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UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA ANNA CAROLINA BÜCHELE ROSA VIEIRA DA SILVA “NHOQUI, NHOQUI” – UM BODE COMEU A LEI FALCÃO: QUADRINHOS DE HENFIL EM TEMPOS DE DITADURA MILITAR Palhoça 2010

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UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA

ANNA CAROLINA BÜCHELE ROSA VIEIRA DA SILVA

“NHOQUI, NHOQUI” – UM BODE COMEU A LEI FALCÃO:

QUADRINHOS DE HENFIL EM TEMPOS DE DITADURA MILITAR

Palhoça

2010

ANNA CAROLINA BÜCHELE ROSA VIEIRA DA SILVA

“NHOQUI, NHOQUI” – UM BODE COMEU A LEI FALCÃO:

QUADRINHOS DE HENFIL EM TEMPOS DE DITADURA MILITAR

Monografia apresentada ao Curso de graduação em Comunicação Social, habilitação em Jornalismo, da Universidade do Sul de Santa Catarina, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel.

Orientadora: Prof. Rosane de Albuquerque Porto, Msc.

Palhoça

2010

ANNA CAROLINA BÜCHELE ROSA VIEIRA DA SILVA

“NHOQUI, NHOQUI” – UM BODE COMEU A LEI FALCÃO:

QUADRINHOS DE HENFIL EM TEMPOS DE DITADURA MILITAR

Esta Monografia foi julgada adequada à obtenção do título de Bacharel em Comunicação Social - habilitação em Jornalismo - e aprovado em sua forma final pelo Curso de Comunicação Social, da Universidade do Sul de Santa Catarina.

Palhoça, 21 de junho de 2010.

_______________________________________

Prof. e orientadora Rosane de Albuquerque Porto, Msc.

Universidade do Sul de Santa Catarina

_______________________________________

Prof. Antônio Elíbio, Dr.

Universidade do Sul de Santa Catarina

_______________________________________

Prof. Raquel Wandelli, Msc.

Universidade do Sul de Santa Catarina

Dedicado a Elisabeth, Fernando e Luis Sérgio

AGRADECIMENTOS

Vou começar os agradecimentos com música, que é o que me inspira.

Duas me vieram à mente: My Way, e Agora só falta você. A primeira frase das duas

canções me trazem a esse momento, quando escrevo meus agradecimentos: “And

now, the end is near”... e “Um belo dia resolvi mudar e fazer tudo o que eu queria

fazer...”. Talvez a segunda faça mais sentido, já que esta monografia não é o fim – é

apenas um começo. Um novo começo.

Não percorri “my way”, meu caminho, sozinha – desde o dia em que

resolvi mudar e fazer tudo o que eu queria fazer, Jornalismo, muita gente esteve por

perto, apoiando, dando puxão de orelha, incentivando sempre. E a essas pessoas,

devo essa monografia e muitas vezes, minha sanidade. A elas, meu muito obrigada:

Fernando, meu irmão, que mesmo sem saber, me mostrou que é

preciso coragem e persistência para ir alcançar meus objetivos. Karina Azevedo,

Amanda Bernardo, Alice Luciano, Penélope Bórtoli, Daniele Lotterman,

Mariana Eli, Juliana Felipe, Nicolas Zaffi, amizades que começaram entre uma

aula e outra e são presentes que levarei para toda a vida. Carla Pedrozo, pela

compreensão durante esses quatro anos, quando eu precisava faltar trabalho ou

mudava meus horários por causa dos TCCs, de estágio e especialmente nesta etapa

final. Diogo de Oliveira, Maíra Emerick e Renata de Freitas, pelos toques,

correções e pelo dom das palavras quando elas teimavam escapar entre um capítulo

e outro deste trabalho. Ana Paula Moreira, George Moreira e Moema da Costa

Dias pela amizade, pelas risadas, pelo ombro amigo, pelo abrigo.

Agradeço também aos meus irmãos, meus amigos queridos, Pedro

Kuhnen, Thaís Amarante e Felipe Reis.

Aos mestres, meu agradecimento especial: Rosane Porto pelos puxões

de orelha, as chacoalhadas necessárias, pela orientação e por dividir comigo o seu

conhecimento. Também agradeço às mestras Raquel Wandelli, Luciane Zuê e

Helena Iracy simplesmente por terem cruzado meu caminho.

Daniel Johns, Ben Gillies e Chris Joannou, que me inspiraram com

sua música, trilha sonora desta monografia.

Não posso esquecer-me de mencionar nesses agradecimentos a

Gibiteca Henfil e a inesquecível boa vontade em atender, em fornecer recursos

mesmo com os materiais (grande parte utilizada na monografia) empacotados

devido a uma obra no local.

Por fim, agradeço à pessoa que fez com que tudo isso se tornasse

possível: minha mãe.

.

“Imprensa é oposição, o resto é armazém de secos e molhados” (O Pasquim)

RESUMO

A partir de 1964, o país se viu tomado por forças políticas que atavam, censuravam

e puniam severamente quem ousava ir contra suas imposições. Do dia para a noite,

estudantes, intelectuais e artistas tornaram-se transgressores, foras-da-lei

simplesmente por desejarem a volta da democracia – um direito constitucional

assegurado por lei.

Um desses “rebeldes” foi o cartunista Henfil (1944-1988), que transportou para os

desenhos, personagens que traduziam o sentimento de um povo sufocado. De suas

mãos surgiram, entre outros personagens, Ubaldo, o Paranóico, Baixim e Cumprido,

Caboco Mamadô e o trio do Alto da Caatinga, que é o objeto de análise deste

trabalho monográfico.

A pesquisa busca em Estado de Exceção (1995), de Agamben, compreender o

momento histórico vivido no Brasil, especialmente após o decreto da Lei Falcão,

enquanto Walter Benjamim define Henfil – por meio de seus personagens - um

narrador da história.

Palavras-chave: Exceção, poder, jornalismo, Trio do Alto da Caatinga, Henfil

ABSTRACT

In 1964, the country was taken by political forces that tied up, censored and punished

severely those who dared to face their impositions. Overnight, students, intellectuals

and artists became transgressors, outlaws, just because they wanted democracy

back – a constitutional right ensured by the law.

One of those so-called rebels was cartoonist Henfil (1944-1988), who transported to

cartoons, characters that somehow translated the feelings of a suffocated nation.

From his hands emerged – among others - characters like Ubaldo, the paranoid, the

Monks Baixim e Cumprido, Cabôco Mamadô and Trio da Caatinga, that is the object

of this essay.

This research seeks in Estado de Exceção (1955), by Giorgio Agamben, understand

the historical moment Brazil had sunken in, specially after the enactment of Lei

Falcão, while Walter Benjamin defines Henfil – through the characters he created –

as a history teller.

Keywords: Exception, power, journalism, Trio do Alto da Caatinga, Henfil

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ......................................................................................................10

2. RESISTÊNCIA À MORDAÇA ...............................................................................15

2.1 A IMPRENSA NANICA .......................................................................................19

2.2 BRAZIL – LOVE IT OR LEAVE IT …………………………………………………...22

3. PAPEL E NANQUIM –AS ARMAS DE HENFIL ..................................................25

3.1 ZEFERINO, GRAÚNA E BODE ORELANA NO ALTO DA CAATINGA ..............28

3.2 O BODE MUDO PELA LEI FALCÃO .................................................................. 30

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS ............. ....................................................................35

5. REFERÊNCIAS.....................................................................................................37

6. ANEXO ................................................................................................................. 39

ANEXO A – CAPA DA REVISTA FRADIM NÚMERO 18 ........................................ 40

ANEXO B – FRADINHOS BAIXIM E CUMPRIDO .................................................. 41

ANEXO C – GRAÚNA, ZEFERINO E BODE ORELANA ......................................... 42

ANEXO D – QUADRINHOS DA REVISTA FRADIM NÚMERO 18 .......................... 43

10

1. INTRODUÇÃO

Caso fosse piada, teria sido de mau gosto, já que em 1º de abril de

1964 – no popular conhecido como o “dia da mentira” – os militares brasileiros

finalmente conseguiram colocar em prática o que planejavam desde os anos 30/40,

quando Getúlio Vargas presidia o país: destituir os civis suspeitos de articulações

comunistas e assumir o poder. O então presidente da República João Goulart,

gaúcho e herdeiro político de Getúlio Vargas e que assumira o cargo após a

renúncia do ex-presidente Jânio Quadros, foi o alvo do golpe militar, inaugurando no

Brasil duas décadas de ditadura.

