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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS CAMPUS I PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS ROSILDA DA SILVA SOUZA BONFIM QUILOMBO LITERÁRIO Um olhar sobre a recepção de contos dos Cadernos Negros por estudantes quilombolas SALVADOR 2014

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS I

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS

ROSILDA DA SILVA SOUZA BONFIM

QUILOMBO LITERÁRIO

Um olhar sobre a recepção de contos dos Cadernos Negros por estudantes

quilombolas

SALVADOR

2014

ROSILDA DA SILVA SOUZA BONFIM

QUILOMBO LITERÁRIO

Um olhar sobre a recepção de contos dos Cadernos Negros por estudantes

quilombolas

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Estudos de Linguagens – PPGEL/UNEB,

como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em

Estudo de Linguagens, na área de concentração: Leitura,

Literatura e Identidade.

Orientadora: Prof.ª Drª. Sayonara Amaral Oliveira

SALVADOR

2014

FICHA CATALOGRÁFICA

Sistema de Bibliotecas da UNEB

Bibliotecária: Jacira Almeida Mendes – CRB: 5/592

Bonfim, Rosilda da Silva Souza

Quilombo literário: um olhar sobre a recepção de contos dos cadernos negros por

estudantes quilombolas / Rosilda da Silva Souza Bonfim. – Salvador, 2014.

117f.

Orientadora: Sayonara Amaral Oliveira.

Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Ciências

Humanas. Colegiado de Letras. Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens.

Campus I. 2014.

Contém referências.

1. Negros - Identidade racial - Tijuaçu (BA). 2. Negros na literatura. 3. Negros -

Educação - Bahia. 4. Quilombos - Bahia. I. Oliveira, Sayonara Amaral. II. Universidade

do Estado da Bahia, Departamento de Ciências Humanas.

CDD: 305.8968142

TERMO DE APROVAÇÃO

ROSILDA DA SILVA SOUZA BONFIM

QUILOMBO LITERÁRIO

Um olhar sobre a recepção de contos dos Cadernos Negros por estudantes

quilombolas

Aprovada em 31 de março de 2014.

BANCA EXAMNINADORA

Professora Drª. Sayonara Amaral Oliveira (Orientadora)

Universidade do Estado da Bahia – UNEB

Professora Drª. Maria do Socorro Carvalho

Universidade do Estado da Bahia – UNEB

Professora Drª. Florentina da Silva Souza

Universidade Federal da Bahia - UFBA

SALVADOR

2014

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Estudo de

Linguagens, submetido ao Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens, do

Departamento de Ciências Humanas da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, Campus I.

Área de concentração: Leitura, Literatura e Identidade.

AGRADECIMENTOS

À Professora Drª Sayonara Amaral Oliveira, pela paciência, compromisso e cuidado

na orientação desta pesquisa. E pela generosidade em compartilhar saberes que me

permitiram navegar nessa viagem de dois anos por águas seguras.

À Professora Drª Maria do Socorro Carvalho, por ter participado do exame de

qualificação e contribuído com sugestões precisas e necessárias. Também pelas aulas

ministradas no decorrer do curso cujas orientações foram fundamentais para nortear esta

pesquisa.

À Professora Drª Florentina da Silva Souza, pelas importantes contribuições durante

o exame de qualificação e pela ampla produção bibliografia publicada. Tal produção foi

imprescindível para alargar os meus conhecimentos sobre as temáticas discutidas nesta

dissertação.

Aos professores do Programa de Pós-graduação em Estudo de Linguagens – PPGEL,

pelas experiências enriquecedoras proporcionadas no decorrer do curso.

Aos colegas do PPGEL, pela solidariedade, companheirismo e pelos momentos de

descontração. Em especial, Abdon, Rita de Cássia, Cristina, Edmond, Mariana, Reinaldo.

A Camila, Danilo e Geysa, funcionários da secretaria do PPGEL, pela eficiência e

delicadeza no atendimento.

À direção, professores, funcionários e estudantes do 1º Ano do Ensino Médio do

Colégio Estadual Senhor do Bonfim (CESB) – anexo que funciona em Tijuaçu –, pelo

acolhimento e cooperação.

À comunidade remanescente de quilombo Tijuaçu, por gentilmente receber e

colaborar com os pesquisadores.

Ao Quilombhoje, por manter os Cadernos Negros cuja produção literária, além de

proporcionar fruição estética, motiva-nos a enfrentar os conflitos etnorraciais brasileiros.

À Secretaria de Educação do Estado da Bahia e à Secretaria de Educação do

munícipio de Monte Santo, por terem concedido afastamento das minhas atividades

laborais, possibilitando dedicação exclusiva a esta pesquisa.

À minha família, em especial a minha mãe, Isabel da Silva Souza, pelo carinho e

cuidado que me dedica.

Ao meu esposo, Maicon de Sá Bonfim, pela importante presença em todos os

momentos desta caminhada, inclusive compreendendo as minhas ausências.

Aos meus amigos, Valfredo Francisco, Alcidineia, Sarah e Bartira, por me

motivarem e colaborarem na realização de mais um sonho.

Aos amigos conquistados nos últimos dois anos, Ivo Ferreira, Mil Santos, Hildalia

Fernandes e Valdecy Lima, pelas conversas instigantes sobre questões que atravessam esta

pesquisa.

A Ienata Rios, minha amiga desde os tempos de graduação, pela confecção do

abstract.

A Deus, por ter permitido que todas essas pessoas supracitadas façam, de algum

modo, parte da minha existência.

RESUMO

Esta dissertação se propõe a refletir sobre a recepção de contos dos Cadernos Negros por

estudantes do 1º ano do Ensino Médio da comunidade quilombola de Tijuaçu, localizada no

munícipio de Senhor do Bonfim – Bahia. Com esse intuito, investiga-se o processo de

construção identitária na comunidade em que os sujeitos da pesquisa estão inseridos, bem

como a identidade proposta pelos Cadernos Negros. Em seguida, analisam-se os dados

obtidos em oficinas pedagógicas de leitura e produção textual. Dentre as teorias que

fundamentam esta pesquisa, destacam-se as teorizações sobre identidade desenvolvidas no

campo dos Estudos Culturais e a Estética da Recepção, por tratar da relação dialógica que se

institui entre literatura e leitor. Considerando que os Cadernos pretendem fomentar uma

construção identitária positiva para o leitor afro-brasileiro, a intenção é examinar nas

produções textuais dos sujeitos da pesquisa o modo como os horizontes de expectativas

entre obra e leitor se cruzam.

Palavras-chave: Identidade; quilombo-Tijuaçu; Cadernos Negros; recepção; leitor.

ABSTRACT

This dissertation intends to reflect on the reception of the Black Notebooks short stories by

the students from the 1st year of the high school in the black community of Tijuaçu, located

in the city of Senhor do Bonfim – Bahia. With this aim, it is investigated the process of

identity construction in the community in which the research‟s students are inserted, as well

as identity proposed by Black Notebooks. Then, analyzing the data obtained in teaching

reading workshops and textual production. Among the theories that underlie this research, it

is detached theories about the identity developed in the field of Cultural Studies and the

Esthetics of Reception, once it deals with the dialogical relationship that is established

between reader and literature. Considering that the Notebooks aim to encourage a positive

identity construction for the Afro-Brazilian reader, the intention is to examine the textual

productions of the students involved in the research the way the horizons of expectations

between work and reader intersect themselves.

Keywords: Identity; black community-Tijuaçu; Black Notebooks; reception; reader.

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO...................................................................................................... 10

2 TIJUAÇU: IDENTIDADE NEGRA QUILOMBOLA....................................... 17

2.1 COMO OS HABITANTES DE TIJUAÇU TORNARAM-SE NEGROS ............. 20

2.2 O LAGARTO RESSURGE FORTALECIDO........................................................ 31

3 DE CADERNO EM CADERNO SE CONSTRÓI UM QUILOMBO DAS

LETRAS..................................................................................................................

41

3.1 VOZES QUILOMBOLAS NA LITERATURA...................................................... 51

3.2 IDENTIDADE NEGRA NA CENA LITERÁRIA BRASILEIRA......................... 56

3.3 ABRINDO CAMINHOS PARA O LEITOR.......................................................... 62

4 COM A PALAVRA, O LEITOR QUILOMBOLA .......................................... 68

4.1 LEITORES SABOTADORES................................................................................ 74

4.2 LEITORES EM CONTRADIÇÃO.......................................................................... 83

4.2 LEITORES SOLIDÁRIOS...................................................................................... 93

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................. 103

6 REFERÊNCIAS................................................................................................. 107

APÊNDICE.......................................................................................................... 113

ANEXOS................................................................................................................ 115

10

1 INTRODUÇÃO

Os Cadernos Negros (CN) são uma antologia literária, organizada por escritores e

escritoras negros e publicada desde 1978. Nos anos pares são coletâneas de poesias e nos

ímpares, contos. Conheci e tornei-me leitora dessa antologia em 2007, quando encontrei um

exemplar na biblioteca de uma das escolas em que leciono. Esse foi o meu primeiro contato

com textos de autores que se autodeclaram negros e produzem textos que abarcam temáticas

relevantes para todos os segmentos da sociedade, em especial o afro-brasileiro.

Os Cadernos Negros ajudaram-me a preencher lacunas do meu repertório de leituras

literárias, que até então era composto de obras que ora passavam ao largo das questões

etnorraciais no Brasil ora apresentavam os afro-brasileiros de modo depreciativo. Tal

antologia, além de alargar a minha percepção sobre os engenhosos modos de exclusão social

os quais o negro está submetido, permitiu-me o contato com representações literárias

positivas sobre mim mesma como mulher negra.

Isso me levou a indagar sobre a recepção do periódico por outros leitores afro-

brasileiros. A partir dessa indagação começa a delinear-se o esboço da pesquisa que ora

apresento. Sem perder de vista que a possibilidade de encontro entre obras literárias que

tratem das questões etnorraciais no Brasil (sob a perspectiva do escritor negro) e o leitor no

contexto escolar é um dos frutos das várias lutas reivindicatórias empreendidas pelos

movimentos negros brasileiros.

Compreendo os movimentos negros no Brasil como “o conjunto de iniciativa de

resistência e de produção cultural e de ação política explícita de combate ao racismo que se

manifesta por via de uma multiplicidade de organização em diferentes instâncias de

atuação”, conforme a definição do Movimento Negro Unificado (MNU). (MNU apud

SOUZA, 2006, p. 14). O trabalho desenvolvido por esses movimentos contribui para a

construção de um contexto social de afirmação do segmento negro em todas as dimensões:

sociais, culturais, histórias, estéticas e políticas. Essa construção é fundamental para que a

literatura negra no Brasil se estabeleça, uma vez que ela alimenta os desejos dos

componentes desse segmento e é alimentada por eles.

Em 2003, o estado foi levado a sancionar a Lei n. 10.639, tornando obrigatório o

estudo da história e culturas afro-brasileiras em todos os estabelecimentos de ensino

fundamental e médio do território nacional, atualizada pela Lei n. 11.645 de 2008 que

acrescenta o estudo das culturas indígenas; ambas alteraram a Lei de Diretrizes e Bases

(LDB), n. 9.394 de 2006.

11

Tais leis deslocam o centro dos estudos históricos pautados no eurocentrismo e

contribuem para a reconstrução de um passado no qual as culturas de matrizes africanas e

indígenas atuam de modo ativo e positivo na formação cultural do país. Esse novo lugar

para essas culturas permite outras percepções do passado, do presente e impulsiona outras

conquistas.

Contribuindo para a efetivação dessas leis, o Programa Nacional Biblioteca da

Escola (PNBE), executado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento Escolar (FNDE) em

parceria com a Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação e Cultura (MEC),

tem enviado para as escolas públicas livros e periódicos que tratam dessas temáticas, a

exemplo dos Cadernos Negros.

A lista de conquistas dos afro-brasileiros é ampla, acrescento às já citadas a

implementação de políticas públicas afirmativas, por exemplo, as cotas raciais que

contribuem para o acesso desse segmento da sociedade às universidades públicas brasileiras

e o Estatuto da igualdade Racial (2010).

Assim, atenta ao fluxo de mudanças que ocorrem no país, trazendo como

consequência uma reorientação dos modos de ver e de ser negro, e considerando a

importância dos Cadernos Negros nesse contexto que se delineia, esta pesquisa que se

anuncia como “Quilombo literário, um olhar sobre a recepção de contos dos Cadernos

Negros por estudantes quilombolas” investiga o modo como leitores-estudantes

“respondem” à construção afirmativa da identidade negra proposta pelos Cadernos.

Considerando que um dos principais objetivos dos Cadernos Negros1 é a positivação

da identidade etnorracial dos afro-brasileiros, a hipótese levantada foi a de um possível

diálogo entre esse objetivo e o processo de construção identitária vivenciada pelos sujeitos

da pesquisa, em curso na sua comunidade.

O locus de pesquisa é a comunidade quilombola de Tijuaçu, distrito de Senhor do

Bonfim2 – Bahia. Esse distrito é formado por 14 comunidades

3, sendo que a maior parte do

território está inserida no município de Senhor do Bonfim e a menor em Filadélfia e

1 Doravante tratados também com a sigla CN. 2 Cidade localizada no norte do estado da Bahia, na região denominada de Piemonte da Diamantina, cerca de

380 quilômetros distante de Salvador. O munícipio está entre os quinze mais populosos da Bahia, segundo

dados do IBGE, 2010. 3 O território quilombola de Tijuaçu compreende as seguintes comunidades: Tijuaçu (vila), Alto Bonito,

Olaria, Lajinha, Quebra Facão, Água Branca, Barreira, Conceição, Macaco I e II, Queimada Grande/Capim,

Canafista, Patos, Anacleto e Lagoa do Coxo, sendo está última pertencente geograficamente ao território de

Tijuaçu, mas habitada por não quilombolas. (NAVARRO, 2012, p. 146)

12

Antônio Gonçalves. De acordo com a antropóloga Patrícia Navarro (2012), nessas

comunidades residiam 815 famílias remanescentes de quilombo em 2008, conforme o

cadastramento realizado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

(INCRA). Nesse aspecto, segundo Navarro, Tijuaçu está entre as comunidades quilombolas

mais populosas da Bahia.

Por essa comunidade ter sido reconhecida como quilombola há mais de 10 anos,

desde fevereiro de 2000, os estudantes pesquisados na atualidade fazem parte de um

contexto de construção identitária específico, que pode ser investigado graças à

disponibilidade de material bibliográfico publicado: relatórios, documentários, livros,

artigos e dissertações. A maior parte desse material é o resultado de trabalhos que foram

motivados, a priori, pelo empenho individual de pesquisadores oriundos das cidades

localizadas próximas à Tijuaçu. Tais pesquisadores foram movidos pelo desejo de investigar

a história oral, os costumes e a cultura dessa comunidade que se distingue das demais na

região, por ser predominantemente negra e ter assumido o status de quilombola.

Cabe pontuar que os escritores dos CN, assim como os remanescentes de quilombos,

não usufruíam de representações positivadas de si e são frequentemente vitimados pelas

dificuldades de acesso aos lugares de prestígio no corpo social. Os remanescentes travam

batalhas diárias no território em que habitam e reivindicam para si direitos legais

tardiamente instituídos, com vistas à aquisição de bens materiais e ao reconhecimento do

valor simbólico de suas manifestações culturais. O campo de luta do escritor negro são as

páginas literárias e alguns dos seus objetivos se cruzam com os anseios dos quilombolas,

posto que ambos almejem construções identitárias positivas e a ascensão do negro na escala

social.

A escolha pela antologia Cadernos Negros justifica-se também pela sua importância

singular na cena literária nacional, tendo em vista as mais de três décadas de sua

existência/resistência e o fato de ser um projeto que reúne publicações de escritores afro-

brasileiros de todo o país. Em função dessa abrangência, emergem dos textos percepções

plurais sobre a diversidade do segmento afro-brasileiro.

Como a maioria das narrativas literárias, midiáticas ou historiográficas que circula

no Brasil investe na representação de identidades depreciativas para e contra o negro, os CN

através de contradiscursos rasuram estas escritas e propõem outras possibilidades de

construção da identidade do negro. Considerando que as narrativas orais ou escritas por

certo influenciam na construção identitária individual e coletiva dos sujeitos, esse estudo se

concentra na recepção dos textos dos Cadernos Negros em sua forma narrativa: o conto.

13

Em seu ensaio escrito na década de 1930, Walter Benjamim (1994) afirma que as

narrativas mais bem realizadas são aquelas que se aproximam das histórias orais. Nos seus

termos, a natureza da verdadeira narrativa está ligada a uma dimensão utilitária, seja através

de um “ensinamento moral, seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma

de vida [...] o narrador é um homem que sabe dar conselhos.” (BENJAMIM 1994, p. 201).

Os contistas dos CN acentuam em suas narrativas o papel relevante da tradição oral,

enaltecendo a figura do narrador, que, a partir de suas próprias experiências, pode reforçar

os laços de pertença de seu grupo e através de incursões em sua memória faz emergir um

passado que contribui na construção positiva do desenho identitário do negro. Desse modo,

as características da produção dos contistas dos CN aproximam-se do que Benjamim

considera relevante nas narrativas orais e, assim, os contos desempenham também uma

função pedagógica, com vistas a “alterar as relações tradicionais de representações nas quais

a categoria „negro‟ é construída tendo como fundamento os estereótipos depreciativos”,

segundo a pesquisadora Florentina Souza (2006, p. 20).

Dentre os vários contos publicados pelos CN desde 1979, contando até o momento

com 17 volumes, esta pesquisa contempla a recepção dos seguintes contos: “Minha cor” de

Raquel Almeida (CN 30), “Foi Ariano quem fez os caracóis chorarem” de Ademiro Alves

(CN 32), “As máscaras de Dandara” de Serafina Machado (CN 32), “Cauterização” e “O

tapete voador” de Cristiane Sobral (CN 32 e 34), “O anjo” de Débora Garcia (CN 34).

A escolha dos contos supracitados foi motivada pelo modo como abordam questões

relacionadas ao mito da democracia racial, à desconstrução de estereótipos e a exaltação da

beleza negra. É possível perceber nesses contos a intenção de contribuir para o despertar da

consciência crítica do leitor no que tange às relações etnorraciais no Brasil, bem como de

motivar a valorização de elementos que favorecem o dinâmico processo de construção

positiva da identidade negra.

Em linhas gerais, esta pesquisa pretende compreender aspectos da construção

identitária etnorracial dos estudantes do 1º ano do Ensino Médio do Colégio Estadual

Senhor do Bonfim (CESB), que vivem na comunidade quilombola Tijuaçu, a partir das

leituras que estes estudantes realizaram das narrativas/contos dos Cadernos Negros. Tendo

em vista esse objetivo, após a anuência para a realização da pesquisa de campo por parte do

diretor da escola, do líder da comunidade quilombola, da aprovação do projeto pelo Comitê

de Ética em Pesquisa (CEP) e aceitação voluntária dos estudantes para participar da

14

pesquisa, foram realizadas oficinas pedagógicas de leitura e produção textual4. As oficinas

foram executadas no decorrer de quatro encontros, durante os quais os estudantes leram os

contos selecionados e emitiram suas opiniões. No último encontro, cada leitor elegeu um

conto e escreveu uma carta para o autor ou para um personagem deste.

Na execução das oficinas de leitura e produção textual, seguimos o que fora

planejado no período em que o projeto de pesquisa foi refeito para apreciação do Comitê de

Ética. Em tal planejamento, retomamos os objetivos do projeto e delineamos uma

metodologia e cronograma que julgamos pertinentes para colher os dados necessários nesta

investigação, os quais são apresentados e analisados nesta dissertação.

Para montar o quadro analítico que norteasse a investigação acerca da recepção dos

Cadernos Negros pelos estudantes da comunidade de Tijuaçu, foi necessário recorrer a

leituras de estudos desenvolvidos por teóricos e pesquisadores de diferentes áreas do

conhecimento relacionado às ciências humanas, a saber: história, sociologia, filosofia,

psicologia, antropologia, os estudos culturais, a estética da recepção, e estudos literários

afro-brasileiros. Desse modo, as reflexões contempladas nessa pesquisa são de caráter

multidisciplinar e estão distribuídas no espaço de três seções relativamente autônomas, mas

que, no seu conjunto, visam à compreensão da identidade negra vivenciada pelos habitantes

da comunidade quilombola de Tijuaçu e o modo como determinados estudantes

pertencentes a essa comunidade se representam mediante textos literários que os convocam

a identidades negras positivas, os quais são disseminados nos Cadernos Negros.

Na primeira seção, intitulada Tijuaçu: identidade negra quilombola, discorro sobre a

fundação da comunidade, o seu processo de reconhecimento como quilombola e o

redimensionamento no processo de construção identitária local em função desse novo

status. Nesse sentido, dentre os trabalhos pesquisadas, destaco o livro da historiadora

Carmélia Miranda (2009), Vestígios Recuperados: Experiências da Comunidade Negra

Rural de Tijuaçu, pela ampla produção historiográfica que a autora produziu sobre Tijuaçu.

Carmélia Miranda, ao cruzar informações retiradas de documentos históricos com os

depoimentos dos moradores mais antigos da comunidade, capturou vestígios que ajudaram a

recompor a história de Tijuaçu, desde a fundação, passando pelo processo de

reconhecimento como quilombola, até às vivências socioculturais praticadas pelos

tijuaçuenses na contemporaneidade.

4Os responsáveis pelos estudantes assinaram o Termo de Livre Consentimento Esclarecido (TCLE), (vide

apêndice A) autorizando a participação de cada um nas oficinas e a publicação das informações colhidas, na

condição de mantê-los no anonimato.

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Na segunda seção, De caderno em caderno se constrói um quilombo das letras,

começo com a apresentação dos Cadernos Negros e do Quilombhoje Literatura – grupo

responsável pelo periódico desde 1983. Em seguida destaco a aproximação entre as

estratégias de manutenção dos Cadernos, plasmada na força coletiva do discurso literário, e

as estratégias de sobrevivência nos quilombos históricos, sustentada em laços de

solidariedade e na força física. Concluo essa seção discorrendo sobre as identidades

propostas pelos CN e a produção de textos literários que apresentam ao leitor representações

plurais da composição etnorracial brasileira. Para o desenvolvimento dessa seção foram

imprescindíveis, dentre outras, as contribuições da pesquisadora Florentina Souza (2005),

em seu livro Afro-descendência em Cadernos Negros e Jornal do MNU, haja vista a análise

que realiza dos Cadernos, contemplando desde o contexto de surgimento, as motivações dos

escritores, os objetivos, além da análise do discurso enunciado nas produções literárias

(contos e poesias) e demais textos que compõem o periódico.

Na última seção, Com a palavra, o leitor, apresento a metodologia utilizada na

pesquisa de campo, os instrumentos de coleta de dados, os sujeitos da pesquisa e uma

síntese de como ocorreram as oficinas de leitura e produção textual. Por fim, procedo à

análise das cartas produzidas pelos estudantes, corpus principal desta investigação. A partir

de tais cartas foram criadas categorias analíticas, tomando por base o posicionamento

predominante dos estudantes ante a proposta dos contos dos CN.

Os dados foram analisados à luz dos pressupostos teóricos da Estética da Recepção

desenvolvidos a partir da década de 1960, tendo como principal expoente Hans Robert

Jauss. O teórico propõe a renovação da história da literatura, e, para cumprir tal objetivo,

considera que os estudos tradicionais da produção e da representação literária devem ser

reavaliados em função da estética da recepção e do efeito. O leitor, que ocupava posições

marginais nos estudos literários, é deslocado para o centro, haja vista que os sentidos da

obra são concretizados e atualizados no ato da leitura. A recepção contemplada neste estudo

centraliza-se na perspectiva cultural. Com esse intuito, analisam-se as considerações

emanadas pelo leitor durante as oficinas de leitura e a produção textual, extrapolando,

portanto, a dimensão estética. As teses postulados por Jauss (1994) em A história da

literatura como provocação à teoria literária foram fundamentais para nortear a análise

apresentada nessa seção, principalmente as que tratam do conceito de horizonte de

expectativa e dos efeitos da obra literária.

O conceito de identidade discutido por Stuart Hall, na perspectiva dos Estudos

Culturais, foi imprescindível para iluminar as reflexões desenvolvidas neste estudo. A partir

16

do ensaio “Que „negro‟ é esse na cultura negra”, publicado em Da Diáspora (2011), foi

possível fazer algumas inferências sobre a construção identitária em Tijuaçu, a proposta

identitária dos Cadernos Negros e a identidade vivenciada pelos sujeitos pesquisados.

Reitero que este estudo contempla a recepção de alguns contos dos Cadernos Negros

por um grupo de estudantes da comunidade quilombola de Tijuaçu, tendo com eixo central a

investigação do processo de construção identitária. Restringe-se, portanto, a textos, grupo e

comunidade específicos, o que nos leva às considerações que abarcam apenas o recorte feito

do objeto. Assim posto, adentremos as seções, para verificarmos as reflexões decorrentes

dessa investigação.

17

02 TIJUAÇU: IDENTIDADE NEGRA QUILOMBOLA

Elas iam devagar. Estavam muito cansadas e esgotadas. Já

muitas vezes o sol subiu e desceu do céu desde aquele dia,

quando fugiram de uma senzala em Salvador. Dia e noite,

noite e dia, e elas continuaram marchando atentas a qualquer

perigo, fortalecendo-se com raízes, frutas, plantas e qualquer

outra coisa, que prestava para ser comida. Cada passo dado

por elas, era mais um passo que as distanciava da horrível

escravidão. Dias e noites, noites e dias passavam e elas iam

adiante, na direção do desconhecido, cada vez mais livres,

mas, também, cada vez mais cansadas. Na frente, perto de um

morro, apareceu diante de seus olhos um pequeno lago. Mais

um dia estava terminando. Uma das três, Maria Rodrigues,

parou e aconselhou as duas outras para passarem a noite na

beira deste lago... (MACHADO, 2004, p. 21).

Libertar-se da escravidão por meio da fuga era o maior feito realizado por negros

escravizados e as três mulheres apresentadas no texto da epigrafe acima aventuraram-se. A

coragem as levou a embrenharam-se pelas matas e enfrentarem toda sorte de perigos e de

necessidades rumo ao desconhecido. O medo de serem recapturadas impulsionou-as a

seguirem em frente, irem cada vez mais longe, até sentirem que seus algozes não mais as

alcançariam. Em tal narrativa são evidentes os momentos de penúria sofridos durante a fuga,

contudo o desejo de se tornarem livres mantinha as três mulheres negras firmes em seu

intento. Cada dia vivido por elas era mais um dia de liberdade conquistado, em uma fuga

que durou dias, talvez meses, até a chegada ao lago perto do morro na região de Senhor do

Bonfim.

Pode-se perceber que, além do cansaço, da distância percorrida, a água é um dos

elementos determinantes para que o lugar encontrado figurasse como a “terra prometida”,

uma vez que representa a possibilidade de sobrevivência e prosperidade.

O relato acima, na opinião do povo de Tijuaçu, é o que melhor representa a origem

da sua comunidade, segundo a pesquisa de Paulo Machado (2004). Para a maioria dos

moradores de Tijuaçu, a fundação da comunidade está relacionada com a resistência à

escravidão: três negras escravizadas teriam fugido de Salvador em direção a essa região,

todavia apenas uma delas resolveu se instalar, Maria Rodrigues, popularmente chamada de

Mariinha Rodrigues. Sobre as outras não se teve mais notícias.

A historiadora Carmélia Miranda (2009), em sua pesquisa sobre as experiências

históricas dos habitantes locais, recuperadas a partir da historia oral, narrada pelos antigos

18

moradores e de documentação escrita do final do século XVIII e início do século XX,

constatou que o povoamento do território de Tijuaçu se deu a partir da presença de negros

fugidos, de brancos e índios Cariri5.

Quanto à fundação de Tijuaçu, Miranda (2009), em consonância com o relato

apresentado por Paulo Machado (2004), acrescenta que a comunidade surgiu na segunda

metade do século XIX. Maria Rodrigues, a fundadora, teria se casado e constituído família

com um negro da família congo que habitava o Cariacá6. Os filhos do casal teriam ocupado

estrategicamente as terras ao redor, de modo a ampliar o perímetro do território da família.

Numa outra versão, Maria Rodrigues teria fugido das minas de ouro em Jacobina e

se refugiado em Tijuaçu. Essa é a possibilidade mais provável, de acordo com as

informações contidas no Relatório Técnico Território Quilombola de Tijuaçu,7 escrito pela

antropóloga Patrícia Navarro (2012). Em todas as versões, a fundação de Tijuaçu é atribuída

a esta mulher, seja fugida de Salvador ou de Jacobina.

A saga da matriarca fundadora ajuda a produzir uma imagem positiva do negro:

Mariinha Rodrigues é aquela que não se rendeu aos grilhões da escravidão e conquistou a

sua liberdade; a heroína que conseguiu vencer todas as adversidades e prosperou. Essa

imagem contrasta com a que foi propalada por certa historiografia oficial, que atribuía ao

negro fugitivo toda sorte de adjetivos depreciativos.

Os habitantes de Tijuaçu pertencem a um território que já na sua gênese representa

um locus de liberdade. Nesse território, os seus antepassados conseguiram, apesar das

dificuldades impostas, forjar modos de sobrevivência pautados em laços de solidariedade

que ajudaram a fomentar o sentimento de pertença ao grupo e à terra. Essa consciência de

ter vencido as agruras do sistema escravocrata tem como corolário a elevação da autoestima

dos atuais tijuaçuenses. Paulo Machado (2004, p. 22) afirma que o povo negro de Tijuaçu

costuma dizer com muito orgulho: “nós nunca fomos escravos”.

Até a segunda metade do século XX, Tijuaçu, hoje sede do distrito formado por

vários povoados em seu entorno, era conhecido por fazenda Lagarto – topônimo adotado em

função da grande quantidade desse animal existente na fauna local. Em depoimento ao filme

5 Segundo o historiador Francisco Adegildo Férrer (2007), Cariri foi uma maneira de nomear os povos

indígenas que habitavam as áreas interioranas do Nordeste. É, assim, um apelido dado a esses índios, já que

não sabemos como eles próprios se chamavam. A maior parte dos Cariris foi exterminada no movimento de

resistência à conquista “branca” entre 1694 a 1702. 6 Povoado de Senhor do Bonfim, certificado em 2004 como remanescente de quilombo pela Fundação Cultural

Palmares, órgão governamental vinculado ao Ministério da Cultura. 7 Esse documento, escrito entre os anos de 2007 e 2008, compõe o Relatório de Identificação e Delimitação

(RTID) sob responsabilidade do Instituto de Colonização e Reforma Agrária da Bahia (INCRA).

19

documentário Quilombos da Bahia8 (2004), dirigido por Antonio Olavo, o morador de

Tijuaçu, Domingos da Silva, na época com 79 anos, narra o porquê de a comunidade ter

esse nome:

Tijuaçu que era uma caça que chamam teiú e aí botaram o nome de

Tijuaçu, né? Botaram esse nome, e lagarto era um bicho que é o mesmo

teiú que gosta de comer lagarta. Aí inventaram esse nome aqui, ai ficou e

ainda hoje tá Tijuaçu, era Lagarto, aí depois passou a Tijuaçu. (OLAVO,

2004, 32: 50 min).

Os habitantes de Tijuaçu se consideram descendentes de nagôs.9 Carmélia Miranda

(2009) constatou que além da fusão entre nagôs e congos, os índios Cariris que habitavam a

região da Missão do Shaí, vila fundada por padres franciscanos para o aldeamento indígena

no final século XVII (hoje distrito de Senhor do Bonfim), também contraíram casamento

com os descendentes de Mariinha Rodrigues.

De acordo com Patrícia Navarro:

As denominações Congo e Nagô para designar famílias dos troncos

antigos de Tijuaçu, teriam sido designações mais genéricas que

permaneceram na memória social e que, atualmente, lhes serve como fator

identitário, contribuindo para a etnicidade do grupo. (NAVARRO, 2012, p.

