ciedade civil. Na realidade é um orga-nismo de governo”; “embora amplo, oórgão carece de divergência. (...) Esse éo erro, o grave erro, porque a socieda-de tem divergências. Se isso não acon-tecer será um simulacro” (op. cit., gri-fos nossos).

A equipe de Tarso Genro, em docu-mento preparatório entregue aos con-selheiros, afirma: “Poderemos dar umexemplo histórico, resolvendo algunsagudos problemas nacionais atravésde um processo conflitivo de debates esustentações de pontos de vista, quepodem poupar o país de instabilida-des sociais e políticas futuras de gravi-dade” (Folha de São Paulo, 10-2-

2003. Grifos nossos). Como bom do-cumento habermasiano, afirma-se apossibilidade de resolução dos confli-tos pelo... debate franco e sincero.Classes? Antagonismos? Embate deprojetos? Tudo isso desaparece: a solu-ção é remetida aos homens e mulhe-res de boa vontade. Qual é o “grandedesafio do nosso País”? A solução éóbvia e remete para a tarefa de “pro-mover uma renovação política e socialnos marcos da Constituição” (idem).Carta Magna que algumas das propos-tas governamentais visam alterar. Nosmarcos da Constituição, significa den-tro dos limites da ordem vigente. Mas,de que Constituição estamos falando?Da de 1989 ou daquela inteiramenteremendada e sucateada por sucessivasmedidas provisórias e alterações casu-ísticas?

O documento expressa claramentea posição de Lula. Na sua mensagemao Congresso ele proclamou: “O senti-mento de que é preciso acreditar noser humano e na sua capacidade derealização, em qualquer circunstância,com o vento a favor ou com o ventocontra” (O Estado de São Paulo, 18 defevereiro de 2003, p. A5). Poderiamnos objetar que esse discurso genéricoé adequado a uma fala aos parlamen-tares. Sua conclusão: “não vim aquipara pedir subserviência ou submis-são. Vim aqui propor uma parceria pa-ra construirmos juntos o Brasil de nos-sos sonhos” (idem). Parceria com quepolítica? “combater a inflação, reduzirnossa dívida, gerar empregos e distri-buir a renda” (idem). Esta é a famosaquadratura do círculo. E para isso, épreciso a “máxima austeridade e efi-ciência em nossas decisões que envol-vem os gastos públicos e também osprocedimentos administrativos” (idem).Vale dizer: altos juros, cortes nas políti-cas sociais etc. Austeridade? Tradução:maior concentração de sacrifícios porparte do conjunto da população. O

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Cidadania abstrata, sem

determinações sociais,

vê-se conjugada com a

noção abstrata de nação

de iguais. De abstração em

abstração chegamos à

lógica da ação comunicativa.

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conjunto dos SPF, por exemplo, queteve seu salário congelado durante oreinado tucano e que via com preocu-pação os 4% previstos na LDO para oreajuste deverá aceitar a austeridadede um reajuste da ordem de 2,5% co-mo falou Guido Mantega? Austeridadepara quem?

O documento é muito esclarecedordos seus propósitos, como por exem-plo, “bloquear o caminho que podenos levar a uma ruptura da sociedadeformal com a sociedade informal, dosexcluídos com os incluídos, que pode-rá levar a um conflito de ricos e po-bres” (Folha de São Paulo, 10-2-2003.Grifos nossos). Alguma dúvida? Oantagonismo das classes pode ser eli-minado pelo debate. Mas essa con-cepção redutiva da cidadania à ordemvigente - e seu brutal cortejo de con-centração de renda, violência social emiséria - pode ser efetivamente corri-gido. A utopia regenerada: a regula-ção. Ouçamos o que eles mesmos di-zem: “O processo de concertação (....)pressupõe a busca, através do diálogoe do debate, de diretrizes (...) para odesenvolvimento econômico e socialdo Brasil. Um esforço que objetiva acelebração de um novo contrato soci-al” (idem). Cidadania abstrata, semdeterminações sociais, vê-se conjuga-da com a noção abstrata de nação deiguais. De abstração em abstração che-gamos à lógica da ação comunicativa.A história acabou.

Os problemas se multiplicam. Ogoverno recuou ou, como prefere afir-mar, assumiu a proposta de que o con-selho não seja deliberativo; chegoumesmo a negar que essa fosse suaproposta. A pressão dos sindicalistasdemonstrou o absurdo: uma persona-lidade votaria com o mesmo peso daCentral que representa milhares e mi-lhares de trabalhadores. Felício tinhaafirmado (segundo a Folha de SãoPaulo) que os sindicalistas deveriam

ter, pelo menos, direito a vinte assen-tos no Conselho. Isso indica duas coi-sas: a) que a burocracia sindical aceita-va a idéia do Conselho, reclamandoapenas o número dos seus participan-tes ser tão ínfimo, e b) que só faz sen-tido essa reclamação caso o conselhofosse realmente deliberativo.

Apesar do governo falar em orga-nismo consultivo, muitos parlamenta-res - de orientações distintas - falamem recusar o “prato feito”, afirmandorecusar o constrangimento de ter quenegar algo que “veio da sociedade”. OConselho, seja na versão deliberativa,seja na consultiva ou será homologa-tório, ou registrará as decisões toma-das em outros locais. Sua função será,portanto, a de legitimar as propostasque o Executivo enviará ao Congresso.

Decifra-me ou devoro-te é o velho,mas sempre atual, axioma da política.Para o conjunto dos trabalhadores, éfundamental construir e afirmar suaidentidade. A diluição dessa identida-de só pode interessar a outras forças

sociais que historicamente se posicio-naram contra nós. Aquilo que histori-camente temos chamado de integra-ção à ordem (redução das posiçõesclassistas, afirmação da possibilidadede construção de um pacto pela pro-dução - ver o claro fracasso das câma-ras setoriais -, identificação abstrata deuma cidadania entre seres estrutural eprofundamente desiguais, aceitaçãoda tese do fim da história com a auto-mática subordinação ao “mercado”, le-ia-se ao capitalismo financeirizado) nãopode ser eliminada por um golpe demágica, graças a uma vitória eleitoral.

Lembremos que os partidos oraafastados do governo irão recompor-se. Sem dúvida alguma, figuras comoTasso, Aécio, Alckmin, Jarbas, Sarney,ACM, cada qual à parte dos seus terri-tórios políticos, estão reconstruindosuas posições de força. O PSDB redire-ciona seus caminhos e encontra emTasso, Aécio e Alckmin candidatos paraocupar a vaga do velho tucanato pau-lista (FHC-Serra). Ficam na perspectivatranqüila de tirar as castanhas (o seuprograma) do fogo com as patas petis-tas, que sairão daí bem chamuscadas.E estão se constituindo como alterna-tivas ao novo governo, ao mesmotempo em que se cacifam como inter-locutores, por seu peso institucional,com o novo governo. Enfim, o melhordos mundos. Apesar disso, em recentereunião com Dirceu e Palocci, Alckminfortalece-se como pólo articulador deuma ampliação do arco de alianças“pelas reformas” com a vantagem ex-tra de fortalecer o tucano paulista nasua busca de controlar a legenda doPSDB. Modificada em sua posiçãoanterior, a direita não abrirá mão deser poder. A possibilidade de um novocentrão, mais capaz e menos fisiológi-co, não pode ser descartada. Comotambém não se pode descartar a hipó-tese de um inchamento dentro do pró-prio PT, por arrivistas.

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 145UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

A direita não abrirá mão de

ser poder. A possibilidade de

um novo centrão, mais capaz

e menos fisiológico, não

pode ser descartada.

Debates Contemporâneos

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Obviamente, a população que vo-tou em Lula viverá uma lua-de-melcom o governo. O problema é que oscompromissos assumidos logo de-monstrarão a impossibilidade do aten-dimento das necessidades fundamen-tais. Os cortes anunciados sinalizam osentido e a direção das políticas gover-namentais. Os constrangimentos daLDO acabaram por justificar a impossi-bilidade de atender às pressões popu-lares. Afinal, temos de respeitar a Leide Responsabilidade Fiscal (já conhe-cemos esse discurso nos planos esta-dual e municipal). As questões do sa-lário mínimo, do pequeno ou escassoreajuste salarial para os servidores pú-blicos, da privatização da previdência,da saúde, da educação, colocam apossibilidade de enfrentamento dasclasses trabalhadoras com o governo.

Os riscos da situação são enormes.A grande maioria da população - e adireita estará instrumentalizando isso -irá cobrar os projetos históricos do PT.O governo pode fazer o discurso dosgrandes interesses nacionais, mas ser-lhe-ão lembradas suas propostas pas-sadas. A possibilidade de descumprirsuas promessas pode levar a um grauintolerável de pressão. Na campanha,Lula fez questão (respondendo a umaquestão sobre o MST) de lembrar queeste país tem leis. Como se comporta-rá diante das pressões populares? Osconstrangimentos internos e externosforçarão o governo a atuar de acordocom as políticas do FMI, BM e OMC...

Lula pode tentar equilibrar, cesarís-ticamente, a direita e as massas. Nessecaso, a desproporção entre carências(de muitos) e interesses dos que con-trolam a economia, a política, a cultu-ra, obrigará a um posicionar-se a favorde um ou de outro. O fio da navalhanormalmente corta do lado do maisforte. Uma coisa é certa: a paciência dapopulação está condicionada ao julga-mento de possibilidades abertas pela

eleição. Obviamente, a população nãoraciocina como os militantes. A imensadívida social será cobrada não por radi-calismo, mas por ser expressão detodas as carências vividas.

O papel das direções dos movi-mentos é, aqui, vital: a idéia de umatrégua seguramente será proposta, oque pode, em médio prazo, agravar astensões. Lembremos que o discursoda governabilidade é sempre o da so-lução dos interesses pelo alto. Os mo-vimentos sociais estarão sempre dian-te da possibilidade de serem conside-rados entraves à modernização.

Apesar de a militância, pelo menosem tese, entender a política para alémdos limites do imediatismo, ela jácomeça a dar sinais de desconformi-dade. O preocupante é que o governoe o partido usam a linguagem burocrá-tica da punição, ao invés do exercíciopolítico do convencimento. Se o qua-

dro é de aceitação de uma nova com-preensão do real e das práticas e tare-fas daí decorrentes poderiam, pelomenos, como alguns partidos social-democráticos o fizeram, alterar, viacongresso partidário, as posições queora rejeitam. Como manda a realpoli-tik: se não dá para mudar o real, mu-de-se o programa. Um detalhe, pormuitos esquecido, é altamente revela-dor: o atual Ministro da Fazenda, agoraum dos guardiães da disciplina parti-dária, quando no seu primeiro manda-to como prefeito de Ribeirão Preto, pri-vatizou a telefônica local. Ao arrepio daposição do partido contrário às privati-zações. E sobre ele não caiu o inferno!

Reforma da previdência ouradicalização da “refundaçãodo capital?”

O governo tem que enfrentar a cri-se do capitalismo. Mas, que tipo deresposta ele oferecerá? A dos seus po-vos ou a dos capitalistas, eles próprios?Em primeiro lugar, as políticas macroe-conômicas do FMI e de FHC foram nãoapenas mantidas, mas radicalizadas.Acreditamos que os novos governan-tes não estão mentindo quando elo-giam Malan e mantêm boa parte dasua equipe. Lembremos que FHC deuum “golpe de mestre” ao buscar - eobter - da parte dos candidatos, apoiopara sua negociação com o FMI. Pa-locci anunciou o mais amplo superávitprimário dos tempos do Real. Supe-rávit pavimentado com o enxugamen-to ainda maior dos recursos para o“social”, conforme foi decretado nabrutal redução de 11 de fevereiro.Nem a “pérola da coroa”, o famoso Fo-me Zero, escapou da degola. Obvia-mente que com a exceção da ReformaTributária, o bloco reacionário do Con-gresso apoiará o governo. A ideologiado “custo Brasil” veio pavimentandolongamente o solo dessa ruptura comos direitos sociais. Lembremos que a

146 - DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

A idéia de corporativismo

e de privilégios dos

trabalhadores não é pura

perversidade: ela tem a dupla

função de liberar a

possibilidade de acumulação

de capital e, a um só tempo,

de garantir legitimidade

para a burguesia.

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Força Sindical apóia essa ideologia, va-le dizer, que mesmo naquilo que ge-nericamente chamamos de “mundodo trabalho”, essa refundação do Es-tado capitalista encontra importantesaderentes.

Rigorosamente falando, essa refun-dação do Estado se configura naquiloque chamaríamos de “reforma intelec-tual e moral” proposta pela burguesia.O capital, permanentemente, redese-nha as formas que as classes trabalha-doras assumem na vida social. Obvia-mente enfrentando resistências, maio-res ou menores, segundo o grau deorganicidade dessas classes. A idéia decorporativismo e de privilégios dos tra-balhadores não é pura perversidade:ela tem a dupla função de liberar apossibilidade de acumulação de capi-tal e, a um só tempo, de garantir legi-timidade para a burguesia. Nesse de-bate ideológico, pouco ou nada se falados bilhões sonegados pelo capital.Importante, para ela, é afirmar o cará-ter particularista e mesmo anti-socialdas reivindicações dos trabalhadores.Quando isto é proclamado e exercidopor um governo dito dos trabalhado-res, é muito mais perigoso e grave.

Se a análise da Previdência serátrabalhada aqui de forma mais deta-lhada, isso se deve a que ela foi trans-formada no campo de batalha ideoló-gico principal pelo governo e pelo FMI.Poderá parecer desproporcional o pesoque demos à questão da Previdência.Do nosso ponto de vista, ela será umadas batalhas mais significativas queteremos que travar em defesa de umnovo projeto de sociabilidade e da pos-sibilidade de existência da nossa popu-lação. O governo e seus aliados preten-dem ganhar essa batalha no campoideológico. E, de preferência, o mais rá-pido possível. Os organismos financei-ros internacionais, quando falam dasreformas neoliberais, aconselham aosgovernantes que o façam rapidamente

e no início dos seus governos, quandoainda têm sobras de legitimidade. De-pois disso, o futuro é incerto e nãosabido. Há que se pensar nos “interes-ses da nação” como disse o Presidente,como se o universal fosse, por princí-pio, antagônico ao particular.

O programa da Reforma Previden-ciária é claro. Discutamos essa questãocom todo cuidado. Ela é decisiva parao conjunto da população. Em primeirolugar, é preciso proclamar em alto ebom som que Berzoini reproduz, semsequer ficar ruborizado, o discurso dogoverno FHC. O que está em questãonão é um pretenso rombo na previ-dência, mas a eliminação ou minimiza-ção máxima das políticas sociais.

A Seguridade Social, objeto de am-plas mobilizações populares na épocada Constituinte, é uma totalidade que

envolve Saúde, Previdência e Assistên-cia Social. O discurso oficialista buscaliquidar, na prática, esse preceito cons-titucional. Pretendem anular o princí-pio dessa totalidade e alterar, semqualquer debate de fundo, a práticaconstitucional. Entendida como exten-são da cidadania, a Seguridade superaas concepções restritivas de SeguroSocial. Vejamos o conceito de Seguri-dade da conservadora OrganizaçãoInternacional do Trabalho, compostapelos governos e insuspeita de esquer-dismo: “É a proteção que a sociedadeproporciona a seus membros median-te uma série de medidas públicas con-tra as privações econômicas e sociaisque de outra forma derivariam no de-saparecimento ou em forte reduçãode uma subsistência como conse-qüência de enfermidade, maternidade,acidente de trabalho ou enfermidadeprofissional, invalidez, velhice e morte,e também a proteção na forma de as-sistência e de ajuda às famílias comfilhos”.3 A concepção que se opõe aesta é caracterizada por programas as-sociados a grandes riscos sociais:“aposentadoria e pensões (por idade,invalidez ou morte); seguro-doença eauxílios à maternidade; seguros-aci-dente de trabalho; seguro-desempre-go e auxílios familiares” (idem, p. 32).A diferença entre essas concepções re-side não apenas na oposição totalida-de/focalização mas, também, no fatode que a primeira não limita os bene-fícios apenas aos contribuintes como asegunda.

O governo segue a linha de FHC -Berzoini defendeu explicitamente aaprovação do PL 09/99 - perdendo,assim, de forma cristalina, a perspecti-va da universalização dos direitos(exemplarmente pensada no projetooriginal do SUS, p. ex.) para pensar oconjunto dos riscos como esferas pas-síveis de mercantilização e criar e legi-timar um campo privilegiado de acu-

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 147UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

As políticas sociais não

podem ser catalogadas na

rubrica “deficitária” ou

“superavitária”. Isto, como

regra geral, vale para todas

as políticas sociais.

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mulação para o sistema financeiro. Re-aliza, assim, uma nova acumulação pri-mitiva de capital. Obviamente, as polí-ticas sociais não podem ser cataloga-das na rubrica “deficitária” ou “supera-vitária”. Isto, como regra geral, vale pa-ra todas as políticas sociais. A Univer-sidade pública, nessa lógica, não é tra-tada como deficitária, mas, como one-rosa e desnecessária, como luxo.

O texto constitucional é claro. O pa-rágrafo único do Art. 194 determinaque compete ao Poder Público organi-zar a Seguridade Social com “universa-lidade da cobertura e do atendimento,uniformidade de acesso às populaçõesrurais e urbanas, irredutibilidade dovalor dos benefícios, eqüidade naforma de participação no custeio, di-versidade da base de financiamento ecaráter democrático e descentralizadoda gestão” (idem). Mais: está pressu-posto o Orçamento próprio e um ór-gão gestor específico. Contudo, comosempre, veio a frase maldita: “nos ter-mos da Lei”4.

É exatamente nessa regulamenta-ção que os problemas se cristalizam.Em primeiro lugar, pela segmentação.As leis se sucedem, particularizando aintervenção. A Lei Orgânica da Saúde(8080 de 1990), as de Custeio e dosPlanos de Benefícios da Previdência(8212 e 8213 de 1991), a Lei Orgânicada Assistência (8742 de 1993) etc. Oconceito da Seguridade como totalida-de permanece, mas a prática é altera-da. Ele é necessário: as contribuiçõescomo as do Lucro Líquido das Empre-sas e o COFINS são constitucional-mente receitas da Seguridade. Essasegmentação é, no entanto, controla-da de forma unificada: a Secretaria daReceita Federal arrecada e, “segundoas disponibilidades financeiras”, o Te-souro Nacional repassa. O Tesouro po-de repassar para outras rubricas (o pa-gamento do serviço - os juros - da dí-vida, por exemplo) e a Seguridade

aparece, então, como deficitária.César Benjamim5 analisa os “argu-

mentos” berzoínicos da necessidadedaquilo que ele chama de “contra-re-forma”. Para Benjamim, são três asgrandes rubricas propostas pelos refor-madores (sic): o déficit de R$ 70 bi-lhões por ano, a tendência ao envelhe-cimento da população e o aumentoexponencial, neomalthusiano (diría-mos nós) do conjunto de possíveis be-neficiários.

Sobre o primeiro ponto, Benjamimafirma a questão da indissociabilidadeda Seguridade. Saúde pública e Assis-tência “correspondem a direitos líqui-dos de cidadania e, como tal, não con-tam com receitas próprias, devendoser financiados com impostos pagospela população como um todo” e nãopodem ser analisadas como deficitá-rias. A Previdência é a única que gerarecursos próprios. O jogo é colocar to-

das as despesas da Seguridade narubrica da Previdência gerando, assim,um falso rombo, “artifício lamentável,que só serve para assustar a opiniãopública e dramatizar o problema”(idem). De jogo contábil se transformaem arma letal, concluímos nós.

Sobre o envelhecimento: “No casobrasileiro, pelo menos até 2020, asmudanças se concentrarão, principal-mente, em uma diminuição relativa dapopulação infantil, com aumento rela-tivo da população adulta, justamenteaquela que está em idade produtiva”.Mais explicitamente: “Em 2010, porexemplo, teremos 123 milhões depessoas em idade laborativa, 86% amais do que em 1990” (idem). Aqui, aideologia governamental assume o ca-ráter de estelionato político claro e in-sofismável. Esta tese, que Ricardo Bel-lofiore6, professor da Università degliStudi di Bergamo, também combate,é, mesmo para países já “envelheci-dos”, de uma surpreendente mistifica-ção.

O terceiro argumento é pior ainda:a idéia de que a perdularidade do nos-so sistema de Seguridade é tal que nosúltimos trinta anos, embora a popula-ção brasileira tenha crescido 109%, osingressantes no sistema de benefíciossubiu à astronômica cifra de 1140%.Como gostam os economistas neo-clássicos, cæteris paribus, daqui a vin-te anos teremos o absurdo de quecada trabalhador em atividade deverásustentar... um aposentado. Absurdodos absurdos, gritam os hipócritasneomalthusianos. O que os nossos sal-vadores da Previdência “esquecem” deafirmar é que, graças à mobilização doperíodo da Constituinte, na última dé-cada do século passado, houve oingresso legítimo de “trabalhadores ru-rais, empregados domésticos, autôno-mos, portadores de deficiência, pes-soas com mais de 65 anos etc.” (Ben-jamim, op. cit.). Evidentemente não

148 - DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Os trabalhadores, além

de não terem direitos

trabalhistas, sequer terão

agora, caso aprovada essa

“reforma”, como sobreviver,

quando trabalhar não for

mais possível.

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existe nenhum contingente massivonovo a entrar no sistema, afirma Ben-jamim. Logo, a mistificação é aqui má-xima e tem a função de pura legitima-ção dos cortes das despesas públicaspara ampliar as condições de maximi-zação da acumulação capitalista. Sepossível, com o apoio popular.

O problema da Seguridade, doponto de vista da sociedade, é sua uni-versalização. E sua capacidade deatender à população com a mais altaqualidade. Colocar a questão do pre-tenso “rombo” das contas da Previdên-cia é um escamoteamento das verda-deiras responsabilidades e o fortaleci-mento, via Previdência Complementar,de mais uma fração do capital finan-ceiro. Há uma radical diferença entresociedade e mercado. Para este, as“cooperativas” (sic) médicas, os fun-dos de pensão complementar etc., “re-solvem” o problema ao preço, é claro,da destruição das políticas sociais e deaprofundar, ainda mais perversamen-te, a miséria.

Apresentar os fundos de pensãocomo resposta às graves questões daSeguridade Social é desconhecer osmais elementares mecanismos quemovem aqueles fundos. Não há, porparte do governo, nenhum sinal clarode combate à sonegação. A políticade contenção dos reajustes dos tra-balhadores, a informalidade comomaldição, o não pagamento pelogoverno da sua parte, a retirada dosrecursos da Previdência para atendera outras finalidades, são elementospelos quais ela perde continuamentepreciosos recursos. Assim, os traba-lhadores, além de não terem direitostrabalhistas, sequer terão agora, casoaprovada essa “reforma”, como so-breviver quando trabalhar não formais possível.

Reproduz-se a balela dos privilegia-dos funcionários públicos como causa-dores de um déficit na Previdência.

Nós conhecemos bem esse discurso,o qual combatemos no início da déca-da passada. À época, os coloridos cha-mavam os funcionários públicos de...marajás!. Este é um dividendo ideoló-gico a mais. Ouçamos Maria Lúcia:“Quando não se esclarece a popula-ção sobre as funções altamente posi-tivas que a Previdência desempenha,ou quando, ao contrário, se divulgauma imagem negativa da Previdência,também se obstaculiza a sua expan-são. Que trabalhador informal vai sefiliar à Previdência, um sistema caro,no qual ele não acredita, e que temsido sistematicamente denegrido?”(Maria Lúcia, op. cit., p. 42). Este é umdos segredos de Polichinelo: é precisodestruir todo o serviço público paraque via, Terceiro Setor, CooperativasMédicas (!!!), Previdências Privadasnão apenas se concentre capitalsocial em cofres privados mas, tam-bém, se estratifique a miséria.

Bellofiore (op. cit.) nos apresenta ocaminho das pedras para tornar com-preensível a questão. A proposta deFundos de Pensão está claramente co-

locada no relatório do Banco Mundial,Adverting the old age crisis: Policies toprotect the old and promote growth,divulgado em 1994. Aí estava, com to-das as letras, a proposta: sistema depensões deve “articular-se sobre três´pilastras´. A primeira, constituída pelosistema público, obrigatório, a reparti-ção e a prestação definida, que deverialimitar-se a garantir um nível mínimode pensão: neste caso, de fato, os atu-ais trabalhadores com as próprias con-tribuições pagam a pensão dos atuaispensionistas pela mediação do Estado.A segunda pilastra, igualmente obriga-tória, é um sistema privado com capi-talização, possivelmente com contri-buições definidas: neste caso, os traba-lhadores fazem poupança financeiracom fins previdenciários em contas in-dividuais, que são investidas por gesto-res institucionais, os ´fundos de pen-são´, que lucram um rendimento quese acumula no tempo como capital eque lhes garantirá o dinheiro das pen-sões quando se aposentem. A terceira,facultativa, e também privada e comcapitalização, é, pelo contrário, dada àseventuais reservas ulteriores com finspensionísticos de natureza voluntária”(Bellofiore, op. cit, p. 61). Essa propos-ta ganhou um grau de generalidadepolítica, sendo defendida por todos osresponsáveis pela política econômicano mundo inteiro. Falam de “que astendências demográficas e as mudan-ças estruturais do capitalismo condu-zem, inelutavelmente, para um decidi-do e rápido enfraquecimento da pri-meira pilastra e, portanto, em direçãoà necessidade de um reforço substan-cial da segunda, que vem, assim, aconstituir-se como o sustentáculo dosistema previdenciário. As razões sãorepetidas de tal modo, que parecemóbvias e dotadas da força do senso co-mum” (idem., pp. 61-62). É, sem tirarnem pôr, a mesma lógica que presidea proposta do governo.

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 149UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Que trabalhador informalvai se filiar à Previdência,

um sistema caro, no qual ele não acredita,

e que tem sido sistematicamente

denegrido?

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Ao invés de pensarem a aposenta-doria como parte essencial dos salá-rios, os governos buscam, economicis-ticamente, relacioná-la à “taxa da des-pesa pensionística sobre o produto in-terno bruto” (idem). Isto “depende di-retamente da chamada ´taxa de subs-tituição´ das pensões em relação aosproventos do trabalho, isto é, do nívelreal das pensões médias pagas aosbeneficiários em relação à produtivida-de média por trabalhador, e do núme-ro de pensionistas em relação aosempregos” (idem.). A Previdência, navisão deles, não pode dar prejuízo, va-le dizer, deve dar lucro; eles acentuamque essa “taxa veio aumentando notempo e, se se mantiver, é previsívelque atingirá percentuais dificilmentesustentáveis nas próximas décadas.Por um lado, a culpa seria debitada àexcessiva ́ generosidade´ do Estado so-cial da época keynesiano-fordista. Oprovento dos pensionistas esteve liga-do às retribuições dos trabalhadores,então em rápida ascensão pela dinâ-mica veloz da produtividade: quandoesta última diminui, não se pôde ounão se quis reduzir as pensões nomomento e na medida adequados”(idem., p. 62).

A distribuição dos proventos foi co-locada, dizem o Banco Mundial e seusseguidores, a favor do pensionista econtra o trabalhador na ativa. “Por ou-tro lado, o ´envelhecimento´ da popu-lação, o número maior de potenciaisaposentados sobre a população emidade de trabalho, conexo, evidente-mente, com fatores como a ampliaçãoda esperança de vida e a queda dataxa de natalidade - eventos difíceis deserem avaliados negativamente e queuma ligação qualquer com o vitupera-do Estado assistencial deverá mesmoexistir -, aumentou o número de inati-vos em relação aos ativos (as ´taxas dedependência´), o que, em conjuntocom a extensão da cobertura pensio-

nística pública, a crescente zona de be-neficiários, teria acabado por fazerpesar cada vez mais as saídas previ-denciárias.

No que se refere à pilastra públicado sistema, tudo isto impõe, para alémda ampliação da idade para aposentar-se, um rebaixamento do nível real daspensões. A Previdência Complementarse revela como condição essencial pa-ra fornecer aos trabalhadores um aces-so aos recursos reais mais substanciaisque aqueles que a pensão pública temcondições de garantir daqui para fren-te” (idem.).

Berzoini parece ter aprendido bema lição.

O raciocínio é claro. Trata-se dequebrar um “pacto explícito de solida-riedade entre gerações” (idem, p. 63)para impor à sociedade, desinformadae predisposta - pela propaganda ao ca-pitalismo - a aceitar a tese de que aculpa é... dos trabalhadores. No nossocaso específico, dos funcionários públi-cos. Esses marajás (a palavra não é fa-lada mas está subjacente ao tom des-respeitoso de “privilegiados”) seriamresponsáveis pelo “rombo” da Previ-dência, o que poderia levar a uma es-pécie de greve fiscal dos ativos emface aos aposentados no momentoem que o peso dos segundos sobre osprimeiros supere certos umbrais críti-cos” (idem). Aqui a idéia de luta declasses, negada em quase toda a falado poder, reaparece. Só que perversa-mente: trata-se de uma luta de classesno interior das classes trabalhadoras

entre os privilegiados e os pobres ehumildes. Óbvio que com isso não secoloca a questão real: a dos cortes dosgastos sociais.

Essa Reforma, preparada por FHC,teve a aceitação/omissão da Centralquando ela, por exemplo, aceitou atese da equipe de FHC da igualdadeentre tempo de serviço e tempo decontribuição. Lembremos que em ummomento muito tenso da sua existên-cia, a direção majoritária impôs essavisão ao conjunto dos dirigentes sindi-cais. Era o início do ataque frontal naquestão previdenciária e com apoio nointerior da burocracia sindical. Agora, aCentral defende o regime único - “ire-mos à greve se houver exceções” -mesmo tendo em seu seio um grandecontingente de funcionários públicos.

Os fundos de pensão, formas decapitalização, passam a ser considera-dos como “necessários para integrar ograu de cobertura da pensão pública”(idem), diz Bellofiore, com a vantagemadicional de ser em “convenientespara a economia no seu conjunto: aconstituição e/ou o reforço do sistemade fundos poderiam elevar as poupan-ças, e, por isto, os investimentos, o em-prego” (idem). Mas, há que dourar apílula. É preciso mostrar que é “conve-niente, também, para os trabalhado-res: as taxas de rendimento garantidasdos fundos individuais no sistema decapitalização seriam seguramente su-periores às do sistema público, comodemonstram os procedimentos passa-dos e presentes dos mercados finan-ceiros” (idem). É claro que isso não re-siste a uma análise minimamente sé-ria. O recente escândalo da giganteamericana Enron mostrou que quandoela quebrou, todo o sistema previden-ciário dos seus trabalhadores tambémdesapareceu e estes viram suas pou-panças e suas possibilidades futurasescorrerem bueiro abaixo.

A proposta está plenamente asso-

150 - DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Será que irão retirar as

aposentadorias dos

trabalhadores rurais,

que, na sua imensa maioria

têm uma enorme

dificuldade de comprovação

da contribuição?

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ciada à privatização geral produzidapelo Estado. Reduzir, como FHC fez, aquestão do “rombo” (indemonstradocom dados comprováveis e passíveisde análise independentes) ao sistemade arrecadação, significa deixar umaimensa massa de trabalhadores e dapopulação sem quaisquer possibilida-des de continuar a existir. Será que irãoretirar as aposentadorias dos trabalha-dores rurais, que, na sua imensa maio-ria têm uma enorme dificuldade decomprovação da contribuição? Paraserem coerentes, os propositores dagestão empresarial, via Estado, do sis-tema de Previdência pública deveriampropor isso. Ou seja: amplificar a bar-bárie. Mas, obviamente, esta não éuma fatia interessante para o mercado,não é minimamente rentável. Logo...

O governo apresentou, afinal, aosgovernadores um esboço de sua polí-tica. O centro dela, como era de se es-perar, é a quebra do contrato até hojevigente. Para os servidores atuais, pen-sa-se em criar uma tributação para osaposentados; o valor da aposentadoriaseria da ordem de 80% em média dosmelhores salários de contribuição des-de 1994, criar um fator previdenciáriopara desestimular a “aposentadoriaprecoce”; ampliar a idade mínima naaposentadoria por tempo de contribui-ção e reduzir o benefício, no caso depensões. Finalmente, os servidores,que já são obrigados a permanecer 10anos no serviço público e 5 anos nocargo, teriam, caso aprovada essa pro-posta, duplicados esses tempos. Paraos novos a regra é mais simples: omesmo regime dos trabalhadores daordem privada (teto de R$ 1561) maisa instauração de fundos de pensãocomplementares, cujo custo o governonão divulgou. Para os militares, a regraseria similar a dos civis, acabando coma pensão vitalícia para as filhas. O quede resto já acontece, desde 2000 paraos que ingressaram na carreira a partir

daquela data. E “tentar” igualar a con-tribuição dos militares com a dos civis,que hoje pagam mais.

Preso na engrenagem do imedia-tismo, Berzoini tem lutado pela apro-vação do PL 9/99 que o próprio PTcombateu. Algumas questões, mesmosendo aprovado o PL, colocam proble-mas. Não está definido no texto emdiscussão qual a alíquota de contribui-ção do governo nem a dos servidores.O que coloca uma incógnita a mais. Ese se mantiver a tradicional falta decontribuição do governo, esse fundo jánasce falido. A migração dos servido-res para o regime complementar dimi-nuirá a arrecadação e o governo terá

que arcar com os custos da implemen-tação do regime complementar. Já seconseguiu imaginar uma saída paraisso: o servidor arcaria com mais esteônus, bastando a “aplicação do fatorprevidenciário”. É absolutamente crista-lino: o servidor perde direitos, pois ofator previdenciário usado contra eleserá usado para arcar com despesasque caberiam aos Executivos. E aindase arriscam no jogo do mercado, ondeesses fundos normalmente especulam.

Um novo parênteses faz-se neces-sário. Para além da aparente racionali-dade econômica, a proposta trazembutida claramente sua real e efetiva

racionalidade política. A quebra dos“privilégios” dos servidores públicospermite, no médio prazo, tornar a fun-ção menos valorizada e mais onerosapara aqueles. Encaminha-se, assim, ta-ticamente, a implementação do “pú-blico emprego”, ou seja, a destruiçãode um quadro administrativo compe-tente com relativa independência faceao Estado.

Na verdade, essa proposta é a pró-pria configuração do pacto social. Comos fundos de pensão, os trabalhadoresserão “acionistas” da empresa capita-lista. Seus interesses estarão determi-nados pela lógica do mercado na vãilusão de que terão seus recursosgarantidos. Capitalistas, simbolicamen-te, os aposentados rompem com oque Bellofiore chama de solidariedadeintergeracional e que nós considera-mos como possibilidade de uma soli-dariedade de classe. Essa solidarieda-de vem sendo desconstruída faz muitotempo. Quando os sindicatos estabe-leceram seus planos privados desaúde, contribuíram para debilitar adefesa universal de um sistema públi-co de saúde. Quando se estabelecemvariadas formas de prestação de servi-ços pelos sindicatos (por exemplo, atese, com grande audiência na CUT,dos sindicatos terem seu sistema deensino profissional), tudo isso cami-nhou no terreno da privatização hojedominante.

Para a racionalidade do capital, tu-do deve ser reduzido à mercadoria, atémesmo a miséria e o desespero damassa da população que eles caracte-rizam como “excedente”, “supérflua”.Bellofiore falou que se pode chegarmesmo - a partir da posição capitalista- a desencadear uma espécie de“greve fiscal dos ativos contra os apo-sentados”. Nós, na Universidade, já vi-vemos praticamente essa possibilida-de. A cada dia, mais e mais autorida-des universitárias falam que os apo-

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sentados impedem a expansão dessasinstituições. A culpa é, portanto, dos...privilegiados aposentados. Lógica ime-diatista que daqui a vinte anos serádenunciada por muitos que agora aconsideram correta quando a maiorparte dos atuais “ativos” estiver na si-tuação de ter que se aposentar. Tirar osaposentados da folha da Universidadenão aumentará os recursos desta mas,seguramente, colaborará para ampliaro processo, já anunciado, da diferen-ciação salarial entre ativos e aposenta-dos e da ampliação da privatizaçãobranca destas instituições.

Existem, além dessas, outras consi-derações a serem feitas. Sabemos quea maior parte das grandes obras (Bra-sília, Itaipu, Ponte Rio Niterói etc.) - deJuscelino a FHC - foram financiadaspela Previdência, sem que jamais te-nha sido devolvido esse dinheiro aosseus legítimos credores: os que seaposentam. No início, quando o siste-ma se estabeleceu, os recursos pare-ciam infinitos, porque poucos eramaposentados. Essa situação foi se agra-vando com o chamado Fundo Socialde Emergência (FSE) até a lei daDesvinculação de Receitas da União(DRU). Os recursos “produzidos”, ondeforam parar? No pagamento da dívida,pelo mecanismo da DRU. Lembremosainda da CPMF, instituída para recolhercontribuição para a saúde. Foram? Ob-viamente não. Os desvios chegam aos30 bilhões de reais/ano. Há ainda o fa-to de que o governo federal não cum-pre suas obrigações legais, não depo-sita sua parte da contribuição para ofundo previdenciário do setor público.E os culpados são os marajás? O racio-cínio falacioso só se sustenta ao custode muita propaganda e da ajuda ami-ga da imprensa, em especial, da Glo-bo. Esta, de adversária do PT e de Lula,passou a ser uma defensora desse go-verno sério. Será que isso tem a vercom as “dificuldades” daquele grupo

econômico?Com o passar do tempo e a subtra-

ção desses recursos, a situação mudoue chega-se, então, ao famoso “rombo”.Obviamente, a Seguridade Social nãopode dar lucro. Ela é condição de exis-tência da própria força de trabalhoquando na chamada “ativa” e de so-brevivência daqueles que, passadasdécadas, têm que se aposentar. A es-querda e a sociedade não podem cairnesse conto do vigário. Previdêncianão pode dar lucro, assim como Edu-cação, Saúde e serviços públicos emgeral. Como bem afirmou Paul Singer:o teto “implica uma privatização daPrevidência” (Folha de São Paulo,3-2-2003). Em todos os países capitalistasque fizeram essa “reforma” - melhordito, essa contra-revolução - os traba-lhadores perderam, e muito, e o capi-tal vai muito bem, obrigado. Comonunca, aliás. Ao estabelecer um tetopara a Previdência pública e de acessopara todos, cria-se, esta é a lógica, ummanancial de recursos para o financia-mento da acumulação capitalista, emespecial para o capital financeiro.

Existem estudos especializados queadvertem que, sem os desvios de re-cursos, a Previdência social deveriacontar hoje com uma reserva de caixade aproximadamente 603 bilhões dereais. Os movimentos sociais - em es-pecial nossa Central - devem colocar nasua pauta política a exigência de que ogoverno não apenas combata eficaz-

mente a corrupção e a sonegação, masatue na formalização do chamado mer-cado de trabalho, ao invés de facilitar aflexibilização. Isto será decisivo nocombate a qualquer reforma neoliberalda legislação trabalhista e sindical. Aquestão essencial, repetimos, é a uni-versalização da Seguridade.

Devemos lembrar que a Segurida-de Social envolve também a Saúde e aAssistência. E que os recursos arreca-dados da ordem de 161 bilhões de re-ais, ultrapassam o propalado déficit(143 bilhões de reais gastos tanto como setor público quanto com o privado).O que não quadra é privilegiar (combase em legislação constitucional) opagamento da dívida, criar um territó-rio de caça para os setores financeirose ainda por cima, pagar aposentado-rias. Por isso, como sempre, é necessá-rio culpabilizar a vítima. Bastaria deixarde pagar a dívida e deixar de financiaro sistema financeiro - nacional e inter-nacional - para que os recursos garan-tissem a Seguridade Social.

Sabemos que quase 70% dos re-cursos do orçamento da União são uti-lizados para o pagamento dos serviçosda dívida: cerca de 150 bilhões de re-ais. Apenas o serviço da dívida, porqueo principal fica intocado. Se o lucro dosetor financeiro em 2002 foi da ordemde 25,7 bilhões de reais, quem são, narealidade, os privilegiados? Os traba-lhadores? Além de inempregáveis sãoperdulários, querem nos fazer crer. Eisso é decisivo.

Sabemos, também, que muitos di-reitos foram usurpados. Brincar de fa-zer justiça social rebaixando direitosexistentes é uma piada sádica. Já fala-ram em fazer justiça social cobrando aUniversidade pública7, ao invés de uni-versalizar a educação de qualidade emtodos os níveis. Agora querem retirardireitos. Estranho senso de justiça ede... humor. A volta da aposentadoriapor tempo de serviço, da aposentado-

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Brincar de fazer justiça social

rebaixando direitos existentes

é uma piada sádica.

Já falaram em fazer justiça

social cobrando a

Universidade pública, ao

invés de universalizar a

educação de qualidade.

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ria especial para quem trabalha emárea insalubre ou trabalho penoso, arevogação do chamado fator previden-ciário, do limite de idade para a apo-sentadoria etc, resgatariam direitosque foram eliminados/reduzidos poriniciativa de FHC e sobre os quais osatuais governantes calam-se com cum-plicidade. Justiça social se faz com aaposentadoria integral para todos. Enão nos falem dos custos. Ninguémlembrou deles com os PROER e simi-lares, o auxílio às empresas, as doa-ções do dinheiro público ideologica-mente chamadas de privatizações.

A imensa dívida social requer eexige que a brutal concentração derenda desse país seja revertida. Isso, enão o debate entre homens e mulhe-res de boa vontade do Conselho doPacto, é que pode resolver a questão.A correção do valor dos benefícios,assegurando-se de início, um expressi-vo reajuste para os aposentados queganham salário mínimo e instituindo-se um mecanismo automático de cor-reção do valor das aposentadoriaspara preservar seu poder de compra; aadministração dos recursos da Previ-dência Social por comissão compostapor governo, trabalhadores e aposen-tados, com maioria dos trabalhadorese aposentados; valorização dos servi-dores da Previdência Social, com salá-rios e condições de trabalho dignos eplano de carreira que estimule o traba-lhador a exercer bem sua função; siste-ma de controle e fiscalização que pu-nisse, com todo rigor, a sonegação(incluindo a eliminação das isençõesatualmente dadas à entidades “filantró-picas” e coisas do tipo) e corrupção etc.

Programa máximo? Não, justiça mínima.Outras políticas, a mesma lógica

A Dívida Externa da América Latinaé um dos graves condicionantes daconjuntura que atravessamos. Nosso

continente pagou, entre 1992 e 1999,913 bilhões de dólares. Esta é apenasuma medida do grau de financiamen-to do capitalismo pelos países reduzi-dos à miséria ou à dependência extre-ma. Dos 440 bilhões de dólares, em1990, chegamos aos 800 bilhões dedólares, em 2001. Em uma década, asangria nacional foi quase que duplica-da. Como é possível, com esses limi-tes, promover o resgate da dívida so-cial de cada um desses países? As polí-ticas de reajuste estrutural, impostaspelo FMI e aceitas pelos governanteslocais, têm sido o instrumento privile-giado de resposta à crise do capitalis-mo. O discurso de que temos de acei-tá-la para impedir que “os capitais in-ternacionais não fujam”, tem transfor-mado os governos locais em poucomais do que subsecretários do gover-no americano: aprovou-se, na Argen-tina, lei obrigando o governo a pagar adívida externa em primeiro lugar. Istonão responde aos interesses do povoargentino, mas ao dos bancos interna-cionais. A proposta apresentada pelarepresentante dos EUA no FMI chegamesmo a prever a nomeação, “pelacomunidade financeira internacional”,da equipe econômica que iria gerir asua economia enquanto durasse a re-estruturação da dívida, até que o paíspudesse voltar a pagar regularmentesua dívida. A dívida, no Brasil, é res-ponsabilidade constitucional e a fami-gerada Lei de Responsabilidade Fiscal,

aparentemente criada para a moralida-de financeira dos governantes, nadamais é do que a garantia dos superá-vits primários para pagar a dívida etem funcionado como impeditivo deinvestimentos dos municípios, estadose União em políticas sociais. O hege-monismo americano nega toda e qual-quer política nacional.

É com este pano de fundo que asdemais questões ganham sentido. Noâmbito da política educacional, daciência e tecnologia etc. Crédito educa-tivo é compatível com nosso projeto?Penso que teremos de lutar muito du-ramente para manter a possibilidadede uma ciência e tecnologia que cor-respondam às necessidades da nossapopulação. Como enfrentaremos oproblema da desigualdade de acesso àuniversidade? Com política de cotas?Ou pela ampliação da escola públicade qualidade, acoplada a estratégiasde emprego e aumento de renda dasclasses trabalhadoras e das popula-ções espoliadas social e economica-mente? Como acoplar a luta pela cons-trução da nova universidade e da novasociedade?

Apesar de, na campanha, a priori-dade ser dada à Reforma Tributária, es-ta pode vir a ser jogada para as calen-das. Resolvida a questão previdenciá-ria, trabalhista e sindical, ou seja, elimi-nados os principais limites para o capi-tal, apresentados pelos capitalistas co-mo Custo Brasil, a questão da Refor-ma Tributária deixará de ser, mesmoque o governo insista nela, uma neces-sidade. Não haverá “base de sustenta-ção” para sua realização. Se para asprimeiras parece haver um grandeconsenso - dos reformistas governa-mentais aos capitalistas - para a tribu-tária não se vê o menor movimentocom possibilidade real para realizá-laem um sentido “democrático-popular”.Isso parece ser a chamada “moratóriada utopia”. Os governadores admitem

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Acabar com a multa por

demissão imotivada em

um país onde o governo fala

em um programa chamado

“Primeiro Emprego” como

prioritário, não é uma

brincadeira, mas uma

farsa sádica.

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a Reforma, desde que não haja perdade recursos

Fala-se na redução das deduçõesde Educação para o Imposto de Ren-da. Primeiro, eles destruíram a escolapública e incentivaram a rede privada.Agora, vêm dizer que as deduções sãoinjustas socialmente. Quem são os“privilegiados”? Os que ganham porvolta de R$ 1508 por mês, cerca de10% da população economicamenteativa? Ainda uma vez o conceito dejustiça social é perverso. Na realidade,nesses 10% existe muita diferença. Amanobra visa criar o clima necessáriopara passar uma alíquota de 35%, quetocaria uma parte bem menor. Só 350entidades ditas filantrópicas, entidadesque receberam durante anos o privilé-gio de 70% da renúncia previdenciária.Vale dizer, algo da ordem de R$ 2.18 biapenas este ano. Como vemos, o rom-bo da Previdência tem outras explica-ções. Quanto ao Imposto sobre asgrandes fortunas, a equipe da receitaconsidera que sua contribuição, casotributada, não seria de elevada monta.

Quais as propostas reais de refor-ma da ordem sindical e trabalhista? Aspropostas de Jacques Wagner, como asde Berzoini, introduziram uma grandeconfusão política. Mas deram algumasdicas. Acabar com a multa por demis-são imotivada em um país onde o go-verno fala em um programa chamado“Primeiro Emprego” como prioritário,não é uma brincadeira, mas uma farsasádica. Em quem acreditar: no progra-ma eleitoral ou na realpolitik governa-mental? Não podemos deixar de regis-trar, embora possa ter sido um balãode ensaio, a proposta de manutençãoda multa com uma mudança de bene-ficiário... este seria o governo. Masaqui, como em várias outras áreas, nãoestá descartada a manutenção daspropostas do tucanato, entre as quaisse destacava a famosa tese de que “onegociado prevalecia sobre o legisla-

do”. Isto poderia reforçar, ainda umavez, a velha metáfora hegeliana segun-do a qual “a história se repete duasvezes: a primeira como tragédia, a se-gunda como farsa”.

O governo labora em erro ao traba-lhar com pressupostos absolutamentefalsos, como o de que um desenvolvi-mento tecnológico e o crescimento

econômico ampliam a oferta de em-pregos. Na mesma linha se coloca oargumento de que essa oferta podeser ampliada com o simples reduzir/-flexibilizar/eliminar direitos ou encar-gos sociais. A ideologia do Custo Brasilseguramente é legítima para os... em-presários. Para estes, qualquer direitotrabalhista é, no limite, um atentado àsua propriedade; logo, uma brutal dita-dura. Sobre isso Milton Friedman e osChicago Boys cansaram de teorizar. Aexperiência internacional liquidouqualquer ilusão. Na Espanha, a equa-ção flexibilizar = aumento do desem-prego, é visível com clareza meridiana.

Essas medidas servem apenas àredução de custos das empresas, quenão aplicam o excedente em geraçãode novos postos de trabalho, e sim autilizam para aumentar sua margemde lucros, como demonstra exemplar-mente a experiência das Câmaras Se-toriais. Os impostos foram abaixados,o emprego, longe de ser garantido,despencou, mas os lucros e a “produ-tividade” (nome elegante para o au-mento da exploração da classe traba-lhadora) cresceram.

A farsa da “necessidade” de rom-per as amarras da CLT para dar maiorliberdade aos sindicatos é uma brutalmistificação e colabora apenas paraliquidar os sindicatos mais débeis. Nãoestou falando dos sindicatos de carim-bo, mas daqueles que, pela sua pró-pria participação na produção capita-lista, não são estratégicos. O negocia-do valer mais do que o legislado, tesedo governo FHC, é o resumo lógicodessa quebra real das organizaçõesdos trabalhadores. A única proibiçãode negociação, pela lei, era a de queos sindicatos negociem a elimina-ção/redução dos direitos legais dostrabalhadores. Não há como negarque o que foi apresentado até agoranão diferencia em nada da concepçãode Reforma Trabalhista defendida pelogoverno anterior e está em sintoniacom as mudanças liberais que vemsendo implantadas no sistema de rela-ções de trabalho em todo o mundo.

Quais as suas características bási-cas? Aparentemente, o Estado vem seafastando dos conflitos individuais dotrabalho. O concreto é que, mais doque nunca, o Estado vem legislandosobre o trabalho. Com a óbvia defesados interesses capitalistas. Vem interfe-rindo mais e mais nos conflitos coleti-vos do trabalho. Na realidade, vempromovendo a jurisdicização da lutade classes, vale dizer, vem trazendopara o seu âmbito o controle das orga-nizações sindicais. A estratégia de pu-nir com multas altíssimas visa destro-çar os recursos dos sindicatos. No nos-so caso, foi exemplar o envio de umprojeto antigreve para, pretensamente,regulamentar o direito constitucionaldos trabalhadores públicos de fazergreve. Sobre esses pontos, decisivospara a construção de uma relação detrabalho, o governo atual entrou mudoe saiu calado. A CUT deve se opor fron-talmente a esse tipo de reforma.

