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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES
DEPARTAMENTO DE MÚSICA – CMU
INICIAÇÃO CIENTÍFICA (IC)
RELATÓRIO FINAL
ASPECTOS ESTILÍSTICOS E TRANSFORMAÇÕES
DO SAMBA-ENREDO SOB O PONTO DE VISTA MELÓDICO
PESQUISADOR: YURI PRADO BRANDÃO DE SOUZA
ORIENTADOR: PROF. DR. ROGÉRIO LUIZ MORAES COSTA
AGÊNCIA FINANCIADORA: FAPESP
Contato: [email protected]
São Paulo
2009
Este trabalho é dedicado a todos os apaixonados pelo carnaval.
Viva às escolas de samba!
AGRADECIMENTOS
À minha mãe, Conceição, e ao meu irmão, Danilo, pelo apoio incondicional em
todos os momentos e pela paciência com que ouviram “por tabela” um número
incontável de sambas-enredo.
À Maitê, Maria, Nona e ao João por estarem sempre por perto quando
precisamos (eu e minha família) e por toda a ajuda que jamais esqueceremos.
Ao meu tio, Lourival Prado, por incentivar o estudo de música por todos da
família.
Aos meus amigos de infância (P.L’s), Bolacha, Felipe, Henrique, Naoki,
Leandrinho, Ovo, Fabinho, Gustavo e Ana, pelo companheirismo de sempre e para
sempre.
À Carol pelos sorrisos e pelas horas sempre tão boas ao seu lado...
Aos meus colegas de faculdade, Marcos, Luana, Ivan, Ivana, Álvaro, Carla e
Bob, por tornarem meu cotidiano tão divertido. E um agradecimento especial a este
último por me acompanhar nas caminhadas pelas ruas de Madureira.
À Ju e ao Mau pela verdadeira amizade e ajuda na revisão.
Ao meu orientador, Prof. Dr. Rogério Costa, pela solicitude desde o primeiro
momento e pelos valiosos apontamentos.
Ao jovem sambista Gutemberg Rio-Sampa por me apresentar ao mundo das
escolas de samba de São Paulo.
À família Fellows pela acolhida durante minha estadia no Rio.
Aos, em minha opinião, mais criativos compositores de samba-enredo da
atualidade, Eduardo Medrado, Kléber Rodrigues e parceiros, pela disposição em me
ajudar e coragem em inovar. Continuem firmes em suas convicções.
Aos também grandes compositores João Borba, Marcinho Keleque, e Gusttavo
Clarão por todas as dúvidas esclarecidas.
Aos pesquisadores Márcio Coelho e Acácio Tadeu de Camargo Piedade por
permitirem o diálogo entre nossos trabalhos.
A todos aqueles que ajudam a manter viva a história do carnaval
disponibilizando os discos de sambas-enredo na Internet, sem os quais esta pesquisa
não teria sido possível.
À Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) pela
concessão da bolsa de estudos.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...............................................................................................................6
1 – ORIGENS...................................................................................................................8
2 – UM NOVO SAMBA
2.1 Paradigma do Estácio..............................................................................................11
2.2 Análises.....................................................................................................................14
3 – O SAMBA-ENREDO
3.1 Transição..................................................................................................................24
3.2 O samba-lençol.........................................................................................................26
3.3 Análises.....................................................................................................................28
3.4 Modulações...............................................................................................................36
3.5 Refrões e Lirismo.....................................................................................................38
3.6 Dissonâncias.............................................................................................................40
4 – NOVOS TEMPOS
4.1 Martinho da Vila.....................................................................................................43
4.2 Repercussão..............................................................................................................49
4.3 Pega no ganzê...........................................................................................................53
4.4 Refrões......................................................................................................................56
4.5 Frases compartilhadas............................................................................................63
5 – ESTRUTURAS CARACTERÍSTICAS
5.1 Padrão harmônico característico...........................................................................67
5.2 Transposição fraseológica.......................................................................................69
5.3 Frase característica..................................................................................................76
6 – TEMPOS RECENTES
6.1 Marcha-enredo.........................................................................................................84
6.2 Figuras de preenchimento.......................................................................................90
6.3 Tons homônimos......................................................................................................95
6.4 Refrões responsoriais..............................................................................................99
6.5 Padrão formal........................................................................................................101
7 – “SAMBISTA MODERNO EU SOU...”