133).

Tijuaçu, assim como outras comunidades negras rurais da Bahia visitadas pela

equipe do filme Quilombos da Bahia (2004), apresentam algumas características em

comum: desconheciam ou desconhecem o termo quilombo, vivenciam a agricultura de

subsistência, a população é formada por laços de parentesco, declaram-se de origem nagô e

mantém forte ligação com a música e com a dança.

8 No período de 90 dias, a equipe do filme percorreu 12.000 km e visitou 69 comunidades negras das centenas

existentes na Bahia. As comunidades visitadas estão distribuídas nos seguintes municípios: São Félix,

Cachoeira, Nilo Peçanha, Planalto, Rio de Contas, Souto Soares, Seabra, América Dourada, Senhor do

Bonfim, Campo Formoso, Juazeiro, Curaçá, Casa Nova, Pilão Arcado, Wanderley, Muquém do São Francisco,

Sítio do Mato, Bom Jesus da Lapa e Malhada. (OLAVO, 2004). 9 Nagô é o nome genérico de todos os grupos originários do Sul e Centro do Daomé e do Sudoeste da Nigéria,

portadores de uma tradição rica, derivada das culturas particulares dos diferentes reinos africanos de onde

provieram. Os nagôs foram os últimos grupos africanos a se estabelecerem no Brasil. (SODRÉ, 1988, p. 119).

20

2.1 COMO OS HABITANTES DE TIJUAÇU TORNARAM-SE NEGROS

Reza a lenda que quando alguém se perde na mata, é porque foi encantado pela

caipora – ser mítico, protetor dos animais das florestas10

. Os caçadores, ao abaterem animais

além das suas necessidades, tornam-se os alvos preferidos. No entanto, qualquer transeunte

pode ficar desorientado e andar em círculos até o encantamento ser quebrado. Para evitar

esse infortúnio ou para resolvê-lo é necessário que um pedaço de fumo de corda, oferenda

muito apreciada por esse ser, seja colocado no tronco de uma árvore.

A lenda da caipora é muito comum em comunidades rurais do Brasil. Em Tijuaçu, os

moradores contam que a caipora começou a sumir das matas da região a partir da década de

1930. De acordo com Navarro (2012), esse período foi marcado por uma grande seca.

Muitos moradores de Tijuaçu foram obrigados a deixar suas terras e migrarem para o sul da

Bahia. Em função disso, efetuaram negociações com grandes desvantagens para si, e boa

parte de suas terras foi incorporada ao patrimônio de grandes fazendeiros, que logo

empreenderam o desmatamento da caatinga.

As narrativas da caipora revelam um contexto em que a caatinga, mesmo em longos

períodos de estiagem, representa uma possibilidade de conseguir algum alimento através da

caça e do extrativismo. Nesse novo cenário, em que a mata foi quase totalmente substituída

pelo pasto, o sumiço da caipora metaforiza o agravamento nas condições já precárias de

sobrevivência dos tijuaçuenses.

Para amenizar as dificuldades enfrentadas pelos moradores de Tijuaçu, no final dos

anos noventa, quando o artigo 68 da Constituição Federal de 1988, que trata dos direitos das

comunidades quilombolas foi implantado, lideranças locais entraram em contato com a

Fundação Cultural Palmares (FCP) e o Instituto Nacional de Terras da Bahia (INTERBA),

para solicitar a cada órgão, respectivamente, o título de comunidade remanescente de

quilombo e a resolução de questões referentes às terras. O reconhecimento aconteceu em

2000, mas o processo de regularização fundiária ainda está em andamento.

De acordo com a bibliografia pesquisada, os moradores mais velhos de Tijuaçu não

conheciam o termo quilombo. A nossa hipótese quanto a esse desconhecimento, é que em

função do sentido negativo com que ficou enraizado no imaginário brasileiro, o termo

10 De Cáa, mato, e porá habitante, morador. Em qualquer direção pelo interior da Bahia, o Caapora-Caipora é

um pequeno indígena, escuro, ágil, nu ou usando uma tanga, fumando cachimbo, doido pela cachaça e pelo

fumo, reinando sobre todos os animais. (CASCUDO, 1972, p. 167).

21

quilombo tenha sido consciente ou inconscientemente escamoteado e por isso não faça parte

do cotidiano desses moradores.

Nesse sentido, para os habitantes das comunidades negras, identificar-se como

quilombola seria associar a sua imagem aos estigmas: desordeiro, indolente e bandido; são

apenas algumas das denominações inventadas pelos senhores de escravo, no período

colonial e disseminados pelo Estado brasileiro, para desqualificar os atos heroicos de negros

que resistiram ao sistema escravocrata, usando como subterfúgio a construção dos

quilombos históricos.

Segundo os antropólogos Kabengele Munanga e Nilma Gomes (2006, p. 61), “toda

habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte despovoada” foi a primeira

definição do termo quilombo cunhado aqui no Brasil, no século XVIII. Tal conceito

amplamente divulgado esmaeceu o seu significado primeiro: “Kilombo [...] instituição

sociopolítica militar conhecida na África Central, mais especificamente na área formada

pela atual República do Congo (antigo Zaire) e Angola”. (MUNANGA e GOMES, 2006, p.

61). Esta foi mais uma das estratégias utilizadas para tentar manter o negro subjugado:

esmaecer uma referência positiva e impor outra que atendesse aos interesses dos

dominadores.

A historiadora Kátia Mattoso, em seus estudos sobre os negros escravizados no

Brasil, afirma que os quilombos surgiram: “da própria instabilidade do regime escravocrata,

do trabalho organizado sem qualquer fantasia, da severidade rígida, das injustiças e

maltratos”. (MATTOSO, 2003, p. 158). No período escravocrata, a formação de quilombos

representava uma das principais táticas de resistência à escravidão com o intuito de resgatar

a liberdade e a dignidade do negro. Além dos embates contra as elites dirigentes da época,

foi necessário construir e manter uma nova ordem social clandestina, às margens da

sociedade colonial, constituindo-se em um fenômeno de resistência cultural.

O historiador Clóvis Moura (1987, p. 37) explica que os quilombos tanto

desgastavam a estrutura escravocrata, ao atuar nas margens do sistema, como provocavam

mudanças em seu centro, pois atingiam “em diversos níveis as forças produtivas do

escravismo” e, concomitantemente, criaram “uma sociedade alternativa” apresentando “a

possibilidade de uma organização formada por homens livres”.

A definição reducionista do termo quilombo difundida no Brasil como reduto de

escravos fugidos ajudou a encobrir as lutas não registradas por certa historiografia oficial de

oposição ao sistema escravocrata. Ademais, serviu às elites dirigentes como um elemento

desqualificador da nova estrutura social construída pelos quilombolas.

22

Munanga e Gomes resgatam o termo quilombo e atribuem-lhe uma carga semântica

positiva, invisibilizada por séculos:

Tratava-se de uma reunião fraterna e livre, com laços de solidariedade e

convivência resultante do esforço dos negros escravizados de resgatar sua

liberdade e dignidade por meio da fuga do cativeiro e da organização de

uma sociedade livre. (MUNANGA e GOMES, 2006, p. 62).

O termo quilombo foi esquecido pela legislação brasileira pós-abolição e retomado

apenas em 1988, no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da

Constituição Federal, cem anos após a assinatura da Lei Áurea. Foi retomado e

ressemantizado, deslocado da conceituação que o colocava na contramão da legalidade para

uma definição que converge para o início da reparação dos muitos danos sofridos pelos

negros “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas

terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos

respectivos”. (BRASIL, 1988).

Apesar do avanço, a ressignificação desse termo pela Constituição de 1988 não

viabilizou o acesso aos direitos instituídos, posto que não define quais são as características

de uma comunidade remanescente de quilombo, o que resultou em entraves para a

efetivação do artigo 68, que não dá conta de englobar, por exemplo, os agrupamentos de

gerações negras que foram constituídas pós-abolição e que não se enquadram no binômio

fuga-resistência. Assim, passa ao largo das múltiplas e variadas características existentes nas

comunidades negras rurais com os seus diferentes processos de territorialização.

Para ajudar a esclarecer o significado de comunidade remanescente de quilombo e

preencher os vazios deixados pelo artigo 68 da Constituição, de modo a atenuar as

divergências quanto às características que definem os territórios quilombolas, a Associação

Brasileira de Antropologia (ABA) elaborou em 2004 um parecer. Neste, fica claro que não

apenas as comunidades oriundas de quilombos históricos podem ser reconhecidas como

remanescentes, mas também “grupos que desenvolveram práticas cotidianas de resistência

na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos e na consolidação de um

território próprio”. (O´DWYER, 1995, p. 18).

O decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003, endossa o parecer da ABA e amplia

o conceito:

Art. 2o Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos,

para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de

auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações

territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada

com a resistência à opressão histórica sofrida. (BRASIL, 2003).

23

Em síntese, o termo quilombo, originário da África Central no período anterior a

diáspora negra, sofreu, ao longo do processo histórico, transformações decorrentes do

próprio dinamismo cultural e absorveu diferentes cargas semânticas atribuídas pelas elites

dominantes. Na história recente, o termo foi retomado positivamente pelo Estado brasileiro

para denominar comunidades negras rurais em todo o país.

Na contemporaneidade, o termo quilombo, segundo Gloria Moura (1999), nomeia

comunidades negras rurais que, em linhas gerais, agregam as seguintes características: são

constituídas por laços de parentesco, os habitantes vivem em sua maioria de culturas de

subsistência, possuem uma história comum, valorizam as tradições culturais dos

antepassados e têm normas de pertencimento explícitas, com consciência de identidade

étnica.

Tendo em vista que os conceitos “quilombos contemporâneos” e “comunidades

remanescentes de quilombos” são contíguos e complementares, eles são tratados aqui como

sinônimos, no que se refere à Tijuaçu. Ambos os termos, contemplam as características

dessa comunidade, tendo em vista a sua origem, história, tradições, costumes e os modos de

ocupação da terra.

De acordo com a historiografia pesquisada, o território da comunidade negra de

Tijuaçu não foi um quilombo histórico. Embora a comunidade tenha sido fundada por uma

negra fugida do cativeiro, não há registros orais ou escritos de que os habitantes tenham se

confrontado com as forças que mantinham o sistema escravocrata. Assim, o termo

quilombo, seja na acepção negativa ou positiva, não fazia parte do cotidiano dos moradores

tijuaçuenses mais antigos.

Todavia, a partir do trabalho de conscientização realizado pela Fundação Cultual

Palmares (FCP), por representantes do Movimento Negro Unificado (MNU) e pelas

lideranças locais, os moradores de Tijuaçu compreenderam que a sua comunidade é

remanescente de quilombo, de acordo com a acepção contemporânea. Entenderam também

que reivindicar esse título é o primeiro passo para a conquista de direitos legais tardiamente

instituídos. Em função disso, a nominação foi assumida e passou a funcionar como um

baluarte para redefinir as suas identidades.

Os tijuaçuenses mantinham os seus costumes e tradições resultantes da influência

das culturas africanas, no entanto, eram reprimidos pelo peso dos estigmas atribuídos a tais

culturas. Embora se orgulhassem da herança de uma escrava guerreira e vitoriosa, conforme

o relato de fundação da comunidade, eles tinham de lidar com a tensão psicológica gerada

24

pelo conflito de apreciar e praticar uma cultura que era desqualificada pelo outro – aqueles

que não são da comunidade.

No período anterior ao reconhecimento, os tijuaçuenses “Tinham uma auto-estima

baixa, consideravam-se inferiores e fugiam de tal situação isolando-se pelos diferentes

povoados e roças de Tijuaçu”. (MIRANDA, 2009, p. 60). E muitos moradores das demais

localidades que fazem parte do município de Senhor do Bonfim, incluindo os da sede,

também se referiam a eles de modo pejorativo. Esse comportamento concorria para

aprisioná-los em conceituações depreciativas. A consequência imediata foi a interferência

negativa na construção da identidade negra do grupo. Tornar-se quilombola, na acepção

positiva, foi fundamental para elevar a autoestima dos habitantes de Tijuaçu e contribuiu

também para coesão do grupo, haja vista a necessidade de unirem-se para reivindicar

direitos. Em consequência, aceitar-se quilombola, inevitavelmente, colocou o grupo frente à

outra questão: assumir-se negro.

Conforme os estudos de Carmélia Miranda, antes do reconhecimento, os moradores

de Tijuaçu, embora cultivassem suas manifestações culturais de matriz africana e

preservassem sua história, envergonhavam-se de ser negros:

Mesmo tendo a pele escura, costumes e tradições afros, os habitantes de

Tijuaçu não se identificavam como afro-brasileiros; viviam imitando a

cultura do branco. Eles definiam-se como: moreno, escurinho, moreninho

ou outras denominações, mas nunca como negros. (MIRANDA, 2009, p.

60).

A historiadora identificou uma realidade que não se restringe apenas aos habitantes

de comunidades em que a predominância é de negros. No Brasil, ainda é comum o não se

aceitar negro e imitar uma imaginada cultura do branco, em função do preconceito racial

sofrido historicamente pela raça negra e da não valorização da sua cultura.

De acordo com Munanga, em pesquisa de Clóvis Moura, realizada após o censo de

1980, com depoimentos de não brancos sobre a cor da pele, constam referências a 136

cores11

. Para Munanga (1999, p. 120), “este total de cores demonstra como o brasileiro foge

de sua realidade étnica, de sua identidade, procurando, mediante simbolismo de fuga, situar-

se o mais próximo possível do modelo tido como superior, isto é branco”. O resultado da

pesquisa de Clóvis Moura, analisado por Munanga, e o comportamento dos moradores de

11

Desde 1950, para o quesito cor ou raça, o IBGE utiliza as seguintes categorias: branco, preto, pardo e

amarelo, a indígena foi incluída em 1991. Porém, para a análise dos dados, o IBGE agrupa as categorias pretas

e pardas, em apenas uma: negro, tendo como elemento motivador para tal agrupamento, o aspecto

socioeconômico. Disponível em: www ge gov r o e estat st ca populacao notas tecn cas p . Acesso

em: 20/05/2013

25

Tijuaçu, mostra o quanto os brasileiros ainda são influenciados pela ideologia do

branqueamento.

Tal ideologia nos remete aos discursos “científicos” que circulavam na Europa

durante o século XIX e início do século XX, os quais proclamavam a inferioridade do negro

e a degenerescência causada pela mistura de raças. Diante desses discursos, a elite

brasileira, cujo pensamento era moldado pelas ideias eurocêntricas, deparou-se com um

impasse: como construir uma nação que já na sua gênese está fadada à inferioridade, uma

vez que a presença de negros, índios e mestiços era muito maior que a de brancos, e a

mestiçagem parecia algo inevitável?

Para resolver essa questão, a elite dirigente, estrategicamente, tratou de acolher

apenas os discursos que foram readequados ao contexto nacional. Nesse sentido, embora de

modo ambivalente, a mestiçagem foi validada e motivada, tendo em vista que seria o estágio

intermediário para branquear o povo brasileiro em alguns poucos séculos, uma vez que a

raça tida como superior iria prevalecer, ideia defendida principalmente pelo historiador

Silvio Romero12

. Em suma, a mestiçagem evitava a “ameaça racial” e iniciava o processo de

“liquidação da raça negra”. (MUNANGA, 1999, p. 93).

Embora as classes dirigentes tenham se empenhado para que o embranquecimento da

nação se concretizasse, trazendo levas de imigrantes europeus e marginalizando o negro, as

previsões fracassaram. Todavia, o status de superioridade do branco e de sua cultura

autoatríbuidos reverbera na atualidade. Do mesmo modo, as construções depreciativas

criadas para o negro ainda têm grande força alienante na formação do imaginário brasileiro.

Em contrapartida, as classes consideradas subalternas resistem ao processo de

marginalização social e investem na positivação dos elementos simbólicos que referendam

os seus grupos. Dentro desse contexto, ser negra ou negro, no Brasil, conforme nos explica

Neusa Souza, é ainda uma questão de tornar-se, de “vir a ser”:

Saber-se negra é viver a experiência de ter sido massacrada em sua

identidade, confundida em suas perspectivas, submetida a exigências,

compelidas a expectativas alienadas. Mas é também, e sobretudo, a

experiência de comprometer-se a resgatar sua história e recriar-se em suas

potencialidades. (SOUZA, 1983, p. 18).

Para Munanga (1999), a política e ideologia do branqueamento provocaram uma

pressão psicológica nos negros escravizados e nos seus descendentes que foram obrigados a

12

Para Silvio Romero, o brasileiro é uma sub-raça mestiça e crioula, nascida da fusão de duas raças inferiores,

o índio e o negro, e uma superior, a branca ou ariana. Para evitar a degeneração da nova raça mestiça, será

preciso estimular seu embranquecimento, promovendo a imigração europeia. (ROMERO apud CHAUÍ, 2000,

p. 49)

26

alienaram a sua identidade transformando-se, cultural e fisicamente em brancos. Essa

alienação reforça a assertiva de Neusa Souza quanto a difícil tarefa de tornar-se negro.

Imitar a cultura do branco, negar a cor e se autoinferiorizar é um comportamento

que, segundo a antropóloga Leila Gonzalez (1988, p. 73), tem como fundamento a exclusão

e o repúdio aos elementos que não fazem parte do cânone branco, com vistas à inclusão em

uma sociedade que atribui valores positivos somente àqueles da imaginada cultura europeia.

Tal comportamento perpetua-se através da sua vinculação aos “meios de comunicação de

massa” e aos “aparelhos ideológicos tradicionais”. A autora acrescenta ainda as

consequências de se propalar valores de um determinado grupo, neste caso, o branco, como

únicos e verdadeiros:

Uma vez estabelecido, o mito da superioridade branca demonstra sua

eficácia pelos efeitos de estilhaçamento, de fragmentação da identidade

racial que ele produz: o desejo de embranquecer [...] é internalizado, com a

simultânea negação da própria raça, da própria cultura. (GONZALEZ,

1988, p. 73).

Ainda enredados pelos discursos que negativavam tudo que estava relacionado ao

negro, os habitantes de Tijuaçu depararam-se, a partir do processo de reconhecimento como

comunidade quilombola, com a impossibilidade de continuar negando a sua cor e esconder

suas práticas culturais, uma vez que assumi-las é essencial para a consolidação do processo.

Frente a essa nova situação, é possível que os tijuaçuenses tenham se deparado com o

seguinte dilema: como assumir e valorizar elementos etnorraciais autorrejeitados, uma vez

que é em função deles que sofrem preconceito e discriminação racial?

Para tentarmos entender essa questão complexa, retornemos ao período colonial. O

psiquiatra martiniquenho Frantz Fanon (2008), objetivando ajudar o negro a libertar sua

mente de uma gama de complexos germinados no âmago do contexto colonial, escreveu

Pele negra, máscaras brancas, publicado pela primeira vez em 1952. Nessa obra, Fanon

analisou as interrelações entre os negros antilhanos da Martinica e os franceses, seus

colonizadores, bem como comportamento de ambos frente ao aparato politico/ideológico

criado para produzir efeitos de dominação. A narrativa que se segue apresenta uma situação

conflituosa que atravessou as fronteiras do tempo-espaço, haja vista os conflitos similares

que ainda ocorrem na contemporaneidade, nos mais diversos contextos:

Meu corpo era devolvido desancado, desconjurado, demolido, todo

enlutado, naquele dia branco de inverno. O preto é um animal, o preto é

ruim, o preto é malvado, o preto é feio; olhe um preto! Faz frio, o preto

treme, o preto treme porque sente frio, um frio que morde os ossos, o

menino bonito treme porque pensa que o preto treme de raiva, o menino

27

branco se joga nos braços da mãe: mamãe o preto vai me comer!

(FANON, 2008, p. 107).

No ápice do trauma psicológico, o narrador-personagem apresenta uma síntese e o

resultado de uma gama de estereótipos raciais inventados para e contra o negro no período

colonial. O comportamento da criança branca revela o inconsciente coletivo do contexto no

qual está inserida, construído a partir de mitos e preconceitos sobre o negro – “O

inconsciente coletivo é cultural, ou seja, adquirido”. (FANON, 2008, p. 160). A identidade

negra tanto no período colonial como posteriormente foi moldada pelo discurso das elites

dirigentes europeias que introjetou na autorrepresentação do negro estereótipos

depreciativos, provocando um mal estar contínuo que transcendeu tal período e nos chega

ainda hoje.

Tanto com relação aos negros em situação de deslocamento no contexto da diáspora

africana, quanto os que foram explorados em seus países, as suas identidades foram

propositalmente desqualificadas, uma vez que essa violência psicológica, coadunada com a

física, funcionava para subjugá-los e explorá-los com maior eficácia.

Os negros submetidos à diáspora, em condições adversas, foram obrigados a

construírem outras identidades – resultantes do diálogo com os seus consortes negros de

grupos étnicos africanos variados e de seus “proprietários”, no sistema da escravidão. Em

um contexto de mutilação física, cultural, moral e psíquica, os escravizados foram obrigados

a reelaborar os seus costumes e os modos de sobrevivência, ainda assim, conseguiram

manter traços de suas tradições e de suas culturas.

Mesmo no período pós-abolição, em que o negro é fisicamente livre, contudo ainda

em processo de libertação das conceituações depreciativas que lhes foram atribuídas,

construir identidades que de fato o favoreça constitui-se um desafio. Sobre a recuperação da

identidade negra, Munanga tem a seguinte visão:

Começa pela aceitação dos atributos físicos de sua negritude13

antes de

atingir os atributos culturais, mentais, intelectuais e psicológicos, pois o

corpo constitui a sede material de todos os aspectos da identidade.

(MUNANGA, 2009, p. 19).

A pesquisadora Lindinalva Barbosa, em consonância com as reflexões feitas por

Munanga, discorre sobre a construção da identidade negra:

13

Termo criado em 1930 por Aimé Césarie a principio baseado na questão fenotípica e com o objetivo de

glorificar os valores do negro, é ressignificado e atualizado por Munanga que dentre outras definições que

atribuí ao termo, destaco: “a negritude torna-se uma convocação permanente de todos os herdeiros dessa

condição para que se engajem no combate para reabilitar os valores de suas civilizações destruídas e de suas

culturas negadas”. (MUNANGA, 2009, p. 20, grifo do autor).

28

[...] um dos principais signos de reconhecimento e consciência racial é a

assunção de uma identidade negra. Essa assunção passa, sobretudo, pela

apropriação ou reapropriação de características fenotípicas e culturais que

reconfiguram estéticas, gestuais e linguagem cada vez mais vinculadas ao

universo africano e afro-diaspórico. (BARBOSA, 2009, p. 47, grifos da

autora).

É fato que a tese sobre raça14

no sentido biológico foi superada, uma vez que a

ciência comprovou que não existem diferenças genéticas o suficiente para distinguir raças

humanas. Na sociedade brasileira, contudo, as características fenotípicas (cor da pele,

cabelo, traços do rosto) funcionam como diferenciadores raciais nas interrelações entre

negros e não negros e em função destas ocorrem preconceito e discriminação. Conforme

observa Stuart Hall, “„Raça‟ é um construção política e social. É a categoria discursiva em

torno da qual se organiza um sistema de poder socioeconômico, de exploração e exclusão –

ou seja, o racismo”. (HALL, 2011, p. 66).

Nesse sentido, na medida em que os negros positivam sua identidade etnorracial,

exaltam os seus traços físicos distintivos e rejeitam o embranquecimento social (assimilação

dos valores culturais e imitação do comportamento do branco) através da aceitação e

valorização dos traços que distinguem as suas culturas das demais. Aqui, o termo identidade

negra é compreendido como sinônimo de identidade etnorracial, posto que este abranja

aspectos subjetivos, fenotípicos, históricos, políticos, ideológicos, sociais e culturais.

Para Munanga (2009, p. 108), “a identidade é um processo sempre negociado e

renegociado, de acordo com os critérios ideológicos-políticos e as relações de poder”.

Assim, na medida em que um determinado grupo não tem acesso às benesses do Estado, ou

é representado de forma negativa, o fortalecimento da identidade coletiva funciona como

plataforma politicamente mobilizadora com vistas a angariar conquistas no corpo social. No

contexto contemporâneo brasileiro, é no embate de forças simbólicas entre as elites

dirigentes e os grupos socialmente desprestigiados que as construções identitárias são

constantemente redefinidas.

Ao refletir sobre as identidades africanas, o filosofo ganês Kwame Appiah (1997),

na obra Na casa de meu pai, afirma que toda identidade humana é construída e histórica e

que uma gama de invenções produz para as identidades a carga simbólica necessária para

sua existência. Em suas palavras:

Todo o mundo tem seu quinhão de pressupostos falsos, erros e imprecisões

que a cortesia chama de “mitos”, a religião de “heresia”, e a ciência de

14

Sobre a polémica em torno do termo, ver estudos de Nilma Gomes (2005), Antonio Sérgio Guimarães

(2005), entre outros.

29

“magia”. Histórias inventadas, biologias inventadas, e afinidades culturais

inventadas vêm junto com toda identidade; cada qual é uma espécie de

papel que tem que ser roteirizado, estruturado por convenções de narrativa

a que o mundo jamais consegue conformar-se realmente. (APPIAH, 1997,

p. 243).

O processo de construção da identidade negra, assim como de qualquer outra

identidade, constrói-se e reconstrói-se continuadamente de acordo com o contexto

sociohistórico, cultural e político de cada grupo e contempla as suas necessidades de

inclusão e valoração positiva. A noção de identidade é aqui desvinculada de qualquer ideia

de essencialização, fixação ou imutabilidade. Quanto à questão da essência, Michel

Foucault, em sua leitura de Nietzsche sobre a genealogia e a história, ensaio publicado na

obra Microfísica do poder, adverte:

[...] atrás das coisas há “algo inteiramente diferente”: não seu segredo

essencial e sem data, mas o segredo que elas são sem essência, ou que sua

essência foi construída peça por peça a partir de figuras lhes eram

estranhas. (FOUCAULT, 2012, p. 58).

Os tijuaçuenses, assim como outros negros afro-diaspóricos ou os que foram

escravizados em suas próprias terras, a exemplo dos antilhanos da Martinica, estiveram ou

ainda estão capturados pela ideologia da superioridade do branco e vitimados pelos

estereótipos atribuídos ao negro. A negatividade da cor, por exemplo, encontrou no Brasil

terreno fecundo para reprodução e proliferação, haja vista o desejo da elite brasileira

colonial e pós-colonial15

de parecer-se com a europeia e manter o negro refém de uma

suposta inferioridade. Concernente às cargas semânticas das cores branca e negra,

enraizadas no imaginário ocidental, lê-se:

O negro, o obscuro, a sombra, as trevas, a noite, os labirintos da terra, as

profundezas abissais, enegrecer a reputação de alguém; e do outro lado: o

olhar claro da inocência, a pomba branca da paz, a luz feérica, paradisíaca.

(FANON, 2008, p. 160).

Em Tijuaçu, a partir do final da década de 1990, o processo de construção da

identidade etnorracial, que esteve por muito tempo aprisionado na negação, começou a

romper as barreiras do preconceito e da discriminação racial e aos poucos foi surgindo com

vigor. De modo que a construção e o fortalecimento dessa identidade coletiva atrelada

também ao sentimento de pertença ao grupo e à terra, contribuem para mobilizar

politicamente os tijuaçuenses na luta em curso por conquistas.

15 Nesse estudo, o termo pós-colonial é utilizado no sentido histórico, diferente do conceito usado

contemporaneamente.

30

Por conseguinte, após o reconhecimento como comunidade quilombola, os

habitantes de Tijuaçu passaram a apresentar indícios de afirmação de sua identidade

etnorracial e aos poucos obtêm como retorno a valoração e o respeito do outro, de modo a

reconstruírem a sua autoestima e reafirmarem positivamente os traços de sua

etnorracialidade. Com efeito, uma reescrita da história passa a ser tecida, agora na esteira da

positivação de seus valores culturais que, de acordo com Carmélia Miranda, aconteceu da

seguinte forma:

Primeiro por uma fase de descoberta e, posteriormente, pelo conhecimento

da cultura dos seus antepassados. Em seguida, descobriram um estágio de

conscientização e valorização dessa cultura. No último período,

conheceram sua história e de seus antepassados e passaram a valorizar suas

manifestações culturais, suas relações de trabalho, sua religiosidade e seus

traços físicos. (MIRANDA, 2009, p. 65).

A historiadora sintetiza o percurso de assunção da identidade negra quilombola em

Tijuaçu. Acrescenta ainda que os moradores locais não sentem mais medo do preconceito e

do racismo que de alguma forma ainda sofrem. É provável, no entanto, que os estágios

citados por Miranda não sejam suficientes para positivar a identidade quilombola em

Tijuaçu, tendo em vista as cicatrizes psicológicas causadas pela desqualificação dos

elementos religiosos, estéticos e culturais relacionados ao negro.

As representações negativas do negro, de forma geral, ainda são notórias na

contemporaneidade, continuam municiando o imaginário nacional, seja por meio da

produção literária, da invisibilidade ou visibilidade estereotipada nos livros didáticos, nas

letras de música, filmes, telenovelas e propagandas. Trata-se de discursos com grande

potencial de influência na formação da identidade individual e coletiva de cada cidadão e

que de modo sistemático cerceiam o modo de representação afirmativa da identidade negra.

Assim, o fato de os tijuaçuenses estarem se empenhando no resgate e valorização

das suas referências simbólicas, pressupõe que passos no caminho para a afirmação da

identidade etnorracial foram trilhados. De acordo com Stuart Hall (2011, p. 328) “Estamos

constantemente em negociação, não com um único conjunto de oposições que nos situe

sempre na mesma relação com os outros, mas com uma série de posições diferentes”. O

processo de construção ou de positivação de identidades, portanto, nunca é definitivo.

Ainda, segundo o autor “Essa é a questão mais difícil da proliferação no campo das

identidades e antagonismos: elas frequentemente se deslocam entre si”. (HALL, 2011, p.

328).

31

No processo em curso de construção da identidade negra em Tijuaçu, alguns

elementos são preservados ou modificados e outros foram acolhidos, por exemplo, a

nominação quilombola, reformulações que atendem as demandas do contexto. Tornar-se

quilombola ajudou, portanto, no processo de redimensionamento da percepção quanto ao

valor dos elementos que compõem etnorracialidade do grupo.

Não se pode desconsiderar também a ambiguidade da identidade coletiva dos

habitantes de Tijuaçu, haja vista que é construída no limiar entre a negação e aceitação das

influências das culturas africanas, conforme veremos a seguir.

2.2 O LAGARTO RESSURGE FORTALECIDO

No final dos anos noventa, com o apoio da Fundação Cultural Palmares (FCP) e do

Movimento Negro Unificado (MNU), as lideranças locais de Tijuaçu, juntamente com os

moradores da comunidade, começaram a se mobilizar com a intenção de reivindicar para si

o título de comunidade remanescente de quilombo e a partir de então lutar pelos direitos

legais previstos para tais comunidades. De acordo com o relatório de Patrícia Navarro,

No ano de 1998, foram feitos contatos de lideranças da comunidade com

órgãos do governo no intuito de tratar sobre a questão das terras da

comunidade de Tijuaçu. Esse primeiro contato deu-se através do Interba

(Instituto de Terras da Bahia) e da Fundação Palmares (do Ministério da

Cultura), órgãos que na ocasião estavam firmando convênio para

trabalharem com o reconhecimento e a titulação das terras das

comunidades quilombolas na Bahia. (NAVARRO, 2012, p. 98).

