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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS - CAMPUS I PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS MESTRADO EM ESTUDO DE LINGUAGENS CARLA MARIA FERREIRA SOUSA Sob o signo da resistência: a poética de Noémia de Sousa no período de 1948-1951 em Moçambique Salvador 2014

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS - CAMPUS I

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS MESTRADO EM ESTUDO DE LINGUAGENS

CARLA MARIA FERREIRA SOUSA

Sob o signo da resistência: a poética de Noémia de Sousa no período de 1948-1951 em Moçambique

Salvador 2014

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CARLA MARIA FERREIRA SOUSA

Sob o signo da resistência: a poética de Noémia de Sousa no período de 1948-1951 em Moçambique

Dissertação apresentada ao Programa de Pós- graduação em Estudo de Linguagens, Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, campus I, da Universidade do Estado da Bahia, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre. Orientadora: Profª. Drª. Márcia Rios da Silva

Salvador 2014

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FICHA CATALOGRÁFICA

Elaboração: Sistema de Biblioteca da UNEB

Bibliotecária: Maria das Mercês Valverde – CRB 5/1109

Sousa, Carla Maria Ferreira

Sob o signo da resistência: a poética de Noémia de Sousa no período de 1948-1951 em

Moçambique / Carla Maria Ferreira Sousa. – Salvador, 2014.

110 f.

Orientadora: Márcia Rios da Silva

Dissertação (Mestrado) - Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Ciências

Humanas. Campus I. 2014.

Contém referências

1. Literatura moçambicana - História e crítica. 2. Poesia moçambicana - História e crítica.

Escritores moçambicanos - Visão política e social. 3. Sousa, Noémia de, 1926-2002 - Crítica e

interpretação. I. Silva, Márcia Rios da. II. Universidade do Estado da Bahia. Departamento de

Ciências Humanas - Campus I.

CDD: M869.09

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TERMO DE APROVAÇÃO

CARLA MARIA FERREIRA SOUSA

Sob o signo da resistência: a poética de Noémia de Sousa no período de 1948-1951 em Moçambique

Dissertação de mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Estudo de Linguagens, pela seguinte banca examinadora:

_______________________________________________ Professora Doutora Márcia Rios da Silva (Orientadora)

Universidade do Estado da Bahia (UNEB)

_________________________________________________ Professora Doutora Sayonara Amaral de Oliveira (Avaliadora Interna)

Universidade do Estado da Bahia (UNEB)

_____________________________________________________ Professora Doutora Rejane Vecchia da Rocha e Silva (Avaliadora Externa)

Universidade do Estado de São Paulo (USP)

Salvador, 24 de março de 2014.

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Dedico esse trabalho à memória de minha mãe, Maria Bernadete Ferreira e de minha avó Iracy Maria de Jesus. Elas estariam felizes com mais esse passo que dei. Dedico também a Marco Antonio Nogueira (Amor) e a Luísa (meu grande orgulho).

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AGRADECIMENTOS

Agradeço muito a Tateto Nzaze, que com sua energia, força, sabedoria e sua

imensurável benevolência não me abandonou nunca, e durante aqueles momentos em

que só o saber dos homens não é suficiente, se fez presente me iluminando, intuindo e

me fazendo sentir que por mais difícil e longínquo que seja o caminho é preciso seguir

adiante e eu jamais estarei só, pois Ele, meu pai, estará sempre comigo.

À minha orientadora, professora Márcia Rios, pelos direcionamentos, orientações

esclarecedoras e cuidadosas no decorrer de todo o processo de elaboração dessa

dissertação e pelo aprendizado adquirido em cada aula ministrada. Cada momento foi

precioso e muito importante para eu chegar até o final.

À professora Sayonara Amaral, obrigada pelo carinho e atenção em participar da

minha banca e pelas discussões promovidas em sala de aula, aprendi muito com seus

ensinamentos e sugestões valiosas para a dissertação.

Aos professores do programa, os quais contribuíram e muito para as minhas

reflexões em torno da minha pesquisa.

À turma de mestrandos 2012, a galera da linha I, Edmond, Gabriela, Jadson,

Joelson, Valdecir; da linha II, Fernanda, Reinaldo e toda a turma, agradeço pelas

discussões promovidas em sala, pelas nossas saídas, conversas e principalmente por

terem se tornado novos amigos.

À professora Rejane Vecchia, meu especial agradecimento por ter me

apresentado às Literaturas Africanas de Língua Portuguesa ainda no período da

graduação, por ter me oportunizado dois anos de iniciação científica, que se tornou

marco e divisor de águas em minha formação, e pela honra de tê-la como avaliadora

externa da minha banca, uma vez que tudo teve início sob sua orientação e condução.

À FAPESB pela concessão da bolsa de estudo, sem a qual não teria

tranquilidade para a realização e desenvolvimento da pesquisa de mestrado;

À minha mãe e avó (in memoriam), agradeço pelo meu nascimento, pela minha

criação e por todos os esforços enveredados para meu bem estar, saúde, sucesso e

realizações. Imperativo dizer que aprendi muito com a coragem e o labor de ambas.

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Onde quer que se encontrem, quero que saibam que a semente da persistência e da

resistência ficou plantada em mim.

Aos amigos, agradeço por cada momento de descontração, apoio e amizade,

aos de ontem: Ana Paula, Bárbara, Júnior, Inaê, Heloísa, Gabriel, Letícia, Eliane, Iara e

Gabriela dedico as mais estimadas lembranças dos nossos momentos na graduação.

Aos novos: Andréa, Elisângela, Guiomar, Janaína, Aline, Climério, João, Eduardo,

Késsia, Luciane, Lucileide, Idalina, Leila, Adinelson Rogério e Gabriela a minha gratidão

pela torcida, apoio e ombro amigo. Vocês dão real sentido à palavra amizade.

A pai Haroldo e Dinda, chamada por todos de Lindinha, mas, para mim não é

apenas linda é maravilhosa, agradeço eternamente por me adotarem e estarem sempre

presentes. À família Sacramento que também faço parte.

A todos os minkisses que dignificam e protegem o chão e a família Bate Folha e

não me desamparam. Aos tios (as), primos (as), irmãos (ãs) do terreiro.

Ao homem da minha vida, Amor, por tudo que partilhamos nessa vida. Agradeço

pela leitura atenta, pelas interferências e correções. Obrigada, essa dissertação é

nossa. Amo-te muito.

À Luísa, luz e fruto do meu amor, nascida em 2007, surgida para dar sentido a

minha existência, obrigada por me fazer um ser humano melhor a cada dia. Tudo isso é

por você também.

E por fim, à Noémia de Sousa, objeto e sujeito desse trabalho, meu especial

agradecimento por me permitir ousar falar um pouco de sua trajetória, de suas

convicções, de seu romantismo, na maior e melhor acepção do termo e pela sua

esperança e fé inabaláveis, sou-lhe grata principalmente por ter me inspirado,

emocionado e, para além da poesia, ter me possibilitado acreditar na tão esperada

mudança por melhores dias. A você, eterna Noémia, minha grande admiração.

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Saúdo meu pai agora e sempre:

Salve NZaze! Salve o Rei!

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RESUMO

Este trabalho tem como objetivo o estudo do livro de poemas da poetisa moçambicana

Noémia de Sousa, com o propósito de analisar o papel desempenhado por esta

escritora no seu contexto histórico e social. Paralelamente, pretendeu observar como a

sua produção poética surgiu interligada às questões políticas e históricas de

Moçambique. Para tanto, são analisadas as poesias reunidas em seu único livro,

Sangue Negro, este publicado em 2001, pela Associação de Escritores Moçambicanos.

Partindo do entendimento de que as lutas de libertação no continente africano

influenciaram o posicionamento dos escritores africanos, motivados pelos anseios da

independência, houve o destaque ao engajamento da escritora e à análise dos poemas

do referido livro.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura moçambicana. Noémia de Sousa. Poesia engajada.

Resistência.

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ABSTRACT

This work aims to study the poems book by the Mozambican poet Noémia de Sousa, in

order to analyze the role played by this writer in her historical and social context. At the

same time, intended to observe how her poetry production has emerged connected to

the Mozambique political and historical issues. For this, the poems collected are

analyzed in her only book, Black Blood, published in 2001 by the Association of

Mozambican Writers. Based on the understanding that the liberation struggles in Africa

influenced the African writers positioning, motivated by the independence interests, the

writer engagement and the analysis of that poems book was highlighted.

Keywords: Mozambican Literature. Noémia de Sousa. Engaged Poetry. Resistance.

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SUMÁRIO

Introdução ........................................................................................................ 11

1. A trajetória intelectual de Noémia de Sousa ................................................. 22

1.1 Referências literárias ................................................................................... 35

1.2 Ativismo e resistência .................................................................................. 39

1.3 Imprensa e as antologias ............................................................................. 42

2. Sangue negro: a contestação de um sistema opressor .............................. 49

2.1 Palavra e ação ............................................................................................. 60

2.2 Ecos da coletividade .................................................................................... 71

3. A poesia do Atlântico negro ........................................................................... 76

3.1 A literatura nas Américas ............................................................................. 83

3.2 Poesia e música .......................................................................................... 92

3.3 Canções das Américas ................................................................................ 97

Considerações finais ..................................................................................... 103

Referências...................................................................................................... 108

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INTRODUÇÃO

O colonialismo implementou uma complexa rede de dominação calcada tanto na

violência física, quanto na opressão ideológica que inferioriza o outro partindo de

pressupostos patriarcais, etnocêntricos e raciais. As tensões culturais decorrentes da

hierarquização empreendida pelo colonizador ao colonizado provocaram oposição ao

sistema de exploração colonial.

Durante muito tempo a história dita oficial forjava uma condição do colonizado

que apagava os mecanismos de combate presentes em sociedades africanas, como a

moçambicana, em que o sistema colonialista foi a marca principal, com todas as suas

implicações coercitivas e de repressão. Contudo, a ocupação colonial não foi pacífica.

Os moçambicanos, assim como em outros países africanos, impuseram lutas de

resistência e de não aceitação do quadro sociopolítico vigente e impulsionaram grandes

movimentações sociais e políticas que estiveram ligadas ao processo de libertação de

cada país. As histórias recentes de Moçambique, assim como a de Angola e Guiné

Bissau, por exemplo, pautam-se em uma trajetória de resistência e luta: luta contra o

colonialismo europeu e as nações colonizadoras, luta pela independência e pela nova

nação, luta contra o neocolonialismo, luta pela educação, pela saúde e pelo

desenvolvimento.

Violência e conflitos civis foram elementos que constituíram Moçambique e os

países que passaram pelo processo de colonização, pois esses espaços foram

estruturados na exclusão de grupos e segmentos sociais, aos quais foram negados

direitos. As guerras de libertação nacional desencadeadas nesses países tiveram

formações e resultados diferentes em cada território, mas possuía no seu princípio a

marca do desejo de se estabelecerem como nações independentes.

Nesse contexto de oposição ao regime colonial, a escritora moçambicana,

poetisa e militante Noémia de Sousa é inserida, que, com sua obra, ousou não só fazer

frente na contestação ao colonialismo português, mas também conclamou toda uma

geração de intelectuais, políticos e artistas em torno do ideal de liberdade. Reagiu à

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opressão, fez frente à participação no processo histórico do ativismo em Moçambique e

por meio da poesia, deixou registrada a sua impressão sobre aquele momento histórico.

A partir das análises da produção poética da escritora moçambicana Noémia de

Sousa, em seu livro Sangue negro, construiu-se nessa dissertação uma leitura crítica

dos seus poemas. O livro em destaque foi editado em 2001 pela Associação de

Escritores Moçambicanos (AEM), sendo composto por 49 poemas, agrupados em seis

seções: “Nossa Voz”, “Biografia”, “Munhuana”, “Livro do João”, “Sangue Negro” e

“Dispersos”. Os poemas reunidos nos capítulos referenciados foram escritos entre os

anos de 1948 a 1951. No entanto, a maioria destes é datada de 1949 e 1950.

A segunda edição de Sangue negro foi lançada em Maputo, no dia 20 de

setembro de 2011, data em que a poetisa completaria 85 anos. Dessa vez, a reedição

foi feita pela editora Marimbique, que quis prestar uma homenagem à escritora cujo

falecimento ocorreu em 20 de setembro de 2002, quando residia em Portugal. A

primeira edição da obra foi organizada por Nelson Saúte, Francisco Noa e Fátima

Mendonça, três estudiosos da literatura moçambicana que tomaram como esforço

pessoal a publicação do livro. Na introdução, intitulada “Noémia de Sousa: a mãe dos

poetas”, Nelson Saúte, também escritor moçambicano, apresenta o percurso literário da

poetisa, revela sua importância no panorama cultural de Moçambique e, sobretudo,

relembra a sua participação na exaltação de todas as utopias. Segundo Saúte, ele

mesmo foi marcado, ainda quando jovem, aos 15 anos de idade, pela escrita

contundente de Noémia de Sousa, passando então a conhecer e estudar a poesia de

combate que marcou os finais dos anos de 1940, “poesia que reivindicava a

personalidade dos oprimidos, que fundava a literatura dos marginalizados”. (SOUSA,

2001, p. 12).

Os poemas da escritora foram, em sua maioria, publicações dispersas nos

jornais e revistas de Moçambique daquele período. Por interesse da própria poetisa, o

seu legado teria que circular entre a população moçambicana, a base do movimento de

revolução, pois “queria que seus poemas fossem, antes de tudo, primordialmente

editados em Moçambique, onde é estudado nas escolas, lidos através de textos

avulsos que circulam, de mão em mão, fotocopiados, policopiados”. (SOUSA, 2001, p.

22). Anteriormente, contrária à publicação de seus escritos em livro, segundo Nelson

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Saúte, várias foram as tentativas para convencê-la e insistiu, “como fizeram muitos, na

edição dos seus poemas. Noémia arranjou todos os subterfúgios, mas há alguns anos,

depois de ter recusado convites de Manuel Ferreira, Michel Laban, entre outros, ela

acedeu publicar”. (SOUSA, 2001, p. 22).

A admiração de Nelson Saúte por Noémia de Sousa se confirma pelo destaque

dado ao conjunto obra e autora, quando o estudioso a coloca como parte de seus

antepassados literários, além de considerá-la a mãe dos poetas moçambicanos. Sobre

Sangue negro, destaca que o livro transcende a condição de uma recolha de poemas,

sendo, antes de tudo, um testemunho da história dos moçambicanos.

Os posfácios, escritos por Francisco Noa e Fátima Mendonça, configuram-se,

antes de qualquer declaração sobre a autora, como depoimento de uma geração que

foi motivada pelo pioneirismo da escritora na poesia moçambicana. Em “Noémia de

Sousa: a metafísica do grito”, Francisco Noa adjetiva sua poesia como emocionada e

ressalta os recursos linguísticos, estilísticos e temáticos que a revestem para

demonstrar “a consciência de uma subjetividade dilacerada”. (SOUSA, 2001, p. 153).

Para Francisco Noa, a voz enunciadora nos poemas de Sangue negro representa a

aspiração plural e universalista que confere à poesia de Noémia de Sousa a exaltação

dos valores dos negros africanos. A reconstituição da própria imagem identitária da

escritora se revela como o estético da sua escrita, porque “enquanto voz da Negritude,

a voz de Noémia é uma exaltação narcisista gratuita do ser negro, mas é do ser negro

enquanto objecto da sujeição econômica, cultural ou racial”. (SOUSA, 2001, p. 157).

No texto “Moçambique, lugar para a poesia”, que retoma o título de um ensaio de

Augusto dos Santos Abranches, também poeta, Fátima Mendonça destaca a

representatividade dos poemas de Noémia de Sousa em que emergiram novas

temáticas contrárias ao caráter colonial da literatura portuguesa. A nova perspectiva da

escrita poética assume uma dimensão de intervenção social, nomeadamente marcada

pela denúncia das injustiças e apresenta reiterações futuras formuladas sob a forma de

referências diretas, alusões ou apropriações temáticas que vai se constituir como

modelo para novos escritores enquanto resistência prolongada dos negros às

discriminações raciais e às formas alienantes da cultura embranquecida pelos padrões

europeus.

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Assim como Francisco Noa, Fátima Mendonça também considera a poesia de

Noémia de Sousa marcadamente revestida de um traço emocional que permite um

efeito mais humanizado e de relação aproximada com a história de Moçambique. Das

correntes literárias que dialogaram com a literatura moçambicana, Fátima Mendonça

afirma o seguinte:

Ao amplificar as potencialidades do hipotexto (neo-realista) Noémia de Sousa introduz no novo texto (moçambicano) uma forte historicidade, religando-o a um espaço particularizado (Moçambique) e a um tempo concreto (o das explosões nacionalistas africanas). (SOUSA, 2001, p. 169).

Muito embora a história não seja o foco principal desse trabalho, trazer um pouco

de informações sobre Moçambique é mais uma forma de entender a literatura desse

país. É apreender a escrita literária enquanto texto, que, no plano de suas múltiplas

tessituras, necessita de algumas linhas precisas dos vários contextos para construir

uma imagem que permita ao leitor se deslocar do plano real e aceitar o plano ficcional.

A literatura moçambicana surge da experiência da colonização e é nessa perspectiva

que literatura, lutas e memórias são comungadas na imbricação desses fatores no texto

poético de Noémia de Sousa.

Da chegada dos portugueses na costa oriental do continente à ocupação

territorial até as lutas de independência, Moçambique preenche um longo processo

histórico de quatro séculos de espoliação, resistência e combate. Conforme José Luís

Cabaço (2009), os europeus vão encontrar no continente africano grandes dimensões

territoriais, riqueza mineral e populações numerosas, todos esses elementos de

produção que lhe eram escassos, mas necessários para a acumulação rápida de bens.

Moçambique foi afetado pelo domínio português desde quando Vasco da Gama

lá chegou, em 1498, e até 1975, quando teve fim a ditadura de Salazar em Portugal.

Durante o processo de tentativa de libertação, foram criadas frentes de luta anticolonial,

que em 1962 se uniram para formar a FRELIMO (Frente Liberal de Moçambique), a

qual passou a atacar os militares portugueses em 1964. (CABAÇO, 2009).

Ainda de acordo com José Luís Cabaço, após os três séculos de tráfico (XVI,

XVII e XVIII) sem oposição da Europa, o século XIX foi, desde o seu início, marcado

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pelos movimentos políticos abolicionistas contra a escravatura. Os britânicos foram os

primeiros a liderar as ações antiescravistas. As razões são diversas, mas prevalece a

de que o abolicionismo se deu por questões econômicas influenciadas por ideias

iluministas de que o trabalho escravo era mais caro do que o trabalho livre. Assim, a

partir de 1807, a Inglaterra proibiu o tráfico em suas colônias, abolindo definitivamente a

escravidão em 1833. Daí em diante, começou uma agressiva campanha pelo fim do

escravismo nos demais países, aproveitando-se, inclusive, de sua supremacia marítima

na ocasião.

A presença portuguesa em Moçambique data do século XV. Porém, é a partir do

século XIX que esse quadro passa a sofrer alterações com a efetiva ocupação. Quando

a escravidão já estava quase abolida em todo o mundo, foi realizada em 1885 a

Conferência de Berlim com o objetivo de organizar a partilha da África pelas potências

europeias. Os países europeus definiram uma divisão geográfica que atingiu as

relações sociais e familiares das populações do continente, definindo assim a

permanência efetiva no espaço africano.

Essas transformações estavam diretamente ligadas ao novo quadro político,

econômico e social vivido pela Europa, relacionado às exigências de uma maior

quantidade de matéria-prima, mão de obra barata e mercado consumidor. Dada a nova

conjuntura mundial, em que as necessidades do capitalismo industrial se

apresentavam, inicia-se na África uma corrida colonial amparada por agressiva política

imperialista e o colonialismo imposto por Portugal assume novas conformidades. De

acordo com Alexandre Valentim (2000), isso se deve a três importantes fatores:

primeiro, maior interesse das elites e das Forças Armadas pelas colônias da África;

segundo, o nacionalismo luso, despertado pelo sentimento antibritânico e reforçado

após o ultimatum inglês, o quê mobilizou variados setores da sociedade portuguesa;

terceiro, a ideologia colonialista em Portugal se expande e se fixa, tendo como base um

conteúdo racista influenciado pelo darwinismo social e concepções cristãs de salvação,

presentes no imaginário português.

É nesse cenário dominado pelo regime colonial que nasce Noémia de Sousa,

aos 20 dias do mês de setembro do ano de 1926. A participação da escritora nos

movimentos de contestação ao domínio e repressão colonial orienta e norteia a sua

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trajetória literária e atuação em movimentos revolucionários de Moçambique. Escreve

durante os anos de 1948 a 1951, em um momento marcado pelo surgimento de novas

demandas sociais, que desperta um olhar consciente e crítico dos moçambicanos

acerca dos desmandos da Metrópole portuguesa. Dessa forma, a sua produção literária

se estruturou em um espaço dominado pela coerção dos portugueses e combateu as

formas de trabalho forçado experimentadas pelo negro e as relações colonialistas

desiguais que discriminavam as populações, colocando de um lado os colonizadores e

do outro os colonizados.

A poetisa escreve num período de grande influência das tendências estético-

literárias como o Neorrealismo português e o movimento da Negritude, sendo as

responsáveis pelo aumento do desejo, já existente entre os escritores, de fazer surgir

uma literatura que enaltecesse a cultura, civilização e história moçambicana, em

detrimento das obras empenhadas em apresentar as populações negras como

totalmente destituídas de civilidade e desprovidas de um conjunto cultural próprio. É

quando a temática da negritude assume, ao longo dos anos 1940 até início dos anos

1960, foco central nas discussões promovidas por ativistas negros espalhados pelo

mundo. Na conjuntura em que os problemas atingiam as mais variadas ordens, e

sistematicamente assumiam o eixo central dos debates, os elos estabelecidos entre a

literatura e as mudanças políticas e sociais que se processaram no continente africano

naquele momento não se deixaria de levar em consideração o lugar ocupado pelo

poeta, escritor, artista negro, assim como toda manifestação produzida sob esses

anseios, tampouco deve deixar de levar em conta as manifestações civis em busca de

uma equidade entre os seres humanos.

A partir dessas novas realidades, grande parte da produção ficcional se

constituiu como um importante meio de denúncia e desconstruções, pois passou a

questionar o poder repressor e ideológico, observando aquilo que vai estar

correlacionado com momentos históricos, discursos hegemônicos e os contra-

hegemônicos que também estavam sendo verbalizados. Participante ativa dos

movimentos de libertação, Noémia de Sousa conviveu em um ambiente de

reivindicação e de contestação ao regime colonial imposto, sobretudo pelos

portugueses, ao território moçambicano e ao continente africano. Estando convencida

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da necessidade de uma literatura que não se prestasse apenas e tão somente para o

deleite e entretenimento, Noémia de Sousa apresenta em sua poesia temas dos

contextos históricos, sociais e econômicos em que se encontravam os africanos,

tornando assim seu discurso inovador e mesmo com o passar do tempo, atual.

Ainda para enfatizar a atuação da escritora nos movimentos em Moçambique,

Nelson Saúte (2001), destaca que a concepção de um projeto nacionalista foi gestada

por um grupo de intelectuais ao qual Noémia de Sousa estava integrada e também

propôs diálogos e atividades que definiram projetos de intervenção no cenário histórico

do país, através da criação de organizações com programas sociais, de saúde e

atividades culturais e desportivas, assim como associações a favor dos direitos iguais e

campanhas contra os desmandos gerenciais de Portugal.

Mulher sensível, atenta ao que ocorria em seu entorno e para além dele, a

poetisa era influenciada por outras culturas, principalmente a europeia, americana e

brasileira. Nesse sentido, sua obra, sua ideologia e ações, assim como todo contexto

moçambicano e de outras partes da África despertaram a atenção de muitos. No Brasil,

em 1959, estudiosos interessados no conhecimento e na ampliação dos debates em

torno dos fatos ocorridos no continente africano, dentro do âmbito histórico, sociológico,

antropológico, cultural e literário, fazem surgir o primeiro Centro de Estudos Afro-

Orientais da América do Sul. Criado pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) com a

proposta de desenvolver trabalhos de pesquisa sobre a África e a Ásia e promover o

intercâmbio entre estudantes e pesquisadores africanos, asiáticos e brasileiros.

Posteriormente, foram criados outros centros, como exemplo, no Rio de Janeiro, o

Centro de Estudos Afro-Asiáticos da Universidade Cândido Mendes (UCM), em 1961,

sendo esta a mais antiga instituição privada do país. O Centro de Estudos Africanos da

Universidade de São Paulo (USP), em 1965, e o Núcleo de Estudos Afro-Asiáticos,

órgão ligado à Universidade Estadual de Londrina, no Estado do Paraná, em 1985.

Após a criação desses centros de estudo, no final dos anos de 1970, as

literaturas africanas de língua portuguesa começaram a obter mais espaço nos

programas de pós-graduação no Brasil. As universidades brasileiras, com o propósito

de promover reflexões sobre assuntos que não estiveram nos ambientes acadêmicos,

têm adotado uma perspectiva interdisciplinar e intercultural na abordagem dessas

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literaturas. A observação desses novos enfoques provoca uma ruptura com os modelos

hegemônicos, de uma ciência monoculturalista, como propõe Boaventura Sousa

Santos, em “Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências”,

apontando à inauguração de um novo referencial para se pensar as alternativas contra-

hegemônicas. São estudos que se expressam às margens da cultura dominante,

favorecendo segmentos da sociedade que sempre foram excluídos em função de

critérios socioeconômicos, mas que têm grande representatividade. Boaventura Sousa

Santos, além de fazer uma crítica ao modelo hegemônico do pensamento, irá lançar as

bases de outro modelo de racionalidade, buscando legitimar formas amplas de

construção do conhecimento. Mais do que mudar as categorias, Santos sugere

mudanças na própria racionalidade, sobretudo descobrindo categorias que ajude a

pensar a vida para além do hegemônico estabelecido.

O estudo integrado e comparativo das literaturas de língua portuguesa, mediante

o exame da produção literária do Brasil, de Portugal e dos países africanos, permite

considerar a produção cultural de cada país na dinâmica de sua especificidade e de

suas relações recíprocas. As mudanças que vêm ocorrendo em todos os setores da

sociedade brasileira sugerem que os programas passem a ter no seu contexto a

preocupação com novas perspectivas de acordo com as reais necessidades impostas

pelas questões sociais que se acumularam historicamente, além de ter o

comprometimento com a construção de espaços de produções engajadas no âmbito

acadêmico.

Nesse sentido, a lei 10.639/03 que estabelece a inclusão e obrigatoriedade do

ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana na Educação Básica, mais tarde a

11.465/08, que torna obrigatório o ensino da história dos povos indígenas, substituindo

a lei anterior citada, sendo agora denominada História e Cultura Afro-Brasileira e

Indígena, contribuiu substancialmente para a mudança de paradigma de uma estrutura

vigente e deu visibilidade aos trabalhos voltados para o continente africano e heranças

africanas no Brasil e instituiu no calendário escolar o dia 20 de novembro como “Dia

Nacional da Consciência Negra”, que, para o poeta ativista e político negro Abdias do

Nascimento, simboliza a resistência dos africanos contra a escravatura, cujos

protagonistas eram os próprios negros. A comemoração desse dia tem como objetivo

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corrigir esse registro histórico e reafirmar a necessidade de continuarmos, nós, os

negros, protagonizando a luta contra o racismo que ainda impera no Brasil.