7.1 Um mouro no quilombo........................................................................................107
7.2 Outros sambas........................................................................................................113
CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................120
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................122
ENTREVISTAS...........................................................................................................123
DISCOGRAFIA...........................................................................................................124
SITES............................................................................................................................124
ANEXO.........................................................................................................................125
6
INTRODUÇÃO
O fenômeno das escolas de samba, por sua importância para o entendimento da
cultura popular brasileira e pela complexidade dos aspectos ligados à sua manifestação,
é um tema de grande relevância para a pesquisa científica. São bastante conhecidos os
trabalhos que tratam do assunto sob os pontos de vista histórico, sociológico
(mercantilização e descaracterização das escolas de samba), antropológico (estudo das
relações entre os componentes), estético-visual (gigantismo e transformação das
alegorias e fantasias) e lingüístico (temática e letra dos sambas-enredo).
Esta pesquisa tem a intenção de se tornar mais um instrumento para a
compreensão do universo das escolas ao estudar o samba-enredo sob o ponto de vista
melódico. Julgamos que a linha melódica desse gênero carrega uma quantidade de
informações estilísticas suficiente para que a analisemos separada do plano poético. De
qualquer forma, como estamos tratando de um gênero de canção, este último será
sempre chamado quando a análise musical se revelar insuficiente.
Através do levantamento e catalogação das estruturas melódicas mais
recorrentes, assim como dos padrões harmônicos e formais (e nesse sentido, poderíamos
trocar o termo melódico presente no título desta pesquisa por musical, mais abrangente),
procuraremos apontar de forma detalhada os aspectos estilísticos e as principais
transformações da música praticada pelas escolas de samba do Rio de Janeiro desde as
primeiras décadas do século XX até os dias atuais. Veremos, portanto, a decisiva
contribuição dessas agremiações para a formação do samba moderno; o processo de
formação do samba-enredo como gênero; a sua transformação em música de massa; as
consequências da aceleração do andamento e da padronização excessiva; e, finalmente,
a reação ao atual modelo de samba-enredo.
7
Os sambas analisados foram escolhidos dentre as obras das escolas que
desfilaram no grupo principal de cada carnaval. A razão dessa escolha se encontra no
fato de as maiores escolas pertencerem a esse grupo, as quais são justamente as
responsáveis pela maior parte das mudanças ocorridas não somente no samba-enredo,
mas em todos os aspectos que envolvem essa manifestação cultural. Exceções a essa
regra só serão apresentadas no último capítulo, quando trataremos de sambas que não
chegaram a ir à avenida.
Por último, devemos dizer que pretendemos dar embasamento teórico a uma
polêmica, a qual foi um dos principais motivos para a realização desta pesquisa: por
muito tempo considerado um gênero propenso à renovação, o samba-enredo atualmente
movimenta debates sobre sua possível decadência ou estagnação.
8
1 - ORIGENS
“A primeira escola de samba / Surgiu no Estácio de Sá / Eu digo isso e afirmo /
E posso provar”1, dizem em versos Pereira Mattos e Joel de Almeida no samba
Primeira escola. De fato, o modelo daquilo que é considerado uma das mais
importantes manifestações culturais populares do país se originou nas ruas do bairro
carioca do Estácio de Sá na década de 1920, embora suas origens remontem aos
ranchos formados por baianos estabelecidos no Rio de Janeiro no final do século XIX.
A ascendência dos ranchos na estrutura das escolas de samba se revela inegável ao
observarmos a descrição da estrutura dos primeiros:
Os ranchos já possuíam uma organização fixa, e seu desfile incluía: “abre-alas, comissão de frente, figurantes, alegorias, mestre de manobra, mestre-sala e porta-estandarte, primeiro mestre de canto, coro feminino, segunda baliza e porta-estandarte, segundo mestre de canto, corpo coral masculino e orquestra” (RIOTUR, 1991 apud AUGRAS, 1998: 21).
Inicialmente ligados à tradição religiosa dos ternos de reis2 nordestinos (os
desfiles eram realizados no dia 6 de janeiro, Dia de Reis), os ranchos passaram a
desfilar no carnaval a partir de 1893, por iniciativa do Rei de Ouro, rancho fundado pelo
tenente pernambucano criado na Bahia e chegado ao Rio de Janeiro em 1872, Hilário
Jovino Ferreira. Dessa forma, “iniciando no carnaval de rua carioca a tradição dos
desfiles organizados em molde de espetáculo para o público [...], os ranchos tiveram
necessidade de criar um tipo de música coerente com o espírito de seus desfiles”
(TINHORÃO, s/d: 134).