Em 28 de fevereiro de 2000, o distrito de Tijuaçu foi reconhecido como

remanescente de quilombo, conforme publicação no Diário Oficial da União (DOU). O

reconhecimento aconteceu logo após a conclusão do laudo antropológico, sob

responsabilidade da Fundação Cultural Palmares e do Instituto de Terras da Bahia, que

descreveu etnograficamente a comunidade. A certificação ocorreu em 12 de julho de 2005

de acordo com o DOU, adequando-se às exigências do decreto nº 4.887 de 2003, sendo o

território identificado e delimitado em 2010 pelo INCRA16

cuja documentação foi publicada

nos diários oficiais da União e do Estado, entre os dias 1º e 5º de Julho 2010.

16

O processo de regularização das terras quilombolas iniciou-se em 1995 sob responsabilidade do INCRA. Em

2001, com o decreto 3.912, a responsabilidade foi atribuída à FCP e em 2003, com o decreto 4.887, o INCRA

assume novamente o processo de regularização. (INCRA, 2012, p. 9).

32

A certificação é a etapa em que os habitantes da comunidade negra, em comum

acordo, declaram-se remanescentes de quilombo e solicitam a emissão da certidão de

autodefinição junto à FCP com vistas à inclusão no cadastro geral das comunidades

quilombolas. Esse procedimento entrou em vigor em 2004 e passou a ser a primeira etapa

do processo. A abertura do processo de identificação e delimitação do território só acontece

após a inclusão da comunidade nesse cadastro. Vale ressaltar que a certificação ainda não

existia quando a comunidade negra de Tijuaçu foi reconhecida como quilombola, por isso,

essa etapa foi realizada posteriormente.

Após a identificação e delimitação das terras habitadas e cultivadas secularmente

pelos quilombolas, o processo de regularização fundiária segue o seu percurso, contudo, no

caso de terras quilombolas com o status fundiário de terras particulares, o trajeto é

praticamente paralisado. Esse é o status das terras em Tijuaçu, cujo perímetro territorial já

foi reconhecido como quilombola, no entanto, até o corrente ano, continuam de posse dos

grandes fazendeiros.

Para que o processo de regularização fundiária17

em Tijuaçu seja concluído, as

seguintes etapas descritas no documento Territórios Quilombolas Relatório (2012), ainda

precisam ser executadas:

Etapa 6: Desintrusão dos ocupantes não quilombolas com pagamento de

indenização pela terra nua e pelas benfeitorias;

Etapa 7: Georeferenciamento e cadastramento do território no SNCR18

;

Etapa 8: Titulação; e

Etapa 9: Registro do título emitido. (INCRA, 2012, p.13).

A execução das últimas etapas enfrenta barreiras ainda maiores que a das etapas

anteriores. Posto que, além de toda a burocracia legal e a não disponibilidade de recursos

financeiros para pagar as indenizações, acrescenta-se ao contexto, as longas discussões, nas

quais os ocupantes das terras pleiteadas defendem os seus interesses. Muitas vezes, os

acordos de desintrusão propostos pelo INCRA não satisfazem aos interesses dos ocupantes

não quilombolas que entram com ações contestatórias e questionam, por exemplo, o valor

dos imóveis presentes nas terras, fazendo com que o processo de desintrusão tramite durante

décadas.

17

Sobre a regulamentação dos procedimentos para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação,

desintrusão, titulação e registro das terras ocupadas pelos remanescentes de comunidades dos quilombos, ver

A INSTRUÇÃO NORMATIVA Nº 57 de 20/10/ 2009. 18

Sistema Nacional de Crédito Rural

33

Em Territórios Quilombolas Relatório 2012, documento que apresenta uma síntese

dos aspectos de regularização fundiária de territórios quilombolas do Brasil, o próprio

INCRA emite o seu parecer quanto às dificuldades na realização desse processo:

O aludido encadeamento de etapas traduz um procedimento

intrinsecamente complexo e moroso, baseado em normativo elaborado por

um grupo interministerial com vistas a dar maior lisura à regularização de

terras quilombolas. Acrescenta-se ainda que a demora na execução destas

etapas está diretamente relacionada à reduzida estrutura operacional e

disponibilidade orçamentária e financeira para atingir todo universo de

processos abertos. (INCRA, 2012, p. 13).

Salvo as dificuldades de reapropriação das terras, o reconhecimento de uma

comunidade como remanescente de quilombo contribui para a autoafirmação do grupo –

através do resgate da história e da valorização da cultura local. Possibilita ainda a execução

de ações governamentais, a exemplo das viabilizadas pelo Programa Brasil Quilombola,

coordenado pela Secretária de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) em

articulação com os diversos órgãos responsáveis pela saúde, educação, moradia,

infraestrutura de saneamento e abastecimento, entre outros. As ações são solicitadas pelas

lideranças locais e uma vez atendidas ajudam a minimizar as dificuldades de sobrevivência

e reduzem as desigualdades sociais, contribuindo para amenizar a dívida histórica que o

Brasil tem com o negro.

A construção da identidade negra em Tijuaçu, conforme verificamos, passou a ser

redimensionada a partir do processo de reconhecimento enquanto comunidade quilombola.

Com efeito, tornar-se quilombola contribuiu para que os tijuaçuenses assumissem a sua

negritude, desencadeando, portanto, o processo de positivação dos elementos que compõem

a etnorracialidade do grupo.

O processo de produção de identidades é uma construção dinâmica e interminável,

reinventada também a partir dos diferentes contatos com outras culturas em seu entorno, que

se tocam e se misturam, haja vista o caráter deslizante das fronteiras culturais. Fronteiras

que se tornaram ainda mais fluídas frente ao contato com culturas distantes, proporcionado

principalmente pelo aparato tecnológico do atual mundo globalizado.

É importante salientar que a globalização, ao acelerar o processo de hibridização

cultural, investe também na tentativa de homogeneização pela mercantilização da cultura,

deflagrando, assim, um processo de esvaziamento de seus sentidos enquanto diferença. No

Brasil, os movimentos negros trabalham na contracorrente dessa homogeneização, a fim de

positivar a identidade negra com ênfase em sua diversidade. Movimentam-se no sentido de

34

angariar direitos legais historicamente negados e no resgate das lutas históricas,

empreendidas pela etnorracialidade negra: isto tudo força a releitura da historiografia

oficial, revaloriza culturas e desvela mitos.

Ao analisar a representação do negro em sua cultura, no contexto atual, redesenhado

em função dos deslocamentos dos centros de poder, Stuart Hall afirma que a semelhança e a

diferença combinadas são as claves para entender as redefinições estratégicas ocorridas no

âmbito cultural globalizado. Hall rejeita a discussão pautada na simples oposição cultura

erudita versus popular, uma vez que ambas as formas culturais lidam com influências

recíprocas e negociam espaços. De acordo com o teórico, há uma proeminente produção de

espaços conquistados pelas culturas marginais no campo da cultura dominante. Tal

conquista “É também o resultado de políticas culturais de diferença, da produção de novas

identidades e do aparecimento de novos sujeitos no cenário político e cultural”. (HALL,

2011, p. 320).

Quanto à percepção do sujeito negro, Hall critica qualquer tentativa de

essencialização, uma vez que esta seria uma das formas de atribuir-lhe uma identidade fixa.

“O movimento essencializante é fraco porque naturaliza e des-historiciza a diferença,

confunde o que é histórico e cultural com o que é natural, biológico e genético”. (HALL,

2011, p. 326). Pensar a categoria “negro” como essência em nada contribui com a discussão

em termos de políticas culturais, uma vez que a questão não é o que é negro no sentido

genético, mas a diversidade da experiência negra. Hall adverte:

Não é somente para apreciar as diferenças históricas e experiências dentro

de, e entre, comunidades, regiões, campo e cidade, nas culturas nacionais e

entre as culturas diaspóricas, mas também reconhecer outros tipos de

diferença que localizam, situam e posicionam o povo negro. (HALL, 2011,

p. 327).

Na dialética da luta cultural, as posições são estrategicamente negociadas. Os

indivíduos se submetem ou são submetidos, ora por opção, reivindicando bens simbólicos

que lhe foram usurpados e que podem posteriormente convergir em conquistas materiais,

ora assimilando uma identidade imposta pelas classes dominantes. É dentro desse prisma

que investir em identidades móveis e dinâmicas se faz necessário, uma vez que estas podem

ser reformuladas frente às demandas dos jogos de poder.

A discussão de Hall é muito produtiva para se pensar a identidade negra em Tijuaçu,

que, em processo contínuo de produção, como acontece em todas as comunidades, negocia

as suas diferenças e semelhanças com as demais culturas em seu entorno e forja a sua

identidade coletiva com algumas peculiaridades que a distinguem de qualquer outro grupo.

35

Não obstante, a pergunta emergente quanto a esta comunidade, parafraseando Stuart Hall é:

que identidade negra é esta ensejada pela comunidade de Tijuaçu?

Inseridos nesse contexto contemporâneo de fronteiras culturais vacilantes, os atuais

habitantes do distrito de Tijuaçu cultivam e conseguem manter algumas tradições, práticas

culturais e a religiosidade dos seus antepassados, com destaque para: a produção de acarajé,

o samba de lata e a festa de São Benedito; além de carregarem no seu modo de vestir traços

que afirmam a sua etnorracialidade: penteados afro-brasileiros, usados principalmente pelas

crianças e os jovens; vestuários e adornos pessoais que lembram signos do continente

africano: turbantes, torços, batas e gorros coloridos, usados com mais frequência pelas

lideranças locais.

O surgimento do samba de lata, manifestação cultural praticada somente pelos

tijuaçuenses, de acordo com Paulo Machado (2004), está relacionado com as principais

secas que afligiram os tijuaçuenses nos anos de 1900 e 1932-1933. O samba começou para

aliviar o sofrimento em função das consequências da seca e posteriormente virou um

costume; os mais velhos convidavam as pessoas para se divertirem numa roda de samba em

que o único instrumento de percussão disponível era a lata vazia de querosene.

A já falecida Luísa Rodrigues (1924-2000), antiga moradora de Tijuaçu, em

depoimento ao documentário Quilombos da Bahia, narra a origem do samba de lata:

O tempo era seco, não tinha água aqui em lugar nenhum. Então só tinha

água nesse rio que chamava rio cocho. [...] quando chegava nesse lugar,

nesses bancos de areia, esses lugar assim, a gente botava o baixo e ia

cantar roda, cantar roda, bater palma, sambar e dali ia formar o samba, ia

buscar água, quando vinha, fazia o mesmo samba e assim a gente ia

treinando, aprendendo, dizendo verso e tudo assim era que a gente ia

aprender o samba de lata. (OLAVO, 2004, 39:50 min).

No depoimento, apresenta-se o contexto do surgimento do samba de lata, criado no

percurso da sobrevivência para se conseguir água. A partir do uso do recipiente para

armazenagem, a lata de zinco, extraía-se o som para dar ritmo ao samba. Assim através de

uma atividade lúdica e espontânea, podiam-se aliviar os momentos de penúria.

Essa manifestação cultural de acordo com os estudos de Miranda (2009) foi também

utilizada como meio de sobrevivência. Os moradores de Tijuaçu, ao enfrentaram grandes

períodos de estiagem, apresentavam também o seu samba de lata às margens da estrada

entre Senhor do Bonfim e Salvador, a fim de obter doações.

Mesmo no contexto atual, em que os moradores não necessitem mais buscar água em

latas para abastecerem as suas casas, pois a comunidade conta com o abastecimento de água

36

encanada, o que torna menos complicados os períodos de estiagem, o samba de lata

mantém-se vivo e atravessa gerações. Essa manifestação ainda pode ser vista em

comemorações festivas no município ou em outras cidades.

O samba de lata tornou-se o principal símbolo cultural de Tijuaçu e é formado em

sua maior parte por mulheres e meninas. As participantes usam vestidos brancos rodados,

sandálias rasteiras (ou ficam descalças), colares e cabelos trançados. Os poucos homens que

participam vestem-se de calça e camisa brancas. Todos cantam, dançam e batem palma,

acompanhados do som que uma mulher retira de uma lata de zinco enquanto outra puxa os

versos e os demais fazem o coro. As letras das músicas são criadas pelas mulheres e

retratam o cotidiano passado e presente dos quilombolas.

O samba de lata representa um dos traços distintivos da cultura que resiste em

Tijuaçu, contribui na construção positiva da identidade negra local e ganha também

notoriedade. Em 2008, por exemplo, o grupo de samba de lata apresentou-se na reitoria da

Universidade Federal da Bahia, em Salvador, na abertura do evento internacional África e

Diáspora: refletindo sobre o lugar da mulher negra na geopolítica e os desafios da luta

contra a pobreza e o racismo, promovido pela União de Negros pela Igualdade (UNEGRO)

e a União Brasileira das Mulheres (UBM).

Com relação à religiosidade, na sede do distrito de Tijuaçu há uma igreja católica e o

padroeiro do distrito é São Benedito. De acordo com o relatório escrito por Navarro (2012),

o festejo em homenagem ao santo negro começou com a chegada de Mariinha Rodrigues a

esse território. A festa em homenagem à São Benedito é realizada no dia primeiro de

novembro, organizada pelos moradores. Durante o dia, acontecem procissão, missa,

batizados, casamentos e à noite a festa profana com apresentações culturais e shows.

No Brasil colônia, a devoção a São Benedito foi introduzida pelos missionários.

Carmélia Miranda (2009) explica que esse santo se tornou o mais popular entre os negros

em função da cor da pele e de sua história de vida, e por esse mesmo motivo foi o escolhido

pelos moradores de Tijuaçu19

. O culto ao santo católico é um dos traços distintivos da

comunidade que fortalece a coesão do grupo a partir de uma crença comum. É importante

ressaltar que o processo de construção identitária em Tijuaçu é municiado pelos diferentes

19 Todas as versões relatadas pelos moradores de Tijuaçu à antropóloga Patrícia Navarro sobre São Benedito

convergem para o milagre das rosas: narram que o servo Benedito levava comida para os pobres, quando foi

abordado pelo seu senhor que o interrogou com relação ao que levava no recipiente e Benedito disse que era

flores. O senhor pediu para olhar e realmente tinha apenas flores. Benedito, então, pôde seguir caminho e

cumprir a sua missão.

37

elementos culturais que atravessam a sua formação, desde a chegada da sua matriarca

fundadora.

Em Tijuaçu, há também algumas igrejas evangélicas e nenhum terreiro de

candomblé. Quanto às religiões de matriz africana, de acordo com Miranda (2009), embora

os membros da comunidade neguem relações com cultos afro-brasileiros, a pesquisadora

pode notar que os cultos acontecem nas localidades próximas à vila de Tijuaçu e muitos

moradores participam, de forma discreta.

É possível que a tentativa dos moradores da comunidade de esconder as suas práticas

religiosas de matriz africana seja fruto do histórico de perseguição das elites dirigentes

brasileiras aos cultos, da demonização dos seus rituais e de suas divindades e dos ainda

vigentes preconceitos e discriminação em relação às religiões afro-brasileiras.

Tal atitude de silenciamento nos remete às estratégias utilizadas pelos negros na

diáspora africana a fim de e preservar elementos do seu patrimônio simbólico. À medida

que os senhores de escravos proibiam determinadas práticas religiosas e culturais, os negros

faziam com que tais práticas, aos olhos dos senhores, não divergissem daquelas permitidas.

De modo similar, em Tijuaçu, assumir relações com as religiões de matriz africana, ainda

nos dias de hoje, é algo que dificulta a convivência entre as pessoas dos mais diversos

segmentos religiosos. Neste caso, silenciar pode ser uma das estratégias para resistir.

Nas obras e documentos pesquisados sobre o distrito de Tijuaçu está registrada a

presença de apenas um terreiro de candomblé fundado na década de 30, localizado na

comunidade de Quebra Facão. O pesquisador Paulo Machado (2004) questiona e lança uma

hipótese com relação à tímida presença do candomblé nesse território:

Como explicar que em outras comunidades negras o candomblé é um culto

histórico e enraizado nas origens do próprio povo? Não estaria aí um

indício de um forte controle social, por parte das famílias brancas

tradicionais, católicas, que possuem fazendas no perímetro de Tijuaçu?

(MACHADO, 2004, p. 37).

Não obstante, a negação das religiões de matriz africana e a presença ínfima de

terreiros, o acarajé, iguaria da culinária afro-brasileira, geralmente produzido pelos filhos-

de-santo, é um dos principais símbolos que marcam a identidade dos quilombolas de região.

A iguaria é comercializada no distrito de Tijuaçu, em Senhor do Bonfim e nas cidades

vizinhas. Onde há um vendedor ou vendedora, facilmente identificável em função das

marcas identitárias visíveis: vestes, adornos pessoais e penteados no estilo afro-brasileiro,

formam-se filas para consumir o acarajé, de modo que é possível perceber o reconhecimento

do valor dessa arte culinária para além dos limites territoriais da comunidade.

38

Além de fazer parte dos elementos que fortalecem a identidade negra dos

quilombolas de Tijuaçu, o acarajé representa uma importante fonte de renda. As pessoas que

produzem e comercializam o acarajé da comunidade são de ambos os sexos (o número de

homens e mulheres vendedores é praticamente igual). Cabe pontuar que os produtores

tijuaçuenses não associam, pelo menos publicamente, essa comida aos orixás.

Outro elemento importante para a afirmação da identidade negra quilombola local é

a Associação Agropastoril Quilombola de Tijuaçu e Adjacências, fundada em março de

2000 pelos moradores de Tijuaçu, com o intuito de se discutir sobre os problemas locais,

intermediar a implantação de projetos tanto voltados para a sustentabilidade como para a

valorização e resgate da cultura. É através da Associação que os órgãos governamentais

responsáveis por assegurarem os direitos dos quilombolas realizam o seu trabalho.

Para Paulo Machado (2004, p. 30), o principal objetivo dessa associação é

“fortalecer a auto-estima do povo negro e ajudá-lo a defender-se diante de todo tipo de

discriminação e de domínio da minoria branca”. Contribui também para tornar a

comunidade mais visível do ponto de vista político e é a responsável por administrar e

assegurar o uso coletivo das terras. O trabalho que realiza fortalece os laços de solidariedade

e de pertencimento do grupo.

As tradições culturais, a religiosidade, os modos de se vestirem, a comercialização

de acarajé, diferenciam os quilombolas de Tijuaçu dos demais habitantes do município de

Senhor do Bonfim, de modo que são a partir dessas marcas distintivas que eles afirmam as

suas identidades e são reconhecidos pelo outro.

No que se refere à construção da identidade quilombola dos moradores de Tijuaçu,

Carmélia Miranda conclui:

A população não mais se intimida em expressar seus costumes e sua

cultura. Essa identidade foi formada, ao longo do tempo, aliadas às

diferentes influências das quais a população comungou e que agora, com a

auto-estima elevada e sua auto-identificação enquanto afrodescendente,

aparecem com maior visibilidade e vigor. (MIRANDA, 2009, p. 67).

A historiadora apresenta a identidade quilombola em Tijuaçu percebida num

determinado recorte de tempo-espaço, uma vez que os habitantes de Tijuaçu, assim como os

de qualquer outra comunidade negociam e redefinem as suas posições identitárias frente às

demandas do contexto no qual estão inseridos. Nesse sentido, não se pode perder de vista

que os tijuaçuenses silenciam em relação às influências religiosas de matriz africana, cujos

indícios são visíveis em suas manifestações culturais. Tal comportamento expõe as

39

dificuldades em se assumir referências destoantes das que estão estabelecidas pelos grupos

dominantes, isto é, pelas vertentes religiosas oriundas do cristianismo.

A construção da identidade etnorracial em Tijuaçu nos remete novamente ao

pensamento de Stuart Hall (2011) sobre a necessidade dos grupos de culturas consideradas

marginais de negociar as suas diferenças tanto internas como externas, com o intuito de

afirmar-se. Os resultados convergem para a construção da cultura negra, assim definida por

Hall:

Todas essas formas são sempre o produto de sincronizações parciais, de

engajamentos que atravessam fronteiras culturais, de confluências de mais

de uma tradição cultural, de negociações entre posições dominantes e

subalternas, de estratégias subterrâneas de recodificação e de

transcodificação, de significação crítica e do ato de significar a partir de

matérias pré-existentes. Essas formas são sempre impuras, até certo ponto

hibridizadas a partir de uma base vernácula. (HALL, 2011, p. 325).

A cultura de Tijuaçu, ramificação que se soma à plural cultura popular negra, está

sustentada no paradoxo da aceitação/negação daquilo que constitui as suas bases: as

influências das culturas africanas. Tal relação conflituosa é resultado do desprestigio e o

repúdio históricos direcionados a essas culturas tidas como subalternas.

Em Tijuaçu, a construção identitária coletiva é tecida a partir de estratégias de

acoplamento de diferenças e semelhanças no sentido enunciado por Hall. É possível

perceber que na medida em que as diferenças poderiam tornar-se fardos para os

tijuaçuenses, estas são ajustadas à cultura dominante e dessa simbiose cria-se o novo, a

partir de um “deslocamento-cruzado”, usando ainda os termos de Hall.

O processo de produção e afirmação da identidade negra quilombola em Tijuaçu tem

bases na ancestralidade africana, nas culturas e religiões forjadas no encontro dos vários

grupos étnicos (negros, brancos e ameríndios) durante a diáspora negra no Brasil. Tal

contato, na maioria das vezes pouco amistoso, forçou a seleção de alguns elementos

simbólicos que serviram para produzir e perpetuar a identidade da comunidade. Esta é, por

conseguinte, fruto de contínuas reelaborações das heranças culturais, principalmente afro-

brasileiras. E veio a se afirmar ainda mais com o reconhecimento como quilombola.

Na entrada da sede do distrito de Tijuaçu, encontra-se a estátua o negro liberto,

construída e inaugurada em 2011, sob responsabilidade da prefeitura municipal de Senhor

do Bonfim, que objetivava homenagear a comunidade. Porém, de acordo com a

pesquisadora Paula Odilon (2013), os moradores locais não ficaram satisfeitos, pois

gostariam de ser homenageados com uma escultura que representasse a sua matriarca

40

fundadora. Tal insatisfação evidencia a preocupação dos tijuaçuenses em manter viva, na

memória coletiva do grupo, as referências positivas específicas da comunidade. Os atuais

habitantes de Tijuaçu dão prosseguimento à luta iniciada por Maria Rodrigues – uma mulher

negra que conseguiu libertar-se dos grilhões e fundar essa comunidade –, positivando a sua

identidade etnorracial e buscando modos de ascensão social. São negras e negros que

cotidianamente quebram as correntes simbólicas que insistem em tentar subjugá-los.

Assim, no decurso da formação da comunidade, os tijuaçuenses têm descoberto e

assumido a força do animal que nomeia o distrito: o Tijuaçu “lagarto grande”, termo do

vocabulário tupinambá que designa o teiú ou tejú, grande réptil comum em várias regiões

brasileiras, conforme Dall‟Igna Rodrigues (1986). Quando acuados, os teiús, a despeito do

seu tamanho, costumam fugir para se esconderem. Mas essa não é a imagem que bem

representa a comunidade de Tijuaçu após o reconhecimento quilombola. Ao invés de

fugirem como fazem os teiús quando amedrontados, os tijuaçuenses, ressurgiram

semelhantes a lagartos fortes e corajosos que atacam ou elaboram estratégias de resistência

frente às situações adversas e defendem os seus bens materiais e simbólicos. A identidade

negra quilombola local vem sendo tramada ao longo dos anos na esteira das dificuldades,

impostas pelas classes dominantes. Constitui-se, portanto, símbolo de resistência em

movimento.

41

3 DE CADERNO EM CADERNO SE CONSTRÓI UM QUILOMBO

DAS LETRAS

O Cadernos Negros nasceu na Serra da Barriga, desceu o

morro para morar no coração da literatura... E nem mil Rui

Barbosa o queimarão da história. (RIBEIRO, CN 10, 1987).

O quilombo, ao ser retomado como referência positiva no contexto contemporâneo,

inspira muitos negros e negras brasileiros, de diversos campos de atuação, a prosseguirem

com inciativas que promovam a positivação da etnorracialidade negra e o acesso aos

espaços privilegiados no tecido social. Em Tijuaçu, o reconhecimento quilombola motivou

os moradores locais a assumirem a sua negritude e investirem em atitudes coletivas de

fortalecimento dos seus laços de pertença. No âmbito da escrita literária, muitos escritores

negros também vêm trabalhando coletivamente pelo direito de enunciar as suas

subjetividades e pela preservação do seu patrimônio cultural. São ações que, embora

utilizem mecanismos diferenciados, convergem para o enfrentamento da desigualdade racial

ainda predominante no Brasil.

O uso literário das palavras para representar os recônditos das subjetividades do

sujeito, das mazelas sociais ou de qualquer outra dimensão imaginada pela mente humana,

tem historicamente agregado valor simbólico. Com isso, a literatura permanece como uma

prática cultural de prestígio junto às demais que compõem determinadas sociedades,

mantendo o seu status sacralizado.

Não podemos perder de vista que a literatura é uma construção social e como tal está

envolta em jogos de poder, portanto, passível de manipulação. O fazer literário é “atribuído”

àqueles que fazem parte da elite cultural que, em geral, é também a elite econômica, a qual

cria os mecanismos e os critérios de valoração e legitimação das obras. Desse modo,

consegue manter um certo controle sob o discurso literário que faz circular, tendo em vista

que as obras legitimadas tem trânsito garantido nos diversos espaços sociais. Nessa

perspectiva, fica fácil perceber porque os grupos socialmente marginalizados têm

dificuldade de adentrar o campo literário como produtores.

Se por um lado, como diz Roland Barthes (1992, p. 19), “A escritura faz do saber

uma festa”, por outro nem todos estão convidados a festejar. Os grupos dominantes impõem

as regras para o trânsito na festa do fazer literário, que vão desde a determinação de quem

deve produzir, quais obras têm valor simbólico e quem é o público leitor preferencial.

42

No tradicional salão de festas das letras brasileiras, comandado por uma elite que se

pretende branca, a entrada do negro enquanto escritor sempre foi dificultada. Como leitor

não era cogitado e na condição de personagem, ou estava ausente ou era representado

pejorativamente. Entretanto, à medida que os negros no Brasil “tornam-se negros”, no

sentido enunciado por Neusa Souza, urge a necessidade de requerer representações positivas

de si e o direito de expressar literariamente as suas experiências. Por conseguinte,

leitores/escritores negros – aqueles que, sendo negros, escrevem sem renegar sua

experiência subjetiva-racial e elegem o leitor negro em seu ato de criação, conforme

definição de Cuti (2002) –, atentos aos modos de exclusão ou inclusão segregada nos textos

da literatura brasileira instituída, forjam o seu espaço de enunciação. Rejeitam o lugar de

objeto que lhes foi atribuído e assumem o protagonismo do discurso.

Regina Dalcastagné (2012), em sua pesquisa sobre o universo da literatura

contemporânea brasileira que abrange os anos 1990 a 2004, apresenta o perfil dos escritores

que são publicados pelas grandes editoras: homens, brancos, de classe média, moradores do

Rio de Janeiro e São Paulo e que exercem profissões privilegiadas na produção de discurso.

Em função disso, de acordo com a autora, acontece um estranhamento quando

escritores e escritoras que destoam desse perfil conquistam espaços nesse campo que se

pretende restrito, o que incomoda principalmente aqueles que querem manter seu espaço

“descontaminado”. Dalcastagné (2012, p. 12) acrescenta que “a definição dominante de

literatura circunscreve um espaço privilegiado de expressão, que corresponde aos modos de

manifestação de alguns grupos, não de outros, o que significa que determinadas produções

estão excluídas de antemão”.

A escritora Miriam Alves (2002), em seu ensaio Cadernos Negros (número 1):

estado de alerta em fogo cruzado, diz que a vertente negra da literatura brasileira

caracteriza-se principalmente por “atitudes literárias de organizar a fala através do coletivo,

promovendo mudanças culturais”. Tal vertente é composta de escritores, que além da

produção literária, comprometem-se com a publicação de livros, teses e promoção de

eventos. (ALVES, 2002, p. 224). Assim, além de forjar espaços de enunciação, produz-se

uma rede de legitimação do fazer literário desse grupo que não pretende fazer a sua escrita

comungar da literatura dominante.

Os Cadernos Negros são um desses espaços construídos e mantidos a partir do

trabalho coletivo de produção e divulgação do discurso literário do negro. Intelectuais

negros se unem e se reúnem para que as gerações atuais e as próximas tenham

43

possibilidades de representações literárias plurais dos segmentos sociais que compõem a

sociedade brasileira.

Miriam Alves, em análise do texto-documento publicado no Cadernos Negros 1,

relata quais foram as motivações para o surgimento do primeiro volume:

[...] rebelava-se contra a perpetuação do negro como segmento mais

atingido nas formas de exploração social. Naquele momento a África

servia de parâmetro para as duas categorias: a de exploração e a de

rebelião. Inspirados nesse devir, os autores diziam fazer da negritude,

exposta em poesia, instrumento de luta contra a exploração social.

Recusavam-se, então, a inscrever-se na literatura dominante, a qual tem

como inspiração um modelo idealizado de “branquitude”. (ALVES, 2002,

p. 227).

A antologia literária Cadernos Negros foi idealizada pelos militantes/escritores Cuti,

pseudônimo de Luís Silva, e Hugo Ferreira. Além desses dois escritores, publicaram no

primeiro volume, uma edição de bolso mimeografada, Oswaldo Camargo, Henrique Cunha

Jr, Ângela Lopes Galvão, Célia Aparecida Ferreira, Eduardo de Oliveira e Jamu Minka . O

lançamento aconteceu em 1978, em São Paulo. O trecho que se segue, retirado do prefácio

do CN 1, assinado coletivamente, sintetiza os anseios do projeto:

Descobrimos a lavagem cerebral que nos poluía e estamos assumindo

nossa negrura bela e forte. Estamos limpando nosso espírito das idéias que

nos enfraquecem e que só querem nos dominar e explorar. [...] Aqui se

trata da legítima defesa dos valores do povo negro. A poesia como

verdade, testemunha do nosso tempo. (CN 1 apud ALVES, 2002, p. 222).

A escolha do nome do periódico, Cadernos Negros, é creditada a Hugo Ferreira, em

homenagem à escritora Carolina Maria de Jesus, falecida em 1977, que escrevia em

cadernos, assim como o grupo de poetas negros formado nessa década, que viria a produzir

no periódico criado. (COSTA, 2008).

Negra, pobre, com pouca escolaridade formal, para Carolina Maria de Jesus,

escrever em cadernos, que por sua vez eram encontrados no lixo, era a única opção. Como

catadora de lixo, além de conseguir o seu sustento físico, a escritora alimentava o seu o

repertório intelectual por meio dos livros que encontrava.

Não somente o fato de utilizarem o mesmo suporte para a produção literária ligam os

escritores dos CN à Carolina Maria de Jesus. As funções que as elites dirigentes atribuíam

ao negro e à negra na sociedade brasileira nunca estiveram relacionadas com o labor

intelectual. Em função disso e dos demais critérios já citados, estabelecer-se como escritor

ou escritora negros sempre foi uma tarefa árdua. No caso de Carolina Maria de Jesus, ao

44

preconceito de cor soma-se o de gênero, o de classe e ainda o fato de a escritora ter tido

pouco acesso à escolaridade formal.

A presença de vozes não “autorizadas” pelo discurso dominante, ao apresentar as

suas experiências individuais e coletivas, as mazelas sociais sob pontos de vistas

diferenciados provoca deslocamentos nas representações literárias já acomodadas na cena

literária brasileira, o que contraria as expectativas dos grupos dominantes.

Conscientes das barreiras materiais e simbólicas que dificultam a entrada de

escritores e escritoras negras no campo da literatura, desde a publicação do primeiro volume

dos CN, os organizadores já anunciavam o segundo e assim sucessivamente. Essa foi uma

das estratégias utilizadas para que o periódico se perpetuasse e atravessasse décadas,

conforme relata Cuti, na introdução dos CN, Os melhores contos (1998, p.17). Dessa forma,

mantinha-se o grupo empenhado na continuidade do trabalho.