A lei também possibilitou discussões na sociedade brasileira para a alteração da

lei 9394/96 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, através do Parecer CNE/CP

003/2004, com o intuito de assegurar o direito à igualdade de condições de vida e de

cidadania, assim como garantir igual direito às histórias e culturas que formaram a

nação brasileira. Esses dispositivos legais procuram oferecer uma resposta, entre

outras áreas, mas principalmente na educação, à demanda da população

afrodescendente, no sentido de políticas de reconhecimento e valorização com vistas a

corrigir desvantagens excludentes e discriminatórias que atingem particularmente os

negros. Nesta perspectiva, a divulgação e produção de conhecimentos na área são

importantes para a formação de atitudes, posturas e criação de valores que atendam à

diversidade brasileira de descendentes de africanos, povos indígenas, europeus e

asiáticos.

Dois importantes motivos também nos impõem a relevar os estudos sobre a

África no Brasil. Para nós brasileiros, é o caráter de matriz histórica e cultural que os

africanos e os seus descendentes tiveram na formação e desenvolvimento da

sociedade brasileira, religião, culinária, trejeitos, comportamentos, marcando de forma

indelével a nossa identidade nacional. O segundo é a importância intrínseca do

continente africano na história mundial, para a origem da humanidade até quando

protagonizou, por exemplo, um dos mais importantes processos políticos do século XX,

o da descolonização.

No panorama atual das pesquisas no Brasil, é crescente o interesse pelas

produções ocorridas no continente. Entre os países africanos de língua oficial

portuguesa, Angola e Moçambique têm predominância à Cabo Verde, Guiné Bissau e

São Tomé e Príncipe na realização desses estudos. A partir da verificação feita no

banco de teses e dissertações das principais universidades brasileiras sobre a literatura

produzida em Moçambique, observa-se que a obra de Mia Couto, escritor

contemporâneo muito premiado, tem lugar de destaque, podendo ser citada também a

romancista Paulina Chiziane, em que seus romances têm despertado interesse aos

pesquisadores brasileiros. Quanto à literatura moçambicana produzida no período

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colonial, poucos são os trabalhos e os existentes tratam, na sua maioria, da produção

poética do escritor José Craveirinha, contemporâneo de Noémia de Sousa, que

também escreve sob o anseio de liberdade ou apresentam estudos comparativos.

Enquanto mulher, negra e moçambicana, Noémia de Sousa produz uma

literatura de resistência, questionadora do império português e expõe os efeitos

perversos do colonialismo no plano social e cultural. Ao se posicionar contra a condição

subalterna imposta pelo processo colonial, a escritora faz uma leitura crítica,

desconstrutora e politizada desse processo. Não aceita passivamente os valores

europeus e sua poesia antecipa, mesmo antes da libertação de Moçambique do jugo

português, a deslegitimação da autoridade, poder e significados produzidos pelos

impérios ocidentais.

Desta forma, a pesquisa analisa a poesia de Noémia Sousa em que a questão

colonial está presente, entendida aqui como uma produção textual que expõe

questionamentos aos processos de colonização no continente africano e nas Américas.

Esse questionamento fará da escritora uma intelectual, daí porque a sua poesia se

mostra uma arte engajada, como pensada por Sartre, pois propõe a ideia de uma

condição que emerge na literatura, na filosofia, na estética e na política fruto da

experiência colonial, que contesta narrativas anteriores, legitimadoras de dominação e

poder, como de raça, gênero, classe e nação.

Intencionando contribuir para a ampliação dos debates em torno dessas

literaturas, a dissertação se estrutura em três seções. A primeira parte, A trajetória

intelectual de Noémia de Sousa, aborda a biografia da escritora, compreendendo o

percurso intelectual, a trajetória de militância e resistência, o engajamento político e sua

participação ativa nos movimentos nacionalistas e de desenvolvimento do país, assim

como o seu papel desempenhado na mudança da conjuntura vigente à época, na

evocação dos moçambicanos em torno da construção de uma nação na busca de

valores que afirmavam a moçambicanidade. Nesse momento, são utilizadas discussões

e posicionamentos críticos de importantes estudiosos brasileiros e estrangeiros das

literaturas africanas de língua portuguesa.

Na segunda seção, Sangue negro: a contestação de um sistema opressor, há o

estudo da obra de Noémia de Sousa, a partir do olhar analítico dos poemas

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emblemáticos quanto às questões sociais, cuja temática esteja voltada para a militância

da poetisa, dando ênfase às produções de denúncia da colonização, da condição do

africano e da situação da África. O chamamento para despertar o sentimento de

nacionalidade em prol de Moçambique livre e soberana, a evocação não só a outros

poetas, como também aos moçambicanos que sentiam na pele o horror da

discriminação e do trabalho forçado.

A abordagem circunda em torno de conceitos chaves como o de resistência e

engajamento, noções desenvolvidas por Albert Camus e Jean Paul Sartre, que

encontraram eco nos escritos de Noémia de Sousa e estiveram presentes nas

ideologias das lutas de descolonização. Destacam-se também as reflexões de Albert

Memmi e Frantz Fanon sobre a contradição colonial estabelecida nas relações de poder

entre os dois polos, o colonizado e o colonizador, polarização que condicionava todo o

processo colonial.

Na terceira seção, A poesia no Atlântico negro, serão analisados os poemas que

estabelecem um diálogo com os movimentos culturais das Américas, culminando com a

comunhão de sua literatura com a história dos países que passaram pelo sistema

escravista. O ressoar das várias vozes da poesia encontrou adesão nos ritmos musicais

produzidos pelos negros norte-americanos. O jazz e o blues se expandem do âmbito

musical e ganham uma significação política que está ligada aos movimentos de

resistência negra e a formação de uma cultura afro-americana diretamente vinculada

aos escravizados. Subvertem-se os códigos vigentes de maneira a conseguir implantar

um sentido próprio de negar ou romper com o sistema escravocrata. Mais do que um

estilo musical, o blues, o jazz e o spiritual são representações culturais de afirmação do

negro diante da sociedade colonial como herança do continente africano. Desta forma,

a análise da cultura do Atlântico Negro, por Paul Gilroy, é particularmente valiosa, entre

outros aspectos, por dar visibilidade a uma face da história cultural encoberta pelo véu

do absolutismo étnico sobre a relação dos negros com a modernidade ocidental.

A resistência dos moçambicanos, também se lê dos africanos, assume diversas

expressões táticas que perpassa pelo período colonial e se rearticula com conceitos

pós-colonialistas já apontados nos poemas de Noémia de Sousa em direção à

descolonização dos seus territórios.

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1. A TRAJETÓRIA INTELECTUAL DE NOÉMIA DE SOUSA

Nascida a 20 de setembro de 1926 em Catembe, Carolina Noémia Abranches de

Sousa, juntamente com mais três irmãs e dois irmãos, compõe uma família que teve

como pai o senhor Antonio Paulo Abranches da Gama, funcionário público de origem

luso-afro-goesa da Ilha de Moçambique e mãe a senhora Clara Brüheim Abranches de

Sousa, cuja ascendência paterna era alemã, e materna ronga Belenguana.

Os seis primeiros anos foram vividos em Catembe e, após esse período, muda-

se para Lourenço Marques. Aprende a ler aos quatro anos com o pai, aos oito anos de

idade sofre com o falecimento deste, acontecimento marcadamente desestruturador

que impõe mudanças inclusive na condição econômica da família. Aos dezesseis anos,

já trabalhava durante o dia na firma Gulamhussem & Companhia e à noite estudava na

Escola Técnica Sá da Bandeira, onde concluiu o 4º ano comercial.

O fato de ser funcionário público emprestava ao pai, e por consequência a toda

família, uma condição socioeconômica diferenciada em relação à grande maioria da

sociedade moçambicana local, o que permitia a todos, através do patriarca, uma

convivência com pessoas de ideais progressistas, citando como exemplo Estácio Dias e

os irmãos Albasini, que juntos foram os fundadores do jornal O brado africano.

Noémia de Sousa tem sua vocação para a escrita precocemente manifestada.

“Falava, escrevia e lia correctamente o francês e o inglês, além de dominar também o

ronga [...] apreciava o melhor da arte europeia do cinema, admirava Júlio Pomar e

estava actualizada quanto aos modernos poetas, contistas e romancistas”.

(LARANJEIRA, 1995, p. 112). A escritora também vivencia, de maneira intensa e

significativa, suas leituras literárias e conhecimentos culturais advindos da Europa e do

Brasil. “Eu e meu irmão líamos aquelas coisas todas, Oliveira Martins, Eça de Queirós,

Balzac, Jorge Amado, escritores neorrealistas, Drummond que tiveram muita influência

nos interesses que eu tive depois”. (LABAN, 1998, p. 245).

Através de seu irmão Nuno Abranches, Noémia de Sousa toma conhecimento de

alguns jovens colaboradores do jornal Mocidade portuguesa, na época dirigido pelo

então poeta Virgílio de Lemos, periódico que mais tarde colaborou juntamente com

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Eugênio de Lemos, Fonseca Amaral e Rui Knopfli, todos que posteriormente se

tornariam grandes escritores da literatura moçambicana. Muito embora tenha assinado

como N. S o seu primeiro poema intitulado “Canção fraterna”, foi publicado no jornal

acima mencionado, em Moçambique, com o qual a escritora despontou no cenário

cultural moçambicano aos 22 anos de idade.

Irmão negro de voz quente o olhar magoado, diz-me: Que séculos de escravidão geraram tua voz dolente? Quem pôs o mistério e a dor em cada palavra tua? E a humilde resignação na tua triste canção? E o poço da melancolia no fundo do seu olhar? Foi a vida? o desespero? o medo?

Diz-me aqui, em segredo, irmão negro. Porque a tua canção é sofrimento e a tua voz, sentimento e magia. Há nela a nostalgia da liberdade perdida,

a morte das emoções proibidas, e saudade de tudo que foi teu e já não é.

Diz-me, irmão negro, quem a fez assim... Foi a vida? o desespero? o medo? Mas mesmo encadeado, irmão, que estranho feitiço o teu! A tua voz dolente chorou de dor e saudade, gritou de escravidão e veio murmurar à minha em alma ferida que a tua triste canção dorida não é só tua, irmão de voz de veludo e olhos de luar... Veio, de manso murmurar que a tua canção é minha. (SOUSA, 2001, p. 74-75).

Em 1948, quando escreve esse poema, Noémia de Sousa já apresenta uma

escrita que evidencia sua formação intelectual e cultural surpreendendo os leitores do

jornal com uma poesia de conteúdo impregnado de dor, mágoa e questionamentos

sobre a situação imposta ao negro. “Canção fraterna” é um poema cujo tema central

apresentado se refere à subjugação do homem negro gerada pelos anos de escravidão.

O título do poema antecipa ao leitor a intenção do eu-poético em estabelecer laços de

união em torno do ideal de solidariedade, no compartilhar do sofrimento do outro, que é,

o próprio irmão, o qual foi injustiçado e explorado pelo trabalho inicialmente escravo e

depois forçado. Os versos, em ritmo sequenciado, denunciam a escravidão e a

consequente agressão à vida. Estabelecem laços de solidariedade e vínculo com o

negro evidenciado a partir da sua grande empatia demonstrada no compartilhamento

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da dor do outro. O eu-poético se coloca diante das angústias que despertada na

escritora, leva a um compromisso político e social. A escritora tem consciência de que

está em plena batalha por uma sociedade melhor, mais justa e mais humana. Por isso,

acredita não ser possível ficar distante e neutra em pleno cenário de “guerra” como se

não sofresse as mazelas da realidade cruel.

“Canção fraterna” apresenta declarada adesão à potencialidade de emancipação

humana ao reconhecer os malefícios da colonização. O eu-poético se solidariza com a

amargura do escravizado, considera-a não um ato meramente emocional e individual e

contextualiza essa dor na perspectiva histórica da escravidão. Sem se isolar das

circunstâncias do momento, passa a ter a causa como sua, posicionando-se a favor de

um dos lados da luta contra a colonização portuguesa e toma para si a dor dos

escravizados, já que ela mesma a sente.

O poema está disposto em estrofes que estabelecem uma relação de

complementaridade entre si cuja estrutura de interpelações individuais e coletivas

aborda a situação do escravizado. No primeiro momento, o eu-poético, por meio da fala

direta, em conversa com seu compatriota, questiona o período e os causadores de tão

profunda tristeza: “Quem pôs o mistério e a dor/ em cada palavra tua?” para, em

seguida, em um segundo momento, aderir à causa do outro, do irmão que sofre. A

utilização da conjunção adversativa “mas” implica e antecipa a força da resistência, que,

por meio de sua canção comovente que revela o “mistério” de suas palavras e aponta

para a conjugação de forças contra o sistema escravocrata. O eu-poético faz questão

de mostrar que seu igual não está só na tristeza e torna evidente sua responsabilidade

quando entoa a “triste canção dorida” cantada por ele. “A tua voz dolente chorou/ de dor

e saudade,/ gritou de escravidão e veio murmurar à minha alma em ferida/ que a tua

triste canção dorida/ não é só tua, irmão de voz de veludo/ e olhos de luar.../ Veio de

manso murmurar/ que a tua canção é minha”.

No momento em que o leitor percebe o contexto e o teor subversivo do poema,

este publicado em jornal, percebe que Noémia de Sousa, juntamente com a adesão e o

seu engajamento contra a escravidão, contesta o regime dentro do regime, algo

incomum para a época, principalmente vindo de uma mulher.

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A partir dessa publicação, Noémia de Sousa passa a ter contato com outro grupo

de jovens revolucionários de Moçambique interessados em mudanças políticas e

sociais. É quando conhece João e Orlando Mendes, Ruy Guerra, Ricardo Rangel,

Cassiano Caldas, José Craveirinha, dentre outros e começa a colaborar para o jornal O

brado africano, periódico de maior repercussão em Moçambique. Ruy Guerra que saiu

de Moçambique aos 19 anos, com destino à Europa, residindo em Portugal e França,

veio para o Brasil em fins de 1958, radicando-se no país onde se tornou um grande

cineasta e letrista, estabelecendo parcerias musicais com Chico Buarque, Milton

Nascimento, Edu Lobo, entre outros. De acordo com suas declarações, Ruy Guerra diz

“que é um cineasta brasileiro que nasceu em Moçambique” (2003, ano I, nº 7).

Na vida literária e cultural da colônia também aparecem outros nomes que

empenharam ações na defesa da causa anticolonial, são eles, Henrique Haan,

Brassard, Miguel da Mata, Victor Santos, Nobre de Melo, Amália Ringler e Dolores

Lopez. Nos encontros dos jovens intelectuais do período, Noémia de Sousa partilhou

das preocupações e inquietações nos movimentos de combate ao regime colonialista

português. O contato e as ações conjuntas com os escritores foram se firmando e

acabaram transcendendo as atividades literárias. Noémia de Sousa rompe com um

ciclo da cultura patriarcal, em que à mulher, e a mulher negra na sua condição, não é

dado o direito de ser intelectual, tornando-se vanguardista num período em que a

presença feminina na esfera pública é muito tímida.

Com relação a esse fenômeno, a intelectual bell hooks (2005), escritora negra,

norte-americana, traz uma questão atual sobre os conflitos vividos e sentidos pela

mulher negra. Em seu texto Intelectuais negras, discute a importância do trabalho

intelectual, acreditando que é a partir desta opção que se entende a realidade e o

mundo em volta, sem separar da política e do cotidiano.

Segundo bell hooks, pouco se escreveu sobre intelectuais negras e quando a

maioria dos negros pensa em grandes mentes, quase sempre lhes veem a imagem de

homens e justifica essa invisibilidade afirmando que é em função do racismo, do

sexismo e da exploração de classe, todos vetores notadamente institucionalizados. O

texto acima dialoga com o ensaio O Dilema do intelectual negro, do escritor Cornel

West, que embora trate da obra de homens, serviu para promover o debate sobre os

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danos provocados pela subordinação sexista na vida intelectual norte-americana, a qual

desvaloriza o trabalho de mulheres intelectuais. A pensadora afirma que a negação às

mulheres é atuação do patriarcado capitalista com supremacia branca. À mulher negra

e colonizada caberia, então, o papel de ser duplamente colonizada em uma sociedade

feita de homens brancos para seus iguais. Com efeito, a história e a literatura são

importantes registros desse silêncio, no caso da segunda, a de criação de estereótipos,

seja de erotização ou passividade. Por isso, acredita que só através da resistência

efetiva é possível exigir o direito de afirmar uma presença intelectual, discutindo mais

amplamente a respeito dessas questões. Quando diz acreditar no trabalho intelectual

como parte necessária à luta pela libertação que descolonizou oprimidos e explorados,

o posicionamento de bell hooks, nesse aspecto, a aproxima da atuação de Noémia de

Sousa que ultrapassou fronteiras locais para lidar com uma cultura política mais ampla

contra o sistema opressor.

Nessa direção, Edward Said, em seu livro “Representações do Intelectual: as

conferências Reith de 1993”, trabalha com a ideia de que o intelectual não deve se

ausentar dos debates e discussões sobre os problemas do seu tempo. Ao reafirmar a

definição de Gramsci, de que qualquer pessoa pode ser um intelectual, Said lança seu

olhar compassivo aos mais desfavorecidos, combinando pensamento crítico e

compreensão da história. As seis conferências se concentram sobre a figura do

intelectual como porta-voz de verdades contra a dominação e em favor dos que não

têm voz. Para Said, o intelectual é um indivíduo que deve ser comprometido com o que

diz, por ser “dotado de uma vocação para representar, dar corpo e articular uma

mensagem, um ponto de vista, uma atitude, filosofia ou opinião para um público” (SAID,

2005, p. 25), o quê envolve compromisso e risco, já que se expõe e é reconhecido

publicamente. Exercer a atividade intelectual com autonomia é fundamental, pois o

intelectual “não é nenhum pacificador nem um criador de consensos, mas alguém que

empenha todo o seu ser no senso crítico, na recusa em aceitar fórmulas fáceis” (SAID,

2005, p. 35). Para Said, o intelectual teria também a missão de dar aos problemas que

interpreta uma dimensão universalizante, tal como fez Fanon sobre a presença da

França na Argélia, e ser capaz de “relacionar esses horrores a aflições semelhantes de

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outros povos” (SAID, 2005, p. 53). Entre os papéis do intelectual está o de alguém que

existe para “subverter o poder da autoridade” (SAID, 2005, p. 94).

Imbuída do desejo de romper o cerco imposto pelo sistema colonial, a poetisa

participa da criação de vários projetos, a exemplo o da Associação Africana, juntamente

com outros escritores da militância que defendiam valores diferentes daqueles

propagados pelo colonialismo. Na tese de doutoramento, O Movimento Associativo

Africano em Moçambique: tradição e luta (1926-1962), a historiadora portuguesa Olga

Maria Iglésias Neves pesquisou o movimento associativo em Moçambique e o

significado do seu papel na transformação de um protocolonialismo para a consciência

nacionalista interventiva. Como assinala a própria pesquisadora, ao se interessar em

conhecer e analisar historicamente a ideia de independência no que se revelava de

dinâmico e de transformação face ao regime colonial e para avaliar como se operou a

mudança, em termos de poder político, a historiadora procurou estabelecer uma ponte

com o passado, levantando hipóteses à anterioridade dos movimentos, através de

poetas de grito silenciado da geração de cinquenta, José Craveirinha e Noémia de

Sousa. Conforme Olga Maria Iglésias (2008) os movimentos associativos tiveram

grande importância, dentre outros fatores, também por representar as primeiras

iniciativas da sociedade civil no início do século XX a se organizar contra o sistema

colonial, dando continuidade aos movimentos independentistas do início da década de

1960. Seu estudo estabelece um espaço temporal de 1926 a 1962 em que a causa

africana se transformou em motivo nacional, contextualizando Moçambique no quadro

do período colonial com análise das estruturas econômicas, sociais e políticas.

O nacionalismo moçambicano, como praticamente todo o nacionalismo africano,

foi fruto direto do colonialismo europeu, fazendo surgir o anseio de uma unidade

nacional moçambicana que partia da experiência comum do sofrimento gerado pela

crescente exploração que Portugal implementou em Moçambique, impedindo o

desenvolvimento de organizações anticolonialistas. O pensamento colonial português

era impregnado pelo ideal imperialista, procurando sempre defender os direitos de

soberania sobre os territórios africanos, atitude que visava a construção de um império

econômico e moralmente forte. A relação que se estabeleceu nessa conjuntura foi de

uma dominação imposta por uma minoria exterior àqueles territórios, numa lógica de

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superioridade que se assumia como de civilização dominante. Para Albert Memmi é

quando o colonizador descobre a existência do colonizado e ao mesmo tempo o próprio

privilégio.

Trata-se, ademais, sob certo aspecto, de uma dupla ilegitimidade. Estrangeiro, chegado a um país pelos acasos da história, ele conseguiu não somente criar um espaço para si como também tomar o do habitante, outorgar-se espantosos privilégios em detrimento de quem de direito. (MEMMI, 2007, p. 42).

A luta dos moçambicanos contra a dominação e exploração colonial nunca

esteve apagada. No entanto, ela foi adquirindo formas e dimensões diversas de acordo

com as circunstâncias da exploração colonial. Em discurso proferido na Faculdade da

Filosofia (FAF), da Universidade Eduardo Mondlane, em 31 de Agosto de 2010, no 1˚

Ciclo de Palestras sobre o tema “Independência, Educação e Desenvolvimento: que

perspectivas filosóficas?”, Joaquim Alberto Chissano, antigo chefe de Estado, que após

a morte de Samora Machel, em 1986, o substituiu na presidência da República de

Moçambique, expôs que a consciência libertária dos moçambicanos se desenvolveu em

vários níveis, inclusive ao nível das lutas para a conquista de uns povos pelos outros da

mesma área geográfica e o outro nível, segundo Joaquim Chissano, foi o da

consciência libertária dos moçambicanos desde aos extremos Sul e Norte contra o

colonialismo português despertado por um sofrimento igual de discriminação e maus

tratos. Sofriam diretamente as consequências da exclusão na base da raça em que a

maioria da população moçambicana nem sequer podia pensar em adquirir a categoria

jurídica de cidadão.

Quem contribuiu para criar esta consciência foi a natureza do próprio colonialismo. A sua brutalidade na opressão e repressão em resposta ao aumento da resistência à ocupação colonial mostrou àqueles povos reinados ou grupos que outrora se digladiaram a necessidade de estabelecerem alianças para combater o inimigo comum e nascia assim uma nova forma de consciência libertária e de formação de uma nova nação (CHISSANO, 2010).

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Joaquim Chissano acrescentou que o colonialismo viu-se na contingência de

instruir alguns moçambicanos para servirem os interesses da colonização e utilizava

também a religião para tentar evitar o acesso rápido do conhecimento através do

processo de alienação. Conforme Zamparoni (2007), essa foi outra estratégia

encontrada pelas autoridades coloniais portuguesas para pôr em prática o seu projeto

de civilização às populações indígenas em Moçambique. A instalação das missões

religiosas no território tinha o papel de elevar o indígena através do ensino das práticas,

costumes e valores europeus como o cristianismo, a monogamia, domesticidade e

ensino secular para assimilar. O colonialismo português em Moçambique se apresentou

em algum momento como uma cruzada evangelizadora. Devido ao fato da colônia já ter

uma influência do islamismo que data antes do século XV, através dos comerciantes

swahili, os poucos que tiveram educação compreenderam e analisaram o

comportamento dos colonizadores e acompanhavam as poucas informações que

chegavam ao país das lutas de outros povos colonizados que denunciavam a

desigualdade, a descriminação racial e exclusão social. O movimento do Pan-

africanismo, o Instituto Negrófilo, o Centro Associativo dos Negros da Colônia de

Moçambique e os movimentos nacionalistas funcionaram como impulsionadores da

formação de uma consciência libertária, que em diálogo com os países vizinhos ganhou

força.

Porém, a contribuição para a formação da consciência libertária veio para Moçambique também através de contactos directos de moçambicanos com os movimentos nacionalistas dos países vizinhos, tais como as Rodésias do Sul e do Norte e Niassalandia e Tanganyika (CHISSANO, 2010).

Ao longo da luta de libertação nacional, sobretudo ao longo da luta armada, de

acordo com Joaquim Chissano, o continente africano teve um papel fundamental no

desenvolvimento da consciência de libertação dos moçambicanos, onde os

compatriotas que viviam em países vizinhos, como África do Sul, Rodésia, Tanzânia,

Zâmbia, entre outros, inspiraram-se e foram motivados pelas experiências das lutas

decorridas. A decisão política de vários países recém libertados e da Organização da

Unidade Africana, em conceder apoio político, diplomático, militar e humanitário aos

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povos em luta pela independência teve um impacto preponderante sobre a população

moçambicana. A este propósito, há que se referir que a maioria dos países africanos

obteve a independência no período entre 1955 a 1965. Em 1955, a África Subsaariana

praticamente não possuía territórios descolonizados. De fato, o primeiro grupo de

países africanos que alcançou a Independência o conseguiu na década de 50 do século

XX. A Etiópia alcançou em 1941. A independência total do Sudão foi em 1956. A

Tunísia e Marrocos em 1956. Gana em 1960 e a Guiné-Conacri em 1958 (MARTINEZ,

1992, p. 10). O sentimento de unidade nacionalista africana conduziu as nações que

tinham obtido as soberanias sobre os seus territórios a apoiar as demais lutas pela

libertação. A solidariedade ajudou os moçambicanos a enquadrar a sua luta no quadro

mais global dos movimentos de resistência da África. Como aponta Olga Maria Iglésias:

foi assim que entre as associações de Moçambique, o Grêmio Africano de Lourenço Marques, o Conselho Nacional Africano de Moçambique, o Instituto Negrófilo, mais tarde o Centro Associativo dos Negros, transformando-se o Grêmio igualmente em Associação Africana da Moçambique encontramos jornalistas e poetas, defendendo valores que podiam ser considerados como os primeiros indícios de nacionalismo, paralelamente no sentido de africanidade e de moçambicanidade (IGLÉSIAS, 2008, p.16).

Criaram-se também em Moçambique associações legais de caráter cultural e

recreativo que procuravam divulgar os valores africanos em geral e moçambicanos em

particular, além de fazer valer o modo de vida dos moçambicanos, veiculando através

da música, da literatura, das artes plásticas e da imprensa valores culturais,

denunciando o racismo e as humilhações sofridas pelos moçambicanos. A difusão de

artigos e poemas nos jornais possibilitou a transmissão de mensagens de contestação

e de afirmação nacionalista. É quando se destacam na música, nas obras plásticas, na

poesia, nos textos críticos jornalísticos e nas reivindicações, nomes como o de João

Dias, Marcelino dos Santos, Luís Bernardo Honwana, José Craveirinha, Noémia de

Sousa, Bertina Lopes, Malangatana Ngwenya e Alberto Chissano, entre outros.

