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UNIVERSIDADE DO EXTREMO SUL CATARINENSE UNESC CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO ESPECIALIZAÇÃO EM PSICOPEDAGOGIA CLÍNICA E INSTITUCIONAL VALTER MARTINS ESTUDO DE CASO EM PSICOPEDAGOGIA CLÍNICA CRICIÚMA 2013

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UNIVERSIDADE DO EXTREMO SUL CATARINENSE – UNESC

CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO ESPECIALIZAÇÃO EM PSICOPEDAGOGIA

CLÍNICA E INSTITUCIONAL

VALTER MARTINS

ESTUDO DE CASO EM PSICOPEDAGOGIA CLÍNICA

CRICIÚMA

2013

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VALTER MARTINS

ESTUDO DE CASO EM PSICOPEDAGOGIA CLÍNICA

Monografia apresentada à Diretoria de Pós-

graduação da Universidade do Extremo Sul

Catarinense – UNESC, para a obtenção do título de

especialista em Psicopedagogia Clínica e

Institucional.

Orientadora: Profa. Evelyn Cristina Mergener de

Arruda Calixtro

CRICIÚMA

2013

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RESUMO

Esta monografia apresenta um estudo de caso em Psicopedagogia Clínica, feito em regime de

estágio em uma escola de Criciúma – SC, Brasil. O caso de dificuldade de aprendizagem

estudado é de um aluno de 23 anos que frequenta o Ensino Fundamental em uma escola

pública de educação de jovens e adultos (EJA). O aluno manifesta forte desejo de aprender a

ler, escrever e fazer contas, mas tem grande dificuldade de aprendizagem. No levantamento

de dados para diagnóstico, constatou-se: (1) indicações de desequilíbrio nas modalidades de

aprendizagem, com características de modalidade hiperacomodativa/hipoassimilativa,

resultando em esquemas empobrecidos, tendência à imitação; (2) atraso no desenvolvimento

cognitivo, com indicações de desenvolvimento incompleto das estruturas operatórias de

seriação e classificação, e pobreza na função simbólica, características da fase pré-

operacional; (3) avaliações de lectoescrita apontam estágio de desenvolvimento anterior ao

silábico. A intervenção foi planejada com atividades e jogos para desenvolvimento das

estruturas operatórias incompletas ou em falta, desenvolvimento do conceito de número e da

mecânica da escrita, e busca de equilíbrio entre as modalidades de aprendizagem, até o limite

da capacidade do paciente, como condições importantes para a busca de seus objetivos de

aprender a ler, escrever e fazer contas.

Palavras-chave: Psicopedagogia Clínica. Dificuldade de aprendizagem. Estudo de caso.

Paciente adulto.

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ABSTRACT

This monograph presents a case study in Clinical Psychopedagogy, done through an

internship contract with a public school in the city of Criciuma, Santa Catarina State, in

Brazil. The studied case of difficulty in learning is that of a 23 years old student attending a

primary education course in a public school for teenagers and adults. The student reveals a

strong desire to learn to read, write and acquire proficiency in making calculations, but shows

great difficulty in achieving this goal. In the diagnostic phase it was noticed: (1) indications of

a disequilibrium in the learning styles, showing the characteristics of a hiperaccommodative /

hipoassimilative style, which results in poor schemas and a tendency to imitation; (2) a delay

in the cognitive development, with indications of an incomplete development of the

operational structures of seriation and classification, and poor symbolic function, which are

characteristically developed in the preoperational stage; (3) an evaluation of the understanding

of the mechanics of written language, according to Ferreiro and Teberoski (1986) shows it to

be in a stage anterior to the syllabic. The intervention was planned with activities and games

directed to the development of the operational structures lacking or incomplete, development

of the concept of number and of the mechanics of the written language, and the achievement

of an equilibrium between the learning styles of assimilation and accommodation, up to the

limit of the student‟s ability, as important conditions for the attainment of the student‟s goals

in learning to read, write and be proficient in making calculations.

Key-words: Clinical Psychopedagogy. Learning difficulty. Case study. Adult patient.

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABPp Associação Brasileira de Psicopedagogia

APAE Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais

EJA Educação de Jovens e Adultos

INSPER Instituto de Ensino e Pesquisa

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 8

2 CAPÍTULO TEÓRICO SOBRE PSICOPEDAGOGIA CLÍNICA ................. 9

2.1 SOBRE AS ORIGENS DA PSICOPEDAGOGIA .................................................. 9

2.2 ETAPAS DO TRATAMENTO: DIAGNÓSTICO E INTERVENÇÃO ................ 11

2.3 DIAGNÓSTICO: EM BUSCA DAS CAUSAS ..................................................... 12

3 ESTUDO DE CASO EM PSICOPEDAGOGIA ................................................ 14

3.1 MOTIVO DA CONSULTA ................................................................................... 14

3.1.1 Fundamentação teórica ........................................................................................ 14

3.1.2 Relato ..................................................................................................................... 16

3.1.3 Análise diagnóstica ............................................................................................... 19

3.2 ENQUADRE COM O PACIENTE ........................................................................ 19

3.2.1 Relato da sessão ..................................................................................................... 19

3.2.2 Análise da sessão ................................................................................................... 22

3.3 HORA DO JOGO ................................................................................................... 22

3.3.1 Fundamentação teórica ........................................................................................ 22

3.3.2 Relato ..................................................................................................................... 25

3.3.3 Análise diagnóstica ............................................................................................... 26

3.4 HISTÓRIA VITAL ................................................................................................. 26

3.4.1 Fundamentação teórica ........................................................................................ 26

3.4.1.1 Antecedentes natais ................................................................................................ 27

3.4.1.2 Doenças .................................................................................................................. 28

3.4.1.3 Desenvolvimento .................................................................................................... 28

3.4.1.4 Aprendizagem ......................................................................................................... 29

3.4.2 Relato ..................................................................................................................... 30

3.4.3 Análise diagnóstica ............................................................................................... 32

3.5 TÉCNICAS PROJETIVAS .................................................................................... 33

3.5.1 Fundamentação teórica ........................................................................................ 33

3.5.2 Relato ..................................................................................................................... 35

3.5.2.1 Par educativo ........................................................................................................... 35

3.5.2.2 As quatro partes de um dia ...................................................................................... 36

3.5.2.3 Planta da sala de aula .............................................................................................. 37

3.5.2.4 A planta da minha casa ........................................................................................... 37

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3.5.2.5 Família educativa .................................................................................................... 38

3.5.3 Análise diagnóstica ............................................................................................... 39

3.6 DIAGNÓSTICO OPERATÓRIO ........................................................................... 40

3.6.1 Fundamentação teórica ........................................................................................ 40

3.6.2 Relato ..................................................................................................................... 42

3.6.2.1 Prova de correspondência termo a termo ............................................................... 42

3.6.2.2 Prova de classificação ............................................................................................ 42

3.6.2.3 Prova de seriação .................................................................................................... 43

3.6.2.4 Prova de classificação hierárquica .......................................................................... 44

3.6.2.5 Prova de conservação de números .......................................................................... 45

3.6.2.6 Prova de conservação de volume ............................................................................ 45

3.6.2.7 Prova do desenho de figuras geométricas ............................................................... 46

3.6.2.8 Prova esterognóstica ............................................................................................... 47

3.6.3 Análise diagnóstica ............................................................................................... 48

3.7 AVALIAÇÃO DA LECTOESCRITA .................................................................. 49

3.7.1 Fundamentação teórica ........................................................................................ 49

3.7.2 Relato ..................................................................................................................... 51

3.7.3 Análise diagnóstica ............................................................................................... 53

3.8 AVALIAÇÃO DO PENSAMENTO LÓGICO-MATEMÁTICO .......................... 53

3.8.1 Fundamentação teórica ........................................................................................ 53

3.8.2 Relato ..................................................................................................................... 54

3.8.3 Análise diagnóstica ............................................................................................... 56

3.9 AVALIAÇÃO DO CORPO E MOVIMENTO ...................................................... 56

3.9.1 Fundamentação teórica ........................................................................................ 56

3.9.2 Relato ..................................................................................................................... 57

3.9.3 Análise diagnóstica ............................................................................................... 57

4 HIPÓTESE DIAGNÓSTICA .............................................................................. 59

5 PLANO DE INTERVENÇÃO ............................................................................. 62

5.1 JUSTIFICATIVA ................................................................................................... 62

5.2 OBJETIVO GERAL ............................................................................................... 62

5.3 OBJETIVOS ESPECÍFICOS ................................................................................. 62

5.4 DINÂMICA OPERACIONAL .............................................................................. 63

5.5 AVALIAÇÃO DO PLANO .................................................................................... 63

6 DEVOLUÇÃO (PARA O PACIENTE, PAIS, FAMÍLIA, ESCOLA) ............. 65

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6.1 DEVOLUÇÃO PARA O PACIENTE .................................................................... 66

6.2 DEVOLUÇÃO PARA A FAMÍLIA ...................................................................... 67

6.3 DEVOLUÇÃO PARA A ESCOLA ....................................................................... 68

7 EVOLUÇÃO DO CASO ...................................................................................... 71

8 CONCLUSÃO ....................................................................................................... 72

REFERÊNCIAS ................................................................................................... 73

ANEXO A - Par Educativo ................................................................................... 75

ANEXO B – As quatro partes de um dia ............................................................ 76

ANEXO C – Planta da sala de aula ..................................................................... 77

ANEXO D – A planta da minha casa .................................................................. 78

ANEXO E – Família Educativa ........................................................................... 79

ANEXO F – Prova das figuras geométricas ....................................................... 80

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1 INTRODUÇÃO

A Psicopedagogia Clínica tem como alvo auxiliar aqueles que apresentam

dificuldades em aprender. Geralmente essa dificuldade torna-se evidente na escola, refletindo

no mau resultado das provas, baixas notas, conceitos insuficientes, repetência.

Nos casos mais graves, não superados, o aluno ou aluna poderá repetir um ou

mais anos e até mesmo desistir de frequentar a escola. A situação traz frustrações, sofrimento

emocional ao aluno(a), para a família, para os professores. Em longo prazo, o prejuízo para o

aluno ou aluna, para a família e para a sociedade pode ser ainda maior, pois o grau de

conhecimento adquirido fica empobrecido e a dificuldade persistente pode comprometer o

desempenho profissional, refletindo na situação econômica, status social e grau de satisfação

com a vida.

Assim, percebe-se a importância do trabalho psicopedagógico clínico, pois por

meio dele o indivíduo que tem dificuldades em aprender recebe a oportunidade de

desenvolver essa capacidade até o limite de suas possibilidades.

A UNESC oferece a formação em Psicopedagogia Clínica e Institucional na forma

de um curso de pós-graduação Lato Sensu. Para a consolidação dos conhecimentos adquiridos

nas diversas disciplinas do curso e, principalmente, na disciplina de Psicopedagogia Clínica, a

UNESC requer um estágio em Psicopedagogia Clínica. A realização é condição indispensável

para a concessão do diploma.

O estágio é uma grande oportunidade para a consolidação e extensão dos

conhecimentos adquiridos nas aulas presenciais do curso.

Neste trabalho é apresentado um estudo de caso em Psicopedagogia Clínica,

realizado na condição de estágio em uma escola de educação para jovens e adultos.

Os capítulos que seguem descrevem, na ordem em que aparecem, o processo

realizado de levantamento de dados, investigação, formulação de hipóteses sobre as possíveis

causas das dificuldades em aprender, planejamento e execução de ações com o objetivo de

desenvolver no paciente a capacidade de aprender que se percebeu em falta, até o limite de

suas possibilidades. Na primeira parte de cada capítulo, e de suas subdivisões, são

apresentadas as fundamentações teóricas de cada etapa realizada.

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2 CAPÍTULO TEÓRICO SOBRE PSICOPEDAGOGIA CLÍNICA

2.1 SOBRE AS ORIGENS DA PSICOPEDAGOGIA

Escott e Argenti (2001) escrevem que a Psicopedagogia surgiu há poucos anos no

Brasil, sendo considerada uma área relativamente nova de estudos.

Bossa (2000) relata que a preocupação com os problemas de aprendizagem

iniciou, na Europa, no final do século XIX, e que, no início de século XX, nos Estados Unidos

e Europa, o número de escolas para crianças consideradas de aprendizagem lenta cresceu. Na

França, por volta de 1930, foram criados os primeiros centros para orientação educacional

infantil, reunindo profissionais de diversas áreas, tais como médicos, psicólogos, educadores e

assistentes sociais.

Segundo Mery (1985, apud BOSSA, 2000), em 1946, J. Boutonier e George

Mauco fundaram, em Paris, os primeiros centros psicopedagógicos. Nestes centros, eram

utilizados os conhecimentos da Psicologia, Psicanálise e Pedagogia para tratar crianças com

problemas de comportamento, tanto na escola como no lar, buscando sua readaptação.

Segundo Scoz (2009), a partir de 1960, a categoria profissional de Psicopedagogia

começou a expandir-se e organizar-se no Brasil, preocupando-se com as causas do fracasso

escolar. Na época, os problemas de aprendizagem eram percebidos como disfunção

psiconeurológica, mental e/ou psicológica. Os conceitos de disfunção cerebral mínima e de

distúrbios de aprendizagem (como afasias, disgrafias, discalculias e dislexias) davam ênfase

a essa noção de origem orgânica dos problemas de aprendizagem. Assim, crianças com

dificuldades de aprendizagem eram encaminhadas a profissionais da área médica, que

recorriam, frequentemente, ao uso de medicamentos.

Uma mudança nas ideias de como tratar as dificuldades de aprendizagem tem

início na década de 1970. Spieker (apud ESCOTT; ARGENTI, 2001) propôs um enfoque

psicoanalítico no tratamento dos problemas de aprendizagem. E o tratamento proposto

envolvia não somente o sujeito com dificuldades de aprendizagem, mas, também, a família

deste.

Scoz (2009) destaca a importante contribuição da Associação Brasileira de

Psicopedagogia, no Brasil, para mudança na concepção dos problemas de aprendizagem. A

associação foi criada, em 1980, em São Paulo, para congregar os psicopedagogos paulistas.

Assim, inicialmente, foi denominada de Associação dos Psicopedagogos de São Paulo. Em

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1988, ampliou sua área de ação para outros estados brasileiros e passou a chamar-se

Associação Brasileira de Psicopedagogia (ABPp).

Um marco importante ocorreu, em 1984, quando a associação promoveu um

encontro em que propunha, para a Psicopedagogia, não só um enfoque terapêutico, mas,

também, um enfoque preventivo, com uma atuação dos psicopedagogos que buscasse

melhorar a qualidade de ensino nas escolas.

Scoz (2009) escreve que, à medida que cresciam os campos de atuação da

Psicopedagogia, os psicopedagogos foram sentindo a necessidade de melhorar sua formação,

adquirindo conhecimentos de diversas outras áreas. A ABPp contribuiu bastante para isso,

promovendo cursos, palestras, seminários, etc., em que trazia profissionais de áreas como a

Pedagogia, Psicologia, Neurologia, Psiquiatria, etc.

A Psicopedagogia evoluiu, assim, em sua multidisciplinaridade, ao longo dos

anos, passando a utilizar conhecimentos de um número maior de disciplinas, incluindo a

Pedagogia, a Psicologia Social, a Genética, a Neurologia, a Psicanálise e a Linguística, entre

outras (ESCOTT; ARGENTI, 2001).

Escott e Argenti (2001) destacam, também, a influência de profissionais

argentinos, citando os nomes de Alicia Fernández e Sara Paín como contribuintes importantes

para a Psicopedagogia praticada no Brasil, reforçando nela as ideias psicanalíticas. A

abordagem resultante dessa contribuição considera, além dos aspectos cognitivos e

instrumentais, também o desejo do sujeito.

Sonia Parente, engajada como psicóloga nos trabalhos da Secretaria Municipal de

Educação de São Paulo, no final da década de 1970 e na década de 1980, conta que existia, na

época, grande preocupação com o aumento no número de crianças com problemas escolares

(PARENTE, 2003). Ela participou de equipe de psicólogos, contratada pela Prefeitura de São

Paulo, que buscava resolver a questão do fracasso e da evasão escolar e sentia a necessidade

de uma mudança de rumos, um novo caminho para tratar da situação. A Psicopedagogia

importada da Argentina, no final da década de 1970 e início de 1980, proporcionou esse

caminho. Parente, ela própria orientada por Sara Paín, dá a entender que a chegada do

pensamento de Sara Paín a São Paulo, naquela época, foi muito importante. Houve uma

mudança de enfoque, com a adoção da perspectiva psicanalítica da psicopedagoga argentina,

que considerava as relações entre afetividade e cognição nos problemas de aprendizagem.

Sobre essa mudança, a autora escreve que:

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[...] até então acreditava-se que as crianças não aprendiam por problemas de

carência social, desnutrição ou devido a problemas neurológicos, como a famosa

disfunção cerebral mínima (DCM). Esses mitos não mais se sustentavam e todo um

movimento desenvolvia-se, contrariando essas concepções (PARENTE, 2003,

p.22).

Essa perspectiva de Sara Paín é adotada, também, nas considerações sobre as

possíveis causas de dificuldades de aprendizagem que serão abordadas ao longo deste

capítulo. A nova perspectiva provocou mudança significativa no modo como os

psicopedagogos tratam as dificuldades de aprendizagem.

2.2 ETAPAS DO TRATAMENTO: DIAGNÓSTICO E INTERVENÇÃO

O tratamento psicopedagógico clínico é um processo que compreende duas etapas

principais: a de diagnóstico; e a de intervenção. É na etapa de intervenção que se concentra o

tratamento, em si, da dificuldade de aprendizagem, isto é, é nela que são realizadas as ações

que buscam fazer com que o paciente supere as dificuldades e aprenda. Mas, para poder

planejar ações de intervenção, o psicopedagogo clínico precisa, primeiro, descobrir as causas

da dificuldade de aprendizagem. E, para descobrir essas causas, realiza todo um trabalho de

levantamento de informações que lhe permita chegar a um diagnóstico. Esse trabalho constitui

a etapa de diagnóstico.

Uma parcela significativa do texto desta monografia está dedicada à descrição

desse processo de diagnóstico, compreendendo sessões com o paciente, sua família e seus

professores. Em Psicopedagogia Clínica, essas sessões são referidas por meio de termos que

se tornaram padrão na prática ensinada no curso de Psicopedagogia da UNESC, como:

a) motivo da consulta;

b) enquadre com o paciente;

c) hora do jogo;

d) história vital;

e) técnicas projetivas;

f) diagnóstico operatório;

g) avaliação da lectoescrita;

h) avaliação do pensamento lógico-matemático;

i) avaliação do corpo e movimento;

j) hipótese diagnóstica.

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Os nomes estão relacionados com os objetivos de cada sessão, no levantamento de

informações necessárias ao diagnóstico. O motivo da consulta, história vital e hora do jogo

são referidos por Paín (1985). A autora escreve, também, sobre as provas psicométricas e as

provas projetivas. Mais considerações sobre essas etapas de levantamento de dados serão

apresentadas ao longo da narração do estudo de caso, indicadas sob o título fundamentação

teórica.

2.3 DIAGNÓSTICO: EM BUSCA DAS CAUSAS

Na Psicopedagogia são utilizados conhecimentos de diversas disciplinas, entre

elas a Psicologia, a Psicanálise, a Neurologia e a Pedagogia. Profissionais dedicados à busca

das causas das dificuldades de aprendizagem concluíram que a aprendizagem pode ser

influenciada por fatores orgânicos e, também, por fatores sociais, econômicos e culturais.

Assim, diz-se que aprendizagem ocorre dentro de um contexto sócio-econômico-cultural.

