universidade do estado da bahia … · faz questão de você e se empresta pros outros”. fazendo...

164
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS I PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS MESTRADO EM ESTUDO DE LINGUAGENS LINHA DE PESQUISA: LINGUAGENS, DISCURSO E SOCIEDADE LARISSA SANTOS PEREIRA AFINAL, RAÇAS EXISTEM OU NÃO? UMA ANÁLISE DO DISCURSO SOBRE AS COTAS RACIAIS ENUNCIADO POR PROFESSORES UNIVERSITÁRIOS SALVADOR-BA 2010

Upload: dangminh

Post on 06-Oct-2018

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS I

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS

MESTRADO EM ESTUDO DE LINGUAGENS

LINHA DE PESQUISA: LINGUAGENS, DISCURSO E SOCIEDADE

LARISSA SANTOS PEREIRA

AFINAL, RAÇAS EXISTEM OU NÃO? UMA ANÁLISE DO DISCURSO SOBRE AS COTAS RACIAIS ENUNCIADO POR PROFESSORES UNIVERSITÁRIOS

SALVADOR-BA

2010

LARISSA SANTOS PEREIRA

AFINAL, RAÇAS EXISTEM OU NÃO? UMA ANÁLISE DO DISCURSO SOBRE AS COTAS RACIAIS ENUNCIADO POR PROFESSORES UNIVERSITÁRIOS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens da Universidade do Estado da Bahia, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre. Área de concentração: Linguagens, Discurso e Sociedade Orientadora: Prof. Dra. Rosa Helena Blanco Machado

SALVADOR-BAHIA

2010

FICHA CATALOGRÁFICA: Sistema de Bibliotecas da UNEB

Pereira, Larissa Santos Afinal, raças existem ou não? Uma análise do discurso sobre as cotas raciais enunciado por professores universitários / Larissa Santos Pereira . – Salvador, 2010. 143f. Orientadora: Profª. Drª. Rosa Helena Blanco Machado. Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Ciências Humanas. Campus I. 2010. Contém referências e anexos. 1. Análise do discurso. 2. Negros - Educação (Superior) - Brasil. 3. Programa de ação afirmativa - Brasil. 4. Professores universitários. I. Machado, Rosa Helena Blanco. II. Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Ciências Humanas. CDD: 401.41

LARISSA SANTOS PEREIRA

AFINAL, RAÇAS EXISTEM OU NÃO? UMA ANÁLISE DO DISCURSO SOBRE AS COTAS RACIAIS ENUNCIADO POR PROFESSORES UNIVERSITÁRIOS.

Salvador, 17 de dezembro de 2010.

MÁRIO LISBOA THEODORO

JOÃO ANTONIO SANTANA NETO

ROSA HELENA BLANCO MACHADO

(Orientadora)

A Benedito Tomaz Pereira (in memorian), Maiza Nancy Santos, Mabel Santos Pereira

e Laura Pereira Gomes, minha família, minha sustentação.

Aos estudantes do Pré-Universitário para Negros e Excluídos (PRUNE), por terem me

ensinado, na prática, o que é a ausência de democratização do ensino superior no Brasil.

Aos estudantes do Programa de Democratização do Acesso e Permanência de

Estudantes das classes populares (PRODAPE-UESC), por terem me ensinado, na prática, a

necessidade de um currículo anti-racista no ensino superior.

AGRADECIMENTOS

Um amigo querido me disse que eu deveria iniciar este texto mais ou menos assim:

agradeço a mim pelas noites perdidas, pelo assassinato da minha vida social, pela minha

paciência em ler infinitas elucubrações teóricas etc e etc e etc. É claro que concordo com ele –

não foram poucas as vezes em que me perguntei porque estava me sacrificando tanto para

construir algo que muitas vezes apenas pressentia como factível, não sabendo se o meu

caminho teórico estava ou não correto.

Entretanto, a tortuosidade do caminho parece que rapidamente se esvanece nesse

momento em que escrevo este texto. Incrível como agora parecem pequenas todas as

angústias das noites mal-dormidas, das dores de coluna fomentadas pelo excessivo tempo em

que fiquei sentada ou da impossibilidade de encontrar a palavra certa para concluir aquele

bendito parágrafo. Eu me recordo, então, que agradecimento vem do latim gratus e está

relacionado a algo agradável e suave. É assim que quero estar a partir de agora, porque me

sinto tão leve e feliz que seria injustiça deixar de nomear figuras e pessoas que foram

imprescindíveis à realização dessa dissertação.

Inicialmente agradeço às divindades todas, que me deram saúde e lucidez para que eu

pudesse chegar até o dia da defesa desta dissertação de mestrado. Hoje eu canto junto com J.

Velloso: “Que seria de mim meu Deus, sem a fé em Antônio?” e complemento: sem a fé em

outros tantos santos e santas, canonizados ou não, os quais sempre foram, para mim, exemplo

de coragem e persistência.

E por falar em santidade e exemplo, agradeço muito e muitíssimo à minha mãe, santa

Maiza na terra, que “me deu ao mundo de mundo de maneira singular, me dizendo a sentença,

pra eu sempre pedir licença, mas nunca deixar de entrar”, tal como Dona Canô fez com o seu

filho Caetano. Certamente, só Madre Bonino sabe o quanto minha mãe rezou por mim e me

colocou, dia e noite no colo de Deus, para que eu conseguisse concluir este Mestrado.

Agradeço também à minha irmã Bel, à tia Rita e aos demais familiares, pela oração e torcida

constantes. À Tia Maria, em Itabuna, pelos oito anos de “casa, comida e roupa lavada” e à

prima Pat, ao primo Laercio e à prima Brenda, em Salvador, pelo abrigo em 2008. Vocês

certamente tornaram mais amenas as preocupações maternas de dona Maiza com o bem-estar

de sua filha.

Minha mãe, tão zelosa, só conhece de nome uma mulher chamada Rosa Helena

Blanco Machado, mas eu posso afirmar com convicção que elas se irmanaram, ao longo desse

processo, no desejo de que eu não desistisse. À minha orientadora, querida Rosa Helena, eu

agradeço. Muito. Pela paciência pra conter os meus arroubos quase infantis de, a todo o

momento, dizer que não ia conseguir. Pela sabedoria em me orientar e me corrigir quando eu,

teimosamente, não queria (re)pensar minha postura teórica e/ou militante. E, principalmente,

pelo carinho com que conduziu a orientação desta dissertação. Rosa sempre foi uma

interlocutora atenta às minhas (infinitas) inquietações, respondendo a elas com firmeza, mas

também com cuidado, a fim de que meu crescimento intelectual fosse assegurado. É claro que

algumas teimas, eu mantive. E, por isso, assumo a minha exclusiva responsabilidade nos

possíveis equívocos apresentados neste trabalho, ao mesmo tempo em que atribuo à Rosa o

valor por ter me ajudado a entender, dentre outras milhões de coisas, um princípio belo da

Análise de Discurso: a memória, como já dizia o gênio-poeta Wally Salomão, é

incontornavelmente, uma ilha de edição.

É nesse diálogo entre o ato de lembrar e o ato de esquecer que se constituem os

discursos e, por isso, ressalto a gratidão aos demais professores e professoras que, ao longo de

minha vida, atuaram em meus processos formais e informais de escolarização, me ajudando a

conhecer, sistematizar e relacionar conhecimentos e valores, como as freiras da Escola

Sagrada Família, primeira escola onde estudei. Dada à especificidade da finalização deste

curso de mestrado, me detenho nos docentes que me acompanharam nessa última etapa. Dessa

maneira, faço especial destaque à professora Rosa Borges – que acompanhou e orientou os

meus primeiros passos no PPGEL – e à professora Evandra Grigoletto – que participou da

minha banca de Qualificação, mas, por motivos pessoais, não pôde estar presente na data da

defesa. Também ressalto os demais integrantes desta banca de avaliação: os professores João

Antonio de Santana Neto – pela dedicação expressa na leitura atenta do meu trabalho – e o

professor Mário Lisboa Theodoro – pela gentileza em aceitar o convite para compor esta

banca. A vocês, que estiveram comigo ou nos primeiros passos da escrita ou já agora,

próximos à edição que ora apresento, minha gratidão, pelo carinho e rigor com que co-

orientaram e co-avaliaram esta dissertação.

Dentre tantos conceitos apreendidos eu relaciono memória e edição porque a escrita

desta dissertação foi marcada pelo ato de selecionar, recortar, relacionar... sentimentos. Foi

editando uma miscelânea de emoções que atravessei esses longos (e solitários) dias. A

experiência de cursar o mestrado eu defino assim: o doloroso exercício da solidão consentida.

Faço alusão à solidão para dizer como as minhas amigas e os meus amigos foram importantes

nessa história. Eu precisava ficar só, mas pra “guentar o tranco”, tinha sempre uma ou outro

pra ser “com-panheir@” na divisão do choro ou do riso. Na divisão da sensação de

impotência ou na divisão da sensação de dever cumprido.

A doação fraterna foi a marca do grupo de amig@s-colegas do Programa de Pós-

Graduação em Linguagens da UNEB, cuja parceria foi definitiva, tanto para a minha

permanência nas aulas do mestrado quanto para a minha persistência na escrita desta

dissertação. Eu quero agradecer, portanto, à Aline, Ângela, Edna, Nerivaldo, Raquel, Karina,

Geraldo, Jonalva, Esmeralda, Sayonara, Elisabete, Cláudio, Fabíola, Valter, Lise, Mônica,

Sandra (ternamente grata sou a ti, por apaziguar meu choro tantas e tantas vezes, viu?),

Zoraide e Robson. Seja por uma carona, seja por uma ligação, seja por um e-mail, seja por um

abraço – vocês sempre me tranquilizaram e me incentivaram. Obrigada pela companhia

agradável e enriquecedora, vocês são, realmente, queridos e queridas por mim. Também

destaco a colaboração de Danilo e Camila, da Secretaria do PPGEL – nem todo o panteão de

divindades sabe o quanto que eu solicitei auxílio desses dois, dupla extremamente zelosa no

exercício de sua função e atenciosa, na relação com @s alunos do PPGEL. Assim, agradeço e

devolvo a eles o carinho recebido.

Mesmo correndo o risco de ser injusta nas lacunas das citações seguintes, também

quero agradecer, portanto, às “pareceiras” de Ipiaú e de tantos outros cantos; às minhas

amigas-colegas do Colégio da Polícia Militar de Itabuna e à direção militar e direção

pedagógica deste Colégio, pela solidariedade incondicional. Agradeço também à turma de

amig@s formada a partir da graduação em Letras (UESC-2004.1), pelo carinho e

preocupação; às amigas do curso GESTAR, pela compreensão; ao coletivo de pesquisador@s

do IV Concurso Negro e Educação, pela atenção; aos coleg@s que se tornaram amig@s

durante e após a experiência de trabalho na Secretaria de Educação da Prefeitura Municipal de

Itabuna, no Pré-Universitário para Negros e Excluídos (PRUNE) e no PRODAPE, na UESC,

pelo cuidado; à turma da Especialização em Educação e Relações Étnicorraciais (UESC-

2006), pela vivência; às queridas amigas e aos queridos amigos da Pastoral da Juventude e

Comunidades Eclesiais de Base, pela experiência de comunhão; ao povo “dos reggaes”

(raríssimos em tempo de escrita de dissertação!), pelo necessário “desopilar”; aos amig@s de

meus amig@s que, depois de um sorriso ou conversa no ponto de ônibus, também meus

amig@s se tornaram, pela companhia; aos querid@s do mundo virtual, pela paciência em me

ouvir e me confortar. Enfim, a tod@s que, mesmo em um rápido esbarrão na rua, sempre

faziam, imbuídos da melhor das intenções, a pergunta mágica, de efeito devastador: “E a

dissertação, como anda?”. Por motivos diversos vocês desejaram fazer parte dessa rede, uma

terna materialização daquilo que diz a poetisa Adriana Falcão: “Amizade é quando você não

faz questão de você e se empresta pros outros”.

Fazendo alusão à colaboração dos amigos, faço também alusão e agradecimentos aos

mais antigos, que vieram antes de mim, tornando possível este meu trajeto de agora. A el@s,

pesquisador@s e militantes negr@s que protagonizaram as lutas pelo reconhecimento público

dos discursos racistas existentes no cotidiano brasileiro e as lutas pelo reconhecimento, na

Academia, da importância dos estudos sobre as relações étnicorraciais. A el@s, por terem,

com sua escrita-vida, me desafiado a me ver como uma mulher negra de pele clara que

pesquisa essa temática. A estes “navegantes negros” de monumentos diversos eu presto, junto

com Aldir Blanc e João Bosco, “glória a todas as lutas inglórias, que através da nossa história,

não esquecemos jamais”.

As marcas históricas me lembram também que devo agradecer aos meus alun@s do

Colégio da Polícia Militar de Itabuna, @s quais, durante estes quase três anos em que estive

“mergulhada em livros e escrita” foram compreensiv@s e atenciosos, sempre na expectativa

para que eu concluísse logo esse “tal de mestrado”. Agradeço também à Prefeitura Municipal

de Itabuna, por ter assegurado o meu direito de me afastar das atividades docentes para a

realização deste curso.

Bem, sou prolixa. Essa é uma verdade. Mas a finalização desta dissertação de

mestrado é uma conquista tão especial que eu gostaria de agradecer muito a muitos! Como a

minha liberdade poética não é infinita, expresso, por fim, minha gratidão aos que estiveram ao

meu lado, mas não foram mencionados nessa listinha básica, sintam-se verdadeiramente

agradecidos. Sem mais delongas, pra encerrar, um adendo rápido: aos homens que amei e

amo, obrigada por terem sido meus companheiros-amantes, calmaria e motivação em doses

homeopáticas.

Ao término deste mestrado, uma certeza tenho: tal como ensinar é ato de corajoso

amor freiriano, estudar também o é. Assim, agradeço a tod@s que, neste trajeto, me

ensinaram o desprendimento amoroso de quem quer aprender para melhor ensinar e, pra

finalizar, evoco a linguagem drummondiana: “Amor – pois que é palavra essencial, comece

esta canção e toda a envolva...”. Amém. Axé. Oxalá.

“Repetir repetir – até ficar diferente.”

Manoel de Barros

Pessoas mudas escrevem pra falar. Analfabetos aprendem a escrever. Pessoas sem braços

escrevem com os pés. Os surdos escrevem no ar com gestos. Os cegos escrevem com a voz no

escuro. Pessoas que esquecem escrevem listas. Canhotos escrevem com a mão esquerda.

Pessoas distantes escrevem cartas. O tempo escreve no rosto rugas. Nas palmas linhas, nas

pintas pontos. E nas estrelas cadentes. E nas cadeias escrevem nas paredes. E nas carteiras de

escola. Neurônios escrevem na memória. Os genes escrevem nos corpos vivos. A chuva que

escorre escreve nos vidros. E os dedos nos embaçados. E nas cavernas traçados de

antepassados. Bisontes, flechas, humanos, arcos. E os médicos nas receitas. Orientais usam

outras letras. De cima a baixo, nas verticais. E começando sempre por trás. Nos livros, placas

e nos mangás. Escreventes, escrivães, escritores, escribas. Uns tomam notas pra se lembrar.

Uns fazem livros pra ser lembrados. Passos escrevem no chão com rastros. Corvos espalham

nanquim no alto. Galinhas grafam bicando o chão. Migalhas fazem frases do pão. Palavras

ditas morrem no ar. Em pedra escrevem nomes dos mortos. E em placas de rua. E quando o

texto acaba a escrita continua.

Arnaldo Antunes em n.d.a. – Editora Iluminuras, 2010.

Noites do Norte

A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil.

Ela espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade; seu contato foi a primeira

forma que recebeu a natureza virgem do país, e foi a que ele guardou; ela povoou-o como se

fosse uma religião natural e viva, com os seus mitos, suas legendas, seus encantamentos;

insuflou-lhe sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor, seu

silêncio sem concentração, suas alegrias sem causa, sua felicidade sem dia seguinte...

É ela o suspiro indefinível que exalam ao luar as nossas noites do norte.

Composição de Caetano Veloso sobre texto de Joaquim Nabuco.

xiii

RESUMO

Este estudo de cunho dissertativo apresenta uma análise da constituição do sujeito professor universitário ao enunciar o discurso sobre as cotas raciais. A investigação das filiações históricas constitutivas deste sujeito deu-se sob a perspectiva teórica da Análise de Discurso, em sua linha peuchetiana. O corpus analisado é constituído por respostas escritas dadas por 42 (quarenta e dois) professores da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), situada em Ilhéus-Ba, à pergunta “A UESC adotou a política de cotas com recorte racial em seu processo seletivo. O que você pensa a este respeito?”. A fim de verificar possíveis relações discursivas entre estes textos contemporâneos e outros, produzidos entre os séculos XIX e XX, foi feita, simultaneamente à análise, leituras interpretativas de textos de Rui Barbosa, Nina Rodrigues e Gilberto Freyre, autores com larga produção intelectual sobre as questões sócio-raciais brasileiras. As análises feitas evidenciam que a formulação do discurso sobre cotas raciais está relacionada à constituição do discurso sobre o negro brasileiro, cuja matriz argumentativa, ancorada na tríade jurídico-científico-sociológico, reside em um espaço de embates entre a racialização e a não racialização da identidade nacional.

Palavras-chave: Análise de Discurso. Discurso. Cotas Raciais. Racialização. Professor universitário.

xiv

ABSTRACT

This mark study essay presents an analysis of the constitution of the faculty subject by stating the speech on racial quotas. The investigation of historical affiliations constituting of this subject took place in the theoretical perspective of the discourse analysis, in his line peuchetiana.The corpus examined consists of written responses given by 42 (forty two) faculty of the Universidade Estadual de Santa Cruz (Ilheus-Ba) to the question "The UESC adopted the policy of racial quotas within its selection process. What do you think about this? ".In order to check possible discourse relations between these and other contemporary texts produced between nineteenth and twentieth centuries, it was made simultaneously to the analysis, interpretive readings of texts by Rui Barbosa, Nina Rodrigues and Gilberto Freyre, they are authors with vast intellectual output on socio-racial Brazil. The analysis made showed that the formulation of the discourse on racial quotas is linked to the formation of the discourse on black Brazilian, whose array of argument, anchored in the triad legal and scientific-sociological, resides in a space of encounters between the racialization and not racialization the identity national.

Keywords: Discourse Analysis. Discourse. Racial Quotas. Racialization. Faculty.

SUMÁRIO

RESUMO................................................................................................................................xiii

ABSTRACT ...........................................................................................................................xiv

1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 17

2 O DISCURSO E AS RELAÇÕES ÉTNICORRACIAIS: OS SEDUTORES

CAMINHOS DOS SENTIDOS . ........................................................................................... 26

2.1 TEXTO E DISCURSO, SENTIDO E SUJEITO ............................................................. 26

2.2 CATEGORIAS DE ANÁLISE ........................................................................................ 30

2.3 O QUE UMA TEORIA DO DISCURSO TEM A DIZER SOBRE AS FALAS EM

TORNO ÀS COTAS RACIAIS? ............................................................................................. 36

3 OS DISCURSOS SOBRE RAÇA E AS RELAÇÕES SÓCIO-RACIAIS

BRASILEIRAS: OS “HOMENS DA CIÊNCIA” E A MILITÂNCIA NEGRA ENTRE

OS SÉCULOS XIX E XXI..................................................................................................... 41

3.1 CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO DO DISCURSO SOBRE AS RELAÇÕES RACIAIS

BRASILEIRAS ........................................................................................................................ 43

4 QUAL O LUGAR DO DISCURSO SOBRE AS RELAÇÕES RACIAIS ENTRE AS

DÉCADAS DE 1870 E 1940?................................................................................................. 56

4.1 RUI BARBOSA E A EMANCIPAÇÃO DOS ESCRAVOS........................................... 56

4.2 NINA RODRIGUES E A INFERIORIDADE NEGRA ................................................. 67

4.3 GILBERTO FREYRE E A PLASTICIDADE RACIAL BRASILEIRA ........................ 79

5 RACISMO OU CONSCIENTIZAÇÃO RACIAL? O OLHAR DA UNIVERSIDADE

SOBRE AS COTAS RACIAIS.............................................................................................. 90

5.1 A FORMAÇÃO DISCURSIVA CONTRÁRIA ÀS COTAS RACIAIS ......................... 94

5.1.1 Discurso da igualdade jurídica ...................................................................................... 94

5.1.2 Discurso do mérito individual ....................................................................................... 98

5.1.3 Discurso da melhoria da escola pública ...................................................................... 101

5.1.4 Discurso economicista ................................................................................................ 103

5.1.5 Discurso da mestiçagem racial.................................................................................... 106

5.2 A FORMAÇÃO DISCURSIVA FAVORÁVEL ÀS COTAS RACIAIS...................... 109

5.2.1 Discurso de reparação racial ....................................................................................... 109

5.2.2 Discurso da melhoria da escola pública ...................................................................... 118

6 CONCLUSÃO.................................................................................................................... 121

REFERÊNCIAS ............................................................................................................... 131

ANEXOS .......................................................................................................................... 143

APÊNDICE ...................................................................................................................... 147

17

1 INTRODUÇÃO

Toda linguagem é de natureza sucessiva; não é

apropriada para pensar o eterno, o intemporal.

Jorge Luis Borges

Desde a segunda metade do século XX até os dias atuais, diversas reflexões que tratam

do estudo sobre a linguagem na perspectiva do discurso (ARAÚJO, 2004; ORLANDI, 2007

[1996]; POSSENTI, 2007) têm cumprido o papel de afastar o “fantasma da ciência régia”: a

ilusão de que é possível definir e delimitar um único sentido para um enunciado linguístico

(PÊCHEUX, 2006 [1988]). A noção de sentido pleno se afirma, por conseguinte, como uma

incômoda lembrança do equívoco, o qual é responsável por destituir, em movimentos

incessantes, a possibilidade de omissão do ato interpretativo, ou, em outras palavras, a

possibilidade de que sejam dissimuladas as filiações históricas – instâncias da produção de

sentidos – em que se inscrevem as formulações discursivas.

Levando em consideração a determinação histórica dos processos de significação, essa

dissertação desenvolveu-se segundo os princípios da Escola Francesa de Análise de Discurso,

na perspectiva do filósofo Michel Pêcheux (1938-1983), que buscou articular três áreas de

estudo: o Marxismo, a Psicanálise e a Linguística. A partir da releitura de Marx por Althusser;

de Freud, por Lacan e de Saussure, por Pêcheux, é feita a reflexão sobre as noções de

ideologia, sujeito e de língua, componentes que constituem a prática discursiva. Para esta

linha de pesquisa, o discurso é “um objeto integralmente lingüístico e integralmente histórico”

(GUIMARÃES; ORLANDI, 2006, p.151), o que justifica o fato de os sentidos serem

constituídos face à materialidade sócio-histórica.

Para um melhor entendimento de como os sentidos não são fixos, observe-se a própria

concepção de conhecimento, que tem passado por consideráveis alterações ao longo dos

tempos. O século XXI, nesse contexto, tem sido palco da consolidação da “sociedade do

conhecimento”, cujo fulcro político e econômico deixa de residir unicamente na posse de bens

materiais, visto que os índices de estratificação social passam a ser lidos também a partir da

posse de bens imateriais. Ter conhecimento hoje não implica unicamente no acúmulo de

conteúdos, correspondendo a um domínio de sofisticados recursos e habilidades, por meio dos

quais é possível não somente refletir sobre a sociedade, como intervir socialmente:

18

Em termos mais gerais, a abrangência das competências sociais corresponde a recursos estratificados para ter controle sobre a própria vida; por exemplo, a saúde (a expectativa de vida), a própria situação financeira, a vida pessoal, as aspirações, a carreira, a segurança a longo prazo, ou a capacidade para encontrar e obter ajuda para realizar essas tarefas, são efeitos gerais do controle diferenciado de certas bases relevantes de conhecimento. A capacidade de preparar-se para desafios, fazer uso do discernimento e desenvolver estratégias para organizar e arcar com os custos da proteção de si mesmo certamente constitui uma parte significativa dessas estratégias e, por conseguinte, da certeza que de alguma forma a pessoa toma conta de si mesma e não é um mero objeto passivo de circunstâncias fortuitas. (STHER, 2000, p.23)

Enquanto critério indicativo de prestígio e autoridade, este domínio de excelências

implica, naturalmente, na manutenção de hierarquias: é legitimamente mais capaz aquele que

sabe mais (STEHR, 2000). Tal constatação, que evidentemente traz em seu bojo a noção de

poder, não pode deixar de considerar, no interior da educação formal, o acesso ao ensino

superior, aspecto determinante para aquisição e perpetuação das estratégias de (melhor)

intervenção social. Nesse sentido, é bastante compreensível a polêmica acarretada pela

implantação do sistema de cotas raciais no processo seletivo das instituições de ensino

superior brasileiro, afinal a instância universitária tem funcionado, no campo das

representações, como reduto exclusivo (e excludente) daqueles que dispõem de uma

determinada rede de conhecimentos e, portanto, podem ter acesso a ela. As cotas raciais, ao

proporem uma reserva de vagas para um grupo específico, investem frontalmente contra este

ideal de universidade como o lugar de conhecimento e mérito, fragilizando-o simbolicamente.

(BRANDÃO, 2008; GUIMARÃES, 2008)

O reconhecimento desse acesso aos bens imateriais como um novo critério para

mensurar a desigualdade social caracteriza a política de cotas raciais como uma medida de

ação afirmativa1 que atua tanto no campo da anti-discriminação racial como no campo do

combate às desigualdades raciais2. Talvez exatamente por este caráter regulador, o seu

alcance não tem se restringido ao mundo acadêmico, tendo sido objeto de debate em variados

espaços sociais e circulado tanto em textos favoráveis quanto contrários a esta medida.

A recorrente contestação que o tema suscita pode ser compreendida a partir das variadas

redes de sentidos que se constituem a partir dele, pois falar de cotas raciais na universidade é

falar também da constituição do espaço universitário brasileiro, do papel do estado na 1 A política de cotas raciais se insere em um conjunto de ações afirmativas voltadas para minimizar ou corrigir distorções históricas que tenham causado ou continuem causando situações de desigualdade entre grupos sociais, como é o caso dos negros e não-negros; mulheres e homens; homossexuais e heterossexuais etc. Estas medidas particularistas têm sido adotadas em vários países do mundo e, no Brasil, especialmente a partir da última década. (MOEHLECKE, 2004) 2 Heringer (2001) estabelece uma separação, no campo das relações raciais, entre as políticas de combate à discriminação e as políticas de combate à desigualdade. A autora destaca que o aspecto distintivo entre elas é justamente a busca pela igualdade de oportunidades, traço ausente da primeira concepção.

19

implantação de ações afirmativas e, é claro, dos pilares em que se assentam as relações raciais

no Brasil (FRY, 2008; PEREIRA, 2007). Desde 2003, quando a Universidade do Estado do

Rio de Janeiro (UERJ), a Universidade do Estado Norte Fluminense Darcy Vargas (UENF) e

a Universidade do Estado da Bahia (UNEB) adotaram este sistema, já passa de oitenta o

número das universidades públicas que têm as cotas raciais em seu processo seletivo, medida

que para muitos se constitui como uma estratégia de combate ao racismo, empreendida não só

por militantes dos movimentos negros brasileiros, como também por pesquisadores negros e

não-negros dessas instituições (CARVALHO, 2006; CÉSAR, 2005).

O fato é que as experiências de política de cotas raciais no ensino superior brasileiro têm

fomentado a intensa aparição do discurso sobre as cotas raciais. Apesar do caráter revestido

de uma suposta novidade, a filiação ideológica deste discurso pouco traz de inédito, sendo que

são muitos os sentidos já mobilizados que significam quando (re)visitados e postos em

confronto na rede de relações fixadas através da prática social. Exatamente por mobilizar

conceitos complexos, como o de identidade, a implantação das ações afirmativas para a

população negra em todo o Brasil tem se dado em um espaço discursivo fortemente marcado

pela ambigüidade, em que o real, correspondente ao racismo, se traveste em uma realidade

aparente3, correspondente à democracia racial, conforme salienta d’Adesky (2001):

De fato, essa representação ambivalente mantém outra aparência que não pode escapar à análise: é o imperativo igualitário, cuja lógica leva à obtenção de direitos iguais, da igualdade de tratamento ou da igualdade de oportunidades. Mas sem democracia verdadeira tudo se passa como se a hipervalorização da harmonia racial servisse de condição de legitimidade emblemática de direitos fundamentais, enquanto ela não passa de um biombo que oculta um reconhecimento intrinsecamente desigual.(d’ADESKY, 2001, p.176)

Se o deslizamento de sentidos e não o ineditismo, é o traço constitutivo da prática

discursiva, é preciso atentar para as condições de produção deste discurso, o que não

corresponde, sabe-se, à sua exclusiva inserção no contexto sócio-histórico imediato que o

circunda, mas ao trabalho duplo (e complementar) de descrevê-lo e interpretá-lo, conforme

lembra Pêcheux (2006 [1988], p.56): “Todo discurso é o índice potencial de uma agitação nas

filiações sócio-históricas de identificação, na medida em que ele constitui ao mesmo tempo

um efeito dessas filiações e um trabalho [...] de deslocamento no seu espaço.”

3 Para a Análise de Discurso, o real corresponde às determinações históricas que, ideologicamente, produzem efeitos de sujeitos e efeitos de sentidos, característica que desfaz qualquer possibilidade de sentido único. A realidade, por sua vez, corresponde à produção imaginária de uma unidade discursiva dotada de sentido literal, a qual aparece como o real (0RLANDI, 2003, p.74; ORLANDI, 2007 [1996], p.39).

20

Compreendendo a prática discursiva como a forma material em que estes aspectos

históricos aparecem, atuando não como adereços dos processos de significação de um

enunciado ou outro, mas sim, como instâncias constituintes dos seus efeitos de sentido

(ORLANDI, 1999 [2003]), toma-se, para fins de análise, o discurso sobre cotas raciais

enunciado por professores da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), situada à região

sul da Bahia, entre as cidades de Ilhéus e Itabuna, em um trecho marcado pelas práticas do

coronelismo, fincado no cultivo das roças de cacau.

A observância do discurso sobre cotas raciais como objeto de análise está diretamente

relacionada à história profissional e acadêmica da autora dessa dissertação, tendo em vista que

o seu interesse pelo tema surgiu ainda no período da graduação, quando ela atuou na

coordenação do PRUNE, o curso Pré-Universitário para Negros e Excluídos, voltado para a

inclusão de estudantes negros e carentes, em sua grande maioria com distorção de idade-série,

no ensino superior. Tal ação teve prosseguimento com a atuação na coordenação do

PRODAPE, o Programa de Democratização do Acesso e Permanência de Estudantes das

Classes Populares na UESC, cujo intuito era a promoção da permanência qualitativa, na

universidade, de estudantes oriundos de cursos pré-universitários populares.4 Do ponto de

vista acadêmico, destaque-se a premiação dessa pesquisadora no IV Concurso Negro e

Educação, destinado a conceder dotações de pesquisa para pesquisadores iniciantes na

temática Negro e Educação, o que resultou em um estudo monográfico abordando o discurso

sobre cotas raciais enunciado por estudantes universitários.

Esse conjunto de experiências vinculadas à temática étnico-racial e, especialmente, ao

acesso e permanência de jovens e adultos negros no ensino superior, teve como espaço de

atuação a Universidade Estadual de Santa Cruz. Como única instituição de ensino superior

público da região, a UESC atende a 8.075 (oito mil e setenta e cinco) estudantes, oriundos de

uma macro região que compreende 53 (cinqüenta e três) cidades do litoral e 21(vinte e uma)

cidades do extremo-sul baiano, sendo 6.200 (seis mil e duzentos) estudantes da modalidade de

ensino presencial e a 1.875 (mil oitocentos e setenta e cinco) da modalidade de ensino a

4 O PRUNE foi desenvolvido por um período de três anos (2002-2004), em uma parceria entre a Prefeitura Municipal de Itabuna e movimentos sociais dessa cidade, com financiamento da Fundação Ford (Programa Políticas da Cor/ Laboratório de Políticas Públicas/Ministério da Educação) e recursos próprios do governo municipal. O PRODAPE também foi desenvolvido por um período de três anos (2005-2007), ligado à Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Estadual de Santa Cruz, com financiamento do UNIAFRO-MEC e recursos próprios da UESC. Além das ações desenvolvidas diretamente para os estudantes universitários de classes populares, o PRODAPE realizou a Pesquisa de Amostragem Étnico-Racial na UESC, os Fóruns Pró-Lei nº10.639/03 e o projeto Afrodescendência Afirmada; elaborou o Portal Bantu-Iê e ofertou o curso de Especialização Lato Sensu em Educação e Relações Étnico-Raciais.

21

distância. Seu corpo docente é constituído por 730 (setecentos e trinta) professores e conta

com 300 (trezentos) funcionários.5

O sistema de reserva de vagas com recorte racial no processo seletivo para ingresso dos

cursos de graduação da UESC foi aprovado em dezembro de 2006, sendo implantado no

processo seletivo do ano de 2008. A Resolução nº 64/2006 (cf. Anexo I) prevê reserva de

50% das vagas em cada curso para estudantes de escola pública e, dentro deste percentual,

75% para os estudantes auto-declarados negros, sendo que este último percentual foi definido

levando-se em consideração a composição populacional da região sul da Bahia, conforme

dados do IBGE (Censo 2000).

A implantação desse sistema desde 2008, não implica em afirmar, entretanto, que já

exista na UESC uma política de cotas raciais, tendo em vista a quase inexistência de

programas de apoio e de acompanhamento que assegurem/potencializem a permanência

qualitativa do aluno cotista na universidade, tal como prevê a Resolução nº64/2006.6

Simultaneamente aos fatos (ou ausência de) que compõem este cenário, eclodem, no espaço

universitário, tanto os discursos contrários quanto os discursos favoráveis às cotas raciais, os

quais, enquanto materialidade decorrente do gesto interpretativo do sujeito – constituído na e

pela historicidade – traçam os indícios de sua constituição.

Tendo em vista a significativa incidência desses discursos na eficácia ou ineficácia do

processo de implantação da política de cotas raciais, busca-se, por meio da caracterização da

memória e do interdiscurso, delinear a posição discursiva (e, portanto, ideológica) desse

sujeito, o professor universitário ao enunciar o discurso sobre as cotas raciais. Assim, o

objetivo dessa dissertação é analisar de que maneira as filiações históricas constituem este

sujeito professor universitário. Se pensar em discurso é pensar em um movimento de refração

que conjuga deslocamentos de sentidos, interessa saber como se dá o apagamento do processo

de assujeitamento à língua e, simultaneamente, como se dá a ilusão de que os sentidos

atribuídos às cotas raciais sejam únicos e inaugurais.

5 Dados consultados no ano de 2010. 6O artigo 7º dessa Resolução prevê a implantação desses programas, em virtude da aprovação do sistema de cotas raciais. Todavia, existe na UESC, desde 2008.2, uma Assessoria de Assistência Estudantil, vinculada à Reitoria e responsável pelo fornecimento de uma bolsa de permanência durante o período de 04 (quatro) meses no valor de R$ 215,00(duzentos e quinze reais) para estudantes de baixa renda. De acordo com o Edital nº017/2010, que prevê atendimento a 550 estudantes, as inscrições são reservadas àqueles regularmente matriculados nos cursos presenciais de graduação da UESC e que comprovem renda familiar per capita mensal de até 01 (um) salário mínimo vigente no país, não sendo critério de seleção, portanto, a condição de estudante cotista. As dotações de pesquisa específicas para estudantes cotistas provêm do CNPQ, não se constituindo, assim, como uma política institucional.

22

Sendo um tema marcadamente controverso, muito já foi escrito a seu respeito, no

entanto, grande parte das pesquisas publicadas, contrárias ou favoráveis, tem se voltado para

uma análise histórica e/ou sociológica dessa política (CARVALHO, J. 2006; MATTOS,

2003, HOFBAUER, 2006). No plano dos estudos linguísticos, foram realizadas algumas

abordagens sobre os principais argumentos de professores universitários contrários e/ou

favoráveis as cotas raciais, proferidos em mídias, virtuais7 ou não, e na própria Academia

(CARVALHO, P. 2006; GUIMARÃES, 2009; HERINGER, 2001; SANTOS, 2003), mas,

também dentre esses, não há registros conhecidos por essa pesquisadora de trabalhos sobre o

assunto, sob a ótica da Análise de Discurso de linha francesa8.

Entendendo que a memória desse discurso é repleta de sentidos ligados à própria

constituição da ideia de nação e da ideia de universidade brasileira a que se está acostumado a

recorrer e propagar – o Brasil da mestiçagem racial; o lugar do público e do privado na

instância universitária; a noção de mérito individual e coletivo, por exemplo –, justifica-se a

necessidade desse trabalho acadêmico. Para a Academia, tal pesquisa é relevante por permitir

uma necessária apreensão da materialidade discursiva, contribuindo assim, para o

aprofundamento dos estudos já existentes a respeito dos discursos produzidos sobre a

complexidade das relações raciais na Bahia e no Brasil, reflexão pertinente não somente para

a Análise de Discurso, teoria base desse trabalho, como também para as demais áreas do

conhecimento, as quais não podem se eximir de se debruçar sobre questões tão caras à

definição do que seja uma universidade pública.

Acredita-se que uma reflexão discursiva como a que se propõe fazer, coloca em

evidência uma faceta fundamental da política de cotas raciais – o fato de por em xeque as

habituais interpretações sobre raça, etnia, igualdade e desigualdade racial certamente contribui

para um melhor entendimento de algumas das formulações acerca das relações raciais

brasileiras. Essa desestabilização de sentidos naturalizados é tarefa primordial, não só para

militantes e pesquisadores vinculados aos movimentos negros brasileiros, como também para

os estudiosos das ciências humanas, entre as quais, as ciências da linguagem em geral e

demais setores da sociedade.

7 Especialmente editoriais e artigos de opinião publicados em versões on-line de Jornais e Revistas. 8 Em muitos destes trabalhos, o termo “discurso” aparece como sinônimo de argumentos, mas as ocorrências se dão na área de Sociologia, Ciências Políticas, Educação e, especialmente, na área de Linguagens, em Lingüística Textual e Análise de Conteúdo. A autora desse trabalho foi informada da existência de uma dissertação de Mestrado (Unicamp) sobre este tema, cuja teoria-base é a Análise de Discurso de linha francesa. Entretanto, nas fontes consultadas (http://www.capes.gov.br e http://www.iel.unicamp.br/biblioteca/teses.php?item=6), nada foi encontrado a esse respeito.

23

O corpus se constituiu a partir das respostas dadas pelos professores universitários a um

questionário, tendo como questão central: “A UESC adotou a política de cotas com recorte

racial em seu processo seletivo. O que você pensa a este respeito?” e a população que

respondeu ao questionamento é constituída por quarenta e dois professores ligados aos dez

Departamentos de Ensino da UESC. A seleção dos professores a responderem ao questionário

foi natural e se deu mediante o interesse manifestado por eles – após tomarem conhecimento

da pesquisa, via diretor/a de Departamento – ou pelo convite feito por essa pesquisadora.9 A

coleta de dados, realizada a partir do segundo semestre de 2008, foi realizada a partir da

abordagem e entrevista dos professores10, cujas respostas constituíram o material lingüístico

de análise, constituindo um total de 42 (quarenta e duas) respostas à pergunta feita.

Responderam aos questionários escritos, 07 (sete) professores do Departamento de

Ciências Agrárias e Ambientais; 02 (dois) professores do Departamento de Administração e

Ciências Contábeis; 03 (três) professores do Departamento de Ciências Biológicas; 04

(quatro) professores do Departamento de Ciências Econômicas; 03 (três) professores do

Departamento de Ciências Exatas e Tecnológicas; 05 (cinco) professores do Departamento de

Ciências da Educação; 04 (quatro) professores do Departamento de Ciências da Saúde; 03

(três) professores do Departamento de Ciências Jurídicas; 05 (cinco) professores do

Departamento de Filosofia e Ciências Humanas; 04 (quatro) professores do Departamento

Letras e Artes e 02 (dois) que optaram por não se identificar.

Desse corpus se fez um recorte, a fim de selecionar os enunciados mais representativos

das filiações ideológicas, para, em seguida, identificar as marcas léxico-sintáticas que

demonstram como o discurso se textualiza. Após este passo, organizaram-se as famílias

parafrásticas, ou seja, as formulações de sentidos que se repetem sob o signo do ineditismo,

em um processo de dissimulação dos lugares e trajetos de memória que margeiam o discurso

sobre as cotas raciais no Brasil. Posteriormente à análise dessas paráfrases, foi realizada a sua

remissão às formações discursivas e em seguida, a remissão destas, às formações ideológicas

correspondentes, buscando, assim, trazer à tona a posição discursiva deste sujeito, professor

universitário, quando enuncia o discurso sobre as cotas raciais.

Paralelamente, foi feita a análise de alguns textos publicados na segunda metade do

século XIX e primeira metade do século XX, cujos autores – Rui Barbosa, Nina Rodrigues e

9 Inicialmente a proposta era que cinco professores de cada um dos Departamentos de Ensino respondessem à questão sobre as cotas raciais, por intermédio dos/s diretores/as de Departamento, sem que houvesse qualquer forma de contato entre a autora desse trabalho e os indivíduos entrevistados. Contudo, diante da recusa formal de alguns e indiferença ou impossibilidade de outros, se fez necessária a alteração destes critérios. 10 A título de esclarecimento, informa-se que a pesquisa de campo só foi realizada após submissão e emissão do parecer de aprovação do Conselho de Ética da Universidade Estadual de Santa Cruz.

24

Gilberto Freyre – são significativos para a composição do cenário teórico sobre as relações

raciais e sócio-raciais brasileiras. O cotejo entre estes textos e os da contemporaneidade,

produzidos pelos professores universitários, com o intuito de verificar possíveis relações

discursivas existentes entre eles, possibilita o melhor entendimento da constituição dos

sentidos nos dizeres sobre as cotas raciais.

A preferência por esse período, entre 1880 e 1940, justifica-se tendo como marco a

abolição do processo de escravização de negros africanos e afro-brasileiros, ocorrida em

1888. A “mudança do status jurídico do negro” (JACCOUD, 2008, p.52) – de escravizado

para libertado – assinala uma ruptura essencial para os tempos vindouros, pois é a partir daí

que haverá uma produção científica sistematizada a respeito do elemento cor na constituição

populacional e identitária brasileira, o que demonstra a importância de eleger os textos

supracitados como corpus auxiliar dessa dissertação.

Para uma melhor leitura das páginas subsequentes, informa-se que essa dissertação está

dividida em quatro capítulos, sendo que no primeiro capítulo é traçado o percurso histórico de

constituição da Análise de Discurso, teoria base desse trabalho, e é feita a conceituação de

algumas categorias analíticas dessa teoria, as quais foram utilizadas ao longo desse estudo. No

segundo capítulo, por sua vez, são apresentadas as bases epistemológicas do pensamento

racial brasileiro nos séculos XIX e XXI, destacando-se como esses textos são significativos

para se definir o lugar do conceito “raça”, não só nas Ciências Sociais e Humanas, como no

cotidiano brasileiro.

Compreendendo que a exterioridade é um elemento constitutivo do discurso, estando

apenas aparentemente “fora” dele (ORLANDI, 1996 [2007], p.38 et seq.), far-se-á, no terceiro

capítulo, a análise dos discursos presentes nos textos de Rui Barbosa, Nina Rodrigues e

Gilberto Freyre, colocando-se em evidência algumas nuances das relações raciais brasileiras,

como a relação entre o preconceito de cor e a discriminação racial e, por outro lado, entre o

preconceito de cor e a desigualdade racial brasileira.11 Esse destaque de como os aspectos

econômicos e políticos do Brasil República estão relacionados à questão racial desemboca

sobre a presença do simbólico na língua, ou, mais precisamente, sobre como as formações

ideológicas vem atuando na constituição e manipulação dos dizeres acerca da população

negra brasileira, do século XIX aos dias atuais.

11 Mesmo após a abolição, os papéis sociais dos negros continuaram ambiguamente vinculados à ordem racial escravocrata e senhorial (FERNANDES, 2008 [1964]). O capítulo III trará uma discussão mais detalhada sobre a permanência destes padrões sociais/raciais.

25

Por fim, no quarto capítulo é feita a análise do discurso sobre as cotas raciais enunciado

pelo sujeito professor universitário, partindo-se da observação e exame das formulações

lingüístico-discursivas, verificando-se o mesmo e o repetível nestas formulações a compor as

famílias parafrásticas; mas também possíveis pontos de ruptura com as significações

consolidadas, configurando processos de polissemia num movimento indispensável à relação

entre formação discursiva e formação ideológica até chegar ao processo discursivo de

constituição desse sujeito.

26

2 O DISCURSO E AS RELAÇÕES ÉTNICORRACIAIS: OS SEDUTORES

CAMINHOS DOS SENTIDOS.

Os tecnocratas reivindicam o privilégio da

irresponsabilidade: - Somos neutros, dizem.

Eduardo Galeano

2.1TEXTO E DISCURSO, SENTIDO E SUJEITO

Na década de 1960, época de surgimento da Análise de Discurso (daqui em diante AD),

a conjuntura intelectual é caracterizada pelo estruturalismo e a “ciência-piloto” dessa postura

teórica é a Linguística, cujos conceitos são estendidos para os domínios das ciências humanas

e das ciências sociais. A relação estrita entre cultura e linguagem toma o homem como uma

entidade soberana – um “princípio de explicação ou enquanto origem” e a língua como a

expressão fiel de seu “espírito” ou “natureza” (HENRY, 1997).

Os escritos de Michel Pêcheux surgem nesse contexto, em que ainda reina uma

concepção restrita da linguagem como instrumento, capaz de representar, com fidelidade, o

real. É na tentativa de romper com essa concepção que Pêcheux volta-se para as contradições

ideológicas, traçando um elo entre o “sujeito da linguagem” e o “sujeito da ideologia” para

assinalar, teoricamente, o sujeito do discurso (HENRY, 1997). Pêcheux (1997a) parte do

deslocamento fundamental saussuriano: a delimitação da língua como sistema tornou possível

a descrição do seu funcionamento, mas, em contraponto, a questão do sentido textual foi

relegada.

Diante da pouca ênfase teórica dada ao conceito de sentido pelos estudos linguísticos, a

AD dá seus primeiros passos reinterpretando aspectos dos estudos enunciativos, mas também

dos estudos sociológicos, interrogando a Linguística e as Ciências Sociais sobre as

complexidades da relação entre exterioridade e linguagem (ORLANDI, 2003 [1999]), para,

assim, buscar a eminência de “uma teoria do gesto como ato simbólico” (PÊCHEUX, 1997a,

p.78, grifos do autor), teoria esta em que a indissociabilidade da leitura/interpretação de um

texto se configura como uma intervenção do sujeito no mundo (ORLANDI, 2007 [1996],

p.84), um gesto de produção de sentidos, os quais não são nem puramente linguísticos –

restritos ao sistema linguístico –, nem puramente históricos – exclusivamente atribuídos pelo

sujeito ou pela história:

27

[...] enunciaremos a título de proposição geral que os fenômenos linguísticos de

ordem superior à frase podem efetivamente ser concebidos como um funcionamento

mas com a condição de acrescentar imediatamente que este funcionamento não é

integralmente linguístico, no sentido atual desse termo e que não poderemos defini-lo senão em referência ao mecanismo de colocação dos protagonistas e do objeto do discurso, mecanismo que chamaremos “condições de produção” do discurso. (PÊCHEUX, 1997a, p.78, grifos do autor)

Em vários momentos, Pêcheux reafirma a importância definitiva que a semântica terá

para a AD, destacando a centralidade da articulação entre língua e história. Esta escolha

coloca de lado a interpretação do texto com o intuito de descobrir certo sentido oculto sob as

palavras – o que autorizaria a classificação de textos como interpretáveis ou não-

interpretáveis –, bem como o tentador desejo de conceber uma homogeneidade discursiva –

espaço de não-contradição em que se daria a “domesticação” dos sentidos (PÊCHEUX,

1997c).

O reconhecimento da heterogeneidade discursiva está relacionado à opção peuchetiana

em considerar o discurso como o lugar da manifestação ideológica na língua. Ora, se no real

da língua está o equívoco – aqui entendido não como desvio de seu trajeto primeiro, mas

como o próprio lugar em que a contradição apresenta os seus nuances, ou seja, o lugar em que

o linguístico e o histórico se articulam (GADET; PÊCHEUX, 2004) –, é injustificável uma

análise linguística não imanente que despreze este traço constitutivo da língua, ou, por melhor

dizer, que ignore a indissociabilidade entre a produção do discurso, enquanto efeito de

sentidos, e o deslocamento, necessariamente oblíquo, do enunciado em um espaço discursivo

heterogêneo:

E é nesse ponto que se encontra a questão das disciplinas de interpretação: é porque há o outro nas sociedades e na história, correspondente a esse outro próprio ao linguageiro discursivo, que aí pode haver ligação, identificação ou transferência, isto é, existência de uma relação abrindo a possibilidade de interpretar. E é porque há essa ligação que as filiações históricas podem-se organizar em memórias, e as relações sociais em redes de significantes (PÊCHEUX, 1988 [2006], p.54, grifo do autor).