O princípio da reforma proposta

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A farsa da “necessidade”

de romper as amarras da

CLT para dar maior liberdade

aos sindicatos é uma brutal

mistificação e colabora

apenas para liquidar os

sindicatos mais débeis.

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pelos neoliberais era exatamente oredesenho das classes trabalhadoras. Ede suas direções. Exemplar disso foi oFórum promovido pela Força Sindical.A chamada reestruturação produtiva,ou seja a ampliação da opressão/ex-ploração no processo produtivo produ-ziu o quê? O crescimento do desem-prego, o surgimento do chamado de-semprego estrutural, entre outros. Di-ante disso, da ideologia da “inexorabi-lidade da globalização” e da chamada“revolução científico-tecnológica” foisendo gestada uma cultura defensivis-ta. Cultura essa que levou a muitosdirigentes - diga-se de passagem, dossindicatos mais fortes - a um recuo po-lítico. Tudo havia mudado. Era neces-sário alterar os procedimentos: ao in-vés do enfrentamento, o diálogo.Chegou-se a formular isso com clarezaem um 1º de maio “pela produção econtra a especulação”. As empresas,de adversárias passaram a ser parcei-ras; os bancos de horas, forma extre-ma de exploração, passaram a serapresentados como “vitória dos traba-lhadores” e por aí adiante. Essa criseda subjetividade operária se transfor-mou em objetivação da dominaçãocapitalista. Muitos dos dirigentes quefizeram esse tour de force ideológicohoje estão no governo objetiva ou sub-jetivamente. Como funcionários ou co-mo membros de conselhos de admi-nistração das estatais. É dever da nossaCentral recuperar o movimento sindi-cal “combativo”, ao invés de apoiar adefesa dessa proposta de contra-refor-ma. Um governo que se propõe a re-presentar a sociedade e resgatar aesperança para derrotar o medo temum desafio grande: a revogação dasmedidas adotadas pelo governo ante-rior que já avançam na flexibilizaçãodos nossos direitos e no ataque aos di-reitos sindicais.

A atuação da CUT é, portanto, umadas questões centrais da conjuntura.

Ela viverá, agora, um momento decisi-vo da sua história. Poderá afirmar-secomo central democrática, classista ede lutas ou transformar-se em umacorreia de transmissão das decisõesgovernamentais. O 8º Congresso, ondea atual maioria não deverá ter dificul-dades de manter-se no comando, teráque enfrentar questões decisivas. Umpequeno exemplo. A direção da Cen-tral afirmou que irá confrontar-se como governo caso, na “reforma” da previ-dência, sejam mantidos regimes dife-renciados. E o que ela fará com ascategorias como a dos docentes, dostrabalhadores públicos etc. que têm -constitucionalmente - esse direito? Vaiobrigá-los a aceitar, goela abaixo, essasituação? Afora o fato de que como setrata quase de um governo de “unida-de nacional” (sic), Lula tem convocadoas demais “centrais”, como a SocialDemocracia Sindical e a CAT, cuja exis-tência no panorama nacional é quasevirtual, para participar em pé de igual-dade com a CUT. A fragmentariedadeda representação dos trabalhadores éum dado que efetivamente complicará

a atuação da CUT. Para além disso, aCentral enfrentará, seguramente, odebate de sua democratização interna.E a reforma dos seus estatutos nãoparece indicar nenhuma posição ani-madora para a “direção minoritária”.Tarefas que o conjunto do movimentocutista terá que enfrentar com toda aclareza e sensibilidade política.

A autonomia da CUT frente ao Es-tado é decisiva. Muitos dirigentes daCentral já estão no governo e ela correo risco de vir a ser uma central gover-nista, chapa branca, incapaz de organi-zar a luta em defesa dos interesses dostrabalhadores - nem dos imediatos,nem dos históricos - que hoje repre-senta. Sua responsabilidade é aindamaior. Como ela é a maior central sin-dical da América Latina, o seu compor-tamento poderá ter um forte impactonas demais centrais. Assim, nacional einternacionalmente, ela não pode fugirà sua responsabilidade na conduçãoda luta sem trégua contra os planosdo Imperialismo para a região e con-tra a exploração do capital que massa-cra as classes trabalhadoras. Está colo-cada para o conjunto da militância adefesa de suas bandeiras históricas,das reivindicações e interesses dostrabalhadores que representa. Cabe aessa base assumir a defesa de umaCUT de lutas, classista, democrática esocialista que fundamos vinte anosatrás. A integração ou não da CUT àsforças governamentais é relevantepara o debilitamento do movimentosindical continental e mundialmente.Sua autonomia e sua luta são decisi-vas para o fortalecimento do sindica-lismo internacional.

Agindo autonomamente e defen-dendo os interesses dos trabalhadores,a CUT deve exigir a revogação das leisdo banco de horas, da demissão tem-porária, do contrato temporário, a eli-minação ou mudanças radicais na leisobre a PLR (participação nos lucros e

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A autonomia da CUT frente

ao Estado é decisiva.

Muitos dirigentes da Central

já estão no governo e ela

corre o risco de vir a ser

uma central governista,

chapa branca, incapaz de

organizar a luta.

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resultados) que flexibiliza os salários; aproibição da demissão imotivada, coma volta da vigência da convenção 158da OIT; a redução da jornada de traba-lho; o pleno direito de greve (com arevogação das punições aplicadas aossindicatos e anistia de dirigentes sindi-cais perseguidos pelas empresas); oestabelecimento do direito à organiza-ção e à ação sindical no local de traba-lho; a efetiva proteção ao mandato dodirigente sindical no exercício da suafunção, inclusive com a proibição ex-pressa na lei de afastamento do diri-gente do seu local de trabalho por de-cisão unilateral da empresa, a não serdepois de transito em julgado de deci-são judicial; o fim do direito normativoda justiça do trabalho; o fim da unici-dade e do imposto sindical; o estabe-lecimento do direito à negociação co-letiva nacionalmente articulada (con-forme proposta da CUT de início dosanos 90), inclusive para o funcionalis-mo público; estabelecimento de crité-rios democráticos para definição derepresentatividade de sindicatos, casohaja mais de um em determinada ba-se, inclusive com a adoção da propor-cionalidade definida pelo voto dabase, para composição das comissõesde negociação e para assinatura dosacordos que vigorariam nestas bases;ultratividade das claúsulas das conven-ções e acordos coletivos etc.

A ALCA é um ponto decisivo napolítica nacional e da Central. Trata-sede um mecanismo de recolonizaçãodos nossos países. O fundamental é ocontrole total da economia da regiãotransformada em território privilegiadoda acumulação capitalista e elementode neutralização do papel político dosnossos países. Com a ALCA implanta-da, os povos latino-americanos pode-rão até eleger seus governantes, mas ocontrole das suas economias, será ain-da mais, realizado pelos grandes gru-pos econômicos internacionais. Cor-

remos o risco de virarmos, como PortoRico, “territórios livres associados”, semquaisquer direitos políticos e sociais.Lembremos que o NAFTA já condicio-na, inclusive, as políticas educacionaisdo México e do Canadá. A possibilida-de de um provão pode ser implantadaem escala continental, para alegria doex-ministro PR.

Segundo a Câmara Americana deComércio as empresas dos EUA ven-dem hoje, para a América Latina algoem torno de 60 bilhões de dólares/-ano. Com a ALCA passariam a vendercerca de 200 bilhões de dólares/ano.Trata-se de um brutal movimento definanciamento do capital americanopelos... povos famintos e doentes docontinente. Esse projeto terá sempre oapoio das burguesias locais, ainda queaqui e ali estas busquem uma posição“especial”, vale dizer, uma vantagem di-ferencial entre si. A instituição de um“Painel Arbitral” liquida, na prática, apossibilidade de um Estado Soberano.Esse “tribunal” internacional, controla-do obviamente pelos EUA, ao “dirimir”as demandas jurídicas que vierem aocorrer entre uma multinacional equalquer país integrante do tratado,legalizará a ditadura das multinacionaissobre os nossos povos. O tratado per-mitirá a apropriação da nossa biodiver-

sidade (a Amazônia, as reservas deÁgua Potável, etc) e objetiva impor opadrão norte-americano para produ-ção de alimentos, eliminando qualquerpossibilidade do Brasil vir a ter umasoberania alimentar, indispensável aqualquer país que almeje um projetode desenvolvimento que priorize seupovo. Para implantar a ALCA o governodos Estados Unidos vem trabalhandona perspectiva de acordos bilaterais,seja com um país (Chile), seja com umconjunto de países (Pacto Andino),através dos quais impõe as mesmascondições previstas no tratado da ALCA.

O efeito ALCA sobre a CUT é fantás-tico. As dificuldades do plebiscito eapós sua realização, são reveladores.Na última reunião da direção nacionalda CUT realizada em dezembro passa-do, esta se nega a apoiar o abaixo assi-nado da Campanha Contra a ALCA afir-mando, entre outras coisas, que oabaixo assinado é contra o governo. Oque se pede é a realização de um ple-biscito oficial sobre a ALCA, a realiza-ção da auditoria sobre a dívida previs-ta na Constituição Federal e a anulaçãodo acordo que entrega a base de Al-cântara aos EUA. Podemos ser contraisso? Em nome do que e de quem?

No quadro do plebiscito sobre aALCA, consultou-se a vontade popularsobre a questão da Base de Alcântara.O controle, dessa base, pelos EstadosUnidos, é estratégico. O território daAmérica Latina deve ser monitorado.Teses defendidas por altas patentes dasforças armadas americanas falammesmo em monitorar todo o planeta.Essa perspectiva aterradora já come-çou. O monitoramento do espaço aé-reo da Amazônia pelo projeto SIVAM,feito por uma “empresa” americana,permite desde controlar o deslocamen-to de aeronaves até a movimentaçãode tropas. A Bolívia e o Paraguai já tive-ram seu subsolo mapeado por progra-mas similares e isto é uma vantagem

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extraordinária para as empresas capita-listas. A luta pela anulação do acordo jáassinado pelo governo anterior e emdiscussão no Congresso Nacional econtra a entrega da base de Alcântara éfundamental para qualquer perspectivade soberania nacional.

A autonomia como método da política

Nos anos 80 houve um debate naárea educacional onde os peemedebis-tas falavam em “da competência técni-ca ao horizonte político”, ao que aesquerda retrucava “do horizonte políti-co à competência técnica”. Não se tratade um jogo de palavras mas, de afirmaro primado da política na condução daspolíticas governamentais. Em política,nunca há situação sem saída. A reinven-ção da militância é condição necessáriapara que ultrapassemos os limites colo-cados pelos organismos internacionais.Fora daí, estaremos condenados à pas-sividade e a observar como os governosque nós mesmos elegemos podem sermanietados.

Esse conjunto de questões convidaa uma reflexão mais ampla. Podería-mos, se não fossem os limites destetexto já demasiadamente extenso, co-locar em debate a relação direção-ba-ses ou militância-base sindical/parti-dária. Como também seriam vitais re-flexões sobre Partido/Sindicato. Aforma pela qual nós as pensamos de-terminam, em grande medida, a ques-tão: podemos ser críticos em relaçãoao governo que elegemos? Em quemedida? Ou seja, poderemos e deve-remos ter como elemento central danossa análise a questão da autono-mia, no nosso caso, do movimentosindical em relação ao Estado, ao pa-tronato, às crenças, sejam de que tipoforem? Durante décadas afirmamosisso. Por que as dúvidas agora? A posi-ção autônoma, classista e combativapermitirá aos trabalhadores ultrapas-

sarem a fase na qual eles são merosatores do capital para construir umnovo momento: o de sua realizaçãocomo sujeitos da história.

O ANDES-SN deve, ainda uma vez,reafirmar sua posição de autonomia.Qual o sentido de falar-se em autono-mia? Ela é uma posição política ade-quada e não uma frase feita. Ela reve-la não apenas uma concepção de rea-lidade, mas, e principalmente, nossacoerência enquanto classe trabalhado-ra e movimento social. Enfim, comoprojeto de uma nova sociabilidade ne-gadora do capital. Mesmo os gover-nantes que foram eleitos deveriamquerer que os militantes dos movi-mentos sociais estivessem firmes nadefesa das políticas e não apenas dos

eleitos, porque isto representa a possi-bilidade concreta de impedir que oatual jogo de forças elimine o nossoprojeto, para impossibilitar a realizaçãoda caracterização que a Senadora He-loísa Helena fez, segundo a qual “omedo venceu a esperança”. Pensarcom autonomia significa tentar cons-truir, permanentemente, a identidadeda classe, da categoria, do sindicato.Quando se abre mão disto só nos res-ta confiar e obedecer.

Dizíamos em Belém: “Pensando re-alisticamente, a direita deveria acredi-tar na possibilidade de eleger Lula. Se-ria a forma de ´demonstrar´ que tantofaz este ou aquele, dado que o capita-lismo (eufemisticamente chamado de´mercado´) tem uma naturalidade que

ultrapasse a vontade deste ou daquelesegmento político.” Os aplausos doconjunto da burguesia, de Davos aoFMI, revelam que ela assimilou que,para fazer suas reformas, é necessárioalguém com legitimidade popular. Im-plementado o seu programa, não im-porta que partido governe, importaque governe com o seu programa. Co-mo dizia Deng Ziao Ping: “não importaque os gatos sejam pardos ou brancos,importa que eles cacem os ratos”. Esseé o segredo de Polichinelo da raciona-lidade governamental. Recusemos arealpolitik limitadora da nossa capaci-dade de transformar o real.

Notas1. Este texto foi apresentado ao XXII Con-gresso do ANDES-SN, Teresina, 8 a 14 demarço de 2003. É agora publicado em Uni-versidade e Sociedade com pequenas modifi-cações. Obviamente poderá parecer desatua-lizado pontualmente já que foi escrito em 24de fevereiro de 2003.2. Karl Marx - O 18 Brumário: “Os homens fa-zem a história (...) em condições dadas”, istoé, em conjunturas históricas determinadas.Fazem, insistimos, não a sofrem pura e sim-plesmente.3. Maria Lúcia Werneck Viana - PrevidênciaSocial Pública x Previdência Privada, in Ciclode Palestras “Pensando o Brasil, Pensando aPrevidência”, promovido em 22 de julho de2002, pelo Sindicato dos Auditores-Fiscais daPrevidência Social do Estado do Rio de Ja-neiro, pp. 31-43.4. Um belo exemplo de quão orgânico é esseprocedimento já se encontra no citado O De-zoito Brumário, de Marx.5. Reforma ou Contra Reforma?, Caros Ami-gos, a. VI, nº 71, fevereiro de 2003, p.13.6. Cf. Ricardo Bellofiore, “O Capitalismo dosFundos de Pensão”, Outubro, revista do Insti-tuto de Estudos Socialistas, nº 7, 2º semestrede 2002, São Paulo, pp. 61-75.7. Tanto na ditadura quanto nos governos pos-teriores. Há um projeto de cobrar um impos-to para os que cursaram a universidade públi-ca patrocinado por deputados do PT, entre osquais o Padre Roque (PR-PR).

*Edmundo Fernandes Dias é professordoutor aposentado da Unicamp.

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 157UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Em política, nunca há

situação sem saída.

A reinvenção da militância

é condição necessária para

que ultrapassemos os limites

colocados pelos organismos

internacionais.

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1. A segunda Guerra do Golfo, poste-rior à de 1991, comandada por Bushpai, se desenrolou e “foi concluída”rapidamente: infringindo a legalidadeinternacional, destruindo a unidadeda Europa, atirando o Iraque no caos,criando as premissas das desordensfuturas. Neste texto, encaminho algu-mas considerações esquemáticas epreliminares, ainda que não comple-tas, sobre os aspectos estritamenteeconômicos que estão por trás doúltimo conflito que se abre em nos-sos horizontes. É uma ótica certamen-te parcial, porém indubitavelmenterelevante.

Comecemos pelas questões dos“custos” da guerra. Não existem mui-tos estudos sobre isto, mas alguns de-les são, indubitavelmente, interessan-tes. Em setembro, Larry Lyndsey, entãoconselheiro de Bush, previu um custodireto entre 100 e 1200 bilhões de dó-lares. Foi desmentido no dia seguintepelo Executivo e, em seguida, “demiti-do”. As estimativas sobre o custo dire-to da guerra, produzidas logo em se-guida pelo Congressional Budget Of-fice previam um custo muito modesto,entre 22 e 29 bilhões.

Mais consistentes eram os cálculosdo estudo realizado pela oposição de-mocrática, o Democratic Staff Of TheHouse Budget Commitee, que avaliavaos gastos entre 31 e 60 bilhões. OCenter of Strategic and InternationalStudies realizou uma estimativa inter-

mediária, de 44 bilhões. Um artigoposterior, de William D. Nordhaus, pu-blicado na New York Review of Books(“Iraq: The Economic Consequences ofWar”, 5 de dezembro de 2002) sinteti-za um estudo de maior fôlego, apre-sentado na internet. O autor se fixouem cifras decididamente mais eleva-das e compatíveis com aquelas de Lin-dsey, isto é, entre os 50 e os 140 bi-lhões.

O interesse pela pesquisa de Nor-dhaus se deve ao fato de ter apresen-tado um espectro mais amplo, ao pro-curar avaliar também os custos indire-tos. Ele comparou duas estimativas:uma “otimista” (guerra breve e de rápi-do sucesso). A outra, “pessimista”(guerra prolongada, desfavorável aosEUA), levando em consideração nãosomente a despesa militar, mas tam-bém os gastos para a ocupação e amanutenção da paz (peace-keeping),reconstrução e assistência humanitá-ria, bem como o impacto sobre osmercados petrolíferos e o risco de re-cessão.

Todos os custos que os outros estu-dos não consideravam e que teriamfeito as despesas elevarem-se entre121 e 1595 bilhões, nos dois casos:apenas os custos relativos ao balançodo Estado oscilavam entre 106 e 615bilhões. É claro que a rápida resoluçãodo conflito fez desaparecer uma sériede variáveis que poderiam elevar oscustos diretos nos vários cenários, co-

mo o emprego de armas biológicas equímicas por parte do Iraque, um ata-que a Israel, uma crise na Turquia eArábia Saudita, uma retomada do ter-rorismo e assim por diante. Por outrolado, o caos determinado pelo colapsodo Estado-nação iraquiano poderá, pornão ter sido avaliado inicialmente portodos os especialistas, eliminar muitasopiniões.

No cálculo de Nordhaus, estão in-cluídos, como dissemos, estimativassobre as conseqüências do conflito re-lativas ao impacto sobre os mercadospetrolíferos e os efeitos macroeconô-micos. Alguns destes fatores foramconsiderados também por outros estu-dos. Atualmente, a quota do Iraque nomercado petrolífero mundial é muitobaixa (3%), mas se estima, em geral,que a procura pelo ouro negro sejamuito pouco elástica. Neste campo, asprevisões sobre as conseqüências daguerra variam em um arco que vai deuma hipótese “pessimista” (guerraprolongada), com preços em 60 dóla-res o barril, em 2003, e 40 dólares, em2004, a uma hipótese ‘intermediária’(guerra veloz, mas com muitos mortose saída de cena do petróleo iraquianopor pelo menos 6 meses), de 37 dóla-res o barril em 2003, e 30 dólares, em2004, a uma hipótese “benigna” (aque poderia ter-se verificado), que secoloca em termos de 26 dólares o bar-ril, em 2003, e 22 dólares, em 2004.

Nordhaus era, como parte da opi-

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Economia: a guerra é benéfica,

desde que seja infinita1

Riccardo Bellofiore2

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nião pública “democrática”, contra aguerra, inclusive por razões denomina-das “materiais”. Antes de mais nada, aguerra não revitalizaria imediatamentea economia. Isto já teria sido demons-trado pela guerra de 1991, quando adespesa militar fez o PIB crescer ape-nas 0,3%, e que, acabada a guerra, aeconomia americana entrou em umadas mais sérias recessões, desde o fimda Segunda Guerra Mundial (apenascomo termo de comparação, a Segun-da Guerra Mundial teve um impactosobre o crescimento da despesa mili-tar na ordem de 41,4%; a guerra daCoréia, 8%; a do Vietnã, 1,9%). O im-

pacto macroeconômico negativo seriagerado, principalmente pelo petróleo,e seria significativo. A guerra, por outrolado, teria agravado o déficit, que jácorre por conta própria. Em apenas umano e meio, a nova maioria conserva-dora anulou o superávit de 300 bi-lhões deixado por Clinton, colocandono vermelho as reservas do Estado em

valor equivalente. O conflito iniciadopor Bush Jr. obteve do Congresso ou-tros 75 bilhões especificamente desti-nados às despesas de guerra. ParaNordhaus, a incerteza crescente, deri-vada de uma fase ainda de recessãoseria um ulterior e crucial elemento aconsiderar.

As teses de Nordhaus foram subs-tancialmente retomadas pelo PrêmioNobel Joseph Stiglitz em um editorialtraduzido no Corriere della Sera no iní-cio de janeiro. Seu argumento era que,ao contrário da Segunda Guerra Mun-dial, que fez com que os países capita-listas saíssem da grande crise e daguerra da Coréia e do Vietnam, a guer-ra no Iraque envolveria relativamentepoucos homens por pouco tempo, eempregaria poucos recursos. Em senti-do negativo, mais relevante seria preci-samente a elevação da incerteza indu-zida pelo conflito, tanto sobre o consu-mo e os investimentos, quanto sobre opreço do petróleo. Aliás, a guerra po-deria, em função de seu impacto sobreos déficits, fazer eclodir uma grandedeflação, já que se somaria às perver-sas políticas de Bush Jr. de reduçãodos impostos em favor dos ricos, forja-das de maneira tal a gerar escassosefeitos expansivos. Diante de um qua-dro de ausência de auxílios aos balan-ços dos Estados considerados indivi-dualmente, deprimidos pela quedadas importações em função das crisesdos últimos anos, a guerra poderia sero golpe de misericórdia.

É evidente que existe, entretanto,uma contradição no raciocínio de Nor-dhaus e Stiglitz, uma contradição nãoeliminada pelo êxito do conflito favorá-

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A guerra poderia, em função de seu impacto sobre os déficits,

fazer eclodir uma grande deflação, já que se somaria às perver-

sas políticas de Bush Jr. de redução dos impostos em favor dos

ricos, forjadas de maneira tal a gerar escassos efeitos expansivos.

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vel aos EUA - uma contradição que va-le a pena assinalar ainda que se quei-ra negligenciar uma hipótese nem umpouco extravagante segundo a qual acoalizão anglo-americana possa en-contrar dificuldades mais sérias paravencer a paz no Iraque do que lutarcontra Saddam. Se é verdade que umaguerra “breve” tiver a capacidade decolocar nos trilhos (di traino) a econo-mia combalida dos EUA, suas recaídasa partir de outras variáveis podem ser

toleradas. Porém, se a guerra, pelocontrário, for “infinita” -, não apenasesta guerra, mas o conjunto de inter-venções preanunciadas para os próxi-mos vinte ou trinta anos na guerracontra “as forças do mal”, contra os“Estados-canalhas” - então as glóriasdo complexo militar-petrolífero pode-riam renovar-se, como de fato já estáocorrendo. O deslocamento do alvodos neoconservadores dos EUA emdireção à Síria, quando ainda não seencerrou a guerra do Iraque, confirmaeste raciocínio.

2. Se as coisas estão assim, asvariáveis a serem consideradas são,pelo menos, seis: (1) o peso do setormilitar na economia dos EUA, (2)quem paga o custo da guerra e quemganha com ela, (3) a questão do preçodo petróleo, (4) a vinculação entre fi-nanças e petróleo, (5) as contradiçõesentre Europa e EUA e (6) A instabilida-de geopolítica.

Não há dúvidas sobre o fato de queas despesas militares americanas,após o 11 de setembro, estão crescen-do de forma extraordinária. Isto foi do-cumentado com precisão nos últimosúmeros da revista Guerre e Pace. Em

2001, o orçamento para armamentosera, sempre em bilhões de dólares, de307; em 2002, saltou para 339; em2003, Bush Jr. queria elevá-lo para 379mas, na verdade, o aumentará aindamais dadas as últimas alocações deverbas. Estamos às voltas com um au-mento de cerca de 150 bilhões de dó-lares, em apenas três anos, ou seja,cerca da metade da cifra inicial. A tabe-la de gastos do início da guerra era so-mente um aperitivo já que, para 2007,os planos de gastos chegam aos 451bilhões, perfazendo um total, entre2002 e 2007, de 2.144 e corre-se orisco, obviamente, de ser a fundo per-dido. Um esforço do gênero, que já foiclassificado por alguns como “despesasocial”, pode influenciar fortemente onível e a composição da receita nacio-nal, principalmente pela presença dodéficit produzido por Bush, porém, se-jamos claros, o problema não é tantoo déficit, mas a péssima qualidade dadespesa social, agravada pela ineficá-cia em estimular a economia atravésde cortes fiscais - pode influir potente-mente sobre o nível e a composiçãoda renda nacional. A crise atual teriasido bem mais grave sem a política fis-

cal ativa do Estado-Nação americano,que se aliou à insuficiente política mo-netária do FED.

No que se refere a quem paga equem poderia lucrar com a guerra noIraque, o quadro ainda é muito obscu-ro. Pode-se então recordar o que ocor-reu durante o conflito precedente, em1991. O custo foi de aproximadamen-te 60 bilhões de dólares, mas esse foicoberto apenas parcialmente pelosEUA: o resto foi pago pelos aliados,particularmente a Arábia Saudita e oKuwait. Deixou-se de dizer que, tam-bém desta vez, as despesas serão par-tilhadas de forma semelhante entre ospaíses, inclusive reservando um papelex post à ONU e/ou outros países nãoparticipantes ou hostis ao conflito, co-mo condição para poder participar dobanquete da reconstrução do Iraque.

Em 1991, a incerteza e as própriasdestruições de plantas petrolíferas re-lacionadas com o conflito fizeram comque se elevasse notavelmente o preçodo petróleo, de 15 para 42 dólares obarril, durante algum tempo. Os lucrospetrolíferos, “excepcionais”, foram divi-didos entre os países produtores e ascompanhias petrolíferas que eram, emparte (não todas), americanas. Por es-te motivo, pode-se presumir que aoEstado Americano e às companhiasprivadas americanas esteja reservadauma fatia significativa dos maiores ne-gócios, isto sem contar, obviamente,os lucros da indústria militar, tambémesta, em sua maior parte, americana.Tudo isso sem levar em conta os inte-resses das empresas americanas nareconstrução do Iraque - assunto que,somente agora, a imprensa inglesa eamericana está começando a fornecerinformações preocupadas, e sobre asquais existem dúvidas dentro do Con-gresso americano, em relação ao en-volvimento direto de empresas vincu-ladas a pessoas da alta hierarquia daadministração Bush. Deveria ser consi-

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Pode-se presumir que ao Estado Americano e às companhias

privadas americanas esteja reservada uma fatia

significativa dos maiores negócios, isto sem contar,

obviamente, os lucros da indústria militar.

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derado, também, o custo da guerranão será pago pelas futuras receitas dopróprio petróleo iraquiano. A relaçãocusto-benefício da nova guerra deveráser feita algum tempo após o evento,inclusive porque desta vez não estáclaro antecipadamente quem poderáser chamado a contribuir com as des-pesas: podem estar reservadas surpre-sas em relação às previsões atuais.

Creio que ainda não seja corretoatribuir à primeira guerra do Golfo asgraves dificuldades da economia ame-ricana, no período 1991-2, como fa-zem Nordhaus e Stiglitz. As crises e asfalências de numerosos bancos e deintermediários financeiros, com a con-seqüente redução de crédito que gol-peou os investimentos privados, tive-ram um peso bem maior. No mesmoperíodo, o Banco Central Americano(FED), temendo erroneamente um es-touro inflacionário, piorava as coisas,ao restringir o crédito. O principal efei-to negativo da guerra foi uma contra-ção momentânea do consumo privadopelo efeito negativo das expectativas.

3. Passemos à questão central dopetróleo. Não creio que exista o riscode um aumento permanente e rele-vante, a longo prazo, do preço do pe-tróleo provocado pelos países do Ori-ente Médio pertencentes à OPEP. Éclaro que se registrou, como sempre,uma leve bolha especulativa na imi-nência da guerra que permanecerá poralgum tempo durante o conflito e serámais ou menos duradoura e grave deacordo com o seu andamento.

Porém, a ela se seguirá novamente,como no pós 1979-80, um contra-cho-que que abaixará os preços: alguns es-timam normalmente que possa o ouronegro chegar a 5 dólares o barril, umahipótese, direi, pouco provável. Deve-se levar em conta que o Iraque, nopós-guerra, não somente voltará ple-namente ao mercado, do qual foi, emgrande parte, excluído, mas também

será obrigado, pelas exigências dareconstrução e para o pagamento dosdébitos de guerra que provavelmentelhe serão impostos, a elevar em maisde três vezes a sua oferta diária de 2bilhões e meio de barris. Entretanto,existem aqueles, como Daniel Yergin,que sustentam que elevar a oferta ira-quiana a 3,5 bilhões de barris ao diasomente seria possível no arco de trêsanos, e que somente após 2010 serápossível fazê-la chegar aos 5,5 bilhões.

De minha parte, não penso que osEUA tenham interesse em preçosmuito baixos do petróleo. Há temposcolocaram as mãos sobre as reservasde petróleo do Cáucaso, em um mo-mento de escassa conveniência emexplorá-las, tendo em vista os atuaispreços baixos (as reservas estão esti-madas entre 85 e 195 bilhões de bar-ris, isto é, entre 1,5% e 2% das reser-vas globais). Entram também no jogoos interesses imediatos dos produto-res e o fato de não serem os mais pre-

judicados entre os grandes capitalistaspela elevação do preço do ouro negro.Por todas estas razões, um aumentofuturo não seria, para eles, somenteuma notícia negativa. Controlar umpreço moderadamente crescente sig-nifica tornar rentáveis - após numlongo período de “vacas magras” quedurou da metade dos anos 80 até ametade dos anos 90 - jazidas poucoexplorados até agora, custos de trans-porte crescentes, e assim por diante.

O ponto que justifica o conflito,sempre vinculado ao petróleo, não é,em resumo, o preço. É outro. O Iraqueé conhecido como o segundo detentormundial de reservas de petróleo (atu-

almente estimadas em 11% do total:112 bilhões de barris contra 262 bi-lhões da Arábia Saudita). Seria o pri-meiro se fossem levadas em conta asreservas descobertas no deserto oci-dental, estimadas pelo Departamentode Energia dos EUA em 220 bilhões debarris (as estimativas dos analistas os-cilam em geral em um arco que vaidos 150 aos 250 bilhões de barris).Tudo isto, evidentemente, não podedeixar de interessar aos EUA que, com4,6% da população mundial, conso-mem 25,5% do petróleo bruto mun-dial: 19 bilhões de barris ao dia, emum total de 77 extraídos (a recessãodos dois últimos anos diminuiu umpouco estas estimativas). Controlaraquelas reservas é importante inclusi-ve por outras razões, para além da de-finição do preço: é o caso, por exem-plo, de impedir que se solidifique aintervenção naquela área de compa-nhias russas, francesas e italianas, ins-taladas nos últimos anos, e que fazem

tremer de medo as companhias ame-ricanas e inglesas. Como demonstracom razão Sergio Finardi no Il manifes-to de 7 de março (“Guerra: os fins jus-tificam os poços”), esta é apenas umaparte da história, talvez não a mais im-portante.

Se deixarmos de fora do quadro asreservas escondidas nos desertos doIraque, estimadas hipoteticamente emgrau máximo, o segundo posto dasreservas mundiais pertence ao Canadá(a dois passos dos EUA), que, em2002, atingir a marca de 180 bilhõesde barris. Corre a informação que a re-levância do petróleo se elevaria emfunção do rápido esgotamento das

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Controlar aquelas reservas é importante inclusive por outras

razões, para além da definição do preço: é o caso, por exemplo,

de impedir que se solidifique a intervenção naquela área de com-

panhias russas, francesas e italianas, instaladas nos últimos anos.

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reservas e da persistente dependênciadas econômicas capitalistas do petró-leo nos dias atuais. Em 1998, o petró-leo mais o gás representavam 60,7%(sendo a parte do gás de 25,7%). Ci-fras não muito menores que as dadécada de 70 (quando representavam,juntos, 64,88% das reservas, sendo19,5% de gás), enquanto a energianuclear saltou de 0,1 para 7,4%. Em2030, o consumo diário deveria atingir120 bilhões de barris diários. Há algumtempo, o esgotamento das jazidas émais veloz que a descoberta de novasjazidas (as últimas avaliações, por alto,das reservas de petróleo são, deve-sedizer, um pouco dúbias e se parecemmais com artifícios contábeis, consis-tindo, no mais das vezes, de novas au-to-estimativas por parte dos própriosprodutores, e não propriamente dosdesinteressados). Finardi, porém, insis-te justamente que neste ritmo de cres-cimento, as reservas estão garantidaspor pelo menos 40-50 anos de consu-mo crescente: estabelecer a hipótesede que um arco de crescimento dessetipo se mantenha inalterado diante dohorizonte tecnológico é algo irracional.

Na verdade, ainda mais importanteé controlar os “corredores” dos oleo-dutos e gasodutos que levam o petró-leo do Oriente Médio e do Cáucasoem direção ao Ocidente e Oriente,subtraindo-os da influência da Rússiae do Iran. É óbvio que a escolha dasvias de distribuição e os custos do pe-tróleo e do gasóleo estão, ao menosem parte, por trás dos conflitos noKossovo e Afeganistão: lugares ondeestão em jogo interesses geopolíticosdo governo americano e estratégias de

investimento das companhias petrolí-feras dos EUA. A guerra, na ex-Iugos-lávia, com efeito, colocou em evidên-cia a fragilidade política da Europa eabortou a tentativa de alguns paísesdo velho continente de tornarem-seautônomos no plano energético atra-vés de percursos alternativos (o corre-dor Balcãns-Mar Negro-Ásia Oriental)áquelas privilegiadas pelos EUA. Aguerra no Afeganistão “milagrosamen-te” sancionou, após anos de tentativas,a iniciativa americana de tornar prati-cável um “corredor”, conveniente aosEstados Unidos, na Ásia Central, em di-reção à Índia e não à China. Bastarecordar os interesses naquele país dacompanhia argentina Bridas e da ame-ricana Unocal (vinculada à Enron, eportanto, a Cheney e Bush), que con-trataram, pelo menos em 1996-7, apossibilidade de um novo trânsito comos talebans no poder. Talebans, sejadito entre parênteses, como Bin Ladene Saddam, que nascem “graças” aosEstados Unidos: neste caso, em funçãoda esperança de que poderiam levaruma ordem ao caos da guerra feudalentre senhores de guerra locais. É depouco tempo depois, 1998, a entrevis-ta ao Congresso Americano por JohnMaresca, vice-presidente da Unocal,em que justificava os contatos com ostalebans em função da perspectiva danecessidade de controlar, através domonopólio da oferta de energia, o de-senvolvimento chinês. Os contatoscom os talebans, interrompidos por al-gum tempo, foram retomados em2001, apenas um mês antes do 11 desetembro, e concluídos pela famosa (eprofética) alternativa colocada pelos

representantes dos EUA de ‘cobrir’ oAfeganistão ou com um tapete de dó-lares ou com um tapete de bombas.Nestes encontros recentes, um dosprotagonistas foi Halliburton, pessoada qual Cheney havia prestado servi-ços como administrador antes de en-trar no governo de Bush Jr.

Em resumo: controlar a distribui-ção do petróleo do oriente médio ecaucasiano significa muito mais doque contribuir para o controle apenasdo preço do petróleo. Significa ter napalma da mão aqueles que mais de-pendem dos EUA e, conseqüentemen-te, do petróleo daquela região. O pe-tróleo da OPEP representa pouco maisde um terço do consumo mundial(37,3% em 2002). Os EUA dependem,sobretudo, do Canadá, México e Vene-zuela: dois terços de seu petróleo vêmde produtores não-pertencentes àOPEP. Europa e Japão dependem, pelocontrário, do Oriente Médio em cercade 30% e 81%, respectivamente, en-quanto para os EUA estes países con-tribuem com apenas 15,5% de seupetróleo. Como pano de fundo, comovimos, existe a China, o temido gigan-te econômico do século XXI.

4. Para traçarmos um quadro com-pleto da questão petrolífera se faz ne-cessário esclarecer os laços estreitos,de longa data, mas que se aprofunda-ram após o aumento dos preços dopetróleo entre 1973-4 e de 1979, entreos interesses políticos e as dinâmicasdas finanças. No primeiro destes pe-ríodos, recordemos, não era estranha amão oculta dos EUA de Nixon e Kis-singer, como deixa claro este últimoem suas memórias. Talvez tivesse al-gum peso a exigência de criar politica-mente uma recessão que iniciasse aregulação das lutas do trabalho e so-ciais em escala mundial com a dinâmi-ca das finanças. Sobre isso é bastanteútil um texto de Joseph Halevi, aindanão publicado (US Imperialismo, Oil

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A escolha das vias de distribuição e os custos do petróleo

e do gasóleo estão, ao menos em parte, por trás dos conflitos

no Kossovo e Afeganistão: lugares onde estão em jogo

interesses geopolíticos do governo americano.

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and Finance, apresentado em um se-minário do Departamento de CiênciasEconômicas da Universidade de Bérga-mo em 24 de fevereiro), assim comoum artigo bastante recente de ElmarAltvater (“La valuta dell´oro Nero”, pu-blicado na rivista del manifesto deabril).

Halevi recorda o interesse de longadata dos EUA, no petróleo do OrienteMédio, que se reporta ao acordo de1928 entre companhias americanas,inglesas e francesas para a exploraçãoda área. Em 1948, quando foram des-cobertas jazidas importantes na ArábiaSaudita, os EUA conseguiram obteruma concessão exclusiva daquele país.Porém, foi na metade dos anos 70 queo circuito financeiro relacionado aopetróleo tornou-se vital para o país he-gemônico, em crise de hegemonia. Foigraças à reciclagem dos petrodólaresem Wall Street via Londres, que seconseguiu, à época, manter a confian-ça no dólar qualquer que fosse o seucurso (para cima ou para baixo nomercado de ações). Esse circuito conti-nua vivo e é essencial. Para dar apenasum exemplo: a Arábia Saudita foi como Japão, há algumas décadas, um dosmaiores financiadores externos dodéficit público americano. As rendasobtidas eram gastas, principalmente,em armamentos utilizados novamentepara a mesma finalidade.

A necessidade de sustentar a con-fiança no valor do dólar nasceu do fatode que na metade dos anos 60, a ba-lança comercial americana estava emdesvantagem em relação à Alemanhae Japão e que, até a metade da déca-da de 70, ocorreu um déficit na balan-

ça comercial tout court. Este último,para não ter que dar vida à ajustesdrásticos, deve ser financiado atravésde um avanço nos movimentos de ca-pital, o que é, por sua vez, também ne-cessário para poder realizar os investi-mentos e inovações muito além doque permite a poupança interna etambém, ultimamente, para poder co-locar em movimento e sustentar a neweconomy. Tal avanço pressupõe umaconfiança revigorada no dólar que nãopode deixar de ser política. Esta anco-ragem financeira e política acaba porser cada vez mais diretamente militar.

O petróleo, portanto, assim como aprópria incerteza mundial e as guerras- que elevam a demanda de reservas“por precaução” - é parte essencial domecanismo que faz do dólar a moedamundial e sustenta a hegemonia ame-ricana. O déficit comercial americano,que se agrava já há mais de trintaanos, é ‘sustentável’ apenas na medi-da que o país inclui, no próprio circui-to financeiro, os capitais de todo omundo: a globalização financeira, sa-be-se, foi, na verdade, uma grandiosacentralização dos capitais nos EUA. Is-to determina um estado da economiainternacional que se encontra, cadavez mais, constantemente sujeita auma poderosa espiral em direção à“estagnação”, e que contribui paramanter o mais atraente possível a cor-rida pelos títulos americanos nas bol-sas. Em resumo, a deflação dos preçosdas mercadorias permite que hajauma inflação dos preços dos títulos e,ao mesmo tempo, obriga o resto domundo a “querer” exportar aos EUA,sobretudo, mercadorias, mas também

capitais. Tudo isso exige que seja man-tido a qualquer custo o primado dodólar, que ele venha, portanto, a serexigido pelas outras áreas, em particu-lar, aquelas de países de industrializa-ção recente ou em vias de desenvolvi-mento (o que esclarece inclusive ointeresse dos EUA em impor, via FMI, aassim chamada ‘dolarização’, em umpaís após o outro).

Sob esta ótica, a nova guerra noIraque foi realizada não só para refor-çar o controle sobre a “bomba” do pe-tróleo e os seus “percursos”, mas tam-bém para consolidar o papel “financei-ro” do petróleo, na atual constituiçãodo sistema monetário internacional.Um papel arriscado. Entra aqui o quede fato está em jogo, um dos nós doconflito de interesses entre Europa eEUA: O Iraque havia, há algum tempo,começado a “converter os preços” dopetróleo em euros. Um movimento cu-ja imitação deveria ser abortada nonascimento, se os EUA quisessem ga-rantir a manutenção do seu papel im-perial minado pela insustentabilidadeda ‘nova economia’. Existe, evidente-mente, apenas uma razão para a opo-sição entre Europa e Estados Unidos.

5. Acrescentamos aqui o último fa-tor, a instabilidade geopolítica, peloque se conclui nesses últimos tempos.Por que, com efeito, o Iraque, e porque agora? Há muitas décadas, a Ará-bia Saudita juntamente com a Turquia,pela sua localização geográfica, são os

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A nova guerra no Iraque foi realizada não só para reforçar o

controle sobre a “bomba” do petróleo e os seus “percursos”,

mas também para consolidar o papel “financeiro” do petróleo,

na atual constituição do sistema monetário internacional.

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principais pilares da estratégia ameri-cana na área, principalmente após aqueda do Xá do Irã. Seja em seus as-pectos diretamente petrolíferos (a di-nastia saudita possui 25% das reservaspetrolíferas mundiais. Somada ao Ku-wait, atinge 45%), seja nos aspectosfinanceiros.

A Arábia Saudita, entretanto, tor-nou-se nestes últimos tempos um alia-do de pouca confiança (basta dizerque 15 dos 19 autores do 11 de se-tembro vêm dali). Além disso, encon-tra-se em meio a uma guerra de suces-são muito acirrada e longa. Um aliadocada vez mais dependente dos EUA,porém também cada vez mais em cri-se. Bastam alguns dados ulteriores (re-tirados da Wildkat-Zirkular nº 64, dis-ponível na web). Em 1981, possuía re-servas em dólares de 100 bilhões, po-rém, em 2000, o seu débito em dóla-res passou a ser de 150 bilhões, duasvezes o produto interno bruto. A situa-ção tem se degradado posteriormente,com déficits recorrentes na balança depagamentos e uma dívida pública ex-plodindo: isto significa, entre outrascoisas, que os sauditas têm necessida-de de vender petróleo, mas tambémque foram estrangulados pelo longoperíodo de estagnação alimentado pe-lo declínio dos preços, nos anos 90. Aprópria situação social tem se tornadocada vez mais problemática. Deve-seter presente que de uma população de5 milhões, no início dos anos 70, che-gou-se a mais de 20 milhões, dosquais 28% são estrangeiros. A taxa dedesocupação está estimada entre 15 e20%. A isto se segue, de modo cíclico,uma expulsão dos imigrantes e a sau-dização do maior número possível deempregos. Isto, porém, não resolve asituação interna, mas limita-se somen-te a exportar a contradição para os paí-ses vizinhos, onde o percentual de tra-balhadores imigrados é também ele-vado (oscila entre os 25% em Oman e

os 75% nos Emirados Árabes Unidos).Atinge alguns países mais distantes,como as Filipinas (10% da populaçãotrabalha no Golfo e as remessas de di-nheiro para o próprio país represen-tam 8% do PIB). A dependência dospaíses do Oriente Médio em relaçãoao petróleo é ainda de 60% das suasrendas nacionais. É sobre este paiol depólvora, a partir da estagnação darenda real de toda a área (há dez anosrestrita a pouco mais de 6.000 dólarespor habitante) e do problema palesti-no que age Bin Laden. A incerteza di-nástica, política e social na Arábia Sau-dita e em toda a área apresenta umproblema imediatamente militar aosEUA, além daqueles já recordados.Desde os tempos de Reagan e até ho-je, a região que vai do Oriente Médioaté o Oceano Índico foi imaginadacomo a base de uma presença militarque tem como função controlar o es-paço geográfico que vai das margensda Europa às margens do leste asiático.

Osama Bin Laden certamente nãoqueria colocar abaixo, a golpes de ka-mikazes, a new economy, e muito me-nos defender os oprimidos do mundoou os palestinos. Sabe-se que o verda-deiro objetivo de Osama Bin Laden eseus atentados no 11 de setembro erao seguinte: influir - como agora parececerto graças à colaboração ou condes-cendência, ou omissão de intervençãode parte significativa da administraçãopolítica e militar americana - sobreuma mudança na Arábia Saudita que,através de sua desestabilização, pu-desse atingir toda a região até o Afe-ganistão. De fato, nos últimos tempos,os EUA foram convidados por aquelespaíses a desmantelar a sua presençamilitar. Daqui retiram-se as exigênciasmais urgentes para os EUA: restabele-cer a ordem, preparar uma alternativaà possível defecção da Arábia Sauditaou garantir a si a possibilidade de con-duzir a sua dinâmica política, defender

o circuito financeiro vinculado ao pe-tróleo, na sua forma atual. E colocartropas em todo o arco que vai de Israelà Geórgia, do Iraque ao Cáucaso, até oAfeganistão, garantindo-se contra osperigos do amanhã.

Não se falou, entretanto, que, para-doxalmente, Bush Jr. se revele o me-lhor aliado de Osama Bin Laden, tendoem vista que o caráter aventureiro desua estratégia é cada vez mais elevadoe seus cálculos poderiam revelar-seequivocados. Além disso, vencer, naguerra sem vencer na paz, poderiatambém significar custos econômicos,em uma “contabilidade” mais amplia-da. É impressionante a dureza de umcomentário feito por Bruce Nussbaum,logo após a agressão dos EUA aoIraque, contra aquela que é chamada“doutrina Bush”, publicado no editorialda Business Week (The High Price ofBad Diplomacy, 24 de março). Ali nãose contestou a guerra contra Saddan,mas o isolamento diplomático, a pre-sunção e o desprezo unilateralista, jul-gados inimigos da globalização e pro-dutores daquela incerteza que é aná-tema para o investimento e desenvol-vimento. “Um mundo dividido entremultilateralismo econômico e políticasde segurança unilaterais é um mundomais incerto e arriscado que podetudo, menos encorajar o crescimentoeconômico e a prosperidade”. Em re-sumo, Bush teria perdido o ante-guer-ra. Se vencerá o pós-guerra é o que ve-remos. Ainda que não existam outraspotências em grau de afrontá-lo, com otempo, as contradições da própria eco-nomia e da política e a difusão do pro-testo social poderiam derrotá-lo.

Notas1. Tradução de Maria Cristina Cardoso Pereirae revisão de Edmundo Fernandes Dias.2. Critica Marxista, 2994, nº 2, março-abril de2003, p. 33-58. Publicado com a autorizaçãodo autor.

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IntroduçãoApós a demolição do regime doSaddam Hussein, pelas forças armadas norte-americanas, vem àtona a indagação sobre os próximosplanos dos EUA para o Oriente Médio,incluindo duas questões básicas: opetróleo dos árabes e o conflito israelense-palestino.

Depois que o mundo viu claramen-te as imagens da invasão do Iraque, aqual saliento, criminosa e insana, dadestruição do berço da humanidade edo assalto aos museus e acervos histó-ricos iraquianos pelos invasores, cabe-ria neste artigo uma análise mais aca-dêmica e mais profunda para que oleitor possa se preparar para a seguin-te indagação: Quem será a próxima,ou melhor, quais serão as próximasvítimas da doutrina Bush?

O que é que está atrás das másca-ras? E quais são os verdadeiros moti-vos dos conflitos no Oriente Médio?

Há um país, cuja população nãoultrapassa 4,5% da humanidade, queconsome 33% de todo o petróleo doPlaneta, mais de 40 % de todos os re-cursos minerais e, ainda, mais de 60%do gás natural disponível para toda a

humanidade. Paradoxalmente, todaAmérica Latina consome apenas 5%dos recursos energéticos do Planeta ea África e o Oriente Médio, 3% cada. Éestratégico para tal país tentar venderuma imagem de um estado democrá-tico, ético, e ainda governado por pes-soas justas, e não por raposas vestidasde cordeiros. De fato, os EUA, durantedécadas, conseguiram vender tal ima-gem, fazendo do "american way oflife" um sonho para qualquer jovemdo nosso mundo chamado, por eles,periférico.

Há um outro fato que merece serincluído neste contexto. É a saúde daatual economia norte-americana, quepassa por uma visível crise, pois asreservas domésticas de petróleo estãose esgotando, além de ter o maior défi-cit comercial do mundo, estimado emUS$ 450 bilhões. Em 2002, o déficitda balança de pagamentos daquelepaís chegou a 4,3% do seu PIB e a pre-visão para este ano é de um rombo de4,6%. Como se isso não bastasse, de-sapareceu, no atual governo, o superá-vit fiscal da era Clinton (de US$ 100

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A situação do Oriente Médio após Saddam

Mohamed Habib*

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bilhões por ano), devido à redução deimpostos, junto com o crescimento ver-tiginoso dos gastos militares.

Deste modo, podemos entender oporquê das várias bases militares e dasempresas petrolíferas norte-america-nas espalhadas no Golfo arábico e nospaíses do Mar Cáspio, as duas regiõesque têm as maiores reservas de petró-leo e de gás natural.

AfeganistãoO atual modo de governar nos EUA

nos parece mais ser um projeto familiardo que governamental, pois além dafamília Bush que adquiriu as suas fortu-nas através de negócios com petróleo,a equipe da atual administração é com-posta por vários ex-funcionários de altoescalão das grandes empresas petrolí-feras norte-americanas. O próprio Vice-Presidente, Dick Cheney, trabalhava nogigante complexo empresarial depetróleo "Haliburton" e recebeu, comoprêmio, uma pequena quantia de U$34 milhões, antes de ir ao governo deBush. Recentemente, foi revelado queele continua recebendo um milhão dedólares ao ano pela mesma compa-nhia (Guardian, 12/3/2003). A asses-sora de Segurança Nacional, Condole-ezza Rice, de maneira semelhante, tra-balhava na Chevron, antes de assumiro cargo no governo Bush.