A dificuldade de aprendizagem pode ter, como causa predominante, um fator

orgânico, isto é, problemas relacionados a lesão cerebral, dificuldades auditivas, visuais,

motoras, etc.

Além desses fatores orgânicos, reconhece-se que o processo de aprendizagem

também é influenciado pelo contexto sócio-econômico-cultural, como citado acima, isto é,

pode ser afetado pelas perspectivas da comunidade e da família, pelas perspectivas da escola e

do professor e pelas perspectivas do próprio aluno, ou seja, a aprendizagem que acontece

resulta do que a família quer, do que a escola quer, do que o professor quer e do que o aluno

quer.

Como consequência, quando há fracasso escolar, isto é, quando o grau de

aprendizagem está aquém do desejado para o aluno, as causas desse fracasso tanto podem

estar nas capacidades e ações do aluno, como nas ações da escola, nas ações da comunidade

e/ou nas ações da família.

No estudo das causas do fracasso na aprendizagem, o modelo adotado pela

Psicopedagogia, onde se percebe a influência da psicanálise, classifica essas causas em dois

grupos, sendo um interno e outro externo à estrutura familiar e individual. No grupo das

causas internas à estrutura familiar há um subgrupo denominado sintoma e outro denominado

inibição.

No subgrupo sintoma, estão causas que são consideradas decorrentes da relação

do indivíduo com a família e que são identificadas pelos seguintes rótulos: a) contrato de

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sobrevivência; b) segredo; c) identificação; d) pai fracassado. No capítulo 3 são apresentados

mais detalhes sobre essas causas.

No subgrupo inibição, estão situações de não aprender, também relacionados com

a estrutura familiar e individual, na qual o pensar e o aprender estão reprimidos. Há

predomínio de determinadas crenças que dão ao ato de pensar ou de aprender uma conotação

negativa, fazendo com que sejam evitados.

No segundo grupo, estão as causas externas, não relacionadas à estrutura familiar,

e que não se instalaram na estrutura interna do indivíduo. Podem ser, por exemplo, condições

encontradas na escola ou atitudes dos educadores. Essas causas formam um subgrupo

denominado problema de aprendizagem reativo.

O não aprender pode ser considerado, também, sob o ponto de vista do

desenvolvimento cognitivo do sujeito. Neste sentido, a Psicopedagogia adota o modelo

psicogenético proposto por Jean Piaget.

Wadsworth (1992), escrevendo sobre essas proposições de Piaget, descreve os

seguintes estágios de desenvolvimento cognitivo:

a) estágio sensório-motor (do nascimento até dois anos);

b) estágio do pensamento pré-operacional (de dois aos sete anos);

c) estágio das operações concretas (de sete aos onze anos);

d) estágio das operações formais (de doze aos dezesseis anos, ou mais).

Um importante ponto desse modelo é que, em cada estágio, são desenvolvidas

certas habilidades cognitivas e as habilidades desenvolvidas em um estágio são condição

indispensável para o desenvolvimento das habilidades do estágio seguinte.

As faixas de idade citadas são aquelas em que boa parte das pessoas desenvolve as

habilidades próprias de cada estágio, mas o desenvolvimento de uma pessoa pode ficar

comprometido, de modo que se podem encontrar indivíduos de mais idade que ainda não as

desenvolveram e pode estar aí uma causa da dificuldade em aprender.

Para descobrir em que estágio de desenvolvimento o paciente se encontra, é

realizado o diagnóstico operatório (ver 3.6).

Ao longo da descrição do processo de levantamento de dados necessários ao

diagnóstico deste estudo de caso, apresentada a seguir, serão abordadas, em cada etapa, as

fundamentações teóricas em que a etapa se baseia. Como se perceberá, essas fundamentações

estão ligadas às ideias apresentadas neste capítulo.

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3 ESTUDO DE CASO EM PSICOPEDAGOGIA

Segundo o INSPER – Instituto de Ensino e Pesquisa (2013), o estudo de caso é

um instrumento pedagógico valioso, em que se apresenta ao estudante um problema sem

solução pré-definida, e se requer dele o empenho para identificar o problema, analisar

evidências, formar argumentos lógicos e propor soluções.

O estudo de caso permite aplicar, na prática, os conhecimentos teóricos adquiridos

na sala de aula e, com isso, desenvolvê-los, dar-lhes reforço, aprofundá-los.

A escolha de um aluno com dificuldade de aprendizagem e o desenvolvimento de

todo o processo psicopedagógico clínico de levantamento de dados, diagnóstico e intervenção,

irá proporcionar justamente isso, a aplicação, na prática, dos conhecimentos teóricos

adquiridos, seu desenvolvimento, reforço e aprofundamento.

Neste estudo de caso, as referências ao paciente escolhidos serão feitas usando as

iniciais do nome dele, E.M., com a intenção de preservar sua identidade. E. M. é um jovem de

23 anos que tem dificuldades de aprendizagem. Apesar da idade, ainda não lê, não escreve, e

não sabe fazer contas. Frequenta uma escola para educação de jovens e adultos à noite porque

tem um grande sonho: aprender a ler e a escrever. Foi indicado pela Escola para este trabalho

de estudo de caso. Ele mora com a mãe, dois irmãos, uma irmã e uma cunhada. Na ocasião da

primeira entrevista com a família, o pai havia falecido seis meses antes.

A seguir serão consideradas e descritas as etapas de levantamento de dados

julgadas necessárias para o diagnóstico das causas de não aprendizagem de E.M. Como já

apresentado no capítulo 2, essas etapas estão divididas por sessões realizadas, cada uma com

um propósito determinado e um nome já consagrado na prática da Psicopedagogia Clínica.

A primeira sessão descrita é a do motivo da consulta.

3.1 MOTIVO DA CONSULTA

3.1.1 Fundamentação teórica

Na prática da Psicopedagogia Clínica é recomendado que a primeira sessão de

atendimento seja feita com os responsáveis pelo paciente, quando criança ou jovem, ou o

próprio paciente, quando adulto. Essa primeira sessão, denominada de sessão do motivo da

consulta, tem como objetivos:

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a) conhecer membros da família do paciente, geralmente a mãe e o pai, ou outro

adulto responsável por ele;

b) indagar como família ou paciente ficaram sabendo sobre o psicopedagogo;

c) indagar o que levou a família a vir buscar ajuda, porque pensam que a ajuda é

necessária e o que a família pensa que pode ser a causa do problema

percebido;

d) obter informações sobre o paciente e seus familiares;

e) indagar o que a família espera como resultado do atendimento

psicopedagógico;

f) comunicar o papel e a forma de atuação do Psicopedagogo;

g) combinar a frequência e o tempo de cada atendimento;

h) combinar o custo de cada atendimento.

É papel do psicopedagogo, nesse primeiro contato, transmitir segurança à família,

tranquilizá-la, dar-lhe esperança.

A entrevista é feita somente com familiares, sem a presença do paciente, e a ideia

é estimulá-los a falar livremente, participando o menos possível, apenas guiando-os a focar

nos assuntos de interesse, observando atentamente seu comportamento, suas falas, sua

postura, o modo como se comunicam entre si.

Dessa primeira entrevista é esperada a obtenção de diversas informações

importantes para o diagnóstico. Entre elas, destaca-se a informação sobre o significado do

sintoma na família e significado do sintoma para a família (PAÍN, 1985).

Ao buscar o significado do sintoma na família, deseja-se saber que significado o

não aprender tem na família. Esse significado torna-se um motivo inconsciente que pode vir a

inibir a aprendizagem quando o não aprender traz um resultado que é inconscientemente

desejado pelo paciente. Em relação a isso, Sara Paín (1985) apresenta, como possíveis causas

de inibição da aprendizagem: o contrato de sobrevivência; segredo; identificação; e pai

fracassado, já citado no capítulo 2.

No contrato de sobrevivência, aprender pode significar uma mudança de relação

com a mãe, pai ou pessoa significante, mudança essa que o grupo não consegue suportar.

Acontece, por exemplo, quando a mãe superprotege o filho ou a filha e alimenta o desejo,

geralmente inconsciente, de que ele ou ela não cresça. Não quer que ele ou ela aprenda, que se

torne independente.

No segredo, há algo importante no passado do paciente, que lhe é escondido.

Uma condição que, quando percebida por ele, torna-se um fator inibidor da aprendizagem. O

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segredo pode ser, por exemplo, o fato de o paciente ser filho adotivo, ou ter nascido fora do

vínculo matrimonial (filho ilegítimo).

Na identificação, o não aprender é considerado um sintoma derivado de uma

identificação do paciente com um dos progenitores. Sobre essa identificação, como exemplos,

Sara Paín escreve:

[...] a falta de conhecimento investe o objeto de amor. O pai mostra-se indulgente

com uma mulher burra que confunde feminilidade com ignorância. A menina se

identifica com tal modelo para conseguir o mesmo favor [...] O outro caso no qual a

identificação é denunciada por si mesma: “E...ele...você sabe... não termina... isto...

deixa as coisas... de modo que...” no meu informe a professora apresenta a mesma

criança expressando que “suas redações são incompreensíveis, porque deixa todas

as idéias truncadas; parece como se tivesse lacunas em seus pensamentos”. (PAÍN,

1985, p.37-38)

No pai fracassado, o não aprender é considerado um sintoma derivado de atitude

de cumplicidade com o pai, percebido como mal sucedido.

Ao buscar o significado que o sintoma tem para a família, deseja-se saber como a

família reage à percepção do problema de aprendizagem. A forma de reagir vai depender dos

valores que dominam a classe e o grupo social à que pertence à família.

3.1.2 Relato

Normalmente, os trabalhos em Psicopedagogia Clínica começam quando pais ou

responsáveis pelo paciente, ou o próprio paciente, procuram o psicopedagogo em busca de

ajuda.

No caso aqui apresentado, porém, esse serviço psicopedagógico não foi procurado

especificamente pelo paciente ou sua família. Em razão da necessidade do estágio, o

estagiário procurou a Escola e os dirigentes dela escolheram e indicaram E.M. para o

tratamento psicopedagógico clínico.

E.M. demonstra ter habilidade motora para manusear lápis e consegue copiar

palavras, desenhando-as com letra bonita, mas informa e dá demonstrações (ver 3.2) de que

não sabe ler e não sabe escrever as palavras que pensa e pronuncia. Também informa e dá

demonstrações de que não sabe fazer contas.

A entrevista motivo da consulta foi feita somente com a mãe, uma vez que o pai

havia falecido há cerca de seis meses.

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Convidada, a mãe compareceu à sessão com boa disposição. Embora solícita ao

responder as perguntas, respondia somente o que era perguntado, sem muita elaboração.

Ao receber a mãe de E.M., o estagiário explicou ser estudante de Psicopedagogia

e que o papel do psicopedagogo é auxiliar crianças, jovens e adultos que têm dificuldade em

aprender. Explicou, também, que esse atendimento psicopedagógico não terá custo para E.M.,

que está sendo feito como um estágio necessário para a conclusão do curso, e que esse

trabalho de estágio tem o acompanhamento e orientação de uma professora do curso com

bastante experiência em Psicopedagogia Clínica. Explicou, ainda, que no atendimento

psicopedagógico clínico não se dá aulas e nem se faz temas escolares. O atendimento é feito

por meio de atividades que incluem jogos. Falou que os jogos são uma forma de atividade

que o paciente gosta de fazer e que auxilia no desenvolvimento de habilidades. A mãe de E.

M. ouviu as explicações balançando a cabeça afirmativamente e não fez comentários.

Feita essa apresentação sobre o trabalho, o estagiário informou a frequência e o

tempo de duração das sessões psicopedagógicas. Ele pediu, então, à mãe de E.M. que falasse

sobre E.M., sua dificuldade em aprender, sua vida escolar e o que ela pensava ser a causa

dessa dificuldade.

Falando sobre o que considera ser a causa da dificuldade de E.M. em aprender a

ler e escrever, ela citou o problema de parto, em que o médico teve que empurrar a criança

para nascer, e as veias que perceberam na cabeça, que também causou a dificuldade em um

dos olhos, de modo que uma pálpebra está sempre caída. Ela pensa que a dificuldade de E.M.

tem origem nesse problema de parto.

A mãe conta que E.M. começou a ir à escola com seis anos. Começou em uma

escola e, depois de alguns meses, mudou para a mesma escola onde estuda hoje. Lá ficou

fazendo o jardim por dois a três anos. Aos 13 anos ainda estava no primeiro ano do ensino

fundamental.

Quando começou a ir à escola, ele queria ir, e não houve nenhuma dificuldade em

convencê-lo. Mas, na escola, não ficava quieto na carteira. Ia para a janela, para a porta,

ficava andando pela sala. Quando em casa, não gostava de fazer as lições de casa.

A mãe conta que houve uma época, quando tinha entre 9 e 10 anos de idade, em

que E.M. não queria mais ir à escola. Com 14 anos, E.M. foi estudar numa A.P.A.E.

(Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais), onde permaneceu por dois anos.

A mãe relata que foi na A.P.A.E que ele começou a apresentar progresso na

aprendizagem. Gostava de ir para a escola, fazia as tarefas escolares e começou a escrever.

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Ainda quando em idade de menor, E.M. via os irmãos irem trabalhar e queria

trabalhar também. Chorava porque não podia trabalhar.

Depois da A.P.A.E, aos 16 anos, foi estudar em uma escola profissionalizante,

onde ficou por mais três anos. Lá aprendeu uma profissão e começou a trabalhar, por volta

dos 18 anos. O emprego foi indicado pela escola. Ele permanece nesse mesmo emprego até

hoje.

Depois que saiu da escola profissionalizante, com 19 anos, ficou frequentando um

curso para a educação de jovens e adultos, em um centro comunitário. Há cerca de dois anos,

passou a estudar na escola em que está hoje.

A mãe de E.M. conta que os irmãos se dão bem. Quando os irmãos queriam

ensiná-lo e faziam as tarefas de modo diferente do que a professora de E.M. havia ensinado,

ele ficava brabo. Só aceitava fazer do jeito que a professora havia ensinado.

Quando E.M. não queria fazer os temas de casa com a irmã, a mãe ia fazer o tema

com ele.

O pai de E.M. não lia e nem escrevia. Era analfabeto. Mas sabia fazer contas. A

mãe conta que a irmã mais velha sabe fazer contas muito bem. A irmã e um dos irmãos de

E.M. também estudam, atualmente, na mesma escola que ele. A mãe também conta que,

quando ela era jovem e estava na escola, foi detectado que ela tinha um problema na cabeça e

que precisava fazer um exame. Mas, como o exame era caro e a mãe dela não podia pagar,

nunca foi feito. Ela diz que só aprendeu a ler as horas bem depois de casada. Agora, sabe ler

as horas e, também, já aprendeu a fazer contas.

Quando perguntada como os irmãos e o pai de E.M. viam essa dificuldade dele

em aprender, a mãe comentou que o pai de E.M. recomendava levá-lo ao médico. Também

dava conselhos para ele se esforçar em aprender, para que pudesse chegar a ser alguém na

vida. Os irmãos também dão conselhos para ele se esforçar e o ajudam a fazer as tarefas

escolares.

À pergunta sobre a rotina diária de E.M., a mãe respondeu que ele levanta às

6h30min para iniciar o trabalho às 7h30min. É a mãe que o chama no horário, mas ela diz

que, mesmo nos dias em que não tem que ir trabalhar, ele acorda sozinho e levanta. E.M. vai

dormir entre as 22h00min e as 23h00min.

Sobre as amizades, a mãe diz que, quando pequeno, brincava com outras crianças

na areia e jogando bola. Sobre as amizades atuais, ela diz que E.M. não tem noção de amigo

bom e amigo ruim. Para ele todo mundo é amigo. Ela fala: "A gente olha com quem ele

anda”. Ela diz que, quando dá conselho que um amigo não é bom, E.M. fica brabo com ela.

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3.1.3 Análise diagnóstica

O modo reservado como a mãe fazia seus comentários e respondia às perguntas

não facilitou ao estagiário a obtenção de informações e conclusões quanto à questão do

sintoma na família. De qualquer forma, com as informações obtidas, o estagiário não percebe,

neste primeiro encontro, indicativos de um contrato de sobrevivência, segredo, identificação

ou pai fracassado. Entretanto, um caso de identificação não seria improvável, considerando

que o pai era analfabeto e a mãe também compartilhava essa condição.

Há a considerar, ainda, o depoimento da mãe de que ela tinha um problema de

aprendizagem que estaria relacionado a um problema na cabeça, e que E.M. teve um

problema no parto que, segundo ela, é a causa das dificuldades dele em aprender. Pode-se

indagar, daí, sobre a possibilidade da instalação de uma crença de incapacidade, relacionada

com essas situações, que possa estar, também, contribuindo como causa de não aprender.

Outra hipótese de causa provável é a de que tenha havido, de fato, dano

neurológico, causador das dificuldades de aprendizagem, ou um atraso de desenvolvimento

por outras circunstâncias, considerando-se a admissão de E.M. em uma A.P.A.E e sua

permanência, lá, por dois anos.

Já, quanto ao significado do sintoma para a família, o depoimento da mãe revela

que a família considera importante a aprendizagem. Aprender é importante para o sucesso

pessoal e profissional, ser alguém na vida, nas palavras da mãe. Isso fica implícito, também,

no histórico escolar de E.M. Apesar dos constantes insucessos, houve insistência e E.M.

continuou indo à escola. Segundo a mãe, pai e irmãos davam apoio para que se esforçasse em

aprender.

3.2 ENQUADRE COM O PACIENTE

3.2.1 Relato da sessão

O primeiro contato do estagiário com E.M., bastante breve, ocorreu no dia da

entrevista com a coordenação da Escola. A coordenadora chamou primeiro a professora de

Ensino Fundamental I, para saber quem ela indicaria. Ela concordou com a indicação de E.M.

e, depois, foi chamá-lo para que o estagiário e o aluno se conhecessem.

E.M. compareceu, com um sorriso tímido e poucas palavras. A professora pediu,

então, que trouxesse o caderno dele para o estagiário ver. Ele apresentou um caderno pautado,

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de umas 200 páginas, muito bem cuidado, com bastante escrita copiada por E.M., em letra

bonita, bem desenhada, seguindo perfeitamente as margens e o traçado das linhas do caderno,

boa distribuição na folha. Havia vários exercícios simples de matemática básica, colados nas

páginas do caderno.

O estagiário fez uma apreciação sincera, dizendo que o caderno estava muito bem

cuidado e a letra era bem bonita, melhor que a dele.

A professora de Ensino Fundamental I reafirmou o que já dissera, que E.M. copia

a escrita como copia um desenho, sem entender o que está escrito. Ainda não sabe ler e

escrever.

Dias mais tarde, quando E.M. chegou para a sessão de enquadre com o paciente, o

estagiário perguntou-lhe como tinha sido o dia e como estava se sentindo. E.M. falou que o

dia tinha sido bom, mas que estava preocupado com a Professora M., que é sua professora de

Ensino Fundamental I, e por quem ele demonstra um carinho especial. Alguns colegas haviam

feito queixas e tinha surgido uma discussão em aula, deixando a professora bem triste.

O estagiário havia colocado algumas caixas com os jogos Lince, Cilada e Cara a

Cara sobre a mesa, junto com algumas folhas com ilustrações. Como E.M. não demostrou

interesse nos jogos e ilustrações, o estagiário perguntou a ele se não queria dar uma olhada.

Ele disse que não queria. Apenas olhou a ilustração da folha de cima e comentou que era um

peixe.