Durante 21 anos, a sucessão de militares-presidentes resultou na

imposição de 17 atos institucionais e 104 atos complementares, submetendo o país

a uma série de leis e emendas que acabaram por minar o estado democrático. Em

nome da “segurança nacional”, lição aprendida pelos militares formados por escolas

norte-americanas que ensinavam a combater o comunismo, o direito público foi

substituído pela coerção, censura e pena de morte aos considerados “inimigos da

pátria”. Os Estados Unidos sempre tiveram a postura “anti-comunista” e pró-

democracia – tanto que colaboraram com o regime militar no Brasil – mas isso

mudou após os ataques à Nova Iorque em 11 de setembro. A suposta guerra anti-

terrorista mergulhou o país no estado de exceção, conforme Agamben 1:

O significado imediatamente biopolítico do estado de exceção como estrutura original em que o direito inclui em si o vivente por meio de sua própria suspensão aparece claramente na “military order”, promulgada pelo presidente dos Estados Unidos no dia 13 de Novembro de 2001, e que autoriza a “indefinite detention” e o processo perante as “military commissions” (...) dos não cidadãos suspeitos de envolvimentos em atividades terroristas.

O exemplo dado por Agamben, neste episódio da história mundial recente,

também se aplicou ao Brasil-ditadura, já que o indivíduo perdeu seus direitos e era

considerado como suspeito potencial de “subversão” e “comunismo”. O regime de

exceção brasileiro produziu um saldo de cinco anos de Atos Institucionais – do

primeiro (1964) ao último (1969) – incluiu medidas como cassação de direitos

políticos e mandatos legislativos, o fechamento do Congresso Nacional, a dissolução

1 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. SP: Boitempo Editorial, pg. 14

11

de partidos políticos, o estabelecimento de eleições indiretas para os governos

estaduais e a redução do número de ministros do Supremo Tribunal Federal,

revelando uma série de arbitrariedades.

Os presidentes militares, além de instituir a censura prévia aos veículos de

comunicação, criaram talvez o mais requintado aparelho destinado à prisão, à tortura

e à morte de acusados de militância em partidos e movimentos considerados de

esquerda. A rotina de repressão atingiu homens e mulheres de todas as idades,

além de crianças que serviam de iscas para a confissão dos pais, com todo tipo

cruel de instrumentos e estratégias: “Afogamento, ‘telefone’, tapas simultâneos nos

dois ouvidos, murros. Ali, no serviço secreto, era basicamente espancamento da

forma mais brutal, agressões, murros, chutes, intimidação” 2, conforme relato de

Gildásio Consenza, uma das vítimas que sobreviveram à ditadura.

Neste cenário de exceção, contudo, houve quem desafiasse a censura

e a ameaça de prisão. Artistas, jornalistas e intelectuais, cada um a sua maneira,

usaram as próprias armas na guerra contra a ditadura. Foi o caso do cartunista

mineiro Henrique de Souza Filho, o Henfil, que no início da década de 70, em plena

vigência do Ato Institucional Nº 5 – o mais rigoroso e que instituiu a pena de morte

no país -, criou três personagens ontológicos na resistência contra o regime

autoritário: o cangaceiro Zeferino, a ave Graúna e o bode Francisco Orelana.

O trio, criado por Henfil, ultrapassou o limite do entretenimento, mas

através do humor desenhou imagens do Brasil sob regime de exceção, conforme

Pires 3:

A esses personagens coube a função de caracterizar os impasses e as transformações geradas naquele contexto sócio-político e cultural, abordar os problemas e contradições sociais e econômicas nacionais, desenvolver uma crítica dos costumes da classe média e sobre o impacto do cerceamento das liberdades no cotidiano.

Inspirado nas obras de Guimarães Rosa, Euclides da Cunha e de Glauber

Rocha, Henfil criou um universo chamado “Alto da Caatinga” - que era ao mesmo

tempo cenário e personagem no semi-árido nordestino - onde se passam as

histórias dos três personagens. O primeiro, o cangaceiro Zeferino, nasceu pelas

2 COUTO, Ronaldo Costa. Memórias Viva do Regime Militar: Brasil 1964-1985, RJ: Editora Record, 1999 p.115 3 PIRES, Maria da Conceição Francisca. Graúna: um canto feminino de autocrítica na Caatinga. Revista da História , São Paulo, n. 158, 2008, p. 249

12

páginas do Jornal dos Sports, em 1º de abril de 1969, herdando traços de Corisco,

personagem do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha. O filme de

Rocha narra a história de um casal de sertanejos que tenta sobreviver na aridez do

sertão nordestino, tal qual o trio do Alto da Caatinga desenhado por Henfil. Corisco,

interpretado por Othon Bastos, era um cangaceiro que personificava o “diabo” do

título do filme, mas que também era capaz de agir com bondade.

A intenção do cartunista, de acordo com Moraes, era em principio

“colocar Zeferino como líder da reconstrução de Canudos, numa espécie de

continuação da epopéia 4”. Assim, com a estratégia que misturou recursos da

literatura e elementos da história do Brasil, Henfil passou a construir uma narrativa

emblemática na denúncia à ditadura: “Pretendia estabelecer uma analogia

subliminar entre a resistência sertaneja e o processo de luta guerrilheira contra o

regime militar” 5, acrescenta Moraes. As falas dos personagens, deste modo,

constituíram uma bem elaborada narrativa tal qual uma colcha de retalhos alegórica

que “permitissem aos mais atentos decifrar as mazelas sociais amputadas no

discurso ufanista do regime militar” 6.

Enquanto o Nordeste era castigado pela seca, o resto do Brasil vivia

uma fase de crescimento acelerado com o chamado milagre econômico, como

também aponta Pires 7

Era um Brasil cindido entre a febre consumista das classes médias, ciosas do clima de “calma e tranqüilidade” divulgado pelo governo em seus comerciais televisivos, e o vertiginoso crescimento dos índices de subnutrição e da mortalidade infantil; entre a constatação da exorbitância alcançada pela dívida externa gerada para alimentar o monstro do crescimento e a promoção dos programas de difusão da agropecuária exportadora; entre o expressivo aumento do êxodo rural agudizando as péssimas condições de vida nas grandes cidades e o alardeamento da ideologia do “Brasil grande”, representado por obras faraônicas como a Transamazônica e a ponte Rio-Niterói.

Em seguida, o trio também apareceu nas páginas da Revista Placar,

em 1970, estabelecendo-se também no Caderno B do Jornal do Brasil e nas folhas

4 MORAES, Denis de. O Rebelde do Traço: A vida de Henfil, RJ: José Olympio Editora, 1997 p.142 5 Id.,1997, p. 142 6 Ibid., p. 143 7 PIRES, Maria da Conceição Francisca. Graúna: um canto feminino de autocrítica na Caatinga. Revista da História, São Paulo, n. 158, 2008, p. 249

13

do alternativo O Pasquim - outro veículo de grande importância de resistência à

ditadura militar. Com a criação da Revista Fradim em 1973, durante o governo do

ex-presidente General Emílio Garrastazzu Médici, o trio dividiu o espaço de 36

páginas com uma dupla anárquica para os padrões da época: os fradinhos Baixim e

Cumprido, que até então eram pautados apenas na crítica de costumes, mas que

passaram também a fazer referências a temas relacionados ao momento histórico

vivido no país.

Este trabalho monográfico, então, propõe o estudo das criações de

Henfil estabelecendo relações de resistência ao regime militar. A pesquisa toma

como inspiração, especialmente, os pressupostos de Walter Benjamin, que

considera “imagens do passado transformadas pela história como ecos de vozes

que emudeceram” 8. Deste modo, vejo os cartuns elaborados por Henfil como cacos

da história do Brasil, que não devem ser perdidos, mas lidos como reminiscências

que alertam para um instante de perigo ou para a possibilidade de retorno do estado

de exceção. Assim, problematizo as imagens projetadas na imprensa como rastros

que nunca se apagam e tomo como objeto principal o quadrinho de Zeferino,

publicado na Revista Fradim nº 18, de abril de 1977.

Sob forma de “ilustração”, o personagem dialoga com os efeitos da Lei

Nº 6.339 de 1976, conhecida por Lei Falcão, que proibia o pronunciamento dos

candidatos a cargos eletivos nas campanhas eleitorais no rádio e na TV. Pela Lei

Falcão, era permitida apenas a foto e a legenda do candidato, de maneira a evitar

que o político emitisse opinião – publicamente – a respeito do governo militar. A Lei -

também conhecida como “cinema mudo” – foi batizada com o sobrenome de seu

criador, Armando Falcão, ex-ministro da Justiça do governo Geisel. Censor de 400

livros, 117 peças teatrais, 47 filmes e 840 letras de música 9, Falcão faleceu

recentemente, em 10 de fevereiro de 2010.

Este projeto, além de Walter Benjamin, também leva em conta

pressupostos teóricos sobre o estado de exceção, a partir de Giorgio Agamben, e

leituras sobre as relações da ditadura militar com a imprensa brasileira, como em

Bernardo Kucinski. Além desta introdução - como primeiro capítulo -, no segundo

busco polemizar o papel da imprensa na manutenção do status quo do Estado,

8 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história in Magia e técnica, arte e política. SP: Brasiliense, 1982, pg. 233. 9 Disponível em <http://zerohora.clicrbs.com.br>. Acesso em 01-05-10

14

analisando a ambiguidade dos veículos de comunicação que sob censura, ora

denunciavam e ora omitiam os abusos cometidos pelos militares durante a ditadura.