A presença de instrumentistas de sopro nos ranchos, oriundos das bandas
militares e dos grupos de choro, fez com que a música dessas organizações se
distanciasse da produzida pelos antigos cordões. José Ramos Tinhorão explica que
integrados por negros e mestiços, e logo pelos brancos das camadas mais humildes da cidade, os cordões apresentavam-se como uma massa mais ou menos compacta de fantasiados, que ao som de instrumentos de percussão, avançavam pelas ruas de forma mais ou
1 Mattos, Pereira; Almeida, Joel de. Primeira escola. Intérprete: Os Cinco Crioulos. In: Samba no duro. [S.l.]: Emi-Odeon, 1968. 1 CD (25 min.). Remasterizado em digital, 2003. Faixa 1. 2 Também chamados de folia de reis.
9
menos anárquica, uma vez que cada folião dançava criando livremente os passos que a música lhe sugeria (TINHORÃO, s/d: 114).
Um texto publicado no ano de 1910, no jornal interno do Ameno Resedá, um
dos ranchos mais famosos da época, evidencia o distanciamento entre a música dos
ranchos e cordões:
O Mário Cardoso, depois de meditar, com os olhos fitos em um espesso sabugueiro engrinaldo de flores, alvas e amorosas, externou o desejo de fundar-se um grêmio carnavalesco, cheio de originalidade, diferente dos grupos barulhentos de batuque e terreiro [referindo-se aos cordões]. [...] Um grêmio onde a beleza e elegância das vestes se harmonizasse com a sublimidade de cantares impecáveis, cuja música fosse da lavra de verdadeiros musicistas. [...] O batuque, a pandeirada e os urros seriam banidos por anti-estéticos (EFEGÊ, 1965: 35, citado por TINHORÃO, s/d: 134-5).
Segundo Tinhorão, “os ranchos da década de 20 não se preocupavam em fixar
um gênero próprio” (TINHORÃO, s/d: 135). Tal fato é confirmado ao verificarmos no
site do Instituto Moreira Salles (IMS)3 as indicações dos gêneros que acompanham os
títulos das músicas gravadas pelo Ameno Resedá na década de 1910: marcha (Viúva
Alegre, Brasil-Portugal, Saudação à águia, Odalisca); barcarola (Sobre as ondas);
schottish (Salve!); e dobrado (Carnaval de 1906, Severino Marques, Nunes Leite).
De qualquer forma, o gênero que ficou associado ao rancho é a marcha. Tanto é
que, já no final da década de 1920, quando essa começou a ser lançada comercialmente
como música de carnaval, bastasse que ela se aproximasse do caráter dolente das
canções executadas pelos ranchos para que a indicação de gênero presente nas etiquetas
dos discos fosse anotada como marcha de rancho ou marcha-rancho4.
Se os ranchos eram já bastante próximos das escolas de samba em sua estrutura
e no aspecto visual, é no âmbito musical que se encontra a diferença fundamental entre
as duas manifestações. De acordo com Marília T. Barboza da Silva e Arthur L. de
Oliveira Filho,
3 http://ims.uol.com.br/ims/ 4 José Ramos Tinhorão aponta o disco Odeon número 123208 (78 rpm), de 1927, contendo a música Moreninha, de Eduardo Souto e interpretada por Frederico Rocha, como um exemplo da indicação marcha de rancho. Em nossa pesquisa, constatamos que tal expressão deve ter começado a ser utilizada por volta dessa época, já que no site do IMS foi encontrada somente uma gravação anterior a essa com a mesma indicação de gênero: Mimosas margaridas, de Freire Júnior, interpretada pela Companhia Garridos, disco Odeon número122854 (78 rpm), 1926.
10
para acentuar bastante a diferença entre rancho e escola de samba, basta esclarecer que estas jamais permitiram instrumentos [sic] de sopro em seus conjuntos, ao passo que os ranchos ostentavam pequenas orquestras de sopro e cordas, onde tocaram Irineu Batina, Pixinguinha, Bonfiglio de Oliveira e outros monstros sagrados da música popular brasileira (SILVA& OLIVEIRA Fo, 1981: 30).