Quando perguntado, E.M. disse que não conhecia jogos. Continuando a conversa,

o estagiário pediu que E.M. falasse sobre ele e sua família. Que idade tinha e com quem

morava. E.M. contou que tem 23 anos de idade, lembrou dia e mês de sua data de nascimento,

e falou que mora com a mãe, uma irmã e dois irmãos. A irmã é a mais velha, seguindo-se um

irmão mais velho e um mais novo.

O estagiário perguntou com que idade havia entrado na escola e em que escolas

havia estudado. E.M. não soube informar idades e datas com muita certeza. Apenas lembrou

que iniciou nesta mesma escola onde estuda hoje. Contou que depois estudou em escola da

A.P.A.E, depois foi estudar em uma escola para aprender uma profissão. Foi a partir de lá que

começou a trabalhar como empacotador em um supermercado, onde ainda permanece

trabalhando.

Quando saiu da escola onde aprendeu a profissão, passou a estudar, à noite, em

outra escola. Então, conheceu a professora de Ensino Fundamental I, na igreja que estava

frequentando, e essa professora conseguiu vaga para ele na escola atual que, como já havia

dito, foi a primeira em que estudou. Disse que está nessa escola desde o ano passado.

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E.M. conta que gosta de jogar futebol, de desenhar e ouvir música. É torcedor do

Vasco da Gama e do Criciúma E.C. Disse que assiste televisão, vê novela e filmes. E.M. fala,

também, que deseja muito aprender a ler e fazer contas.

O estagiário, então, levantou-se e foi até um mapa colocado na parede da sala, há

cerca de três metros de onde estavam sentados, onde havia a palavra mundo escrita em letras

maiúsculas, e perguntou a E.M. se podia ler aquela palavra. Ele disse que não. O estagiário foi

apontando as letras da palavra, uma por uma, até a quarta letra, perguntando que letras eram.

E.M. disse o nome de letras, mas os nomes não coincidiam com as letras apontadas.

O estagiário mostrou a E.M., então, uma coleção com 74 logotipos de empresas

famosas, distribuídos em três folhas, impressos em cores, com cerca de 25 logotipos em cada

folha. A maioria desses logotipos, além do desenho, tinha o nome da marca escrito.

Vendo os logotipos do Banco do Brasil, Caixa, Itaú, HSBC e Bradesco, ele os

reconheceu como significando bancos. Vendo os logotipos da Ford, Chevrolet e Peugeot, ele

os reconheceu como marcas de carros, mas não soube dizer o nome das marcas. O logotipo da

Fiat ele associou com Pálio e o da Volkswagen com Gol. Os logotipos da Ipiranga, Petrobrás,

Shell e Esso, ele associou com postos de gasolina, mas não soube dizer os nomes das marcas.

Os logotipos da Adidas e da Nike ele associou com tênis, também, sem indicar o nome da

marca. Associou os logotipos da Nestlé, Toblerone, Lacta e Garoto com chocolate e os

logotipos da Perdigão, Sadia e Aurora com salsicha. Ele reconheceu pelo nome as marcas da

Bombril, do Criciúma E.C., dos supermercados Bistek, Angeloni e Giassi, da Brahma e da

Skol, da Vivo e da Tim. E.M. ia examinando os logotipos a partir da direita, em colunas, de

cima para baixo.

Na sequência, o estagiário propôs que olhassem os jogos, para conhecê-los e E.M.

concordou. Olhou primeiro o jogo Lince. Quando explicado a E.M. que ele precisava pegar as

peças e encontrar o desenho no tabuleiro, ele demonstrou que conseguia localizá-las com

grande rapidez. Fez esse exercício com nove peças. Depois o estagiário pediu para ele

identificar as peças e ele foi dizendo o nome das figuras, tendo olhado entre 25 e 30 e

acertado quase todas.

E.M. não chegou a jogar o jogo Cilada, porque o tempo da sessão já estava quase

acabando. O estagiário apenas explicou o que era preciso fazer com as peças, e E.M. mostrou

boa habilidade para pegar e encaixar as peças. O estagiário percebe, todavia, dificuldades em

E.M. para elaborar e explicar conceitos e idéias. Será timidez, medo de errar ou dificuldade

em elaborar?

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3.2.2 Análise da sessão

E.M. não demonstrou curiosidade em relação aos jogos que lhe foram

apresentados. Pelo modo como se expressou, deu a entender que não está habituado com esse

tipo de jogo e nem familiarizado com eles. A julgar pela narrativa do histórico escolar, E.M.

demonstra persistência em permanecer na escola, apesar do pouco sucesso que teve em

aprender a ler e escrever.

E.M. mostrou tranquilidade e capacidade de manter o foco na conversa e nas

atividades que lhe foram apresentadas. Permaneceu sentado durante toda a sessão, que durou

uma hora.

O paciente não demonstrou capacidade para ler palavras, nem no exercício com a

palavra mundo, no mapa, e nem nos diversos logotipos de marcas famosas que lhe foram

apresentadas. Também não demonstrou ser capaz de identificar as letras do alfabeto.

Entretanto, demonstrou que sua mente é capaz de relacionar símbolos com significados, tendo

identificado a relação entre diversos logotipos e as utilidades que eles representam (bancos,

marcas de carros, postos de gasolina, chocolate, salsicha).

Com o jogo Lince mostrou aptidão visual, destreza motora, capacidade de

correspondência termo a termo e associação de imagens com as palavras que as identificam,

como bola, uva, barco, etc.

Com o jogo Cilada também demonstrou destreza motora para posicionar as peças,

correspondência termo a termo, inclusive reconhecendo o local de encaixe de peças a partir de

peças em posições diferentes daquelas presentes no tabuleiro.

3.3 HORA DO JOGO

3.3.1 Fundamentação teórica

A sessão hora do jogo é uma atividade utilizada em Psicopedagogia Clínica para

avaliar a modalidade de aprendizagem do paciente, isto é, o modo como ele aprende.

O termo modalidade de aprendizagem está relacionado com os conceitos de

assimilação e acomodação propostos por Jean Piaget (WADSWORTH, 1992). A ideia é que o

que cada pessoa aprende é organizado na memória na forma de esquemas. Esses esquemas

não são, segundo apresenta Wadsworth (1992), objetos reais, e sim conjuntos de processos

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dentro do sistema nervoso e podem ser pensados como análogos aos conceitos, categorias ou

fichas num arquivo.

Para que se aprenda algo, é preciso que esse algo seja percebido e retido na

memória, pelo acréscimo ao conjunto de esquemas. Esse algo tanto pode ser acrescentado a

um esquema já existente, como pode ser necessária a criação de um novo esquema para ele.

Ao processo inicial de perceber e adicionar algo novo aos esquemas é dado o

nome assimilação. Assim, Wadsworth (1992, p. 5, grifo do autor) escreve que “assimilação é

o processo cognitivo pelo qual uma pessoa integra um novo dado perceptual, motor ou

conceitual nos esquemas ou padrões de comportamento já existentes”. A assimilação é “parte

do processo pelo qual o indivíduo cognitivamente se adapta ao ambiente e o organiza”

(WADSWORTH, 1992, p. 6).

Quando o indivíduo percebe algo novo, sua mente busca, primeiro, assimilar esse

algo aos esquemas existentes. Entretanto, isso pode não ser possível se não houver um

esquema na qual ele se encaixe perfeitamente. Pode ocorrer, então, um processo de adaptação

de esquema existente, para absorver esse algo novo percebido, ou então a criação de um

esquema novo. Esses processos são vistos como formas de acomodação dos esquemas para

poderem assimilar a nova experiência.

Wadsworth (1992, p. 7) escreve que “a acomodação explica o desenvolvimento

(uma mudança qualitativa) e a assimilação explica o crescimento (uma mudança quantitativa);

juntos eles explicam a adaptação intelectual e o desenvolvimento das estruturas cognitivas”.

A assimilação é uma mudança quantitativa por que, quando ela ocorre, algo novo

é acrescentado aos esquemas existentes e, assim, o acervo de esquemas fica maior. A

acomodação é uma mudança qualitativa por que ela resulta em uma mudança na relação entre

esquemas e entre os dados de um determinado esquema, sem que ocorra acréscimos.

A modalidade de aprendizagem pode estar equilibrada, isto é, existe um equilíbrio

entre assimilação e acomodação, ou pode estar desequilibrada, com um processo ocorrendo de

forma mais intensa do que o outro.

Paín (1985, p. 47-48) faz referências a extremos do processo assimilativo-

acomodativo, utilizando as palavras hipoassimilação, hiperassimilação, hipoacomodação e

hiperacomodação para identificá-los.

A inibição precoce de atividades assimilativas-acomodativas dá lugar à modalidade

nos processos representativos cujos extremos podemos caracterizar da seguinte

maneira:

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- hipoassimilação: os esquemas de objeto permanecem empobrecidos, bem como a

capacidade de coordená-los. Isso resulta em um déficit lúdico e na disfunção do

papel antecipatório da imaginação criadora;

- hiperassimilação: pode se dar uma internalização prematura dos esquemas, com

um predomínio lúdico, que, em vez de permitir a antecipação de transformações

possíveis, desrealiza negativamente o pensamento da criança;

- hipoacomodação: que aparece quando o ritmo da criança não foi respeitado, nem

sua necessidade de repetir muitas vezes a mesma experiência. Sabemos que a

modalidade da atividade do bebê é a circularidade, mas essa não pode ser

exercitada no caso de perder-se o objeto sobre o qual se aplica; isto, por sua vez,

atrasa a imitação adiada e, portanto, a internalização das imagens. Assim, podem

aparecer problemas na aquisição da linguagem, quando os estímulos são

confusos e fugazes;

- hiperacomodação: acontece quando houve superestimulação da imitação.

Fernández (1991, p. 110) assim interpreta o significado dessas quatro palavras

usadas por Paín (1985):

Podemos descrever a hipoassimilação como uma pobreza de contato com o objeto

que redunda em esquemas de objeto empobrecidos, déficit lúdico e criativo.

A hiperacomodação: pobreza de contato com a subjetividade, superestimulação da

imitação, falta de iniciativa, obediência acrítica às normas, submissão.

Lamentavelmente, a modalidade de aprendizagem

hipoassimilativa/hiperacomodativa é a vedete de nosso sistema educativo. Muitos

„bons-alunos‟ encontram-se nesta situação.

A hipoacomodação: pobreza de contato com o objeto, dificuldade na internalização

de imagens, a criança sofreu a falta de estimulação ou o abandono.

A hiperassimilação: predomínio de subjetivação, desrealização do pensamento,

dificuldade para resignar-se.

Fernández (1991, p.110-111) exemplifica as ocorrências dos pares

hiperacomodativo/hipoassimilativo e hiperassimilativo/hipoacomodativo como segue:

Uma aprendizagem normal supõe uma modalidade de aprendizagem na qual se

produza um equilíbrio entre os movimentos assimilativos e os acomodativos. Assim,

por exemplo, se é apresentada a uma criança de 8 anos, com estas características, a

lâmina I do CAT (três pintinhos em frente a uma mesa: de um lado, tenuemente

representada, uma figura de galinha) poderá, ante o pedido para que conte uma

história a partir do desenho, dizer: „Os pintinhos estavam tomando sopa. A mamãe

galinha cuida deles. Antes estavam correndo pelo parque. E como estavam cansados

e com fome, foram para a mesa. Depois vai vir um amigo do maior e vão visitar

outros galinheiros‟. Ou então: „Os três pintinhos estavam muito tristes porque a mãe

não queria dar-lhes de comer. Antes estavam olhando TV e os pais haviam saído

para passear.‟

Uma criança da mesma idade que tenha estruturado uma modalidade de

aprendizagem hiperacomodativa/hipoassimilativa, poderá dizer: „Três pintinhos.

Estão comendo. Há uma tigela. Uma colher. Uma galinha grande. Estão aí comendo.

Na tigela há comida‟.

O seguinte é o relato de uma criança com uma modalidade

hiperassimilativa/hipoacomodativa:

„Os pintinhos estavam comendo, veio um gato grandinho e quis espantá-los, os

pintinhos ficaram bem juntinhos. Um deles sabia voar, então foram voando,

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chegaram ao país das mariposas, juntaram-se todas as mariposas e foram com os

pintinhos até o mar‟.

A hora do jogo é uma atividade utilizada com crianças para avaliar sua

modalidade de aprendizagem, isto é, o modo como aprendem, e consiste em oferecer uma

caixa contendo diversos elementos que podem ser usados para fazer brincadeiras, construir

coisas, ler, desenhar, escrever. Segundo Fernández (1991, p. 169), ela é adotada “com

crianças com menos de nove anos e com mais de três”.

Assim, para pacientes com mais idade, busca-se realizar outras atividades ou

observar outras situações de comportamento que possam revelar qual a modalidade de

aprendizagem que utilizam.

No caso de E.M., já com 23 anos, não caberia a adoção da hora do jogo e, assim,

optou-se por reunir informações conversando com ele, observando suas ações e, também,

ouvindo observações de seus professores sobre seu comportamento.

3.3.2 Relato

Foram feitas duas curtas sessões com a Professora M., que leciona no Ensino

Fundamental I para E.M. Na primeira sessão, a Professora M. falou um pouco sobre a vontade

de E.M. em aprender a ler e escrever e sua dedicação às aulas. Ela conta que na escola

anterior onde E.M. estava estudando, ele não tinha caderno. A outra professora dizia que E.M.

não precisava de caderno, já que não lia e nem escrevia.

Quando E.M. veio para a escola atual e começou a ter aulas de Ensino

Fundamental I, a professora disse a ele que ele precisava, sim, de um caderno. Foi preciso

treiná-lo para usar o lápis e, até mesmo, para segurar de forma correta uma tesoura e fazer

cortes retos.

E.M. fez bastante progresso nesse sentido, passando a mostrar proficiência no

manuseio do lápis e da tesoura e aprendeu a desenhar as letras com bastante capricho,

conforme já relatado em 3.2.1.

Já na aprendizagem da escrita, ela conta que, após uma aula, ele parece aprender,

mas já na aula seguinte demonstra ter esquecido. Há colegas que aprendem de forma mais

rápida e mostram-se impacientes com os alunos que aprendem devagar.

A Professora colocou E.M. a estudar junto com uma colega portadora da síndrome

de Down, para que os dois estudem juntos e um ensine o outro. Diz que a moça está

aprendendo bem a leitura e escrita.

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A Professora conta, inclusive, que percebeu que o irmão mais jovem de E.M.

estava brigando com ele, batendo nele. Um dia E.M. apareceu em aula machucado. Ela

conversou com o irmão para não bater mais em E.M., ameaçando inclusive chamar o

Conselho Tutelar. Depois disso, não percebeu mais sinais de violência.

Na segunda sessão, o estagiário perguntou à professora como E.M. se comporta

em sala de aula. Ela conta que, no início, ele não parava na sala de aula, mas que depois seu

comportamento mudou e agora só sai, raramente, para ir ao banheiro. Informa que ele se

distrai com facilidade e que, com frequência, ela fica com a impressão de que E.M. não

entendeu o que foi explicado. Ele faz perguntas sobre coisas que não entendeu. Outra

impressão da professora é que ele tem lapsos de memória e esquece o que aprendeu.

3.3.3 Análise diagnóstica

A partir do comportamento de E.M., relatado anteriormente neste capítulo (ver

3.2), sobre a falta de curiosidade em relação aos jogos colocados à disposição dele, tendência

a distrair-se, perder o foco, dificuldade em elaborar respostas às perguntas que lhe são feitas,

o estagiário conclui sobre a maior probabilidade de um desequilíbrio no processo

assimilativo-acomodativo, adquirindo características de processo

hiperacomodativo/hipoassimilativo, isto é, na forma como Paín (1985) define esses termos, o

paciente tem seus esquemas de objeto empobrecidos e é pequena sua capacidade de coordená-

los, causando-lhe um déficit lúdico e dificuldade em criar, havendo acentuada tendência à

imitação. Segundo Fernández (1991), tal situação favorece a falta de iniciativa, obediência

acrítica às normas e submissão.

3.4 HISTÓRIA VITAL

3.4.1 Fundamentação teórica

Na busca das possíveis causas de não aprender, faz-se necessário e importante

conhecer a história do sujeito, começando pela época em que foi gerado, estendendo-se até o

momento presente. Para isso, o psicopedagogo busca realizar entrevista com alguém que

tenha esse conhecimento sobre a história do paciente, geralmente a mãe, quando ainda viva e

presente, ou então outra pessoa que tenha assumido os cuidados do paciente. Quando o

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paciente é adulto, e na ausência do cuidador, as informações são buscadas com o próprio

paciente.

A entrevista dedicada a essa busca de informações é referida como sessão da

história vital. Quando realizada com pais ou responsáveis, a entrevista é feita na ausência do

paciente.

Sara Paín (1985) recomenda a busca de informações sobre antecedentes natais,

doenças, desenvolvimento e aprendizagem. Também recomenda que a entrevista seja feita

após a sessão da hora do jogo e de algumas provas psicométricas, usando as informações

assim obtidas para orientar as perguntas a serem feitas, colocando o foco em questões mais

relevantes, conforme o que já pode ser percebido no paciente.

Tal como no caso da sessão de motivo da consulta, a ideia é deixar a pessoa falar

livremente, limitando-se o pedagogo a dirigir o foco para as questões desejadas ou a estimular

a pessoa a falar, nos casos em que não fale espontaneamente.

3.4.1.1 Antecedentes natais

Interessa, aqui, obter informações sobre as condições antes do nascimento,

durante o nascimento e após o nascimento.

Sobre as condições antes do nascimento interessa saber se a geração foi planejada

ou acidental, e qual a reação e os sentimentos da mãe e da família. Será que houve, em algum

momento, rejeição à criança? Interessa saber, também, como foi a gestação, tanto do ponto de

vista material como afetivo, se houve cuidados de alimentação e sanitários apropriados para

um bom desenvolvimento do feto, sem prejuízos para a mãe. Será que a mãe foi acometida

por algum distúrbio, acidente ou doença? Será que ela se sentia contente, protegida?

Sara Paín (1985) recomenda perguntar sobre doenças durante a gestação, dados

genéticos e hereditários apenas se o caso justificar. O estagiário considera, ainda, que não é

apropriado fazer perguntas diretas, como perguntar se a criança foi rejeitada ou não. A ideia é

estimular a pessoa a falar sobre a gestação na expectativa de que as situações ocorridas

venham à memória e sejam relatadas.

Sobre o momento do parto, interessa saber as circunstâncias em que ocorreu, de

modo especial se houve alguma situação especial que possa ter resultado em dano ao sistema

nervoso. Sobre o tempo após o parto interessa saber como o bebê adaptou-se às condições

necessárias à sua sobrevivência. Condutas esperadas são choro forte seguido de sono

tranquilo, choro quando sente falta de algo e consolo na sucção, alimentação adequada

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percebida por um aumento de peso segundo parâmetros considerados normais, sono

adequado, adaptação da família à situação e necessidades do bebê, com boa leitura de suas

necessidades e atendimento adequado às suas demandas. Conforme as falas do cuidador,

pode-se ter uma ideia de como respondia a essas demandas e o que o bebê pode ter aprendido

com essas formas de responder como, por exemplo, se chorar é útil ou inútil, se aprendeu a

experimentar primeiro e então pedir. Seu comportamento futuro poderá ser influenciado pelo

que aprendeu nessa fase.

3.4.1.2 Doenças

Interessa saber, principalmente, se o paciente foi ou é acometido por alguma

doença ou traumatismo que possa afetar sua atividade nervosa superior. Sara Paín cita como

exemplos:

[...] os estados que denotam perda de consciência, sonambulismo, espasmos ou

convulsões, terrores noturnos e distrações descritas como “acunas” podem supor

epilepsia em todas as suas variantes, enquanto que os estados nos quais houve

rigidez, com ou sem seqüela de estrabismo e transtornos de locomoção, podem

atribuir-se a processos encefalopáticos. (PAÍN, 1985, p.44).