Pretendo também revisitar os aspectos noticiosos dos cartuns, recortando

alguns episódios e personagens da história da imprensa brasileira – com base em

Nelson Werneck Sodré e José Murilo de Carvalho -, mais especificamente a

imprensa alternativa, que, de acordo com Kucinski 10, cumpriu o papel de denunciar

sistematicamente as torturas e violações dos direitos humanos, além de crítica ao

modelo econômico.

Enquanto isso a chamada “grande imprensa” estava amordaçada pela

censura, alguns veículos, inclusive, tornando-se conivente com o regime por

depender financeiramente do Estado na comercialização de anúncios e importação

de cotas de papel. Para isso, recorro às informações e análises de Fernando Jorge,

que aborda a convivência histórica truculenta entre imprensa e governos, além de

Daniel Herz, que revela aspectos do acordo Time-Life com a Rede Globo de

Televisão, veículo que nasce na ditadura (1965), tido como “veículo de integração

nacional” 11. O acordo, conforme Herz, indicia que o capital estrangeiro pode ter tido

alguma interferência ou até patrocinado o golpe militar. O terceiro capítulo abordará

o “universo Henfil” e a análise dos objetos já indicados nesta introdução, com

suporte nos estudos de Rozeny Silva Seixas e Maria da Conceição Francisca Pires,

além de Denis Moraes e Márcio Malta, biógrafos do cartunista.

10 KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e Revolucionários – Nos Tempos da Imprensa Alternativa. SP: Ed. Página Aberta, 1991, p. XIII 11 HERZ, Daniel. A história secreta da Rede Globo. [S.l.]: Ed. Tchê, 1987. Disponível em: <http://www.danielherz.com.br/ >. Acesso em: 17 mai. 2010.

15

2. A RESISTÊNCIA À MORDAÇA

É impossível precisar quando começaram as estratégias de censura na

história da humanidade, mas possivelmente, nasceu junto com o ato de comunicar.

Das inscrições rupestres das cavernas pré-históricas ao Twitter, a liberdade de

expressão tornou-se uma arma perigosa para a manutenção do status quo dos

poderes do Estado. Grandes exemplos atuais são as restrições impostas aos meios

de comunicação, como acontece em países como a China, Cuba e Venezuela.

Antes mesmo de Hu Jintao, Fidel e Raul Castro, além de Hugo Cháves, Adolph

Hitler já atentava para o “perigo” da liberdade de imprensa e de expressão em seu

livro, Mein Kampf:

[...] é especialmente necessário ter-se a imprensa debaixo da mira, por que a sua influência sobre os homens é especialmente forte e penetrante (...). O Estado não deve perturbar-se pelo brilho da chamada liberdade de imprensa e deixar-se conduzir à falta do seu dever, ficando a nação com os prejuízos. [...] Ele deve, e com decisão implacável, assegurar-se desse meio de esclarecimento e colocá-lo a seu serviço e no da nação” 12

Mas estes são apenas alguns exemplos da história mundial recente. No

Brasil, o uso de quadrinhos, caricaturas e humor como forma de afrontar o governo

já não era novidade na década de 60, já que muito antes de surgirem publicações

como o Pasquim – um dos mais importantes jornais alternativos que circularam

durante o regime – a tradição de ironizar atos de governo remonta ao século XVIII.

Isso se considerarmos o poeta barroco Gregório de Matos Guerra – que

passou à história como “Boca do Inferno” - como um dos precursores da crítica ao

poder e dos primórdios da imprensa no Brasil ainda na fase colonial, quando a

notícia ainda não existia de fato e quando cabia aos poetas e escritores o papel de

narrar o cotidiano. Matos Guerra não poupou personagens da realeza, do clero e

muito menos da burguesia em formação no Brasil colônia, que considerava como

12 JORGE, Fernando. Cale a boca, jornalista! SP: Ed. Vozes, 1987 p. 141

16

“canalha infernal”. Em breve biografia produzida pela Academia Brasileira de

Letras13, Gregório de Matos é assim descrito:

Como poeta de inesgotável fonte satírica não poupava ao governo, à falsa nobreza da terra e nem mesmo ao clero. Não lhe escaparam os padres corruptos, os reinóis e degredados, os mulatos e emboabas, os “caramurus”, os arrivistas e novos-ricos, toda uma burguesia improvisada e inautêntica, exploradora da colônia.

E tal qual Matos Guerra – cada qual em sua época – Henfil fazia o mesmo

com a “realeza”, a burguesia de seu tempo. Fosse através de seus desenhos ou

mesmo de textos que escrevia, como a coluna “Cartas à mãe”, publicada pela

Revista Istoé. Embora, teoricamente, as cartas fossem direcionadas à Dona Maria –

mãe do cartunista -, o endereço mesmo era Brasília. Não havia nas “Cartas à mãe”

mensagem subliminar – Henfil era direto e mantinha uma espécie de

correspondência unilateral com os militares. Em 3 de maio de 1978, o seguinte

trecho foi publicado na Istoé:

Mãe, [...] chego lá, entrego os biscoitos pro presidente Geisel e, enquanto ele come, falo tudo com jeitinho. [...] Por que o senhor não relaxa e distribui este fardo desumano conosco? [...] Podemos escolher pro senhor o novo presidente, os 22 governadores, os senadores, isto a gente faz num dia! Que mais? Podemos nos organizar numa Constituinte e reformar a Constituição. Vigiaremos os burocratas incompetentes e os corruptos impertinentes. 14

Mattos Guerra, em seu tempo, não teve tanta sorte quanto Henfil – que

saiu ileso de seus embates com os militares. Dada as duras críticas ao clero – que

cumpriam o papel de censores – e às inimizades criadas por sua “insolência”, o

poeta baiano foi expulso do país, sendo enviado para Angola. A Coroa Portuguesa

também vitimou outro jornalista, Luis Augusto May, fundador do jornal Malagueta

Extraodinária, que publicou um artigo contra os Andradas, família próxima da

realeza:

[...] entraram de repente na sala em que nos achávamos alguns homens que o tempo não permitiu contar; e declaro muito especialmente que eles levavam espadas nuas e paus grossos que eu vi, e com os quais

13 Disponível em <http://www.academia.org.br/> Acesso em: 1º de maio de 2010 14 MORAES, Denis de. O Rebelde do Traço: A vida de Henfil, RJ: José Olympio Editora, 1997 p. 241

17

perpetraram em minha pessoa o massacre que constou de grande primeiro golpe de espada, que foi aparado no castiçal, e na mão esquerda, e do qual resultou o aleijão e ferida aberta que ainda hoje conservo, de mais cinco golpes ou cutiladas, maiores e menores, na cabeça, que se me deram enquanto as luzes se não apagaram, além de dez ou doze contusões violentas no pescoço e no corpo, de que resultou o aleijão do dedo índex da mão direita; e isto além da ruptura que me sobreveio com os esforços que eu fiz quando, na minha fugida dos assassinos, passei a vala que divide a minha chácara da do Padre Serafim dos Anjos, para cuja casa eu me refugiei com o auxílio da escuridão.15

Mais tarde, na virada do século XIX para o século XX, com a

introdução da gravura nos jornais então de circulação diária, a sátira política tomou

conta dos jornais de oposição aos primeiros governos republicanos, conforme

Carvalho 16:

Na revista do ano de Artur Azevedo, O Rio em 1877, domina a temática política e os personagens são todos simbólicos, como o Boato, a Política, o Zé Povinho etc. Já em O Tribofe, revista apresentada no início de 1892, o engano, a sedução, a exploração, a mutreta, o tribofe, enfim, aparecem encarnados em pessoas muito reais e possuem até certo charme. Entre jogadores, cocotes, bons vivants, fraudadores de corridas, proprietários exploradores, perde-se a virtude da família interiorana.

A grande diferença dos cartuns de 1900 para os dos anos 60, é que, mais

do que simples desenhos humorísticos, sarcásticos e irônicos, as publicações

alternativas da ditadura militar transformaram-se em metralhadoras que

descarregavam tiros contra um regime severo. Deste modo, a obra de Henfil não

ficou estática, amarelada pelo tempo: os quadrinhos não serviram apenas como

forma de noticiar - são um recorte de uma parte da história do país e que pode ser

compreendida atualmente, transcendendo o “factual”, o noticioso, tornando-se uma

narrativa do momento histórico em que o país estava mergulhado. De acordo com

Benjamin 17:

A informação só tem valor no momento em que é nova. Ela só vive nesse momento, precisa entregar-se inteiramente a ele e sem perda de tempo tem que se explicar nele. Muito diferente é a narrativa. Ela não se entrega. Ela conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de se desenvolver.

15 JORGE, Fernando. Cale a boca, jornalista! SP: Ed. Vozes, 1987 p. 24 16 CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi. SP: Companhia das Letras, 1987 p. 28

18

O papel e o nanquim nas mãos de Henfil deram vida a outros tantos

personagens – Os Fradinhos, Ubaldo o Paranóico, Cabôco Mamadô, que embora

fossem diferentes entre si, tinham um mesmo propósito: a resistência à ditadura e

tudo o que ela representava - tanto para Henfil, o cartunista, que trabalhava sob a

sombra da censura, como também para o “Henriquinho” (como era chamado pela

família), que tinha o irmão, o sociólogo Betinho, exilado no Canadá. Mais um motivo

que caracteriza Henfil não só como cartunista, mas como narrador da história,

conforme Benjamin: “O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria

experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência

dos seus ouvintes” 18.