É do conhecimento de todos queas repúblicas ex-soviéticas, Azerbaijão,Kazaquistão, Uzbequistão e Turkme-nistão, são as maiores produtoras degás e de petróleo na Ásia Central. Afe-ganistão se encontra bem no meio docaminho para os mercados lucrativosda Índia, China e o Japão. Havia proje-tos para a construção de um duto degás natural de 1.500 Km, desde Turk-menistão a Paquistão via Afeganistão,mas a incompatibilidade entre os tali-bãs e o governo dos EUA atrasou oprojeto. Atualmente, isto já está resol-vido após a invasão do Afeganistão,

em outubro de 2001, e a instalação deum governo aliado, apoiado pelas for-ças armadas norte-americanas. Asempresas Chevron, Unocal, Enron,Amoco, British Petroleum, entre ou-tras, estão envolvidas em grandes pro-jetos para extrair as reservas dessasnovas repúblicas independentes, pró-ximas ao Mar Cáspio.

Empresas israelenses, como o gru-po Merhav, têm grandes interesses co-merciais com alguns desses países. Es-te grupo israelense representa o gover-no do Turkmenistão e negocia todosos seus projetos de energia, envolven-do contratos de bilhões de dólares. Omesmo grupo Merhav está tambémenvolvido em um projeto de U$ 100milhões para reduzir o fluxo d'água aoIraque, desviando águas dos rios Tigree Eufrates, ao sudeste da Turquia.

Enron, uma das maiores contribu-intes para a campanha eleitoral de Bu-sh, no 2000 (Washington Post, 18/01-/2002), realizou os estudos para aconstrução de óleo e gasodutos nospaíses do Mar Cáspio, para viabilizar atransferência desses recursos energéti-cos para o Ocidente.

Com o pretexto de combater o ter-rorismo e democratizar o povo afegão,os EUA, oito meses após a invasãomilitar e a destruição do pouco quehavia sobrado no país, designaram umafegão naturalizado norte-americano,como presidente "fantoche" daquelepaís: o Sr. Hamid Karzai. Este trabalha-va para Unocal (empresa norte-ameri-cana de petróleo e gás natural). OsEUA disponibilizaram cerca de 20 milsoldados americanos, em Cabul e nabase militar de Bagram, para manter eproteger esse governo que não possuibases políticas no país e exerce seupoder apenas nos arredores da capital.

Esses foram alguns indicadores dosmotivos que levaram os EUA a invadi-rem o Afeganistão, com o pretexto decaçar um tal de Osama Bin Laden,

produto norte-americano reutilizadono capítulo dos atentados de 11 de se-tembro de 2001. Atentados esses, queaté este momento, o Pentágono, comas suas versões, não conseguiu con-vencer o mundo sobre os seus verda-deiros autores. O Bin Laden continuasendo usado até os dias de hoje, poisfoi responsabilizado recentementepelos atentados de maio deste ano, naArábia Saudita.

A questão iraquianaSobre a questão iraquiana, é im-

portante levar em consideração o con-texto regional que envolve outros paí-ses como Irã, Kuwait, Síria, Líbano, Jor-dânia e Arábia Saudita. A década de 80caracterizava grandes investimentosda CIA no conflito entre Iraque e Irã,levando a uma guerra que durou 9anos, na qual o Iraque, além do apoio,comprava as suas armas lícitas e ilícitasdos EUA. O Irã, por outro lado, com-prava armas através de empresas is-raelenses. Além da morte de centenasde milhares de jovens e da deteriora-ção da qualidade de vida dos doislados, as riquezas dos dois paísesforam transferidas aos fabricantes dearmas, principalmente dos EUA.

Em 1990, e apesar do empobreci-mento do Iraque devido à guerra comIrã, foi orquestrado pelos estrategistasnorte-americanos o teatro da invasãodo Kuwait, pelo exército de SaddamHussein. Teatro este que desencadeoua 1ª Guerra do Golfo, coordenada porBush (pai), em 1991. Em seguida, cri-ou-se um plano, com 12 anos de dura-ção, de morte lenta para o Iraque. Otirano Saddam, criado e treinado pelaCIA, ingenuamente executou o planonorte-americano, massacrando o seupróprio povo, levando o seu país aocaos sócio-econômico e ambiental, eainda colaborou para sustentar e fazeracontecer a invasão de março de 2003.

Na 1ª Guerra do Golfo, em 1991

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(Tempestade no Deserto), estima-seque 90 a 120 mil civis foram mortosnos ataques. E além de mais de 150mil vítimas fatais militares, 6 mil solda-dos iraquianos em retirada foram en-terrados vivos nas trincheiras, pelostanques dos EUA equipados com lâmi-nas de terraplanagem. Dados publica-dos em 1997, por escritores norte-americanos independentes, atestamque 320 toneladas de urânio empo-brecido foram utilizados na muniçãocontra o Iraque, em 1991. Em funçãodas sanções econômicas decretadaspela ONU, cedendo a pressões dosEUA, os iraquianos passaram por pro-cessos de degradação na qualidade devida nunca vista antes. Cerca de 1,5milhão de civis morreram, no períodoentre 1991 e 1999 (50% crianças),700% foi o aumento dos casos de cân-cer, no Iraque, entre 1991 e 1994, e amortalidade infantil, que em 1989, era3,8%, alcançou, em 1999, o nível de13,1%. Entre as causas, destaca-se oefeito pós-guerra das munições deurânio empobrecido (radioativo). Taismunições são armas químicas fataisquando lançadas (pó de urânio) e can-cerígenas a médio e a longo prazo.

A invasão de março de 2003 (Li-berdade do Iraque) foi muito mais des-trutiva do que a tempestade de 91. Noentanto, os militares invasores, nestavez, foram bastante protegidos do urâ-nio radioativo, através de equipamen-tos e roupas especiais; medida tomadapara não repetir a contaminação queatingiu mais de 90 mil militares ameri-canos, na guerra de 91 (Síndrome doGolfo). A desculpa foi de "proteger ossoldados americanos das armas quími-cas de Saddam Hussein". Até hoje,nem os inspetores da ONU, muitomenos os militares da atual ocupação,encontraram armas de destruição emmassa, no Iraque. É fortemente esclare-cedora a entrevista publicada na Re-vista Época (21/04/2003), conduzida

por Alexandre Mansur, com o ex-chefede inspetores da ONU, Scott Ritter, so-bre esta farsa norte-americana. Possodizer hoje, e com toda tranqüilidade,que não seria estranho se um dia apa-recer um manifesto confessando errosnos relatórios da CIA que motivaram ainvasão do Iraque. Com toda razão, oeconomista Eduardo Werneck indaga:"Ninguém pode ter Armas deDestruição em Massa? Ou apenas sópodem aqueles países que forem auto-rizados pelos Estados Unidos? Quevalores democráticos são esses ondeum país (com menos de 5% da popu-lação humana) decide o que é bom eo que não é em nome de todos osdemais 95% da população mundial?"

A indagação é bastante oportuna,principalmente quando se trata do

único país que lançou bombas atômi-cas contra outros povos, além de usaro agente laranja (arma química) noVietnã, destruindo a riquíssima diversi-dade biológica daquele país e elimi-nando centenas de milhares de civis.

O que me assusta é a falta de éticade um governo que falsifica documen-tos para uma injustificável invasão emassacre de um povo. As denúnciasdo Inspetor chefe da ONU, Hans Blix,de que eram falsas, tanto as provas deexistência de armas químicas e bioló-gicas, no Iraque, quanto o contrato en-tre o Iraque e a Nigéria para a importa-ção de 500 toneladas de urânio, foramsuficientes para tirar da raposa a pelede cordeiro.

Hoje, o povo iraquiano sofre deocupação por militares treinados emIsrael, para poder oprimir os movimen-tos populares de resistência, em ambi-entes e centros urbanos. Trocou-se umtirano por milhares de matadores pro-fissionais americanos e britânicos. Amídia no Ocidente traz poucas infor-mações sobre o atual cotidiano ira-quiano, tanto quanto o do Afeganistãoe o drama das vítimas civis nas mãosdas forças de ocupação. O povo ira-quiano viu claramente o quanto foi en-ganado por programas de rádio norte-americanos (antes da invasão) dirigi-dos a ele, além de toneladas de pan-fletos, chovendo diariamente de avi-ões, em cima de aldeias e cidades,prometendo a eliminação do tiranoSaddam. Hoje, estão vendo o quanto opaís foi devastado. Ministérios, institui-ções, universidades, museus e biblio-tecas foram totalmente destruídos e oacervo foi saqueado e levado para paí-ses próximos e outros distantes. Vale-ria a pena ler a entrevista com o Pro-fessor Marcelo Rede, da UniversidadeFluminense, publicada pelo Jornal daUSP (nº XVIII, 5 a 11 de maio desteano) na qual verificam-se claramenteas dimensões do saque do patrimôniohistórico depositado nessas institui-ções iraquianas. O Iraque é um dos li-vros mais antigos, no qual a história dahumanidade foi escrita. Este livro foidesfigurado. O povo é massacrado, hu-milhado, detido em prisões e mantidosob toques de recolher, através de umgovernante civil norte- americano eequipes do mesmo país, controlandoos ministérios mais estratégicos. Al-guns fantoches iraquianos, como o se-nhor Chalabi, estão prestando o servi-ço de faixada. Nessas últimas sema-nas, começaram a aparecer as diver-gências tribais e ideológicas internasdo Iraque, antes oprimidas pelo regi-me de Saddam, envolvendo xiitas, su-nitas, curdos e outros.

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O Iraque é um dos livros mais

antigos, no qual a história da

humanidade foi escrita. Este

livro foi desfigurado. O povo

é massacrado, humilhado,

detido em prisões e mantido

sob toques de recolher.

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Nas últimas semanas, outras verda-des começaram a aparecer, quando amídia internacional trouxe à tona oscontratos de reconstrução do Iraque eda exploração de seu petróleo porempresas norte-americanas. A másca-ra já caiu. Amanhã, ficaremos sabendode acordos "bilaterais" de "indeniza-ção" aos EUA, assinados por um gover-no de "fantoches" que está sendo for-mado, para garantir o fornecimentogratuito do petróleo iraquiano aos EUAdurante 10, 15 ou até 20 anos.

Percebe-se claramente que o man-dato de Bush (filho) é caracterizadopelo comportamento imperialista,imoral e anti-ético, invadindo países emassacrando povos, sob o pretexto decombater o terrorismo. É uma loucurasem limites, que levou os EUA a come-ter crimes contra a humanidade, inclu-sive contra a própria sociedade civilnorte-americana. O governo Bush está,simplesmente, cultivando ódio no co-ração das vítimas das atrocidades porele cometidas e adubando planos devingança por pessoas, cujas vidas,após tanta humilhação e sofrimento, jánão lhes valem mais nada. E disto éque surge o perigo, pois tornam-se ca-pazes de cometer atentados genocidasde grandes dimensões, sem a mínimapreocupação, inclusive contra civis,dentro e fora dos EUA. Por outro lado,a história das últimas seis décadasmostra, claramente, esta cultura norte-americana de violência e agressãocontra vários povos. Vejamos:

Além das duas bombas atômicascontra cidades e povoados no Japão,os EUA bombardearam: China (1945-1946), Coréia e China (1950-1953),Guatemala (1954 e 1960), Indonésia(1958), Cuba (1959-1961), Laos (1961-1973), Congo (1964), Peru (1965),Vietnã (1961-1973), Guatemala (1967-1973), Camboja (1969-1970), Granada(1983), Líbano (1983-1984), Líbia(1986), El Salvador (1980), Nicarágua

(1980), Irã (1987), Panamá (1989),Iraque (1990-2003), Somália (1993),Bósnia (1994-1995), Sudão (1998),Iugoslávia (1999) e Afeganistão (2001).

Como se tudo isso não bastasse, oJornal britânico "Guardian", de 19/02-/2003, publica um artigo de JulianBorger, revelando um plano secreto dogoverno dos EUA, para a construção deuma nova geração de armas nucleares,desrespeitando os acordos internacio-nais que visam à redução desse tipode armas mortíferas. Neste mesmo ar-tigo, aparece uma lista de países comoRússia, China, Coréia do Norte, Iraque,Irã, Síria e Líbia como possíveis alvospara tais armas.

A invasão do Iraque e a instalaçãode bases militares norte-americanas,no seu território, tende a mudar a rela-ção de forças entre o Oriente Médio eos EUA. Tornando-se mais presente nomeio dos países árabes, os EUA terãocondições de interferir diretamente napolítica regional, aumentando, inclusi-ve, a instabilidade dos diferentes regi-mes árabes, chamados "politicamenteincorretos" e militarmente incapazesde se defender. Neste sentido, Washin-gton considera a Síria um alvo fácil quepode ser o próximo, para aumentar naregião os estados pró-americanos, co-mo Israel, Jordânia e Turquia. No en-tanto, além da postura dos países eu-ropeus totalmente contrária a isso, osmovimentos de resistência dos povos

árabes à presença militar dos EUA ten-dem a aumentar cada vez mais, mes-mo nos países aliados.

No caso concreto do Iraque, o mo-vimento popular de resistência esta-ria defendendo a sua própria pátria,situação parecida com o povo pales-tino. No entanto, os militares norte-americanos não estariam num situa-ção equivalente aos militares israe-lenses, pois estes também lutam pa-ra ter o seu próprio lar.

Ao nível internacional, já está emmarcha o repúdio da sociedade civil,criando antipatia e boicotes de consu-midores a produtos dos EUA, que, amédio e a longo prazo, podem ter im-pactos negativos na economia norte-americana. O mundo que já está can-sado de crises econômicas e de de-semprego, deseja o fim dos conflitos ea busca do crescimento econômico.

O conflito israelense-palestinoDesde antes da criação do estado

de Israel dentro da Palestina, em maiode 1948, o mundo já esperava umarelação de extrema instabilidade entreos dois povos, o nativo e o exótico. Es-perava-se isso, pois não havia, duranteos 26 anos de ocupação britânica queantecederam a criação do estado deIsrael, nenhuma preparação ou mesmoregulamentação do plano de partilhada ONU (Resolução 181, novembro de1947), no qual 53% da Palestina se-riam para Israel e 47%, para os palesti-nos). Nem sequer pensou-se em me-canismos de desapropriação e com-pensação das terras a serem destina-das aos israelenses, muito menos deacompanhamento da ONU duranteuma fase de transição até a concretiza-ção da partilha. A Resolução da ONUfoi colocada em prática pela comunida-de judáica sem a autorização da pró-pria Organização das Nações Unidas. E,o pior, após apenas um dia da declara-ção da criação do estado israelense pe-

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los líderes da comunidade judaica, a In-glaterra tirou as suas tropas de ocupa-ção da Palestina, deixando o conflitoinstalar-se entre árabes e israelenses.

Sem dúvida, os países centrais,principalmente a Inglaterra, têm totalresponsabilidade de todo o conflitoque se estende até os dias de hoje. Es-te comportamento nunca foi novidade.Nas vésperas da 1ª Guerra Mundial, porexemplo, a Inglaterra estabeleceu umacordo com os líderes dos países ára-bes, então sob o domínio do impérioturco, prometendo a eles independên-cia em troca de apoio contra Turquia eAlemanha. Os árabes apoiaram e aInglaterra e os aliados ganharam aguerra. Porém, não obtiveram as suasprometidas independências, e os ára-bes foram vítimas de acordos bilateraissigilosos, entre Inglaterra e França. Comtoda traição e falta de ética, esses doispaíses europeus dividiram entre eles omundo árabe e ocuparam-no militar-mente. A Palestina acabou ficando sobo domínio britânico.

De um lado, havia o interesse pelopetróleo. De outro, havia ainda o apoioassumido, sigilosamente, pelos britâni-cos às comunidades judáicas europé-ias. Apoio esse que se iniciou com apublicação do famoso livro "Der Juden-staat", "O Estado Judeu", do líder sio-nista austríaco, Theodor Herzl, em1896, e com os encontros deste compersonalidades políticas e governa-mentais européias. A fase estratégicado plano deu, como fruto, a Declaraçãode Arthur James Balfour (ministro doexterior britânico), junto ao Parlamentobritânico, em 1917, apoiando a criaçãode um estado judeu, na Palestina.

Sem levar em consideração a si-tuação da região nas décadas que an-tecederam a criação do estado de Is-rael, em 1948, a imagem ficaria total-mente distorcida e o julgamento setornaria injusto para árabes em geral,e palestinos em particular. Mesmo o

Egito, apesar de seu destaque no Ori-ente Médio, foi ocupado militarmentepelos ingleses, por mais de 7 déca-das, e foi libertado apenas em 1954.Os egípcios vêm sofrendo até hoje,como parte do mundo periférico, to-da a opressão econômica, política, esocial planejada pelo então impériobritânico e, em seguida, pelo atualimpério norte-americano.

Desde 1948 até os dias de hoje, omundo assiste a uma novela de mani-pulações da opinião pública e de falsi-ficação da história. São dois impériosconsecutivos narrando inverdades, eainda culpam os árabes por todo o so-frimento que os próprios palestinospassaram e passam nestes 55 anos.

A história revela que a Resoluçãoda ONU, de 1947, oferecia aos palesti-nos 47% dos 100% que sempre eramdeles. Em 1967, os palestinos perde-ram 78%, ficando com apenas 22%dos 100% que sempre foram deles. Oacordo de Oslo, em 1993, escondia oplano de criar um estado palestinoformado por 5 cantões, cortados porassentamentos e vias, que seriam ter-ritórios israelenses. Obviamente, ospalestinos não poderiam deslocar-seentre tais cantões (queijo suíço). Tra-ta-se, na realidade, de um projeto desegregação proposital do povo pales-tino, em áreas que, quando somadas,dariam uma porcentagem total deapenas 17%, dos 100% que sempreforam deles.

Como isso não bastasse, os últimosdois anos revelam o plano Sharon,

apoiado pelo sionismo cristão da ex-trema direita dos EUA. Tal plano visadeixar para os palestinos 0% dos 100%que sempre foram deles, baseando-sena profecia de "Apocalipse" e da voltade Jesus Cristo à terra. Haveria apenasum pequeno obstáculo, de acordocom a profecia. O povo judeu precisaconquistar toda a região e expulsar to-dos os seus habitantes não judeus, in-cluindo os palestinos. Por isso, essaconcepção defendida arduamente pe-lo Reverendo Jerry Falwell, que contacom o apoio de vários parlamentaresdos EUA, favorece muito o projetoSharon. E, deste modo, explica-se aestratégia dos massacres de civis pa-lestinos e pacifistas internacionais, dedemolição de casas diariamente, dedesconfiguração geográfica e de mudaros nomes árabes de todos os locais,ruas e aldeias para o hebraico.

O Rev. Jerry Falwell acredita forte-mente que a invasão do Iraque era es-sencial para colocar em marcha a se-qüência cataclísmica, que levará ao fimdo mundo e resultará no segundo re-torno de Jesus Cristo. Ele acredita, ain-da, que isso levará também à destrui-ção de Israel durante o apocalipse, eque os judeus, muçulmanos, católicos,budistas e todos os demais ou se con-verterão ao cristianismo evangélico oumorrerão.

O presidente George Bush defendeas mesmas idéias de Falwell, pois, co-mo descreve o professor MorganStrong, da Universidade de Nova York,o governo dos EUA não faz nenhumesforço para proteger os palestinos doextermínio praticado pelo exército deIsrael, nem muito menos o seu líderYasser Arafat. E, em abril de 2002,quando Bush pediu a retirada dos tan-ques israelenses dos territórios ocupa-dos, o Rev. Falwell, além de mandarum protesto, ordenou seus seguidoresa mandarem 100.000 mensagens ele-trônicas a Bush, que cedeu às pres-

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 169UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

O governo dos EUA não faz

nenhum esforço para proteger

os palestinos do extermínio

praticado pelo exército de

Israel, nem muito menos

o seu líder Yasser Arafat.

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sões. A partir daquela data, Sharonsente-se livre para continuar nos mas-sacres dos palestinos.

Com a invasão do Iraque, o minis-tro de Infraestrutura de Israel, JosephPartitzky já está em negociação com osnorte-americanos, para estender umoleoduto de Mosul (Iraque) para Isra-el, via Jordânia, para abastecer o seupaís com o petróleo iraquiano.

Para tentar enrolar, mais uma vez,os palestinos e a opinião púbica mun-dial, e objetivando a viabilização dacampanha preparatória para a invasãodo Iraque, os EUA apresentaram, nomês de outubro de 2002, mais umafalsa proposta de paz "The Road Map",o Mapa do Caminho. Tal proposta con-ta com o apoio da Comunidade Eu-ropéia, Rússia e a ONU. Parece-me umplano de enrolação e de empurrarcom a barriga a questão palestina,com a esperança de que, talvez, oexército israelense possa concretizar apreparação do terreno para a volta deJesus Cristo, exterminando de vez opovo palestino.

Tal plano é um grande espetáculoteatral, instalado para que Bush eSharon exibam o seu "show" num pal-co construído em cima de sangue esofrimento de dois povos, palestino eisraelense. O verdadeiro plano da du-pla Sharon- Bush que, na realidade, jáestá em curso, é a construção de ummuro de 1.000 km, por 8 metros de al-tura, dentro dos territórios ocupadospor palestinos da Cijordânia , tentandoanexar com isso mais de 40% dos22% daqueles 100% que eram dospalestinos. E, ainda, o restante seria di-vidido em ilhas cercadas por estas áre-as a serem anexadas e consideradasisraelenses. É um dos piores crimes co-metidos contra um povo indefeso, eainda conta com a cumplicidade dosEUA e com a omissão do mundo. O in-crível é a denúncia feita pela socieda-de civil israelense e pelos pacifistas in-

ternacionais, já que ninguém mais ou-ve a voz dos palestinos.

O plano "Mapa do Caminho", nateoria, é ótimo, pois visa criar condi-ções para, a partir de 2005, termosdois estados vizinhos vivendo em paz,onde os israelenses deixariam os terri-tórios ocupados, a partir de 1967, e oestado palestino seria estabelecidonas duas regiões de Cijordânia e daFaixa de Gaza. É o que determinam asresoluções 242, 338 e 1397, do Conse-lho de Segurança da ONU. Porém, esteplano é visto com muita desconfiançapor vários analistas, pois existem doisprojetos Sharon que já estão em curso.O primeiro visa, claramente, a elimina-ção ou, no mínimo, a expulsão dospalestinos de todos os territórios ocu-pados por Israel. O Jornal "Telegraph",de 28 de abril de 2002, publica umartigo do historiador israelense, Martinvan Creveld, explicitando a importân-cia da invasão do Iraque como oportu-nidade para a realização de uma ope-ração de limpeza étnica e para a expul-são de todos os palestinos. É o famo-so plano "Transfer". Esse tipo de men-talidade, sem dúvida, não correspondea um espírito compatível com propos-tas de paz. O segundo plano é a cons-trução do muro "Apartheid Wall", de1.000km de comprimento, no meiodos territórios ocupados da Cisjordâ-nia, anexando ainda enormes áreaspalestinas, aldeias e áreas cultivadas,desrespeitando todas as leis interna-cionis. Manifestações de escritores is-raelenses, como Ran HaCohen, publi-

cadas este mês, denunciando estes cri-mes, dispensam qualquer comentário.Giedon Levi, descreve, no seu artigopublicado no Jornal Ha'aretz, 2.5.2003,e com detalhes, as centenas de famí-lias palestinas que perderam as suasplantações e campos que ficaram dolado israelense do muro.

O Muro de Berlim, o mais faladonas últimas décadas que simbolizavaódio e conflitos, tinha apenas 155 kmde comprimento, com 3,6 m de altura.O muro que está sendo construído porIsrael, além de roubar mais terras dospalestinos, é de 1.000 km, por 8 m dealtura. O silêncio do mundo peranteeste crime revela claramente a hipocri-sia do plano "Road Map" apresentadopelo quarteto que manda e desmandano Planeta.

O que está acontecendo no mundohoje me leva a acreditar que a Décadada Cultura da Paz (2000 a 2010), de-cretada pelas Nações Unidas, será umadas décadas mais tristes na história dahumanidade, onde prevalecerão aimoralidade, a arrogância e a falta deética nas políticas do governo norte-americano para com os demais paísesdo Planeta.

Post-scriptum aos editoresMinutos antes de enviar o artigo ao Profes-

sor Jair, da Comissão Editorial da Revista daAndes, hoje dia primeiro de junho, recebo naminha casa, como assinante, a revista "ISTOÉ" - número 1757 - a ser publicado no dia 04de junho. O que eram reflexões minhas, aca-bam de receber a confirmação por dois arti-gos publicados em tal número. As páginas 19e 75 revelam o reconhecimento de Wolfowitz,assessor de Rumsfeld, que Bush, Colin Powell,além dos próprios dois, "sabiam desde o co-meço que o Iraque não tinha mais armas dedestruição em massa, mas que o argumento,ou melhor a mentira, ajudaria a conseguirapoio para a invasão". Sem ou cem comun-tários!!!!

*Mohamed Habib é professor Titular e Di-retor do Instituto de Biologia da Unicamp.

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DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 171UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Durante os anos de 1990, o con-selho responsável por debater e nor-matizar a educação no país foi alvode inúmeras críticas e denúncias deseu caráter clientelista e também cor-rupto pela ligação de alguns de seusmembros com os setores privados doensino. Inicialmente, o ConselhoFederal de Educação (CFE) e, poste-riormente, o Conselho Nacional deEducação (CNE) ocuparam as man-chetes de jornais com tais acusações.

O CFE foi extinto em 1994 comouma tentativa de livrar a educação detantas denúncias e foi criado o CNEque deveria pautar-se pela ética etransparência nos debates e delibera-ções acerca da educação nacional. Ébem verdade que as denúncias reca-íam principalmente sobre os envolvi-dos com as decisões relativas à educa-ção superior. Entretanto, a extinção doCFE não foi suficiente para impedirque novas denúncias de clientelismo efavorecimento de determinados seg-mentos do ensino voltassem a ocorrerno novo conselho.

A partir deste debate acerca do ca-ráter do CNE e sua atuação em relaçãoao ensino superior brasileiro, o presen-te texto busca analisar a composição eatuação do Conselho Nacional deEducação (CNE), especificamente daCâmara de Educação Superior, no pro-cesso de definição e implementaçãodas políticas de ampliação e diversifi-cação das instituições e cursos de ensi-

no superior, por intermédio, prioritaria-mente, da iniciativa privada, nos doisgovernos do presidente FernandoHenrique Cardoso. Assim, este estudopretende revelar as relações de forçaexistentes no interior do CNE, que ex-pressam e fazem parte das relações deforça existentes no Estado, em sentidoampliado. Para alcançar este objetivo,a presente investigação analisa as prin-cipais reformas na organização e fun-ções do CNE e a trajetória dos seus

membros como uma possibilidade dese conhecer a que projetos de educa-ção e ensino superior se vinculam.

Neste trabalho, o Conselho Nacio-nal de Educação é entendido comoum "terreno em que se defrontam osprincipais grupos interessados em afir-mar sua autoridade de legislar em ma-téria de política educacional, umaarena de luta entre interesses favorá-veis e contrários" (Miceli, 2001) às po-líticas educacionais do governo de

O Conselho Nacional de Educação e a dança das cadeiras

Andréia Ferreira da Silva*

Uma análise de sua composição e atuação nos anos de1990

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FHC. Apesar da existência de divergên-cias, é possível afirmar a realização dealianças, provisórias ou não, que bus-caram fortalecer determinadas con-cepções no interior do Conselho.

No período em estudo, é possívelperceber basicamente a existência detrês grupos que disputaram a preva-lência de suas concepções no CNE1:a) os segmentos que compartilham/-defendem a ampliação da oferta doensino superior via, majoritariamente,a privatização, a partir da criação deum sistema de avaliação da qualida-de proposta pelo então governo; b)as facções que representam a bur-guesia de serviços educacionais e de-fendem a ampliação da participaçãodo segmento privado na oferta doensino superior e a limitação do con-

trole estatal nesta iniciativa empresa-rial; c) os setores que buscam a im-plementação de políticas que garan-tam um maior controle sobre as insti-tuições superiores de ensino e o for-talecimento das instituições de edu-cação superior públicas.

De acordo com Weber (2002), aquestão da "formulação de um concei-to de qualidade da formação em nívelsuperior e o estabelecimento de indi-cadores compatíveis com essa concep-ção foram grandes objetos de disputae de confronto" (p. 93) entre os mem-bros da Câmara de Educação Superior.Contudo, a existência de diferentes in-teresses, diferentes conceitos de edu-cação superior e sua qualidade fezcom que esta não se constituísse nu-ma busca desinteressada por padrõesnacionais de qualidade, mas, muitasvezes, na defesa de interesses econô-micos particulares.

CNE sua organização e composição: quem é quem?

No início do ano de 1995, antes dapromulgação da Lei nº 9.131/1995, orecém empossado Ministro da Edu-cação, Paulo Renato de Souza, afirma-va que, de acordo com o programa degoverno "Mãos à Obra" para a área daeducação, buscava-se "um Conselhomenos credenciador e mais avaliador,menos decisório e mais assessor e, fi-nalmente, mais representativo do con-junto da sociedade e não apenas dascorporações do segmento da educa-ção" (Folha de S. Paulo, 26/03/1995).É justamente esta concepção de CNEque estará presente na Lei nº 9.131/-1995 e norteará as mudanças imple-mentadas em sua estrutura, suas fun-ções e sua composição, nos anos de

1990 e início da década seguinte.Pela lei que regulamenta o CNE,

este consiste em um órgão consultivodo Poder Executivo na formulação eavaliação da política educacional. Parao cumprimento desta função, ele de-verá se reunir, ordinariamente, a cadadois meses e, extraordinariamente,sempre que convocado pelo Ministro.Já suas Câmaras se reunirão mensal-mente. Seu presidente será eleito porseus pares para um mandato de doisanos, vedada a recondução imediata.Sempre que o ministro comparecer àssessões, presidirá o Conselho. O artigo2º, da lei, informa que as deliberaçõese os pronunciamentos do ConselhoPleno e das Câmaras do CNE deverãoser homologados pelo Ministério daEducação.

A normatização do Conselho defi-ne seu caráter de assessoramento e oslimites de sua autonomia diante do

MEC, visto que todos os seus pronun-ciamentos e decisões deverão ter oaval do órgão executivo. Neste forma-to, o Conselho não tem comunicaçãodireta com a sociedade civil, mas temcomo mediador obrigatório o Ministé-rio da Educação. Deste modo, o Con-selho se adequa à concepção propos-ta pelo ex-Ministro Paulo Renato, com"um conselho menos decisório e maisassessor", o que acarreta seu esvazia-mento político. Na Lei de Diretrizes eBases da Educação de 1961 (Lei nº4.024)2, o MEC está subordinado àsdecisões do CFE, enquanto na lei nº9.131/1995, o CNE é órgão colabora-dor do Ministério.

A Lei nº 9.131/1995 define os crité-rios para escolha de conselheiros noque tange à localização espacial (todasas regiões) e da abrangência do siste-ma escolar (níveis e modalidades deensino). Determina que a escolha dosconselheiros deve recair sobre brasilei-ro de "reputação ilibada" e que tenhaprestado "serviços relevantes" à educa-ção, à ciência e à cultura. Os conselhei-ros terão mandato de quatro anos,permitida uma recondução para o pe-ríodo imediatamente subseqüente,havendo renovação de metade dasCâmaras a cada dois anos.

O Conselho está dividido em Câ-mara de Educação Básica (CEB) e Câ-mara de Educação Superior (CES). Osmembros são indicados para cadacâmara, segundo critérios próprios, ecada uma das câmaras tem atribuiçõesespecíficas. Elas emitem pareceres edecidem, privativa e autonomamente,os assuntos a elas pertinentes, caben-do, quando for o caso, recursos aoConselho Pleno.

O Conselho deve ser composto porvinte e quatro membros, todos no-meados pelo Presidente da República,sendo 50% diretamente e a outra me-tade, obrigatoriamente, nomeadosmediante consulta a entidades e seg-

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A escolha dos conselheiros deve recair sobre brasileiro

de "reputação ilibada" e que tenha prestado

"serviços relevantes"à educação, à ciência e à cultura.

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mentos da sociedade civil relaciona-dos às áreas de atuação das respecti-vas câmaras. Estas entidades indicam,para cada câmara, três nomes quesubsidiarão a escolha a ser feita peloPresidente da República. Ao se consta-tar que 50% dos membros do CNE, ouseja, seis conselheiros a cada doisanos, serão indicados pelo Presidente,a partir de uma extensa lista de no-mes, observa-se, um mecanismo quelimita a participação democrática dasociedade civil, nas questões educa-cionais. Desta forma, o Conselho ten-de a se converter em aparelho de Go-verno, e não em aparelho de Estado.

Na definição da composição da Câ-mara de Educação Superior do CNE,deverão ser consultadas "entidadesnacionais, públicas e particulares, quecongreguem os reitores de universida-des, os diretores de instituições isola-das, os docentes, os estudantes e ossegmentos representativos da comuni-dade científica" (Lei nº 9.131/1995,art. 8º, § 3º). Para garantir um caráter"mais representativo do conjunto dasociedade", foi proposto, pelo minis-tro, a inclusão não apenas dos seg-mentos estritamente da área da edu-cação. A Portaria nº 1.455/1995 defineas entidades de trabalhadores e em-presários que também deverão serconsultadas para a elaboração da listatríplice: Central Única dos Trabalhado-res (CUT), Confederação Geral dos Tra-balhadores (CGT), Força Sindical (FS),Confederação Nacional da Agricultura(CNA), Confederação Nacional do Co-mércio (CNC), Confederação Nacionalda Indústria (CNI). A Portaria nº2.160/1997 acrescenta a esta lista a

Confederação Nacional do Transpor-te (CNT) e a Portaria nº 12/2000 am-plia esta relação com a Social Demo-cracia Sindical (SDS).

As entidades do campo educacio-nal que deverão ser consultadas para aelaboração das listas tríplices para aCES, de acordo com a portaria mencio-nada, são: Academia Brasileira de Ci-ências (ABC), Academia Brasileira deEducação (ABE), Associação Brasileirade Reitores de Universidades Comuni-tárias (ABRUC), Associação Brasileirade Reitores de Universidades Estadu-ais e Municipais (ABRUEM), Associa-ção Nacional de Pós-Graduação e Pes-quisa em Educação (ANPED), Associa-ção Nacional de Universidades Parti-culares (ANUP), Associação Nacionaldos Dirigentes de Instituições Federaisde Ensino Superior (ANDIFES), Con-selho de Reitores das UniversidadesBrasileiras (CRUB), Conselho Nacionaldos Secretários de Educação (CON-SED), Sindicato Nacional dos Docentesdas Instituições de Ensino Superior(ANDES), Sociedade Brasileira para oProgresso da Ciência (SBPC) e UniãoNacional dos Estudantes (UNE). PelaPortaria nº 1.883/1999, foram incluí-das, nesta relação, a Associação Nacio-nal de Política e Administração Escolar(ANPAE) e a Associação Nacional deCentros Universitários (ANACEU). APortaria nº 31/2002 acrescenta a indi-cação da Associação de Faculdades eInstitutos Superiores (ANAFI).

De acordo com a portaria nº 12/-2000, 22 entidades poderiam sugerirnomes para 50% da composição daCES/CNE. Se, de fato, todas as entida-des participassem deste processo, in-

dicando três nomes, o número de indi-cados seria muito grande, situação queconferiria ao Presidente da Repúblicaum amplo universo de escolha. Alémdesta base extensa de escolha, peloPresidente da República, de represen-tantes da sociedade civil, o executivocentral tem suas posições reforçadasno Conselho pela participação, comoconselheiros natos, dos secretários daEducação Básica e Superior do MEC.

A diversidade das entidades queparticipam da indicação consiste emoutro elemento importante. O que pa-ra o ex-ministro Paulo Renato de Sou-za significaria a possibilidade de "rom-per os estreitos limites do campo edu-cacional", pode significar, a meu ver, apulverização das indicações com pou-ca representatividade, no âmbito dasociedade civil. Mais que isso, podefavorecer o alinhamento de entidadesde empresários (CNC, CNT, CNI, CNA),sindicatos com um espectro mais con-servador (CGT, FS e SNS) e também deassociações de empresários educacio-nais (ANUP, ABRUC, ANAFI, ANACEU).Isto pode ser observado na indicaçãofeita em 1998 (Portaria nº 3, de 7 de ja-neiro de 1998), de Carlos Alberto Serpade Oliveira3, por seis entidades: ABE,ABRUEM, ANUP, CGT, CNC, CRUB. Maiorconsenso houve em relação ao nomede Yugo Okida4, indicado por nove enti-dades: ABE, ANUP, CGT, CNA, CNC, CNI,CNT, CRUB e FS, de um total de 19 pre-vistas na Portaria nº 2.160/1997.

Carlos Alberto Serpa de Oliveira eYugo Okida já eram membros do CNE,com mandatos de dois anos que seencerravam naquele momento. E maisimportante ainda é destacar que am-bos os conselheiros foram reconduzi-dos, pelo Presidente da República, pa-ra a Câmara de Educação Superior.

O Decreto s/nº, de 10 de março de1998 também reconduziu, com man-dato de quatro anos, Silke Weber, pro-fessora da UFPE, que foi Secretária de

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 173UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Ao se constatar que 50% dos membros do CNE, ou seja, seis

conselheiros a cada dois anos, serão indicados pelo Presidente, a

partir de uma extensa lista de nomes, observa-se, um mecanismo

que limita a participação democrática da sociedade civil.

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Educação do Estado de Pernambuco(indicada em 1995, ao CNE, para aCES, pelo CONSED, Anped e SBPC epara a CEB, pelo CONSED). Foram no-meados, ainda, Arthur Roquete deMacedo, diretor da Fundação Cesgran-rio em São Paulo e ex-reitor da Unesp(indicado pela CGT e UNE) e RobertoCláudio Frota Bezerra, Reitor da Uni-versidade Federal do Ceará (indicadopela ANDIFES).

Duas entidades não participaraminicialmente do processo de indicaçãode nomes para o CNE: o ANDES-SN ea UNE. A UNE alterou sua posição epassou a participar deste processo. OANDES vem mantendo a postura denão enviar indicações para a composi-ção do CNE, por avaliar que este Con-selho possui apenas um caráter homo-logador das políticas do MEC.

Este processo de indicação de no-mes para o CNE foi marcado por inten-sa polêmica criada por interpretaçõesdiferenciadas da legislação que a regu-lamentava. Denúncias da falta detransparência, por parte do MEC, nadivulgação do número de indicaçõesrecebidas por cada nome, levaram oGoverno a adiar a nomeação dos con-selheiros. A partir de então, a CES/CNEficou com a seguinte composição Car-los Alberto Serpa de Oliveira, Yugo Oki-da, Silke Weber, Arthur Roquete deMacedo, Roberto Cláudio Frota Bezer-ra, Jacques Veloso, Éfrem Maranhão,Eunice Durham, Hésio Cordeiro, JoséCarlos Almeida, Lauro Zimmer e AbílioBaeta Neves - então Secretário da Edu-cação Superior do MEC.

A Folha de S. Paulo, ao analisar acomposição da CES/CNE, afirmou que"com esses nomes a câmara ficarácom uma maioria de integrantes liga-dos ao ensino público" (Bernardes,11/03/1998), apontando como partedesta maioria os seguintes conselhei-ros: Jacques Veloso5, Eunice Durham6,Silke Weber e Hésio Cordeiro7 e Éfrem

Maranhão8. Se, de fato, as trajetóriasprofissionais destes nomes estão liga-das ao ensino público, não significaque todos eles defendam propostaspara o ensino superior diferentes dasdo Ministério da Educação. Pelo con-trário, os currículos de alguns destesconselheiros comprovam, não só a suasimpatia, mas também sua participa-ção na implementação dos projetosdo MEC para a educação superior.

Constata-se, ao contrário da infor-mação da Folha de S. Paulo, que acomposição da Câmara da EducaçãoSuperior do Conselho, no início de1998, foi marcada pela redução daparticipação dos segmentos compro-

metidos com um projeto de ensinosuperior público e, inversamente, pelaampliação do setor defensor de umprojeto de privatização deste nível deensino. Dos doze conselheiros, oitocompartilham de um projeto privatistapara o ensino superior.

É preciso destacar, no entanto, queeste grupo não é homogêneo. Há dife-renças significativas entre seus mem-bros, no que se refere ao grau de con-trole a ser exercido pelo poder público,na fiscalização das instituições de ensi-no superior privadas. Devido a estadivergência, os representantes dosempresários do ensino entram emchoque com as políticas do governoFHC, quando estas reduzem benefíciosfinanceiros às entidades privadas,redefinem os subsídios às instituiçõescomunitárias e implementam progra-mas de avaliação, como o Provão e aavaliação das condições de oferta.

Mas, no que se refere à necessidadeda expansão da rede privada, estesdois grupos assumem a mesma postu-ra de combate aos "privilégios" da uni-versidade pública e da necessidade daexpansão da rede privada para reduziro enorme déficit de vagas existente noensino superior brasileiro (Silva, 2002).

A leitura da composição do CNE,realizada por instituições privadas deensino, também nega a afirmação daFolha de S. Paulo. É o caso da Uni-verCidade, ao defender que o "Conse-lho Nacional de Educação, cuja grandemaioria de membros não é estatizante,nem discriminadora e está trabalhan-do modernamente e com firmeza,recuperando o tempo perdido pelasadministrações anteriores" (UniverCi-dade. Jornal do Brasil, 25/02/2000).

O Decreto nº 3.295/1999 restringeainda mais a participação da socieda-de civil, na definição da composiçãodo CNE, ao eliminar a segunda rodadade consultas às entidades indicadorasde nomes. Desta forma, cabe ao MECdivulgar o nome das entidades queparticipam do processo, os prazos aserem obedecidos e elaborar a listacom as indicações da sociedade civilpara ser submetida ao Presidente.9

Em 2000, a composição do CNE foirenovada (Portaria nº 12/2000). Para aCES/CNE, o decreto presidencial re-conduziu os seguintes conselheiros:Éfrem Maranhão, Eunice Durham, JoséCarlos Almeida da Silva e Lauro RibasZimmer. Maranhão, Almeida da Silva eZimmer já eram membros do Con-selho, em sua primeira composição,em 1996, e Durham assumiu o CNE,na vaga criada com a saída de José Ar-thur Giannotti, em agosto de1997. Éimportante destacar que todos com-partilham do projeto de expansão doensino superior via iniciativa privada.Além destes, foram nomeados Francis-co César Sá Barreto10 e Vilma de Men-donça Figueiredo11. Os conselheiros

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que não tiveram seus mandatos reno-vados foram Jacques Velloso e HésioCordeiro, ambos vinculados ao ensinouniversitário público. Com esta novacomposição, o perfil da CES/CNE nãose alterou, permanecendo a maioriade seus membros defensores das dire-trizes de ampliação do ensino superiorcom a participação crescente da bur-guesia de serviços educacionais.

A mudança mais significativa nasfunções da Câmara de Educação Supe-rior do CNE ocorreu com o Decreto nº3.860, de julho de 2001.12 As altera-ções propostas centralizaram, no âm-bito do MEC, o processo de autoriza-ção, credenciamento e descredencia-mento de IES. Com estas mudanças,ocorreu uma significativa diminuiçãodas atribuições da CES do CNE, com aconseqüente centralização das deci-sões, no âmbito estrito dos órgãos ad-ministrativos do MEC. Pela nova legis-lação, cabe à CES definição das nor-mas a serem seguidas pelo Poder Exe-cutivo para o credenciamento, o recre-denciamento periódico e o descreden-ciamento de IES integrantes do Sis-tema Federal de Ensino. A sua funçãodeliberativa recai unicamente na defi-nição de credenciamento e recreden-ciamento de universidades e centrosuniversitários, bem como de seus res-pectivos estatutos e suas alterações.

Segundo o Decreto, "O credencia-mento das faculdades integradas, fa-culdades, institutos superiores e esco-las superiores dar-se-á mediante atodo Poder Executivo (Art. 24)." O CNEsomente se manifestará em caso deindeferimento de pedido de creden-ciamento destas instituições, se hou-ver apresentação de recurso por partedo interessado. Os únicos cursos degraduação que, independentementedo tipo de IES, dependerão da delibe-ração da CES/CNE para a sua criação,credenciamento, recredenciamentosão os de direito, medicina, odontolo-

gia e psicologia. Para o MEC, esta mudança permitiu

à CES se libertar do acúmulo de fun-ções para realizar, com primazia, suafunção normativa. Neste sentido, o ex-Ministro Paulo Renato afirmou que foidada ao Conselho uma função "maisnobre". Para ele, "O ministério vai agirde acordo com as regras do conselho eeste tratará dos casos mais importan-tes, como abertura de cursos na áreamédica e o credenciamento de univer-sidades e centros universitários" (Jornalda Ciência, SBPC, 03/08/2001).

Esta alteração implementada pelogoverno, sem discussão prévia, em umcontexto de inúmeras denúncias aocaráter cartorial do CNE, principalmen-te em relação ao ensino superior,desencadeou o pedido de exoneração,da Câmara de Educação Superior doCNE, de Eunice Durham. Ao deixar oConselho, Durham afirmou, em entre-vista à Folha de S. Paulo (23/07/-2001), que a modificação das funçõesda CES/CNE "concentra demasiadopoder na mão do ministério" e que aredução da autonomia do Conselhocontribui para diminuir a transparênciados processos de instituições privadas.Vale lembrar que, em agosto de 1997,o conselheiro José Arthur Giannottisaiu da CES/CNE, também questio-nando a transparência dos processosde credenciamento e recredenciamen-to de instituições e cursos superiores.

A centralização das competênciasda CES/CNE, no MEC, em relação àsinstituições não-universitárias, com-prova a urgência do então governo emimplementar suas políticas para a edu-cação superior, dispensando, publica-mente, os serviços do Conselho. Estaatitude pode significar que as discus-sões existentes no interior do Conse-

lho estariam retardando o avanço daspolíticas do MEC para este nível de en-sino. Desta forma, os empresários daeducação superior e seus representan-tes estariam, em certo sentido, obten-do sucesso ao impedir que as normaspara a avaliação dos cursos superiores,que incluem o seu fechamento, vales-sem na prática.

É necessário registrar que, mesmoapós estas mudanças, as denúnciassobre o favorecimento de instituiçõesprivadas não acabaram. Em fevereirode 2003, a imprensa divulgou a exis-tência, no MEC, de um esquema irre-gular de autorização para cursos deensino superior. A investigação detec-tou indícios de envolvimento de servi-dores da Secretaria de Educação Su-perior no favorecimento de institui-ções privadas. Em decorrência destasirregularidades será realizada audito-ria de todos os processos de autoriza-ção de novos cursos universitáriosaprovados no MEC, dos últimos qua-tro anos.

Reflexões finaisA partir da análise da legislação

que regulamenta o CNE, criado em1995, é possível afirmar que sua histó-ria, "em ampla medida, é a história doprogressivo desarmamento, por partedo Estado, desse órgão como instânciade negociação de assuntos pendentesna área educacional (Miceli, 2001, p.308)". Este "desarmamento", iniciadoatravés das primeiras regulamentaçõesdo CNE definidas por Medidas Provi-sórias (MPs), em 1995, buscou inicial-mente enfraquecer sua autonomiafrente ao poder executivo; depois pos-sibilitar uma crescente redução, no in-terior do Conselho, dos segmentos li-gados à defesa do padrão universitário

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 175UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

A redução da autonomia do Conselho contribui para diminuir

a transparência dos processos de instituições privadas.

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público e gratuito; fortalecer, concomi-tantemente, os grupos representantesdas instituições privadas; e, em um úl-timo momento, esvaziar o próprioConselho como espaço de delibera-ções referentes ao ensino superior,principalmente o setor privado não-universitário.

No momento de início de um novogoverno que se apresenta como com-prometido com a educação pública ecom a moralização do Estado, maisuma vez, se recoloca a necessidade demudanças profundas na educação ede sua efetiva democratização. Nestedebate, a defesa de um novo projetode escola para o país e de sua gestãodemocrática se torna indispensável. Aimplantação de alterações significati-vas no CNE também se apresenta co-mo inadiável, no sentido da reversãoda legislação educacional do governoFHC que já se mostrou ineficaz e in-compatível com os valores de uma so-ciedade democrática.

Especificamente em relação aoCNE, nada melhor do que trazer aodebate político-educacional as dire-trizes contidas na proposta de PNEda sociedade civil, no que se refere àgestão democrática devem ser resga-tadas. As metas em relação a estaquestão são: 1) a revogação de todaa legislação que impeça ou fira aorganização e funcionamento demo-crático da educação brasileira (Leinº. 9.192/95; Lei nº 9.131/95; Lei nº9.394/96; Emenda Constitucional nº14/96; Lei nº 9.424/96; Decreto nº2.208/97; entre outras); 2) a institui-ção do Fórum Nacional de Educaçãocomo instância deliberativa da políti-ca educacional brasileira; 3) a redefi-nição do Conselho Nacional deEducação como órgão normativo ede coordenação do Sistema Nacionalde Educação, bem como sua compo-sição e funções; 4) a redefinição dosConselhos Estaduais e Municipais de

Educação como órgãos normativos ecoordenadores das políticas educa-cionais, nos níveis estaduais e muni-cipais.