Os CN são publicados anualmente: nos anos pares são coletâneas de poesias e nos

ímpares, contos. Até o presente momento (2014), contam com 36 volumes. A antologia é

mantida por um sistema de cooperação, em que os escritores, após terem seus textos aceitos

mediante seleção, na qual assinam com pseudônimos, responsabilizam-se com parte dos

custos e das vendas. Essas estratégias para a manutenção da antologia estão pautadas em

laços de solidariedade e no compromisso de reinvenção de uma identidade que de fato

favoreça a raça negra.

Segundo Aline Costa (2008), nos primeiros volumes dos Cadernos não havia

seleção. Os textos enviados eram automaticamente publicados, ou selecionados pelos

próprios escritores que faziam parte do grupo. A seleção começou a ser feita de forma mais

rigorosa a partir do número 16. Possivelmente, esse rigor foi necessário devido ao aumento

do número de autores solicitantes.

Nos primeiros anos (1978 a 1982), os CN ficaram sob responsabilidade de Cuti, com

seguinte objetivo inicial:

[...] publicar textos de autores negros, pois animava-nos a consideração de

que literatura é, também, ideologia. E, em assim sendo, precisávamos,

enquanto escritores e militantes do Movimento Negro, mostrar

textualmente as vivências da nossa gente, nossa subjetividade individual e

coletiva, através da publicação de poemas e contos, e arregimentar

escritores de todo o Brasil. (CUTI, 2010a, p. 293).

A partir do número 06 (1983), os CN passaram a ser publicados com o selo do grupo

Quilombhoje (as palavras aglutinadas fazem uma alusão aos quilombos contemporâneos),

uma entidade sem fins lucrativos que, desde então, responsabiliza-se pela organização,

45

edição, lançamento e divulgação da série. Tal grupo, criado em 1980, tinha por objetivos

iniciais discutir e estudar literatura negra nacional e internacional, além de divulgar e

declamar as próprias produções, segundo Cuti (2010a).

De acordo com o texto de apresentação do CN, Os melhores contos (1998), assinado

por Esmeralda Riberio e Márcio Barbosa, faziam parte da formação inicial do Quilombhoje

estes escritores: Abelardo Rodrigues, Cuti, Mário Jorge Lescano, Paulo Colina e Oswald de

Camargo. Em 1982, dos primeiros participantes, apenas Cuti permaneceu e outros escritores

ingressaram: Esmeralda Ribeiro, Jamu Minka, José Alberto, Márcio Barbosa, Miriam Alves,

Oubi Inaê Kibuko, Sônia Fátima da Conceição e Vera Lúcia Alves. Em 1984, o escritor

Abílio Ferreira passou a fazer parte do grupo. Em 1995, a maioria dos participantes se

afastou e ficaram apenas três: Esmeralda Ribeiro, Márcio Barbosa e Sônia Fátima da

Conceição. E, desde 1999, o periódico é coordenado por Márcio Barbosa e Esmeralda

Ribeiro.

Márcio Barbosa, na introdução do CN 17, resume qual seria a motivação do grupo

Quilombhoje:

[...] o desejo de que a solidariedade venha permear a vida cotidiana não só

daqueles que escrevem, mas de todo o nosso povo sofrido, o qual tem sido

levado – devido à negação oficiosa de seus valores e à carência de

referências fortes e verdadeiras – a um permanente estado de desunião e

uma constante necessidade de melhora na auto-estima. (CN 17, 1994, p.

14, grifos nossos)

O permanente estado de desunião ao qual o negro foi submetido, citado por Márcio

Barbosa, nos remete ao longo período de escravidão no Brasil e os seus legados. Antes de

ser “inserido” na sociedade escravista brasileira, o negro já era vitimado por um aparato

ideológico engenhosamente articulado para promover a sua dessocialização e coisificação.

De início, a desarticulação familiar, a destituição da condição social que ocupava em sua

nação, depois a imposição de outros costumes e a tentativa de destruição ou desqualificação

das suas referências simbólicas.

Dificultar a construção de laços de amizade e de solidariedade entre negros

escravizados era mais uma das táticas de dominação utilizadas pelos senhores de escravos.

Com essa intenção, compravam negros de grupos étnicos diferentes e por vezes até

incitavam a rivalidade entre eles, conforme os estudos da historiadora Kátia Mattoso (2003).

Língua, cultura e religião diferentes constituíam-se obstáculos para que os negros

escravizados se reorganizassem. No entanto, a condição de oprimido, os infortúnios vividos

46

e o desejo latente por liberdade forjaram novas conexões que resultaram em insurreições,

fugas e formação de quilombos, conforme a história nos conta.

Os atuais movimentos contra o racismo e a discriminação têm sua gênese no período

escravocrata, com a luta quilombola empreendida pelos negros. No período pós-abolição,

esses movimentos ganharam outros formatos e enveredaram-se pelas vertentes políticas,

educacionais e culturais.

Segundo estudiosos, no cenário nacional, dentre as várias entidades de militância

negra anteriores ao surgimento dos CN, destacam-se: A Frente Negra Brasileira (FNB), o

Teatro Experimental Negro (TEN) e o Movimento Negro Unificado (MNU). Essas

entidades foram fundamentais para ajudar a retrançar os fios de união entre aqueles que

compartilham as mesmas dificuldades.

A FNB, fundada na década de 1930 em São Paulo, embora com existência curta, de

apenas seis anos, conseguiu mobilizar negros de vários estados do país. Um dos objetivos

era o de integrar o negro na sociedade de classes.

A F.N.B. criou uma contra-ideologia racial reafirmando as contribuições

da comunidade negra na construção do Brasil e cobrando seus direitos ao

trabalho às oportunidades que eram negadas no papel, para todos, mas

eram negadas na prática, para o conjunto de oprimidos principalmente os

negros. (MNU, 1988 p. 23).

Após travar longas batalhas no Tribunal Superior Eleitoral, a FNB transformou-se

em partido político, mas este logo foi extinto pelo então presidente Getúlio Vargas quando

instituiu o Estado Novo em 1937 e dissolveu todos os partidos existentes. Embora

reivindicando mudanças na estrutura social brasileira, que por sua vez era marcada por

tensos, porém velados, conflitos nas relações raciais, a FNB assim como todos os

movimentos negros que existiram entre os anos 1945 e 1970 “estavam preocupados em dar

ao negro uma nova imagem, semelhante àquela proposta pela „ideologia da democracia

racial‟”. (MUNANGA, 1999, p. 97).

Para tentarmos entender esse posicionamento ambíguo, retornemos à década de

1930, pois nessa época as elites brasileiras abraçavam convenientemente o mito propalado

pelo antropólogo Gilberto Freyre em Casa Grande e Senzala (1933), sobre a convivência

harmônica entre todos os grupos étnicos que compõem o Brasil e sobre a inexistência do

racismo.

Embora propagado a partir da década de 1930, o mito da democracia racial, segundo

Roberto Martins (2004), tem raízes fincadas na falsa ideia de “brandura” da escravidão no

Brasil, em comparação com os sistemas escravistas dos Estados Unidos e o do Caribe. O

47

autor afirma que tal mito nasce de uma visão idílica de uma sociedade hierarquizada, porém

patriarcal, onde os de cima devem cuidados paternais aos de baixo, e estes devem respeito

filial. Por conseguinte, a abolição da escravatura conferiria aos ex-escravos cidadania

imediata, com plenos direitos e amplas possibilidades de mobilidade social.

De acordo com Kabengele Munanga, o mito da democracia racial baseia-se na dupla

mestiçagem, biológica e cultural, encobrindo os conflitos raciais. Desse modo, impede que

os membros que compõem as classes sociais menos favorecidas, formadas em sua maioria

por não brancos, tenham “consciência dos sutis mecanismos de exclusão dos quais são

vítimas na sociedade”. (MUNANGA, 1999, p. 80).

Segundo as reflexões de Lélia Gonzalez (1988), o racismo, em função dos diferentes

processos de colonização, apresenta, pelo menos, duas faces, o aberto e o disfarçado, que

convergem para um único objetivo: exploração/opressão. A primeira face, característica das

sociedades de origem anglo-saxônica, germânica ou holandesa, estabelece que a pessoa

descendente de negros seja considerada negra, ainda que seu fenótipo seja branco. A

segunda é típica das sociedades que investiram nas “teorias” da miscigenação, da

assimilação e da “democracia racial”, por exemplo, as latino-americanas, e de acordo com a

autora, é a mais eficaz no processo de alienação dos discriminados.

Gonzalez (1988) afirma que o racismo disfarçado é tão sofisticado que consegue

manter negros e índios na condição de segmentos subordinados nos interior das classes mais

exploradas, graças a sua formação ideológica mais eficaz: o branqueamento. No que se

refere ao racismo aberto, constata que seus efeitos sobre os grupos discriminados, reforçam

a identidade racial destes. Isso porque, é “a consciência objetiva desse racismo sem

disfarces e o conhecimento direto de suas práticas cruéis que despertam esse empenho, no

sentido de resgate e afirmação da humanidade e competência de todo um grupo étnico

considerado „inferior‟”. (GONZALEZ, 1988, p. 73-74).

Em consonância com as reflexões de Gonzalez, Antonio Guimarães (2005),

referindo-se especificamente ao racismo no Brasil, manifestado na maioria das vezes de

maneira disfarçada, reflete sobre como acontece o processo de velamento no interior das

relações sociais, e chama atenção para um dos objetivos do racismo: tentar manter os negros

em posições subalternas. Nas palavras do autor:

Tais práticas racistas são, quase sempre, encobertas para aqueles que as

perpetuam por uma conjunção entre senso de diferenciação hierárquica e

informalidade das relações sociais, o que torna permissíveis diferentes

tipos de comportamentos verbais ofensivos e condutas que ameaçam os

direitos individuais. Trata-se de um racismo às vezes sem intenção, às

48

vezes “de brincadeira”, mas sempre com consequências sobre os direitos e

as oportunidades de vida dos atingidos. (GUIMARÃES, 2005, p. 70).

Considerando as características do racismo à brasileira, formulado como democracia

racial, e mascarado por outro mito, o de que a discriminação no Brasil restringe-se às razões

socioeconômicas, Guimarães (2005, p. 226) afirma que a maior dificuldade em combatê-lo,

“consiste na eminência de sua invisibilidade, posto que é reiteradamente negado e

confundido como formas de discriminação de classe”.

A ideologia que sustenta o mito da democracia racial corroborou para a ambiguidade

dos objetivos propostos pelos movimentos negros do período citado por Munanga, os quais

denunciavam a existência do racismo e da discriminação racial, no entanto, buscavam

eliminá-los por meio da negação dos seus próprios valores culturais. Tais movimentos

procuravam afirmar-se a partir da imitação dos padrões da sociedade branca, acreditando

que a “adequação” evitaria a discriminação.

A FNB, desatenta às sutilezas do racismo à brasileira, caiu na armadilha do

assimilacionismo do comportamento do branco, conforme os estudos de Munanga (1999).

Entretanto, isso não desqualifica o trabalho realizado por essa entidade no contexto social

brasileiro. Pensada com o olhar de hoje, a FNB atuou na contracorrente dos discursos

institucionalizados sobre as relações raciais no Brasil, denunciou o tratamento desigual que

o negro recebia em todas as esferas sociais e o fato de que este enfrentava maiores

dificuldades de mobilidade social.

Em 1944, ganha destaque no cenário cultural afro-brasileiro o Teatro Experimental

do Negro, fundado do no Rio de Janeiro por Abdias Nascimento. A motivação para a

criação do TEN advém do fato de que, naquela época, o negro não estava presente no teatro,

nem com ator, nem como plateia. Aparecia apenas após os espetáculos para limpar a sujeira

deixada pelos brancos, conforme afirma Nascimento (2010).

Quanto às peças apresentadas pelo teatro brasileiro dessa época, as personagens

negras, encenadas por atores brancos, reproduziam os seguintes estereótipos: “moleque

bobo de riso fácil, a mãe preta abnegada ou o pai João submisso”. (NASCIMENTO, 2010,

p. 208). O negro, nesse contexto, fora duplamente prejudicado, haja vista a sua exclusão

enquanto partícipe (ator ou plateia) e a sua inclusão negativada no plano ficcional.

De acordo com Abdias Nascimento, o TEN propunha-se a combater a discriminação

racial, formar atores e dramaturgos afro-brasileiros, resgatar e positivar a cultura negra.

Pretendia a inclusão do negro à sociedade “branca”, sem tentar imitar a cultura europeia,

49

reivindicando “o reconhecimento do valor civilizatório da herança africana” e a construção

de uma identidade específica “exigindo que a diferença deixasse de ser transformada em

desigualdade”. (NASCIMENTO, 2010, p. 207).

A atuação dessa entidade atravessou a dimensão cultural e adentrou o campo

político:

Pretendi organizar um tipo de ação que a um tempo tivesse significado

cultural, valor artístico e função social. [...] De inicio, havia a necessidade

de resgatar a cultura negra, e seus valores violentados [...] o negro não

deseja a ajuda isolada e paternalista com em favor especial. Ele deseja e

reclama um status elevado na sociedade na forma de oportunidade

coletiva, para todos, a um povo com irrevogáveis direitos históricos.

(NASCIMENTO, 2010, p. 207).

Contudo, a ditadura militar, instaurada em 1964, tratou de desarticular todos os

movimentos sociais. E apenas no final da década de 1970, ainda sob a repressão do regime

ditatorial, alguns grupos começaram a se articular. Houve, por exemplo, em 1978, a

retomada do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial, que nesse mesmo

ano foi abreviado para Movimento Negro Unificado (MNU). E o já citado surgimento do

primeiro volume dos CN.

Destoando do comportamento da FNB, no que se refere ao mito da democracia racial

e ao assimilacionismo, o MNU “não visa adestrar o negro para integrá-lo, mas contribuir

para mudanças no perfil da sociedade, de modo que negros e outras minorias tenham suas

identidades e espaços de atuação assegurados”, conforme afirma Florentina Souza (2006, p.

80, grifos da autora). Em síntese, o MNU, entidade de caráter nacional, tem por objetivo a

defesa do negro em todos os aspectos políticos, econômicos, sociais e culturais, com vistas à

promoção de uma autêntica democracia racial, conforme consta em sua carta de

princípios20

.

O contexto em que surgem os CN é marcado por um clima de efervescência social.

A população brasileira vivenciava os últimos anos da ditadura militar, que foi pressionada

pela insurgência de movimentos estudantis e de trabalhadores. No plano internacional, a

década de 1970 foi marcada pelo movimento de descolonização do continente africano. E os

movimentos de libertação empreendidos pelas colônias portuguesas (Angola, Moçambique,

São Tomé e Príncipe, Cabo Verde e Guiné Bissau) influenciaram, por certo, a criação dos

CN conforme afirma a pesquisadora Maria Nazareth Fonseca (2006, p. 14), “O processo de

independência que propiciou, nessa década, o nascimento das nações africanas de língua

20 Ver carta de princípios do MNU na íntegra em: UNIFICADO, Movimento Negro (1988, p. 18-19).

50

portuguesa, foi a motivação maior do surgimento dos Cadernos Negros, que procurava

trabalhar a relação entre literatura e as motivações sócio-políticas”.

Conceição Evaristo, em ensaio publicado na obra em comemoração aos 25 anos do

Movimento Negro no Brasil (MN), diz que a literatura afro-brasileira está intrinsecamente

relacionada às pontuações ideológicas do MN, “autores (as), se não estão ativamente no seio

do movimento, não podem negar que as suas produções sofreram ou sofrem influências dos

discursos propagados pelos anos de luta do MN”. (EVARISTO, 2006, p. 111).

Em linhas gerais, com o trabalho intelectual de militância literária, os escritores dos

CN utilizam a palavra em sintonia com as propostas de mudanças ensejadas pelos

movimentos negros contemporâneos, investindo na reversão da ausência ou da presença

negativada do negro no âmbito literário. Nesse sentido, aproximam-se das propostas do

Teatro Experimental do Negro.

Em seu ensaio 30 Anos de leitura, a pesquisadora Florentina Souza (2008), apresenta

um panorama do percurso textual trilhado pelos CN durante essas três décadas e emite o seu

parecer acerca da importância e da função desse periódico:

Os Cadernos [...] vieram preencher uma lacuna na produção editorial no

Brasil, vieram ao encontro de expectativas de um público leitor que não se

via representado nos textos e/ou jornais e revistas que circulavam no Brasil

pós-abertura política; a militância não dava conta de questões que

eram/são vividas mais intensamente por indivíduos que se autodenominam

negros/as e são assim reconhecidos. (SOUZA, 2008, p. 44-45, grifos da

autora).

Esses escritores, impulsionados pelo desejo de expandir a atuação dos movimentos

negros, embrenharam-se pelo campo literário e lançaram-se na construção dos Cadernos

Negros como quilombo das letras cuja luta está plasmada na rebeldia intelectual. Os CN

são um espaço aberto para todos os autores afro-brasileiros que queiram submeter à seleção,

a sua produção de contos ou poesias.

Os CN configuram-se, portanto, um espaço que reúne forças literárias, criados para

que escritores possam realizar suas vozes de forma coletiva. Uma das características dessas

vozes é que são dissonantes das enunciadas pela literatura brasileira instituída e têm como

um dos objetivos rasurar uma escrita impregnada de estereótipos, conforme veremos a

seguir.

51

3.1 VOZES QUILOMBOLAS NA LITERATURA

A formação de quilombos, uma outra estrutura social construída fora da instituída

pelo branco, foi a solução encontrada por negros fugitivos para se restabelecerem longe do

jugo dos senhores de escravos. No contexto atual, novos quilombolas, neste caso, os das

letras, encontram uma solução dentro da própria estrutura social na qual estão inseridos. Se

os circuitos oficiais, alimentados pelas grandes editoras nacionais, impõem dificuldades

para publicar e divulgar escritores negros, estes, por sua vez, criam os seus próprios

mecanismos de inclusão e constroem um circuito de produção e circulação alternativo de

obras literárias.

Ao prefaciar a antologia Quilombo de Palavras, Florentina Souza (2000), enuncia

uma aproximação entre o grupo de autores de discursos afro-brasileiros que, a partir do final

da década de 1970, passou a publicar seus textos sistematicamente, e os quilombos

históricos, posto que ambos estruturaram-se como símbolos de resistência e preservação

cultural.

É notória, ainda nos dias de hoje, a dificuldade que o escritor negro enfrenta para se

estabelecer no cenário das letras nacionais, especialmente quando tenta lançar-se sozinho

nesse espaço. Os escritores dos CN, contudo, resolveram lutar coletivamente pelo direito de

enunciar as suas vozes. Para Oubi Inaê Kibuko, pseudônimo de Aparecido Tadeu dos

Santos, escritor que fez parte do grupo Quilombhoje de 1983 a 1994 e publica textos nos

Cadernos desde o volume 03, os CN são um “Qu lo o l terár o”. E desse quilombo, são

entoadas vozes literárias que ecoam tanto pelo Brasil quanto por outros países.

De algum modo, produzir e publicar literatura negra coletivamente aproxima-se de

algumas das estratégias utilizadas por negros escravizados em sua luta por liberdade, pois o

fracasso era quase certo, quando as fugas eram empreendidas de modo individual. Para que

a fuga fosse bem sucedida era necessário o apoio de outros, além disso, a inclusão em um

grupo (quilombo) era o que poderia assegurar a sobrevivência. A continuidade heroica dos

CN também depende do emaranhado de forças coletivas que sustentam esse projeto de

apropriação e propagação do discurso do negro. O grupo Quilombhoje é o responsável por

catalisar essas forças.

O Quilombhoje, com sede e lideranças em São Paulo, é o responsável por incluir

vários escritores negros brasileiros na antologia literária Cadernos Negros. Atualmente, uma

das estratégias de inclusão utilizada pelo grupo é a divulgação via internet do processo de

seleção de textos. O acesso aos CN pode despertar o interesse do público em conhecer as

52

produções individuais desses escritores que muitas vezes publicam também pelo grupo

Quilombhoje.

Em 2004, o historiador Clóvis Moura, no texto de apresentação do CN 17, também

associa o empenho dos escritores negros ao dos quilombolas, tendo em vista as dificuldades

que enfrentam para levar adiante esse projeto de produção literária coletiva. Os próprios

membros do grupo responsabilizavam-se pela publicação, vendas e divulgação, tendo ainda

que lidar com o não reconhecimento da crítica oficiosa quanto ao valor literário da

antologia. Contudo, aquele momento, segundo a opinião do historiador, seria um divisor de

águas, já que a série foi coeditada em parceria com a Editora Anita Garibaldi de São Paulo,

o que ajudaria a dar maior visibilidade à obra frente aos críticos. Nos seus termos:

Os quilombolas do grupo aparecem agora à luz do dia, com as armas da

literatura, para falar, da forma que entendem e consideram melhor

adaptadas a sua mensagem de protesto e de lirismo, de uma realidade que

muitos segmentos de nossa sociedade querem ignorar [...] Somente assim

será possível corrigir a distorção de uma cultura que não reflete a produção

de uma das suas partes mais importantes, permanecendo como um espelho

deformante e, portanto, alienado. (CN 17, 2004, p. 10, grifo nosso).

Apesar de o grupo Quilombhoje precisar manter o sistema de quotas de contribuição

e venda por parte dos escritores, as previsões de Clóvis Moura quanto ao reconhecimento no

campo das instâncias legitimadoras têm se cumprido, embora a passos lentos. Os CN são

traduzidos e estudados fora do país, a exemplo dos Estados Unidos e da Alemanha.

Algumas universidades brasileiras os incluíram nas listas de indicação de leitura para os

vestibulares e pesquisadores têm tomado essa série como objeto de estudo. Driblando as

dificuldades de inserção no circuito editorial-mercantil, o periódico se faz presente nas

livrarias e bibliotecas nacionais.

Ademais, escritores que publicam nos CN têm conquistado espaços privilegiados no

campo literário também com suas produções individuais. Por exemplo, o primeiro romance

publicado da escritora Conceição Evaristo, Ponciá Vicêncio (2003), foi indicação de leitura

para o vestibular de algumas universidades brasileiras, como a Universidade Federal de

Minas Gerais (UFMG) em 2007, e, além de ter sido traduzida para o inglês, essa obra é

objeto de estudo de vários pesquisadores.

Na orelha do CN 32, a professora e militante do Movimento Negro Ana Célia da

Silva, ao se referir à antologia, também a aproxima da saga dos quilombolas:

Os Cadernos contam a nossa luta quilombola, as nossas perdas, as nossas

construções, criações e voltas por cima, tirando leite das pedras,

construindo e reconstruindo nossa identidade e auto-estima, aprendendo a

53

desconstruir a auto-rejeição a nós imposta pelo racismo, branqueamento e

branquitude. (CN 32, 2009, grifos nossos).

Nos textos que compõem os CN, está explícita a intenção de aproximar a luta desses

escritores negros com as dos guerreiros dos quilombos históricos: “O Cadernos Negros

nasceu na Serra da Barriga desceu o morro para morar no coração da literatura... E nem mil

Rui Barbosa o queimarão da história” faz referência ao maior e mais resistente quilombo

histórico construído no Brasil, o dos Palmares, e o seu locus no interior do atual estado de

Alagoas, na época pertencente à capitania de Pernambuco. O texto da epígrafe que abre esta

seção sugere que, nesse novo quilombo, o das letras, as produções literárias não serão

silenciadas, deturpadas, muito menos queimadas da história.

Para o escritor Salgado Maranhão (2010, p. 289), “O primeiro estágio de um povo ou

pessoa que se liberta é, justamente, a recuperação de sua voz”. Esta conquista do escritor

negro nos remete ao pensamento de Michel Foucault (1996) concernente às interrelações

entre o discurso, verdade e poder. Foucault nos diz que o discurso é objeto de desejo,

representa poder, e que todos nós lutamos por ele. Adverte, porém, que o valor do discurso e

os seus modos de circulação são determinados pelos aparatos institucionais eleitos por

aqueles que manipulam o poder.

Alargando a discussão, Foucault, em Verdade e poder (2012, p. 52), explica que

cada sociedade possui os seus “regimes de verdade”, os quais em certa medida funcionam

com meios de repressão e exclusão. Esses regimes, produzidos pelas classes dominantes a

partir de “múltiplas coerções”, atribuem a certos discursos o status de “verdadeiros” e

asseguram que funcionem como tal, de modo a produzir “efeitos específicos de poder”.

Na esteira dessas reflexões, Cornel West, em O dilema do Intelectual Negro (1999),

discorre sobre o modelo de intelectual foucaultiano, cuja função é promover um

“questionamento” dos “discursos de poder” disseminados em uma determinada sociedade.

Apesar de colocar ressalvas quanto ao modelo de intelectual foucaultiano e afirmar que este

não atende às particularidades dos intelectuais negros, Cornel West apropria-se das análises

de Foucault sobre a constituição do “regime de verdade” e das “operações multifacetadas da

relação poder/conhecimento”, para compor um novo modelo de intelectual contemporâneo,

o insurgente. Para ele, as dificuldades enfrentadas pelos intelectuais negros só serão

aplacadas se estes, a partir de “infra-estruturas negras”, articularem um novo “regime de

verdade”. Para a realização dessa tarefa, é necessário conhecimento das “prerrogativas” dos

regimes vigentes da sociedade da qual fazem parte.

54

Abalar os discursos produzidos e disseminados pelas classes dominantes que

impõem as suas “verdades”, com suas falas autorizadas, em função das posições de prestígio

que ocupam nas instâncias que representam poder no corpo social, por exemplo, políticas,

midiáticas e jurídicas, é uma tarefa complexa. Contudo, o “intelectual insurgente”, ao

questionar os “regimes de verdade” a partir de uma prática engajada, pode estimular

“percepções alternativas” e ações que promovam tanto o deslocamento de “discursos”

quanto de “poderes” instituídos. Eis, portanto, a função principal do intelectual pós-

moderno, de acordo com West.

Embora o discurso literário não seja objeto de análise nessas reflexões de Foucault e

West, a discussão apresentada acerca dos discursos de poder é profícua para se pensar a

produção e circulação de representações negativas acerca do negro pela literatura instituída.

Mesmo não sendo uma das instâncias responsáveis pela consolidação dos “regimes de

verdade” de uma sociedade, de acordo com as reflexões de Foucault, o discurso literário

contribui para a construção do imaginário de uma nação. Assim, representações

estereotipadas saltam das páginas literárias e podem afirmar-se como “verdades”.

A literatura brasileira contribuiu com a cristalização das premissas difundidas por

correntes históricas, científicas e religiosas que outrora disseminaram uma suposta

inferioridade física e intelectual do negro. Essas premissas produziram marcas

extremamente negativas, cujos reflexos, ainda hoje, são percebidos na construção da

autoimagem e autoestima do negro e no modo como o outro o percebe.

Os escritores dos CN, ao forjar o seu espaço de produção e modos de circulação do

discurso literário do negro, fortalecidos pelo trabalho coletivo, atuam na desmistificação

dessas “verdades” incutidas no imaginário do leitor.

Cuti (2010a), um dos primeiros líderes e ainda vividamente atuante no quilombo

literário, acredita que a literatura ajuda a mudar a sociedade, e que, embora não seja

possível mensurar a sua influência, ela pode alterar o consciente e o inconsciente das

pessoas. É dessa forma que a literatura exerce o seu poder.

Esmeralda Ribeiro e Márcio Barbosa, no texto de apresentação do CN 34 (2011, p.

12) nos dizem sobre algumas das conquistas do grupo Quilombhoje e dos CN, “há muito

deixamos de ser tema para sermos sujeitos da escrita e nos descobrimos plurais, diversos,

tanto em termos de conteúdo quanto em termos formais”. A partir do potencial criativo e a

persistência de escritores e organizadores, os CN romperam a afonia imposta e se

55

estabelecem no cenário das letras, ainda que enfrentem barreiras para garantir a sua

manutenção21

.

Atualmente, o Quilombo literário mantém-se da seguinte forma: o Quilombhoje

envia uma carta aos membros cadastrados em seu site, convidando-os para participarem do

processo de seleção para a próxima publicação. Em linhas gerais, o que o grupo espera dos

textos submetidos é que sejam inéditos e expressem os múltiplos aspectos da experiência

afro-brasileira.

Conforme a carta-convite22

para a confecção do CN 35, um texto só é publicado se

for classificado como bom ou ótimo pela maioria dos selecionadores de uma comissão. Em

média, tal comissão é composta de 14 a 17 pessoas: um membro do Quilombhoje, 25% dos

autores participantes (escolhidos por sorteio), críticos de literatura e leitores assíduos dos

CN. O voto de todos os participantes tem o mesmo peso.

Para garantir a lisura no processo de seleção, o Quilombhoje estabelece que, durante

o processo seletivo, a identidade dos escritores participantes, críticos e leitores dos CN só

seja conhecida, por uma pessoa do grupo, responsável pelo recebimento e envio dos textos e

avaliações, que não tem o direito de avaliar e nem pode alterar prazos.

Na carta-convite seguem as normas para aceitação e publicação dos textos:

quantidade de páginas, fonte, espaçamento, número de cópias e orientações quanto ao envio.

A carta explica também sobre a quota de contribuição para a publicação da antologia e a

quantidade de livros que cada escritor/cooperador tem o direito de receber durante ou após o

lançamento.

Nesse projeto coletivo, os escritores trabalham em todas as etapas para mantê-lo

vivo. A festa de lançamento é o principal momento de vendas dos CN, que podem ser

adquiridos também por meio do site do Quilombhoje, em livrarias ou sebos. Acrescenta-se o

fato de que os CN constam também nas listas de obras que são disponibilizadas pelo

Governo Federal para compor o acervo literário das escolas públicas brasileiras.

Assim, mesmo à margem dos interesses das grandes editoras nacionais, os CN

conquistaram espaços e público leitor, apesar das dificuldades em se manter dentro do

21

Além do desinteresse das mídias convencionais em divulgar a produção dos CN, o fato de o periódico não

contar com o apoio de nenhuma das grandes editoras nacionais dificulta a reedição das antologias e por

consequência o acesso do leitor a textos publicados anteriormente. 22 QUILOMBHOJE. Carta-convite CN35. [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por mim, por meio do

endereço virtual [email protected] em 29/06/2012.

56

mercado capitalista, mas de fora dos interesses hegemônicos, perseguindo o desejo inicial

de contribuir com a afirmação do segmento social negro.

O Quilombo literário é uma fortaleza municiada de representações das

subjetividades e dos anseios de escritores e escritoras da literatura afro-brasileira. Os CN,

esse locus de liberdade, faz proliferar no campo das letras discursos que ajudam a quebrar as

correntes que ainda aprisionam o sujeito negro em conceituações depreciativas.

Os CN são, portanto, um espaço de realização de vozes literárias/quilombolas que

reconstitui o ideal de liberdade ensejado desde a formação dos quilombos históricos. Por

intermédio do labor intelectual, os combatentes das letras travam diariamente a luta pela

manutenção desse espaço. No campo da literatura negra, os CN representam um fenômeno

de resistência literária.

3.2 IDENTIDADE NEGRA NA CENA LITERÁRIA BRASILEIRA

Quando a questão da identidade nacional tornou-se prioridade para consolidar o

processo de formação da nação brasileira no período pós-colonial, a literatura foi um dos

instrumentos usados para disseminar as características do que seria a comunidade

imaginada: Brasil. Nessa construção identitária iniciada no século XIX, o negro e tudo que

estava relacionado a ele foi excluído ou representado pejorativamente.

Em função disso, as gerações pós-escravistas, pós-coloniais, conviveram com

produções que, de modo sutil ou declarado, atribuíam tudo que fosse negativo e lascivo ao

negro23

. Isso contribuiu para incutir no imaginário da nação brasileira uma obsessão pelo

branqueamento e pela necessidade de imitação das imaginadas culturas europeias.