Se a hemofilia impedia Henfil de participar ativamente de passeatas,

movimentos contra o regime, seus personagens acabaram por desempenhar esse

papel, sem que houvesse uma reação violenta contra o cartunista – seus cartuns

eram (como várias obras da época) submetidos à censura. No entanto, Henfil era

praticamente “intocável”, já que os militares tinham medo de que algo acontecesse e

ele fosse transformado em um mártir da “esquerda”, provocando uma reação

igualmente violenta dos populares. A última coisa que a ditadura queria era a

propaganda negativa.

Conforme o governo militar intensificava as restrições, os opositores foram

agrupando-se em organizações clandestinas, realizando assaltos e seqüestros de

figuras políticas importantes como moeda de troca dos presos políticos. A omissão

da imprensa em divulgar essas ações era estratégia do governo, de modo a deixar

os guerrilheiros no escuro, travando uma “guerra de nervos”, conforme Kucinski 19:

O silêncio da imprensa é essencial ao sucesso da luta contra a guerrilha urbana, cujas ações espetaculares dominam todo o ano de 1969, culminando com o seqüestro do embaixador americano Charles Burke Elbrick, em setembro. (...) A imprensa não só evitava a temática das torturas, ignorava também os processos políticos nas auditorias militares, para não colocar o preso político como vítima e os órgãos de repressão na defensiva.

17 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história in Magia e técnica, arte e política. SP: Brasiliense, 1982, pg. 204. 18 Id., 1982, p. 201 19 KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e Revolucionários – Nos Tempos da Imprensa Alternativa. SP: Ed. Página Aberta, 1991, p. 40

19

2.1 - A IMPRENSA NANICA

De acordo com Kucinski, a imprensa alternativa (ou nanica, como também

era chamada), possuía as seguintes características:

[...] algo que não está ligado à políticas dominantes; o de uma opção entre duas coisas reciprocamente excludentes; o de uma única saída para uma situação difícil e, finalmente, o desejo das gerações dos anos 60 e 70, de protagonizar as transformações sociais que pregavam 20

E ainda conforme se ampliava o controle do Estado sobre a liberdade

de expressão, já que as grandes redações eram submetidas às restrições

promovidas pelos atos institucionais, crescia também o número de publicações de

caráter alternativo no Brasil, no período de 1964 a 1985, ainda segundo Kucinski 21:

Os jornais diários não aumentaram significativamente a tiragem “[...] não conseguiram atingir um equilíbrio financeiro capaz de propiciar a independência editorial.” 22. Passa pelo Estado, pelos seus subsídios, empréstimos favorecidos, verbas publicitárias e isenções fiscais, e não pela esfera pública e seus leitores, o processo de acumulação da empresa jornalística brasileira dos anos 70.

Criou-se assim um jornalismo que não tivesse vínculos financeiros com

o governo para sobreviver e que estivesse livre das amarras do “jornalismo padrão”.

O Pasquim, um dos jornais onde as tiras do trio do “Alto da Caatinga” foram

publicadas, tinha como características principais a sátira, a ironia e, sobretudo, a

militância. De acordo com Kucinski, “os escritores satíricos e cartunistas

desempenharam um papel central na resistência à ditadura brasileira. Nenhuma

outra categoria se opôs de forma tão coesa 23.” Conforme Malta 24:

Durante a ditadura, esses jornais foram de extrema importância, ao passo que eram uns dos raros canais, mesmo sob severa censura, pelo qual se expressavam as parcas vozes que se atreviam a questionar o regime. Pondo o dedo na ferida, denunciavam a violência e a arbitrariedade, sendo vitimas de perseguições por isso.

20 Id., 1991, p. XIII 21 KUCINSKI, op. cit., p. XXIII 22 MELO, 1982 apud KUCINSKI, 1991, p. XXIII 23 Id, 1991, p. 14 24 MALTA, Marcio. Henfil, o Humor Subversivo. SP: Editora Expressão Popular, 2008, p. 31

20

Com a imprensa de mãos atadas começaram a surgir os mais diversos

tipos de publicações alternativas, de variadas vertentes ou linhagens, mas que

fechavam na “disposição contestatória, pela sua propensão ao ativismo, pela sua

intransigência intelectual e, em certa medida moral, pela afinidade com os motivos

ideológicos que moviam os ativistas políticos” 25. Um dos jornais de maior destaque

foi O Pasquim, herdeiro do Pif Paf de Millôr Fernandes, que surgiu mais com a

proposta de um jornal de bairro – Ipanema, na zona sul do Rio de Janeiro – e que

acabou sendo um dos mais longevos, já que grande maioria não conseguia se

sustentar e acabava nas primeiras edições.

Usando uma linguagem coloquial e provocativa, O Pasquim reuniu em

suas páginas além de Millôr Fernandes, o cartunista Ziraldo, Paulo Francis, Jaguar,

Claudius Ceccon, Sérgio Cabral e Henfil, além de contarem com colaboradores

eventuais – geralmente, intelectuais e artistas:

O Pasquim impôs-se pela imaginação incontrolável, pela quebra de formalidades jornalísticas. Com alvos claros: a ditadura, a classe média moralista, a grande imprensa, os caras-de-pau e os coniventes de plantão. De quebra, ocupou o terreno baldio existente entre a cultura chapa-branca e a cultura oficial de esquerda, discutindo modos de vida e até ecologia. Com a anticaretice e o humor venenoso do Pasquim, o cenário morno do jornalismo brasileiro adquiriu alta voltagem. A diagramação criativa valorizava as ilustrações (desenhos, caricaturas e montagens fotográficas). As frases da capa aturdiam: “Pasquim, ame-o ou deixe-o”, “Um jornal que tem a coragem de não se definir”, “O papel da grande imprensa: papelão”, “Cada povo tem o Idi Amin que merece”, “Imprensa é oposição, o resto é armazém de secos e molhados”.26

Consolidado, atingindo vendagem de 200 mil exemplares, o pequeno

jornal de Ipanema virou uma ameaça, um “instrumento de grupos subversivos com o

objetivo de destruir a família brasileira” 27, já que o que quer que fosse - uma

ameaça à “moral e os bons costumes” – no caso, a irreverência impressa nas

páginas do Pasquim – era indício de subversão.

Por outro lado, o jornal começou a ser visto pela grande imprensa como

competição, um mal a ser exterminado. Até então, O Pasquim não era levado a

sério. Em meados de 1970, após Dom Helder Câmara ser capa do jornal, O

25 KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e Revolucionários – Nos Tempos da Imprensa Alternativa. SP: Ed. Página Aberta, 1991, p. 5 26 MORAES, Denis de. O Rebelde do Traço: A vida de Henfil, RJ: José Olympio Editora, 1997 p.107 27 Id., 1997 p. 161

21

Pasquim começou a ser submetido à censura prévia, de acordo com o decreto-lei nº

1.077 de 26/01/1970, culminando em novembro com a prisão dos jornalistas, como

visto em Jorge 28:

Ocorreu pela primeira vez na Brasil, durante a gestão de Alfredo Buzaid, um processo coletivo contra humoristas. Sim, o auxiliar do presidente Médici não aceitou as piadas, os sarcasmos, as gozações, as gargalhadas rabelaisianas de nove redatores e administradores do semanário Pasquim. Meteu toda essa gente na cadeia, seguindo os métodos de Henrich Himmler, comandante da GESTAPO, o chefe supremo dos S.S., o todo-poderoso ministro do interior da Alemanha nazista... Os humoristas ficaram presos na Vila Militar, e por dois meses. Para liquidar o jornal, impedir os contratos publicitários, as autoridades advertiram a Wolkswagen [sic]: - Anúncio no Pasquim nós consideramos a subvenção da subversão

A resistência do Pasquim ficou clara justamente neste episódio, uma vez que

mesmo desfalcado em seu time de jornalistas, o jornal não deixou de ser impresso:

Mesmo com a redação presa, O Pasquim continuou a sair, produzido por Martha Alencar, Millôr Fernandes, Henfil e Miguel Paiva, e por artistas e intelectuais que nada tinham a ver com a redação. Naquele natal de 1970, O Pasquim virou símbolo de resistência, instrumento de intervenção de uma sociedade civil não totalmente adormecida. Num jogo de suprema ironia, o número 75 d’O Pasquim sai com matérias escritas à maneira de cada um dos humoristas presos, que só foram soltos dois meses depois, a 31 de dezembro.29

Em março de 1975 foi instituído o fim da censura prévia, que deu lugar a

outro tipo de censura: a autocensura - tão perniciosa quanto a imposta pelo Estado,

segundo Moraes: “O medo de escorregar e ser punido alastrava-se entre jornalistas,

artistas e intelectuais. Ai de quem carregasse nas tintas. Resistia-se através de

metáforas, jogos de imagens e disfarces excessivos de linguagem” 30.