Notas1. É importante destacar que estes gruposbuscavam a hegemonia de suas concepçõesnão somente no âmbito do Estado em senti-do restrito, mas também na sociedade civil.2. No CFE previsto na Lei de Diretrizes e Basesda Educação de 1961 todos os seus 24 mem-bros eram indicados pelo Presidente da Repú-blica revelando uma maior centralização emsua definição. O mandato era de seis anos,sendo permitida somente uma recondução.3. Carlos Alberto Serpa de Oliveira é ex-reitorda Universidade Gama Filho, do Rio de Ja-neiro; trabalhou no MEC em coordenações,comissões e assessorias 1969/76; presidenteda Fundação Cesgranrio (desde 1971), entida-de que aplica o Provão e dá consultoria a uni-versidades privadas. Diretor da Academia Bra-sileira de Educação. (Dados extraídos da Re-vista Documenta - CNE de mar/1996 e Re-vista Veja, 23/05/2001)4. Yugo Okida foi vice-reitor da UniversidadePaulista (UNIP), membro da Associação Na-cional das Universidades Particulares (ANUP),diretor administrativo do Colégio Objetivo,participou da comissão para a transformaçãodas Faculdades Objetivo em UNIP. Foi mem-bro do CFE de junho de 1988 a julho de 1994.(Dados extraídos da Revista Documenta - CNEde mar/1996)5. Professor da Faculdade de Educação daUnB; vice-presidente da Anped no momentode sua indicação; indicado pela Anped6. Amiga pessoal de Paulo Renato e FHC.Professora titular da Faculdade de Filosofia,Letras e Ciências Humanas da USP. Foi secre-tária de política educacional do MEC até 1997,quando foi indicada para o CNE para ocupar avaga do filósofo José Arthur Giannotti. 7. Professor do Curso de Medicina da UERJ;Reitor da UERJ; Presidente da ABRUEM; Vice-presidente do CRUB; foi indicado pelaABRUEM.8 Indicado pelo CRUB; "Conselheiro do CNE.Irmão de Magno Maranhão, presidente daANACEU, que reúne instituições de ensino su-perior privadas. A entidade dirigida por MagnoMaranhão foi credenciada pelo MEC para indi-car conselheiros para o CNE. Entre os três no-mes apontados pela Anaceu está o de Éfrem."(Revista Veja, 23/05/2001-Edição nº 1701)

9. Destaca-se que o Presidente não precisaescolher os nomes mais votados.10. Foi indicado pela Associação Brasileira deCiências. Reitor da Universidade Federal deMinas Gerais (UFMG). Além de conselheiro daCapes, tem participação em diversas comis-sões de apoio a iniciativas do Ministério daCiência e Tecnologia e do MEC, por exemplo,na organização da Conferência Nacional deCiência e Tecnologia em 2002. Foi Secretárioda Educação Superior do MEC em 2002.11. É conselheira desde março de 2000, indi-cada pela Social Democracia Sindical, braçodo PSDB no movimento sindical. É professorae pesquisadora na área de sociologia naUniversidade de Brasília (UnB).12. A redefinição das funções da CES/CNE foiiniciada pela Lei nº 9.649/1998 e teve prosse-guimento com a implantação da MP nº 2.143-34/2001.

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do Conselho Nacional de Educação. mar/1996.MICELI, Sérgio. Os Intelectuais à Brasileira.

São Paulo: Companhia das Letras, 2001. SILVA, Andréia Ferreira. Conselho Nacional

de Educação: de aparelho de Estado a agên-cia de empresariamento do ensino superior.In: NEVES, Lúcia Maria Wanderley (org.). OEmpresariamento da Educação: novos contor-nos do ensino superior no Brasil dos anos1990. São Paulo: Xamã, 2002.

WEBER, Silke. Notas sobre o CNE e a quali-dade do ensino superior. Educação e Socie-dade, Campinas, n. 80, p.91-9, set. 2002.

Jornais e Revistas:BERNARDES, Betina. Com atraso o indica

conselheiros. Folha de S. Paulo, São Paulo,11/03/1998.

GOIS, Antônio. Antropóloga deixa vaga noConselho Nacional de Educação criticandoações de Paulo Renato. Folha de S. Paulo, SãoPaulo, 23 jul. 2001.

SOUZA, Paulo Renato. Um exame é necessá-rio. Folha de S. Paulo, São Paulo, 26/03/1995.

UniverCIDADE. Uma Tréplica em Defesa daUniverCidade. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro,25/02/00.

YASSUDA, Selmy. Jornada Múltipla. Conse-lheiros do MEC prestam assessoria a universi-dades que deveriam fiscalizar. Revista Veja,23/05/2001.

*Andréia Ferreira da Silva é professora daFaculdade de Educação da UniversidadeFederal de Goiás.

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DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 177UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Sob a ótica das relações sociais, al-gumas tendências têm se anunciado:a proletarização, com a conseqüenteexpropriação dos trabalhadores queainda mantêm formas precárias deacesso à terra1; e a diferenciação docampesinato procurando se adequar

aos novos padrões competitivos, pre-sentes na atividade agropecuária, aomesmo tempo em que se mantém apequena produção de subsistência,uma espécie de semi-assalariamentoem que são preservados laços frágeiscom os meios de produção.

A luta pelo acesso à terra, a qualbusca implementar padrões de igual-dade no campo e a organização dostrabalhadores rurais por meio do MST,constituem uma das expressões, hoje,da resistência dos trabalhadores rurais.Entender esse processo é, segundoTHOMAZ JÚNIOR (2001, p.08),

...entender a complexa trama

que envolve uma gama de trabalha-

dores e de movimentos sociais que

se dedicam à luta pelo acesso à

terra, à resistência na terra e pela

reforma agrária, e que evidencia

através da dinâmica territorial do

processo social em pauta, a peculia-

ridade de encontrarem-se atomiza-

Imprensa e "leitura" da luta pelaterra no Pontal do Paranapanema*

Sônia Maria Ribeiro de Souza**Antonio Thomaz Júnior***

1. IntroduçãoA luta pela terra, evidenciada, especialmente, em ações coletivas envolvendosegmentos diversos dos trabalhadores rurais, tem como substrato todo umconjunto de relações sociais e econômicas. As influências dessa luta revelam-senas formas de organização e também no próprio conteúdo das reivindicaçõese na natureza do projeto de reforma agrária defendido. Assim, é possívelconstatar que a questão agrária persiste, no Brasil, há longos anos, como problema social carente de soluções adequadas, ainda que a mesma tenhasido redefinida pelo processo de modernização da economia nacional, nas últimas três décadas.

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dos e fragmentados por diversas

entidades, lugares, regiões.

Assim, buscaremos discutir a ques-tão da luta pela terra que se manifestapor meio da especificidade da consti-tuição da linguagem, isto é, realizamosuma investigação sobre o papel que osmeios de comunicação assumem nes-se processo, mais precisamente o jor-nalismo impresso. Propomonos a ana-lisar as modalidades do dizer da im-prensa sobre o MST, tentando, na pers-pectiva da linguagem como determina-ção social, estabelecer as pistas ideoló-gicas que marcam o comparecimentodo Movimento no jornal, buscandoquestionar um dos princípios da im-prensa, que é a sua dita imparcialidade.

O fio condutor da nossa discussãoé de que a linguagem deve ser com-preendida, entre outras coisas, comoum lugar de interação social decisiva-mente modelado pelas relações detrabalho e conflito. Uma vez que so-mos criaturas produtivas, uma vez queo trabalho é fundamental para a ma-neira como nos formamos e somosformados, as relações e conflitos so-ciais centralizados no trabalho figura-rão decisivamente em nossa vida.

Marx & Engels (1999) na IdeologiaAlemã afirmaram que o primeiro atohistórico é a produção dos meios quepermitem a satisfação das necessida-des ligadas à sobrevivência humana.Isto é, o homem não satisfaz suas ne-cessidades primeiras de existênciasem realizar a produção dos meios ne-cessários a isso, o que se constitui emuma apropriação e uma objetivação;ao mesmo tempo esse "primeiro atohistórico" produz novas necessidades,que exigirão a produção de novos me-ios de satisfazê-las, ou seja, exigirãonova apropriação e nova objetivação,ad infinitum.

É importante ressaltar que a análi-se da relação entre objetivação e apro-priação, enquanto dinâmica própria da

atividade vital humana e geradora doprocesso histórico, não pode se resu-mir no processo de produção e utiliza-ção de instrumentos e objetos.

A atividade vital humana não serealiza sem a atividade de comunica-ção, na medida em que aquela ativida-de é, desde sua origem, uma atividadecoletiva. Esta sendo uma atividadeimediatamente coletiva exige, portan-to, a atividade comunicativa.

2. Construção dos Sentidos e oAparato Ideológico Dominante

Um dos pontos de partida de nos-so trabalho é a análise da relação entreobjetivação e apropriação enquantoexpressão da dinâmica essencial daautoprodução do homem pela sua ati-vidade social. Marx & Engels (1999) ca-racterizaram, na Ideologia Alemã, co-mo sendo o traço fundamental que di-ferencia os homens dos animais, aprodução dos meios da existênciahumana. Esse processo de objetivaçãoe apropriação tem um caráter contra-ditoriamente humanizador e tambémalienador, na medida em que as rela-ções sociais concretas têm sido rela-ções de dominação de classes sobreoutras classes e grupos.

A partir da compreensão dessasrelações entre linguagem e sociedade,enquanto efeito das estruturas sociais,nos apoiamos em Bakhtin, o qual pro-põe questões a partir do pressupostode que se a linguagem determina aconsciência, em que medida isso sedá? Ou ainda, de qual maneira, ou apartir de quê a linguagem determina aideologia?

O autor aponta a natureza real dos

fatos da língua. Esta é concebida porele como um fato social que se funda-menta nas necessidades de comunica-ção. Para BAKHTIN (1996, p. 14):

... a palavra é a arena onde seconfrontam os valores sociaiscontraditórios; os conflitos da lín-gua refletem os conflitos de clas-se no interior mesmo do sistema:comunidade semiótica e classesocial não se recobrem.A discussão que BAKHTIN (1996)

faz sobre "a natureza ideológica do sig-no lingüístico", sua dinâmica das signi-ficações, a alteridade que lhes é cons-titutiva, o signo como arena da luta declasses, as análises dos diferentes tiposde discurso: direto, indireto, indireto li-vre, entre outros aspectos propostos,auxilia-nos na compreensão da com-plexidade que envolve a constituiçãoda linguagem. Poderíamos indagar sehá uma relação direta entre lingua-gem, infra-estrutura e as superestrutu-ras, ou de que forma uma determina aoutra? Para o autor:

Assim é que propomos uma refle-xão crítica sobre a "leitura" segundo ateoria da análise de discurso e, nestesentido, fazermos um resgate das rela-ções que perpassam o processo socialde produção da linguagem, a qual sevincula ao contexto histórico-social,em concordância com as suas condi-ções lingüísticas (simbólicas) e ideoló-gicas de produção.

Neste sentido, concordamos comOrlandi, de que a leitura pode sercompreendida como "atribuição desentidos". Ou, ainda, que: "... os senti-dos que podem ser lidos, em umtexto, não estão necessariamente ali,

178 - DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

A análise da relação entre objetivação e apropriação,

enquanto dinâmica própria da atividade vital humana

e geradora do processo histórico, não pode se resumir

no processo de produção e utilização de instrumentos e objetos.

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nele" (ORLANDI, 1999, p. 11). Há sem-pre, numa "leitura", uma relação tensae isso se deve a uma correlação de for-ças na qual estão implicados os inter-locutores e o espaço social que estesocupam faz parte do processo de signi-ficação. O que corresponde a dizer queos sentidos que o texto tem são deter-minados pela posição ocupada porquem produz o texto e mesmo o lê.

Nessa relação precisamos estar aten-tos aos efeitos da ideologia, na qual sãoproduzidos os efeitos de verdade, isto é,

"a ideologia produz aaparência da

u n i d a d edo sujei-to e atranspa-

rência dos e n t i d o "

( O R L A N D I ,1999, p.56).

Feitas estas ponderações, pode-mos especificar o domínio no qualprocuramos trabalhar. Domínio cujoponto de vista estabelece, para a aná-lise, o propósito de perguntar sobre asrelações entre a linguagem e a realida-de, no que tange às relações entre jor-nalismo e o MST.

À primeira vista, à imprensa cabenoticiar os acontecimentos do passadoimediato, não só para informar os ci-dadãos o que acontece ao seu redordo bairro ao planeta, mas, também,para registrar o que, no futuro, serviráde matéria-prima aos historiadoresimbuídos de escreverem a história dopassado. (BERGER, 1998:19).

Nesse caso, estudar o Movimentodos Trabalhadores Sem-Terra e o jornalO Imparcial2 analisando as condições de

produção do discurso do Movimento,de um lado e de outro, as condições deprodução do discurso do jornal, tendocomo ponto de partida não só os sujei-tos dos "campos de produção", mastambém os seus destinatários, é umaforma de problematizar estas práticassociais, isto é, as relações entre realida-de e linguagem, política e comunicação.

A compreensão do jornalismopassa, portanto, pela problematizaçãoda informação, pois assim como a his-toriografia reconhece que o passadofoi real, mas o acesso a ele só se dápelos relatos textualizados e interpre-tados, também para o jornalismo, opresente/real existe, só sendo acessí-vel, no entanto, quando publicado.

Fica claro que a noção de lingua-gem deve ser revista. Nesta medida, alinguagem constitui e não descreveaquilo que é por ela representado. Es-ta concepção põe em dúvida a práticajornalística, pois se é apropriada, negaa imparcialidade ou a neutralidade daimprensa, na passagem do aconteci-mento para o publicado e admite anotícia como construção de um acon-tecimento pela linguagem.

A apropriação que fazemos dessadiscussão, para a nossa análise, se jus-tifica também, pela Construímos nossaanálise a partir da constituição da lin-guagem, embora saibamos que o su-jeito não se constitui só pela lingua-gem. Concebemos a linguagem comouma atividade de mediação que é in-dispensável ao trabalho em geral. Se-gundo VOESE (1999, p.10),

Para tanto analisamos os textos dojornal O Imparcial em torno do queele diz sobre o MST, e partimos embusca da descrição das contradições

como pistas de ordem ideológica. Pensar na construção e constitui-

ção dos discursos significa desvendaros mecanismos sociais que constroemdesigualdades e que são legitimadoresdos processos sociais que definem osterritórios, formas de uso e o desenhosocietal do espaço.

3. Território de Luta pela Terrae a Construção dos Sentidos

A compreensão da dinâmica destasrelações materializadas num espaçoespecífico nos coloca a necessidade deentendermos os processos e mecanis-mos de controle social que estão en-raizados nas diferentes formas de"gestão territorial da sociedade" (THO-MAZ JR., 2002).

Consideramos o discurso umacontecimento lingüístico histórico esocial, portanto, sujeito à variação desentidos. Consideramos que é tam-bém heterogêneo, na medida em quereflete a multifacetação cultural dotecido social, pois há diferentes siste-mas de referência3 que possibilitam aconstrução dos múltiplos sentidosdas práticas sociais4.

De posse dessas considerações,evidenciaremos, a partir de algumasreportagens do jornal (O Imparcial),como esses mecanismos, ou essesdiscursos se revelam na composiçãoda notícia.

O texto que será objeto do nossoexercício tem por título "MST faz mar-cha pela reforma agrária", e foi publi-cado no jornal O Imparcial no dia29/01/2002.

Ao observarmos o título, em sualiteralidade, este não oferece estímulomaior nem estratégia para penetrar notexto, porque nos remete apenas aalgo como "há uma manifestação detrabalhadores sem terra". No entanto,o subtítulo que vem logo a seguir,"Visando coibir possíveis invasões doMST na cidade, prefeito Agripino Lima

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 179UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Construímos nossa análise a partir da constituição

da linguagem, embora saibamos que o sujeito não

se constitui só pela linguagem.

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decreta ponto facultativo", se organiza,por meio de um tipo de oposiçõessemânticas, entre "invasões" e "legali-dade", o que nos permite prever que otexto se constituirá a partir de um jogode associações.

Tomando essa associação comoorientadora para a análise das pistasdo texto, faremos alguns recortes (R) apartir das associações.

R1: O Movimento dos Trabalha-dores Rurais Sem-Terra (MST) realizouontem, às 9h na rodovia Olímpio Fer-reira da Silva, em frente da fazendaSão Luiz, no acampamento Oziel Al-ves, município de Presidente Bernar-des, uma manifestação seguida deuma marcha intitulada "Por terra, jus-tiça e paz". Cerca de 600 integrantesdo movimento de toda a região parti-cipam da marcha, que tem como obje-

tivo, segundo o líder do MST, JoséRainha Júnior, discutir com liderançasdo poder público estadual sobre algu-mas questões judiciais contra inte-grantes do MST e cobrar da Justiça aagilização da reforma agrária e aemissão de posse de áreas desapro-priadas.

R2: Os sem-terra chegaram aPirapozinho por volta das 15h, ondeestiveram na frente da delegacia, exi-gindo explicações do Poder Judiciárioem relação ao sem-terra Josefa Cirilode Souza, preso no último dia 26 dedezembro de 2001. Cirilo foi presoapós ter invadido um lote irregular, nafazenda Água Limpa, segundo inte-grantes do Instituto de Terras doEstado de São Paulo.

R3: Este é o segundo protesto co-mandado pelo MST na região. Háuma semana cerca de 700 sem-terrabloquearam a estrada que liga Pira-pozinho a Mirante do Paranapanema,no período da manhã, e, à tarde, lide-raram uma manifestação pelas ruasde Teodoro Sampaio.

R4: Logo após tomar ciência dapresença de integrantes do MST, emPresidente Prudente, no dia de hoje, oprefeito Agripino Lima, em entrevista àrádio Presidente Prudente AM, disseque receberá "a pau" o líder do movi-mento Rainha e seus integrantes.

R5: O prefeito também acusou olíder do movimento de ser um dosbandidos que estão soltos no país.

R6: Visando coibir possíveis inva-sões do MST na cidade, o prefeito Agri-pino Lima, decreta ponto facultativona cidade no dia de hoje em Prudente.Com isso todas as instituições munici-pais estarão fechadas.

R7: Em entrevista coletiva ontem,às 16h, em frente à prefeitura, o pre-feito declarou que o MST só entrará nacidade depois de matá-lo. "Não souperseguidor de ninguém, sou a favorda reforma agrária, como a do Bancodo Povo que dá terra dentro da lei. Ocangaço já acabou há muito tempo,mas nosso virgulino, cangaceiro faz edesfaz...", argumentou.

R8: Dando apoio à manifestaçõesdo prefeito de Presidente Prudente, es-tiveram membros da União Ruralista(UDR), que criticaram a política de re-forma agrária no Pontal do Parana-panema. "A gente vê essas manifesta-ções com muita apreensão, pois setivesse sido feita uma reforma agráriaséria e com competência, como deveser feita, nós não estaríamos passan-do por toda essa confusão...", declarouo presidente em exercício da UDR.

R9: Ele também ressaltou que oMST é um grupo que age ilegalmente."É um grupo que não tem sede fixa,

não tem CNPJ, não tem diretoria, nãotem estatuto, portanto é ilegal", con-cluiu.

Uma vez feitos os recortes, juntare-mos aqueles que podem se situardentro de um campo semântico, maisou menos configurado e formulávelem termos de um enunciado. Isso nospermitirá estabelecer outras associa-ções.

Assim, reúnem-se recortes corres-pondentes a "chefes" e "comandados"da seguinte forma:

R1, R3, R4, R5, R7 e R9 nos permi-tem o seguinte enunciado:

E1: "O MST é um bando, que atuailegalmente, liderado por um canga-ceiro".

Se pensarmos o que significou oCangaço no imaginário social, veremosque o mesmo aparece como um movi-mento marcado por práticas violentas,tais como saques em propriedades,estupros, assassinatos, entre outras, oque justificou, na época, ação repressi-va do Estado. Associar a atuação doMovimento ao Cangaço significa insis-tir na idéia de ilegalidade da ação dostrabalhadores rurais, e mais, é reforçar,no imaginário, a idéia de que o Movi-mento pode entrar na cidade e pro-mover saques ao comércio e invasõesdas instituições públicas.

Essa idéia é reforçada quando as-sociamos:

R4, R5, R6, R8 e R9, dos quaisainda poderíamos fazer outras associa-ções e construirmos outro enunciado:

E2: "O MST precisa ser rechaçado,pois o Estado faz reforma agrária, portan-to, a atuação do MST não se justifica".

Os recortes R2, R3, R4, R5, podempertencer ao enunciado:

E3: "O MST, para defender um pre-sidiário, atrapalha o espaço público, acidade, o serviço público. Portanto, éum Movimento de arruaceiros que sócria problemas".

Entre esses enunciados há, tam-

180 - DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

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bém, a possibilidade de algumas ou-tras associações. Assim:

a) E1 associado a E2 e a R7, em ter-mos de "se são chefes que norteiamos sem-terra, não se surpreende o ca-ráter violento do grupo".

b) R6 associado a R9, em termosde "com os sem-terra se instala a vio-lência e se criam problemas para fa-zendeiros e governantes".

Uma vez reduzidos os recortes dotexto a esses dois enunciados, ficaclaro que há um posicionamento dojornal (enunciante) em relação aoMovimento. Quando observamos odestaque dado às falas do prefeito edo representante da UDR, em detri-mento da ausência da fala do repre-sentante do MST, também revela aposição do jornal, o que leva à inter-pretação de uma intervenção destru-tiva do enunciante em relação à ima-gem do MST.

Feita a análise de alguns modos dedizer, percebe-se que há uma buscade desvalorização do representante doMST, especialmente no que diz respei-to aos objetivos do Movimento, isto é,a luta pelo acesso à terra e à reformaagrária.

Para toda prática de linguagem en-tre diferentes grupos, as dificuldadesde interlocução não se devem ao do-mínio escrito das formas da gramática.As diferenças existem, mas são de ou-

tra natureza e dizem res-peito à identidade (territo-rialidade) sócio-político-ideológica desses grupos.São essas diferenças quemerecem atenção emnossa pesquisa. São dife-renças que resultam dasrelações de poder que sãoexpressas no território.

Dessa forma, buscamos averiguar ahipótese da notícia (produção de acon-tecimento pela linguagem), criar senti-dos e mediações em diferentes instân-cias do social. E, especificamente nocaso do MST, construir-se sentidos quedeslegitimam sua territorialização eexpressão/significação social no âmbitodo trabalho e dos movimentos sociais.

Daí entendermos que a linguagemtem uma materialidade específica quenão autoriza seu uso ingênuo, apenaspara comunicar "informações". E, alémdisso, a possibilidade de discutir aidéia de que a linguagem não apenastransmite sentidos, mas ela os consti-tui e os transforma em processos quesão sociais, históricos, e que têm fun-cionalidade ideológica.

Notas* Este texto é produto do Projeto dePesquisa "O MST entre o Fato e a Notícia",desenvolvido no âmbito da Iniciação Científicada FAPESP, sob a orientação do professorAntonio Thomaz Júnior, durante o período dejaneiro a dezembro de 2002.1. Cf. Thomaz Jr., 2002b.2. O jornal O Imparcial é veiculado em presi-dente Prudente.3. Sistemas de referências segundoPossenti (1992:4), "são domínios de inter-pretação. Com as óbvias diferenças, o queeles em comum é que mostram que o sen-tido não é carreado apenas pelas expres-sões (...) mas lhes é atribuído pela conside-ração de algum parâmetro, seja ele de tipo

'cultural, seja ele do tipo histórico'".4. Para Voese (1998), as práticas sociais sãoinstituições como o Direito, o Estado, a Fa-mília, a Escola etc, as quais normatizam osdiscursos.

Referências BibliográficasANTUNES, R. Os sentidos do trabalho: en-

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**Sônia Maria Ribeiro de Souza é mes-tranda em Geografia/FCT/UNESP/Presiden-te Prudente.*** Antonio Thomaz Júnior é professor deGeografia da FCT/UNESP/Presidente Pru-dente.

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 181UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

A linguagem tem uma materialidade específica que não

autoriza seu uso ingênuo, apenas para comunicar "informações".

Debates Contemporâneos

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182 - DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Tal generalização tem como resul-tado a subestimação da diversidadeconstitutiva da Terceira Internacional edos grandes debates que, no seu inte-rior, se processavam. Seu resultadonão é, senão, reduzir a importância daruptura que representou para a vidainterna da Internacional a consolida-ção da direção stalinista e a burocrati-zação dos partidos comunistas.

A contribuição de Aldo Agosti aoestudo desse tema é extremamenteimportante. Em seu ensaio publicadona coletânea Historia do marxismo,organizada por Eric Hobsbawn, Agostisublinha a diversidade dos partidosque participam do chamado à consti-tuição da Internacional Comunista,bem como os diferentes grupos queexistiam no interior de cada partido.Um dos casos mais interessantes é odo Partido Comunista Húngaro, umdos signatários da carta de convocaçãoao 1º Congresso. Além dos chamados

"bolcheviques" ou "internacionalistas",o grupo de ex-prisioneiros de guerrana Rússia, formado, entre outros, porBéla Kun e Rudyansky, havia a corren-te influenciada por Erwin Szabo, deinspiração anarco-sindicalista e umcurioso grupo de "engenheiros socia-listas", liderado por Gyula Havesi "cujaideologia era uma anômala mistura depositivismo tecnocrático e sindicalismorevolucionário" (Agosti, 1988: 52).

As diferentes reações provocadaspela obra de Nicolai Bukharin, Teoriado materialismo histórico. Ensaio po-pular de sociologia marxista, ilustra,de maneira muito nítida, essa diversi-dade política e teórica constitutiva daInternacional Comunista. Também ser-ve como baliza para avaliar os resulta-dos do processo de burocratizaçãocomparar as vivas polêmicas que seseguiram à publicação do Ensaio popu-lar, ao silêncio que sucedeu, no interiorda Internacional, à publicação de Ma-

terialismo histórico e materialismo dia-lético, de Josef Stálin, e a utilização dedecretos governamentais no debate fi-losófico. Vale lembrar que, em 1931,um decreto estatal identificou o mate-rialismo dialético ao marxismo-leninis-mo, colocando um fim à polêmica queenvolvia Deborin e Bukhárin, entre ou-tros (Marcuse, 1984, p. 148-149).

A comparação não é desproposita-da. Quando da publicação do Ensaiopopular (1921), Nicolai Bukharin eradestacado dirigente do Partido Comu-nista Russo e da Internacional, aqueleque Lênin considerou, em seu testa-mento, "o teórico mais valioso e desta-cado do partido (...) considerado,merecidamente, o preferido do parti-do". Quando da publicação de seuMaterialismo histórico e materialismodialético, como parte de uma obrachamada História do Partido comunis-ta russo (bolchevique), em 1938, Stá-lin ocupava as posições chaves no par-tido e na Internacional. Entre os doisacontecimentos, entretanto, estavamos expurgos e os processos que ha-viam silenciado e assassinado toda aoposição.

Georg Lukács e Antonio Gramsci

Lukács, Gramsci e a crítica ao "Ensaio popular" de Bukharin

Alvaro Bianchi*

Debates Contemporâneos

Na crítica aos efeitos desastrosos do stalinismo sobre o movimento operário

internacional, em geral, e sobre o marxismo, em particular, é comum a

referência ao "marxismo da Terceira Internacional". Em certa medida, essa

generalização é o produto de uma extensão apressada do chamado "marxismo

da Segunda Internacional" a um universo consideravelmente diferente.

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forneceram as duas críticas mais co-nhecidas à obra de Bukharin e é sobreelas que iremos nos debruçar. Uma re-senha da resposta dos comunistas ale-mães ao Ensaio popular e a compara-ção destas com a desenvolvida por An-tonio Gramsci, nos Cadernos do cárce-re, pode ser encontrada em um artigode Aldo Zanardo. O artigo de Zanardotem a vantagem sobre outros comen-tadores de manejar um bibliografiamais ampla, resenhando não só as in-tervenções de Gyorgy Lukács e deGramsci, mas também outras como ade Fogarasi, publicada no número de19 de fevereiro de 1922, do jornal Dierote Fahne, e de Kurt Sauerland, emDie Internationale, de fevereiro de1931.1 Comparando exclusivamente asrespostas de Lukács e de Gramsci, estáa obra de Christinne Buci-Gluksmann,Gramsci e o Estado.

Lukács: crítica à falsa objetividade

Repassemos brevemente o traba-lho de Lukács publicado originalmenteem 1923.2 O marxista húngaro iniciaseu ensaio ressaltando os méritos datentativa levada a cabo por Bukhárin.Para Lukács, o Ensaio popular preen-chia uma lacuna aberta desde o Anti-Dühring, por parte de Engels, e nãopreenchida pelo marxismo até então:a publicação de um compêndio siste-mático de materialismo histórico redi-gido por um marxista. Ao identificaressa lacuna, procede como Fogarasique, um ano antes, ao criticar o Ensaiopopular, lamentava que os trabalhossimilares levados a cabo por Plekha-nov e Gorter estivessem envelhecidos.3

O juízo que Lukács faz do conjuntoda obra é positivo:

"É importante dizer que Bukhárin

triunfou na descrição conjunta de to-

dos os problemas importantes do

marxismo, dentro de um compêndio

unificado e sistemático que é mais

ou menos marxista, e, além do mais,

que a apresentação é, em geral, clara

e de fácil compreensão, de modo

que o livro cumpre admiravelmente

com seu propósito enquanto ma-

nual" (Lukács, 1974: 41).

E muito embora os métodos usa-dos por Bukhárin e os resultados porele atingidos precisem ser criticados,essa crítica deve levar em conta de quese trata de um manual popular e, por-tanto, ela deve ser indulgente com oautor. Indulgente ou não Lukács marcaclaramente suas diferenças. O Ensaiopopular obscurece muitas relações, aoinvés de explicá-las e acaba por pro-mover simplificações abusivas, comoquando estabelece um paralelo rigoro-so entre a hierarquia de poder e a es-trutura de produção, afirmando que "aestrutura do aparelho de estado refletea da economia - p. ex. as mesmas clas-ses ocupam as mesmas posições emambas" (Apud Lukács, 1974, p. 42).4

Mas, para além de problemas pon-tuais como este aqui apontado, a críti-ca de Lukács levanta algumas restri-ções metodológicas fundamentais aotexto de Bukhárin e erros que este te-ria cometido, principalmente no capí-tulo filosófico introdutório. Nele, Bukhá-rin teria se situado perigosamente pró-ximo àquilo que Marx denominou "ma-terialismo burguês", "rejeitando todosos elementos do método marxista quederivam da filosófica clássica alemã"(Lukács, 1974: 43). Essa aproximaçãoao materialismo natural-cientificistaobscurece o caráter específico do mar-xismo, para o qual "todos os fenôme-nos econômicos ou 'sociológicos' deri-vam das relações sociais entre os ho-mens. A 'ênfase' conferida a uma falsa'objetividade' na teoria conduz ao feti-chismo" (Idem, p. 44).

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 183UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

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Lukács esclarece o problema dessafalsa "objetividade", ao analisar opapel determinante que Bukhárin atri-bui à tecnologia. Para o marxista russo,a técnica é a "determinante básica"das "forças produtivas da sociedade" ea sociedade depende, "em última ins-tancia", de seu desenvolvimento: "ca-da sistema dado de técnica social de-termina, por sua vez, o sistema de rela-ções de trabalho entre os homens"(Bukhárin, 1974, p. 223). O determinis-mo chega às raias do insólito quandoafirma que "a técnica da música de-pende, em primeiro lugar, da técnicada produção material", o que o leva aafirmar que "a distribuição dos mem-bros de uma orquestra está determi-nada, da mesma forma que em umafábrica, pelos instrumentos ou gruposde instrumentos. Em outras palavras,sua disposição e organização está con-dicionada pela técnica musical, e atra-vés desta última se encontra ligada àprópria base do desenvolvimento so-cial, à produção material" (Bukharin,1974, p. 275).

Ora, afirma Lukács, esta identifica-ção entre técnica e forças produtivasnão é nem válida, nem marxista. A téc-nica deve ser concebida não como aforça produtiva por excelência, como ofundamento auto-suficiente do desen-volvimento, mas como um momentodo sistema de produção existente, cujodesenvolvimento é explicado pelodesenvolvimento das forças sociais deprodução.

Feita essa ressalva metodológica, omarxista húngaro aborda a principalconseqüência dessa falsa objetividade,na obra de Bukhárin: sua concepçãodo marxismo como "sociologia geral".Sua sociologia, impregnada pelo enfo-que natural-cientificista, se desenvolvecomo ciência independente com seuspróprios objetivos substantivos. Mas

"a dialética não requer taisacontecimentos substantivos e in-

dependentes; seu domínio é o pro-cesso histórico como um todo, cu-jos momentos individuais, concre-tos, irrepetíveis, revelam sua essên-cia dialética, precisamente nas dife-renças qualitativas entre eles e acontínua transformação de suaestrutura objetiva. A totalidade é oterritório da dialética." (Lukács,1974, p. 48.)O objetivo dessa sociologia de Bu-

khárin é a previsão dos acontecimen-tos sociais, da mesma maneira comosão previsíveis os acontecimentos nanatureza. Se não é possível essa predi-ção é porque ainda não estamos o su-ficientemente informados sobre as leisdo desenvolvimento social. De qual-quer modo, embora não seja possívelantecipar a velocidade dos processossociais, é possível prever a direção des-tes. Mas, adverte Lukács, nosso conhe-cimento das tendências não é o resul-tado da diferença entre o que efetiva-mente sabemos e do que seria neces-sário saber, e, sim, o resultado da dife-rença qualitativa e objetiva do próprioobjeto.

Os temas selecionados por Lukács,em sua crítica, bem como a aborda-gem destes deixam claro seu objetivo:contrapor-se a uma falsa objetividadeque conduz à transformação das ciên-cias naturais à ciência por antonomá-sia, criando, na análise dos processossociais, uma falsa objetividade assen-tada na reificação de relações sociais.A fetichização da técnica e a elimina-ção das mediações, na relação entrebase e superestrutura, são a conse-quência substantiva da transformaçãodo marxismo em uma sociologia geral.

Em sua introdução ao texto de Lu-

kács, Ben Brewster afirma que a im-pressão de abstração provocada porHistória e consciência de classe é dis-sipada pela sua crítica a Bukhárin:"Lukács não se limita a fazer uma críti-ca puramente filosófica, e sim examinaos pontos críticos da interpretaçãomarxista da história para demonstrarquão pouco consistente é a obra deBukhárin" (Brewster, 1974: 38). Defato, Lukács mostra as inconsistênciasdo Ensaio popular, mas o faz, ao con-trário do afirmado por Brewster, privi-legiando a crítica metodológica. Ao in-vés de afastar-se do marco teórico desua obra de adesão ao marxismo, Lu-kács preserva aqueles temas funda-mentais de seu ensaio O que é o mar-xismo ortodoxo? A afirmação de que aortodoxia marxista refere-se exclusiva-mente ao método e a totalidade con-creta como a categoria fundamentalda realidade:

"Marxismo ortodoxo não signifi-

ca, pois, uma adesão sem crítica aos

resultados da pesquisa de Marx, não

significa uma 'fé' numa ou noutra te-

se, nem a exegese de um livro 'sagra-

do'. A ortodoxia em matéria de mar-

xismo refere-se pelo contrário, e ex-

clusivamente, ao método. Implica a

convicção científica de que, com o

marxismo dialético, se encontrou o

método de investigação justo, de que

este método só pode ser desenvolvi-

do, aperfeiçoado, aprofundado no

sentido dos seus fundadores; mas

que todas as tentativas para superar

ou 'melhorar' levaram apenas à sua

vulgarização, a fazer dele um ecletis-

mo - e tinha necessariamente que le-

var aí" (Lukács, 1989, p. 15).

184 - DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

A fetichização da técnica e a eliminação das mediações, na relação

entre base e superestrutura, são a consequência substantiva

da transformação do marxismo em uma sociologia geral.

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Gramsci: filosofia como políticaMuitos desses temas tratados por

Lukács encontram-se na crítica desen-volvida por Antonio Gramsci, no cárce-re. A crítica à redução das forças pro-dutivas aos instrumentos técnicos, quejá se encontrava em Achille Loria, éprovavelmente o caso mais evidente.Retomando observações de BenedettoCroce sobre Loria e os "instrumentostécnicos", Gramsci destaca que, no"Prefácio de 1859" à Contribuição àcrítica da economia política, Marx utili-za expressões tais como "grau de de-senvolvimento das forças materiais deprodução", "modo de produção da vi-da material", "condições econômicasda produção", mas estas expressõesnão permitem reduzir as chamadascondições materiais à simples meta-morfose do "instrumento técnico" (Q,p. 1440-1441).

Sim, o tema é o mesmo desenvol-vido por Lukács, mas as abordagens eos objetivos dessa polêmica são dife-rentes. A crítica apresentada porGramsci tem, também, um carátermetodológico. É, também, a crítica aoreducionismo, próprio da corrente re-visionista que hegemonizou a Segun-da Internacional. E não é de se estra-nhar que tanto o marxista húngaro,quanto o italiano, comparem as afir-mações de Bukhárin com aqueles quelevaram ao extremo esse revisionismo,Cunow e Loria, respectivamente. Mas apreocupação central de Gramsci nãose reduz à perda de eficácia interpreta-tiva de uma concepção reducionista.Ela visa impedir que uma interpreta-ção reducionista conduza a assimila-ção de correntes estranhas ao marxis-mo, o que tem como conseqüência aassimilação do marxismo por outrascorrentes, ou seja, a subalternizaçãoda filosofia da práxis.

Para impedir essa subalternização,é preciso demarcar a distância quesepara o marxismo tanto do materia-

lismo natural-cientificista, como dosenso comum ao qual ele se associa.Gramsci formula, assim, uma definiçãode ortodoxia diferente daquela deLukács. O que define o marxismo orto-doxo não é, para Gramsci, o seu graude pureza metodológica. A ortodoxiaassenta-se num critério fundamental-mente prático:

"A ortodoxia não deve ser procu-

rada neste ou naquele seguidor da

filosofia da práxis, nesta ou naquela

tendência vinculada a correntes

estranhas a doutrina original, e sim

no conceito fundamental de que a

filosofia da práxis basta a si mesma,

contém todos os elementos funda-

mentais para construir uma concep-

ção de mundo total e integral, uma

filosofia e teoria das ciências naturais,

e não somente isso, mas sim, tam-

bém para vivificar uma organização

prática integral da sociedade, ou seja,

converter-se em uma total, integral

civilização" (Q, p. 1434).

As diferenças entre Lukács eGramsci são sutis mas importantes. Lu-kács fala que a ortodoxia não reside nafé em uma "tese, nem a exegese deum livro 'sagrado'". Gramsci, por suavez, refere-se a correntes e indivíduos.O húngaro abomina a transformaçãodo marxismo em um "ecletismo"; já osardo teme que o marxismo perca seupoder de "vivificar uma organizaçãoprática integral da sociedade, ou seja,converter-se em uma total, integral ci-

vilização". Os dois autores tratam deproblemas diferentes. Um ressalta ascomplicações metodológicas decor-rentes da incorporação de teorias ex-trínsecas ao marxismo, o outro preocu-pa-se com os desdobramentos práti-cos dessa incorporação. "Correntes","seguidores da filosofia da práxis" e"organização prática" são palavras for-tes, o resultado de sua utilização éuma definição de ortodoxia forjada pa-ra o combate ideológico. Ao contrário,a crítica levada a cabo por Lukács, aque Gramsci promove "ultrapassa umacrítica intrafilosófica a Bukhárin, paraatingir a questão da hegemonia naconstrução do socialismo" (Buci-Glu-ksmann, 1990, p. 271).

A noção de "combate ideológico"encontrada já no Lênin de Que fazer?é esmiuçada e revalorizada por Gram-sci nos Cadernos do cárcere.5 Já em1925, em sua Introduzione al primocorso della scuola interna di partito, odirigente comunista italiano afirmava:"Sabemos que a luta do proletariadocontra o capitalismo de desenvolve emtrês frentes: a econômica, a política e aideológica" (Gramsci, 1978, p. 52).Frentes estas que se reduzem a umaúnica através do partido da classe ope-rária, que condensa, em sua atividade,todas as exigências da luta geral.

Não seria correto, adverte Gramsci,exigir de um operário comum umaconsciência completa das funções quesua classe é chamada a desenvolverno processo histórico. Antes da con-quista do estado, é impossível modifi-car completamente a consciência detoda a classe operária. Gramsci retomaaqui problemática já desenvolvida porTrotsky em Literatura e revolução: aconsciência só se modifica completa-mente no totalidade da classe quandoo proletariado se transformou em clas-se dominante, controlando os apare-lhos de produção e o poder estatal(Idem, p. 54).6 A exigência de uma

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 185UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

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consciência completa pode, entretan-to, ser exigida de um membro do par-tido, operário ou não. O partido podee deve representar essa consciênciasuperior. Para isso, deve assimilar omarxismo em sua forma atual, o leni-nismo.

Em toda sua crítica a Bukhárin,Gramsci desenvolve o tema da lutaideológica. É preciso libertar as massasde suas antigas concepções de mun-do. O homem ativo, diz o marxista ita-liano, não tem uma clara consciênciateórica de seu agir e é possível, atémesmo, que sua consciência estejaem contraste e oposição com suaação. É possível, de certa maneira, afir-mar que possuem duas consciências,"uma implícita em seu agir que real-mente a une a todos seus colaborado-res na transformação prática da reali-dade". Mas além desta, há outra "su-perficialmente explícita ou verbal queherdou do passado e acolhe sem críti-ca" (Q, p. 1385).

É verbal no sentido de que é a queafirma com palavras e a que acreditaseguir, "porque a segue em 'temposnormais', ou seja, quando a condutanão é independente e autônoma e,sim, precisamente submissa e subordi-nada" (Q, p. 1379). Não se pense, en-tretanto, alerta o marxista italiano, queessa concepção verbal e superficialnão influi no comportamento huma-no. Ela o "amarra a um grupo socialdeterminado, influi na conduta moral,na orientação da vontade, de modomais ou menos enérgico, que podechegar até o ponto em que a contradi-toriedade da consciência não permitenenhuma ação, nenhuma decisão, ne-nhuma escolha e produz um estadode passividade moral e política" (Q, p.1386). Há, assim, uma tensão perma-nente entre o agir e a consciência e aresolução dessa situação só podeocorrer pela superação da consciênciavinculada ao passado e pela emergên-

cia de uma nova consciência, pela uni-dade entre teoria e prática:

"A compreensão crítica de si mes-

mo se produz, pois através de uma

luta de 'hegemonias' políticas, de di-

reções contrastantes, primeiro no

campo da ética, a seguir da política,

para achegar a uma elaboração su-

perior da própria concepção do real.

A consciência de ser parte de uma

determinada força hegemônica (ou

seja, a consciência política) é a pri-

meira fase para uma ulterior e pro-

gressiva autoconsciência na qual

teoria e prática finalmente se unifi-

cam" (Q, p. 1386).

A unidade entre teoria e prática,tão alardeada e tão pouco compreen-dida, é assim, para Gramsci, um devirhistórico e não um fato mecânico de-duzido da ação das massas. A insistên-cia, no elemento "prático" deste todounitário, "significa que se atravessauma fase histórica relativamente primi-tiva, uma fase ainda econômico-corpo-rativa, na qual se transforma quantita-tivamente o quadro geral da 'estrutura'e a qualidade superestrutura adequa-da está em vias de surgir, mas aindanão está organicamente formada" (Q,p. 1386-1387).

Como, então, proceder nesse com-plexo terreno da "luta de hegemoni-as". O marxista italiano ressalta a espe-cificidade do combate ideológico. Naluta política e militar, pode ser conve-niente "a tática de atacar nos pontos

de menor resistência para estar emcondições de atacar nos ponto maisforte, com o máximo de forças dispo-níveis precisamente por ter eliminadoos auxiliares mais débeis". Mas nofronte ideológico "a derrota dos auxi-liares e dos seguidores menores temuma importância quase desprezível;neste é necessário combater contra osmais eminentes". Uma nova ciência, eesse é o caso do marxismo, "alcança aprova de sua eficiência e vitalidade fe-cunda quando demonstra saber afron-tar aos grandes campeões de tendên-cias opostas, quando resolve com seuspróprios meios as questões vitais queaqueles colocaram ou demonstra pe-remptoriamente que tais questões sãofalsos problemas" (Q, p. 1423).

Ao marxismo não é dado o direitode escolher os adversários no fronteideológico. Eles são previamente defi-nidos. Da mesma forma, ao marxismo,se quiser se converter em substrato deuma nova e integral civilização, deveráse apresentar como superação do mo-do de pensar precedente e do pensa-mento concreto existente. Para isso, aocontrário de Bukhárin, Gramsci afirmaque o marxismo deve se apresentar,"acima de tudo, como crítica ao sensocomum" (Q, p. 1383).

Conclusão As críticas levadas a cabo por Lu-

kács e Gramsci ao Manual de Bukhárinpodem nos ajudar a evidenciar umconjunto de fraturas que se estabele-ceu no interior do próprio pensamen-to marxista. Em primeiro lugar, fraturaentre filosofia, história e política. Fra-tura esta que se justifica com a autori-dade do Lênin de As três fontes e astrês partes constitutivas do marxismo.Aquilo que, para Lênin, era uma inves-tigação das fontes históricas do marxis-mo - a filosofia clássica alemã, a econo-mia política inglesa e a prática e a ciên-cia política francesas -, entendido este

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como um coroamento e uma supera-ção da ciência das nações mais avança-das da época, transformou-se em umesquema definitivo. Assim, cada umdesses movimentos, tomado isolada-mente, é apresentado como antecipa-ção da filosofia, da economia e da polí-tica marxistas (Q, p. 1246 e 1448).

Em segundo lugar, a fratura entrematerialismo histórico e materialismodialético que é possível encontrar noEnsaio popular de Nicolai Bukhárin,tentativa de divisão do marxismo emuma "sociologia" e em uma filosofiasistemática.7 Fratura que é levada aoparoxismo em Materialismo dialético ematerialismo histórico, de Josef Stálin(1985). Nesse pequeno livreto de Stá-lin, o materialismo histórico é apresen-tado como uma extensão do materia-lismo dialético "ao estudo da vida so-cial". O materialismo histórico torna-se, assim, uma colateral do sistema fi-losófico do marxismo. A história é agrande vítima dessa transformação, olugar da mera realização daquelas nor-mas atemporais codificadas nas "leisda dialética" e, de preferência, transfor-madas em decretos governamentais.

Em terceiro lugar, fratura entre es-trutura e superestrutura, o que tem le-vado a considerar a segunda como ummero reflexo da primeira ou a tornarcompletamente independente uma daoutra.8 Se, no primeiro caso, somos ví-timas de um total economicismo obje-tivista, perdendo de vista as possibili-dades de a superestrutura reagir sobree moldar a própria estrutura, no se-gundo, somos reféns do ideologismosubjetivista, do descolamento das su-perestruturas ideológicas e políticasdaquelas forças materiais e sociais quelhes dão substância.

Em quarto lugar, fratura entre teo-ria e prática, que implica a afirmaçãodo predomínio de um termo sobreoutro. Temos, então, ou o teoricismo, aafirmação de um reduto para o livre ar-

bítrio que não só retira à teoria suapossibilidade de afirmar-se como forçamaterial, como é, de fato, uma sujei-ção à realidade presente; ou o praticis-mo, expressão de uma fase econômi-co-corporativa em que a possibilidadeda passagem da estrutura às superes-truturas complexas é afastada, ou seja,onde a condição de subalternidade po-lítica e intelectual é aceita (Q, p. 1386-1387; 1580 e 1588).

A superação dessas fraturas devese constituir no programa de pesquisade um intelectual coletivo socialista. Oestudo e o resgate da tradição teóricae política em sua plena diversidade daInternacional Comunista, antes de seuprocesso de stalinização, pode forne-cer a chave para tal, colaborando paraa construção de uma teoria marxistaadogmática e anti-dogmática.

Notas1. Em 1931, o grupo que animava a revista

Die Internationale, já se encontrava fora da In-

ternacional Comunista.

2. O texto original foi publicado em Archiv f.

Geschichte des Sozialismus u. der Arbeiterbe-

wegung, XI: 1923. Utilizamos aqui a tradução

espanhola (Lukács, 1974).

3. Conforme Zanardo (1974, p. 12).

4. No texto de Bukhárin, a tradução espanho-

la deixou a frase incompreensível: "Aqui tam-

bém se pode observar que a estrutura do

aparelho de estado reflete a estrutura econô-

mica da sociedade, ocupando em ambas

classes posições relativamente similares"

(Bukhárin, 1974: 238).

5. Ver, a esse respeito, o capítulo I-d e, em par-

ticular a conhecida citação que Lênin faz do

prefácio de Engels a A guerra camponesa na

Alemanha: "a luta se desenvolve de forma

metódica em suas três direções combinadas e

relacionadas entre si: teórica, política e econô-

mico-prática resistência aos capitalistas). Nes-

se ataque concentrado, por assim dizer, resi-

dem precisamente a força e a invencibilidade

do movimento alemão" (Engels, s.d, p. 202.

Citado por Lênin, 1981, p. 32).

6. A respeito da relação de Gramsci com essa

obra de Trotsky, ver Paggi (1981, p. 54).7. "A teoria do materialismo histórico tem seu

lugar definido não na economia política ou na

história e, sim, na teoria em geral da socieda-

de e das leis de sua evolução, quer dizer, na

sociologia." (Bukharin, 1974, p. 114.) 8. "Não é verdade que a filosofia da práxis'separa' a estrutura das superestruturas quan-do, pelo contrário, concebe seu desenvolvi-mento como intimamente vinculado e neces-sariamente inter-relacionado e recíproco" (Q,p. 1300).

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*Alvaro Bianchi é professor da Universida-de Metodista de São Paulo.

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 187UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

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Dialética, diálogo, discussão1. O ponto de partida desta comu-

nicação é um dado subjetivo: a irrita-ção que o uso, hoje, constante da no-ção de diálogo, singularmente quandose trata de enfrentamentos sócio-polí-ticos, provoca em mim. Do mesmo mo-do - como se advertiu com freqüêncianas exposições precedentes - o fato deque a palavra dialética - adjetivo ousubstantivo - se pronuncie a torto e adireito cada vez que há mudança, pro-cesso, alteração, diferenciação etc.. Esempre que surge um antagonismoque põe em dúvida a ordem social,um pouco mais perigosamente que ocostume, se apele à eventualidade deuma prática do diálogo, da qual se es-pera tenha a virtude de conciliar ascontradições, de aproximar as diver-gências (ou as subdivergências), dereduzir as diferenças; em suma, devol-ver os antagonismos a um lugar, sólidoe neutro, no qual se exerça, na trans-parência, a boa vontade.

2. Precisemos, desde logo, umponto terminológico: por antagonis-mos, entendo aqui as oposições singu-lares, múltiplas e diversas que consti-tuem a própria existência social; porexemplo e para voltar ao esquema de-senvolvido por Hegel, em os Princípiosda filosofia do direito, as oposições en-tre os indivíduos, no seio da família eda profissão, entre as profissões, entrea "plebe" e a "os ricos", no seio da so-ciedade civil. Nomear como antago-nismos estas oposições existentes (ou,se se prefere, reais ou concretas) nãoé, todavia, conceituá-los; é simplesmen-te designar algo como um pré-objetoque a análise científica terá que subme-ter a determinações de noção mais pre-cisas. Supõe-se também que estesantagonismos formam a trama da reali-dade social: tomando as coisas empiri-camente, superficialmente, não há ou-

tra harmonia, outro acordo, senão aguerra (ou, se se prefere, a luta).