Tão importantes quanto os ranchos para a formação das escolas de samba, foram
os blocos. Menos organizados do que os primeiros, os blocos eram “grupos pobremente
fantasiados com apetrechos improvisados” (AUGRAS, 1998: 17) que costumavam agir,
ao menos no início, de forma violenta. . Progressivamente, passaram a adotar estrutura
próxima à dos ranchos. Monique Augras considera que “foi na junção dos ranchos [...]
com os blocos e cordões das ruas do Rio que se deu a criação daquilo que viria a ser as
escolas de samba” (AUGRAS, 1998: 17).
Sobre a prática musical dos blocos, Carlos Sandroni explica que alguns deles “se
limitavam a cantar as músicas de sucesso daquele ano, mas outros cantavam canções
feitas por seus participantes” (SANDRONI, 2001: 143). Naturalmente, deviam fazer
parte do repertório desses grupos as marchas, “em virtude de os blocos serem na ocasião
embriões de ranchos, assim como hoje cada bloco é um projeto de escola de samba”
(SILVA & OLIVEIRA Fo, 1981: 30), e os sambas de apenas uma parte, sendo a
segunda improvisada.
Foi justamente a atuação decisiva de um desses blocos, o Deixa Falar, fundado
no bairro do Estácio de Sá em 1928 por Ismael Silva, Bide, Marçal, Nílton Bastos e
outros, a responsável pelo surgimento e fixação não só de um novo tipo de organização
carnavalesca, mas também de uma nova maneira de compor o samba. É o que veremos
a seguir.
11
2 – UM NOVO SAMBA
2.1 O paradigma do Estácio
Adiantamos que o surgimento das escolas de samba veio acompanhado de uma
transformação musical importante no samba produzido pelos compositores cariocas nas
primeiras décadas do século XX. Antes de nos atermos exclusivamente ao gênero
musical praticado pelas escolas, o qual é objeto da presente pesquisa, convém explicar
brevemente a qual modelo de samba este novo fazia oposição.
O gênero conhecido pelo grande público como samba desde o lançamento, no
ano de 1917, de Pelo Telefone - composição de autoria polêmica registrada por Ernesto
dos Santos, o Donga5 - era um dos vários cultivados pelos frequentadores da casa de Tia
Ciata, baiana nascida em 1854 e chegada ao Rio de Janeiro em 1876. A partir da prática
restrita por, em sua maioria, baianos migrados ao Rio de Janeiro no final do século XIX
e descendentes destes6, tal gênero foi popularizado no decorrer da década de 1920 pelo
carioca José Barbosa da Silva, o Sinhô, a ponto de este ter sido nomeado O Rei do
Samba.
De acordo com o estudo realizado por Carlos Sandroni em seu livro Feitiço
decente: transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933) (SANDRONI, 2001),
a estrutura rítmica do samba produzido no Rio de Janeiro antes da transformação
promovida pelos compositores do Estácio era baseada no padrão conhecido como
tresillo:
Ou em variantes deste, como na chamada “síncope característica” (expressão
cunhada por Mário de Andrade):
5 A questão autoral de “Pelo telefone” já foi discutida por diversos estudiosos da música brasileira. Em SANDRONI (2001), um capítulo inteiro é dedicado à análise formal e, obviamente, à polêmica que envolve a autoria desse samba. 6 Embora tivessem sido peças importantes na permissividade para com a prática do samba, não incluímos aqui os membros da elite carioca que costumavam frequentar tais festas, por se situarem na posição de espectadores. Os detalhes das relações do samba com os diversos setores da sociedade podem ser conferidos no livro de Hermano Vianna, O mistério do samba (1995).
12
Termo criado por musicólogos cubanos, o tresillo, de acordo com Sandroni,
“aparece na música de muitos outros pontos das Américas onde houve importação de
escravos, inclusive, é claro, no Brasil” (SANDRONI, 2001: 28). E prossegue:
O padrão rítmico 3+3+2 pode ser encontrado hoje na música brasileira de tradição oral, por exemplo nas palmas que acompanham o samba-de-roda baiano, o coco nordestino e o partido-alto carioca; e também nos gonguês dos maracatus pernambucanos, em vários tipos de toques para divindades afro-brasileiras e assim por diante (2001: 28).