Atentos às consequências negativas dos discursos inferiorizantes que ainda circulam

sobre o negro, os autores dos CN, por meio de contradiscursos, têm trabalhado na

construção de outra possibilidade de identidade, a identidade negra. Em vista disso, os

autores rejeitam qualquer necessidade de embranquecimento e buscam no repertório da

cultura negra mecanismos de positivação dessa identidade.

De acordo com a percepção do sociólogo Manuel Castells (1999), a identidade é um

processo que está relacionado com a construção de significados, com base em atributos

23 Sobre a representação estereotipada do negro na literatura, ver os estudos de Roger Bastide (1993), David

Brookshaw (1983), dentre outros.

57

culturais inter-relacionados que sempre ocorre em contextos marcados por relações de

poder.

Castells (1999) distingue três formas de construção social da identidade:

legitimadora, resistência e projeto. A primeira é introduzida pelas classes dirigentes com o

intuito de expandir e racionalizar a dominação. Com tendência homogeneizante, a

identidade legitimadora é reproduzida por um conjunto de instituições (escolas, igrejas,

entidades cívicas, partidos etc.) que fazem parte da sociedade civil, a fim de assegurar a sua

validade e continuidade. A identidade de resistência é criada por grupos que se encontram

em condições desvalorizados pela lógica da dominação e que por isso reforçam os seus

princípios que são divergentes dos que permeiam as instituições sociais, com o objetivo de

refugiarem-se neles e garantir a sobrevivência. E a identidade projeto, a que mais nos

interessa nesta pesquisa, ocorre do seguinte modo:

[...] quando os atores sociais, utilizando-se de qualquer tipo de material

cultural ao seu alcance, constroem uma nova identidade capaz de redefinir

sua posição na sociedade e, ao fazê-lo, buscar a transformação de toda a

estrutura social. (CASTELLS, 1999, p. 24, grifos nossos)

No Brasil, a construção de identidades negras está na contracorrente da identidade

imposta pelas instituições dirigentes da sociedade. Os movimentos negros brasileiros

contemporâneos trabalham na tessitura de identidades negras que contribuam com a

elevação da autoestima, produzam marcas positivas na autoimagem, fortaleçam os laços de

solidariedade do grupo, e por consequência, o sentimento de pertença.

Positivar a identidade coletiva é uma das formas de fortalecer os grupos minoritários

em suas lutas por melhores posições no tecido social. A literatura dos CN, gestada no seio

da militância e por escritores/militantes, assume, no campo literário, entre outros, a função

de afirmar a identidade negra.

Em seu quadro conceitual, Manuel Castells chama a atenção para a mobilidade das

identidades, que podem começar como resistência, resultar em projeto e até mesmo

tornarem-se legitimadora. Com esse deslocamento de posições, as forças que atuam na

manutenção da estrutura social seriam redimensionadas.

Para a realização de suas produções, os escritores dos CN investem no resgate e na

valorização de elementos relacionados ao segmento social negro, os quais foram ignorados

pelo projeto de identidade forjado pelo Estado-nação: história, memória coletiva, heróis,

cor, lendas. Trata-se de um patrimônio simbólico que posiciona a cultura negra não apenas

como mera contribuinte para a formação da cultura brasileira, mas também como partícipe

basilar.

58

Porém, o reconhecimento quanto à ocupação da centralidade da cultura negra junto

às demais no discurso da identidade nacional é uma questão lateral frente aos outros

objetivos pretendidos pelos CN. A partir da bibliografia pesquisada, é possível inferir que

uma das causas defendidas pelo periódico, e quiçá a principal, é a mudança de posição do

segmento negro no contexto brasileiro, aproximando-se da ideia de “identidade projeto”

definida por Castells. Ainda com relação à identidade projeto, o sociólogo acrescenta:

“consiste em um projeto de uma vida diferente, talvez com base em uma identidade

oprimida, porém expandindo-se no sentido de transformação da sociedade como

prolongamento desse projeto de identidade”. (CASTELLS, 1999, p. 26).

Segundo Fausto Antonio, a problematização da identidade é o centro pelo qual

circulam as poesias, os contos e os textos teóricos que compõem os CN. O pesquisador

afirma que, para os periódicos, a identidade racial significa “empreender movimento para a

superação das desigualdades raciais, a que estão submetidos os negros” (ANTONIO, 2008,

p. 81).

Em Literatura negro-brasileira (2010b), Cuti discorre sobre as forças político-

ideológicas que atuam no campo da literatura, e afirma que a questão racial, outrora

silenciada, tem sido enunciada por vozes negras insurgentes. No entanto, essa tarefa em

curso encontra resistência, pois a fibra com a qual foi tecida a literatura brasileira “ainda

entoa loas às ilusões de hierarquias congênitas para continuar alimentando com seu veneno

o imaginário coletivo de todos os que dela se alimentam direta ou indiretamente.” (CUTI,

2010b, p. 13).

Cuti (2010b, p.13) acrescenta que a literatura brasileira precisa “de forte antídoto

contra o racismo nela entranhado.” A produção literária dos CN vem há mais de três

décadas contribuindo com a reconstrução do imaginário coletivo, de modo a atenuar os

prejuízos psicológicos que foram causados ao leitor negro.

Seguindo a própria nomenclatura dos CN, que, a partir do volume 18, publicado em

1995, passou a adotar como subtítulo a expressão afro-brasileiro, o termo literatura negra é

entendido aqui, como sinônimo de literatura afro-brasileira. O enunciador de tal produção

literária sabe ou sentiu as agruras de ser negro em um país cujas culturas prestigiadas têm

como modelo a europeia e as vozes ouvidas durante séculos foram a do branco ou a do

mestiço que assume somente a parte branca de sua mestiçagem.

Vale ressaltar que um dos fundadores e escritor que publica na maioria das edições

dos CN, Cuti, rejeita a nomenclatura afro-brasileira para nomear a literatura negra, e afirma

59

que o termo apropriado é literatura negro-brasileira24

. Para além da atual polêmica acerca

desse termo – que gira em torno das seguintes classificações: literatura afro-brasileira,

afrodescendente e negra –, teóricos, escritores, pesquisadores e leitores tem à sua disposição

uma vasta produção literária que aborda questões relevantes sobre as relações etnorraciais

no Brasil25

.

Zilá Bernd (1988) destaca esse papel do escritor negro em romper com uma tradição

literária brasileira que, salvo algumas exceções, trazia-o apenas como tema ou como objeto,

um negro sem voz, “o outro” de quem se falava, constituindo uma literatura sobre o negro.

Nesse sentido, a literatura produzida pelo negro é marcada pela presença de um enunciador

que se quer negro, imbuído de uma subjetividade intransferível. Trata-se de uma produção

literária que surge a partir de uma tomada de consciência da questão negra, com o intuito de

desvelar as nuances que desprestigiam o ser negro e positivar valores culturais que foram

propositalmente esquecidos ou escamoteados.

Estabelece-se um discurso literário assumido por escritores que se autonomeiam

negros e inserem a sua escrita no campo da literatura negra. Tal escrita traz à luz outros

modos de expressão literária e provocam uma ruptura no círculo de discursos que

representam a sociedade a partir da miopia conveniente das classes dominantes.

Para Miriam Alves (2002), a presença de escritores e escritoras negros motiva um

mal-estar em alguns segmentos da sociedade brasileira, por estarem acostumados a ignorar

as vivências do sujeito negro. A escritora acredita que existe uma potencialidade de

transformação nesse assumir a subjetividade negra. Ressalta ainda a importância de se

reverter a carga semântica negativa do signo “negro”, pois desse modo opera-se a inversão

do olhar sobre o brasileiro negro, “tirando-lhe a máscara da invisibilidade e dando

existência ao que se considera massa amorfa, sem rosto, sem sentimento, interioridade e

humanidade”. (ALVES, 2002, p. 234).

Para analisarmos o processo de produção de contradiscursos realizado pelos

escritores dos CN, enfocaremos os estudos realizados por Florentina Souza (2006), em Afro-

descendência em Cadernos Negros e Jornal do MNU. Nessa obra, a pesquisadora analisa o

processo de invenção de um discurso de representação e de produção de identidades afro-

24 “Denominar de afro a produção literária negro-brasileira [...] é projetá-la à origem continental de seus

autores, deixando-a a margem da literatura brasileira, atribuindo-lhe principalmente uma desqualificação com

base no viés da hierarquização das culturas, noção bastante disseminada na concepção de Brasil por seus

intelectuais”. (CUTI, 2010, p. 35-36). 25 Sobre essa polêmica em torno do termo, ver estudos de Eduardo Assis Duarte (2007), Maria Nazareth

Soares Fonseca (2006), dentre outros.

60

brasileiras, proposto pelos periódicos citados no título da obra, e afirma que ambos

“viabilizam a criação de um espaço público para a expressão de um grupo excluído,

silenciado e tornado invisível nos setores privilegiados da sociedade brasileira”. (SOUZA,

2006, p. 13).

De início, os autores desses periódicos tiveram de se confrontar com as já citadas

imagens negativas que lhes foram introjetadas ao longo da sua formação cultural.

Conforme nos explica Souza:

Obrigados a conviver desde a infância com os sentidos negativos

atribuídos a expressões pertencentes ao campo semântico negro, também

utilizadas para nos definir e caracterizar étnico-racialmente, somos

colocados diante do dilema: como nos amarmos se o preto é feio, o

perverso, o mal, o pecado? (SOUZA, 2006, p. 135, grifos nossos).

Livrar-se das imagens depreciativas que circundam a mente de cada escritor negro, a

partir dos vários discursos ainda vigentes, foi o primeiro passo para o início de reversão da

carga semântica negativa da palavra negro. A partir de então, o escritor começa a trabalhar

na produção de um discurso literário do negro, tendo como ponto de partida as suas

subjetividades.

Contudo, forjar identidades negras, em um contexto que se quer branco, no qual as

elites dirigentes se esforçaram exaustivamente na tentativa de apagamento das culturas

negras, seja por meio de perseguições seculares, por discursos inferiorizantes ou pela

tentativa de invisibilização, é um desafio árduo para o escritor negro.

Sobre a (in) visibilidade social do negro, Florentina Souza (2006) afirma que o negro

torna-se invisível socialmente quando ocupa os lugares desprestigiados no tecido social,

uma vez que esta ocupação é vista como natural. Em contrapartida, quando conquista

lugares de prestígio sua visibilidade é excessiva, haja vista a dificuldade que a sociedade

tem em aceitar que os afro-brasileiros ocupem lugares que não lhes foram previamente

destinados. Outra forma de tornar o negro invisível em determinadas situações é “Apagar

os vínculos étnicos e os traços físicos, apagar a „a cor‟”. (SOUZA, 2006, p. 36). Com essa

estratégia de apagamento, a atuação desse segmento nos vários setores da sociedade

brasileira, torna-se imperceptível.

Ainda de acordo com Souza (2006, p. 37), a invisibilidade imposta aos afro-

brasileiros, “estende-se ao campo das letras, e à produção textual canônica, na maioria dos

casos, continua a reproduzir os estereótipos negativos e a omitir o registro e a aparição da

produção textual autodenominada negra ou afro-brasileira.” Essa é mais uma das estratégias

61

utilizadas pela elite dominante para a manutenção do seu status, visto que, se o sujeito negro

não tem referências positivas do seu grupo étnico, isso pode levá-lo à descrença quanto as

suas chances em angariar conquistas.

Com relação ao racismo à brasileira – cujos modos de atuação são denunciados pelos

textos que compõem os CN –, Leda Maria Martins, em A cena em sombras (1995), explica

que este se exercita por meio de uma “linguagem violenta”, que circula nas falas do

cotidiano. Nesses discursos, o signo negro aparece quase sempre negativado. Desse modo,

os lugares atribuídos ao negro via produção discursiva, identificam “um sujeito negro

enunciado na própria margem do discurso, destaca-o como um outro não apenas diferente,

mas indesejável, ou desejável em lugares previamente determinados”. (MARTINS, 1995, p.

36).

Regina Dalcastagné (2012) também chama atenção para os processos de

invisibilização e silenciamento de grupos sociais inteiros no campo literário brasileiro

instituído. Essa é mais uma indicação do caráter excludente de nossa sociedade, de acordo

com a autora, que sugere uma mudança de posicionamento frente às obras literárias: de

reverência à crítica.

Stuart Hall percebe que as classes menos favorecidas têm conquistado alguns

espaços no âmbito cultural, mas adverte que tais espaços são “policiados, regulados” e que

no lugar da invisibilidade o que existe é “uma espécie de visibilidade cuidadosamente

regulada e segregada”. Ampliando a discussão acerca desses embates, o teórico diz que

algumas estratégias podem “efetuar diferenças” e promover o descolamento “das

disposições de poder”. E afirma que o único jogo que vale a pena é o da “guerra de

posições culturais”. (HALL, 2011, p. 321).

Hall (2011) enfatiza a ambiguidade que paira sobre esses espaços, pois, ao mesmo

tempo em que o momento atual representa uma abertura para as margens, para o diferente,

as classes dominantes desenvolvem políticas culturais para tentar homogeneizar a

identidade, a partir do resgate das grandes narrativas da história, da língua e da literatura.

À medida que vários grupos não se sentem contemplados na concepção de

identidade construída pelas classes hegemônicas, eles vão reivindicando novas identidades e

forçam a redefinição das que estão legitimadas. E é nessa simbiose, imposta pelas relações

de forças simbólicas, que vão se reconfigurando as disposições do poder na estrutura social.

Essas reflexões de Hall (2011) nos remetem à luta travada no campo da literatura

pelos escritores dos CN, que insistem e persistem, a partir das suas próprias experiências,

em expressar “contranarrativas” que valorizam a cultura negra e atuam na redefinição de

62

suas próprias identidades. Nessa guerra posicional, em que a página literária tornou-se o

campo de luta, os autores dos CN redefinem as suas posições frente aos discursos

produzidos pelas classes dominantes.

Florentina Souza (2006) sintetiza o amplo universo abordado e o modo de atuação

do escritor negro que,

[...] seleciona e reelabora os dados culturais de que necessita para construir

um desenho identitário positivo para si e para o seu grupo; tentará, por

conseguinte, desvelar o apagamento e o desprestígio constituídos pela

ocidentalização. Deste modo, assenhorando-se da cosmologia de origem

africana dos mitos, rituais e símbolos, proporá práticas eficazes para

repensá-los e reconstruí-los dentro de uma perspectiva que instala a

discussão sobre a ambivalência da sua relação com o universo cultural do

Ocidente. (SOUZA, 2006, p. 62, grifos nossos).

Os CN investem na construção da identidade negra a partir dos contos e poesias que

destacam a apresentação das situações de discriminação racial. Os processos de

invisibilização corroboraram para dificultar a assunção de uma identidade negra nos

discursos literários. Os textos dos CN mais do que rejeitam a assimilação de uma identidade

negra atribuída pelo branco. Apresentam identidades negras construídas e reconstruídas

pelas óticas de escritores e escritoras, fundadas na consciência da ancestralidade africana e

afro-brasileira.

Ainda seguindo as reflexões de Florentina Souza (2006), em síntese, a identidade

proposta pelos CN tem bases na ancestralidade, nas culturas e religiões forjadas no encontro

dos vários grupos étnicos durante a diáspora negra no Brasil com as tradições do Ocidente.

Tal identidade é reatualizada continuadamente, numa relação dialógica com as

necessidades, conflitos e conquistas do sujeito negro contemporâneo.

3.3 ABRINDO CAMINHOS PARA O LEITOR

No salão de festas para as letras brasileiras, construído pelos CN e o Quilombhoje, o

leitor negro é o convidado de honra, com partituras reinventadas para dar conta das

vivências, dos anseios e desejos do sujeito negro. Uma festa orquestrada por maestros não

apenas sensíveis ou solidários com as experiências do “outro” – maestros que são este

“outro” que sentiu ou sente na pele, os efeitos nocivas da exclusão vigente em todos os

setores privilegiados da sociedade.

63

Esse é apenas um dos aspectos contrastantes com o espaço literário instituído pelas

elites dirigentes citado anteriormente, que usa habilmente a linguagem literária na tentativa

de naturalizar papeis sociais desprestigiados para o segmento negro.

Em linhas gerais, os textos que compõem o periódico apresentam outras

caracterizações das personagens negras e brancas, a positivação de outros valores e o

questionamento dos vigentes, a partir de um sujeito ou narrador construídos sob a ótica e

vivência do escritor negro. Assim, amplia-se a possibilidade de percepção do leitor, haja

vista a reorientação dos modos de ver literariamente a diversidade que constitui a população

brasileira.

Com relação aos recursos linguísticos, os escritores dos CN fazem uso da repetição

de termos tais como “conscientizar, reflexão, mobilizar, resgatar, lutar, combater” e da

redundância, por entenderem que “a eficácia do discurso estará mais garantida se o leitor for

bem conduzido e sempre lembrado dos objetivos e intenções dos textos”. (SOUZA, 2006, p.

64).

Esses recursos, conforme afirma Florentina Souza (2006, p. 64), os quais são

rejeitados pela literatura instituída interessada na “novidade estética” que envolva o “leitor

erudito,” são propositalmente usados pelos escritores dos CN, com o intuito de não somente

angariar um amplo público leitor, mas também de fazer com que este se “detenha no que foi

repetido” e apreenda “a razão/significado da insistência.”

A autora acrescenta que os escritores dos CN utilizam a palavra “como instrumento

de luta detentor de um alto poder de conscientização”. Em função disso, predomina na

linguagem a intenção de “apelo” e “persuasão”, com vistas a motivar o negro a reagir diante

das ainda recorrentes situações de discriminação e preconceito racial. (SOUZA, 2006, p.

83). Com efeito, os textos dos CN contribuem para desestabilizar os discursos literários que

proliferam na sociedade brasileira que há muito tempo prestigiam apenas o modelo cultural

de inspiração europeia e desqualificam os elementos culturais do segmento afrodescendente.

Além das estratégias utilizadas nos textos literários, as fotografias presentes nas

capas, os depoimentos publicados nas orelhas e contracapas, os textos de apresentação,

introdução e prefácio contribuem para a efetivação da função social proposta pelos CN.

Todos esses elementos, harmonicamente dispostos, ajudam a manter o leitor atento aos

objetivos da antologia.

Para Cuti (2010b), uma das motivações para o escritor negro libertar a sua

subjetividade foi o surgimento do leitor negro em seu horizonte de expectativa. A partir de

64

então, o escritor passa a contar com a possibilidade de uma recepção solidária por parte do

público.

Cuti, ao usar a expressão “horizonte de expectativas” nos reporta aos estudos de

Hans Robert Jauss e a Estética da recepção. De acordo com Jauss (1994, p. 24), o leitor

deve ocupar uma posição central nas discussões sobre a historicidade da literatura que se

sustenta “no experenciar dinâmico da obra literária por parte de seus leitores”. Nos estudos

sobre as relações que se estabelecem entre literatura e leitor, segundo o autor,

o horizonte de expectativa da literatura distingue-se da práxis histórica

pelo fato de não apenas conservar as experiências vividas, mas também

antecipar possibilidades não concretizadas, expandir o espaço limitado do

comportamento social rumo a novos desejos, pretensões e objetivos,

abrindo, assim, novos caminhos para a experiência futura.” (JAUSS, 1994,

p. 52).

Para a análise da experiência do leitor em um tempo histórico determinado, Jauss

(2002) considera o caráter duplo do horizonte de expectativa: o “efeito”, como o momento

condicionado pelo texto, e a “recepção”, condicionada pelo destinatário. Investiga-se,

portanto, o diálogo entre o que é “interno ao texto” e o “mundivêncial” do leitor. De acordo

com o autor, essa análise é importante para que se possa entender como as expectativas e

experiências se encandeiam e se isso gera momentos de novas significações. (JAUSS, 2002,

p. 46).

O diálogo entre a obra literária e o leitor, segundo Jauss (1994), depende de fatores

determinados pelo horizonte de expectativa, que vão desde as convenções do gênero, estilo

e da forma, a fatores implícitos: “normas conhecidas ou poética imanente ao gênero”,

“relação implícita com obras conhecidas do contexto-histórico literário” e a “oposição entre

ficção e realidade” que está presente durante a leitura como possibilidade de comparação.

Com relação ao último fator, o teórico explica que este inclui ainda “a possibilidade de o

leitor perceber uma nova obra tanto a partir do horizonte mais restrito de sua expectativa

literária, quanto do horizonte mais amplo de sua experiência de vida”. (JAUSS, 1994, p.29-

30). Em outras palavras, o horizonte de expectativas de um texto relaciona-se com as

demandas que o leitor nutre com relação ao texto.

Ao concluir as suas reflexões sobre a reescrita da história da literatura, Hans Robert

Jauss (1994) propõe que se investiguem as contribuições da literatura para a vida social,

pois sua função vai muito além da produção e da representação, elementos privilegiados

pelos estudos das estéticas tradicionais.

65

Sayonara Amaral de Oliveira (2010), em seu estudo sobre a recepção de Paulo

Coelho nos blogs do escritor, explica que as reflexões lançadas por Jauss no contexto de

surgimento da estética da recepção, são fundamentais pela visibilidade conferida ao receptor

no campo dos estudos literários. Segundo a pesquisadora:

Extrapola-se a concepção comumente admitida nas teorias estéticas, que

tomam o leitor como figura abstrata, entidade idealizada ou projetada no

tecido textual. À medida que propõe uma historicidade do literário via

recepção, o autor sinaliza para o leitor “real”, o leitor como sujeito

histórico e “exterior” ao texto, com suas demandas, expectativas,

experiências e valores. (OLIVEIRA, 2010, p. 29).

No Brasil, o leitor negro esteve por muito tempo fora do horizonte de expectativa

dos escritores. Cuti, no ensaio O leitor e o texto afro-brasileiro (2002), ao refletir sobre a

experiência do leitor negro perante a produção literária brasileira, explica que este se sente

como quem estivesse ouvindo uma conversa entre brancos, atrás da porta. Em função disso,

para que o diálogo com essas obras literárias fosse estabelecido, a solução era afastar-se de

si, de sua “concretude”, haja vista que o público-alvo pensado para tais obras não incluía o

leitor negro.

Na produção literária afro-brasileira insurgente, a tríade autor/leitor/texto/ está

plasmada numa direção contrastante com a do ideal de brancura deflagrado na produção

literária instituída. Com o leitor que adere ao “querer-se branco” e não encontra nessas

produções “lugar no texto enquanto referência de discurso” ocorre uma estranheza que o

desafia a “experimentar a subjetividade negra”, conforme as reflexões de Cuti (2002, p. 28).

A partir da pergunta lançada por Maria Cândida Almeida (2008, p. 78), em seu

ensaio sobre o leitor e a leitura através do texto afro-brasileiro, “Para quem escrevem os

autores dos Cadernos Negros?”, podemos alargar a discussão apresentada por Cuti. Almeida

parte da reflexão que o leitor brasileiro é formado na “tradição moderna literária ocidental”,

o que significa dizer que na literatura disponível predominam três características:

“cosmopolitismo, dicção masculina e ideologia branca”. A produção dos CN atua

exatamente contra esse paradigma e, à vista disso, alguns textos

[...] apelam para a tradição dos orixás, para um posicionamento político

contra as estruturas do racismo e para a afirmação da identidade étnico-

racial, causando um profundo estranhamento para nós, leitores formados

nas convenções da leitura ocidental e termina por exigir de nós, de

qualquer descendência étnico-racial, uma ampliação de nossos modelos

estéticos e de nossos conceitos sociológicos. (ALMEIDA, 2008, p. 78)

A estranheza citada por Cuti, quanto ao leitor que adere ao querer-se branco, é

estendida a todos os leitores brasileiros, em função da formação a que foram submetidos,

66

conforme as reflexões de Almeida. No entanto, os textos dos CN desafiam o leitor a divagar

por entre contos e poesias em que o modelo de produção diverge daqueles que sempre

estiveram a sua disposição. Essa produção apresenta tanto outro enunciador ou enunciadora,

quanto temáticas e referências culturais que foram ignoradas pela literatura canônica ou

tratadas de modo inadequado. Assim, pode trazer como corolário, além da estranheza, o

abalo dos conceitos enraizados no imaginário do leitor brasileiro por intermédio daquela

tradição literária moderna.

A produção literária do escritor negro, por apresentar-se de modo divergente da

literatura instituída, ajuda a fomentar outra construção identitária. Esse escritor conquista o

poder de falar de si e do grupo ao qual pertence e, desse modo, impõe outro modelo de

representação. “Quem tem o poder de representar tem o poder de definir e determinar a

identidade”, conforme pontua Tomaz Tadeu da Silva (2007, p. 91), em seu ensaio sobre a

produção da identidade e da diferença.

Florentina Souza, referindo-se aos escritores dos CN e do MNU, diz que ambos

insistem na discussão de temas identitários, objetivando a construção de “uma identidade

negra altiva e atuante”. Pressupõem “um grupo de leitores receptivos e em sua maioria

afro-brasileiro”. Para alcançar o seu objetivo, “os textos investem em conselhos, sugestões,

alegorias, palavras de ordem e uma linguagem simples que facilite o envolvimento e a

adesão”. (SOUZA, 2006, p. 70).

Referindo-se também ao tipo de leitor pressuposto pelos CN, Maria Cândida

Almeida (2008, p.78) afirma que “O projeto que direciona os Cadernos Negros está

delineado na busca do leitor afro-brasileiro em sua conformação multifacetada que torna

visível a diferença e denuncia o racismo”.

Cabe ressaltar que a concepção da literatura negra, no que se refere à reversão de

sentidos, à correção de determinados estereótipos, almeja alcançar não somente o público

afro-brasileiro, mas o leitor brasileiro no sentido amplo, com vistas a mudar o modo de

percepção que o Brasil tem de sua composição etnorracial. Nessa perspectiva, ainda que a

primeira preocupação do escritor negro seja dar margens para a composição de identidades

negras positivas, pode-se inferir que a grande preocupação é alterar a maneira como as elites

e os poderes hegemônicos representam a diversidade afro-brasileira.

Não podemos perder de vista também que, embora o escritor dos CN, no ato da

produção, eleja como leitorado privilegiado o afro-brasileiro, o seu desejo como o de

qualquer outro escritor é atingir o maior número possível de leitores. Os CN disponibilizam,

portanto, ao leitor brasileiro, em geral, textos literários que ampliam as possibilidades de

67

diálogo com a cultura plural na qual está inserido. Assim, ajudam na reconstrução do

inconsciente coletivo que é adquirido, conforme as reflexões de Frantz Fanon.

Reiteramos que os autores dos CN ensejam uma contribuição positiva para a

construção identitária do leitor negro, especialmente no que se refere à autoimagem, a

autoestima, e busca incentivá-lo a insurgir-se frente às situações de racismo e discriminação

racial. Vale destacar que esse leitor passa a contar com a existência de personagens negros

com os quais possa identificar-se. Tal identificação foi historicamente negada, tendo em

vista os arquétipos negros disseminados pela literatura instituída.

A almejada recepção solidária do leitor, por certo, depende de variáveis que vão

além da intenção do escritor que o elege como público preferencial em seu texto. Variáveis

que vão desde o contexto sociohistórico e cultural em que o leitor está inserido, as suas

crenças, valores, repertório de leituras, até as suas experiências mais pessoais. Para o

historiador Roger Chartier (1999, p. 181), “A leitura não é somente uma operação abstrata

de intelecção: é pôr em jogo o corpo, é inscrição num espaço, relação consigo ou com o

outro”.

Diante dessa observação, não devemos perder de vista o fato de que as respostas dos

leitores podem coadunar, divergir ou passar ao largo do horizonte de expectativas desses

escritores. De todo modo, esse outro salão de festas das letras, o salão alternativo, está

consolidado. E o leitor afro-brasileiro pode agora dançar em compasso com seus pares, ao

som das canções que lhe representam positivamente. Caberá então indagar sobre o modo

como determinados leitores se conduzem nessa festa ou como “respondem” à construção

afirmativa da identidade negra proposta pelos Cadernos Negros.

68

4 COM A PALAVRA, O LEITOR QUILOMBOLA

Ao refletir sobre a mulher na condição de leitora, Jonathan Culler (1997) em Sobre a

desconstrução: teoria crítica do pós-estruturalismo, parte da seguinte indagação: “É

suficiente ser mulher para ler como mulher?” Segundo o autor, pedir para que se leia como

mulher é uma solicitação dupla, pois apela tanto para “identidade sexual” quanto para “as

experiências associadas a essa identidade”. Em seu texto, Culler destaca o histórico de

“dominação masculina” com relação à produção e circulação de discursos tidos como

neutros, mas que influenciam as leitoras a serem solidárias com representações negativadas

de si. Apesar de admitir que seja difícil definir o que seria ler como mulher, o autor propõe:

“ler como uma mulher é evitar ler como um homem, identificar as defesas específicas e

distorções das leituras dos homens e providenciar reparações.” (CULLER, 1997, p. 66). O

autor acrescenta:

Uma mulher ler como uma mulher não significa repetir uma identidade ou

experiência que é dada, mas assumir um papel que ela constrói como

referência à sua identidade como mulher, que é também uma construção,

de modo que a série pode continuar: uma mulher lendo como uma mulher

lendo como uma mulher. A não-coincidência revela um intervalo, uma

divisão interna à mulher ou a qualquer sujeito leitor e à “experiência”

daquele sujeito. (CULLER, 1997, p. 77).

O ato de ler, de acordo com Culler, é influenciado tanto pelas experiências literárias

quanto por aquelas não-literárias vivenciadas e interpretadas de diferentes maneiras por cada

sujeito. Segundo o autor, a mulher, ao assumir o papel de leitora, toma como referência a

sua “identidade”, termo compreendido na mesma clave do pensamento de Stuart Hall

(2007), que o define como uma construção sempre em processo de transformação,

influenciada por fatores sociais, históricos e culturais, e, desprovido de essencialismos. Por

conseguinte, o posicionamento da mulher diante de um mesmo texto pode ser modificado

em função das múltiplas identidades que ela assume ou abandona ao longo de vida. Em

síntese, “ler é fazer o papel de um leitor e interpretar é propor uma experiência de leitura”.

(CULLER, 1997, p. 80).

Embora Culler trate especificamente da mulher na condição de leitora, a sua

discussão é produtiva para se pensar também o leitor afro-brasileiro, público preferencial do

projeto coletivo Cadernos Negros. Adotando esse público como ponto de referência, a

questão que se delineia é: basta ser negro para ler como negro? Se a mulher é levada a

comungar das ideias propagadas pela dominação masculina, em virtude da imposição de

69

discursos que se pretendem universais, conforme as reflexões de Culler, no caso do leitor

negro brasileiro, a dominação é branca.

Muitos negros e negras introjetaram estereótipos negativos acerca do seu segmento

etnorracial, em função disso, buscam autovalorização e reconhecimento por meio da

internalização e reprodução dos valores do grupo economicamente dominante, o branco.

Desse modo, pode-se inferir que a posição de leitores negros frente às obras literárias

também sofre as influências dessa hierarquização. Reiteramos que, na maioria das obras que

compõem a cena literária brasileira, o negro e a negra na condição de personagens foram

excluídos ou incluídos de forma negativada e enquanto leitores foram induzidos a afastar-se

de si e a ocupar o lugar do “outro”, identificar-se com “outro”, o branco, na realização de

suas leituras.

A afirmação do segmento negro no Brasil, em linhas gerais, relaciona-se com a

releitura de suas histórias e, por conseguinte, das histórias do país, na valorização de sua

cultura, religiões e de suas características fenotípicas. É possível que, com esse processo em

curso, a posição do leitor negro ante as obras literárias seja redimensionada e o sujeito negro

leia como tal. Ademais, a literatura negra pode acionar e municiar o processo de construção

social positiva dos sujeitos negros.