Lidar com este outro implica em reconhecer a AD como uma disciplina que, ao

assinalar os “pontos de deriva” possíveis, efetua um gesto interpretativo, pois provoca

intervenções no e pelo ato simbólico de constituição dos sentidos (ORLANDI, 2007, [1996]).

Esta especificidade conduz a um nível importante deste debate: não tendo as palavras sentido

em si, também não é possível indicar a origem de um enunciado e/ou associá-lo a somente

uma formação discursiva ou única formação ideológica, visto que estes deslizamentos e

transferências são constitutivos do seu sentido.

28

A tarefa de compreender os mecanismos de textualização do discurso (ORLANDI,

2001b), ou ainda, de descrever as montagens discursivas e interpretar os gestos de

interpretação que instituem o discurso (PÊCHEUX, 1988 [2006]), é certamente um desafio,

quando no centro do debate está a conceituação (sempre polêmica) de texto. Na AD, o texto é

tomado como uma unidade de análise em relação à unidade teórica que é o discurso, o que lhe

confere não uma autonomia, enquanto suposto receptáculo de conteúdos, mas sim uma

singularidade, enquanto materialidade linguístico-histórica (ORLANDI, 2001b, p.73 et seq.).

Destarte, longe de desejar construir odes aos “anseios” revolucionários da AD ou de incorrer

no erro de elegê-la como única forma possível de leitura interpretativa, se tenciona, ao

reconhecer o discurso como efeito de sentidos que se materializa na estruturação do texto

(ORLANDI, 2003, [1999]), refletir de qual(ais) forma(s) se desenvolve, no texto, a

discursividade.

Enquanto prática de leitura interpretativa, a AD volta o seu olhar para os efeitos de

historicidade na língua – que constituem o cerne da discursividade – e, por extensão, para a

sintaxe da língua, dado que a materialidade léxico-sintática assinala, na linguagem, a

articulação da língua e do discurso (HENRY, 1992). Tendo em vista este princípio,

compreende-se como necessário apontar a simultaneidade entre as relações língua-história e

texto-discurso.

Como a constituição do discurso se dá a partir do encontro da Linguística com a

Ideologia, sua formulação irrompe na sintaxe textual, é na gramática que o sujeito se

determina, se individualiza, como pontua Haroche (1992). Nesta perspectiva, pensar o texto é

pensá-lo como formulação que se apresenta pretensamente unificado diante da exterioridade,

o que torna opacos os gestos de interpretação que mobilizam e produzem a evidência de

sentidos e sujeitos. O objetivo do analista de discurso é considerar o texto como indício da

materialidade do discurso. A respeito desta organização, Orlandi (2001b, p.94) comenta:

Como os significantes não estão soltos, eles se realizam na historicidade e se espacializam na medida em que se coloca o discurso em texto. O texto, por sua vez, diz o jogo das diferentes formações discursivas em suas delimitações recíprocas: a textualização do discurso se faz com falhas, ou seja, o discurso pode se representar em diferentes versões, distintas formulações que se textualizam.

Destacando o fato de que texto e discurso são instâncias distintas de análise, a autora

faz referência à dupla condição de unidade e variança, que define os embates mediados pela

interpretação, entre os eixos da constituição e formulação discursiva. Assim, o analista volta-

se não para o texto, mas para a sua condição de textualidade, ou, em outras palavras, para

29

como o discurso se textualiza (ORLANDI, 2001b, p.73 et. seq.). No que tange à materialidade

lingüístico-histórica, interessa perceber como a iminente possibilidade de falha e deslize,

traço irrecorrível da língua, irrompe nos aspectos sintáticos do texto, conforme ressalta

Pêcheux (1998a, p.28):

Nesta perspectiva, a sintaxe seria, ao contrário, o que toca de mais perto no próprio da língua enquanto ordem simbólica, com a condição de dissimetrizar o corpo de regras sintáticas, construindo aí os efeitos discursivos que o atravessam, os jogos internos destes ‘espelhamentos’ léxico-sintáticos através dos quais toda construção sintática é capaz se deixar aparecer outra, no momento em que uma palavra desliza sobre outra palavra.

Essas reflexões convidam o analista de discurso a perceber as diferentes tomadas de

posição do sujeito leitor ou do sujeito discursivo como gestos de interpretação que assinalam

a inscrição de um Outro, que permeia o aporte teórico e analítico da AD – seja na ideia do

interdiscurso; seja nas diferentes posições-sujeito; seja na complexidade das formações

discursivas que se opõem e se entrecruzam:

A Análise de Discurso não pretende instituir-se especialista da interpretação, dominando "o" sentido dos textos, mas somente construir procedimentos que exponham o olhar-leitor a níveis opacos à ação estratégica de um sujeito (tais como a relação discursiva entre sintaxe e léxico no regime dos enunciados, com o efeito de interdiscurso induzido nesse regime, sob a forma do não-dito que aí emerge, como discurso outro, discurso de um outro ou discurso do Outro).(PÊCHEUX, 1998b, p.53)

Dessa maneira, no que diz respeito aos sentidos, essa relação entre o mesmo e o outro é

realmente o fio condutor dos trabalhos que investigam a materialidade discursiva. Em termos

de história da AD, Pêcheux (1997b) define três momentos12. Sobre a AD-1, o autor alerta para

o equívoco estrutural de tratar o processo discursivo como uma “máquina do assujeitamento”,

em que se identificam etapas fixas de análise e as formações discursivas como blocos

unitários. Sobre a AD-2, Pêcheux, embora reconheça que o sujeito do discurso continua a ser

um “puro efeito de assujeitamento” (1997a, p.314), destaca como a exterioridade constitutiva

das formações discursivas é trazida à cena e coloca em xeque a unidade do conceito de

formação discursiva. Por fim, ao falar do momento em que está vivendo, a AD-3, Pêcheux

(1997a, p.315, grifos do autor) enfatiza “o primado teórico do outro sobre o mesmo”,

explicando a importância da heterogeneidade enunciativa para a (des) construção teórico-

analítica da AD, em especial sobre a noção de sujeito.

12 O critério utilizado por Pêcheux para definição dessas etapas corresponde à publicação de textos (teóricos e/ou teórico-analíticos) referentes às ideias predominantes de cada período.

30

2.2 CATEGORIAS DE ANÁLISE

Tendo delineado o objeto de estudo da AD como a materialidade discursiva – lugar em

que língua e história necessariamente se articulam – dispõe-se de terreno oportuno para que

sejam apresentadas algumas noções conceituais pertinentes para essa análise, pautada no

princípio de que o discurso é efeito de sentidos, produzidos mediante o duplo movimento,

tanto de inscrições, quanto de deslocamentos em referências sócio-históricas (PÊCHEUX,

2006 [1988]).

O discurso, para a AD, não pode ser pensado como sinônimo de fala – uma expressão

da intencionalidade do indivíduo falante, tampouco como um “suplemento social do

enunciado” – expressão de uma coletividade específica (PÊCHEUX, 1997a, p.178-179). O

discurso, enquanto lugar de materialização das posições possíveis de serem ocupadas pelo

sujeito discursivo, deve ser pensado em relação ao conceito de sujeito, o qual é

ideologicamente constituído no plano discursivo. A premissa de que o discurso mobiliza e é

efeito dos sentidos interpretados pelos sujeitos (ORLANDI, 2003 [1999]) tem como

pressuposto o fato de que a AD efetua uma distinção entre o indivíduo – que é interpelado

ideologicamente – e o sujeito, que atribui sentidos às posições discursivas no interior das

formações discursivas:

O sujeito se submete à lingua(gem) – mergulhado em sua experiência de mundo e determinado pela injunção a dar sentido, a significar(se) – em um gesto, um movimento sócio-historicamente situado em que se reflete sua interpelação pela ideologia. Como sabemos, a formação discursiva – lugar provisório da metáfora – representa o lugar de constituição do sujeito e de identificação do sujeito. Nela o sujeito adquire identidade e o sentido adquire unidade, especificidade, limites que o configuram e o distinguem de outros, para fora, relacionando-o a outros para dentro. Essa articulação entre um fora e um dentro são efeitos do próprio processo de interpelação. (ORLANDI, 2001b, p.103).

A respeito da enunciação e da estabilização – ainda que provisória – do sujeito,

Pêcheux (1997c) atenta para duas formas de esquecimento que atravessam a forma-sujeito,

constituindo-a como tal. Denominando esses processos como “ilusões do sujeito”, ele destaca

o “teatro da consciência” do qual os indivíduos fazem parte: chamado a ser sujeito do

discurso, o indivíduo tem na consciência o centro unificador de suas representações

subjetivas, condição que o faz crer, por um lado, no ineditismo/originalidade do que é dito

(esquecimento nº 01) e, por outro lado, que o que é dito só pode sê-lo daquela forma

(esquecimento n º 02).

31

O “recalque inconsciente” que caracteriza o esquecimento nº 01 – o sujeito nega a pré-

existência de outras redes discursivas, pensando a si como fonte original do seu dizer –

materializa-se na dinâmica de funcionamento do esquecimento nº 02 – é pela negação ao que

já foi dito, ao pré-construído, que se firma o retorno ao mesmo-diferente de um enunciado ou

seqüência (PÊCHEUX, 1997c)13. É essa recorrente indução à interpretação que torna

impossível tomar o fato linguístico como lugar da certeza consciente do que, enquanto

sujeitos, se quer ou se deva dizer (PÊCHEUX,1988 [2006]).

Não sendo possível assimilar a matéria-prima do processo discursivo, mas sim, os

intervalos entre os processos de filiação e os processos de deslizamento sócio-históricos, nas

quais é atualizado e formulado o conjunto de enunciados disponíveis sobre cada tema,

conceituam-se as formações ideológicas (daqui em diante FI), enquanto práticas materiais que

apresentam à posição sujeito uma determinada memória, rede de sentidos cristalizados, mas

aparentemente inéditos, com as quais ele se identifica, inscrevendo-se em uma ou outra

formação discursiva (daqui em diante FD), que, conforme sua filiação ideológica traz as

possibilidades de representação dos lugares e funções sociais.

A esse respeito, Pêcheux (1997a) traz definições esclarecedoras:

Falaremos de formação ideológica para caracterizar um elemento (este aspecto da luta nos aparelhos) suscetível de intervir como uma força em confronto com outras forças na conjuntura ideológica característica de uma formação social em dado momento; desse modo, cada formação ideológica constitui um conjunto complexo de atitudes e representações que não são nem ‘individuais’ nem ‘universais’ mas se relacionam mais ou menos diretamente a posições de classes em conflito umas com as outras. (PÊCHEUX, 1997a, p.166, grifos do autor)

... a espécie discursiva pertence, assim pensamos, ao gênero ideológico, o que é o mesmo que dizer que as formações ideológicas [...] “comportam necessariamente, como um de seus componentes, uma ou várias formações discursivas interligadas que determinam o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma harenga, um sermão, um panfleto, uma exposição, um programa etc.) a partir de uma posição dada numa conjuntura”, isto é, numa certa relação de lugares no interior de um aparelho ideológico, e inscrita numa relação de classes.(PÊCHEUX, 1997a, p.166-167, grifos do autor)

Dessa forma, a ideologia, como função necessária da relação do homem com o mundo,

é comum a todos os discursos, e não somente ao discurso de esquerda ou de direita, do

movimento social ou de uma determinada elite. Trazendo as marcas do real, a ideologia alude

às posições do sujeito nas suas relações de classe, fazendo referência aos fatos sociais

13 Pêcheux (2006 [1988], p.44) também diz que “o princípio de leituras [como a da AD] consiste [...] em multiplicar as relações entre o que é dito aqui (em tal lugar), e dito assim e não de outro jeito, com o que é dito em outro lugar e de outro modo, a fim de se colocar em posição de ‘entender’ a presença de não-ditos no interior do que é dito.”

32

ocorridos nos planos econômico, social e político, mas também (re) criando, no campo do

imaginário, explicações naturalizadas para essas questões, ofuscando outras explicações

possíveis. Daí advém a articulação entre língua e ideologia, pois é no espaço simbólico da

linguagem que a ideologia se evidencia, materializando-se na expressão discursiva

(MALDIDIER; NORMAND & ROBIN,1997).

A evidência dos processos ideológicos como origem dos processos discursivos indica

que a contradição – o traço ideológico por excelência – além de margear a FD, lhe é

constitutiva. Esta nuance garante que uma FD seja vista não apenas como um conjunto de

enunciados possíveis, mas também como as rupturas a essa teia de regularidades,

constituindo-se, assim, como um complexo sistema de estáveis dispersões. A seleção de um

ou de outro sentido será de responsabilidade do sujeito, mas mediada pela ideologia,

conforme destaca Indursky (2009, p.2-3):

Dessa forma, não se trata mais de buscar o sentido em uma matriz de sentido inscrita no interior de uma FD, mas, sobretudo, de constatar que os sentidos, pelo trabalho que se instaura sobre a Forma-Sujeito, podem atravessar as fronteiras de uma FD e migrar para outra FD, inscrevendo-se em outra matriz de sentido e, nesse caso, passam a ser determinados por outras relações com a ideologia. Percebe-se, pois, que o fechamento das FDs não é rígido. Ao contrário. As paredes das FDs são porosas, o que permite sua permanente reconfiguração em função da conjuntura sob a qual elas funcionam.

Para demonstrar como a unidade das FDs é apenas aparente, Indursky (2009) faz

intervir o conceito de interdiscurso tal como foi designado por Pêcheux (1997c): um

complexo interligado de formações discursivas sendo que uma dessas, em virtude do trabalho

ideológico de produção de sentidos, ocupa o lugar de dominância. O fato de haver uma única

FD dominante não extingue a existência das outras, muito pelo contrário, indica a existência

de saberes que foram selecionados e de outros que foram recusados para que seja constituído

o regime de saber de determinada FD. A forma-sujeito, responsável por organizar os saberes

de uma FD, é que vai cingir a relação entre a noção de interdiscurso e a noção de FD, na

medida em que seleciona dentre os saberes disponíveis no interdiscurso, aqueles que vão

constituir um discurso específico. Essa é a base do processo de constituição do sujeito, tal

como fala Pêcheux (1997c, p.163, grifos do autor):

A interpelação do indivíduo em sujeito de seu discurso se efetua pela identificação (do sujeito) com a formação discursiva que o domina (isto é, na qual ele é constituído como sujeito): essa identificação, fundadora da unidade (imaginária) do sujeito, apóia-se no fato de que os elementos do interdiscurso [...] que constituem, no discurso do sujeito, os traços daquilo que o determina, são re-inscritos no discurso do próprio sujeito.

33

Dessa maneira, vê-se que a produção ideológica de sujeitos, tal como as fronteiras da

FD, é marcada por fendas e contornos instáveis, não se dando em espaços contínuos, mas em

espaços de clivagens que fornecem os indícios de legibilidade do discurso, sendo que o

sujeito recorre a esta aparentemente inédita rede de significações que compõem o

interdiscurso para, assim, enunciar novos-velhos discursos, atualizando os processos

discursivos já desenvolvidos (ORLANDI, 2003 [1999]).

A título de exemplo, cita-se o discurso sobre as questões raciais no Brasil no século

XIX. Os sentidos já existentes a respeito desse tema não estão presos a uma única FD: eles se

movimentam para todos os lados, sendo mobilizados pelo sujeito da FD Escravagista ou pelo

sujeito da FD Abolicionista; os sentidos da FD Escravagista podem ser retomados na FD

Abolicionista e vice-versa. Esse jogo se desenrola no palco da história: uma análise mais

apurada desses processos discursivos certamente demonstrará que a FD dos movimentos

sociais negros, já no século XIX, também retoma esses sentidos. Esse encontro entre memória

e atualidade é um eixo fundamental à AD:

A memória discursiva seria aquilo que face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem estabelecer os “implícitos” (quer dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos transversos, etc.) de que sua leitura necessita: a condição do legível em relação ao próprio legível. (PÊCHEUX, 1999, p.52)

A memória aqui não traz contornos psicologizantes ou individualistas, referindo-se aos

traços de historicidade no discurso. Com efeito, a interpretação (e inscrição) da (na) memória

discursiva aponta para a formulação de paráfrases e polissemias, que desmontam, assim, as

tentativas de banir, do discurso, a possibilidade do equívoco. Ao buscar a investigação desta

“materialidade da língua na discursividade do arquivo” (PÊCHEUX, 1997b, p.63, grifos do

autor), há de se notar que a análise do texto não encerra a prática da análise de discurso, sendo

necessário estabelecer a relação entre os elementos linguísticos e aquilo que é exterior à

língua, ou seja, o reconhecimento das condições de produção do discurso, que afetam,

diretamente, a produção dos sentidos (COURTINE, 2006). A respeito dessa equação forma-

sentido e sua imbricação com a análise do texto e do discurso, MARANDIN (1997, p.123,

grifos do autor) destaca:

Fica imediatamente ‘evidente’ que ‘o que reúne os substituíveis’ não está necessariamente presente no texto submetido à análise; é preciso, pois, ultrapassar as fronteiras do texto. Esta é a origem de um tema fundamental da AD: a presença dentro de uma seqüência discursiva de outras seqüências discursivas. É a base da

34

distinção entre interdiscurso e intradiscurso e a origem da tese segundo a qual o intradiscurso só se constitui pelo interdiscurso que o atravessa [...].

Entendendo o texto enquanto objeto linguístico-histórico não é difícil compreender

como, analisando a sua materialidade, pode-se ter acesso à heterogeneidade discursiva. Se o

interdiscurso – “memória do dizer” – corresponde ao nível da constituição do discurso e, por

sua vez, o intradiscurso – atualização desta memória em condições de produção específicas –

corresponde ao nível da formulação do discurso, pode-se afirmar que os gestos de

interpretação intervêm no real da história – já constituído – para que se dê, no texto, a

formulação discursiva, aparentemente homogênea (ORLANDI, 2001b, p. 9 et. seq.).

A definição de intradiscurso como “o funcionamento do discurso em relação a si

mesmo” (PÊCHEUX, 1997c, p.166) indica que se o interdiscurso está no âmbito do repetível,

o intradiscurso ecoa de forma simulada esse repetível, regionalizando saberes e especificando

a FD (INDURSKY, 2009). Pêcheux (1997c) identifica o intradiscurso como um discurso-

transverso, associando-o aos processos metonímicos, em que se recorta um aspecto específico

de um todo para que esse recorte apareça como o todo14. Nesse jogo de disfarces e remissões

é construída, no nível intradiscursivo, a ilusão de que os sentidos são estáveis dentro de uma

FD.

Considerando que é na FD que a forma-sujeito – o sujeito histórico – se define, é

preciso pensar na heterogeneidade não só da FD, mas também da forma-sujeito. Indursky

(2007) retoma Courtine (1981)15, para explicar como a noção de sujeito de uma FD reúne um

conjunto de diferentes posições de sujeito em relação à forma-sujeito dessa FD. Essa

possibilidade de posições-sujeito distintas e até contraditórias dentro de uma mesma FD

também é abordada por Grigoletto (2007, p.129):

[...] O sujeito do discurso, ao se inscrever em um determinado lugar discursivo, vai se relacionar tanto com a forma-sujeito histórica e os saberes que ela abriga quanto com a posição-sujeito. Assim, a relação do sujeito enunciador com o sujeito do saber e, consequentemente, com a posição-sujeito é deslocada para as relações de identificação/determinação do lugar discursivo tanto com a forma-sujeito histórica (ordem da constituição/do interdiscurso), quanto com a posição-sujeito (ordem da formulação/do intradiscurso).

14 Esse ponto interessa sobremaneira ao desenvolvimento dessa dissertação, afinal, um dos objetivos desse trabalho foi analisar de que forma saberes sobre as questões étnicorraciais brasileiras que circulavam entre os anos 1890 e 1930 podem ter sido atualizados, aparecendo como um recorte transversal no discurso sobre as cotas raciais enunciado na atualidade. 15 COURTINE, J-J. Analyse du discours politique. Language, Paris, n.62, 1981 (apud Indursky, 2007).

35

Como se vê, é nítida a relação entre, por um lado, as formas de circulação, constituição

e formulação dos saberes e, por outro lado, as formas de inscrição da forma-sujeito e das

posições-sujeitos possíveis em FDs. A esse respeito, Indursky (2007) enfatiza o ponto em que

“o ritual se estilhaça no lapso” (PÊCHEUX, 1997c, p.301) 16, para salientar a não

correspondência idealista de significações. Assim, a autora chama a atenção para a

simultaneidade característica do ato ideológico, que pode produzir não somente o “sempre

mais do mesmo” – a evidência disfarçada da saturação de sentidos –, como também o

equívoco – quando novos saberes intervêm na aparente ordem de uma FD, transformando-a e

reconfigurando-a.

De acordo com a autora, essa intervenção de novos saberes pode tanto fragmentar a

forma-sujeito dominante de uma FD, quanto instaurar diferentes posições-sujeito dentro de

uma mesma FD, mantendo-se, ressalte-se, a forma-sujeito dominante. A “falha no ritual”

ocorre exatamente quando um acontecimento enunciativo irrompe na cena discursiva. O

conceito de acontecimento enunciativo, introduzido por Indursky (apud CAZARIN, 2010,

p.17), diz respeito a um acontecimento histórico que provoca rupturas no interior da FD,

gerando novas maneiras de lidar com a forma-sujeito da FD, materializadas por distintas

posições-sujeito. A título de esclarecimento, é importante retomar a noção de acontecimento

histórico e do acontecimento discursivo. Cazarin (2010), a partir de escritos de Le Goff17 e

Pechêux18, identifica o acontecimento histórico como uma ocorrência na instância da

realidade que provoca múltiplas discursividades e o acontecimento discursivo como o

processo pelo qual o acontecimento histórico provoca uma ruptura discursiva que instaura

uma nova FD.

A relevância dos tipos de acontecimentos para a Análise de Discurso está vinculada à

noção de condições de produção do discurso – a relação do sujeito com a historicidade, em

termos sociais e políticos (ORLANDI, 2007 [1996]). Em Análise Automática do Discurso, de

1969, Pêcheux pensava as condições de produção de maneira quase que psicologizante, visto

que a sua associação com as formações imaginárias (que imagem o sujeito tem do que fala;

que imagem o sujeito tem do sujeito com que fala; que imagem o sujeito com que se fala tem

do sujeito que fala etc.) poderiam autorizar uma visão interpessoal dessa categoria.

16 “Só há causa daquilo que falha ou o inverno político francês: início de uma retificação” é um texto de 1979, posteriormente publicado em anexo à Semântica e Discurso, cuja primeira edição data de 1975. 17 LE GOFF, Jacques. História e memória. Tradução Bernardo Leitão. et.al. 4. ed. Campinas, SP: Ed. da UNICAMP, 1996. p. 11. 18 PÊCHEUX, Michel. O discurso: estrutura ou acontecimento? Tradução de Eni Pulcinelli Orlandi. Campinas, SP: Pontes, 1990.

36

Afirmando a necessidade de que a AD seja uma teoria não subjetivista da linguagem,

Pêcheux (1997a, p.182, grifos do autor) revê esse conceito, definindo as condições de

produção de um discurso sob o signo da ambiguidade: “seja as determinações que

caracterizam um processo discursivo, seja as características múltiplas de uma ‘situação

concreta’ que conduz à ‘produção’, no sentido linguístico ou psicolinguístico do termo, da

superfície lingüística de um discurso empírico concreto.” Interrogar o que produz um discurso

é, dessa forma, debruçar-se tanto sobre o contexto amplo que regula os processos de

deslizamento de sentidos no interior das FDs ou entre elas, quanto debruçar-se sobre o

processo de interpelação ideológica do indivíduo em sujeito do discurso.

A caracterização do sujeito – enquanto representações de posições ideológicas

historicamente constituídas – e da situação – enquanto “as relações entre o que [o enunciador]

diz e o que já foi dito da mesma posição, considerando, eventualmente, ou em geral, que ela

se opõe a uma que lhe seja contrária.” POSSENTI (2007, p.368) – torna possível atentar para

as estratégias diversas que buscam, ao ocultar os traços de historicidade do/no discurso,

instaurar uma suposta novidade em meio a um emaranhado discursivo eminentemente não

original. Uma reflexão como essa há de evidenciar, portanto, a contradição característica do

sujeito que se pensa livre para “escolher/dizer” o que lhe interessa, mas que ao mesmo tempo,

é limitado pelas condições de produção do discurso.

2.3 O QUE UMA TEORIA DO DISCURSO TEM A DIZER SOBRE AS FALAS EM

TORNO ÀS COTAS RACIAIS?

A observação deste “trabalho do sentido sobre o sentido, tomados no relançar

indefinido das interpretações.” PÊCHEUX (2006 [1988], p.51) é oportuna quando se analisa a

história das formulações discursivas acerca das cotas raciais no Brasil, afinal estas

formulações estão inscritas em redes de memória que não significam da mesma forma para

todos os sujeitos. Se analisar o discurso traz em si a observância da exterioridade que lhe é

constitutiva, é possível assinalar os processos discursivos que se desenvolvem em torno da

política de cotas raciais como lugares privilegiados para os variados debates em torno das

relações raciais brasileiras, na medida em que trazem incessantemente, sob a ilusão da

unidade textual, as contradições ideológicas presentes na sociedade.

Termos como racismo e anti-racismo têm circulado em diversos espaços, públicos e

privados, mas esta incidência tem se intensificado na última década, visto que a implantação

37

da política de cotas com recorte racial no processo seletivo de diversas universidades tem

cumprido o papel de atualizar, discursivamente, a memória já cristalizada e mesmo opacizada

sobre negros/as e não-negros/as brasileiros/as.19 As distintas possibilidades de interpretação

de fatos e textos referentes a esse tema tornam o discurso sobre as cotas raciais um terreno

fértil para esta dissertação, que buscou apreender o “equívoco da língua” (PÊCHEUX, 2006

[1988]): ao descrever a materialidade discursiva se desejou identificar os momentos de

interpretação que fazem com que o sentido sobre cotas raciais não seja sempre igual e, que, ao

mesmo tempo, não seja sempre novo.

Assim, a legibilidade de um texto depende das possibilidades de interpretação

aplicáveis a ele. A qualificação da política de cotas – como um sistema que despreza a

competência individual do candidato ou como um sistema que garante a democratização do

acesso ao ensino superior, por exemplo,20 – depende, por conseguinte, do quadro

interpretativo de cada sujeito, que enuncia seu discurso de acordo com a FD em que se

inscreve.

Nesse trajeto, o discurso não se dá em um espaço homogêneo e linear. A

heterogeneidade, tanto nas condições imediatas de produção do enunciado, quanto no

contexto sócio-histórico amplo, é o que caracteriza a materialidade discursiva. O discurso

contra as cotas raciais não se inscreve em uma única FD que, por sua vez, é remissível a uma

única FI. Sua constituição é permeada por um denso interdiscurso, que compreende, dentre

outros, sentidos cristalizados sobre raça, etnia, políticas públicas particularistas, universidades

públicas etc.

Levando-se em consideração esse tema comum, são produzidos efeitos de sentidos

diversos e distintos, a depender da(s) formação(ões) ideológica(s) em que este discurso se

inscreve. Sabendo que estas associações de sentido não são imprevistas e/ou arbitrárias, para

caracterizar a posição sujeito do professor da UESC foi feita a investigação dos

esquecimentos estruturantes, repletos de significações, que compõem a memória desses

discursos, tanto os contrários quanto os favoráveis às cotas raciais.

19 Esta pesquisadora tem conhecimento da diversidade de terminologias adotadas para classificar racialmente a população brasileira, mas este não é o objeto de análise, por isso furta-se de apresentar uma revisão de literatura a este respeito. Tendo em vista a complexidade dos critérios de auto-denominação e hetero-denominação, optou-se por utilizar, quando for necessário efetuar este destaque, os termos negro e não-negro. 20 Os dois enunciados que ilustram as diferentes possibilidades de interpretação como tomadas de posição foram retirados de respostas concedidas pelos professores entrevistados por essa pesquisadora, durante a coleta de dados.

38

A implantação das cotas na UESC no ano de 200821 recuperou a rede de discursos sobre

as relações raciais na sociedade brasileira e, ainda, o acontecimento histórico da implantação

do sistema de cotas raciais nas demais universidades, visto que desde 2002, quando a

UERJ/UENF e a UNEB adotaram esse sistema, os discursos contrários e os discursos

favoráveis às cotas raciais passaram a circular tanto no espaço universitário, quanto em outras

esferas, como a mídia e a escola. Sobre essa rede discursiva que tem como referente as

relações raciais brasileiras também incidem outros acontecimentos, como a experiência de

outros países com políticas afirmativas e as práticas dos movimentos internacionais de

afirmação da negritude.

No que tange às pressões do movimento negro local e demais movimentos sociais

regionais, estas se deram também a partir de 2002, com a articulação de entidades e

movimentos sociais desencadeada, entre outros motivos, pela existência do Pré-Universitário

para Negros e Excluídos (PRUNE), em Itabuna (BA), cuja atuação provocou reflexões sobre a

necessidade de implantação da política de cotas raciais no processo seletivo da UESC. Dessa

forma, como as escritas dos sujeitos se deram entre o segundo semestre de 2008 e o primeiro

semestre de 2009 – no período ainda inicial de implantação do sistema de cotas raciais no

processo seletivo da UESC – o contexto imediato de enunciação desses discursos é

atravessado por uma rede discursiva que traz esses sentidos preexistentes.

Quanto ao contexto amplo, que reúne fatos e acontecimentos sócio-históricos, observa-

se que, embora a UESC atenda ao número expressivo de mais de 8.000 (oito mil) estudantes,

seguramente não é exagero a afirmação de que o acesso e a permanência nessa universidade

ainda não são efetivamente democratizados, visto que os descendentes diretos dos

trabalhadores rurais regionais continuam, via de regra, em subempregos e com poucos anos de

escolarização, enquanto os herdeiros dos “coronéis do cacau”, mesmo sem dispor de tantos

bens econômicos como seus pais, apresentam uma gama de capital cultural que potencializa,

de forma definidora, a sua inserção no ensino superior (GALDINO; PEREIRA, 2004).

Ainda no que diz respeito às condições de produção em sentido amplo, Fiamengue

(2007) analisa como a composição racial dos cursos de licenciatura e bacharelado da UESC

indica uma segregação dos espaços: os cursos de maior prestígio social (com maior índice de

concorrência e maior escolaridade dos pais) têm a maioria de suas vagas ocupadas por alunos

auto-intitulados brancos, o inverso ocorrendo em relação aos cursos de menor prestígio social.

21 Destaque-se que a aprovação da política de cotas raciais na UESC se deu em dezembro de 2006 e que durante todo o ano de 2007 não foi construída na universidade nenhuma forma material de viabilizar essa política de ação afirmativa, o que não impede, entretanto, de que no plano simbólico, sentidos tenham sido formulados e circulados durante esse período.

39

Essa definição dos lugares sociais possíveis para brancos/as e permitidos para negros/as

constitui um interdiscurso com memórias de violência e desigualdade racial, mas também de

mobilizações populares, trajetórias de dominação e resistência que incidem sobre as respostas

dadas pelos professores universitários, sujeitos desse estudo.

Além destes fatos, avalia-se que, mesmo que a abordagem dos professores entrevistados

tenha se dado sem que fosse critério de escolha a sua vinculação a quaisquer debates

oficializados a este respeito, há de ser considerado o fato de que hoje, quando se discute o

sistema de cotas raciais, são utilizadas imagens discursivas definidoras do ideal de

universidade e do ideal de justiça, indícios da interdiscursividade que constitui o discurso

sobre as cotas raciais, como pode se verificar na análise dos discursos sobre as cotas raciais

enunciados por estudantes universitários (PEREIRA, 2007).

Pereira (2007) caracteriza22 a formação discursiva contrária e a formação discursiva

favorável às cotas raciais, nas quais estão inscritos os seguintes discursos: da mestiçagem; do

mérito acadêmico; da defesa da escola pública e/ou da responsabilização do poder estatal e da

desigualdade/exclusão social. Conforme a posição discursiva do sujeito estudante

universitário foram identificadas as imagens que ele tem da instituição universitária e da

composição racial brasileira. Assim, compreendendo como ele interpreta os sentidos dessas

formulações, nota-se que em torno desses discursos forma-se uma cadeia de filiações que

versam sobre um tipo de poder – os que podem e os que não podem ter acesso ao ensino

superior.

No que diz respeito à universidade, a seara cumprida por esses discursos conduz a

significação para uma lógica que associa, no mesmo campo, universidade e mérito,

delimitando assim, o espaço simbólico da universidade pública brasileira, à qual só poderia

ter acesso aqueles que apresentassem competência para tal. A afirmação dessa aptidão se dá

quando o sujeito indica que há determinados pré-requisitos para o ingresso no ensino

superior, condição trazida ao lado de um tangenciamento sobre os mecanismos que legislam e

legitimam esse mérito, afinal, se dentro da universidade estão os “com-mérito”, o lugar de

fora está naturalmente reservado para os “sem-mérito” (PEREIRA, 2007).

Quanto à composição racial, a memória discursiva agenciada assinala o lugar do não

racismo na sociedade brasileira, enfocando o teor da discussão nas questões sociais em lugar

22 Enquanto analista de discurso não tenho a pretensão de apresentar uma análise neutra, ou ainda, de me situar fora da historicidade que constitui o discurso. Tenho consciência de que a interpretação também me afeta e de que o próprio olhar de analista indica uma posição e não outra. Reconheço, assim, que a posição sujeito analista implica em assumir riscos, tendo em vista que “O trabalho do analista é, em grande medida, situar (compreender) – não refletir – o gesto de interpretação do sujeito e expor seus efeitos de sentido”(ORLANDI,2007 [1996], p.83).

40

das questões raciais, particularidade que traz relação com o discurso da ideologia do

branqueamento, vértice das formações imaginárias que definem a ideia sobre o negro no

Brasil. A matriz argumentativa recai sobre a desigualdade/exclusão social, que existe como

realidade a ser combatida sem que, contudo, se faça referência às desigualdades e exclusões

raciais, especialmente no que diz respeito ao acesso à universidade.23 Este sujeito defende o

discurso da mestiçagem racial brasileira, objeto simbólico que oculta, com eficácia, as

estratégias que caracterizam os processos de afirmação identitária e disputa de poder entre

negros e brancos no Brasil, conforme lembra Munanga (2004).

Essas reflexões permitem observar que entre a afirmação de um sentido e outro há um

acervo linguístico, o qual, enquanto memória discursiva é requerido pelos sujeitos do discurso

e significa conforme a sua distinta inserção nas formações discursivas e formações

ideológicas. Diante desse movimento, caracterizado pela ambivalência da paráfrase e da

polissemia, verifica-se que, embora dissertem sobre o mesmo tema, há divergências

argumentativas, concernentes à FI em que cada discurso se inscreve.

A ideia de igualdade, trazida como pano de fundo desses discursos, não significa da

mesma forma, ora expressando a noção de igualdade formal – em que todos são iguais perante

a lei e, por esse motivo, também devem ser tratados sem quaisquer distinções –, ora a de

igualdade material – em que não há uma unidade, mas uma diversidade que exige tratamentos

desiguais para que se efetive a igualdade. Assim, falar de exclusividade de sentidos é tarefa

arriscada, dado que esses sujeitos estão, a todo instante, se apropriando da pretensa

literalidade das palavras e inaugurando novas significações.

Essas ponderações ajudam a retraçar a relação língua-história, explorando, neste

percurso, o simbólico, responsável por instaurar, na linguagem, a dimensão do discurso

(HENRY, 1992). Por esse motivo, as estratégias linguísticas de omitir ou de tornar visível a

autonomia presença do sujeito discursivo24, podem fornecer elementos valiosos para que se

compreenda como se dá a quase sempre conflituosa relação do sujeito com o discurso que

enuncia, ou, mais precisamente, como se legitima, no processo discursivo, um sentido ou

outro.

23 O ingresso no ensino superior brasileiro é marcado por um nítido processo de seleção racial: dos 3.026.546 de estudantes universitários, 78,8% são brancos e 19,2%, são negros. (PETRUCCELLLI, J.L. Mapa da cor no ensino superior brasileiro. Rio de Janeiro: Programa Políticas da Cor na Educação Brasileira: Editora da Uerj, 2004). 24 O sujeito moderno pode ser caracterizado pela excessiva visibilidade de uma suposta identidade única, autônoma e legítima – ele aparece como o inquestionável responsável do discurso que enuncia, como se fosse ele o criador daquele sentido. Tal característica apaga, portanto, o fato de que os sentidos são produzidos, condição inerente à prática discursiva. (HAROCHE, 1992)

41

3 OS DISCURSOS SOBRE RAÇA E AS RELAÇÕES SÓCIO-RACIAIS

BRASILEIRAS: OS “HOMENS DA CIÊNCIA” E A MILITÂNCIA NEGRA ENTRE

OS SÉCULOS XIX E XXI

Este Estado não é uma nacionalidade;

este país não é uma sociedade;

esta gente não é um povo.

Nossos homens não são cidadãos.

Alberto Torres

O discurso. As cotas raciais. O racismo. O anti-racismo. Em que intervalo discursivo

são construídas as significações das teorias e práticas raciais brasileiras, em especial da

política de cotas raciais? Como descrever/ interpretar os efeitos de sentido instaurados quando

se enuncia o discurso contrário e o discurso favorável às cotas raciais? De que maneira traçar

a nuance de continuidade e/ou ruptura de sentidos materializada nos discursos sobre as cotas,

raciais para uns e racistas para outros? Haveria uma continuidade de sentidos entre as diversas

ideias sobre o negro?

Mais do que adjetivos, as palavras “escravizado”, “libertado” e “cidadão” expressam

momentos e concepções da história do Brasil que se entrecruzam. Desse modo, a resposta às

questões feitas acima passa pelo reconhecimento dos efeitos de historicidade na língua como

o cerne da discursividade (PÊCHEUX, 1999). O texto, enquanto superfície que se apresenta

pretensamente unificada, oculta os indícios da textualização do discurso (ORLANDI, 2001b).

Visto que, no plano intradiscursivo se dá a atualização da memória discursiva já

existente sobre tais questões, se constata que não são inéditas as marcas de textualidade e base

argumentativa do discurso sobre as cotas raciais. A partir da recorrência ao interdiscurso,

torna-se possível identificar formulações outras, que no eixo constitutivo, ao longo da

história, vem concorrendo para definir os sentidos do que é dito quando é discutida a garantia

dos direitos civis para a população negra brasileira.

Diante dessa atraente encruzilhada – o discurso sobre as cotas raciais põe em jogo novos

e velhos conceitos em torno dos quais se desenrolam disputas com o intuito de afirmar o

sentido correto – foi feita a opção de investigar, como já foi dito na Introdução, além do

discurso sobre as cotas raciais, um outro corpus, para fins de comparação, cuja seleção se deu

tendo como parâmetro a escolha de textos que contribuíram para definir qual a ideia de negro

na sociedade brasileira. Assim, entram em cena, alguns escritos de Rui Barbosa, Nina

42

Rodrigues e Gilberto Freyre, intelectuais que permanecem no centro de polêmicas em torno

da constituição das imagens que caracterizam a população negra brasileira.

Uma recorrente leitura dos textos selecionados, cujo contexto de produção situa-se entre

a segunda metade do século XIX e a primeira metade do século XX, indica formações

imaginárias que delimitam o lugar do diferente para a população negra no imaginário

brasileiro. Dos pertencentes a esse campo foram exigidas práticas de adaptação às regras

constitutivas da nação brasileira, então objeto de debate e reflexão por parte de muitos

intelectuais, dentre eles Rui Barbosa e Nina Rodrigues (século XIX) e Gilberto Freyre (século

XX). A seguir, far-se-á uma breve incursão biográfica para traçar o perfil desses três autores e

dos textos selecionados para a análise.

Foram escolhidos trechos do pronunciamento sobre o projeto de emancipação dos

escravos25, proferido em 1884, pelo parlamentar Rui Barbosa (1849-1923), jurista, jornalista e

político que integra o coletivo dos grandes oradores brasileiros, e cuja representatividade se

dá em diversos setores que dizem respeito às tentativas de construção, no século XIX, de um

Estado moderno, com bases liberais, para o Brasil, o que incluía a definição de aspectos

basilares para a sociedade, tal como o final do processo escravagista (D’AGUIAR NUNES,

2000; MENEZES, 2003).

Dentre a obra de Raymundo Nina Rodrigues (1862-1906), distinto representante da

escola baiana de medicina, selecionaram-se trechos de As raças humanas e a

responsabilidade penal no Brazil (1894) e Mestiçagem, degenerescência e crime (1889), em

que o autor, firmado em pressupostos sociais-darwinistas, traz a caracterização do negro, a

fim de questionar se, a despeito de sua inquestionável “inferioridade social”, ele poderia vir a

civilizar-se e atingir o padrão intelectual e cultural dos povos brancos. Esses estudos inserem-

se em um contexto de justificação científica das diferenças entre as raças e de consideração da

mestiçagem como fator de degenerescência humana (SCHWARCZ, 1996; MUNANGA,

2004).

Em relação aos textos de Gilberto Freyre (1900-1987), a escolha recaiu sobre aquela

que é considerada a sua obra clássica. Casa-grande & Senzala (1933) desfere um corte

preciso na produção intelectual da década de 1930, seja pelo estilo da escrita e aspectos

metodológicos – alheios aos academicismos vigentes – seja pela inovação conceitual de

valorizar o elemento negro e a mestiçagem na constituição da nação brasileira, erigindo assim,

25 Este pronunciamento integra o Parecer nº 48-A, referente ao Projeto de emancipação gradual do elemento servil.

43

os alicerces do que, mais tarde, passou a ser denominado como a “democracia racial

brasileira” (SKIDMORE, 2003; GUIMARÃES, 2008).

Interessa a essa pesquisadora, ao analisar os textos de Rui Barbosa, Nina Rodrigues e

Gilberto Freyre, demonstrar como a manipulação explícita ou implícita do conceito raça pode

ser percebida como indício da materialidade do discurso científico sobre as relações raciais

brasileiras, visto que é dessa tensão entre o considerado simbólico e o considerado político

das relações raciais brasileiras que se constituem os efeitos de sentidos do discurso sobre as

cotas raciais.

É evidente que, ao fazer a opção por esses autores – tradicionalmente identificados

pelos movimentos negros brasileiros como racistas – assume-se o desafio de não efetuar uma

leitura enviesada dos dados estudados, desejando mesmo ir ao encalce deste “regime político,

econômico e institucional de produção da verdade” (FOUCAULT, 2008 [1979], p.14), que

marca a circulação de enunciados tidos como verdadeiros, tais como “Rui Barbosa queimou

os documentos referentes à escravidão no Brasil para negar este traço de nossa história”;

“Nina Rodrigues utilizava o determinismo racial e climático para legitimar uma inferioridade

negra e institucionalizar a desigualdade racial brasileira” e “Gilberto Freyre é o responsável

pelo mito da democracia racial, o qual fantasia um Brasil harmônico e idílico”. 26

3.1 CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO DO DISCURSO SOBRE AS RELAÇÕES RACIAIS

BRASILEIRAS

Desde as mais remotas práticas de convívio social a humanidade se vê diante da

dificuldade em conciliar seus padrões de igualdade e diferença com a cessão de direitos.

Como definir quem tem direito a quê? A Revolução Francesa no final do século XVIII trouxe

a resposta a essa pergunta, pois, concomitante à ascensão da burguesia, instituiu a

competência individual como norma reguladora do reconhecimento e aceitação social

(SCHWARCZ, 1996). A partir daí, a garantia de prestígio concedida pela origem familiar

nobre foi substituída pelo mérito de cada indivíduo, uma inédita interpretação social que

propunha a universalização dos direitos como princípio definidor da atribuição de igualdade

nata entre os homens. (D’AGUIAR NUNES, 2001).

26 Esses enunciados não compõem o corpus desta pesquisa, foram construídos com a intenção de ilustrar esta reflexão. Entretanto, observa-se que eles não foram arbitrariamente inventados. Enunciados como estes circulam em alguns grupos sociais, notadamente os movimentos negros, especialmente a partir da década de 1970, quando estes movimentos passaram a denunciar com maior contundência o racismo brasileiro.

44

Entretanto, logo se percebeu que esse discurso universalizante não garantia a igualdade

entre as espécies. O discurso da igualdade formal jurídica não correspondia à prática

equânime no convívio social, dando brechas, a depender da formação ideológica em que está

inscrito, à institucionalização legitimada das desigualdades entre as espécies (SARMENTO,

2008). Dessa maneira, o cenário discursivo do século XIX está ligado aos acontecimentos que

naturalizaram a igualdade humana, mas também aos inevitáveis dilemas em torno da

diferença, os quais levaram a diversos confrontos entre o eu e o outro (SCHWARCZ, 1996).

O território brasileiro, nesse contexto, representava um singular enigma. Desde a sua

“descoberta” pelos europeus, no século XVI, pouco se tinha avançado em sua compreensão.

A partir da segunda metade do século XIX, poucas décadas depois de ver a sua Independência

proclamada e diante dos diversos manifestos abolicionistas, essa nação mestiça se interrogava

sobre um crucial dilema: como conciliar o ideal de progresso – corrente no cenário europeu e

definidor para a efetiva emancipação brasileira – com a absurda presença do diferente,

simbolizado pelo negro, seja ele escravizado ou liberto (MUNANGA, 2004)?

A incômoda presença negra assinalava, para muitos teóricos daquela época, um

obstáculo para a construção de um projeto que ambicionava configurar o povo e Estado

brasileiro. O termo configurar pode parecer excessivamente definitivo, entretanto, a busca

pela identidade nacional, então em voga, efetivamente seguia estes princípios. Era mesmo

necessário formatar (e cumprir) um ideal de Brasil. O aspecto crucial a ser considerado é que,

para essa conquista, sinônimo de sua inscrição no mundo civilizado, dependia a exclusão de

alguns tidos como incapazes (AZEVEDO, 2004 [1987]; DÁVILA, 2006; MUNANGA,

2004).

A tentativa de (re) invenção do Brasil daquele momento tinha como pauta um ideal de

civilização, mas também estava no eixo dessa reflexão a noção de cidadania. As dúvidas

pairavam exatamente sobre esta incômoda possibilidade da afirmação de um cidadão negro,

afinal os confrontos entre liberais e conservadores que antecederam a turbulenta passagem do

Império para a República diziam respeito à definição de um grupo político que tencionava,

naturalmente, legislar acerca desses direitos, demanda a ser traçada em um espaço

profundamente heterogêneo como era (e ainda é) o Brasil (MENEZES, 2003).

Ao lado da instauração da República, a abolição da escravidão provocava profundas

alterações não só no sistema político e econômico da época – o escravo era uma valiosa

propriedade a serviço de uma prática econômica e a supressão do escravismo trazia incertezas

quanto à manutenção dos bens econômicos e do prestígio social – mas também na própria

mentalidade que sustenta o escravismo, como observa Nabuco (2000, p.05):

45

Assim como a palavra abolicionismo, a palavra escravidão é tomada neste livro em sentido lato. Esta não significa somente a relação do escravo para com o senhor; significa muito mais: a soma do poderio, influência, capital e clientela dos senhores todos; o feudalismo, estabelecido no interior; a dependência em que o comércio, a religião, a pobreza, a indústria, o Parlamento, a Coroa, o Estado, enfim, se acham perante o poder agregado da minoria aristocrática, em cujas senzalas milhares de entes humanos vivem embrutecidos e moralmente mutilados pelo próprio regime a que estão sujeitos; e por último, o espírito, o princípio vital que anima a instituição toda, sobretudo no momento em que ela entra a recear pela posse imemorial em que se acha investida, espírito que há sido em toda a história dos países de escravos a causa do seu atraso e da sua ruína.

O destaque feito por Nabuco (2000) a esse “espírito” do escravismo, que autorizava a

ideia de posse de um homem por outro, faz com que se perceba o escravismo para além das

relações estabelecidas entre senhores e escravos, trazendo à baila a importância do conceito

de raça no período pós-abolição, sendo que em jogo está a recusa ou a aceitação da

racialização, desde muito um desafio para os acadêmicos brasileiros.