3. O pensamento especulativo deuum passo à frente - com Kant e, sobre-tudo, com Hegel - quando decidiu re-conhecer como essencial este elemen-to: o antagonismo existente. Restabe-leceu então o que estava na própriaorigem da empresa filosófica tal comoPlatão a compreendia (se levarmos asério as declarações quase liminaresda Carta VII). Mas, como Platão e pre-cisamente na perspectiva que estehavia definido, o reinventar esta lógica- este tratamento do discurso - que é adialética, deu também dois passosatrás. Com o pretexto de aportar aopensamento a segurança de que, ain-da que existindo o antagonismo - atéentão pensado, mas inimaginável - éimaginável (e isto, graças às categoriasespeculativas da contradição e de

superação), expressou, idealmente, aidéia de que existe finalmente, apesare graças aos antagonismos, uma solu-ção que os mantem e os supera; umasolução legítima. Para Hegel, porexemplo, a solução é o Estado comomonarquia constitucional (o equiva-lente "razoável" da irônica realeza dosfilósofos proposta por Platão).

4. Quando Platão e Hegel, irônica erazoavelmente, construíam uma dialéti-ca tranqüilizadora, tinham pelo menosa seriedade de descrever, de analisar, desublinhar os antagonismos, ainda que ofizessem para reduzi-los. Hoje, o concei-to se apaga. Dialética não é mais que oadjetivo cômodo que cobre o materialsem selecionar da retórica filosófica, do"materialismo dialético" de Roger Ga-raudy ao "hiper-empirismo dialético" deGeorges Gourvitch. Ficam as cinzas; ficaa prática hipócrita que as instâncias

François Chatelet1

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políticas, os técnicos dos "meios de co-municação de massa", os pedagogos,os professores de moral, os araltos dosdiversos ecomunismos nos impõem.Fica o diálogo.

5. A prática filosófica do diálogo (naobra de Platão, de Malebranche, deBerkeley, entre outros) - como a docurso, da meditação, da exposição crí-tica - tem uma significação teórica queimportaria elucidar. Hoje, o chama-mento feito à prática do diálogo sequertem esta justificação conceitual. Ins-creve-se diretamente e sem vergonhano jogo das operações ideológicas. Seum conflito surge, rapidamente se che-ga a um momento no qual algumas al-mas boas propõe que se institua umdiálogo. Supõem, assim, que existe re-almente um terreno neutro, exterior àsforças em conflito, no seio do qual po-derão as posições intercambiar-se, noqual cada parte poderá compreender"o ponto de vista" da outra e, com isso,se estabelecerá um "encontro", enten-dido como caminho empírico da verda-de. Em torno à mesa redonda do diálo-go, o enfrentamento se torna razoável,as perspectivas tranqüilizantes e sem-pre renovadas da reconciliação se de-senvolvam, a boa vontade do ministrodo Trabalho (ou do comissário do po-vo) está disposta a coincidir com a dosecretário geral do Sindicato, a do coro-nel com a do camponês.

6. É um fato que freqüentemente aopinião do ministro coincida com a dosecretário sindical e que há, entre eles,um terreno de entendimento; mas o étambém porque o ministro é um antigosecretário sindical e porque o secretáriojá se imagina ministro. A coincidência,contudo, é menos freqüente quando setrata do coronel e do camponês! A refe-rência contemporânea ao diálogo é aimpostura por excelência. Não há posi-ção neutra, imparcial - tanto faz que sepretenda determiná-la psicologicamen-te (psico-sociologicamente), logica-mente, transcendentalmente, cientifica-mente: o diálogo (e seus pastiches mo-

dernos: a concertação, a participação...)é precisamente uma ilusão, que dá àsalmas boas e formosas a ocasião deagitar-se moralmente, e aos que detêma força a ocasião de legitimar discursiva-mente seu poder.

7. Como recordou André Glucks-man2, a ilusão se caracteriza pelo fatode que desvia a energia para um simu-lacro. Hoje, o diálogo é o simulacro dadiscussão. Pois é raro - e este é umdos argumentos dos defensores dodiálogo -, quaisquer que sejam a gravi-dade do conflito e a importância doque nele se ventila, que seja semprepossível chegar a um acordo. Trate-sedo amor, da guerra ou da revolução,são necessárias certas pausas. Estastransladam provisoriamente o conflitopara a linguagem, sem retirar-lhe nadade sua agudeza. Pode-se concordarem chamar a esta prática discussão enão debate, pois este último termocheira à retórica, à polêmica e remeteà sofística dos jornalistas. Desta discus-são, não surge luz alguma - certas for-ças nela se opõem, diferenciam-se emoutro nível. Ela não é senão o meio deentabular ou de prosseguir um com-bate, quando seria absurdo, para asduas partes, para uma ou para a outra,levar o antagonismo até a eventualida-de de um aniquilamento de uma dasforças contendoras. Antes, durante edepois da discussão, não se instituiunenhuma comunicação, nenhuma"compreensão". Os adversários fala-ram, porque a palavra é também umaforça; eles jamais acreditaram que seerigia, com isso, um tribunal supremocapaz de julgar - qualquer que fosse omodo - quanto à verdade de tal ouqual posição. Afirmaram, avaliaram,prepararam por outros modos os futu-ros combates.

8. Decididamente, Tucídides éexemplar também a respeito disso. Ohistoriador - que foi político e estrate-ga - conhece bem a força da lingua-gem persuasiva e convincente. Cadafato importante da História da guerra

do Peloponeso é pontuado por uma"dupla exposição", que põe em evi-dência dois caminhos possíveis e osargumentos que militam a favor desteou daquele: paz ou guerra, suavidadeou severidade, rapidez ou lentidão,presença ou abstenção. O discurso du-plica, assim, aprofundando, prospecti-va ou retrospectivamente, a ação mili-tar. Mas, jamais, exceto talvez, em rela-ção ao "testamento" de Péricles, o dis-curso se erige em instância exterior elivremente legisladora. A discussão cé-lebre entre os atenienses e os milia-nos, antes de que aqueles fizessemuma carnificina com estes, não tende aestabelecer uma verdade que teria porfunção legitimar a conduta de um oude outro dos interlocutores. A relaçãodas forças está colocada, pura e sim-plesmente, com suas conseqüênciaspráticas.

9. A dialética - platônica ou hegelia-na, que importa! É a mesma, no fundoe na superfície, é o procedimento lógi-co inventado pelo pensamento espe-culativo para tratar de definir o lugarda verdade. O diálogo, tal como é en-tendido hoje, é, no seio da ideologiacontemporânea, a expressão insípida,miserável, desta tentativa. De acordocom a dialética especulativa, cujo fim éreduzir os antagonismos, expressando-os como termos contraditórios e de-pois suprimindo-os, pode-se e deve-sedesenvolver uma crítica teórica; deacordo com a prática contemporânea,pode-se apenas denunciá-la comosubterfúgio.

Notas1. Exposição feita no XIV Congresso das So-ciedades de Filosofia de língua francesa, Nice,setembro de 1969. Publicado originalmenteem Études pjhilosophiques, julho-setembrode 1970, PUF, Paris. Esta tradução está sendofeita a partir da edição espanhola publicadaem Preguntas y Réplicas. Em busca de las ver-daderas semejanzas, Fondo de Cultura Eco-nômica, México, 1989, pp. 380-384 por Ed-mundo Fernandes Dias.2. Ver nota anterior

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IntroduçãoA eleição de Luís Inácio “Lula” da Silvagerou grandes expectativas na centro-esquerda. Para a maioria dos escritoresde esquerda, ela anunciava uma novaépoca de mudanças progressistas que,embora não revolucionárias, significa-riam o “fim do neoliberalismo”. Figurasreligiosas progressistas destacadas, co-mo Leonardo Boff, anunciaram “mu-dança” iminente, que desafiaria ahegemonia dos EUA e levaria a umagrande participação popular. Frei Betto,um colaborador muito próximo a Lula,lançou um ataque virulento a críticosque questionaram algumas das no-meações feitas por Lula no qual lem-brou as raízes populares do presiden-te como ex-metalúrgico e líder sindicaldurante um quarto do século anterior.Olívio Dutra e Tarso Genro, dois mem-bros da ala esquerda do Partido dos

Trabalhadores (PT), nomeados paracargos ministeriais menores no gabi-nete de Lula, exigiram medidas disci-plinares (expulsão ou silenciamento)da senadora dissidente Heloísa Hele-na, que se opôs ao apoio do PT à elei-ção do senador direitista José Sarneypara a presidência do Senado. Progres-sistas da Europa, dos Estados Unidos eda América Latina, bem como esquer-distas e seus movimentos, suas ONGse seus jornais, uniram-se à comemora-ção da eleição presidencial de Lula, esua “agenda progressista” e sua "lide-rança na luta contra o neoliberalismo eglobalização”. Enquanto mais de100.000 participantes do Fórum SocialMundial de Porto Alegre, em janeirode 2003, saudavam Lula como heróida esquerda e precursor de uma novaonda de regimes esquerdistas (junta-mente com os presidentes Lucio

PARA ONDE VAI O BRASIL?

“Precisamos da liderança dos EUA para muitas coisas quenecessitamos fazer neste mundo.”

Celso Amorim, Ministro das Relações Exteriores do Brasil, 16 de março de 2003.

“Vamos para a guerra.”George W. Bush, Presidente dos EUA, 17 de março de 2003.

James Petras e Henry Veltmeyer*

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Gutierrez, do Equador, e Hugo Chávez,da Venezuela), alguns dos intelectuaiscorreligionários de Lula (como EmirSader) pediram a Lula que não fosse aDavos fazer a defesa de seu programade investimentos estrangeiros diantedos especuladores mais gananciosos edos investidores mais ricos do mundo.

Além da grande maioria de intelec-tuais, ativistas de ONGs e políticos deesquerda, que apóiam Lula, de modoagressivo e inquestionável, como umanova força progressista, os meiosfinanceiros brasileiros e estrangeiros,as instituições financeiras internacio-nais (Fundo Monetário Internacional -FMI, Banco Mundial, Wall Street, a City(centro financeiro) de Londres e desta-cados líderes de direita, como o pri-meiro ministro britânico Tony Blair e opresidente Bush), elogiaram Lulacomo “estadista” e “líder pragmático”.

Em outras palavras, o grande capital,os banqueiros e os líderes políticos dedireita vêem Lula como aliado na defe-sa de seus interesses contra a esquer-da e os movimentos populares demassa.

Este ensaio analisará e avaliará asexpectativas da esquerda e as percep-ções capitalistas, à luz das realidadespolítica e econômica. A avaliação rigo-rosa do regime de Lula e de sua futu-ra trajetória segue diversos procedi-mentos metodológicos:

(A) O exame da dinâmica históricado PT. O PT não pode ser compreendi-do olhando-se simplesmente as suasorigens, quase um quarto de séculoantes. Os partidos políticos evoluem,ao longo do tempo, assim como ofazem suas relações com a sua baseoriginal de apoio social, suas fontes definanciamento, sua composição parti-

dária, participação dos filiados noscongressos e na estrutura interna doPartido, como apontaram, há muitotempo, sociólogos clássicos como Mi-chels, Pareto e Weber. No caso do PT,a mudança em relação aos movimen-tos sociais, processos eleitorais e àmáquina estatal é crucial.

(B) A relação entre o PT e os gover-nos federal, estaduais e municipaisonde exerceu o poder. Antes da elei-ção de Lula como presidente, o PT go-vernou ou participou do governo dediversos estados importantes (RioGrande de Sul, Distrito Federal, ) e demuitas cidades grandes e de portemédio, entre elas, Porto Alegre, SãoPaulo, Belém, Brasília, Florianópolis eoutras. Os governos petistas, em todosos níveis, evoluíram nos últimos 25anos, de social-democratas para neoli-berais, e cumprem um importante

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papel ao fornecer ministros, altos fun-cionários e formulações políticas parao governo de Lula.

(C) O programa político-econômi-co do PT que mudou de formas bas-tante significativas, ao longo da décadapassada, e, particularmente, durante acampanha para a eleição presidencialde outubro de 2002. Entusiastasdesinformados da eleição de Lula, so-bretudo observadores estrangeiros, re-ferem-se a programas petistas do pas-sado, sem nenhuma relevância para aspolíticas atuais e as prioridades futurasimediatas. Os julgamentos a priori, asprojeções de desejos profundamenteenraizados e o entusiasmo excessivo eirracional turvaram a avaliação de mui-tos dos torcedores brasileiros e estran-geiros de Lula com relação a suas prá-ticas e prioridades sócio-econômicasatuais.

(D) A campanha eleitoral e, maisimportante, as alianças políticas epactos econômicos que a acompa-nharam são importantes pontos dereferência para uma análise séria epara a subseqüente avaliação do regi-me de Lula. Na questão das campa-nhas eleitorais, o mais importantenão é o lugar comum da "retórica po-pulista", o “misturar-se com o povo”,as promessas sócio-econômicas deempregos e melhores padrões de vi-da ou mesmo as denúncias do neoli-beralismo (que é praxe de políticosde todas as tendências e cores, desdeo final da década de 1980), mas, sim,as alianças sócio-políticas, as visitas aWashington e Bruxelas e os pactoseconômicos com o FMI e outros ‘cen-tros de poder’. Igualmente importanteé a relação das campanhas eleitoraiscom as lutas de massa em curso: ospolíticos, durante as campanhas elei-torais, exigem que os movimentoscessem e desistam da ação direta,para não assustar as elites empresari-ais e financeiras, ou estimulam e

combinam a campanha eleitoral comas lutas de massa em curso? A rela-ção, em períodos eleitorais, entre oscandidatos às eleições pelo partido eos movimentos de massa e suas lu-tas, é um importante indicador da tra-jetória futura de um partido, quandoseus candidatos eleitos assumem opoder.

(E) A (relação) “imagem” e “reali-dade” de um candidato são importan-te indicador da direção do partido eseu futuro caminho político no gover-no. A maior parte da propaganda elei-toral focaliza o perfil anterior do seucandidato, suas origens humildes, seusvínculos passados com as lutas popu-lares e seus gestos "plebeus"; emboraesses dados retrospectivos sejam im-portantes, são eles, não obstante,compatíveis com uma aceitação con-temporânea por parte da elite do po-der e com a transição para pactos combanqueiros e o grande capital. O que édecisivo é onde os políticos estão hojee para onde vão. A análise de classevulgar focalizará origens sociais, aopasso que a análise de classe rigorosaexaminará a mobilidade de classe, osnovos referentes de classe e a resso-cialização política, ao longo da vidaadulta. Há inúmeros exemplos, passa-dos e atuais, de presidentes eleitos

que começaram pobres e progressis-tas e terminaram ricos e reacionários,para não deixar de lado esta hipóteseno caso de Lula. O mais recente é opresidente Toledo, do Peru, que sevestiu de camponês e se apresentoucomo ex-engraxate. Depois, recebeuum título de doutor nos EUA, atuou noBanco Mundial e, depois de eleito, im-plementou um programa neoliberalprofundamente reacionário, apoiadopelo FMI e repudiado pela grandemaioria dos peruanos, inclusive pelamaioria dos eleitores pobres engana-dos pela sua folclórica propagandaeleitoral.

(F) A identidade, o histórico e aspráticas político-econômicas dos ocu-pantes dos principais cargos ministe-riais e na área econômica. As indica-ções ministeriais são decisivas na for-mulação de políticas e na definição docaráter de classe e nacional de umregime. Mais especificamente, os mi-nistérios de Finanças, Economia, Agri-cultura e Ralações Exteriores, assimcomo o Banco Central, determinam osparâmetros e as prioridades das políti-cas sociais e econômicas de um gover-no. Esses ministérios definem os orça-mentos e as possibilidades dos de-mais. Por isso, o que importa não é onúmero de ministros de uma ou outratendência política, mas a perspectivapolítico-econômica dos ministérios-chave e do Banco Central.

(G) As decisões políticas e econô-micas, nas primeiras semanas do re-gime de Lula, e as propostas de polí-ticas estruturais, orçamentos, ‘pactos’e alianças nos proporcionam umabase prática, empírica para avaliar adireção em que aquele regime avan-ça - para onde vai o governo Lula. Asprioridades econômicas do setorpúblico, fixadas pelo presidente e suaequipe econômica com relação a dívi-da externa, orçamento, ALCA, taxas dejuros, FMI, reforma agrária, aposenta-

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As decisões políticas e

econômicas, nas primeiras

semanas do regime de Lula,

e as propostas de políticas

estruturais, orçamentos,

‘pactos’ e alianças nos

proporcionam uma base

prática, empírica para avaliar

a direção em que aquele

regime avança - para

onde vai o governo Lula.

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dorias e legislação trabalhista têm umgrande impacto sobre as classes so-ciais e definem o caráter atual e futu-ro do governo.

Analisaremos o governo Lula deacordo com esse método, de modo achegarmos a uma avaliação realista eobjetiva de sua natureza e suas pers-pectivas, seguindo os sete critériosmencionados acima.

Dinâmica histórica do Partidodos Trabalhadores (PT)

“Marqueteiros” políticos atuaisreferem-se ao PT como um partido detrabalhadores, com base em seus su-postos vínculos com movimentos so-ciais e seu profundo envolvimento naluta de classes e em outras lutas so-ciais. Esse foi o caso, por ocasião desua fundação, há mais de duas déca-das.

O fato mais significativo sobre o PTé sua mudança qualitativa, no decorrerdo último quarto de século. Diversasmodificações fundamentais ocorreramno PT: (1) relação com os movimentossociais e suas lutas; (2) estrutura inter-na do partido e composição dos dele-gados ao Congresso do Partido; (3)programa e alianças políticas; e (4) es-tilo de liderança.

O PT, na sua fundação, era um par-tido com um forte componente demovimentos sociais - trabalhadoressem-terra, favelados, ecologistas, femi-nistas, grupos culturais e artísticos, ati-vistas progressistas, tanto religiosos co-mo de direitos humanos, e os princi-pais novos sindicatos, inclusive os demetalúrgicos, professores, bancários efuncionários públicos. O PT cresceuem número de filiados e em influên-cia, a partir de seu envolvimento dire-to nas lutas dos movimentos. Nesseinício, as campanhas eleitorais com-plementavam, em grande medida, aslutas extra-parlamentares. Com o pas-sar do tempo e os crescentes sucessos

eleitorais, o setor “candidatável” do PTconquistou o controle do partido e,aos poucos, redefiniu o seu papel basi-camente como um aparelho eleitoral,apoiando, da boca para fora, as lutassociais e concentrando seus esforçosdentro do aparelho e das instituiçõesdo Estado, formando alianças de fatocom partidos burgueses. Uma minoriados “candidatáveis do partido”, a alada esquerda, continuou a apoiar osmovimentos - a partir das instituições– oferecendo-lhes defesa legal, denun-ciando a repressão estatal e estimulan-do-os, com sua oratória, nas concen-trações de massa. O que fica claro, noentanto, é que todas as tendênciasdesses “candidatáveis” – a esquerda, ocentro e a direita - não estavam maisatuando na organização cotidiana dasmassas, exceto no período anterior àscampanhas eleitorais.

A segunda alteração básica se deuna composição do partido e dos seuscongressos. Em meados da década de1990, a maior parte do aparelho parti-dário compunha-se de funcionárioscontratados em tempo integral, profis-sionais, advogados, funcionários públi-cos, professores universitários e outrosempregados de classes média emédia-baixa. Os 'ativistas voluntários'desapareceram e/ou foram marginali-zados, à medida que o partido deixavaas lutas de massa e partia para a buscade cargos oficiais e negociatas comgrupos empresariais e com um con-junto variado de partidos de centro-esquerda a centro-direita.

O último Congresso do PT, antes daeleição de Lula, foi esmagadoramente

(75%) de classe média, a maioria fun-cionários públicos, com um punhadode lideranças sindicais, do MST e demovimentos de direitos humanos.

Claramente, o PT não era mais um“partido de trabalhadores”, quer nasua composição, quer nos delegadosaos congressos, quer em sua relaçãocom os movimentos sociais, como an-tes das eleições. Além disso, muitosintegrantes do PT, eleitos em âmbitosmunicipal e estadual, estavam envolvi-dos no mesmo tipo de alianças inter-classes, com grupos empresariais epartidos burgueses, alianças essascom que o PT seguiria na campanhapresidencial de 2002. Em outras pala-vras, a guinada do PT à direita, emnível nacional, foi precedida por pa-drão semelhante, em âmbitos estadu-al e municipal, durante a década de1990. Mais significativo ainda, muitosdos principais dirigentes partidários eassessores futuros de Lula já pratica-vam políticas neoliberais em seus res-pectivos cargos de governo, mesmoquando o programa nacional do parti-do ainda falava de socialismo, anti-im-perialismo e repúdio à dívida externa.

À medida que as eleições para2002 se aproximavam, a direção na-cional do PT, com Lula à frente, elimi-nou todas as referências programáti-cas ao socialismo e ao anti-imperialis-mo, em sintonia com as práticas dosgovernantes neoliberais do partido ecom o apoio majoritário dos seus dele-gados de classe média.

A terceira modificação significativano PT é a evolução de seu programa.Em essência, as mudanças programáti-cas aconteceram em quatro etapas:

(1) Durante a década de 1980, oPT defendia uma sociedade socialistabaseada numa democracia à base deassembléias, ligada aos movimentossociais. O PT exigia o repúdio da dívidaexterna, uma redistribuição de terraem larga escala, com apoio financeiro,

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Do final dos anos 80 ao final

dos anos 90, o PT guinou à

direita; o eixo do poder

deslocou-se para uma

“posição social-democrata”.

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técnico e de comercialização por partedo Estado, a socialização dos bancos,do comércio exterior e da industrializa-ção nacional (com alguns setores pe-dindo a expropriação de grandes in-dústrias, e outros, a co-gestão dos tra-balhadores). Essas posições radicaiseram debatidas aberta e livremente portodas as tendências (desde as marxis-tas até as social-democratas), que atépublicavam seus próprios jornais e di-vergências.

(2) Do final dos anos 80 ao finaldos anos 90, o PT guinou à direita; oeixo do poder deslocou-se para uma“posição social-democrata” (defesa deum Estado de Bem-Estar Social),enquanto a esquerda marxista conti-nuou como uma forte tendênciaminoritária. Os social-democratas con-trolavam o aparelho partidário, cadavez mais de classe média, enquantoos marxistas organizavam a oposiçãodentro do mesmo aparelho, e unspoucos, se é que havia algum, se vol-tando para a organização de massaspara neutralizar sua crescente fraque-za na máquina partidária. Embora oprograma formal ainda mantivesse asexigências radicais iniciais, na prática,a maioria dos novos governadores eprefeitos eleitos não desafiaram asrelações de propriedade existentes. Aala radical das autoridades eleitas emPorto Alegre introduziu a idéia de“orçamento participativo”, envolvendocomissões de moradores, porém nãochegou a municipalizar qualquer ser-viço essencial, inclusive transporte,nem a estimular ocupações de terraou as demandas de trabalhadoressem-terra.

Além disso, o orçamento participa-tivo se baseava em verbas alocadaspelos governos municipal e estadual,que estabeleciam as prioridades orça-mentárias globais. Politicamente, issorepresentou que mesmo a ala radicaldo PT aprendeu a coexistir e cooperar

com as elites financeiras, industriais eimobiliárias.

Isso significou que o debate entre aminoria marxista e a facção social-de-mocrata dominante do PT girava emtorno da linguagem programática, en-quanto as diferenças de práticas entreelas eram, de fato, bastante estreitas.

A terceira fase do PT, mais ou me-nos entre o final dos anos 90 e a cam-panha eleitoral (2002), presencioumais um deslocamento à direita, emtermos programáticos. Até as referên-cias retóricas ao marxismo, ao socialis-mo e ao repúdio à dívida externadesapareceram. A direção do partidoestava em plena transição para osocial-liberalismo, combinando a retó-rica populista contra a pobreza e a

busca de alianças com elites empresa-riais, financeiras e agroexportadorasneoliberais. Durante a campanha, Lularepudiou o plebiscito sobre a ALCA,organizado pelo MST, setores progres-sistas da Igreja e outros grupos deesquerda. Ao invés disso, o PT exigiu“negociações para melhorar a ALCA”.Em junho de 2002, aceitou um pactocom o FMI e acatou suas determina-ções sobre austeridade fiscal, superá-vit orçamentário para pagar os deten-tores de títulos da dívida pública,redução do gasto público e respeito atodas as empresas privatizadas. Osaspectos sociais desse programa libe-ral foram a declaração em favor deuma reforma agrária gradual (dedimensão não especificada), um pro-grama “pobreza zero”, com subsídiosalimentaress a famílias e títulos de

propriedade para posseiros urbanos.A etapa final, na evolução do pro-

grama do PT, começa em 2003, comoum partido na presidência do país. Ogoverno do PT adota um ortodoxoprograma neoliberal. A despeito depromessas de aumento dos gastos so-ciais, o regime de Lula cortou orça-mentos, impôs austeridade fiscal, ele-vou as taxas de juros para atrair ocapital especulativo, e está negocian-do com os EUA a diminuição das bar-reiras comerciais. Em outras palavras,para o governo Lula, suas diferençascom os EUA se referem à conversãode Washington a uma economia demercado conseqüente. A maioria dosesquerdistas, ao redor do mundo, quevêem a vitória do PT e de Lula como oadvento de mudanças sociais básicas,ou pelo menos importantes, para be-neficiar os pobres e redistribuir ariqueza e a terra, fundamentam suasvisões em imagens da realidade hámuito ultrapassadas. No curso dos úl-timos anos, os militantes que cons-truíram o partido por meio dos movi-mentos de base foram substituídospor “neo-lulistas”, funcionários emascensão social, profissionais semnenhuma história de política classista,que entraram no partido para obter osprivilégios do poder e facilitar os con-tatos de negócios. Os remanescentessocial-democratas reformistas, maisantigos, foram deslocados para minis-térios marginais ou, se ousarem ques-tionar a hegemonia neolulista, estãosujeitos a medidas punitivas por "vio-lar a disciplina partidária”.

Assim como aconteceu na Inglater-ra, onde o "New Labour" (Novo Traba-lhismo) de Tony Blair, neoliberal, pró-imperialismo, substituiu o tradicionalPartido Trabalhista, social-democrata,no PT, os estrategistas neoliberais, or-todoxos, de Lula, criaram um "NovoPartido dos Trabalhadores", sem con-teúdo social, sem democracia.

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O PT tornou-se um partido

personalista, organizado em

torno de Lula, como se este

fosse a materialização da

Vontade Popular.

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Liderança e democracia do Partido

Da sua fundação até o final dosanos 80, o PT teve uma vida internavibrante, aberta, livre.

Os filiados compareciam às as-sembléias gerais e debatiam com osdirigentes, tornando-os responsáveispor suas formulações políticas, seusdiscursos e sua presença ou ausênciaem manifestações populares. A dire-ção era coletiva e as diferentes tendên-cias políticas defendiam suas posiçõessem medo de expulsão ou de punição.A observadores externos, especial-mente cientistas sociais convencionaisdos EUA, a vida partidária interna era“caótica”. Mesmo assim, foram feitosgrandes progressos na filiação de no-vos membros, militantes se voluntaria-vam para atividades políticas e campa-nhas eleitorais, e o partido avançava, adespeito da hostilidade universal dosmeios de comunicação de massa.

No final dos anos 80, no entanto, ogrupo de “candidatáveis” da ala soci-al-democrata do partido conquistou ahegemonia e passou a disciplinar e ex-pulsar alguns setores da esquerda ra-dical. As assembléias foram substituí-das por reuniões dos funcionários detempo integral, que, primeiro, imple-mentavam as decisões políticas e, de-pois, abriam-nas para debate com se-us companheiros radicais do aparelhopartidário. Milhares de militantes co-meçaram a se afastar, em parte pelocrescimento do clientelismo, em partepelo surgimento de estruturas verticaise, em grande parte, porque o partidovoltou-se quase exclusivamente para apolítica eleitoral. A maioria dos obser-vadores externos continuaram a escre-ver sobre o PT como se ele fosse, ain-da, a organização "horizontal de base"de anos anteriores, confundindo osdebates entre as diferentes tendências(esquerda, direita e centro) do apare-lho partidário com as assembléias po-

pulares do período inicial. Na eleiçãode 1994 e, com maior intensidade,desde então, o PT tornou-se um parti-do personalista, organizado em tornode Lula, como se este fosse a materia-lização da Vontade Popular, e dos caci-ques do partido competindo em suasbases de poder, nos governos estadu-ais e municipais. Cada vez mais, mili-tantes voluntários foram substituídospor funcionários remunerados, por“apadrinhados” políticos indicadospara cargos públicos e por profissionaisde relações públicas especializados empesquisas de opinião, em construçãode imagem e em propaganda de tele-visão. Foram quebradas normas rigoro-sas sobre o financiamento de eleições,à medida que a cúpula procurou obter

e aceitou recursos de empreiteiros parapagar o novo e dispendioso estilo decampanha eleitoral na mídia.

No novo milênio, o partido era diri-gido por um pequeno núcleo de as-sessores próximos e uma pequena eli-te de dirigentes partidários, comanda-da por José Dirceu, que rodeavam Lulae estimulavam sua liderança persona-lista, centralizada e crescentemente au-toritária. Não havia mais abertura paradebate sério dos programas. O progra-ma do partido – isso foi dito a todos -seria o que Lula quisesse para se can-didatar à presidência ou, mais tarde,para ganhar a campanha.

Lula decidiu, com sua roda de as-sessores, formar uma aliança com oPartido Liberal, de direita, sem consul-tar ninguém, menos ainda a massa dabase, sobre sua mudança estratégica.O mesmo grupo impôs um programasocial-liberal novo, por meio de seu

controle sobre os funcionários de tem-po integral, no Congresso do Partido,pouco antes das eleições de 2002. Adireção pessoal, vertical, de cima parabaixo, tornou-se a marca registrada doPT - algo bem distante de sua estrutu-ra horizontal inicial.

A mudança para estruturas políti-cas autoritárias facilitou o repúdio detodas as demandas de reforma socialque restavam no PT. Lula e seu grupodecidiram não apoiar o plebiscito so-bre a ALCA, apesar de 11 milhões debrasileiros terem dele participado emais de 95% terem votado contra aALCA. Os neo-lulistas viram no plebis-cito uma ameaça às suas alianças coma direita e, o mais importante, à suareaproximação com a Casa Branca deBush. Conforme o programa tradicio-nal do PT ia sendo descartado e aabertura de Lula para a direita se apro-fundava, seus assessores projetaramcada vez mais a imagem de Lula como“o homem do povo”, o “nordestinocompassivo”, o “presidente metalúrgi-co”. Lula desempenhou com perfeiçãoo duplo papel de neoliberal e de “tra-balhador-presidente”: para os favela-dos, ele distribuía abraços, lágrimas,apertos de mão e promessas; para oFMI, ele garantia superávits orçamen-tários para pagar os detentores dostítulos da dívida pública, a demissãode funcionários públicos e a promoçãodas elites agroexportadoras.

O PT, ao contrário da maioria dosneo-lulistas, é um partido que aspira arepresentar uma aliança entre grandesindustriais e interesses do agronegócionacionais, e bancos estrangeiros: espe-ra manter a lealdade dos trabalhado-res por meio de “pactos sociais” ba-seados em acordos entre patrões esindicatos, que permitam aos empre-sários reorganizar o local de trabalho,demitir trabalhadores para diminuircustos, e aumentar o número de em-pregados de meio expediente e tem-

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 195UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Lula desempenhou com

perfeição o duplo papel

de neoliberal e de

“trabalhador-presidente”.

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porários. Em troca disso, os líderes sin-dicais receberão retribuição monetáriae simbólica. A nomeação de petistasde esquerda para os Ministérios da Re-forma Agrária e do Trabalho visa apazi-guar os sindicatos e o MST, com repre-sentação simbólica, não substantiva. Atarefa dos ministros de esquerda épregar “paciência” e fazer discursos ra-dicais inconseqüentes, em reuniões detrabalhadores da indústria e ruraissem-terra. Todos os ministros de es-querda enfrentam orçamentos limita-dos e uma estratégia econômica pró-empresarial que minarão quaisquerprogramas de reforma substanciais.Eles têm que suplicar aos ministros daárea econômica, dominantes e neoli-berais, qualquer desembolso financei-ro residual, uma iniciativa com poucaschances de sucesso. Alguns ministrosde esquerda podem renunciar, mas amaioria se adaptará à ortodoxia liberale argumentarão em defesa do quechamam de “novo realismo” ou “pos-sibilismo”.

O PT, como movimento dinâmicocom base na classe trabalhadora urba-na e camponesa, está morto. Vidalonga aos neo-lulistas e a seu líder pa-ternalista!

A campanha eleitoral e a política do governo de Lula

O passado pesou fortemente sobreo voto das massas em Lula e no PT; opresente e o futuro, no entanto, abremnovas esperanças e perspectivas paraos banqueiros estrangeiros e as elitesnacionais. É importante que se tenhaem mente essas duas linhas de per-cepções e interesses, distintas e polari-zadas, quando se analisam o apeloeleitoral de Lula entre a massa de po-bres e as políticas econômicas pró-empresariais que promoveu, antes edepois de sua eleição. Os acordos e ospactos sociais de Lula, durante suacampanha eleitoral, refletem a evolu-

ção do PT, na década anterior, e pre-nunciaram as políticas neoliberais or-todoxas que empreendeu imediata-mente depois da posse.

Diversos fatores fundamentais,durante a campanha, prefiguraram asnomeações ministeriais e as políticasneoliberais seguidas por Lula, após suaeleição: (1) os seus assessores econô-micos e de campanha; (2) a escolhados aliados políticos; (3) o caráter doprograma sócio-econômico; (4) oacordo com o FMI; e (5) as promessasde se encontrar com autoridades dosEUA, com banqueiros e investidoresestrangeiros, e com as elites industriaise agroexportadoras domésticas.

Um pequeno núcleo de assessoresdesempenhou a função maior de mol-dar a campanha presidencial de Lula -assessores conhecidos há muito tem-po por suas credenciais neoliberais.

Com efeito, Lula passou por cima detodas as normas democráticas e esta-tutos do partido na organização dacampanha, inclusive no processo deselecionar seu parceiro de chapa, ocandidato a vice-presidente, e de for-mular seu futuro programa. Três asses-sores se destacam. Antonio Palocci, ex-prefeito petista de Ribeirão Preto, noEstado de São Paulo, que coordenou aplataforma da campanha do PT e esta-beleceu sólidos laços com a elite em-presarial. Foi o principal porta-voz doPT sobre política econômica, durante acampanha, e chefiou a equipe de tran-sição, após as eleições. Palocci tam-bém projetou o acordo do PT com oFMI e foi o arquiteto das políticas eco-nômicas ortodoxas monetaristas e deausteridade fiscal. Posteriormente, Lu-la o nomeou para o Ministério da Fa-zenda. Como prefeito de Ribeirão Pre-to, Palocci se aliou à elite empresariallocal e barões do açúcar (Financial Ti-mes, de 15 de novembro de 2002,p.3). Privatizou as empresas munici-pais de telefonia e água e também,parcialmente, o sistema de transportepúblico municipal. Afora alguns planosde construção de moradias de baixocusto, suas políticas neoliberais foramuniformemente negativas para ospobres. O índice de criminalidade au-

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Um pequeno núcleo de

assessores desempenhou a

função maior de moldar a

campanha presidencial de

Lula - assessores conhecidos

há muito tempo por suas

credenciais neoliberais.

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mentou, assim como as filas nos hos-pitais municipais. Depois de sete anosno governo, somente 17% das águasservidas da cidade estavam sendo tra-tadas. Igualmente grave, as contas deágua e os impostos regressivos subi-ram e o Ministério Público está investi-gando 30 acusações de corrupção nogoverno municipal, relativas a contra-tos de obras públicas. Em conseqüên-cia das políticas reacionárias de Pa-locci, Lula mal venceu as eleições emRibeirão Preto (em contraste com osseus 24 pontos de vantagem, em âm-bito nacional), resultado que provavel-mente irá se repetir na próxima eleiçãopresidencial.

José Dirceu, ex-presidente do PT, éo assessor mais influente de Lula, du-rante quase uma década. Foi a forçaprincipal na engenharia da transiçãoda social-democracia para o neolibera-lismo. Foi nomeado chefe da Casa Civile controla os assuntos diários da agen-da e as nomeações do presidente,além de exercer poder disciplinar so-bre deputados e senadores do PT, paraassegurar que eles votem na linhaneoliberal, no que diz respeito a no-meações, legislação e prioridades.Dirceu já demonstrou sua mão pesadaquando ameaçou expulsar a senadoraHeloísa Helena por ela se recusar avotar a favor de Henrique Meirelles, ex-executivo principal do Banco deBoston, para a presidência do BancoCentral, e em José Sarney, senador dedireita, para a presidência do Senado.

O terceiro assessor próximo a Lula,durante a campanha, foi Marcos Lis-boa, professor universitário, liberal or-todoxo e ferrenho monetarista. Se-gundo a Folha de São Paulo (22 dedezembro de 2002), ele foi escolhidopor Palocci para formular a estratégiaeconômica de Lula. Faz parte de umnumeroso grupo de neolulistas quepularam para o palanque de campa-nha de Lula, nas suas últimas sema-

nas, quando ficou claro que Lula ga-nharia. Este círculo mais próximo deassessores é apoiado por uma rodamais ampla de senadores, governado-res e prefeitos neoliberais, fortementealiados a interesses empresariais e quepromoveram políticas de privatização.

Esses assessores-chave, juntamen-te com Lula, decidiram sobre as alian-ças políticas para promover a sua elei-ção. A estratégia consistiu, primeiro,em consolidar o controle sobre o PT,para assegurar o apoio nas cidadesgrandes, em concentrar poder na cú-pula e, na seqüência, em voltar-se paraa direita neoliberal, para conquistar oapoio das pequenas cidades e deáreas rurais atrasadas e, o que é maisimportante, o financiamento do gran-de capital. Lula escolheu Alencar, doPartido Liberal, como parceiro de cha-pa, candidato à vice-presidência. Issotrouxe para Lula apoio de uma minoriasubstancial de grupos empresariaisbrasileiros e de grupos evangélicos dedireita que apoiavam Alencar, ele pró-prio um dos capitalistas têxteis maisricos do país e nada amigo dos sindi-catos, muito menos dos de trabalha-dores das suas indústrias.

Embora a esquerda do PT tenhafeito objeções verbais, acabou por en-golir a decisão de Lula, já que nãotinha outro recurso, ou qualquer chan-ce de alterar a escolha, uma vez que aquestão nunca havia sido debatidafora do círculo de Lula. Dirceu, Paloccie seus aliados partidários regionais de-dicaram-se, então, a formar pactos po-líticos com partidos de centro-direita ede direita, por todo o espectro político,em diferentes Estados do país. Em al-guns casos, os pactos da direção na-cional com a direita minaram candida-tos locais do PT, levando o partido àperda de vários governos estaduais. Oque fica claro, dessas alianças eleito-rais com partidos de direita, é que elasnão foram iniciativas "oportunistas" ou

meramente táticas eleitorais. Ao con-trário, as alianças coincidiram com aideologia neoliberal no interior do cír-culo mais próximo de Lula e entre se-tores fundamentais dos representan-tes do PT no Congresso. Os novos alia-dos da direita, mais os neolulistas quehaviam ingressado recentemente noPT, serviam como um contrapeso à es-querda do PT, reduzindo mais a suainfluência no partido e no governo. Is-so ficou evidente no caso de dois fatosimportantes durante a campanha: oprograma do PT e seu pacto com oFundo Monetário Internacional.

Lula e sua equipe neoliberal fize-ram um esforço consistente e coeren-te para demonstrar suas credenciaisneoliberais a diversos grupos-chave,entre eles o centro financeiro de WallStreet, o governo Bush, o FMI e as prin-cipais elites financeiras e industriaisbrasileiras. Palocci foi uma ponte fun-damental em todas essas negociaçõescruciais.

O programa eleitoral do PT con-templou todas as principais preocupa-ções das elites financeiras e industriais.As empresas privatizadas seriam res-peitadas. Os pagamentos da dívida ex-terna continuariam. Políticas fiscais rí-gidas seriam rigorosamente adotadas.A "reforma" trabalhista e da previdên-cia estaria no topo da agenda (reforma= enfraquecimento dos direitos sindi-

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 197UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

O programa do PT era

uma nítida continuação

das desastrosas políticas

neoliberais do presidente

Fernando Henrique Cardoso,

que encerrava seu mandato,

e, em alguns casos,

até uma radicalização

da sua agenda liberal.

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cais e da legislação trabalhista, e redu-ção das aposentadorias e pensões dosetor público). Os salários não seriamindexados, mas os títulos e os paga-mentos da dívida, sim.

O programa do PT era uma nítidacontinuação das desastrosas políticasneoliberais do presidente FernandoHenrique Cardoso, que encerrava seumandato, e, em alguns casos, até umaradicalização da sua agenda liberal.

Para demonstrar ainda mais suaortodoxia liberal aos banqueiros e in-dustriais, a equipe de Lula assinou umpacto com o FMI, apenas poucas se-manas antes de sua vitória eleitoral.Em troca da garantia de um emprésti-mo de US$30 bilhões, por um períodode quatro anos, Lula concordou emcumprir rigorosamente todas as condi-ções tipicamente retrógradas fixadaspelo FMI. Uma vez empossado, Lulaaté foi além dessas duras medidas. Oacordo com o FMI abrangia as típicasmedidas recessivas do controle infla-cionário mediante renúncia ao estímu-lo do crescimento com injeção decapital novo, a aceitação do desastrosoprograma de privatizações desenca-deado pelo presidente Cardoso e umameta de superávit orçamentário (alémdo que é desembolsado para o paga-mento de juros) de 3,75% do ProdutoInterno Bruto, garantindo, assim, ante-cipadamente, que pouco ou nenhumrecurso estaria disponível para quais-quer das promessas, feitas por Lula, doprograma de "pobreza zero", sem falarno financiamento de um abrangenteprograma de reforma agrária.

Lula nomeou um ex-presidente deum banco de investimentos multina-cional dos EUA (Fleet Boston GlobalBank), Henrique Meirelles, para co-mandar o Banco Central. Meirelles ha-via apoiado a ortodoxa agenda neoli-beral de FHC e admitiu ter votado emJosé Serra, adversário de Lula, na elei-ção presidencial. O Ministério da Fa-

zenda está nas mãos do neoliberal or-todoxo Antonio Palocci, da extrema-direita do PT. Luiz Fernando Furlan, omilionário presidente da agroindústriaSadia, foi nomeado por Lula para o Mi-nistério do Comércio e Desenvolvi-mento. Roberto Rodrigues, presidenteda Associação Brasileira de Agronegó-cios e ferrenho defensor de lavourastransgênicas, foi escolhido para o Mi-nistério da Agricultura (Financial Ti-mes, de 17 de dezembro de 2002,p.3). Como porta-voz dos maiores gi-gantes multinacionais de produtos pri-mários (“commodities”), Rodrigues sejunta à Monsanto, o grupo internacio-nal voltado para a agricultura e biotec-nologia e que trava, há muito tempo,uma batalha para permitir as vendasdas sementes de soja geneticamentemodificada (GM Roundup Ready). Aequipe econômica de Lula, compostapor ideólogos neoliberais e milioná-rios, esboçou a agenda pró-grande ca-pital, antes mesmo de ser empossada.

Desde o início, ficou claro que asexpectativas populares entre os 52milhões de eleitores de Lula e os200.000 que festejaram a sua posseseriam profundamente frustradas, logoque essa equipe econômica começoua aplicar a agenda do FMI. Lula am-pliou ainda mais o poder da direita aonomear Gilberto Gil, que apoiara FHC,como Ministro da Cultura, e CristóvamBuarque, ex-governador de Brasília

pelo PT e grande defensor das privati-zações, como Ministro da Educação, eo ex-embaixador de FHC nos EUA,Celso Amorim, como Ministro dasRelações Exteriores. Para apaziguar acentro-esquerda do PT, Lula fez váriasnomeações de funcionários para mi-nistérios que serão, em grande medi-da, impotentes, tendo em vista as rígi-das políticas fiscais e monetárias im-postas pela equipe econômica empre-sarial de Lula. Ao cooptar a esquerda,destinando-lhe os ministérios margi-nais, Lula espera neutralizar as tensõespopulares e cultivar ilusões entre os lí-deres dos movimentos sociais de queo seu regime é "equilibrado". Para ossete sindicalistas, as quatro mulheres eos dois negros no gabinete, a mobili-dade ascendente supera preocupa-ções com políticas neoliberais. Para as-segurar a implementação de políticasneoliberais, Lula está tentando aprovara emenda constitucional que tornará oBanco Central mais sensível a investi-dores e banqueiros estrangeiros, tor-nando-o “autônomo” em relação aolegislativo nacional e ao presidente.

Paralelamente à escolha de gran-des capitalistas para o gabinete, aequipe de Palocci, Dirceu e seus asses-sores econômicos rapidamente semovimentaram para demonstrar sualealdade ao imperialismo dos EUA, àsgrandes casas de investimento e à eliteindustrial brasileira. Entre a eleição deLula e sua posse, seus assessores neo-liberais garantiram aos EUA que aALCA (a Área de Livre Comércio dasAméricas) era um quadro preliminarpara negociações. Três semanas após aeleição de Lula, Peter Allgeier, vice-representante comercial dos EUA, de-clarou: "Nós seremos capazes de tra-balhar com o novo governo (de Lula)em questões comerciais abrangentesna Organização Mundial do Comércio,na ALCA e bilateralmente. O meu sen-timento é muito favorável, após ter

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Ficou claro que as

expectativas populares entre

os 52 milhões de eleitores

de Lula e os 200.000 que

festejaram a sua posse

seriam profundamente

frustradas, logo que essa

equipe econômica começou

a aplicar a agenda do FMI.

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conversado com várias pessoas ligadasao presidente-eleito" (Financial Times,de 22 de novembro de 2002, p.4).Imediatamente após a eleição, a equi-pe de Lula já estava assentando asbases para estabelecer estreitos laçoseconômicos com o imperialismo dosEUA, um ponto não percebido pormuitos dos intelectuais brasileiros deesquerda, como Emir Sader, que conti-nuaram a elogiar a política externanacionalista de Lula (Punto Final, dedezembro de 2002, p.2). Algumas se-manas antes da posse, Lula se encon-trou com Bush, em Washington, quan-do os dois acertaram uma reuniãocomercial de cúpula, para o segundotrimestre de 2003. Além disso, Lulatambém se encontrou com o repre-sentante comercial dos EUA, RobertZoellick, para discutir como a presidên-cia compartilhada ("co-chairs") dasnegociações sobre a ALCA poderiamacelerar sua implementação (FinancialTimes, de 22 de janeiro de 2003,p.12). A posição do PT favorável àALCA e aos EUA ficou evidente quandoLula se recusou a apoiar os plebiscitossobre a ALCA e a base dos EUA, emAlcântara, no Maranhão, apesar dosseus mais de 10 milhões de votantes.A decisão, tomada por Lula, de repu-diar os 95% dos votantes contra aALCA e a base dos EUA e de partir parauma subordinação maior, imediata-mente após as eleições, mostra omaciço engodo perpetrado por suacampanha eleitoral. À medida que aposse de Lula se aproximava, o núcleoneoliberal, no comando do governo,deixou claro que a austeridade orça-mentária e as taxas de juros altas te-riam precedência sobre iniciativas dedesenvolvimento do país e redução dapobreza.

Embora muitos petistas de esquer-da tivessem dúvidas sobre a aliança deLula com o núcleo duro da direita neo-liberal, inclusive sobre pactos eleitorais

com o ex-presidente José Sarney e oscorruptos ex-governadores de SãoPaulo, Orestes Quércia e Paulo Maluf,continuaram eles a classificar o regimede Lula como um governo “em perma-nente disputa e tensões”, sem uma di-reção fixa. Cegos pela presença de ex-esquerdistas em cargos ministeriaismenores, não perceberam os profun-dos vínculos estruturais e políticos dosprincipais formuladores da políticaeconômica e externa.

Lula “apertou todos os botões” pa-ra agradar a Bush. Criticou publica-mente os presidentes Chávez, da Ve-nezuela, e Fidel Castro, de Cuba, antesde sua posse. O discurso de posse deLula foi uma obra prima de duplicida-de - destinado tanto a levar seus apoi-adores das classes baixas a dançar narua quanto a assegurar aos banqueirosestrangeiros que o seu governo era “ogoverno deles”. O discurso falava de"mudanças", "novos caminhos", e do"esgotamento do modelo (neolibe-ral)", que ele, então, qualificou, ao sereferir a um "processo gradual e contí-nuo" baseado em “paciência e perse-verança". Mencionou, então, o “fomezero” como a prioridade de seu gover-no. Falou de reforma agrária e de de-senvolvimento do mercado interno,mas também saiu em defesa das elitesagroexportadoras e do livre comércio econtra o protecionismo e subsídios.Após ter nomeado os neoliberais maisrígidos para todos os principais postosda área econômica, ele não poderiatomar um "novo caminho". Após assi-

nar o acordo de austeridade orçamen-tária com o FMI, não haveria como elefinanciar novos empregos e o "fomezero". Ao priorizar as medidas anti-inflacionárias concebidas pelo FMI,não haveria qualquer modo de Lulabaixar as taxas de juros para promovero mercado interno.

O discurso duplo oculta uma práti-ca única, a de continuar e aprofundaro mesmo modelo que havia denun-ciado como produtor de estagnação efome. Uma vez no cargo, Lula logo de-monstrou o vazio de suas promessasde bem-estar social.

Presidente Lula no poder: forçando o neoliberalismo ao limite

Os neoliberais nomeados por Lulapara posições econômicas estratégicasestabeleceram o arcabouço econômi-co estratégico para a formulação depolíticas macroeconômica, microeco-nômica e social. Para compreender oque ocorreu, desde que Lula assumiu,é fundamental tanto entender a filoso-fia subjacente que orienta seu governoquanto ignorar suas encenações tea-trais perante as massas e seus gestospopulistas destinados a apaziguar ospobres, os movimentos sociais e osdissidentes do PT.