Em relação a outras doenças e traumatismos, o enfoque principal estará no quão

doloroso foi o processo para a criança, ou o tempo de reclusão a que foi submetida, pois tais

situações podem perturbar o processo de aprendizagem que seria próprio para a criança na

época em que ocorreram.

Há que considerar, ainda, possíveis processos psicossomáticos, isto é, situações

em que problemas emocionais, inclusive os ligados a dificuldades de aprendizagem, resultam

em reações do corpo como irritações ou inflamações da pele, bronquite asmática, vômitos,

diarréias ou dores de cabeça. Considerar, também, o estado e condições físicas do corpo do

paciente, incluídas suas habilidades motoras, destreza manual, resistência física, situações

corporais limitantes, de modo especial as ligadas aos sentidos, como enxergar, ouvir, etc.

3.4.1.3 Desenvolvimento

Interessa verificar, aqui, se o desenvolvimento da criança ocorreu antes, após ou

dentro do período esperado. No desenvolvimento motor, considerar a época em que começou

a caminhar, se engatinhou antes e em que tempo isso aconteceu. Considerar, também, as

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condições do ambiente que possam ter dificultado esse desenvolvimento, isto é, verificar se a

criança tinha espaço para movimentar-se e aprender e se tinha permissão para isso.

No desenvolvimento da linguagem, levar em conta se começou a falar antes, após

ou dentro do período esperado; até quando manteve o tatibitate e se houve, ou ainda há,

dificuldade na pronúncia de certas palavras, e quais são elas.

No desenvolvimento de hábitos, considerar a idade em que começou a controlar

os atos de urinar e evacuar, permitindo dispensar as fraldas e a situação em que isso ocorreu.

Considerar, também, a conquista de outros atos de independência da criança, como a de

alimentar-se sozinha, dormir por iniciativa própria, vestir-se sozinha, realizar atos de higiene

sozinha como escovar os dentes, tomar banho, etc. Ela era estimulada e tinha permissão para

fazer sozinha ou desestimulavam sua independência, fazendo por ela?

3.4.1.4 Aprendizagem

No item aprendizagem, Paín considera importante saber se a criança, uma vez

aprendido um padrão de conduta, o realiza com autonomia ou se o realiza em função do

controle materno, ou do cuidador, obedecendo a instruções que dizem o que fazer e quando

fazer, como por exemplo: “[...] te veste, te lava, toma leite, te penteia, não te esqueces de

nada?, o cachecol, cuidado, etc." (PAÍN, 1985, p. 45).

A autora faz considerações sobre certos antecedentes importantes para a

construção dessa função de autonomia, entre as quais inclui: modalidade do processo

assimilativo-acomodativo; situações dolorosas; informação; e escolaridade (PAÍN, 1985).

Ao escrever sobre modalidade do processo assimilativo-acomodativo, Sara Paín

(1985) faz uso das ideias propostas por Jean Piaget sobre o desenvolvimento das estruturas

cognitivas, considerando os processos de assimilação dos objetos aos esquemas e a

modificação destes por acomodação à resistência da realidade. Ela considera que,

frequentemente, dificuldades de aprendizagem observadas estão ligadas à inibição desses

processos, ou predomínio de um sobre o outro. Isso pode ocorrer pela ação do cuidador,

quando nega ou dificulta à criança as ações que lhe permitiriam o desenvolvimento

necessário. Como exemplos, cita os casos em que se proíbe a criança de levar objetos à boca,

de colocar a mão na boca, de tocar em objetos. São proibições expressas pelas falas: tira a

mão da boca; ou não toca nisso. Ela cita, também, o caso de mãe que informa não deixar a

criança comer sozinha para que não se suje, e de mãe que, mediante ameaças de castigo ou

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prática de assiduidade, submete a criança ao uso do urinol, antes que a criança sinta a

necessidade de controle dos esfíncteres e adquira a habilidade de controlá-los.

Como exemplos de extremos de modalidade nos processos representativos, Sara

Paín (1985) cita os seguintes: hipoassimilação; hiperassimilação; hipoacomodação; e

hiperacomodação. Esses conceitos já foram tratados na seção 3.3.

Ao escrever sobre situações dolorosas, Sara Paín (1985) refere-se a ocorrências

na vida da criança que podem estar diretamente vinculadas à dificuldade de aprendizagem e

que representam uma mudança considerável para a criança e para a família, quase sempre

ligados a uma perda. Como exemplos, a autora cita o nascimento de irmãos, mudança de casa,

morte ou afastamento de familiares ou pessoas que convivam com a criança, mudança de

escola, etc. E recomenda anotar como a situação ocorreu e como a criança se comportou após

a ocorrência.

Ao escrever sobre informação, Paín (1985) refere-se a informações que são

fornecidas à criança, de interesse comum, que a ligam aos diferentes membros da família.

Como ela ficou sabendo? Que reação recebe quando fala sobre esses temas? Como exemplos

de maior interesse, a autora cita temas sexuais e a morte. Recomenda considerar, também, a

que tipos de estimulação cultural a criança está exposta, tais como a televisão, revistas, livros,

etc., e que tipo de atividades extraescolares ela tem, como prática de esporte, aprendizagem de

música, etc., e qual a resposta que recebe do grupo em relação ao seu desempenho nessas

práticas.

Ao escrever sobre escolaridade, Paín (1985) refere-se às experiências pela qual a

criança tenha passado em relação à escola. Como foi o primeiro contato com cada série?

Causas de desistências, quando for o caso. Também, ingresso na escola antes do tempo.

Atentar, ainda, para como a escola é vista pela família, que papel ela desempenha. É um

segundo lar? Um depósito de crianças? Um lugar onde as crianças serão colocadas na linha?

Uma prisão? Um mal necessário? Um lugar onde recebem preparo para a vida? Buscar saber

como a família reage em relação ao comportamento dos professores. Alteram-se quando o

professor é muito rigoroso? Alteram-se quando o professor não é rigoroso?

3.4.2 Relato

Iniciando a sessão sobre história vital, o estagiário pediu que a mãe falasse sobre a

gestação de E.M. Ela limitou-se a dizer que a gravidez tinha sido boa. Quando o estagiário

insistiu para ver se dava mais detalhes, voltou a firmar que tinha sido uma gravidez boa.

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Perguntada se tinham alguma preferência quanto ao sexo da criança, ela lembrou que na

época (E.M. nasceu em 1990) ainda não era comum fazer ultrassom para descobrir o sexo do

bebê. Ela disse que o que viesse, com a vontade de Deus, viria bem.

Quando o estagiário perguntou sobre o parto, ela contou que tinha havido

problema, o bebê estava custando a sair e o médico precisou empurrar E.M. para que

nascesse. E.M. nasceu sem o controle muscular de uma das pálpebras, de modo que ela

ficava sempre fechada. A mãe conta que os médicos falaram em veias na cabeça que seriam a

causa dessa falta de controle.

A mãe de E.M. conta que ele sempre teve boa saúde e nunca precisou ficar

hospitalizado.

E. M. tem uma irmã mais velha, com 28 anos. Depois dessa irmã nasceu um

irmão, depois nasceu E.M. e, por último, nasceu o segundo irmão, um ano depois.

A mãe trabalhava fora e, assim, quem cuidava de E.M. era a irmã. Na época em

que E.M. nasceu, a irmã tinha cinco anos de idade. A irmã fazia comida, cuidava, dava banho

nele.

E.M. não chorava muito. No primeiro ano, dormia em um berço no quarto dos

pais. Depois de um ano, passou a dormir em outro quarto, com a irmã e o irmão mais velho

(foi quando nasceu o segundo irmão). As crianças dormiam em beliche.

E.M. começou a engatinhar na época em que o segundo irmão nasceu. Tinha,

então, um ano. A mãe pareceu não ter bem certeza, mas diz que ele começou a andar com dois

anos. Também foi com dois anos que ele deixou as fraldas. A mãe ainda conta que começou a

treiná-lo para usar o urinol. Ela fala que, desde o início, ele rejeitou o leite materno. Assim,

ela preparava mamadeira com leite de vaca e mais farinha de mandioca.

E. M. tomou mamadeira até três e quatro anos. Começaram a dar comida, bolacha,

e começaram a tirar a mamadeira. Ele pedia a mamadeira, mas, como diz a mãe, já estava

grande. Ela conta, também, que nenhum dos filhos chupou bico. E.M. não gostava de bico.

A mãe dava banho e, quando não podia, quem dava banho em E.M. era a irmã.

E.M. começou a tomar banho sozinho quando tinha entre 10 e 11 anos. A mãe informa que os

dentes começaram a nascer por volta de um ano. E. M. começou a comer sozinho por volta

dos três anos. A mãe conta que colocava o prato de comida no chão, dava a ele uma colher e

ele ia comendo. Aceitava comer com facilidade. Não rejeitava a comida. E. M. começou a

falar quando tinha aproximadamente 6 anos.

A casa onde moravam, de início, era uma meia água, uma barraca. E. M. e o

irmão mais novo moravam com os pais e o irmão mais velho e a irmã passaram a morar com a

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avó, pois passaram a estudar em uma escola que ficava perto da casa da avó. A meia água

tinha só duas peças: quarto e cozinha.

Quando perguntada sobre o brincar, a mãe de E. M. respondeu que ele brincava de

carrinho, de jogar bola, de esconde-esconde. A irmã mais velha gostava de brincar com E.M.,

de escolinha. A irmã fazia o papel de professora e E.M. o papel de aluno. Ela conta que a irmã

também levava E.M. para passear e que os irmãos se davam bem.

Com o pai, E.M. brincava de carregar pendurado no pescoço, de pega-pega. E. M.

não gostava de receber ordens da irmã e de fazer serviço dentro de casa. Quem arruma o

quarto é a irmã. A mãe comenta: ela é quem ficava em casa. E.M. gostava de fazer serviços

fora da casa como capinar.

Sobre perdas traumáticas, a mãe conta que E.M. perdeu primeiro o avô, depois a

avó e há cerca de seis meses perdeu o pai. Ele gostava bastante dos avós e do pai. Ela

também diz que E.M. é bastante sentimental.

3.4.3 Análise diagnóstica

Como no caso da sessão de motivo da consulta, a forma de expressar da mãe na

sessão de história vital foi lacônica. Ela respondia as perguntas com brevidade, sem elaborar.

Há de se considerar que E.M. já é pessoa adulta, de 23 anos, e os fatos lembrados

pela mãe sobre seu nascimento e infância ocorreram há bastante tempo.

A mãe informa que a gestação foi boa e deu a entender que a criança foi bem

aceita, não importando o sexo, seguindo a vontade de Deus. Revelou, porém, que o parto foi

traumático para a criança, sendo forçado pelo obstetra, e que houve sequelas, entre elas a falta

do controle muscular de uma das pálpebras, ficando veias na cabeça que, segundo deu a

entender, não seriam normais. Tanto que associa as dificuldades de aprendizagem de E.M.

com esse traumatismo do parto.

Chama a atenção também, a narrativa da mãe de que não podia ficar cuidando da

criança, no primeiro ano, e quem cuidava de E.M. era a irmã, então com cinco anos. Ficam as

perguntas sobre que condições tem uma criança de cinco anos para cuidar de um bebê, e o que

pode ter faltado ao paciente em razão dessa ausência da mãe, atrasando seu desenvolvimento.

Também chama a atenção, de modo especial, a informação de que E.M. começou

a falar somente aos seis anos de idade, bem além da idade considerada usual, revelando um

atraso significativo no seu desenvolvimento cognitivo.

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Quanto ao desenvolvimento motor, a informação é de que engatinhou com um ano

e começou a andar com dois anos. Se verdade, e a mãe demonstrou incerteza quanto à idade,

também houve atraso, embora bem menos significativo do que no caso da fala.

Segundo a mãe, E.M. demonstrava boa saúde e nunca precisou ficar hospitalizado,

reduzindo-se as possibilidades de situações traumáticas nesse sentido.

Como mudanças que podem ter sido traumáticas, pode-se considerar: a troca de

quarto, com um ano; a separação da irmã e irmão mais velhos, quando estes foram morar com

a avó; e, mais tarde, a perda dos avós e do pai, ocorrida recentemente.

A autonomia para tomar banho sozinho é relatada como tendo ocorrido entre 10 e

11 anos, ocorrência também com atraso.

Como hipóteses sobre as causas da dificuldade de aprendizagem têm-se: as

possibilidades de danos ao sistema nervoso durante o parto; desenvolvimento inadequado do

sistema nervoso e das habilidades cognitivas em função de alimentação inadequada; falta de

estímulo e de oportunidades de desenvolvimento.

3.5 TÉCNICAS PROJETIVAS

3.5.1 Fundamentação teórica

Visca (2009) escreve que as emoções podem ter influências positivas ou negativas

sobre o aprender, e as técnicas projetivas são um dos recursos que permitem investigar essa

influência, bem como verificar que vínculos o sujeito estabelece com a aprendizagem.

O autor (VISCA, 2009) adota um conceito mais amplo de aprendizagem, que

abrange não só o que é aprendido na escola, mas também a aprendizagem que ocorre no

contexto familiar e comunitário. Em consequência, interessa conhecer não apenas o vínculo

que o sujeito estabelece com a escola, com o professor e com os colegas, mas também a

relação com os adultos que lhe são significativos e que lhe oferecem modelos de

aprendizagem, e os cenários onde essa aprendizagem acontece, dentro e fora da escola, nos

diferentes momentos de seu cotidiano.

Essas relações de vínculo podem ser verificadas, por exemplo, por meio dos

desenhos que se solicita para o paciente produzir, tendo como temas esses diferentes

momentos, lugares e pessoas.

Em seu livro, Visca (2009) apresenta dez testes projetivos para analisar esses

vínculos, sendo três para investigar vínculos na escola (par educativo, planta da sala de

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aula e eu com meus colegas), três para estudar os vínculos no espaço familiar, físico e

humano (a planta da minha casa, família educativa, e as quatro partes de um dia) e

quatro para estudar a relação do indivíduo com ele mesmo (o desenho em episódios, o dia do

meu aniversário, em minhas férias e fazendo o que mais gosto).

Os desenhos são, depois, avaliados em seus diferentes aspectos. Visca (2009)

considera os seguintes: posição do desenho na folha; tamanho do desenho; características

corporais no desenho de pessoas; perspectiva.

Di Leo (1985) apresenta outros critérios para a interpretação de desenhos, que

também são considerados neste trabalho (ver 3.5.3).

Tanto Visca (2009) como Di Leo (1985) escrevem sobre fazer a interpretação de

cada desenho, em particular, considerando o total de informações levantadas sobre o sujeito

que desenha.

Assim, Visca escreve (2009, p. 33, grifo do autor) “[...] que a interpretação de

cada técnica projetiva deve ser feita em função do sujeito em particular de quem se trata, vale

dizer com um sentido de <<estrutura clínica>>, ou seja, em função do total de informação

obtida”.

E, de modo semelhante, Di Leo (1985, p. 61) escreve:

Tendo concedido que desenhos comunicam alguma coisa, acredito que a mensagem

se torna mais aparente quando o produto é visto como um todo.

Desafortunadamente, apesar das advertências de Manchover (1949) e outros de que

os desenhos sejam vistos de uma forma global, tanto quanto analiticamente, ênfase

excessiva tem sido colocada na busca por símbolos específicos de significados

arquetípicos e psicanalíticos.

Na realização das provas projetivas, utilizaram-se os procedimentos descritos a

seguir.

Entrega-se ao paciente uma folha de papel em branco, lápis preto e borracha. Para

as provas com os títulos planta da sala de aula e a planta da minha casa pode-se entregar

uma régua (VISCA, 2009).

A folha de papel é entregue ao paciente segurando-a por um dos cantos. Dessa

forma, pretende-se evitar induzir a escolha da orientação da folha. A escolha da orientação da

folha deve ser do paciente, sem indução. Deixar o paciente desenhar na forma como ele

quiser, sem interferir. Se o paciente falar enquanto desenha, comentando o que está

desenhando, anotar o que diz. Depois de feito o desenho, solicitar ao paciente para falar sobre

o que desenhou e anotar a sua fala, o que diz sobre o desenho.

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3.5.2 Relato

Na primeira sessão de provas projetivas, foram solicitados a E.M. três desenhos:

par educativo; as quatro partes de um dia; e planta da sala de aula. E, na segunda sessão,

mais dois desenhos: a planta da minha casa; e família educativa.

Os desenhos podem ser vistos nos Anexos A, B, C, D e E.

3.5.2.1 Par educativo

Ao receber a folha e o pedido para desenhar duas pessoas, uma ensinando e a

outra aprendendo, E.M. começou logo a desenhar, colocando a folha na posição tipo

paisagem. Iniciou seu desenho no canto inferior esquerdo. Fez um desenho bem pequeno.

Desenhou em silêncio.

No desenho de E.M. há uma mesa e duas pessoas sentadas em cadeiras, uma à

esquerda da mesa e a outra junto à mesa, mais à direita. Sobre a mesa estão desenhados: um

retângulo; e um pequeno círculo.

Ele desenhou as pessoas no estilo palito. Cadeira e pessoas estão em perfil. No

perfil aparecem dois braços, mas somente uma perna. Como é desenho em perfil,

supostamente a outra perna está atrás daquela que aparece. As figuras não têm ombros, nem

pés e nem mãos. Os braços estão ligados direto ao tronco. O desenho foi feito com traço bem

legível, com pressão normal do lápis.

Solicitado a falar sobre o desenho, E.M. disse que a pessoa à esquerda é o

estagiário de Psicopedagogia que solicitou o desenho e a pessoa à direita é ele. O que ele está

fazendo, no desenho? Está desenhando. O que é o retângulo sobre a mesa? A folha de papel.

O que é o círculo sobre a mesa? A borracha.

Pela declaração da professora de Ensino Fundamental I, e do próprio paciente, ele

não sabe ler e nem escrever, mas sabe copiar palavras e aprendeu a desenhar o nome. Assim,

ele desenhou o nome (ocultado nos Anexos, para preservar sua identidade). O estagiário de

Psicopedagogia escreveu a idade na folha desse primeiro desenho. Quando solicitado a dar

um nome ao desenho, ele escolheu uma palavra do nome da Escola (também ocultado no

Anexo A) onde está estudando e pediu ao estagiário para ditar as letras. Ao ouvir o ditado,

soube escrever as vogais, mas não acertou as consoantes. Solicitado, o estagiário auxiliou,

escrevendo as consoantes em outra folha de papel, e ele copiou.

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Solicitado a escrever nome, idade e título do desenho, E.M. perguntou onde

deveria escrever. O estagiário disse que ele podia escolher. Então, ele escolheu colocá-los,

nessa ordem, logo à direita do desenho. O nome foi escrito em letra de forma, caixa alta.

3.5.2.2 As quatro partes de um dia

E.M. recebeu mais uma folha de papel A4 branca. Usando outra folha, o estagiário

de Psicopedagogia mostrou como dobrá-la em quatro partes iguais. E.M. dobrou a folha,

mostrando um pouco de dificuldade, mas ficou bem. Então, foi solicitado a ele para fazer

quatro desenhos, um em cada partição da folha, mostrando quatro momentos do dia, entre a

hora em que acorda e a hora em que vai dormir.

Ele começou logo a desenhar. Desenhou em silêncio.

No quadrado superior esquerdo desenhou a casa e, dentro dela, à esquerda,

desenhou uma figura humana, bem pequena, sentada em uma cadeira, junto a uma mesa.