O maxixe, gênero musical surgido nas últimas décadas do século XIX e
considerado por Tinhorão “a primeira grande contribuição das camadas populares do
Rio de Janeiro à música do Brasil” (TINHORÃO, s/d: 59), também faz uso do tresillo e
suas variantes na divisão rítmica da melodia e do acompanhamento. E é desse gênero
que o samba do estilo antigo (em oposição ao samba do estilo novo, do Estácio) mais se
aproxima ou com o qual chega mesmo a ser confundido. Tal fato, assinalado por vários
pesquisadores de música brasileira, é confirmado pelo próprio Donga, quando fala a
respeito de Pelo Telefone: “[...] fiz o samba, não procurando me afastar muito do
maxixe, música que estava bastante em voga” (DONGA, PIXINGUINHA E JOÃO DA
BAIANA, 1970 apud SANDRONI, 2001: 133).
A mudança de contexto coreográfico ocorrida após o sucesso de Pelo Telefone,
com a qual o samba deixa de ser executado exclusivamente em rodas para também fazer
parte do repertório dos blocos carnavalescos, provocou um problema de
compatibilidade entre música e desfile. Ismael Silva, em entrevista concedida a Sérgio
Cabral explica:
Quando comecei, o samba da época não dava para os grupos carnavalescos andarem na rua, conforme a gente vê hoje em dia. O estilo não dava pra andar. Eu comecei a notar essa coisa. O samba era assim: tan tantan tan tantan. Não dava. Como é que um bloco ia andar
13
na rua assim? Aí, a gente começou a fazer um samba assim: bum bum paticumbumprugurundum (CABRAL, 1996: 242).
O que fizeram, pois, os sambistas do Deixa Falar foi adaptar a música cantada à
sua forma de desfile. Assim, da mesma forma que os sambas da geração anterior eram
baseados no tresillo, os sambas do Estácio eram agora caracterizados por uma nova
estrutura subjacente ao seu fluxo rítmico-melódico. Chamada por Sandroni de
“paradigma do Estácio”, é esta estrutura que está por trás da explicação dada por Ismael
Silva sobre a diferença entre os sambas do Estácio e os da geração anterior:
Paradigma do Estácio
Assim, nos últimos anos da década de 1920 passaram a coexistir dois tipos de
samba na cidade do Rio de Janeiro. De acordo com João Máximo e Carlos Didier, “um
é aquele que se faz, toca e dança nas casas de ‘Ciata’ e outras tias baianas” (MÁXIMO
& DIDIER, 1990: 138), que “vem do começo do começo da década passada e é produto
da Cidade Nova [bairro do Rio de Janeiro onde surgiu o maxixe]” (1990: 118). O outro
[...] surgiu há poucos anos [o ano de referência é 1929] no Estácio de Sá, bairro situado entre o Rio Comprido e o Catumbi, o morro de São Carlos e a Zona do Mangue. Dali se espalhou pelas vizinhanças, galgou as encostas da Saúde, Salgueiro, Mangueira, seguiu as linhas de trem até Ramos, Engenho de Dentro, Penha, Madureira... (1990: 118).
Convém lembrar que a denominação escola de samba dada por Ismael Silva ao
Deixa Falar, segundo ele mesmo, “por causa da escola normal que havia no Estácio de
Sá” (CABRAL, 1996: 241), era antes uma forma de exaltação das qualidades de seu
bloco do que uma ruptura radical com a estrutura dos ranchos, visto que deles “adotou-
se o modo de deslocamento processional [...], provadamente correto” (VALENÇA,
1982: 7). No entanto, tal termo acabou por resumir de maneira perfeita uma das
importantes ações do Deixa Falar: a de divulgar, por meio de frequentes visitas a outros
14
bairros, o novo modelo de samba, o qual foi rapidamente “aprendido” pelos outros
blocos. Progressivamente, muitos desses também passaram a se autodenominar escolas
de samba.
No entanto, não foi somente nos redutos de samba que o novo estilo lançado
pelo Estácio encontrou acolhida. Sua trajetória de sucesso, até o ponto de ser eleito o
símbolo da música nacional, foi construída paralelamente à crescente importância do
rádio, meio pelo qual foi divulgado a todo o país tendo como vozes alguns dos maiores
cantores da época.
2.2 Análises
Nesta pesquisa, procuramos verificar se o paradigma encontrado por Carlos
Sandroni está presente também nos sambas de escola. Dessa forma, seria possível
avaliar qual o grau de influência dos compositores estacianos na produção dos demais
compositores de escolas de samba, e se havia diferença entre os sambas do Estácio, que
quando gravados e lançados por cantores como Francisco Alves e Mário Reis passavam
a visar ao sucesso radiofônico e à vendagem de discos no crescente mercado
fonográfico brasileiro, e os sambas que tinham como único ou principal incentivador o
próprio desfile.