A filosofia operacional do governodo PT possui vários postulados bási-cos: (1) o Brasil está numa crise que sópode ser enfrentada por meio da im-plementação das políticas de austeri-dade promovidas pelas instituições fi-nanceiras internacionais, para conse-guir novos fluxos de empréstimos e in-vestimento estrangeiros, identificadoscomo os principais agentes de desen-volvimento (Financial Times, de 16 dejaneiro de 2003, p.2); (2) o Brasilsomente crescerá mediante a ofertade incentivos a grandes empresasnacionais, ao agronegócio e a multina-cionais estrangeiras (ver: “Lula em Da-

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 199UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

O Brasil está numa crise

que só pode ser enfrentada

por meio da implementação

das políticas de austeridade

promovidas pelas instituições

financeiras internacionais.

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vos”, Financial Times, de 27 de janeirode 2003, p.2). Esses incentivos inclu-em redução de impostos e de benefí-cios trabalhistas e o fortalecimento dasposições patronais nas negociaçõescom os trabalhadores; (3) o livre mer-cado, com o mínimo de intervenção,regulamentação e controle estatais, éessencial para solucionar os proble-mas de crescimento, desemprego edesigualdades. A principal tarefa fixadapela equipe econômica é a de promo-ver as exportações brasileiras para osmercados estrangeiros – contra osmercados internos – bem como pres-sionar os EUA e a Europa para liberali-

zar seus mercados (Financial Times,de 16 de janeiro de 2003, p.2); (4) ocrescimento resultará da estabilidadede preços, dos fluxos de capital estran-geiro, de uma política fiscal rígida e,acima de tudo, do pagamento rigorosodas dívidas públicas e externas, dondea necessidade de cortar os orçamentosgovernamentais, particularmente dossetores sociais, de acumular um supe-rávit orçamentário para o pagamentoda dívida, e de controlar a inflação.Uma vez alcançada a estabilidade (o"remédio amargo"), a economia alçarávôo para um crescimento das exporta-ções impulsionado pelo mercado, fi-

nanciando os programas de combateà probreza e à fome. Gastos sociais"prematuros", a elevação do saláriomínimo, os programas de combate àpobreza, e a reforma agrária "desesta-bilizariam" a economia, minariam a"confiança do mercado" e levariam aoaprofundamento da crise e ao agrava-mento da situação do povo (Tiemposdel Mundo, República Dominicana, de20 de fevereiro de 2003, p.7).

Esses pressupostos filosóficos edoutrinários neoliberais da políticaeconômica de Lula proporcionam abase para análise e crítica. Em primei-ro lugar, devemos considerar a expe-

riência histórica recente do Brasil, paraavaliar criticamente tais pressupostosteóricos, e, em seguida, voltar-nos paraas políticas específicas propostas ouimplementadas pelo governo Lula eavaliar seu provável impacto sobre odesenvolvimento econômico, as desi-gualdades de classe e a questão social.

Lula, tanto em termos da filosofianeoliberal que orienta sua equipe eco-nômica, quanto nas práticas econômi-cas concretas, representa uma conti-nuidade, uma ampliação e um apro-fundamento das desastrosas políticasneoliberais seguidas pelo governo deF.H.Cardoso. Em todas as principaisquestões de política econômica - pa-gamento da dívida, livre mercado, pri-vatização, monetarismo, o governoLula segue as fracassadas políticas doregime de FHC (Financial Times, de20 de dezembro de 2002, p.2). Essaspolíticas conduziram a oito anos deestagnação econômica, a profundasdesigualdades sociais, ao crescimentodo endividamento e a um quase co-lapso de um sistema financeiro de-pendente quase inteiramente dosvoláteis fluxos externos de capital es-peculativo. No mínimo, a política eco-nômica de Lula amplia a agenda libe-ral, ao procurar reduzir aposentadoriasde assalariados, aumenta a fatia doorçamento destinada aos pagamentosda dívida e supera grandemente FHCem termos de cortes no orçamentosocial. Se consideramos F.H.Cardosoum neoliberal ortodoxo, o governo Lu-la pode ser classificado como um tali-bã neoliberal.

Implementando o dogma neoliberal

Uma coisa deve ser dita sobre aequipe econômica de Lula. Ela nãoperdeu tempo em cumprir suas pro-messas feitas, antes da posse, a insti-tuições financeiras e banqueiros inter-nacionais e às elites industriais locais.Não há gesto de conciliação (FinancialTimes, de 24 de janeiro de 2003, p.2)entre os 52 milhões de eleitores comexpectativas de melhoria social e ocompromisso de Lula com as eliteseconômicas. Poucos governos ex-esquerdistas mudaram tão rapidamen-te e tão decisivamente para adotar e

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Se consideramos F.H.Cardoso

um neoliberal ortodoxo,

o governo Lula pode ser

classificado como um

talibã neoliberal.

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implementar uma agenda de direita,como fez o governo Lula.

OrçamentoEm sintonia com as exigências com

FMI e as elites econômicas, o governoLula cortou o orçamento em US$3,9bilhões (Financial Times, de 11 de fe-vereiro de 2003, p.66; La Jornada, de11 de fevereiro de 2003). Os cortesincluíram uma redução do salário mí-nimo, dos prometidos US$ 69 paraUS$ 67 mensais, a vigorar em maio de2003, cinco meses após Lula assumiro governo. Dada a forte subida dainflação, o mínimo ficará abaixo donível miserável do governo anterior,de FHC. Mais de US$ 1,4 bilhões, dosUS$ 3,9 bilhões, sairão do setor social.Uma análise mais detida dos cortesno orçamento revela que eles prejudi-carão os programas de alimentação, aeducação, a seguridade social, o tra-balho, o desenvolvimento agrário, ascidades e a promoção social. Os cor-tes dos setores sociais representam,em conjunto, 35,4% do total da redu-ção. Mesmo o tão divulgado projeto“menino dos olhos” de Lula, o "FomeZero", sofreu um corte de US$10milhões, deixando US$492 milhõespara atender aos 40 milhões de brasi-leiros mal nutridos. Os cortes signifi-cam que a verba orçamentada para osfamintos corresponde, por pessoa, aUS$10 por ano, ou US$85 centavospor mês, ou US$2,5 centavos por dia.A principal razão para os cortes, naárea social e em outras, foi aumentaro superávit orçamentário para poderfazer frente aos pagamentos ao FMI eda dívida. Os talibãs neoliberais deLula elevaram o superávit dos 3,75%do PIB, acertados, em junho de 2002,com o FMI (no governo de FHC), para4,25%, em fevereiro de 2003, sob aliderança do ex-metalúrgico e "presi-dente do povo". Em outras palavras,Lula aumentou de US$17 bilhões para

US$19,4 bilhões, ou quase 14% deelevação, a verba orçamentária paracumprir as obrigações da dívida. Oacréscimo de US$ 2,4 bilhões repre-sentou uma transferência direta doorçamento da área social para osdetentores de títulos brasileiros eestrangeiros. Lula transferiu recursosdos paupérrimos e das classes traba-lhadora e média para os muito ricos.

As políticas orçamentárias do go-

verno Lula agravarão, não reduzirão, asinfames desigualdades brasileiras. Osgestos teatrais do presidente, de pedir“perdão” ao povo pobre que nele vo-tou, por impor-lhe esse "remédioamargo", certamente não desperta-rão muita simpatia dos milhões queganham salário mínimo, que verãodeclinar tanto os seus magros rendi-mentos quanto os serviços públicosde que dependem. Certamente oscortes no gasto público não darãoqualquer estímulo à economia, sendomais provável que aprofundem a re-cessão econômica.

Mercados livresTanto Lula como Palocci, seu minis-

tro da Fazenda, rejeitaram qualquerprotecionismo, ampliaram o programade privatização e se recusam a corrigiros piores abusos das empresas privati-zadas. Palocci defende as regulaçõesinternacionais (políticas da Organiza-ção Mundial do Comércio) como ummeio de atrair o investimento estran-geiro, rejeita o protecionismo para as

indústrias locais e privilegia o capitalestrangeiro nas concorrências públicas(para contratos governamentais). Eleargumenta que "o Brasil não quer sefechar. Queremos navegar pelos maresabertos do mercado global." (FinancialTimes, de 16 de janeiro de 2003, p.2).Ele rejeitou qualquer intervenção esta-tal, como “mecanismos artificiais” definanciamento público para estimulara demanda do consumo entre os mi-lhões de brasileiros empobrecidos."Criando-se as condições certas, as for-ças do mercado aumentarão a renda ea produtividade das empresas", segun-do o czar econômico de Lula. Este tali-bã neoliberal convenientemente es-quece que foram precisamente as "for-ças do mercado", no Brasil, que gera-ram pobreza em larga escala e as pio-res desigualdades do mundo, nos últi-mos 100 anos de expansão capitalista.

Pallocci, com o inquestionávelapoio do presidente Lula e do resto daequipe econômica, anunciou a privati-zação de quatro bancos estatais, a“privatização” do Banco Central (apretexto de autonomia em relaçãoaos poderes constituídos) e a promo-ção de uma lei que garante ao capitalestrangeiro 100% do controle de umsetor substancial da indústria de tele-comunicações do Brasil. Diante da in-capacidade da AES, uma companhiade energia elétrica dos EUA, de honrarpagamentos relativos à sua aquisiçãoda Eletropaulo, uma distribuidora deenergia elétrica de São Paulo, os mi-nistros da área econômica de Lularecusaram-se a re-estatizar a empresa,apesar de sua gritante má gestão fi-nanceira (Financial Times, de 26 defevereiro de 2003, p.15).

A crença dogmática nas virtudes docapital estrangeiro como o motor docrescimento deixa o governo Lula cegopara a precariedade e a vulnerabilida-de dessa estratégia de amarrar o de-senvolvimento do Brasil ao capital fi-

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 201UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Poucos governos

ex-esquerdistas mudaram

tão rapidamente e tão

decisivamente para

adotar e implementar uma

agenda de direita,

como fez o governo Lula.

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nanceiro internacional. Por exemplo,durante a última semana de janeiro de2003, a moeda brasileira (Real) per-deu 10% do valor, revertendo ganhosdas três semanas anteriores. A diferen-ça do rendimento ("yield spread") dostítulos brasileiros em relação aos doTesouro dos EUA aumentou 2%, pas-sando a 14%. Declarações de austeri-dade doméstica e outras de cunhoneoliberal não bastaram para compen-sar as tensões internacionais. Comefeito, ao adotar a agenda neoliberal ea dependência financeira, o Brasil se-guirá uma política de austeridade atrásda outra, sofrendo uma austeridadesem fim. O horizonte para 2003 é demais cortes orçamentários, para com-pensar os temores do mercado com aguerra (Financial Times, de 29 de ja-neiro de 2003, p.2). O Banco Centralserá forçado a elevar a taxa de juros,para atrair capital especulativo, em de-trimento de industriais e produtoresagrícolas nacionais. Assim como emtodo outro setor de política econômi-ca, Lula tem consistentemente reverti-do posições: quando foi eleito, prome-teu taxas de juros mais baixas. Duranteos primeiros dias no governo, o BancoCentral aumentou as taxas de 25%para 25,5% e, um mês depois (19 defevereiro de 2003), para 26,5%, impe-dindo, assim, qualquer possibilidadede recuperação econômica e investi-mento nacional.

PreçosA política de Lula para questões

relativas aos consumidores e à saúdedecorre diretamente do dogma neoli-beral e prossegue em completa oposi-ção às expectativas dos seus correligio-nários populares. O governo aprovounovos aumentos de tarifas de empre-sas privadas de serviços de utilidadepública, sobrecarregando os pobres(Financial Times, de 18 de fevereiro de2003, p.4). Em fevereiro, Lula eliminou

controles de preço de 260 produtosfarmacêuticos e prometeu liberar3.000 medicamentos desse controle,em junho de 2003.

Numa estranha virada, para com-pensar o declínio dos padrões de vida,Lula prometeu instalar 4.200 computa-dores para os pobres e dar a eles 10minutos diários de acesso gratuito. Da-da a compressão salarial, o aumentode preços e o potencial de desconten-tamento, Lula está se assegurando dalealdade da Polícia Federal – garantiu-lhe um aumento salarial de 10%.

AposentadoriasO governo Lula, fiel aos senhores

do FMI, aponta o sistema de previden-ciário como fonte dos déficits fiscais.

Ignorando a evasão fiscal generali-zada por parte dos ricos, as conces-sões fiscais por longos períodos e osincentivos às empresas multinacionais,Lula, como um verdadeiro neoliberal,propõe uma redução maciça das apo-sentadorias e pensões, especialmentede servidores públicos. Citando umpunhado de aposentadorias generosasde alguns altos funcionários, Lula estádeterminado a reduzir os benefíciosprevidenciários do setor público paraos baixos níveis do setor privado. Numgesto de divertido charlatanismo, Lulaapresenta a sua reforma da previdên-cia como uma batalha por igualdade:abaixar as aposentadorias e pensõesdo setor público para o nível do priva-do é igualar a miséria, ao passo que

medidas igualitárias progressistas ele-variam as aposentadorias mais baixas.

Os cortes no financiamento da pre-vidência social prometem ser de bi-lhões de dólares, e essas economiasserão dirigidas para a redução de im-postos para a elite industrial. As políti-cas previdenciárias provavelmente irãoagravar ainda mais as desigualdadesde classe, empobrecendo aposenta-dos e pensionistas e enriquecendo aelite industrial. Não é a toa que Lula foiovacionado pelos super-ricos em Da-vos. Conforme Caio Koch Weser, Mi-nistro de Finanças da Alemanha, decla-rou sobre Lula: "O fundamental é queo ímpeto da reforma (neoliberal) apro-veite a enorme credibilidade trazidapelo presidente" (Financial Times, de27 de janeiro de 2003, p.2).

A deliberada manipulação que Lulafaz de sua origem operária para pro-mover uma agenda do grande capitalfoi e é muito apreciada pelos astutosfinancistas, tanto na Europa quantonos EUA.

ALCA e o imperialismo dos EUAEm toda a América Latina, surgiram

movimentos populares de massa pro-testando contra a ALCA.

Milhões de camponeses do Mé-xico, Equador, Colômbia, Bolívia, Para-guai e Brasil bloquearam estradas eexigiram que os governos rejeitassema ALCA. No Brasil, em 2002, foi realiza-do um plebiscito sobre a ALCA, apoia-do pelo MST, por grupos progressistasda Igreja, pela Central Única dosTrabalhadores (CUT) e por partidos deesquerda, exceto o PT. Mais de 10 mi-lhões de eleitores participaram e maisde 95% votaram contra a ALCA e abase militar em Alcântara, Maranhão.Lula recusou-se a participar e determi-nou o não-envolvimento do PT. Eleito,ignorou os 10 milhões de votos contraa ALCA e aceitou ser parceiro dos EUAna direção das negociações para con-

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A deliberada manipulação

que Lula faz de sua origem

operária para promover uma

agenda do grande capital foi

e é muito apreciada pelos

astutos financistas, tanto na

Europa quanto nos EUA.

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sumar o acordo sobre a ALCA.A ALCA é um acordo comercial

abrangente e radical que, se imple-mentado, irá transferir todas as políti-cas sobre comércio, investimento eoutras de natureza econômica parauma comissão econômica dominadapelos EUA, provavelmente ali localiza-da, que supervisionaria a privatização ea aquisição das estatais lucrativas deserviços públicos, petróleo, gás, eoutras indústrias estratégicas que res-taram. Num discurso proferido no Na-tional Press Club (Clube da ImprensaNacional), em Washington, Lula com-prometeu-se a criar um pacto comer-cial no hemisfério ocidental. Prome-teu, também, levar adiante a Área deLivre Comércio das Américas e mos-trou-se extasiado por sua relação como presidente Bush. "Minha impressãode Bush foi a melhor possível." (Fi-nancial Times, de 11 de dezembro de2002, p.5). A principal objeção de Lulae sua equipe econômica à ALCA é queela deve reduzir as barreiras comer-ciais para os grandes agroexportado-res do Brasil. A aceitação, pelo "traba-lhador-presidente", do presidente mili-tarista mais agressivo dos EUA, envol-vido em preparativos de uma guerrade genocídio contra o Iraque e da der-rubada militar do governo de HugoChávez, eleito democraticamente, de-ve atingir de fato o ponto mais baixodo servilismo político na história políti-ca brasileira.

Como demonstrado por muitoseconomistas críticos, a ALCA destruiráa agricultura familiar e a pequenalavoura de subsistência, aumentará onúmero de trabalhadores rurais sem-terra, a fome e a migração em massapara as favelas urbanas, tornando ridí-culo o programa "fome zero" de Lula.A distribuição miserável de ajuda ali-mentar temporária não compensaráos milhões de novos pobres e indigen-tes, gerados pelas suas políticas neoli-

berais doutrinárias. Lula alegou queseu plano de "fome zero" era "muitomais do que uma doação emergencialde comida. Precisamos atacar as cau-sas da fome, dar peixe e ensinar comopescar." (Financial Times, de 31 de ja-neiro de 2003, p.2). Ao invés disso,com a ALCA, Lula estará atacando ospobres, não a fome, e reforçando eaprofundando as causas da fome, nãoas diminuindo.

Na busca das melhores relaçõespossíveis com o presidente Bush, Cel-so Amorim, Ministro das RelaçõesExteriores, procurou intervir no conflitovenezuelano, oferecendo-se para me-diar a disputa entre o presidente Chá-vez, constitucionalista, e o movimentoauto-intitulado "coordenação demo-crática", autoritário, pró-EUA, organi-zando grupos de nações denominados"Amigos da Venezuela". Os chamados“amigos” incluíam a Espanha e os EUA,que apoiaram o golpe fracassado con-tra Chávez, em 11 de abril de 2002. Os"amigos" também compreendiam osgovernos neoliberais do Chile, México,Portugal e, naturalmente, do Brasil.Chávez, que percebeu tardiamente aarmadilha de Amorim, pediu a inclu-são de mais alguns países amigos. Lulae Amorim recusaram o pedido e a ma-nobra brasileira, em nome da oposi-ção apoiada pelos EUA, virou letra

morta. Chávez disse aos "amigos" eseus patrocinadores brasileiros paraficar fora dos assuntos internos da Ve-nezuela. Isso não impediu que Amo-rim declarasse que o regime brasileiroestava aberto para se reunir com osgolpistas venezuelanos (La Jornada,de 22 de janeiro de 2003).

Reforma agráriaA maior concentração de pobreza,

fome e desemprego é encontrada noBrasil rural. O principal problema é agrande concentração da propriedadenas mãos de uma pequena elite e aexistência de 4,5 milhões de campo-neses e trabalhadores rurais de sem-terra. Desde 1983, o Movimento dosTrabalhadores Rurais Sem-Terra - oMST - mediante grande sacrifício e dis-ciplina, ocupou grandes propriedadesrurais e assentou mais de 350.000famílias.

Até o final dos anos 90, Lula pro-metia uma reforma agrária abrangen-te, se eleito. Durante sua campanha,no entanto, exigiu que o MST não seenvolvesse em ocupações de terra -pela primeira vez na sua história, oMovimento atendeu essa exigência.Nos discursos de campanha, Lula pro-curou o apoio de partidos de direitapró-latifundários, prometendo-lhesaplicar a lei com todo o rigor contra“ocupações de terra ilegais” - aquelasfora dos limites da reforma agráriaque propunha. Estranhamente, Lulamanteve silêncio sobre a extensão eprofundidade da reforma que prome-tia. Uma vez empossado, Lula anun-ciou que a meta de reforma agrária,para 2003, seria assentar 5.500 famí-lias, em 200.000 hectares de terra -1/10 do número de famílias assenta-das no governo neoliberal de FHC, e1/20 do que o MST esperava do “pre-sidente do povo”.

Com essa meta, seriam necessários1000 anos para assentar as atuais 4,5

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 203UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Uma vez empossado, Lula

anunciou que a meta de

reforma agrária, para 2003,

seria assentar 5.500 famílias,

em 200.000 hectares de terra

- 1/10 do número de famílias

assentadas no governo

neoliberal de FHC, e 1/20

do que o MST esperava do

“presidente do povo”.

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milhões de famílias sem-terra, e asque viessem depois, um múltiplo de4,5 milhões, ficariam ainda sem terra.No governo, Lula continuou a velhapolítica reacionária de despejo violen-to de posseiros de terras improdutivas.Seu Ministro de Reforma Agrária, deesquerda, anunciou que novos planosseriam divulgados, no segundo semes-tre de 2003.

Vários pontos são claros. As políti-cas agrárias de Lula são um imenso re-trocesso, do ponto de vista da políticapresidencial. Da perspectiva da políticaagrícola, seu governo está totalmentecomprometido com as elites agroex-portadoras, dos grandes proprietários.Suas políticas aumentarão grande-mente as profundas desigualdades nocampo e levarão a um maior descon-tentamento da população rural. É maisprovável que isso provoque conflitossangrentos entre os camponeses sem-terra, em busca de terra, e as políticasde cumprimento da lei e manutençãoda ordem, com respaldo da polícia mi-litar. Sem dúvida, Lula pedirá perdão ederramará algumas lágrimas peloscamponeses mortos, quando passar aabraçar seus novos aliados na ALCA.

Política trabalhista: “Reformas”que beneficiam os patrões

O importante, quando se analisaum líder político, não é saber de ondeele vem, mas para onde ele vai; nãoseu grupo de referência do passado,mas seus grupos de referência atuais efuturos. Observadores políticos equivo-caram-se na análise de Lula, porquefocalizam seu passado distante, seusex-companheiros sindicalistas, nãoseus aliados atuais, banqueiros, em-presários e imperialistas. Ao proporum pacto social entre os trabalhado-res, os empresários e o governo, su-postamente para a melhoria do país,Lula instituiu um Conselho de De-senvolvimento Social e Econômico pa-

ra formular recomendações de políti-cas. A composição e a agenda doConselho revelam o viés de Lula, a fa-vor do empresariado e contra a classetrabalhadora. Dos 82 conselheiros, 41são empresários e 13 são sindicalistas,uma proporção superior a 3 para 1,em favor dos patrões. A finalidade édebater a reforma tributária - reduzirimpostos de empresas - e a da seguri-dade social - diminuir os pagamentosde benefícios a trabalhadores, aposen-tados e outros beneficiários. Questio-nado sobre a preponderância da eliteempresarial no Conselho, Lula defen-deu categoricamente sua tendênciapró-empresariado, enfeitando suas

escolhas com um verniz meritocráticoe apolítico e acusando de nepotismoos críticos. "Este conselho", argumen-tou, “não é um clube de amigos. Nãoestou interessado em saber a filiaçãopartidária (sic) dos conselheiros ou emquem votaram. O que nos interessa éa competência, a capacidade, o talen-to e o conhecimento deles para pensarem prol de seu país.” (Tiempos delMundo, República Dominicana, de 20de fevereiro de 2003, p.7). Convenien-temente, Lula esquece que o talentodesinteressado de seus empresáriospara pensar em prol do país resultounas maiores desigualdades sociais domundo. Lula deliberadamente esque-ce os interesses de classe dos empre-sários precisamente porque eles sãoseus aliados estratégicos na promoção

de políticas neoliberais ortodoxas. Lulae seus principais assessores econômi-cos dependeram constantemente dosaliados neoliberais, dentro do PT e dadireita fora do PT, para implementarsuas políticas antipopulares, contra aclasse trabalhadora. Lula ordenou queos senadores votassem em José Sar-ney, o ex-presidente direitista, de tristefama, para a presidência do Senado(Financial Times, de 3 de fevereiro de2003, p. 4). Sarney é um ardente de-fensor da “reforma” trabalhista de Lula.

As alianças de Lula com a direita jáenredaram seu governo num grandeescândalo. No final de fevereiro, foiprovado que o senador direitista An-tônio Carlos Magalhães havia gram-peado os telefones de mais de 200congressistas, senadores e outras per-sonalidades políticas proeminentes. Osenador apoiou Lula durante a campa-nha presidencial e foi visto como alia-do estratégico para o apoio à agendalegislativa neoliberal de Lula, inclusivea “reforma” trabalhista. Quando inú-meros deputados exigiram audiênciaspúblicas no Congresso Nacional, Lula eseu núcleo de assessores mais próxi-mos ordenaram que os parlamentaresdo PT votassem contra a investigaçãopelo Congresso - manchando grave-mente a imagem do "honesto e trans-parente presidente do povo”.

A estratégia de reforma trabalhistade Lula visa a enfraquecer os sindica-tos, minar as garantias constitucionaisde direitos trabalhistas e reduzir ocusto da mão-de-obra para aumentaros lucros dos empregadores, a pretex-to de tornar os exportadores maiscompetitivos. Sua proposta de legisla-ção elimina as contribuições sindicaisdo setor privado e revoga o impostosindical. Um segundo instrumento le-gal objetiva permitir que os capitalistasfaçam contratos de trabalho que anu-lam benefícios trabalhistas estabeleci-dos em lei (Financial Times, de 26 de

204 - DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

A estratégia de reforma

trabalhista de Lula visa a

enfraquecer os sindicatos,

minar as garantias constitu-

cionais de direitos trabalhis-

tas e reduzir o custo da

mão-de-obra para aumentar

os lucros dos empregadores.

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novembro de 2002). O ex-metalúrgicogolpeia os companheiros de trabalho erecompensa o apoio eleitoral da CUT,coroando sua agenda legislativa comas principais demandas da associaçãode industriais.

O mecanismo de Lula é co-optar aalta burocracia da CUT, oferecendo-lhes cargos e estipêndios como asses-sores de seu governo. O presidente daCUT, João Felício, um dos burocratasco-optados, declarou: "Nós (sic) temosuma certa simpatia pelas reformas,porém elas precisam ser negociadas eimpostas gradualmente." O secretárionacional do PT para assuntos sindicais,Herguiberto Guiba Navarro, declarousecamente o objetivo da reforma tra-balhista: "Vamos fazer uma grandereforma e muitos sindicatos irão desa-parecer" (Financial Times, de 26 denovembro de 2003, p. 8).

Dada a pressão da ortodoxia neoli-beral de Lula e a co-optação dos diri-gentes da CUT, não surpreende que aprincipal oposição da classe trabalha-dora venha da Força Sindical (FS), amoderada central sindical de direita.Em março, os metalúrgicos filiados àFS entraram em greve por causa dadiminuição dos salários reais. A FS estáliderando a luta para reduzir a jornadasemanal de trabalho, de 44 para 40horas, aumentar a indenização por de-missão e ampliar o auxílio-desempre-go (aumentando o período de cober-tura de 5 para 12 meses), e para oreconhecimento legal da representa-ção de trabalhadores no interior dolocal de trabalho. O governo Lula seopõe inflexivelmente a todas as reivin-dicações da FS, alegando serem infla-cionárias e ameaçando com medidasrepressoras contra o que classifica dedemandas políticas, velha manobrausada por todos os regimes de direitaanteriores, antes de baixar o cassetetepolicial na cabeça dos trabalhadoresem greve.

Impostos, salários e empregoDesde que chegou ao poder, Lula

vem jogando todo o peso na reduçãode impostos sobre as empresas, parti-cularmente as industriais, e ao mesmotempo aumenta a carga tributária dosassalariados em 27%. Suas políticastributárias regressivas são justificadascom o argumento da "competitivida-de" capitalista, e os aumentos de im-postos, com o argumento do déficit fis-cal. Enquanto isso, o desemprego so-be, o poder de compra declina e ascrescentes taxas de juros impedemnovos investimentos. Os elevados su-perávits orçamentários para o paga-

mento da dívida solapam o investi-mento público (César Benjamin, CarosAmigos, março de 2003).

No início do governo, Lula e suaequipe econômica previram um cresci-mento superior a 3%. No final de feve-reiro, a maioria dos economistas jáfalava de um crescimento zero percapita (Mario Maestri, "Sem Luz no fimdo túnel", La Insignia, 4 de março de2003). A ortodoxia do regime políticode Lula está provocando maiores desi-gualdades, desemprego e fome. Oapelo de Lula aos bilionários de Davos,em prol de uma nova ordem mundiale contribuições para financiar umfundo contra a pobreza, suscitou ceti-cismo e, mais provavelmente, sorrisosdiscretos e cínicos. “Por que”, pergunta

o Financial Times, “os bilionários de-vem apoiar uma nova ordem quandoestão se dando tão bem na ordemexistente”? (Financial Times, de 27 dejaneiro de 2003, p.2). O apelo de Lulaà caridade dos ricos empresários parao combate à fome demonstra a falên-cia de sua política pública e estratégiaeconômica.

A oposição: governo, partido emovimentos sociais

A estratégia política de Lula é bus-car alianças “amplas” com partidos dedireita, notáveis políticos e grupos reli-giosos, para isolar e neutralizar os so-cial-democratas e esquerdistas de seupróprio partido, os setores progressis-tas da Igreja e os movimentos sociaisdinâmicos, inclusive o MST. Além des-sas alianças dentro do Brasil, Lulaconstruiu sólidos laços com Bush, oFMI e os regimes neoliberais da região,por meio de seu apoio à ALCA, de suaproposta dos "Amigos da Venezuela” -cheios de defensores dos golpes con-tra Chávez, e de sua entrevista (7 demarço de 2003) com o presidentecolombiano Alvaro Uribe, de linhaparamilitar, oferecendo o Brasil como“mediador” para desarmar as guerri-lhas (El Heraldo, Barranquilla, Colôm-bia, 4 de março de 2003). Igualmentesignificativo é o fato de Lula ter tam-bém cooptado um grande setor daesquerda do PT para seu governo, ofe-recendo a ele ministérios menores, emtroca de apoio a seus ministros e polí-ticas neoliberais econômicas e exterior.Entre os colaboradores de "esquerda"estão Marina Silva (Ministra de Meio-Ambiente), Miguel Rossetto (Ministrode Desenvolvimento Agrário, da ten-dência petista Democracia Socialista,trotskista, ou ex-trotskista), Olívio Du-tra (Ministro das Cidades) e Tarso Gen-ro (Secretário Nacional do Conselhode Desenvolvimento Social e Econô-mico). Se Lula fornece credibilidade ao

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 205UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

O apelo de Lula aos

bilionários de Davos, em

prol de uma nova ordem

mundial e contribuições

para financiar um fundo

contra a pobreza, suscitou

ceticismo e, mais

provavelmente, sorrisos

discretos e cínicos.

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programa do FMI por meio da suamassa de apoiadores, com suas cre-denciais populares do passado, osministros da “esquerda” dão uma certalegitimidade às políticas neoliberaisentre os militantes do PT e cultivamilusões entre alguns dos líderes dosmovimentos sociais.

As facções restantes da esquerdado PT, que são críticas da aceitação daALCA, de Bush, do FMI e das políticasneoliberais por Lula, dividem-se emdois grupos. Uma, dentro do governo,defende um conteúdo mais "nacional"para as políticas neoliberais, vínculosmenores com o capital financeiro emais ligações com a classe capitalistanacional. Este grupo, encabeçado pelosenador Aloízio Mercadante e por Car-los Lessa, possui pouca ou nenhumainfluência sobre a direção econômicacentral e restringe sua crítica dentrodos círculos mais próximos da elitepartidária.

Os outros críticos de esquerda in-cluem a corajosa senadora HeloísaHelena, de Alagoas, que atacou publi-camente tanto a nomeação de Hen-rique Meirelles, o preferido de WallStreet, para o Banco Central, como oapoio do PT a Sarney, para a presidên-cia do Senado, assim como suas políti-cas neoliberais (Corriente de Izquier-da, de 13 de dezembro de 2002 e de6 de fevereiro de 2003).

A senadora, ao expressar o senti-mento de angústia e desespero pelaaceitação de políticas neoliberais porLula, após arriscar a vida, por mais deduas décadas, para elegê-lo, fala pormuitos militantes de base do PT: “Étriste e doloroso [ser um adversário domeu partido]. Sei de todos os anos detrabalho dedicado ao PT. Hoje é fácilandar com a estrelinha [símbolo doPT] na lapela, ser neo-lulista ou neope-tista por causa da condição de "pop-star" do presidente e do amplo apoioque a mídia está dando ao governo.

Porém, eu fui espancada e tive minhacasa metralhada e meus dentes, arre-bentados ... Este partido não pertenceaos poucos [no topo] que acham quepodem fazer o que quiserem com oPT, só porque ocupam espaços impor-tantes nos centros de poder.” (RevistaVeja, 28 de janeiro de 2003). A sena-dora disse claramente que continuaráa batalha contra a guinada à direita doPT até sentir que é uma batalha perdi-da e, então, ela renunciará (RevistaVeja, 28 de janeiro de 2003).

Por causa de suas eloqüentes evigorosas observações críticas, Lula eDirceu, o encarregado de fazer o traba-lho sujo no PT, saíram em campo parasilenciá-la, com receio de que suamensagem chegasse até a base e en-corajasse outros no PT, cujo presiden-te, José Genoino, liderou o grupo delinchamento para censurar a senadorae preparar o terreno para uma futuraexpulsão. Juntamente com Dirceu, elesacham intolerável a crítica de esquerdaque ela faz.

O crescente poder centralizado eautoritário do PT está estreitamente re-lacionado com a centralização da to-mada de decisões econômicas no go-verno, e ambas se relacionam com adireção do regime para políticas neoli-berais ultra-ortodoxas e pró-imperialis-tas. Não obstante, a oposição da sena-dora e as políticas repressoras da dire-ção de Lula aglutinaram forças dentrodo PT. O deputado Raul Pont, da De-mocracia Socialista, defendeu o direitodela de criticar e pediu um “debatefraterno sem pressão nem sanção”(Correio do Povo, Porto Alegre, 6 defevereiro de 2003). Liderando o pedi-do de duras represálias disciplinarescontra Heloísa Helena estão dois ex-social-democratas (na esquerda doPT), ministros atualmente, Tarso Genroe Olívio Dutra (Correio do Povo, 6 defevereiro de 2003), enquanto diversospetistas estão organizando uma rede

de defensores dentro do partido. Se-gundo uma fonte, a turma de Dirceu-Genoíno tem uma lista de cinco parla-mentares a serem isolados e depoisexpulsos. Atualmente, a tendência Ar-ticulação de Esquerda, permanece lealao partido, aprova resoluções críticasnas reuniões da tendência, mas votacom Lula em questões fundamentaisde legislação neoliberal. Incrustada nogoverno, com deputados ou autorida-des estaduais ou municipais, essa es-querda tem interesse específico emsustentar o regime de direita de Lula,esperando uma "guinada à esquerda"ou uma divisão entre Lula e seus prin-cipais formuladores de política econô-mica (ver: “Resolução da ConferênciaNacional da Articulação de Esquerda”,documento pós-eleição, 2002).

Na realidade, as críticas da esquer-da à ALCA e ao neoliberalismo encon-tram ouvidos surdos, enquanto a con-tinuação dos vínculos com o regime ea obediência da disciplina partidáriaasseguram que essa esquerda não teráqualquer papel na criação de umaoposição real ao regime direitista deLula. Ao contrário, o método dessa es-querda, de dissidência limitada e "pordentro", semeará ilusões sobre a pos-sibilidade de "renovar" a agenda dereforma dentro do regime, bloquean-do assim o crescimento de uma oposi-ção de massa fora do PT e do governoLula. A total confusão política em seto-res da esquerda do PT e a capitulaçãode outros deixam poucas opções parao crescente descontentamento quevem à tona entre os metalúrgicos, oMST e setores progressistas da Igreja.

Movimentos sociais e sindicatosA CUT, a central sindical de esquer-

da, com vínculos estreitos com o PT,particularmente com Lula, teve inú-meros dirigentes eleitos para o Con-gresso Nacional e alguns são minis-tros. Até agora, poucos, se é que hou-

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ve algum, criticam a guinada de Lula àdireita. A própria CUT, embora alegueter 15 milhões de filiados, foi grande-mente burocratizada, tendo muitosfuncionários e dependendo de finan-ciamento estatal. O poder de convoca-ção da CUT é muito limitado; poucomais de alguns milhares de manifes-tantes comparecem aos principaisatos públicos. Desde o início do gover-no Lula, a direção da CUT adotou umdiscurso duplo. Pouco depois da elei-ção, a CUT foi convidada a discutir o"Pacto Social" proposto pelo novo re-gime, para reduzir aposentadorias,adiar aumentos salariais e do saláriomínimo e enfraquecer a base financei-ra do financiamento sindical. A dire-ção da CUT declarou sua independên-cia do governo, porém aceitou conti-nuar a participar do Conselho de De-senvolvimento Social e Econômico,muito embora o número de empresá-rios e banqueiros nele representadosfosse mais do que o triplo do númerode sindicalistas. Posteriormente, aCUT, embora seguisse apoiando o go-verno Lula, continuou a criticar os for-tes cortes orçamentários, de orienta-ção neoliberal, e a reacionária realoca-ção de verbas, para favorecer os de-tentores brasileiros e estrangeiros detítulos da dívida pública. Pior, com re-lação ao suposto Pacto Social, a prin-cipal diferença da CUT com a equipeeconômica foi a maneira de sua im-plementação - aconselhando os neoli-berais a “implementar gradualmente”as medidas contra a classe trabalha-dora, ao invés de impor imediatamen-te todo o duro pacote. O servilismo daCUT ao governo Lula é uma continua-ção da postura negociadora que ado-tou em regimes neoliberais anteriores,em parte por causa de sua dependên-cia de verbas governamentais.

Além disso, há fortes vínculos estru-turais da Central com o PT, por intermé-dio de ex-dirigentes da CUT que servem

ao regime e da promessa de um futurocargo no governo ou a inclusão na listade candidatos a deputados nas próxi-mas eleições para o Congresso. Final-mente, existe a burocratização da CUT.Seus dirigentes e funcionários vêm con-duzindo os sindicatos de modo vertical,por mais de uma década, marginalizan-do militantes, sendo totalmente incapa-zes de organizar o vasto exército dedesempregados e subempregados. Os

resultados são evidentes em qualquermanifestação de protesto contra aALCA, o FMI ou a explosão das privati-zações no governo FHC.

A direção da CUT, tendo desmobili-zado seus filiados por mais de dezanos, não foi capaz de pôr mais de

alguns milhares de manifestantes narua - e a maioria dos filiados da CUTnessas manifestações foram, em gran-de medida, mobilizados por militantesdo PSTU, PC do B e da esquerda daCUT. Dirigentes do MST me informa-ram que os setores progressistas daIgreja Católica são capazes de mobili-zar mais gente do que os dirigentesoficiais da CUT. O que confunde obser-vadores externos da CUT é que seus

dirigentes aparecem para fazer discur-sos ou assinar declarações em favor deexigências radicais, dando a impressãode que ainda é uma central sindicalradical de massa.

Apesar da severa legislação contrá-ria aos interesses da classe trabalhado-ra, pensada pelo governo Lula, há pou-cos sinais de oposição ativa por partedos dirigentes oficiais, embora no iní-cio de março de 2003 muitos sindica-listas com consciência de classe tives-sem ficado chocados e indignadoscom o que perceberam como a atitu-de viesada de Lula a favor dos empre-sários. A maioria dos assessores deinvestimento deu a Lula de seis mesesa um ano, antes que grandes conflitosvenham a eclodir e a desafiar suaagenda neoliberal, instando, então,Palocci e o resto da equipe de Lula aandar rápido e aprovar o “remédio

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 207UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

O que confunde

observadores externos

da CUT é que seus dirigentes

aparecem para fazer

discursos ou assinar

declarações em favor de

exigências radicais,

dando a impressão de que

ainda é uma central sindical

radical de massa.

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amargo” no Congresso, antes que ospobres, os sem-terra e os sindicatossuperem suas ilusões sobre o “presi-dente do povo”.

Os intelectuais de esquerdaOs intelectuais que apóiam o regi-

me de Lula podem ser divididos emlulistas ortodoxos, como Frei Betto eEmir Sader, e os neo-lulistas, atraídospelas políticas neoliberais e a chancede conseguir cargos de assessores ou'contratos' com o governo. A principalfunção dos lulistas ortodoxos, pelomenos nos primeiros seis meses dogoverno, é continuar a polir a imagemde Lula como um “presidente dopovo”, a desculpar-se por suas políticasreacionárias e pró-imperialistas, citan-do o “mundo difícil e complexo”, “aimpossibilidade de romper com o FMIagora” (Sader) e elaborando um novoenfoque “pragmático”, que busca con-trabalançar os formuladores da políticaeconômica de direita com os chama-dos “esquerdistas” que operam nasbrechas das apertadas restrições orça-mentárias e ideológicas impostas pelogrupo direitista, dominante.

Sader e Betto, que cantaram orefrão "Um outro mundo é possível",do Fórum Social Mundial, agora acres-centam um novo, "não agora, não comLula; um outro dia é possível". Osnovos pragmáticos também funcio-nam como os ideólogos responsáveispelo trabalho sujo, que desdenham erechaçam críticos esquerdistas daspolíticas direitistas de Lula.

Os neo-lulistas não fazem críticastão severas aos críticos de esquerda,uma vez que não sentem qualquerobrigação de cobrir seus rastros para adireita. Por crenças e práticas, eles secolocam como “tecnocratas” e neoli-berais “progressistas”, interessadosnum modelo "heterodoxo" de merca-do livre que combine mercados com-petitivos e gasto social, embora dedi-

quem a maior parte de seus esforçosaos mercados competitivos e geral-mente empurrem para o futuro qual-quer obrigação com o que é chamadode “dívida social”.

Os intelectuais de esquerda estãoespalhados pelo espectro político.Muitos integram a esquerda do PT,outros fora do PT assim como dogoverno. Nenhum dos grupos temqualquer perspectiva de construir umnovo movimento social e políticopara contestar os cortes brutais ado-tados por Lula. Têm a esperança depoder influenciar o regime por meiodos ministros progressistas ou depressão externa sobre o governo, oude que a crise gerada pelas atuais po-líticas neoliberais e pela equipe eco-nômica levem Lula a dar uma “guina-da à esquerda”.

Esquecem eles que foi Lula quemnomeou cada ministro-chave da áreaeconômica e financeira, que confia emseus principais assessores políticos noPT, arquitetos de suas políticas, e queapóia pessoalmente toda a retrógradalegislação que considera fundamental.Conforme declarou Palocci, “Lulaconhece e concorda com toda e qual-quer de minhas políticas públicas.”.

Uns poucos intelectuais começa-ram a questionar o governo, suas polí-ticas e sua base de classe; mas atéagora não se decidiu sobre o seu futu-

ro político, particularmente sobre suafutura trajetória política.

O MSTO MST enfrenta um profundo dile-

ma: após anos construindo um movi-mento sócio-político de massa, inde-pendente, bem sucedido, que assen-tou mais de 350.000 famílias sem-terra em terras improdutivas, por meiode ação direta (ocupações de terra),ele se imobilizou - substituindo essaação direta pela campanha eleitoral deLula e esperando legislação favorávelde reforma agrária. O sucesso do MSTno passado se baseou em sua capaci-dade de priorizar a ação de massaindependente, mesmo quando apoioucandidatos progressistas do PT emeleições. Tendo confiado na eleição deLula como o sustentáculo de umareforma agrária abrangente, vê-seagora diante de um regime que repu-diou cada uma das "reformas suposta-mente compartilhadas“.

Por vários anos, antes das eleiçõespresidenciais, o MST travou debates ediscussões abertas sobre o futuro polí-tico do movimento. Alguns argumen-taram que o PT estava virando um par-tido eleitoral conservador ou social-democrata e que muitos de seus diri-gentes estaduais e municipais eleitoseram hostis à reforma agrária e, em al-guns casos, reprimiram efetivamenteas ocupações de terra. Concluíram queo MST deveria formar seu próprio par-tido, com outros movimentos sociais egrupos de esquerda. Um segundo gru-po admitiu que o PT estava ficandomais conservador e também repudiouos governadores e prefeitos de direitado PT, mas argumentaram que o MSTdeveria lançar seus próprios candida-tos dentro do PT ou, pelo menos, atuarmais ativamente em seu interior, parainfluenciá-lo numa direção mais pro-gressista. A terceira força, e a maisinfluente, pelo menos no seio da dire-

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Infelizmente, pela primeira

vez, o MST caiu na

armadilha. Suspendeu a

ação de massa e entrou na

campanha eleitoral, apesar

das alianças reacionárias de

Lula e da clara hegemonia

exercida pelos interesses

pró-imperialistas.

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ção nacional, tentou conciliar as dife-renças. Concordou em atuar fora do PTpara tentar juntar os setores progres-sistas de Igreja, os grupos de direitoshumanos e intelectuais de esquerda,para elaborar programa e organizaçãoalternativos. Assim nasceu a ConsultaPopular (CP), que começou com gran-de estardalhaço e depois decaiu por-que combinou sua nova tática "à es-querda" com a velha tática de influen-ciar o PT por dentro. Com efeito, a CPnão era nem um movimento novo,nem um partido político novo. Ficouespremido entre a ação direta e a polí-tica eleitoral e não foi capaz de atrairnenhum apoio sindical ou urbano sig-nificativo.

A campanha eleitoral de Lula exigiue conseguiu, do MST, uma concessãosem precedentes: a suspensão de todaação direta de massa - nenhuma ocu-pação de terra - com o argumento deque isso iria “fazer o jogo da direita”,“assustar” os eleitores de classe médiae iria custar a eleição de Lula. Infeliz-mente, pela primeira vez, o MST caiuna armadilha. Suspendeu a ação demassa e entrou na campanha eleitoral,apesar das alianças reacionárias deLula e da clara hegemonia exercidapelos interesses pró-imperialistas. OMST substituiu a análise de classe porvagas declarações "populistas" - afinal,dezenas de milhões de pobres vota-riam em Lula e suas expectativas deuma ruptura com o neoliberalismo for-çariam Lula a responder positivamente.

Como era de se prever, Lula, apóstomar posse, ignorou as "expectativaspopulares", ou melhor, pediu "perdão"por enfiar a estaca neoliberal no trasei-ro do populacho. Infelizmente, a maio-ria dos dirigentes do MST continuou anutrir esperança, não tanto em Lula,mas agora no impotente Ministro daReforma Agrária e outros funcionáriosde esquerda do mesmo ministério. OMinistro Miguel Rossetto, integrante

da Democracia Socialista, tendência deesquerda do PT, argumentou que fariatudo para cumprir as promessas dereforma agrária dentro das restriçõesorçamentárias extremamente limita-das impostas pelo seu governo - umesperto ato de demagogia.

Enquanto isso, cresciam as tensõesdentro do MST, à medida que crescia aimpaciência dos militantes de base emais de 60.000 posseiros acampadosem barracas de plástico, sofrendo calor,frio, falta de comida e mosquitos. Co-meçou a ocorrer um pequeno númerode ocupações de terra. Um movimentocomo o MST deve agir ou desintegrar-se. Nenhuma medida emergencial foitomada pelo governo Lula. A reformaagrária foi relegada a segundo plano,juntamente com o "fome zero" e ou-tras promessas eleitorais de Lula.

O argumento de alguns líderes doMST, de trabalhar por dentro do PT, es-tava deixando de convencer. Alguns di-rigentes nacionais e regionais manifes-taram publicamente o seu desconten-tamento com a falta de resposta dogoverno (Folha de São Paulo, 9 de fe-vereiro de 2003). João Paulo Rodri-gues, coordenador nacional do MST,exigiu que o governo fixasse um cro-nograma para realizar a reforma agrá-ria, expressando preocupações sobre ainação, 40 dias após a posse de Lula.Rodrigues advertiu o governo Lula deque o MST não poderia continuar es-perando, afirmando que 60.000 famí-lias aguardavam assentamento. Res-saltou que "não podemos esperar.

Pensamos como movimento social,não como governo”. O governo no-meou diversos progressistas simpáti-cos ao MST e a outros grupos para oInstituto Nacional da Reforma Agrária(INCRA), mas com poucos recursos.Mais importante, Lula adotou umaposição hostil e extremamente rígidacom as táticas de ocupação de terra doMST, prometendo aplicar a lei comtodo o rigor [sic] para reprimir o movi-mento. O presidente argumentou que“qualquer medida de reforma agráriaterá de fazer parte de um programapatrocinado pelo governo, mas que oorçamento no período pós-eleitoralpromete ser totalmente insignificante.”.

Mais cedo ou mais tarde, o MSTterá de reconhecer que os sem-terranão terão futuro com o governo Lula,que o movimento terá de romper comele e voltar ao método comprovado deação direta de massa ou sofrer cisões,declínio e cooptação.

ConclusãoO governo Lula representa dois pe-

rigos. Em primeiro lugar, é uma amea-ça aos padrões de vida, às condiçõesde trabalho e à vida social da imensamaioria dos assalariados, em atividadee aposentados. Ameaça tão mais agu-da porque vem de partidos políticosou coalizão de partidos e organizaçõessociais que foram os principais defen-sores das classes trabalhadoras e cam-ponesas e que, agora, uniram-se aosseus inimigos, deixando as massastemporariamente sem defesa. Além dador física e do sofrimento social que ogoverno Lula está trazendo, a guinadaà direita provocará imenso dano psico-lógico à sociedade, gerando decepçãode massa, não apenas com o governodo PT e suas faces públicas, mas tam-bém com todo o espectro de partidos,sindicatos e movimentos sociais quepromoveram Lula como o "presidentedo povo". É igualmente importante

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 209UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Como era de se prever, Lula,

após tomar posse, ignorou as

"expectativas populares", ou

melhor, pediu "perdão" por

enfiar a estaca neoliberal no

traseiro do populacho.

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que os ideólogos do PT, como Sader eFrei Betto, que justificaram a políticade Lula como “realista” e/ou “pragmá-tica”, tornaram plausível, especialmen-te para intelectuais de esquerda desin-formados, a idéia de que realmentenão existe alternativa à adaptação àspolíticas neoliberais. Ao assimilar aspolíticas direitistas de Lula a um rótuloesquerdista genérico, os ideólogos lu-listas ameaçam redefinir a esquerdana linha neoliberal dos partidos socia-lista espanhol e do "Novo Trabalhis-mo" inglês, esvaziando a esquerdabrasileira de seu conteúdo socialista ede bem-estar social essenciais.

O segundo perigo é que a esquer-da internacional, que se uniu ao corode Lula, está conduzindo o movimen-to popular a uma maciça derrocadapolítica. A celebração efusiva e desin-formada da vitória de Lula como amaior mudança revolucionária, desdea revolução cubana, a eleição deSalvador Allende ou a revolução sandi-nista, está preparando o terreno parauma tremenda desilusão, à medidaque as políticas reacionárias começama penetrar na consciência popular.