Depois, à direita, dentro da casa, desenhou uma cama e uma figura humana deitada, com um

cobertor sobre ela.

Mais adiante, quando foi solicitado a falar sobre o desenho, ele disse que a figura

à mesa é ele, tomando o café da manhã. E a figura sobre a cama é ele, dormindo.

No quadrado superior direito, E.M. fez uma figura muito parecida com a casa

desenhada à esquerda. Dentro, desenhou três figuras humanas. Uma delas está de pé, à

esquerda, e as outras duas estão sentadas em cadeira, tendo uma mesa à frente de cada uma.

Atrás da pessoa de pé ele desenhou um retângulo.

Ele explicou, depois de desenhar, que a pessoa de pé é a professora de Ensino

Fundamental I, de quem ele gosta bastante. A pessoa sentada, mais próxima à professora, é

ele, e a segunda pessoa sentada, atrás dele, é colega.

No quadrado inferior esquerdo, E.M. fez outro desenho parecido com a casa.

Dentro da casa, desenhou três figuras humanas. Uma, à esquerda, de pé; uma, no meio,

sentada; e uma à direita, de pé.

Escreveu o nome, sem a última letra, e a idade, no canto superior esquerdo. A

idade ele copiou do desenho anterior. Depois de desenhar, quando solicitado a falar sobre o

desenho, ele explicou que é o desenho do local onde trabalha, tendo, à esquerda, um cliente,

no meio, a operadora e, à direita, ele trabalhando.

Assim, E. M. escolheu para os quatro momentos do dia: 1) ele dormindo; 2) ele

tomando café da manhã; 3) ele estudando à noite; e 4) ele trabalhando de dia.

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Como ocorreu no primeiro desenho, as figuras humanas foram desenhadas no

estilo palito. As proporções entre as figuras humanas estão numa boa relação entre si, isto é,

nenhuma ficou em tamanho perceptivelmente maior ou menor do que as outras. Os traços de

lápis estão legíveis e normais, isto é, nem falta e nem excesso de pressão.

No caso da figura humana dormindo, E.M. desenhou uma coberta sobre a figura,

mas o corpo aparece através da coberta, sugerindo um caso de transparência (ver 3.5.3).

3.5.2.3 Planta da sala de aula

E.M. recebeu mais uma folha de papel A4, e o pedido para desenhar o plano da

sala de aula. Uma falha do estagiário, ao usar a palavra plano ao invés de planta. Como

demonstrou não saber o que seria o plano de aula, o estagiário desenhou um exemplo em

outra folha, de outro local. Não foi uma boa ideia. E.M. copiou o desenho do estagiário.

Quando perguntado se a sala de aula era mesmo daquele jeito, ele disse que não, e modificou

o desenho, fez um retângulo maior. Dentro, desenhou retângulos menores, representando

janela e mesa, e quatro cadeiras em perfil.

O desenho é bem pequeno, como nos demais já desenhados, e foi posicionado,

também, junto ao canto inferior esquerdo. Escreveu o nome, sem a última letra, e a idade, no

canto superior esquerdo. A idade ele copiou do desenho anterior.

Perguntado onde ficava a professora, E. M. apontou um lugar à esquerda das

quatro cadeiras. A cadeira mais próxima da professora é a de E.M. Quando perguntado onde

senta a colega de quem ele mais gosta, ele apontou a cadeira logo à direita daquela onde ele

senta. E a pessoa que mais o incomoda? Ele disse que ficava ao lado dele, e a cadeira não

aparece no desenho. E a pessoa que grita mais? Ele apontou a terceira cadeira, contada da

esquerda para a direita.

3.5.2.4 A planta da minha casa

Na segunda sessão de provas projetivas, o estagiário perguntou se E.M. faria mais

dois desenhos. Ele respondeu que sim.

E.M. recebeu folha de papel A4 com o pedido para desenhar a casa onde mora.

Considerando a dificuldade de E.M. com a noção de planta, mostrada no caso da planta da

sala de aula, o estagiário preferiu não usar a palavra planta.

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Como não havia régua disponível, E.M. perguntou se podia ir e pedir uma

emprestada. Com a resposta positiva, saiu e voltou, pouco depois, com a régua. Depois,

começou logo a desenhar. Desenhou em silêncio. Fez um traço com a régua, representando o

chão. Depois desenhou uma casa em formato bem parecido com aquelas que desenhou na

primeira sessão. A casa com uma porta e uma janela. Depois desenhou uma árvore, à

esquerda, e o sol brilhando acima da casa. À direita do desenho, colocou o nome e copiou de

desenho da sessão anterior, a idade.

Quando perguntado onde ficava o quarto dele, E.M. apontou um lugar logo à

direita da janela. Onde E.M. gosta de ficar? Disse que é na cozinha, onde ouve rádio. Disse

que não gosta de ficar no quarto dele, pois lá está a televisão, e ele não gosta de assistir, por

causa dos filmes violentos. Prefere ouvir o rádio, e os programas da Assembleia de Deus, que

é a religião da família dele. Disse que às vezes, na cozinha, rateia (briga) com a irmã ou com a

mãe.

Onde a família de E.M. se reúne? Disse que é no quarto dele, pois é onde está a

televisão. Perguntado sobre a sala de estar, explicou que a casa dele não tem uma sala de estar

separada. Sala e cozinha são juntas.

3.5.2.5 Família educativa

E.M. recebeu mais uma folha de papel A4 branca e o pedido para desenhar a

família dele. Desenhou em silêncio. E.M. desenhou seis figuras humanas. Primeiro desenhou

uma linha representando o chão e, sobre elas, as seis figuras, da esquerda para a direita. Desta

vez as desenhou de frente. Cinco das figuras estão no estilo palito, como nos desenhos

anteriores. A figura mais à esquerda está desenhada diferente e, inclusive, foi desenhada com

roupa. Só que o corpo aparece através da roupa, confirmando o caso de transparência que era

sugerido no desenho os quatro momentos do dia (ver 3.5.3).

À direita do desenho, E.M. escreveu o nome e copiou a idade escrita em desenho

anterior. Esse desenho também foi desenhado no canto inferior esquerdo. Um desenho

pequeno.

Solicitado a falar sobre o desenho, E.M. disse que a primeira pessoa, à esquerda, é

a irmã dele. A segunda pessoa é ele, a terceira é o irmão mais jovem, a quarta é o irmão mais

velho, a quinta figura é a mãe deles, e a sexta figura, bem à direita, é a cunhada dele, casada

com o irmão mais velho.

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Quando perguntado o que cada um faz melhor, E. M. explicou que o que a irmã

faz melhor é ajudar a mãe em casa, E.M. é bom em trabalhar, o irmão mais jovem é bom no

trabalho de eletricista, o irmão mais velho também é bom eletricista, a mãe é boa em ficar em

casa, limpar, tirar fio de calça e a cunhada é boa no trabalho no salão.

3.5.3 Análise diagnóstica

Observa-se, nos desenhos de E.M., que as pessoas são desenhadas de pé ou

sentadas, na orientação espacial certa, isto é, não aparecem de cabeça para baixo ou pairando

no ar. Com exceção da família educativa, as pessoas são mostradas de perfil. Não têm

ombros, mãos e pés não foram desenhados, pernas são representadas por um único traço (reto

quando de pé, curvado quando sentado).

Outra característica dos desenhos de E.M. é que as figuras são bem pequenas e os

desenhos, com exceção de as quatro partes de um dia, estão todos no canto inferior

esquerdo da folha.

Sobre o tamanho do desenho, Di Leo (1985, p.19-20) escreve que “existe suporte

geral para a interpretação de que pequenas figuras desenhadas perto da ou na parte de baixo

da folha expressam sentimentos de inadequação, insegurança e mesmo depressão [...]”.

Sobre a posição à esquerda, Di Leo cita a interpretação oferecida por J. N. Buck

de que “a colocação da figura além do eixo divisório na esquerda ocorre em sujeitos

impulsivos, com provável busca de satisfação emocional. [...]” (BUCK, 1974 apud DI LEO,

1985, p. 20).

Di Leo escreve, também, que K. Manchover “considerava a colocação na

esquerda como indicativa da personalidade que é auto-orientada, em contraste com as que são

orientadas para o meio ambiente, que tendem a colocar a figura no lado direito da página”

(MANCHOVER, 1949 apud DI LEO, 1985, p. 20).

A interpretação oferecida por Visca (2009) é de que a posição inferior esquerda

indica traço impulsivo regressivo.

Outra característica, observada nos desenhos as quatro partes de um dia e

família educativa é o que é referido na literatura como transparência. Por exemplo, no

desenho família educativa, a primeira figura humana à esquerda, que representa a irmã de

E.M., está de roupa, porém pode-se enxergar o corpo através da roupa.

Di Leo (1985, p. 14) oferece diversas interpretações para a transparência,

dependendo da idade de quem desenha. O autor considera que crianças ainda na fase de

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desenvolvimento cognitivo pré-operacional “desenham o que sabem estar ali, indiferentes a se

na realidade são visíveis ou não”. Transparência em desenhos de pré-púberes, em idade

escolar, sugerem incapacidade mental ou funcionamento abaixo das expectativas para sua

idade. No caso de adolescentes ou adultos, o autor escreve que a transparência na parte

inferior do corpo indica tendências voyeurísticas.

No caso de E.M., considerando seu desenvolvimento cognitivo indicado pelas

provas operatórias, a hipótese levantada é a de que a transparência pode estar relacionada com

desenvolvimento cognitivo abaixo das expectativas. Quanto à posição e tamanho do desenho,

a hipótese é de insegurança e impulsividade.

No par educativo a ideia é de que E.M. retratou uma situação concreta, daquele

momento. Ele, na escola, desenhando sobre a mesa, à direita, tendo o estagiário à esquerda.

Sobre a mesa estão a folha de papel e a borracha. E.M. identifica-se com aquele que aprende,

e o estagiário ele identifica com aquele que ensina. O nome dado ao desenho é o nome da

escola. Não se percebe diferenças de tamanho entre o desenho do que ensina e do que

aprende, a que se pudesse atribuir significados. O desenho é pequeno, mas o tamanho não

difere significativamente dos demais desenhos.

Em as quatro partes de um dia, E.M. retrata-se dormindo, comendo, aprendendo

e trabalhando. A ordem não segue uma sequência no tempo, pois se desenhou primeiro em

sala de aula e depois trabalhando, e ele trabalha de dia e vai à escola à noite. Ter desenhado

primeiro a sala de aula pode significar uma valorização maior do estar em aula do que no

trabalho.

3.6 DIAGNÓSTICO OPERATÓRIO

3.6.1 Fundamentação teórica

Como apresentado em 2.3, testes operatórios são realizados em Psicopedagogia

Clínica para avaliar o grau de desenvolvimento cognitivo do paciente. O modelo adotado é o

psicogenético, proposto por Jean Piaget. A ideia é que o indivíduo vai desenvolvendo certas

habilidades cognitivas, aqui referidas como estruturas operatórias, enquanto passa pelos

quatro estágios de desenvolvimento cognitivo citados em 2.3, sendo que o desenvolvimento

das estruturas operatórias desenvolvidas em um estágio é importante para o desenvolvimento

das estruturas operatórias a desenvolver nos estágios seguintes.

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Estruturas operatórias destacadas no modelo psicogenético , cujo desenvolvimento

costuma ser verificado através de provas operatórias, são:

a) noção de permanência do objeto;

b) noção de tempo;

c) noção de espaço;

d) correspondência termo a termo;

e) noção de causalidade;

f) função simbólica;

g) classificação;

h) seriação;

i) inclusão hierárquica;

j) conservação e reversibilidade.

O desenvolvimento das estruturas a) até e) é característico do estágio sensório

motor (geralmente de zero a dois anos). Uma vez desenvolvidas, irão ser enriquecidas nos

estágios posteriores.

O desenvolvimento das estruturas f), g) e h) é característico do estágio pré-

operatório (entre dois e sete anos), e o desenvolvimento das estruturas i) e j) é característico

do estágio das operações concretas (dos sete aos onze anos).

Já no quarto estágio, o das operações formais (de doze aos dezesseis anos, ou

mais) as estruturas cognitivas do indivíduo alcançam seu nível mais elevado de

desenvolvimento. Desenvolve-se a capacidade hipotético-dedutiva, e surge a aptidão para

aplicar o raciocínio lógico a todas as classes de problemas.

As faixas de idade citadas entre parênteses são aquelas em que geralmente

ocorrem os desenvolvimentos característicos de cada estágio, mas há situações em que se

observa demora maior no desenvolvimento das estruturas cognitivas citadas, e esse atraso no

desenvolvimento pode estar entre as causas de um problema de aprendizagem.

Além das provas que buscam avaliar estruturas ligadas à noção de objeto

permanente e de conservação operatória, investigaram-se, neste trabalho, também estruturas

ligadas à constância perceptiva, por meio da prova das figuras geométricas e prova

esterognóstica.

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3.6.2 Relato

3.6.2.1 Prova de correspondência termo a termo

A primeira estrutura operatória avaliada foi a de correspondência termo a termo.

A avaliação foi feita jogando o jogo Lince. O jogo Lince consiste de uma coleção de figuras

de diversos objetos distribuídas em um tabuleiro e um conjunto de fichas em que aparecem as

mesmas figuras. Cada ficha mostra apenas um dos objetos. O jogo, entre duas ou mais

pessoas, consiste em ir tomando as fichas, uma a uma, e encontrando as figuras

correspondentes no tabuleiro (correspondência termo a termo). Isso é feito em rodadas. Em

cada rodada, o jogador tem que encontrar três figuras. Quem encontrar primeiro as três

figuras, ganha a rodada. Os pontos vão sendo somados, um para cada figura encontrada,

rodada após rodada, até chegar ao número de pontos combinado no início do jogo. Quem for

mais rápido, consegue mais pontos.

E.M. mostrou bastante habilidade no jogo fazendo, de forma fácil e rápida, a

correspondência, uma a uma, das figuras a encontrar com as figuras no tabuleiro. É um

desafio ganhar dele no jogo Lince.

3.6.2.2 Prova de classificação

Como preparativo do teste de classificação, o estagiário perguntou a E.M. se ele

conhecia as palavras grupo e agrupar. Ele demonstrou confusão, incerteza quanto a essas

palavras. O estagiário, então, mostrou, na sala, exemplos de grupos de cadeiras grandes e

cadeiras pequenas, cadeiras de madeira e de plástico. E.M. pareceu entender o que eram

grupos e o que era agrupar.

Depois, o estagiário pediu ajuda a E.M. para espalhar, sobre a mesa, blocos

lógicos de madeira, nas cores vermelha, azul e amarela, de formato redondo, quadrado,

retangular e triângulo, nos tamanhos grande e pequeno. Todos com a mesma espessura. Então,

perguntou a E.M. se via diferenças entre os blocos. Ele mostrou perceber a diferença entre os

blocos que eram redondos e os que eram quadrados, retângulos e triângulos. Também mostrou

perceber que tinham cores diferentes.

A seguir, o estagiário pediu a E.M. para fazer grupos de peças que tivessem

alguma coisa de igual. E.M. separou as peças em oito grupos, cada um com três peças de

formas iguais, porém de cores diferentes: rodas grandes, rodas pequenas, quadrados grandes,

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quadrados pequenos, retângulos grandes, retângulos pequenos, triângulos grandes e triângulos

pequenos. Quantos grupos? E.M. foi apontando com o dedo e contando: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8.

O estagiário pediu, então, para E.M. fazer quatro grupos de peças que tivessem

alguma coisa de igual. Ele olhou, pensou e disse que não dava. O estagiário perguntou qual a

diferença entre as rodas e os quadrados. Ele disse que as rodas eram redondas e que os

quadrados eram quadrados. O estagiário perguntou, então, o que a roda grande e a roda

pequena tinham de igual, o que o quadrado grande e o quadrado pequeno tinham de igual.

E.M. pareceu entender, então, que podia juntar as peças grandes e as pequenas, quadrados

com quadrados, rodas com rodas, etc. E, assim, reduziu os grupos do número de oito para

quatro. E.M. usava a palavra bolo para referir-se aos grupos de peças.

O estagiário pediu licença para misturar todas as peças, de novo. Depois, pediu

para E.M. juntar as peças de outro jeito, formando três bolos de peças que tivessem alguma

coisa de igual. E.M. pensou, pensou e começou a juntar as peças em três bolos. Porém,

começou a juntar peças sem qualquer critério ou ordem aparente, juntando peças de cores

diferentes, formas diferentes e tamanhos diferentes no mesmo bolo. Assim, fez três bolos.

Em um dos bolos, por exemplo, colocou primeiro um quadrado grande amarelo,

depois um retângulo grande vermelho, depois um triângulo grande vermelho, depois uma roda

grande amarela, depois uma roda amarela pequena, depois um triângulo azul pequeno.

Quando o estagiário perguntou-lhe porque havia colocado essas peças no mesmo bolo, o que

elas tinham de igual, ele não soube explicar.

3.6.2.3 Prova de seriação

O estagiário mostrou a E.M. dez palitos de madeira de comprimentos diferentes.

Depois, misturou bem os palitos e pediu a E.M. que os colocasse arranjados do maior para o

menor. E.M. foi pegando os palitos, em silêncio, colocando-os lado a lado, esmerando-se para

que ficassem bem alinhados pela parte de baixo. Mas não colocou ordenado do maior para o

menor. Foi colocando sem ordenar. Quando terminou, o estagiário perguntou se ele havia

arranjado os palitos do maior para o menor. Ele mostrou que não tinha certeza e movimentou

alguns dos palitos, porém o conjunto continuou desordenado.

Na sessão seguinte, para testar se E.M. entendia o que era maior e menor, o

estagiário escolheu o maior palito e o menor palito e os colocou sobre a mesa. Pediu, então,

para E.M. apontar qual era o maior. Ele escolheu o menor. Depois pediu para ele escolher o

palito menor e ele pegou o maior. No entanto, ele mostrou que entendia que um era o mais

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grande e o outro o mais pequeno. O estagiário interpretou os resultados como um indicativo

que E.M. não conhecia o significado das palavras maior e menor.

Em outra sessão, posterior, o estagiário colocou novamente o palito maior e o

menor sobre a mesa, e perguntou o que era. E.M. falou que eram taubas. Perguntado o que

essas taubas tinham de igual, a princípio não soube responder, depois disse que eram lisas,

depois que eram quadradas, depois falou que eram retângulos. Perguntado o que essas taubas

tinham de diferente, não soube dizer. Perguntado se tinham o mesmo tamanho, disse que não.

Mostrou a que era grande e a que era pequena.

O estagiário, então, pegou os demais palitos, juntou-os com o maior e o menor, e

perguntou a E.M. se poderia colocar as taubas uma do lado da outra, começando pela mais

grande, depois uma mais pequena, depois outra ainda mais pequena. Ele disse que sim e

começou a colocar em ordem e comentou: “vou fazer tipo uma escada”. Desta vez os palitos

ficaram bem ordenados, do maior para o menor, como solicitado.

O estagiário propôs, então, misturar as taubas e, depois, pediu que E.M as fosse

alcançando para ele, uma de cada vez, na ordem da mais grande para a mais pequena.

Colocou uma proteção para que E.M. não enxergasse como ficava o arranjo das peças. E.M.

foi entregando, sem cuidar muito para os tamanhos, de modo que não ficou na ordem

solicitada.