28 JORGE, Fernando. Cale a boca, jornalista! SP: Ed. Vozes, 1987 p. 92 29 KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e Revolucionários – Nos Tempos da Imprensa Alternativa. SP: Ed. Página Aberta, 1991, p. 165 30 MORAES, Denis de. O Rebelde do Traço: A vida de Henfil, RJ: José Olympio Editora, 1997 p.148

22

2.2 – “BRAZIL – LOVE IT OR LEAVE IT”

A relação Estado – Imprensa sempre foi uma via de mão dupla: a mesmo

Estado que a cala, também depende dela para manter o status quo e relações de

poder. De acordo com Seixas 31, “A imprensa, outro aparelho ideológico informativo

do Estado, reproduzia a imagem oficial de tranqüilidade política conveniente à

manutenção do governo militar de Médici”.

Ter um veículo de comunicação de base “governista” era uma prática

comum e um dos exemplos mais conhecidos é o caso do jornal Última Hora,

financiado com capital do Banco do Brasil, durante o segundo período de Getúlio

Vargas na Presidência da República (1950-1954). Dirigida pelo jornalista Samuel

Wainer, a cadeia de jornais Última Hora, de acordo com Sodré, torna-se uma

espécie de porta-voz de Vargas:

Vargas não tinha condições, pela mudança dos tempos, para subornar a grande imprensa, como se fizera antes no Brasil, e Campos Sales confessara com tanta simplicidade. Mas era já rotina a abertura de generosos créditos a empresas jornalísticas, nos estabelecimentos bancários e previdenciários do Estado. Vargas julgou que esse caminho largamente batido, lhe permitiria ter pelo menos um órgão oficioso, de base popular, capaz de permitir-lhe enfrentar a maciça frente dos jornais controlados por agências estrangeiras de publicidade. Foi assim que vultuosos e rápidos créditos possibilitaram, em 1951, a Samuel Wainer fundar o vespertino Última Hora, que logo conquistou lugar de destaque na imprensa carioca e brasileira. 32

Assim como a “amizade” entre Vargas e Wainer rendeu frutos a ambos, o

mesmo ocorreu com Roberto Marinho e os governos militares O então dono das

Organizações Globo, beneficiou-se de alianças com o governo, tanto que, de acordo

com Herz 33 “nos anos da ditadura, os jornais do Dr. Roberto chamavam Médici de

democrata, negavam a tortura e expurgavam dom Paulo Arns e dom Hélder

Câmara” - o que culminou com o nascimento de um império das comunicações no

Brasil até os dias de hoje.

31 SEIXAS, Roseny Silva. Morte e Vida Zeferino: Henfil e Humor na Revista Fradim, RJ: Oficina do Autor, 1996 p. 11 32 SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. RJ: Editora Mauad, 1999, p. 399 33 SENHOR, 1987 apud HERZ, Daniel. A história secreta da Rede Globo. [S.l.]: Ed. Tchê, 1987. Disponível em: < http://www.danielherz.com.br/ >. Acesso em: 17 mai. 2010.

23

Ainda segundo Daniel Herz, a partir das décadas de 60 e 70, foram

registradas algumas associações da imprensa nacional com o capital estrangeiro, o

que considera como aspecto importante por ter determinado a modernização do

sistema produtivo, com a diversificação e a sua "atualização" tecnológica”. Esse

“namoro” do governo brasileiro com o capital estrangeiro – especialmente dos

Estados Unidos, um dos patrocinadores do golpe - não iniciou durante o período

militar, só veio a se estreitar no período de 1964 a 1985, como aponta Herz:

Atuaram abertamente no país entidades financiadas por empresas nacionais e estrangeiras, pela CIA e outros órgãos norte-americanos, em apoio à conspiração. O Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPE 5) - que ocupou um lugar central como instrumento de organização e intervenção da burguesia industrial e financeira associada ao capital estrangeiro - e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) foram duas das principais entidades que compraram o apoio de órgãos de comunicação, financiaram campanhas, corromperam parlamentares e criaram o apoio logístico (inclusive com armamentos) para o golpe que se gestava. 34

A “invasão” norte americana não se limitou apenas a questão financeira,

como Seixas 35 enfatiza:

De 1969 a 1974, a repressão cultural acentuou-se. A televisão, principalmente a TV Globo, tornou-se a transmissora da ideologia do Estado: as novelas, distração maior da classe média e do povo, mostravam o mundo das relações interpessoais isento das contradições sociais; os seriados norte-americanos transmitiam uma mensagem do gênero conto de fadas: o mal sempre punido pelo bem. A TV Globo, que surgiu em 1965, impunha o padrão global de qualidade: uma forma técnica aprendida nos Estados Unidos e a ausência de ênfase aos conteúdos que denotavam uma problemática brasileira. A imagem que tudo corria bem era veiculada em todo o Brasil.

Como em um grande jogo de estratégia, os movimentos dos militares

foram bem calculados. A aliança com os Estados Unidos favoreceu a todas as

partes envolvidas: A ditadura militar, que contou com o grande aliado do norte, a

Rede Globo, que obteve as concessões e o capital para se transformar num grande

conglomerado das comunicações e, o governo norte americano, que consegue a

base política para sufocar ideais comunistas, que então ameaçavam se alastrar por

toda a América Latina. Em plena guerra fria e com o surgimento de uma super

34 Id., 1987. . 35 SEIXAS, Roseny Silva. Morte e Vida Zeferino: Henfil e Humor na Revista Fradim, RJ: Oficina do Autor, 1996 p. 11

24

potência, a extinta União Soviética, qualquer movimento de viés populista precisava

ser cortado.

Segundo Herz 36, o capital proveniente dos EUA:

[...] começou a intervir nas empresas de comunicação através da publicidade, maciçamente distribuída pelas empresas estrangeiras e quase sempre gerida por agências de publicidade também estrangeiras. Mas existiam também formas mais direta de intervenção. Nesse período - e os registros são muito discretos: - diversos empresários da área da comunicação foram procurados por representantes de grupos estrangeiros para trabalhar conjuntamente na "defesa da liberdade de iniciativa no Brasil"'.

Opositora de Vargas e de seu notório favoritismo com o jornal de Wainer,

a família Marinho – proprietária das Organizações Globo - começava uma campanha

para liquidar o Última Hora, com suas sete representações estaduais: Rio de

Janeiro, São Paulo, Niterói, Belo Horizonte, Curitiba, Porto Alegre e Recife. A troca

de “favores” – incluindo aí concessões de rádio e televisão - com a imprensa

estendeu-se para além do governo militar, conforme Kucinski 37:

O general Figueiredo, durante sua presidência (1979-1985) concedeu 634 frequencias de rádio e TV a congressistas para garantir a derrota da emenda pelas eleições diretas. Seu sucessor, José Sarney, distribuiu mais 1.028 frequências para conseguir estender seu mandato em um ano

A entrada desse capital estrangeiro – não só nas comunicações – foi o

que patrocinou o golpe e o “milagre econômico” e suas grandes obras, no entanto,

acabou transformando-se em dívida externa e levando o Brasil, na década de 80, ao

patamar de maior devedor do mundo. É importante frisar que, nessas situações, a

corda costuma arrebentar do lado mais fraco – neste caso, a região mais pobre do

Brasil, o Nordeste. Enfim, o mesmo governo que pregava o nacionalismo, o “Brasil,

ame-o ou deixe-o”, era o mesmo que dependia do vizinho americano para se

sustentar.

36 HERZ, op. cit., p. 53 37 KUCINSKI, Bernardo. Jornalismo na Era Virtual. Ensaios sobre o colapso da razão ética. SP: Ed. UNESP, p. 54

25

3.0 - PAPEL E NANQUIM – AS ARMAS DE HENFIL

Agir como um jornalista atuante, independente, tem sido no Brasil uma das coisas mais arriscadas do mundo. Existiu sempre o perigo, remoto ou não, desde a época do Império, de acontecer tudo isto a esse jornalista: ser preso, agredido, processado, torturado, assassinado. O motivo é simples. Neste país da injustiça social, da demagogia e da roubalheira, os autocratas, quase sempre, aliaram-se à ignorância e à boçalidade, aos esfola-caras, aos patudos cujos argumentos são o porrete, o bofetão, o sopapo, o rabo-de-arraia, a cabeçada, o punhal, a peixeira, a navalha, o berrante, o trabuco, o fuzilamento. 38

A citação de Fernando Jorge, embora não tenha sido dirigida a um

jornalista especificamente, reflete o que era fazer jornalismo durante os 21 anos em

que a imprensa esteve refém de um sistema de governo autocrático. Henrique de

Souza Filho, o Henfil, foi um desses jornalistas, se não por formação, mas por agir

como tal – colocando seus personagens como porta-vozes das notícias, fazendo um

humorismo para ser levado a sério, “jornalístico, engajado, quente”. 39

Crítico ferrenho da alienação, da falta de engajamento, Henfil chegava à

beira da agressividade, especialmente quando dava vida ao Cabôco Mamadô e seu

cemitério dos mortos-vivos que “enterrava” as personalidades brasileiras que tinham

seu nome atrelado de alguma forma ao governo militar ou que simplesmente não

tomavam partido. Segundo Zuenir Ventura 40:

O Cemitério dos Mortos-Vivos traduzia um “desesperado, às vezes injusto e extremado gesto de conclamação à resistência democrática”. E completa: “Henfil tinha razão ao achar que vivíamos em um período em que não dava para você ficar em cima ou atrás do muro. Era importante, naquele processo de reconquista da democracia, a mobilização da sociedade civil e da intelectualidade. Ora, ele sabia que era indispensável ter todo mundo que se opunha à ditadura dentro de um mesmo saudável saco de gatos. O que nos levou à abertura? Foi o fato de que se conseguiu dividir o país, maniqueísticamente (e tinha que ser assim), entre as trevas e as luzes, entre o bem e o mal. Naqueles pesados anos Médici, o saco de gatos ainda estava se formando. Hoje, a minha leitura daquele sectarismo aparente do Henfil leva-me a crer que o Cemitério dos Mortos-Vivos embutia uma metáfora: quem não está lutando e resistindo está morrendo ou já morreu. Ele ressaltava essa morte simbólica e nos dizia: precisamos resistir de alguma maneira.”