Dois desfechos são prováveis. Deum lado, uma parte da esquerda lati-no-americana tomará o caminho direi-tista de Lula como modelo e abando-nará demandas populares anti-impe-rialistas e redistributivas históricas, ci-tando os “limites” que Lula enfrenta eoutras racionalizações deste tipo. O se-gundo desfecho será outros movimen-tos de esquerda repensarem toda aestratégia eleitoral, particularmente arelação entre partido e movimento. Deuma perspectiva histórica, prática, estáclaro que o divórcio entre o PT e omovimento e a luta de massa, logo deinício, preparou o terreno para sua de-dicação a práticas de colaboração declasses e políticas pró-imperialistas.

Teoricamente, a dinâmica da lutade classes e a emergência de movi-

mentos de massa de ação direta,como o MST, foram instrumentais nacriação de um desafio à ortodoxia neo-liberal, particularmente no contexto deEstados neoliberais falidos. A estagna-ção econômica, o aprofundamentodas desigualdades, o inchaço da dívidaexterna, juntamente com a crítica feitapela esquerda, criaram a base para odeclínio da direita neoliberal tradicio-nal, porém não as condições suficien-tes para o surgimento de alternativasradicais ou mesmo reformistas. Aoinvés disso, as condições políticas deum novo neoliberalismo ortodoxo,híbrido, virulento, surgiram com basena classe trabalhadora, na classe mé-dia, nos sem-terra, lideradas por ex-esquerdistas plebeus, porém dirigidopelo capital internacional e a ele su-

bordinado. Teoricamente, a ruptura radical do

PT com seu passado de esquerda foipossível por causa do caráter plebeudos dirigentes, da manipulação doimaginário popular e do caráter hierár-quico, personalista e autoritário dadireção partidária. As origens popula-res dos dirigentes neutralizaram a opo-sição interna e impuseram conformi-dade à linha direitista. Afinal de contas,quem se dispunha a desafiar o "presi-dente do povo", quando Lula abraçouGeorge Bush, o eminente mercador daguerra de nossa época e chamou-o de"aliado do Brasil"?, Quem se posicio-nou entre os ideólogos pragmáticosdo "movimento popular"?

Lula tem uma clara e coerenteestratégia neoliberal baseada numaaliança com o FMI, com Washington,com os investidores e credores estran-geiros. Ele e seus assessores imple-mentaram uma estratégia eficaz paralimitar a oposição interna no partido,usando incentivos (oferecendo minis-térios e secretarias) e o porrete (amea-ças de censura e expulsão a críticospersistentes). Através de clientelismoestatal e disciplina partidária, conver-teu prefeitos e congressistas do PT emcorreias de transmissão para seus du-ros programas de austeridade. Há

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Afinal de contas, quem se

dispunha a desafiar o

"presidente do povo",

quando Lula abraçou

George Bush, o eminente

mercador da guerra de

nossa época e chamou-o

de "aliado do Brasil"?

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exceções, é claro: um punhado de au-toridades eleitas do PT, que ainda sus-tentam o programa social-democratatradicional, reformista: mas eles forammarginalizados, abandonados emgrande parte por seus ex-companhei-ros com apetite voraz para os cargos epequenos feudos do poder estatal. Ogoverno tem o poder e a vontade paraimpor as duras políticas neoliberais aopaís, às classes mais baixas e para obri-gar a obediência dentro do partido.

O controle esmagador que a dire-ção do PT possui ficou evidente na pri-meira reunião do Diretório Nacional,após a eleição de Lula, em 16 de mar-ço de 2003. Foram apresentadas trêspropostas para aprovação. A resoluçãoneoliberal, apoiando a linha direitistade Lula em política econômica, rece-beu 70% dos votos (54 votos), as pro-postas da dissidência de esquerda re-ceberam 28% (21 votos) e houve duasabstenções. A resolução explicitou, demodo doutrinário, os argumentos e alógica justificando as políticas neolibe-rais do regime, com as razões teóricase práticas para a adoção da estratégianeoliberal (monetarismo, ajustes etc.).A resolução estabelecia explicitamenteque as políticas pró-empresariais e oapoio ao FMI não eram posições táti-cas, mas de princípio. A reunião tam-bém refletiu a consolidação do contro-le do aparelho partidário e a margina-lização quase total das tendências deesquerda. A resolução, a reunião e ovoto deixaram pouca dúvida de quenão havia absolutamente nenhumaesperança de reformar o partido pordentro ou pressionar a direção paradar uma “guinada à esquerda”. Ficarno PT significa apoiar o lado do FMI,de George Bush, da ALCA, dos inimi-gos do presidente Chávez, e unir-seao presidente paramilitar Uribe, da Co-lômbia, em patrulhas na fronteira - po-sição indefensável, pelo menos deuma perspectiva popular de esquerda.

A oposição a Lula, ao contrário,está impotente e desorientada doponto de vista ideológico, estratégico etático. Sem disposição para abraçar a"redefinição" radical do programa “re-formista” feita por Lula (de bem-estarsocial para neoliberalismo ortodoxo),busca uma nova estratégia e um novoprograma. Alguns dos movimentos es-treitaram seus horizontes, deixando delado a oposição à agenda geral pró-imperialista de Lula em favor de “refor-mas setoriais”: reforma agrária, progra-mas urbanos para os favelados etc.Mesmo nessas "estratégias setoriais", aoposição diminuiu suas reivindicaçõesem relação a suas propostas iniciais,buscando adaptar-se “realisticamente”aos cortes orçamentários de Lula e aocumprimento integral dos compromis-

sos com credores estrangeiros. A es-querda de oposição no PT e os movi-mentos sociais, tendo jogado todo oseu esforço no apoio a Lula, continu-am a inútil tarefa de atuar dentro daelite do aparelho partidário hierárqui-co, onde não têm nenhuma chance demudar o curso do regime.

Qual a perspectiva de uma "estra-tégia dos que estão de fora” - os quedecidiram se opor ao governo Lula, defora? Estrategicamente, deveriam estarnuma posição de força, pois Lula esuas políticas neoliberais levarão auma crise social, financeira e econômi-ca mais profunda do que a do governo

FHC. Altas taxas de juros, cortes orça-mentários e o pagamento da dívidavão minar investimentos produtivos,enfraquecer o mercado interno e au-mentar as futuras obrigações de paga-mento da dívida, aprofundando a re-cessão, em 2003-2004.

Os duros cortes orçamentários, aqueda do valor das aposentadorias epensões, a redução real do salário mí-nimo e a deterioração de serviços pú-blicos essenciais abaixarão, aindamais, os padrões de vida. Os paga-mentos a ricos detentores de títulos dadívida, os subsídios a agroexportado-res e a inflação ampliarão as desigual-dades. A extrema guinada à direita dogoverno Lula, o declínio vertiginosodos padrões de vida e o aprofunda-mento da recessão acabarão bem rapi-damente com os elevados índices ini-ciais de popularidade de Lula. Aindaem 2003, a decepção popular cresceráem extensão e profundidade, levandoa manifestações abertas de descon-tentamento; já houve greves de meta-lúrgicos, apenas dois meses depois daposse e, em algumas regiões, os sem-terra começaram ocupações (antes dofinal de março de 2003).

A questão é saber: de onde virá aoposição política de esquerda ao regi-me de Lula? O pequeno mas discipli-nado Partido Socialista dos Trabalha-dores Unificado (PSTU) vem conquis-tando influência entre militantes sindi-cais na CUT e atualmente influenciacerca de 10% da Central. O PSTU tempotencial de crescimento, porém so-mente se constituirá como uma oposi-ção formidável se fizer alianças commovimentos sociais mais numerosos esignificativos, com adversários políti-cos, dissidentes da Igreja, e forças sin-dicais. Uma configuração deste tipopode reunir dirigentes de esquerda doMST, um setor da CUT, o clero progres-sista da Igreja Católica e dirigentes dis-sidentes de esquerda do PT, para,

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 211UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

A extrema guinada à direita

do governo Lula, o declínio

vertiginoso dos padrões de

vida e o aprofundamento da

recessão acabarão bem

rapidamente com os

elevados índices iniciais

de popularidade de Lula.

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212 - DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

junto com o PSTU, formar uma coliga-ção alternativa ou um partido políticode oposição, algo que focalize a açãodireta de massa, contra a política me-ramente eleitoral. Esta possível forma-ção oferece um tremendo potencialpara levantar as bandeiras contra aALCA, pelo repúdio da dívida, o desen-volvimento do mercado interno, a re-forma agrária e a re-estatização de in-dústrias estratégicas e bancos. Tem-senotícia de que milhões de brasileirosse opõem a cada uma das políticas deLula. O plebiscito contra a ALCA contoucom o apoio de 10 milhões de votan-tes; dos 52 milhões de eleitores deLula, a esmagadora maioria votou a fa-vor da ruptura político-econômica comas políticas neoliberais do passado,não na sua continuação e aprofunda-mento.

Apesar do objetivo estratégico emesmo das condições subjetivas parao ressurgimento de uma nova forma-ção de esquerda, há severas limita-ções. Uma é a falta de um partido polí-tico, com presença nacional, capaz deservir de pólo de reagrupamento. Onovo partido político precisa ser criadono curso da luta social que será, no iní-cio, liderado por fragmentos sociais epolíticos das classes exploradas.

Em segundo lugar, essa nova for-mação política terá de travar uma duraluta ideológica para desmascarar o“presidente do povo” e expor o carátercontinuísta e profundamente reacioná-rio do seu governo. Isso vai exigir tem-po e esforço porque os defensores doregime vão desde a maioria da mídiaaté ex-esquerdistas ligados ao governoe seus apologistas ideológicos.

A terceira limitação é que essanova formação política terá que al-cançar um elevado grau de comporta-mento político baseado em princí-pios, evitando associação com críticosde direita, embora haja bastante es-paço para possíveis alianças táticas

com a central sindical Força Sindical,de linha moderada, em torno dequestões como salário e legislaçãotrabalhista.

A quarta limitação é que essa for-mação política deve desenvolver umaclareza teórica e programática sobre ocaráter da crise neoliberal, do novoimperialismo colonial militarista dosEUA e das principais contradições que

solapam a viabilidade do modeloeconômico de Lula.

Por último, essa nova formação de-ve organizar ... e organizar ... e organi-zar. Há mais de 90 milhões de brasilei-ros vivendo na pobreza, a maioria dosquais não estão organizados e ficarãomais pobres com as políticas de Lula,mesmo com o chamado programa de"pobreza zero". Existem 25 milhões desem-terra, vivendo no campo, 95%dos quais não serão os beneficiáriosde qualquer reforma agrária, mas se-rão mais marginalizados pela promo-ção das estratégias agroexportadorasde Lula. Há 40 milhões de desempre-gados e subempregados, sem qual-quer perspectiva de emprego, por cau-sa dos cortes orçamentários e das altastaxas de juros.

Centenas de milhares de pequenase médias empresas (e não poucas fir-mas nacionais de grande porte) po-

dem falir por causa do alto custo docrédito (taxa de juros de 26,5%, emmarço de 2003) e das políticas de livrecomércio (ALCA).

A oposição política enfrenta umformidável desafio na organização dosnão-organizados; caso contrário, have-rá protestos espontâneos, que serãoduramente reprimidos, conforme Lulaprometeu à classe dos investidores in-ternacionais. A decepção criada pode-rá ser atraída para os partidos cliente-listas de direita, que apóiam Lula hoje,mas que abandonarão navio que afun-da, como sempre fizeram.

Finalmente, a nova formação políti-ca, embora apele para os eleitores des-contentes que vão abandonando Lula,deve fazer uma ruptura completa como PT, um partido que, a exemplo demuitos outros, na Europa e na AméricaLatina, começou na esquerda e termi-nou na direita.

Não há desfecho inevitável na ex-periência brasileira. As condições obje-tivas são favoráveis, as oportunidadessubjetivas estão surgindo, porém aquestão da direção política ainda estáem aberto.

*James Petras é professor do Departamen-to de Sociologia, da Universidade do Estadode Nova York (campus de Binghamton), nosEstados Unidos.

Henry Veltmeyer é professor do Departa-mento de Sociologia e Criminalística, daSaint Mary´s University (Halifax, Nova Escó-cia), no Canadá.

Tradução do original em inglês WhitherBrazil? (fonte: www.rebelion.org/petras): Ni-cholas Davies, professor da Faculdade deEducação, da Universidade Federal Flumi-nense (Niterói, RJ).

Revisão da tradução: Marilia Leite Wa-shington, professora aposentada da Univer-sidade Federal de São Carlos (São Carlos,SP), Editora Adjunta da Revista Universidadee Sociedade.

A nova formação política,

embora apele para os

eleitores descontentes que

vão abandonando Lula,

deve fazer uma ruptura

completa com o PT,

um partido que, a exemplo

de muitos outros, na Europa

e na América Latina,

começou na esquerda

e terminou na direita.

Debates Contemporâneos

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DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 215UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

E dmundo Fernandes Dias, o "ar-

quivo", a memória viva do sindi-

calismo docente brasileiro, conce-

deu à revista Universidade e Socie-

dade esta entrevista e, nela, expõe

uma página de sua vida, de suas ex-

periências de luta, de suas convic-

ções políticas, de seu trabalho inte-

lectual que fizeram dele uma das

lideranças sindicais e políticas mais

combativas, mais expressivas do

movimento docente nacional.

Sem excesso, Edmundo represen-

ta, na atualidade, o intelectual, a in-

teligência, mais identificado com os

problemas sociais da classe trabalhadora do país. Um espírito socialista de convicção irrefutá-

vel, um militante político-sindical íntegro de que se orgulha a categoria docente, Ele, o Edmun-

do, constitui (e está longe de deixar de constituir) uma imagem, uma personalidade, que enche

de orgulho toda uma geração que com ele conviveu (e convive), no aprendizado contínuo, ines-

gotável, de sua pedagogia política, de sua imaginação pedagógica, de sua coerência de idéias

e sua prática, luta, política. Ninguém mais que ele estimula e cultiva os talentos para uma inter-

venção social justa e, politicamente, correta.

Seu poder de atuação e concentração o fez possuidor de uma indomável aspiração para o

combate da farsa política e dos poderosos que exploram e alienam as massas.

Nesta entrevista, Edmundo reafirma, com destemor e invariável coragem moral e mental, a

sua disposição para a luta pela emancipação da classe trabalhadora.

"Vivi a passagem de alguém que pretendia ser um bom professor a um militante que tenta-

va unir as duas coisas: fazer política como quem ensina e ensinar como quem faz política".

Memória do Movimento Docente

Edmundo Fernandes DiasApresentação por Antônio Ponciano

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Universidade e Sociedade: Profes-sor, de início, conte, para nós, um pou-co da sua trajetória política, de suamilitância sindical como um intelectu-al que sempre esteve presente no Mo-vimento Docente, desde a construçãodo ANDES-SN.

Edmundo: Começaria dizendo co-mo entrei na política sindical. Devo an-tes esclarecer que, para mim, política éuma forma de educação. Política eeducação formam para mim uma uni-dade indissolúvel. Educação e vidatambém.

Entrei na universidade em um mo-mento particularmente crítico. A pri-meira crise que vivi foi a dos mísseiscubanos, em 1962. A segunda foi ogolpe de 64 perpetrado pelos militaresna defesa do capital, sob o pretexto degarantir as liberdades democráticas ecombater o comunismo. Os dois mo-mentos marcaram a necessidade deuma reflexão sobre esse par que seapresentava como antagônico: demo-cracia e comunismo. Eu já vinha fazen-do uma crítica ao modo pelo qual oPCB se posicionava na realidade a par-tir de uma estratégia, de uma aliança apriori, entre as classes, para o desen-volvimento nacional. Aliança que apa-gava as diferenças e atrelava o conjun-to das classes trabalhadoras ao desen-volvimento do capital. Passei o períodoque vai de 1964 até 1981, períodoextremamente duro na vida brasileira,numa qualidade muito particular: eraum independente, não estava ligado anenhuma organização política. Mas,durante todo esse tempo, militavasempre que havia um espaço possívelpara isso, ou seja, onde existia o míni-mo de condições de luta sem a reta-guarda, ainda que precária, que essasorganizações davam a seus militantes.Nesse processo, eu aprendi o valor daligação objetiva com o movimento dasociedade, que, mesmo quando tínha-mos uma teoria que explicava o real,

ela devia ser testada sempre nessemovimento. E aprender com ele ao in-vés de apenas tentar "ensinar-lhe"nossa verdade.

Formado pela Universidade FederalFluminense (1967), passei um ano emSantiago do Chile, na FLACSO. Procureiapreender a realidade latino-america-na. Vivi a experiência de não ficar re-cluso no circuito dos brasileiros, mui-tos dos quais viviam amargamente seuexílio. Ao voltar ao Brasil, passei pelaPontifícia Universidade Católica do Rio(em 1969). Naquelas salas de aula,principalmente nas aulas de CiênciasSociais, constatávamos a presença deelementos ligados à repressão e tínha-mos que fazer um esforço muito im-portante de manter a dignidade inte-lectual, de não mentir, não deixar defalar as coisas, mas, ao mesmo tempo,de tentar impedir que os alunos fos-sem alvo daqueles elementos da re-pressão. E esse esforço me custou, co-mo a outros, inclusive o emprego, poisquando houve uma mudança na PUCRio, o setor de direita passou, em 74, acomandar o Departamento de Socio-logia. Em um semestre, ele eliminouquase que a metade do Departamen-to, entre as quais a nossa companhei-ra Miriam Limoeiro. E, no outro, fomos"saídos" vários outros, inclusive eu. Aomesmo tempo em que isso acontecia,eu era professor de tempo parcial naUniversidade Federal Fluminense edava aula no noturno, Aprendi comessa experiência não apenas comomilitante, mas como professor: que o

aluno do noturno, já ligado ao mundodo trabalho, tendia a ser politicamentemais conseqüente e, embora nãotivesse tantas condições de estudo,tendia a ser um estudante melhor. Nãonecessariamente um aluno melhor -quero fazer essa distinção porque setodos eram alunos poucos eram estu-dantes - na medida em que estou atri-buindo a idéia de estudante de umprocesso de politização que levava aum comprometimento com o futuro.

Passei também por uma experiên-cia muito interessante que foi uma as-sessoria a um projeto de Medicina So-cial na UERJ, à época conhecida comoUEG. Meu projeto era pensar as condi-ções da saúde mental. Então, quandoestava na moda todo mundo falar deFoucault, eu falava de um anti-psiquia-tra italiano chamado Franco Bazagliapromotor do movimento de aberturados asilos, precursor do movimentoanti-manicomial. Esse tempo culmi-nou com a impossibilidade de perma-necer no Rio porque os salários eramextremamente baixos e apareceu aoportunidade de vir para a UNICAMP.

Em São Paulo, descobri um movi-mento social extremamente rico. Che-go em 1976. Logo teremos um renas-cimento do movimento sindical, asgrandes lutas do movimento contra acarestia, pela anistia, os combates quese travaram principalmente a partir damorte de Wladimir Herzog e Fiel Filho.Esse conjunto de lutas me leva a entrarna UNICAMP na perspectiva de sernão apenas um bom professor, mas de

216 - DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Tínhamos que fazer um esforço muito importante de manter a dignidade intelectual, de não mentir, não deixar de falar as coisas, mas, ao mesmo tempo, de tentar impedir que os alunos fossem alvo daqueles elementos da repressão.

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trabalhar com quem construía essaligação entre os movimentos. Estavanascendo a Associação de Docentesda UNICAMP e ela logo vai ser testadacom uma greve contra o Maluf. Umagreve salarial, mas que tinha tambémum fundo de luta pelas liberdades po-líticas. Essa greve acabou inclusivecom a demissão do primeiro presiden-te da ADUNICAMP, que achava sermosmuito privilegiados diante das condi-ções de vida da população e, portanto,não precisávamos lutar por questõessalariais.

Nessa época, abriu-se um campoque por um lado era sindical e poroutro era partidário. Abriu-se o campodas lutas sindicais, primeiro, no funcio-nalismo, em São Paulo, e, em seguida,pelo nascimento do movimento do-cente ao nível nacional. A partir de1977, várias ADs foram se constituindoe, a partir de 1979, o movimento na-cional viveu as primeiras greves, contraas políticas do Ministério da Educação,buscando a democratização da univer-sidade, a definição de um plano decarreira, a própria existência de umapolítica salarial. Esse movimento foi secristalizando nos famosos EncontrosNacionais de Associações de Docentes(os ENADs), o último dos quais, emCampinas, prefacia a fundação daentão Associação Nacional. No proces-so dessa fundação, a Adunicamp e aApropuc-Campinas formaram a comis-são organizadora do 1º Congresso Na-cional de Docentes Universitários.

Tivemos que montar um congresso

sem nenhuma experiência prévia. Aomesmo tempo em que participávamosda organização, estávamos nas plená-rias e naquela semana nos reunimos ànoite toda para montar a primeiraequipe dirigente. A grande batalha era:fundar uma Associação que represen-tasse toda a categoria ou criar uma fe-deração de direções das ADs. Este de-bate terminou com a vitória dessa pri-meira concepção. E foi o primeiro em-bate entre os chamados independen-tes e petistas, por um lado, e os parti-dos da chamada esquerda tradicional,por outro. Debate que irá mais tardese transformar em "sindicaleiros xgrandes intelectuais". Debate queainda hoje marca a vida do ANDES-SNcom outras temáticas e outros perso-nagens. Inventamos o rateio, as formasde representação tiradas por assem-bléias, construímos nossa auto-susten-tação. Ou seja, nascíamos livres da in-tervenção estatal.

O campo partidário também seabria. Na mesma época, caminhava-separa a constituição de um partidonovo que reunia o chamado novo sin-dicalismo - em alguns lugares, já comodireção sindical e, em outros lugares,como oposição sindical - setores daigreja mais comprometida, setores daesquerda organizada e uma parte daintelectualidade democrática radicali-zada. Vivíamos o nascimento do PT. Dotrabalho da militância do PT, junto aessa militância sindical (que quasesempre se superpunham), vimos sur-gir, em 1983, a Central Única dos Tra-

balhadores. Esse processo como umtodo, me levou a entrar nesse campominado que é a política e a política, co-mo nós sabemos, é uma espécie de pai-xão. Você provou, dificilmente abando-na. Acho que é isso em termos gerais.

Vivi a passagem de alguém quepretendia ser um bom professor a ummilitante que tentava unir as duas coi-sas: fazer política como quem ensina eensinar como quem faz política. Trata-se da boa e velha unidade teoria e prá-tica. Para mim, estava colocada comtoda clareza, como desafio, de constru-ção de uma nova sociedade.

US: O senhor é conhecido como umexcelente professor, intelectual e mili-tante político. Há uma imagem exter-na que alimenta a idéia que o profes-sor sindicalista perde intelectualmen-te. Acha que uma atividade atrapalhaou ofusca a outra?

Edmundo: Uma vez eu recebi umacrítica segundo a qual eu era um bomprofessor, mas que não levava a uni-versidade a sério. Respondi ao crítico:eu levo a Universidade tão a sério, queluto para criar as condições para quevocê, que não luta, possa trabalhar emuma universidade de qualidade. Tenhocerteza que não atrapalhou, muitopelo contrário, quando se lê o que es-crevi em termos acadêmicos, se cons-tata como essas duas formas de vivera política me deram uma outra dimen-são na qualidade de docente. No sin-dicato, eu levava o conjunto de ques-tões que estavam sendo discutidas nasala de aula e para a sala de aula eutrazia a reflexão que o sindicato elabo-rava. Do meu ponto de vista, devo di-zer que o sindicato é o único lugar on-de realmente se discute a sério a uni-versidade, livre de interesses mais ime-diatos, tipo a minha carreira, a políticado meu departamento, mas pensar auniversidade como projeto e comoprática como um todo. Ele é um labo-

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 217UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Vivi a passagem de alguém que pretendia ser um bom professor a um militante que tentava unir as duas coisas:fazer política como quem ensina e ensinarcomo quem faz política. Trata-se da boa e velha unidade teoria e prática.

Memória do Movimento Docente

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ratório. Seguramente, essa militâncianão atrapalhou.

Digo simplesmente que segui essecaminho para afirmar meu projeto. Fizmeu Doutorado, dei aulas o tempotodo, mesmo quando militava sindicale partidariamente. Mas não privilegieia carreira acadêmica strictu senso. EmSão Paulo, o ponto inicial da carreira éo doutorado e fico muito feliz de terme aposentado no ponto inicial dacarreira, pois acho que o que eu fizcom o conjunto do movimento, emtermos de sindicato, garantir muitomais a sobrevivência do nosso projetode universidade do que seria possíveldentro de uma sala de aula ou aturan-do aquelas infindáveis, monótonas,modorrentas e pouco produtivas reu-niões de departamentos, congrega-ções e conselhos universitários. Foiuma opção clara por um campo deintervenção mais forte, mais efetivo,no cotidiano da luta. Mas, mesmodepois de aposentado, eu ainda orien-tei algumas teses, todas elas buscandofazer essa reflexão sobre o social. A úl-tima tese foi exatamente sobre o dis-curso da CUT. Então mesmo estescampos estando juntos, privilegieimais um do que outro. Acho que acer-tei, como diziam os velhos clássicos,sobre salvar a alma, acho que salvei aminha.

US: Professor, a sua história, comovocê mesmo reconhece, se confundeum pouco com a história da nossamilitância sindical, do movimento do-cente nacional. Eu queria que apro-fundasse mais essa questão da suapresença no sindicato, na década de80, 90, sindicato que ajudou a cons-truir e que continua ainda atuandonele. Pediria que pontuasse momen-tos que viu crescer, momentos que tal-vez tenha achado que paramos, atéchegar ao sindicato na atualidade.

Edmundo: Sinto, como um grande

marco, que estamos inaugurando umanova fase do nosso sindicato. O quequero dizer com isso? O conjunto doscompanheiros que fundou o sindicatotinha uma imensa tarefa: inventar o lo-cal e o nacional, ao mesmo tempo, ti-nha que se enraizar nas organizaçõesde base e, ao mesmo tempo, pensarna organização nacional. Diferente-mente de outros sindicatos, que nas-cem "prontos", ele foi construído poretapas. Nasce pronto é uma maneirade dizer, mas, enfim, ele já nasce coma configuração que assume para oresto da vida. O nosso não. Diante daimpossibilidade legal da sindicalizaçãodo servidor público, o que acontecia?O movimento dos servidores foi crian-do associações organizadas por localde trabalho, que se auto-sustentavam,coisa que até hoje o movimento sindi-cal coloca ainda como meta. Já nasce-mos independente do estado. E nasce-mos até fora da lei, na medida em quenos era inteiramente vedado o cami-nho sindical. Inventamos uma maneirade fazer sindicato sem a formalizaçãojurídica. Sindicatos, de fato, ainda quenão de direito.

Respondendo aos desafios políti-cos da época, fundamos a AssociaçãoNacional. Foi uma geração inteira mar-cada por um conjunto de questões re-lativas à natureza da Universidade. Es-ta, apesar de tudo, teve uma grandetransformação, com todos os proble-mas ela se massificou. O professor uni-versitário dos anos 80 e dos anos 2000são diferentes. Os dos anos 80 foramos primeiros a sentir uma certa prole-tarização. Até então, a maior parte dosprofessores vinha, como massa, de se-tores burgueses mais claramente defi-nidos. Éramos uma geração que, dealgum modo - como gosto de dizer -uma espécie de pós-graduação daUNE, quer dizer, jovens professoresque trazíamos nosso esforço de cons-truir a universidade e tínhamos de so-

breviver economicamente em umaépoca em que os salários estavammuito arrochados e que a ditadurabuscava impedir a manifestação políti-ca das pessoas. E não tínhamos, naimensa maioria, bens de raiz.

A década de 80 foi uma décadamarcada fundamentalmente pela idéiada resistência e da construção. Por quedigo isso? Vivemos um período emque, durante a ditadura, lutamos efeti-vamente para impedir a privatizaçãoda universidade. E, em grande medida,o conseguimos. Lutamos para impedira castração intelectual da universidadee o conseguimos à custa de enormessacrifícios. Nada era fácil. Esses desa-fios foram sendo combatidos pelosdominantes que inventaram figurasque hoje até parecem simpáticos parauma parte dos docentes como a uni-versidade sendo uma forma jurídica.Defendíamos a autarquia especial quenos parecia permitir melhor a defesada nossa autonomia como instituição.Lutamos para fazer com que essa au-tonomia da universidade fosse respei-tada e quando vamos nos aproximan-do do desfecho da ditadura - naquiloque é eufemisticamente chamado deredemocratização - o que aconteceu?Houve, em vários momentos, a tentati-va de cooptação política das nossasdireções (por exemplo, o convite rejei-tado pelo ANDES de participar de umacomissão de notáveis para a ReformaUniversitária). No campo político, omovimento viveu grandes discussões,por exemplo, diante do colégio eleito-ral, debatemos uma questão canden-te: apoiamos ou não a Tancredo? E écurioso que, mesmo com esses desa-fios, a Associação, hoje Sindicato, ten-do correntes políticas muito diferencia-

218 - DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

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das, conseguiu sair com uma platafor-ma comum de intervenção, coisa quehoje, no momento atual e diante dogoverno Lula, está mais difícil.

Essa criação da Associação mudoutambém a qualidade do debate. Noinício, éramos divididos folcloricamen-te por alguns, entre "sindicaleiros egrandes nomes acadêmicos". Coisaque vai voltar, na segunda metade dosanos 90, através da voz de uma pessoaespecífica e do seu grupo de apoio. E,os "sindicaleiros", apesar de seremcombatidos por "dedicarem-se" mais àtarefa sindical, jamais se recusaram afazer o debate sobre as questões edu-cacionais sobre ciência e tecnologia. Oque fazíamos como Associação (Sin-dicato) era algo novo, no sentido deque atendíamos às necessidades dacorporação, porque isso não só era de-cisivo para nossa base bem como paraa construção/manutenção do movi-mento. Tínhamos (e temos) que atuarna resolução da questão material, mastambém apresentávamos projetosalternativos para o conjunto da socie-dade. Lembro, por exemplo, que naquestão da Constituinte, tínhamosprojetos sobre ciência e tecnologia, co-municação, educação, arte e isso emum momento em que tudo estava porser feito. Isto nos permitia, inclusive,construir um espaço diferente para auniversidade. Nela como um todo, osgrandes nomes acadêmicos, salvohonrosas exceções, não participavamdos embates. Quando veio a nova re-pública, saiu um manifesto dos cha-mados grandes intelectuais, os auto-denominados Alto Clero (sic) dizendo:vocês souberam lutar contra a ditadu-ra, agora deixem que governamos auniversidade, pois somos nós quesabemos governar a universidade. Omanifesto expressava uma tendênciaque combatíamos. Expressava a ten-dência de a universidade era para sertrabalhada por pessoas tão especiais

que era incompatível com os docentesmenores (assim nascia a expressãoBaixo Clero que, como ferro em brasa,era colocado sobre a maioria dos do-centes universitários). O acinte era talque sequer o docente universitário, di-ferenciado na sociedade por sua pró-pria situação e capacitação, era passí-vel de ser considerado um cidadão daUniversidade. Conseguimos alterarisso, apesar do preconceito continuar aexistir. Há ainda nostálgicos, até hoje,desse tempo em que não havia movi-mento docente e que a Universidadeera tão "tranqüila". Afinal de contas, apolítica sempre é vista por estes como

fonte de tensões, desequilíbrios, caos.O período da chamada Nova Repú-

blica nos obrigou a fazer análises maisfinas sobre o seu significado. Logo quesaiu o primeiro plano econômico dogoverno Sarney, a então AssociaçãoNacional foi a primeira entidade quese reuniu e produziu um belo docu-mento sobre o significado do plano. Ea realidade confirmou nossa análise.Um parênteses: seria muito importan-te que o Sindicato publicasse o con-junto dessas análises de 1981 até hoje.Além de ser uma contribuição fantásti-ca para a memória do movimento so-cial, mostraria as experiências vividas epermitiria um balanço sobre nossa his-tória. Voltando. Isso efetivamente foiimportante porque marcou a radicali-dade da nossa intervenção - no senti-do original, de pegar a raiz do proble-ma e trabalhá-lo. Sempre é bom reafir-mar isso porque o Brasil tem o mau

hábito de confundir radicalidade comsectarismo. Todo um conjunto de liga-ções a partir do processo de discussãoda Constituinte que não só nos obri-gou a fazer efetivamente uma série deprojetos, de lutar por uma lei de edu-cação, de ciência e tecnologia e de co-municação.

Isso demarcou uma novidade emrelação ao momento anterior. A pri-meira geração do movimento docentenão tinha uma atividade tão intensano Congresso, até mesmo porque nin-guém acreditava na lei, depois de tan-tos anos de ditadura. Lei era, naquelemomento, quase que science fiction,

pois o despotismo brutal ocorria inde-pendente das chamadas "garantias de-mocráticas". O movimento tocava asquestões e as enfrentava, muitas ve-zes, por fora da lei para poder dar ma-terialidade aos seus projetos. Com aConstituição, criou-se um novo campoe as pessoas passaram a intervir muitomais nesse processo. Para mim, o divi-sor foi exatamente marcado pelosanos 90. Já, efetivamente, no final dosanos 80, as políticas neoliberais domi-navam o mundo. Defrontamo-nos, oconjunto dos companheiros que faziao movimento docente, com o fato de

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 219UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

A primeira geração do movimento docente não tinha uma atividade tão intensa no Congresso, até mesmo porqueninguém acreditava na lei, depois de tantos anos de ditadura. Lei era, naquelemomento, quase que science fiction.

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que a Universidade estava sendo alte-rada radicalmente na sua natureza, apartir dessas políticas. Tivemos que fa-zer um esforço teórico e político deentender que diabo estávamos falan-do, que exatamente eram essas taistransformações do mundo do capital,indevidamente chamado de mundodo trabalho. Essa distinção se prende aque o mundo do trabalho é o que virá,mas que ainda não construímos.

Nesse sentido, essa geração, em-bora mantendo uma coerência políti-ca, vai transitando para um outro cam-po marcado por esses enfrentamen-tos aparentemente novos como se alógica do capital não estivesse mar-cando o momento anterior. Claro queocorreram mutações não no sentidode uma pretensa "sociedade do co-nhecimento" mas de um aprofunda-mento da dominação das classes tra-balhadoras por uma renovada racio-nalidade capitalista.

Voltando um pouco atrás, diria quevivemos uma experiência muito im-portante no período da constituição daCentral Única dos Trabalhadores. Esti-vemos presentes como Associações deDocentes, já desde Praia Grande. Ocongresso de 1981 que deveria terfundado a Central, acabou postergan-do sua tarefa em face do calendário.Como vemos, é velha a tese de "nãofazer marola para não prejudicar ascandidaturas". Vimos, no entanto, a ex-pressão de duas tendências: uma que-ria a constituição da CUT e era com-posta pelos chamados novos sindica-listas, e a outra que falava em um ins-trumento do tipo: uma grande confe-deração e era patrocinada pela chama-da esquerda tradicional (os PCs, oMR8 acoplados com a velha pelegadae uma burocracia das confederaçõesoficiais). O projeto deste grupo foi der-rotado, no Congresso de Praia Grande,de 1983, ao ser fundada a Central Úni-ca. Isso criou, para nós militantes do

movimento docente, um interessantedesafio, filiar nossas entidades à CUT.Um debate que ainda hoje encontra-mos mostrou sua força. Professor uni-versitário é trabalhador? Deve estarnuma central de trabalhadores? Foium debate rico e infernal. Vivemos coi-sas do tipo: a maior parte era militan-te do PT, todos com a camiseta da CUT,mas na hora de votar a filiação ou não,da Associação Nacional à CUT, muitoschorando, não o fazíamos naquelemomento a filiação porque não haviadeliberação de base. Isso é uma quali-

dade - alguns acham até que é defeito- que efetivamente esse movimentotem. Ou seja, um respeito grande àssuas decisões de base, das suas as-sembléias. Levamos cinco anos paranos filiar à CUT. E, nesse processo, essafiliação foi se tornando mais madura. Àépoca, eu dizia que o conjunto do mo-vimento docente seria a melhor formade assessoria da CUT, porque a univer-sidade fala praticamente sobre tudo epoderia ser uma assessoria militante,ao invés de criarmos uma casta profis-sional de assessores. Doce ilusão. Nãofoi este o caminho escolhido.

O movimento docente, embora te-nha se filiado à CUT, faz isso de umamaneira muito desigual. Existem algu-mas seções sindicais nossas que têmem relação à Central uma prática coti-

diana, outras têm uma vaga simpatia,contribuem, compram o convite, masnão vão à festa, de modo que a Cen-tral ainda está por ser consolidada nointerior do movimento docente. E ago-ra estamos enfrentando um problemapor causa das posições dela a respeitodas reformas do governo Lula.

Esta é uma situação curiosa. Pareceque damos voltas e mais voltas, masnão voltamos à mesma questão. Vive-mos uma forma diferenciada, maismarcada, para muitos, de forma an-gustiante. Um belo exemplo é a ques-tão, clássica no movimento: Somostrabalhadores ou não? E seus desdo-bramentos: devemos fazer o movi-mento como categoria ou vinculadosaos movimentos sociais? Mudou a

qualidade da questão. A pergunta,vencida a premissa conservadora deque somos seres especiais, passou a teruma forma mais concreta. Se o movi-mento majoritariamente tem decididopela participação em conjunto com osmovimentos sociais, isto não é, contu-do, uma unanimidade, está longe disso.Ela vai sendo redefinida e aparece comoutras formas: somos contra ou a favorda institucionalidade? Devemos partici-par ou não efetivamente pela açãocomo cidadãos ou como militantes sin-dicais? É uma discussão interessante.Ela vai e volta, nunca está no mesmoponto, mas este é o nosso pecado ori-ginal que temos que resolver.

Nesse sentido, acho que houveuma nova inflexão que foi a da grevede 1998, extremamente dramática,

220 - DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

O falso debate"sindicaleiros X grandes intelectuais" é atualizado. E eles, graciosamente, atribuem a si mesmos o papel de grandes intelectuais. Ideologias desse tipo não necessitam comprovar-se.

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com uma greve de fome no seu inte-rior. Nela houve um racha profundoque se consubstanciou simbolicamen-te num aperto de mão do então can-didato de oposição ao ACM, com apromessa de que se pararia a greve.Isso criou um clima de consternação. Aoposição acusava a maioria de mani-pular as assembléias e o comando degreve e Ele, porta voz dessa legitimida-de, da maioria silenciosa evidente-mente, queria resgatar a dignidade dauniversidade. Novamente, o falso de-bate "sindicaleiros X grandes intelec-tuais" é atualizado. E eles, graciosa-mente, atribuem a si mesmos o papelde grandes intelectuais. Ideologiasdesse tipo não necessitam comprovar-se. Caso o fizéssemos e comparásse-mos os currículos e a produção nossae deles, a autodefinição positiva delescairia por terra, com algumas exce-ções. A maioria silenciosa, o apoio daCentral e do Ministério deu a vitória aeles. Obviamente, o desgaste da grevedevida à intransigência do governoajudou fortemente esse processo.Passamos dois anos que foram um de-sastre absoluto.

Foram anos decisivos que o gover-no tucano aproveitou para implemen-tar o projeto neoliberal para a universi-dade. Todo um conjunto de questõesque já vinha desde antes de FHC, masna mesma linha, como, por exemplo,os centros de excelência, os laborató-rios associados, tudo naquele mesmosentido dos grandes intelectuais ver-sus os bagrinhos. E mais, a definiçãoclara de que existe uma universidadede ponta e um conjunto de escolas denível superior que vai reproduzir pura-mente conhecimento. Durante essesdois anos, o embate político dentro dosindicato foi muito forte. A oposiçãoganhava todos os congressos, todos osCONADs e a direção dizia: quando vo-cês forem direção, vocês implemen-tam, nós vamos fazer o que queremos,

o congresso apenas indica e nós inter-pretamos. E tais pitonisas tropicais fa-ziam a leitura que lhes interessava evi-dentemente. O movimento foi forte-mente golpeado. Mas ele se recupe-rou, se reconstituiu, a partir da constru-ção pela base de uma nova direção.

Há um elemento de continuidadeem todo esse período da ANDES aoANDES-SN que se traduz em umaimensa produção cultural, intelectual,política reveladas nas análises de con-juntura, nas críticas e nos projetos paraas políticas sociais, nesse importanteinstrumento que é a Universidade eSociedade, cuja continuidade implicaum esforço heróico. Não é fácil publi-car três números por ano de uma re-vista que faz parte da bibliografia e dos

cursos de muitos cursos universitários.E isso porque somos "sindicaleiros"!Isso demonstra a qualidade da nossamilitância que nada tem de ativistas debaixo clero, como eles gostam dedizer. Algumas análises feitas por essemovimento infelizmente não enraiza-ram. Toda a elaboração teórica e polí-tica, por exemplo, sobre o PPA, o Pro-grama Plurianual, que FHC chamavade Avança Brasil e que era, na realida-de, um Recua Brasil. Quando o PPAdivide o território nacional em esferasde intervenção do capital, isso signifi-

ca muito, significa a definição de polí-ticas sociais, de políticas macroeconô-micas de alianças com os grandescapitais internacionais, mas essa aná-lise não conseguiu enraizar apesar demostrar claramente as justezas dasnossas análises.

Uma grande mudança que senti-mos durante o período que vai da fun-dação até hoje é o tipo de militanteque tínhamos. Antigamente, eu diriaque o nosso militante elaborava mais,até pelas condições objetivas da uni-versidade. Hoje, todo mundo está su-focado por trabalhos cada vez maiscrescentes, as malditas comissões ad-ministrativas, mas, enfim, a dificuldadede se conseguir uma mínima libera-ção. Apesar das novas dificuldades, se

acentuou algo muito mais importante:a questão de qual seria o grande pro-jeto. E este ficou mais claro em ummomento mais difícil. A generalidadede uma sociedade socialista já não nosbasta. Temos que responder se quere-mos transformar o mundo ou atuardentro da cidadania tal como ela émajoritariamente vista hoje? A cidada-nia não é um ser em si, não é uma in-teléquia abstrata que está pairandonos ares. É a forma de ser de uma de-terminada relação social. A cidadaniacapitalista reflete as desigualdadesdessa sociedade. Quer dizer, privilegiaressa forma como a forma, significa in-terditar-se a possibilidade de construiraté um outro projeto de cidadania.

Temos hoje menos ilusões, maisclareza. Enfim, se perdemos, por um

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Temos que responder se queremos transformar o mundo ou atuar dentro dacidadania tal como ela é majoritariamentevista hoje? A cidadania não é um ser emsi, não é uma inteléquia abstrata que está pairando nos ares. É a forma de ser de uma determinada relação social.

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lado, em abrangência, no conjunto deações, ganhamos o aprofundamentodessas questões, o que parece ser a"maldição dos nossos tempos". Quan-to mais se aprofunda o conhecimento,mais delimitado fica o campo. O com-promisso é, exatamente, aprofundarsem estreitar, unir a militância à capa-cidade investigativa, de ter projetos,mas não de ser propositivo como gos-tam alguns (ter um projetinho a discu-tir no Congresso), mas de elaborar umgrande projeto para a sociedade ecomeçar, com os movimentos sociais,a reconstrução desse país, na perspec-tiva de uma sociedade para além docapital. Essa é uma constante. e umadiferença. Uma constante: isto está naprática do militante e na sua emoçãoao realizá-la. Uma diferença: na formaconcreta de fazê-lo. A radicalidade doreal acentua a necessidade da GrandePolítica, dos grandes projetos, e quenão nos percamos nos meandros dapequena política que é mais adminis-tração do que intervenção consciente.

US: Havia um certo clima de harmoniadesde a Andes ao Andes, pelo menos,até 1998. Uma ou outra dificuldadepontual, mas existia uma harmonia deatuação, de concepção. O que aconte-ce com o movimento docente? Derepente uma direção toma o sindicato,pára o sindicato. Como isso foi possí-vel?

Edmundo: Faço freqüentemente aafirmação de que somos jacobinos.Estes, na Revolução Francesa, levarama burguesia francesa muito além doque ela imaginava, como, por exem-plo, a política dos preços máximos, aconstrução de um exército nacional,um exército patriótico etc. Enfim, aburguesia foi levada, foi arrastada porum setor dela a avançar nas suas rea-lizações construindo uma nova institu-cionalidade para fazer o seu mundonovo. Este é o papel dos intelectuais,

das direções. Nosso movimento foisempre muito fortemente marcadopor essas direções que representavamo setor mais avançado politicamenteda universidade, com todas as suascontradições. Não somos a média daUniversidade. Mas sempre decidimoscoletivamente, em assembléias ondequalquer docente, mesmo não filiado,tem voz e voto. Mais ainda: na imensamaioria dos casos (exceções pode ha-ver), nos submetemos à vontade des-sas instâncias democráticas. A direitauniversitária joga seu campo, no cam-po institucional (os conselhos etc.). Ogoverno tenta fazer a sua intervençãoatravés de políticas macro que defi-nam exteriormente a natureza, a formae o campo de existência da universida-de. Mas não entra tanto no embate deprojetos com a universidade. Impõemconstrangimentos a ela, de fora, semdebater (ver a proposta de autonomia

de Paulo Renato). Com a chamada redemocratização,

começou uma dinâmica muito interes-sante porque se, por um lado, perde-mos uma enorme quantidade de qua-dros que foram para os partidos, acentral, e os curiosamente chamados"governos de oposição", por outro, omovimento docente teve que redefinirsua militância. Os GTs, por exemplo,deram maior concreção à nossa crítica.Se a luta contra ditadura nos unificara,a luta no espaço da democracia criouasperezas, dificuldades. Houve ummomento em que o governo FHC e adireita da universidade tiveram clareza

de que era possível uma intervençãodiferenciada. E, para tal, nada do quepegar militantes conhecidos do movi-mento para fazer isso. Militantes que jádiscutiam a natureza do próprio sindi-cato e diziam preferir a forma associa-tiva defenderam, em seus programaseleitorais, que o Andes deveria seruma "SBPC de esquerda". Esses mili-tantes se organizam e se expressamatravés de algumas universidades on-de o peso conservador é mais forte eaí há essa ruptura. A acusação é departidarização do movimento, de umabeligerância contra tudo que o gover-no propõe, enfim, volta-se ainda umavez à velha cantilena do "sindicaleirosx grandes intelectuais".Nós teríamosabandonado a nossa capacidade derefletir e pensar a universidade etc.Questionavam sobre o "estatuto onto-lógico do servidor público" para gol-pear nossa unidade com aqueles tra-

balhadores, mas esqueciam de mos-trar o "estatuto ontológico da campa-nha salarial de categoria". Iam mesmona contra-mão da tese do sindicalismoorgânico defendido pelo campo majo-ritário da Central que os apoiou nessaseleições. E nas que se seguiram. Iamclaramente no sentido da categoriacontra a perspectiva de classe. Reve-lavam-se assim profundamente corpo-

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Militantes que já discutiam a natureza do próprio sindicato e diziam preferir a forma associativa defenderam, em seus programas eleitorais, que o Andes deveria ser uma "SBPC de esquerda".

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rativistas, coisa que recriminavam naANDES-AD.

É nesse quadro que se marca umnovo período - felizmente breve - nanossa história. Isso obrigou uma defi-nição nossa, fez com que os que nãoconcordavam com essa militânciadesorganizadora, imobilizadora e imo-bilista passassem a colocar a meta doresgate do ANDES-SN para a luta. Re-nasce uma nova organicidade militan-te. Essa nova retomada militante de-sempenha um papel intenso na lutacontra o projeto neoliberal. O "ForaFHC e o FMI", proposto por nós, nãoera uma palavra de ordem vazia. Sin-tetizava, a um só tempo, a política acombater, quem aplicava essa políticae o caminho da superação. Passamosdois anos de lutas contra o imobilis-mo. Com as mãos livres, o MEC e Pau-lo Renato aprofundaram a tentativa dedestruição do que ainda restava de pú-blico na Universidade. O governo apre-sentava projetos desde as Organiza-ções Sociais até o Público Empregoque, se implementados, matariamqualquer possibilidade de autonomiae de liberdade de crítica da Universida-de. Ao mesmo tempo, a privatizaçãoda educação superior caminhava lar-gamente e a direção nada fazia.

A greve nacional, construída pelasbases e pela nova direção nacional,lado a lado com a FASUBRA e comsetores do movimento estudantil, pôsem cheque a política de Paulo Renato.O apoio amplo da população, de par-lamentares, dos movimentos sociais,do Judiciário, aliado à combatividadedos grevistas, impediu que FHC e PRrepetissem contra nós o que tinhamfeito contra os petroleiros. Corte depontos, multa diária de milhões, ame-aças várias, tudo foi sendo vencidopela vontade dos militantes do ANDES,da FASUBRA, da UNE. O fim das pre-tensões presidenciais de PR foi um pe-queno detalhe nessa luta. Evidente-

mente, com um certo sabor de vitória.O governo pactuou com o movimentoe, para variar, recusou-se a cumprir oque tinha pactuado. A luta teria quecontinuar.

Veja só e é aí que se desloca ocampo porque as contradições vão semodificando na medida em que sur-gem alternativas diferenciadas para ogoverno federal e o governo Lula hojeé um desses diferenciais. Curiosamen-te, o campo majoritário do sindicatosofre essa contradição. O campo daoposição, de repente, virou lulista, sãomais defensores do Lula do que mui-tos petistas e isso faz com que as ten-sões se voltem agora privilegiadamen-te para o campo majoritário. Esse é omais fascinante da política, o como astensões e contradições se movem. Aharmonia - para retomar tua expressão- eu diria que é uma harmonia de umacerta indefinição. Tem algumas tesesque dizem que o sucesso anterior doPT foi exatamente o fato de que elenunca concretizou o seu programa,falavam de um socialismo geral, vago,etc, o que dava a possibilidade de cadaum dos militantes do PT fazer a sua lei-tura e, portanto, poder atuar aí dentro.Um pouco da história do ANDES-SNtambém foi assim, nós não tínhamosuma discussão política aprofundadasobre a questão partidária. Era maisfácil termos uma leitura aprofundadasobre a LDB do que sobre a questãopartidária, o que é uma loucura quan-do é feito por aqueles que são acusa-dos de sindicaleiros. Hoje, continuacada vez mais necessária uma clarifica-ção das posições, uma definição dasposições. A ANDES-AD, nossa tendên-cia majoritária, é um campo de uma

confluência enorme entre militantespetistas, independentes, do PSTU etc.E esse campo é marcado pela defesados grandes projetos para a sociedadebrasileira. Como tendência sindical,como expressão do movimento deuma militância de um organismo demassa, devemos escapar da armadilhaque é polarizar sobre a questão parti-dária. Essa definição vai ser dada, masserá mais rica se ela se traduzir nosembates concretos e não apenas nasfalas.