Continuando, o estagiário colocou as peças em ordem de tamanho e, sem que

E.M. visse de onde, retirou uma das peças e colocou de lado. Depois mostrou as peças

arranjadas por ordem de tamanho e pediu para E.M. colocar no lugar a peça retirada. Ele

comparou, comparou e colocou em um lugar, mas não ficou certo. Perguntado se tinha

colocado no lugar certo, ficou na dúvida, mexeu mais um pouco e colocou a peça na ordem

certa. Perguntado mais uma vez se estava certo, ficou na dúvida, mexeu mais algumas vezes e

depois deixou como estava e disse que estava certo sim.

3.6.2.4 Prova de classificação hierárquica

O estagiário decidiu não fazer, nesta fase, a prova de classificação hierárquica que

estava programada, devido à dificuldade demonstrada por E.M. em fazer classificações, uma

vez que a ideia é de que, para poder fazer classificação hierárquica, o indivíduo precisa,

primeiro, desenvolver a estrutura cognitiva de classificação.

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3.6.2.5 Prova de conservação de números

O estagiário apresentou a E.M. dois conjuntos com dez fichas cada um, sendo um

conjunto de cor vermelha e outro de cor azul. E.M. mostrou dificuldade em lembrar o nome

das cores. Com algum esforço e o uso de associação de palavras, lembrou-se do nome

vermelho. As azuis, chamou primeiro de verde, mas finalmente lembrou-se da palavra azul.

Era como um exercício de adivinhar. Enfim, perguntado sobre qual cor gostava mais,

escolheu as fichas vermelhas.

O estagiário, então, pegou o conjunto de fichas azuis e dispôs seis fichas, lado a

lado. Depois, pediu a E.M. para dispor as fichas vermelhas de modo a que tivesse a mesma

quantidade, o mesmo tanto, que as fichas azuis. E.M. foi colocando as fichas como se

estivesse contando ou fazendo correspondência termo a termo. Também colocou seis fichas.

Então o estagiário perguntou se tinha a mesma quantidade e ele disse que sim. O

estagiário perguntou, então, como ele tinha certeza de que tinha a mesma quantidade e ele

contou as fichas, de uma a seis.

Então o estagiário afastou mais as fichas azuis, entre si, de modo que ocupassem

espaço mais largo e, depois, perguntou: “E agora, ainda tem a mesma quantidade ou um dos

montes tem mais?”. E. M. respondeu que não, que não tinha a mesma quantidade. Perguntado

por que não tinha mais a mesma quantidade, ele mostrou, com as mãos, que agora estava mais

largo.

3.6.2.6 Prova de conservação de volume

Em outra sessão, o estagiário apresentou a E.M. quatro copos de plástico

transparente, sendo que dois tinham altura e diâmetro iguais, outro era mais baixo e de maior

diâmetro e outro era mais alto e de menor diâmetro.

O estagiário encheu, então, um dos dois copos de dimensões iguais, com água, até

cerca de dois terços de sua altura, e passou a encher o segundo, cuidando para que a água

ficasse no mesmo nível. Depois, perguntou a E.M. se os copos tinham a mesma quantidade de

água. Ele olhou e olhou, e disse que não, apontando o que tinha menos. O estagiário, então,

foi colocando um pouco mais de água no copo apontado, até que E.M. mostrasse que estava

satisfeito, que os copos tinham a mesma quantidade.

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O estagiário perguntou a E.M. porque tinha certeza de que os copos tinham a

mesma quantidade de água. Ele mostrou o nível de água dos dois copos, mostrando que

estavam na mesma altura.

Depois disso, o estagiário transferiu toda a água de um dos dois copos para aquele

que tinha mais altura e menor diâmetro, de modo que a altura do nível de água ficou bem mais

alta. Perguntou a E.M., então, se os dois copos tinham a mesma quantidade de água. E.M.

respondeu que não, que o copo mais alto tinha mais água. Ele tinha certeza? Respondeu que

sim. Como ele sabia que tinha mais quantidade de água? Mostrou que o nível da água nesse

terceiro copo estava mais alto.

O estagiário retornou a água do copo mais alto para o copo original e perguntou a

E.M. se agora os dois copos tinham a mesma quantidade. Ele respondeu que sim, mostrando

que agora o nível de água nos copos era igual.

O estagiário pegou aquele mesmo copo com água e transferiu toda a água para um

quarto copo, mais baixo e com maior diâmetro. Naturalmente, devido ao maior diâmetro, o

nível da água no copo ficou mais baixo. Perguntado, E.M. disse que agora tinha menos água.

Como ele sabia? E.M. disse que tinha menos água porque o nível de água estava mais baixo.

O estagiário comentou, então, que ao fazer a mesma prova com uma menina, ela

havia respondido que os copos tinham a mesma quantidade de água. O que E.M. pensava

dessa resposta? Ele tinha certeza de que tinha menor quantidade de água naquele copo?

E.M. pensou, olhou os níveis, sorriu e fez que sim com a cabeça, dizendo que o

copo mais baixo tinha menos quantidade de água.

3.6.2.7 Prova do desenho de figuras geométricas

O estagiário entregou a E.M. 21 cartelas com figuras geométricas, numeradas de 1

a 21, dizendo para ele olhar as figuras desenhadas.

Depois o estagiário entregou a ele uma folha A4, branca, vazia, segurando-a por

uma das pontas e um lápis preto. Disse que iria mostrar para ele, uma a uma, todas as figuras

que ele havia visto e que era para ele desenhar essas figuras na folha.

E.M. posicionou a folha na orientação tipo paisagem e começou a desenhar no

canto superior esquerdo, desenhando da esquerda para a direita. Desenhou em silêncio. A

cada cinco figuras desenhadas, o estagiário fazia uma pausa e numerava as figuras.

A figura treze ele desenhou, não gostou e perguntou se podia apagar. O estagiário

disse que não precisava apagar e passou um círculo em volta. E.M. desenhou ao lado,

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novamente, a figura treze e depois continuou desenhando as demais que lhe foram

apresentadas. Desenhou todas, tendo ocupando apenas a metade superior da folha.

A reprodução das figuras não ficou muito fiel. A figura 3, em que um círculo

menor sobrepõe a figura maior, a linha da figura maior corta a círculo (transparência). O

triângulo equilátero, figura 5, ficou com lados de tamanhos diferentes. O quadrado, figura 6,

também ficou com lados de tamanhos diferentes, como um retângulo. O círculo, figura 4,

ficou com forma de elipse e a elipse, figura 7, ficou mais próxima à figura de um círculo. Os

dois círculos que se tocam, figura 10, ficaram com tamanhos diferentes. Na figura 12, as

pontas do triângulo não tocaram no círculo. Na figura 13, os lados do triângulo, dentro do

círculo, não ficaram na mesma proporção do original. O triângulo, figura 15, também ficou

com lados de tamanhos diferentes. Na figura 16, uma das pontas do triângulo não sobrepôs a

linha do círculo, como no original. Na figura 19, a linha diagonal ficou fora de posição. Na

figura 20, o cruzamento das linhas da cruz ficou acima do ponto central. E, na figura 21, uma

das linhas do xis ficou encurvada, e o cruzamento das linhas também não está centralizado.

3.6.2.8 Prova esterognóstica

O estagiário entregou a E.M. dois conjuntos de 17 figuras geométricas recortadas

(um par de cada), pedindo-lhe que o ajudasse a distribuir as figuras sobre a mesa. Depois

solicitou que E.M. olhasse para as peças, visse com o que elas se pareciam, e escolhesse um

nome para cada uma delas. E.M. foi escolhendo os nomes, alguns com facilidade, outros com

alguma dificuldade.

Feito isso, o estagiário solicitou que E.M. o ajudasse a separar as peças em dois

grupos. Nessa prova é usada uma caixa construída de tal modo que o paciente possa manusear

cada peça sem enxergá-la. Para isso a caixa tem dois furos através dos quais o paciente passa

as mãos para dentro da caixa. O outro lado da caixa é aberto, de modo que aquele que aplica a

prova pode entregar as peças para o paciente e pode observar como ele as manuseia.

O estagiário apresentou a caixa para E.M. e explicou como fariam a prova. Um

dos grupos de peças foi colocado à esquerda da caixa, espalhado sobre a mesa, bem visível

para E.M. As peças do outro grupo foram colocadas empilhadas dentro da caixa, de modo que

E.M. não podia vê-las.

E.M. colocou as mãos pelos furos e o estagiário ia pegando as peças na pilha

dentro da caixa, uma a uma, e colocando nas mãos dele, com o pedido para que ele

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identificasse a peça no grupo que podia enxergar, apontando e, também, dizendo o nome da

peça.

E.M. segurava a peça com os dedos de uma das mãos e ia passando a ponta dos

dedos da outra mão pela borda da peça percorrendo o entorno da peça e, quando era o caso,

também a borda dos furos. Depois, ele retirava a mão esquerda de dentro da caixa e apontava,

no primeiro conjunto, qual a peça que era igual à que havia tateado e dizia o nome dado à

peça.

A quatro peças que possuíam formas circulares, E.M. deu o nome de roda e,

depois, lembrou-se que os nomes eram roda, ao apontar a peça manuseada, muito embora a

peça que se assemelha a dois elos de um corrente, que ele havia denominado de roda, ele

identificou, depois, como duas rodas separadas.

À figura em forma de trapézio, ele deu o nome de triângulo, e depois identificou

como quadrado e à figura em forma de losango ele deu o nome de triângulo, e depois

identificou-a como quadrado. À figura em forma de triângulo ele deu o nome de triângulo e,

depois, identificou como triângulo.

No total, E.M. denominou três figuras como quadrado: a que tem forma de elipse;

a que tem forma de metade de um círculo; e a que tem forma de um quadrado. Depois, ao

manuseá-las, apontou a elipse corretamente, e manteve o nome de quadrado; apontou a

metade de um círculo corretamente, mas denominou-a de triângulo; e apontou o quadrado

corretamente e manteve o nome de quadrado.

Uma peça que ele havia denominado de jota ele apontou, depois, como uma roda

com quadrado. Uma peça que ele havia denominado de Cê, ele apontou, depois, como Gê.

Uma peça que ele havia denominado de cruz, ele apontou, depois, como Xis.

E.M. apontou quase todas as peças de forma correta, isto é, identificou, pelo tato,

as peças corretas. A exceção foi uma figura em forma de cruz, com as pontas arredondadas, a

qual ele tateou e depois apontou outra figura, também em forma de cruz, mas que não tinha as

pontas arredondadas.

3.6.3 Análise diagnóstica

Na prova de correspondência termo a termo E.M. demonstra ter bem desenvolvida

essa estrutura operatória.

Na primeira prova de seriação não foi percebida estrutura operatória para ordenar

objetos por tamanho. A segunda prova feita deixou dúvidas se o melhor desempenho se deveu

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a ter havido uma dificuldade de entendimento do significado das palavras maior e menor, na

primeira prova, ou a um resultado de intervenção entre a primeira e a segunda prova. Assim,

considerando os resultados da avaliação como um todo, conclui-se que há necessidade de

aperfeiçoamento dessa estrutura.

Na prova de classificação, observou-se existir estrutura de classificação, porém

limitada quanto às possibilidades de classificar, já que classificou apenas de um modo, não

percebendo outros modos possíveis. Também é uma estrutura a ser desenvolvida.

Na prova de conservação de números, confirma-se que E.M. tem bem

desenvolvida a estrutura operatória de correspondência termo a termo, mas a estrutura de

conservação de números não está bem formada e precisa ser desenvolvida e aperfeiçoada. O

mesmo pode dizer-se da estrutura de conservação de volume.

No teste das figuras geométricas observa-se que E.M. modificou, em pequeno

grau, a forma (Gestalt) de algumas figuras, o que pode ser indicativo de um dano mínimo ao

sistema nervoso.

No teste esterognóstico, E. M. mostrou-se capaz de identificar as peças pelo tato,

mas notaram-se poucas opções e pouca imaginação na nomeação das peças. Havia muitas

rodas, quadrados e triângulos. Chamou de quadrado até mesmo algumas peças que em nada se

assemelhavam a um quadrado, como a figura em forma de elipse e a figura que é

aproximadamente a metade de um círculo. O teste reafirma uma situação de pobreza

simbólica, confirmada, também, em outras atividades, quando E.M. é convidado a dar

respostas às situações propostas.

3.7 AVALIAÇÃO DA LECTOESCRITA

3.7.1 Fundamentação teórica

Para aprender a ler e a escrever, o indivíduo precisa desenvolver, primeiro, certas

habilidades mentais importantes. Exceto nos casos especiais, de pessoas mudas, o indivíduo

aprende primeiro a falar e comunicar-se, desenvolvendo habilidade motora para emitir sons

controlados, e a habilidade cognitiva para associar sons, formar palavras, e associar essas

palavras a objetos, animais, pessoas, ações, qualidade, sentimentos. A função simbólica já

adquire importância, aí, para relacionar sons com significados.

Para escrever, o indivíduo precisar desenvolver habilidades motoras para

empunhar um lápis, caneta, ou manusear um teclado. Além disso, nessa fase, a função

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simbólica também é importante, pois o indivíduo precisará poder associar símbolos escritos

com significados. E precisará, também, desenvolver a compreensão de como funciona a

linguagem escrita.

Ferreiro e Teberosky (1986), ao estudarem o processo de desenvolvimento da

escrita, em crianças, dividiram-no em cinco níveis.

No nível 1, “[...] escrever é reproduzir os traços típicos da escrita que a criança

identifica como a forma básica da escrita.” (FERREIRO; TEBEROSKY, 1986, p. 183). A

criança faz rabiscos que podem assemelhar-se à escrita, mas não é ainda a representação de

uma determinada forma sonora. As autoras observaram, no depoimento das crianças, uma

expectativa de relação, por exemplo, entre o tamanho do objeto, animal ou pessoa, e o

tamanho do seu nome; ou uma relação entre o tamanho do nome e a idade de uma pessoa.

Assim, escrevem que “estes dados e outros recolhidos nos mais diversos contextos

evidenciam uma tendência da criança a tratar de refletir na escrita algumas das características

do objeto” (FERREIRO; TEBEROSKY, 1986, p. 184). Neste nível, o indivíduo não tem,

ainda, a preocupação de ter escritas diferentes para palavras diferentes. E umas poucas formas

de escrita são usadas para representar quase tudo que lhe é proposto.

No nível 2, o indivíduo passa a assumir que, para poder representar significados

diferentes, “[...] deve haver uma diferença objetiva nas escritas” (FERREIRO; TEBEROSKY,

1986, p. 189). As autoras também observaram formas mais definidas no grafismo,

assemelhando-se mais às letras.

Para conseguir a diferença nas escritas, na representação de nomes diferentes, a

criança troca a ordem dos símbolos gráficos usados. Assim, uma menina usa os símbolos

gráficos A1I3 para representar o próprio nome, Maristela, e usa os mesmos símbolos gráficos,

porém em ordem diferente, escrevendo A31I para representar o nome de sua mãe, Carolina. A

menina não usou, necessariamente, esses mesmos símbolos gráficos, mas aproximações

dessas letras e números, que as autoras converteram para o modelo alfanumérico

convencional, para melhor compreensão dos leitores.

Percebe-se, nos exemplos desse nível, o exercício de certas habilidades

operatórias importantes, como a percepção de diferenças, permutas de ordem e conservação

de quantidade de letras, com o propósito de representar nomes diferentes com escritas

diferentes.

O nível 3, se caracteriza “[...] pela tentativa de dar um valor sonoro a cada uma

das letras que compõem uma escrita. [...] cada letra vale por uma sílaba. É o surgimento do

que chamaremos de hipótese silábica.” (FERREIRO; TEBEROSKY, 1986, p. 193). A criança

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começa a dar-se conta de que as letras da escritas são usadas para representar sons. Como

escrevem as autoras, “[...] pela primeira vez a criança trabalha claramente com a hipótese de

que a escrita representa partes sonoras da fala.” (FERREIRO; TEBEROSKY, 1986, p. 193).

Em um dos exemplos as autoras citam o caso de um menino que usou a grafia AO

para representar a palavra sapo. No caso, o símbolo gráfico A foi usado para representar o

som da sílaba sa e o símbolo gráfico O foi usado para representar o som da sílaba po.

A idéia das autoras é de que a “[...] hipótese silábica é uma construção original da

criança, que não pode ser atribuída a uma transmissão por parte do adulto” (FERREIRO;

TEBEROSKY, 1986, p.196), ou seja, a criança chega a essa conclusão por si mesma, a partir

de suas próprias observações.

No nível 4 ocorre a passagem da hipótese silábica para a hipótese alfabética. A

criança começa a perceber que, ao usar um símbolo só para representar a sílaba inteira,

surgem situações conflitantes, devido à quantidade de grafias que precisa para manter a

representação diferente para cada som diferente. Percebe, também, um conflito entre sua

hipótese sílaba e o que o mundo externo lhe oferece, isto é, as palavras que lhe são

apresentadas, como seu próprio nome, por exemplo, não estão de acordo com essa hipótese.

Ao chegar ao nível 5, a criança já “[...] compreendeu que cada um dos caracteres

da escrita corresponde a valores sonoros menores que a sílaba, e realiza sistematicamente uma

análise sonora dos fonemas das palavras que vai escrever” (FERREIRO; TEBEROSKY,

1986, p 213). Assim, quando vai escrever a palavra com o som sapo, a criança a separa nas

sílabas com os sons sa e po, e então procura as letras que, quando combinadas, formam o som

sa e as letras que formam o som po, juntando-as todas para formar o som completo desejado.

A partir daí, as dificuldades ainda a serem enfrentadas serão as exceções da

linguagem escrita, em que sons semelhantes são escritos com letras diferentes, devido a

convenções ortográficas, tais como decidir se representa uma sílaba coma letra s ou com a

letra z, e outra sílaba com a letra g ou j.

A partir dessa idéia de que o processo de aprendizagem da escrita se dá por

etapas, pode-se concluir que só terá sentido buscar ensinar as regras de ortografia ao indivíduo

depois que ele tiver atingido o estágio 5.

3.7.2 Relato

Por meio de diversas observações ao longo das sessões realizadas, o estagiário

percebe que E.M. demonstra não saber ler e nem escrever.

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Em uma das sessões passadas, o estagiário escreveu as palavras formiga e boi, e

perguntou para E.M. qual delas era a palavra formiga e qual era a palavra boi. Ele apontou

primeiro a palavra boi e disse boi. O estagiário perguntou, então, como ele sabia que aquela

era a palavra boi? Ele disse que reconheceu a letra b e sabia que boi tinha b.

O estagiário falou a E.M, então, sobre certas árvores com o nome baobá.

Perguntado qual era a primeira letra da palavra baobá, E.M. disse que era o b. E qual seria a

segunda letra? Ele não soube. Porém, E.M. já havia demonstrado que reconhece a letra a em

todas às vezes que lhe é perguntado, de modo que o estagiário sugeriu que para escrever ba

ele podia colocar b mais a. Qual seria a outra letra, para formar bao? Repetindo as sílabas, na

sequência, ele teve a ideia de escrever b mais a mais o, formando bao. Mas mostrou bastante

dificuldade em entender que, para escrever baobá precisava repetir as letras b mais a. E.M.

deu demonstrações, nessa e em outras ocasiões, que não conhece como a escrita funciona, que

não domina a ideia de que palavras podem ser separadas em sílabas. E que, na escrita, usam-

se símbolos para representar os sons dessas sílabas.

Na sessão de lectoescrita, o estagiário levou três frutas. De olhos vendados, E.M.

reconheceu facilmente, pelo tato, cada uma das frutas: maçã, laranja e banana.

O estagiário escolheu a palavra banana para o exercício de separação de sílabas.

E.M. demonstrou, novamente, dificuldade com a ideia de que as palavras podem ser separadas

em sílabas, e que, para escrever a palavra banana é preciso repetir escrevendo na duas vezes.