A categoria raça – qualificada positivamente ou negativamente – vem sendo um aspecto

obsedante para a intelectualidade brasileira (HOFBAUER, 2006; GUIMARÃES, 2008;

RISÉRIO, 2007; FRY, 2008). Essa ênfase conceitual indica, certamente, a importância

distintiva dos lugares teóricos assumidos pelos autores, pois, se o reconhecimento do racismo

no Brasil é quase um lugar-comum nesses textos, o mesmo não se dá com o emprego da

noção de raça.

Esse conceito, que originalmente surge no campo das Ciências Naturais,

especificamente na zoologia e botânica, a fim de classificar espécies animais e vegetais, no

século XVII passa a ser utilizado para explicar a diversidade humana. A classificação humana

em grupos hierárquicos se deu quando a cor da pele, no século XVII, e demais critérios

morfológicos, como a forma do crânio e lábios, no século XIX, passaram a ser utilizados para

distinção entre os grupos sociais, fundamentando assim, a noção de racismo científico, à qual

grande parte dos estudiosos atrelava-se até as primeiras décadas do século XX27

(MUNANGA, 2000).

Ainda que a maioria dos autores concorde que o racismo enquanto teoria só tenha sido

formulado a partir de 1920, Azevedo (2005) pontua que já em 1830, brasileiros negros

denunciavam o “preconceito de cor” em jornais específicos, questionando o reconhecimento

público das raças28. Nesse contexto, as possibilidades de mobilidade social dependiam em

27 Apenas para citar um exemplo, as práticas nazistas fomentadas na Alemanha no início do século XX tinham por orientação a superioridade de uma raça – a ariana – sobre as demais. 28 A autora cita alguns espaços sociais onde a racialização levava à segregação racial: regimentos militares; irmandades religiosas e cemitérios. A distinção entre pretos, pardos e brancos se dava, inclusive, no acesso a

46

primeira instância do pertencimento racial e somente em segunda instância, do mérito

individual. A dissonância desses critérios com os princípios de cidadania expressos na

Constituição de 1824, aliada ao sentimento coletivo de ser discriminado racialmente levava

esses militantes a desenvolver um anti-racismo universalista, fincado na defesa de uma

cidadania desracializada, que trazia em seu bojo a ideia de que no Brasil seria possível a

convivência racial sem conflitos.

O paradoxo desse pensamento anti-racista – engendrando uma ideia que posteriormente

servirá a propósitos racistas – é exemplar para ilustrar o deslizamento de sentidos

característico do discurso: no início do século XIX era extremamente oportuno, para aquele

grupo de negros que combatia o preconceito de cor, a construção de uma igualdade racial que

servisse de contraponto às diferenças raciais ocorrentes no cotidiano da época. Entretanto,

enquanto esse discurso desracializado era formulado nos espaços públicos, nos espaços

privados, permanecia a formulação de um discurso racializado. Azevedo (2005) mostra que a

necessidade de construção dessa ideia de apaziguamento racial foi o que afirmou,

especialmente no exterior, as bases do paraíso racial brasileiro, antecedendo, ressalte-se, à

ideia de democracia racial, que somente foi formulada um século depois, na década de 1930.

Funcionando como um instrumento de leitura e compreensão da realidade, o mito do

paraíso racial é um elemento deveras importante para a constituição dos demais discursos

sobre a temática racial, tendo em vista que a sua matriz argumentativa está fincada na

ausência da percepção racial no cotidiano brasileiro, um ponto de divergência entre os mais

diversos grupos sociais – acadêmicos ou não – que vêm se dedicando a essa questão, desde o

princípio do século XIX até os dias atuais. Ao longo do século XIX, a ideia do paraíso racial

brasileiro continuou a produzir sentidos e a arregimentar sentidos outros, trazidos por

exemplo, pelas teorias raciais biológicas que desde a segunda metade do século começaram a

fervilhar no Brasil.

De acordo com Schwarcz (2008 [1993]), um ponto chave entre as teorias raciais do

século XIX, é a rejeição à miscigenação, a qual comprovaria a irremediável degeneração das

espécies, não só no aspecto social como racial. A eugenia surge, assim, como uma alternativa

política para intervir na reprodução humana, garantindo a pureza na hereditariedade. Esse

processo de “naturalização das diferenças” implica no “estabelecimento de correlações rígidas

entre características físicas e atributos morais” (SCHWARCZ, 2008 [1993], p.65),

pressuposto que será a base do chamado racismo moderno, especialmente a partir da década

cargos públicos – somente em casos excepcionais era emitido o documento que concedia a dispensa do “defeito de cor” para ingresso nesses cargos.

47

de 1920, quando uma postura essencialista passa a relacionar, em uma escala desigual de

valores, os critérios fenotípicos da humanidade a suas práticas sociais (MUNANGA, 2000).

Este contorno histórico faz-se necessário, na medida em que, no Brasil pré-abolição,

estão em ebulição todas estas ideias sobre miscigenação, branqueamento e desenvolvimento

da nação. Todavia, como ainda não havia o “problema negro”, a presença dessas ideias era

enviesada. A principal preocupação, tanto entre os abolicionistas quanto entre os senhores de

escravos, era as conseqüências econômicas e morais da extinção do “direito à propriedade”.

Não havia, portanto, a definição do racismo explícito, enquanto teoria que prega a

inferioridade negra em relação aos não negros, mas sim, estas ideias difusas, aplicadas ao

grupo dos senhores e ao grupo dos escravos (SKIDMORE, 1976, p.12 apud JACCOUD,

2008, p.50-51). Sobre a convivência entre estes grupos, NABUCO (2000) chega a dizer que:

A escravidão, por felicidade nossa, não azedou nunca a alma do escravo contra o senhor - falando coletivamente - nem criou entre as duas raças o ódio recíproco que existe naturalmente entre opressores e oprimidos. Por esse motivo, o contato entre elas sempre foi isento de asperezas, fora da escravidão, e o homem de cor achou todas as avenidas abertas diante de si (NABUCO, 2000, p.10-11).

A quase invisibilidade da raça só é efetivamente quebrada após a abolição, quando a

imperiosa necessidade de apagamento do regime escravista, conceituado por Nabuco (2000,

p.4) como “uma escola de desmoralização e inércia, de servilismo e irresponsabilidade para a

casta dos senhores” confronta os intelectuais da época, obrigando-os a enfrentar o problema

da incorporação do grupo de libertos ao mesmo tempo em que é preciso excluir a mancha da

escravidão da história nacional, substituindo-se os discursos de preconceitos contra o “homem

de cor” pelos discursos de livre possibilidade de ascensão social.

Essa obliquidade em torno da categoria escravidão não pode ser dissociada da própria

ambiguidade em torno das questões raciais, presente desde o período instável que sucedeu à

independência brasileira, quando já não havia mais a dependência ao estado português, mas

ainda não havia, propriamente, o Estado-nação brasileiro. Azevedo (2005) e Guimarães

(2003) esclarecem que nesse contexto altamente instável, as práticas coloniais como a

escravidão continuam, mas já é realidade a convivência com “homens livres de cor” e seus

descendentes, o que, efetivamente, gera uma condição tensa – tanto para os auto-intitulados

brasileiros, quanto para aqueles que desejavam se integrar nesse projeto de nacionalidade –, a

qual terá seu clímax no período pós-abolição, quando começa a ser sistematizada uma teoria

racista no Brasil:

48

O racismo nasce no Brasil associado à escravidão, mas é principalmente após a abolição que ele se estrutura como discurso, com base nas teses de inferioridade biológica dos negros, e se difunde no país como matriz para a interpretação do desenvolvimento nacional (JACCOUD, 2008, p.49).

Nesse sentido, a demanda de desenvolvimento nacional é o elemento que pressiona, no

Brasil do início do século XX, a formação de um discurso do racismo científico, herdeiro das

teorias eugenistas do século XIX. Entretanto, como a evidência dos sentidos é um efeito

ideológico constituído pela intervenção da historicidade (ORLANDI, 2003 [1999], p.45),

essas condições histórico-sociais também fomentam a formulação de discursos inscritos numa

Formação Ideológica anti-racista, cujo sujeito enunciador, naquele momento, é o militante dos

movimentos negros brasileiros.

Conforme já citado nessa dissertação, pode-se identificar a luta anti-racista empreendida

pelos poucos homens negros escolarizados do início do século XIX como os primeiros

indícios de uma organização ente os homens “de cor” brasileiros (AZEVEDO, 2005). A

reflexão desse grupo, pautada pelo não reconhecimento público das raças, também se verifica

quase um século depois, na atuação da Frente Negra Brasileira (FNB), que, formada em 1931,

postula a integração social dos negros. O combate ao preconceito de cor, uma das bandeiras

da FNB, não rompia politicamente com essa ideia do Brasil como um país em que fosse

possível haver o paraíso racial29 (GUIMARÃES, 2010).

Desse modo, o tom da cidadania universalista foi predominante nos discursos

produzidos pelo movimento negro brasileiro30, nos quais a desracialização se impunha como

uma alternativa para garantir a construção da identidade brasileira também para os negros. Na

década de 1930 esse movimento discursivo se repete: quando Gilberto Freyre retoma a ideia

de paraíso racial na perspectiva da democracia social/étnica no plano cultural e artístico. se dá

a transposição desse discurso da militância negra para a academia. Nesse contexto, o luso-

29 Se a denúncia do preconceito de cor era algo relevante, também o era a urgência de escolarização e da integração qualificada da população negra no mercado de trabalho. O não comprometimento partidário da FNB tinha raízes, portanto, nessa necessidade de afirmação do negro enquanto cidadão brasileiro, como salienta Francisco Lucrécio, um dos membros de sua diretoria: “Não foi fácil para nós nos situarmos no meio de tanta ideologia política de esquerda e de direita, socialismo, comunismo, trotskismo, mas nós nos mantivemos aquela linha nacionalista em defesa da pátria, família e raça” (LUCRÉCIO, F. Ideologias. In: BARBOSA, 1998, p.44). 30 Pereira ( 2008, p.2-3 ) explica que somente na década de 1970 foi cunhado o termo “Movimento Negro” – representando um conjunto de “Grupos, Entidades e Militantes que buscam a valorização do negro e da Cultura Negra, e se colocam diretamente contra o racismo, buscando através deste combate, o respeito da sociedade e a melhoria das condições de vida da população brasileira.” Embora essa definição seja relativamente recente, tanto ele quanto outros autores são unânimes em denominar também como movimento negro as lutas que datam do período da escravidão, como as organizações quilombolas e guerrilhas urbanas.

49

tropicalismo freyreano se constitui como uma reação ao arianismo e ao racismo, sinais das

práticas totalitárias européias31(GUIMARÃES, 2010).

É assim, que aos poucos, bastante alavancada pela possibilidade de projeção política do

Brasil no contexto internacional, a ideia de democracia social/étnica gestada por Freyre passa

a ser construída, por diversos outros intelectuais e pelo próprio movimento negro, como uma

possibilidade de democracia racial, a qual seria um traço peculiar brasileiro. A afirmação

positiva da mestiçagem biológica/cultural foi, por conseguinte, sendo tomada como uma

ferramenta eficaz para a luta por igualdade de direitos entre negros e brancos, exatamente

porque ainda não havia a afirmação de identidades étnicas específicas.

Do ponto de vista da constituição dos sentidos, verifica-se que a igualdade indistinta

entre os cidadãos da República passa a significar como a igualdade indistinta entre as raças,

premissa que passa a funcionar como base comum aos discursos sobre o negro produzidos no

Brasil. Tanto para a academia quanto para o movimento negro e, especialmente, para o

governo populista de Getúlio Vargas32, era consensual a ideia de democracia racial, alicerçada

na integração dos negros à sociedade brasileira no âmbito simbólico, por meio de uma

“cultura nacional mestiça” e, no âmbito material, por meio de uma relativa integração no

mercado de trabalho, como destaca Guimarães (2006, p.270):

Essa mudança no modo de entender “democracia racial” nos permite estudá-la não apenas como mito, ou seja, como construção cultural, mas também como “cooperação”, “consentimento” ou “compromisso” político. Mais que uma ideologia, ela foi um modo tacitamente pactuado de integração dos negros à sociedade de classes do Brasil pós-guerra, para utilizar o famoso título de Florestan, tanto em termos de simbologia nacional, como em termos da sua política econômica e social.

É com a geração de 1940 que o movimento negro faz intervir, de forma incisiva, o

conceito raça, mais precisamente com o Teatro Experimental do Negro (TEN), que na pessoa

de Abdias do Nascimento desenvolve uma série de experiências cênicas voltadas para a

valorização do negro e busca de reconhecimento e igualdade social (PEREIRA, 2008), numa

reafirmação da ideia de democracia racial brasileira. A esse respeito, Guimarães (2010) cita,

por exemplo, a fala de Abdias Nascimento na abertura do I Congresso do Negro Brasileiro,

em 1950:

31 Não se deve esquecer que 1933, o ano de lançamento de Casa-grande & Senzala, coincide com o ano da chegada de Hitler ao governo da Alemanha. 32 A ideia da democracia racial vinha sendo extremamente útil para a legitimidade da nacionalidade brasileira, sendo um importante instrumento político na gestão varguista.

50

Observamos que a larga miscigenação praticada como imperativo de nossa formação histórica, desde o início da colonização do Brasil, está se transformando, por inspiração e imposição das últimas conquistas da biologia, da antropologia, e da sociologia, numa bem delineada doutrina de democracia racial, a servir de lição e modelo para outros povos de formação étnica complexa conforme é o nosso caso (NASCIMENTO apud GUIMARÃES, 2010).

Também em 1950 a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a

Cultura (UNESCO), buscando refutar os horrores do genocídio provocado pelo regime

nazista, emite um documento trazendo a opinião dos mais renomados intelectuais da época a

respeito do equívoco de se considerar as diferenças culturais entre grupos étnicos como

fatores biológicos:

Convém distinguir entre a “raça”, fato biológico, e o “mito da raça”. Na realidade, a “raça” é menos um fenômeno biológico do que um mito social. Esse mito tem feito um mal enorme no plano social e moral; ainda há pouco, custou inúmeras vidas e causou sofrimentos incalculáveis. Tem impedido o desenvolvimento normal de milhões de seres humanos e privado a civilização da colaboração efetiva de espíritos criadores. Ninguém deveria prevalecer-se de diferenças biológicas entre grupos étnicos para praticar o ostracismo ou tomar medidas coletivas. O essencial é a unidade da humanidade, tanto do ponto de vista biológico como do ponto de vista social. Reconhecer esse fato e pautar a sua conduta por ele, tal é o dever primeiro do homem moderno (A DECLARAÇÃO DAS RAÇAS DA UNESCO, 1950).

De forma geral pode-se dizer que esse traço universalista que permeia o discurso sobre

o negro brasileiro permaneceu vigente até a década de 1960, quando a racialização do debate,

iniciada pelo movimento negro, leva à denúncia da democracia racial como mito que

impossibilita a real convivência pacífica – as pesquisas acadêmicas desenvolvidas pelo grupo

de Florestan Fernandes e patrocinadas pela UNESCO inverteram a lógica dominante, visto

que, ao invés de confirmarem o sucesso das relações raciais no Brasil, acabaram por atribuir à

democracia racial o status de mito.

Nas décadas seguintes, quando é feita a associação entre a democracia racial e as

dificuldades de ascensão social do negro brasileiro, essa racialização permanece nas pesquisas

desenvolvidas por Carlos Hasenbalg e Valle Silva, pioneiros em desagregar o fator raça dos

índices de desigualdade social no Brasil e, com isso, demonstrar a diferença entre o Índice de

Desenvolvimento Humano (IDH) de brancos e o IDH de negros.

Segundo Guimarães (2006), para militantes do movimento negro e/ou acadêmicos

brasileiros, o discurso da democracia racial, enquanto “padrão cultural de interação

interracial” foi efetivamente posto em xeque mediante um fato fundamental: o início dos anos

de chumbo da ditadura militar, em 1964, que incidiu sobre o conceito de democracia em

vários aspectos, inclusive o de democracia racial. A partir desse acontecimento histórico e

51

discursivo acentuou-se, por um lado, o discurso nacionalista dos grupos políticos de esquerda

e, por outro lado, começou a constituir-se o discurso da negritude, cujo sujeito enunciador é o

movimento negro.

Nas décadas de 1970 e 1980, movimentos de nível internacional como o

panafricanismo, afrocentrismo e quilombismo reforçam a ideia de afirmação de uma

identidade negra, bem como a ligação com a África, enquanto pátria-mãe. A criação do

Movimento Negro Unificado (MNU)33, em 1978, é um elemento caro a esse processo, sendo

importante vetor na luta pelos direitos civis, tanto os individuais quanto os coletivos.34

A partir da década de 1990, a academia passa a não mais denunciar o mito da

democracia racial, mas a concebê-lo como chave para a compreensão do processo de

formação do Brasil (GUIMARÃES, 2010). A militância negra, por sua vez, vai começar a ser

representada por uma nova face: são criadas diversas ONGs negras voltadas à realização de

ações na instância política – como educação, saúde e advocacia – e/ou cultural – como

oficinas de percussão, teatro e dança.

O discurso multiculturalista, gestado desde a década de 1970, tem seu ápice na III

Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e

Intolerância Correlata, realizada em Durban (África do Sul), em 2001, a qual confere aos

Estados participantes do evento, a responsabilidade legal primordial no combate ao racismo,

incitando-os a desenvolver ações afirmativas específicas, como ressalta o artigo 5 do

Programa de Ação da Declaração dessa Conferência:

Solicita que os Estados, apoiados pela cooperação internacional, considerem positivamente a concentração de investimentos adicionais nos serviços de saúde, educação, saúde pública, energia elétrica, água potável e controle ambiental, bem como outras iniciativas de ações afirmativas ou de ações positivas, principalmente, nas comunidades de origem africana. (Declaração Final da III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, p.26).

A última década viu consolidar-se, portanto, o discurso das diferenças, pautado pelo

reconhecimento estatal do caráter multicultural próprio da humanidade. Guimarães (2006)

associa essa mudança de matriz argumentativa – de uma concepção de sociedade homogênea

para uma concepção de sociedade heterogênea – às mudanças políticas ocorridas entre 1940 e

1980, os quais, segundo o autor, são dois momentos cruciais por exigirem a reconstrução das

33 Inicialmente intitulado Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial, por englobar também os não negros e a militância de esquerda da época, conforme informação de Pereira (2008). 34 Datam desse período, por exemplo, a criação da Fundação Palmares e reformas constitucionais, tais como a instituição do racismo enquanto crime inafiançável e o reconhecimento da diversidade lingüística e cultural brasileira, materializado na educação bilíngue nas comunidades indígenas.

52

nações tendo em vista o pós-guerra e o pós-ditadura. Se em 1940, essa reconstrução se dava

mediante a afirmação dos direitos individuais e da igualdade formal, na década de 1980 esse

processo vai ser caracterizado pela emergência da noção de direitos coletivos e da igualdade

de oportunidades que levem a resultados concretos.

A substituição do nacionalismo mestiço dos governos populistas de 1940 pelo

multiculturalismo linguístico e cultural dos governos neo-liberais da década de 1980 mostra

que os embates em torno do conceito raça continuaram por todo o século XX (GUIMARÃES,

2006). Em diversos momentos, intelectuais negros e não-negros se debruçaram sobre essa

categoria, tomando-a enquanto instrumento de análise de questões cruciais para o Brasil,

como por exemplo, identidade social/racial e desigualdade social/racial.

A chegada ao século XXI, quando se deu a implantação de políticas públicas

particularistas como o sistemas de cotas raciais, apenas acentuou as polêmicas sobre a

permanência da raça enquanto categoria teórica e sobre a tensão racial presente na sociedade

brasileira. A título de ilustração, observem-se os posicionamentos de dois intelectuais

contemporâneos, Risério (2007) e Magnoli (2009), os quais constroem a sua argumentação

destacando em torno do adjetivo racial:

Os brasileiros se identificam pela cor – e não pela raça. Pela aparência – e não pela ascendência. Pela pele – e não pela linhagem. Não contentes em serem mestiços, costumam se reconhecer como tais. Com isso, não temos, entre nós, uma “coletividade negra” bem definida, nitidamente demarcada, com fronteiras fixas e irremovíveis. O Brasil é o país da riqueza cromática (RISÉRIO, 2007, p.18).

São pressupostos da Resolução35 a existência de raças, de uma história e uma cultura afro-brasileiras e, ainda, de uma história e de uma cultura africanas. O primeiro pressuposto implica uma abdicação: a escola não denunciará a raça como um fruto do racismo, mas a tratará como entidade histórica e social. O segundo institui a figura dos “afro-brasileiros”, que seriam os sujeitos de uma história e os produtores de uma cultura. A contrapartida implícita, mas inevitável, é a instituição das figuras do “euro-brasileiros” e dos “nativos brasileiros”, que complementam o panorama racializado da sociedade brasileira. O terceiro pressuposto condensa o paradigma do pan-africanismo, que descreve a África como pátria de uma raça (MAGNOLI, 2009, p.334).

Para esses autores, o incômodo trazido pelo racial no discurso sobre as cotas está

relacionado à ambigüidade que a palavra raça instaura. A recusa/aceitação deste conceito

expõe a dupla face do debate sobre a racialização do Brasil, pois dizer cotas raciais hoje faz

eco discursivo às teorias racistas do século XIX, mas também aos movimentos anti-racistas do 35 O autor refere-se à Resolução do Conselho Nacional de Educação, nº 1, de 17 de junho de 2004, que institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Disponível em <http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/res012004.pdf>. Acesso em 18 jun.2010.

53

século XX. A esse respeito é oportuna a contribuição de Pena (2004), que lembra ser

fundamental a compreensão do caráter dicotômico em que se desenvolve o debate sobre raça

no Brasil. A polarização entre cor e ancestralidade ou entre aparência e origem, que tem

pautado todas as reflexões sobre as questões raciais, também incide sobre as cotas raciais,

fazendo com que surja o questionamento: afinal, esse sistema força o brasileiro a lidar com

noções rígidas de raça, ou, por outro lado, desvela as formas de o brasileiro lidar com o

racismo?

Habitualmente costuma-se afirmar que a opção pela primeira alternativa seja feita pelos

contrários a esse sistema, implicando na manipulação de uma noção estritamente biológica. Já

a opção pela segunda alternativa seria feita pelos favoráveis a esse sistema, indicando a

manipulação de uma noção política. Entretanto, a reprodução dessa dicotomia seria mais um

simplismo nessa cadeia discursiva sobre as relações raciais brasileiras. Diante desse

confronto, as reflexões empreendidas por Pena (2004) e Hall (2003) são significativas:

Lembramos aqui, mais uma vez, que raças humanas não existem do ponto de vista genético ou biológico (Templeton, 1999). Apenas 5% da variação genômica humana ocorre entre as chamadas “raças”. Ademais, somente 0,01% do genoma humano varia entre dois indivíduos. Em outras palavras, toda a discussão racial gravita em torno de 0,0005% do genoma humano! Por outro lado, mesmo não tendo o conceito de raças pertinência biológica alguma, ele continua a ser utilizado, qua construção social e cultural, como um instrumento de exclusão e opressão. Independente dos clamores da genética moderna de que a cor do indivíduo é estabelecida por apenas um punhado de genes totalmente desprovidos de influência sobre a inteligência, talento artístico ou habilidades sociais, a pigmentação da pele ainda parece ser um elemento predominante da avaliação social de um indivíduo e talvez a principal fonte de preconceito. (PENA, 2004, p.46).

Conceitualmente, a categoria “raça” não é científica. As diferenças atribuíveis à “raça” numa mesma população são tão grandes quanto aquelas encontradas entre populações racialmente definidas. “Raça” é uma categoria discursiva, em torno da qual se organiza um sistema de poder socioeconômico, de exploração e exclusão – ou seja, o racismo. Contudo, como prática discursiva, o racismo possui uma lógica própria [...]. Tenta justificar as diferenças sociais e culturais que legitimam a exclusão racial em termos de distinções genéticas e biológicas, isto é, na natureza. Esse “efeito de naturalização” parece transformar a diferença racial em um “fato” fixo e científico, que não responde à mudança ou à engenharia social reformista (HALL, 2003, p.69).

Embora não haja legitimidade biológica ou genética para a existência de raças humanas,

sabe-se que a vigência do preconceito racial continua relacionada aos critérios fenotípicos,

paradoxo que torna urgente o ato de pensar na validade dos critérios genéticos para a defesa

do sistema de cotas raciais, conforme pondera Pena (2004, p.46): “Tendo em vista a nova

capacidade de se quantificar objetivamente, por meio de estudos genômicos, o grau de

ancestralidade africana de cada indivíduo, pode a genética definir quem deve se beneficiar das

54

cotas universitárias e demais ações afirmativas?” Para Pena (2004), o papel da genética não é

o de prescrever, mas o de descrever aspectos sobre a estrutura populacional brasileira.

Segundo o autor, essas informações podem até serem levadas em consideração na definição

de políticas públicas como as cotas raciais, contudo, não devem ser tomadas como princípios

definitivos para tal ação.

Hall (2003), por sua vez, além de explicar a lógica de naturalização acionada pelo

discurso racista, traz uma contribuição interessante para a discussão racial, na medida em que

situa a raça no campo discursivo e não no campo biológico. Para fundamentar essa distinção,

ele recorre aos debates multiculturais que, segundo o autor, têm intensificado a imbricação –

de maneira metonímica, em um mesmo sistema discursivo – dos sentidos de racismo

biológico e de discriminação cultural. Em outras palavras, a frequente substituição –

especialmente no mundo acadêmico – de raça por etnia não tem evitado que os aspectos

culturais (étnicos) sejam “colados” aos aspectos biológicos (raciais). De acordo com o autor,

essa associação apenas tem ocultado outra lógica do racismo – a discriminação se dá contra

determinadas culturas que, não por acaso, apresentam diferenças fenotípicas em relação

àquele que discrimina.

A observância dessas reflexões de Pena (2004) e Hall (2003) traz como inevitável a

lembrança de Pêcheux (1997c), quando este autor afirma que as palavras não têm sentido em

si, mas retiram seu sentido (provisório) da formação discursiva em que se inscrevem. Depara-

se, então, com um caso peculiar de deslizamento semântico: afinal, qual o real sentido de

raça? A busca da resposta a esta pergunta é vã, visto que não há o sentido uno, mas um recorte

dentre os sentidos possíveis. Entretanto, apesar dessa movência – perceptível no nível teórico

– no cotidiano, em que são capturados discursos contrários e discursos favoráveis ao uso do

conceito raça, o que se percebe é a tentativa de fixar-se uma única definição para raça, ora a

perspectiva biológica, ora a perspectiva política.

Esse efeito de literalidade de ambas as perspectivas pode ser explicado pelo

funcionamento do silêncio fundador, responsável pela garantia de estabilização do significado

desejada pelo sujeito discursivo (ORLANDI, 2007 [1996]). É desse lugar que se tem a

interrupção da continuidade de uma cadeia semântica acerca das questões raciais no Brasil,

com cada sujeito apresentando a indicação do seu sentido, mediante a formação discursiva em

que se inscreve. Dessa maneira, a afirmação da concepção de raça – essencializada para

alguns, politizada para outros – pode ou não ser interpretado como racismo. Essas reflexões

acerca da polissemia em torno de raça reafirmam a importância de que seja enfatizado o jogo

ideológico, que constrói as evidências do real e busca apagar a historicidade constitutiva dos

55

discursos. A quebra da aparente plenitude semântica somente é possível se são consideradas a

multiplicidade das possibilidades de significação.

56

4 QUAL O LUGAR DO DISCURSO SOBRE AS RELAÇÕES RACIAIS ENTRE AS

DÉCADAS DE 1870 E 1940?

4.1 RUI BARBOSA E A EMANCIPAÇÃO DOS ESCRAVOS

O governo, o Partido Liberal, os homens esclarecidos e honestos de todas as escolas sentem sobre si a pressão dos compromissos do nosso programa, a pressão da vontade nacional, manifestada onde quer que os interesses locais da escravidão a não turvam, a pressão de toda a civilização moderna, essa pressão da censura do mundo civilizado, que o Senador Nabuco, há quinze anos, já denunciava.

Rui Barbosa

Rui Barbosa é saudado no Brasil como um dos ícones na defesa do progresso e ética

nacional, sendo que a sua competência argumentativa é tida como exemplo para oradores de

todas as gerações, sejam eles juristas ou não. Político atuante, empreendeu diversas iniciativas

a fim de fincar as bases de um projeto de cidadania brasileira, tais como as reformas escolares

e eleitoral, bem como a emancipação do escravo, reflexões reunidas em vários pareceres

vinculados à sua atuação na Câmara dos Deputados. Dentre os textos proferidos por Rui

Barbosa foi escolhido, para objeto de análise, o Parecer nº48-A, referente ao projeto de

emancipação gradual do elemento servil, cujo primeiro passo se daria na libertação dos

escravos sexagenários.

A análise desse parecer foi feita no intuito de investigar se há correspondência entre as

imagens dos escravos evidenciadas no discurso produzido pelo sujeito Rui Barbosa e as

imagens da população negra brasileira evidenciadas no discurso sobre as cotas raciais

produzido pelos sujeitos professores universitários. Considerando que o discurso é o eixo no

qual se articulam e se imbricam língua e ideologia, buscou-se verificar a existência de um

discurso de (pré)definição dos lugares de negros e não negros na sociedade brasileira

contemporânea e, caso haja esse discurso, se há continuidade de sentidos entre os enunciados

formulados por Rui Barbosa e os enunciados formulados pelos professores universitários.

O Parecer nº48-A, datado de 04 de agosto de 1884, é um extenso e erudito documento

de quase 150 páginas, com citações de exemplos de países europeus e norte-americanos.

Inicialmente Rui Barbosa comenta sobre a atmosfera política que antecedeu a aprovação da

Lei do Ventre Livre, em 1871, ressaltando que, decorridos treze anos, os temores de imediata

extinção do escravismo não foram concretizados. A partir daí, o autor disserta, de forma

57

enfática, a favor do abolicionismo, refutando os argumentos dos escravistas da época. Ao

criticar os “sofismas do escravismo”, ele destaca as falácias que sustentavam esse sistema: o

caráter paternalista da relação entre o senhor e os escravos; os impactos econômicos negativos

que viriam a ocorrer caso se desse a substituição do trabalho escravo pelo trabalho

assalariado; a desordem social que viria a ser causada pela abolição. Dentre essas falácias, ele

enfatiza a análise do direito natural de propriedade alegado pelos senhores de engenho,

recorrendo à base jurídica do direito romano para questionar essa concepção.

Após essas explanações, de cunho mais geral, Rui Barbosa volta-se para a análise da

libertação dos escravos sexagenários, objeto específico do Parecer nº 48. Na seção

selecionada, ele detalha o teor do projeto, abordando aspectos numéricos, como a

previsibilidade do número de sexagenários que teriam a liberdade e a necessidade da

implantação de um Fundo de Emancipação. Além disso, discute aspectos concernentes à

transição do trabalho escravo para o trabalho livre, defendendo o trabalho obrigatório e a

permanência do alforriado por cinco anos no município onde recebeu a alforria como

estratégias para preparar o seu espírito para a condição de liberto.

É preciso assinalar que as discussões sobre essa temática eram complexas, envolvendo

tanto a extinção do tráfico, quanto a abolição da escravatura em si. Ambas as questões, ainda

que fossem tidas como eminentes, foram adiadas até quando possível pelo grupo dos

conservadores, que detinham o poder político da época. O contorno de tabu atribuído a esses

temas relaciona-se aos temores de reações violentas dos escravos quando libertos, afinal

ninguém poderia prever, com certeza, como eles se comportariam. A esse respeito, Prado Jr.

(2010 [1945]) destaca como era a atmosfera política do Brasil no período que antecedeu a

Abolição da escravidão:

O que se encontra na imprensa, nas demais publicações da época, no Parlamento — que são nossas melhores fontes de informação — não corresponde certamente, no mais das vezes, à importância que o problema escravista efetivamente representava aos olhos dos contemporâneos. Todas as forças conservadoras (e são elas e seus órgãos que naturalmente mais se fazem ouvir) preferem calar-se e recusam abrir debate público em torno de um assunto tão delicado e capaz das mais graves repercussões. [...] Mesmo depois que se começou a tratar da matéria nas esferas oficiais, e quando, portanto a questão já estava em vésperas de ser resolvida, sempre se cercaram os debates e deliberações, nos primeiros tempos pelo menos, do mais rigoroso segredo.

Nestas condições, é muitas vezes difícil, para nós hoje em dia, avaliar com segurança a importância que em cada momento se emprestava ao assunto. A ausência de manifestações expressas não significa sempre esquecimento ou desprezo; mas pelo contrário, muitas vezes, excesso de preocupação. Seja como for, o certo é que a escravidão só entra em debate franco depois que se começa a reprimir efetivamente o tráfico em 1850, e ele é de fato extinto, como vimos, pouco depois (PRADO JR., (2010 [1945]), p.127-128).

58

Como frisa Prado Jr. (2010 [1945]) em que pese a pressão internacional36, a classe

política, em geral, se absteve de buscar resoluções para esse problema ou, quando o fez, o

cobriu sob a couraça do silêncio. Também a intelligentsia brasileira se manteve revestida

desse aparente apatia, pois é somente a partir da segunda metade do século XIX, com a Lei de

Extinção do Tráfico, que esse grupo efetivamente se debruça sobre a questão da abolição da

escravidão:

A partir de 1860 a pressão dos acontecimentos já é bastante forte para provocar uma larga tomada de posições: o problema da escravidão, o da sua subsistência, é então aberto e francamente posto em foco. Menos no Parlamento que fora dele. Começa a surgir, a propósito, um grande número de escritos de toda ordem: livros, folhetos, artigos de imprensa e outras publicações. A questão é analisada e debatida a fundo; seus diferentes aspectos, econômico, social e político, são esmiuçados. São grupos intelectuais que tomam, primeiro, posição: bacharéis em direito, advogados, juristas, que formam cronologicamente a primeira classe pensante do país. [...]

Em geral, não se irá ainda neste primeiro momento ao extremo de pedir a abolição total e imediata do regime servil: procuram-se meios de chegar a uma solução conciliatória que harmonize na medida do possível os interesses em jogo e traga a extinção gradual e suave da escravidão, sem choques graves e comprometedores do equilíbrio econômico e social do país. A liberdade dos nascituros será uma destas soluções. Era o exemplo estrangeiro: em toda parte onde anteriormente se abolira a escravidão, a emancipação dos filhos de escravos precedera quase sempre as medidas definitivas. É em torno disto que então se centralizam os debates (PRADO JR., 1945 [2010], p. 130).

Em 1831 já havia sido aprovada pela Câmera dos Deputados uma Lei que extinguia o

tráfico no Brasil, entretanto essa lei não chegou a ser cumprida. Somente em 1850, após

intensa pressão da Inglaterra, é promulgada a Lei Eusébio de Queiroz, que proíbe o tráfico

interantlântico de escravos. O tráfico ilegal e o tráfico interno, contudo, intensificaram-se,

ocasionando a promulgação da Lei Nabuco de Araújo, em 1854, que previa sanções para as

autoridades que fizessem vistas grossas à continuidade do tráfico. Essas informações mostram

a forma enviesada e mesmo contraditória como a abolição do tráfico e a abolição da

escravidão eram tratadas:

A lei do Ventre Livre não resultou assim, em última análise, senão numa diversão, uma manobra em grande estilo que bloqueou muito mais que favoreceu a evolução do problema escravista no Brasil. Foi preciso um decênio para que renascesse o movimento libertador, que terá de esperar que as contradições inerentes à escravidão cheguem ao auge da crise. Isto efetivamente se verificará a partir de 1880 (PRADO JR, 2010 [1945], p.132).

36Caio Prado Jr. (2010 [1945]) destaca que em 1865, dentre os países da civilização ocidental, apenas Brasil e Cuba admitiam a prática da escravidão. Portugal ainda mantinha escravos em suas colônias, mas uma lei de 1858 já havia determinado o prazo de 20 anos para a libertação desses escravos.

59

É evidente que essas estratégias discursivas de silenciamento não garantem que não

sejam produzidos sentidos. A questão racial brasileira é suturada e saturada por esse “não-dito

que é história” (ORLANDI, 2007 [1996], p.23): os fatos históricos sempre significam junto à

língua e essa é uma condição própria da discursividade. Nesse contexto, os conflitos

ideológicos em torno da escravidão no Brasil – especialmente as variadas formas de assumi-la

ou negá-la – funcionaram como um acontecimento histórico e discursivo, visto que

pressionaram a constituição da FD Liberal:

[...] A ideia de emancipação começa a conquistar forças políticas importantes, e isto faz com que o Imperador, esquecido de suas fumaças progressistas, organize em 1868 um ministério fortemente conservador e francamente escravocrata, cujo primeiro ato é dissolver uma Câmara já excessivamente libertadora. Este fato terá grande repercussão na evolução política do Brasil, pois provocará a polarização das forças conservadoras e reformistas. No mesmo ano constitui-se um novo partido liberal que apresentará largo programa de reformas, inclusive a emancipação dos escravos, que pela primeira vez aparece entre os princípios oficiais de um partido. Dois anos mais tarde, a ala extrema deste partido agrupar-se-á sob a bandeira republicana (PRADO JR, 2010 [1945], p.131).

É desse lugar enunciativo que fala o sujeito Rui Barbosa. Passados cinqüenta anos da

Independência do Brasil, Rui fazia parte de uma geração de intelectuais que avaliava a luta

pela extinção do tráfico e do regime de escravidão como uma tentativa concreta de se

desvincular dos entraves ao desenvolvimento das atividades científicas no Brasil pós-colonial:

Esse impulso nacionalista [expresso, no âmbito literário, pelo Romantismo e pelos relatos de viajantes cientistas] viria a sofrer uma inflexão significativa no final do século XIX. Para a geração de 1870, o esforço de produzir uma identidade nacional gerou um sentimento de aversão aos tempos coloniais, identificando tudo que lembrasse Portugal ao passado e ao atraso [...]. Este antilusitanismo criou uma noção de brasileiro por negação ao português (VERGARA, 2003, p.38).

Evidenciadas as condições sócio-históricas de produção do discurso de Rui Barbosa,

informa-se que a análise se debruçará sobre os dizeres acerca do homem escravizado, a fim de

identificar se nesse discurso são formuladas imagens que se constituíram sobre o homem

negro no Brasil, uma vez que esse mesmo homem foi escravizado um dia. Além disso,

buscar-se-á observar de que forma esses dizeres compõem ou não uma formação discursiva

sobre o homem e a mulher negros brasileiros, funcionando como índice de sentidos que

constituem os discursos sobre essa população.

60

PARECER Nº 48-A: SOBRE O PROJETO DE EMANCIPAÇÃO DOS ESCRAVOS/ SESSÃO

DE 04 DE AGOSTO DE 1884.

“Em verdade, ampliado ao município, o perímetro de locomoção que se deixa ao liberto na fase

inicial da liberdade, não se pode tachar de acanhado. Versa toda a questão em saber se essa restrição

prática não importa um elemento de contradição na essência da liberdade, reconhecida aos

emancipados. Acreditamos que não.

O fim, a substância da escravidão moderna consiste em espoliar o escravo da propriedade do seu

trabalho, convertendo-o em instrumento mecânico da riqueza alheia. Restituindo-lhe sem limitação

alguma, essa propriedade, como fez o projeto, tem-se-lhe restituído a liberdade no seu princípio

essencial. Se, para imprimir a essa restituição o caráter de uma realidade viva, a condição moral da

raça escravizada impuser ao legislador certas e determinadas providências disciplinares, que não

esbulhem o liberto da mínima parcela da sua atividade em benefício alheio, desleal será indigitar

como disposição avessa à liberdade o que, pelo contrário, não é senão um meio de educar, nela e por

ela e para ela, uma classe de indivíduos absolutamente despreparada para a sua fruição racional e

profícua.

Em presença da liberdade, que instantaneamente se lhe franqueia, com a imensidade do nosso

território ante os olhos, o liberto, nos primeiros anos da sua aclimação na terra prometida de suas

esperanças, carece de mão amparadora, que o guie e precate contra os traços do desconhecido, o

gosto da indolência e o instinto inconsciente de aventuras. Fixado, por um período restrito, a uma

região dada, o manumitido experimentará, naturalmente, mais ou menos, a necessidade do trabalho e

tenderá a ele pela ação múltipla das influências que o circundam.

Sem o freio que se contém nessa saudável disciplina, em extremo improvável, se não de todo em

todo inexeqüível, se nos afigura o trabalho obrigatório, que o projeto igualmente estabelece.

Ora, acreditamos que os seus autores [do projeto] andaram, com sisudez, firmando a obrigação

do trabalho e proscrevendo a liberdade da preguiça, primeira forma, às vezes, da liberdade, no

espírito do homem imbecilitado, aviltado, ou desvairado pelo cativeiro.” (p.636-637)

Quadro 1: Trecho do Parecer nº 48-A, grifos do autor.

A leitura desse fragmento reafirma a posição contundente do liberal Rui Barbosa, cuja base

argumentativa tem raízes em um projeto maior, referente à implantação do Estado

Republicano. Para melhor entender o discurso de Rui Barbosa (daqui em diante DRB),

inscrito na Formação Discursiva Liberal, se faz necessário conhecer suas condições de

produção. No que se refere ao contexto imediato, é fundamental que se compreenda a tradição

científica brasileira no século XIX, em especial como as ideias liberais vicejaram no Brasil:

61

[...] Na verdade, a ideologia impessoal do liberalismo democrático jamais se naturalizou entre nós. Só assimilamos efetivamente esses princípios até onde coincidiram com a negação pura e simples de uma autoridade incômoda, confirmando nosso instintivo horror às hierarquias e permitindo tratar com familiaridade os governantes. A democracia no Brasil sempre foi um lamentável mal-entendido. Uma aristocracia rural e semifeudal importou-a e tratou de acomodá-la, onde fosse possível, aos seus direitos e privilégios, os mesmos privilégios que tinham sido, no Velho Mundo, o alvo da luta da burguesia contra os aristocratas. E assim puderam incorporar à situação tradicional, ao menos como fachada ou decoração externa, alguns lemas que pareciam os mais acertados para a época e eram exaltados nos livros e discursos (HOLANDA, 1995 [1936], p.160).

A FD Liberal, em que se inscreve o DRB, reúne formulações discursivas relacionadas à

defesa da liberdade, visto que a modernidade empreendida pelos liberais passava pela

conquista da autonomia plena37como requisito para a implantação da efetiva democracia.

Entretanto, a análise desenvolvida por Holanda (1995 [1936]) indica como o pensamento

político da época não estava restrito ao Liberalismo, e, para, além disso, como as fissuras

discursivas caracterizam o funcionamento interno dessa FD, demonstrando que não somente o

seu exterior é heterogêneo. Não se pode olvidar que a posição discursiva de um sujeito não se

constitui no vazio, ela dialoga com outras posições-sujeito, nesse caso, tanto no interior da FD

Liberal, quanto com posições-sujeito de demais FD’s.

O efeito de sentido produzido pelo funcionamento do DRB é a afirmação de uma

liberdade condicionada, que se opõe aos sentidos de liberdade irrestrita, mobilizados pela

forma-sujeito da FD Liberal. O confronto entre essas duas ideias de liberdade dentro da

própria FD Liberal reside na dupla condição do negro naquele contexto: enquanto mercadoria

e enquanto homem. Esse contraste é assumido pela posição-sujeito abolicionista do DRB, que

já no início do fragmento selecionado, efetua um esclarecimento a respeito das restrições de

tempo e espaço para o homem recém-emancipado:

Versa toda a questão em saber se essa restrição prática não importa um elemento de contradição na essência da liberdade, reconhecida aos emancipados.38

37 Faoro (2008 [1975]) ilustra essa concepção ampla de liberdade, no âmbito individual e no âmbito coletivo, citando um trecho de um jornal liberal, o Correio Nacional : “Emancipamos o indivíduo, garantindo-lhe a liberdade de culto, de associação, de voto, de ensino e de indústria; o município – reconhecendo-lhe o direito de eleger a sua polícia, de prover as suas necessidades peculiares, de fazer aplicação de suas rendas, e de criá-las nos limites de sua autonomia. A província – libertando-a da ação esterilizadora e tardia do centro, respeitando-lhe a vida própria, garantindo-lhe o pleno uso e gozo de todas as franquezas de sorte que eles administrem por si sem outras restrições além das estritamente reclamadas pela união e interesse geral” (FAORO, 2008 [1975], p.509). 38 A título de esclarecimento, informa-se que essa citação e as demais – extraídas de textos dos autores pesquisados – não obedecem às normas da ABNT (em relação ao número de linhas e aos termos em negrito), tendo em vista que a intenção aqui foi a de destacar os fragmentos mais significativos dos trechos selecionados para a análise.

62

Recordando o que diz Pêcheux (1997c), a respeito das formações imaginárias, é

possível observar, a partir dessa referência à “essência da liberdade”, a formulação de um

conceito específico para a ideia de liberdade, extraído do enunciado “Os homens nascem e são

livres e iguais em direitos”, do artigo 1º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão,

votada pela Assembléia Nacional Constituinte da França em 1789. A forma-sujeito histórica

da FD Liberal mobiliza sentidos que retomam esse enunciado do plano interdiscursivo,

atualizando-o no plano intradiscursivo.

Esses são os sentidos de liberdade que o sujeito do DRB quer preservar, mas o faz de

maneira ambígua, visto que no projeto de lei nº48 é imposta uma restrição de tempo e de

lugar a esse homem de sessenta anos, recém-saído do regime de espoliação vivenciado na

escravidão na qual vivera por toda a vida. A apreensão dessa contradição revela o trabalho

ideológico na produção dos sentidos: o sujeito do DRB tanto identifica e mobiliza sentidos da

memória da FD Liberal – ligados à ideia de liberdade como um direito humano, ao lado dos

demais princípios franceses de igualdade e fraternidade –, quanto identifica e mobiliza um

outro conceito, permeado por essa condição da escravização naturalizada do sexagenário

recém-liberto. A esse respeito, o enunciado abaixo, referente à restituição da liberdade, é

ilustrativo:

Se, para imprimir a essa restituição o caráter de uma realidade viva, a condição moral da raça escravizada impuser ao legislador certas e determinadas providências disciplinares, que não esbulhem o liberto da mínima parcela da sua atividade em benefício alheio, desleal será indigitar como disposição avessa à liberdade o que, pelo contrário, não é senão um meio de educar, nela e por ela e para ela, uma classe de indivíduos absolutamente despreparada para a sua [da liberdade] fruição racional e profícua.

Note-se que o fragmento destacado traz a caracterização do escravo sexagenário como

um ser dependente, que, diante da liberdade concedida, ainda não sabe como agir, ou seja,

como uma criança a quem têm que ser ensinadas as normas de conduta social. Essa

infantilização do escravo, corrente na literatura brasileira ainda no pré-abolição

(BROOKSHAW apud PROENÇA FILHO, 2004) é contínua às ideias de subserviência e

servilismo que, por serem enunciadas pela forma-sujeito da FD Liberal, não são tidas como

característica inerente ao escravo, mas como características que, momentaneamente, lhes são

atribuídas. A observância do enunciado seguinte traz mais dados sobre essa questão:

Em presença da liberdade, que instantaneamente se lhe franqueia, com a imensidade do nosso território ante os olhos o liberto, nos primeiros anos da sua aclimação na terra prometida de suas esperanças, carece de mão amparadora, que o guie e

63

precate contra os traços do desconhecido, o gosto da indolência e o instinto inconsciente de aventuras.

As expressões em destaque são significativas, por desnaturalizarem a ideia do homem

escravo, contrapondo-a a ideia do homem escravizado. Considerando que as noções de

igualdade e liberdade são centrais para os sentidos mobilizados na FD Liberal, o sujeito da

DRB organiza os sentidos em um espaço discursivo em que a igualdade entre os indivíduos

está condicionada ao reconhecimento dos impactos da experiência no cativeiro para o homem

escravizado como obstáculos à sua adaptação às regras da sociedade pós-colonial que então

se firmava. Assim, a responsabilidade pelo papel inferiorizado nas relações sociais no Brasil

do século XIX é atribuída não ao indivíduo escravizado, mas ao regime que o escravizou,

como se verifica no trecho abaixo:

Fixado, por um período restrito, a uma região dada, o manumitido experimentará, naturalmente, mais ou menos, a necessidade do trabalho e tenderá a ele pela ação múltipla das influências que o circundam.

Em que pese essa distinção efetuada pelo sujeito do DRB, o jogo metafórico próprio da

prática discursiva é o que perpassa o deslizamento dos sentidos envolvendo as questões

raciais no Brasil, constatado nesse movimento de transferência de sentidos entre o homem

escravo, o escravo liberto (o alforriado) e o homem negro livre ontem e hoje. Para melhor

compreender como se dá esse jogo de significações é preciso atentar que, para a AD, a relação

fundamental entre língua e história é marcada pelo equívoco – o sentido é o mesmo e o

sentido é outro.