José Craveirinha, considerado o maior poeta moçambicano, em entrevista

concedida a Omar Thomaz e Rita Chaves, ressalta a importância de Noémia de Sousa

no fomento aos eventos culturais e políticos de Moçambique.

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A Noémia passou grande parte da infância na Catembe, que fica do outro lado da baía. Mas depois veio para Lourenço Marques, onde estudou. E vivia aqui perto. A sua casa tinha um bom quintal, ainda está lá, com árvores... Era lá que nos reuníamos muitas vezes, à noite. Nossa amizade se consolidou no Brado Africano, onde fiquei como permanente na Redação. Ela trabalhava em um escritório, mas colaborava com o jornal. Ficamos muito amigos, compartilhávamos preocupações e sonhos. Até escrevemos juntos um manifesto. Outras pessoas estavam sempre envolvidas nesses encontros: o Rui Nogar, o Ricardo Rangel, o Fonseca Amaral, que depois foi para Portugal e de lá enviava colaboração para o Brado Africano. Na casa da Noémia, fazíamos as nossas reuniões. O Fonseca Amaral, que era uma pessoa muito rara, proporcionou um encontro especial, entre os chamados poetas do cimento e os poetas do subúrbio. Foi nessa reunião que o Rui Knopfli conheceu o Daíco. Lá estiveram, além do Knopfli, o Rui Guedes e o Rui Guerra, que hoje vive no Brasil (CRAVEIRINHA APUD CHAVES, 2005, p. 237-238).

O papel da intelectualidade moçambicana foi preponderante para difundir os

ideais de transformação e liberdade. Consciente da necessidade de se opor à

submissão imposta pelos colonizadores, a postura dos intelectuais desencadeou o

enfrentamento ao colonialismo e fez da expressão literária um meio profícuo para

contrapor a situação imposta na época. Segundo José Craveirinha, “a poesia foi

sempre para mim um instrumento, uma ferramenta de reivindicação. Os meus poemas

têm sempre uma dimensão social, sociopolítica. Mesmo quando falo de coisas como

flores. É também um refúgio para minhas dores pessoais” (CRAVEIRINHA apud

CHAVES, 2005, p. 240).

Na associação era discutida a importância do campo cultural como componente

anticolonialista, aliado ao surgimento de um jornalismo ativo e polêmico, pautado em

críticas severas ao modo de repressão europeia. Desempenhando ações importantes

na presidência da associação e no cenário político de Moçambique, José Craveirinha,

ainda em entrevista a Rita Chaves, define a relevância da instituição, principalmente por

considerar a sua proposta nativista.

Era uma fase de grande inquietação. Estávamos ligados pela vontade de mudar. Tínhamos consciência da injustiça que dividia essa sociedade. As atividades culturais promovidas pela Associação Africana.

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Ela foi fundada por negros e por mestiços. Era frequentada pelos Albasinis, pelo Pott, por toda essa gente que tinha um nível mais elevado de instrução. A associação era um lugar onde se discutia o que era ser africano, o que era ser moçambicano. (CRAVEIRINHA apud CHAVES, 2005, p. 238).

A Associação Africana teve importância por conta das suas atuações, mas

também pelo prestígio dos seus frequentadores, contando com os Albasinis e o Dr.

Karel Pott, primeiro advogado negro de Moçambique. Os irmãos João e José Albasini

foram os responsáveis pela implantação de um jornalismo dirigido à população local de

Moçambique. Protagonizaram a história da imprensa moçambicana, voltaram-se para

as questões locais, trataram de temas referentes às condições do trabalhador, das

situações de maus tratos, injustiças e discriminações de variada ordem. Exerceu-se

uma ação através de jornais e outras publicações como é o caso das pinturas,

denunciando os abusos, arbitrariedades, atos injustos e imorais praticados por agentes

da autoridade colonial. Procuravam denunciar os abusos cometidos pelo colonialismo.

João Albasini, em especial, é considerado o primeiro jornalista de Moçambique, criou os

jornais O africano, de 1908, e O brado africano, de 1918, contribuindo para a

divulgação de quase todos os escritores da literatura moçambicana, dentre eles Noémia

de Sousa. O jornal era publicado em português e em ronga, língua banta falada em

Moçambique, com o objetivo de atingir um maior número de leitores. Jornalismo e as

literaturas africanas nascem juntos. É da dinâmica entre ambos que surge em

Moçambique uma obra pioneira na área da prosa de ficção: O livro da dor, de 1925,

composto por crônicas e contos do jornalista João Albasini. Em 1943 aparecem os

primeiros textos poéticos, os Sonetos, de Rui de Noronha, e numa produção coletiva da

Casa dos Estudantes do Império nasce a coletânea Poesia em Moçambique, datada de

1951. Conforme Alfredo Margarido, o jornalismo feito, em específico, nas publicações

desse impresso contribuiu para a divulgação das ideias que se opunham ao regime

imposto por Portugal:

os irmãos Albasini e Estácio Dias são os arautos de uma série de reivindicações populares, lançando a base de uma consciência nacional de que, em Moçambique, o Brado Africano passará a ser expoente mais classificado. (MARGARIDO, 1980, p. 472).

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No final da década de 1940, Moçambique assiste à afirmação de um anseio

literário que traçou o panorama da poesia e da prosa. Nessa fase, segundo Ana

Mafalda Leite (2003), a poesia se veste de pioneirismo e expressividade, denunciando

a situação dos negros e mestiços residentes na colônia, constituindo-se assim na

primeira chamada de atenção para a existência dos problemas resultantes da

dominação portuguesa.

Durante o período colonial, o gênero literário mais praticado foi a poesia em Moçambique. Muitas razões podem ser evocadas para tentar explicar esse facto. Entre elas, o facto de a elite intelectual ser pouco numerosa, por via do ensino ter se desenvolvido tardiamente na então colônia. Outra razão prende-se ao facto de a poesia ser uma forma mais insidiosa de iludir a censura, e de mais fácil publicação, em jornais, revistas ou antologias. (LEITE, 2003 p. 89).

Conforme Ana Mafalda Leite (2003), uma parte significativa da produção literária

moçambicana no período colonial foi realizada por escritores que centram a sua

temática de abordagem nas questões inerentes ao trabalho forçado, à divisão social

colonizado/colonizador e às condições estruturais da colônia. São obras produzidas

principalmente levando em conta o fator da territorialidade e, dessa maneira, tentam

forjar a consciência do que é ser moçambicano no primeiro âmbito circunscrito à África

e, posteriormente, no contexto internacional.

Em recusa à produção inicialmente imposta pela metrópole portuguesa, os

intelectuais anticolonialistas de certa forma também impuseram o engajamento como

mote para a escrita, defendendo a premissa de que a literatura deveria empenhar o

papel da resistência, simbolizando uma ruptura com a literatura colonial de cunho

notadamente preconceituoso sobre o africano. Literatura que exaltava o homem

europeu, tido como portador de uma cultura superior e aproveitava da temática do

negro para elaborar uma série de estereótipos eficazes e perigosos. A produção

literária que rompe com o modelo europeu coloca o africano em destaque, tornando-o

sujeito e não mais objeto ou somente força de trabalho, como até então acontecia. Na

ficção, o negro passa a protagonizar as linhas das histórias narradas na prosa e na

poesia e se torna a temática dos versos. Manuel Ferreira estabelece as diferenças entre

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as literaturas e reconhece que o universo cultural dos homens da terra passa a ser

valorizado.

Os cuidados e os esmeros do sujeito enunciador são os de organicamente moldar o enunciado com os ingredientes significativos e representativos da especificidade africana. Se colocados lado a lado dois textos, um de literatura colonial e outro de literatura africana, é como se procedêssemos a uma justaposição de brusco contraste. (FERREIRA, 1987, p. 13).

Diante disso, pode-se dizer que o universo literário e cultural dos naturais da

terra, nas literaturas africanas, é valorizado e explorado significativamente, pois,

quando os autores negam a legitimidade do colonialismo no discurso literário, fazem da

revelação e valorização do mundo africano a raiz primordial tanto na ficção quanto na

poesia, que, inicialmente, foram registradas em jornais ou folhetins.

O texto literário passa então a desempenhar uma função social e histórica à

medida que se constitui em um importante meio de denúncia, de registros e diálogos

em direção à valorização da África e do homem negro. A partir de desconstruções dos

estereótipos negativos, utilizados para excluir e descaracterizar os africanos, são

inseridas nos textos e contextos das novas produções ficcionais concepções e valores

próprios das culturas africanas. Os processos de conscientização de tais marcas

africanas abrem o caminho para o resgate de todo um universo cultural que sobreviveu,

durante séculos, oprimido e relegado a segundo plano.

Através de uma atitude pioneira de contestação, Noémia de Sousa possui em

suas poesias a presença constante das raízes africanas, abrindo os caminhos para a

exaltação da Mãe-África, para a valorização dos elementos culturais moçambicanos,

transformando marcadamente a percepção da literatura que se produzia em

Moçambique. Ao ser redescoberto pelos próprios habitantes e pertencentes da terra, o

continente africano é redimensionado na sua complexidade territorial e diversidade

étnica, em detrimento das ideias limitadoras e preconceituosas, antes apresentadas

apenas como espaço mítico e homogêneo.

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1.1. REFERÊNCIAS LITERÁRIAS

Noémia de Sousa, após os primeiros passos na publicação de poemas nos

jornais, assim como outros escritores, teve grande influência dos movimentos literários

advindos da Europa e da América. A sua participação nos movimentos mobilizadores

da juventude moçambicana em prol das discussões sobre o anticolonialismo lhe atribui

maior consciência crítica na defesa de uma postura empenhada do artista frente aos

problemas sociais de seu tempo.

Noémia de Sousa aderiu a tendências literárias que reagiam contra as situações

políticas e socioeconômicas, a exemplo do modernismo brasileiro e português.

Tendências para a literatura de crítica social, tanto na poesia quanto na prosa,

intensificadas pela perspectiva de denúncia social e antifascista do Neorrealismo

português. Para Luís Augusto Costa Dias, os escritos neorrealistas passaram a assumir

uma posição mais crítica diante dos problemas sociais presentes na época, pois

buscavam a conscientização do leitor para a realidade social e a miséria moral. Esses

movimentos literários eram os que melhor atendiam aos anseios das vertentes artísticas

que buscavam a valorização estética a partir da concepção de uma nova “arte social e

humanista” (DIAS, 1996, p.59).

É uma literatura de tensão dialética, isto é, um instrumento de transformação,

sabendo que o texto literário é um campo plural de significados, busca-se aqui definir a

forma de interpretar tais obras, que prima pelo conhecimento dialético, o qual,

sinteticamente, pode ser colocado como a forma de pensar as contradições da

realidade, ou seja, o modo de compreender essa realidade, como sendo uma

realização que está em permanente mudança. Ideia que avalia o caráter instável,

dinâmico e contraditório da condição humana, pois, o homem não poderia conhecer a

natureza, já que não foi feita por ele, mas pode conhecer sua própria história, por tê-la

criado. Por isso, faz-se necessário explanar desde o início que o ponto de vista dessa

investigação literária tem como “chão” a história, pois parte de pressupostos que

enxergam a obra como um trabalho individual e a literatura como coletiva, a qual se

origina de um ser, que é antes de tudo social, no caso o escritor. No momento em que a

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literatura se relaciona com a sociedade, nascendo dela, essa entra em intersecção com

a história, havendo, entre as duas, diferenças, pelas quais cada uma possui estatuto

próprio. Ambas têm a ver com o real, remetem ao real, como afirma o teórico João

Hernesto Weber, mas apenas a primeira citada é capaz de captar a realidade de forma

totalizante, incluindo suas fissuras, seu cotidiano e suas memórias.

Literatura e história, história e literatura: numa profissão de fé, diria alguém ainda diviso as suas fronteiras. Discursos diferentes sobre o real, mediados pela linguagem, eles ainda carregam a esperança, pelo menos de compreensão desse mundo real. Compreensão que pode ao menos a alguns a transformação desse mesmo real (WEBER, 2009, p. 19).

A proximidade com a metrópole portuguesa com relação à movimentação de

intelectuais que iam e vinham de Portugal, possibilitaram a circulação de livros que

apresentavam as tendências estético-literárias da época. Francisco Noa expressa a

preponderância desses contatos para a diversidade de referências bibliográficas iniciais

dos escritores moçambicanos.

A presença, na então colônia de Moçambique, de intelectuais aí radicados, quando não mesmo radicados, sobretudo oriundos da esquerda portuguesa funcionaria como um factor marcante para despertar nos jovens de então, através dos livros que chegavam de navio da Europa para o Brasil, um interesse genuíno por outras culturas e por outras visões do mundo. (NOA, 2011, p. 407).

A literatura neorrealista teve no Brasil e em Portugal motivações semelhantes,

resgatando os valores do realismo e naturalismo do fim do século XIX com forte

influência do modernismo, marxismo e da psicanálise freudiana. As semelhanças

ocorrem porque tanto em Portugal com o salazarismo e no Brasil com o Estado Novo,

de Getúlio Vargas, os governos eram ditatoriais, consequentemente proibitivos.

É interessante frisar que a geração de Noémia de Sousa foi uma geração que leu

os mesmos livros, isto é, os homens e mulheres dessa geração formaram-se em torno

dos mesmos problemas, das mesmas preocupações. Todos eles, já em 1948 a 1949,

seguiam, atentamente, o triunfo da revolução chinesa, os sucessos da URSS, seguiam

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o que passava na América do Norte, lendo os livros sobre os negros da América.

Estavam também atentos ao que se passava no Brasil e liam romances de Jorge

Amado, decoravam e recitavam os mesmos poemas (ANDRADE, 1973, p. 14).

O Neorrealismo foi predominante para a juventude moçambicana nos primeiros

momentos de mobilização, por eleger como temática fundamental na literatura assuntos

relacionados com a luta de classes, questões socioeconômicas e suas implicações na e

para a sociedade. O movimento baseou-se na interpretação do materialismo dialético

em que para os marxistas, a cultura, a arte, a religião, o direito, os costumes e o próprio

conceito de natureza humana não passam de superestruturas das infraestruturas

econômicas. Como as realidades econômicas sofrem transformações impostas pela

luta de classes, deduz-se que as superestruturas delas derivadas tendem a se

transformar também. Depreende-se daí que a cultura, a arte, as crenças religiosas, as

leis e tudo o que o homem pensa de si não são realidades imutáveis, mas realidades

em contínuo evoluir.

Diante desse quadro, a literatura procura apreender o homem na sua totalidade,

com implicações não biológicas e psicológicas apenas, mas também socioeconômicas.

Neste caso, como as realidades se modificam pela dinâmica social, a “arte pela arte”

não mais interessará e nesse momento criar-se-á uma literatura cujo tema será a luta a

luta entre exploradores e explorados.

O Neorrealismo em Portugal não se esgota na sua componente literária, estando

igualmente associado às artes plásticas e à história da resistência antifascista. O seu

comprometimento com a transformação humana e a permanente articulação entre o

individual e o coletivo são alguns dos traços que caracterizam essa corrente. O crítico

literário português Álvaro Salema ao se referir ao movimento Neorrealista em Portugal

salienta à época que “a cultura nova afirma a necessidade duma disciplina realista, que

conduza a inteligência da inútil abstração lógica para o terreno do socialmente

concreto”. (SALEMA, 1935, p. 4).

Júlio Pomar, um dos escritores que fez parte das leituras basilares de Noémia de

Sousa, defendia uma postura do artista frente aos problemas sociais de seu tempo.

Além de pintar, retratava camponeses, pescadores e trabalhadores, escreveu artigos

em que defendia sua posição ideológica do Neorrealismo na intenção de aproximar a

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arte do público, pois na sua concepção esta poderia promover uma transformação

social.

Os escritores brasileiros modernistas despertaram grande interesse dos

moçambicanos pelo destaque dado nas obras literárias a uma crítica pautada na

realidade brasileira que, naquele momento, passava por grandes crises econômicas e

também ao enfoque nas preocupações político-sociais. O modernismo, ao tratar da

crise cafeeira, da seca, da migração e da falta de remuneração dos trabalhadores,

aproximava os problemas do Brasil, ex-colônia de Portugal, dos de Moçambique, ainda

colônia, além de nutrir o desejo de independência já conquistada pelo Brasil.

Dentre os escritores brasileiros lidos, há um espaço especial reservado a Jorge

Amado, Graciliano Ramos e José Lins do Rego, conforme depoimentos de muitos

escritores. A fase dos anos de 1930 ficou marcada pela quebra das amarras formais do

academicismo e passou a chamar a atenção das regiões mais carentes do Brasil. É

tanto que as poesias de Noémia de Sousa manifestam as ressonâncias do Modernismo

e do Neorrealismo.

Em especial, o modernismo brasileiro mobilizou os escritores moçambicanos,

assim como os dos outros países africanos de língua oficial portuguesa. Um maior

compromisso dos artistas com a renovação estética, a criação de uma forma de

linguagem que rompe com o tradicional, transformando a forma como até então se

escrevia, com a utilização do verso livre, a fala coloquial e a valorização do cotidiano

foram elementos que motivaram a realização de uma escrita literária voltada para

situação vivida em Moçambique.

As tendências estéticas absorvidas pelos escritores moçambicanos eram

conciliadas com as preocupações locais e os acontecimentos no mundo moderno, pois

não se poderia perder de vista a contestação do sistema colonial que cerceava as

possibilidades de desenvolvimento da liberdade de expressão e difusão da cultura

moçambicana. Devido à conjuntura nacional de intensa repressão política nas ainda

então colônias portuguesas, foi fora dos espaços colonizados, que se edificou o

movimento de libertação de Moçambique. O movimento de entrada e saída de

intelectuais e estudiosos possibilitou um olhar externo perante as necessidades de

mudança em Moçambique.

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1.2. ATIVISMO E RESISTÊNCIA

Em meados dos anos de 1940, até o início dos anos de 1950, foi marcante a

efervescência cultural e política em Moçambique. Escritores, intelectuais e artistas

passaram a integrar organizações que desenvolviam ações libertárias contra o

colonialismo português. Reuniões, discussões, conferências e estratégias eram

comuns, tanto quanto a poesia, a pintura e outras formas de arte.

Desde 1949 Noémia de Sousa já denuncia nos periódicos moçambicanos fatos

relacionados à discriminação, segregação e corrupção. Na ocasião em que o estudante

da Universidade de Witwatersrand, Eduardo Chavimbo Mondlane, futuro presidente da

Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), é expulso da África do Sul pelo regime

do apartheid, Noémia de Sousa acusa a ação nas páginas do jornal O brado africano.

Integrante dos movimentos associativos criados em Moçambique, Noémia de

Sousa participa do grupo Jovens Democratas Moçambicanos (MJDM) cujo objetivo era

fazer uma intensa propaganda contra o Estado Novo, através da distribuição de

anúncios políticos clandestinos. Considerado um organismo pró-comunista pela Polícia

Internacional de Defesa do Estado (PIDE), Noémia de Sousa atuou expressivamente no

grupo, ficando responsável pela impressão de panfletos que continham propagandas

políticas contra o governo. Por suas atuações contra o Estado, Noémia de Sousa é

acusada de pertencer ao Movimento dos Jovens Democratas de Moçambique e de ter

ligações com o Partido Comunista Português (PCP), sendo, então, presa pela PIDE.

A liderança desse movimento esteve a cargo de Sobral de Campos (antigo

consultor jurídico da Confederação Geral de Trabalho e outros organismos operários

portugueses radicados em Moçambique), Sofia Pomba Guerra e Raposo Beirão

(Advogado). João Mendes, Ricardo Rangel (fotografo) e Noémia de Sousa (poetisa),

faziam também parte do movimento. O MJDM pretendia combater as grandes injustiças

sociais de que estavam sendo vítimas os trabalhadores e promover a unidade de todos

os africanos (MATEUS; MATEUS, 2010).

Noémia de Sousa foi presa e segundo os registros policiais de condenação, teria

engolido um bilhete que lhe enviaram e, por não ter obedecido a ordens, foi detida. Ao

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ser solta, a escritora continuou realizando atividades clandestinas, participando de

reuniões, que discutiam os problemas do país e planejando a formação de

organizações para combater a opressão portuguesa, e distribuições de propagandas,

reforçando ainda mais a sua atuação e posicionamentos. Sob a opressão do regime

salazarista, surgira uma série de movimentos democráticos, cujos debates e ações

tiveram a calorosa participação dos estudantes. O marxismo, adotado por importantes

países no contexto político internacional, também estava proliferando na sociedade

portuguesa. Alguns estudantes possuíam vínculos estreitos com o Partido Comunista

Português e disseminava seus ideais libertários.

Criada em 1945, no governo de Salazar, com a finalidade de defender o regime

contra as atividades e organizações revolucionárias, a Polícia Internacional de Defesa

do Estado, PIDE, surgiu com a modernização do aparelho secreto policial a fim de

promover investigações e prisões em Portugal e nas colônias portuguesas. A vigilância

ocorria de maneira arbitrária desde a violação de correspondência e interceptação de

ligações telefônicas à condenação de ativistas sem culpa formalizada. A PIDE foi

extinta juntamente com o governo de Salazar em 1974.

A circulação entre Moçambique, Angola e Portugal possibilitou tanto a Noémia de

Sousa quanto aos outros participantes do movimento a formulação de ideias

subversivas, despertadas por uma consciência crítica sobre a ditadura de Salazar e o

sistema colonial, mas também pela vontade de descobrir e valorizar as culturas dos

povos colonizados. Nesse momento, a influência do Partido Comunista era muito forte

porque estabelecia como ideologia política o "comunismo puro" que, na concepção

marxista, defende uma sociedade sem classes, sem Estado e livre de opressões, em

que as decisões sobre a produção e quais as políticas devem prosseguir são tomadas

democraticamente, permitindo que cada membro da sociedade possa participar do

processo decisório. Além de pressupor a eliminação de toda e qualquer desigualdade,

pelo menos no que se refere ao bem-estar material, também promova a extinção do

antagonismo entre grupos e classes sociais, dando ênfase aos aspectos distributivistas

e a igualdade social, isto é, a abolição das classes como o objetivo maior.

A reivindicação se afirmava pelo reconhecimento das diferenças e por valores

próprios, já que havia se ampliado fortemente a demarcação de dois polos distintos, a

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do colonizado e a do colonizador. A recusa ao colonizador conduzia a uma práxis

literária que registrava as modificações do contexto e o desejo de tornar públicas as

formas desse enfrentamento, tornando perceptível a verificação do processo de

estabelecimento dos traços formadores de uma literatura de combate. Albert Memmi

(2007, p. 99) destaca que a emergência de uma literatura dos colonizados ocorre com a

tomada de consciência dos escritores africanos, não de uma forma isolada, mas de

todo um grupo humano como sinal de maturidade da leitura que esses autores têm do

país, da região e do transcorrer da sua história.

Assim como ocorreu com muitos estudantes, o governo fascista de Salazar

permitiu que uma pequena quantidade de jovens africanos, oriundos das colônias

portuguesas, adentrasse as portas das instituições de nível superior, trazendo consigo

malas, saudades de casa e um medo do modo como aquele mundo novo iria receber

aqueles homens e mulheres negros e negras. Havia estudantes de diversas

nacionalidades: moçambicanos, angolanos, guineenses, entre outros.

Quando a empreitada colonialista abre espaço para um sistema educacional

mais efetivo em Moçambique, no início do século XX, dá-se então o surgimento de um

público leitor e também de um maior número de intelectuais engajados com a causa

moçambicana. É notória a necessidade de veículos de comunicação que atuassem

paralelamente às atividades dos intelectuais, fomentando e dando suporte às criações

literárias e culturais.

Nesse momento inicia-se um diálogo com autores e críticos literários dos países africanos de língua portuguesa (...) entre os listados encontramos os nomes de António Jacinto, poeta e prosador de Angola, Francisco José Tenreiro, poeta de São Tomé e Príncipe, Noêmia de Sousa e Orlando Mendes, autores moçambicanos, e Viriato da Cruz, de Angola (MACÊDO, 2002, p.47).

A imprensa prestou consideráveis serviços não apenas para a literatura, mas

para as comunicações em geral, diretamente vinculadas à realidade do entorno em que

circulava o território de Moçambique. Muitas publicações tiveram vida breve. Outras,

contudo, sobreviveram a todas as dificuldades e circularam, ao longo dos anos, mesmo

após perseguições políticas e atentados, pois exerciam constantes críticas às

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companhias de administração. A imprensa moçambicana se assume, não só como

instrumento de pressão, mas também, como um mecanismo regulador do mau

gerenciamento da colônia com denúncias, registros e notícias sobre as autoridades

coloniais.

1.3. IMPRENSA E AS ANTOLOGIAS

Em pleno período de contestação do regime colonial português, escritores e

poetas se manifestavam através da arte contra o colonialismo. Jornais, panfletos,

revistas e antologias foram os principais meios impressos utilizados para a divulgação

dos manifestos, textos e poemas. Surgido como suporte inicial das publicações, o jornal

teve um papel preponderante na divulgação de ideias contrárias ao colonialismo. A

respeito dos escritos, textos e poemas veiculados, a pesquisadora Rejane Vecchia tece

considerações acerca da sua importância da imprensa para a formação da literatura

moçambicana.

É possível afirmar que em Angola e Moçambique, por exemplo, em fins do século XIX registraram-se, na imprensa que então se formava, as primeiras intenções do que posteriormente se confirmaria como uma literatura de resistência, conforme esses periódicos locais começam a publicar artigos, crônicas, poemas e contos cujos conteúdos manifestam uma perspectiva crítica contra uma estrutura social e política que funcionava em defesa dos direitos da metrópole portuguesa. (SILVA, 2001, p. 6)

Da mesma forma como ocorreu em Angola e Cabo Verde, a imprensa

moçambicana é instalada em 1854, quando nasce o Boletim Oficial do Governo da

Província. Porém, as publicações tinham um caráter de cunho informativo sobre as

ações governamentais e estavam ligadas à atuação de Portugal na Província de

Moçambique, pois era dirigido pelos colonos. As notícias e informações culturais

correspondiam aos interesses da elite portuguesa.

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Com a necessidade de publicações que não reproduzissem apenas os anseios

da metrópole portuguesa, no final do século XIX e início do XX começam a circular os

primeiros jornais independentes, conforme Maria Aparecida Santilli.

Em 1869 surge o primeiro periódico moçambicano, O Progresso, e despontam páginas ou seções literárias e de artes na imprensa. Precursores de periodicidade semanal foram O Africano (1877), O Vigilante (1882), Clamor Africano (1892). (SANTILLI, 1985, p. 11).