38 JORGE, Fernando. Cale a boca, jornalista! SP: Ed. Vozes, 1987 p. 143 39 MORAES, Denis de. O Rebelde do Traço: A vida de Henfil, RJ: José Olympio Editora, 1997 p.140 40 Id., 1997, p. 133

26

Os personagens criados pelo cartunista já não cabiam mais em tirinhas

publicadas nos jornais. Eles precisavam de mais espaço, de um espaço só deles,

com a intenção de “expandir o humor político pra além das fronteiras do Pasquim” 41.

Assim surgiu a Revista Fradim 42, que se distinguia das demais publicações por

afastar-se do jornalismo tradicional em que as ilustrações perdem espaço para a

palavra, a matéria-prima principal.

Assim, na Fradim a mensagem priorizava o desenho, dispensando o texto-

palavra, já que a expressão, os traços dos personagens falavam por si, sem

necessariamente perder o caráter informativo e noticioso. A publicação em forma de

história em quadrinhos, a priori meramente humorístico, “escondia” (embora fosse

escancarado) um engajamento característico da imprensa alternativa da época,

ainda conforme Kucinski.

A Fradim era dividida em duas partes. A primeira contemplava histórias

protagonizadas pelos dois “fradins” - Cumprido e Baixim 43 -, criados ainda no

começo da ditadura. Segundo Malta 44, os “fradins” eram:

Donos de personalidades completamente distintas, o frade Cumprido se distingue por sua ingenuidade e extrema bondade; e o frade Baixinho, por sua vez, destilava todo o seu sarcasmo e uma coleção de maldades que incluem o sadismo e comportamentos dignos de nojo.

Antes de chegar às páginas da Fradim, Cumprido e Baixim habitavam as

páginas de O Pasquim com tiras que abordavam basicamente o humor de costumes,

achincalhando a hipocrisia da sociedade: “desceram do salto alto e passaram a

envolver-se com questões relacionadas ao momento histórico”45. A segunda parte

da Revista, a partir da segunda edição, contava com o trio do “Alto da Caatinga”,

que, de acordo com Moraes 46,

[...] extrapolavam as divisas regionais e estimulavam uma reflexão crítica sobre a realidade brasileira. Tanto maldiziam a exploração dos trabalhadores rurais e epidemias de gripe na caatinga, como o Imposto de Renda escorchante, a influência desmedida das multinacionais em nossa

41 Ibid. , 1997 p. 146 42 Anexo A 43 Anexo B 44 MALTA, Márcio. Henfil: uma educação por linhas tortas. Revista Ensaios, Rio de Janeiro, n. 1, 2008, p. 04 45 MORAES, Denis de. O Rebelde do Traço: A vida de Henfil, RJ: José Olympio Editora, 1997 p.148 46 Id., 1997 p.148

27

economia, a predominância de enlatados na programação televisiva e a inexistência de decretos para proteger o consumidor.

Assim, entra em cena o ontológico trio composto pela Graúna – o pássaro

feminista -, Zeferino - um cangaceiro nordestino, talvez um herói (ou anti-herói?)

mítico que remete a Virgulino Ferreira, o Lampião - e o Bode Orelana 47, analfabeto

que come livros pra “ficar inteligente”. De acordo com seu criador, em entrevista

concedida a Paulo Celso 48:

Zeferino é um cangaceiro que vive na caatinga com os problemas da caatinga, paralelo ao mundo brasileiro. A Graúna é um pássaro que vai aprendendo as coisas e tem reações muito humanas e ingênuas, a maioria das vezes. O bode Francisco Orelana é muito inteligente, está descobrindo o mundo

Além do trio principal arquitetado por Henfil, outro personagem aparecia

para ironizar os tempos negros da ditadura e ilustrar o lado “combativo” dos

quadrinhos do “Alto da Caatinga”. Era a Onça Glorinha, personagem da fauna

brasileira, talvez uma legítima representante da mulher combativa, criada com traços

de guerrilheira do grupo, uma autêntica anarquista, do “Comando de Libertação do

Catete”.

Os cartuns, no entanto, não ficavam restritos apenas à temática da

ditadura militar. Entre tantos outros aspectos, o feminismo era um tema recorrente e

permeava o discurso da Graúna que habitava o meio machista nordestino,

representado pela figura do cangaceiro Zeferino. Contudo, os desenhos de Henfil

tratavam especialmente das desigualdades sociais do Nordeste e da seca, em

contraponto, ainda segundo Moraes, com a “classe média do sul maravilha, próspera

e perdulária” 49, em pleno milagre econômico.

47 ANEXO C 48 Henfil deixa In Grilo. São Paulo: Espaço Tempo. 197x n. 48, p.33-52

28

3.1. ZEFERINO, GRAÚNA E BODE ORELANA NO ALTO DA CAATINGA

A caatinga compõe os 10% de território brasileiro esquecido, como uma

espécie de “outro Brasil”. O clima semi-árido que atinge grande parte dos estados do

nordeste e parte de Minas Gerais é caracterizado basicamente pela seca – baixa

umidade e pouca chuva. É nesse cenário quase desértico que vivem os

personagens do trio do “Alto da Caatinga”.

Segundo Malta 50, “o cenário por onde circulam os personagens é

desolador. Os cactos, que acentuam a aridez local, funcionam como alegoria da

escassez e do desconforto. As caveiras de gado – os macabros Caverinos –

simbolizam a proximidade da morte”. À margem do “sul-maravilha” e do milagre

econômico do General Emílio Garrastazu Médici, Zeferino, Graúna e Orelana tomam

corpo e ganham vida como os personagens do cineasta Glauber Rocha, no filme

Deus e o Diabo na Terra do Sol, assim, como os de Os Sertões, descritos por

Euclides da Cunha, conforme Malta 51:

O movimento para evidenciar o nordeste era proposital. Foi motivado basicamente por dois motivos. Primeiro, a valorização conferida pela esquerda às teorias que vinham de fora, como o maoísmo, ou ideais importados da Rússia ou Cuba. O segundo fator motivador foi a preponderância das historias em quadrinhos de heróis estadunidenses.

Nesse ambiente quase sem vida, Henfil criou um trio (ou seria um bando?)

atípico: um cangaceiro rústico que portava armas, um bode intelectual, que

repassava “aos demais integrantes do grupo, destituídos tanto da instrução como da

proximidade com o conhecimento, as informações e o saber absorvidos através da

leitura/ingestão de livros” 52 e uma graúna feminista, que tem a forma de um ponto

de exclamação, como a silhueta de um grito.

49 MORAES, Denis de. O Rebelde do Traço: A vida de Henfil, RJ: José Olympio Editora, 1997 p.148 50 MALTA, Marcio. Henfil, o Humor Subversivo. SP: Editora Expressão Popular, 2008, p.52 51 Id., 2008., p. 52 52 PIRES, Maria da Conceição Francisca. Bode Francisco Orelana: Uma Representação Humorística da Intelectualidade Brasileira entre Patrulhas Ideológicas, Autocensura e Odarização. Revista Topoi, RJ, v. 8, 2007, p. 115

29

Embora pareçam “indefesos” a priori, os quadrinhos do Alto da

Caatinga passavam uma mensagem muito clara – combater a ditadura a qualquer

custo, conforme o próprio Henfil afirmou em entrevista a Tárik de Souza 53:

Em 1970 começou no Jornal do Brasil o Zeferino! Visava chamar as pessoas para o antimilagre brasileiro e chamar principalmente os homens para enfrentar a ditadura. Nem mais nem menos! Quem era ele? Um cangaceiro... Você tem que ser o cangaceiro! Tem de se transformar no cangaceiro!