A análise do texto de Rui Barbosa em sua materialidade discursiva fornece elementos

que possibilitam enxergar de que maneira a construção dessa ideia de incapacidade de

adaptação do homem negro escravizado ao trabalho livre, característico da sociedade

moderna, foi, paulatinamente sendo (re)significada como uma ideia de inferioridade do

homem negro livre. Entretanto, o deslizamento de sentidos, caracterizado pela substituição de

uma ideia por outra não implica no apagamento dos sentidos anteriores – essa relação entre o

mesmo e o outro é o que garante a presença constitutiva da historicidade no discurso.

Assim, o fato de haver uma propagação de sentidos que inferiorizam o homem negro

brasileiro não quer dizer que apenas essa interpretação seja possível, mas sim, que uma gama

expressiva de discursos sobre as relações raciais brasileiras vem se constituindo sob essa

ótica: “[...] o mesmo já é produção da história, já é parte do efeito metafórico. A historicidade

está aí representada justamente pelos deslizes (paráfrases) que instalam o dizer no jogo das

64

diferentes formações discursivas.” (ORLANDI, 2007 [1996], p.81). Dado o lugar ideológico

da forma-sujeito do DRB e dos demais sujeitos enunciadores de atuais discursos sobre as

relações raciais brasileiras, verifica-se, então, esse primado do mesmo sobre o outro,

materializado no efeito metafórico que conjuga uma identidade inferiorizada, tanto para o

homem escravizado, como para o homem negro.

No processo de circulação desses discursos são significativas as reflexões feitas pelos

diversos autores que, ao longo do século XIX e do século XX, dissertaram sobre o escravismo

e/ou sobre o homem negro escravizado no Brasil. Inicialmente, põe-se em destaque o próprio

Rui Barbosa, que define bem esse cenário deveras polissêmico:

Ninguém, neste país, divinizou jamais a escravidão. Ninguém abertamente a defendeu, qual nos estados separatistas da União Americana, como a pedra angular do edifício social. Ninguém, como ali, anatematizou na emancipação um atentado perturbador dos desígnios providenciais. Todos são, e têm sido emancipadores,

ainda os que embaraçavam a repressão do tráfico, e divisavam nele uma conveniência econômica, ou um mal mais tolerável do que a extinção do comércio negreiro (BARBOSA, 1985 [1884], p.547).

O escravismo, enquanto acontecimento sujeito à interpretação, não se encaixa em uma

única ordem discursiva, significando de variadas maneiras. Em sua obra clássica39, Joaquim

Nabuco escreveu, por exemplo, que “o mau elemento da população não foi a raça negra, mas

essa raça reduzida ao cativeiro” mas, logo adiante, também afirmou que “ Muitas das

influências da escravidão podem ser atribuídas à raça negra, ao seu desenvolvimento mental

atrasado, aos seus instintos bárbaros ainda, às suas superstições grosseiras.” (NABUCO, 2000

[1883], p. 62-63). Essa oscilação entre a imagem de um homem escravo inferiorizado e a

imagem de um homem negro inferior é peça fundamental no processo metafórico de

deslizamento de sentidos acerca das questões raciais brasileiras.

Já no século XX, Caio Prado Jr., comentando sobre as dificuldades de mobilização e

engajamento dos escravos na luta antiescravidão, diz que o tráfico trouxe ao país “africanos

de baixo nível cultural” (PRADO JR., 2010 [1945], p.103). Celso Furtado, dissertando sobre

a participação da população negra na economia brasileira, dá continuidade à constituição

dessa imagem: “Cabe tão somente lembrar que o reduzido desenvolvimento mental da

população submetida à escravidão provocará a segregação parcial desta após a abolição,

retardando sua assimilação e entorpecendo o desenvolvimento econômico do país.”

(FURTADO (2007 [1959], p.204). Por outro lado, nessa mesma obra a imagem do escravo

inapto é atenuada pela influência do escravismo na sua condição moral: 39 O Abolicionismo, publicado em Londres no ano de 1883.

65

[...] O homem forçado dentro desse sistema social está totalmente desaparelhado para responder aos estímulos econômicos. Quase não possuindo hábitos de vida familiar, a ideia de acumulação de riqueza é praticamente estranha. Demais, seu rudimentar desenvolvimento mental limita extremamente suas “necessidades”. Sendo o trabalho para o escravo uma maldição e o ócio o bem inalcançável, a elevação de seu salário acima de suas necessidades – que estão definidas pelo nível de subsistência de um escravo – determina de imediato uma forte preferência pelo ócio (FURTADO, 2007 [1959], p.203-204).

Essa divisão de sentidos sobre a temática racial materializada na heterogeneidade de

posições de sujeito dentro das FDs tem correspondência, certamente, na diversidade de

posicionamentos ideológicos a respeito da questão escrava no Brasil, a qual envolve, além

dos óbvios aspectos econômicos e políticos, o aspecto identitário. Nesse contexto, são

importantes as contribuições de Sérgio Buarque de Holanda, que define o Brasil do século

XIX como um país “preso à economia escravocrata com os trajes modernos de uma grande

democracia burguesa.” (HOLANDA, 1995 [1936], p.79), e de Florestan Fernandes (2008

[1964]), que, ponderando sobre a abolição legal da escravidão, indica que ela não significou a

imediata desvinculação do liberto de sua imagem de escravo40. Para esse autor essa relação

ambígua se manteve para o “homem de cor” que passou a ser vinculado ao status de liberto,

mesmo após o limiar do século XX:

Em plena fase de consolidação da ordem social competitiva e do regime de classes, a “população de cor” subsiste numa posição ambígua, representada, confusamente, como se constituísse um estamento equivalente aos ocupados pelos “libertos” na velha estrutura social. Ora, essa situação esdrúxula é altamente esclarecedora. Pois identifica quais são as raízes históricas da degradação social do “homem de cor” no seio do novo sistema econômico: a perpetuação indefinida de padrões de ajustamento racial que pressupunham a vigência de critérios anacrônicos de atribuição de status e papéis sociais ao negro e ao mulato (FERNANDES, 2008 [1964], p.303).

Essas variadas referências ao escravismo e ao homem negro escravizado expõem a

complexidade da conjuntura sócio-histórica do pré e pós-abolição: se por um lado, no DRB

não havia sinonímia entre essas categorias supracitadas, por outro lado, nas práticas sociais

efetivas já havia uma relação de transferência de sentidos. O imbróglio em torno da questão

racial brasileira está ligado a essa imprecisão de termos e definições: a sociedade do pós-

40È importante destacar que Fernandes (2008), ao fazer referência à complexidade em torno da identificação e dos padrões de hierarquização racial no século XX, dirige sua crítica à permanência de efeitos do escravismo enquanto sistema, não sendo feita menção a processos de discriminação racial prévios ao escravismo, conforme apontado por outros autores como Hasenbalg (2005 [1979]). A alusão a Fernandes não se configura como uma opção por este olhar teórico, apenas como uma tentativa de demonstrar um dos muitos olhares sobre essa questão em uma determinada época.

66

abolição conviveu, simultaneamente, com a ideia do escravo-propriedade e com a ideia do

negro-cidadão.

Do ponto de vista teórico, a associação entre o homem escravo e o homem negro não

era, ainda, objeto de reflexão para os intelectuais da época. Com a extinção do regime

escravocrata, ocorrem mudanças definitivas no modelo de sociedade, que de estamental, passa

a organizar-se em classes, fazendo com que se iniciem os questionamentos sobre como

proceder na nova ordem social, mas também sobre como se davam as relações na velha ordem

social: “A sociedade, ao se desmitificar, sofre a convulsiva pressão de elementos que, nunca

postos em debate e em dúvida, pareciam inexistentes.” (FAORO, 2008 [1975], p.515).

Com essas alusões deseja-se mostrar como, ao longo do século XX e início do século

XXI, vem havendo um processo de transferência de sentidos, caracterizado pela associação

entre os discursos sobre o escravo brasileiro e os discursos sobre o negro brasileiro, mais

especificadamente no que tange à responsabilidade pelo status social. A construção dessa

equivalência entre “classe” e “raça” implica na constituição de uma imagem de desvio

psicológico do indivíduo negro brasileiro. Nesse contexto, o negro brasileiro, desde o período

pré-abolição até a contemporaneidade, vem sendo signo desta ideia de alguém que produz e

mantém os seus próprios problemas, como acentua Hasenbalg (2005 [1979], p.63):

[...] a posição subordinada dos negros é explicada como função de traços “patológicos” auto-sustentados do grupo – anomia e desorganização social, desagregação da família e cultura da pobreza. Nesse tipo de análise, os negros são apresentados como vítimas de seus supostos defeitos, o racismo branco é subestimado e a pobreza torna-se uma condição que se autoperpetua.

Nesse processo de desigualdade legitimada – em que a ênfase ao escravismo como

causa natural da imbecilização ou desvario do escravo escamoteia da cena discursiva as

questões raciais – o que deve ser notado é que a sua atualização em diferentes textualizações

possibilita que em dois momentos históricos tão distintos – período pré-abolição da

escravatura e contemporaneidade – “ser escravo” e “ser negro” signifiquem de forma

recorrente, pressupondo a inferioridade negra. Esse movimento parafrástico somente é

possível porque esses enunciados estão inscritos em uma FD específica, a FD Liberal, cuja

matriz argumentativa está associada, dentre outros, ao princípio da igualdade sem distinções,

inclusive raciais – a expressão “igualdade para todos” funciona, assim, como “não há

desigualdades”.

Se, em termos discursivos, o ineditismo é mesmo uma falácia, essa equivalência entre o

escravo e o negro indica um aspecto importante da historicidade constitutiva das formas de

67

textualização dos discursos sobre as relações raciais brasileiras: ao longo do século XX e

século XXI, o discurso liberal da igualdade para todos tem sido utilizado para atribuir ao

indivíduo a responsabilidade por sua inadequação social, seja na condição do homem escravo

inadaptável ao modelo republicano de sociedade, seja na condição do homem negro

inadaptável a determinados padrões sociais atuais.

Dessa forma, a observância desses deslizamentos de sentidos aponta para práticas

parafrásticas como “Os negros são preguiçosos”; “Eu não teria coragem de ser atendida por

um médico negro”; “Você confiaria em eleger um negro para presidente da República?”;

“Negros são pobres porque não se esforçam, só querem saber de festa, não gostam de

trabalhar”41, as quais atualizam o interdiscurso sobre a questão escrava no Brasil,

demonstrando que, em muitos momentos da história brasileira, o sentido sobre o que é ser

escravo e o sentido sobre o que é ser negro se tocam, fazendo estremecer e se entrecruzarem

as barreiras das FDs em que eles são produzidos.

No que tange ao desdobramento dos sentidos, Orlandi (2001a) salienta que uma

mudança da base argumentativa não implica em necessária mudança de formação discursiva,

muitas vezes sendo uma “renovação” de argumentos ainda ligados à mesma formação

ideológica. Entende-se, portanto, que essa imagem corrente do negro como um eterno

subordinado, carente dos elementos necessários para que seja um efetivo cidadão, cônscio de

seus direitos e deveres, traz, em seu bojo, as ideias acerca do escravo no século XIX,

atualizando, assim, a natural oposição entre o ser escravo e o ser cidadão.

4.2 NINA RODRIGUES E A INFERIORIDADE NEGRA

A raça negra no Brasil, por maiores que tenham sido os seus incontáveis serviços à nossa civilização, por mais justificadas que sejam as simpatias de que a cercou o revoltante abuso da escravidão, por maiores que se revelem os generosos exageros dos seus defensores, há de constituir sempre um dos fatores da nossa inferioridade como povo.

Nina Rodrigues

Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906) nasceu no Maranhão, concluiu os seus estudos

em Medicina no Rio de Janeiro, em 1886, mas foi na Bahia que fixou residência e

41 Tais enunciados circulam em diversas esferas da sociedade, prioritariamente no plano das relações informais, sendo especialmente motivados pelas experiências de ascensão social de setores da população negra brasileira.

68

desenvolveu suas pesquisas. Apesar da curta vida, sua produção intelectual é extensa,

firmando-se como um dos mais importantes pesquisadores brasileiros na área das relações

raciais. Seus escritos, produzidos no entre-séculos e amparados em uma “ciência determinista

e raciológica” (SCHWARCZ, 2005, p.249), são ainda hoje fundamentais para a compreensão

dos dilemas nacionais no período pós-abolição, em especial sobre o problema da

miscigenação racial nos anos de transição do Império para a República. Nesse contexto, a

leitura da obra de Nina Rodrigues sobre essa questão, tão cara às reflexões em torno da

identidade brasileira, são significativas para que se compreenda o papel da ciência nesse

período.

De início é necessário destacar que a década de 1870 reúne diversos fatos históricos que

funcionaram como acontecimentos discursivos, propiciando o surgimento de novas FDs.

Dentre estes fatos, o término da Guerra do Paraguai e a promulgação da Lei do Ventre Livre

acentuam as contradições do Império, àquela altura, já sem credibilidade política, e,

simultaneamente, trilham o caminho para o eminente fim do escravismo no Brasil (PRADO

JR.,2010[1945]; SCHWARCZ,2008[1993]). Além desses eventos, também a Campanha

Republicana traz essa ruptura, reafirmando os ideais liberais herdeiros da Revolução Francesa

– já presentes nos acontecimentos que antecederam a Independência do Brasil, de Portugal,

em 1822 – mas também soprando nos ares tupiniquins os ecos de teorias raciais européias

afinadas ao ideário cientificista, tais como o positivismo, o evolucionismo, o naturalismo e o

darwinismo42 (SCHWARCZ, 2008 [1993]).

Em geral, os estudiosos a esse respeito assinalam os períodos entre-séculos – XVIII e

XIX; XIX e XX – como os dois momentos para a difusão, no Brasil, dessas ideias

cientificistas, marcadas pela objetivação de categorias, mensuráveis por critérios

deterministas, tido como científicos. O pensamento cientificista autorizava que somente o

modelo das ciências naturais de apreensão do conhecimento fosse considerado válido,

considerando todas as outras formas de conhecimento humano como não-ciência,

pertencentes ao domínio teológico-metafísico, visto que não poderiam ser comprovadas

mediante a observação e experimentação43 (DANTES, 1996; VERGARA, 2003; BOTELHO,

2010).

42Tem-se consciência de que os comentários feitos não conseguirão abordar a complexidade e profusão de correntes científicas que se debruçavam sobre a questão racial ao longo de todo o século XIX, os exemplos citados apenas pretendem ilustrar a variedade de teorizações e aplicações do conceito raça. 43 A fim de ilustrar a firmeza das posições cientificistas, Schwarcz (2008 [1993]) relata um episódio ocorrido na defesa da tese de doutoramento de Sílvio Romero (1851-1914), um dos mais contundentes intelectuais dessa época. Na ocasião, o doutorando foi arguido por um dos integrantes da banca, o professor Coelho Rodrigues, acerca da sua oposição à metafísica. Segue-se o relato:

69

Entre esses dois momentos, é a geração de intelectuais da década de 1870 que,

indubitavelmente, vivencia de forma mais intensa esse desejo cientificista, até como fruto do

amadurecimento de um processo de criação de instituições de pesquisa, museus e

estabelecimentos de ensino, iniciado em 1808 – com a vinda da Família Real Portuguesa para

o Brasil – e desenvolvido ao longo do século XIX. Entretanto, em que pesem essas iniciativas

de propagação científica, Schwarcz (2008 [1993]) chama a atenção para o fato de que esse

espírito cientificista da geração de 1870 correspondia mais a uma moda, presente em

publicações literárias, do que a uma efetiva produção científica.

Essa desterritorialização das ideias científicas européias no Brasil não é inédita, afinal

também as ideias liberais passaram por esse percurso, sendo adaptadas a um cenário bem

diferente no qual foram geradas. Vários autores já cumpriram a função de refletir sobre o

aspecto mal-sucedido das adaptações do pensamento científico europeu no Brasil44

(HOLANDA, 1995 [1936]; SCHWARCZ, 2009 [1973]), entretanto para que melhor se

entenda a sua função na formação do pensamento científico brasileiro, recorre-se a Schwarcz

(2008 [1993], p.243): “O desafio é pensar na originalidade da cópia e na elasticidade desse

tipo de doutrina, aplicada em contextos tão díspares”.

Sabendo que o traço em comum entre essas distintas teorias – como o darwinismo

social e a etnologia social evolucionista – é o de terem sido usadas como tentativas de

responder à miscigenação racial, assumida por grande parte dos teóricos dessa época como “o

problema” brasileiro, torna-se perfeitamente compreensível perceber, como aponta Schwarcz

(2008 [1993]) que o mais interessante não é buscar o sentido original dessas teorias, o qual

teria sido perdido, quando incorporadas pelos intelectuais brasileiros, mas sim, perceber

como, discursivamente, elas funcionaram e continuam funcionando para constituir sentidos

sobre a identidade brasileira.

Efetuadas essas reflexões sobre as condições de produção do discurso de Nina

Rodrigues (doravante DNR), põem-se em destaque os textos desse autor selecionados para a

análise: trechos do livro As raças humanas e a responsabilidade penal no Brazil, livro

“– Nisto não há metafísica, há lógica. – A lógica não exclui a metafísica, respondeu o argüente. – A metafísica, não existe mais, se não sabia, o saiba, treplicou o doutorando. – Não sabia, retruca esse. – Pois vá estudar e aprender para saber que a metafísica está morta. – Foi o senhor quem a matou?, perguntou-lhe então o professor. – ‘Foi o progresso, a civilização’ ”. (Schwarcz, 2008 [1993], p.148) 44 Na seção anterior, quando foi feita a análise da FD Liberal e do Discurso de Rui Barbosa, algumas dessas reflexões foram destacadas.

70

publicado em 1894 e dedicado a Cesare Lombroso, antropólogo criminalista de renome da

época45; trechos do artigo Mestiçagem, degenerescência e crime, publicado na França, em

1889 e somente traduzido no Brasil na ocasião do centenário de sua morte, por Mariza Correa.

As duas obras escolhidas têm em comum o fato de que o seu autor é um “homem de

sciencia”, um médico refletindo sobre a mestiçagem racial no período pós-abolição, um

“problema” que, na época, era percebido exclusivamente sob o viés biológico. Em As raças

humanas e a responsabilidade penal no Brazil, o autor faz uma longa reflexão de cunho

médico-legal sobre a necessidade de aplicação do direito relativo quando em julgamento estão

“as raças inferiores”, às quais, por sua condição degenerada, não podem ser imputados o

discernimento e o livre-arbítrio.

Nessa obra, Nina Rodrigues, embora ressalte a ausência de unidade étnica, apresenta

uma divisão da população brasileira entre dois grandes grupos: os puros, cujos elementos

antropológicos não foram cruzados – a raça branca (brancos e europeus); a raça negra

(africanos e crioulos) e a raça vermelha ou indígena (índios) – e os mestiços, resultantes de

cruzamento – os mulatos, mescla de brancos com negros; mamelucos ou caboclos, mescla de

brancos com índios; os curibocas ou cafuzos, mescla de negros com os índios46. Diante dessa

classificação são consideradas “raças inferiores”: o índio, o negro e o mestiço, em geral. Feito

esse preâmbulo, passemos aos textos selecionados.

AS RAÇAS HUMANAS E A RESPONSABILIDADE PENAL NO BRAZIL

Se, de facto, a evolução mental na especie humana é uma verdade, á medida que descermos a

escala evolutiva, a mais e mais nos deveremos approximar das acções automaticas e reflexas iniciaes.

Deste geito, nas raças inferiores, a impulsividade primitiva, fonte e origem de actos violentos e anti-

sociaes, por muito predominarão sobre as acções reflectidas e adaptadas, que só se tornaram

possiveis, nas raças cultas e nos povos civilisados, com o apparecimento de motivos psychicos de

uma ordem moral mais elevada (p.58).

Em tal paiz, o germen da criminalidade, — fecundado pela tendencia degenerativa do

mestiçamento, pela impulsividade dominante das raças inferiores, ainda marcadas do estygma

45Cesare Lombroso foi, sem dúvida, o grande nome da Antropologia Criminal no século XIX, desenvolvendo uma teoria evolucionista peculiar, firmada em dados antropométricos (GOULD, 1991 [1999]). Essa referência feita por Nina Rodrigues se dá atendendo aos princípios gerais da obra de Lombroso, visto que em outras publicações, Nina expressará críticas e divergências em relação ao pensamento lombrosiano. 46 Considerando o período em que tal classificação foi feita, não deixa de ser admirável o tempo em que ela permaneceu vigente como conhecimento científico, conquanto expresse uma taxonomia humana já comprovadamente equivocada. A autora dessa dissertação recorda-se, por exemplo, de ter estudado tais termos no conteúdo de História do Brasil no primário, há pouco mais de vinte anos.

71

infamante da escravidão recentemente extincta, pela consciencia geral, prestes a formar-se, da

inconsistencia das doutrinas penes fundadas no livre arbítrio —; semeado em solo tão fertil e

cuidadosamente amanhado, ha de por força vir a produzir o crime em vegetação luxuriante, tropical

verdadeiramente (p.115).

Quadro 2: Trechos do livro As raças humanas e a responsabilidade penal no Brazil, de Nina Rodrigues ( 2010 [1894]).

Sabendo que a materialidade discursiva é constituída por elementos de historicidade que

precisam ser esquecidos para (re)significarem no nível intradiscursivo é importante que se

perceba como a forte presença do cientificismo no DNR está associada às teorias de cunho

biológico que foram sendo divulgadas ao longo de todo o século XIX, conforme destaca

Botelho (2010):

Sob o influxo do naturalismo, em geral, e do darwinismo social, em particular, o biológico foi adotado no período como modelo epistemológico cientificamente legítimo de explicação da realidade social, configurando, assim, ideias como a de uma luta universal dos organismos pela sobrevivência e, derivação necessária, de uma hierarquia natural que dividiria a humanidade em raças superiores e inferiores. Tomando esses dogmas como leis científicas, não apenas a intelectualidade brasileira, mas a latino-americana em geral, formulou uma série de diagnósticos sobre o trágico destino reservado às nações egressas do sistema colonial em função das suas constituições étnicas – teses aprendidas no Ensaio sobre a desigualdade das raças (1853) do publicista do colonialismo europeu Arthur de Gobineau (1816-82).(BOTELHO, 2010, p.01)

Com a geração de 1870 (e subsequentes), a velha ordem mundial, representada pelas

visões românticas e liberais, foi substituída pela objetividade das ciências naturais (geologia,

botânica e zoologia), das ciências biomédicas e das ciências etnográficas/antropológicas, das

quais Nina Rodrigues é um exímio representante. A associação entre ciência e determinismo

presente nos escritos desse autor será crucial para a constituição e estabilização de uma

Antropologia Criminalista, que, inspirado pelos princípios positivistas, conjugava

conhecimentos da Medicina e do Direito para defender a distinção entre os grupos raciais que

compunham o Brasil. Como lembra Vergara (2003, p.170): “A abolição não resolveria a

questão racial. A República dispersou o movimento abolicionista e deslocou este problema

como algo a ser tratado pela ciência”.

É em torno desse amálgama que escreve Nina Rodrigues, enquanto um “homem de

sciencia” de sua época, que traz “o problema racial brasileiro” para o âmbito da ciência,

mesclando, como tantos outros intelectuais, as nem sempre convergentes doutrinas da

72

época47. Dentre essas teorias, gestadas em solo europeu, a influência geral do positivismo é

expressiva48, mas também se destacam as diversas formas de evolucionismo social – em que a

humanidade estaria dividida por etapas de progresso – e de determinismo, seja geográfico –

em que as possibilidades de desenvolvimento de uma nação poderiam ser mensuradas a partir

de influências ambientais como clima e solo, seja racial – em que era afirmada a existência e a

superioridade de raças puras.

Essas teorias têm em comum as especulações em torno do convívio com outros homens

que não fossem os europeus. No Brasil mestiço do século XIX essas teorias foram

interpretadas a partir do pressuposto da superioridade de determinados grupos sobre outros.

Dessa forma, a peculiaridade do funcionamento discursivo das teorias cientificistas no Brasil

reside na existência da miscigenação e mestiçagem racial, fato ausente nos países europeus e

que aqui funcionou como um acontecimento histórico e discursivo, visto que a adaptação

dessas teorias à realidade brasileira fomentou a constituição de novas FDs cientificistas, em

que, além da diferença racial, estava posta a hierarquização racial:

Largamente utilizado pela política imperialista européia, esse tipo de discurso evolucionista e determinista penetra no Brasil a partir dos anos 70 como um novo argumento para explicar as diferenças internas. Adotando uma espécie de “imperialismo interno”, o país passava de objeto a sujeito das explicações, ao mesmo tempo que se faziam das diferenças sociais variações raciais. Os mesmos modelos que explicavam o atraso brasileiro em relação ao mundo ocidental passavam a justificar novas formas de inferioridade. Negros, africanos, trabalhadores, escravos e ex-escravos – “classes perigosas” a partir de então – nas palavras de Sílvio Romero transformavam-se em “objetos de sciencia” (...) [Prefácio à obra “Africanos no Brasil”, de Nina Rodrigues]. Era a partir da ciência que se reconheciam diferenças e se determinavam inferioridades (SCHWARCZ, 2008[1993], p.28).

O DNR está inscrito em uma FD Científico-Racialista, cuja forma-sujeito está calcada

nesse cientificismo determinista racial, sinônimo da modernidade aspirada pela geração de

1870. Buscar os indícios desse cientificismo no DNR não é tarefa difícil, pois a valorização da

ciência biomédica como instrumento de compreensão do mundo permeia e constitui o lugar

enunciativo do sujeito Nina Rodrigues. A esse respeito, observe-se o primeiro enunciado

destacado:

47 “No Brasil, evolucionismo combina com darwinismo social, como se fosse possível falar em ‘evolução humana’, porém diferenciando as raças; negar a civilização aos negros e mestiços sem citar os efeitos da miscigenação já avançada. Expulsar ‘a parte gangrenada’ e garantir que o futuro da nação era branco e ocidental’” (SCHWARCZ, 2008[1993]). 48 Dantes (1996) lembra que o Positivismo foi rapidamente assimilado pelos intelectuais brasileiros, desde a década de 1840. De acordo com a autora, as demais teorias evolucionistas só começaram a ser apreendidas a partir da década de 1870.

73

Se, de facto, a evolução mental na especie humana é uma verdade, á medida que descermos a escala evolutiva, a mais e mais nos deveremos approximar das acções automaticas e reflexas iniciaes. Deste geito, nas raças inferiores, a impulsividade primitiva, fonte e origem de actos violentos e anti-sociaes, por muito predominarão sobre as acções reflectidas e adaptadas, que só se tornaram possiveis, nas raças cultas e nos povos civilisados, com o apparecimento de motivos psychicos de uma ordem moral mais elevada.

A leitura interpretativa do trecho em destaque indica uma completa identificação do

sujeito que enuncia o DNR com a forma-sujeito da FD Científico-Racialista. A referência

feita ao paradigma cientificista que associa a evolução da humanidade à evolução de cada

grupo racial é um fiel espelho das pesquisas da época, especialmente na área da frenologia e

antropometria, como os estudos desenvolvidos por Lombroso, que avaliavam a capacidade

humana a partir da sua extensão cerebral (SCHWARCZ, 2008[1993]).

Conforme frisa Schwarcz (2008[1993]), o aspecto racial vai reorganizar as teorias

cientificistas, atribuindo-lhe a ambiguidade de uma racialização que não se declara por

completo, visto que essas FDs vão circular em um espaço discursivo em que há a recusa à

existência de grupos raciais, cujo liame eram as ideias liberais: “Com efeito, esse período

coincide com a emergência de uma nova elite profissional que já incorporara os princípios

liberais à sua retórica e passava a adotar um discurso científico evolucionista como modelo de

análise social” (SCHWARCZ, 2008 [1993], p.28).

A tensão entre os liberais e os racialistas terá sua materialidade nas polêmicas

intelectuais entre os representantes da área jurídica e os representantes da área médica49,

sendo que os primeiros, circunscritos às esferas institucionais, caracterizavam-se por uma

postura de negação da categoria raça como instrumento de análise e os segundos, presentes no

campo da representação popular, utilizavam essa categoria, expressando-a na noção de escala

evolutiva conforme diz o sujeito do DNR. A oposição de Nina Rodrigues, enquanto médico,

ao pensamento liberal é bem discutida por VERGARA (2003, p.161-162):

Nina Rodrigues se destacou, com seu enfoque médico e etnológico na crítica aos pressupostos liberais. A concepção liberal de justiça, apoiada na universalidade das ideias entraria em contradição com a realidade do país, marcada pela diversidade étnica. Para a elite, a existência de raças não-brancas desestabilizaria os princípios fundamentais do liberalismo, como o livre-arbítrio e a capacidade de discernimento, tornando problemática a implantação de um sistema político baseado em eleições periódicas.

49 Analisando as produções científicas e publicações jornalísticas do período compreendido entre os anos 1870 e 1930, Schwarcz (2008[1993]) destaca o caráter liberal das Faculdades de Direito de Recife e de São Paulo e, em contrapartida, o determinismo racial presente nas Faculdades de Medicina da Bahia e Rio de Janeiro.

74

Dessa forma, a alusão à inconsistencia das doutrinas penes (penais) fundadas no

livre arbítrio feita pelo sujeito do DNR expressa materialmente as apreciações do sujeito da

FD Científico-Racialista sobre os pressupostos da FD Liberal. A classe jurídica, que então

organizava o primeiro Código Civil da República, era alvo das críticas do sujeito cientificista

justamente porque a criminalidade, considerada como uma doença associável ao problema da

mestiçagem racial (o germen da criminalidade, – fecundado pela tendencia degenerativa

do mestiçamento), não poderia ser analisada apenas por advogados e juristas, sendo essencial

a contribuição da medicina para elucidar essa questão. Novamente aqui se vê uma total

concordância entre a posição-sujeito do DNR e a forma-sujeito da FD Científico-Racialista, a

qual enfatiza a origem racial para efetuar as distinções entre a humanidade.

Nota-se, portanto, que a maneira como as teorias cientificistas foram reelaboradas

diante da miscigenação racial brasileira desencadeou, do ponto de vista intelectual, uma série

de embates entre o Direito e a Medicina, acontecimento que propiciou a atribuição de novos

sentidos para o conceito “raça”, ou, em outras palavras, o surgimento de novos50 discursos

raciais. Esse período entre os séculos XIX e XX constitui, assim, o palco onde se

desenvolvem e se afirmam produções científicas, marcadas pela flexibilização do conceito

“raça”:

Raça é um dado científico e comparativo para os museus; transforma-se em fala oficial nos institutos históricos de finais do século; é um conceito que define a particularidade da nação para os homens de lei; um índice tenebroso na visão dos médicos. O que se percebe é como em determinados contextos reelaboram-se símbolos disponíveis dando-lhes um uso original. Se a diferença já existia, é nesse momento que é adjetivada (SCHWARCZ, 2008 [1993], p.242).

Essa disputa pelos sentidos de raça mostra que sob a ilusão do sentido único se esconde

um trabalho de seleção das possibilidades de identificações/interpretações da forma-sujeito, o

qual ocasiona um cerceamento dos sentidos possíveis nos limites das FDs (ORLANDI, 2007).

Dessa maneira, em meio a essas tentativas de controle pela autoria original e legítima, põem-

se em relevo duas FDs expressivas: a FD Liberal, que reúne discursos ligados ao componente

jurídico na esfera institucional e a FD Científico-Racialista, que reúne discursos ligados ao

componente medicinal na esfera pública.

Entretanto, se o estabelecimento de diferenças raciais e a condenação da mestiçagem

são as bases do DNR inscrito na FD Científico-Racialista, é preciso resistir ao desafio de

50 A utilização do termo “novos” não implica que esses discursos sejam inéditos. Fala-se aqui, de uma atualização de uma rede discursiva, princípio corrente na AD, conforme explicado anteriormente.

75

pensar rigidamente o discurso. Assim, em um exercício descritivo-interpretativo, põe-se em

evidência o funcionamento dos saberes da igualdade jurídica presentes na FD Liberal,

identificando-os como um acontecimento enunciativo que provoca rupturas na FD Científico-

Racialista, instaurando uma nova posição-sujeito, que, apesar de divergir da forma-sujeito

dominante dessa FD Científico-Racialista, não chega a causar a formação de uma nova FD.

Pensando na FD Científico-Racialista como um regime de saber que atribui à

miscigenação racial as causas da degeneração da espécie, é possível notar uma quebra dessa

base argumentativa, pois ainda que a posição-sujeito do DNR continue afirmando que são

inferiores os índios, os negros e os mestiços, há, de certa maneira, uma modalização

enunciativa desse grau de sujeição, na medida em que o fato de ter sido escravizado faz

sentido, constituindo o homem negro como alguém que teve suas características degenerativas

acentuadas pelo processo da escravidão, conforme evidencia o seguinte enunciado:

impulsividade dominante das raças inferiores, ainda marcadas do estygma infamante da escravidão recentemente extincta.

Note-se, aí, portanto, a emergência, dentro do DNR, de uma posição-sujeito que

mantêm os princípios lombrosianos próprios da FD Científico-Racialista – de que aspectos da

anatomia humana podem ser utilizados para indicar sinais inatos de criminalidade –, mas

aceita, ao mesmo tempo, um dos saberes da FD Liberal – a igualdade jurídica entre os homens

fora afetada pela escravidão, que atua no processo de inferiorização do elemento negro. A

esse respeito, observe-se a reflexão de Gould (1999[1991]):

Os antropólogos criminais lombrosianos não eram sádicos abjetos, protofascistas, ou mesmo ideólogos políticos conservadores. Eram antes partidários de uma política liberal e até mesmo socialista, e consideravam-se pessoas modernas iluminadas pela ciência. Tinham a esperança de usar a ciência moderna para varrer da jurisprudência a antiquada bagagem filosófica do livre arbítrio e da responsabilidade moral ilimitada. Eles se autodenominavam a escola "positiva" de criminologia, não porque estivessem muito seguros (embora, na verdade, o estivessem), mas como referência ao sentido filosófico do empírico e do objetivo em lugar do especulativo (GOULD, 1999[1991], p.140).

Na acepção desse autor, a mescla de teorias que aparecem no discurso dos antropólogos

criminais lombrosianos é um indicativo dos ares de modernidade intelectual da geração de

1870, que protagonizou um intenso processo de afirmação do cientificismo. Ora, nada mais

avançado para a época do que utilizar preceitos tidos como científicos para analisar o

hibridismo brasileiro e, de quebra, retomar o argumento de que a escravidão exacerba a

inferioridade negra.

76

Observe-se, porém, que essa posição-sujeito que defende a influência da escravidão, não

o faz concordando em essência com a forma-sujeito da FD Liberal, a qual postula a igualdade

jurídica entre todos os homens. Para essa posição-sujeito da FD Científico-Racialista –

inaugurada pela irrupção de saberes da FD Liberal fundados no princípio de que a

inferioridade da raça advém não da condição mesma da raça negra, mas da condição de

escravidão a que essas pessoas foram submetidas – a desigualdade entre os homens é mantida,

pois a escravidão, apesar de infame, não é recriminável, dada a ausência, dentre esses, de

motivos psychicos de uma ordem moral mais elevada.

Sobre a degenerescência dos mestiços, um elemento determinante da produção

científica brasileira acerca das relações raciais no século XIX foi a imbricação entre as

questões naturais e a mestiçagem. O próximo enunciado em destaque, extraído de

Mestiçagem, degenerescência e crime, é significativo a esse respeito. Nesse artigo, escrito a

propósito de uma pesquisa empírica realizada na cidade de Serrinha (Ba), o autor analisa

diversos fatos considerados como indícios de degenerescência, em especial crimes,

associando-os à eminente mestiçagem populacional dessa cidade. Como homem de sua época,

Nina pontua o texto de interpretações racialistas pseudo-científicas, hoje já superadas. Ainda

assim, é inegável que a obra “trata-se de uma descrição pioneira do estado de saúde de nossa

população rural no século XIX e de seu modo de vida.” (CORREA, 2008, p.1100). Eis o que

diz o trecho selecionado:

MESTIÇAGEM, DEGENERESCÊNCIA E CRIME

Podemos, então, concluir que o crime, como as outras manifestações de degenerescência dos

povos mestiços, tais como a teratologia, a degenerescência-enfermidade e a degenerescência simples

incapacidade social, está intimamente ligado, no Brasil, à decadência produzida pela mestiçagem

defeituosa de raças antropologicamente muito diferentes e cada uma não adaptável, ou pouco

adaptável, a um dos climas extremos do país: a branca ao norte, a negra ao sul.

A associação do crime a francas manifestações degenerativas e sua característica de retorno

aos sentimentos indomáveis dos instintos inferiores, bárbaros ou selvagens, não deixa qualquer

dúvida a esse respeito.

Vemos com freqüência entre pessoas da raça negra a sensualidade tomar um aspecto

francamente patológico, ou pelo menos de degenerescência manifesta. Sabemos que nos Estados

Unidos uma das causas mais freqüentes de linchamento nos estados do sul é a violação de jovens

brancas pelos negros que geralmente terminam por matar suas vítimas.

77

Temos procurado ver esses crimes como uma das conseqüências do ódio entre raças, tão

intenso naquele país. A observação prova que entre nós casos análogos não podem ser interpretados

desse modo e que eles freqüentemente se explicam por uma tendência sádica dos negros com

temperamento epiléptico. (p.44)

Quadro 3: Trecho de Mestiçagem, degenerescência e crime, de Nina Rodrigues (2010[1899]).

Conforme dito, na análise da FD Científico-Racialista, intercruzam-se posições-sujeito

distintas, mas não divergentes do princípio da forma-sujeito dessa FD. No trecho em questão,

alguns sentidos mobilizados pela posição-sujeito da FD Naturalista aparecem conjugados a

sentidos mobilizados pela forma-sujeito da FD Racialista para explicar o “problema racial

brasileiro”: é a junção da variedade climática com a diferença racial o que ocasionará a

mestiçagem defeituosa. No restante do trecho, é a posição-sujeito racialista que predomina.

Assim, a sensualidade exacerbada, as deformações genéticas, o alcoolismo, a epilepsia, dentre

outras formas tidas pelo sujeito do DNR como degenerativas, são explicadas pelos instintos

inferiores, bárbaros ou selvagens dos mestiços. Cabe aqui uma reflexão sobre o que seja

essa degenerescência aludida por Nina Rodrigues:

Penso portanto que a palavra degenerado aplicada a um povo, deve significar e significa, que este povo não tem mais o valor intrínseco que possuía antigamente, porque nas suas veias não corre mais o mesmo sangue, no qual os acréscimos sucessivos modificaram gradualmente o valor; em outras palavras, com o mesmo nome, ele não conservou a mesma raça dos seus fundadores; enfim, que o homem da decadência, aquele que é chamado de degenerado, é um produto diferente, do ponto de vista étnico, do herói das grandes épocas.” (GOBINEAU apud SILVEIRA, 1999, p.105)

Era assim que em 1853, Arthur de Gobineau, pioneiro nos estudos sobre a mestiçagem

humana, resumia o problema do homem degenerado, cuja pureza se perdera devido à

mestiçagem. É evidente que tal explicação implica na seleção e classificação de raças, em

puras – superiores – e misturadas – inferiores. Para Gobineau, o epíteto de raças puras só

caberia à raça branca. As raças amarela e negra receberiam, ao lado dos mestiços, o epíteto de

inferiores na escala humana, o que indica a opção de Gobineau em “assimilar a nação ao

corpo físico do homem” (SILVEIRA, 1999), rejeitando, assim, uma interpretação, já corrente

na época, inclusive, de que o conceito de nações, para além das identidades étnicas, envolve a

complexidade cultural das identidades coletivas, ligadas à religião e ao pertencimento

regional, por exemplo (SILVEIRA, 1999; CARVALHO,2007).

Os estudos de Gobineau tiveram ampla repercussão no Brasil, embasando as teorias

deterministas raciais que, firmadas nos caracteres fenotípicos, discutiam a nacionalidade. O

78

incômodo de que o “tipo brasileiro” não fosse puro está bem expresso nas palavras de Silvio

Romero: “E, mais ainda, manda a verdade afirmar ser o mestiçamento uma das causas de

certas instabilidades moral (sic) na população, pela desarmonia das índoles e das aspirações

no povo, que traz a dificuldade da formação de um ideal nacional comum.” (ROMERO,

2001[1906], p.59, grifo meu).

Um importante fator para entender a degenerescência no DNR é recuperar a cena

discursiva em que esse discurso se inscreve, ou seja, a FD Científico-Racialista, cuja tônica é

o determinismo biológico. Relembrando que, para a AD, o trabalho ideológico é definido

como a fixação de sentidos que aparecem como inerentes, tome-se para análise o conceito de

degenerado. Se, nos escritos de Gobineau, ele está restrito à questão da mestiçagem biológica,

observa-se que já nos escritos de Lombroso, ele passa a ser utilizado para designar todo e

qualquer diferente que não se enquadre ao modelo europeu de correto51. Esse deslizamento de

sentidos – de diferença fenotípica a desigualdade fenotípica; de desigualdade fenotípica a

diferença cultural e de diferença cultural a desigualdade cultural – não se deu arbitrariamente,

estando relacionado ao acontecimento histórico e discursivo do imperialismo europeu, que

precisava classificar como diferentes aqueles a quem desejasse subjugar (IANNI, 2004;

SCHWARCZ (2008[1993]), SILVEIRA, 1999).

Esse aspecto permite pensar com maior clareza a construção discursiva da sinonímia

entre mestiços e negros, no que diz respeito à inferioridade: no interior da FD Científico-

Racialista é produzido o efeito de sentido do negro como inferior por conta de sua condição

pertencente a uma raça inferior. Lembre-se, a esse respeito, que a faculdade do livre-arbítrio

era negada ao indivíduo negro exatamente pela sua desigualdade racial em relação ao

indivíduo branco.

Para melhor analisar a constituição discursiva dessa relação hierarquizada entre raças

superiores e raças inferiores é útil recordar a noção de silêncio fundador discutida por Orlandi

(2007), mais especificadamente quando ela salienta que o silêncio fundador produz as

condições para a significação. Quando em questão está o discurso, é fundamental lembrar

que a produção de efeitos de sentidos está assentada sobre o trabalho metafórico de

substituição de um sentido por outro. Desse modo, à luz da noção de silêncio fundador,

51 “É evidente que, em decorrência da forte ênfase autoritária do socialismo lombrosiano e do impressionismo científico dos teóricos da criminologia, a definição do que é ‘degenerado’ terminou tornando-se muito elástica, incluindo não só delinqüentes e criminosos, mas loucos (ainda que curados), cancerosos, leprosos, cardíacos, epilépticos, portadores de afecções pulmonares e renais, bem como ‘vagabundos’, ‘nômades’ e ‘fetichistas eróticos’. Até mesmo a feiúra e a tatuagem tornaram-se fortes indícios de degenerescência. De derrapada em derrapada, chegou-se ao dissidente político do qual o precursor Morel afirmara que tinha herdado dos seus antepassados disformes o fanatismo ou mesmo o misticismo.” (SILVEIRA, 1999, p. 129)

79

verifica-se a presença constitutiva do DNR no discurso da ausência de conflitos raciais no

Brasil.

Ora, o DNR ocupa um papel importante na produção intelectual brasileira no contexto

pós-abolição, visto que integra um conjunto de discursos em que explicitamente o referente é

o homem negro e não o homem escravo que é também negro. O problema da degenerescência

da mestiçagem tratado pela posição-sujeito racialista do DNR resvala para a degenerescência

do homem negro. Faz-se essa ressalva a fim de demonstrar que esse olhar médico da FD

Científico-Racialista, que aponta a tendência sádica dos negros vai funcionar como um

manancial de possibilidades de sentidos para a constituição dos discursos sobre o homem

negro brasileiro.

A construção dessa historicidade implica em um jogo de permanência/substituição de

sentidos, em que um discurso nunca significa isoladamente, ele sempre significa em

remissão/referência a outros discursos (PÊCHEUX, 1997c). Desse modo, se no DNR a

responsabilidade pelos atos degenerativos que contrariam a normalidade é atribuída à

condição de inferioridade biológica do homem negro; no discurso sobre a ausência de

conflitos raciais no Brasil, constituído ao longo do século XX, a responsabilidade por

qualquer situação depreciativa do homem negro é atribuída a ele próprio, por sua condição

essencialmente inferior.

O que se busca mostrar com essas reflexões é que mesmo elidido, esse olhar racialista

do DNR continua fomentando sentidos, tanto para agregar ao homem negro atos exacerbados

– principalmente no quesito sensualidade – quanto para atenuar quaisquer casos de conflitos

raciais no Brasil. A posição-sujeito do DNR, recorde-se, é a de um “homem de sciencia” de

sua época e como tal, está permeada pela legitimidade herdada de “um saber médico-

administrativo que serviu de núcleo originário à ‘economia social’ e à sociologia do século

XIX.” (FOUCAULT, 2008[1979], p. 202), condição que bem expressa a sua centralidade na

constituição, formulação e circulação dos saberes acadêmicos no século XX e XXI.

4.3 GILBERTO FREYRE E A PLASTICIDADE RACIAL BRASILEIRA

Se este foi sempre o ponto de vista da casa-grande, como responsabilizar-se a negra da senzala pela depravação precoce do menino nos tempos patriarcais? O que a negra da senzala fez foi facilitar a depravação com a sua docilidade de escrava; abrindo as pernas ao primeiro desejo do sinhô-moço. Desejo não, ordem.

Gilberto Freyre

80

A contribuição de Gilberto de Mello Freyre (1900-1987) para a historiografia brasileira

é singular. Historiador, antropólogo, sociólogo, jornalista, escritor, político e pintor, Freyre

desde muito cedo desejou desenvolver um estilo único de escrita a partir do qual pudesse

analisar o Brasil em sua totalidade histórico-geográfica e socio-antropológica, com ênfase no

aspecto da miscigenação racial. A publicação de Casa-grande & Senzala, em 1933,

simbolizou o passo inicial dessa empreitada, firmando o seu nome como um cientista social

cujos escritos não somente refletiam sobre a sociedade, como interferiam em suas formas de

representação, (re)significando-as. A valorização da mestiçagem racial brasileira, o traço

peculiar da obra freyreana, provocou ecos tanto no meio intelectual quanto no cotidiano

brasileiro. sendo determinante para constituir a ideia de uma democracia social que, aos

poucos, foi sendo incorporada ao imaginário brasileiro como uma democracia racial.

O antropólogo Franz Boas e o historiador Oliveira Vianna foram os grandes mentores

da formação intelectual freyreana, sendo que o autor herdou de Boas a distinção entre raça e

cultura. A separação entre os efeitos de relações puramente genéticas e os de influências

sociais, como a cultura e o meio, foi fundamental para que Freyre erigisse, no Brasil, as bases

de uma Antropologia Moderna, caracterizada pelo viés cultural, que se contrapunha à

Antropologia Física de cunho racialista do século XIX. Com o propósito de escrever sobre o

fato social e não sobre o fato étnico (FREYRE, 2009[1933], p.43), o autor faz de Casa-

grande & Senzala o primeiro grande ensaio acadêmico a se posicionar contra o racismo

científico e a favor da mestiçagem52.

É óbvio que a ambiguidade em torno de raça e cultura se manteve – não seria a

publicação de um livro que modificaria em um passe de mágica uma já respeitável história do

pensamento racial brasileiro. Entretanto, há de se considerar o mérito freyreano e o impacto

social de sua obra53, visto que ela funciona como um acontecimento histórico e discursivo: a

publicação de Casa-grande & Senzala rompe com uma cadeia discursiva cujo efeito de

52 Antes de Gilberto Freyre outros autores já se posicionavam incisivamente contra o racismo, mas não de forma propositiva como Freyre o fez. Dentre esses autores, destaca-se a atuação de Alberto Torres (1865-1917), que associa o racismo científico às pretensões imperialistas européias e classifica a sua repercussão no Brasil como “uma das mais bizarras direções de que há exemplo.” (TORRES, 2002) e Manoel Bonfim (1868-1932), que definia o racismo científico como “um sofisma abjeto do egoísmo, hipocritamente mascarado de ciência barata, e covardemente aplicado à exploração dos fracos pelos fortes.” (BONFIM apud RISÉRIO, 2007). Para maiores informações a respeito da contribuição desses autores, ver Munanga (2004) e Magnoli (2009). 53 Uma ilustração dessa alteração no modus operandi da população está no slogan da candidatura de Freyre para deputado federal em 1946: “Pernambucanos de todas as cores votarão em Gilberto Freyre para deputado federal.” Tal chamado, com ênfase na diversidade racial brasileira, seria inaceitável no ínicio do século XX. Esse e outros dados biográficos citados nessa apresentação do texto freyreano foram coletados na Biblioteca Virtual Gilberto Freyre, disponível em < http://bvgf.fgf.org.br/portugues/>. Acesso em 28 ago. 2010.