Por volta de 1908, com a circulação do periódico diário O africano, de 1908 a

1920, novos espaços da imprensa vão se tornando cada vez mais frequentes em

Moçambique e terão continuidade com o surgimento, em 1918, de um segundo

periódico intitulado O brado africano. Com uma linha editorial de maior abrangência no

campo social e cultural, entra em circulação em 1941 o jornal O itinerário, contendo

inclusive pesquisas acerca das realidades moçambicanas.

Em 1952 tem-se o surgimento do Msaho, apesar de ter sido publicado apenas

uma edição, foi importante na luta anticolonialista em Moçambique. Tinha como

proposta criar condições para a produção e promoção da literatura moçambicana,

segundo as perspectivas da moçambicanidade, levando-se em consideração o

sentimento de pertença. Simultaneamente aos diálogos propostos com outros

movimentos literários, há o interesse pela tradição, com destaque para a importância de

ouvir os relatos dos mais velhos, dando destaque à oralidade, sobre as histórias da

terra. Essa representatividade é observada desde o título, afinal Msaho é o nome de um

canto dos chopes, povos oriundos do sul de Moçambique.

Mesmo se tratando de um projeto que não teve continuidade, os editores do

jornal, Virgílio de Lemos, Domingos de Azevedo e Reinaldo Ferreira, tiveram

consciência de que no sentido de uma ideologia e estética, na constituição de um

corpus literário diferenciado de outros de língua portuguesa, o único número do jornal

ainda não reunia condições de se constituir como elemento da moçambicanidade. No

primeiro número de Msaho, os editores argumentaram que estavam “buscando nas

raízes da cultura tradicional e no diálogo com movimentos artísticos externos os

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caminhos a serem trilhados pela literatura moçambicana” (FONSECA, 2008, p. 43), por

isso figuram no primeiro título Noémia de Sousa, Reinaldo Ferreira e Alberto Lacerda.

Muitos jornais surgidos no período entre o final do século XIX e início do XX

tiveram a participação de intelectuais africanos e europeus. No entanto, o maior número

deles teve curta participação no mercado jornalístico. O jornalismo nessa fase ataca a

administração colonial nos seus contínuos desmandos, o que está mais próximo da

realidade concreta, vivida e observada na razão de existir um regime injusto e

explorador, sendo o alvo da denúncia o Governo Central. O engajamento político,

social, econômico e cultural da imprensa naquele momento foi contra a discriminação

racial, observando-se a seguinte matéria escrita por Estácio Dias, publicada n’O brado

africano em resposta à declaração do Governador Geral de que os negros eram

avessos ao trabalho e sem disposição para mudar esse comportamento.

Não era, portanto, a tal indolência que fazia com que se tivesse horror ao trabalho para o branco: é a gratuidade; é a miséria do salário, são os dias de trabalho diminuídos, é a má alimentação; são as horas exageradas de trabalho; é o ‘chicuenete’; é muitas vezes a pancadita. (ZAMPARONI, 2012, p.73).

Nas páginas dos jornais para além das notícias de cunho informativo, tinha-se o

espaço reservado às poesias, crônicas e a pequenos contos. Outro difusor das artes a

Casa dos Estudantes do Império (CEI), em Portugal, foi uma associação de jovens dos

territórios colonizados que estudavam na metrópole portuguesa e fazia publicações, a

exemplo da coletânea Poesia em Moçambique, uma produção coletiva, datada de

1951, editada em Portugal.

Esses estudantes se espalhavam por diversos cursos, medicina, economia,

letras, entre outros, mas possuíam como ponto de encontro básico duas instituições

coloniais: A Casa da África e a Casa dos Estudantes do Império (CEI). Do grupo que

surgiu ao redor da Casa dos Estudantes do Império iriam sair importantes

personalidades na luta pela independência das colônias portuguesas no continente

africano: os angolanos Agostinho Neto e Mário de Andrade; o moçambicano Marcelino

dos Santos; os guineenses e cabo verdianos Vasco Cabral, Amilcar Cabral, entre

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outros. Encontravam-se também no Centro de Estudos Africanos, criado pelos referidos

alunos africanos.

A Casa dos Estudantes do Império acabou se tornando um profícuo reduto para

as análises e divulgação de textos revolucionários. Nessa altura, os poetas se

orientavam pelo ecoar do negro norte-americano cujas lutas e conquistas influenciaram

decisivamente no processo de descolonização da intelectualidade africana.

Criada em 1943, a CEI foi oficialmente fundada em 1944, pelo então ministro das

colônias Vieira Machado. Passou a ser, por assim dizer, o berço do nacionalismo das

colônias em Portugal. Por ela passaram muitas personagens da resistência, entre

outros, muitos dos nomes que viriam a assumir importantes responsabilidades na luta

anticolonial e de libertação dos territórios africanos. Amílcar Cabral, o mais conhecido

defensor da independência da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, representantes do

Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), a exemplo do primeiro presidente

do país, Agostinho Neto. De Moçambique, passaram pela Casa dos Estudantes

Marcelino dos Santos, membro fundador da Frente de Libertação de Moçambique

(FRELIMO) e primeiro ministro da Planificação e Desenvolvimento do país, assim como

outros integrantes do movimento.

Das reuniões na CEI, os estudantes associados fundaram o Centro de Estudos

Africanos, que funcionava na casa da Tia Andreza, nº 37, na rua Actor Vale, em Lisboa,

a qual foi homenageada em vários poemas de escritores distintos, sendo aplaudida e

engrandecida por suas atuações. No Centro ocorriam palestras, seminários, recitais e

pequenas assembleias. Em entrevista concedida a Michel Laban, o ensaísta e ativista

político Mário Pinto de Andrade informou que Noémia de Sousa realizou duas palestras

relacionadas aos temas: O Pensamento Negro e a tradução do Discurso sobre o

Colonialismo, de Aimé Césaire. Afirmou também que a poetisa era um pouco a “diva

dos poetas e cortejada por todos [...], porque, no quadro da negritude era preciso

cortejar as mulheres negras para se ser inteiro”. (LABAN, 1997, p. 83). Com o passar

do tempo, a polícia política do regime salazarista, a PIDE, intensificou a sua atuação

repressiva e, em setembro de 1965, põe fim no funcionamento da CEI.

A Casa dos Estudantes do Império de Portugal, por sua vez, publicaria diferentes

antologias poéticas, em especial nos anos 1960 e 1962, prefaciadas por Alfredo

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Margarido, as quais também não esqueceram o nome de Noémia de Sousa

(FREUDENTHAL, 1994). Antologias que parte do interesse da construção de sentidos

sobre as nacionalidades da cada país colonizado, expondo a problemática colonial com

precisão e destaque.

Tomando-se como base o espaço da discursividade da antologia que apresenta

como especificidade a compilação de poemas, o estudo da pesquisadora Silvana

Serrani discorre sobre o referenciado gênero a partir dos seus efeitos discursivos de

representação. Em Antologia: escrita compilada, discurso e capital simbólico, aborda,

na perspectiva da Análise do Discurso, os aspectos gerais desse gênero e sua

relevância para a transnacionalidade cultural, destacando as contribuições da antologia

na construção do leitor e na formação de cânones. Serrani combate a ideia de que a

descontextualização está inerente às antologias, pois considera que as compilações

textuais não são feitas aleatoriamente. Conforme a pesquisadora: “entender a antologia

como discurso requer analisar sempre as condições específicas de sua produção. Não

existe discurso descontextualizado”. (SERRANI, 2008, p. 3).

As antologias também foram importantes meios para a sedimentação das

produções poéticas que procuraram romper com os paradigmas literários impostos pela

colonização. Utilizavam-se palavras para denunciar o regime. Os poemas reunidos nas

primeiras antologias, com destaque para as organizadas por Manuel Ferreira,

passavam a narrar o mundo africano por outra ótica. O negro é privilegiado e tratado

com respeito e sua dor solidarizada no espaço material e linguístico do texto. Os

africanos que preenchem os convites da enunciação enquanto personagem ficcional ou

poético, o sujeito do enunciado. Alfredo Margarido (1994) discorre sobre a real intenção

da organização dos poemas dispersos em jornais e folhetos.

O que estava em causa era, de maneira evidente, para cada grupo nacional, a necessidade de assegurar a automatização dos instrumentos culturais que, permitindo a afirmação da capacidade criadora, fornecesse ao mesmo tempo os alicerces a uma construção nacional cada vez mais liberta dos obstáculos colonialistas. (MARGARIDO, 1994, p. 14).

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No elenco das antologias consideradas expressivas do período colonial,

certamente não poderá deixar de constar as seguintes publicações: as antologias de

poesia de 1951 e 1953 editadas pela Associação Casa dos Estudantes do Império

(CEI) e publicadas em Portugal: Poesia negra de expressão portuguesa, organizada por

Mário Pinto de Andrade e Francisco José Tenreiro, em 1953; O Boletim mensagem, de

1962; No reino de Caliban, organizada por Manuel Ferreira em três volumes, (1975,

1976 e 1988); A antologia temática de poesia africana, de Mário Pinto de Andrade em

dois volumes, um, em 1975 e outro, em 1979; 50 poetas africanos, assinada por

Manuel Ferreira, de 1989.

Noémia de Sousa tem seus poemas inscritos na Antologia temática da poesia

africana, v. I; Na noite grávida dos punhais, também organizada por Mário Pinto de

Andrade, em 1975, e na antologia No reino de Caliban, composta por três volumes

cuidadosamente organizados por Manuel Ferreira, um dos primeiros a insistir na

publicação, em forma de livro, da obra de Noémia de Sousa. Seu nome figura também

na Antologia da nova poesia moçambicana, organizada por Fátima Mendonça e Nelson

Saúte (1993). Apenas em 2001, Nelson Saúte publica, sob a chancela da Associação

de Escritores Moçambicanos, o livro Sangue negro, que reunirá toda a poesia dispersa

de Noémia de Sousa.

É certo que há um número maior de coletâneas do que apenas essas acima

mencionadas. O universo de escritores e escritoras que assinam os trabalhos poéticos

dessas coleções forma um conjunto contendo noventa e quatro nomes, sendo oitenta e

três deles masculinos e onze femininos, que, no entanto pertencem a dez mulheres,

pois um dos nomes Vera Micaia é o pseudônimo de Noémia de Sousa. Micaia é a

denominação de uma árvore africana de pequeno porte, cujos ramos são fortes e têm

muitos espinhos.

Num cenário de homens, essas mulheres merecem lugar de destaque e seus

nomes evidenciados, são elas: Noémia de Sousa, Ana Pereira Nascimento, Anunciação

Prudente, Marília Santos, Glória de Sant’Ana, Lília da Fonseca, Ermelinda Xavier, Alda

Lara, Alda Espírito Santo, Maria Manuela Margarida e Vera Micaia, pseudônimo de

Noémia de Sousa.

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Além de figurar nesse panteão feminino, Noémia de Sousa tem ainda a condição

que a torna ímpar pelo fato de ser a única entre todos os poetas e poetisas a ter

incluído pelo menos uma poesia em todas as antologias acima mencionadas, tornando-

a assim um ícone importante para a história e poesia moçambicana e justificativa para a

realização desse e de tantos outros trabalhos. Manuel Ferreira reconhece o valor dos

escritos da poetisa, colocando-a ao lado de José Craveirinha como fundadora da

literatura moçambicana:

[...] o caso de Noémia de Sousa merece uma nota especial, ainda que também sem livro publicado. Mestiça, marcada por uma profunda experiência em grande parte por via dessa mesma circunstância, o que faltou de uma maneira geral à maioria dos poetas moçambicanos de sua época. (FERREIRA, 1977b, p. 73)

Mesmo sem ter os seus escritos reunidos em livro até 2001, os poemas de

Noémia de Sousa circularam no continente africano e em Portugal graças às inúmeras

antologias de poesia que transitaram na época, cujos autores jamais se esqueceram de

valorizar o lugar ocupado pela poetisa no cenário das letras africanas. Seus poemas

tornavam possível o desejo de jovens moçambicanos e moçambicanas acreditarem na

libertação de seu país.

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2. SANGUE NEGRO NA CONTESTAÇÃO DE UM SISTEMA OPRESSOR

Embora jovem, Noémia de Sousa era uma mulher além de seu tempo, atente às

ocorrências a sua volta, logo percebeu os problemas de segregação, desigualdade e

racismo existentes em seu redor, sensível, se propõe combater esses fenômenos

socioeconômico e cultural. Para tanto, inicialmente mobiliza esforços no sentido de

tornar a literatura um espaço de combate e elaborar uma poesia que expressasse o

compromisso da arte com as condições existenciais dos africanos e se tornasse em

arma de enfrentamento. Ainda nesse sentido, demonstra também que os intelectuais da

época não deveriam ficar alheios às contradições do momento, tampouco se limitar ao

mundo das ideias e/ou das letras, e sim, aliar-se, envolver-se no conhecimento da

sociedade e nas lutas revolucionárias.

A análise de sua vida permite notar as diversas etapas da construção de um

intelecto, isso no sentido mais proativo da palavra. Muito cedo, se vincula a um grupo

de jovens reunidos em Moçambique onde gestou os seus ideais iniciais. Muito

importante na formação política e social foi sua passagem pelas Casa dos Estudantes

do Império e Casa da África, como também pelo Centro de Estudos Africanos, inclui-se

nesse rol a participação no Movimento dos Jovens Democratas de Moçambique e no

Partido Comunista Português, na época um instrumento de mobilização e mudança

social. Toda essa consciência adquirida acaba por constituí-la em uma figura pública

que articulou em torno de si e de outros jovens mobilizadores forças sociais

contestadoras.

Noémia de Sousa teve uma atuação deveras ativa nos movimentos nacionalistas

de Moçambique, e mesmo estando inserida dentro da lógica de dominação colonial e

suas diversas instituições, consegue transcendê-las. À frente das lutas políticas,

apresenta-se como uma intelectual intimamente entrelaçada nas relações sociais e

vinculada à sua comunidade, merecendo citação também, esta sua profunda vinculação

com a cultura, história e política, sempre voltada na direção de mudanças de condições

desprivilegiada. Essa pluralidade de características a torna perfeitamente enquadrada

na definição de intelectual orgânico.

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Gramsci (1995) conceitua como o papel do intelectual orgânico, atividades que

diz respeito tanto à organização da cultura quanto ao de outras dimensões da

sociedade no sentido de romper com o que há de retrógrado, de conservador, de

antinacional, isto é, com a hegemonia do sistema colonial português. Uma melhor

compreensão na leitura de Gramsci nos faz considerar que um intelectual não é aquele

que tem uma formação acadêmica específica, mas aquele que é capaz de entender e

ocupar uma posição no conjunto das relações que engendram a sociedade entre a

infraestrutura (economia) e a superestrutura (realidade social), e pode interferir sobre

essas relações. É aquele que tem uma ação social, certo tipo de agente que leve em

conta com consciência tanto as tarefas fundamentais, de princípio, da luta contra o

oportunismo adquirido inevitavelmente em cada país, de acordo com os aspectos

originais de sua economia, sua política e sua cultura. Dessa forma, o intelectual é

aquele que é capaz de compreender o lugar que ocupa nas relações materiais/sociais

de uma determinada formação social e atuar sobre elas.

Se admitirmos e aceitarmos a visão do escritor mencionado no parágrafo

anterior, isso nos permite incluir Noémia de Sousa nessa caracterização, pois, não

alheia à crise revelada ao seu redor, reivindicou toda série de políticas e direitos civis

que pressupunham o pensamento moderno, tomou partido diante dos dilemas do seu

tempo, empenhou todo seu engajamento e responsabilidades perante a sociedade

moçambicana. O engajamento é próprio da sua responsabilidade assumida perante a

sociedade moçambicana. Além do quê, outros países já tinham passado pelo processo

de descolonização na África e na América, dentre esses o Brasil, país de grande

referência e de construção de laços de proximidade, aumentando os anseios e as

possibilidades de Moçambique também ser um país independente.

Jean-Paul Sartre, considerado outro modelo de intelectual engajado, provocou o

debate em torno dessa nova forma de se portar perante as mazelas do mundo ao

defender que o intelectual escritor não é neutro diante da realidade histórica e social. “O

escritor engajado sabe que a palavra é ação: sabe que desvendar é mudar e que não

se pode desvendar senão tencionando mudar”. (SARTRE, 1993, p. 20).

Entre os idos de 1945 a filosofia de Sartre já afirmava que a arte pela arte não

satisfaria mais. Defendia a posição de que era necessária a escrita de teor engajado,

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considerando ser de responsabilidade do escritor apontar fatos e acontecimentos

históricos, sem, entretanto se esconder sob a neutralidade. O filósofo defende o

engajamento, assim como a liberdade de opinar. Ainda de acordo com a sua ótica, os

acontecimentos, tanto para o escritor como para o leitor, são históricos, impossibilitados

de coexistirem alienados das questões à sua volta. No início do livro O que é a

literatura? o filósofo expressa sua opinião de maneira inequívoca, afirmando que as

artes acabam por se influenciarem mutuamente, além de serem condicionadas pelos

fatores sociais. O intelectual vai adiante nos seus entendimentos, quando questiona os

que consideram inaplicável à música qualquer teoria literária, e de maneira contundente

imputa-lhes o dever de provar antes que as artes são paralelas, afirmando que esse

paralelismo não existe.

Aqui como em tudo o mais, não é apenas a forma que diferencia, mas também a matéria; uma coisa é trabalhar com sons e cores, outra é expressar-se com palavras. As notas, as cores, as formas não são signos, não remetem a nada que lhes seja exterior (SARTRE,1989, p. 10).

Ainda sobre as diferentes correntes artísticas, o pensador discorre a respeito da

música, mencionando que a ideia de som puro é uma abstração, entretanto, quando faz

esse pronunciamento ele está se apoiando em Merleau-Ponty na sua obra

Fenomenologia da percepção. A diferença entre a escrita, a pintura e a música ocorre a

partir das significações promovidas pela linguagem. Para Sartre,

não existe qualidade ou sensação tão despojadas que não estejam impregnadas de significação. Mas o pequeno sentido obscuro que as habita, leve alegria, tímida tristeza, lhes é imanente ou tremula ao seu redor com um halo de calor; esse sentido obscuro é cor ou som (SARTRE, 1989, p. 10).

Estendendo seu diálogo sobre as vertentes artísticas, Sartre revela seu olhar

analítico com relação à pintura, quando, em suas reflexões, afirma que se um pintor se

propuser a pintar um casebre, certamente ele o fará, porém essa choupana jamais será

símbolo da miséria, pois, para sê-lo, essa manifestação artística deveria encerrar em si

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uma linguagem contendo um significante e um significado, o que não ocorre, porque

todos os sentimentos e pensamentos estarão juntos impressos na tela numa profunda

indiferenciação, cabendo ao observador escolher quais ou o que o comove.

Artistas bem-intencionados já tentaram comover; pintaram longas filas de operários aguardando na neve uma oferta de trabalho, os rostos esquálidos dos desempregados, os campos de batalha. Não comoveram mais que Greuze com seu Filho pródigo. E O massacre de Guernica, essa obra-prima, alguém acredita que ela tenha conquistado um só coração à causa espanhola? (Sartre, 1989, p. 120).

O escritor pode ser entendido como um produtor de bens simbólicos, aquele que

influencia e tem a possibilidade de se posicionar por meio de suas ideias.

Diferentemente das outras artes, a literatura cria novos significados para o leitor,

podendo provocar vários tipos de sentimento.

Não se pintam significados, não se transformam significados em músicas; sendo assim, quem ousaria exigir do pintor ou do músico que se engajem? O escritor, ao contrário, lida com significados (SARTRE, 1989, p. 12).

Para Sartre, “a função do escritor é fazer com que ninguém possa ignorar o

mundo e considerar-se inocente diante dele”. (SARTRE, 1989, p. 21). Essa provocação

e esse posicionamento podem levar ao entendimento de que o autor não se encontra

centrado em suas ideias. Pelo contrário, ele as descentraliza para atingir o outro,

porque as palavras são “pistolas carregadas”. (SARTRE, 1989, p. 21). Depreende-se

que o escritor se engaja e escreve de maneira engajada, visto que se preocupa com o

outro e suas palavras têm a intenção de comunicar algo ou alguma coisa, de promover

mudanças, de mudar certas atitudes sendo, então, essa a finalidade para qual ele

escreve.

A crítica sartriana aponta para a tendência do descomprometimento do

intelectual com as questões sociais e, nesse sentido, este não realiza as suas

potencialidades, isto é, não se assume enquanto tal. Sartre advoga o engajamento

militante. Sua crítica exprime o elogio ao intelectual que se assume como a consciência

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infeliz em que sua função reside em sua contradição intrínseca e relaciona-se, no final

das contas, com o conhecimento. Sua primeira tarefa é reconhecer a própria

contradição, fazer a autocrítica permanente. Engajar-se é assumir uma posição no

mundo, é tomar partido e assumir os riscos inerentes a esta atitude. Em determinadas

situações históricas não é permitida a neutralidade política, o engajamento pressupõe

escolher um dos lados em disputa.

Assim como Jean-Paul Sartre, Albert Camus também considerava que a palavra

tinha grande poder e a escrita era uma das formas mais válidas da ação. A geração de

intelectuais franceses que tiveram como acontecimentos marcantes a Segunda Guerra

Mundial, a Guerra Fria e a descolonização dos países africanos sentiram, não sem

razão, a necessidade de discutir e de impor suas opiniões e ideologias. Dentro de um

vasto número de nomes, sobressaem os de Jean-Paul Sartre e Albert Camus, um

francês e um argelino convivendo em uma mesma estrutura social.

Nascido na Argélia em 1913, Albert Camus conviveu com o colonialismo francês.

Formou-se em filosofia na Universidade de Argel e participou do círculo de intelectuais

franceses nas décadas de 1940 e 1950. Foi ativista da Resistência Francesa,

movimento que propunha a não submissão da França ao nazismo alemão. Enquanto

jornalista engajado durante a Segunda Guerra Mundial, a sua participação na imprensa

pôde ser notada em diversos periódicos, a exemplo do jornal clandestino da

Resistência Francesa, chamado Combat, em que foi editor-chefe, lido também em

outros países. Para Ronald Aronson, Albert Camus provocou transformações no

engajamento político francês ao tornar-se jornalista do Combat, pois, com a libertação

da França, estava em “condições de interpretar, avaliar e, se possível, guiar uma

transformação nacional” (ARONSON, 2007, p. 66). Albert Camus não se restringiu a

atuar no jornalismo francês, foi também colaborador dos periódicos argelinos Alger-

Repúblicain e o Le Soir-Républicain.

Diferentemente de Albert Camus, que participou ativamente da frente de batalha,

Sartre não esteve na Resistência, mas escreveu sobre a atuação desta durante e

depois da ocupação alemã. Tornou-se amigo de Albert Camus e revelava a sua

admiração por este, dada a sua importância na militância política. Sartre fez parte de

uma geração de intelectuais marcada não só pela Segunda Guerra Mundial, como

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também pela Guerra Fria e a descolonização do continente africano, através das

guerras de libertação. As repercussões vindas desses momentos históricos que

propiciam o nascimento da necessidade de discutir e determinar ideologias a respeito

de todas essas questões que envolviam as frentes de combate. O engajamento foi

tema bastante debatido a partir de meados de 1940, principalmente em território

francês, após o período de ocupação alemã na França, que terminou em 1944. Os

debates ocorriam em periódicos e revistas, o que proporcionou grande visibilidade ao

público francês da época. Os textos que compõem o livro O que é a literatura? foram

inicialmente publicados na revista de intervenção política e cultural Les temps

modernes, em que o próprio Sartre foi editor-chefe. Esses artigos apresentaram a ideia

de que o escritor precisava engajar-se e intervir desta forma na sociedade em que vive,

e que a literatura, nesta perspectiva, compreende um dos meios eficazes de mudança

social, contrário ao ideal de uma arte com o fim em si mesma. A arte, portanto, não está

desligada de razões funcionais, pedagógicas ou morais.

Em suma, a literatura é, por essência, a subjetividade de uma sociedade em revolução permanente. Numa tal sociedade ela superaria a antinomia entre a palavra e a ação. Decerto, em caso algum ela seria assimilável a um ato: é falso que o autor aja sobre os leitores, ele apenas faz um apelo à liberdade deles, e para que suas obras surtam qualquer efeito, é preciso que o público as assuma por meio de uma decisão incondicionada. Mas numa coletividade que se retoma sem cessar, que se julga e se metamorfoseia, a obra escrita pode ser condição essencial da ação, ou seja, o momento da consciência reflexiva. (SARTRE, 1989, p. 120).

A questão derivada de conjunturas históricas coloca um dos temas fundamentais

que Sartre definiu como uma das condições do intelectual engajado, pois se refere ao

seu papel desempenhado na sociedade. Desse modo, cada época parece fazer surgir

um perfil caracteristicamente específico de intelectual, fruto de uma realidade

sociocultural específica, intimamente ligado ao seu contexto histórico. Somente a

particularidade desse contexto poderá revelar a singularidade desse intelectual.

Sartre prefaciou os livros Retrato do colonizado precedido do retrato do

colonizador, de Albert Memmi e Os condenados da Terra, de Frantz Fanon em que

mais vez condenou o colonialismo e sua violência colonial, demonstrando adesão a

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descolonização da África e condenando qualquer forma de racismo. Sartre, no seu

famoso texto Orfeu negro de 1948, foi um dos primeiros intelectuais a fazer uma

reflexão aprofundada do movimento da negritude. Orfeu negro foi escrito como

introdução a uma antologia de poesia negra, organizada por Leopold Senghor. No

texto, Sartre reconhecia o papel subversivo do movimento da negritude em determinado

momento histórico seja porque negava os valores culturais do opressor branco, seja

porque despertava no negro altivez e orgulho racial. Para o filósofo, a negritude seria

uma reação do negro à supremacia branca, cuja façanha era apontar para uma

progressão dialética nas relações raciais. Segundo Sartre, o racismo do branco seria a

tese, a negritude sua antítese, um princípio transitório fundado no racismo antirracista.

A obra de Noémia de Sousa, pensando na perspectiva do engajamento, em

oposição à exploração colonial, é relevante pensar o papel da poesia e de poetas

engajados na constituição de textos literários, quando enfocadas as pressões externas,

existentes entre colonizados e colonizadores, distribuídos em diferentes níveis

hierárquicos, que acaba entendendo o espaço poético como possível campo de

resistência e de autonomia.

No caso da poesia moçambicana, em específico a de Noémia de Sousa, assume

uma dimensão da prosa. São poemas longos que expressam uma narrativa, pois

necessitam comunicar ao outro e não só sentir. Foi através da escrita poética que cada

verso, cada poema se revertia em ação contra o colonialismo. As palavras ganhavam

sentido quando enunciaram a revolução no que representava a retomada, por parte do

colonizado, de uma cultura tornada subterrânea pela ocupação colonial. Por ter na sua

atuação e na sua poesia aspectos indiscutivelmente integrados à proposta do

engajament dos intelectuais Jean-Paul Sartre, Albert Camus, Maurice Merleau-Ponty,

Francis Jeanson, Raymond Aron e Simone Beauvoir, que, Noémia de Sousa, em

Moçambique, foi uma das poucas mulheres a escrever de maneira engajada.