Não se pretende, contudo, discutir o que é ser negro no Brasil, uma vez que essa é

uma construção dinâmica, a qual aponta para a diversidade das experiências tanto

individuais quanto coletivas dos sujeitos, num intenso e contínuo processo de negociação.

Nesse sentido, Stuart Hall adverte que a fixação de um significado, tomando como exemplo

o sujeito “negro”, levaria a uma discussão inútil em torno de que algo é negro ou não.

Segundo o autor, “é somente pelo modo no qual representamos e imaginamos a nós mesmos

que chegamos a saber como nos constituímos e quem nós somos”. (HALL, 2011, p. 327).

Assim, orientando-se pelas reflexões de Culler acerca da mulher, que, na condição

de leitora, assume um papel que ela constrói tendo como referência a sua identidade também

em construção, investiga-se neste estudo o modo como os estudantes pertencentes a uma

comunidade quilombola se representam no contato com textos literários que os convocam a

identidades negras afirmativas. Sem, contudo, tencionar a pretensão de uma apreciação

conclusiva do que seja ler como negro.

Os sujeitos desta pesquisa são estudantes que compõem a turma do 1º ano do Ensino

Médio de uma escola situada no distrito de Tijuaçu que, como vimos na primeira seção

deste estudo, foi reconhecido como comunidade quilombola em 2000. Essa escola é uma

extensão do Colégio Estadual Senhor do Bonfim (CESB), com sede na cidade de Senhor do

70

Bonfim, Bahia. A escolha dessa turma foi motivada pelo fato de que, a respeito da leitura

literária, ainda que seja praticada em todas as fases da formação escolar básica dos

estudantes, é a partir do Ensino Médio que se destina uma carga horária obrigatória para a

literatura dentro do programa da disciplina Língua Portuguesa.

A turma é composta por 14 estudantes, 11 são do sexo feminino e 03 do sexo

masculino, com idades que variam entre 13 e 19 anos. A maioria reside na sede do distrito

de Tijuaçu e os demais em fazendas que fazem parte do perímetro quilombola. Para

assegurar o direito de anonimato dos estudantes pesquisados, são utilizadas, neste estudo, as

siglas SF e SM referindo-se, respectivamente, aos sujeitos do sexo feminino e aos do sexo

masculino.

Reiteramos que tais estudantes pertencem a um contexto social cujos elementos da

etnorracialidade negra quilombola são evidenciados cotidianamente, tanto nas práticas

culturais, com destaque para o samba de lata, quanto em outros símbolos representativos da

comunidade, por exemplo: o acarajé. Destaca-se também a festa de São Benedito, a

celebração mais aguardada do ano. Dentre os estudantes pesquisados, alguns participam de

um grupo de dança, financiado pelo Programa Brasil Quilombola, chamado Corta cana

cujas coreografias são inspiradas em tradições afro-brasileiras. O nome Corta cana é uma

homenagem aos tijuaçuenses que, na década de 1930, ao fugirem da seca em direção ao sul

da Bahia para trabalharem nos canaviais, foram submetidos ao trabalho escravo.

Para além dessas práticas culturais mais tradicionais, os estudantes também

articulam-se com referências do contexto cultural contemporâneo. Afora o tempo investido

nos estudos, os sujeitos pesquisados trabalham em casa ajudando os pais nas tarefas

domésticas e utilizam parte do tempo livre assistindo a programas de televisão, jogando

futebol ou navegando na internet, sendo que a principal forma de acesso a essa mídia se dá

por meio de uma lan house que funciona na comunidade.

No que se refere às experiências de leitura literária, os estudantes relataram que

conhecem alguns clássicos infantis oriundos ou inspirados em narrativas da tradição oral, a

saber: Chapeuzinho Vermelho e Cinderela cujas versões mais divulgadas foram às escritas

por Charles Perrault; Branca de Neve e A Bela Adormecida, dos irmãos Grimm; Os três

Porquinhos de Joseph Jacobs; O Patinho feio de Hans Christian Andersen; A Bela a Fera de

Jeanne-Marie Beaumont; A cigarra e a Formiga de Jean de La Fontaine; entre outros.

Acrescenta-se a essas experiências o contato com o material resultante do projeto Estórias

Quilombolas (2010), coordenado pela Secretária de Educação Continuada Alfabetização e

Diversidade (SECAD) e distribuído pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC) para

71

escolas públicas, preferencialmente as que estão localizadas em áreas quilombolas. O

referido material é composto pelos livros Estórias Quilombolas, com narrativas oriundas da

tradição oral que fazem parte do imaginário das comunidades quilombolas dos estados de

Minas Gerais, Maranhão, Rio Grande do Sul e Goiás, Minas de Quilombo (em formato de

história em quadrinhos), com foco nos quilombos de Minas Gerais e Yoté: o jogo da nossa

história, com ênfase na vida e na obra de importantes personalidades negras brasileiras26

.

No acervo literário da biblioteca da escola, locus desta pesquisa, não há exemplares

dos Cadernos Negros, embora o MEC distribua essa antologia, há mais de uma década, para

as bibliotecas das escolas públicas no Brasil, contribuindo para a efetivação da Lei n.

10.639/2003 que torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira, cujos

conteúdos devem ser ministrados preferencialmente nas áreas de Educação Artística, de

Literatura e História Brasileira. Considerando que parte do acervo literário de cada unidade

escolar é composta das obras solicitadas pelos docentes, dentre as que estão disponibilizadas

pelo MEC, a nossa hipótese sobre essa ausência é que tal antologia não tenha sido

solicitada, o que somente vem confirmar a pouca representatividade que a literatura negra

ainda apresenta no cenário da cultura nacional, conforme apontado por Dalcastagné (2012).

Para as oficinas pedagógicas de leitura e produção textual, objetivando colher dados

necessários à realização desta investigação, foram selecionados contos dos CN nos quais os

enredos evidenciam, em linhas gerais, a intenção de fomentar construções afirmativas de

identidades negras. São eles: “O anjo”, de Débora Garcia, e “O tapete voador”, de Cristiane

Sobral, denunciando o mito da democracia racial; “Minha cor”, de Raquel Almeida, e “Foi

Ariano quem fez os caracóis chorarem”, de Ademiro Alves, tratando da desconstrução de

estereótipos; “Cauterização”, de Cristiane Sobral, e “As máscaras de Dandara”, de Serafina

Machado, abordando a beleza negra. Esses contos foram publicados nos CN 30, 32 e 34.

No primeiro contato com exemplares dos Cadernos Negros nas oficinas, os

estudantes revelaram que não conheciam o periódico e mostraram-se admirados quanto às

imagens das capas e igualmente curiosos quanto ao conteúdo dos livros. Os CN 30, 32 e 34

trazem em suas capas representações femininas, (vide anexos A, B e C). No CN volume 30,

metade da capa é preta e a outra metade verde claro, com bordas em verde, vermelho e

amarelo. Na parte verde clara, destaca-se uma fotografia que apresenta o ombro despido e o

rosto em perfil de uma jovem negra usando um brinco vermelho em sua orelha. No volume

26 Além de estar disponível na biblioteca, o material resultante do projeto foi distribuído para todos os

estudantes matriculados na escola, locus desta pesquisa.

72

32, a capa é preta e as bordas em cores laranja, preta e vermelha, no centro, há uma

fotografia de uma garota negra com os cabelos crespos encaracolados, lendo um livro. E no

volume 34, a capa em cor laranja traz o desenho de uma mulher negra de perfil com a

cabeça erguida carregando um tacho, e ao fundo, uma cidade.

Nas três capas descritas, há uma sequência imagética que começa com a exaltação da

beleza do corpo negro, a correlação mulher e labor intelectual e na última capa o papel

central da mulher na construção da sociedade brasileira. Destoando, portanto, das imagens

estereotipadas comumente vistas da mulher negra na mídia eletrônica e impressa, essas

capas apresentam contra-imagens que sugerem contranarrativas dos discursos de

inferiorização historicamente propagados.

As oficinas de leitura e produção textual foram realizadas durante quatro encontros,

com início às treze horas e término às quinze e trinta, num total de dez horas. Os três

primeiros encontros foram divididos em dois momentos. Em cada um dos momentos lemos

um conto silenciosamente, depois em voz alta e ao final conversamos sobre o conto. A

conversa foi motivada por perguntas que versaram sobre as impressões acerca do conto, as

atitudes dos personagens e as vivências dos estudantes com relação às temáticas abordadas

nas narrativas.

Como técnica de investigação, seguimos, no decorrer das oficinas, as orientações

quanto aos procedimentos de trabalhos com grupos focais, por entendermos que tais

procedimentos servem aos objetivos propostos neste estudo. De acordo com Bernadete Gatti

(2012, p. 11), o grupo focal permite que se conheçam as “representações, percepções,

crenças, hábitos, valores, restrições, preconceitos, linguagens e simbologias prevalentes no

trato de uma dada questão por pessoas que partilham alguns traços em comum, relevantes

para o estudo do problema visado.” E como instrumento de coleta de dados foi utilizado o

diário de campo para registrar os principais acontecimentos e as impressões acerca do grupo

e um gravador de áudio, a fim de capturar, com mais tranquilidade, as falas dos sujeitos da

pesquisa.

Durante as conversas sobre os contos, foram consideradas as orientações de Gatti

(2012) sobre o modo de atuação do pesquisador em grupos focais cujas funções, nesse

momento, restringem-se a lançar perguntas e organizar os momentos de fala para que as

discussões fluam. Com esse posicionamento, espera-se que o pesquisador interfira o

mínimo possível na construção das opiniões dos participantes do grupo.

De acordo com Bernadete Gatti (2012), o grupo focal faz emergir uma

multiplicidade de pontos de vista e processos de emoções em função do contexto de

73

interação em que os sujeitos da pesquisa estão envolvidos. Desse modo, é possível que o

pesquisador capte significados que em outros contextos poderiam ser difíceis de se

manifestar.

Dentre os contos lidos, o que mais empolgou o grupo foi “Minha cor”, de Raquel

Almeida, principalmente no final da narrativa, momento em que a protagonista diz que não

é suja, nem mula, que ela é afro, negra, da pele preta. Já na própria expressão facial dos

estudantes, foi possível perceber a satisfação com relação ao desfecho do conto.

A proposta para o quarto encontro foi a produção de uma carta pessoal endereçada

para o escritor ou para um personagem do conto. Para essa produção, foi esclarecido que os

sujeitos da pesquisa poderiam dizer o que quisessem aos destinatários. Assim, após

folhearem os seis contos trabalhados nas oficinas, cada estudante escolheu um, releu

silenciosamente e em seguida produziu a carta.

A carta pessoal foi eleita como corpus principal de análise neste estudo, por se tratar

de uma produção textual livre, em que o remetente pode dizer o que sentir vontade ao

destinatário e assim, pode revelar-se, mostrar-se para o outro. A carta significa “um olhar

que se lança sobre o destinatário [...] e uma maneira de se oferecer ao seu olhar através do

que lhe é dito sobre si mesmo”, no dizer de Michel Foucault (2006, p. 156).

Nas cartas produzidas pelos estudantes, há vários problemas de redação referentes às

prescrições da gramática normativa da Língua Portuguesa, reflexo da fragilidade da escola

pública brasileira no que diz respeito à promoção dessa habilidade. Contudo, tais problemas

não constituíram obstáculos para a compreensão geral dos textos, os quais foram aqui

transcritos conforme a versão original. Neste estudo, sem pretender esgotar as nuances

discursivas postas nas cartas, mas enforcar os temas postos em questão, as análises são

mescladas com as apreciações sobre comentários feitos pelas estudantes no decorrer das

oficinas.

Para favorecer a reflexão sobre o modo como determinados leitores da comunidade

negra de Tijuaçu “respondem” aos processos de identificação lançados pelos Cadernos

Negros, agrupamos as cartas em categorias analíticas criadas com base nos posicionamentos

predominantes dos leitores frente aos contos dos CN. No entanto, com tais categorias não se

pretende estabelecer uma rotulação rígida, pois, os leitores podem, simultaneamente,

pertencer a mais de uma, haja vista o entrecruzamento de posições implícitas nos

enunciados de cada texto. São três as categorias esboçadas: leitores sabotadores, leitores em

contradição e leitores solidários, as quais são apresentadas e justificadas a seguir.

74

4.1 LEITORES SABOTADORES

Nas cartas do primeiro grupo, nomeado de leitores sabotadores, destaca-se o

distanciamento entre o que tencionam os contos quanto às questões etnorraciais e a recepção

manifestada pelos leitores. Com base nos conteúdos das cartas alocadas nessa categoria,

verifica-se que os discursos de algumas vão de encontro à proposta do coletivo literário

Cadernos Negros e que outras não se atêm às questões centrais apontadas nas narrativas.

Tais cartas nos remetem às reflexões de Maria Cândida Almeida (2008, p. 69) acerca do

leitor sabotador de uma ordem idealizada que “busca livros proibidos, lê fora de hora,

compreende a sua maneira cada palavra, põe rostos desconhecidos ao escritor nas

personagens, lê a ele mesmo como personagem, enfim, desobedece ao controle pretendido

pelos produtores do livro”. Pode-se atribuir essa “desobediência” do leitor, à ambiguidade

que atravessa a experiência de leitura ou a qualquer outra experiência humana, que

conforme Antoine Compagnon (2010, p. 161), situa-se entre “compreender e amar, entre a

filologia e a alegoria, entre a liberdade e a imposição, entre a atenção ao outro e a

preocupação consigo mesmo”.

Não obstante, aos nos apropriarmos da imagem do leitor sabotador nesta

categorização, o conceito de sabotagem diverge do sentido proposto por Maria Cândida

Almeida – o de uma fruição livre e positiva, extrapolando o controle de interpretação

pretendido pelo autor. A liberdade de leitura praticada pelos leitores/produtores das cartas

analisadas nos sugere um aprisionamento em ideias que estão a serviço da manutenção do

preconceito e da discriminação racial. Pode-se inferir, então, que o exercício da liberdade de

leitura está atrelado aos vários discursos que constituem o sujeito.

De: SF1 (16 anos).

Para: Ademiro Alves (Sacolinha), autor do conto “Foi Ariano quem fez os caracóis

chorarem”.

Querido Ademiro Alves seu conto mostra a realidade. Eu não tenho discriminação com ninguem

mas se as pessoas tiverem dando risada se a pessoa for feia eu tambem do risada junto. Cada um

tem seu jeito de ser mas o conto fala a verdade ele mostrou seu talento para todos por isso que todo

mundo é igual é só erguer a cabeça pra frente e não ligar mas Ariano ele começou a tocar

instrumentos para esquecer o passado mas será que ele tocava instrumento porque era feio pra

pessoas se admirarem porque ele tocava mas isso não importa.

75

Vou dizer a realidade eu gosto muito de dar risada das pessoas que é louca assim um pouco

diferente de nós mas eu acho que isso é normal mas eu não gosto de si misturar com pessoas que

são muito diferente, mas de pessoas mais certas eu estou dando a minha opinião Ariano foi muito

besta se ele era feio nada ia mudar ele ja nasceu assim agora ele aguente as pessoas dando risada

dele batendo nele se ele era feio, a vida é assim mesmo Ademiro Alves eu gostei de ler seu conto

gostei de verdade ser negro é normal, eu não ligo para essas coisas, branco, negro pardo para mim

tanto faz feio ou bonito mas quem é feio não quer ser, é claro, todo mundo queria ser bonito tem

muita gente feia nesse mundo por isso que tem racismo mas eu não quero me misturar com pessoas

feias porque as pessoas vão dar risada de mim também, só tenho isso pra falar. Eu tenho mais

coisas pra falar o autor também é racista todas as pessoas que falam de negro em texto ou conto

porque também é.

O conto “Foi Ariano quem fez os caracóis chorarem” publicado no CN 32 (2009)

traz a história de Ariano, um rapaz negro bem sucedido que largou a gerência de um banco

para seguir carreira musical. Entretanto, para chegar onde chegou, teve que vencer a fome

quando era criança, o preconceito racial na faculdade e, depois, nos mais diversos contextos.

Certa feita, Ariano foi apresentar-se em uma conferência econômica na Suíça, representando

o banco em que trabalhava, quando um dos convidados, ao chamar Ariano de negão, pediu

para ele tocar um samba. Ariano então pegou o instrumento de cordas e soltou a voz no

microfone. Cantou e tocou Bossa Nova e MPB, depois cantou em inglês Bob Dylan, Marvin

Gaye e Ray Charles e todos ficaram pasmos.

Em linhas gerais, o conto desvela as ideologias das classes dominantes que, na

teoria, asseguram oportunidades iguais para todos, mas na prática colocam o negro em

desvantagem e incita o sujeito a insurgir-se diante das situações de discriminação racial,

conforme fizera Ariano. Diante do episódio da apresentação na conferência internacional, o

narrador conclui: “A partir daí, andava de cabeça erguida, não levava desaforo para casa,

nem usava da violência. Procurava seus direitos. Estava se impondo.” (CN 32, p. 17).

A narrativa contempla também a afirmação das religiões brasileiras de matriz

africana, referendando positivamente a relação de Ariano com os orixás, com a

ancestralidade e o atabaque. Está explícito no conto o desejo de reversão de estereótipos

inventados para os negros, tendo como clímax o momento final, em que Ariano surpreende

o público, mostrando que conhece vários estilos musicais. Tal atitude corrobora a

desestabilização dos modos como a sociedade brasileira acostumou-se a enxergar o negro

no âmbito cultural, investindo, portanto, contra o estigma de que, nesse campo, ele conhece

somente o samba.

76

Na carta redigida para o autor do conto, SF1 começa dizendo que não discrimina

ninguém. Declaração recorrente no contexto brasileiro quando se discute a problemática do

racismo. Contudo, ainda no início do texto, revela a sua identificação e a sua disposição

para cooperar com o grupo opressor e sugere ao oprimido que se conforme com as agressões

ou faça de conta que elas não existem. Esse modo de pensar nos reporta ao período

escravocrata, quando, ao coisificar o sujeito negro, naturalizava-se a violência física e verbal

praticada contra ele. Os resquícios do processo de desumanização ainda são visíveis nos

dias de hoje, pois, em várias situações, a violência praticada contra o negro é vista como

algo natural.

Ariano, protagonista do conto, é negro. A leitora, de imediato, cogita a possibilidade

de que ele seja feio no momento em que questiona sobre o motivo que o levou a tocar o

instrumento. Isso nos revela a força do discurso que associa a negrura à feiura ainda vigente

na sociedade brasileira, um discurso que foi tão fortemente introjetado por SF1, levando-a a

sabotar a mensagem positiva proposta pelo conto, o qual, em nenhum momento faz

referências à beleza ou à feiura.

SF1 reitera que a vítima de agressões tem de apenas suportar, porque segundo ela

não há outro caminho possível. Talvez, por acreditar na impossibilidade de mudança, opta

por identificar-se com aquelas pessoas que se enquadram num determinado padrão e que por

isso são aceitas. Pode-se inferir que a leitora investe em tal comportamento por acreditar

que esse é o modo de evitar tornar-se alvo. Seria então uma forma de proteger-se, conforme

se verifica no seguinte trecho: “[...] eu não quero me misturar com pessoas feias porque as

pessoas vão dar risada de mim também”. Esse receio de tornar-se alvo é evidenciado

também em outra fala de SF1, após a leitura do conto “O anjo” de Débora Garcia, durante as

oficinas: “[...] Fiquei muito triste porque pode acontecer com qualquer um de nós, isso é

preconceito.”

Percebe-se a preocupação da autora da carta em dizer que se ajusta ao padrão

socialmente aceito e afirmar que exclui as pessoas diferentes. É provável que ela esteja se

referindo ao padrão que se aproxima do branco, uma vez que este, tanto nos aspectos

culturais quanto estéticos, é o mais valorizado. A crença de que existe um único padrão é

resultante de uma formação ideológica que desqualifica as diferenças, transformando-as em

anormalidades sociais e produzindo, assim, práticas intolerantes.

A leitora segue em seu discurso revelando a sua posição conflituosa quanto ao

racismo: reafirma que não é racista, mas sabe que o racismo existe e que a causa dele é a

feiura, conforme o trecho que segue: “tem muita gente feia nesse mundo por isso que tem

77

racismo”. É possível perceber que SF1 sabe que se declarar racista é assumir uma posição

no mínimo desconfortável, por isso usa a feiura como subterfúgio para tentar velar o próprio

preconceito. Em síntese, ela diz que não é racista, apenas não gosta de pessoas feias, mas

em seu discurso está implícito que pessoas negras são feias.

A leitora diz que só há racismo por conta da existência de pessoas feias. A partir

dessa declaração, pode-se inferir que ela responsabiliza Ariano pelo preconceito sofrido e

isenta de culpa aqueles que promoveram a violência física e verbal contra o personagem,

porque essa seria uma atitude natural diante do diferente. Seguindo esse raciocínio, o

discriminado seria o culpado, pelo simples fato de existir e destoar do padrão imposto.

A leitora conclui dizendo que tanto o autor quanto todas as pessoas que escrevem

sobre o negro são racistas. Isso nos remete a outras artimanhas discursivas utilizadas por

pessoas racistas quando estas são denunciadas: tenta-se inverter a situação, atribuindo à

vítima o status de racista consigo mesmo.

No discurso de SF1 atua a ainda operante carga semântica negativa atribuída ao

signo negro e as consequências dos silêncios impostos pelas elites dirigentes sobre as

conflituosas relações raciais no Brasil, as quais vigoraram durante décadas após a abolição.

Silêncios, que no âmbito legal, passam a ser rompidos somente no final da década de 1980,

com a implementação da Lei n. 7437/1985 que considera o racismo crime inafiançável.

O texto de SF1 nos informa que, mesmo quando a voz do sujeito negro ecoa as suas

subjetividades na intenção de descontruir estereótipos, combater o preconceito e a

discriminação racial, conforme ocorrera no conto “Foi Ariano quem fez os caracóis

chorarem”, o seu discurso pode ser recebido de forma distorcida, resultado de construções

pejorativas acerca do negro, que ainda estão cristalizadas na mente de muitos brasileiros.

De: SM2 (19 anos).

Para: Serafina Machado, autora do conto “As máscaras de Dandara”.

Eu queria te dizer que gostei muito do seu conto é uma história que no começo a menina

não gosta de sua aparencia mais no final ela se dar conta que para ser feliz não precisa ser de cor

diferente é só fazer muitas amizades eu queria dizer para Serafina Machado continuar fazendo

contos interesantes como esse fiquei muito feliz quando Dandara caiu na real que ser negra não era

ser diferente dos outros por dentro, só po fora, mas por dentro todos nós somos iguais boa sorte

Serafina Machado, continue escrevendo tão bem assim. Gostei muito, parabéns.

78

Em “As máscaras de Dandara” (CN 32, 2009), a protagonista do conto, Dandara,

tinha pavor de estar com outras pessoas. E, por conta disso, resolveu esconder-se atrás de

máscaras simbólicas. Dentre as várias máscaras usadas por Dandara, havia a de madeira,

que ela usava quando se sentia sozinha; a de papel, quando era excluída; a de desprezo,

quando invejava alguém; a de indiferença, usada diante de olhares inquisidores, entre outras.

No conto, Dandara foi vítima de discriminação e preconceito racial em vários momentos de

sua vida. Ela vivenciou esse conflito desde a exclusão em grupos de trabalho na escola,

embora fosse uma aluna brilhante, até à recusa de um diretor para contratá-la como

professora. O sofrimento de Dandara não acaba, mesmo tendo sido aprovada em concurso

público para o cargo de professora, pois continua sendo excluída no ambiente de trabalho.

Certo dia, Dandara esbarrou em um novo professor da escola, com quem começou a

namorar. No motel, com o namorado, Dandara não sabia que máscara usar, sentiu medo,

refugiou-se no banheiro e, em frente ao espelho começou a se tocar, a se enxergar e a sentir

orgulho do seu corpo e da sua pele negra.

A protagonista do conto é vítima da imposição de um padrão único de beleza, o

branco. Como consequência, Dandara desenvolveu uma baixa autoestima e a rejeição de sua

autoimagem: “No fundo, achava-se feia, pouco atraente, pois era o que sempre diziam sobre

ela; que era feia e tinha cabelo pixains que nunca cresciam.” Contudo, no desenrolar da

narrativa, contrariando os discursos de inferiorização do negro e da negra em suas

dimensões físicas, culturais e intelectuais, Dandara consegue quebrar as correntes invisíveis

que tentavam aprisioná-la e com “negratitude” reconhece sua beleza física e o valor de suas

conquistas: “Olhou-se no espelho. Nua, negra, linda. Admirou-se. Passou as mãos nos

cabelos. Tocou o nariz, as orelhas...Tocou levemente o queixo.[...] Amava-se.” Esse conto

apresenta fases de um processo de construção identitária que vai da introjeção à reversão de

estereótipos cuja consequência foi a afirmação da identidade negra da protagonista.

De acordo com a leitura de SM2 na carta que dirige à autora do conto, Dandara

superou a discriminação racial fazendo amigos. Trata-se de uma possibilidade de leitura que

diverge das perspectivas postas no conto e que se alinha com o ideário que permeia a mente

de muitos brasileiros, referente às estratégias individuais para tentar minimizar os conflitos

raciais: tornar-se popular. Entretanto, esse esforço pessoal, com vistas à aceitação num

grupo, contribui para maximizar os efeitos do racismo, pois os que não aceitam jogar o jogo

da popularidade são responsabilizados pela discriminação que sofrem; e os que aceitam as

regras contribuem para alimentar o mito da democracia racial.

79

O leitor destaca que ser negro é ser diferente apenas por fora. É possível perceber,

pelo tom do discurso, que tal diferença, para SM2, constitui-se num fardo que pode ser

atenuado pelo fato de que, por dentro, “todos somos iguais”. Esse modo de pensar é, por

certo, influenciado pelos discursos de inferiorização propalados acerca do negro desde o

período colonial e ainda operante nos dias de hoje. Tais discursos obtiveram como resultado

a introjeção de estereótipos negativos por muitos negros, dificultando, assim, as ações de

enfrentamento ante as situações de discriminação racial.

No decorrer das oficinas, após a leitura do conto “Minha cor” de Raquel Almeida, o

leitor, antes de redigir a carta, disse que se identificou com a protagonista: “Fiquei feliz,

porque ela não se sentiu mal, ela se orgulhou de ser negra, não ficou triste [...] gostei da

personagem porque ela gosta de ser negra.” Embora SM2 aprove a atitude da protagonista

do conto, cogitou a possibilidade de ela se sentir mal ou triste, e isso também nos dá indícios

da força do imaginário nacional acerca do negro, que ainda o associa a referências

negativas.

As percepções de SM2 distanciam-se do que pretende fomentar o projeto coletivo

Cadernos Negros no leitor afro-brasileiro. Por certo, a mensagem transmitida pelos contos,

referendando construções positivas do negro contraria as ideias que foram introjetadas pelo

leitor ao longo de sua formação.

SM3 (16 anos).

Para: Débora Garcia, autora do conto “O anjo”.

Para Débora Garcia

Querida Débora Garcia Eu achei seu conto muito intrigante você me agradou muito sabe como? eu

não era muito de ler mais depois que eu li seu conto você me mudou muito você me ajudou a

escolher a minha profissão vou ajudar as pessoas vou me tornar bombeiro e salvar os que merecem

e os que não merecem e dar uma segunda chance aos que não dão valor a vida e aos que não dão

valor a vida dos outros você me inspirou muito com seu conto muito obrigada por tudo que você me

encinou bastante o meu nome é..., tenho 16 anos, vou faser dezessete esse ano ano passado não

tinha visto nem o calendario quanto mais lê, não tinha lido a dois anos esse ano mudou minha vida

você mudou minha vida e agora eu dedico maior parte do meu tempo a leitura seu trabalho é muito

bom você é igual ao anjo para mim assim como o anjo que ajudou a escolher o destino de Inácio

você me ajudou a escolher o meu muinto obrigada por tudo meu anjo. Beijos e sempre bom

conhecer pessoas como você.

80

Em poucas palavras, o conto “O anjo” (CN 34, 2011) apresenta a história de Inácio,

um bombeiro que, desde criança era fascinado pelo fogo. Certo dia em que estava de

plantão no quartel, ao assistir à propaganda do filme O Auto de Natal, lembrou-se de um

episódio que aconteceu na infância, quando na escola, a sua professora resolveu montar uma

peça sobre esse mesmo filme. Inácio pediu à professora para representar o papel de anjo.

Ela tentou ignorar o pedido, mas após muita insistência diz que ele não pode ser o anjo

porque o anjo é branco e Inácio é negro. Sofrendo a gozação da turma, Inácio sai correndo e

coloca fogo em todas as lixeiras da escola. A mãe de Inácio vai buscá-lo na escola, contou-

lhe a história de suas origens e do povo negro e concluiu dizendo que pela lei todos nós

somos iguais, mas que na prática é preciso saber como lidar com as situações em que

ocorrem preconceito e discriminação racial. Sendo necessário, então, aprender, a jogar o

jogo. E jogando o jogo, Inácio tornou-se bombeiro, o anjo da vida de muitos.

A narrativa incita questionamentos quanto à representação de anjos incutida no

imaginário ocidental, naturalizada na cor branca, e discute o acolhimento e propagação de

ideologias racistas no contexto escolar, o que contribui para a manutenção da ideia de que

vivemos em harmonia racial. Está subjacente ao enredo uma reflexão acerca de como se

constrói e funciona a engenharia ideológica brasileira, que tenta manter inalteradas as

posições hierarquizadas previamente estabelecidas e que historicamente favorecem o

segmento branco da sociedade brasileira.

Embora a questão central no conto seja a superação da discriminação racial, SM3

deteve-se na capacidade do conto em despertar o seu hábito de leitura e na escolha da

profissão feita pelo protagonista, que o inspira em sua escolha também. Trata-se de uma

recepção inesperada, se considerarmos somente o que pretendíamos com as oficinas de

leitura e produção textual: analisar as percepções dos estudantes diante de textos que os

convocam a identidades negras positivas. Entretanto, como cada leitor lê a seu modo,

focando o que lhe é relevante no instante da leitura, é natural que SM3, um estudante com

quase 17 anos, cursando o Ensino Médio, tenha feito a sua leitura na perspectiva das suas

inquietações quanto ao futuro profissional.

Hans Robert Jauss (1994, p. 29) considera que o controle da recepção exercido por

uma obra é parcial; contudo, há na obra uma série de elementos que “predispõe seu público

para recebê-la de uma maneira bastante definida” e “conduz o leitor a determinada postura

emocional”, antecipando um “horizonte geral da compreensão vinculada”. Na carta

analisada, percebe-se que o leitor não foi envolvido pela teia de elementos que o conduziria

para a questão central do conto, entretanto, as outras temáticas que tangenciam a narrativa

81

contemplaram expectativas específicas desse leitor. Essa recepção nos direciona também

para as reflexões de Umberto Eco (1986) sobre a construção do “leitor-modelo”. De acordo

com Eco, todo autor de um texto constrói, por meio de estratégias textuais, um “leitor-

modelo”, uma projeção ideal. No entanto, tal projeção não condiz necessariamente com o

leitor “real”. Este último pode perfeitamente desviar-se da proposta idealizada pelo autor.

No decorrer das oficinas, SM3 emitiu a sua opinião acerca de alguns contos, a saber:

“Eu gostei de Ariano porque ele venceu o preconceito e mostrou a todos a nossa cultura”,

após a leitura de “Foi Ariano quem fez os caracóis chorarem” e “Dandara foi tola, eu no

lugar dela não fugia da minha própria identidade, eu iria de cabeça erguida para a escola e

não ia me importar com os comentários, seguia em frente [...] Ela perdeu parte da infância e

da adolescência se escondendo atrás de máscaras, sendo tão inteligente, teve uma atitude tão

tola.” Nestas últimas falas, ele se refere ao conto “As máscaras de Dandara”.