Costumo dizer que fazer política édiferente de declamar princípios. Te-mos que levar os princípios em contasempre, mas com a obrigação detransformá-los em política. Parodiandoas Sagradas Escrituras, o logos se fezcarne. Os princípios se transformamem política no sentido, insisto, daGrande política, dos grandes projetospara a sociedade. Nesse sentido, achovamos continuar tendo uma desarmo-nia. Não entendemos essa desarmoniacomo algo desagregador. A leitura tra-dicional que se faz da crise é sempre ado perigo, do diferente que tumultua.Crise vem do grego crisis, significa cria-ção. Viva a crise, desde que ela sejavivida evidentemente a partir dessecompromisso maior como militanteque é o de estabelecer qual é o grandeprojeto nacional que queremos cons-truir. Continuo achando que vamosredefinir essa situação, que vamos con-seguir, efetivamente, no embate, cons-truir uma nova intervenção coletivadaqueles que têm um projeto de uni-versidade e sociedade que se diferen-ciam hoje partidariamente, mas quemantêm uma unidade nessa luta. Oembate dos projetos definirá o campoda luta. Nada está fixado para sempre.

É muito interessante ler os docu-mentos do movimento. Sobre isso va-le, a pena ler a "ANDES-SN. Um sindi-cato de intelectuais", tese de Douto-rado de Ignez Navarro sobre o projeto

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político-pedagógico do ANDES-SN.Tese que me orgulho de ter sido o ori-entador e que graças a ADUFMAT-Ssind, hoje, é possível ter como docu-mento importante para a militância.Uma boa parte da história do Sindicatoestá aí trabalhada.

US: Vou voltar um pouco para oeixo da nossa entrevista com uma per-gunta: o governo Lula tem se referidoà inflexibilidade do corporativismo sin-dical diante das propostas de reformaem andamento no Congresso. Comoavalia esse posicionamento do Presi-dente da República como um ex-sindi-calista radical?

Edmundo: Primeiro temos que dis-cutir se ele foi um sindicalista radical.Eu diria que ele foi um brilhante ora-dor, uma das mais raras inteligênciasdesse país, quanto a isso não tenho a

menor dúvida. Vale em termos de inte-ligência mais do que a metade da aca-demia. Agora, ele é uma criatura do ve-lho sindicalismo. Lembro que ele com-batia a idéia de os trabalhadores terempartido político, é só ler as entrevistase alguns que agora o apóiam achavamque era um pelego. Ele foi, sem dúvi-da alguma, um dos militantes mais im-portantes que contribuiu para um cer-to divisor de águas muito claro, com asgreves do ABC, com a fundação daCentral. Lula é para mim um nome co-letivo, um conjunto de militantes doqual ele é a figura pública por excelên-cia. Hoje ele se apresenta de tal modoque, se julgarmos pelas aparências, re-

presenta exatamente a negação doque falava anteriormente. Não achoque mudou de repente. Se examinar-mos as plataformas políticas das elei-ções presidenciais, veremos que, des-de 1989, o momento de maior emo-ção política desse país antes da suaeleição, a proposta já era recuada, jánão era aquilo que o PT vinha afirman-do historicamente. Focalizamos muitonossa atenção sobre o Lula porque eleé a direção formal, mas forma comtodo um conjunto de militantes, de as-sessores que se expressam e são im-portantes na definição dessa linha co-mo, por exemplo, seu líder do Senadoque inclusive já foi militante do movi-mento docente e defendia o subsídiodo governo federal para as escolas par-ticulares.

Esse coletivo de intelectuais vemfazendo uma leitura de que como se

desconstruíra, aparentemente, de ma-neira radical, qualquer alternativa in-ternacional, só nos restava fazer o quê?Fazer uma mediação difícil entre osgrandes projetos e a busca de umanova organicidade no mundo do capi-tal no qual nós pudéssemos ter umaboa posição relativa. Não é novo o dis-curso dele em termos de combater umcapitalismo selvagem. Ora, quem com-

bate o capitalismo selvagem admiteque existe um capitalismo bom. O queaparece como novo é a forma de im-posição de seu projeto. Lula e esse co-letivo aprenderam e estão aplicandoexatamente a "lição" clássica do BancoMundial: ou você faz as mudanças, noinício do governo, quando tem popu-laridade, ou não as faz mais. Isso o temlevado, cada vez mais, a fazer, de for-ma brutal, certos tipos de afirmações.Combater o corporativismo, colocandosob essa rubrica a defesa dos direitossociais e as condições de vida das clas-ses trabalhadoras e, além disso, pedirao movimento que se identifique coma nação (assim abstratamente, semnenhuma determinação) é uma coisamuito complicada. Significa formularjuízos sobre uma parcela do movimen-to sindical como se este fosse total-mente oportunista, só pensando noseu bolso. Isso não é real. O movimen-to sindical é muito mais rico do queisso. O movimento sindical tem suascontradições, suas diferenças, algunssó pensam realmente na questão sala-rial, mas, em um país com as desigual-dades na distribuição de renda tãobrutal, será que é um pecado querersobreviver? Penso que, se se fala issodo movimento dos servidores públi-cos, a coisa fica muito mais dramáticaporque efetivamente quem está nomovimento dos servidores públicosnão são os picaretas, os acomodados,nem os altos escalões de cujos privilé-gios pouco se fala, nem os bagrinhosimpostos pelos políticos e que estãoemperrando a máquina estatal. Privilé-gio é, por exemplo, pagar quinze salá-rios aos parlamentares por pouco maisde nove meses de comparecimento aoCongresso. Ao invés disso, atingem oque há de melhor no sindicalismo dosservidores públicos.

Combater o corporativismo em umpaís com uma brutal distribuição derenda é uma bandeira falsa, é não sa-

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Não é novo o discurso dele

em termos de combater um capitalismo

selvagem. Ora, quem combate o

capitalismo selvagem admite que

existe um capitalismo bom.

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ber aproveitar a sua própria experiên-cia de vida, no sentido de fazer essediálogo. Construir com os trabalhado-res um novo projeto para o país e não,na prática, de pedir que as pessoas es-queçam o que ele falou. Nenhum sin-dicato fugiria a um debate nacionalreal sobre as transformações. O que ossindicatos não querem é evidente-mente assumir o ônus de aceitar umareforma ou um conjunto de reformasque os imobilizam, os destruam comosindicato e em médio prazo destroemas condições de vida da população.Vamos discutir a transformação daCLT? Vamos! Tem coisas absurdas?Tem! Agora, é para flexibilizar o traba-lho ou para garantir o trabalho? Essa éa questão central. Reforma da Previ-dência. Tem privilégios? Tem! Mas sãodeles os privilégios. Não da massa.

Nosso sindicato tem uma posiçãoclara de extensão a todos os trabalha-dores a aposentadoria integral. Nãosomos nós os corporativos. Estamosestimulando permanentemente o de-bate sobre essas questões e eles per-manentemente escamoteando. Oexemplo primoroso desse procedi-mento é o fato de que o João Paulo,que é o Presidente da Câmara, e agorao Greenhalgh, como Presidente da Co-missão de Constituição e Justiça suge-rem para apressar o processo, o quê?Diminuir as audiências populares. Ouseja, diminuir o debate. Quando os mi-nistros vão explicar as reformas, reci-tam a cantilena em péssimo cantochão e se retiram. Não é um debatereal, não se demonstrou realmenteonde está o déficit da previdência. Agrande questão da previdência não étransformá-la de modo a ter um supe-rávit financeiro, mas, pelo contrário, éestender a Seguridade Social para quetoda a população tenha condições efe-tivas de vida, é acabar com a fila doSUS e não engordar os fundos de pen-são, os planos de saúde, que, como

sabemos, são cada vez mais ilusórios.Como desregulamentar o trabalhoquando ainda existe trabalho escravonesse país? O que eles chamam eufe-misticamente de desregulamentaçãodo trabalho é uma regulamentaçãomais e mais intensa em benefício docapital. O trabalho nunca foi tão regu-lamentado, só que com perda de direi-tos. Esse é o conjunto de desafios.

Gramsci dizia que o encantador deserpente não pode ser mordido pelavíbora que ele encanta. O militantepartidário, por mais que ele esteja,nesse ou naquele partido, ele não po-de, por isso, deixar de refletir. O me-lhor militante que está no partido dogoverno deve ser aquele que é capazde fazer a crítica aos erros do seu go-verno. Apoiar incondicionalmente écaminhar junto com o governo para aderrota da sociedade que, em médioprazo, será também a do seu partido ede toda a esquerda, mesmo a que cri-tica esse continuísmo político-financei-ro. Começa a se constituir a sensaçãode que se era para isso, era melhorficar com os antigos, sabiam fazer me-lhor. Quando eu era um militante pe-tista (onde permaneci até metade dos

anos 90 e já fazia essas críticas comoos companheiros testemunharam peloque escrevia e pelas minhas interven-ções em Congressos e CONADs) tinhaaquela história, nós não temos dinhei-ro para fazer as grandes obras, entãovamos fazer o modo petista de gover-nar. É esse o tal modo? E o que restoupara a população? Defraudar a popula-ção é caminhar para a derrota e aí nãotem militância que segure. Ela podefazê-lo, em um primeiro momento, nosegundo momento, ela vai ficandoindignada.

Para enfrentar a proposta da Pre-vidência, da privatização em geral, sótem um caminho: a unidade máximados trabalhadores. Aí, a resposta nãopode ser a resposta de um ou de outropartido, tem que ser a resposta da so-ciedade. Qual a tarefa dos partidos?Criar as condições para a expressão davontade social. É preciso ter razão coma sociedade e não sobre ela. Esse é odesafio que os militantes têm perma-nentemente. Porque, se me distancioda sociedade, que capacidade terei deinterpretar os seus interesses, de pro-jetar uma alternativa junto com ela epara ela? A política para mim é umaciência experimental, é a capacidadede entender o real, suas contradições,e propor, mesmo que elas nos colo-quem em situações difíceis. É preferí-vel a mais dura realidade à mais boni-ta das ilusões, pois esta leva ao nossodespreparo para o embate. O movi-mento docente deve, novamente, reu-nir a sua capacidade de análise e a sua

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É preferível a mais dura realidade à mais bonita das ilusões, pois esta leva ao nosso despreparo para o embate. O movimento docente deve, novamente, reunir a sua capacidade de análise e a sua militância.

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militância. Somos privilegiados, nessesentido, o nosso trabalho permite isso.É da sua própria natureza essa capaci-dade e possibilidade de elaboração.Isto não é um privilégio nosso, mas,seguramente, para nós, essa tarefa émais fácil, pois estamos em um espa-ço criado socialmente para que possa-mos pensar o conjunto da sociedade enão simplesmente para ganhar dinhei-ro. Até porque se for para ganhar di-nheiro, é melhor procurar um outrotrabalho: um% não dá.

O interessante, e é por isso quecontinuo na política, é como resolveras grandes questões nacionais, comocriar a liberdade para o conjunto dasociedade. Se formalmente vivemosuma sociedade "democrática", com to-das as contradições, violências do coti-diano, devemos dar-nos conta que es-sa forma democrática torna livres aalguns, mas deixa-nos prisioneiros deacontecimentos que não conseguimoscontrolar. O mega especulador GeorgeSoros disse uma vez: eles podem ele-ger o presidente, mas não podem deci-dir sobre a política econômica. Essaliberdade do ir e vir e de poder se pro-nunciar é importante, sem dúvida. Mascomo Bobbio, o mais expressivo liberaldo século XX, nos adverte não temosnenhum controle sobre a burocracia,as forças armadas etc. E isso é maisgrave quando nos referimos às possibi-lidades democrática dos trabalhadores.

A liberdade democrática não podeser a liberdade para este ou aquelepartido, mas a de construir coletiva-mente uma nova sociedade. A liberda-de não pode ser a liberdade da fome,pois quem tem fome não pode ser li-vre. Há milhões de pessoas no Brasilcujo horizonte político e ideológico échegar ao dia seguinte. Quando se falaque somos cidadãos, devemos nosperguntar: somos quantos? Trinta mi-lhões? E os outros cento e tantos mi-lhões, que apenas sobrevivem, são o

quê? É um problema que o militantetem que responder, que o sindicatotem que tentar resolver, gostando ounão gostando do governante.

Insisto, se eu sou militante do par-tido do governo, eu tenho que sercapaz de fazer análises e apontar paraele: olha, este é um terreno minado,este é o terreno preferencial. E nãoapenas aplaudir e dizer: "tem que darcerto". O problema não é saber se Lulafoi ou não um sindicalista radical. Seisso não se mostra na prática de hoje,passa a ser simplesmente um capítuloda "arqueologia política" O governotem que pensar de dentro para fora enão de fora para dentro. Não a partirdas imposições internacionais. E issonão tem ocorrido. A Folha de SãoPaulo publicou, poucos dias atrás, umcomparativo entre um documento doBanco Mundial e um outro que estavana página do Ministério da Fazenda.Bom, mais igual do que aquilo só comum tradutor melhor. Palocci disse: nãoé igual, são meras coincidências, sãoconsensos técnicos, obviedades, porisso, a igualdade aparente. Sabemosque não é assim. Se a questão é tersido sindicalista radical, o Palocci tam-bém o foi. Lembro que, no congressode fundação da CUT regional I, da qualeu fui Secretário Geral, quando aindaexistiam CUTs regionais, em São Paulo(desaparecidas e transformadas sinto-maticamente em escritório), nós colo-camos o programa de criar a CUT inte-rior II, o nome do Palocci despontou.Era, então, um jovem sindicalista, vin-culado à tendência O Trabalho e des-

pontava como uma grande liderança.É... ele progrediu na vida, talvez não damaneira que gostaríamos, mas "pro-grediu".

US: Puxando um pouco da suaconversa, nós estamos vivendo ummomento de muitas dificuldades. Queespaço para atuar, por exemplo? OCongresso sempre foi um lugar e tí-nhamos como procurar o Congressopara fazer as nossas reivindicações, onosso trabalho político. Hoje, que opo-sição procurar para enfrentar essaspropostas de políticas sociais do go-verno Lula, com esse Congresso quasesem oposição. Como o senhor avaliaessa situação?

Edmundo: Vamos fazer uma metá-fora. O minerador rompe paciente-mente o veio para extrair uma peque-na quantidade de ouro. Temos que tera paciência do garimpeiro. As fotos deSerra Pelada, tão imortalizada porSebastião Salgado, mostram a dimen-são do trabalho. Mas é uma paciênciaque não é passividade.

Hoje não existe oposição, salvo al-guns poucos nomes que estão sendo"enquadrados", por votar naquilo quevotaram quando o partido do governoestava na oposição. E que estão fazen-do o que está no programa do partido.Vivemos um aparente paradoxo. Sepor um lado, os tucanos foram derro-tados nas eleições, eles ganharam napolítica. A grande raiva deles é queeles ficaram sem discurso. No meu do-cumento de conjuntura, em Teresina,falei que os tucanos iam tirar as casta-nhas do fogo com as patas petistas.Sem se queimar. E estão conseguindo.Ficaram sem discurso, mas vêem seuprograma derrotado anteriormente serimplementado pelos seus "algozes". Écomo o torcedor do Flamengo que, senão pode vencer, fica, pelo menos, ale-gre com a derrota do Vasco. Hoje elesficam falando que os governistas estão

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fazendo campanha de cooptação so-bre os seus deputados, esquecendo-seque fizeram o mesmo no reich tucano.O PFL faz o velho discurso, cada vezmais hipócrita, porque se não se podiaacreditar naquele tempo, hoje tem,muito menos, credibilidade. O PL é"radical de carteirinha". Outro dia, natelevisão, o presidente do PL dizia: nóscombatemos intransigentemente aspolíticas do governo Fernando Hen-rique Cardoso, por isso, estamos comLula e estamos apoiando as políticasde reforma da previdência. Eu não seise eles são mitomaníacos ou se men-têm pura e simplesmente. Porque di-zem que combateram aquilo que es-tão votando hoje, com a diferença quehoje eles são governo. O PMDB, com asua empáfia, de quem já foi o maior

partido do ocidente, na realidade, estádisputando uns carguinhos, é o "parti-do da boquinha". Se Lula der mais car-gos, aderem. Você lembra do Diógenes.Pois é, nós estamos assim. O Congressoé um espaço inútil? Não. Mas será tãomais poderoso quanto mais se consigafazer pressão popular sobre ele.

A Marcha sobre o Congresso. Lula evinte e sete governadores, lado a lado,com governadores acusados de cor-rupção, claramente comprometidoscom a ordem que sempre dominouesse país, foram entregar a proposta.Ao lado disso, promovem a utilizaçãoabsolutamente indevida dos meios decomunicação de massa, já suspensapor ordem da Justiça, provocada poração do movimento. E isso porque

além de configurar um abuso a refor-ma sequer tinha sido enviada ao Con-gresso, e já estavam tentando fazer acabeça do povo. Lula aprendeu. E acre-dita que a máxima de Tomaso di Lam-pedusa: "Para que tudo permaneça, épreciso que tudo mude", é o Vademecum da política.

O conjunto dos militantes, num pri-meiro momento se entusiasma, masdepois vai ter que responder às suasbases porque está apoiando isso. Re-pare a situação do João Felício. No iní-cio, ele apoiou, praticamente de formaincondicional, a reforma da Previdên-cia até que a assembléia da APEOESPvotou contra a reforma. Ele então co-meçou a fazer críticas. Por quê? Porquenão pode ir ostensivamente contra suabase social. O governo Lula, rapida-

mente, fez uma readequação. "derru-bou para cima" e ele passou a sermembro de um dos muitos conselhosexistentes. Colocou o Luiz Marinhoque tem a dupla vantagem de não serfuncionário público e ser da mais estri-ta confiança. Denunciávamos que oFHC tinha um líder no Supremo Tribu-nal Federal, o governo tem, agora, umlíder de bancada na Central Única dosTrabalhos. Não sei como foi em todosos casos, mas o nível de sectarismo docampo majoritário da Central, a respei-to dessa desarmonia que você falava, ébrutal. Em de São Paulo, houve umaapresentação de uma proposta de mo-ção contra a guerra do Iraque. Lem-bremos que a guerra foi combatidapelo próprio Lula. Mas como a moção

não fora feita pelo campo majoritárioda CUT, este a rejeitou sem sequer dar-se ao trabalho de fazer uma outra.

Passava tudo que a maioria queria.Uma fala a favor, outra contra. Vota-mos. E vinha a maioria aplastadora,sem qualquer debate. Debate paraquê? Porque perder tempo? O discur-so começava assim: "Em 27 de outu-bro, Luiz Inácio Lula da Silva foi eleitocom 54 milhões de votos...". A vanta-gem de ser mais vivido é que você temmais memória. Lembro que, na pri-meira audiência do ANDES-SN com oMinistro do Provão, depois de umasérie de questões, um membro da as-sessoria disse assim: "mas você develevar em consideração uma coisa, oFernando Henrique foi eleito com 50milhões de votos". O militante que foide oposição, em toda a sua vida, vêseu partido chegar ao governo. Vive adoce sensação de ser governo. Mas, époder? Essa é uma reflexão que deve-mos todos fazer. A reclamação maisouvida é: negociaram com os governa-dores mas esqueceram de falar com opróprio partido. Lembremos da falaclarividente de Garrincha, ouvindo apreleção do técnico: "já combinou tu-do isso com os homi?". Pergunto:"combinaram com o próprio partido?"Se não fizeram isso, como podem falarem debate com a sociedade. Monó-logo não é debate, isto é óbvio.

Temos o pacto social, essa históriaé conhecida. Trata-se efetivamente deum esboço mal feito, apressado. Pactoem que a maioria é de empresários,alguns denunciados pelo próprio go-verno, como sonegadores da Previ-dência. Eles são a sociedade? E somosnós, funcionários federais, os radicais?O humor perverso se acentua. Os fun-cionários federais "ganham" um rea-juste de um%. Ao se aposentarem vãocontinuar a pagar 11%. Isso é justiçasocial? Sem que sequer se tenha o tra-balho de mostrar as contas? Não as

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Pacto em que a maioria é de empresários,alguns denunciados pelo próprio governo,como sonegadores da Previdência. Eles são a sociedade? E somos nós, funcionários federais, os radicais? O humor perverso se acentua.

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contas fajutas, mas as reais. O PT, entreoutros, a partir da análise dos compa-nheiros, do funcionalismo da receitafederal, dos auditores, quem denun-ciou todas as maracutaias da Previdên-cia Social, no governo Fernando Hen-rique Cardoso. Hoje, no governo, elesdizem que as contas que os auditoresmostram estão erradas.

Todo militante deveria ler a história,examinar o passado. Melhor que a crí-tica que possamos fazer sobre a muta-ção ideológica é ler os documentos, oque se dizia, por exemplo, sobre a pre-vidência. Esta é uma guerra de longoprazo. Perdemos uma boa parte da lu-ta quando, sob o reinado do Vicen-tinho, a CUT aceitou a história de quetempo de contribuição e tempo deserviço eram a mesma coisa. Lançou-se todo o povo rural em uma situaçãocomplicada do mesmo modo quetodo o povo "informalizado". Em tem-pos de eliminação de direitos e depostos de trabalho, uma grande partedas empresas contrata, mas não regis-tra em carteira. Assim, você vai se apo-sentar com a morte. Está provado ma-tematicamente que os culpados nãoforam os trabalhadores. Como essahistória que a inflação não pode fazera indexação salarial porque gera iner-cialmente a inflação. Isto já é uma per-versão. Mesmo quando se consegueum reajuste recuperando as perdas doperíodo, o patamar, para dizer o míni-mo, está rebaixado. Este é o conjuntode questões que sabíamos até 2002 eque hoje, sintomaticamente, não sabe-mos mais. Trata-se de um caso sériode amnésia ideológica.

US: Na sua opinião, hoje, os movi-mentos sociais organizados avançamou estão enfrentando um certo reflu-xo?

Edmundo: Esse processo varia demovimento para movimento. Direçõese bases viveram, como tendência, uma

parada que pode caminhar para orefluxo. Repito: isto é uma tendência,não um fato consumado. Alguns movi-mentos estão muito confrontados. OMovimento dos trabalhadores ruraissem-terra, por exemplo. A ABIN, noatual governo, tem como prioridadenão o crime organizado, o narcotráfico,como a imprensa denunciou docu-mentadamente, mas o MST. E isso émarcado pelos interesses dos latifun-diários e dos capitalistas que tambémsão latifundiários e de suas direçõespolíticas e associativas. O movimentoestá confrontado porque, para usar aexpressão de uma das suas direções,chegou à conclusão de que "paciênciae fé têm limite", uma assertiva quase

que bíblica. O papel da mídia é aíabsolutamente brutal. A "notícia" doocorrido em Pernambuco, da destrui-ção da fazenda, não é ponto pacífico.Existe o outro lado como dizem osmanuais de redação. Os trabalhadoresrurais tiveram a sua safra destruídapela jagunçada. O que aparece na mí-dia? Que os trabalhadores destruírama fazenda. Se fosse só o MST, digamosque isso poderia ter alguma "credibili-dade" dada à massiva campanha ad-

versa a eles. Agora, dizer que a Pas-toral da Terra, mesmo com todas ascontradições da Igreja, promoveu aquebra de uma fazenda, queima detratores etc, isso é um pouco maiscomplicado, até porque o limite daintervenção social dela é muito claro.Eles podem radicalizar no discursomas, como pastoral, queimar pro-priedades, isso pago para ver.

Isso é um exemplo de como o mo-vimento está sendo criminalizado dia-riamente. Em São Paulo, por exemplo,o Pontal do Paranapanema é basica-mente terra devoluta, terra do estadoque os latifundiários grilaram. E todossabem disso. Qual é a solução que ogoverno Alckmin está dando? Vender

essa terra aos que se dizem proprietá-rios. Além de ganhar um troquinho,legitimam a expropriação das terrasdevolutas. Agora, se você é do MST, aívocê é potencialmente um anarquista,um criminoso. O MST, e cito-o porqueé o de maior visibilidade, vive, forte-mente, essas contradições. O movi-mento diminuiu sua pressão duranteum certo tempo, acreditou na coisa do"tenham paciência, vamos mudar","isso é coisa de um período inicial",mas agora diz outra coisa: "olha, meurelógio está dizendo que está na hora".Outros movimentos, sem dúvida, per-deram vitalidade. É difícil você ver umaincidência maior do pessoal sem-teto.Aqui, em São Paulo, em determinadosmomentos, eles foram muito impor-tantes. O movimento sindical entrouem compasso de espera, podendo

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O Pontal do Paranapanema é basicamenteterra devoluta, terra do estado que os latifundiários grilaram. E todos sabem disso.Qual é a solução que o governo Alckminestá dando? Vender essa terra aos que sedizem proprietários. Além de ganhar um tro-quinho, legitimam a expropriação das terras.

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tender ao refluxo, na medida em que adisputa entre as centrais fique muitoclara. A Força Sindical recebe um trata-mento diferenciado do da CUT e estadiz "não faz marola porque senão éruim". O caso da GM é exemplar. Está-vamos em pleno CECUT, aqui em SãoPaulo. Depois de a Justiça do Trabalhoter dado ganho de causa à Força Sin-dical, a turma em Campinas, que éconsiderada progressista, considerou agreve dos operários da GM abusiva emandou os trabalhadores voltarem aotrabalho sem nada. O mais grave, nes-sa história toda, é que, no CECUT, ocampo majoritário da CUT respondeuà notícia com a seguinte palavrinha deordem: "Eu, eu, eu, a GM se fodeu".Para derrotar o adversário político nocampo da classe, não se importaramcom que a própria classe fosse dura-mente golpeada. Isso é dramático. Nãoé o refluxo. É pior. O grau de sectariza-ção em que o interesse de fora do mo-vimento prevalece sobre este indicaque se perdeu a perspectiva de classe.Talvez por isso mesmo se defende es-sa cidadania tão restritiva. Veja como édramático e ensandecido. Para defen-der um determinado partido que estáno governo, eles fazem uma leitura"não corporativa", ferre-se a classepara o bem da "sociedade".

O movimento do funcionalismopúblico não está em refluxo. Está semovimentando ainda que sofra forte-mente a contradição de "segurar aspontas" ou "ir à luta". É só ver as ple-nárias dos servidores públicos em queo setor alinhado com o campo majori-tário da CUT (Articulação Sindical eCorrente Sindical Classista - isto é,PCdoB) não aceita a mobilização. Euaté entendo que um militante penseassim: não importa o meu bolso, im-porta o "meu" governo. Será que abase social dele acredita nisso? Seráque ele pode impor, pelo seu compro-misso partidário, seu, pessoal, à sua

base social uma perda tão brutal dedireitos? Que o importante é o êxito deum governo e não a sobrevivência dabase social? Em termos salariais, de-pois de um arrocho de oito anos deFernando Henrique Cardoso, o reajus-te de um% atende a alguém? EmCampinas, eles se superaram. O gover-no "democrático e popular" concedeugenerosamente um reajuste de... 0%além de reprimirem os sindicalistas.Tudo em nome da Lei de Responsa-bilidade Fiscal, o grande álibi.

Quanto à previdência, arrancam-sedireitos não para fazer justiça social,para beneficiar a camada mais pobre,como dizem, mas para servir a um ele-mento de ponta do capitalismo mun-dial: o setor dos fundos de pensão.Existe hoje uma imensa bibliografiasobre isso, desde o artigo que traduzi-mos para a Revista Outubro, do Ric-cardo Bellofiore, até o livro de FrédéricLordon, Fonds de Pension, piège acons? (Raison d´Agir Éditions, Paris,2000). cujo subtítulo é preciso: "A mi-ragem de uma democracia acionarial".É claro que estamos tratando com alógica da cidadania do consumidor.Você só é cidadão se for consumidor.O grau máximo de liberdade do cida-dão é reclamar se o produto está malfeito. A instância democrática máximanão é o Congresso ou a Justiça, mas oPROCON. A base e a direção do movi-mento têm que fazer essa avaliação. Aquestão não é se o projeto é radical ounão. A radicalidade está no real, nãoestamos inventando nada.

Sintomaticamente, há seis mesesatrás, estávamos todos dizendo, essen-cialmente, a mesma coisa, ainda quecom tonalidades diferentes. Há umano atrás, quando a perspectiva eleito-ral ainda não tinha operado uma divi-são tão forte no movimento, dizíamospraticamente a mesma coisa, claroque uns mais à esquerda, outros maisao centro. Hoje quem é contra é radi-cal e muitos se movem na lógica do"obedece quem tem juízo".

US: Sobre a ALCA como o senhoravalia a atual disposição do GovernoLula para negociações? A posição dogoverno, na questão de Alcântara criauma força diferente?

Edmundo: Para mim, o problemafundamental é o seguinte: mudaramde projeto e sequer reconhecem isso("Quem mudou foi a vida"! sic). Lulaquer manter uma unidade simbólicana sua trajetória, mas na medida emque vai encontrando resistência, mos-tra seu lado mais perverso. Ele e o con-junto dos que estão com ele. É a abso-luta intolerância com a diferença. Aquisua dimensão performática é crucial.Emociona-se com os pobres, é verda-de. Mas aplica as políticas neoliberais.Afirmação radical? Será? Vejam-se ascríticas de quem trabalhou na elabora-ção do programa eleitoral comoFrancisco de Oliveira, Paulo Arantes,entre outros.

É óbvio que a questão da ALCAestá marcada por um cálculo, o cálcu-lo dos Estados Unidos sobre qual a

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Quanto à previdência, arrancam-se direitos não para fazer justiça social, para beneficiar a camada mais pobre, como dizem, mas para servir a um elemento de ponta do capitalismo mundial:o setor dos fundos de pensão.

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forma melhor de fazer isso. Lula teminsistido nas negociações no Mercosul,para tentar ganhar força, para, comoum coletivo, fazer essa negociação, oque, em tese, seria correto se o Mer-cosul fosse uma solução. Discutimosisso inúmeras vezes no Sindicato. Fize-mos uma manifestação em Fortaleza,contra o Mercosul, porque nesse pro-jeto não existiam cláusulas sociais,quer dizer, a integração é integraçãodo capital. Os trabalhadores? Ora os

trabalhadores... Os direitos sociais dostrabalhadores complicam a "sagrada li-berdade" do capital (a liberdade daexploração) e diminuem, conseqüen-temente, as possibilidades de acumu-lação. O Mercosul não é alternativa pa-ra os trabalhadores. O governo ameri-cano percebeu que, apesar da imensapopularidade que o governo Lula ain-da desfruta, o cronograma para 2005está superado. Apesar disso, o governoamericano vai continuar lutando paraimpor isso. Os funcionários america-nos responsáveis pela negociação es-tão entre os mais radicais de direita.Um deles é o tal cara que Lula chamoude "sub do sub do sub", só que ele re-presenta um poder muito maior doque o do Lula.

O problema é que perdemos váriasoportunidades estratégicas na históriabrasileira. As políticas do Fundo Mo-netário Internacional foram colocadascomo a questão central por nós. Masos governantes (mesmo os atuais) nãoderam um passo no seu enfrentamen-to. Pelo contrário, continuam imple-

mentando-as. A ALCA é um coroláriodessas políticas. O que aconteceu coma grande mobilização do plebiscitosobre a ALCA e sobre a cessão da basede Alcântara? Qual foi a respostagovernamental? Isso não é uma coisaconsciente, as pessoas assinaram porassinar. Era uma bravata pré-governo.Agora temos que ser responsáveis.Não participaram dos comitês contra aALCA. O PcdoB, no início, vacilou masdepois voltou para o comitê contra a

ALCA. O PT e a CUT, enquanto estrutu-ras, não se mobilizaram a favor dessemovimento. Foi um enorme protestoque o governo graciosamente abriumão, jogou fora, esterilizou. Este foium movimento de resistência que po-deria consolidar nacionalmente ocombate contra a ALCA.

O modo de fazer política dependeobviamente da convicção e do projetoque se tenha. E se o projeto é o capi-talismo bom, combate ao capitalismoselvagem, quem sabe não teríamosuma ALCA boa. Eu me pergunto: issoaltera positivamente a vida do traba-lhador brasileiro? Não. Quais são asconseqüências dos desdobramentoslógicos disso? O corolário dessa coisavai ser uma unificação não apenas fis-cal, não apenas de controle mercantil.

Liberdade para eles e restrições paranós. A ALCA vai atingir a universidade.O NAFTA, por exemplo, criou umaespécie de provão, comum ao México,Estados Unidos e Canadá. A Universi-dade do México precisava de aportesinternacionais e ela os teria se mudas-sem a forma de fazer universidade. Vaiafetar a universidade, os centros depesquisa. É evidente que eles não vãoprivilegiar toda e qualquer pesquisa.Controlarão os desdobramentos docontrole da informação científica. Oque vai acontecer com os transgêni-cos? Vão se generalizar. Muitas pes-soas dizem que não está comprovadoque eles fazem mal à saúde, mas sa-be-se, pelo menos, que ele altera a es-trutura molecular das plantas, qual oresultado disso? A ALCA vai intensificarisso. A tal da segurança alimentar e ofome zero vão para o espaço. O con-trole alimentar vai ser feito pelas mul-tinacionais, a Nestlé, a MONSANTO.Vamos continuar com a ilusão de so-berania nacional e eles com o poderreal. Interessante, dizem, deixem osmeninos brincarem de "soberania na-cional desde que as políticas sejam in-ternacionalmente coordenadas".

No documento que apresentei no45º CONAD (Belém), argumentei quese a burguesia fosse realista votariaLula. Falaram que não podíamos nosopor ao governo democrático-popular.Foram aplaudidos. Retruquei afirman-do a liberdade de manter nossa inde-pendência. Hoje não seriam tão apres-sados na divinização. Política supõeautonomia e laicidade. Se não podediscutir um governo democrático-po-pular onde estará a liberdade? Se ou-samos discutir contra a ditadura por-que não podemos discutir com um go-verno democrático-popular? Estamosdiante desse desafio. Insisto: devemosanalisar como isso vai interferir na for-mação da sociedade brasileira. E qualdeveria ser a nossa resposta. Qual a

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Os direitos sociais dos trabalhadores complicam a "sagrada liberdade" do capital (a liberdade da exploração) e diminuem, conseqüentemente, as possibilidades de acumulação. O Mercosulnão é alternativa para os trabalhadores.

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mutação isso vai produzir. A política éexperimental. Não temos essa respostaagora, mas nos resta ter, pelo menos, odireito de ter a pergunta. E essa é a dife-rença entre aqueles que acham que,com uma simples chegada ao governo,se resolve tudo. Perderam o direito deter perguntas, porque já se acham por-tadores de todas as respostas.

US: Quais as esperanças do movi-mento docente hoje? Como o senhordirecionaria a nossa luta, se estivessenesse movimento, hoje?

Edmundo: Eu aprendi com LouisAlthusser que "a esperança é própriados desesperados". Não tenho nemquero ter esperança. Tenho confiançana capacidade de realizarmos um pro-jeto. A esperança é sempre passiva,desmobilizadora. Lança para o outro,para um externo, a capacidade e apossibilidade de resolver as questões,Para mim, é produtora de uma aliena-ção real. Política não rima com solu-ções desse tipo, requer que se coloqueo sindicato, a categoria, a classe emmovimento. Na medida em que trans-firo para um líder messiânico essa mi-nha capacidade de realização, me em-pobreço como sujeito histórico. E pas-so a ser dependente dele. Há um sin-cretismo entre esperar e acreditar. Te-nho o direito democrático e histórico àpergunta, posso errar, acertar, mas, en-fim, posso formular projetos. Posso epreciso conversar com o movimento.Caso contrário entrego minha liberda-de na mão dos outros. Benedetti, umdos maiores poetas da atualidade, fa-lando do futuro, dizia:

lento pero vieneel futuro realel mismo que inventamosnosotros y el azar.Cada vez más nosotrosY menos el azar.Essa concepção de política como

militância que constrói o futuro é hoje

mais e mais decisiva. Poderemos ven-cer essa batalha. Vai durar muito, vaiser difícil, mas as contradições que es-tão colocadas aí me levam à perspec-tiva de que mesmo os iludidos vão terque se mover ou então passarem aum campo de defesa tão sectária quese tornarão absolutamente compro-metidos com a destruição desse país.

Vamos ter que reinventar a política,a luta a partir dos desafios colocadospelo governo e encontrar uma saída.Não trabalho nunca com a hipótese desituações sem saída. Vamos descobri-la e ela passa, não passa por um pro-grama para eleger um presidente mas,necessariamente, pela articulação dos

movimentos sociais e, do sindicato. Seconseguimos articular os movimentossociais, fazer uma frente dessa imensamaioria da população acho que tere-mos dado um passo decisivo nessatransformação social que nos é neces-sária.

Do governo Lula, imaginando queeles sejam coerentes, eu espero queseja daqui para pior. Isso é uma fasetransitória, dizem, a fase dois virá e va-mos dar um grande salto. Só que ascondições para tal não são gestadas.Aprofundar o neoliberalismo é condu-

zir à subalternidade as classes, a na-ção. Na melhor das hipóteses, traba-lham com fantasmas. Isso é grave por-que debilita qualquer possibilidade detransformação. Ilusões de que o de-senvolvimento criará empregos. Issonão é verdade. Já está demonstradohistoricamente que, sob o capitalismoatual, quanto mais ele se desenvolve,menos empregos são criados, porqueeles vão botar trabalhadores quandopodem fazer a substituição por tecno-logia? As máquinas, as tecnologiasexpressam o projeto dos que as con-trolam. Segundo: acreditam no merca-do interno. Se conseguirmos criar maisempregos, afirmam ter uma melhor

distribuição de renda. É outra coisaque se precisa demonstrar. Parece serum piedoso desejo. Mas o regulacio-nismo típico de boa parte dos econo-mistas petistas esbarra na rigidez dosorganismos internacionais.

Vamos ter que inventar, criar, umateoria econômica que seja a expressãode uma nova prática política, a expres-são desse movimento. Mais do queimaginar que, em algum momento, te-mos a solução pronta, temos que tra-balhar sobre a dúvida metódica, a dú-vida sobre o programa, sobre comorealizá-lo, mas também sobre qual é onosso projeto real. Confio que, pelanossa luta, conseguiremos manter aUniversidade, no mínimo tal como avivemos até hoje, pois vejo que ela é opróximo elemento a ser destruído, po-derá ser a bola da vez. Essa nova ondade aposentadorias que virá segura-

DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 231UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Confio que, pela nossa luta,

conseguiremos manter a Universidade,

no mínimo tal como a vivemos

até hoje, pois vejo que ela é

o próximo elemento a ser destruído,

poderá ser a bola da vez.

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mente vai apressar um processo de-sesperador. Antigamente se dizia: per-demos os melhores quadros. Hoje di-go: perdemos os mais experientes. Eestamos jogando no fogo uma gera-ção de jovens cuja grande maioria malsaiu da graduação ou, se saiu, foi parao mestrado, o doutorado e nunca en-traram na sala de aula como professo-res. Não é apenas a universidade queestá em jogo. Estamos hipotecandovárias gerações que virão depois denós. E esse é o lado dramático.

A hora não é de imobilismo angus-tiado, aterrorizado. Nós atravessamosa ditadura. Foi difícil manter a inteli-gência viva diante disso. Era quase queum combate mortal a cada dia. Você iapara a sala de aula e dependendo dadisciplina isso era mais grave. Era as-sim: eu volto para casa? Muitos nãovoltaram. Apesar de tudo conseguimoscom as gerações de estudantes man-ter viva essa inteligência. Com eles,com quem tivemos o privilégio de tra-balhar, conseguimos fazer essa inteli-gência sobreviver e, em grande parte,continuar o nosso projeto. Teremoscontinuadores ou não? Isso não só pa-ra a universidade, mas para muitas po-líticas. Há uma constatação que se usamuito, contra a militância, que o movi-mento docente não se renova comfacilidade. Certamente isto indica umlimite. Mas não uma impossibilidade.E não se renova porque o coletivo foisubsumido no individual. É o relatório,é aquela reunião para discutir se a salaserá pintada de azul ou de amarelo, é

aquela coisa de que eu tenho que fa-zer dez projetos na FAPESP ou noCNPq para poder ter uma verba parafazer pesquisa. A Universidade deixoude ser o espaço onde isso se dava paraser um espaço onde temos que lutarpara que isso possa ser possível de sedar. A universidade perdeu uma certacentralidade que tinha dos anos 70aos 80, exatamente, porque a radicali-zação das políticas sociais levou a quea Universidade não seja hoje tão atra-ente assim. Cada novo militante talen-toso que entra, eu o saúdo como maisum louco adorável que está conosconessa briga.

Esse é o nosso trabalho e acho queé isso que me move, a idéia de queesse movimento tem construído gera-ções. Os governos passam, as gera-ções ficam e essa é uma diferença his-tórica. Elas ficam marcadas, obviamen-te, pelos governos, pelas conjunturas,pela estrutura. Apesar dos tempos daditadura e de suas práticas repressivas,se criou um clima de que era possívelmudar esse país e depois da ditadura,veio Sarney, Collor, Itamar, FHC etc. Co-

mo é que alguém conseguia resistir?Devemos muito aos militantes, que le-vando cassete de todo mundo, princi-palmente dos grandes intelectuais,mantiveram e estão mantendo viva es-sa possibilidade de existência da socie-dade. Ouçamos Cecília Meireles (Ro-manceiro da Inconfidência):

Liberdade - essa palavraque o sono humano alimenta:que não há ninguém que explique,e ninguém que não entenda.(Romance XXIV ou da Bandeira da In-

confidência)

Eu diria, para dar um fecho, reto-mando aquela idéia de que nós sem-pre voltamos aos velhos problemas,mas de uma forma superior. Fomosconstruindo algo cuja síntese é o nos-so movimento. Ele expressa a médiasuperior da Universidade, com todasas suas contradições. O governo já seinteressou pelo nosso sindicato paraneutralizá-lo. No todo, conseguimosmanter, com exceção de 1998/2000, aautonomia do sindicato. Se o governovoltar a se interessar pelo nosso sindi-cato, ele será seguramente redefinido.Mas isso não vai apagar as contradi-ções. A lição da luta é que sempre re-solvemos as contradições, no sentidode levá-las a um patamar superior,mas não as apagamos. Não porque es-se seja o nosso projeto, mas porqueela tem uma base social no interior dasociedade e elas vão sendo recompos-tas a cada momento. Elas são a maté-ria prima para nossa reflexão e paranossa proposta de formas de transfor-mação social As épocas de crise mos-tram os limites das estruturas. É, nessemomento, que devemos estar prontospara construir o futuro.

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Os governos passam,

as gerações ficam e essa é uma

diferença histórica. Elas ficam

marcadas, obviamente, pelos governos,

pelas conjunturas, pela estrutura.

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Muito se fala da Amazônia. De um local onde a natureza deve ser preservada, mas que, na prática, não se pre-

serva nem a vida das pessoas que nela habitam. De um espaço nobre em que as riquezas minerais e a biodi-

versidade devem ser usufruídas pelos povos do mundo, mas que, na prática, negam aos autóctones, aos ribeirinhos

da Amazônia, qualquer possibilidade de vida digna. De uma região estratégica para a própria existência do homem

no planeta, pois que se mantém ainda como reserva de elementos fármacos essenciais à sua existência, libertando-

o do jugo de doenças crônicas, mas, na prática, realizam ações para a permanência de uma doença social mais séria

– a relação escravocrata –, subjugando aquele a que a mantêm viva – índios, pescadores, ribeirinhos.

De fato, o que temos como hegemonia é uma visão idílica da Amazônia, onde seus habitantes parecem ser ape-

nas mera decoração. O que há, de concreto, são políticas que formulam a negação da Amazônia para o amazônida.

Negam o direito de os índios terem suas terras demarcadas, mantendo-se assim o controle e o domínio da socieda-

de envolvente. Negam aos ribeirinhos e seringueiros as condições mínimas de um trabalho social capaz de possibi-

litar-lhes uma vida mais digna e promissora, empurrando-os para formas de trabalho semi-escravo.

Negam às crianças o direito a uma educação básica e fundamental, que as transforme em verdadeiros cidadãos do

amanhã; ao contrário, as jogam no trabalho duro, desde cedo, e até na prostituição. Negam aos trabalhadores urbanos

a possibilidade de viver uma relação produtiva que favoreça a formação de cidadãos responsáveis; o que lhes oferecem

em troca é uma perspectiva capaz de levá-los rumo ao subemprego, ao desemprego e ao lumpesinato.

Muitas são as vozes que se manifestam contra esta situação, porém são vozes ainda tênues, frágeis, incipientes,

como a que desafiar um turbilhão. São vozes que gritam contra o abandono, o menosprezo, o preconceito, a falta

de saúde, de educação, de justiça, das condições básicas de habitação, de terra livre para trabalhar, ainda que vivam

numa região continental. Uma dessas “vozes” – que se efetiva em imagens – é a Andréia Mayumi. Jornalismo, foto-

grafia e sensibilidade política fizeram ver a esta paulista de nascimento mas amazonense de convicção que a reali-

dade amazônica necessita ser mudada. Não a transformação desejada pelos ares da globalização econômica, mas

aquela que poderá reconduzir os habitantes da região da floresta à sua verdadeira condição de donos da terra.

Editora de fotografia do jornal A Crítica, de Manaus, Andréia captou, com sua câmera, toda a singularidade das

crianças que vivem nas palafitas típicas dos beiradões dos rios da Amazônia, principalmente os da região do Madeira.

São crianças que parecem acreditar na escola, ainda que as condições do processo pedagógico seja penoso, difí-

cil, quase impossível de operar. Mas a esperança está no olhar!

São jovens enfrentando o trabalho árduo do dia-a-dia, reduzindo os rituais da passagem para a vida adulta a

mero capítulo de teses acadêmicas. A vida é mais forte que os mecanismos psico-pedagógicos formais! São mulhe-

res e homens que, desesperançosos, entregam-se ao mais trivial dos processos cotidianos: sobreviver! O olhar pros-

pectivo da Andréia flagra esses momentos como se, cúmplice, compartilhasse dos mesmos desígnios dos fotografa-

dos: a busca pela esperança, pela “saída”.

Tecnicamente, o perfeito domínio da iluminação na fotografia preto e branco, a angulação correta e a sensibili-

dade à flor da pele de Andréia para capturar o fragmento de realidade que exprima os sentimentos mais humanos

do cabloco amazônico, remetem-nos à mais clara tradição da fotografia documental, na qual são expoentes Cartier-

Bresson e o brasileiro Sebastião Salgado. Que Andréia persista na firme idéia de acreditar que efetivamente uma ima-

gem pode valer mil palavras. Imagem essa que tenha compromisso com os valores éticos mais dignos do ser huma-

no, evidentemente.

*Antônio José Vale da Costa é diretor encarregado de imprensa e divulgação do ANDES-SN e 1º Vice-Presidente da Secretaria Re-gional Norte I do ANDES-SN.

A Amazônia NegadaTexto: Antônio José Vale da Costa*

Fotos: Andréia Mayumi

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236 - DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

“... temos como hegemônica

(...) uma visão idílica da

Amazônia, onde seus

habitantes parecem ser

apenas mera decoração”.

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DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 237UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

É difícil precisar a idade

das crianças na Amazônia,

já que todas aparentam

muito mais do que têm

na realidade.

Vivem uma vida dura.

O rosto, precocemente

envelhecido, denuncia

uma infância sofrida e

repleta de privações.

Apenas o olhar insiste na

pergunta “Porque estamos

aqui, nestas condições ?”

As casas são toscas,

simples, mas cheias

de crianças.

Que não refletem

mais sinais de esperança.

Suas fisionomias

apenas nos transmitem o

mais puro desencantamento

com a vida, como se a

trajetória dos pais servisse

de constatação de que

as políticas públicas sociais

estão ausentes. O que sobra é

a imagem do abandono.

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A luz do sol invade a mata e

respinga seus raios sobre as

toscas habitações. É essa mesma

luz que alimenta de esperanças

os olhares de crianças tristes,

mas curiosas. São olhares de

dúvida e interrogações.

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No meio de tudo,

o aparelho de rádio

denúncia a presença invasora

da sociedade externa.

Alheia a tudo isto, a criança

brinca na rede, como a apostar

em outra utilidade mais

promissora para o rádio.

Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 239

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Nas escolas, a sala é

pequena para comportar

tantas crianças que

buscam, no olhar ativo,

apreender os ensinamentos

da professora leiga.

Nessas carteiras,

que parecem não ter sido

contruídas para eles, pois

seus pés não alcançam o

chão, os alunos agitam as

pernas, como a expressar

a impaciência pelo novo

e o desconhecido.

240 - DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003

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Depois de enfrentar um dia

de sacrifício pela educação

das crianças ribeirinhas,

a professora ainda encontra

tempo para um dos afazeres

mais comuns das mulheres

da Amazônia: o de ser mãe.

Sob um mosquiteiro,

ela alimenta seu filho nos

braços, tal qual uma

madona renascentista.

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242 - DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

O rio realmente comanda a vida na

Amazônia, como diria Leandro Tocantins.

É por ele que barcos e pessoas trafegam,

trabalham, pescam, lutam e vivem.

Nas pequenas comunidades ribeirinhas,

são os rios que fornecem a água para

beber, lavar roupa e

alimentos, plantar e

brincar. Também

provocam as doenças,

as perdas da lavoura e

as desgraças durante

as enchentes.

Mas tudo é harmônico

e convivido na

simplicidade da vida

do amazônida.

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DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 - 243UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

O barco, a catraia,

é o principal meio

de transporte

na Amazônia.

É mais do que isto.

É elemento integrador

das comunidades.

É por ele que as crianças

chegam às escolas.

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244 - DF, Ano XIII, Nº 30, junho de 2003 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Pescar, cozinhar, lavar, trabalhar a roça, estudar

e brincar são práticas comuns de crianças e

adolescentes em todas as áreas rurais deste país.

Na Amazônia, elas significam a própria

sobrevivência do conjunto familiar. Como em

todas as áreas mais pobres deste país.