O poeta e crítico Mário Faustino, em Poesia-experiência (1977) elabora uma

teoria da criação preocupada com os mecanismos de raciocínio do poeta e com a

dignidade artística de uma literatura disciplinada por conhecimentos não apenas

poéticos, mas também de natureza filosófica, científica, mística e política. Faustino

atuou nos mais diferentes ramos da cultura brasileira, dedicando-se a um estudo

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metódico da poesia em busca de novas formas estéticas e de novos preceitos éticos

mediante os quais se baseassem os procedimentos da experiência criadora. Purificar,

comover e ensinar seriam algumas das funções do poeta, cujo poder verbal de

percepção e expressão concilia o universo das coisas, ideias e seres ao reino das

palavras, em uma demonstração de amor à vida dos homens e também dos signos.

Para Faustino (1977), o poeta tem de ser aquele que projeta um futuro melhor, graças a

um raciocínio utópico, que mostra habilidade no exercício de síntese objetiva e de

análise particular da realidade, que possui uma visão totalizante do mundo, consciência

crítica, e está imbuído do espírito de sua época, a isto somadas as questões do bem e

do belo. Segundo o poeta, são vários os papéis da poesia que contribuem para uma

ação social: o papel documental, testemunho de um povo e de um tempo histórico, o

didático, comunicação de uma experiência de luta entre o poeta e o universo, o cultural,

formação de uma consciência humana coletiva, o estético, expressão da beleza e da

dignidade da vida, e o linguístico, aperfeiçoamento do idioma e manutenção da eficácia

da língua. Faustino caracteriza o objeto literário como um documento humano, cujo

poder de influência abrange a dimensão ética, a estética e a didática. “O primeiro dever

do poeta é ser bom poeta” (FAUSTINO, 1977, p. 56). Dessa condição primordial para o

exercício de uma linguagem eficiente e bela depende não apenas o êxito de uma

competência poética, mas ainda o cumprimento de responsabilidades profissionais

ligadas à sociedade, à cultura de uma época e, mais profundamente, às questões da

própria existência humana.

Noémia de Sousa evidencia esse universo nas suas poesias e vivencia essa

prática em sua atuação. Fazia-se necessário conhecer a sociedade dominada pelo

colonialismo e descobrir os mecanismos de dominação encobertos pela ideologia em

vigor para, no processo revolucionário, romper com o círculo de exploração, inaugurar

uma nova epistemologia e traçar as estratégias de uma política para a emancipação,

pois Segundo Albert Memmi “a existência do colonizador reclama e impõe uma imagem

do colonizado [...]. Longe de querer aprender o colonizado na sua realidade, preocupa-

se em submetê-lo a essa indispensável transformação” (MEMMI, 1977, p. 77; 80).

Frantz Fanon (2008), focando na esfera psicológica da dominação colonial,

analisa o fenômeno do racismo como elemento central, operador psíquico da dualidade

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entre colonizado e colonizador, branco e negro, no colonialismo. Portanto, para Fanon

aqueles que assumem uma atitude discriminatória não são necessariamente mais

racistas do que àqueles que assumem o papel de cúmplices passivos dessas ações. A

discriminação direta seria apenas a "ponta do iceberg". Ele recebeu contribuições

significativas das discussões sobre o racismo feitas por Sartre, que tratou também

desse assunto em Reflexões sobre o racismo. Afinal, Sartre já trazia, ali, a noção de

racismo como fato estrutural da sociedade. Fanon leva essa tese sartriana para o

campo psicológico e para a sociedade colonial.

Esse sistema denso e complexo será observado como o alicerce fundamental

para a empreitada colonial e a manutenção da dominação europeia sobre outros povos.

Frantz Omar Fanon nasceu em Julho em 20 de julho de 1925, no seio de uma família

de classe média em Forte de France, Martinica, região francesa no Caribe. Em 1944,

quando a França estava invadida pela Alemanha nazista, Fanon alistou-se no exercito

francês para lutar contra a invasão, mas na frente de guerra, junto aos franceses

brancos nascidos na metrópole, percebeu que a sua cor o impedia de ser visto como

igual pelos seus compatriotas. Por mais que pensava, sentia ou desejasse o contrário,

em face do branco era visto apenas como preto. “Subjetivamente, intelectualmente, o

antilhano se comporta como um branco. Ora, ele é um preto. E só o perceberá quando

estiver na Europa; e quando por lá alguém falar de preto, ele saberá que está se

referindo tanto a ele quanto ao senegalês” (FANON, 2008, p.132).

A percepção deste não reconhecimento em face do branco francês exerceu

grande influência em Fanon impactando os seus futuros escritos e sua prática política.

Fanon afirma que o colonialismo, para ser economicamente viável necessitava negar

todos os elementos culturais dos povos subsumidos, a fim de destruir os seus sistemas

de referências. Nesse cenário a resistência sociocultural deve ter em vista não a

simples preservação da cultura, esta negada pelo colonialismo, mas a libertação do

povo. Resistir ao colonialismo exige, em determinadas situações concretas, contrapor-

se á cultura colonial, sem desconsiderar nela os elementos universais que possam

contribuir para o “progresso da nação”.

O poema de Noémia de Sousa, “Patrão”, em sua primeira estrofe, retrata um

relato inequívoco de práticas abusivas, maus tratos, violência, imposição e desprezo ao

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sujeito trabalhador, nesse caso, considerado como objeto. Sequencialmente, observa-

se o manifestar de estupefação e indignação, acompanhada de um questionamento ao

racismo praticado pelo colonizador. Nesse contexto, a figura autoritária do patrão

ultrapassa o conceito de senhor, adquirindo imagem e comportamentos de quem é

dono do corpo e, por extensão, detentor do direito à pessoa que trabalha.

Patrão, patrão, oh meu patrão! Porque me bates sempre, sem dó, com teus olhos duros e hostis, com tuas palavras que ferem como setas, com todo o teu ar de desprezo motejador por meus actos forçadamente servis, e até com a bofetada humilhante da tua mão? Oh, mas porquê, patrão? Diz-me só: que mal te fiz? (Será o ter eu nascido assim com esta cor?) Patrão, eu nada sei... Bem vês que nada me ensinaram, só a odiar e a obedecer... Só a obedecer e a odiar, sim! Mas quando eu falo, patrão, tu ris! e ri-se também aquele senhor patrão Manuel Soares do Rádio Clube... Eu não percebo o teu português, patrão, mas sei o meu landim, que é uma língua tão bela e tão digna como a tua, patrão... No meu coração não há outra melhor, tão suave e tão meiga como ela! Então porque te ris de mim? Ah patrão, eu levantei esta terra mestiça de Moçambique com a força do meu amor, com o suor de meu sacrifício, com os músculos da minha vontade! Eu levantei-a, patrão pedra por pedra, casa por casa, árvore por árvore, cidade por cidade, com alegria e com dor Eu a levantei! E se o teu cérebro não me acredita,

pergunta à tua casa quem fez cada bloco seu, quem subiu aos andaimes, quem agora limpa e a põe tão bonita, quem a esfrega e a varre e a encera... Pergunta ainda às acácias vermelhas e sensuais como os lábios das tuas meninas, quem as plantou e as regou, e, mais tarde, as podou... Perguntas a todas a essas largas ruas citadinas, Simétricas e negras e luzidias quem foi que as alcatroou, indiferente à malanga de sol infernal... E também pergunta quem as varre ainda, manhã cedo, com a cacimba a cobrir tudo... Pergunta quem morre no cais todos os dias – todos os dias - , para voltar a ressuscitar numa canção... E quem é escravo nas plantações de sisal e de algodão, por esse Moçambique além... O sisal e o algodão que hão-de ser “pondos” para ti E não para mim, meu patrão... E o suor é meu, a dor é minha, o sacrifício é meu, a terra é minha e meu também é o céu! E tu bates-me, patrão meu! Bates-me... E o sangue alastra, e há-de ser mar Patrão, cuidado, que um mar de sangue pode afogar tudo...até a ti, meu patrão! Até a ti... (SOUSA, 2001, p. 81-83).

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O poema é a manifestação expressa do eu poético enquanto voz denunciadora

da condição de homens e mulheres segregados e explorados, que, apesar de tudo,

conseguem reconhecer a importância da sua força e de seu trabalho, ambos

absolutamente necessários para o desenvolvimento da colônia. Através do complexo

de autoridade do colonizador, justifica-se a sujeição de outros grupos humanos,

nascendo também a necessidade de classificação e hierarquização dos mesmos em

“raças” ou etnias. A partir desta demanda, segundo Fanon, é criada a ideia do “negro”,

pela dicotomia com o branco. Afirma que “é o racista que cria o inferiorizado”. (2008, p.

90).

O patrão, de acordo com o poema, exerce através do trabalho escravo sua força

bruta, em que o empregado tem que fazer tudo que se mandar, sem receber

absolutamente nada por isso, e geralmente sob tortura e maus tratos, explorando o

trabalhador. Desrespeita a língua local, a considerando inferior e infantil, mantendo um

controle social com a escolha da língua do colonizador para se tornar oficial. Esse

processo de seleção implica em um processo de exclusão e passam a ser objeto de

repressão.

O despertar sobre a relevância desse sujeito no processo de construção de

Moçambique traz implícito o nascer do sentimento de pertença, de envolvimento e de

posse daquele espaço construído sob o jugo da força e da discriminação. Ao elencar

uma série de ações desenvolvidas pelo colonizado, o eu-poético se coloca como força

motriz para o crescimento de Moçambique mesmo representando uma subordinação

forçada em decorrência da condição de vida que lhe fora introjetada em todo o

processo de colonização. A junção dessas confluências vai funcionar como elo de

ligação entre a auto-valorização e os sentimentos de direito à terra, culminando com a

vontade de se libertar e o alerta contendo o anúncio de uma possível insurreição.

Apresentar os fatos de uma realidade circundante, expor as ideias para poder

debatê-las, torna relevante pensar o papel de poetas na constituição de seus textos

literários engajados, quando os mesmos enfocam as pressões externas, próprias da

conjuntura social existente entre colonizados e colonizadores e tornam públicas as

ideologias e posições contraditórias, determinando com isso o espaço poético como

possível espaço de resistência, de enfrentamento e autonomia.

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2.1. PALAVRA E AÇÃO

As ações libertárias irrompidas por todo o continente africano após a 2ª Guerra

Mundial foram Influenciadas pelos movimentos do pós-guerra e muitos moçambicanos

se tornaram progressivamente nacionalistas e, de forma crescente, contestadores do

contínuo servilismo da sua nação às regras estrangeiras. Por outro lado, aqueles

moçambicanos mais cultos e integrados no sistema social português implementado em

Moçambique, em particular os que viviam nos centros urbanos, reagiram negativamente

à vontade, cada vez maior, de independência. Os portugueses estabelecidos no

território, que incluíam a maior parte das autoridades, responderam com uma

incrementação da presença militar e com um aumento de projetos de desenvolvimento

para a colônia.

Até a independência de Moçambique, em 1975, o escritor vivia entre duas

realidades existentes no âmago das relações sociais. A tensão entre os dois eixos se

expressava nas produções do período colonial, promovendo um embate na linguagem

literária na utilização da língua portuguesa em realidades bastante complexas. Esse

choque que se realizou no campo da linguagem foi o impulso gerador de projetos

literários em Moçambique e também nas outras colônias portuguesas, como Angola,

Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Guiné Bissau. O entendimento das literaturas

africanas de língua portuguesa desses países passa pela compreensão da dinâmica

que orienta a produção literária, que faz com que esses momentos não sejam rígidos e

inflexíveis, e permite por vezes ao escritor sua travessia.

Ao discutir a emergência da literatura nos territórios africanos colonizados,

sobretudo a poesia, Manuel Ferreira (1987) propõe a observação de que a prática

literária enraíza-se no meio sociocultural e geográfico e nos momentos do discurso de

revolta e da clareza dos problemas causados pela colonização, isso porque, o escritor

assume a responsabilidade de construtor, mantenedor e defensor das culturas

africanas, rompendo com os moldes europeus, e tendo a conscientização definitiva do

valor do homem africano.

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No período da luta, foi sempre possível identificar um discurso de resistência e

de reivindicação por mudanças no processo de releituras constantes que liga o

presente e o passado na construção de uma África que se renovasse continuamente. O

desejo de rompimento com o governo português se intensificava, sobretudo porque era

cada vez mais urgente tomar as decisões políticas, econômicas e administrativas,

devolvendo a Moçambique sua autonomia de território nacional. A reivindicação

nacionalista se afirmava pelo reconhecimento da diferença, por valores próprios, já que

havia se ampliado fortemente a demarcação dos dois polos: do colonizado e do

colonizador. Recusar a presença do colonizador conduz a uma práxis literária que

registra as modificações do contexto e o desejo de tornar públicas as formas efetivadas

desse enfrentamento. É possível verificar o processo de estabelecimento dos traços

formadores de uma literatura de combate, convocando o povo moçambicano para a luta

de independência.

Progressivamente, a poesia de Noémia de Sousa se volta para as questões da

nacionalidade, focalizando a valorização de um território, seja no contexto continental

(macro) ou no contexto nacional (micro), estabelecendo, assim, a demarcação da

fronteira de Moçambique. Nesse aspecto, Manoel de Souza e Silva destaca a

importância da poesia moçambicana para o florescer do sentimento nacional.

o papel fundamental para a existência de uma poesia moçambicana e de uma pátria moçambicana, nascida, primeiro, na utopia dos poetas, no futuro pré-sentido e tecido fio a fio. Poesia profética ou, se se preferir profecia poética” (SILVA, 1996, p. 113).

Como exemplo da observação de Manoel de Souza, o poema “Um dia”, é

totalmente investido de esperança e calcado no vislumbrar de tempos futuros sem

colonialismo, tampouco escravidão, onde o renascer dos negros que foram

escravizados é parte de uma nova realidade caracterizada pela igualdade de todos. A

narrativa é um prenúncio de futuro pródigo ansiado, um olhar voltado para o amanhã

que se revela na crença do poder transformador da ação coletiva em direção à

independência. Vitória que será conquistada por meio da conjugação de forças,

principalmente dos sujeitos que foram segregados.

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Quando este nosso sol ardente de África nos cobrir a todos com a benção do mesmo calor, quero ir contigo, amigo, de mãos dadas, deslumbrados, pelos trilhos abertos da nossa terra estranha, adubada com sangue e suor de séculos... Nas machambas, o ruído repercutido de tractor soará como uma canção de triunfo. Nas matas, as tutas já não serão aves apenas e no centro da vida, nosso irmão negro, quebradas as grilhetas, celebrará seu segundo nascimento num batuque diferente de todos os outros... Uma luz clara e doce se abrirá para todo e nós iremos de mãos dadas, amigo, pelos trilhos verdes de Moçambique.

Na noite, não mais soluçarão, estertoradas, canções marimbadas por irmãos naufragados (ô mamanô! Ô tatanô!), Não mais a acusação muda dos olhos precoces de crianças de ventres empinados não mais jaulas erguidas para os inconformistas gritando gritos de sangue através de tudo! Não mais, noite... E nós iremos de mãos dadas, amigo, pelos trilhos abertos de Moçambique, mergulhados no clarão eterno do dia infindável. (SOUSA, 2001, p. 114-115).

O poema trata de anseios e desejos de liberdade, não uma liberdade insípida e

incolor, porém a que quebre os grilhões e que vença a ausência de direitos básicos do

subjugo do senhorio ao escravizado, do colonizador sobre o colonizado, e sim aquela

que traz e assegura direitos iguais, entremeada com o progresso tanto econômico

quanto intelectual, embasando tudo no crescimento do ser humano, tudo aquilo que

sempre justificou as ações e preocupações da poetisa. Interessante notar, que nesse

poema, o eu-poético se manifesta inicialmente em nome de um contexto global e

sequentemente volta a deixar claro o seu pertencimento e a importância de

Moçambique no processo de libertação, através do conclamar desejado que ora serve

para a luta, venha a servir também para a alegria, o júbilo e a esperança.

No seu processo criativo, Noémia de Sousa é movida por sua crença e

alimentada por sua esperança num futuro livre e independente, sendo também dotada

de uma confiança capaz de ver que, mesmo nas constatações diárias, é possível a

alteração social. A esperança, nesse caso, é apresentada em função de um devir que

será conquistado e não simplesmente adquirido.

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A conjunção “Quando”, que inicia o poema, é indicador de um tempo vindouro

subordinado a novas expectativas de mudanças conjunturais e a construção de nações,

possível única e tão somente pelas “mãos dadas”. É o porvir histórico almejado por

todos se consumando na representação da conjugação de ideias e propósitos na

formação de países soberanos, não mais colônias de Portugal, que, de acordo com

Amílcar Cabral, não tinha condições nem habilidades de gerir o próprio Estado. Esse

político e militante cabo-verdiano, atento ao que acontecia nas sociedades africanas,

ressaltou a importância de expandir os debates das condições políticas, econômicas,

históricas, sociais e culturais no âmbito das sociedades liberais ocidentais para se

discutir a real situação das populações africanas em seus próprios países. Em seu

discurso “A verdade sobre as colônias africanas de Portugal”, proferido em junho de

1960, em Londres, alerta para as condições materiais da própria metrópole.

Portugal é um país subdesenvolvido com 40% de analfabetos e o seu nível de vida é o mais baixo da Europa. Se conseguisse ter uma ‘influência civilizadora’ sobre qualquer povo seria uma espécie de milagre (...). O atraso econômico de Portugal reflete-se na vida econômica e financeira das suas colônias; nunca pôde e nem poderá criar as bases necessárias para o desenvolvimento econômico das suas colônias. (CABRAL, 1976, p. 61)

A crítica efetuada por Amílcar Cabral revela que os problemas provocados pela

dinâmica econômica e política implantada pelos europeus dentro do sistema colonial,

no caso de Portugal, não só tornava evidente a impossibilidade de crescimento e

emancipação dos territórios ocupados na África, como afetava diretamente as

condições de vida dos lusitanos, comprovando a tese de que não haveria base possível

para qualquer mudança.

O colonialismo, a escravatura e a repressão foram temas dos escritores que

escreveram no chamado período da Poesia de Combate, dentre eles, Noémia de Sousa

com sua obra marcadamente inovadora. Surgida na década de quarenta do século XX

com um espírito revolucionário e incitador à luta de libertação, a poesia foi a forma de

expressão literária predominante em Moçambique e em outros países africanos de

língua oficial portuguesa, obras que via de regra eram impregnadas de palavras de

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ordem. Cito mais uma vez, o crítico português Manoel de Souza e Silva, quando tece

considerações sobre a poesia de combate, destacando seu caráter subversivo.

A poesia de combate, funcionando como síntese da resistência do homem de Moçambique à dominação colonial, fornece um retrato – tosco, muitas vezes, mas sempre vigoroso – muito nítido, libertado de todas as peias, podendo mostrar-se, enfim rude, terna, rica, pobre, balbuciante, fluente, originalíssima, reciclada, telúrica, ecológica, subversiva. Dentre todos os aspectos da poesia de combate, o que mais se destaca, e escandaliza, é a sua natureza radicalmente subversiva. (SILVA, 1996, p. 118).

Em razão da perspectiva revolucionária, dificultava-se a utilização de um tom

pessoal, mais intimista. Em “Poesia não venhas!”, Noémia de Sousa fala de sofrimentos

de fórum íntimo e também dos advindos de seu engajamento sociopolítico e a

importância do conteúdo poético como manifestação desses sentimentos. Confessa

sua impotência quando renuncia às suas dores e angústias, priorizando seu

compromisso social.

Poesia: Porque vieste hoje, precisamente hoje, que não te posso receber? Hoje, em que tudo tem cor de pesadelo e em que até a minha irmã a lua não veio, com a sua carícia fraterna, dar-me calma? Oh Poesia, não, não venhas hoje! Não vês que a minha alma não te podes compreender? Que está fechada, cercada, fatigada,

e nada mais quer senão chorar? Hoje, eu só saberia cantar a minha própria dor... Ignoraria tudo o que tu, Poesia me viesses segredar... E a minha dor, que é a minha dor egoísta e vazia, comparada aos sofrimentos seculares de irmãos aos milhares? Bem sei que as minhas frouxas lágrimas nem o mais humilde poema valeriam... E se tu sabes que é assim, oh! Poesia! será melhor que fiques lá onde estás, e não venhas hoje, não! (SOUSA, 2001, p. 123-124).

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Inicialmente, a temática e o fio condutor da escritora são as aflições e os

sofrimentos da alma, inerentes ao existencialismo humano, representados por um

estado de ânimo que muito embora breve, revela-se cansado, abatido e

momentaneamente egoísta capaz de chorar somente pela sua dor. Na continuidade da

manifestação do eu-poético, a poetisa é reconduzida à renúncia dos sentimentos mais

íntimos e particulares em nome do seu compromisso em acabar com o sofrimento de

tantos. Finalmente, esse eu-poético pede á poesia, que deve ser entendida aqui como

inspiração para a continuidade da luta, que dada à sua momentânea insensibilidade

não deva surgir. Quando o eu-poético diz “Oh Poesia,/ não, não venhas hoje” reafirma o

posicionamento de Noémia de Sousa quanto à utilização da poesia como arma, algo

comum nos seus escritos, observado nas estrofes da sua criação intitulada “Poema”, a

qual revela sua indignação pela prisão do companheiro de batalha João Mendes.

Aqui tens o meu poema, irmão. Meu poema insuficiente e baço, palavras, sangue, emoção, grito que se soltou do fundo das veias e ficou pairando feito estandarte... - meu poema fogueira de negros solitários Acesa à beira da mata em noite de frio e escuridão, meu poema seta e azagaia para os combates da vida meu poema alma mulata amassada em dor e revolta meu poema mão aberta estendida para o mundo meu poema fraterno, torturado, aí meu poema solitário, insuficiente e baço, aqui o tens, irmão. (SOUSA, 2001, p. 105).

Embora Noémia de Sousa se preocupe com a escrita poética voltada para a

causa coletiva, essa mesma poesia é fruto de uma injunção do indivíduo que ela é,

impregnado das suas experiências. Ela não faz só o discurso do chamado à luta, mas

trava consigo um constante embate sobre a instrumentalização da poesia para fins

determinados. O poema, desta forma, evidencia a importância do papel do poeta, que

acaba entendendo a poesia como possível espaço de resistência e de autonomia e faz

referências às agruras da condição colonial imposta a Moçambique, ao mesmo tempo

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que reivindica o discurso poético como campo de possibilidade para a manifestação

das dores e perdas resultantes dessa condição. Quando o eu-poético suplica a

ausência da poesia, abdica de sua individualidade e de seu isolamento para estampar o

seu possível compromisso com as condições vivenciadas pelos moçambicanos. O eu-

poético tem ciência que suas mágoas e decepções são menores e insignificantes diante

das demandas de seu povo.

Não somente se utilizando de uma forma poética acentuadora dos novos

caminhos da poesia moçambicana, de versos que apontam para a construção de uma

identidade cultural, de anseios nacionalistas e de um discurso de combate, denunciador

da precariedade socioeconômica e da exploração colonial, outros temas também

inspiraram a criação literária do período, porém predominou o interesse pela ruptura

com o processo de segregação imposto pelo sistema colonial. Nos textos poéticos de

Noémia de Sousa, aspectos biográficos, lutas políticas, desejos e tensões pessoais

misturam-se de modo a emprestar sustentação à sua obra no que tange às reflexões

sobre a africanidade para o domínio da arte.

Falar de si enquanto sujeito uno não a interessava naquele momento, mas sim

dizer sobre o seu sentimento de pertença a Moçambique e África. Na constatação

desse sentimento, confundem-se biografia e manifestações poéticas do ideário da

escritora. No poema “Se me quiseres conhecer”, a combinação de ambientes culturais

da terra e a vida da mulher não se distinguem: “Ah, essa sou eu/ África de cabeça aos

pés”.

Se queres me conhecer, estuda com os olhos bem de ver esse pedaço de pau preto que um desconhecido irmão maconde de mãos inspiradas talhou e trabalhou em terras distantes lá do Norte. Ah, essa sou eu: órbitas vazias no desespero de possuir a vida, boca rasgada em feridas de angústia, mãos enormes, espalmadas, erguendo-se em jeito de quem implora e ameaça,

corpo tatuado de feridas visíveis e invisíveis pelos chicotes da escravatura... Torturada e magnífica, altiva e mística, África da cabeça aos pés, - ah, essa sou eu: Se quiseres compreender-me vem debruçar-te sobre minha alma de África, nos gemidos dos negros no cais nos batuques frenéticos dos muchopes na rebeldia dos machanganas na estranha melancolia se evolando duma canção nativa, noite dentro...

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E nada mais me perguntes, se é que me queres conhecer...

Que não sou mais que um búzio de carne, onde a revolta de África congelou seu grito inchado de esperança. (SOUSA, 2001, p. 49-59).

O momento de grande sofrimento não lhe retira a relação estabelecida com o

continente. A simbologia da terra compõe a sua poesia a partir da construção de uma

subjetividade alicerçada no sentimento de pertença ao local de origem. Destaca-se

também na poesia de Noémia o superdimensionamento de formas e gestos, em largas

expressões de dor, inconformidade e estranhamento às formas de dominação.

A partir do título, quando é utilizado o verbo na segunda pessoa, percebe-se a

intencionalidade de se dirigir explicitamente ao seu leitor. Em se tratando de uma

escritora militante como Noémia de Sousa, sabemos que a quem ela se refere, quem a

precisa conhecer, são os colonizadores. Na primeira estrofe, o eu-poético usa a

metáfora do pau preto como uma possível referência ao ébano, madeira africana preta

e dura. O maconde é a mímese para indicar a perfeição da arte dessas populações,

como indica no poema estão situadas ao Norte de Moçambique, pois segundo alguns

dicionaristas a arte desses artesãos é reconhecida internacionalmente pelo seu

requinte no trabalho em madeira. Na segunda estrofe, o eu-poético aparece em

primeira pessoa e se relaciona com vários adjetivos no encaixe direto com o substantivo

que é o ser caracterizado: órbitas vazias, boca rasgada, mãos enormes, corpo tatuado.

Também nessa estrofe, percebem-se as sequelas deixadas pela escravidão na

formação de feridas visíveis e invisíveis da escravatura, o que comprova que o eu-

poético se dirige aos colonizadores. Se em um primeiro momento, o conhecer

relaciona-se a aspectos físicos que caracterizam o eu-poético, essa designação evolui

para algo mais profundo, a partir da extensão dos conceitos do que é África, dos

elementos culturais e sua diversidade étnica. A quarta estrofe já implica em um

desabafo de insatisfação ao descaso dos invasores e destruidores de almas e sonhos.