Tomando por base tais depoimentos, percebe-se a identificação do leitor como

pertencente ao mesmo segmento social de Ariano, o negro, quando diz que tal personagem

mostrou a todos “a nossa cultura”, e a reprovação do comportamento daqueles que são

negros, mas não assumem. Contudo, ao sugerir que Dandara não se importe com os

comentários, SM3 incentiva a não reação frente às situações de discriminação racial. E, a

não reação é uma das formas de fortalecer o racismo no Brasil, visto que quem comete tal

crime escora-se no silêncio da vítima para dar continuidade às suas práticas

discriminatórias. Nesse sentido, o posicionamento de SM3 passa ao largo do que alguns

contos lidos pretendem incitar: o enfrentamento ante as situações de discriminação racial. E

é isso que ocorre nesse desvio da temática racial para a temática da escolha profissional em

sua leitura do conto “O anjo”.

De: SF4 (15 anos).

Para: Inácio, personagem do conto “O anjo” de Débora Garcia.

De:...

Para: O Anjo:

Gostei muito da sua atitude de vida mesmo que você não tenha feito nada de errado, tirando

fogo na lata de lixo. O negro sofre preconceito até hoje mas não so os negros tem uma coisa pra ser

motivo de riso. Sou meio gordinha e sofro muito BULYING. Fico muito triste as vezes vou pra outro

lugar e fico mim sentindo escluída.

82

Vou para casa chorando e fico mim perguntando o que eu tenho de diferente dos outros.

mas depois, eu penso, nem todos são inguais, então parei de olhar para os outros e passar a mim

dar valor. eu não ligo mas porque eu nascir assim vou morrer do jeito que eu sou.

Gostei muito da sua atitude. foi muito legal e não achei graça nem uma quando seus amigos

riram de você eu gosto muito da galinha pintadinha. muita gente manga de mim, também, mas eu

não ligo mais. Mim senti como você quando zombaram da sua cara, isso também acontece comigo,

é sempre aquele refrão.

gorda, balofa, baleia asacina, minha vez vai chegar e não e ficar zombando de ninguém

que vai adiantar. Talvez eu possa conseguir o que eu quero.

Bjj...

SF4 aprova a atitude de reação de Inácio, protagonista do conto, diante da situação

de discriminação racial e aproveita para relatar que também é alvo de preconceito por ser

“gordinha” e por gostar da “galinha pitadinha”. Porém, ela adota uma postura diferente da

de Inácio, pois opta por fazer de conta que tais situações não estão acontecendo. Silenciar

diante do conflito é uma estratégia individual de sobrevivência, na tentativa de ser aceito ou

menos rejeitado. No entanto, tal atitude, apenas mitiga a tensão gerada pelo conflito,

impedindo ações de enfrentamento individual ou coletivo.

A estudante lê o conto na clave dos seus conflitos pessoais e aproveita a

oportunidade para denunciar o bullying que sofre porque seu corpo diverge do padrão de

beleza midiático e por gostar da Galinha Pintadinha27

. Como A Galinha Pintadinha faz

parte de uma coleção de DVDs com videoclipes de cantigas infantis do cancioneiro popular

brasileiro, pode-se inferir que a autora da carta, uma adolescente com 15 anos, é

discriminada porque a sua preferência não está de acordo com o que foi convencionado para

a sua idade, uma vez que essa coleção destina-se às crianças e não aos adolescentes.

A recepção do conto “O anjo”, flagrada nessa carta, leva-nos a refletir acerca da

função social da literatura que, segundo Jauss (2004, p. 50), “se manifesta na plenitude de

suas possibilidades quando a experiência literária do leitor adentra o horizonte de

expectativa de sua vida prática, pré-formando seu entendimento do mundo e, assim,

retroagindo sobre seu comportamento social”. Embora o conto não tenha direcionado a

atenção da leitora no que se refere à afirmação da identidade negra, motivou-a pensar na

superação do preconceito e, ainda que ela esteja insegura, a sentir que pode conseguir o que

27 A coleção é composta pelos os seguintes títulos, A galinha Pintadinha e sua turma (2009), A galinha

pintadinha 1 e 2 respectivamente (2010) e (2012) criada por Juliano Prado e Marcos Lupori.

83

deseja, assim como o personagem Inácio, que aprendeu a jogar o jogo e por fim conseguiu

tornar-se “anjo”.

Assim, desviando das questões centrais apontadas no conto, que, a priori, busca

contemplar positivamente os elementos da etnorracialidade negra e denunciar o mito da

democracia racial, a estudante estabelece um diálogo com o personagem Inácio para falar

das questões que a afligem naquele momento e que interferem na constituição de suas outras

identidades.

O posicionamento dessa leitora e dos outros incluídos nessa categoria, de um modo

geral, reflete um certo distanciamento da construção identitária coletiva de Tijuaçu,

indicando-nos que o fato de pertencerem a uma comunidade negra e assumidamente

quilombola, não quer dizer que, necessariamente, tenham aderido às imagens afirmativas

cultivadas e expressadas pelo grupo. Com relação ao cumprimento da função social

pretendida pelos CN, notamos, a partir das “respostas” desse grupo de leitores, as

dificuldades em se desestabilizar ideários difundidos pelas classes dominantes, que, na

maioria das vezes, são introjetados pelos demais segmentos sociais. Em síntese, os

discursos presentes nas cartas alocadas nessa categoria, ainda que de modos diferentes,

sabotaram as intenções centrais evidenciadas em cada conto, tanto em função do

aprisionamento em ideologias racistas, quanto pelo direcionamento das leituras para

questões individuais desses estudantes, as quais não dizem respeito à identidade negra.

4.2. LEITORES EM CONTRADIÇÃO

Diferente, em alguns aspectos, das cartas dos leitores sabotadores, as cartas situadas

nessa categoria, de um modo geral, enfatizam as discussões centrais trazidas nos contos e

evidenciam o desejo dos estudantes de serem solidários à abordagem positiva das questões

que dizem respeito ao segmento social negro proposta pelos CN. Porém, é possível perceber

que tais estudantes, ainda influenciados por ideologias racistas, apresentam em seus textos

uma relação ambígua quanto à imagem do negro e das suas referências. Em alguns

momentos, essas cartas reproduzem ideários que tencionam neutralizar as ações de

enfrentamento dos conflitos etnorraciais. Em função disso, este grupo foi nomeado de

leitores em contradição.

84

De: SF5 (14 anos).

Para: Cristiane Sobral, autora do conto “O tapete voador”.

Cristiane Sobral, adorei seu conto, pois é muito interessante.

Você falou bonito, melhor seria se não tivesse racismo. Você mostrou um ponto interessante.

O presidente negro que não queria que a personagem do texto fosse negra também.

ele queria de todo jeito que ela fosse branca e não se olhava.

Pois você poderia mudar algumas coisas tipo parar de racismo com os negros.

Vou te contar u a stór a so re u “negro e u ranco”

Um dia no colégio a maioria dos Alunos era tudo negro e só um branco no meio de todos.

No meio de tantos negros entre tantos negros só um que tinha preconceito com o branco.

ele dizia que estava no direito dele pois os brancos não gostavam de negro e ele também não ia

gostar de branco, passaram-se dias, meses...

Ele foi se aproximando do menino branco e se tornaram melhores amigos.

Negros e brancos são iguais só muda a cor e nem por isso precisamos ser preconceituosos porque

ninguém é melhor que ninguém.

“Negros e rancos so os to os r ãos”

Eu sou ..., continue escrevendo seus contos, pois é muito legal e interessante.

Beijos...

Em síntese, o conto “O tapete voador” (CN 34, 2011) traz a história de uma jovem

negra chamada Bárbara. No conto, a protagonista é convocada para uma conversa com o

Presidente da empresa em que trabalha, alguns dias depois de ter-lhe enviado uma carta

solicitando apoio para começar um curso de pós-graduação. Ao adentrar no gabinete,

Bárbara fica surpresa porque o Presidente é negro. Após alguns minutos, a surpresa

transforma-se em decepção. De início, o Presidente elogia a competência de Bárbara e diz

que ela já chegou longe, em seguida sugere que ela negue a sua negritude se quiser

continuar crescendo na empresa. Bárbara depois de ouvir essas declarações, resoluta, diz

que é negra ao acordar, dormir, no trabalho e que jamais pode deixar de ser quem ela é. Por

fim, Bárbara se demite da empresa.

Essa narrativa está centrada na tensão entre a protagonista negra, com sua autoestima

e autoimagem positivadas, e o presidente da empresa em que trabalha, aprisionado na

ideologia do embranquecimento e do mito da democracia racial. A tensão aumenta quando o

presidente, após tentar desqualificar as características fenotípicas do segmento negro,

oferece à Barbara um lenço “irresistivelmente branco”, o qual conforme pontua

85

ironicamente o narrador, metaforiza uma chance irrecusável de crescimento na empresa

desde que ela negue a sua negritude. Bárbara recusa o lenço, mesmo sabendo que isso

significa enfrentar maiores dificuldades de ascensão social. Com essa atitude, a protagonista

se posiciona na contracorrente de muitos mestiços brasileiros que, ao galgarem ou para

galgarem melhores condições sociais tentam encaixar-se no segmento branco.

Após a leitura desse conto durante as oficinas, a autora da carta emitiu o seguinte

relato: “Um dia de segunda-feira, uma aluna estava saindo do colégio quando uma menina

chamou de negra, ela saiu chorando, não por sua cor, mas pelo jeito que a menina falou”.

Esse relato nos direciona para uma questão relevante: o problema não é necessariamente a

referência “a cor” e sim ao seu histórico de desvalorização construído socialmente. Assim,

a depender do tom de voz da pessoa que enuncia a palavra “negro”, faz emergir toda uma

carga semântica que funciona para ofender o outro. E a não reação da vítima pode estar

associada à introjeção de estereótipos negativos acerca do seu segmento etnorracial.

Não obstante, se as referências simbólicas que fazem parte da construção social do

negro estiverem positivadas para o próprio sujeito, é provável que a consequência seja a

insurgência frente às situações de discriminação racial, conforme ocorrera com a

personagem do conto, Bárbara.

Em sua carta, a leitora deixa clara a sua reprovação com relação ao comportamento

do presidente da empresa, personagem do conto, que não se assume negro. No entanto, a

expressão que ela usa para criticá-lo “e não se olhava”, nos faz pensar sobre os contextos de

fala em que tal expressão é utilizada: em geral no sentido irônico, com uma carga semântica

pejorativa. Embora SF5 se posicione contra o racismo, a força do imaginário que associa o

negro à negatividade atua em seu inconsciente, denunciando, assim, uma contradição.

Em seguida, a leitora conta uma história em que ocorre uma inversão de papeis: o

negro, em um contexto de maioria negra, discrimina o branco. A exclusão praticada pelo

negro, personagem da narrativa de SF5, indica a sua vontade de vingança, conforme é

possível verificar no trecho que se segue, “ele dizia que estava no direito dele pois os

brancos não gostavam de negro e ele também não ia gostar de branco”. Tal narrativa aponta

para a complexidade da convivência entre negros e negros, brancos e negros, em um

contexto de maioria negra. Do seu lugar de fala, a estudante atribui ao negro a função de

agenciar a igualdade na convivência com o branco e assim evitar conflitos.

A construção da história relatada pela autora da carta foi motivada pela leitura do

conto, evidenciando que a recepção de textos literários é um lugar de construção de sentidos

e de inventividade. Em sua carta, ainda que a narrativa seja fictícia, a estudante dá notícias

86

sobre a existência de conflitos raciais diferenciados daqueles apresentados nos contos lidos

no decorrer das oficinas.

A narrativa da estudante termina bem, porque o personagem negro aceita tratar o

branco como igual, tornando-se amigos. Houve, então, a diluição dos conflitos. Entretanto,

ampliando o contexto da narrativa para os demais espaços da sociedade brasileira, não

podemos perder de vista o histórico de dominação branca que desqualificou as referências

do segmento negro e tentou mantê-lo em posições subalternas. Nessa perspectiva, a inversão

de papeis sugere que os negros esqueçam os tratamentos desiguais, aos quais foram e ainda

são submetidos na contemporaneidade, em nome da convivência harmônica, o que serve

para evitar ações de enfrentamento, coadunando com as pretensões das classes dominantes.

Em síntese, o discurso da autora da carta, ainda que bem intencionado, desejando o

fim dos conflitos etnorraciais, é relativamente contraditório porque ainda reproduz as

ideologias das classes dominantes, que, na teoria, defendem a igualdade entre todos os

sujeitos, mas na prática dificultam o acesso aos bens materiais, simbólicos e a ascensão de

determinados grupos às instâncias de poder, mantendo assim as posições hierarquizantes

inalteradas.

De: SM6 (15 anos).

Para: Cristiane Sobral, autora do conto “Cauterização”.

Para a autora

O conto que eu li foi muito legal porque devemos nos aceitar da maneira que nos somos e

não do jeito que queremos ser.

Durante a minha leitura eu me senti um pouco magoado porque a personagem do conto

sentia vergonha da sua aparencia e para mim ser negro não é defeito porque somos todos inguais e

não devemos se vergonhar do que somos não importa ser negro, branco, feio ou bonito o que

importa e que todos nos temos sentimentos.

Eu gostei muito do final do conto por que no final a personagem é feliz do jeito que ela é

não do jeito que os outros querem que seja.

Nunca devemos jugar ninguém. Principalmente pela sua cor, porque ninguem tem culpa de

nascer diferente. E um dia todos nós seremos julgados.

Ass:...

Em “Cauterização” (CN 32, 2009), Socorro, a protagonista, tentava esmaecer os

traços da sua raça: comia pouco para não engordar e ressaltar as curvas acentuadas do seu

87

corpo, características do seu biotipo negroide. Usava maquilagem para afunilar os traços de

seu rosto e cauterizava os cabelos. Ela também evitava tudo que pudesse apontar a sua

origem cultural, por exemplo, frequentar rodas de samba, cerimônias religiosas afro-

brasileiras e vestir-se de branco dia de sexta-feira. Certo dia, enquanto dirigia ouvindo

música clássica, após ter alisado o cabelo, Socorro foi “fechada” por um motorista de ônibus

que, em tom de provocação, a chamou de negona e perguntou onde ela tinha comprado a

carteira. A expressão “negona” provocou uma revolução na mente de Socorro, que,

transtornada, tirou da bolsa uma tesoura e começou a cortar os cabelos cauterizados. A

chuva que caia tratou de levar por água abaixo o restante do disfarce. Foi quando Socorro

sentiu a sensação de nascimento. Jorge, o motorista negro, desceu do ônibus, os dois se

olharam e se beijaram apaixonadamente, num típico final feliz.

Assim como a protagonista de “As máscaras de Dandara”, de Serafina Machado, a

personagem Socorro foi induzida a acreditar que o belo se restringe somente às

características fenotípicas do branco e que para ser socialmente aceita era necessário rejeitar

as referências simbólicas relacionadas ao negro. O enredo apresentado no conto reflete

sobre a atitude de muitas mulheres negras brasileiras, que, influenciadas pelo o ideal de

beleza propagado pela TV, dentre outros meios, esmaecem os traços de sua negritude, na

tentativa de aproximar-se das características socialmente mais valorizadas, as do branco. O

desfecho do conto aponta para a afirmação da estética negra, com vistas a desarticular o

ideário de um padrão único.

SM6 inicia a sua carta fazendo menção ao comportamento da protagonista do conto,

que é negra mas que não se aceitava, e isso o incomodou. Em seguida identifica-se como

sujeito negro, porém, essa não parece ser uma questão bem resolvida para o leitor, conforme

podemos inferir no seguinte trecho: “devemos nos aceitar da maneira que nos somos e não

do jeito que queremos ser”. Considerando que estamos enredados por representações as

quais desqualificam a estética e cultura negra e prestigiam as que referendam o branco,

pode-se levantar a hipótese que SM6 está se referindo ao desejo de fazer parte do grupo que

é socialmente mais valorizado. Uma vez que este desejo não pode se realizar, devemos

então nos contentar e aceitar o que somos.

Em um dos momentos das oficinas, após a leitura do conto “O anjo”, esse leitor

relatou o seguinte: “[...] O menino sofreu preconceito por ser negro [...] fiquei muito

magoado com a professora [...] Onde eu moro tem umas pessoas que são negras e muitos

ficam dando piadinha, só por causa da cor.”. Tal relato ratifica a relação conflituosa de SM6

com relação a sua identidade, pois, ao mesmo tempo em que na carta, ele afirma ser negro,

88

aqui, em sua fala na oficina, o negro é o outro – as outras pessoas. O estudante revela

também que em Tijuaçu, há conflitos entre os habitantes que se consideram brancos e os

que são negros e as dificuldades referentes à construção de suas identidades.

Destacam-se também na carta as seguintes declarações “ser negro não é defeito [...]

o que importa é que todos nós temos sentimentos”. Pode-se inferir que SM6 percebe que há

um tratamento desigual em função da cor e o reprova. Entretanto, acaba revelando que está

aprisionado no ideário da superioridade do branco: “[...] ninguém tem culpa de nascer

diferente.” A diferença (ser negro) é vista como algo negativo, associada à culpa. Embora

SM6 tenha ficado feliz com o desfecho do conto, a sua carta e também o depoimento

referente ao conto “O anjo” revelam uma atitude de tristeza e de relativo conformismo

quanto à desvalorização dos elementos que constituem a identidade negra.

De: SF7 (17 anos).

Para: Raquel Almeida, autora do conto “Minha cor”.

querida Raquel Almeida lir seu conto longo no início eu não gostei de algumas partes porque aviar

muito preconseito.

Mais longo foi chegado as partes emocionantes da historia eu fiquei muito feliz me surpriendeu com

as atitudes da protagonista, porque ela foi em busca de sua verdadeira origem ela queria Realmente

saber qual era sua cor e sua história. então ela não se abateu com as coisas que ela descobriu au

contrário ela foi à busca dos seus objetivos, atrás dos seus direitos que um dia foram negados,

injustamente aos nossos antepassados que foi negado a vó dela.

Oi eu sou..., sou negra, tenho orgulho da minha cor na verdade não ligo para esse negócio de cor.

Pra mim, branco, negro ou pardo, não faz diferencia de nada somos todos inguais somos seres

humanos é isso que importa e sempre vivo correndo atrais dos meus sonhos tem um sonho um pouco

impossível ser atriz é um pouco difícil de Realizar mas nunca vou desistir dele tenho fé em Deus...

Bay, bay beijos.

Em “Minha cor” (CN 30, 2007), a narradora-personagem vai solicitar a emissão da

carteira de identidade e observa que na sua certidão de nascimento está escrito que sua cor é

parda. Ela se questiona e questiona os seus pais, pois, no conto, diz saber quais são as outras

cores, mas desconhece aquela. Apenas no dia seguinte, ao ouvir as histórias de sua avó

sobre a sua ancestralidade, ela se identifica, orgulhando-se de sua negritude e convicta

preenche o formulário confirmando a sua cor como negra. No texto, destaca-se a seguinte

fala da protagonista:

89

Me emocionei com tudo que ouvi da minha avó. Logo me identifiquei, vi

em seus olhos sofridos que ela jamais sentiu vergonha de sua negritude,

assim como meu pai. Mais tarde pesquisei por curiosidade o que realmente

é ser pardo.

Pardo = Branco sujo! Versão atualizada do Aurélio: Mistura de branco e

preto. MULA-TO!

[...] Não sou suja! Nem mula! Sou afro! Sou negra! Da pele preta! (CN 30,

2007, p. 189)

A afirmação da identidade da protagonista de “Minha cor” se constrói ao longo do

desenvolvimento do enredo. A inquietação acerca da sua cor a leva ao encontro das

narrativas de seus ancestrais relatadas pela sua avó, que são fundamentais para a sua

identificação com o segmento negro. Esse conto toca, dentre outras questões, em um dos

fatores que enfraquecem os laços de solidariedade da raça negra – a ideologia cromática,

conforme definição de Clóvis Moura –, em que mestiço, em decorrência da discriminação

racial sofrida, tenta assumir apenas a mestiçagem branca. Na contracorrente dessa ideologia,

a narradora-personagem assume a sua mestiçagem negra. Está evidente na narrativa também

a intenção de desconstrução de estereótipos relacionados ao negro brasileiro, dentre eles, a

sua conexão obrigatória com o samba.

No universo dos contos trabalhados, “Minha cor” foi escolhido pela maioria dos

estudantes para a escritura da carta, confirmando a empolgação demonstrada quando da

leitura e discussão dessa narrativa no decorrer das oficinas. É possível que tal seleção tenha

sido motivada pelo fato de que a protagonista, em busca da afirmação de suas identidades,

chega à conclusão de que é negra e assume sem hesitar. Tal desfecho satisfez as

expectativas dos estudantes, certamente porque a cor negra, evidenciada tanto em seus

fenótipos quanto em boa parte dos moradores de Tijuaçu, foi referendada positivamente.

Ademais, no conto, a protagonista, após conseguir a emissão de sua carteira de identidade,

inscreveu-se para o vestibular, investindo na realização de um sonho que se estende à

maioria dos sujeitos desta pesquisa: ingressar numa faculdade, conforme fora relatado por

eles durante as oficinas.

Na carta, a leitora relata que, de início, não gostou da narrativa por conta das

situações em que houve preconceito. Para além do mal-estar diante das situações

desagradáveis, tal declaração nos faz refletir sobre o ainda operante mito da democracia

racial no Brasil, que agencia “o fazer de conta” que o preconceito racial não existe. Desse

modo, o racismo quando é denunciado, como ocorreu no conto, pode causar desconforto ao

leitor que possivelmente alimenta uma vida social sem conflitos etnorraciais.

90

Despertou a atenção e satisfez a leitora o fato de a protagonista estar em busca de sua

identidade, destacando-se, em sua carta, os elementos crucias para a positivação da

identidade etnorracial: origem, cor e história. A leitora orgulha-se do comportamento da

personagem e inclui-se no mesmo grupo etnorracial, conforme o trecho que se segue: “[...]

atrás dos seus direitos que um dia foram negados injustamente aos nossos antepassados”.

Na carta, destaca-se, porém, o seguinte trecho: “ela não se abateu com as coisas que

ela descobriu”. Essa declaração leva-nos à seguinte indagação: por que a protagonista se

abateria? Não é preciso muito esforço para chegarmos a uma resposta possível. Como certa

historiografia brasileira, por muito tempo, negligenciou ou tratou de forma inadequada as

referências positivas do negro, é possível que SF7 tenha acionado em sua memória somente

os episódios de dor e humilhação, uma vez que são esses que têm alimentado o imaginário

nacional.

Na carta, SF7 assume a sua cor, comungando com a atitude da protagonista do conto

“Eu sou..., sou negra, tenho orgulho da minha cor”, contudo, a estudante se contradiz

quando afirma: “[...] não ligo para esse negócio de cor”. Vale ressaltar que a identificação

com a protagonista aconteceu exatamente porque ela assume a sua cor e sua origem,

conforme podemos verificar também neste depoimento da estudante enunciado após a

leitura do conto no decorrer das oficinas: “Eu me identifiquei com a personagem porque não

podemos fugir da nossa origem, mesmo com o preconceito que a gente sofre.” No entanto,

parece que para SF7 é mais confortável não pensar que existem tratamentos desiguais por

conta da cor.

Embora os seres humanos sejam iguais do ponto de vista biológico, as diferenças

construídas num contexto sociohistórico e cultural funcionam como critérios para inclusão

ou exclusão. Um dos objetivos dos escritores dos CN é denunciar os tratamentos desiguais

que ocorrem na sociedade brasileira, em virtude do pertencimento etnorracial, com vistas a

incitar os segmentos marginalizados a desarticular o complexo mecanismo social que

agencia a exclusão.

Na carta, a leitora reivindica a humanidade para todas as pessoas,

independentemente da cor. Afirmar a humanidade para o negro é uma das formas de

combater os resquícios de coisificação gestados no período colonial que ainda reverberam

na atualidade. Mas, considerando os demais indícios deixados na carta, pode-se inferir que

SF7 revela um processo de construção identitária conflituoso, pois, embora, em seu discurso

esteja clara a sua adesão à mensagem transmitida pelo conto, ela busca conforto na ilusão de

91

que a discriminação pela cor negra pode ser facilmente superada em nome de uma suposta

humanidade ideal.

De: SF8 (16 anos).

Para: Raquel Almeida, autora do conto “Minha cor”.

Querida, Raquel Almeida eu lin um seu conto e gostei muito você se espiro muito você estar de

parabéns eu me senti após a leitura uma pessoa diferente por que está falando da nossa cor nos

temos que aceitar ela da cor que ela é na hora não passou nada na minha cabeça mas pecei, e pecei

e encherguei que se trata do que a jente somos negro, branco ou pardo não importa a cor que sou

só importa que sou feliz não gostei muito de algumas partes do conto por que só fala de jente negro

e por que não fala de branco e isso que não gostei muito nada contra seu conto sua espiração ao

coloca um título do texto foi muito bom por que tem tudo a ver com um texto.

Eu acho importante para dizer a Autora e que ela continue com esse sucesso dela, e parabéns pelo

conto foi muito bom quem não leu perdeu e quem leu garanto que gostou bastante.

de: ...

Percebe-se, nessa carta, o posicionamento ambíguo de SF8 com relação à cor, uma

vez que ela se identifica com o conto exatamente pela temática abordada, e, ao mesmo

tempo diz que isso não é importante, porque ela é feliz. Tendo em vista esse

posicionamento, a pergunta que se delineia é: se para SF8 a cor não importa, por que ela se

incomodou exatamente com a ausência de personagens brancas na narrativa?

Com base nas reflexões realizadas na segunda seção deste estudo, pode-se afirmar

que a ausência de personagens brancos incomoda porque na maioria das obras que

compõem a tradição literária ocidental tais personagens estão sempre presentes e ocupam

geralmente posições centrais nas narrativas. Já os personagens negros, quando aparecem,

são como secundárias ou com pouco destaque no desenrolar dos enredos. Diante dessa

“realidade” construída pela literatura instituída, é pouco provável que o leitor se

questionasse sobre a ausência de personagens negros, se fosse esse o caso no referido conto.

Dito de outro modo, a autora da carta não gostou porque o conto só fala de negros e

não de brancos, certamente porque não é comum para ela o contato com textos que

privilegiem a representação de personagens negros, e isso causou um estranhamento. Nas

palavras de Regina Dalcastagné (2012, p.33): “Esse estranhamento tem a ver com um novo

enquadramento das situações. Novo, justamente, porque não combina com aquilo que

estamos acostumados a ver, preparados para ver”.

92

De fato, o olhar do brasileiro acostumou-se a ver o negro, tanto dentro do contexto

literário quanto fora, principalmente em posições subalternas, naturalizadas pelos vários

discursos sustentados por um aparato político/ideológico que pretende manter inalterado o

status da elite. No âmbito da cultura popular, o samba, por exemplo, tornou-se uma das

principais manifestações culturais no Brasil, sendo esse um dos poucos espaços prestigiados

que são destinados ao negro. Por outro lado, isso corroborou a construção de mais

estereótipos acerca do negro e da negra, cujas imagens são fixadas em atividades que são

gerenciadas pelo corpo e pela emoção, em detrimento do labor intelectual e da razão,

instâncias socialmente mais valorizadas.

Com relação a essa manifestação cultural “naturalmente” destinada aos negros, as

falas emitidas por SF8, no decorrer das oficinas, após a leitura do conto “Foi Ariano quem

fez os caracóis chorarem”, de Ademiro Alves, revelam que ela está atenta ao fato de que os

conhecimentos do sujeito negro não se restringem ao samba: “Eu gostei porque Ariano não

tinha vergonha do que ele era [...] Achavam que ele só sabia samba, porque era negro.”

Nessas falas, a leitora apresenta o porquê de sua identificação com o personagem Ariano e

enfatiza positivamente o fato de o personagem ser negro. Tais registros evidenciam o

posicionamento contraditório de SF8 diante das narrativas dos CN, pois, na carta, ela tenta

demonstrar que não se importa com a cor da pele.

No que se refere às expectativas dos leitores em geral quanto às obras literárias,

pode-se inferir que estas serão reorientadas à medida que o público tenha acesso a textos

que prestigiam personagens brancas e negras na mesma proporção e com múltiplas

possibilidades de representação. Entretanto, como a literatura, a seu modo, reflete as

vivências de um determinado grupo, a reorientação somente será concretizada se o acesso às

posições de prestígios no corpo social for democratizado e visibilizado, de modo que o

sujeito contemple, seja na perspectiva do seu cotidiano seja nas das obras literárias, a

presença positivada do negro.

Em sua carta, SF8 apontou como positivo o fato de o título do conto ter

correspondido a sua expectativa quanto ao conteúdo. Assim, nos faz refletir sobre uma das

estratégias de controle parcial pretendido pelos escritores quanto à recepção das obras: a

escolha do título e seu papel em incitar hipóteses acerca do texto. Sobre essa interação entre

obra literária e o leitor, Hans Robert Jauss (2004, p.29) afirma que a obra “não se apresenta

como novidade absoluta num espaço vazio, mas, por intermédio de avisos, sinais visíveis e

invisíveis, traços familiares ou indicações implícitas, predispõe seu público para recebê-la

93

de uma maneira bastante definida”. SF8 termina a sua carta prestigiando a narrativa e a

recomenda para outros leitores, apesar das ressalvas iniciais.

Nas cartas dos leitores em contradição, foi possível perceber que houve

identificação com os contos lidos; entretanto, analisando as entrelinhas dos enunciados,

constatou-se que ainda estão influenciados pelo ideário de brancura, do mito da democracia

racial e dos discursos de inferiorização dos elementos que compõem a etnorracialidade

negra. Em vista disso, diante dos textos literários que rompem com esses ideários e propõem

identidades negras positivas, os leitores dessa categoria se posicionaram de modo

ambivalente, pois, ao tempo em que aderem às propostas dos contos, as suas percepções são

afetadas por representações cristalizadas no inconsciente coletivo brasileiro, sedimentado

em mitos e preconceitos acerca do negro. Nesse aspecto, tais estudantes apresentam

posicionamentos semelhantes aos que foram demonstrados pelos leitores sabotadores.

4.3 LEITORES SOLIDÁRIOS

Divergindo da posição de sabotador ou em contradição dos leitores das duas

primeiras categorias, verifica-se nas cartas que se seguem a identificação dos estudantes

diante da convocação a identidades negras afirmativas proposta pelos contos, bem como o

desejo de cooperar com essas construções. São por isso denominados solidários. A

nomenclatura dessa categoria é inspirada no pensamento de Cuti (2010b) sobre a

possibilidade de a recepção solidária por parte do público afro-brasileiro ter motivado a

produção de escritores negros. Os discursos presentes nessas cartas alinham-se com o que

pretende fomentar no leitor o projeto coletivo Cadernos Negros.

De: SF9 (14 anos).

Para: Raquel Almeida, autora do conto “Minha cor”.

Raquel Almeida, minha cor foi um conto ecepsional por falar da cor de todo mundo por levar o

conto minha cor para o mundo inteiro, por levar a cultura negra e Afrobrasileira para todas as

pessoas e porque fala do negro, do branco, do pardo e do trabalho escravo.

Raquel Almeida eu quero falar de alguma experiência so que não vive nenhuma estória. Por que eu

queria falar mais de mim.

94

E que seu conto foi lindo demais e eu me identifiquei com o conto eu gostei da parte que ela que não

é parda nem branca que ela é afro sou negra, sou da pela preta e que ela não era mulata nem parda

nem branca suja eu me identifiquei demais com a personagem e depois que ela se assumiu, eu fiquei

imprecionada com tanta certesa e força de vontade. se ela se assumice parda, perderia a sua

dignidade.

Em sua carta, SF9 deixa evidente a sua satisfação com relação ao conto porque este

abarca e divulga elementos que são essenciais para a afirmação do segmento negro: cor,

cultura e histórias. Pelo entusiasmo demostrado pela leitora, pode-se inferir que o contato

com textos que cumpram essa função não é recorrente, contrariando o que se espera após

dez anos da implementação da Lei n.10.639/03, constatação ainda mais grave considerando

que os sujeitos dessa pesquisa fazem parte de uma comunidade reconhecida como

quilombola desde o ano 2000.