81

sentido residia ora na caracterização negativa para a miscigenação racial – “Agregar raça e

nação tem sido a falácia de muitos nacionalismos. No caso brasileiro, produziu uma retórica

sobre a mestiçagem apoiada na desqualificação daqueles que não possuíam um fenótipo

branco.” (SEYFERTH, 2002, p.35) – ora, na postulação de uma política de branqueamento

populacional, por meio da imigração estrangeira e/ou da futura diluição do sangue negro pela

miscigenação.

A reinterpretação da miscigenação racial efetuada por Freyre desenvolve-se sobre o

terreno movediço dos antagonismos:

[...] a tradição conservadora no Brasil sempre se tem sustentado do sadismo do mando, disfarçado em ‘princípio de Autoridade’ ou ‘defesa da Ordem’. Entre essas duas místicas – a da Ordem e a da Liberdade, a da Autoridade e a da Democracia – é que se vem equilibrando entre nós a vida política, precocemente saída do regime de senhores e escravos.” (FREYRE, 2009[1933], p.114-115).

A leitura desse trecho – que particulariza as relações sociais no Brasil a partir do eixo senhor-

escravo ou ainda, casa-grande e senzala – é o que motiva o recorte feito para a análise do

discurso de Gilberto Freyre (daqui em diante, DGF), o qual, inscrevendo-se em uma FD

Culturalista, irrompe no conjunto dos discursos raciais brasileiros reorganizando os sentidos

referentes a duas categorias centrais para se compreender e se afirmar a tão desejada

nacionalidade brasileira: os escravos e os negros54. Tendo em vista esse viés, seguem-se,

então, os trechos selecionados para análise da obra Casa-grande & Senzala.

CASA-GRANDE & SENZALA

Mas logo de início uma discriminação se impõe: entre a influência pura do negro (que nos é

quase impossível isolar) e a do negro na condição de escravo. [...]

Sempre que consideramos a influência do negro sobre a vida íntima do brasileiro, é a ação do

escravo, e não a do negro por si, que apreciamos. Ruediger Bilden pretende explicar pela influência

54 É evidente que qualquer referência à obra freyreana há de destacar o propalado mito da democracia racial, cuja matriz está, segundo muitos autores, em Casa-grande & Senzala. Como a mestiçagem racial não é o aspecto do DGF a ser investigado nessa seção da dissertação, optou-se por não desenvolver maiores comentários a esse respeito. Não obstante a referência ao caráter harmonioso e, simultaneamente, violento da colonização ser uma tônica do livro de Freyre, por ora ressalte-se apenas – e esse acréscimo não tem a função de inocentar ou culpar o autor – que nessa obra o autor não utiliza tal termo e, em outras circunstâncias o faz de forma enviesada, não em termos de categoria de análise, mas falando de uma democracia social relativa, ora como ideal a ser alcançado ora como peculiaridade brasileira em relação aos demais países frutos da miscigenação racial, conforme destaca Cruz (2002). Mais adiante, nas análises realizadas, tal questão será mais cuidadosamente examinada.

82

da escravidão todos os traços de formação econômica e social do Brasil. Ao lado da monocultura, foi

a força que mais afetou a nossa plástica social. Parece às vezes influência da raça o que é influência

pura e simples do escravo: do sistema social da escravidão. Da capacidade imensa desse sistema para

rebaixar moralmente senhores e escravos. O negro nos aparece no Brasil, através de toda nossa vida

colonial e da nossa primeira fase de vida independente, deformado pela escravidão. Pela escravidão e

pela monocultura de que foi o instrumento, o ponto de apoio firme, ao contrário do índio, sempre

movediço.

Goldensweiser salienta quanto é absurdo julgar-se o negro, sua capacidade de trabalho e sua

inteligência, através do esforço por ele desenvolvido nas plantações da América sob o regime da

escravidão. O negro deve ser julgado pela atividade industrial por ele desenvolvido no ambiente de

sua própria cultura, com interesse e entusiasmo pelo trabalho.

Do mesmo modo, parece-nos absurdo julgar a moral do negro no Brasil pela sua influência

deletéria como escravo. Foi o erro grave que cometeu Nina Rodrigues ao estudar a influência do

africano no Brasil: o de não ter reconhecido no negro a condição absorvente de escravo. “Abstraindo

pois”, escreve ele às primeiras páginas do seu trabalho sobre a raça negra na América portuguesa, “da

condição de escravos em que os negros foram introduzidos no Brasil e apreciando as suas qualidades

de colonos como faríamos com os de qualquer outra procedência etc.” Mas isto é impossível.

Impossível a separação do negro, introduzido no Brasil, de sua condição de escravo.

[...] A escravidão desenraizou o negro do seu meio social e de família, soltando-o entre gente

estranha e muitas vezes hostil. Dentro de tal ambiente, no contato de forças tão dissolventes, seria

absurdo esperar do escravo outro comportamento senão o imoral, de que tanto o acusam.

[...]

Diz-se geralmente que a negra corrompeu a vida sexual da sociedade brasileira, iniciando

precocemente no amor físico os filhos-família. Mas essa corrupção não foi pela negra que se realizou,

mas pela escrava. [...]

É absurdo responsabilizar-se o negro pelo que não foi obra sua nem do índio, mas do sistema

social e econômico em que funcionaram passiva e mecanicamente. Não há escravidão sem

depravação sexual. É da essência mesma do regime. Em primeiro lugar, o próprio interesse

econômico favorece a depravação criando nos proprietários de homens imoderado desejo de possuir o

maior número possível de crias. Joaquim Nabuco colheu em manifesto escravocrata de fazendeiros as

seguintes palavras, tão ricas de significação: “a parte mais produtiva da propriedade escrava é o

ventre gerador” (p.397-399).

O negro no Brasil, nas suas relações com a cultura e com o tipo de sociedade que aqui se vem

desenvolvendo, deve ser considerado principalmente sob o critério da história social e econômica. Da

antropologia cultural. Daí ser impossível – insistamos nesse ponto – separá-los da condição

83

degradante de escravos, dentro da qual abafaram-se nele muitas das melhores tendências criadoras e

normais para acentuarem-se outras, artificiais e até mórbidas. Tornou-se, assim, o africano um

decidido agente patogênico no seio da sociedade brasileira. Por “inferioridade de raça”, gritam então

os sociólogos arianistas. Mas contra seus gritos se levantam as evidências históricas – as

circunstâncias de cultura e principalmente econômicas – dentro das quais se deu o contato do negro

com o branco no Brasil. O negro foi patogênico, mas a serviço do branco; como parte irresponsável

de um sistema articulado por outros (p.404).

A verdade, porém, é que nós é que fomos os sadistas; o elemento ativo na corrupção da vida de

família; e moleques e mulatas o elemento passivo. Na realidade, nem o branco nem o negro agiram

por si, muito menos como raça, ou sob a ação preponderante do clima, nas relações de sexo e de

classe que se desenvolveram entre senhores e escravos no Brasil. Exprimiu-se nessas relações o

espírito do sistema econômico que nos dividiu, como um deus poderoso, em senhores e escravos.

Dele se deriva toda a exagerada tendência para o sadismo característica do brasileiro, nascido e criado

em casa-grande, principalmente em engenho; e a que insistentemente temos aludido nesse ensaio

(p.462).

Quadro 4: Trechos de Casa-grande & Senzala (2009[1933]), de Gilberto Freyre.

Conforme mencionado, o interesse da autora dessa dissertação ao efetuar a seleção

desses enunciados reside na relação entre o indivíduo negro e o indivíduo escravo efetuada

pela forma-sujeito da FD Culturalista, na qual o DGF se inscreve. De acordo com Borges

(2003), a categoria escravidão foi intencionalmente omitida do discurso público brasileiro

entre os anos de 1888 e 1930. Segundo esse autor, tal postura comedida foi adotada não

somente pelos “conservadores e racistas”, mas também pelos “intelectuais mais anti-racistas e

mais militantes da República”, como Lima Barreto, Alberto Torres e Manoel Bonfim. A partir

da análise de textos desses autores, ele conclui que ao longo do período pós- abolição, houve

uma substituição do termo escravidão pelo termo raça e apenas com a publicação de Casa-

grande & Senzala, em 1933, se deu a retomada do termo escravidão, já (re)significado, o que

sugere que “existia uma diferença palpável entre o que muitos pensadores sociais sabiam e o

que podiam escrever sobre o legado da escravidão na formação brasileira” (BORGES, 2003,

p. 216).

Levando-se em consideração que a constituição de todo e qualquer discurso é

atravessada pela repetição de outros discursos, se faz necessário suscitar a noção de pré-

construído – que reúne todos os sentidos já associados a um determinado termo – e a noção de

memória – que reúne todos os sentidos já associados a um determinado termo no interior de

84

uma FD (INDURSKY, 2009). A posição-sujeito do DGF, coadunando com a forma-sujeito da

FD Culturalista, seleciona enunciados já produzidos sobre a escravidão brasileira; sobre o

homem escravo e sobre o homem negro. Contudo, como a FD expressa uma regionalização

do saber interdiscursivo, o trabalho ideológico de constituição do DGF não incide sobre a

totalidade de enunciados já produzidos a esse respeito, é feito um recorte da memória

discursiva específica da FD Científico-Racialista.

Por conseguinte, a oposição entre a antropologia física e a antropologia cultural, nítida

no DGF, se desenrola mediante a intervenção nessa memória da FD Científico-Racialista, o

que desencadeia um duplo movimento55 – o de trazer os implícitos que possibilitam

compreender quais sentidos já foram associados às categorias escravidão, homem escravo e

homem negro; e também o de romper com essa regularidade parafrástica, introduzindo um

momento em que não é possível reconstruir esses “implícitos” sobre a escravidão negra no

Brasil, um momento, enfim, em que a diferença no interior da FD Científico-Racialista

instaura uma nova FD, a FD Culturalista. A fim de melhor perceber como se dá a constituição

da FD Culturalista, observem-se os seguintes enunciados:

Mas logo de início uma discriminação se impõe: entre a influência pura do negro (que nos é quase impossível isolar) e a do negro na condição de escravo.

Parece às vezes influência da raça o que é influência pura e simples do escravo: do sistema social da escravidão.

Do mesmo modo, parece-nos absurdo julgar a moral do negro no Brasil pela sua influência deletéria como escravo. Foi o erro grave que cometeu Nina Rodrigues ao estudar a influência do africano no Brasil: o de não ter reconhecido no negro a condição absorvente de escravo.

O negro no Brasil, nas suas relações com a cultura e com o tipo de sociedade que aqui se vem desenvolvendo, deve ser considerado principalmente sob o critério da história social e econômica. Da antropologia cultural. Daí ser impossível – insistamos nesse ponto – separá-los da condição degradante de escravos, dentro da qual abafaram-se nele muitas das melhores tendências criadoras e normais para acentuarem-se outras, artificiais e até mórbidas.

A posição-sujeito do DGF seleciona, da FD Científico-Racialista, saberes acerca da

hierarquização e inferioridade de raças, os quais, pela intervenção da ideologia, são

interpretados como uma junção entre a figura inferiorizada do escravo e a figura inferiorizada

55 Pêcheux (1999, p.51et seq) explica que a memória social é imbuída de um “programa de leitura, um percurso escrito discursivamente em outro lugar”, mas salienta que esse programa pode ser quebrado no “ponto de divisão do mesmo e da metáfora”. De acordo com o autor, o que interessa ao pesquisador em Análise de Discurso é exatamente a investigação desse “efeito de opacidade”instaurado pela quebra no “programa de leitura”.

85

do negro. Entretanto, esses sentidos presentes na memória social da FD Científico-Racialista

não são repetidos como uma cópia, eles são retomados e (re) significados.

A não reprodução desse saber constituído sobre a escravidão negra no Brasil se dá

porque a posição-sujeito do DGF é outra, está inscrita em um lugar ideológico distinto do

lugar ideológico da posição-sujeito do DNR. Esse é o momento da ruptura, em que o saber

daquela época é esquecido, mas não é apagado, ele continua presente. Para que esses sentidos

ecoem e constituam a FD Culturalista, esse saber tem que ser reconhecido como uma

diferente lembrança do escravismo no Brasil, visto que tal FD traça novos sentidos para a

categoria escravidão, identificando-a como um sistema econômico e político fundamental

para a compreensão da formação da sociedade brasileira. No DGF a ênfase no escravismo

pernicioso modifica o olhar sobre o homem negro, levando à valorização de sua “função

civilizadora” (FREYRE, 2009[1933], p.390).

Esse trabalho de atualização dos sentidos somente é possível porque há intervenção

nessa memória social que pressupõe a degenerescência da mestiçagem como único sentido

associável ao homem negro. Como ressalta Indurky (2009, p.6), é a “memória social que

ressoa e trabalha por traz deste deslizamento e faz o sentido primeiro reverberar por trás dos

novos sentidos”. Desse modo, o ato enviesado de esquecer os sentidos oriundos da FD

Racialista “perturba a memória” (PÊCHEUX, 1999) dessa FD, incidindo sobre os seus limites

e sobre o seu “efeito de fechamento” (INDURSKY, 2007). Essa mobilização de sentidos

efetuada pela posição-sujeito do DGF inaugura a FD Culturalista e dá uma nova feição à

história do pensamento racial brasileiro, com a (re)inclusão do escravismo.

De acordo com Borges (2003), o retorno freyreano ao tema escravidão se dá por meio

da obra O Abolicionismo (NABUCO, 2000[1883]). Essa observação ilustra a heterogeneidade

constitutiva de uma FD: o texto de Joaquim Nabuco compõe o pré-construído sobre o

escravismo brasileiro, mas o recorte feito pela posição-sujeito do DGF, inscrita na FD

Culturalista, é distinto da posição-sujeito do discurso de Joaquim Nabuco, na medida em que

traça uma diferença fundamental no histórico discursivo das relações raciais brasileiras: para

além de conceber a escravidão negra como instituição nacional56, o discurso freyreano coloca

a escravidão como um elemento determinante para o entendimento da formação da família

brasileira – erigida sob a dicotomia senhores e escravos.

56 Joaquim Nabuco, lamentando os impactos negativos da escravidão, diz que esse sistema criou “um ambiente fatal a todas as qualidades viris e nobres, humanitárias e progressivas, da nossa espécie; criou um ideal de pátria grosseiro, mercenário, egoísta e retrógrado, e nesse molde fundou durante séculos as três raças heterogêneas que hoje constituem a nacionalidade brasileira.” (NABUCO, 2010 [1883], p.68).

86

Com a valorização do escravo negro como alguém que contribuiu econômica e

culturalmente para a formação da sociedade brasileira, os efeitos de sentido do DGF instituem

a absolvição do pecado racial causado pela mestiçagem, autorizando a constituição e

formulação de discursos fincados na miscigenação positiva. A originalidade desse

nacionalismo freyreano atribui, naturalmente, novos sentidos para o homem escravo e para o

homem negro, na medida em que enfatiza o escravismo a fim de efetuar a distinção entre a

condição de homem escravizado e a condição de homem negro, como se pode perceber no

seguinte enunciado:

Diz-se geralmente que a negra corrompeu a vida sexual da sociedade brasileira, iniciando precocemente no amor físico os filhos-família. Mas essa corrupção não foi pela negra que se realizou, mas pela escrava.

Mais uma vez é possível verificar como as referências à FD Científico-Racialista, aqui

materializada no DNR, vão constituindo o DGF. Um dos temas recorrentes no determinismo

racial reinante no século XIX foi, sem dúvida, a questão da sensualidade negra, da qual Nina

Rodrigues diz que “pode attingir então ás raias quasi das perversões sexuaes morbidas. A

excitação genesica da classica mulata brazileira não póde deixar de ser considerada um typo

anormal” (RODRIGUES, 2010[1894], p.102). O que se nota, portanto, é que a posição-sujeito

culturalista do DGF vai costurando ideologicamente uma (re)significação de aspectos centrais

da discursos acadêmicos sobre raça no Brasil, cujo lugar ideológico, era, até então,

majoritariamente ligado à antropologia física. No DGF, com a importância da atribuição ao

papel do escravismo, não é a mulher negra a responsável por essa sensualidade, mas a mulher

negra que foi escravizada, distinção fundamental para a composição de posteriores imagens

discursivas acerca da população negra brasileira.

Um outro aspecto decisivo dessa rede discursiva é a patogenia negra, conforme tratado

no enunciado a seguir:

Tornou-se, assim, o africano um decidido agente patogênico no seio da sociedade brasileira. Por “inferioridade de raça”, gritam então os sociólogos arianistas. Mas contra seus gritos se levantam as evidências históricas – as circunstâncias de cultura e principalmente econômicas – dentro das quais se deu o contato do negro com o branco no Brasil. O negro foi patogênico, mas a serviço do branco; como parte irresponsável de um sistema articulado por outros.

A contraposição entre os argumentos dos arianistas e as evidências históricas tem aqui,

o claro propósito de ratificar o tom inaugural da FD Culturalista trazida pela posição-sujeito

do DGF. Uma paráfrase possível a esse enunciado seria: “Os argumentos dos arianistas são

87

falhos porque atribuem a patogenia ao indivíduo negro escravizado e não ao sistema

escravista.”

Esse desvio característico do lugar enunciativo do sujeito freyreano, que desloca o

olhar sobre o homem para o olhar sobre a estrutura social, fornece as bases para que o

discurso freyreano construa a ideia do “escravo negro como civilizador na sociedade

brasileira, operando simultaneamente no processo de mestiçagem e no de difusão e

incorporação do aparato cultural africano” (BASTOS, 2000). O destaque à “interpenetração

de etnias/culturas” pode ser compreendido, por conseguinte, como um indício da mobilização

de sentidos empreendida pela posição-sujeito do DGF, visto que é a intervenção na memória

social de uma FD específica – a FD Culturalista, que preza pelo valor social do mestiço, em

contraponto ao prejuízo biológico da mestiçagem – o que possibilita a formulação desse

discurso.

No que diz respeito ao lugar ideológico do sujeito freyreano, é fundamental assinalar

que esse momento inaugural do discurso culturalista sobre raça se dá em uma perspectiva

enunciativa duplamente marcada, como se observa no seguinte enunciado:

A verdade, porém, é que nós é que fomos os sadistas; o elemento ativo na corrupção da vida de família; e moleques e mulatas o elemento passivo. Na realidade, nem o branco nem o negro agiram por si, muito menos como raça, ou sob a ação preponderante do clima, nas relações de sexo e de classe que se desenvolveram entre senhores e escravos no Brasil. Exprimiu-se nessas relações o espírito do sistema econômico que nos dividiu, como um deus poderoso, em senhores e escravos. Dele se deriva toda a exagerada tendência para o sadismo característica do brasileiro, nascido e criado em casa-grande, principalmente em engenho; e a que insistentemente temos aludido nesse ensaio (FREYRE, 2009[1933], p.462).

Em primeira instância, no plano de toda a narrativa, tem-se o cientista social que se

propõe a desenvolver um ensaio sobre a sociedade brasileira57, mas que firma a sua escrita na

recusa à construção objetivada da comunidade/grupo social analisada, ou seja, na recusa

ao“discurso totêmico” que marca o discurso antropológico e científico clássico (DA MATTA,

2010). Buscando superar essa distinção entre o sujeito pesquisador e o objeto pesquisado, o

sujeito freyreano adquire, assim, uma postura ativa diante dos fenômenos sociais e culturais

sobre os quais se debruça. O movimento de interpretação que constitui a posição-sujeito do

57 DA MATTA (1997) faz interessante distinção entre os estudos desenvolvidos “pela perspectiva da nação brasileira (uma entidade sociológica especial, que engloba tanto o ‘estado’ quanto o ‘governo’ e que tem como unidade sócio-política o ‘indivíduo’ como valor e centro moral); e pela sociedade que, ao contrário, é relacional e está constituída de unidades muito mais inconscientes como a ‘vizinhança’ e a ‘família’.” De acordo com esse autor, Casa-grande & Senzala, que se insere na segunda vertente, traz uma abordagem pioneira e criativa da sociedade brasileira, omitindo, contudo, uma reflexão mais progressista sobre a nação brasileira.

88

DGF gera, dessa forma, uma dupla identificação, pois além de assumir a condição de

pesquisador que apreende o sistema de fora para dentro, ele também analisa a sociedade a

partir de categorias locais, na instância do nativo que fala de sua realidade mestiça.

Contudo, dentro do espaço discursivo construído pelo sujeito do DGF, o uso do

pronome na primeira pessoa do plural – nós – revela que o sujeito discurso freyreano não é

qualquer nativo, ele traz, restritivamente, o olhar da Casa-grande sobre a Senzala58. Essa

ambivalência da posição-sujeito do DGF expressa o uso da noção de conflito como uma

categoria de análise que exclui a noção de lados antagônicos – antropólogo ou nativo, casa-

grande ou senzala – e faz emergir a noção de interação – antropólogo e nativo, casa-grande e

senzala (BASTOS, 1987), uma mudança de perspectiva enunciativa que é fundamental na

composição do discurso freyreano.

Também no plano do referente discursivo assinala-se uma alteração significativa. A

condenação do determinismo racial/climático e do sistema escravista – o qual recebe a

alcunha crítica de deus poderoso – consolida-se como uma recusa de saberes de cunho

jurídico inscritos na FD Liberal e também de saberes de cunho biologizante inscritos na FD

Científico-Racialista. Dessa forma, mais do que indicar a inscrição do DGF na FD

Culturalista, a constituição dessa posição-sujeito demarca a transição, no contexto intelectual

brasileiro, de um discurso jurídico –voltado exclusivamente à definição do papel estrutural do

Estado na sociedade – para um discurso sociológico – que insere no cenário universitário as

reflexões sobre aspectos de constituição da sociedade. Essa ênfase às questões culturais e

raciais, presente no discurso freyreano, inaugura uma forma de fazer ciência que corresponde

ao processo de “institucionalização das Ciências Sociais.” (BASTOS, 1987).

Recuperando as materialidades discursivas do século XIX analisadas nessa dissertação

pode-se afirmar, portanto, que assim como o discurso de Rui Barbosa está inscrito na FD

Liberal, de caráter eminentemente jurídico e o discurso de Nina Rodrigues está inscrito na FD

Racialista, de caráter eminentemente biológico, o discurso de Gilberto Freyre está inscrito na

FD Culturalista, de caráter eminentemente sociológico. O debate sobre a constituição da

sociedade sob o olhar do sociólogo-nativo inaugura, em relação às questões raciais, uma

maneira legitimada de pensar a identidade brasileira calcada no valor social da mestiçagem.

Desse modo, entende-se que o DGF – enquanto discurso científico – afigura-se como

manancial para a constituição de demais discursos que vêm, ao longo da história, definindo a

58 Esse é um aspecto relevante para que se apreenda o porquê de o texto freyreano ser, muitas vezes, considerado como um atenuante da violência do escravismo brasileiro (Cf. VENTURA, 2000; RISÉRIO; GIL, 2000). Conforme já dito, na próxima seção, voltar-se-á a esse tópico com maior apuro, visto que será analisado, dentre outros, o discurso do mito da democracia racial.

89

nacionalidade brasileira. A formulação desses discursos sob o status de científico se dá no

espaço universitário e é preciso considerar que a novidade freyreana de substituir o peso do

escravismo pela “mestiçagem para além das raças” simbolizou a superação da verdade

biológica de que a humanidade apresentaria diferenças genéticas expressivas, possíveis de

dividi-la em termos de raças, enfim. O matiz inquestionável adquirido, a partir daí, pelo DGF,

é ilustrativo do que diz Pêcheux (1997c): a aceitação do discurso científico passa pela

afirmação de sua neutralidade, não na acepção de não tomar posição, mas na acepção de estar

acima, fora do processo de interpelação ideológica, sob o manto da objetividade científica.

Tendo em perspectiva esse aspecto, pode-se perceber porque o DGF é um importante

componente do cenário discursivo das relações raciais brasileiras. A sua objetividade

científica – gestada na década de 30 em meio à afirmação da própria disciplina Sociologia –

lhe garantiu legitimidade para que fosse, paulatinamente, sendo tomado como base comum à

qual recorrem grande parte dos discursos sobre raça no Brasil. Fala-se aqui, portanto, do fato

de que os enunciados que tenham como referente este tema têm evidenciado a interpenetração

entre categorias sociais como um passo para a harmonização da sociedade, o que não implica,

entretanto, em dissolução do conflito. A permanência desse elemento apenas acentua a “lição”

brasileira – de como o hibridismo pode ser valioso para a constituição de uma nação59.

59 O óbvio teor político-partidário dessa premissa não será aprofundado nesse trabalho, contudo, é fundamental destacar o papel do DGF no ideário nacional que serviu de base para a realização do pacto populista (ou nacional-desenvolvimentista) que durou no Brasil entre 1930 e 1964. Para maiores informações a respeito ver Bastos (2000) e Guimarães (2010).

90

5 RACISMO OU CONSCIENTIZAÇÃO RACIAL? O OLHAR DA UNIVERSIDADE

SOBRE AS COTAS RACIAIS.

Ao falarmos, deixamos no ar as nervuras

abertas do manto de palavras embaixo do

qual gostaríamos de nos esconder.

Eugênio Bucci

Analisar o discurso sobre as cotas raciais enunciado por professores universitários

implica em compreender as possibilidades de movimento dos sentidos no que tange a duas

questões essenciais à formação de qualquer país: educação e raça. A importância dessa

associação é ressaltada por Dávila (2006) ao abordar aspectos concernentes à política social e

racial no Brasil entre os anos de 1917 e 1945, ele destaca como a política educacional

contribuiu para a institucionalização das desigualdades raciais, concluindo assim, que essa é

uma faceta crucial da contraditória relação entre a nação brasileira e sua propagada

pluralidade cultural.

De acordo com o autor, o campo educacional reúne diversos componentes elucidativos

dos padrões de desigualdade racial no Brasil – pelo fato de ser uma área de políticas públicas,

expressa as maneiras práticas das concepções raciais dos pensadores de cada época60.

Ademais, ele salienta que a associação entre raça e educação no limiar do século XX sustenta-

se em uma tríade, cujos vetores são a ambivalência, a elasticidade e a ambigüidade:

[..]as relações de raça no Brasil sustentavam-se em] sua ambivalência (o fato de que raça era significativa e ainda assim esse significado era difuso em um discurso médico e científico mais amplo sobre a degeneração); sua elasticidade (que o significado de raça e da raça social de alguém poderia mudar e, como uma fonte de prestígio social, a educação mediava essa elasticidade) e, especialmente, em sua ambigüidade (que os sistemas escolares em geral tratavam da raça apenas indiretamente, utilizando uma linguagem codificada médica e científico social) (DÁVILA, 2006, p.36-37).

Dentre os aspectos destacados pelo autor, o que mais interessa aqui é a noção de

ambiguidade – na medida em que ela expressa o tom enviesado que caracteriza o debate sobre

as relações raciais no campo educacional brasileiro, em seus diferentes níveis de ensino.

Embora o comentário feito por ele refira-se a aspectos da primeira metade do século XIX, é 60 De acordo com o autor, o conceito de mérito, por exemplo, “foi fundado em uma gama de julgamentos subjetivos em que se embutia uma percepção da inferioridade dos alunos pobres e de cor” (DÁVILA, 2006, p.13).

91

de extrema atualidade considerar a conjugação desse elemento na constituição do discurso

sobre as cotas raciais, exatamente um dos aspectos da materialidade discursiva da intersecção

entre raça e educação no Brasil.

Ao longo do percurso de levantamento bibliográfico concernente ao discurso sobre as

cotas raciais, dois textos, em especial, chamaram a atenção da autora dessa dissertação. O

primeiro, escrito por Delcele Mascarenhas Queiroz e Jocélio Teles Santos61 –

respectivamente, professora da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e professor da

Universidade Federal da Bahia (UFBA) – apresenta, dentre outras informações, trechos de um

debate virtual62 entre professores da UFBA, sobre essa temática. Nesse texto, após

apresentarem as transcrições de algumas falas favoráveis e outras falas contrárias às cotas

raciais, os autores questionam, a respeito dessas últimas: “Seriam estes argumentos analíticos?

Ou meramente a defesa de privilégios?” (QUEIROZ; SANTOS, 2008, p. 209).

O segundo, escrito pelo antropólogo baiano Antonio Risério63, é um conjunto de

ensaios que versam sobre aspectos da questão racial brasileira, em especial sobre os

problemas de interpretação decorrentes de uma postura racialista que, segundo o autor, é

constituída sobre os pilares da “nova história oficial do Brasil”. Risério (2007) elege a década

de 1970 como marco para uma ruptura discursiva no que tange às relações raciais brasileiras,

apontando os “discursos das minorias” como a grande marca da perspectiva racialista. Para o

autor, esse discurso é pautado, por um lado, na crítica ao caráter senhorial do modelo de

mestiçagem racial, que traz como complemento a impossibilidade da democracia racial, e, por

outro lado, na defesa do modelo de polarização racial importado dos EUA. Por causa da

grande aceitação desse “racialismo neonegro”, ele conclui, então, que “O discurso racialista

político-acadêmico é, hoje, o discurso do poder.” (RISÉRIO, 2007, p.381).

Ora, considerando o pouco tempo que distancia essas duas falas e a ampla divergência

das premissas defendidas por elas, se fazem necessárias algumas considerações, de cunho

problematizador. A partir da análise da fala de Queiroz; Santos (2008) pode-se concluir que

haveria risco de as cotas raciais desmontarem privilégios e, por conseguinte, que haveria uma

elite universitária disposta a defendê-los? E, em relação ao que é dito por Risério (2007),

61 QUEIROZ, D. M.; SANTOS, J. T. dos. Sistema de cotas: um debate. Dos dados à manutenção de privilégios e poder. In: PEIXOTO, M. do C. de L.; ARANHA,A.V. (orgs.).Universidade pública e inclusão social: experiência e imaginação. Belo Horizonte: UFMG, 2008. 62 Ocorrido entre os anos de 2003 e 2004, no período que antecedeu à aprovação do sistema de cotas pelo Conselho Universitário da UFBA. (QUEIROZ, D. M.; SANTOS, J. T Vestibular com cotas: análise em uma instituição pública federal. Disponível em <http://w3.ufsm.br/afirme/ARTIGOS/ensinosuperior/es05.pdf> Acesso em 06 set. 2009.). 63 RISÉRIO, A. Movimentos negros hoje. In: A utopia brasileira e os movimentos negros. São Paulo: Ed. 34, 2007.

92

haveria, no interior da universidade, um discurso majoritário calcado na racialização do país?

Por fim, entre 2004 – quando Queiroz e Santos escrevem – e 2007 – quando Risério escreve –

teria havido uma profunda mudança no modus pensante e operandi dos discursos acadêmicos

brasileiros, a ponto de quebrar o padrão argumentativo eminentemente contrário e substituí-lo

pelo padrão favorável às cotas raciais?

O tom aparentemente capcioso dessas perguntas nada tem de armadilha, apenas busca

revelar as contradições que, desde sempre, se digladiam no discurso acadêmico brasileiro

sobre as relações raciais. Alhures se recusa uma leitura simplista e equivocada desse discurso:

os contrários às cotas seriam racistas e os favoráveis, redentores de todos os conflitos raciais

brasileiros. Para além desse reducionismo, busca-se, portanto, compreender as categorias

analíticas que são postas em questão.

Para Hofbauer (2006), as diferentes posturas acadêmico-intelectuais a respeito das cotas

raciais estão vinculadas a duas tradições acadêmicas macro – a perspectiva sociológica e a

perspectiva antropológica – as quais lidam, evidentemente, de forma diferenciada com o

objeto teórico raça. Para estudiosos como Florestan Fernandes, Carlos Hasembalg e, mais

recentemente, Antonio Sergio Alfredo Guimarães64, ligados à Sociologia das Relações

Raciais, se torna primordial a análise das relações entre negros e brancos, com ênfase na

desigualdade social entre esses grupos. Em contraponto, o segundo grupo – do qual Gilberto

Freyre seria o maior expoente e, na contemporaneidade, Yvonne Maggie e Peter Fry – ligado

a conceitos clássicos da antropologia, rejeita qualquer referência à raça por conta de sua

dimensão biológica, optando por trabalhar com identidades étnicas.

Sobre estas questões Guimarães (2008), pondera que se havia uma divisão inicial entre,

de um lado, ‘funcionalistas’ e ‘sociólogos’ e, do outro, ‘estruturalistas’ e ‘antropólogos’, essa

distinção não mais é cabível, pelo reconhecimento mútuo – pelo menos no meio acadêmico –

da democracia racial como construção nacionalista dos intelectuais modernistas datada do

início do século e reafirmada por quase todo o século XX, até ser identificada hoje, enquanto

mito.

Fry (2008), por sua vez, avalia que o embate se dá entre “construtivistas” e

“primordialistas”, sendo que os primeiros, contrários às cotas raciais, entendem que as

identidades raciais são processuais, resultando de construções históricas. O segundo grupo,

favorável às cotas raciais, opõe-se a esta visão, afirmando identidades essencializadas –

negros e brancos –, operando, assim, a polarização racial do Brasil.

64 Registra-se, para fins de esclarecimento, que a citação destes três autores, somente a título de ilustração, não elimina as suas características distintivas.

93

Optando por uma estratégia metodológica diversa, Carvalho (2006), em sua dissertação

de Mestrado, apresenta dois eixos, o sócio-econômico e o político-cultural, em torno dos

quais se desenvolvem tanto argumentos contrários quanto favoráveis às cotas raciais. Ao

analisar artigos midiáticos escritos por acadêmicos entre 2001 e 2002, a pesquisadora

confirma que o debate sobre as cotas invariavelmente incide sobre a noção de democracia

racial, ora como mito a ser combatido, ora como ideal a ser perseguido.

Acentuando esta polêmica, Paixão (2008), propõe uma classificação dos argumentos

contrários às cotas raciais em sete matrizes: liberal, democrático-racial, nacionalista,

culturalista contemporânea, funcionalista, marxista e genética, ressaltando que em muitos

momentos elas se complementam ou se contradizem.

Esses diferentes posicionamentos a respeito das cotas raciais demonstram que a

enunciação desses discursos se dá em um espaço enunciativo marcado por um acontecimento

basilar: a emergência – inicialmente no interior do movimento negro brasileiro e

posteriormente no universo acadêmico – dos discursos de racialização da identidade brasileira

e dos discursos de identificação da democracia racial brasileira como um mito. Esse

acontecimento fomenta também um contra-discurso, marcado pela ênfase no “potencial

cultural e simbólico do mito da democracia racial”:

O fato de grande parte de nossa auto-estima estar ligada ao projeto da miscigenação racial e da integração cultural é um fato sociologicamente relevante e extremamente importante para que políticas públicas possam eficazmente mudar a realidade cotidiana das pessoas que teriam mais a ganhar com isso (SOUZA, 2000, p.18).

Uma teoria materialista dos processos discursivos como a Análise de Discurso

entende que o sujeito discursivo interpreta o mundo mediante dispositivos ideológicos,

produzindo sentidos. Compreender que os sentidos acerca das cotas raciais são produzidos

mediante o duplo movimento de paráfrase e polissemia, implica em assinalar, no interior dos

estudos linguísticos, o reconhecimento de que os gestos de interpretação do sujeito do

discurso favorável e do sujeito do discurso contrário às cotas raciais são constituídos por

“condições de produção específicas que, no entanto, aparecem como universais e eternas.

Disso resulta a impressão do sentido único e verdadeiro.” (ORLANDI, 2007[1996], p.65).

Assumindo a premissa de que a historicidade é constitutiva do discurso e que uma FD

sempre há de remeter a outras FDs65, enfatiza-se a importância dessas filiações históricas na

65 A respeito da heterogeneidade constitutiva de uma FD, Pêcheux (1990, p.10-11), declara: “É necessário, ao contrário, definir a relação interna que ela estabelece com seu exterior discursivo específico, portanto, determinar as invasões, os atravessamentos constitutivos pelas quais uma pluralidade contraditória, desigual e interiormente

94

constituição do sujeito professor universitário que enuncia o discurso sobre as cotas raciais.

Tendo por parâmetro as formulações de sentido, que remetem a um campo discursivo

complexo cujo referente é o homem negro, nas dimensões de escravizado, de alforriado e de

livre, organizou-se os textos proferidos pelos professores universitários, procedendo à

formação das famílias de paráfrases, cuja base são as filiações históricas.

Posteriormente foram caracterizadas a formação discursiva contrária às cotas raciais

(daqui em diante FDCCR) e a formação discursiva favorável às cotas raciais (daqui em diante

FDFCR), sendo que no interior dessas FDs deslocam-se diversos e distintos discursos. Essa

categorização atendeu a propósitos didáticos, não havendo a intenção de exaurir as

possibilidades de classificação ou ainda de erguer fronteiras rígidas entre cada discurso.

Inicialmente far-se-á a apresentação da FDCCR e, em um segundo momento, da FDFCR.

5.1 A FORMAÇÃO DISCURSIVA CONTRÁRIA ÀS COTAS RACIAIS

A FDCCR tem sua constituição marcada pela discordância às cotas raciais devido ao

caráter distintivo que a racialização imprime a esse debate, condição que contraria,

eminentemente, o padrão de igualdade e ausência de preconceitos que, via de regra, identifica

o Brasil. Embora tenham sido identificados diversos discursos e até outras FDs que se

inscrevem nesse campo discursivo maior que é a FDCCR, optou-se aqui em fazer um recorte

e destacar as mais recorrentes. Dessa maneira, serão analisados: o discurso da igualdade

jurídica; o discurso do mérito individual; o discurso de melhoria da escola pública; o discurso

economicista e o discurso da mestiçagem racial.

5.1.1 Discurso da Igualdade Jurídica

O discurso da igualdade jurídica reúne vertentes fincadas em teorias universalistas. Em

termos jurídicos, é voltado para as primazias do direito individual em detrimento do direito

coletivo, identificando as medidas particularistas – como as Ações Afirmativas – como um

atentado à liberdade individual. Nesse discurso sobressai o princípio da igualdade formal, cuja

perspectiva desempenha um papel importante na constituição de um ideal de evolução para a

subordinada de formações discursivas se organiza em função dos interesses que colocam em causa a luta ideológica de classes, em um momento dado de seu desenvolvimento em uma dada formação social.”

95

nação brasileira, visto que instaura o lugar comum da isonomia e do amparo legal às ações

cotidianas pautadas nesse princípio, contrariado pelo sistema de cotas, como sintetizam os

enunciados seguintes:

De igual modo, penso que o sistema de cotas fere o princípio da igualdade patente na Constituição Federal de 1988, uma vez que trata desigualmente os egressos, priorizando os afro-descendentes. (Questionário 04)

Em outras palavras, a Lei (se a do recorte racial existir ou qualquer regra oficial) reconhece e sustenta a desigualdade racial. (Questionário 42)

Além do mais, por tratar diferenciadamente as pessoas, é inconstitucional. A constituição diz que não se deve tratar diferentemente as pessoas por questão de religião, raça, cor etc. (Questionário 33)

Se todos nós nascemos com os mesmos deveres e direitos não há para que sustentar o recorte racial. (Questionário 42)

A referência à Constituição Federal marca a retomada do discurso da “lei para todos”,

que vem funcionando na cena discursiva brasileira como um sinônimo de evolução, uma

condição para o ingresso na modernidade, especialmente no século XIX, quando os primeiros

debates sobre a constituição de uma nação brasileira e sobre a afirmação dos direitos civis se

desenrolavam em meio a um conflito teórico-prático, cujos protagonistas eram, por um lado,

as concepções liberais européias e, por outro lado, o próprio sistema escravista.

Comentando esse desejo inconcluso de importar as feições transcontinentais, Schwarz

(2009 [1973]) aponta o deslocamento e desterritorialização que caracterizaram as ideias

liberais européias em solo brasileiro, citando o teor contraditório de documentos históricos

como a Constituição Brasileira de 1824, que, por trazer trechos da Declaração dos Direitos do

Homem e do Cidadão, só tornava ainda mais escandalosa à continuidade do escravismo no

Brasil. No enunciado a seguir, tem-se uma clara expressão desse movimento de paráfrase em

que são retomados os princípios libertários da Revolução Francesa:

Sou contra. O principio de recorte racial fere meus princípios baseados de sociedade igualitária e de democracia que, talvez, adquiri porque nasci numa sociedade européia baseada em princípios sacramentados (“Liberté, Egalité,

Fraternité”) além de um anti-racismo fortemente estabelecido (apesar de existirem diversas falhas). (Questionário 42)

Cientes de que o sentido não existe por si só, mas somente em referência às condições

de produção do discurso, atente-se para o fato de que a associação entre democracia e anti-

racismo só é possível mediante a intervenção dos princípios burgueses de liberdade, igualdade

96

e fraternidade. Nesse contexto, a ideia da identificação racial do ser humano como um ato

racista, retomada pelo sujeito do discurso da igualdade jurídica, está relacionada à rede

discursiva produzida em função das políticas raciais e racistas ocorridas ao longo do século

XX, como práticas de eugenia racial fomentadas pelo regime nazista europeu e pelo regime

segregacionista (apartheid) na África do Sul e nos EUA. Assim se explica a evidência da

relação de sentidos mobilizada por esse sujeito – só é democrática a sociedade que reconhece

no recorte racial uma forma de racismo.

Esses aspectos sócio-históricos afluem na constituição, no cenário intelectual, do

discurso sobre a não racialização das relações raciais no Brasil, integrando, conforme já visto

na análise do discurso freyreano, a memória da FD Culturalista, em que a não racialização

surge, portanto, como uma forma de combate ao racismo. Essa imbricação entre a FD Liberal

e a FD Culturalista, além de demonstrar o caráter heterogêneo das FDs, indica a importância

dessas FDs na constituição dos discursos sobre raças no Brasil. Contudo, como o próprio do

trabalho ideológico é instaurar a possibilidade da polissemia, há de se considerar, “por outros

lados”, a FD Racialista, na qual se inscreve o discurso do movimento negro brasileiro, cuja

matriz argumentativa está relacionada à racialização das identidades como estratégia de

combate ao racismo.

A discrepância entre esses dois posicionamentos ideológicos, embora pareça recente,

remonta ao século XIX. Schwarz (2009 [1973]) demonstra que esse descompasso é originário,

inclusive, nas peculiaridades do sistema econômico e político brasileiro. A modernidade

pretendida nos idos de 1800 implicava em abrir mão de burocracia e justiça regidas pelo

clientelismo, sendo, portanto, mais fácil criar um espaço quimérico de democracia, que de tão

repetível, torna-se factual: “Assim, com método, atribuiu-se independência à dependência,

utilidade ao capricho, universalidade às exceções, mérito ao parentesco, igualdade ao

privilégio etc.” (SCHWARZ, 2009[1973], p.155).

Esse cenário em que a alusão ao princípio igualitário no plano teórico já implica na

dissolução das diferenças e das desigualdades sociais no plano prático, é retomado pelo

sujeito do discurso da igualdade jurídica inscrito na FDCCR, conforme se percebe no

enunciado abaixo:

Portanto, creio q este processo seletivo fere o princípio de igualdade entre os cidadãos, independentemente, de qualquer circunstância. (Questionário 20)

A ênfase enunciativa dada ao princípio da igualdade formal é acompanhada de um

questionamento empreendido pelo uso do verbo estar no futuro do pretérito. O emprego de

97

estaria assinala a movência neste discurso, que trata a situação de desigualdade como uma

suposição, algo que é possível, mas que ainda não foi comprovado:

Tal política viola o principio da igualdade por dispensar tratamento diferenciado a pessoas consideradas integrantes de uma ‘raça’ que estaria em situação de desigualdade em relação às demais ‘raças. (Questionário 17)

Outro traço pertinente é a flexão no tempo presente dos verbos violar e ferir em

Tal política viola o principio da igualdade. (Questionário 17)

De igual modo, penso que o sistema de cotas fere o princípio da igualdade patente na Constituição Federal de 1988, uma vez que trata desigualmente os egressos, priorizando os afro-descendentes. (Questionário 04)

Essa flexão verbal confere ao enunciado um valor de verdade compreensível e aceitável,

a partir da definição de Jespersen (1954, apud CORÔA, 2005, p.41), para quem o tempo

presente pode ser percebido como um ponto sem duração definida que aponta sempre para a

frente e cuja extensão é variável. Ou seja: a legitimação da carga semântica desses verbos –

fortemente ligados a um cenário de violência e agressão – se dá exatamente porque o emprego

no tempo presente cria um mundo em que são incontestavelmente freqüentes estes atos

(ilícitos) de violação e ferimento.

Esses três exemplos – o uso convicto de violar e ferir bem como a situação hipotética

instaurada pelo estaria expressam a impossibilidade de um Brasil dividido racialmente e,

sobremaneira, de um Brasil sem a proteção da lei. Estabelecendo uma comparação, pode-se

considerar que tanto a discrepância entre teoria e prática apreendida por Schwarz (2009

[1973]) em documentos históricos e textos literários brasileiros, como a alusão à Constituição

Federal feita pelo sujeito do discurso da igualdade jurídica, cumprem o papel de instituir um

fundo falso de igualdade para todos, que é extremamente eficaz na construção e manutenção

de uma ideia democrática de realidade.

Para uma melhor observância deste aspecto é proveitoso notar que a premissa “todos os

homens são iguais perante a lei”, peculiar à FD Liberal, apaga os traços distintivos dos lugares

sociais, estratégia que reduz o interlocutor a um estado de silêncio (ORLANDI, 2007 [1996]),

ou seja, é como se todos os sentidos e posições de sujeito possíveis já estivessem

(pre)determinadas em um campo reconhecidamente igualitário, onde não há diferenças e

tampouco desigualdades sociais, sendo inusitado qualquer discurso que contrarie esta ordem

estabelecida.

98

5.1.2 Discurso do Mérito Individual

“Qual é a base científica dos alunos cotistas?”. Este questionamento, feito por um dos

professores universitários entrevistados na construção do corpus dessa dissertação pode ser a

síntese das preocupações que compõem o discurso do mérito individual contrário às cotas

raciais, o qual esboça um painel de sentidos associados não só a um temor diante da

manutenção do nível de excelência das universidades, como também – e primordialmente –

com a própria identificação de universidade como o lugar do mérito, o lugar daqueles que, por

merecimento ou habilidade, podem ingressar no ensino superior (PEREIRA, 2007).

Essa associação entre as instituições de ensino superior e o mérito se dá em consonância

com as reflexões empreendidas por Carvalho (2008, p.228): “O problema que se coloca,

então, é como as universidades públicas poderiam ampliar o acesso sem comprometer a

qualidade.” e por Brandão (2008, p.253): “Não há justiça sem mérito.”; “Selecionar a

excelência que se encontra fora de seus muros, trabalhá-la internamente e devolvê-la à

sociedade distingue o papel da universidade.” O conceito de universidade no discurso do

mérito individual passa pela compreensão de que a definição desse termo passou por

mudanças recentes, como destaca Chauí (2003, p.05):

A partir das revoluções sociais do século XX e com as lutas sociais e políticas desencadeadas a partir delas, a educação e a cultura passaram a ser concebidas como constitutivas da cidadania e, portanto, como direitos dos cidadãos, fazendo com que, além da vocação republicana, a universidade se tornasse também uma instituição social inseparável da ideia de democracia e de democratização do saber: seja para realizar essa ideia, seja para opor-se a ela, no correr do século XX a instituição universitária não pôde furtar-se à referência à democracia como uma ideia reguladora.

Para o sujeito desse discurso, a universidade não precisa atender a esse ideal de

democracia que prima pela garantia de oportunidades iguais para todos. Ao destacar que esses

alunos terão ingresso facilitado, ele opõe-se às pressões de democratização, indicando que

apenas alguns grupos atendem ao critério de excelência acadêmica. Essas ponderações

deixam explícitas as disputas em torno da afirmação de um único sentido para “universidade”,

entendida como um espaço exclusivo aos que estão acima da média, conforme demonstram os

enunciados abaixo:

Por outro lado, saber que se têm as vagas garantidas com menos concorrência e com menos nível de desempenho, pode criar uma “cultura da acomodação. (Questionário 22)

99

Assim, ressalvadas raras exceções, as universidades estarão lotadas de acadêmicos com pouca base escolar. (Questionário 28)

Me pergunto qual será a próxima ‘política educacional’... Baixar o nível de exigência das universidades para que os menos preparados possam concluí-la???...(Questionário 19)

Serão alunos de ‘segunda categoria’, aqueles que terão lacunas, porque são ‘coitadinhos’, sempre foram flagelados etc. (Questionário 22)

De acordo com Guimarães (2008), essa é uma postura comum aos professores

universitários:

(...) esse sistema de aferição de mérito pressupôs desde a sua instituição que as universidades públicas seriam locais de reprodução de elites intelectuais e científicas. O sistema não foi pensado para o ensino universitário de massa, como hoje parece ser a tendência mundial. (...) e, consequentemente, os professores universitários se vêem e são vistos como cientistas e produtores do conhecimento e não meros instrutores, desenvolvendo um esprit de corps bastante reativo à massificação do ensino (GUIMARÃES, 2008, p.193).