Em outro momento o estagiário mostrou um texto escrito na caixa do jogo cara a

cara e comentou que algumas palavras eram mais grandes, tinham mais letras, e outras

palavras eram mais pequenas, tinham menos letras. Depois, perguntou a E.M. porque algumas

palavras eram mais grandes e outras mais pequenas. E.M. não soube responder.

O estagiário, então, pediu a E.M. para escrever algumas palavras, como ele

lembrasse.

Pediu para escrever baobá. E.M. escreveu Ao.

Pediu para escrever banana. E.M. escreveu AOBA.

A seguir, algumas perguntas feitas pelo estagiário e respondidas por E.M.

Para que serve a escrita? Serve para escrever; serve para muitas coisas.

Que coisas? Não lembro.

Onde você vê a escrita? Em placa, parede, ônibus, quadro na parede, livro.

Você tem colher em casa? Sim.

E que utilidade tem a colher? (testando a compreensão da palavra utilidade). Não

tem muita utilidade. Uso mais o garfo. Colher uso pra por açúcar no café.

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E que utilidade tem a escrita? Ensina. Ajuda a lembrar.

3.7.3 Análise diagnóstica

Considerando todo o conjunto de observações, em diversas sessões, o estagiário

conclui que E.M. não aprendeu ainda a mecânica da escrita, como ela funciona, encontrando-

se em estágio anterior ao silábico, isto é, anterior ao estágio 3 da classificação proposta por

Ferreira e Teberosky (1986). Falta-lhe o entendimento de que, por meio da escrita, busca-se

representar o som das palavras, que as palavras podem ser separadas em sons menores,

formando sílabas, e de que são usadas letras ou conjuntos de letras para representar esses sons

menores.

3.8 AVALIAÇÃO DO PENSAMENTO LÓGICO-MATEMÁTICO

3.8.1 Fundamentação teórica

Em Matemática, trabalha-se com o conceito de quantidade e com operações de

correspondência termo a termo, conservação de quantidade, classificação, seriação,

classificação hierárquica, reversibilidade, função simbólica e raciocínio dedutivo.

Assim, números representam quantidades; para comparar duas quantidades usa-se

a correspondência termo a termo; o sinal de igualdade (=) representa a conservação de

quantidades entre duas representações de quantidade (2+3 = 5); a quantidade numérica não se

altera quando os objetos contados passam a ocupar mais espaço; para ordenar as quantidades

em ordem crescente ou decrescente é preciso capacidade de classificar em maior e menor e

seriar; para entender que uma quantidade menor está inserida em uma quantidade maior (a

quantidade 2 e a quantidade 3 estão inseridas na quantidade 5) é preciso classificar

hierarquicamente; para entender que a subtração é o inverso da soma, a soma é o inverso da

subtração, a divisão é o inverso da multiplicação, e a multiplicação é o inverso da divisão, é

preciso reversibilidade; para representar mentalmente as quantidades por meio de símbolos

gráficos ou sons, é preciso a função simbólica; e para resolver problemas de matemática é

necessário o raciocínio dedutivo.

Pensando dessa forma, compreende-se que o indivíduo necessita desenvolver

essas estruturas operatórias propostas por Jean Piaget, já citadas em 3.6.1, para poder

desenvolver o conceito de número e poder operar com eles.

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Rangel (1992) realizou um trabalho de pesquisa muito interessante, em escolas de

primeiro grau da Grande Porto Alegre, onde avaliou as formas de ensino de Matemática e

constatou sua inadequação porque, nas palavras da autora, “[...] os conteúdos não são

organizados nem selecionados levando em consideração a forma como a criança constrói seu

pensamento, isto é, a sua maneira pré-lógica de pensar a realidade” (RANGEL, 1992, p. 17).

Sobre a forma como a Matemática é ensinada e a forma como a criança constrói

seus conceitos matemáticos, a autora escreve:

Não se leva em conta a maneira como a criança constrói o número e os primeiros

conceitos matemáticos; não se considera suas experiências diárias, nas quais

estabelece relações de semelhanças e diferenças entre objetos e fatos que manipula,

classificando-os, ordenando-os e quantificando-os (RANGEL, 1992, p. 17).

Rangel (1986) argumenta que a criança precisa da experiência física e da

experiência lógico-matemática para a construção do conhecimento lógico matemático. Para

obter a experiência física a criança age sobre os objetos e descobre as propriedades físicas

desses objetos. Rangel (1986) usa como exemplo de objeto o giz e, como exemplo de suas

propriedades, que ele suja as mãos, que risca, amassa e vira pó quando apertado, que o pó é

leve e macio e voa quando se assopra, etc.

Para obter a experiência lógico-matemática, a criança parte da abstração das ações

realizadas sobre os objetos, e acrescenta as abstrações das coordenações que ligam essas

ações. Assim, no exemplo do giz, apresentado pela autora, a criança pode estabelecer relações

entre o giz e outros objetos que experimentou, coordenando mentalmente suas ações sobre

eles, classificando os objetos que riscam e os que não riscam; ordenando os que riscam em

risco mais forte e risco mais fraco, percebendo que os que riscam mais fraco são mais duros, e

os que riscam mais forte são mais macios, e assim por diante (RANGEL, 1986).

Nesse contexto, a experiência que a criança tem dos objetos no mundo ao seu

redor, e as relações entre eles, e a relação das ações entre eles, são muito importantes para o

desenvolvimento de suas capacidades operatórias e da construção de seu pensamento lógico-

matemático.

3.8.2 Relato

O Estagiário mostrou a E.M. uma linha escrita à mão com os seguintes caracteres:

a p 5 l t 2 m o 3 t r 1 (o último caracter é o número um)

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Perguntou a E.M. o que via e E.M. falou que via escrita. Perguntou, então, se

havia números nessa escrita. E.M. soube apontar todos os números (5, 2, 3 e 1).

Algumas perguntas feitas pelo estagiário e respondidas por E.M.:

Para que servem os números? Não lembro.

Onde você vê números? Parede, celular.

Que utilidade tem os números? Ensina a ler, a escrever.

O estagiário espalhou, sobre a mesa, com a ajuda de E.M., diversas das figuras do

jogo Lince. Então, pediu a ele para escolher uma figura de alimento. E.M. escolheu a figura

do repolho. Depois, o estagiário pediu a ele para alcançar três figuras de alimentos. Ele

alcançou quatro. Pediu, então, para E.M. contar essas figuras de alimentos. Ele foi apontando

com o dedo e contando, 1, 2,3 ,4.

O estagiário pediu para E.M. separar todas as figuras de animais. Ele separou

onze. Disse que não tinha mais. O estagiário contou que estava vendo mais figuras de

animais. E.M. procurou de novo e achou mais duas. Solicitado a contar quantas eram, ele foi

apontando com o dedo e contando 1,2,3.....até 13.

Solicitado a achar uma figura com a cor vermelha ele achou um boné que tinha as

cores vermelha, azul e amarela, e soube apontar qual era a vermelha.

Solicitado a achar uma figura verde, não achou nenhuma (havia várias).

Solicitado a achar uma figura com a cor amarela, ele achou a figura do Sol.

Voltando à coleção com treze figuras de animais, o estagiário retirou duas delas (a

da foca e a da borboleta) e depois pediu para E.M. separar as figuras de animais de quatro

patas. Ele disse que não sabia. O estagiário perguntou por que ele não contava o número de

patas dos animais. Ele foi contando o número de patas, um a um, apontando cada pata com o

dedo e contando 1, 2, 3, 4, e separando. Em um dos casos, em que só havia três patas visíveis,

ele ficou na dúvida. Mas depois decidiu que uma estava escondida. E, assim, separou, todos,

com exceção do patinho, que só tinha duas patas.

No jogo Cara a Cara, o estagiário colocou, do lado do tabuleiro, vários cubinhos

do conjunto material dourado e pediu para E.M. separar um cubinho cada vez que fizesse

uma pergunta. Nessa atividade, o outro jogador era fictício e E.M. podia ver a figura escolhida

pelo outro jogador. Assim, ele ia fazendo as perguntas, olhava a figura, deduzia a resposta e

baixava os personagens de acordo com essa resposta.

Na primeira partida, ele conseguiu chegar à figura certa com três perguntas,

separando três cubinhos. Na segunda partida, ele chegou à figura certa depois de separar seis

cubinhos. De cada vez, o estagiário pedia a E.M. para contar o número de cubos. Ele apontava

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com o dedo e ia contando. No final, separados os três cubinhos da primeira partida, e os seis

cubinhos da segunda, o estagiário perguntou a E.M. qual o grupo tinha mais. Ele apontou o

grupo com seis. Depois, perguntado quantos cubinhos esse grupo tinha a mais, E.M. não

soube responder. O estagiário sugeriu, então, que ele encostasse um cubinho do grupo com

mais cubos, em cada cubo do grupo que tinha menos. Ele fez isso. Perguntado quantos cubos

tinha sobrado, ele contou os restantes: 1,2,3.

3.8.3 Análise diagnóstica

E.M. demonstra que consegue distinguir letras de números e, inclusive, identificar

pelo menos alguns dos dígitos. As respostas sobre a utilidade dos números foram bastante

pobres. Demonstra que consegue contar números apontando objetos contados, um a um, mas

fica a pergunta até quanto consegue entender a noção de número. Pelas provas operatórias,

E.M. demonstra não ter bem desenvolvidas, ainda, estruturas operatórias importantes para o

desenvolvimento do pensamento lógico-matemático, como conservação de número,

classificação, seriação e classificação hierárquica. Nos exercícios, demonstrou dificuldade em

reconhecer quantidades, a menos que conte os objetos, um a um, e demonstrou não saber

fazer operações de soma e subtração de pequenas quantidades.

3.9 AVALIAÇÃO DO CORPO E MOVIMENTO

3.9.1 Fundamentação teórica

No levantamento de dados sobre o paciente, para o diagnóstico das possíveis

causas da dificuldade de aprendizagem, interessa observar, além dos aspectos cognitivos, o

dos desejos conscientes e inconscientes do paciente e daqueles com quem o paciente convive,

e possíveis causas ligadas ao ambiente escolar. Interessa, também, condições ligadas ao corpo

e habilidades motoras desenvolvidas por ele.

Entre as condições do corpo, pode-se considerar a postura do paciente, condições

físicas que possam interferir no processo de aprendizagem, como dificuldades na visão,

audição, articulação de sons vocais, causas orgânicas que interfiram na livre movimentação

do corpo como um todo, ou de braços ou pernas, dificultando a locomoção, exploração de seu

ambiente e a comunicação com os outros.

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Em habilidades motoras desenvolvidas, deve-se considerar se o paciente

desenvolveu o controle voluntário do corpo na forma esperada para sua idade.

3.9.2 Relato

Ao longo das diversas sessões realizadas com o paciente, com os propósitos já

descritos até 3.8, o estagiário observou o comportamento de E.M., fazendo algumas

constatações.

Apesar de ter a pálpebra do olho direito caída, o comportamento de E.M. sugere

que enxerga bem, tanto de perto como de longe, distinguindo e reconhecendo objetos com

facilidade, e que também ouve bem. Muito embora tenha vocabulário limitado, e não tenha

ainda aprendido a pronúncia correta de certas palavras, E.M. não demonstra dificuldades no

domínio da articulação de palavras.

E.M. movimenta braços e pernas com naturalidade. Usa de preferência a mão

direita (é destro), usa preferencialmente o olho esquerdo (natural, considerando a pálpebra

caída no olho direito), apoia o corpo preferencialmente com a perna direita.

Em alguns testes de arremesso de uma bola, E.M. demonstrou dificuldade em

apanhar a bola lançada, o que pode estar associado a enxergar mais com o olho esquerdo,

dificultando a visão estereoscópica.

Como relatado em 3.3.2, E.M. demonstra habilidade desenvolvida para o

manuseio do lápis, o que pode ser bem observado, também, nas sessões de provas projetivas,

enquanto desenhava. O traçado dos desenhos era feito com pressão equilibrada do lápis sobre

o papel.

Ao jogar Senha e montar quebra-cabeças, E.M. mostra habilidade motora fina, das

mãos, para posicionar pequenos objetos.

Um dado curioso sobre a postura de E.M. ocorre em ocasiões em que se esforça

para lembrar de algo ou executar uma tarefa que não sabe ou não lembra: ele fica com as

pálpebras semi-cerradas, os olhos parados e aparentemente sem ponto fixo, dando a impressão

de sonolência.

3.9.3 Análise diagnóstica

Exceto quanto à obstrução pelo menos parcial do olho direito, devido à pálpebra

caída, e possível dificuldade na visão estereoscópica, E.M. aparenta enxergar bem. Também

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aparenta ouvir bem. O estagiário não observou sinais de dificuldades na pronúncia de

palavras, exceto no que se refere à aprendizagem inadequada da pronúncia de certas palavras

(por exemplo, pronunciando tauba ao invés de tábua). Não demonstra dificuldades na

locomoção do corpo, navegação em meio a obstáculos, manuseio do lápis, e controle motor

fino das mãos.

O estagiário não encontrou sinais que indicassem atraso no desenvolvimento de

habilidades motoras.

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4 HIPÓTESE DIAGNÓSTICA

Realizado o levantamento de dados, por meio das diversas sessões e provas

relatadas até aqui, é o momento de concluir se o paciente apresenta, de fato, dificuldades de

aprendizagem e, em caso afirmativo, formular hipóteses sobre causas de não aprendizagem. É

o que se chama, em Psicopedagogia Clínica, de etapa de hipótese diagnóstica.

A primeira conclusão é de que E.M. demonstra ter, de fato, dificuldades de

aprendizagem. Com 23 anos de idade, e apesar da perseverança em frequentar escolas, ainda

não domina as habilidades de ler, escrever, fazer contas.

O foco, neste diagnóstico, está sendo colocado nessas habilidades de ler, escrever

e fazer contas porque esta foi a ênfase dada pelo paciente, ao manifestar seu grande desejo de

aprender a ler, escrever, fazer contas. Entretanto, há que se destacar que, atingidas essas

metas, muitas outras possibilidades poderão surgir através delas.

Quanto às causas de não aprendizagem, a partir dos dados levantados, são

formuladas as seguintes hipóteses:

a) E.M. demonstra apresentar um desequilíbrio em sua modalidade de

aprendizagem, como já foi comentado na análise diagnóstica em 3.3.3 (Hora

do Jogo). Sua modalidade é do tipo hiperacomodativa/hipoassimilativa e,

como resultado, seus esquemas de objeto são empobrecidos. Com isso, há

dificuldades em criar e acentua-se a tendência a imitar;

b) E.M. demonstra apresentar um desenvolvimento incompleto de certas

estruturas operatórias importantes, as quais impedem o desenvolvimento de

outras estruturas operatórias, também, importantes. Assim, como foi

observado na análise diagnóstica das provas operatórias, em 3.6.4, as

estruturas de classificação, seriação, conservação e reversibilidade não estão

bem desenvolvidas, comprometendo o desenvolvimento de estruturas de

classificação hierárquica, e as posteriores etapas de desenvolvimento do

raciocínio hipotético-dedutivo. A prova esterognóstica e, também, outras

atividades, demonstram pobreza na função simbólica;

c) E.M. demonstrou não compreender os mecanismos da escrita, como foi

observado na análise diagnóstica das provas de lectoescrita, em 3.7.3,

encontrando-se em um estágio de desenvolvimento anterior ao silábico,

estágio 3 da classificação proposta por Ferreira e Teberosky (1986), faltando-

lhe entendimento de que, através da escrita, busca-se representar o som das

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palavras, que as palavras podem ser separadas em sons menores, formando

sílabas, e que são usadas letras ou conjunto de letras para representar esses

sons menores;

d) E.M. demonstrou não ter ainda desenvolvido, satisfatoriamente, a noção de

número, de quantidades e proporções, conforme foi observado na análise

diagnóstica da avaliação do pensamento lógico-matemático, em 3.8.3. A

observação é coerente com a de desenvolvimento incompleto das estruturas

operatórias de classificação, seriação, classificação hierárquica, e conservação

e reversibilidade, importantes para o desenvolvimento pleno do pensamento

lógico-matemático e explicam a dificuldade de E.M. em aprender a fazer

contas.

Uma questão importante é o porquê de E.M. não ter desenvolvido as estruturas

cognitivas dentro do período esperado.

Uma hipótese tida como provável baseia-se no testemunho da mãe, relatado na

sessão história vital, em 3.4.3, de que o parto foi traumático e que deixou sequelas, sendo

uma delas a pálpebra caída, visível ainda na data atual, e um possível dano cerebral. Na

análise diagnóstica da prova das figuras geométricas, em 3.6.4, observa-se, na modificação da

forma de algumas figuras, um indicativo de que pode haver um dano mínimo ao sistema

nervoso. O desenvolvimento tardio da capacidade de falar, ocorrido somente aos seis anos de

idade, pode ter sido consequência desse dano.

Outras hipóteses que se pode juntar a essa, substituindo-a ou complementando-a, é

de um ambiente pobre em estímulos, e/ou deficiências na alimentação, considerando as

condições de educação e financeiras da família, e a narrativa da mãe de que deixou o bebê aos

cuidados da irmã mais velha, que tinha então apenas cinco anos de idade, para cuidar e

alimentar E.M. em seu primeiro ano de vida. A mesma irmã que pode ter se tornado, nesta

condição de cuidadora, de alto significado para o bebê, e depois foi afastada quando foi morar

com a avó.

O estagiário observou que E.M. é muito bem quisto na escola onde estuda. As

professoras o tratam com carinho e atenção. Algumas até mesmo dirigem-se a ele chamando-

o de menino e criança. Em diversas ocasiões, a sessão de psicopedagogia foi interrompida por

professora oferecendo lanche para ele, e usando essas expressões em forma afetiva. Assim, há

que considerar a possibilidade de E.M. acreditar que aprender poderá significar a perda desse

seu lugar como aluno menino, e reagir inconscientemente, bloqueando a aprendizagem.

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E.M. demonstra que é capaz de reter os aprendizados na memória de curta

duração e transferi-la para a memória de longa duração. Dá sinais de que a evocação do

aprendido exige-lhe esforços, mas pode ser facilitada mediante muitas repetições e associação

com outras aprendizagens. Também demonstra a capacidade de associar símbolos com

significados, como foi relatado em 3.2.1, no exercício de reconhecer logotipos de marcas

famosas. Além disso, consegue identificar, com relativa facilidade, as vogais. Em razão disso,

o estagiário acredita no potencial de E.M. em relacionar os símbolos da escrita com os sons

das palavras e seus significados e, assim, aprender a ler e a escrever.

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5 PLANO DE INTERVENÇÃO

Feito o levantamento de informações sobre o paciente, família e escola, tornadas

conhecidas e confirmadas suas dificuldades de aprendizagem, e identificadas causas mais

prováveis dessas dificuldades, chega o momento de planejar ações que atuem sobre essas

causas e possam trazer, ao paciente, oportunidades para superar as dificuldades e tornar-se

capaz de aprender, dentro dos limites de suas possibilidades. Essas ações constituem, em

Psicopedagogia Clínica, a intervenção, e as ações planejadas constituem o plano de

intervenção, a seguir delineado.

5.1 JUSTIFICATIVA

Já na sessão de enquadre com o paciente (ver 3.2) e na conversa com a professora

de Ensino Fundamental I (ver 3.3), ficou revelado o principal desejo de E.M., que é aprender

a ler, escrever e fazer contas. Assim, as ações planejadas como intervenção terão seu foco

principal no desenvolvimento das capacidades de aprender de E.M. que possam proporcionar-

lhe mais sucesso na realização desse desejo. É entendimento do estagiário que, atendido esse

objetivo, também outros benefícios serão colhidos, como mais autonomia, satisfação pessoal,

enriquecimento de seu potencial humano.