A fala poética em todo o seu dimensionamento dramático se desdobra em um

ritmo angustiante, no qual a identificação com a terra metaforiza a fusão do eu-poético

com a devastação do continente. As imagens de uma África martirizada são concebidas

através da construção do homem em seu desespero de possuir uma condição digna de

sobrevivência. Essas imagens potencializam os processos de alienação do homem

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colonizado, e o corpo feminino é metonímia para essa figuração e que, ao associá-las à

dor do povo moçambicano, Noémia de Sousa concede voz a um sujeito lírico feminino

que revela a desumanidade do sistema econômico e político do colonialismo português

em terras moçambicanas. Por sua vez Noémia de Sousa exalta uma africanidade sem

fronteiras, espelhando um posicionamento pan-africanista no tratamento ao continente

africano, conforme interpretação desse poema por Alfredo Margarido,

o poeta não recorre já aos elementos abstractos da fraternidade quando explica o que é necessário para a conhecermos, pois aqui recorre a elementos imediatamente identificáveis, começando a se servir de um ‘objecto’, quer dizer, de alguma coisa que não pode ser confundida e que, podendo ser identificada à distância pelo olhar, impossibilita qualquer confusão dos sentidos. É este, exactamente, o objectivo de Noémia de Sousa: apresentar-se como objecto, para que a sua identificação como mulher de cor, como elemento integralmente produzido pela África, não possa ser posta em dúvida. Por isso ‘Pedaço de Pau Preto/ que um desconhecido irmão maconde/ de mãos inspiradas/ talhou e trabalhou. (1980, p. 487).

O protesto é uma das vertentes mais importantes encontradas na poesia de

Noémia de Sousa, também sobre a identidade negroafricana, o trabalho forçado

(chibalo), além do grande destaque a sua posição firme e contrária à ideia de

coisificação do homem negro, transformado em mero objeto, no imaginário falsificado

do europeu. Essa homogeneização identitária do “outro” resulta numa paradoxal

reprodução da própria lógica colonial, pela anulação das especificidades culturais e

sociais, que caracterizam a complexa realidade dos contextos de colonização. É,

justamente, por apresentar uma linguagem poética de denúncia, resultante de

processos de construção e reconstrução conceitual, que emergem de cenários

culturais, sociais e políticos particulares, veiculados por diferentes práticas discursivas,

a partir de preocupações constantes com o ser humano, que a poesia de Noémia de

Sousa faz suscitar no leitor a crença no poder transformador da história e na esperança

do restabelecimento da dignidade humana.

Noémia de Sousa se consagra pela vontade de mudanças ideológicas e pela

consciência das injustiças e divisões sociais existentes não só em Moçambique. Dessa

forma, por meio da sua poesia, recorre à metalinguagem, declara a sua expressiva

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adesão contra a situação do ser humano dentro do sistema colonial e o eu-poético

acaba por assumir a responsabilidade pelo protesto diante dos problemas

apresentados.

Bates-me e ameaças-me, agora que levantei minha cabeça esclarecida e gritei: “Basta!” Armas-me grades e queres crucificar-me agora que rasguei a venda cor de rosa E gritei: “Basta!” Condenas-me à escuridão eterna agora que minha alma de África se iluminou e descobriu o ludíbrio... E gritei, mil vezes gritei: “Basta”

Ó carrasco de olhos tortos, de dentes afiados de antropófago e brutas mãos de orango: Vem com o teu cassetete e tuas ameaças, fecha-me em tuas grades e crucifixa-me, traz teus instrumentos de tortura e amputa-me os olhos e condena-me à escuridão eterna... - que eu, mais do que nunca, dos limos da alma, me erguerei lúcida, bramindo contra tudo: Basta! Basta! Basta! (SOUSA, 2001, p. 133)

Nesse poema, o grau de conscientização do eu-poético é muito alto, não há mais

medo nem aceitação, não há mais a fase embrionária. Depois de todos os

esclarecimentos, escancara-se a descoberta, não permitindo mais nenhum tipo de

enganação frente os colonizadores que aparecem caricaturados como um carrasco de

olhos tortos, de dentes afiados de antropófago e brutas mãos de orango. Agora é hora

de dar um basta a toda submissão anterior em relação ao sistema colonial, revelando o

reconhecimento de todas as atrocidades promovidas e principalmente reagindo contra

qualquer opressão. Desvincula-se do ideário colonial português, até então dominante,

que sempre esteve profundamente empenhado em apresentar as populações negras

como destituídas de cultura, civilização e história.

O eu-poético se identifica com Noémia de Sousa, pois assume uma adjetivação

feminina “me erguerei lúcida, bramindo contra tudo” a qual lembra a representação do

pássaro Fênix que ressurge das cinzas. Metáfora para uma identidade que está

começando a se formar desgarrada da submissão colonial e reforçada através do

conhecimento das reais condições impostas ao colonizados. Além de seu empenho em

denunciar, por meio de sua poesia, os abusos do regime colonialista português na

África, Noémia de Sousa concede voz a um sujeito lírico declinado no feminino, de

maneira a desvelar a desumanidade do sistema econômico e político então vigente.

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Colocamo-nos, assim, perante um exemplo da necessidade de contextualizar social e

culturalmente o posicionamento da mulher africana, para uma análise rigorosa da sua

condição.

2.2. ECOS DA COLETIVIDADE

Foi salientado o importante papel dos jornais e revistas na divulgação dos

poemas e na iniciação do percurso poético de escritores como Noémia de Sousa, José

Craveirinha, entre outros, destacando-se a atuação de O brado africano, jornal de

grande prestígio em Moçambique. Na mesma perspectiva, Amílcar Cabral ressalta a

preponderância da revista Claridade em Cabo Verde, ao promover a mudança quanto à

identificação com a terra e a população local.

Bruscamente, porém, opera-se a transformação. A poesia cabo-verdiana abre os olhos, descobre-se a si própria, – e é o romper duma nova aurora. É a claridade que surge, dando forma às coisas reais, apontando o mar, as rochas escalvadas, o povo a debater-se nas crises, a luta do cabo-verdiano anônimo, enfim, a terra e o povo de Cabo Verde. Por isso, o caráter intencional – e felizmente intencional – do nome da revista que revela essa profunda modificação na Poesia Cabo-Verdiana:

Claridade. (CABRAL, 1976, p. 27).

Ainda conforme Amílcar Cabral, “os poetas, agora são homens-comuns que

caminham de mãos dadas com o povo, e de pés fincados na terra”. (CABRAL, 1976, p.

27). Em Moçambique também se tinha uma ligação às formas poéticas tradicionais, as

quais não se baseavam nas relações socioeconômicas nem nos movimentos da

história, contendo uma visão telúrica do fazer poético. Desta forma é que Alfredo

Margarido se posiciona quanto à maneira de fazer a poesia moçambicana num período

anterior aos anos de 1940.

O choque entre as formas poéticas existentes em Moçambique ganha assim o seu contorno peculiar, pois aquelas que se acantonam nas

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zonas idealistas de conhecimento, quer dizer, aquelas que consideram, quando muito, uma metafísica da ação, opõem-se àquelas que mergulham as suas raízes na consciência prática da práxis. Ora o que se procura é uma poesia que assente não só na realidade própria do poeta, mas que considere a exigência crítica que procura estruturar-se na práxis humana. (MARGARIDO, 1980, p. 480).

Os poetas interessados pelos movimentos sociais que irromperam pelo mundo

optaram por valores de igual significação. A luta anticolonial passa a ter um forte

impacto na produção literária que nasce do discurso dos combatentes, expressando o

próprio cotidiano de luta em todas as frentes de conflito, seja no enfrentamento ao

colonizador ou promovendo estratégias de aglutinar mais participantes para os

movimentos de resistência. Escrever sob a égide da repressão propiciou aos escritores

articular a escrita como instrumento de luta, como arma inteligente de ação em uma

época em que as certezas e os sonhos revolucionários animavam os combates em prol

das independências. Esses posicionamentos anticoloniais tinham um inimigo concreto:

o colonialismo.

Construindo elos com a memória, as vozes poéticas se utilizaram do ato de

lembrar, de não esquecer como uma forma de reflexão crítica para que o vivido nunca

mais viesse a ocorrer novamente. Os indivíduos que pareciam estar separados naquela

sociedade, e estavam de fato, foram colocados diante do mesmo sistema de exclusão e

desafiados por este. Os poetas nos colocam diante de uma série de significados muito

importantes, não só constituídos pela palavra, mas por outras linguagens, passando

pelas esculturas e entoação musical dos cânticos. Estratégias que funcionam contra a

violência e se reveste de luta contra a humilhação, de tal modo que o poeta se

transforma em tambor, como encontramos em José Craveirinha.

Oh velho Deus dos homens eu quero ser tambor e nem rio e nem flor e nem zagaia por enquanto e nem mesmo poesia. Só tambor ecoando como a canção da força e da vida Só tambor noite e dia dia e noite só tambor até a consumação da grande festa do batuque!

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Oh velho Deus dos homens deixa-me ser tambor só tambor! (CRAVEIRINHA, 1996, p 123).

Em “Quero ser tambor”, o eu-poético manifesta o desejo de se transformar em

um instrumento de difusão da sonoridade e do dinamismo da força que impulsiona a

vida. Ao reafirmar a vontade de ser tambor deixa clara a determinação em ressoar sua

indignação contra o condicionamento da violência dos opressores contra os oprimidos e

nesse momento é a voz que insurge e convoca para a guerra. A primeira intenção é ser

esse instrumento que evoca o direito da fala e da liberdade. Não deseja ser nenhuma

outra coisa a não ser som, posto que para muitas sociedades africanas, o ecoar dos

tambores significa o chamado para o combate ou um comunicado de batalha, evocando

também a ancestralidade e os costumes dos negros. No exercício de se metamorfosear

em som, o poeta intenta se comunicar através da música com os seus compatriotas até

o dia da grande vitória, sinalizada no poema como “festa do batuque”. A sua

metamorfose funciona como metonímia para a luta nacional. Dessa forma, a imagem do

tambor faz referência à metáfora para a independência do país. “Ser tambor”, nessa

primeira leitura, é ser livre, é ter o direito de praticar costumes negros, é assumir a

identidade cultural da nação, a partir de sua história, das crenças e de todo um legado

de seus ancestrais. Contextualizada com as questões particulares do espaço em que

habita, a poesia do escritor explicita a relação dos homens com o espaço, já que suas

reflexões políticas apontam para a necessidade de uma movimentação social em prol

da construção de uma nação mais igualitária e livre.

“Nossa Voz” é um poema de Noémia de Sousa, destinado ao companheiro José

Craveirinha, que representa uma reação coletiva não só dos escritores, a exemplo de

Antero, João Silva, Rui Guerra, Saul Sende, Duarte Galvão, João Mendes, Fonseca

Amaral, entre outros, mas evoca a interlocução de toda a população moçambicana e a

ressonância pretendida entre a sua poesia e a do grande poeta. Ao dedicar esse

poema ao José Craveirinha, Noémia de Sousa estabelece, entre as homenagens que

faz a ele, um diálogo entre o poema “Quero ser tambor”, respondendo-o com o “Nossa

Voz”. Os sons do tambor se transformaram em vozes, em palavras de contestação que

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brotaram do próprio ato da sua escrita em direção aos ecos poéticos compartilhados na

base dos movimentos de libertação.

Nossa voz ergueu-se consciente e bárbara sobre o branco egoísmo dos homens sobre a indiferença assassina de todos. Nossa voz molhada das cacimbadas do sertão nossa voz ardente como o sol das malangas nossa voz atabaque chamando nossa voz lança de Maguiguana nossa voz, irmão, nossa voz trespassou a atmosfera conformista da cidade e revolucionou-a arrastou-a como um ciclone de conhecimento. E acordou remorsos de olhos amarelos de hiena e fez escorrer suores frios de condenados e acendeu luzes de esperança em almas sombrias de desesperados... Nossa voz irmão! nossa voz atabaque chamando. Nossa voz lua cheia em noite escura de desesperança nossa voz farol em mar de tempestade

nossa voz limando grades, grades seculares nossa voz, irmão! nossa voz aos milhares, nossa voz milhões de vozes clamando! Nossa voz gemendo, sacudindo sacas imundas, nossa voz gorda de miséria, nossa voz arrastando grilhetas nossa voz nostálgica de ímpis nossa voz África nossa voz cansada da masturbação dos batuques de guerra nossa voz negra gritando, gritando, gritando! Nossa voz que descobriu até ao fundo, lá onde coaxam as rãs, a amargura imensa, inexprimível, enorme como o mundo, da simples palavra ESCRAVIDÃO: Nossa voz gritando sem cessar, nossa voz apontando caminhos nossa voz xipalapala nossa voz atabaque chamando nossa voz, irmão! nossa voz milhões de vozes clamando, clamando, clamando! (SOUSA, 1988, p 33-34).

O poema assume um tom uníssono de combate no enfrentamento ao sistema

colonial, estabelecendo uma relação com a gente dominada e trabalhadora de

Moçambique. O discurso é construído sobre bases que marcam a tradição oral, de uma

escrita que ressoa os ecos de um eu-poético que muito se assemelha aos contadores

de estórias em volta da fogueira. O próprio título do poema já nos dimensiona para o

plano da oralidade. Vários verbos deste fragmento nos remetem à ideia de militância,

de conscientização de valores em relação à condição do negro frente ao seu estado de

escravidão: “Nossa voz consciente e bárbara ergueu-se/ sobre o branco egoísmo dos

homens/ sobre a indiferença assassina de todos”. Estes três primeiros versos dizem

muito da condição de Noémia de Sousa enquanto aglutinadora frente ao seu trabalho

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de chamar a atenção de seus leitores, até porque tem plena consciência de quem quer

atingir. O branco é utilizado para realçar a atitude desumana tanto do colonizador como

dos negros que se rendem aos ideais colonialistas. Há também muitas alegorias que

compõem uma metáfora de ataque: nossa voz ardente.../ nossa voz atabaque.../ nossa

voz lança. Pode-se dizer que a opção por este tipo de linguagem é uma forma da

mesma driblar um meio social colonialista de repressão, demonstrando o quê emana

das vozes coletivas são dispositivos de luta. A escritora se insere no mesmo contexto

cultural de sua literatura, tentando reavivar as formas tradicionais apagadas pelo

discurso do colonizador e esquecidas pelos homens colonizados na tentativa de

legitimar a identidade cultural em processo.

Em “Nossa Voz” a seguida repetição anunciada desde o título, do pronome

possessivo nossa, que indica a posse de mais de uma pessoa, acaba por sugerir a

unidade de intenções apresentada pelo eu- poético preocupado com o ambiente de

reivindicações, formado num contexto marcado pela estratificação racial e social. Este

se inicia a partir da definição segura de como se eleva essa voz “consciente e bárbara”,

julgando a condição da própria existência e realidade que é dada. Voz que se organiza

em torno da contestação contra o “branco egoísmo dos homens” e da sua “indiferença”

perante as relações arbitrárias entre colonizado e colonizador.

Após identificar como surgiu e contra quem se ergue essa voz, revela-se sendo a

própria população moçambicana que, identificando-se com o seu local de origem,

organiza-se em favor da libertação nacional. O resultado dessa conjugação de forças

intenciona a alteração das linhas condutoras dos comportamentos da sociedade

colonial e imprime uma nova dinâmica nessas sociedades, onde os dominados

passariam a ser sujeitos da sua própria história, ultrapassando a indiferença, vencendo

os desafios e se livrando da aceitação tácita da condição de subalterno em sua própria

terra. Como define o final do poema Nossa Voz: “e acordou remorsos de olhos

amarelos de hiena/ e fez escorrer suores frios de condenados/ e acendeu luzes de

esperança em almas sombrias de/ desesperados”. A última estrofe encerra o poema

com o senso de companheirismo e participação tão peculiar á escritora, e o

chamamento de mais um irmão para a luta, nesse caso, especificamente José

Craveirinha, para juntos efetuarem a confrontação do sistema vigente.

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3. A POESIA NO ATLÂNTICO NEGRO

O complexo jogo das relações que se estabeleceu entre o continente africano e o

americano ultrapassou a empreitada realizada na importação de um grande contingente

de mão de obra para trabalhar nas lavouras, na mineração e produção do que viesse a

gerar riquezas.

De quase todos os recantos da África subsaariana ocorreu o tráfico de homens,

mulheres e crianças, todos deslocados de maneira forçada de um continente para

outro. Esse movimento indicativo das situações impostas aos africanos que foram

escravizados ao longo das rotas transatlânticas e levados ao desconhecido mundo da

“escravidão racializada” nas Américas, para utilizar um termo de Paul Gilroy. Tal

acontecimento condicionou de modo marcante os laços entre os países africanos, os

Estados Unidos e o Brasil.

Em O atlântico negro, Paul Gilroy, propõe um modo transnacional de refletir

sobre a experiência no mundo a partir da constatação de que as comunidades negras,

dos dois lados do Atlântico, estiveram em intenso intercâmbio desde os séculos XVIII e

XIX, e não apenas por causa do tráfico negreiro. Pessoas, mercadoria e cultura nas

mais diversas formas, música, culinária, literatura, entre outras transitaram

intensamente de um lado do Atlântico para o outro, nos dois sentidos, num tráfego

intenso que mudou, mas não acabou com o fim da escravidão. A permanência dos

laços criados pela colonização nas relações pós-coloniais, entre elas as migrações do

terceiro para o primeiro mundo, chamadas por ele de segunda diáspora, perpetuou o

Atlântico negro durante todo o século XX, ainda que pontos de vistas preocupados

primordialmente com a questão da identidade nacional tendam a ignorá-lo. No entanto,

Paul Gilroy afirma que “parece imperativo impedir que a diáspora se torne apenas um

sinônimo de movimento” (GILROY, 2001, p. 22), que não observemos o fenômeno

africano apenas como o resultado final do trânsito, uma vez que encarar dessa maneira

o fenômeno possibilitaria retirar dele o aspecto conflituoso e violento, mas percebamos

toda sua extensão de movimento enquanto busca, captura, negociações de venda,

armazenamento e a viagem já como cativos. A travessia no Atlântico, a chegada ao

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Novo Mundo e, finalmente, a adaptação e as manifestações culturais desses sujeitos

nas novas terras.

Nessa perspectiva o Paul Gilroy declara o desejo de ver “os negros percebidos

como agentes, como pessoas com capacidades cognitivas e mesmo com uma história

intelectual – atributos negados pelo racismo moderno.” (GILROY, 2001, p.40).

Entretanto, percebe-se no livro outras aspirações em busca de um pensamento crítico

sobre a condição negra que foge das armadilhas do essencialismo e do relativismo,

defendendo que nos libertemos das amarras do essencialismo racial, sem com isso

negar à categoria de raça sua validade como construção social e instrumento de luta

por igualdade. Na prática isso implica em confrontar posturas comuns entre pensadores

da condição negra e, nesse sentido, Gilroy argumenta contra o discurso nacionalista e

romântico que tem a África como origem de uma cultura negra pura, mostrando que as

culturas negras na África e na diáspora nunca viveram fechadas em si mesmas e nem

são grupos homogêneos sem divisões internas de gênero e classe. Ao mesmo tempo,

Gilroy rejeita a ênfase desmedida na textualidade que se torna um meio de esvaziar o

problema da ação humana, um meio de especificar a morte, por fragmentação, do

sujeito (GILROY, 2001, p.166).

A história da África foi marcada por grandes distorções e por teorias cientificistas

que tinham o firme propósito de inferiorizar as populações negras sob a tutela das

teorias raciais, na tentativa de explicar a exploração da escravidão. Por essa época

estavam em voga as famosas proposições extremamente racistas que tentavam

comprovar cientificamente a superioridade da raça branca sobre as demais,

principalmente a inferioridade do negro africano frente ao branco europeu, visando

camuflar, segundo Kabengele Munanga (1986), os objetivos econômicos e imperialistas

das grandes nações europeias, justificando assim a escravização e a colonização dos

povos por eles considerados inferiores. As teorias cientificistas mesmo tendo sido

desmascaradas como falsas o racismo, a exemplo do Brasil, tem um caráter de

construção social e não biológico.

Após serem arrancados de seus espaços referenciais e terem sido transportados

para outros continentes, muitos negros foram silenciados e impedidos de reconhecer

sua própria existência. Porém, no e durante o processo de diáspora africana, as

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reações contra a discriminação racial e a assimilação cultural a que os negros estavam

submetidos ganham dimensões políticas e culturais de valorização das heranças

africanas. Dessa forma, assim como o processo de racialização, isto é, o racismo

caracterizado e defendido a partir dos aspectos fenotípicos, ocorreu pelo mundo,

também a difusão de ideias de solidariedade por movimentos políticos e culturais em

uma perspectiva transatlântica, com abrangência na África, na Europa e no continente

americano acontece através de ações individuais e coletivas de intelectuais e pessoas

interessadas em reagir não só contra a segregação que separavam negros e brancos,

mas sim contra todo um conjunto de questões relacionadas à ausência dos direitos

humanos.

Os movimentos pelo mundo realçaram um estilo inquietante iniciado por poetas

negros norte-americanos que a partir de suas inquietações formularam problemáticas

baseadas em suas experiências culturais e sociais. (OLIVEIRA, 2001 p. 409). Nos anos

de 1916 e 1917 o movimento New Negro, criado por Hubert Harrison, idealizador da

primeira organização chamada A Liga da Liberdade e fundador do primeiro jornal do

Harlem, intitulado A Voz, cuja linha editorial, assim como o movimento trazia nas suas

bases o comprometimento com a conscientização de classe e igualdade política, no

propósito de acabar com a segregação e linchamentos ocorridos nos Estados Unidos.

O termo New Negro inspirou um grande número de respostas partindo de uma nova

linha de pensamento, em que o padrão referencial não poderia assentar sob os pilares

dos conceitos brancos, pois, pretendia-se realçar a dignidade do negro e reformular

uma nova imagem.

Esse movimento nascido a partir do pan-africanismo consolidou uma vertente

que revelou ao mundo uma nova maneira de ser negro, resgatando o orgulho da

identidade negra, revalorizando suas tradições e sua participação na história. O pan-

africanismo foi responsável pela quebra da mordaça imposta ao negro sufocado por

séculos de escravidão e anos de falsa liberdade. Esse movimento surgido nos Estados

Unidos no final do século XIX foi o estopim de outros movimentos que surgiram nas

primeiras décadas do século seguinte espalhando sua ideologia para além do solo

norte-americano, levando-o para onde quer que houvessem comunidades negras, e em

especial a África. A ideologia Pan-africanista nasceu da consciência de uma origem

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comum entre os negros dos Estados Unidos e do Caribe e surge de um sentimento de

solidariedade, pois ambos vivenciavam uma luta contra a segregação racial. Essa

solidariedade marca a segunda metade do séc. XIX por haver proposto a união de

todos os povos da África como uma das maneiras de tornar evidente a situação do

continente no contexto internacional.

No Brasil, Abdias Nascimento foi o grande defensor e divulgador do Pan-

africanismo e ressaltou a sua importância desse movimento para as populações

afrodescendentes. Tendo sido considerado um dos maiores defensores da igualdade,

ele conseguiu resultados amplamente positivos na defesa e na inclusão dos direitos dos

negros, além de manter o foco principal na prática da democracia, muito embora um

dos maiores desafio continue a ser o racismo. Autor do livro O quilombismo, produzido

e editado nos Estados Unidos no período de 1968 a 1978 quando se encontrava no

exilado, em função da perseguição do regime militar no Brasil, tem como temática

central a experiência dos africanos no Brasil, e a correlação dessa experiência de

mulheres e homens negro-africanos de qualquer parte do mundo em luta pela

reconquista de sua liberdade e dignidade, através de suas ações para assumir o papel

de protagonista na história. Segundo o autor, a obra pretendeu contribuir para o

conhecimento da trajetória histórica e social dos afro-brasileiros dado a ausência de

informação sobre o negro brasileiro para além das fronteiras nacionais. Para Abdias

Nascimento, vários autores produziram análises sobre a questão do negro no Brasil,

entretanto, todas elaboradas sob uma visão externa e superficial sobre a população

negra. Em 1980, o conceito de quilombismo faz surgir novas perspectivas no quadro

das discussões sobre relações raciais no Brasil. Apresentava uma proposta

sociopolítica para o Brasil, elaborada a partir do ponto de vista da população

afrodescendente, isso feito num período em que não se falava em ações afirmativas,

tampouco se cogitava políticas públicas voltadas à população negra. O escritor à época

já propunha uma coletividade afro-brasileira, sustentando ainda a afirmação de que a

questão racial é eminentemente uma questão nacional.

A proposta da união de todos os povos africanos como forma de potencializar a

voz do continente no contexto internacional foi responsável pela ideologia de unidade

política de toda a África e o reagrupamento das diferentes etnias, divididas pelas

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imposições dos colonizadores. Segundo o crítico literário português Pires Laranjeira

(1995), o Pan-africanismo propunha uma solidariedade que fosse além da geografia ou

da classe e o reconhecimento da identidade negra na sua realização nacional e

solidária com os africanos que foram desterritorializados pelo processo diaspórico.

Sobre o movimento pan-africanista o autor tece os seguintes comentários.

É, hoje, tido como assente que o Pan-africanismo influenciou todos os grupos e movimentos da sociedade, da política e da cultura dos negros africanos e extra-africanos no sentido de uma identificação com a sua comunidade racial e muitas vezes com um sentimento e uma prática de solidariedade e fraternidade universal. (LARANJEIRA, 1995, p. 51).

O primeiro desses movimentos surgiu no próprio solo norte-americano no

começo da década de 1920, e ficou mundialmente conhecido pelos nomes de Black

Renaissance, Harlem Renaissance, New Negro, ou simplesmente Renascimento Negro

Norte-americano. Formado principalmente por intelectuais e artistas, esse movimento

reivindicou o lugar do negro na sociedade norte-americana, que foi e ainda é uma das

sociedades mais segregacionistas do mundo, onde o indivíduo negro não é

reconhecido como elemento importante no processo histórico de construção social e

nacional, além de ter cerceadas suas prerrogativas essenciais de cidadão norte-

americano. Por não usufruir dos direitos dispensados aos seus compatriotas brancos,

os cidadãos negros se enquadram a uma ordem social de escolas, restaurantes e

igrejas de melhor nível para os brancos e de categoria inferior para os negros. Essa

divisão social determinada pela origem racial colaborava para a manutenção da antiga

relação entre o senhor e o escravizado. Foi contra essa ordem histórico social que os

integrantes desses movimentos se insurgiram. Segundo Zilá Bernd (1988), no Harlem,

bairro negro de Nova York, nos anos de 1920, havia uma população estimada em 300

mil negros, a qual não tinha deixado morrer formas artísticas herdadas de sua

ancestralidade africana.

O Renascimento Negro Norte-americano, juntamente com os movimentos

culturais que vieram depois, tendo como matérias-primas a exaltação, o orgulho da

raça, a fidelidade à origem africana e a solidariedade, estabeleceram pontes que

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tornaram possível o trânsito cultural e o compartilhamento de informações e

experiências entre esse mundo disperso pelas Américas, Europa e África. Tais

componentes são discutidos pelo historiador João José Reis que reforça a importância

dos aspectos culturais para a manutenção da memória dos escravizados.