A recusa a um ensino de massa se pauta tanto na recriminação do intervencionismo

estatal, qualificando-o pejorativamente como caridade –

Infelizmente sinto que estamos iniciando um ciclo de esmolas... é a esmola do ‘bolsa isso’, ‘bolsa aquilo’, enfim... ninguém mais é impulsionado a crescer, a se esforçar pois ali adiante alguém irá te dar ‘de graça’ o que quer que seja.(Questionário 19)

– quanto na denúncia de fragilização da liberdade individual, presente em diversos enunciados:

Eu queria muito ter em minha sala de aula negros pobres, brancos pobres, índios, asiáticos, quilombolas, entre outros que pudessem dizer: ‘... tive uma escola pública de qualidade, estudei, me esforcei e hoje estou na universidade por mérito próprio...’. (Questionário 19)

Ninguém mais é impulsionado a crescer, a se esforçar pois ali adiante alguém irá te dar ‘de graça’ o que quer que seja. (Questionário 19)

Copia-se apenas o pior dos americanos (“affirmative action”) e não a valorização do esforço individual em condições de igual acesso à educação. (Questionário 15) Essas políticas são necessárias, mas devem focar o mérito, o esforço, e a competência. (Questionário 22)

Esses enunciados identificam uma determinada postura meritocrática assumida por

setores da universidade brasileira, mas que não está restrita a este universo. No plano

discursivo, termos como mérito, talento e competência atuam como verdadeiros eldorados,

100

constituindo uníssono território de realização identitária. Esta imagem de correção moral e

ética, caracterizada pelo esforço individual, mais do que almejada, é perseguida e idealizada

como contraponto possível a uma identidade trapaceira – que atende ao estereótipo do

malandro brasileiro – a qual, amparada em arranjos coletivos, teima em querer caracterizar a

população do Brasil (CÂNDIDO, 1970).

A preservação da excelência universitária – assegurada pela não aceitação das cotas

raciais – torna-se, dessa forma, uma alternativa viável, uma oportunidade de provar uma vez

por todas que no Brasil não se depende do “outro” para se afirmar em o que quer que seja.

Schwarcz (2009[1973]) mostra como as tentativas de obliteração dessa estética de

malandragem, “a la Zé Carioca” remontam, pelo menos, ao século XIX, quando a troca de

favores mediada pelo clientelismo e parentesco – marca dos vínculos entre a classe dos

homens livres e os proprietários de escravos – já se firmava como uma peculiar interpretação

da noção de mérito proposto pelo liberalismo europeu.

Nesse sentido, se as práticas políticas, econômicas e culturais do século XIX dependiam

das permutas consentidas entre compadres e comadres, este contexto de “arranjos” continua

funcionando hoje, não mais como fatos da história, mas como historicidade constitutiva deste

discurso de recusa, conforme se vê a seguir:

Há momentos que sinto um pouco de vergonha. (Questionário 19)

Este sujeito exprime embaraço face às cotas raciais justamente pelo fato de esse sistema

indicar uma amarra discursiva ao recriminável “jeitinho” – especialmente na universidade,

onde a priori, as relações se dariam de forma isenta:

Passar no vestibular no Brasil é o grande momento ritualizado do indivíduo, independentemente das suas relações sociais (você sabe com quem está falando?), da sua biologia (sexo, fenótipo), e dos seus gostos (políticos, sexuais, musicais, etc...). Além disso, é o momento no qual se pode eventualmente alterar o destino de sua classe social (FRY & MAGGIE, 2009, p.2).

Finalmente, no que se refere ao discurso do mérito individual, é preciso destacar a

proeminência de um determinismo, assinalado pelo emprego dos verbos ter e ser no futuro do

presente, expressando a permanência e continuidade da realidade defendida:

Teremos duas classes de alunos, os que acompanham e os que não conseguem acompanhar. (Questionário 22)

101

Serão alunos de ‘segunda categoria’, aqueles que terão lacunas, porque são ‘coitadinhos’, sempre foram flagelados etc.(Questionário 22)

Tal projeção também se verifica na utilização dos advérbios “sempre” e “infinitamente”

em

Os candidatos cotistas, podem até ter uma alta concorrência, porém o nível e qualidade sempre inferior, infinitamente inferior. (Questionário 22)

Embora tenha sido feita concessão a um possível sucesso na concorrência do cotista no

processo seletivo, o sujeito desse discurso circunda a inferioridade cotista com ares de

verdade incontestável e sempiterna. Salienta-se o tom perigoso dessa adjetivação,

precisamente porque, mesmo sendo construída e enunciada no seio da universidade,

demonstra desconhecimento ou desinteresse em tecer uma reflexão mais séria sobre a

qualidade do vestibular como sistema usado para aferir o mérito de um candidato ao ingresso

no ensino superior, visto que o sistema de cotas mantém o mérito no processo seletivo –

afinal, só são convocados os candidatos (cotistas ou não cotistas) classificados mediante uma

nota de corte relacionada à taxa de concorrência de cada curso.

5.1.3 Discurso de Melhoria da Escola Pública

A matriz argumentativa desse discurso reside na defesa de um Estado que, por meio de

políticas públicas no campo educacional, ofereça igualitariamente aos cidadãos a

possibilidade de melhor inserção no mercado produtivo e, consequentemente, de ascensão

social. A melhoria da escola pública é apontada, dessa forma, como condição e possibilidade

para a regulação da igualdade, o que leva à interpretação de que o acúmulo de rendimentos é

exclusivamente vinculado à capacidade individual (PAIXÃO, 2008). A esse respeito, o

enunciado abaixo é ilustrativo:

Os problemas que se pretende resolver assim, em minha opinião, são mais de origem educacional e social (classes sociais) e eu não desconheço que há certa relação entre a cor da pele ou o grupo étnico com o grupo social. No entanto, acho que se o “governo” resolver o problema da educação de base no Brasil (alguma coisa como nível da educação no colégio público = o do colégio particular), não haveria necessidade nenhuma de cota racial ao nível da universidade, porque todos chegariam ao nível universitário com as mesmas chances.(QUESTIONÁRIO 42)

Nesse discurso, a opção por iniciativas estatais para a resolução de problemas sociais

funciona como uma chave para que alguns grupos sociais exijam a melhoria no ensino

102

público e, simultaneamente, para que se critiquem os padrões de desigualdade social, sem que

haja, contudo, o compromisso desses mesmos grupos para a redução dessa desigualdade, que

é completamente atribuída ao estado, como lembra Höfling (2001). De acordo com Reis

(2000), essa opção por iniciativas estatais universalistas, associada à crença na educação

como “panacéia” para os problemas sociais indica, sobremaneira, a ausência de

responsabilidade social das elites brasileiras, pautada na recusa ao fator raça como uma

categoria analítica importante para se pensar o problema da desigualdade social brasileira e,

por outro lado, pela legitimação de um lugar sacralizado para a escola pública no Brasil,

conforme se vê nos enunciados a seguir:

Sou favorável a política de cotas para estudantes carentes oriundos de escolas públicas ou de particulares com bolsas.(QUESTIONÁRIO 14)

Existem pessoas que serão beneficiadas com este sist. de cotas raciais com alto padrão financeiro e possibilidades de estudar em ótimos colégios.(QUESTIONÁRIO 14)

Na minha opinião, se há de se ter políticas afirmativas, essas não devem ser por raça, cor, ou condição social. Isso tem que ser sanado com políticas de melhoria da escola pública.(QUESTIONÁRIO 22)

Solução paliativa para uma problemática de cunho eminentemente social, a falta da escolaridade formal como inibidor real da ascensão social. (QUESTIONÁRIO 37)

Em conclusão, se tiver que adotar um sistema de recorte mais igualitário na universidade, que seja baseado sobre o fato de ter sido educado no sistema público (tão deficitário) em relação ao ensino particular (QUESTIONÁRIO 42)

Quando o sujeito do discurso desse discurso mobiliza sentidos que instituem a

qualidade da escola pública como nivelação da desigualdade social é preciso ressaltar,

entretanto, que esse ideal de qualidade remete ao período em que as classes populares ainda

não tinham acesso à escolarização formal – é somente a partir dos anos 1970, com as pressões

dos movimentos sociais, que vai ocorrer a chamada democratização do ensino público.

Ironicamente este movimento veio acompanhado de uma privatização da educação básica, ou

seja, à medida que saíram da escola pública os filhos da classe média, passou a ocorrer

também a redução dos investimentos financeiros e, por outro lado, o cobro da qualidade

escolar.66

66 A secretária de Educação Básica do Ministério da Educação (MEC), professora Maria do Pilar Lacerda, faz menção à polêmica saudosista em torno da qualidade do ensino público brasileiro, destacando que as deficiências deste ensino só não eram perceptíveis enquanto os alunos eram exclusivamente oriundos da classe média, apresentando, por este motivo, uma sólida base educacional. (Disponível em: <http://noticias.terra.com.br/educacao/interna/0,,OI3737418-EI8266,00.html>. Acesso em 10 mar. 2010.).

103

Assim, esse discurso é marcado pelo uso de fórmulas abstratas que, por si só,

resolveriam o problema da desigualdade de acesso ao ensino superior, tais como “a melhoria

da escola pública”, “acesso para todos”, “educação básica de qualidade” ou “a igualdade de

ensino”. Nesse caso, o trabalho ideológico de fixação de sentidos, é exatamente este: compor

uma realidade idealizada para discutir o ingresso da população negra na universidade, em que

simplesmente se obliteram sentidos que embora vivenciados, não são assumidos no plano

discursivo, tais como as lutas históricas pela democratização da escola pública, especialmente

do ensino superior, no Brasil.

Ao se falar em sentidos construídos, um breve levantamento lexical dentre os

enunciados do discurso de melhoria da escola pública indica que a idealização de um outro

espaço para as cotas constrói um lugar para as cotas raciais em que imperam práticas

naturalmente recrimináveis. Assim, a ausência de lógica desse sistema seria explicada pela

violência que, em síntese, seria trazida por sua implantação, conforme se percebe nos

enunciados a seguir:

Quanto às cotas propriamente ditas, não creio que ‘forçar’ a entrada dos estudantes na universidade seja uma solução racional. (QUESTIONÁRIO 19)

O que não estamos percebendo muito bem é o “preço” que toda uma sociedade vai pagar por este falso ‘de graça’, especialmente essas pessoas que são “iludidas” com um falso sentimento de inserção e inclusão.(QUESTIONÁRIO 19)

Por meio do destaque dos termos em negrito, é possível notar como são feitas

associações (mesmo não declaradas) com uma cadeia semântica que relaciona as cotas raciais

a fatos históricos pautados na coerção do indivíduo. É a memória de discordância a esta

postura autoritária que é ativada pelo sujeito desse discurso. Esse entendimento do que é dito

e de que existe uma forma esperada de dizê-lo remete ao interdiscurso (PÊCHEUX,1997c),

visto que faz parte da memória da FDCCR as evidências de que toda racialização feita pelo

Estado – como ocorreu no nazismo – é uma medida autoritária que desrespeita os direitos

humanos.

5.1.4 Discurso Economicista

A forma-sujeito do discurso economicista, inscrito na FDCCR, mobiliza sentidos

ligados à discordância do viés racial como aspecto determinante para a análise dos índices de

104

desigualdade social brasileira. Como os discursos que articulam a discriminação racial com a

desigualdade social no Brasil têm por pré-requisito a observância da abolição da escravatura

como marco temporal para que se comece a pensar quais as possibilidades de mobilidade

social da população negra (OSÓRIO, 2008), a matriz argumentativa do discurso economicista

está calcada no apagamento da ideia de desigualdade racial oriunda do regime de cativeiro,

conforme demonstra a análise dos enunciados abaixo:

Até lá, que os programas de inclusão sejam mais coerentes e contemplem esses aspectos de cunho econômico e social ao invés do racial. (QUESTIONÁRIO 02)

Políticas públicas inclusivas deveriam ter como critério aspectos relacionados à condição econômica e não a racial.(QUESTIONÁRIO 13)

Além disso, por que só o critério de raça? Por que não utilizamos o critério da fome? Neste caso, perguntamos, por exemplo, por que os nordestinos, flagelados pela seca, também não tem esse direito. Se existe injustiça social, essa não é apenas dos negros. Se continuarmos nesse raciocínio, deveríamos ter cotas para os favelados, ou sem terra, etc.(QUESTIONÁRIO 22)

Acredito que o problema maior seja de exclusão financeira, onde famílias formadas por negros, brancos, e quaisquer outras raças vivem sob os ditames das mazelas da falta de acesso aos recursos mínimos necessários ao atendimento dos mais básicos suprimentos de subsistência. (QUESTIONÁRIO 02)

Acho que o sistema de cotas raciais não é a melhor política para os menos favorecidos. Primeiro, porque o simples fato de ser afro descendente não significa que necessite de maior atenção que um de raça branca pobre ou de outras raças. (QUESTIONÁRIO 28)

Controversa medida, que prioriza apenas um aspecto não determinante da segregação social e exclusão da possibilidade de ter acesso de modo pleno aos recursos e demais aspectos das ofertas sociais. (QUESTIONÁRIO 02)

A política de cotas faz sentido se for fundamentada nas diferenças que se quer combater: as diferenças sociais e econômicas. Aqui é que se deve combater com políticas públicas diferenciadas (tipo cotas). (QUESTIONÁRIO 33)

A política de cotas adotada não deveria ter recorte racial, pois o problema da falta de oportunidade remete à situação econômica e não racial. Por experiência própria, já constatei a ocorrência de alunos com desempenho muito bom ou excelente pertencentes aos mais diversos perfis raciais. (QUESTIONÁRIO 38)

Os termos em negrito compõem um mosaico do que Souza (2004, p.80) chama de

“fetichismo da economia”: a concepção de que exclusivamente o crescimento econômico

garante a resolução dos problemas de desigualdade e exclusão social. O discurso

economicista faz eco, assim, às primeiras pesquisas financiadas pela UNESCO, na década de

105

1950, as quais indicavam a origem social como fator regulador dos processos de mobilidade

social e, em contraponto, a discriminação racial como uma herança tardia do escravismo,

prestes a ser extinta, conforme destaca Pierson: “Não existem castas baseadas na raça;

existem somente classes. Isto não quer dizer que não existe algo que se possa chamar

propriamente de “preconceito”, mas sim que o preconceito existente é um preconceito de

classe e não de raça” (PIERSON apud OSÓRIO, 2008, p.68).

A recusa à racialização do debate sobre as cotas mostra que o lugar discursivo do

sujeito do discurso economicista se constrói por meio do diálogo com saberes do pré-

construído da FD Culturalista, que, a fim de combater o preconceito racial, nega a existência

de raças no plano biológico. Dentre os documentos que compõem a base argumentativa

dessa FD, cita-se a Declaração sobre raças da UNESCO, datada de 1950 – “Sendo as nossas

observações largamente afetadas pelos nossos preconceitos, somos levados a interpretar

arbitrária e inexatamente toda variabilidade que se produz num grupo dado como uma

diferença fundamental que o separa dos outros de modo decisivo.” – e o livro Casa-grande

& Senzala, de Gilberto Freyre:

Talvez em parte alguma se esteja verificando com igual liberalidade o encontro, a intercomunicação e até a fusão harmoniosa de tradições diversas, ou antes, antagônicas, de cultura, como no Brasil. É verdade que o vácuo entre os dois extremos ainda é enorme; e deficiente a muitos respeitos a intercomunicação entre duas tradições de cultura. Mas não se pode acusar de rígido, nem de falta de mobilidade vertical – como diria Sorokin – o regime brasileiro, em vários sentidos sociais um dos mais democráticos, flexíveis e plásticos (FREYRE, 2009 [1933], p. 115).

Percebe-se, portanto, que a FDCCR é atravessada por esses saberes, oriundos da FD

Culturalista, referentes à integração dos diferentes grupos étnicos em um todo homogêneo

como prática de combate ao preconceito racial. Entretanto, se há a repetição desses sentidos,

esta se dá no nível da formulação do discurso – na retomada, no interior da FDCCR, dos

argumentos da FD Culturalista – mas não no nível da constituição do lugar dessa posição-

sujeito67, pois o discurso economicista engendra uma ordem discursiva distinta da ordem do

discurso freyreano.

Ao negar a racialização das cotas o sujeito do discurso economicista realiza o

apagamento dos estudos sociológicos desenvolvidos a partir da segunda metade do século

XX, os quais apontam o componente racial como elemento determinante da desigualdade

67 Orlandi (2000) lembra que, no plano discursivo, pode ocorrer a repetição dos argumentos motivada por razões ideológicas diversas, e quando isso ocorre, se tem uma modificação do lugar discursivo da posição sujeito.

106

social brasileira68. Por extensão apaga-se também a reflexão sobre a desigualdade racial e/ou

discriminação racial como fatores que incidem sobre o ingresso no ensino superior.

Entretanto, a reflexão empreendida por esse sujeito diz respeito à composição de um cenário

em que o fator econômico, e não a cultura mestiça é o fator determinante. Este é o momento

do deslocamento discursivo no que tange à constituição de sentidos – o “equilíbrio de

antagonismos” postulado no discurso freyreano, calcado na não aceitação biológica de raça,

é retomado no discurso economicista por um sujeito que está em outro lugar ideológico de

fala e, por esse motivo atribui à desigualdade sócio-econômica a base das relações raciais

igualitárias no Brasil.

5.1.5 Discurso da Mestiçagem Racial

A marca desse discurso é a valorização da mestiçagem racial como um elemento capaz

de suplantar as diferenças raciais da composição populacional brasileira sem o ódio racial

característico das sociedades multirraciais. O sujeito discursivo se constitui a partir da

retomada da memória da FD Culturalista, a qual coloca a democracia racial brasileira tanto

como um ideal a ser atingido no plano cultural, como preconizava o discurso freyreano,

quanto como um ideal a ser atingido nos planos jurídico e político, como passou a significar

no período pós-freyreano69.

Nesse contexto, a garantia da harmonia racial resguarda a plasticidade singular que,

cultivada desde a década de 1930, vêm caracterizando a dinâmica das relações raciais no

Brasil. Assim, a argumentação contrária às cotas raciais se explica tendo em vista a exigência

da identificação racial, aspecto que, no interior da FDCCR, não somente põe em xeque o ideal

de harmonia racial, quanto instaura o racismo. Essa censura à racialização, eminente traço do

discurso culturalista, pode ser observada nos destaques feitos nos seguintes enunciados:

Em suma, uma medida demagógica e racista.(QUESTIONÁRIO 15)

68 Para o desenvolvimento desses estudos foram fundamentais, dentre outros, as pesquisas de Gilberto Freyre (década de 30); Sílvio Romero, Donald Pierson e Thales de Azevedo (década de 40); Charles Wagley (década de 50); Oracy Nogueira, Florestan Fernandes, Octavio Ianni e Fernando Henrique Cardoso (década de 60); Carlos Hasenbalg e Nelson do Valle Silva (década de 70/80). (OSÓRIO, 2008) 69 A esse respeito, ver capítulo 2.

107

O sistema de cotas acabou por causar discriminação depreciação, perseguição e humilhação a seus “beneficiários”, ferindo assim o princípio da dignidade humana. (QUESTIONÁRIO 17)

Acredito que políticas de cotas com recorte social é injusta e irresponsável por estimular o racismo. (QUESTIONÁRIO 14)

Sou absolutamente contra qualquer coisa que tenha “Recorte Racial”, me lembra muito o nazismo, guardando as devidas proporções é claro...(QUESTIONÁRIO 19)

Além do que, apesar de favorecê-los no primeiro instante, certamente que causará preconceito ou mesmo mais separação racial contra os estudantes nesta situação. (QUESTIONÁRIO 28)

Creio que o referido sistema pode ainda gerar desigualdades e diferenças de tratamento entre cotistas e não cotistas aprofundando questões até então, segundo melhor juízo, não tão explicitadas. (QUESTIONÁRIO 20)

Sim. Sou contrário a este tipo de cotas. Se as cotas se restringissem a educação básica e fundamental integrais em escola pública seria favorável, porém em percentuais menores que os atuais utilizados, mas incluir o recorte racial sou contra.(QUESTIONÁRIO 32)

Sou terminantemente contra a política de cotas com base nas diferenças raciais. Trata-se de uma política posta com a finalidade de reduzir diferenças, mas é essencialmente uma prática de tratamento diferenciado das pessoas. (QUESTIONÁRIO 33)

O tratamento diferenciado com base em religião, raça ou cor deve ser combatido com penalidades (cadeia, multa, prestação de serviço social etc). (QUESTIONÁRIO 33)

Tenho receio do preconceito perdure por resposta na formação acadêmica. (QUESTIONÁRIO 37)

As cotas podem trazer acomodação para os seus beneficiários, assim como ressentimento para aqueles que se sentirem preteridos por não serem considerados de minoria racial. (QUESTIONÁRIO 38)

Em contraposição ao discurso economicista, que admite a existência de negros e

brancos, a tendência argumentativa do discurso da mestiçagem racial é a universalização dos

grupos populacionais, firmada no entendimento de que raças não existem. A memória

discursiva agenciada nesse discurso ancora-se na recriminação aos modelos de afirmação

étnica – tanto a negritude quanto a branquitude são recrimináveis por pressuporem a distinção

entre as raças. Desse modo, evoca-se uma ideia de cotas raciais associada ao conflito, noção

altamente rejeitada pela sociedade brasileira exatamente por fazer referência aos regimes de

segregação racial. A propósito da peculiaridade brasileira em lidar com a miscigenação

biológica e com a mestiçagem racial, Freyre (1982, p.01) afirmou:

108

Esse estilo envolve interpenetração de culturas, no plano sociológico e, no plano biológico, miscigenação. Envolve também o repúdio a ideologias tais como ‘negritude’, no seu sentido político-racial mais estreito e, ao próprio indo-americanismo, no seu sentido igualmente político-racial estreito. Pois a tendência do brasileiro é para a suplantação ou o desprezo da ‘Raça’, como fator decisivo, ou poderosamente condicionante, do comportamento político, pelo de metarraça. O que em tal implica a crescente extensão, entre a gente brasileira, do uso do adjetivo ‘moreno’ para qualificar quem, na população nacional, não for branco.

Estas palavras do autor de Casa-grande & Senzala são cruciais para a compreensão do

discurso da mestiçagem racial, pois sinalizam a sua expressividade na constituição dos

discursos de formação da sociedade brasileira. A fórmula da mestiçagem racial, tantas vezes

aludida ao longo dos anos desde que Freyre a valorizou na década de 1930, adquiriu uma

importância fundamental para simbolizar a nação brasileira, em vista de seu caráter

conciliador. Destarte, a convivência entre negros e brancos no Brasil foi ressignificada

mediante essa “ética de fundo emotivo” (HOLANDA, 1995 [1936], p.148) que conferiu um ar

de intimidade própria do espaço familiar às demais espaços onde se desenrolam as relações

sociais da nação brasileira.

Essa cordialidade, apontada por Holanda (1995 [1936], p.146) como “a contribuição

brasileira para a civilização” revestiu, especialmente, os discursos sobre as relações raciais,

recorrentemente apontadas como o locus primordial de expansão desse modelo patriarcal em

que a animosidade do escravismo foi suavizada pela integração. O discurso da mestiçagem

racial inscrito na FD Culturalista subtraiu, dessa maneira, o termo racismo no cenário

intelectual brasileiro por restringir o seu significado ao contexto de violência explícita,

acepção demasiado ausente dos discursos sobre as relações raciais brasileiras. A título de

ilustração, observe-se o que diz Stefan Zweig, em seu clássico Brasil, um país do futuro

(2006 [1941], p.132):

As mulheres que amamentam os filhos olham afáveis e despreocupadas. A mesma cordialidade espontânea existe nos bondes, nos barcos, não importa se estamos sentados diante de um negro, um branco ou um mestiço. Jamais se descobre qualquer animosidade dentre as dúzias de raças diferentes, nem entre adultos, nem entre crianças. A criança negra brinca com a branca, o mulato caminha abraçado com o negro, em lugar nenhum existem restrições ou mesmo boicotes sociais. No serviço militar, nas repartições, nos mercados, nas lojas, nos locais de trabalho as pessoas nem pensam em se separar de acordo com a cor ou a origem e trabalham juntos pacífica e amistosamente. Japoneses casam com negras, brancos, com morenas, a palavra “mestiço” aqui não é uma ofensa, e sim uma constatação que nada tem de pejorativa. O ódio entre classes e raças, essa planta venenosa da Europa, ainda não criou raízes nesse solo.

109

O texto de Zweig, que traz o olhar do visitante estrangeiro sobre o Brasil, funciona

discursivamente como uma paráfrase do discurso culturalista, inaugurado em Casa-grande &

Senzala (1933) e hoje, atualizado, devido ao acontecimento histórico da implantação do

sistema de cotas raciais. Em Brasil, um país do futuro são retomadas a ideia de mestiçagem

bem-sucedida e, principalmente, o diferencial brasileiro em relação aos países europeus – a

ausência do preconceito e discriminação racial. Dessa maneira, o legado desse discurso é, o de

que, conquanto as ideias européias tenham encontrado terreno fértil no Brasil, a “planta

venenosa” do racismo, em particular, foi substituída pela benéfica intimidade cordial, em que

os traços distintivos são facilmente dissolvidos.

5.2 A FORMAÇÃO DISCURSIVA FAVORÁVEL ÀS COTAS RACIAIS

A matriz argumentativa da FDR está vinculada à incorporação da raça como categoria

essencial à análise das relações sociais brasileiras. No decorrer dos séculos XIX e XX muitos

foram os discursos que mobilizaram esse conceito, sendo possível distinguir ao menos dois

campos principais de interpretação: o racialismo na perspectiva médico-biológica –

empreendido por Nina Rodrigues e demais sujeitos cujos discursos estavam inscritos na FD

Científico-Racialista do século XIX, e o racialismo na perspectiva da militância racial –

empreendido por uma significativa vertente do movimento negro brasileiro, a partir da década

de 1970. Nessa seção discutir-se-á, por meio da análise do discurso da reparação racial e do

discurso de melhoria da escola pública, como essa segunda vertente tem funcionado como o

lugar ideológico de onde falam os sujeitos inscritos na FDFCR.

5.2.1 Discurso de Reparação Racial

A forma-sujeito do discurso da reparação racial preconiza que o acesso ao ensino

superior é atravessado por condições desiguais, definindo assim, um novo sentido para a

noção de meritocracia, o qual vincula as circunstâncias sócio-históricas ao conjunto de

competências que habilitam determinado indivíduo a disputar, com sucesso, a vaga na

universidade. A seguir, têm-se, de forma detalhada, os enunciados correspondentes a esse

viés, que se define a partir da contestação ao conceito de mérito empregado nos discursos da

Formação Discursiva Contrária às Cotas Raciais:

110

Em segundo lugar, quando historicamente os negros eram retirados dos domínios da humanidade, sendo, portanto animalizados, desprovidos de uma alma, o discurso dominante não questionava a “meritocracia” que se deseja nas oportunidades sociais. (QUESTIONÁRIO 21)

É chegado o momento de se parar de tratar o negro como ser inferior, a se destratar uma pessoa por causa da cor, uma vez que já temos vários professores universitários que são negros, o que prova que inteligência não tem nada a ver com cor. (QUESTIONÁRIO 23)

O ato de agregar a questão racial à categoria mérito indica que a racialização deve ser

um critério para se pensar o acesso ao ensino superior. O movimento polissêmico fica por

conta deste entendimento de que, ao falar de alunos cotistas, estes sujeitos estão falando de,

pelo menos 75% de indivíduos auto-declarados negros. Essa divergência entre a FDFCR uma

e a FDCCR constrói, no discurso de reparação racial, um desvão que apaga os outros sentidos

que porventura puderem existir sobre “mérito”. Reinventa-se, dessa maneira, este conceito,

que passa a ser substituído por “oportunidades” e “oportunidades sociais”. Note-se que esta

escolha não é fortuita, obedecendo, conforme já destacado, à própria lógica deste discurso – a

racialização do mérito está ligada ao ato de reconhecer a existência de teoria e práticas

racistas no Brasil e, por conseguinte, da necessidade de políticas de reparação racial.

A edificação da forma-sujeito desse discurso se dá por meio da contestação de

componentes do ideário liberal, como a supremacia do mérito e o não intervencionismo

estatal. No discurso de reparação racial, é construída a ideia de que o Estado possui

responsabilidade no âmbito da regulação da igualdade racial, conforme está explícito no

enunciado abaixo:

Entendo as cotas como uma política de reparação, atendendo parte das dividas sociais que o estado brasileiro tem com a população afrodescendente. (QUESTIONÁRIO 01)

Além desse aspecto, a imbricação entre “Constituição” e “cidadania” atualiza o

significado dessas expressões, conferindo ao texto constitucional uma roupagem que

extrapola a dimensão do documento jurídico:

O direito social de desfrutar dos mesmos direitos e prerrogativas, tal como são previstas na nossa Constituição, quando de cidadania se trata. (QUESTIONÁRIO 23)

O emprego de cidadania – termo cuja memória remete a discursos de grupos políticos

de esquerda e movimentos sociais, designando a garantia de determinados direitos e deveres –

111

traz, pari passu, um interdiscurso carregado de sentidos vinculados ao “ser cidadão”,

funcionando como índice das lutas já empreendidas por causas qualificadas sob o rótulo do

social e com grande poder de mobilização coletiva. Ainda que, devido a sua intensa aparição,

o termo cidadania seja adjetivado por muitos como desgastado70, é imediata a sua remissão a

este repertório, em que o “social” tem caráter sedutoramente positivo.

Outro aspecto interessante do discurso de reparação racial é o emprego de aspas –

recurso estilístico que tem a intenção de chamar a atenção do leitor:

Trata-se de estratégia temporária que proporciona o acesso à IES pública de estudantes em situação social desfavorável, estabelecendo uma disputa mais justa entre pessoas com “oportunidades” semelhantes. (QUESTIONÁRIO 29)

Na situação analisada elas cumprem este papel, trazendo dúvidas à significação

empreendida pelo uso do conceito “oportunidades”. Desse modo, tem-se uma ênfase no que

sejam as condições de acesso ao ensino superior, colocando-se em xeque se elas podem

mesmo ser pensadas tendo como parâmetro as oportunidades, e, em especial, de qual teor

seriam essas oportunidades.

Dessa maneira, o sujeito do discurso de reparação racial arregimenta sentidos do pré-

construído sobre a desigualdade racial brasileira, os quais apontam que a mobilidade social

não reduz o distanciamento entre negros e brancos71, atribuindo ao fator raça a

preponderância para o entendimento dessa desigualdade, caracterizada como um ciclo de

desvantagens cumulativas:

Penso que é muito importante a vivência de políticas afirmativas que proporcionem a equidade, visto que vivemos em uma sociedade desigual, que precisa mudar seus rumos. (QUESTIONÁRIO 31)

A medida corrige certas distorções sobre a hierarquia social, mas não é único remédio às questões socioeconômicas envolvendo etnia no Brasil.(QUESTIONÁRIO 09)

Finalmente, acho a adoção das cotas na UESC e em outras universidades uma política produtiva em nome da reflexão e da transformação da realidade.(QUESTIONÁRIO 21)

70 Uma simples consulta do termo “democracia” no banco de dados do Scielo < http://search.scielo.org/index.php> informa quatrocentas e uma ocorrências, número deveras significativo. 71 Osório (2008, p.95) ressalta: “O fato de que a origem social é o principal determinante da reprodução da desigualdade social, todavia, não deve colocar em segundo plano a importância da discriminação racial. A rigidez do regime brasileiro de mobilidade, na ausência de discriminação racial, por si faria com que a desigualdade racial perdurasse por muito tempo. Mas ela se reduziria progressivamente e, se isso não ocorre, é por que a discriminação provoca a estagnação e a mobilidade”.

112

Penso que a reserva de vagas (cotas) com recorte racial é uma ação FUNDAMENTAL para que se busque a reparação do enorme fosso existente entre os afrodescendentes e os não-afrodescendentes neste país. (QUESTIONÁRIO 05)

Pesquisas já apontavam que os jovens de origem negra e oriundos de escola pública, de modo geral, não conseguiam vencer a grande barreira do vestibular, ficando cada vez mais marginalizados do processo de elevação do nível de escolarização. Portanto, impossibilitado de acesso ao mercado de trabalho e ascender socialmente. (QUESTIONÁRIO 27)

A política tem um efeito direto, no curto e médio prazo, sobre questões como: mobilidade social; apropriação da renda e ocupação dos espaços de poder. (QUESTIONÁRIO 01)

Principalmente de proporcionar condições, para a população negra de baixa renda, de uma melhor inserção no mercado de trabalho. (QUESTIONÁRIO 03)

Dessa maneira, como historicamente as mazelas do desemprego e da falta de condições financeiras e sociais, atingem as classes pobres que de regra são afro-descendentes, estamos diante da perpetuação da marginalização social e econômica da raça. (QUESTIONÁRIO 06)

Partindo do pressuposto que a política de cotas tem como finalidade diminuir o abismo historicamente construído entre negros e brancos. (QUESTIONÁRIO 41)

As cotas significam um momento de quebrar este paradigma que vincula o acesso e o sucesso à/na universidade a uma camada privilegiada. As cotas são uma ação de JUSTIÇA para com a população negra do Brasil (QUESTIONÁRIO 40)

Nesse sentido concordo plenamente com cotas que tentam “corrigir” injustiças no país como o acesso ao ensino publico e gratuito de cidadãos de extração popular, negros e indígenas.(QUESTIONÁRIO 16)

Concordo com a política adotada e acredito ser um reconhecimento e regaste diante de séculos de ações e atitudes que afastaram a população negra das condições e oportunidades de acesso ao sistema educacional, entre outros. (QUESTIONÁRIO 30)

A observância dessa matriz argumentativa aponta para questões ainda mais complexas

do que a opinião favorável ou contrária ao sistema de cotas raciais: a polarização entre negros

e brancos efetuada por esse discurso faz memória ao discurso de formação da sociedade, em

especial, à clássica fórmula das três raças que, diluídas, caracterizam o processo de

miscigenação e mestiçagem racial no Brasil. Dessa maneira, uma paráfrase possível desses

enunciados seria “Sim, é possível saber quem é negro e quem é branco no Brasil”, numa clara

resposta opositiva ao discurso de fusão homogênea entre as raças.

Esse traço associativo entre o reconhecimento das identidades raciais e a denúncia do

racismo, característico do discurso de reparação racial, surgiu no seio dos movimentos negros

113

brasileiros e se firmou na ideia de existência da violência racial em contraponto à ideia de

democracia racial, que integra a memória discursiva da FD Culturalista. A análise dos

enunciados abaixo mostra essa noção de democracia racial como apaziguamento dos conflitos

raciais no Brasil, criticada pelo discurso de reparação racial:

A Conferência da ONU contra o racismo em Durban (setembro/2001) contribuiu para a criação das cotas.(QUESTIONÁRIO 24)

Hoje sou a favor da Política de Cotas por acreditar na existência de um “racismo cordial” que desfavorece minorias e favorece a injustiça. (QUESTIONÁRIO 24)

Especificamente, em termos sociais, a cota é justificada principalmente para negros (etnia afro) porque eles que eles sentem na pele (literalmente) muito preconceito. (QUESTIONÁRIO 16)

Me posiciono favorável às cotas raciais/sociais por considerá-la um momento de literalmente reparar o racismo (implícito/explícito) contido na academia. (QUESTIONÁRIO 03)

Oportunizar ao cotista o direito de acesso à Universidade proporciona não “um pagamento de dívida”, mas uma forma de se apagar paulatinamente o preconceito de raça. (QUESTIONÁRIO 23)

Primeiro porque só o fato de levantar uma discussão acalorada que envolve a falácia da democracia racial no Brasil já é uma conseqüência positiva da adoção dessas cotas. (QUESTIONÁRIO 21)

Assim, diante da herança de extrema violência de todos os tipos deixada pelo processo da diáspora negra, é muito mais fácil concordar com a adoção de cotas com viés racial do que ser contra. (QUESTIONÁRIO 21)

Temos que assumir nossa cultura, não dívida, mas o respeito aos cidadãos que formaram esta nação, que a conformam e que são politicamente herdeiros dos mesmos direitos. (QUESTIONÁRIO 23)

Infelizmente a cor foi e é, muitas vezes, justificativa de exploração, preconceito e exclusão. Entenda que prefiro usar o termo cor de pele porque percebo que o brasileiro, independente de cor, é mestiço. Eu não tenho opinião formada sobre a existência de “sub-raças” derivadas da raça-humana. Entretanto, tateio pela ideia de que o conceito de raças humanas é uma invenção para fragmentar e justificar preconceito.

Para finalizar, penso que as políticas afirmativas podem nos ajudar a superar ou a minimizar o problema do preconceito e exclusão. (QUESTIONÁRIO 31)

Uma vez que a raça negra é tão digna quanto a indígena, quanto a branca, raças que são os pilares de nossa nação.(QUESTIONÁRIO 23) [...] momento de fazer despertar a consciência da comunidade negra dentro do processo de construção de uma nação, de construção de uma cidadania. (QUESTIONÁRIO 03)

114

Considero um avanço, pois era uma reivindicação da comunidade interna e externa, sobretudo dos grupos interessados diretamente (mov. negro). (QUESTIONÁRIO 11) Esta ação é resultado da pressão de grupos do movimento social, notadamente o Movimento Social Negro. (QUESTIONÁRIO 26)

Ela foi fruto de uma movimentação de diferentes representações sociais e de entidades negras. (QUESTIONÁRIO 27)

As condições histórico-ideológicas de produção desse discurso apontam para a FD

Culturalista exatamente porque é nesse campo discursivo que se inscrevem as regularidades

discursivas que defendem a possibilidade de integração racial no Brasil. Ora, sabendo que

uma FD é necessariamente permeada por outras FDs, é preciso recorrer à FD Culturalista para

se compreender, então, como se constitui a FD Militante-Racialista, na qual se inscrevem os

discursos de explicitação do racismo e consequente fortalecimento dos movimentos negros.

Embora esses sentidos também tenham começado a circular em discursos acadêmicos

ainda na década de 1970, tem-se aqui, fundamentalmente, o sujeito do movimento negro que

“empresta” para o sujeito professor-universitário suas referências de violência racial trazida

pelo racismo. A transferência de sentidos, dada à natureza volátil-estabilizada do regime

discursivo, indica que o argumento da racialização da nação brasileira é o mesmo, revelando,

portanto, um importante movimento parafrástico, que assinala o movimento negro como o

grande enunciador do discurso de denúncia do racismo no Brasil.

Assim, quando o sujeito professor universitário enuncia o discurso de reparação racial

calcada em raças distintas ele está, ainda que não saiba, silenciando o discurso freyreano, mais

precisamente a ideia de democracia racial cultural que, transfigurada para a ideia de

democracia racial social72, passou a significar a igualdade dos direitos civis e sociais entre os

grupos étnicos no Brasil. A referência à desigualdade social entre negros e brancos é o que

marca esse movimento polissêmico que instaura mais um sentido possível para a ideia de

democracia racial – a partir daí o uso desse termo necessariamente traz tantos os sentidos

mobilizados pelo sujeito freyreano, quanto os sentidos mobilizados pelo sujeito militante

negro. A análise do enunciado abaixo mostra como, na enunciação do discurso de reparação

racial, esse pré-construído é trazido à tona:

A questão das cotas com recorte racial significa fomentar a discussão sobre os mecanismos que a sociedade brasileira (construída sobre os ideais da cultura branca, cristã, heterossexual, burguesa) consolidou ao longo dos tempos para manter a população negra e empobrecida distante do seu universo. (QUESTIONÁRIO 40)

72 Esta discussão foi feita no capítulo 3.

115

Quando esse sujeito põe em xeque essa igualdade entre negros e brancos, ele está

retomando os discursos sobre a igualdade brasileira, que aqui é interpretada sob o signo da

raça. Para se pensar o que é essa igualdade, o conceito de democracia é mobilizado. Em

primeira instância, tudo o que já foi dito e escrito sobre democracia – desde Aristóteles até os

dias atuais e, em segunda instância, a ideia de democracia brasileira – desde o processo de

afirmação da República; passando pelas lutas sociais no período dos regimes ditatoriais; pela

promulgação da “Constituição Cidadã”, em 1988 até as mais recentes pressões dos

movimentos sociais negros pela adoção do sistema de cotas raciais no processo seletivo das

universidades.

Desse modo, não é por acaso que os favoráveis a essa política utilizem, nos embates

políticos, a expressão “democratização do acesso ao ensino superior”. O que está em questão

é mesmo a afirmação da ideia de democracia, condição sine qua non para o advento da

desejada igualdade social brasileira. O sujeito do discurso da reparação racial torna-se, então,

porta-voz desta ideia, construindo assim, efeitos de sentido que identificam as cotas raciais

como a materialização da democracia. Os enunciados abaixo ilustram bem essa associação

entre cotas raciais e democracia:

Este é um direito adquirido e a Universidade precisa e deve atender a demanda, cumprindo assim a sua função social. (QUESTIONÁRIO 39)

Penso que a universidade deva ser um espaço para a discussão e a vivência da democracia. (QUESTIONÁRIO 40)

Finalmente, acho a adoção das cotas na UESC e em outras universidades uma política produtiva em nome da reflexão e da transformação da realidade (QUESTIONÁRIO 21)

Sendo a Uesc uma instituição pública, um espaço “democrático” de discussões e de afirmações sociais, não poderia deixar de adotar a política de cotas, apesar de sua história evidenciada numa memória de violência e desigualdade social. (QUESTIONÁRIO 41)

Que é uma medida imprescindível - embora tímida - no sentido de uma tentativa de democratização do ensino superior. (QUESTIONÁRIO 08)

Dessa maneira, nota-se que o posicionamento ideológico desse sujeito percebe a

universidade como o lugar da democracia, que aqui pode ser parafraseada pela ideia de

universidade para todos, indistintamente. Conquanto o sujeito do discurso de reparação racial

venha desenhando esse painel igualitário que remete às reivindicações da militância de

116

movimentos sociais diversos, dentre eles, o movimento negro, a sua inscrição na FDFCR não

impede que haja a sua fragmentação em uma posição-sujeito que evita a alusão ao termo

raça, recorrendo a termos distintos para nomear a população beneficiada pelo sistema de

cotas raciais.

A seguir, serão analisados, portanto, alguns enunciados cuja posição-sujeito indica uma

concordância parcial com o sistema de cotas. A ressalva feita é em relação à adjetivação desse

sistema, pois o racial passa a ser conjugado ou substituído pelo social, estratégias que

mostram o hibridismo que perpassa a constituição de toda e qualquer FD – ainda que esta

posição-sujeito esteja inscrita na FDFCR, há uma rejeição a essa polarização entre brancos e

negros, elemento crucial ao discurso de reparação racial. A ausência dessa trajetória linear dos

sentidos no que diz respeito à racialização ou não das cotas pode ser melhor verificada após a

análise dos enunciados abaixo:

Trata-se de estratégia temporária que proporciona o acesso à IES pública de estudantes em situação social desfavorável, estabelecendo uma disputa mais justa entre pessoas com “oportunidades” semelhantes. (QUESTIONÁRIO 29)

Essas são benéficas, uma vez que por sua natureza, elas proporcionam ao cidadão brasileiro de baixa renda e que não teria fácil acesso ao espaço acadêmico, o direito social de desfrutar dos mesmos direitos e prerrogativas, tal como são previstas na nossa Constituição, quando de cidadania se trata. (QUESTIONÁRIO 23)

Acredito que adotar a política de cotas com recorte racial, e também sócio-econômico, favorece a entrada no ensino superior de uma grande parcela da população que historicamente foi alijada das conquistas sociais, como o direito ao ensino superior e ao posterior exercício da profissão escolhida. (QUESTIONÁRIO 25)

Acredito que essa medida contribuirá para que pessoas que encontrariam maior dificuldades para o ingresso do ensino superior possa, de fato gozar de um direito que lhes pertence. (QUESTIONÁRIO 10)

Visto que as cotas na UESC demandam a comprovação de que o aluno provém de escola pública e a questão racial se vincula à auto-declaração, logo o viés determinante no processo seletivo do vestibular é sócio-econômico e não racial. Tal análise encontra eco nas informações disponíveis acerca da própria pirâmide social brasileira (que mostra o afro-descendente na base) e também nas estatísticas sobre o perfil do alunado de escola publica no país (oriundo das classes populares, na sua maioria). Entendo, assim, que as cotas na UESC vieram para oportunizar o acesso dos mais pobres à Universidade. Nesse sentido, vejo-as como uma política positiva, afirmativa. (QUESTIONÁRIO 07)

A Uesc adotou políticas de cotas conforme recorte sócio econômico e não estritamente racial étnico. (QUESTIONÁRIO 34)

117

Considero uma medida justa. Essa atitude política da Uesc em adotar o sistema de cotas como parte das políticas afirmativas para atenuar as desigualdades sociais entre os diferentes cidadãos brasileiros que não tinham o acesso ao ensino superior. (QUESTIONÁRIO 27) Se existe uma política de cotas, deveria também existir cotas para os pobres e os índios, por exemplo. Com relação à Universidade, se esta política existe e, de alguma forma, poderá contribuir para “amenizar” a discriminação racial, que sempre existiu e continua a existir no Brasil, sou a favor. Talvez, isto dê uma oportunidade àqueles que sempre foram discriminados. Mas, penso também que a pior discriminação é contra o pobre! (QUESTIONÁRIO 36)

Quanto mais se faz recortes dessa natureza, mais aprofundamos as Desigualdades. Somos todos uma só nação. (QUESTIONÁRIO 35)

Isso permitiria a Todas as pessoas, independente de cor, sexo, entre outros condicionantes, Participar de processo seletivo, como este, em condições iguais. (QUESTIONÁRIO 35)

A leitura interpretativa desses enunciados remete para a questão da heterogeneidade

constitutiva, inerente a todo e qualquer processo discursivo. Dessa maneira, é possível

verificar que o processo de interpelação ideológica que faz o indivíduo professor universitário

tornar-se sujeito do discurso de reparação racial é atravessado por um “espaço de memória”

não racializado – um “além” interdiscursivo – que desestabiliza a ideia do sujeito discursivo

uno que pode evitar esse non-sense oriundo da FDCCR, controlando, assim, tudo o que diz

como ressalta Pêcheux (1997c). Essa falha no processo de interpelação ideológica que

provoca a divisão do sujeito da FDFCR não corresponde a um erro, mas à própria condição da

linguagem enquanto sistema simbólico, visto que o inconsciente não é um acessório que

somente às vezes intervém no processo de significação. O inconsciente determina o lapso do

sujeito que diz uma coisa para querer dizer outra ou, ainda, do sujeito que quer dizer uma

coisa pra dizer outra (PÊCHEUX, 1997c).

No caso dos enunciados em destaque, o sujeito contorna tangencialmente a questão da

raça. Assim, tem-se uma posição-sujeito dentro do discurso da reparação racial que é

favorável às cotas raciais, mas expressa sua concordância negando a racialização e por

extensão, a discriminação racial, substituindo tais categorias por “questões sociais” ou

“desigualdade social”. A análise da oscilação entre raça e classe indica a construção de uma

recorrente equivalência73: mesmo que a pergunta feita refira-se às cotas raciais, há uma

tendência em realizar essa troca, de raciais para sociais74. Tal escolha cautelosa sinaliza as

73 Essa análise retoma uma reflexão iniciada em Pereira (2007). 74 Teodoro (2008, p.173) destaca como o movimento negro, que vem a ser sujeito de muitos dos discursos de reparação racial, vê essa questão: “É essa confusão que se destaca, sobretudo, no debate sobre as cotas nas universidades. Sem levar em conta que se trata de uma política de combate à discriminação racial e, em última análise ao preconceito e ao racismo, alguns discursos, muitas vezes de forma até bem intencionada, buscando um

118

interdições pelas quais passa o termo racial na sociedade brasileira – decorridos mais de cem

anos da abolição do regime escravista, o véu da igualdade racial é mantido no revestimento

dos discursos públicos sobre raça no Brasil, tal como se deu no início do século XX, no

contexto pós-abolição.