Percebe-se também que a leitora entende que é difícil assumir-se negra “eu fiquei

imprecionada com tanta certesa e força de vontade”. Essa declaração enfática nos indica que

mesmo no contexto em que SF9 está inserida talvez não seja tão comum tal atitude, caso

fosse, não provocaria impacto.

No trecho “se ela se assumice parda, perderia a sua dignidade.”, a leitora ratifica a

importância do assumir-se negra, coadunando com a mensagem transmitida pelo conto, e

reprova a atitude de negação da cor. Para SF9, a valoração do sujeito negro está atrelada ao

assumir-se negro. O relato que se segue, emitido pela leitora durante as oficinas, referindo-

se à Socorro, protagonista do conto “O tapete voador”, de Cristiane Sobral, confirma a sua

opinião: “Ela não deveria esconder quem ela realmente era. Ela não deveria ter vergonha da

sua cor e suas origens”. Tal opinião alinha-se com a proposta dos Cadernos Negros: a

positivação da identidade etnorracial, tendo como um dos baluartes a exaltação da cor.

O conto suscitou na leitora o desejo de falar de si, ainda que não tenha dado vazão a

esse desejo, conforme o trecho que se segue: “Raquel Almeida eu quero falar de alguma

experiência so que não vive nenhuma estória. Por que eu queria falar mais de mim”. Tal

declaração enfatiza a sua posição de leitora solidária diante da narrativa, revelando a

vontade de ampliar o diálogo com a autora a partir das suas próprias experiências.

De: SF10 (13 anos).

Para: Raquel Almeida, autora do conto “Minha cor”.

95

Querida Raquel de Almeida eu me chamo... tenho 13 anos foi um prazer ter lido o texto minha cor,

me fez ver, saber, entender mais ainda quem eu sou, que cor é a minha, eu também era assim ficava

confusa sem entender que cor era a minha as pessoas diziam que eu sou morena clara, mas agora,

eu sei que eu sou negra e digo com orgulho eu me sentir muito bem após a leitura, gostei dos

personagens.

Eu não tenho nenhuma critica e nenhuma sugestão eu achei o texto muito bom e muito

legal, gostaria de ler mais contos assim para entender foi um prazer.

O conto despertou na leitora questões relacionadas à sua mestiçagem. O fato de

outras pessoas dizerem que ela é morena clara a deixava confusa, certamente porque ela não

se via desse modo. O conto, ao tratar da cor negra de forma positiva, ajudou-a a se

identificar como negra, conforme o trecho que se segue: “mas agora, eu sei que eu sou negra

e digo com orgulho”, ou como no depoimento emitido pela leitora no decorrer das oficinas:

“Me senti bem porque entendi que a gente deve assumir nossa cor [...] Foi legal a

personagem ter dito que não era suja, nem mula e sim negra”.

O posicionamento assumido por SF10, após a leitura do conto, nos faz refletir sobre

um dos questionamentos de Kabengele Munanga (1999, p.124) acerca da mestiçagem:

“Como afirmar uma identidade em torno da cor e da negritude não assumidas pela maioria

cujo futuro foi projetado no sonho do branqueamento?”

Assim como aconteceu com essa leitora, é possível que outros mestiços, em contato

com discursos que positivem a identidade negra e denunciem as práticas de discriminação

racial vigentes na sociedade brasileira, consigam quebrar as correntes invisíveis, porém,

existentes, que os aprisionam na ideologia do branqueamento e do mito da democracia

racial. O relato de SF10 reafirma o poder da literatura para a construção positiva do

imaginário acerca do negro e nos informa também sobre as lacunas existentes no repertório

do leitor afro-brasileiro em idade escolar quanto à leitura de textos da literatura negra.

De: SF11 (13 anos).

Para: Raquel Almeida, autora do conto “Minha cor”.

Querido Autor eu gostei muito da história por que fala das cores que cores nós somos, Branco ou

pardo, isso mostra que cor realmente nóis somos. Após a leitura, me senti muito feliz ao ver que ela

se identificou que viu que não era suja! nem mula, ela era somente Afro! negra! da pela preta.

Adorei na hora que ela escreveu no formulário qual era sua cor e escreveu numa forma convicta

que era negra e não teve vergonha disso.

96

eu queria criticar a parte da mãe que manda a filha escolher sua própria cor, não concordo. Eu já

me confundi! parda, preta ou Branca olhei bem para a minha mãe e me reconheci em seus traços;

minha mãe já me disse você é preta não acreditei muito porque ela é mais escura que eu; sempre

achei que era morena clara como meu pai, igual no conto já passei por essa experiencia.

De início, a autora da carta nos revela a sua adesão à positivação da cor negra. Em

seguida critica o fato de mãe da protagonista do conto sugerir-lhe que escolha a sua cor.

Para a leitora, cor não é uma questão de escolha e pelos indícios deixados na carta, é

possível inferirmos que SF11 gostaria que a mãe da protagonista a ajudasse a chegar numa

conclusão quanto à cor dela, assim como fez a mãe da leitora quando ela estava com

dúvidas, conforme o trecho que se segue: “você é preta não acreditei muito porque ela é

mais escura que eu; sempre achei que era morena clara como meu pai, igual no conto.” Ao

trazer o seu exemplo com a mãe, a leitora expõe o modo como a literatura articula-se com a

vida pela força da experiência da narrativa, conforme afirma Walter Benjamim (1994).

No Brasil, em função do histórico de valoração fenotípica e cultural do segmento

social branco, muitos mestiços com características negras pouco pronunciadas usam como

estratégia de ascensão social rejeitar ou esmaecer os elementos que revelam a sua negritude

e imitar o padrão imposto pelo grupo dominador, na tentativa de serem melhor aceitos.

Entretanto, com relação à estudante, percebe-se pelo seu discurso um processo de valoração

da parte negra da mestiçagem. Tal posicionamento pode ser verificado também no

depoimento enunciado, enquanto conversávamos sobre o comportamento da protagonista do

conto “As máscaras de Dandara”, de Serafina Machado, no decorrer das oficinas: “Não

gostei da parte que ela diz que sentia raiva da bisavó, da avó e da mãe porque não casaram

com homem branco”.

Por fim, o fato de ela revelar que já viveu uma experiência igual a do conto nos diz

que a sua percepção quanto à sua mestiçagem já tinha sido reorientado. O conto ratificou a

valoração que SF11 já dava à cor negra, por isso que ela gostou tanto quando a protagonista

assumiu-se negra.

De: SF12 (14 anos)

Para: Raquel Almeida, autora do conto “Minha cor”.

O conto foi muito bonito eu não gostei foi que a mãe da personagem não queria que a filha dela

foce preta, ela queria que a filha foce parda. Eu me senti muito feliz por que no conto A menina

97

disse que estou me dedicando e tenho certeza de que vou passar no vestibular e conquistar um

direito que um dia foi negado à minha Avó que foi negado a minha cor. que foi negado. eu quero ser

o qui eu sou porque eu não tenho vergonha da minha cor e nem do jeito que eu sou um dia eu já fui

discriminada então desde esse dia eu fiquei muito triste mais eu sou uma negra batalhadora e

guerreira não vou deixar de ser uma negra porque fui discriminada.

SF12 reprova o comportamento da mãe da protagonista do conto quando ela não diz

à filha que ela é negra. Pelo discurso que se segue na carta, percebe-se que tal reprovação é

resultado do processo de construção identitária que vivencia a leitora. Ela sente e sabe o

quanto é difícil ser negro no Brasil e que negar a cor não resolve os problemas de

preconceito e discriminação racial.

Vale destacar que o fato de a protagonista do conto mostrar-se otimista quanto ao

futuro despertou a identificação da leitora, que, certamente, renovou as suas esperanças

quanto a seu próprio futuro.

A estudante diz que já foi discriminada e como se sentiu. Pelo relato, percebe-se que

ela não reagiu. Esse comportamento revela que o sujeito negro ainda é vítima de um sistema

educacional que não o prepara para o enfrentamento das situações de discriminação,

fortalecendo, assim, o poder daqueles que tencionam dominar. Quanto a essa leitora, ainda

que tenha se entristecido, ela não se conformou e nem introjetou o discurso do

discriminador, pois, ao concluir a sua carta apresenta uma atitude afirmativa com relação a

sua identidade e assim com a protagonista do conto diz que vai lutar pelos seus objetivos

“eu sou uma negra batalhadora e guerreira”. A leitora positiva o que foi usado pelo outro

como algo negativo – o fato de ser negra. Evidencia-se, portanto, nessa carta, o

entrelaçamento entre os anseios da protagonista da narrativa e os da leitora.

De: SF13 (15 anos).

Para: Raquel Almeida, autora do conto “Minha cor”.

Querida Raquel Almeida au ler o conto escrito por vc eu realmente fiquei muito emocionada, por

que você escoleu uma personagem excelente em que vc fala de uma menina que já na adolecência se

interecou em descobrir qual era realmente a sua cor por que pra ela a cor parda não existia, e au

ler o seu conto mim lembrei de quando eu tinha 12 anos em que eu mi vi quase na mesma situação

em que a personagem viveu, um certo dia eu estava na minha casa e aí pego a minha certidão de

nascimento em que na certidão onde indicava a cor da criança que indica assim, branco, preto e

98

pardo e na minha certidão tava como parda e eu perguntei à minha mãe, mãe porque eu não sou

preta e sim parda e ela me respondeu.

– É que pra nos preta é a mesma cor que pardo.

e eu respondi.

– mais mãe e que eu queria que na minha certidão tivesse preta com da minha amiguinha, aí ela

mim dise que nem tudo na vida poderia ser do geito que a gente queria e em uma parte eu pude mim

sentir no lugar dela e que minha mãe é morena bem clarinha só que eu nunca tive vontade de ter a

mesma cor que ela, a e a parte que eu mais gostei foi quando ela se identificou com as bisavós por

que já tinham cido escravos e tinham sofrido muito eu gostei muito da atitude dela na minha

opinião não presiza mudar e nem acrescentar nada no conto e te agradeso muito por você ter falado

de uma cor que hoje e discriminada e humilhada e é essa que mim representa uma cor que muitos

têm orgulho mais que muitos tambem têm vergonha de dizer qual a sua cor não sei se vc é branca,

morena, ou preta, mas eu posso te dizer que eu fiquei muito grata por você falar de mim de você e

de todos nós.

Bjs: da aluna...

SF13 diz que vivenciou as mesmas inquietações da protagonista. Não sabemos se a

história narrada por ela sobre o modo como passou a questionar-se sobre a sua cor

aconteceu, mas é relevante destacar que os sentimentos e as emoções experenciados pela

protagonista são comuns também à leitora que revela uma postura afirmativa quanto à

construção de sua identidade negra. A relação que a estudante estabelece entre o conto e as

suas experiências de vida nos reporta às reflexões de Hans Robert Jauss (1994) acerca de

um dos fatores determinados pelo horizonte de expectativa que orientam o diálogo entre

texto literário e leitor, a possibilidade de comparação entre ficção e realidade.

Destaca-se na carta, o trecho “a minha mãe é morena bem clarinha”. Percebe-se

através dos dois adjetivos “morena”, “clarinha” e do intensificador “bem” o desejo implícito

de dizer “a minha mãe é branca”. Porém, mesmo enfatizando a sua mestiçagem branca, ela

opta pelo assumir-se negra. Isto nos faz pensar novamente sobre a mestiçagem no Brasil, em

que muitos mestiços capturados pela ideologia do branqueamento negam a sua negritude e

reafirmam os valores da cultura branca. O que chama a atenção no discurso de SF13 é

exatamente a situação contrária: querer-se negra, dizer-se branca também, e assim, afirmar-

se negra-mestiça.

Embora estivesse participando das oficinas ministradas, cujos discursos verbais ou

não verbais evidenciaram o negro como autor e produtor de literatura, a autora da carta diz

que não sabe se a cor da escritora do conto é branca, morena ou preta. Tal dúvida é reflexo

99

de construções sociais e históricas que insistem em naturalizar a ausência do negro em

trabalhos intelectuais, como o da escrita literária. Por outro lado, o fato de SF13 ter

duvidado da identidade etnorracial da autora do conto pode ser considerado um avanço, pois

revela que no seu horizonte de expectativa como leitora já existe a possibilidade do escritor

negro.

A leitora identifica-se também com a história dos ancestrais da protagonista, mesmo

tomando como base somente uma vertente da história, a do sofrimento, causado ao negro no

período escravocrata. E em seu discurso, deixa claro que está consciente da existência da

discriminação e do preconceito racial, mas nem por isso rejeita a sua cor e fica satisfeita

com o conto lido, isto porque a narrativa ratifica o seu desejo de identificar-se como negra.

Pode-se inferir que a intenção do coletivo literário Cadernos Negros quanto à afirmação da

identidade negra repercutiu positivamente no processo de construção identitária da

estudante.

De: SF14 (19 anos).

Para: Raquel Almeida, autora do conto “Minha cor”.

Oi Raquel eu gostei muito do seu conto, porisso eu o escolhi ele e quero dizer que e muito

interecante poriso eu escolhi ele porque ele tem algo que já aconteceu com migo eu também ficava

mim perguntando que cor é a minha e depois que leu ouvir esse conto e leu e o outros eu vi que não

era só eu que tinha essa duvida não hoje eu cei que cer negro não e vergonha, pois sou negra e

tenho orgulho. negro tambem tem valor e esse negócio de preconceito com os negros tem que

acabar negro também e inteligente negro também e professor negro também e medico negro

também e pai e mãe, negro também sabe ler negro também sabe falar. ha, eu to muito feliz de ta te

escrevendo esse conto seu mim chamou muita atenção porisso eu te desejo muita sorte e bons

pensamento para continuar escrevendo sobre nois negros boa sorte e que Deus ti abençoi muito e ti

de muitos anos de vida sabedoria e inteligência, e te desejo felicidades saude e força para escrever

cada dia mais.

Eu espero um dia ouvir mais sobre você seus livros e sua inteligencia eu só tenho a dizer a você

Deus é contigo em tudo que você faz e já fez e vai fazer ainda boa sorte e muito obrigada por esse

livro e esse conto mil felicidades, fique com Deus a cada dia e a cada manhã a cada tarde a cada

noite a cada sono e a cada emoção foi um prazer ti conhecer mesmo pelos livros, ok! seja feliz cada

dia a mais fim. Beijos.

100

A leitora começa relatando o porquê da sua identificação com o conto: ela também

se questionava acerca da sua cor, assim como a protagonista da narrativa. Esse tipo de

identificação contempla o que almejam os escritores dos CN ao ofertarem enredos que

dialoguem com as subjetividades dos leitores afro-brasileiros.

Além de assumir-se e querer-se negra, SF14 apresenta a sua indignação quanto à

existência do preconceito e em seu texto agencia palavras de enfrentamento: “esse negócio

de preconceito com os negros tem que acabar”. O posicionamento de SF14 nos revela uma

postura consciente quanto aos conflitos raciais no Brasil, conforme podemos perceber

também a partir da opinião que emite oralmente após a leitura do conto “Minha cor”, no

decorrer das oficinas: “Foi bom porque ela assumiu sua cor, um exemplo para todos nós que

somos negros.”.

Em sua carta, a leitora lança mão de uma série de qualificadores para o sujeito negro,

enfatizando as várias posições privilegiadas que este ocupa no tecido social, transcendendo

a imagem produzida pelos discursos da elite dominante que tenta naturalizar a presença

desse segmento somente em posições subalternas. Na carta, destaca-se a repetição do termo

“negro” e do intensificador “também”, que ajuda a enfatizar a mensagem positiva que ela

enuncia. Vejamos novamente o trecho: “negro também e inteligente negro também e

professor negro também e medico negro também e pai e mãe, negro também sabe ler negro

também sabe falar.” Desse modo, SF14 investe contra estereótipos inventados para o negro

referentes à inferioridade intelectual e à desumanização.

Estão explícitos, na carta, tanto a adesão à mensagem de afirmação da identidade

negra transmitida pelo conto quanto o desejo de contribuir nessa afirmação. Vale pontuar

também a satisfação de SF14, ao ler o conto, e o modo como demonstra entender a

importância da escrita literária para a positivação da identidade negra: “eu te desejo muita

sorte e bons pensamento para continuar escrevendo sobre nóis negros”. Em síntese, a

experiência relatada no conto encontrou ecos na experiência pessoal da leitora, que, ao

sentir-se contemplada pela narrativa, procurou endossá-la e, por comungar das mesmas

ideias apresentadas no conto, incentivou a escritora a seguir em frente no seu ofício.

No grupo dos leitores solidários, ainda que em determinados trechos dos discursos

presentes nas cartas ou enunciados oralmente, tenhamos percebido a influência de

representações negativadas acerca do negro, as quais circulam na sociedade brasileira, o que

predominou foi o desejo de construções identitárias negras afirmativas e a não acomodação

ante as situações do preconceito e discriminação racial. Houve, portanto, o cruzamento das

expectativas do projeto coletivo Cadernos Negros com o horizonte dos leitores, que, pelos

101

seus discursos, demonstraram que se sentiram contemplados na narrativa e corroboraram a

proposta de positivação de identidade lançada pelo periódico.

As cartas, corpus principal de análise desta pesquisa, apresentaram diferentes

posicionamentos diante dos seis contos dos CN lidos e discutidos durante as oficinas de

leitura de produção textual. Pelos discursos enunciados, pode-se inferir que assim como

afirma Jonathan Culler (1997) sobre a mulher como leitora que, influenciada pela

dominação masculina pode não ler como tal, o mesmo é válido também para o negro ao

assumir o papel de leitor num contexto de dominação branca. Contudo, experiências

individuais ou coletivas vivenciadas por cada sujeito orientam distintas formas de ler o

mesmo texto literário.

Vale reiterar que as identidades são repletas de nuances e complexidades, são

construções em processo contínuo de transformação, uma vez que o sujeito está sempre em

negociação, não com um conjunto de oposições, mas com uma série de posições diferentes,

retornando ao pensamento de Stuart Hall (2011). Embora a identidade negra assumida pelo

distrito de Tijuaçu tenha se mostrado resistente e positivada, conforme a bibliografia

pesquisada, o que se percebe nos textos de boa parte dos sujeitos pesquisados são relações

conflituosas em relação à identidade negra. Nesse sentido, o incentivo ao não enfrentamento

ante as situações de discriminação racial, recorrente nos discursos orais e escritos de alguns

estudantes é um dos indícios sintomático desse conflito.

Pode-se inferir que as contradições apresentadas nas cartas e nos enunciados orais

dos sujeitos pesquisados é resultante do contato com uma gama de discursos diferenciados

que os interpelam cotidianamente. De um lado as produções simbólicas ostentadas por sua

comunidade como quilombola, do outro, os discursos acessados por eles, principalmente,

por meio da televisão, que propala representações negativadas acerca do segmento social

negro. Acrescenta-se a isso o fato de que o repertório de leitura desses estudantes é

composto, em sua maioria, de obras que não contemplam a diversidade etnorracial

brasileira. Esses são fatores que, decerto, influenciaram na recepção dos contos dos CN.

Foi possível notar, tanto nos textos das cartas quanto nos relatos enunciadas pelos

sujeitos pesquisados, a presença de um mosaico de contradições influenciado pelo momento

vivenciado por cada estudante quando das oficinas, o lugar de pertença – uma comunidade

negra em processo de afirmação da identidade negra –, e por ideologias que, além de

investirem na desqualificação das referências do segmento social negro tentam encobrir a

existência de conflitos raciais no Brasil. Em suma, os posicionamentos dos estudantes

variam entre distanciamento, aproximação ambígua e adesão à proposta dos contos dos

102

Cadernos Negros, o que confirma as complexidades de ordem subjetiva que atravessam as

formações identitárias.

103

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Regresso

estamos cada vez mais próximos e distantes

de tudo aquilo que deixamos no meio do caminho

estamos lembrando lutas momentos amores

chorando saudades que cedo se fazem presente

sem consciência de dia hora e local

sabendo apenas que estamos chegando

no instante em que partimos.

(KIBUKO, CN 17, 1994, p. 67).

Esta dissertação se propôs a refletir sobre o modo como os estudantes de uma

comunidade quilombola “respondem” a textos literários que os convocam a identidades

negras positivas. Tendo em vista esse objetivo, buscamos compreender as representações

identitárias coletivas da comunidade na qual os sujeitos da pesquisa estão inseridos – no

distrito de Tijuaçu –, bem como as identidades lançadas pelo coletivo literário Cadernos

Negros. Por fim, analisamos o corpus principal desta pesquisa, quais sejam as cartas

produzidas pelos estudantes.

Procuramos mostrar que a afirmação da identidade coletiva de grupos

marginalizados é fator determinante na luta por melhores posições no corpo social. Ao

investigarmos a identidade negra de Tijuaçu, vislumbramos em seu processo de construção

duas fases distintas. A primeira é marcada principalmente pela baixa autoestima e pela

negação do ser negro. A segunda, movida pelo processo de reconhecimento quilombola,

contribui para redesenhar a identidade negra local, com um traçado que aponta para a

positivação, ainda que de maneira ambivalente, pois se sustenta no limiar da

aceitação/negação das referências de matriz africana presentes nas manifestações culturais

da comunidade.

Evidenciamos que as identidades apresentadas pelos Cadernos Negros são

representações plurais da diversidade etnorracial que compõe a sociedade brasileira. Os CN

são um projeto de resistência literária que trabalha na tessitura de um novo imaginário

nacional, com ênfase no resgate da memória ancestral, valorização da cultura afro-

diaspórica e positivação das características fenotípicas do negro. Ademais, os textos desse

periódico são enfáticos na denúncia do preconceito e da discriminação racial e tencionam

incitar o leitor ao enfrentamento. Os escritores dos CN, inspirados no trabalho realizado nos

quilombos históricos que provocaram desgastes na estrutura social escravocrata brasileira e

104

forçaram mudanças, por meio de suas armas-palavras, mantêm vivo, há mais de três

décadas, o Quilombo literário, com foco nas demandas do tempo presente, objetivando a

representação afirmativa do negro em todas as dimensões.

Considerando que a identidade negra coletiva em Tijuaçu está em processo de

afirmação e que o projeto coletivo Cadernos Negros enseja representações plurais e

positivadas de diversidade etnorracial brasileira, a hipótese suscitada, quando do início desta

pesquisa, foi a de um possível diálogo entre as identidades apresentadas nos contos do CN e

as vivenciadas pelos sujeitos desta pesquisa. Para investigarmos tal possibilidade,

realizamos oficinas de leitura e produção textual, que culminaram com a escrita de cartas

pelos estudantes.

Para analisarmos os dados colhidos nas oficinas, criamos categorias de análise que

tiveram por base o posicionamento predominante dos estudantes, evidenciado em suas

cartas, diante das temáticas apresentadas pelos contos. Verificamos, então, que alguns

estudantes se distanciaram da proposta dos contos, os sabotadores; outros aderiram à

proposta, mas, em função da influência de ideologias dominantes no que tange às relações

raciais no Brasil, apresentaram discursos contraditórios; outros, ainda, foram solidários ao

projeto de positivação das identidades negras lançadas pelos textos dos CN.

Percebemos, pelos indícios deixados nas cartas e nas falas enunciadas no decorrer

das oficinas pelos estudantes das categorias leitores sabotadores e em contradição, que a

identidade coletiva ostentada em Tijuaçu provocou interferências ínfimas na recepção dos

contos dos CN. Nesses discursos, predominou a influência das representações identitárias

negras propagadas pelas classes dominantes. Entretanto, o contato com tais contos,

provocou tensões entre as imagens que estão cristalizadas no imaginário dos leitores e as

ofertadas pela literatura negra, interferindo, na maioria das vezes, no modo como negociam

suas identidades.

Com relação à última categoria de análise, notamos a influência positiva da

identidade negra coletiva local nas representações das identidades individuais dos

estudantes, contribuindo para rasurar as formas negativadas que circulam no âmbito

nacional. As narrativas dos CN dialogaram com as experiências desses leitores e os

motivaram a posicionamentos críticos no que ser refere às relações etnorraciais no Brasil. O

trecho enfático presente na carta da leitora SF14, “esse negócio de preconceito com os

negros tem que acabar”, reflete o posicionamento desses leitores solidários que se integram

ao Quilombo literário proposto pelos CN.

105

Embora tenhamos alocado as cartas em categorias e analisado algumas percepções

identitárias suscitadas a partir da leitura dos contos, as conclusões a que chegamos são

limitadas, haja vista, o caráter subjetivo, fluido, dinâmico e até mesmo contraditório das

identidades num mesmo indivíduo. Ademais, a identidade individual é influenciada pelas

identidades nacional e cultural e vai além, pois se desdobra em identificações deslizantes em

virtude da posição que o sujeito assume em diferentes contextos, nos quais se apega

temporariamente, investe e negocia diferentes modos de se assumir.

Em linhas gerais, constatamos que a literatura negra corrobora a fomentação de

construções identitárias negras positivas; contudo, tal processo depende também de uma

gama de outros discursos enunciados em contextos tanto formais quanto informais que

sejam convergentes. Trata-se de o sujeito negro, seus pares e aqueles de outros segmentos

sociais compartilharem as mesmas representações positivadas, desconstruindo, então, os

processos de hierarquização da diferença.

Destacamos nesta dissertação que os quilombolas das comunidades remanescentes e

os das letras literárias lutam pela realização de anseios que se aproximam dos objetivados

pelos guerreiros dos quilombos históricos, isto é a liberdade e a dignidade. São desejos

atualizados na luta por condições iguais de ascensão social e de representações plurais e

positivadas da diversidade etnorracial brasileira.

Vale ressaltar que dentre as instituições legitimadas pela sociedade que atuam na

formação do indivíduo, apenas a família, mas especificamente, a mãe, foi citada por alguns

leitores como referência positiva na construção das suas identidades negras, por exemplo,

nas cartas de SF11 e SF13. Nessa perspectiva, notamos também que, nos discursos dos

sujeitos desta pesquisa, não há indícios que revelem as contribuições da escola.

Ainda que no âmbito legal o artigo 68 da Constituição Federal de 1988 tenha

proporcionado alguns avanços na reparação de danos históricos sofridos pelos habitantes

das comunidades negras brasileiras e a Lei n. 10.639/03 tenha obrigado as escolas públicas a

incluir em seus currículos o estudo da história e cultura afro-brasileiras, foi possível notar

que na prática ainda há longo caminho a ser percorrido. Diante desse descompasso entre o

que diz a lei e o que efetivamente acontece no contexto social brasileiro, verificamos que as

ações afirmativas coletivas, como as empreendidas pelos quilombolas de Tijuaçu e pelos

CN, têm angariado importantes conquistas.

Em síntese, este trabalho apresentou um olhar sobre a identidade negra de Tijuaçu, a

criação e as estratégias de manutenção dos Cadernos Negros, um periódico compreendido

como um quilombo das letras na cena literária brasileira, que enseja, dentre outras questões,

106

representações identitárias afirmativas. O olhar culminou com uma análise das cartas

produzidas pelos estudantes tijuaçuenses, após a leitura dos contos dos CN. Ao fechar estas

páginas, retornando a epígrafe que abre estas considerações finais, concluímos que estamos

próximos e distantes das respostas almejadas quando do início desta pesquisa, contudo

esperamos que este término motive outros começos.

107

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TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Título da Pesquisa: A recepção dos Cadernos Negros por estudantes de uma comunidade

quilombola

Pesquisadora responsável: Rosilda da Silva Souza Bonfim28

Pesquisadora orientadora: Profª Dra. Sayonara Amaral de Oliveira29

Declaro por meio deste termo, que autorizei o (a) adolescente sob minha responsabilidade a

participar da pesquisa de campo referente ao trabalho intitulado A recepção dos Cadernos Negros

por estudantes de uma comunidade quilombola. Tal pesquisa refere-se a um projeto de

dissertação de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens da Universidade

do Estado da Bahia.

Fomos informados (as) dos objetivos estritamente acadêmicos do estudo, que, em linhas

gerais, consiste em compreender pelas narrativas/contos dos Cadernos Negros a construção da

identidade étnico-cultural dos alunos da escola CESB que vivem na comunidade quilombola

Tijuaçu.

Afirmo que o adolescente (a) aceitou participar por sua própria vontade, sem receber

qualquer incentivo financeiro e com a finalidade exclusiva de colaborar para o sucesso da pesquisa.

Ao participar deste estudo permitirei que as pesquisadoras Sayonara Amaral de Oliveira e

Rosilda da Silva Souza colham informações a respeito do adolescente sob minha responsabilidade

através de oficinas pedagógicas de leitura de contos e produção textual, utilizando como

instrumentos de recolha de dados um diário de campo, as discussões em sala e uma carta produzida

28

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em estudo de Linguagens pela Universidade do Estado da Bahia.

[email protected] Tel. (75) 9114 3490 29

Professora adjunta da Universidade do Estado da Bahia.Email [email protected]

APÊNDICE

Apêndice A – Termo de consentimento livre e esclarecido.

UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS I- SALVADOR

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS

Portaria Ministerial nº 679, publicada no D.O. U de 16/03/2006

114

pelos participantes da pesquisa. E que o adolescente sob minha responsabilidade pode se recusar a

realizar qualquer etapa da oficina sem que isso lhe cause constrangimento de qualquer natureza.

Estou ciente de que, caso eu tenha dúvida ou sinta que o (a) adolescente em questão foi

prejudicado (a), poderei contatar a pesquisadora responsável do projeto a qualquer momento e, se

necessário através do telefone do Comitê de Ética em Pesquisa30

.

A participação nesta pesquisa não traz complicações legais. Os procedimentos adotados

obedecem aos Critérios da Ética em Pesquisa com Seres Humanos conforme Resolução no. 196/96

do Conselho Nacional de Saúde. Nenhum dos procedimentos usados oferece riscos à sua dignidade.

No entanto é possível que em algum momento das oficinas, o adolescente possa se sentir

constrangido em função de algum tema abordado nas narrativas ou das discussões que ocorrerão em

sala de aula, caso aconteça, as pesquisadoras assumirão a responsabilidade de mediar eventuais

conflitos através de palavras que destaquem a importância do respeito e dos valores positivos que

constituem cada sujeito.

Todas as informações coletadas neste estudo são confidenciais. As informações somente

serão divulgadas de forma anônima, não serão usadas iniciais ou quaisquer outras indicações que

possam identificar os sujeitos da pesquisa.

Estou ciente de que não teremos nenhum tipo de despesa para participar desta pesquisa, bem

como nada será pago pela participação.

A pesquisadora me ofertou uma cópia assinada deste Termo Consentimento Livre e

Esclarecido, conforme recomendações da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa31

(CONEP).

Declaro estar ciente do conteúdo deste TERMO DE CONSENTIMENTO, estou de acordo

com participação do adolescente sob minha responsabilidade no estudo proposto, sabendo que dele

poderá desistir a qualquer momento, sem sofrer qualquer punição ou constrangimento.

Senhor do Bonfim, _____ de _____________2012

_______________________________________________________

Nome do Responsável do Participante da Pesquisa

_______________________________________________________

Assinatura do Responsável do Participante da Pesquisa

_______________________________________________________

Assinatura do Pesquisador

_______________________________________________________

Assinatura do Orientador

30

Universidade do Estado da Bahia – Campus I, Salvador. Tel. (71) 3117 2445 31

Telefones (061) 3315-5878/5879 (e-mail:[email protected]).

Impressão

datiloscópica do

participante

115

ANEXOS

ANEXO A – cópia da capa dos Cadernos Negros, volume 30.

116

ANEXO B – cópia da capa dos Cadernos Negros, volume 32.

117

ANEXO C – cópia da capa dos Cadernos Negros, volume 34