A alienação do escravo em relação à cultura branca caminhou de mãos dadas com o fortalecimento da cultura exclusivamente escrava. Em lugares como o Haiti, a Jamaica e a Bahia, onde a maioria da população era escrava e liberta, houve maior oportunidade para os cativos reterem valores, símbolos e instituições africanas e constituírem uma cultura afro-americana nova, recriada, prática, enfim, viável. Apesar da repressão cultural branca não ser negligenciável, esta oportunidade aumentava onde o número de escravos africanos era superior ao de nascidos localmente. A sistemática introdução de africanos novos também significou uma renovação constante do input cultural africano sobre os escravos vivendo no Novo Mundo, mesmo entre os aqui nascidos. A coesão cultural era ainda maior quando os africanos importados se originavam de grupos étnicos comuns (REIS, 1983, p.112).

Como movimento poético-cultural ou político-social, todas as manifestações

desempenharam um papel histórico respeitável, de vital importância no processo de

descolonização das colônias europeias na África. Levado a cabo no período pós-guerra

e também como instrumento de conscientização do negro ao qual tenha sido imposta a

diáspora, através da desconstrução de estereótipos seculares atribuídos a ele, levando-

o à construção de uma nova identidade e à reivindicação dos direitos negados durante

séculos. Segundo Maria Nazareth Fonseca, as várias vertentes de atuação desse

movimento “foi responsável por uma reflexão teórica e uma produção literária que

trabalha temas relacionados à situação vivida pelo negro na sociedade segregacionista

americana”. (FONSECA, 2006, p. 31). Ainda de acordo com Maria Nazareth Fonseca os

poemas desses vários escritores norte-americanos reforçavam um imaginário sobre a

África, pois procuravam responder à questão “What is Africa to me?”. O que é a África

para mim? Verso do poema “Heritage”, de Couteen Cullen.

Tal imaginário, embora construído à distância do continente africano fazia dele o berço de todos os negros e transformava a cor negra num signo de desconstrução dos estereótipos negativos utilizados para

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excluir os afrodescendentes. A “literatura negra” assume, por isso uma intenção de denúncia e seus criadores se consideram porta-vozes dos negros na diáspora. (FONSECA, 2006, p. 31).

A repercussão das manifestações culturais encontradas nas canções de lamento

e de reivindicação saídas do Harlem repousa nas poesias de Noémia de Sousa que,

àquela altura, já estabelecia similitudes entre a situação do Sul dos Estados Unidos e a

situação de Moçambique, conforme observou de Nelson Saúte, na introdução de

Sangue negro. A literatura dos escritores do Renascimento Negro, principalmente a do

poeta Langston Hughes, percorreu todo o mundo negro, estimulando a eclosão de

outros movimentos similares na América, a exemplo do Indigenismo haitiano e o

Negrismo cubano, que tem Nicolás Guillén como sua representatividade maior.

Noémia de Sousa toma conhecimento do Negrismo cubano, que teve a poesia

como o gênero literário predominante, por meio da revista Vértice, cuja poesia teve uma

repercussão comparável a do norte-americano Langston Hughes. Esse foi mais um

movimento inspirado no Renascimento negro norte-americano e com afinidades com o

Indigenismo haitiano, surgindo em 1930, quando Nicolas Guillén publica Motivos de

son, a obra que revoluciona a poesia cubana, afastando-a em definitivo da

subserviência em relação aos modelos europeus, conforme pontuação de Zilá Bernd

(1988).

Diante desse novo contexto mundial, algumas tendências se acentuarão em

torno da celebração de valores e concepções próprias das culturas africanas e a

valorização de elementos culturais referentes às manifestações populares dos países

africanos. A África será reinterpretada, agora de maneira bem distante dos paradigmas

corriqueiros e preconceituosos correspondentes ao desconhecimento de milhares,

passando a ser percebida em suas expressões culturais formada com a presença dos

africanos no processo da diáspora. De acordo com Pires Laranjeira (1995), a ideia de

negrismo consistiu no trabalho poético a partir da linguagem e das culturas crioulas,

musical e folclórica populares, mestiças e nacionais de Cuba.

Nesse período de afirmação que precede a luta de libertação nacional, os

intelectuais africanos estavam sendo conduzidos por uma atitude de adesão à condição

do homem negro que tinha por base comum os traços culturais africanos. Segundo

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Frantz Fanon, no período de afirmação, “os homens de cultura africana falavam mais de

cultura africana do que de cultura nacional e a literatura se propunha como literatura de

negros ou do mundo negro” (FANON, 1961, p. 209). Dessa forma, a poesia de Noémia

de Sousa visa não só uma especificidade moçambicana, mas se estende a um sentido

amplo, referenciado na noção continental de África, as dificuldades dos outros países,

contudo sem perder de vista a sua localidade, os problemas socioculturais de

Moçambique. Em muitos poemas, a África é tratada como mãe, aquela que foi

colonizada, invadida, abusada e destroçada por estrangeiros colonizadores. A exemplo

do poema Sangue Negro em que destacamos os versos: “Ó minha África misteriosa e

natural,/ minha virgem violentada,/ minha mãe!”.

3.1. A LITERATURA NAS AMÉRICAS

Quando os negros de todo o mundo começaram a problematizar o seu lugar na

história muitos escritores africanos passaram a revelar o novo compromisso com a

reafricanização literária, a fim de buscar no espaço artístico e discursivo das Américas

diálogos que servissem como ponte para a construção de uma fala pela qual se viesse

a resgatar o sentido da africanidade.

No contexto socialmente reivindicativo e ainda anticolonial das literaturas

africanas o horizonte ideológico promovia um olhar para outros poetas de outros

sistemas literários que já discutiam as desigualdades e injustiças como o cubano

Nicolás Guillén que foi considerado “a voz mais alta da negritude de expressão

hispano-americana”, sendo o poeta símbolo na antologia do angolano Mario de

Andrade e do são-tomense Francisco José Tenreiro. De acordo com Laura Padilha, um

fator histórico concreto que possibilitou a emergência de um sentimento de

aproximação com os escritores das Américas entre os africanos de língua portuguesa,

dentre outros igualmente elencáveis, “foi a vivência metropolitana de certa elite que ia

buscar, em Lisboa e Coimbra, principalmente, as bases de sua formação universitária

[...] Vivência que fez cada vez mais os intelectuais africanos se conscientizassem do

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papel histórico” (PADILHA, 2001, p.7). A necessidade de disseminar um canto novo, a

voz de Guillén, sempre a gritar contra os agentes da subalternidade e opressão, dentro

e fora de seu país ressoou entre os escritores africanos. Nicolás Guillén, negro e

comunista, assim como Jorge Amado suscitou muita esperança e vivacidade para a

prática revolucionária da intelectualidade moçambicana.

O profícuo diálogo existente entre as Américas é o que serve de inspiração a

Noémia de Sousa em um dos seus poemas quando homenageia o escritor Jorge

Amado e o cita em outro quando, revelando a importância da obra do escritor baiano

que atravessou o Atlântico, chegando em terras moçambicanas, estimulou jovens

escritores para a possibilidade de poderem utilizar a sua cultura e as manifestações

populares nas escritas ficcionais.

Em Poema a Jorge Amado é descrita a relevância das ambientações, paisagens,

dos aspectos culturais e principalmente do “jeito” das personagens que aproximavam

povos distantes pelas dimensões geográficas, mas próximos graças às similitudes e

familiaridades estabelecidas, certamente pelas semelhanças físicas, comportamentais e

principalmente por uma ancestralidade que ligava um continente a outro. Ao distinguir

obras que apresentam a resistência como tema ou como processo inerente à escrita

Alfredo Bosi destaca que “É nesse sentido que se pode dizer que a narrativa descobre

a vida verdadeira, e que esta abraça e transcende a vida real”. (BOSI, 1996 p. 13).

Neste trabalho dedicado à poesia, podemos perceber a prosa impactando a

poesia, em homenagem a prosadores brasileiros. Nesse sentido, chama atenção o

encantamento de inúmeros poetas com relação à prosa de Jorge Amado, entre eles

Noémia de Sousa.

O cais... O cais é um cais como muitos cais do mundo... As estrelas também são iguais Às que se acendem nas noites baianas De mistério e macumba... (Que importa, afinal, que as gentes sejam moçambicanas ou brasileiras, brancas ou negras?) Jorge Amado, vem! Aqui, nesta povoação africana O povo é o mesmo também

É irmão do povo marinheiro da Baía, Companheiro Jorge Amado, Amigo do povo, da justiça e da liberdade! Não tenhas receio, vem! Vem contar-nos mais uma vez tuas histórias maravilhosas, teus ABC’s de heróis, de mártires, de santos, de poetas do povo! Senta-se entre nós e não deixes que pare a tua voz! Fala de todos e, cuidado! não fique ninguém esquecido:

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nem Zumbi dos Palmares, escravo fugido, lutando, com seus irmãos, pela liberdade; nem o negro Antônio Balduíno, alegre, solto, valente, sambeiro e brigão; nem Castro Alves, o nosso poeta amado; nem Luís Prestes, cavaleiro da esperança; nem o Negrinho do Pastoreio, nem os contos sem igual das terras do cacau - terra mártir em sangue adubada - essa terra que deu ao mundo a gente revoltada de Lucas Arvoredo e Lampião!

Ah não deixes que pare a tua voz, Irmão Jorge Amado! Fala, fala, fala, que o cais é o mesmo Mesmas as estrelas, a lua, E igual à gente da cidade de Jubiabá - onde à noite o mar tem mais magia, Enfeitiçado pelo corpo belo de Iemanjá -, Vê! Igual à tua É esta gente que rodeia! Senão, olha bem para nós, Olha bem! (SOUSA, 2001, 136 -138)

Ao se dar destaque à vida, as pessoas trabalhadoras ganham significado e

importância, não por sua cor ou nacionalidade, mas sim pelo conjunto de suas ações e

gestos, independentemente do status socioeconômico cultural que ocupam na

sociedade. Os sujeitos de um lado a outro dos continentes são parecidos, os trabalhos

e a exploração são semelhantes, porém cá no Brasil a independência já ocorrera,

sendo mais um elemento que incentiva os escritores a acreditarem na reversão de um

sistema, através da imagem enaltecida como construtora de um imaginário baiano e

brasileiro, como proposta de um modelo social sincrético e mestiço, que se volta aos

mais pobres e desprovidos da sociedade, ao povo, subvertendo os valores culturais e

de classe que os relegam a condições inferiorizantes. Nos textos de Jorge Amado o

povo ganha vida, destaque e são peças fundamentais na constituição da sociedade

brasileira.

No poema de Noémia de Sousa, o cais acaba por ser um ambiente de reflexão

sobre o contexto geral, a denúncia da exploração, as péssimas condições de vida dos

moradores da periferia e a existência de segmentos sofredores da população, servindo

também para a compreensão da relação dos negros com o candomblé, dadas as

vivências do sagrado nas noites de “macumba”. Os espaços de representação são os

lugares, que indicam uma simbologia, como por exemplo, os espaços religiosos, que,

segundo Rosendhal (1999, p. 232) configuram-se como “Uma das mais fantásticas

dimensões geográficas da experiência religiosa é a noção de espaço sagrado”.

A celebração de impulsos e desejos, o movimento de paixões e segredos que

une os povos provoca a junção de brasileiros e moçambicanos, negros e brancos na

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direção de um mesmo caminho em busca da solução dos problemas. “Aqui, nesta

povoação africana/ O povo é o mesmo também”. Quando Jorge Amado é citado no

poema, isso ocorre pelo escritor se solidarizar com o homem e seu drama, pelo

compromisso de uma escrita engajada de cunho popular, tendo o povo como o centro

de suas narrativas. A atuação do escritor no exercício da sua escrita ficcional, destaca-

se pela apresentação do modo de vida proletário, a forma de descrever a cidade do

Salvador, as fazendas de Ilhéus, os espaços não convencionais, a população de rua e

os trabalhadores do cais.

No Poema a Jorge Amado, o eu-poético prossegue com pedidos pela presença

do escritor em Moçambique como representação do desejo da continuidade das

histórias reveladas por cada aventura, desventuras, amores, lutas, sofrimentos, força,

combate e trajetória das personagens que são gente facilmente identificável com as

pessoas que figuram a vida cotidiana apresentada nas poesias de Noémia de Sousa. A

recepção das histórias contadas por Jorge Amado contribuiu para a construção da

imagem do Brasil de homens e mulheres que, a despeito da árdua luta pela

sobrevivência, vivem para celebrar a vida. O imaginário coletivo estava recheado de

heróis, ativistas e revolucionários que se empenhavam para promover a mudança tão

necessária para melhores condições de vida. Desta forma, verifica-se uma literatura

inserida no momento histórico que inspirava uma nova realidade a fim de transformá-la.

A obra de Jorge Amado alcança escritores dos cinco países africanos de língua

portuguesa, tornando-o o mais importante dentre os outros que fizeram a travessia,

como Graciliano Ramos, Manuel Bandeira, José Lins do Rego, Jorge de Lima, Érico

Veríssimo, Rachel de Queiroz, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo

Neto, isso apenas para citar alguns. Isso porque era latente nesses países a

necessidade de se ter os “Brasis” retratados por Jorge Amado, era um sonho a ser

realizado em terras africanas, tendo como consequência direta a interdição de seus

livros, pois eram proibidos pelos conteúdos revolucionários e de luta por melhores

condições de vida.

A obra do ficcionista, por alimentar o desejo de liberdade, percutiu positivamente

em Moçambique, contribuindo, sobremaneira, para os anseios libertários em prol da

extinção do regime colonialista. Mia Couto, escritor moçambicano, embora não sendo

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contemporâneo de Noémia de Sousa, anuncia os sentimentos provocados pelas

narrativas de Jorge Amado em que o Brasil era “tão cheio de África, tão cheio da nossa

língua e da nossa religiosidade” e também confessa ser um dos que bebem na fonte de

inspiração dos textos quando diz:

Jorge Amado não foi apenas o mais lido dos escritores estrangeiros. Ele foi o escritor que maior influência teve na gênese da literatura dos países africanos que falam português. Jorge escreveu sem deixar nunca de ser um poeta do romance. Este era um dos segredos do seu fascínio: a sua artificiosa naturalidade, a sua elaborada espontaneidade. (COUTO, 2011, p. 61-63).

A sensação de partilhar com os textos de Jorge Amado o senso de solidariedade

e de pertença ao Brasil fez muitos escritores iniciarem suas produções a partir do

diálogo com as personagens da várias narrativas que chegavam aos países africanos

de língua portuguesa. Outro momento de diálogo a que venho me referindo é no poema

com o título Poema de João, em que a homenagem feita a Jorge Amado ocorre quando

o eu poético informa que João era um homem sonhador, visionário, sensível e parte

integrante de Moçambique, “era pai, era mãe e irmão das multidões”.

João amava a arte, a leitura, amava a Poesia de Jorge Amado, amava os livros que tinham alma e carne, que respiravam vida, luta, suor, esperança... (SOUSA, 2001, p. 116).

Ao elencar a grandiosidade de João, um dos fatos que o tornam diferenciado,

atuante e engajado, é gostar da leitura dos livros de Jorge Amado. Essa caracterização

aparece em dois momentos do poema, como para enfatizar a qualidade repete: “amava

a arte, a poesia e Jorge Amado”. E ainda para expressar a disseminação desses

contatos, revela que João é todos os moçambicanos, é a multidão. E quem pode com a

multidão? Sentido maior que reúne a coletividade em prol de uma única e desejada

direção, a libertação.

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A presença do Brasil na poesia de Noémia de Sousa se mantém vigorosa uma

vez que o diálogo com o país é muito frutífero tanto nas tessituras do texto quanto nos

conhecimentos históricos e políticos da realidade brasileira. No poema “Samba” há

elementos representativos de alguns traços da presença do Brasil como referência

cultural e de superação do colonialismo. A vibração que emana de um ritmo nascido em

um país considerado irmão provoca a mudança de atmosfera como uma magia

contagiante.

No oco salão de baile cheio das luzes fictícias da civilização dos risos amarelos dos vestidos pintados das carapinhas desfrisadas da civilização o súbito bater de jazz soou como um grito de libertação, como uma lança rasgando o papel da celofane das composturas forçadas. Depois, veio o som grave do violão a juntar-lhe o quente latejar das noites de mil ânsias de Mãe-África, e veio o saxofone e o piano e as maracas matraqueando ritmos de batuque, e todo o salão deixou a hipocrisia das composturas [encomendadas e vibrou. Vibrou! As luzes fictícias deixaram de existir. E quem foi que disse que não era o luar dos xingombelas, aquela luz suave e quente que se derramou no salão? Quem disse que as palmeiras e os coqueiros, os cajueiros, os canhoeiros, não vieram com suas silhuetas balouçantes rodear o batuque?

Ah, na paisagem familiar, os risos se tornaram brancos como mandioca os requebros na dança traziam a febre primitiva de batuques distantes, e os vestidos brilhantes da civilização desapareceram e os corpos surgiram vitoriosos, sambando e chispando, dançando, dançando... Oh ritmos fraternos do samba, trazendo o feitiço das macumbas, o cavo bater das marimbas gemendo lamentos despedaçados de escravo, oh ritmos fraternos do samba quente da Baía! Pegando fogo no sangue inflamável dos mulatos fazendo gingar os quadris dengosos das mulheres, entornando sortilégios e loucura nas pernas bailarinas dos negros... Ritmos fraternos do samba herança de África que os negros levaram no ventre sem sol dos navios negreiros e soltaram, carregados de algemas e saudade, nas noites mornas do Cruzeiro do Sul Oh ritmos fraternos do samba, acordando febres palustres no meu povo embotado das doses do quinino europeu... Ritmos africanos do samba da Baía, com maracas matraqueando compassos febris

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– Que é que a baiana tem, que é – violões tecendo sortilégios xicuembos e atabaques soando, secos, soando... Oh ritmos fraternos do samba! Acrodando o meu povo adormecido à sombra dos embondeiros, dizendo na sua linguagem encharcada de ritmos

que as correntes dos navios negreiros não morreram não, só mudaram de nome, mas ainda continuam, continuam, os ritmos fraternais do samba! (SOUSA, 2001, p. 97 -99).

A expressividade da música, da dança rompe com a imposição de uma maneira

de ser distanciada das práticas culturais africanas. A mudança ocorre quando o jazz

feito “um grito de libertação” rompe com aquele padrão forçadamente estabelecido. A

ruptura total se dá com a entrada do samba que, através de seu ritmo, desencadeia um

processo de identificação com os batuques e danças que recordavam a África,

afastando os elementos referenciais da Europa. Assim nascem e se formam sistemas

simbólicos em que patrimônios culturais são gerados e mantidos por gerações na

identificação de traços culturais das populações africanas. A estética assume papéis de

resistência e criação de identidades correlacionadas com as longas trajetórias de

civilizações e sociedades africanas que se reorganizaram nas Américas.

No Atlântico negro, as definições de cultura sempre estiveram afastadas do

singular. Diante da riqueza de agentes, contextos e processos sociais, falar em cultura

significa pluralizar os significados e enfoques. Em diferentes cenários de recriação é

através da transmissão das diversas expressões de matrizes africanas que se

encontram a música e a dança que provocaram o retorno da ancestralidade, os

xingombelas, que, segundo informação obtida em dicionário informal moçambicano,

trata-se de uma dança tradicional originária de Moçambique na província de Gaza e

também encontrada em outras regiões até a província de Maputo. Essa dança era

praticada de noite, por jovens entre rapazes e meninas da mesma idade ou

aproximadas. Entre eles, tocavam batuques, apitos, xipalapala (chifres de gazela) e

vestiam-se de peles de animai, saias de palha, pulseiras de linhas de saco,

atravessavam entre as costas e a cintura um pedaço de pele que comparece para

também festejar as batucadas do samba.

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A força da musicalidade do Brasil tem no samba o ritmo herdado da nossa

ancestralidade africana que no poema segue os caminhos percorridos por uma história

que começa na diáspora africana e religa o Brasil a Moçambique. Esse gênero musical

nos permite, mais uma vez, refletir sobre a contribuição sociocultural dos africanos e

afrodescendentes para a formação do Brasil. Sendo uma manifestação da cultura

popular brasileira, o samba, no sentido expresso do poema, preserva as origens e

confere significados à história dos brasileiros com o continente africano e vice-versa,

percebida quando o eu poético identifica “os ritmos africanos no samba da Baía”. Para

Muniz Sodré (1998 p.10), o samba se configura como um aspecto da cultura negra,

considerando-o como continuum africano no Brasil e modo brasileiro de resistência

cultural que encontrou em seu próprio sistema recursos de afirmação da identidade

negra. Ainda segundo Muniz Sodré, o samba sempre possuiu espaços e circuitos de

produção paralelos que permitem que ele se mantenha como um movimento de

afirmação e continuidade dinâmica e histórica de valores da cultura negra:

É no interior desses lugares paralelos que o samba pode ainda hoje constituir-se numa prática de resistência cultural negro-popular. [...] O samba, entretanto, é muito mais que uma peça de espetáculo, com mal definidas compensações financeiras. O samba é o meio e o lugar de uma troca social, de expressão de opiniões, fantasias e frustrações, de continuidade de uma fala (negra) que resiste à sua expropriação cultural. (SODRÉ, 1998, p. 58).

Uma das idéias mais comuns sobre o samba é a sua associação com valores

simbólicos do negro ou de uma ligação com a África, com culturas africanas, com traços

culturais que remetem à África. Duas vertentes principais caracterizam essa posição.

Uma tem orientação histórica e sugere que os valores originados das culturas de

origem africana se mantêm vivos na prática do samba e buscam na cultura negra as

fontes que dão significado ao samba, associando-o ao sentido de identidade para

ressaltar o lugar do desenvolvimento dessa manifestação cultural, como chave para o

entendimento da dança como prática social de resistência.

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3.2 POESIA E MÚSICA

É nesse contexto que Noémia de Sousa, sem abandonar as exigências coletivas,

revela em suas poesias as vozes que ecoam através das canções que saem dos

Estados Unidos. Não se trata de uma evocação que pretenda fechar o poeta no seu

próprio ego. Pelo contrário, deseja mostrar que as raízes são moçambicanas, fincadas

nas peculiaridades do espaço vivenciado, deixando marcados, assim, na sua produção

poética os fortes tons libertários pela luta anticolonial. Decerto, é notório que os poemas

invocam tradições originárias do continente africano, com destaque para Moçambique,

assim como estabelece um diálogo com manifestações culturais externas, igualmente

identificada com as culturas africanas no cenário da diversidade do continente.

No poema “Deixa passar o meu povo”, que dialoga com o spiritual Let my people

go e tematiza o cativeiro de Moisés e do seu povo no Egito dos faraós, explicita-se a

relação da poética de Noémia de Sousa com os pressupostos do Harlem Renaissance.

No poema, o eu-poético manifesta o seu lugar de pertença, quando se refere a

Moçambique como espaço de construções simples e pobres, onde a desigualdade

social e racial prevalecia, mas valorizada pelas vivências do cotidiano. É nesse local

que sente as emanações contidas nas músicas vindas das longínquas Américas pelo

rádio. Nesse poema, a música está presente e desta vez desempenha o papel

fundamental de elo de ligação entre as diferentes margens do Atlântico.

Noite morna de Moçambique e sons longínquos de marimbas chegam até mim - certos e constantes - vindos não sei eu donde. Em minha casa de madeira e zinco, abro e deixo-me embalar... Mas vozes da América remexem-me a alma e os nervos. E Robeson e Marian cantam para mim spirituals negros do Harlem. “Let my people go” - oh deixa passar o meu povo,

deixa passar o meu povo -, dizem. E eu abro os olhos e já não posso dormir. Dentro de mim, soam-me Anderson e Paul e não são doces vozes de embalo. “Let my people go”. Nervosamente, eu sento-me à mesa e escrevo... Dentro de mim, deixa passar o meu povo, “oh let my people go...” E já não sou mais que instrumento do meu sangue em turbilhão

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com Marian me ajudando com sua voz profunda – minha irmã! Escrevo... Na minha mesa, vultos familiares se vêm debruçar. Minha Mãe de mãos rudes e rosto cansado e revoltas, dores, humilhações, tatuando de negro o virgem papel branco. E Paulo, que não conheço, mas é do mesmo sangue e da mesma seiva amada de [Moçambique, e misérias, janelas gradeadas, adeuses de magaíças, algodoais, o meu inesquecível companheiro branco E Zé – meu irmão – e Saúl, e tu, Amigo de doce olhar azul, pegando na minha mão e me obrigando a escrever

com o fel que me vem da revolta. Todos se vêm debruçar sobre o meu ombro, enquanto escrevo, noite adiante, com Marian e Robeson vigiando pelo olho luminoso do rádio - “let my people go oh let my people go!” E enquanto me vierem de Harlém vozes de lamentação e meus vultos familiares me visitarem em longas noites de insônia, não poderei deixar-me embalar pela música fútil das valsas de Strauss. Escreverei, escreverei, com Robeson e Marian gritando comigo: Let my people go, OH DEIXA PASSAR O MEU POVO! (SOUSA, 2001, p. 57-59).

Em um poema como “Deixa passar o meu povo”, o eu-poético delineia uma

poetisa comprometida com as causas que a mobilizam na escrita. É marcante a

presença, na enunciação poética, da necessidade de se resgatar as lutas de libertação

e emancipação dos negros nas mais diferentes partes do globo. Tal imperativo político

é perceptível nos momentos em que se faz referência aos lamentos de spirituals e blues

dos irmãos estadunidenses, transportando essas referências do Harlem para o espaço

moçambicano. O rompimento das fronteiras nacionais em seu apelo aos irmãos negros

deixa de ter caráter meramente moçambicano, passando a ecoar metonimicamente

como a voz de todos os escritores do continente africano, submetidos a diferentes

regimes de opressão colonialista. Sons que ecoados pela marimba provocam o

sentimento de transformação.

A marimba é um instrumento musical percussivo de origem africana, cuja palavra

é quimbundo, uma das línguas de Angola. Conforme acepção do dicionário Michaelis,

produz uma sonoridade que ajuda a acalentar através da sutileza dos sons. Este

instrumento foi usado também nas antigas colônias portuguesas. De acordo com o que

consta na literatura brasileira, como, por exemplo, em Pena de Morte, de José do

Patrocínio, os antigos escravizados brasileiros, também faziam uso da marimba.

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Sob a copa das grandes árvores do descampado, o chão acolchoado de folhas assemelha-se a uma praia coberta de conchas de ouro, mas conchas sonoras, como pequenas marimbas cujas cordas dedilhassem o tênue sopro da aragem. E a multidão dos canários que aí se abriga da crueldade da canícula. (PATROCÍNIO, 1977, p. 70).