5.2.2 Discurso de Melhoria da Escola Pública

Em uma direção argumentativa distinta da argumentação do discurso da reparação

racial, o sujeito do discurso de melhoria da escola pública concorda com as cotas raciais

apenas como uma medida emergencial, pois sua premissa é a defesa da qualidade da escola

pública como fórmula apta a solucionar os problemas de desigualdade no ingresso ao ensino

superior. Desse modo, esse discurso é marcado pela ressalva às cotas raciais, as quais são

vistas como uma “estratégia temporária”, medida reformista que não modifica as condições

estruturais de acesso à universidade. Para esse sujeito, a mudança dessas condições desiguais

somente seria possível com uma alteração na qualidade dos níveis de ensino da educação

básica, conforme demonstra a análise dos enunciados a seguir:

Defendo e trabalho cotidianamente pelo fortalecimento e qualificação da educação básica pública e pelo respeito aos direitos constitucionais do cidadão, com igualdade de oportunidades. (QUESTIONÁRIO 29)

Na ausência de políticas mais justas e eficientes, aprovo as que dispomos no momento. Contudo, não se pode deixar de mencionar que o ideal mesmo seria promover educação de qualidade na escola pública no ensino fundamental e médio. Assim, os mais pobres também seriam suficientemente capacitados para a Universidade. (QUESTIONÁRIO 07)

Particularmente, acredito que a política de cotas raciais não resolverá o problema de inclusão e/ou exclusão, mas deverá ter escola pública de qualidade e vagas para todos sem distinção de credo, raça, classe social etc. (QUESTIONÁRIO 39)

Entendo ser necessária (para o momento histórico da sociedade brasileira). Melhor seria se o nosso país concentrasse esforços para que a educação Básica brasileira, em especial a pública, fosse de qualidade. (QUESTIONÁRIO 35)

Penso que a política de cotas é um “paliativo” para tentar encobrir o problema maior ainda, que é a falta de uma política séria, competente e comprometida com uma

intangível consenso, advogam pelas chamadas cotas para pobres. Assim, mais uma vez, é negado o mecanismo da discriminação e recusado o tratamento preferencial aos negros.”

119

educação escolar de qualidade, desde a Educação Infantil, incluindo a desvalorização do “profissional professor”. (QUESTIONÁRIO 36)

Penso que as cotas não sejam uma questão eterna, pois um dia a universidade deverá ser PARA TODOS/AS. (QUESTIONÁRIO 40)

A referência às condições sócio-históricas de produção desse discurso é necessária para

que se compreenda a sua relevância no universo acadêmico. No Brasil, a constituição dessa

posição-sujeito ocupada pelos professores universitários é atravessada por um pré-construído

que identifica esse grupo social a partir do seu envolvimento nas lutas em defesa do “ensino

público e gratuito de qualidade”. Esse enunciado, por sua vez, remete às diversas

mobilizações feitas, principalmente ao longo das últimas décadas, em torno da expansão e

qualificação do ensino superior. Nesse contexto, o discurso de melhoria da escola pública

inscrito na FDFCR funciona como paráfrase desse pré-construído que constitui,

discursivamente, a caracterização da atuação dos professores universitários.

Todavia, nesse discurso a expressão “escola de qualidade” funciona como verdadeiro

axioma: a unânime busca pela qualidade escolar camufla questões que também significam

junto à noção de qualidade da escola pública, tais como o reduzido número de vagas no

ensino superior; o comprovado descompasso entre as condições socioeconômicas do

estudante de escola pública e as do estudante de escola privada e, principalmente, o fato de

que o fator racial incide sobre os índices de evasão da escola pública. Esses aspectos são

obliterados em nome da afirmação exclusiva de uma difusa qualidade escolar, a qual implica

na nivelação das capacidades e consequente primazia do mérito individual.

Do ponto de vista discursivo, esse é um indício da FD Liberal, cuja organização da

sociedade é feita a partir do indivíduo, sendo dele a responsabilidade por não conseguir

ingressar na universidade. O reconhecimento desse traço liberal no discurso da melhoria do

ensino público indica a sua heterogeneidade – inscrito na FDFCR, sua constituição se dá em

um espaço de entremeio, em que a memória da FDCCR é ativada para justificar essa

concepção de que um ensino público de qualidade é aquele que capacita o indivíduo para o

desenvolvimento de habilidades que lhe garantirão o acesso ao ensino superior.

Entretanto, mais do que verificar certa dualidade no registro deste discurso, é

interessante apreender esse intervalo em que a língua expõe suas falhas, escapando da ideia de

um sentido único ou, por outro lado, da proliferação semântica infinita (PÊCHEUX, 2006

[1988]). No discurso de melhoria da escola pública, o marcante uso de expressões e

conectivos que desempenham a função concessiva constrói a ideia de que as cotas raciais são

120

outorgadas aos negros e demais estudantes de escolas pública, entretanto tal medida ainda não

materializa o ideal de “universidade para todos”, tradicionalmente defendido por esse sujeito.

Observe-se, portanto, que mesmo estando inscrito na FDFCR, esse discurso pensa a

melhoria da escola pública numa acepção liberal de produtividade, conforme também visto na

análise do discurso de melhoria da escola pública inscrito na FDCCR. Essa quase

equivalência do lugar ideológico mostra como o ato de fixação dos sentidos está ligado à FD

em que se inscrevem os discursos. Dada a relação do sistema de cotas raciais – aqui tomado

como um meio de democratização do acesso ao ensino superior – com as próprias lutas sob a

alcunha de “sociais” empreendidas pelos professores universitários, o sujeito desse discurso

inscrito na FDFCR é incitado a concordar com as cotas raciais, mas o faz sob o permanente

signo da ressalva, silenciando, assim, o debate sobre o aspecto racial, componente (que

deveria ser) intrínseco a essa reflexão.

A condição dúbia desse discurso de melhoria da escola pública coloca em evidência,

portanto, as fronteiras porosas da FDFCR – o fato desse discurso estar inscrito nessa FD não

quer dizer que haja sentidos que lhe são estritamente circunscritos. O que ocorre é a

fragmentação dessa forma-sujeito em uma posição-sujeito que por considerar a aceitação das

cotas raciais como uma necessidade “politicamente correta”, o faz deslocando do cenário

discursivo o fator racial e substituindo-o pelo fator da qualidade escolar. A única exceção

encontrada é a do enunciado abaixo:

Eu acreditava que o problema da não entrada do indivíduo na educação superior se dava pelo fato da falta de qualidade do ensino público. Hoje sei que este pensamento se enquadra em um dos mitos das cotas. (QUESTIONÁRIO 24)

A mudança de posicionamento discursivo implica na instituição de uma nova posição-

sujeito, a qual organiza sua argumentação colocando a “qualidade do ensino público” no

plano da mitologia, como uma estratégia ineficiente, criada apenas para explicar e não para

resolver o problema da desigualdade racial no acesso ao ensino superior brasileiro. Essa

ênfase à racialização indica, sobremaneira, os saberes da FD Militante-Racialista, cujo lugar

de fala é marcado pela defesa da legitimidade do sistema de cotas raciais, aqui compreendido

como uma estratégia anti-racista. Por conseguinte, a irrupção da FD Militante-Racialista

subverte o posicionamento ideológico do sujeito professor universitário, na medida em que

traz, para o interior do cenário universitário, esse pré-construído acerca das reivindicações

feitas por vertentes do movimento negro brasileiro.

121

6 CONCLUSÃO

O discurso nada mais é do que a reverberação de

uma verdade nascendo diante de seus próprios olhos.

Michel Foucault

É consensual, no Brasil, uma relação contraditória com as polarizações: ao mesmo

tempo em que se exporta um homogêneo “jeitinho brasileiro”, tem-se a ostentação das várias

faces de um povo, ora sertanejo, ora litorâneo, apenas para citar duas das mais usuais

propagadas expressões brasileiras. No que tange ao debate sobre as relações raciais, também

se constata esta intensa simultaneidade, presente tanto nos discursos desenvolvidos em

espaços públicos, como a mídia e a universidade; quanto nos discursos desenvolvidos em

espaços privados, como as conversas entre familiares e vizinhos.

No cenário discursivo das relações raciais brasileiras, os registros escritos que se

debruçaram sobre a complexidade do pertencimento e identificação racial têm oscilado num

continuum que apresenta, em uma extremidade, a afirmação da ideia de uma nação mestiça,

em que são indiscerníveis os grupos raciais e, na outra extremidade, a afirmação da ideia de

uma nação mestiça, mas marcada pela polarização entre negros e brancos. Na última década,

políticas racializadas de identidade, como o sistema de cotas raciais, têm intensificado esse

debate, que se desenrola sobre dois aspectos essenciais: a atuação do movimento negro na

condição de proponente do sistema de cotas raciais e o posicionamento da comunidade

acadêmica a este respeito.

Compreendendo o discurso como o lugar da materialidade ideológica, pode-se dizer que

é sobre esses dois eixos que se encadeia o discurso sobre cotas raciais enunciado por

professores universitários, cujo nó de divisão ideológica assenta-se, exatamente, sobre a

tentativa de fixação dos sentidos para o termo raça. É em torno desse conceito que o sujeito

desse discurso se posiciona, sendo que a questão central, a ser respondida no discurso sobre as

cotas raciais, é o fato de a racialização ser ou não um fator estrutural da sociedade brasileira.

Tomando como premissa a noção de que a memória é uma condição de existência do

discurso, observou-se, portanto, que na constituição das famílias de paráfrase o discurso

favorável às cotas raciais se inscreve em uma rede de saberes que tem como eixo norteador o

a identificação da importância da questão racial na formação da nação brasileira. Por outro

lado, o discurso contrário às cotas raciais se inscreve em uma rede de saberes que tem como

122

eixo norteador uma reflexão sobre o silenciamento da questão racial na formação da nação

brasileira.

Entretanto, dada a contradição eminente da luta ideológica, seria ingenuidade a

delimitação de um conjunto singular de enunciados que pudesse materializar, ipsis litteris, um

e outro “lado” desse debate. O que se tem, na verdade, é um complexo de Formações

Discursivas que são retomadas, sendo que há uma tendência argumentativa – mas não

exclusiva – para a racialização, entre os favoráveis às cotas raciais e para a não racialização,

entre os contrários às cotas raciais. Quanto a esse complexo de FDs, mediante a leitura

interpretativa dos discursos presentes nos textos de Rui Barbosa, Nina Rodrigues e Gilberto

Freyre e dos discursos dos professores universitários, observa-se que a implantação do

sistema de cotas raciais na universidade brasileira, funcionando enquanto um acontecimento

histórico, provocou a retomada polissêmica das seguintes FDs: Liberal; Científico-Racialista;

Culturalista e Militante-Racialista.

Dessa forma, a constituição da FDs Favorável às cotas raciais e da FD Contrária às

cotas raciais se dá por meio da inscrição dos discursos que as compõem nessa rede discursiva

cuja existência prévia é necessária para que possa fazer sentido a referência – opositiva ou não

– ao “racial” na formulação do discurso sobre as cotas raciais. O quadro abaixo busca

sintetizar essa rede:

Quadro 5: Rede discursiva sobre cotas raciais (FD Não-Racialista).

123

Quadro 6: Rede discursiva sobre as cotas raciais (FD Racialista).

Sendo o discurso efeito de sentidos, é preciso por em destaque, em meio a esse

emaranhado ideológico, alguns dos ecos semânticos propagados pelos discursos sobre as

cotas raciais. Dentre os saberes do domínio da memória racial brasileira, três elementos se

sobressaem: i) o jurídico; ii) o científico; iii) o sociológico. A conjugação dessa tríade –

calcada em um trabalho de bricolagem que reúne e reinventa os sentidos acerca das questões

raciais no Brasil – cria a ilusão do “Sonho lírico de um discurso que renasce em cada um de

seus pontos, absolutamente novo e inocente [...]” (FOUCAULT, 2004[1996], p.23),

fornecendo as condições para que se dê a formulação do discurso sobre as cotas raciais

enunciado por professores universitários.

Nesse exercício de identificação/descrição das rachaduras discursivas, o que há de novo

é a forma como os posicionamentos ideológicos contrários e os favoráveis às cotas raciais

selecionam e empregam esses saberes a ponto de que as cotas raciais sejam apresentadas ora

como efeito e ora como causa do racismo. A apreensão dessa dubiedade semântica é possível

por meio da remissão desses discursos à FD de onde “bebem” uma memória com ênfase ou

não na racialização identitária.

Pensando na perspectiva não racialista, inicialmente põe-se em destaque a FD Liberal –

em que se inscrevem o discurso de Rui Barbosa; o discurso da igualdade jurídica e o discurso

do mérito individual. Dada a importância do liberalismo na constituição brasileira, far-se-á, a

seguir, uma breve retomada do teor argumentativo dessa FD no tocante à sua imbricação com

a FD Não Racialista. Os discursos inscritos na FD Liberal têm em comum a ancoragem nas

124

práticas jurídicas, ou, mais precisamente, nessa “forma plenamente visível da autonomia”

(PÊCHEUX, 1997c, p.182) – a que corresponde o sujeito-de-direito. O efeito de onipresença

do discurso jurídico atua produzindo um sujeito mensurável cujo critério de medida é

exatamente a submissão à lei.

A este respeito, Miaille (apud LAGAZZI, 1988) explica como, nas sociedades

capitalistas, opera um “imaginário jurídico”, responsável por deslocar as normas jurídicas do

modo de produção para o cotidiano das relações sociais. Em outras palavras: tudo se passa

como se o próprio homem fosse a “fonte do direito”, capaz de regular e implantar a justiça.

Dessa maneira, amparado pelo princípio da isonomia jurídica, este sujeito-de-direito tanto

pode ser todos como pode ser qualquer um.

Ao dirimir as especificidades individuais, o tom generalizante da premissa jurídico-

liberal não dá espaço à interpretação ou dúvida, compondo o que a sociedade – e não só a

universidade, frisa-se – avalia como um discurso legítimo. As bases jurídicas do discurso

contrário às cotas raciais inscrito na FD Liberal75 conferem-lhe, por conseguinte, um efeito de

verdade cuja origem ninguém sabe assinalar, mas todos reconhecem sua existência,

corroborando o que diz Foucault (2004[1996], p.22, grifos do autor): “discursos que

indefinidamente, para além de sua formulação, são ditos, permanecem ditos e estão ainda por

dizer.”

Dessa maneira, a saturada literalidade que termos como Constituição, Lei ou princípio

de igualdade apresentam na sociedade brasileira e, singularmente, no discurso contrário às

cotas raciais enunciado por professores universitários inscrito na FD Liberal, está relacionado

ao movimento ideológico de atribuir ao componente jurídico uma dimensão similar a de um

deus ex-machina, preexistente e necessária para a organização social brasileira, como

demonstra Pêcheux (1990, p.11-12, grifos do autor):

Espaço da artimanha e da linguagem dupla, linguagem de classe secreta onde o “bom entendedor” encontra sempre sua salvação, a língua da ideologia jurídica permite conduzir a luta de classes sob a aparência da paz social [...] os objetos ideológicos são sempre fornecidos concomitantemente com a maneira de se servir deles, com a pressuposição de seu “sentido”, quer dizer, também com a sua orientação.

O ato de fazer intervir essa memória jurídico-liberal demonstra como esses discursos

contrários às cotas raciais produzem um efeito de unidade nacional condicionado à

concordância desses princípios jurídicos. Nesse contexto, a perspectiva de racialização da

75 Tendo em vista as questões temporais, excetua-se aqui, evidentemente, o discurso de Rui Barbosa.

125

população brasileira – defendida nos discursos favoráveis às cotas raciais – funciona como

uma fragmentação dessa unidade garantida pela “Lei”. É por esse motivo que o discurso de

Rui Barbosa, analisado nessa dissertação, ancora-se na defesa da liberdade para os escravos

sem que seja feita a referência explícita à condição racial desses homens escravizados: a sua

inscrição na FD Liberal lhe garante a possibilidade de pensar uma cidadania não racializada,

isonômica, portanto.

O legado liberal de um discurso “de todos e para todos” enunciado por um sujeito-de-

direito ocupa um lugar central na história de constituição dos discursos públicos brasileiros e,

no que diz respeito às relações raciais, verifica-se essa tentativa de apagamento do ato

enunciativo também no discurso científico, formulado sob o signo da autenticidade

indubitável. A crença em um isento “discurso da ciência” é, na realidade, mais um indício do

trabalho ideológico de constituição do sujeito do discurso científico como se a ele fosse

possível estar no exterior do seu próprio discurso, a salvo da ideologia, enfim (PÊCHEUX,

1997c, p.198).

A reflexão pecheutiana lança luzes sobre o funcionamento do discurso científico-

racialista de Nina Rodrigues, que, na sociedade brasileira do século XIX, desenvolve uma

interpretação social racialista firmada nessa pretensa dissociação entre o conhecimento

ideológico e os processos ideológicos de significação. Assim, no discurso de Nina Rodrigues,

enunciado por um sujeito-de-direito ilusoriamente autônomo, são empregados princípios

biológicos tidos como científicos para explicar e legitimar a desigualdade entre negros e

brancos. Contudo, para além de mobilizar sentidos científicos – e por isso, naquele contexto,

inquestionáveis – para justificar a inferioridade racial dos negros, o sujeito desse discurso tem

o mérito de alicerçar as bases para a formação do discurso racial da intelectualidade brasileira,

na medida em que a produção de sentidos sobre raça nesse período se deu associada a um

processo de tradução da “ciência em termos populares” (SCHWARCZ, 2008 [1993], p.245).

A análise desse discurso científico-racialista popularizado é fundamental para a

compreensão do papel da ciência no entre-séculos, visto que o percurso de leitura do sujeito

do discurso científico é marcado, desde a Idade Média, pela ideia de distinção em relação aos

demais sujeitos. Essa noção, equivocada, de que existe uma leitura polissêmica, resguardada

ao domínio literário e, por outro lado, uma leitura literal, a ser desenvolvida no campo

científico, mascarou, por muito tempo, “uma divisão social do trabalho de leitura”, que

atribuía à ciência o palco da univocidade e originalidade do sentido (PÊCHEUX, 1997b).

Assim, quando o sujeito do discurso de Nina Rodrigues associa a nacionalidade

brasileira ao plano da natureza biológica, ele efetua uma (re) formulação discursiva da noção

126

de cidadania que, deixa de ser pensada em função da ideia de nação para ser pensada, sob o

princípio da indeterminação científica, em função da ideia de raças, conforme lembra

Schwarcz (2008 [1993], p.242). Esse deslocamento discursivo ocorre no entre-séculos,

momento crucial para a definição dos direitos sociais – se cientificamente era comprovada a

diversidade e desigualdade das raças, nada mais lógico, portanto, que também a cidadania

fosse diversa e desigual.

Com essa afirmação não se quer dizer que houve transferência imediata de sentidos

entre a identificação do homem negro sem direito à cidadania daquela época e o homem negro

que hoje, está sem direito à cidadania. O que se quer é chamar a atenção para o fato de que o

status de interpretação autorizada do discurso científico-racialista de Nina Rodrigues foi

condição essencial para o surgimento e consolidação de um discurso do racismo científico, o

qual, na história das relações raciais brasileiras, cumpriu a função de esvaziar de sentidos a

reflexão sobre a cidadania negra no século XIX.

Da mesma forma que acentuou as contradições da controvertida República brasileira,

ainda em gestação – pondo em xeque a noção de que os direitos deveriam ser pra todos –, o

discurso do racismo científico desempenhou um “papel decisivo na desarticulação do debate

da questão social no contexto da desagregação da ordem social escravocrata” (BOTELHO,

2010). Em outras palavras, sob o escudo protetor da ciência, as teorias racistas do entre-

séculos empreenderam, simultaneamente, o apagamento discursivo da cidadania negra e o

apagamento discursivo do regime escravista, cuja realização era justificável não pela

discriminação racial, mas pela premissa científica da inferioridade negra.

Dados os esforços dos movimentos negros, de demais setores da sociedade e mesmo do

poder público, é certo que o discurso do racismo científico não encontra legitimidade

acadêmica nos dias atuais, entretanto seus ecos compõem a memória coletiva acerca das

relações raciais brasileiras, fato incontornável e por isso mesmo, relevante do ponto de vista

discursivo. Com a crescente emergência de um “espaço polêmico das maneiras de ler”

(PÊCHEUX, 1997b) no interior do domínio científico-racialista, sua autoridade científica foi,

ao longo dos anos, sendo questionada e, posteriormente, refutada. Na atualidade, observa-se,

por conseguinte, uma verdadeira recusa a todo e qualquer discurso científico calcado no

conceito de raça, tendo em vista o seu equívoco de, por meio de caracteres fenotípicos ou

genotípicos, classificar e hierarquizar racialmente a população brasileira.

É em relação a essa memória discursiva – de um saber racista que por um período da

história acadêmica brasileira foi considerado como ciência – que se posiciona o sujeito

professor universitário ao enunciar o discurso contrário às cotas raciais. Tendo em vista que é

127

na materialidade discursiva que se apreende a conjugação entre ideologia e língua, o sujeito

professor universitário mobiliza essas condições histórico-sociais para qualificar como

pseudociência esse discurso científico-racialista, em que a noção de racialização equivale à

noção de racismo.

Além disso, recorde-se que, no limiar do século XX, a construção do discurso

republicano acerca da identidade nacional se dava em torno do embate entre o discurso

jurídico liberal – defendido pelos “homens da lei” ligados às escolas de Direito – e o discurso

do racismo científico – defendido pelos “homens da sciencia” ligados às escolas de Medicina

(SCHWARCZ, 2008 [1993]). O posicionamento dos intelectuais brasileiros de adesão ao

discurso jurídico indicou, sobremaneira, o comprometimento desse grupo social com a

consolidação do projeto republicano e, em conseqüência, a opção pela igualdade

desracializada cuja regulamentação caberia exclusivamente ao aparato jurídico a ser

elaborado pelo Estado.

É também em relação a essa memória que, nos dias atuais, o sujeito professor

universitário se posiciona, fomentando, assim, a continuidade da tradição liberalista do

discurso acadêmico brasileiro a respeito da nação. A (re)afirmação discursiva do liberalismo

na esfera estatal empreendida por esse sujeito indica quão atual e desafiador é o debate sobre

a (des)racialização da identidade nacional e suas devidas implicações, visto que o movimento

dos sentidos no/do discurso do racismo científico – popularizado enquanto um discurso

autorizado sobre a ciência – apenas foi suprimido do espaço acadêmico brasileiro,

continuando a fazer efeitos no cotidiano das relações sociais76, inclusive no que diz respeito

às hierarquias raciais.

Esses saberes da FD Científico-Racialista funcionam como memória necessária à

constituição da FD Culturalista – na qual se inscrevem o discurso de Gilberto Freyre; o

discurso da mestiçagem racial e o discurso economicista, e da FD Militante-Racialista – na

qual se inscreve o discurso de reparação racial. Por um lado, a posição de sujeito ocupada

pelo professor universitário no discurso contrário às cotas raciais, ligada à FD Culturalista,

implica no necessário silenciamento do racialismo pseudo-científico. Por outro lado, no

discurso favorável às cotas raciais, a posição de sujeito ocupada pelo professor universitário,

ligada à FD Militante-Racialista, reinterpreta a noção de raça, que é deslocada do plano

biológico para o plano sociológico.

76 Schwarcz (2008 [1993], p.247) sintetiza bem essa dicotomia: “A raça se discute entre ‘pessoas’ – nos conflitos diários, nas clínicas médicas, na personalidade das personagens dos romances científicos da época; a lei, entre ‘indivíduos’, ou melhor, entre os reduzidos cidadãos dessa grande nação que participam das esferas políticas decisórias dos debates externos e diplomáticos”.

128

A menção dessa rede de saberes do campo da Sociologia completa a tríade fundamental

– o jurídico; o científico e o sociológico – em que se assenta o discurso sobre as cotas raciais

enunciado pelos professores universitários. Na perspectiva sociológica, raça é tomada como a

categoria analítica fundamental para a compreensão da desigualdade social brasileira. Dessa

forma, o sujeito do discurso favorável às cotas raciais interpreta o projeto republicano de

modernidade pautado na supressão discursiva do escravismo como uma tentativa de

apagamento da própria história de discriminação racial que sustenta esse regime.

Paralelamente, o discurso da mestiçagem racial e o discurso da democracia racial – trazidos

na FD Culturalista como ideais a serem atingidos – são percebidos, pelo sujeito do discurso

favorável às cotas raciais, como estratégias utilizadas com o propósito de negação do racismo

existente no Brasil.

Para a AD, essa divisão dos sentidos – em que a racialização ora é uma forma de

racismo, ora é uma forma de combater o racismo – é um traço da historicidade que é próprio

da constituição do discurso. Para que o discurso sobre as cotas raciais faça sentido, ele precisa

refratar os outros sentidos (pré) existentes sobre a questão racial no Brasil, materializando,

assim, os processos ideológicos de significação. De 1870, quando se constitui a primeira

geração da intelectualidade brasileira (SCHWARCZ, 2008 [1993]) até 2010, quando se

escreve essa dissertação, o conceito de raça foi sendo interpretado e definido de acordo com

os diferentes posicionamentos ideológicos desses grupos, mas também de acordo com os

diferentes posicionamentos ideológicos de setores inicialmente externos à universidade, como

os movimentos negros e, mais recentemente, o Poder Público.

Compreendendo que os processos lingüísticos são reféns dos processos discursivos, é

preciso ainda, colocar em evidência a pretensa univocidade que o sujeito professor

universitário imprime ao discurso – favorável ou contrário – sobre as cotas raciais. O real da

língua é um objeto apenas idealizado, inapreensível exatamente porque sua definição excede o

sistema linguístico: o desaparecimento do “problema racial” do espaço discursivo acadêmico

e/ou a sua substituição pelo “ideal da mestiçagem” não implicou em seu desaparecimento da

memória discursiva acerca das relações raciais brasileiras, que hoje irrompe na forma das

contradições históricas que atravessam o discurso sobre as cotas raciais.

Esse processo metafórico “em que o sentido passa a se produzir no interior do não-

sentido” (PÊCHEUX & GADET, 2004, p.65) remete à noção do equívoco, que, conjugando a

relação língua-história, explica o fato de que um termo possa ser ao mesmo tempo ele mesmo

e um outro (MILNER,1987,p.13), como ocorre com escravidão, raça, racismo, democracia ou

mestiçagem, que “mudam” de sentido a depender da FD em que se inscrevem – se racialista

129

ou não racialista. O traço incontornável do equívoco fragmenta, ainda, a ilusão de que se

possa distinguir raça como uma noção ou simbólica ou política, tendo em vista que esse

embate é só mais uma expressão dos diferentes posicionamentos discursivos que podem ser

tomados a respeito dessa temática.

A esse respeito, a associação entre raça e mestiçagem, um ponto nodal do trajeto

discursivo de raça, deve ser destacada, pois é essa junção e não raça, isoladamente, que

significou como marca da degenerescência da população e também como indicador positivo

de peculiaridade nacional. O discurso da mestiçagem racial é, evidentemente, um símbolo da

nacionalidade brasileira, defendido não somente pelo Estado brasileiro, como por toda a

população, muito mais eficaz para indicar o princípio de igualdade entre os cidadãos do que o

efetivo exercício da cidadania77.

Nesse contexto, o discurso racialista favorável às cotas raciais enunciado por

professores universitários imprime ao debate sobre as relações brasileiras uma nova e

significativa inflexão, na medida em que provoca o efeito de que os brasileiros somos

mestiços, mas também o efeito de que somos negros e brancos. O diferencial desse discurso é

o seu lugar enunciativo. Mesmo fazendo eco ao discurso de conscientização racial enunciado,

ao longo do século XX, pelas diversas expressões do movimento negro brasileiro, essa ideia

de identificação racializada é construída no interior da universidade, sob os auspícios do

legitimado discurso científico, que outrora se firmava na Medicina Racialista e agora, se firma

na Sociologia racialista, conforme demonstra o questionamento feito por Paixão (2005,

p.496):

Enfim, não deixa ser curioso o paradoxo existente no Brasil moderno que negou às raças o estatuto de um discurso político público, mas, que, justamente, assentou em torno desta dimensão o traço essencial de sua singularidade. De todo modo, o fato da questão racial ter sido descartada como base de fundamentação de um discurso político, não implica que o processo assimilacionista tenha sido tão pronunciadamente eficaz a ponto de tornar inexistente a realidade das raças em nosso país.

77 De Decca (2002, p.13) mostra como a identidade brasileira vem sendo construída pela obediência cega a um princípio de igualdade entre indivíduos e não entre cidadãos: “Este modo de produzir a cidadania utilizando-se mais dos atributos morais dos símbolos da nacionalidade que da educação para o cumprimento dos deveres e dos direitos dos cidadãos não deixa de ser uma marca constitutiva das instituições formadoras do Estado Nacional brasileiro. Este Estado se ocupou mais das manifestações em praças públicas, das efemérides, das paradas e das festas cívicas que com uma educação para a cidadania que atingisse a maioria da população. Não houve a devida contrapartida na formação da cidadania no Brasil e por esta razão predominam muito mais a atitudes dos indivíduos perante os símbolos que perante as leis.”

130

Cientes de que a materialidade discursiva acerca das relações raciais brasileiras se

inscreve em um “espaço de memória de um corpo sócio-histórico de traços discursivos,

atravessado de divisões heterogêneas, de rupturas e contradições” (PÊCHEUX, 1997a, p.317,

grifos do autor) e, por outro lado, de que esse cenário discrepante apontado por Paixão (2005)

corresponde a mais um dos gestos interpretativos que compõem esse espaço, busca-se, a título

de conclusão, responder a um singular questionamento elaborado por Pêcheux (1997a,p.318):

“Em que condições uma interpretação pode (ou não) fazer intervenção?”.

Tomando como pressuposto a dupla condição do ato interpretativo – de fazer sujeito e

de fazer sentido (ORLANDI, 2007 [1996], p.83) – entende-se que a importância dessa análise

do discurso sobre cotas raciais enunciado por professores universitários é exatamente essa:

demonstrar que as diferentes posições de sujeito assumidas pelo professor universitário são

gestos interpretativos da realidade sobre as relações raciais brasileiras e que, se essas posições

estão marcadas nesse discurso é porque, de alguma forma, esses sentidos mobilizados

continuam a existir e a fazer sentidos no cotidiano brasileiro, intervindo, portanto na realidade

social. Dessa maneira, o gesto (também interpretativo) de debruçar-se sobre o funcionamento

desse discurso buscou apreender o polissêmico “jeitinho brasileiro” de lidar com as latentes

contradições raciais dessa nação.

131

REFERÊNCIAS

A DECLARAÇÃO DAS RAÇAS DA UNESCO (18 DE JULHO DE 1950). Disponível em <http://www.achegas.net/numero/nove/decla_racas_09.htm> Acesso em 20 ago.2010. ARAÚJO, I. L. Do signo ao discurso: introdução à filosofia da linguagem. São Paulo: Parábola Editorial, 2004. AZEVEDO, C. M. de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites século XIX. 2. Ed. São Paulo: Annablume, 2004[1987]. AZEVEDO, C. M. de. A recusa da “raça”: anti-racismo e cidadania no Brasil dos anos 1830. In: Horizontes Antropológicos. Porto Alegre, ano 11, n. 24, p. 297-320, jul./dez. 2005. Disponível em < http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-71832005000200013 > . Acesso em 02 set. 2009. BARBOSA, R. Parecer nº48-A: Sobre o projeto de emancipação dos escravos. Sessão de 04 de agosto de 1884. In: Discursos Parlamentares: Rui Barbosa. Seleção e introdução de Evaristo Moraes de Filho. Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 1985. BASTOS, E. R. Gilberto Freyre: a sociologia como sistema. In: Ciência & Trópico. Recife, v.15, n. 2, p. 157-164, jul./dez. 1987. Disponível em < http://bvgf.fgf.org.br/portugues/critica/artigos_cientificos/sociologia_sistema.htm#nota12>. Acesso em 30 ago. 2010. BASTOS, E. R. Os descendentes de Prometeu. Folha de São Paulo. São Paulo, 12 mar. 2000. Disponível em <http://bvgf.fgf.org.br/portugues/critica/artigos_imprensa/prometeu.htm>. Acesso em 30 ago. 2010. BORGES, D. Como e por que a escravidão voltou à consciência nacional na década de 30. In: KOSMINSKY, E. V.; LÉPINE, C.; PEIXOTO, F. A. (orgs.). In: Gilberto Freyre em quatro tempos. São Paulo: EDUSC, 2003. BOTELHO, A. Cientificismo à brasileira: notas sobre a questão racial no pensamento social. Disponível em < http://www.achegas.net/numero/um/andre_b.htm>. Acesso em 30 ago. 2010.

132

BRANDÃO, C.A.L. A inclusão social e a exclusão da ideia de universidade. In: PEIXOTO, M. do C. de L.; ARANHA, A.V. (orgs.). Universidade pública e inclusão social: experiência e imaginação. Belo Horizonte: UFMG, 2008. CÂNDIDO, A. Dialética da Malandragem (caracterização das Memórias de um sargento de milícias). In: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, nº 8, São Paulo, USP, 1970, pp. 67-89. Disponível em <www.unioeste.br/prppg/.../DIALETICA_MALANDRAGEM.rtf>. Acesso em 09. Set. 2009. CARVALHO, J. J. Inclusão étnica e racial no Brasil: a questão das cotas no ensino superior. 2. ed. São Paulo: Attar, 2006. CARVALHO, J. J. A universidade pública e a diversificação do corpo discente. In: PEIXOTO, M. do C. de L.; ARANHA, A.V. (orgs.). Universidade pública e inclusão social: experiência e imaginação. Belo Horizonte: UFMG, 2008. CARVALHO, J.M. (org.) Introdução. In: Nação e cidadania no império: novos horizontes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. CARVALHO, P. S. de. Entre a morte e a ressurreição de um mito: os discursos públicos da academia sobre as ações afirmativas no Brasil. 2006. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais),Universidade do Estado do Rio de Janeiro- UERJ. Rio de janeiro, 2006. Disponível em: <http://www.bdtd.uerj.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=103>. Acesso em 04 ago. 2009. CÉSAR, R. C. L. Políticas de inclusão no ensino superior brasileiro: um acerto de contas e de legitimidade. Revista Advir, n. 19, Rio de Janeiro, 2005. p. 55-64. CAZARIN, E.A. A migração do discurso de Lula de uma para outra posição-sujeito. Disponível em: <www.uff.br/cadernosdeletrasuff/32/artigo1.pdf>. Acesso em 10 jul. 2010.

CHAUÍ, M. A universidade pública sob nova perspectiva.In: Revista Brasileira de Educação. [online]. 2003, n.24, pp. 5-15. ISSN 1413-2478. Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n24/n24a02.pdf>. Acesso em 09. Set. 2009.

CORREA, M. 'Nossos mulatos são mais exuberantes'. In: Hist. cienc. saúde-Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 15, n. 4, Dec. 2008. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010459702008000400012&lang=pt>. Acesso em 10 abr.2010.

133

CORÔA, M. L. M. S. O tempo nos verbos do português. São Paulo: Parábola Editorial, 2005. COURTINE, J. -J. Metamorfoses do discurso político: as derivas da fala pública. Tradução Nilton Milanez, Carlos Piovezani Filho. São Carlos: Clara Luz, 2006. CRUZ, L. Democracia racial, uma hipótese. In: Trabalhos para discussão, nº128, Fundação Joaquim Nabuco, ago. 2002. Disponível em < http://www.fundaj.gov.br/tpd/128.html>. Acesso em 28 ago. 2010. DA MATTA, R. Dez anos depois: em torno da originalidade de Gilberto Freyre. In: Ciência & Trópico. Recife, v. 21, n. 1, p. 17-37. Disponível em <http://bvgf.fgf.org.br/portugues/critica/artigos_cientificos/dez.htm>. Acesso em 29 ago. 2010. D’ADESKY, J. Pluralismo étnico e multiculturalismo: racismos e anti-racismos no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2001. D’AGUIAR NUNES, A. A Tentativa de Universalização do Ensino Básico na Bahia com a Proclamação da República. Revista da FACED, nº 05, 2001. D’AGUIAR NUNES, A. Uma avançada proposta de reforma educacional no último quartel do século XIX brasileiro: Leôncio de Carvalho e os Pareceres de Rui Barbosa. Revista da FACED, vol. 4, 2000. DANTES, M. A. M. Os positivistas brasileiros e as ciências no final do século XIX. In: HAMBURGER, A. I. et al (orgs.). A ciência nas relações Brasil-França (1850-1950). São Paulo, Edusp/Fapesp, 1996. DÁVILA, J. Diploma de brancura: política social e racial no Brasil (1917-1945). São Paulo: Editora UNESP, 2006. FAORO, R. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 4. ed. São Paulo: Globo, 2008 [1975]. FERNANDES, F. A integração do negro na sociedade de classes: o legado da “raça” branca, volume I. 5.ed. São Paulo: Globo, 2008 [1964].

134

FIAMENGUE, E. C. et al. A UESC em preto & branco: pesquisa de amostragem étnico-racial. Brasília: MEC/ SECAD, 2007. FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2004 [1996]. FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2008 [1979]. FREYRE, G. Casa-grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 51 ed. rev. – São Paulo: Global, 2009 [1933]. FREYRE,G. O fator racial na política contemporânea. In: Ciência & Trópico. Recife, v. 10, n. 1, p. 19-36, 1982. Disponível em: <http://bvgf.fgf.org.br/portugues/obra/artigos_cientificos/o_fator.htm> Acesso em 30 ago. 2010. FRY, P.; MAGGIE, Y. Contra o racismo, informação. Disponível em: <http://br.dir.groups.yahoo.com/group/economistas/message/758>. Acesso em 03 out. 2009. FRY, P. Que imagem do Brasil está por detrás das cotas raciais? In: PEIXOTO, M. do C. de L.; ARANHA, A.V. (orgs.). Universidade pública e inclusão social: experiência e imaginação. Belo Horizonte: UFMG, 2008. FURTADO, C. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2007 [1959]. GADET, F.; PÊCHEUX, M. A língua inatingível: o discurso na história da lingüística. Tradução: Bethania Mariani, Maria Elizabeth Chaves de Melo. Campinas: Pontes, 2004. GALDINO, D.; PEREIRA, L. Acesso à universidade: condições de produção de um discurso falacioso. In: BERNARDINO, J.; GALDINO, D. (orgs.). Levando a raça a sério: ação afirmativa e universidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2004. (Coleção Políticas da Cor). GRIGOLETTO, E. Do lugar social ao lugar discursivo: o imbricamento de diferentes posições-sujeito. In: LEANDRO FERREIRA, M.C.; INDURSKY, F. Análise do discurso no Brasil: mapeando conceitos, confrontando limites. São Carlos: Claraluz, 2007. GUIMARÃES, A. S. A. Democracia racial. Disponível em: < http://www.fflch.usp.br/sociologia/asag/Democracia%20racial.pdf>. Acesso em 30 ago. 2010.

135

GUIMARÃES, A. S. A. Depois da democracia racial. In:Tempo Social. Revista de sociologia da USP, v. 18, n. 2, 2006. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/ts/v18n2/a14v18n2.pdf> Acesso em 02 set. 2009. GUIMARÃES, A. S. A. Novas inflexões ideológicas no estudo do racismo no Brasil. In: ZONINSEIN, J; FERES JR., J. (orgs.). Ação afirmativa no ensino superior brasileiro. Belo Horizonte: UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2008. GUIMARÃES, A. S. A. Como trabalhar com "raça" em sociologia. Educação e Pesquisa. São Paulo, v.29, n.1, p. 93-107, jan./jun. 2003. Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/ep/v29n1/a08v29n1.pdf> Acesso em 02 set.2009. GUIMARÃES, E; ORLANDI, E. P. O conhecimento sobre a linguagem. In: PFEIFFER, C.; NUNES, J.H. (orgs.). Introdução às ciências da linguagem: linguagem, história conhecimento. Campinas: Pontes, 2006. GUIMARÃES, M. A. No meio do caminho tinha uma discriminação, tinha uma discriminação no meio do caminho: o potencial transformador das cotas raciais. Cuiabá, MT, 2009 . Disponível em: < www.ie.ufmt.br/ppge/dissertacoes/index.php?op=download&id=63>. Acesso em 09 Jan. 2010. HALL, S. A questão multicultural. In: Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003. HAROCHE, C. Fazer dizer, querer dizer. Tradução: Eni Puccinelli Orlandi, Freda Indursky, Marise Manoel. São Paulo: Editora Hucitec, 1992. HASENBALG, C. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil. 2. ed. Belo Horizonte, Editora UFMG; Rio de Janeiro, Editora IUPERJ, 2005 [1979]. HENRY, P. A ferramenta imperfeita: língua, sujeito e discurso. Tradução: Maria Fausta P. de Castro. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1992. HENRY, P. Os fundamentos teóricos da “Análise Automática do Discurso” de Michel Pêcheux (1969). In: GADET, F.; HAK, T. (orgs.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1997.

136

HERINGER, R. Mapeamento de Ações e Discursos de Combate às Desigualdades Raciais no Brasil.In: Estudos afro-asiáticos. vol.23. nº. 2. Rio de Janeiro, 2001. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/eaa/v23n2/a03v23n2.pdf.> Acesso em 03 ago. 2009. HOFBAUER, A. Ações afirmativas e o debate sobre racismo no Brasil. In: Lua Nova. nº 68. p.09-56. São Paulo, 2006. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/ln/n68/a02n68.pdf. > Acesso em 05 ago. 2009. HÖFLING, E. Estado e políticas (públicas) sociais.In: Cadernos Cedes. Ano XXI nº 55, novembro/2001. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/ccedes/v21n55/5539.pdf> Acesso em 02 dez. 2009. HOLANDA, S.B. de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1936 [1995]. IANNI, O. Dialética das relações raciais. In: Estudos Avançados, 18. 2004. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142004000100003&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 09 Ago. 2010. INDURSKY, F. Formação discursiva: essa noção ainda merece que lutemos por ela? In: LEANDRO FERREIRA, M.C.; INDURSKY, F. Análise do discurso no Brasil: mapeando conceitos, confrontando limites. São Carlos: Claraluz, 2007. INDURSKY, F. Memória, interdiscurso: limites e contrastes. (Texto xerocopiado apresentado no IV Seminário de Pesquisa em Análise de Discurso, evento realizado na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, emVitória da Conquista, Bahia, junho de 2009). JACCOUD, L. Racismo e república: o debate sobre o branqueamento e a discriminação racial no Brasil. In: THEODORO, M. (org.). As políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil: 120 anos após a abolição. Brasília: IPEA, 2008. LAGAZZI, S. O desafio de dizer não. Campinas, SP: Pontes, 1988. LUCRÉCIO, F. Ideologias. In: BARBOSA, M.(Org.) Frente Negra Brasileira: depoimentos. São Paulo: Quilombhoje, 1998. MAGNOLI, D. Uma gota de sangue: história do pertencimento racial. São Paulo: Contexto, 2009.

137

MALDIDIER, D., NORMAND, Cl. & ROBIN, R.. Discurso e ideologia: bases para uma pesquisa. In: ORLANDI, E.P.(org.). Gestos de Leitura: da história no discurso. 2 ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1997. (Coleção Repertórios), p.67-102. MARANDIN, J.-M. Sintaxe, discurso: do ponto de vista da analise do discurso. In: ORLANDI, E. P. (org.). Gestos de leitura: da história no discurso. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1997. MENEZES, J. M. F. de. A república e a educação: analfabetismo e exclusão. In: Revista da FAEEBA: Educação e contemporaneidade. Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Educação I, v.1, nº 01 (jan/jun, 203). Salvador: UNEB, 2003. MILNER, J-C. O amor da língua. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987. MOEHLECKE, S. Ação afirmativa no ensino superior: entre a excelência e a justiça racial. In: Revista Educação e Sociedade, Campinas, vol. 25, n. 88, p. 757-776, Especial - Out. 2004 Disponível em < http://www.scielo.br/pdf/es/v25n88/a06v2588.pdf>. Acesso em 03 set. 2009. MUNANGA, K. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia. In: BRANDÃO, A.A.P. Cadernos PENESB 5: Programa de Educação Sobre o Negro na Sociedade Brasileira. EDUFF, 2000. MUNANGA, K. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Petrópolis: Vozes, 2004. NABUCO, J.O abolicionismo. (Grandes nomes do pensamento brasileiro da Folha de São Paulo). Publifolha, São Paulo: 2000 [1883]. Disponível em <http://www.bibvirt.futuro.usp.br.> Acesso em 08 set.2009. ORLANDI, E. P. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 4. ed. Campinas: Pontes, 2001a. ORLANDI, E. P. Análise do discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2003 [1999]. ORLANDI, E. P. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas: Editora da UNICAMP, 2007.

138

ORLANDI, E. P. Discurso e texto: formulação e circulação dos sentidos. Campinas: Pontes, 2001b. ORLANDI, E. P. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Petrópolis: Vozes, 2007 [1996]. ORLANDI, E. P. Entrar na sociedade geral dos cidadãos. Caminhos da História, Trajetos do Político. In: BARROS, D. L. P. de. (org.) Os discursos do descobrimento: 500 e mais anos de discursos. São Paulo: Editora da USP; FAPESP, 2000. OSÓRIO, R. G. Desigualdade racial e mobilidade social no Brasil: um balanço das teorias. In: THEODORO, M. (org.). As políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil: 120 anos após a abolição. Brasília: IPEA, 2008. PAIXÃO, M. A santa aliança: estudo sobre o consenso crítico às políticas de promoção à equidade racial no Brasil. In: ZONINSEIN, J.; FERES JR., J. (orgs.). Ação afirmativa no ensino superior brasileiro. Belo Horizonte: UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2008. PAIXÂO, Marcelo Jorge de Paula. Crítica da Razão Culturalista: relações raciais e a construção das desigualdades sociais no Brasil. Tese de Doutorado em Sociologia. Rio de Janeiro: Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro. 2005. [S.N] Não identificado local de publicação. PÊCHEUX, M. Análise Automática do Discurso (AAD-69). In: GADET, F.; HAK, T. (orgs.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1997a, p.61-162. PÊCHEUX, M. A Análise Automática do Discurso: três épocas (1983). In: GADET, F.; HAK, T. (orgs.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1997a, p.311-319. PÊCHEUX, M. A propósito da Análise Automática do Discurso: atualizações e perspectivas. In: GADET, F.; HAK, T. (orgs.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1997a, p.163-252. PÊCHEUX, M. Delimitações, Inversões e Deslocamentos. In: Cadernos de Estudos Lingüísticos (19). Campinas: Unicamp, 1990. p. 7-24. PÊCHEUX, M. Ler o arquivo hoje. In: ORLANDI, E. P. (org.). Gestos de leitura: da história no discurso. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1997b.

139

PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento. Tradução: Eni Puccinelli Orlandi. 4.ed. Campinas, SP: Pontes, 2006 [1988]. PÊCHEUX, M. Papel da Memória. In: ACHARD, P. [et al]. Papel da Memória. Campinas, SP: Pontes, 1999. PÊCHEUX, M. Remontemos de Foucault a Spinoza. Tradução de Maria do Rosário Gregolin. [S.N] Não identificado local de publicação. Edição original: PÊCHEUX, M. Remontons de Foucault à Spinoza. In: Maldidier, D. L’inquiétud du discours. Paris: Cendres, 1990. PÊCHEUX, M. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 2. ed. Campinas, São Paulo: Editora da UNICAMP, 1997c. PÊCHEUX, M. Sobre a (des) construção das teorias lingüísticas. In: Língua e instrumentos lingüísticos. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1998a. PÊCHEUX, M. Sobre os contextos epistemológicos da Análise de Discurso. In: Caderno de Tradução do Instituto de Letras. Rio Grande do Sul: Editora da UFRGS, 1998b. PÊCHEUX, M. & GADET, F. A língua inatingível: o discurso na história da linguística. São Paulo: Pontes, 2004. PENA, S. D.J.; BORTOLINI, M. C. Pode a genética definir quem deve se beneficiar das cotas universitárias e demais ações afirmativas? In: Estud. av., São Paulo, v. 18, n. 50, Abr. 2004 Disponível em< http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142004000100004> Acesso em 21.Jul.2010. PEREIRA, A. M. Trajetória e Perspectivas do Movimento Negro Brasileiro. Editora Nandyala. Belo Horizonte. 2008. PEREIRA, L. Mestiçagem, racismo e identidade: uma análise do discurso sobre cotas raciais enunciado por estudantes da Uesc (Ilhéus-Ba). In: OLIVEIRA, I. de; AGUIAR, M. Â. da S.; GONÇALVES E SILVA, P. B; OLIVEIRA, R de (orgs.). Negro e Educação 4: Linguagens, Resistências e Políticas Públicas. São Paulo: Ação Educativa/ANPEd: 2007. POSSENTI, S. Teoria do discurso: um caso de múltiplas rupturas. In: MUSSALIM, F.; BENTES, A.C. (orgs.). Introdução à lingüística: fundamentos epistemológicos, vol. 3. 3.ed. São Paulo: Cortez, 2007.