Zeferino, que em tese era o personagem central do trio, acabou virando

coadjuvante da Graúna, ave astuta, que colocava “em relevo o imprevisto, bem

como a habilidade para silenciar e amedrontar, apesar de sua fragilidade física, os

demais integrantes da caatinga henfiliana” – o que é uma característica presente em

uma das tiras analisadas. O personagem Bode Orelana, por sua vez, “visava criticar

a posição teórica, puramente teórica. Precisamos ir à ação! [...] E o Bode visava

criticar os intelectuais que ficavam [...] discutindo em vez de agir” 54.

Como já exposto, nenhuma das ações – de ambos lados: ação e

reação - eram à toa: uma música de Chico Buarque não era apenas uma canção, o

acordo Globo/Time-Life não era apenas um acordo comercial e certamente, os

desenhos de Henfil, não eram apenas para entretenimento e informação. Assim, a

criação do trio do Alto da Caatinga e a recriação do ambiente em que os

personagens estão inseridos podem indiciar referências ao movimento camponês,

as Ligas Camponesas, organizadas no interior do nordeste e lideradas por Francisco

Julião, militante do PC do B.

Foram as Ligas Camponesas um dos estopins para a queda do ex-

presidente João Goulart no início dos anos 60 e posterior instalação da ditadura

militar, uma vez configurada a ameaça da reforma agrária e possível mudança

política no Nordeste, então, abandonado. Tal referência, deste modo, certamente

deve ter motivado Henfil na sua criação.

53 SOUZA, Tárik de. Como se faz Humor Político. RJ: Editora Vozes, 1984, p. 25 54 Id., 1984, p. 26

30

3.2. O BODE MUDO PELA LEI FALCÃO

Os cartuns de Henfil possuem um aspecto lúdico e os diálogos travados

entre seus personagens de fácil entendimento e isto confere a eles uma aparente

“inocência”. Mas segundo o próprio Henfil, tais expressões gestuais e verbais

constituíram uma forma de “linguagem cifrada empregada para desacatar as

otoridades (sic)” Desse modo, falava-se em “rabo, meleca e peido para insinuar o

que quem já sabe, entende, e quem não sabe, continua sem entender” 55

A história “Zeferino segundo a Lei Falcão”, publicada na edição 18 da

Revista Fradim, começa a desenrolar quando o Bode Orelana “emudece” depois de

engolir o regulamento do TSE para a propaganda eleitoral. A Lei, que impedia o

candidato de falar durante a propaganda eleitoral, fez o mesmo efeito no Bode,

vitimado por mais uma das artimanhas do regime de exceção. Conforme Agamben 56:

Em tempos de crise, o governo constitucional deve ser alterado por meio de qualquer medida necessária para neutralizar o perigo e restaurar a situação normal. Essa alteração implica, inevitavelmente, um governo mais forte, ou seja, o governo terá mais poder e os cidadãos menos direitos

Dentro do universo da caatinga de Henfil, Orelana cumpria o papel de

repassar aos companheiros, analfabetos, o que acontecia no mundo, por meio da

ingestão de livros, que “mastigava” a notícia aos interlocutores, o que o transformava

em alguém “inteligente”. Mas havia uma espécie de dualidade em sua

“intelectualidade”, como coloca Pires57 :

Ser o intelectual da caatinga, capaz de “descomer” a informação, o conhecimento ou o saber deu ao personagem uma importância diferenciada no interior do grupo. Para o historiador Marcos Silva, esta condição de ingestão de leituras-alimentos sugere a produção de pensamentosexcrementos

55 PIRES, Maria da Conceição Francisca. Cultura e Política nos Quadrinhos de Henfil. Revista da História, São Paulo, n. 25, 2006, p. 106 56 ROSSITER, 1948 apud AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. SP: Boitempo Editorial, p, 21 57 PIRES, Maria da Conceição Francisca. Bode Francisco Orelana; Uma Representação Humorística da Intelectualidade Brasileira entre Patrulhas Ideológicas, Autocensura e Odarização. Revista Topoi, RJ, v. 8, 2007, p. 116

31

É possível. Mas também remete ao seu papel na produção de interpretações que sejam explicativas da realidade sociopolítica, na tradução e crítica dos textos “deglutidos” e no desvelamento de símbolos, códigos e mensagens cifradas numa época em que estas predominavam. Ou, de forma inversa, remete à ação de inserir um caráter cifrado a mensagens que não poderiam ser emitidas abertamente.

Este caráter cifrado, a que se refere Pires, permeia este primeiro

quadrinho, quando, ao ouvir a fala de Zeferino, que diz ter encontrado um antídoto

para a cura do mal que o acometia, Orelana responde por meio de números - numa

clara alusão à Lei Falcão e a regra de que o candidato poderia usar apenas os

números da legenda na propaganda eleitoral.

As mensagens cifradas foram artifícios bastante recorrentes usados por

Henfil – algumas vezes, incompreensíveis, como o caso dos números citados por

Orelana “1812” e “7813”, que podem significar desde um ano a um número de

candidato. Isso aconteceu tanto por causa da censura vigilante, como também da

auto-censura a que era submetido. De acordo com Kucinski 58, “a autocensura vai

minando a integridade do ser, porque ele aceita a restrição a sua liberdade e se

torna ao mesmo tempo agente e objeto da repressão”. Essa autocensura era uma

característica exclusiva do Bode nas tiras do Alto da Caatinga, que, de acordo com

Pires 59 , “mesmo de forma escassa, a abordagem inaugural desse tema foi feita

através dos medos, neuroses e da covardia de Bode Orelana que comprometiam a

sua prática pretensamente redentora de intelectual condutor das massas”.

No segundo desenho, quando apresentado ao antídoto para o mal que o

acometia, Bode Orelana novamente responde em números, desta vez, em referência

ao ano de 1946 – ano em que foi promulgada a constituição vigente na época em

que a tira foi desenhada.

Imediatamente após a ingestão do livro levado por Zeferino, Orelana

comemora sua cura. O uso da Constituição – que é o que garante ao cidadão seus

direitos e deveres civis - surge como uma espécie de remédio (já que foi o “doutô”

quem receitou) não só para a censura, mas para a liberdade em todos os sentidos: a

58 KUCINSKI apud PIRES, op. cit, p. 125 59 PIRES, Maria da Conceição Francisca. Bode Francisco Orelana; Uma Representação Humorística da Intelectualidade Brasileira entre Patrulhas Ideológicas, Autocensura e Odarização. Revista Topoi, RJ, v. 8, 2007, p. 125

32

liberdade de expressão e a física a que os brasileiros estavam sendo submetidos à

época. Claramente, um pedido de volta à democracia.

O segundo quadrinho analisado não tem ênfase no trio e sim no cenário

da caatinga, dilacerada pela seca, que aparece como personagem principal – deixa

de ser uma paisagem e vem para primeiro plano, passando a ser uma protagonista

“sem falas”. A narrativa sem explicações é em Benjamin 60 a verdadeira narrativa,

aquela que dispensa referenciais claros porque fala por si só, mas que deixa rastros,

enigmas a serem decifrados ou cacos da história que avançam no tempo:

Cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de explicações. Em outras palavras: quase nada do que acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da informação. Metade da arte narrativa está em evitar explicações.

O sol “escaldante” e os sinais de morte e desolação são claros - a caveira,

reproduz o retrato dos animais mortos pela seca, as cruzes no chão e o cactos, que

é uma planta típica de áreas desérticas, pois suportam longas temporadas sem água

da chuva. De acordo com Pires 61 :

A vida na caatinga seria, então, uma metáfora da vida no interior do auge da ditadura, em que predominava a desesperança e a constante iminência da morte, e o sertanejo, sem terra, alimento e trabalho, tornava-se uma representação da cotidiana luta pela sobrevivência naquele ambiente de completa restrição das liberdades civis e políticas.

O Bode Orelana aparece no primeiro quadro munido de uma câmera

“lambe lambe” – o que denota certo atraso tecnológico do nordeste em relação ao

“sul maravilha” , no caso, o sudeste do Brasil e levando em conta os avanços

tecnológicos do resto do país com o milagre econômico. Segundo Andrade 62, esta

era a imagem do país na década de 60:

60 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história in Magia e técnica, arte e política. SP: Brasiliense, 1982, p.203 61 ___________. Graúna: um canto feminino de autocrítica na Caatinga. Revista da História, São Paulo, n. 158, 2008, p. 251 62 ANDRADE, Manuel Correia de. 1964 e o Nordeste: Golpe, Revolução ou Contra-Revolução. SP: Contexto, 1989, p. 13

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Vitoriosas as forças de reação e promovendo golpes sucessivos, um dentro do outro, passaram a fechar cada vez mais o círculo do poder e a optar por uma política de internacionalização do capital, facilitando a penetração do capital estrangeiro, reprimindo os movimentos de base e realizando uma política modernizadora, sem preocupação com os impactos sociais e ecológicos. O país passou a crescer do ponto de vista estatístico-econômico, sem que este crescimento tivesse um impacto favorável sobre as condições de vida da população. O Brasil crescia, mas a qualidade de vida se deteriorava. O país realizava grandes obras e expandia a área de ocupação, mas assumia grandes dívidas e destruía, de forma impiedosa, a natureza.