5.2 OBJETIVO GERAL

O objetivo geral das ações de intervenção é o desenvolvimento daquelas estruturas

operatórias de E.M. que ainda não se desenvolveram plenamente, que são importantes para

ele realizar o desejo de tornar-se capaz de aprender a ler e a fazer contas. Um objetivo

adicional é a melhoria em seu sentimento de autoconfiança e sua autonomia.

5.3 OBJETIVOS ESPECÍFICOS

São os seguintes:

a) desenvolver, até o limite da capacidade de E.M., suas estruturas operatórias de

classificação, seriação, classificação hierárquica, conservação e

reversibilidade;

b) melhorar a estrutura operatória de função simbólica;

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c) buscar melhor equilíbrio, em E.M., entre as modalidades de aprendizagem de

assimilação e acomodação;

d) desenvolver, dentro dos limites da capacidade de E.M., as noções de escrita,

noções de números, e raciocínio hipotético-dedutivo;

e) melhorar sua autoestima e sua autonomia como sujeito de sua própria

aprendizagem.

5.4 DINÂMICA OPERACIONAL

Na intervenção, planeja-se utilizar:

a) jogos e atividades que envolvam classificação, seriação, classificação

hierárquica, conservação e reversibilidade;

b) jogos e atividades que envolvam noções de quantidade, reconhecimento de

quantidades, operações matemáticas com quantidades, principalmente adição

e subtração;

c) jogos e atividades que envolvam o reconhecimento dos mecanismos da escrita,

e familiarização com as letras do alfabeto e sua combinação para a

representação de sons;

d) jogos e atividades que envolvam a familiarização com os algarismos arábicos,

notação de números, representação de operações com quantidades usando

algarismos arábicos;

e) uma dinâmica, na realização dessas atividades e jogos, que estimule o

desenvolvimento da autoestima do paciente;

f) uma dinâmica, na realização dessas atividades e jogos, que estimule o

desenvolvimento de mais autonomia do paciente em sua busca de

aprendizagens;

g) jogos e atividades que favoreçam o exercício da criatividade, o

desenvolvimento da função simbólica, e melhorias no equilíbrio entre

assimilação e acomodação.

5.5 AVALIAÇÃO DO PLANO

Serão feitas avaliações do plano de intervenção, à medida que as atividades e

jogos forem sendo executadas, corrigindo-se e substituindo-se jogos e atividades que não

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estejam atingindo os objetivos buscados. As avaliações tanto poderão ser feitas por meio da

observação dos resultados obtidos em cada jogo e atividade, ou por meio de repetição das

provas feitas durante o levantamento de dados para diagnóstico ou, ainda, por meio de provas

de avaliação ainda não aplicadas.

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6 DEVOLUÇÃO (PARA O PACIENTE, PAIS, FAMÍLIA, ESCOLA)

Uma vez realizado o levantamento de dados, feito o diagnóstico, planejadas as

ações de intervenção, chega o momento de informar o paciente, a família e a escola sobre os

resultados de diagnóstico e o que se planeja fazer para auxiliar o paciente a superar as

dificuldades e tornar-se capaz de aprender, dentro dos limites de suas possibilidades. Essa

ação de informar resultados e planos é chamada, em Psicopedagogia Clínica, de devolução.

Sara Paín (1985) dá destaque à importância da devolução, considerando-a,

também, como um ato de aprender. Assim, ela escreve:

[...] Entretanto, talvez o momento mais importante desta aprendizagem seja a

entrevista dedicada à devolução do diagnóstico, entrevista que se realiza

primeiramente com o sujeito e depois com os pais (quando se trata de criança, é

claro); [...]. A tarefa psicopedagógica começa justamente aqui, na medida em que se

trata de ensinar o diagnóstico, no sentido de tomar consciência da situação e de

providenciar sua transformação. [...] (PAÍN, 1985, p. 72).

A devolução é o momento, também, de engajar família e escola, junto com o

paciente, nas ações a realizar, procurando obter o compromisso de todos na cooperação para

que aquilo que foi planejado seja executado.

A devolução é feita, a cada parte interessada, em uma linguagem que seja

acessível ao informado, dentro de sua capacidade de compreensão. Geralmente, para que isso

seja possível, é preciso evitar os termos técnicos usados na Psicopedagogia, substituindo-os

por palavras de uso comum à maioria das pessoas.

No início da devolução, é desejável recordar a queixa ou a expectativa

manifestada pela família, escola ou paciente, em relação ao tratamento psicopedagógico,

usando essa queixa ou expectativa como ponto de partida no estabelecimento dos objetivos do

tratamento, o que se espera conseguir e as ferramentas e ações a serem usadas para isso.

Igualmente, no início da devolução, é desejável expressar os pontos positivos do

paciente, valorizando o que ele já faz bem, usando essa situação como ponto de partida para

as melhorias em aprendizagem que se quer atingir.

A devolução é feita primeiro para o paciente, explicando-lhe o que é a devolução

e mostrando-lhe que é muito importante que ela seja feita, também, para a família e para a

escola, dando-lhe uma ideia do que será contado. Busca-se, com isso, a manutenção da

necessária relação de confiança entre psicopedagogo e paciente.

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6.1 DEVOLUÇÃO PARA O PACIENTE

Em sessão anterior, o estagiário comunicou a E.M. que, na próxima sessão, faria

uma apresentação dos resultados de diagnóstico e o que estava planejando fazer para que ele

aprendesse melhor. Explicou, também, que essa apresentação é chamada de devolução.

Na sessão seguinte, ao iniciar a devolução para E.M., o estagiário lembrou o que

E.M. havia dito, lá na primeira sessão, que seu grande desejo era aprender a ler, escrever e

fazer contas. Explicou, então, que as sessões seguintes serão dedicadas a ajudá-lo a alcançar

esse objetivo.

O estagiário explicou, então, que há coisas que são importantes aprender, e que

E.M. já sabe fazer muito bem. Ele já consegue, por exemplo, ficar sentado, ouvindo as

explicações dos professores na aula, com calma. Consegue prestar atenção. Tem vontade de

aprender, boa vontade em fazer os exercícios e atividades que os professores indicam, e quase

nunca falta às aulas. Consegue usar o lápis e copiar as letras, desenhar. Também tem

cooperado bastante com o estagiário de Psicopedagogia, comparecendo às sessões, fazendo as

atividades e jogando os jogos propostos, respondendo às perguntas, mantendo o interesse e a

boa vontade.

Em seguida, o estagiário explicou que, para que as pessoas possam aprender a ler,

escrever e fazer contas, precisam aprender primeiro outras coisas. Usou, como comparação, o

aprender a jogar futebol. Primeiro as pessoas precisam a aprender a movimentar as pernas e as

mãos, depois precisam aprender a caminhar para, então, poder aprender a correr. Sem saber

correr, as pessoas não conseguirão jogar bem o futebol.

Para aprender a fazer contas, E.M. precisa saber colocar coisas em ordem

(referência à seriação), juntar coisas em montes (referência à classificação), entender

quantidades (referência à noção de números), saber comparar coisas e descobrir onde tem

mais, onde tem menos, o que é mais grande e o que é mais pequeno (palavras que E.M.

entende melhor do que maior e menor). E, para aprender a ler, E.M. precisa entender como

funciona a escrita, precisa conhecer as letras do alfabeto, seus nomes, e seus sons. Precisa

aprender a separar o som das palavras em sílabas, e saber as letras que precisa para escrever

as sílabas que tem esses sons.

O estagiário, então, lembrou a E.M. dos jogos e atividades em que ele contava,

colocava coisas em ordem, juntava coisas em montes, reconhecia quantidades e onde tinha

mais, onde tinha menos, mostrava o que era mais grande e o que era mais pequeno. Lembrou

que antes parecia mais difícil, e que agora estava mais fácil.

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Lembrou, também, que E.M. não sabia que ler era olhar as letras e números e

lembrar o som delas, juntar o som das letras para ter o som das palavras (referência ao

mecanismo da lectoescrita). Ele agora já sabe o nome e o som de algumas letras, e já juntou

algumas para formar palavras, ainda que tenha dificuldade em lembrar depois.

Assim, explicou o estagiário a E.M., nas sessões seguintes continuarão com os

jogos e atividades para que ele aprenda bem a colocar coisas em ordem, juntar coisas em

montes, comparar e descobrir onde tem mais, ontem tem menos, o que é mais grande, mais

pequeno. E, também, continuarão a trabalhar com o som das palavras que são o nome de

objetos, dividindo em sílabas, descobrindo que letras ele precisa para escrever essas sílabas.

O estagiário explicou, também, para E.M., que ele precisa de mais confiança nas

capacidades dele (referência à autoconfiança), e que precisa procurar ele mesmo as coisas que

precisa aprender, ao invés de esperar que os outros digam para ele (referência à autonomia).

Explicou, ainda, que é importante ele pensar no que aprendeu e buscar respostas para as

perguntas que o estagiário está sempre fazendo (referência ao processo de acomodação do que

foi assimilado). Outra coisa importante, lembrada, foi o de inventar e contar estórias

(referência ao desenvolvimento da imaginação, função simbólica, criatividade).

O estagiário explicou, ainda, para E.M., que ele precisará aprender mais palavras.

Aprender a ler é, sim, reconhecer os sons das letras e o som das palavras que elas formam.

Mas depois disso, é preciso saber o que são essas palavras.

6.2 DEVOLUÇÃO PARA A FAMÍLIA

Para a devolução à família foram convidadas a mãe e a irmã de E.M. Elas

compareceram no dia e hora combinada, com boa vontade e disposição. A mãe de E.M. falou

que está percebendo boas mudanças no comportamento dele, e está contente.

O estagiário explicou, então, que fez o convite para contar a elas os resultados do

diagnóstico que foi feito e o que está planejando fazer para auxiliar E.M. na busca da

realização do seu desejo de aprender a ler, escrever e fazer contas.

Ele falou, depois, sobre o trabalho de um pesquisador, no século passado,

chamado Jean Piaget, que estudou como as pessoas desenvolvem a inteligência e a capacidade

de aprender. Esse pesquisador descobriu que, para poder aprender a ler, escrever e fazer

contas, uma pessoa precisa aprender outras coisas antes. No trabalho feito com E.M., até

agora, o estagiário percebeu que, dessas coisas que precisam ser aprendidas primeiro, há

algumas que ele ainda não aprendeu muito bem, e que são importantes, como colocar objetos

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em ordem, reunir objetos em grupos, comparar grupos e descobrir onde tem mais, onde tem

menos, por exemplo. E.M. também não havia aprendido, ainda, como funciona a escrita.

Depois, o estagiário explicou que as sessões continuarão por mais algum tempo e

que continuará trabalhando com jogos e atividades para ajudar E.M. a aprender essas coisas e,

também, como funciona a escrita. Para isso, E.M. precisará aprender a reconhecer os

números, as letras e seus sons, e a separação dos sons das palavras em sílabas. Também

precisará aprender mais palavras, e fazer bastante exercício de inventar e contar estórias.

Dadas as explicações, o estagiário solicitou que a família colabore com o trabalho,

mostrando interesse em saber o que E.M., está aprendendo, lembrando-o de estudar e a

lembrar, já que E.M. aprende mas tem dificuldade de lembrar coisas aprendidas. O alerta foi

para não forçar, querendo ensiná-lo, mas apenas mostrar interesse, valorizar o que ele

aprende, e ajudá-lo a lembrar das tarefas que escolher realizar e das coisas que está estudando.

O alerta para não forçar, querendo ensiná-lo, foi feito após ouvir as palavras da

irmã, que disse ter, muitas vezes, querido ensiná-lo, e ele não aceitava que ela o ensinasse. É

possível que, não compreendendo a dificuldade de E.M. em entender as coisas, ela tornasse a

experiência dolorosa para ele, com impaciência, críticas e comentários negativos.

6.3 DEVOLUÇÃO PARA A ESCOLA

Para a devolução à Escola foram convidadas: a professora orientadora do curso de

Educação para Jovens e Adultos (EJA); o professor de Artes; e a professora do Ensino

Fundamental I.

Como não foi possível reunir todos no mesmo dia e horário, foi necessário realizar

duas sessões de devolução, sendo a primeira com a professora orientadora e o professor de

Artes, e a segunda com a professora do Ensino Fundamental I.

Nas duas sessões, o estagiário iniciou perguntando aos participantes como viam o

comportamento de E.M. na escola e em sala de aula. Depois, contou-lhes sobre o sonho

expressado por E.M., já na primeira sessão, de aprender a ler, escrever e fazer contas. Em

seguida, enumerou pontos positivos em E.M., observados durante as sessões, como atenção,

calma, boa vontade, vontade de aprender, frequência às sessões, destreza manual para

desenhar, capacidade para memorizar e fazer associações entre coisas memorizadas. Destacou

que E.M. aprendeu a contar até vinte e nove e reconhece as vogais.

O estagiário citou, então, coisas que E.M. ainda precisa desenvolver, como:

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a) lembrar com mais facilidade o nome das cores, principalmente o vermelho,

azul e verde, que ele esquece com frequência;

b) lembrar com mais facilidade o nome de formas geométricas, pois

frequentemente esquece e confunde o nome do quadrado, do triângulo e do

retângulo, por exemplo;

c) memorizar e lembrar com facilidade todas as letras do alfabeto e seus sons, e

os dígitos de zero a nove;

d) aprender a noção de número e quantidades;

e) aprender o mecanismo da escrita;

f) enriquecer seu vocabulário;

g) iniciativa de aprender cada vez mais por si mesmo, buscando as informações;

h) mais confiança em si mesmo.

O estagiário falou, então, de forma sucinta, sobre o levantamento de dados que fez

para diagnóstico de causas da dificuldade de aprendizagem, com a realização de provas,

dando destaque às provas operatórias. Mostrou uma folha onde havia, de forma resumida, a

relação dos estágios de desenvolvimento cognitivo propostos por Piaget (1963, apud

WADSWORTH, 1992), e as estruturas operatórias que se espera serem desenvolvidas nesses

estágios, acrescentando que E.M. demonstra não ter bem desenvolvidas, ainda, as provas de

classificação, seriação, classificação hierárquica, conservação e reversibilidade, e apresenta

pobreza no desenvolvimento da função simbólica.

Depois, o estagiário lembrou que o bom desenvolvimento dessas estruturas

operatórias citadas é muito importante para o desenvolvimento do conceito de número,

habilidade para operar com números e aprendizagem do mecanismo da escrita. Por essa razão,

o trabalho de intervenção será concentrado em jogos e atividades com o objetivo de

desenvolver bem essas estruturas e, também, buscar o que foi enumerado mais acima, de a)

até h).

O estagiário solicitou, então, auxílio aos professores para darem estímulo e

reforço, no trabalho com E.M., na busca desses objetivos.

A sessão foi mais longa com a professora do Ensino Fundamental I, que está bem

mais envolvida com o esforço de E.M. em aprender a ler, escrever e fazer contas, e que tem

contribuído bastante com o desenvolvimento dele. Com ela, o estagiário revisou os trabalhos

já feitos junto com E.M., com diversos jogos e atividades focados em classificação, seriação,

noção de número e quantidade, noção dos mecanismos da escrita e elaboração de estórias.

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Depois foi feito um plano, junto com a professora do Ensino Fundamental I, para

estimular E.M. a memorizar e lembrar com mais facilidade as letras do alfabeto e os dígitos

de zero a nove.

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7 EVOLUÇÃO DO CASO

O estagiário pôde observar, ao longo do processo de levantamento de dados para

diagnóstico, a veracidade daquilo que os professores do curso de Psicopedagogia diziam: que

a intervenção já acontece mesmo durante esse processo de levantamento de dados, a cada

entrevista ou prova realizada.

Assim, o estagiário foi percebendo o desenvolvimento de E.M., que foi

melhorando em sua capacidade de classificar e seriar. Também foi ficando mais proficiente

em contar, mais rápido, confundindo-se menos, reconhecendo pequenas quantidades apenas

pelo olhar, isto é, não mais tendo que contar pondo o dedo em cada peça, uma a uma, para

poder dizer quantas tem.

No reconhecimento das cores, lembrando que E.M. mostrava bastante dificuldade

ao lembrar o nome das cores vermelha, azul e verde. Observa-se, agora, que ele já consegue

lembrar o nome do vermelho e do azul, ainda que com um pequeno esforço.

Partindo de uma fase em que mostrava uma noção pré-silábica da escrita, agora,

quando estimulado, já demonstra perceber seu caráter silábico, sendo capaz de dividir

palavras mais simples em sílabas, contando e dizendo quantas sílabas tem, organizando letras

de modo a formar o som das sílabas e, inclusive, podendo inverter a ordem das sílabas,

encontrando o som da nova palavra formada. Mas falta-lhe, ainda, o domínio do alfabeto

completo, de modo que o plano é trabalhar o desenvolvimento das estruturas operatórias

incompletas ou em falta, bem como associar esse desenvolvimento com as habilidades do

domínio da escrita e, também, do conceito de número e quantidades.

Associado ao desenvolvimento do conceito de número e de quantidades, está

sendo trabalhada a habilidade de ler as horas em relógio com ponteiros.

E.M. tem sido estimulado a inventar e contar estórias, centradas em dois

personagens que ele foi estimulado a criar, e ele tem demonstrado progresso também nesse

sentido, inventando situações para esses personagens, recordando as situações nas sessões

seguintes.

O trabalho de intervenção continua, pois se percebe que a aquisição e

desenvolvimento das habilidades é lento, requer tempo e esforço do paciente. O plano do

estagiário é, uma vez terminado o estágio, continuar com as sessões, pelo menos até a

conclusão do ano letivo, sob o regime de trabalho voluntário.

As provas de avaliação serão repetidas e repetidas, ao longo desse processo de

intervenção, para observação dos progressos obtidos.

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8 CONCLUSÃO

Durante o desenvolvimento do curso de Psicopedagogia, o estagiário aprendeu

muitas ideias novas, recordou algumas já aprendidas há tempos e juntou-as em um novo

contexto, com aplicação às dificuldades de aprendizagem do ser humano. Muitas dessas ideias

são ferramentas, ou suporte das ferramentas, para a realização de todo o processo de

tratamento descrito nesta monografia.

É certo que os professores deram oportunidades aos alunos para praticar o uso

dessas ferramentas, criando situações hipotéticas. E, embora esses exercícios tenham sido

importantes, como preparo no uso das ferramentas, nenhum deles é capaz de substituir a

experiência direta de uma situação da vida real como a que é proporcionada pelos estudos de

caso.

Por meio do estágio realizado, o estagiário pôde rever, refletir sobre e aprofundar-

se em conhecimentos com a segurança de um trabalho orientado por profissional experiente,

bem como observar, com satisfação, resultados positivos na aplicação daquilo que foi

aprendido.

Fica aqui, pois, o reconhecimento do estagiário de que estudos de casos, como o

que foi apresentado nesta monografia, são excelentes instrumentos de preparo do estudante

para a prática requerida no exercício da Psicopedagogia Clínica.

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Myriam Lichtenstein, Liana Di Marco e Mário Corso. Porto Alegre: Artes Médicas, 1986.

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WADSWORTH, Barry J. Inteligência e afetividade da criança na teoria de Piaget.

Tradução de Esméria Rovai. São Paulo: Pioneira, 1992.

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ANEXOS

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ANEXO A - Par Educativo

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ANEXO B – As quatro partes de um dia

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ANEXO C – Planta da sala de aula

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ANEXO D – A planta da minha casa

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ANEXO E – Família Educativa

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ANEXO F – Prova das figuras geométricas