140

PRADO JR., C. História econômica do Brasil. (Ano de publicação: 1945) Disponível em <http://www.scribd.com/doc/8614987/Caio-Prado-Junior-Historia-Economica-Do-Brasil>. Acesso em 17 ago. 2010. PROENÇA FILHO, D. A trajetória do negro na literatura brasileira. In: Estud. av. vol.18 nº50. São Paulo Jan./Abr.2004. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40142004000100017&script=sci_arttext >. Acesso em 15. Abr. 2010. QUEIROZ, D. M.; SANTOS, J. T. dos. Sistema de cotas: um debate. Dos dados à manutenção de privilégios e poder. In: PEIXOTO, M. do C. de L.; ARANHA, A.V. (orgs.). Universidade pública e inclusão social: experiência e imaginação. Belo Horizonte: UFMG, 2008. QUEIROZ, D. M.; SANTOS, J. T. Vestibular com cotas: análise em uma instituição pública federal. Disponível em < http://w3.ufsm.br/afirme/ARTIGOS/ensinosuperior/es05.pdf>. Acesso em 06 set. 2009. REIS, E. Percepções da elite sobre pobreza e desigualdade. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais. vol.15, nº 42. São Paulo. Fev. 2000. Disponível em < http://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v15n42/1742.pdf>. Acesso em 02 dez. 2009. RISÉRIO, A. A utopia brasileira e os movimentos negros. São Paulo: Ed. 34, 2007. RISÉRIO, A.; GIL, G. Preto no branco: como Casa-grande & Senzala fantasiou a ideia de que o país produziu um paraíso social. In: Revista Época. São Paulo, 17 abr. 2000. Edição Especial 500 anos. Disponível em < http://bvgf.fgf.org.br/portugues/critica/artigos_imprensa/preto_no_branco.htm>. Acesso em 30 ago. 2010. RODRIGUES, N. As raças humanas e a responsabilidade penal no Brazil. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1894. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bd000060.pdf>. Acesso em 14 set. 2010. RODRIGUES, N. Mestiçagem, degenerescência e crime. Tradução de Mariza Corrêa do artigo "Métissage, dégénerescence et crime", publicado nos Archives d'Anthropologie Criminelle, v.14, n.83, 1899. In: Hist. cienc. saude-Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 15, n. 4, dez. 2008 . Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci>. Acesso em 14 set. 2010.

141

ROMERO, S. Compêndio de história da literatura brasileira. Organizada por Luiz Antonio Barreto. Rio de Janeiro: Imago Ed., Universidade Federal de Sergipe, 2001 [1906]. SANTOS, S.A. dos. Ação afirmativa e mérito individual. In: Santos, R. E. dos e Lobato, F. (Orgs). Ações Afirmativas: políticas públicas contra as desigualdades raciais. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. SARMENTO, D. A. de M. O negro e a igualdade no direito constitucional brasileiro: discriminação de facto, teoria do impacto proporcional e ações afirmativas. In: ZONINSEIN, J. FERES JR., J. (orgs.). Ação afirmativa no ensino superior brasileiro. Belo Horizonte: UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2008. SCHWARCZ, L. M. As teorias raciais, uma construção histórica de finais do século XIX: o contexto brasileiro. In: QUEIROZ, R. da S. (Orgs.). Raça e diversidade. São Paulo: Edusp, 1996. SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil: 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 2008 [1993]. SCHWARCZ, L. M. O retorno do objetivismo ou dos males de ser científico. In: Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 11, n. 23, p. 247-250, jan/jun 2005. Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/ha/v11n23/a19v1123.pdf. >Acesso em 17 ago. 2010. SCHWARCZ, R. As ideias fora do lugar. In: Estudos CEBRAP, nº 3, 1979. p.149-162. Disponível em: <http://www.cebrap.org.br/imagens/Arquivos/estudos_cebrap_3_as_ideias_fora_do_lugar.pdf>. Acesso em 09. Set. 2009. SEYFERTH, G. O beneplácito da desigualdade: breve digressão sobre o racismo. In: SEYFERTH, G.; et all. (orgs.) Racismo no Brasil. São Paulo: ABONG, 2002. SILVEIRA, R. da. Os selvagens e a massa: papel do racismo científico na montagem da hegemonia ocidental. In: Afro - Ásia, nº23. 1999. 87-144. Disponível em < http://www.buscalegis.ufsc.br/arquivos/T_220807_01.pdf>. Acesso em 23 ago. 2010. SOUZA, J. Democracia racial e multiculturalismo: ambivalente singularidade cultural brasileira. In: Estud. afro-asiát. Rio de Janeiro, n. 38, Dec. 2000 Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid.>. Acesso em 07 set.2010.

142

SOUZA,J. A gramática social da desigualdade brasileira. In: Rev. bras. Ci. Soc., São Paulo, v. 19, n. 54, Fev. 2004 . Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v19n54/a05v1954.pdf >. Acesso em 07 set. 2010. SKIDMORE, T. Raízes de Gilberto Freyre. In: KOSMINSKY, E. V.; LÉPINE, C.; PEIXOTO, F. A. (orgs.). Gilberto Freyre em quatro tempos. São Paulo: EDUSC, 2003. STEHR, Nico. Da desigualdade de classe à desigualdade de conhecimento. In: Revista brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, v. 15, n. 42, Fev.2000. Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v15n42/1739.pdf >. Acesso em 03 set. 2009. THEODORO, M. À guisa de conclusão: o difícil debate da questão racial e das políticas públicas de combate à desigualdade e à discriminação racial no Brasil. In: THEODORO, M (org.). As políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil: 120 anos após a abolição. Brasília: IPEA, 2008.

TORRES, A. O problema nacional brasileiro. Versão para o eBooksBrasil.com. Fonte Digital. Digitalização da 3ª edição, 2002. Disponível em < http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/torresb.html>. Acesso em 28 ago. 2010. VENTURA, R. A saga da cana-de-açúcar. In: Folha de São Paulo. São Paulo, 12 mar. 2000. Mais! Disponível em < http://bvgf.fgf.org.br/portugues/critica/artigos_imprensa/a_saga_cana.htm>. Acesso em 30 ago. 2010. VERGARA, M. de R. A Revista Brasileira: Vulgarização científica e construção da identidade nacional na passagem da Monarquia para a República. (Tese de doutorado). Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica-PUC, Rio de Janeiro: 2003.

ZWEIG, S. Brasil, um país do futuro. Porto Alegre, RS: L&PM, 2006 [1941].

143

ANEXOS

144

ANEXO A: RESOLUÇÃO CONSEPE Nº 64/2006

Institui reserva de vagas no processo seletivo para os cursos de graduação da UESC e dá outras providências.

O Presidente do Conselho Superior de Ensino, Pesquisa e Extensão – CONSEPE, no uso de suas atribuições, considerando o deliberado na 63a. Reunião Ordinária do CONSEPE, realizada no dia 20 de dezembro de 2006,

RESOLVE

Art. 1º - Instituir reserva de vagas em todos os cursos de graduação da UESC, a serem preenchidas conforme estabelecido neste artigo:

I – 50% (cinqüenta por cento) das vagas de cada curso e em cada turno na seguinte ordem de prioridade:

a) estudantes que tenham cursado todo o Ensino Médio e os últimos quatro anos do Ensino Fundamental em escola pública, sendo que, deste percentual, 75% (setenta e cinco por cento) serão destinadas aos estudantes que se autodeclararem negros;

b) havendo, ainda, vagas remanescentes do percentual indicado na alínea a, as mesmas

serão destinadas aos demais candidatos.

II – Em cada curso serão admitidas até 02 (duas) vagas além das estabelecidas, desde que sejam destinadas a índios reconhecidos pela FUNAI ou moradores de comunidades remanescentes dos quilombos, que tenham cursado os últimos quatro anos do Ensino Fundamental e o Ensino Médio integralmente em escolas públicas e que tenham sido classificados no Processo Seletivo, observada a ordem de classificação.

§ 1º - A reserva de vagas será aplicada nas eventuais chamadas subseqüentes à matrícula dos candidatos convocados em primeira chamada.

§ 2o - No cálculo de 50% das vagas reservadas, ocorrendo

número decimal, a aproximação dar-se-á em favor das vagas reservadas.

§ 3º - Nos cursos em que, independentemente do processo de reserva de vagas estabelecido no inciso I, haja uma percentagem de classificados dos grupos sociais objeto da reserva igual ou superior às percentagens estabelecidas, o processo seletivo do Concurso Vestibular não levará em conta o percentual aqui constante de reserva de vagas.

145

Art. 2º - Os 50% (cinqüenta por cento) referentes às vagas não reservadas, bem como as vagas reservadas eventualmente não preenchidas nos termos desta resolução, serão ocupados por candidatos de qualquer etnia e procedência escolar, igualmente selecionados pelos critérios do Processo Seletivo da UESC.

Art. 3º - A classificação quanto à procedência (escola

pública ou privada) e etnia decorrerá das declarações (feitas de forma irrevogável) pelos candidatos nos formulários de inscrição do Processo Seletivo.

§ 1º - Perderá o direito à vaga e terá sua matrícula cancelada o candidato selecionado em relação ao qual se constate, no ato da matrícula ou posteriormente, em qualquer época, ter prestado informações não condizentes com a realidade quando da inscrição.

§2º - O candidato que não declarar expressamente sua etnia e a natureza pública da escola de origem será considerado como não concorrente às vagas reservadas.

Art. 4º - A condição de candidato proveniente de escola pública deverá ser comprovada quando da matrícula na Universidade.

Art. 5º - O candidato selecionado em decorrência do previsto no inciso II do Art. 1º terá que comprovar, por ocasião da matrícula, a condição declarada de índio reconhecido pela FUNAI ou morador das comunidades remanescentes de quilombos, registrado na Fundação Cultural Palmares, perdendo o direito à vaga se não o fizer.

Art. 6º - O candidato optante por concorrer às vagas destinadas às cotas estabelecidas no Art. 1º submeter-se-á às normas gerais e comuns do Processo Seletivo, exceto pelo fato de que, durante a classificação, os candidatos serão divididos em dois blocos: o dos optantes e o dos não-optantes por concorrer às vagas destinadas às cotas.

Art. 7º - A Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC implementará, em virtude do ingresso dos estudantes cotistas, programas de apoio e de acompanhamento que assegurem/potencializem sua permanência qualitativa na Universidade.

Art. 8º - As ações e políticas afirmativas de que trata a presente Resolução vigorarão continuamente por um período de 10 (dez) anos, com acompanhamento permanente e avaliação anual por comissão constituída para tal, após o qual deverá ser feita uma reavaliação, redefinindo as metas e critérios, se for o caso.

Art. 9º - Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

Campus Prof. Soane Nazaré de Andrade, 21 de dezembro de 2006.

ANTONIO JOAQUIM BASTOS DA SILVA PRESIDENTE

146

ANEXO B: QUESTIONÁRIO APLICADO AOS PROFESSORES

UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E ENSINO DE PÓS-GRADUAÇÃO

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS I PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS MESTRADO EM ESTUDO DE LINGUAGENS

IDENTIFICAÇÃO

ÁREA DE CONHECIMENTO (FORMAÇÃO):

___________________________________________________________________________

QUAIS COMPONENTES CURRICULARES (DISCIPLINAS) LECIONA:

___________________________________________________________________________

__________________________________________________________________________

NATURALIDADE: _____________________________________________

IDADE:______ ETNIA:_____________________________________

QUESTÃO ÚNICA

A UESC ADOTOU A POLÍTICA DE COTAS COM RECORTE RACIAL EM SEU

PROCESSO SELETIVO. O QUE VOCÊ PENSA A ESTE RESPEITO?

___________________________________________________________________________

___________________________________________________________________________

___________________________________________________________________________

___________________________________________________________________________

___________________________________________________________________________

___________________________________________________________________________

___________________________________________________________________________

___________________________________________________________________________

___________________________________________________________________________

___________________________________________________________________________

__________________________________________________________________________

147

APÊNDICE

148

APÊNDICE A: RESPOSTAS DOS PROFESSORES

FORMAÇÃO

COMPONENTES CURRICULARES

NATURALIDADE

IDADE

ETNIA

QUESTÃO ÚNICA

1. Economia Economia do setor publico e economia da regularização, analise de investimento.

Itabuna/BA 34 anos __x__ Entendo as cotas como uma política de preparação, atendendo parte das dividas sociais que o estado brasileiro tem com a população afrodescendente. A política tem um efeito direto, no curto e médio prazo, sobre questões como: mobilidade social; apropriação da renda e ocupação dos espaços de poder. Além da política de cotas, deve a UESC a acompanhar de perto as políticas de educação (básico e médio) desenvolvido pelas redes, estadual e municipal. Desenvolvendo instrumentos de avaliação das políticas desenvolvidas e de ferramentas, métodos, etc, que possam ser utilizadas por todos atores da educação. É necessário uma postura mais pró-ativa da UESC.

2. Ciências sociais aplicadas: ADMINIS- TRAÇÃO

Administração financeira e orçamentária e gestão de projetos, dentre outras correlatas á administração.

Nova Itarana- BA 32 anos Mestiço Controversa medida, que prioriza apenas um aspecto não determinante da segregação social e exclusão da possibilidade de ter acesso de modo pleno aos recursos e demais aspectos das ofertas sociais. Não acredito que as cotas raciais tenham poder de solucionar os problemas de inclusão das classes no processo educacional ou mais ainda de ser instrumento de “prestação de contas” da sociedade com os negros e seus descendentes. Acredito que o problema maior seja de exclusão financeira, onde famílias formadas por negros, brancos, e quaisquer outras raças vivem sob os ditames das mazelas da falta de acesso aos recursos mínimos necessários ao atendimento dos mais básicos suprimentos de subsistência. Dessa maneira, compreendo que um programa de inclusão social, baseada em políticas públicas de integração para as famílias de baixa renda poderem gerar seu próprio sustento, a partir da produção de riquezas, como a produção agrícola e o pequeno negócio podem permitir uma formação educacional se seus

149

filhos, com escola de ensino básico e fundamental de melhor qualidade, há de gerar jovens com formação e capacidade de disputar uma vaga no ensino superior de modo mais pleno. Até lá, que os programas de inclusão sejam mais coerentes e contemplem esses aspectos de cunho econômico e social ao invés do racial.

3. Licenciatura em História (UCSAL); mestrado em História com Área de Concentração em arqueologia (PUCRS)

Introdução a arqueologia; Pré-História.

Salvador/BA 43 anos Negro Me posiciono favorável às cotas raciais/sociais por considerá-la um momento de literalmente reparar o racismo (implícito/explícito) contido na academia, de reparar as nossas deficiências culturais/pedagógicas, momento de fazer despertar a consciência da comunidade negra dentro do processo de construção de uma nação, de construção de uma cidadania e principalmente de proporcionar condições, para a população negra de baixa renda, de uma melhor inserção no mercado de trabalho, embora esta questão do mercado de trabalho abra espaço para um debate a respeito da exploração do trabalho pelo capital e a conseqüente expropriação de mais-valia por parte do capitalista.

4. Mestrado e Doutorado em Direito

Monografia I, Monografia II Bahia 46 anos Afro- descendente

Acredito que a implantação do sistema de cotas não trará soluções ao problema da desigualdade quando do ingresso nas universidades públicas, uma vez que compete ao estado estabelecer políticas adequadas de ensino que promova a igualdade de ensino. De igual modo, penso que o sistema de cotas fere o princípio da igualdade patente na Constituição Federal de 1988, uma vez que trata desigualdade os egressos, priorizando os afro-descendentes.

5. Computação/ geografia

Linguagem de programação II e Geoprocessamento

Rio de Janeiro 38 anos Branco Penso que a reserva de vagas (cotas) com recorte racial é uma ação FUNDAMENTAL para que se busque a reparação do enorme fosso existente entre os afrodescendentes e os não-afrodescendentes neste país. Penso que as desigualdades existem em todos os setores da ação pública, mas considero que a educação - em especial de nível superior- pode se transformar em uma ferramenta de luta para que se busque a igualdade nos outros setores. Relaciono o descrito acima à educação brasileira de forma geral, não tendo nada específico a comentar sobre a implantação das cotas na UESC.

150

6. Ciências Sociais aplicadas- Direito

Estados, organizações internacionais, Homem no contexto internacional, Direitos Humanos, conflitos internacionais.

Itabuna/BA 37 anos Negro A medida é necessária para corrigir as distorções de uma sociedade pautada na reprodução de classes, na qual filho de médico será medico, filho de advogado será operador de Direito, porém filho de pedreiro está fadado a ser pedreiro, carpinteiro, gari, e filho de desempregado será desempregado (sem desmerecer nenhuma das profissoes citadas.) Dessa maneira, como historicamente as mazelas do desemprego e da falta de condições financeiras e socias, atingem as classes pobres que de regra são afro-descendentes, estamos diante da perpetuação da marginalização social e econômica da raça. A mesma coisa acontece com os indios. Assim. Oportunizar o acesso ao ensino superior publico e gratuito a índios, negros e outros minorias significa amenizar a situação e a longo prazo devolver a esperança de uma sociedade mais justa e solidária para todos.

7. Cultura, turismo e Hotelaria.

Turismo/ administração hoteleira/produção cultural/cultura e entretenimento.

Juazeiro/BA 44 anos Afro-descendente (mulato)

Visto que as cotas na UESC demandam a comprovação de que o aluno provém de escola pública e a questão racial se vincula à auto-declaração, logo o viés determinante no processo seletivo do vestibular é sócio-econômico e não racial. Tal análise encontra eco nas informações disponíveis acerca da própria pirâmide social brasileira (que mostra o afro-descendente na base) e também nas estatísticas sobre o perfil do alunado de escola publica no país (oriundo das classes populares, na sua maioria). Entendo, assim, que as cotas na UESC vieram para oportunizar o acesso dos mais pobres à Universidade. Nesse sentido, vejo-as como uma política positiva, afirmativa. Na ausência de políticas mais justas e eficientes, aprovo as que dispomos no momento. Contudo, não se pode deixar de mencionar que o ideal mesmo seria promover educação de qualidade na escola publica no ensino fundamental e médio. Assim, os mais pobres também seriam suficientemente capacitados para a Universidade.

8. Ciências sociais/antropologia

Antropologia cultural, antropologia Filosófica, Etnologia Brasileira, Sociologia, antropologia do Imaginário,

Salvador-ba 36 anos Não se aplica

Que é uma medida imprescindível - embora tímida - no sentido de uma tentativa de democratização do ensino superior. Faz-se necessário, ademais da manutenção do acesso dos ingressos, a oferta de condições adequadas de permanência, bem como o cobro do rendimento

151

Antropologia e educação. acadêmico destes.

9. __X__ __x__ ___X__ ____x___

___x___ A medida corrige certas distorções sobre a hierarquia social, mas não é único remédio às questões socioeconômicas envolvendo etnia no Brasil. Está de parabéns a medida.

10. História Histórias do Brasil e Estudos Afro- Brasileiros.

Salvador/BA 37 anos ___x___ Acredito que essa medida contribuirá para que pessoas que encontrariam maior dificuldades para o ingresso do ensino superior possa, de fato gozar de um direito que lhes pertence.

11. Filosofia Metodologia de pesquisa em Filosofia – ética – introdução a filosofia.

Brasileiro 48 anos Indígena Considero um avanço, pois era uma reivindicação da comunidade interna e externa, sobretudo dos grupos interessados diretamente (mov. negro). Nesse sentido, demonstra que estamos sintonizados com a sociedade, já que a universidade não pode se fechar a ela. É verdade que há críticas quanto a essa iniciativa. Todavia, considero uma medida urgente, atual, necessária temporariamente, pois, quando avançarmos, medidas como essas não serão mais necessárias.

12. Ciências econômicas Economia de serviços Floresta azul 60 anos Pardo Sou favorável, desde quando exista uma política de apoio a manutenção do aluno na universidade como o reforço escolar e financeiro.

13. Nutrição mineral de plantão/Metodologia cientifica

Nutrição mineral de plantas e metodologia da pesquisa.

Jequié-Ba 50 anos Branco A princípio sou contrário. Políticas públicas inclusivas deveriam ter como critério aspectos relacionados à condição econômica e não a racial.

14. Engenheiro Agrônomo

Estatística Cordeiro- RJ 53 anos ___x___ Não concordo, sou favorável a política de cotas para estudantes carentes oriundos de escolas públicas ou de particulares com bolsas. Acredito que políticas de cotas com recorte social é injusta e irresponsável por estimular o racismo. Existem pessoas que serão beneficiadas com este sist. de cotas raciais com alto padrão financeiro e possibilidades de estudar em ótimos colégios.

15. Bacharel em Ciências biológicas, msc e dr em geografia.

Limnologia, poluição marinha, ecologia de recife de corais, introdução á oceonografia (graduação); ecologia de ecossistemas, biogeográfica,

Rio de Janeiro 45 anos Fenótipo “branco”, ascendência

Medida demagógica e ofensiva aos indivíduos classificados como “negros”. Encobre (ou pretende encobrir) a falta de acesso a educação básica, obrigação do Estado para com todos os cidadãos, independente de raça ou poder econômico. O acesso a esta educação, e a possibilidade de se cursar um ensino fundamental médio e superior em

152

aquática (mestrado) européia, ameríndia e provavelmente negra também.

boas escolas públicas e que constituem o principal caminho para mobilidade social. Estas medidas, assim como outras de igual ter paternalista são orquestrados pelos altos escalões do governo (em todas as esferas), para encobrir o fato de que este acesso não é mais oferecido à população. Em suma, uma medida demagógica e racista, copia-se apenas o pior dos americanos (“affirmative action”) e não a valorização do esforço individual em condições de igual acesso à educação.

16. Economia Desenvolvimento sócio- econômico, economia do setor publico.

Brasileiro naturalizado (Republica Dominicana)

44 anos Latino Medida acertada e já muito aguardada. O conceito de raça não é muito consensual haja vista o debate que aconteceu no passado quando foi questionado um formulário enviado as escolas publicas pelo MEC, acho que em 2005 ou 2006, em que se revelaram posicionamentos no mínimo confusos. Mesmo assim eu acho que a pergunta refere-se às cotas não apenas raciais senão sociais e étnicas. Nesse sentido concordo plenamente com cotas que tentam “corrigir” injustiças no país como o acesso ao ensino publico e gratuito de cidadãos de extração popular, negros e indígenas. Portanto as cotas não são apenas sociais. E no Brasil acontece uma injustiça maior que é a baixa representação das classes mais pobres na univ. pública e gratuita invertendo o que acontece em outros países da A.L. Especificamente, em termos sociais, a cota é justificada principalmente para negros (etnia afro) porque eles que eles sentem na pele (literalmente) muito preconceito. Desejo bons resultados na pesquisa e retorno para saber sobre esse trabalho.

17. Mestre em direito Direito processual civil Canavieiras 52 anos Pardo A adoção da política de cotas na UESC se dá pelo critério de recorte racial no processo seletivo. Tal política viola o principio da igualdade por dispensar tratamento diferenciado a pessoas consideradas integrantes de uma “raça” que estaria em situação de desigualdade em relação às demais “raças”. Mesmo traduzindo o vocábulo inadequado “raça” por etnia, resta constatada em pesquisa empírica a inexistência de desigualdade entre vestibulando negros e brancos que justifique o tratamento desigual. Conforme revelam os dados coletados na referida pesquisa, levada a

153

efeito pela acadêmica Débora Neiva Da Silva Azevedo, o sistema de cotas acabou por causar discriminação depreciação, perseguição e humilhação a seus “beneficiários” , ferindo assim o princípio da dignidade humana.

18. Engenheiro de produção

Calculo, sistema de produção, matérias metálicos, materiais cerâmicos.

Brasileiro ___x___ Branco sou contra, pois estão transferindo um problema do ensino Básico-Médio, para as universidades em detrimento das universidades. As federais brasileiras já possuem +/- 45% de proveniente de escolas públicas.

19. Arquitetura Desenho técnico e geometria descritiva

Salvador- BA 46 anos Na Bahia?!...

Sou absolutamente contra qualquer coisa que tenha “Recorte Racial”, me lembra muito o nazismo, guardando as devidas proporções é claro... Quanto às cotas propriamente ditas, não creio que “forçar” a entrada dos estudantes na universidade seja uma solução racional. Penso que deveríamos buscar “FORÇAR” o compromisso e a seriedade das políticas públicas com a qualidade do ensino fundamental e médio. Ai sim! Qualquer estudante, independente de cor, credo ou raça poderia ingressar na universidade, em pé de igualdade com os demais. Me pergunto qual será a próxima “política educacional”... Baixar o nível de exigência das universidades para que os menos preparados possam concluí-la???... Infelizmente sinto que estamos iniciando um ciclo de esmolas... é a esmola do “bolsa isso”, “bolsa aquilo”, enfim... ninguém mais é impulsionado a crescer, a se esforçar pois ali adiante alguém irá te dar “de graça” o que quer que seja. O que não estamos percebendo muito bem é o “preço” que toda uma sociedade vai pagar por este falso “de graça”, especialmente essas pessoas que são “iludidas” com um falso sentimento de inserção e inclusão. Há momentos que sinto um pouco de vergonha. Eu queria muito ter em minha sala de aula negros pobres, brancos pobres, índios, asiáticos, quilombolas, entre outros que pudessem dizer: “... tive uma escola pública de qualidade, estudei, me esforcei e hoje estou na universidade por mérito próprio...”

20. ___x___ ____x____ ___x___ ___x___ ___x___ A implantação do sistema de cotas não trará soluções definitivas e/ou

154

até satisfatórias , tendo em vista que a questão do acesso e da qualidade de ensino deveria ser igual a todos. Creio que o referido sistema pode ainda gerar desigualdades e diferenças de tratamento entre cotistas e e não cotistas aprofundando questões até então, segundo melhor juízo, não tão explicitadas. Ademais, o sistema acima referido não garante a preferência e a estabilidade dos alunos na instituição. Portanto, creio que este processo seletivo fere o princípio de igualdade entre os cidadãos, independentemente, de qualquer circunstância.

21. ___X___ ___X___ ____X____ ____X____

____x____

Mesmo que o conceito de raça tenha caído por terra no ponto de vista científico (bilógico), em termos de embates e encontros culturais, o conceito continua ativo. Assim, diante da herança de extrema violência de todos os tipos deixada pelo processo da diáspora negra, é muito mais fácil concordar com a adoção de cotas com viés racial do que ser contra. Primeiro porque só o fato de levantar uma discussão acalorada que envolve a falácia da democracia racial no Brasil já é uma conseqüência positiva da adoção dessas cotas. Em segundo lugar, quando historicamente os negros eram retirados dos domínios da humanidade, sendo portanto animalizados, desprovidos de uma alma, o discurso dominante não questionava a “meritocracia” que se deseja nas oportunidades sociais. Desse modo, dizer que as cotas são um ataque ao mérito como critério de acesso a universidade publica é uma conveniência histórica que em geral mostra um certo lugar de fala de seus proponentes. Finalmente, acho a adoção das cotas na UESC e em outras universidades uma política produtiva em nome da reflexão e da transformação da realidade. Quanto à adapatação, à permanência e à conclusão dos estudos pelos que ingressam na universidade através do critério das cotas, creio que faz parte de uma discussão necessária, mas posterior à discussão sobre a produtiva adoção das cotas.

22. Ciências humanas Estatísticas e metodologia do ensino de matemática

Naturalizada brasileira

52 anos Mestiça, mescla de branco, índio,

Este é um tema controverso e as pessoas têm medo de emitir sua opinião, pois a sociedade, sob o manto de uma falsa hipocrisia, condena aqueles que não concordam com aquilo que denominam de politicamente correto.

155

preto e chinês.

Tenho colocado minha opinião, diante de meus colegas e amigos, mas não tenho coragem de defendê-las perante um publico maior, por exemplo, em um debate. Vou expor meu ponto de vista e espero ser compreendida. Sou contra pelos seguintes motivos: 1º- A questão da abrangência política. Se os descendentes de negros estão em condições inferior de competir no ingresso na universidade, outras raças também estão nessa condição. Assim, os descendentes dos índios também deveriam ser contemplados. Além disso, por que só o critério de raça? Por que não utilizamos o critério da fome? Neste caso, perguntamos, por exemplo, por que os nordestinos, flagelados pela seca, também não tem esse direito. Se existe injustiça social, essa não é apenas dos negros. Se continuarmos nesse raciocínio, deveríamos ter cotas para os favelados, ou sem terra, etc. 2º- O background cientifico dos alunos cotistas. Qual é a base cientifica dos alunos cotistas? A premissa é de que eles têm menos background do que os não cotistas e que não passariam no vestibular, por isso a cotas. Essa premissa está calcada na péssima formação no ensino básico, dado pelas escolas publicas. Portanto, serão alunos de “segunda categoria”, aqueles que terão lacunas, porque são “coitadinhos”, sempre foram flagelados etc. 3º- O impacto na sala de aula, na universidade. Analisemos o impacto provável na universidade. Em que cursos notaríamos a diferença? Em cursos como as licenciaturas que não tem grande concorrência e que são procurados por alunos oriundos de escolas publicas, o perfil dos que ingressam deve ser bastante similar ao perfil dos alunos cotistas, provavelmente, não notaremos diferenças. Contudo, o que acontecerá em cursos de alta competitividade, tipo

156

Medicina, Direito, Engenharias, procurado por alunos de escola particulares, que fazem dois ou três anos de cursinhos caros e que tem um alto desempenho. O que irá ocorrer, dentro da sala de aula? Teremos duas classes de alunos, os que acompanham e os que não conseguem acompanhar. Além disso, não se trata só de ingressar. Um aluno cotista, em geral, não tem o suporte financeiro para se manter na universidade. Como compatibilizar estudos com trabalho? 4º- A cultura da acomodação. Por outro lado, saber que se têm as vagas garantidas com menos concorrência e com menos nível de desempenho, pode criar uma “cultura da acomodação”. Gostaria de saber hoje, por exemplo, na UESC, qual é a concorrência no curso de Medicina para os cotistas e para os não cotistas, a nota média dos que conseguem passar e dos que não conseguem passar nas duas categorias. Enquanto que o aluno não cotista de Medicina tem que “ralar” em média dois anos de cursinhos, pois a concorrência é de 40 para 1, do mesmo nível; os candidatos cotistas, podem até ter uma alta concorrência, porém o nível e qualidade sempre inferior, infinitamente inferior. 5º- O que pode ser feito? Na minha opinião, se há de se ter políticas afirmativas, essas não devem ser por raça, cor, ou condição social. Isso tem que ser sanado com políticas de melhoria da escola pública. Essas políticas são necessárias, mas devem focar o mérito, o esforço, e a competência. Obrigado pela oportunidade Sucesso na pesquisa

23. ___X___ _____x_____ ______x_____ ____x__ ___X_ Particularmente, considero as cotas com recorte racial algo extremamente benéfico. Vivemos no nosso país um problema sério que é a falta de distribuição de renda. Vejo nas cotas, “uma distribuição de

157

“renda”, sob outra roupagem”. Essas são benéficas, uma vez que por sua natureza, elas

proporcionam ao cidadão brasileiro de baixa renda e que não teria fácil acesso ao espaço acadêmico, o direito social de desfrutar dos mesmos direitos e prerrogativas, tal como são previstas na nossa Constituição, quando de cidadania se trata. Oportunizar ao cotista o direito de acesso à Universidade proporciona não “um pagamento de dívida”, mas uma forma de se apagar paulatinamente o preconceito de raça, uma vez que a raça negra é tão digna quanto a indígena, quanto a branca, raças que são os pilares de nossa nação. Sabemos que a raça negra, sempre foi e continua sendo uma grande força de trabalho no país. Quando se remonta a historia da cana de açúcar, por exemplo, trata-se o negro de forma caricatural, quando na verdade, não fosse o seu trabalho árduo no canavial e em outros setores, a economia do Brasil não teria se salientado.

Temos que assumir nossa cultura, não dívida, mas o respeito aos cidadãos que formaram esta nação, que a conformam e que são politicamente herdeiros dos mesmos direitos. É chegado o momento de se parar de tratar o negro como ser inferior, a se destratar uma pessoa por causa da cor, uma vez que já temos vários professores universitários que são negros, o que prova que inteligência não tem nada a ver com cor. Muitos chegaram a esta posição, em razão de ter-lhes sido oportunizado momentos para crescerem. E como a história se repete, acredito plenamente nas cotas com recorte racial, no intuito de serem dadas oportunidades a todos que lutam por um lugar ao sol.

24. Lingüística Aplicada

Língua Inglesa, Inglês Instrumental, Metodologia da Língua Inglesa.

Ilheense

36 Pardo O meu pensamento a respeito da Política de Cotas na UESC passa por dois momentos. O primeiro momento, antes da Resolução CONSEPE n°. 64 de 2006, eu acreditava que o problema da não entrada do indivíduo na educação superior se dava pelo fato da falta de qualidade do ensino público. Hoje sei que este pensamento se enquadra em um dos mitos das cotas. O segundo momento, quando a UESC institui reserva de vagas em todos os seus cursos de graduação, participei através da Comissão do Vestibular 2007 da divulgação da Política de

158

Cotas e com isso a oportunidade de estudar o assunto. Ao pesquisar a literatura existente percebi a importância das Ações Afirmativas e conseqüentemente a importância de se instituir na UESC a Política de Cotas. Hoje sei o quanto a Conferência da ONU contra o racismo em Durban (setembro/2001) contribuiu para a criação das cotas e quanto o número de universidades implantando a Política de Cotas está aumentando. Hoje sou a favor da Política de Cotas por acreditar na existência de um “racismo cordial” que desfavorece minorias e favorece a injustiça. Hoje sou a favor da conscientização da Política de Cotas através de cartilhas e folders que esclareçam a comunidade sobre o assunto, e que através deste conhecimento os mitos das Cotas sejam desmistificados.

25. Licenciatura Ciências Biológicas

Estágio Supervisionado em Ciências e Biologia

Itapira-SP 31 Branca Prestei concurso recentemente e estou nessa universidade faz apenas 3 meses. O que pude observar nesse período, é que o número de alunos afro-descendentes é maior do que o que eu vejo nas universidades do sudeste onde estudei. Mas mesmo assim acredito que adotar a política de cotas com recorte racial, e também sócio-econômico, favorece a entrada no ensino superior de uma grande parcela da população que historicamente foi alijada das conquistas sociais, como o direito ao ensino superior e ao posterior exercício da profissão escolhida.

26. Mestrado em Educação, área de Supervisão e Currículo-Doutorado em Educação, área de Metodologia de Ensino

Políticas Públicas e Legislação de Ensino; História da Educação e nos cursos de especialização Diversidade Étnico-Racial

57 negra A UESC adotou uma atitude política correta, no entanto, sabemos como ocorreu em outras instituições, como por exemplo, a UNB, UFScar, entre outras, que esta ação é resultado da pressão de grupos do movimento social, notadamente o Movimento Social Negro. Dentro da academia a proposta de cotas fica à mercê da orientação de docentes, discentes e por vezes reitores que não acreditam na necessidade e na eficácia das “Políticas de Ações Afirmativas”, conseqüentemente não confiam na competência dos alunos cotistas. A UESC ainda não conseguiu desenvolver ações pedagógicas de acompanhamento e apoio aos alunos cotistas, isto tem provocado algumas desistências, acredito que será necessária a intervenção de educadores envolvidos politicamente com esta questão para que o processo avance. Mas, apesar dos problemas que ocorrem e a

159

discordância da maioria, acredito que o passo mais importante já foi dado.

27. Pedagoga Historia da educação e políticas públicas de educação

Itabuna

59 Branca

Considero uma medida justa. Essa atitude política da uesc em adotar o sistema de cotas como parte das políticas afirmativas para atenuar as desigualdades sociais entre os diferentes cidadãos brasileiros que não tinham o acesso ao ensino superior. Pesquisas já apontavam que os jovens de origem negra e oriundos de escola pública, de modo geral, não conseguiam vencer a grande barreira do vestibular, ficando cada vez mais marginalizados do processo de elevação do nível de escolarização. Portanto, impossibilitado de acesso ao mercado de trabalho e ascender socialmente. Contudo, devemos ressaltar que este direito ao sistema de cotas na uesc, não foi uma iniciativa própria (genuino) desta instituição. Ela foi fruto de uma movimentação de diferentes representações sociais e de entidades negras que desde 2002 já vinham reivindicando o direito de sistema de cotas nas instituições de ensino superior públicas. Avaliando a proposta da uesc, considero uma boa proposição, quqndo define 50% das vagas de cada curso destinadas aos estudantes de escola pública que tenham cursado todo o ensino medio e os últimos quatro ano do ensino fundamental, deste percentual, 75% para os/as estudantes que se autodeclararem negro. E ainda serão admitidas até 2 vagas por curso para estudantes indíos/as ou de comunidades remanescentes de quilombos, egressos de escolas públicas. Sabemos, contudo, que o sistema de cotas, criando reserva de vagas em instituiçeõs públicas para estes segmentos sociais que historicamente foram excluidos de muitos direitos sociais sofre críticas, criando muitas polêmicas no meio acadêmico e gerando muitas discussões. Argumentam, os contrários as cotas, que essas medidas não resolvem os problemas sociais e nem diminuem as desigualdades sociais. Essas ações são demagógicas e só servem para precarizar o ensino superior.

160

Enfim, penso que o sistema de cotas é uma ação que deve ser mantida nas ies. De igual forma, deve-se criar ações pararelas consistentes, ou seja, condiçôes objetivas (moradia, alimentação, trabalho,etc) para assegurar a permanência dos alunos. Penso que, caso isso não ocorra, a proposta de inclusão e de dívida social secular a esses segmentos etnicos da população brasileira sucumbirá. É somente mais um discurso.

28. Gestão do cuidar em enfermagem (enfermagem)

neonatologi, obstetrícia e ginecologia

Camacan -Bahia 38 Branca Acho que o sistema de cotas raciais não é a melhor política para os menos favorecidos. Primeiro, porque o simples fato de ser afro descendente não significa que necessite de maior atenção que um de raça branca pobre ou de outras raças. Ademais, o problema principal da educação brasileira está na base, no ensino fundamental, esse sim precisa de melhor investimento e respeito para haja mudança na educação de todos os brasileiros. Assim, ressalvadas raras exceções, as universidades estarão lotadas de acadêmicos com pouca base escolar, além do que, apesar de favorecê-los no primeiro instante, certamente que causará preconceito ou mesmo mais separação racial contra os estudantes nesta situação.

29. Ciências da Saúde - Medicina

Saúde Coletiva - Epidemiologia

Itabuna - Bahia 44 anos Pardo Fiz parte da Comissão que discutiu com os movimentos sociais a minuta da resolução e fui relatora do processo no âmbito do Conselho, tendo apresentado voto favorável. Desta forma sou favorável a reserva de vagas para estudantes oriundos de escolas públicas, que respeite a composição racial da população da região de influência da UESC. Trata-se de estratégia temporária que proporciona o acesso à IES pública de estudantes em situação social desfavorável, estabelecendo uma disputa mais justa entre pessoas com “oportunidades” semelhantes. Entendo como temporária, pois defendo e trabalho cotidianamente pelo fortalecimento e qualificação da educação básica pública e pelo respeito aos direitos constitucionais do cidadão, com igualdade de oportunidades. Considero que esta seria o objetivo real e final a ser perseguido.

30. Educação Física

Prática de Educação Física, Metodologia de Jogos Pré-

Itapetinga -BA 39 Branca Concordo com a política adotada e acredito ser um reconhecimento e regaste diante de séculos de ações e atitudes que afastaram a população

161

Desportivos e História da Educação Física.

negra das condições e oportunidades de acesso ao sistema educacional, entre outros.

31. Ciências da Saúde e Ciências Humanas (graduação e pós graduação)

Eixo didático pedagógico da Educação Física, no momento, afastada.

Vitória-ES 35 brasileira Penso que é muito importante a vivência de políticas afirmativas que proporcionem a equidade, visto que vivemos em uma sociedade desigual, que precisa mudar seus rumos. Infelizmente a cor foi e é, muitas vezes, justificativa de exploração, preconceito e exclusão. Entenda que prefiro usar o termo cor de pele porque percebo que o brasileiro, independente de cor, é mestiço. Eu não tenho opinião formada sobre a existência de “sub-raças” derivadas da raça-humana. Entretanto, tateio pela ideia de que o conceito de raças humanas é uma invenção para fragmentar e justificar preconceito. Para finalizar, penso que as políticas afirmativas podem nos ajudar a superar ou a minimizar o problema do preconceito e exclusão.

32. Medicina Veterinária

Toxicologia Veterinária; Parasitologia Veterinária

Teresina PI

35 Branca Sim. Sou contrário a este tipo de cotas. Se as cotas se restringissem a educação básica e fundamental integrais em escola pública seria favorável, porém em percentuais menores que os atuais utilizados, mas incluir o recorte racial sou contra.

33. Filosofia (Graduação), Sociologia (M.S. e Ph.D.)

Geografia Política; Metodologia do Trabalho Científico; Metodologia de Pesquisa (Graduação); Sociedade, Natureza e Desenvolvimento: Fundamentos; Sociologia Ambiental (Mestrado de Meio Ambiente)

Torres, RS

62 Brasileiro/Latino

Sou terminantemente contra a política de cotas com base nas diferenças raciais. Trata-se de uma política posta com a finalidade de reduzir diferenças, mas é essencialmente uma prática de tratamento diferenciado das pessoas. Além do mais, por tratar diferenciadamente as pessoas, é inconstitucional. A constituição diz que não se deve tratar diferentemente as pessoas por questão de religião, raça, cor etc. A política de cotas faz sentido se for fundamentada nas diferenças que se quer combater: as diferenças sociais e econômicas. Aqui é que se deve combater com políticas publicas diferenciadas (tipo cotas). O tratamento diferenciado com base em religião, raça ou cor deve ser combatido com penalidades (cadeia, multa, prestação de serviço social etc).

34. Engenharia Agronomica

Epistemologia da agroecologia

Alagoano

51 Multiraci-al

A uesc adotou políticas de cotas conforme recorte sócio econômico e não estritamente racial, étnico. Penso ser salutar embora haja uma série de adaptações a serem feito pelo docente quanto a incrementara a velocidade de leitura, capacidade da escrita e comunicação por vezes já

162

tão precário em alunos de outros estratos sociais menos desfavorecidos.

35. 1.Ciências humanas (curso de estudos sociais licenciatura curta; curso de estudos Sociais com habilitação em geografia); 2.Direito; 3.Mestre em geografia.

Período 2009.2: 1. História do pensamento geográfico 2. Conceitos básicos da geografia

Ibicuí-bahia 61 anos Parda (conforme registro de nasci-mento).

Entendo ser necessária (para o momento histórico da sociedade brasileira). Melhor seria se o nosso país concentrasse esforços para que a educação Básica brasileira, em especial a pública, fosse de qualidade. Isso permitiria a Todas as pessoas, independente de cor, sexo, entre outros condicionantes, Participar de pprocesso seletivo, como este, em condições iguais. Quanto mais se faz recortes dessa natureza, mais aprofundamos as Desigualdades. Somos todos uma só nação.

36. Geografia

Métodos e Técnicas de Pesquisa em Geografia, Geografia da População, Organização do Espaço Geográfico, Percepção Ambiental, etc

Marmeleiro, Paraná

44 anos Parda Penso que a política de cotas é um “paliativo” para tentar encobrir o problema maior ainda, que é a falta de uma política séria, competente e comprometida com uma educação escolar de qualidade, desde a Educação Infantil, incluindo a desvalorização do “profissional professor”. Se existe uma política de cotas, deveria também existir cotas para os pobres e os índios, por exemplo. Com relação à Universidade, se esta política existe e, de alguma forma, poderá contribuir para “amenizar” a discriminação racial, que sempre existiu e continua a existir no Brasil, sou a favor. Talvez, isto dê uma oportunidade àqueles que sempre foram discriminados. Mas, penso também que a pior discriminação é contra o pobre!

37. Ciências Contábeis Auditoria contábil, Perícia contábil, Contabilidade Atuorial e Contabilidade Pública e Orçamento

Senhor do Bonfim 47 Branca Solução paliativa para uma problemática de cunho eminentemente social, a falta da escolaridade formal como inibidor real da ascensão social. Tenho receio do preconceito perdure por resposta na formação acadêmica. Louvável seria é voltar a ter uma escola básica de qualidade, com professores com orgulho do exercício profissional. Não há acadêmico que se eduque em quem não acredite no que faz. Outro aspecto é a cultura rápida, informação em demasia sem correlação ou conteúdo efetivo a vida do discente.

163

38. Economia Teoria Economica Economia Aplicada

Bahia ---- ---- A política de cotas adotada não deveria ter recorte racial, pois o problema da falta de oportunidade remete à situação econômica e não racial. Por experiência própria, já constatei a ocorrência de alunos com desempenho muito bom ou excelente pertencentes aos mais diversos perfis raciais. As cotas podem trazer acomodação para os seus beneficiários, assim como ressentimento para aqueles que se sentirem preteridos por não serem considerados de minoria racial.

39. Formação de professores (Doutorado

Estágio Supervisionado Tecnologias Educacionais

Itajibá-Ba 49 Branca Este é um direito adquirido e a Universidade precisa e deve atender a demanda, cumprindo assim a sua função social. Porém, penso que não é só a política de cotas que será suficiente. É preciso criar condições para que estes alunos ingressem na Universidade nos diferentes cursos, e permaneça/conclusão dos cursos, com: bolsas de Iniciação Científica (além da bolsa permanência), aumento do acervo da biblioteca em todas as áreas etc. Particularmente, acredito que a política de cotas raciais não resolverá o problema de inclusão e/ou exclusão, mas deverá ter escola pública de qualidade e vagas para todos sem distinção de credo, raça, classe social etc.

40. Educação Curso de Pedagogia

Planejamento, Execução e Avaliação Projetos

Brasileira 43 Caucasiana

Penso que a universidade deva ser um espaço para a discussão e a vivência da democracia. A questão das cotas com recorte racial significa fomentar a discussão sobre os mecanismos que a sociedade brasileira (construída sobre os ideais da cultura branca, cristã, heterossexual, burguesa) consolidou ao longo dos tempos para manter a população negra e empobrecida distante do seu universo. As cotas significam um momento de quebrar este paradigma que vincula o acesso e o sucesso à/na universidade a uma camada privilegiada. As cotas são uma ação de JUSTIÇA para com a população negra do Brasil. Penso que as cotas não sejam uma questão eterna, pois um dia a universidade deverá ser PARA TODOS/AS.

41. Fundamentos da Educação

Didática – Avaliação Educacional Estágio Supervisionado

Itapé 58 Branca Partindo do pressuposto que a política de cotas, tem como finalidade diminuir o abismo historicamente construído entre negros e brancos, e

164

Pedagoga sendo a Uesc uma instituição pública, um espaço “democrático” de discussões e de afirmações sociais, não poderia deixar de adotar a política de cotas, apesar de sua história evidenciada numa memória de violência e desigualdade social. Visto dessa forma, acredito que a Uesc, nesse processo, apenas cumpre de forma rotulada, usando uma fatia do modelo com implicações significativas e significantes implícitas a esse sistema perverso, injusto e desigual, nesse olhar, a Uesc cumpre o seu papel.

42. Ciências Biológicas (Entomologia)

Biogeografia principalmente Saint-Maur (França)

52 Caucasi-ana

Sou contra. O principio de recorte racial fere meus princípios baseados de sociedade igualitária e de democracia que, talvez, adquiri porque nasci numa sociedade européia baseada em princípios sacramentados (“Liberté, Egalité, Fraternité”) além de um anti-racismo fortemente estabelecido (apesar de existirem diversas falhas). Se todos nós nascemos com os mesmos deveres e direitos não há para que sustentar o recorte racial. O princípio do recorte racial sustenta, em minha opinião, que, por ser Negro, Índio, Esquimó, Árabe ou Aborígene, um ser humano colocado numa dessas categorias, fica numa situação a priori de menos capaz (de aprender, de se assimilar, de ter sucesso, etc) do que o outro, da(s) outra(s) categoria(s). Em outras palavras, a Lei (se a do recorte racial existir ou qualquer regra oficial) reconhece e sustenta a desigualdade racial. Os problemas que se pretende resolver assim, em minha opinião, são mais de origens educacional e social (classes sociais) e eu não desconheço que há certa relação entre a cor da pele ou o grupo étnico com a classe social. No entanto, acho que se o “governo” resolver o problema da educação de base no Brasil (alguma coisa como nível da educação no colégio público = o do colégio particular), não haveria necessidade nenhuma de cota racial ao nível da universidade, porque todos chegariam ao nível universitário com as mesmas chances. Em conclusão, se tiver que adotar um sistema de recorte mais igualitário na universidade, que seja baseado sobre o fato de ter sido educado no sistema público (tão deficitário) em relação ao ensino particular.