Atreladas às entonações suaves das marimbas, observam-se também “as vozes

da América”, vozes bem definidas das negras canções americanas que juntas

exarcebam a sensibilidade e consciência do eu-poético. Noémia de Sousa coloca em

diálogo “os sons que invadem a noite moçambicana vindos dos bairros pobres de

madeira e zinco” e “as vozes negras que entoam, no Harlem distante, a conclamação

da liberdade”. O eu-poético escuta, na morna noite de Moçambique, o chamado de

seus irmãos norte-afro-americanos, que, entoando um spiritual originário do sul dos

Estados Unidos, evocam o sofrimento do povo eleito na Bíblia, em seu momento crucial

de fuga do cativeiro no Egito, tal como está relatado no Êxodo. Let my people go, diz o

refrão, ecoando nas paredes do Harlem e na “casa de madeira e zinco” em

Moçambique. Nesta mesma casa se fundem os “sons longínquos de marimba”, vindos

não se sabe de onde, talvez da rua em frente, talvez de um passado mítico em que

jazem os ancestrais, e a canção no rádio, marca de modernidade, que traz as “vozes da

América” para remexer alma e nervos, restabelecendo as marcas de denúncia e

protesto anticolonial apresentados em voz de mulher.

Os cantores negros norte-americanos Marian Anderson e Paul Robeson foram

intérpretes de um estilo musical de matriz africana, a qual conquistou outros espaços,

principalmente a Europa, possibilitando aos negros de outras partes do mundo se

sentirem orgulhosos ao verem pessoas da sua raça vencendo as barreiras impostas

pelo racismo, e assim consolidando o sentimento de solidariedade entre todos os

negros. Por isso, o poema diz: “Dentro de mim soam-me Anderson e Paul /e não são

doces vozes de embalo” (SOUSA, 2001, p. 57). Longe de ser acalentada pelo doloroso

canto dos músicos, o sujeito poético sente-se provocado por eles, a, nervosamente,

sentar-se à mesa, e escrever.

Música, artes plásticas e literatura, constituíram discursos em que se construiu

esse novo sujeito negro, fruto de um momento político para o qual confluíram as

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experiências dos intelectuais negros das Américas, do Caribe e da África. A música

passou, então, a ser destacada na literatura negra, como exemplifica o poeta angolano

e primeiro presidente de Angola independente, Agostinho Neto.

Quando a música negra americana invadiu os salões da Europa, os negros de todo o mundo sentiram com os seus irmãos americanos a alegria de poderem ser ouvidos, mesmo através do trompete. Os murros de Joe Louis foram aplaudidos em todo o mundo negro. Porém, mais importante do que estes factos é o sentimento de solidariedade e de comunidade que existe entre os negros de todo o mundo. Este mundo disperso pelas Américas, Europa e África, formado fora e dentro de África por indivíduos desenraizados dos seus povos e das suas culturas, mestiços culturais, portanto, vivendo marginalmente na civilização européia, descobriu-se a si próprio. (NETO, 2000, p. 53).

A projeção internacional de Marian Anderson e Paul Robeson teve grande

significado para a luta contra o racismo em todo o mundo, pois se discutia o lugar do

negro nas sociedades, com especial destaque para as contribuições da África nos

outros continentes. Nesse sentido, Noémia de Sousa tirou proveito dos intercâmbios

culturais para mais uma vez fazer ressoar as dores sofridas pelos negros

moçambicanos no período colonial.

O poeta moçambicano José Craveirinha (2000) afirma que nos poemas de

Noémia de Sousa é ela cantando para sua Mãe-África e todos os seus irmãos de

destino, que não se restringem aos solos de Moçambique, mas a todos aqueles que

sofrem as agruras da discriminação. Dessa forma, sua poética tem como um de seus

alicerces a solidariedade com todos os seus irmãos negros. Assim como Robeson e

Marian, ela também se torna porta-voz dos oprimidos, quando diz: “Todos se vêm

debruçar sobre o meu ombro,/ enquanto escrevo, noite adiante”. É através da escrita de

um poema que se cria o elo entre as distantes vozes da América e o povo

moçambicano e, por extensão a todos os povos africanos, concebendo uma

solidariedade universal que se estende também às populações oprimidas.

Ao ultrapassar as fronteiras moçambicanas, Noémia de Sousa marca mais uma

vez o seu posicionamento perante a situação política e social de Moçambique,

mostrando estar sensível à musicalidade de um canto novo, modulado nas referências

da África ancestral cantada por seus descendentes em várias partes do planeta.

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No centro desse processo de identificação com base na história compartilhada,

encontra-se, evidentemente, a experiência racial que agregada às experiências

diaspóricas, produziu, através dos discursos estéticos e políticos, um forte espaço de

identificação com a atual “exclusão da sociedade política moderna” (GILROY, 2001, p.

164) tornando-se vigilante, a postura de muitos artistas e intelectuais negros. Por isso,

como o eu poético declara, “Não poderei deixar-me embalar pela música fútil/ Das

valsas de Strauss”.

O movimento intelectual de negros americanos que se empenharam em valorizar

a cultura negra nos Estados Unidos, com a participação de escritores e músicos,

repercutiu na poesia de Noémia de Sousa. Foi este o primeiro movimento cultural que

surgiu no seio da comunidade afro-americana e correspondeu aos anos da Harlem

Renaissance da década de 1920.

O grupo do Harlem, constituído por poetas, romancistas, ensaístas, teatrólogos,

cientistas sociais, artistas e expoentes do jazz, inovou ao recuperar a utilização estética,

o passado africano, até então visto como culturalmente desprezível. Observa-se neste

sentido que, até inícios do século XX, inexistia em geral no Ocidente qualquer

concepção de uma estética africana, conforme o antropólogo Kabengele Munanga,

surgiria de início nas artes plásticas a partir dos movimentos modernistas europeus.

Com a Harlem Renaissance no ambiente urbano nova-iorquino, e logo depois a

Negritude franco-caribenho-africana da década de 1930, estimulou-se crescentemente,

também no âmbito da literatura, a valorização do legado cultural africano.

Nos Estados Unidos, a década de 1920 foi um momento de afirmação otimista

para alguns porta-vozes da população afrodescendente. Muitos negros norte-

americanos, dentro e fora de Nova York, viviam um dos períodos mais virulentos de

segregação racial e discriminação de sua história, principalmente no sul da América.

Ao se referir às vozes de lamentação vindas do Harlem em Deixa passar o meu

povo, Noémia de Sousa faz menção ao jazz, blues e aos cânticos religiosos, os

spirituals, ritmos musicais produzidos pelos negros norte-americanos, que surgiram a

partir dos cantos de fé religiosa e de outras formas similares, como os cânticos, gritos,

canções de trabalho e protestos contra a escravidão ou formas de escapar dela.

Segundo Maria Nazareth Fonseca, as consequências desses impulsos surgidos nos

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Estados Unidos foram positivos para os elementos contestatórios em todo o mundo,

principalmente na música.

Em todos os lugares onde ecoam as vozes negras americanas – principalmente após a adesão de vários artistas negros, que expandiram os ritmos frenéticos do jazz a dolência do blues, os poemas de Langston Hughes e os de outros poetas negros americanos – fortaleceu-se uma tendência artística que valorizava as matrizes culturais africanas semeadas na cultura crioula e em cultos e rituais praticados pelo povo. (FONSECA, 2006, p. 32).

O poema de Noémia de Sousa, além de conter um diálogo direto com o

Renascimento Negro norte-americano, representado pelo spiritual song de Robeson e

Marian, também vai ao encontro do ideal de solidariedade de muitos críticos da

Negritude, que entendiam que essa deveria ser estendida a todos os oprimidos,

independente de cor ou raça. Assim, o poema ultrapassa não só as fronteiras

geográficas entre a América e a África, mas, principalmente, as fronteiras da própria

solidariedade que era expressa naquele momento pela poesia negra, alcançando o que

Zilá Bernd (1988) chamou de o maior propósito pelo qual a Negritude foi criada, que era

promover a igualdade entre todos os homens.

3.3 CANÇÕES DAS AMÉRICAS

A promoção de uma escrita vinculada a um projeto literário que desnudasse a

realidade da colonização no continente africano não podia ser cumprida apenas em

Moçambique, isoladamente. Foram imprescindíveis ao trabalho de valorização das

culturas africanas o intercâmbio cultural e a troca de experiências entre os próprios

países africanos e os extracontinentais. Nessa perspectiva, a produção poética de

Noémia de Sousa dialoga com movimentos internacionais, contemplando

especialmente a África e as Américas.

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Ávida pela melhora das condições de vida dos moçambicanos, tentando tornar

real e palpável a liberdade e a cidadania dos negros e toda e qualquer política que

signifique a inclusão dos pobres como cidadãos, Noémia de Sousa não deixa de admitir

as mazelas sofridas pela população. O seu interesse reside no combate ao racismo, à

desigualdade social, à discriminação e mais ainda, em consolidar o fim do colonialismo

em Moçambique.

Na trajetória de escrita poética, um aspecto importante nos poemas de Noémia

foram que em sua maioria são dedicados a amigos e companheiros de luta, dos quais

alguns foram seus incentivadores das artes e da luta, apresentando-a textos, livros e a

estímulos para a escrita. Sensível às manifestações artísticas, independentemente de

onde viessem, com Billie Holiday não foi diferente, chegando inclusive a lhe dedicar um

poema ao qual deu o título de A Billíe Holiday, cantora.

Era de noite e no quarto aprisionado em escuridão apenas o luar entrara, sorrateiramente, e fora derramar-se no chão. Solidão. Solidão. Solidão. E então, tua voz, minha irmã americana, veio do ar, do nada, nascida da própria escuridão... Estranha, profunda, quente, vazada em solidão. E começava assim a canção: “Into each heart some rain must fall...” Começava assim e era só melancolia do princípio ao fim, como se teus dias fossem sem sol e a tua alma aí, sem alegria... Tua voz irmã, no seu trágico sentimentalismo, descendo e subindo, chorando para logo, ainda trémula, começar rindo, cantando no teu arrastado inglês crioulo esses singulares “blues”, dum fatalismo rácico que faz doer

tua voz, não sei porque estranha magia, arrastou para longe a minha solidão...

No quarto às escuras, eu já não estava só! Com a tua voz, irmã americana, veio todo o meu povo escravizado sem dó por esse mundo fora, vivendo no medo, no receio de tudo e de todos... O meu povo ajudando a erguer impérios e a ser excluído na vitória... A viver, segregado, uma vida inglória, de proscrito, de criminoso... O meu povo transportando para a música, para a poesia, os seus complexos, a sua tristeza inata, a sua insatisfação... Billie Holiday, minha irmã americana, continua cantando sempre, no teu jeito magoado os “blues” eternos do nosso povo desgraçado... Continua cantando, cantando, sempre cantando, até que a humanidade egoísta ouça em ti a nossa voz,

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e se volte enfim para nós,

mas com olhos de fraternidade e compreensão! (SOUSA, 2001, p. 134-135).

Considerada a primeira grande dama do jazz de todos os tempos Billie Holiday

nasceu em 07 de abril de 1924, na Filadélfia, Pensilvânia, Estados Unidos da América

do Norte, sob forte segregação racial existente na primeira metade do século XX. Nesse

contexto de medo e repressão, viveu Billie Holiday, dona de uma voz sublime, rascante,

única, que arrastava as notas dando à música uma nova roupagem com suas

interpretações. As canções de Billie Holiday soaram no cenário musical da América do

Norte, trazendo em suas letras não só o amor, a paixão, como também um grito

ecoante e forte contra a forma de tratamento dada aos negros em seu país,

transcendendo as manifestações artísticas e se tornando um instrumento de acusação

e de base para a afirmação de um povo.

Assim como fez Noémia de Sousa na poesia, Billie Holiday também expressa

nas letras de suas canções o protesto contra o preconceito racial e as desigualdades

sofridas pelos irmãos negros americanos e sua opinião e sentimentos a respeito da

sociedade racista estadunidense.

O diálogo entre a poesia e a canção de Billie Holiday, se dá desde o início do

poema a ela dedicado através de um eu poético sensibilizado por um momento de

reflexão que ocorre dentro de uma atmosfera escura e impregnada de sensações de

solidão. Ao retomar a fala, a poetisa deixa transparecer toda sua empatia com uma voz

surgida na escuridão e como ela também marcada pela sensação de estar só.

Sequentemente, conduzida por esse eu lírico solitário e sensível é então resgatada da

sua solidão por essa voz estranha, quente, saída do âmago de um ser sofrido e vinda

de longe lhe chamando para o compartilhamento das mútuas emoções, era a voz de

uma “irmã americana”.

Solidão, contestação e questionamentos, são temas frequentes nas canções

interpretadas por Billie Holiday, as letras das músicas constituem-se como notas de

protesto contra o preconceito racial, refletindo uma realidade social da época e do local

em que Billie Holiday estava inserida. As canções que primariamente tem como objetivo

a manifestação artística, passam a ter também o cunho de agente modificador quando

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intenta melhorar o mundo com sua contribuição na formação de cidadãos conscientes e

cada vez mais detentores de valores morais, cívicos e humanitários despojados da

velha e ultrapassada visão separatista entre negros e brancos, pobres e ricos.

Ao defender a importância da música na cultura do Atlântico Negro, espaço de

profundas trocas culturais e identitárias, resultante das rotas diaspóricas dos negros no

mundo, Paul Gilroy destaca a relevância da constituição de um canto paralelo de

sobrevivência à dor e de resistência, que anuncia outro momento histórico. Nesse

período de efervescência cultural e política, fizeram parte a poetisa e tantos outros

intelectuais africanos que em finais dos anos 1940, muitos a partir do exílio,

intensificaram as discussões em torno da luta pela independência de seus países. Para

Paul Gilroy, a música foi possivelmente o único efetivo patrimônio cultural dos povos da

diáspora africana, sendo reafirmado “como os traços residuais de sua expressão

necessariamente dolorosa ainda contribuem para memórias históricas inscritas e

incorporadas no cerne volátil da criação cultural afro-atlântica”. (GILROY, 2001 p. 158).

Os cânticos percutem os lamentos e o sofrimento dos “irmãos aos milhares”,

parafraseando um fragmento de outro poema de Noémia de Sousa, e realiza a

comunhão de ideais entre os distanciados geograficamente, mas com propósitos

próximos, unidos pelo mesmo fio condutor de mobilização e luta.

Surgido dentro de uma realidade dura, de exploração e maus tratos, os cânticos,

inicialmente eram lamentos entoados nas lavouras e plantações sendo uma forma de

aliviar as dores desses sofrimentos, acabaram por se transformar em músicas que

serviam não só para expressar dores, mas também alegrias. Posteriormente essa

manifestação artístico-cultural se tornou um meio de sobrevivência e autoafirmação de

uma raça. A canção citada no poema fala de queixa, lamento como é próprio do blues,

mas também há a esperança de mudança de uma situação causadora de muita dor. A

música diz: “Deve chover na vida de cada um, mas na minha chove muito mais. Caem

lágrimas de alguns corações, mas um dia o sol vai brilhar. Alguns podem perder o blues

dos seus corações, mas quando penso em você há um recomeço”.

A poesia de Noémia de Sousa e as interpretações das músicas cantadas por

Billie Holiday se fundem sob o calor gerado e alimentado por idéias e ideais de

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liberdade, proximidades políticas, econômicas e sociais, em que pese estarem distante

geofisicamente, uma, em Moçambique e a outra, nos Estados Unidos da América.

O engajamento de Noémia de Sousa é mais uma vez marcado pela preocupação

com as questões sociais. Não pensa em si, tampouco, somente nos seus irmãos

conterrâneos, estende essa preocupação, a todos os povos submetidos, que sofrem os

mesmos processos discriminatórios. A solidão do eu poético é arrancada não só pelos

sons da canção que lhes chegam, mas principalmente porque que essas canções

trazem consigo a representatividade de uma conjuntura semelhante à dos

moçambicanos.

O eu poético pede, quase que implora a essa nova aliada que sensibilize,

através de sua arte, o maior número de pessoas possíveis e não clama para si a

primazia de divulgar ao mundo essas mazelas, aceitando ser mais um, entre tantos

outros que desempenharam um importante papel na luta anticolonial em Moçambique e

antissegregacionista nas Américas. Compreende as condições vivenciadas pelo negro

naquele momento e naquele contexto. São sonoridades híbridas marcadas pelo “inglês

crioulo”, resultado do encontro entre povos que possibilitou a criatividade cultural dos

escravizados nas Américas, consequência, conforme Paul Gilroy da “conjunção

histórica: as formas culturais estereofônicas, bilíngues ou bifocais originadas pelos –

mas não mais propriedade exclusiva dos – negros dispersos nas estruturas de

sentimento, produção, comunicação e memória”. (GILROY, 2001 p. 35).

O historiador John Kelly Thornton em seu livro A África e os africanos na

formação do mundo Atlântico (2004), aponta para a importância dos africanos na

história do sistema atlântico e para a persistência e relevância social das identidades

étnicas africanas nas Américas. Discute sobre a crioulização como um processo que

teve início na própria África, argumentando que a hibridização cultural intra-africana já

ocorria muito antes de chegar às Américas, utiliza como um dos exemplos o catolicismo

no reino do Congo, a partir do século XV e promove, então, a discussão do papel

histórico dos espaços africanos na gênese das identidades negras, mestiças no

continente americano. O trânsito atlântico de africanos e dos seus modelos de

socialização e de resistência em um mundo de movimento construiu a consciência

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histórica das interações intercontinentais “moldada pelas novas forças em uma nova

criação”. (THORNTON, 1994, p. 285).

Logo, entende-se a cultura não como algo estático, mas sim na sua dinâmica,

observada nas alterações internas como mudanças políticas, de ambiente, e

externamente, a partir dos contatos com outras culturas devido ao comércio, alianças

políticas. Esse dinamismo impactou a compreensão das interações culturais e suas

transformações fora do continente africano. Através do eu poético, fica patente no

discurso contido no poema o poder reintegrador da música em sua ação de devolver o

elo arrancado, fazendo surgir outro ainda mais íntimo e profundo, desta vez com a irmã

afro-americana, cuja voz sintetiza todos os lamentos dos escravizados. A música

acompanha, ainda conforme Paul Gilroy, o eixo aglutinador tanto da memória

traumática dos “terrores inefáveis da escravidão” (GILROY, 2001 p. 158) quanto da

experiência vibrante de construção das novas identidades negras nos movimentos

culturais e políticos da negritude.

Noémia de Sousa percebeu como poucos o alcance e a profundidade do diálogo

que começava a se estabelecer neste que ficou conhecido como o espaço simbólico do

“Atlântico negro”. Algumas vozes femininas despontavam dentro dos discursos que

anunciavam a unidade de povos dispersos pela diáspora africana no mundo. Nesse

sentido, vale ressaltar que em muitos dos seus poemas se evidencia a presença da

mulher na participação das reivindicações, na mobilização e no desenvolvimento do

espírito coletivo na conquista da liberdade. É através de seus poemas, em seu estilo

rico e fluente que ficam registrados o desejo e a necessidade de liberdade, e a certeza

de que sempre haverá uma resistência viva, quando necessário.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ler a poesia de Noémia de Sousa é descobrir um pouco também da nossa

cultura, dos nossos costumes, da nossa crença e da nossa sociedade. É perceber

como se constrói a ideia de identidade através da literatura. Fato tão familiar a nós,

brasileiros, que presenciamos o esforço dos intelectuais para tornar a literatura e a

cultura brasileiras reconhecidas pelo seu próprio povo e fora de sua nação.

Noémia de Sousa é uma precursora na escrita literária em Moçambique.

Respeitada até por vários intelectuais contemporâneos que, com certeza, foram leitores

de sua obra e aprenderam a lição de valorizar as particularidades de seu país e fazer

isso migrar para a escrita literária. Escritores como Mia Couto, Lilia Momplé, Paulina

Chiziane, Ungulani Ba Ka Khosa, entre outros fazem os textos de Noémia de Sousa

circular em vários eventos na área de Humanidades, até porque ela é chamada de mãe

por muito desses escritores e também intelectuais e ativistas políticos de Moçambique.

Além disso, a escritora é extremamente estudada na UEM (Universidade Eduardo de

Mondlane). Noémia de Sousa morreu em Cascais, Portugal, em 2002 aos setenta e

quatro anos de idade.

Escrever sobre alguns versos de Noémia de Sousa foi uma atividade muito difícil

tamanha a excentricidade de seus escritos. No entanto, podemos afirmar sem medo

que muitos estudos ainda podem ser feitos sobre Sangue Negro. Ainda há muitos

aspectos ainda para serem explorados nos textos de Noémia de Sousa. É por bem

enfatizar que a escrita de Noémia de Sousa presentifica a mulher como ser ativo e

militante em relação às causas políticas de seu país, assim prova que o ente feminino

tem poder de despertar em sua nação espíritos como os da consciência da coletividade

e do patriotismo. Através de seus poemas, em sua opção por uma escrita aquecida

pela lembrança das contações de estórias em volta da fogueira, ficam registrados os o

desejo de liberdade e a certeza da esperança de um mundo que respeita as diferenças

de raça, classe e gênero.

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Muitos de seus poemas funcionaram, no contexto moçambicano, como um apelo

aos seus compatriotas para unirem esforços na luta anticolonialista, como se pode ler

nos versos do poema “Abri a porta, companheiros”, escrito em 1949.

Ai abri-nos a porta, abri-a depressa, companheiros, que cá fora andam o medo, o frio, a fome, e há cacimba, há escuridão e nevoeiro… Somos um exército inteiro, todo um exército numeroso, a pedir-vos compreensão, companheiros!

E continua fechada a porta… Nossas mãos negras inteiriçadas, de talhe grosseiro – nossas mãos de desenho rude e ansioso – já cansam de tanto bater em vão… Aí companheiros, abandonai por momentos a mansidão

estagnada do vosso comodismo ordeiro e vinde! Ou então, podeis atirar-nos também, mesmo sem vos moverdes, a chave mágica, que tanto cobiçamos… Até com a humilhação do vosso desdém, nós a aceitaremos. O que importa é não nos deixarem morrer, miseráveis e gelados, aqui fora, na noite fria povoada de xipócués… “O que importa é que se abra a porta”. (SOUSA, 2001, p. 39-40).

A existência de uma necessidade de transformação radical e imediata fica

patente quando a ordem que prevalece é a da discriminação, precisando-se, então,

abandonar a postura harmoniosa e ordeira de ser para enfim, atender ao chamado e

partir para a ação. A reclamação dos dias de penúria e aflição mantidos pela apatia do

momento é escancarada, para daí ocorrer a conclamação à luta de forma pungente e

clara em que o eu-poético se assume porta voz da convocação, revelando a esperança

da participação popular no movimento ao evocar que o que mesmo importa é a efetiva

adesão ao combate. “O que importa é que se abra a porta.”

A força da palavra poética de Noémia se traduz pelo seu declarado

comprometimento com a situação histórica, política e econômica do seu país. Em se

tratando das suas produções líricas vai da negação à submissão ao poder do

colonizador ao desejo de emancipação. O poema acima expõe a intenção de Noémia

de Sousa em evocar pessoas para a participação nos movimentos de resistência. As

palavras sangue, seta, azagaia, dor e revolta remetem para esse cenário de batalha

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que para aquele momento era a única saída viável para se conquistar a tão sonhada

independência.

Em inúmeros de seus poemas, a mulher moçambicana é invocada a tomar seu

espaço na mobilização coletiva, com vistas a conquistar não apenas a sua liberdade

pessoal, mas também para conquistar a liberdade coletiva, traduzida no repúdio ao

colonialismo e na busca pela soberania nacional. É importante salientar, de igual

maneira, que a enunciação poética de Noémia de Sousa está pautada pela articulação

de um discurso marcado pela oralidade, exaltado e cheio de expressividade. Tal

enunciação se caracteriza por uma relação de permanente diálogo e interpelação entre

o eu poético e o leitor. As interjeições, as exclamações, as reticências e os vocativos,

tal como outros marcadores discursivos de proximidade entre o sujeito da escrita e o

sujeito da leitura poética pontuam uma busca pela identidade africana que se

caracteriza não por um olhar distanciado do objeto poético, mas por uma

intencionalidade que busca com ele se fundir. O eu-poético reconhece a si próprio

como mergulhado nessa identidade africana. Identidade que, entretanto, ainda está por

ser inventada pela poesia, como característica do compromisso social que atribui à

escritora uma participação ativa no contexto de luta anticolonialista.

A observação do encontro entre discursos político-ideológico e estético-literários

em Moçambique permite-nos concluir que a ficção moçambicana não é, na realidade,

dissociável dos processos históricos que a contextualizam. Daí seu caráter muitas

vezes é fundado na diferença que questiona e abala a trajetória da historiografia

literária canônica.

A geração de intelectuais africanos em Moçambique, que emerge na primeira

metade do século XX, fez-se representar predominantemente por vozes masculinas.

Observação que nos faz sinalizar o protagonismo de Noémia de Sousa, que nesse

cenário dominado por homens consegue se destacar e também escrever sobre os

problemas vivenciados pelos homens e mulheres colonizadas, dando destaque ao ser

humano, sem promover diferenciações de gênero, pois seu enfoque a direciona para o

trabalho com a temática da identidade africana. Revela-se, assim, um processo de

continuidade entre os discursos político-ideológico e estético-literário, ambos não

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inviabilizando ou negligenciando a sua produção poética dado o laço indissociável que

os complementam.

A ruptura que Noémia de Sousa protagoniza relativamente à retórica oficializada

dá-se, no entanto, através da sua atribuição de um papel social e culturalmente

interventivo à escrita engajada que não perde de vista as problemáticas do sistema em

que está inserida.

Pode-se analisar o processo de colonização através de vertentes

desestabilizadoras de pressupostos colonialistas. Tal processo nos habilita a examinar

a produção de contradiscursos que expressam resistência e estratégias de resgate da

autonomia e por estudos sistematizados dos encontros e confrontos coloniais que

podemos avaliar sob o impacto da colonização e constatar a construção de uma crítica

em relação a interpretações culturais etnocêntricas que têm como parâmetro as

grandiosidades da civilização ocidental, deixando de lado o obscurantismo de tal

hegemonia. Através da interrogação dos mecanismos coloniais e de sua lógica,

despontam subsídios interpretativos e um saber histórico indispensáveis à

compreensão dos procedimentos literários utilizados nestas obras literárias.

A transgressão efetuada acaba por fazer erigir uma voz atual, combativa e

denunciadora da realidade por que passa a pessoa negra, submetida ao trabalho

forçado. Destaca-se por isso a preocupação de Noémia de Sousa, no cenário

combativo dos anos de 1950, esbravejar contra o colonizador e em prol da afirmação

de valores dos oprimidos e libertação de seu país.

A memória se organiza, segundo Michael Pollak (1992), "em funções das

preocupações pessoais e políticas do momento" e por isso ela é um "fenômeno

construído" no aspecto em que o individual se circunscreve pelas experiências coletivas

no agora ou no passado. Portanto, a memória nos revela um sentimento identitário do

eu individual e do eu coletivo, sendo por isso que o trabalho artístico dessa poetisa se

constitui pela busca de valores que afirmem o posicionamento de mulheres e homens

negros escravizados, enfatizando assim a questão da africanidade no despertar de uma

consciência revolucionária.

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