Conforme já mencionado, a intenção por trás da Lei Falcão era proibir que

o candidato pudesse se expressar contra o governo da forma que fosse, portanto, o

candidato ficava limitado a “mencionar a legenda, o currículo e o número do registro

dos candidatos na Justiça Eleitoral, bem como a divulgar, pela televisão, suas

fotografias, podendo, ainda, anunciar o horário local dos comícios” 63.

O Bode Orelana diz à Graúna: “Diz a lei que na fotografia do candidato o

fundo tem que ser neutro”. No entanto não há “neutralidade” no cenário atrás da

Graúna: há a morte (que não representava somente a morte física, mas a de toda

uma cultura), a desolação – o que ia contra a – de alienação promovida pela

ditadura e sua “imprensa oficial”, como coloca o próprio Henfil 64:

O sertanejo não ouve cantador. Ouve rádio (e ouve consequentemente o discotec-sound). Não vê mais o mamulengo (um teatrinho de marionetes). Vê TV. Qual TV? Sim, por que eu não tenho preconceito contra a TV enquanto equipamento. Eles vêem a TV Globo e a Tupi. A mesma programação do Rio-São Paulo. Jornal Nacional. O Grande Jornal. Chico City. Planeta dos Macacos. Novelas. João Saldanha. Hoje. Amanhã. Fantástico. Sílvio Santos. Sandra e Mieli. Não existe uma TV Caatinga transmitindo para a Caatinga a vida, a cultura, a música, as notícias, a linguagem da Caatinga. No sertão do Seridó eles não sabem mais que quando vem a chuva as formigas começam a fazer um dique de madeira na boca do buraco. Mas sabem tudo sobre a vida e a morte de Ângela Diniz. Conhecem Doca Street como a palma da mão deles. E as Marias Bonitas aqui se chama cocotas mesmo e usam a mesma roupa da cocota de Ipanema. Importante: a mesma linguagem, sacou cara? [...] Ainda com sotaque. Mas até quando? Respostas ao padrão global.

Como nas histórias em quadrinhos há infinitas possibilidades – por

mais absurdas que pareçam à racionalidade humana – a Graúna vira-se para o

terceiro elemento, no caso, a paisagem árida da Caatinga e pede “Atenção pessoal!

63 Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/1970-1979/L6339.htm> Acesso: 15-06-10 64 FILHO, Henrique de Souza. Fala, Leitor. Revista Fradim 18: 1977. p. 43-44,

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Todo mundo neutro!”. E de repente todo aquele cenário de morte, transformou-se no

“sul-maravilha”: ao fundo vê-se a praia e um sol que não parece tão escaldante. As

flores que crescem no lugar onde antes havia o cactos, representam a vida, a

beleza, enquanto as torneiras abertas sugerem abundância e desperdício. Ou seja –

a “neutralidade” veio como forma de maquiar a verdade, deixá-la bonita, poética,

alienada – tal qual nas novelas da Rede Globo.

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4 – CONSIDERAÇÕES FINAIS

Eu era criança. Certo dia um homem bate à porta de nossa casa. Ele e

meu pai conversam cordialmente e, confesso que não lembro o motivo – talvez por

uma possível empolgação de meu pai pela primeira eleição direta em muito tempo –

abri a boca para dizer que meu pai gostava do “candidato barbudo”. Imediatamente

fui tirada da sala e repreendida. “Você não devia ter dito isso!”. Eu não entendi a

razão para o pito.

Os livros de história lidos nos bancos escolares trataram de me explicar o

que acontecera naquela tarde, no final da década de oitenta, quando ainda pairava o

medo do retorno da ditadura militar, terminada havia pelo menos quatro anos. O

homem que tinha ido à minha casa era um militar, com quem meu pai fazia um curso

na Escola Superior de Guerra. Ou seja, noutros tempos, um comentário infantil como

o meu, poderia ter tido consequências terríveis.

Talvez por isso o tema “ditadura militar” sempre tenha me interessado,

sempre senti necessidade de saber mais. Foi aí que entrou em cena meu lado “Bode

Orelana”, devorador de livros, que, em uma das idas à biblioteca, encontrou a iguaria

que inspirou este trabalho: o livro “O Rebelde do Traço”, de Denis de Moraes.

A biografia do cartunista “daquela música da Elis” (O bêbado e o

equilibrista, interpretada por Elis e composta por João Bosco e Aldir Blanc) me

apresentou a um homem inquieto, contestador, inconformado, irônico – algumas das

características que, caso não tivesse tido a “sorte” que teve, não teria sobrevivido

para contar as histórias do trio do Alto da Caatinga, nem dos Fradins, do Caboco

Mamadô, do Ubaldo, o Paranóico.

Henfil, a sua maneira, denunciou como o brasileiro estava sendo massa

de manobra, abrindo os olhos para o verdadeiro Brasil – o Brasil da seca, da

pobreza, da ignorância, da ditadura, da alienação, do “cale-se”. Um Brasil onde

pessoas estavam sendo sistematicamente torturadas e mortas, enquanto os

generais e os noventa milhões em ação comemoravam a vitória da seleção de

Carlos Alberto Torres, adotando uma política panis et circensis tal qual a da Roma

antiga.

E o que aconteceu com este homem que lutou por tanto tempo contra

forças tão poderosas munido apenas de papel e nanquim? Poucos conhecem seu

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nome e sua história, sua importância no movimento das Diretas Já – o movimento foi

assim batizado depois de uma entrevista feita por ele com o ex-senador Teotônio

Vilela.

Henfil, sem dúvida nenhuma, é um dos representantes de um período que

não deve ser esquecido. Eis a importância do conhecimento da história, de se

manter viva a memória: é preciso lembrar sempre para que nada daquilo aconteça

novamente.. A alienação, a falta de importância que se dá à política atualmente me

obriga a evocar Brecht, em seu “analfabeto político65”:

O pior analfabeto é o analfabeto político. Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos. Ele não sabe o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões políticas. O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política. Não sabe o imbecil que, da sua ignorância política, nasce a prostituta, o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos, que é o político vigarista, pilantra, corrupto e lacaio das empresas nacionais e multinacionais.

Sem saber de nossa história, tornamo-nos massa de manobra. Sem o

senso crítico, somos facilmente manipulados. Eis outra lição aprendida nessas mais

de trinta páginas: nada é o que parece: este trabalho me fez enxergar além da

versão oficial dos livros de história. Nhóqui, nhóqui. O que a Rede Globo, o governo

estadunidense e os militares brasileiros tinham em comum? Nhóqui, nhóqui. Eu não

sabia, agora sei – senso crítico, ir além, procurar respostas e não ser um Orelana,

um teórico que repassa as informações como verdade absoluta.

65 BRECHT, Bertolt. Analfabeto Político. Disponível em: < http://www.pensador.info/ > Acesso em 20/06/10

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5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. SP: Boitempo Editorial, 2004

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história in Magia e técnica, arte e política. SP: Brasiliense, 1982.

______________. O narrador in Magia e técnica, arte e política. SP: Brasiliense, 1982.

CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi. SP: Companhia das Letras, 1987.

COUTO, Ronaldo Costa. Memórias Viva do Regime Militar: Brasil 1964-1985, RJ: Editora Record, 1999. HERZ, Daniel. A história secreta da Rede Globo. [S.l.]: Ed. Tchê, 1987. Disponível em: < http://www.danielherz.com.br/ >. JORGE, Fernando. Cale a boca, jornalista! SP: Ed. Vozes, 1987

KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e Revolucionários – Nos Tempos da Imprensa Alternativa. SP: Ed. Página Aberta, 1991

______. Jornalismo na Era Virtual. Ensaios Sobre o Colapso da Razão Ética. SP: Ed. UNESP MALTA, Márcio. Henfil: uma educação por linhas tortas. Revista Ensaios, Rio de Janeiro, 2008.

______. Henfil, o Humor Subversivo. SP: Editora Expressão Popular, 2008.

MORAES, Denis de. O Rebelde do Traço: A vida de Henfil, RJ: José Olympio Editora, 1997

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PIRES, Maria da Conceição Francisca. Graúna: um canto feminino de autocrítica na Caatinga. Revista da História: SP, 2008.

______. Cultura e Política nos Quadrinhos de Henfil. Revista da História: SP, 2006 SEIXAS, Roseny Silva. Morte e Vida Zeferino: Henfil e humor na Revista Fradim. RJ: Oficina do Autor, 1996.

SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. RJ: Editora Mauad, 1999.

MORRE EX MINISTRO ARMANDO FALCÃO. Disponível em <http://zerohora.clicrbs.com.br/ >. Acesso em 01-05-10

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ANEXOS

40

ANEXO A – CAPA DA REVISTA FRADIM NÚMERO 18

41

ANEXO B – FRADINHOS BAIXIM E CUMPRIDO

42

ANEXO C – GRAÚNA, ZEFERINO E BODE ORELANA

43

ANEXO D – QUADRINHOS DA REVISTA FRADIM NÚMERO 18