Sandroni, em suas análises, demonstra que a maioria das articulações rítmicas
das linhas melódicas dos sambas do Estácio coincide com o paradigma. Como exemplo,
citamos O que será de mim (SANDRONI, 2001: 207), de Ismael Silva, Nílton Bastos e
Francisco Alves, gravado pelo último com Mário Reis em 1931:
15
Podemos observar, de fato, coincidências perfeitas entre linha melódica e
paradigma. Do 1o ao 6o compasso, todas as notas da melodia, com exceção das duas
primeiras, encontram correspondência na estrutura escrita na pauta inferior. No 7o
compasso, a síncopa entre o 1o e 2o tempos difere-se do ritmo do paradigma, mas a
última nota, também em síncopa, acaba por retomá-lo. As exceções (marcadas com o
símbolo “x”) são justificadas por Sandroni, quando diz que “a cometricidade
[ocorrência de articulação rítmica na primeira, terceira, quinta ou sétima semicolcheia
do 2/4] tende a substituir a contrametricidade [articulação nas posições restantes, nos
casos em que não é seguida por articulação na posição seguinte, ao menos que seja
acentuada] nos inícios ou após pausas prolongadas” (SANDRONI, 2001: 206), e
quando menciona as dificuldades encontradas pelos cantores do rádio em se adaptarem
ao novo estilo.
A propósito, a presença do nome de Francisco Alves na autoria desse e outros
sambas da dupla Ismael Silva/Nílton Bastos explica-se pela prática da venda de sambas,
comum a partir do final dos anos 1920 e que tinha no famoso cantor um de seus maiores
adeptos. Para efeito de ilustração, transcrevemos a passagem encontrada na obra de
Máximo e Didier (1990):
Francisco Alves, Ismael ao seu lado, deu voltas e mais voltas pelo Centro. Conversando, falando do quanto os dois poderiam ganhar com aqueles sambas, das vantagens de se tornarem parceiros. Comprometia-se a gravar tudo de bom que Ismael fizesse, dividindo com ele cada tostão ganho na vendagem dos discos. Em troca, Ismael entregaria a Francisco Alves tudo que fosse compondo. Os sambas gravados e editados, naturalmente, levariam a assinatura dos dois [...] [Ismael então explica que já havia feito um trato de parceria com seu amigo Nílton Bastos]
Para Francisco Alves não havia o menor problema: - Então a gente inclui ele na parceria (MÁXIMO & DIDIER, 1990: 210-1).
Sandroni propõe o nome de parceria “nominal” para o tipo ocorrido acima, ou
seja, “quando ela era dada ou vendida na circulação comercial de sambas; e de parceria
‘real’ quando os parceiros participavam, mesmo que nem sempre em igual medida, na
composição do samba” (SANDRONI, 2001: 148).
16
Retornando ao assunto que nos diz respeito, o primeiro samba de escola no qual
procuramos verificar a coincidência entre paradigma e melodia foi Chega de Demanda,
de autoria de Cartola e cantado pelos integrantes da Mangueira por volta de 19297:
Nesse samba são percebidas coincidências rítmicas significativas: o par de
colcheias presente no 2o tempo do 2o compasso do paradigma é perfeitamente
preenchido pelas colcheias dos compassos 5 e 9, assim como no segundo tempo do
compasso 13, quando só a segunda colcheia é atacada; e a contrametricidade
característica do paradigma, na última semicolcheia do segundo compasso, nunca é
quebrada pela presença de uma figura no tempo forte do compasso seguinte.
Na parte A de outro samba, Eu quero nota, de autoria de Arthurzinho,
apresentado pela Mangueira na primeira competição entre escolas de samba, promovida
por José Espinguela em 19298, são encontradas as mesmas características: 7 Na gravação de Chega de demanda presente na série de quatro discos História das Escolas de Samba, lançada pela gravadora Marcus Pereira em 1975, Cartola afirma que “em 1928 começamos [a Estação Primeira de Mangueira] a desfilar como escola de samba”. Entretanto, no livro de Sérgio Cabral As escolas de samba do Rio de Janeiro (CABRAL,1996), há uma reprodução em fac-símile de um papel timbrado da escola em que consta a inscrição “Fundado em 28 de abril de 1929”. Embora o samba de Cartola já fosse, sem nenhuma dúvida, cantado pelos mangueirenses antes dessa data (Cartola chega mesmo a afirmar, na mesma gravação, que o “nome ‘Estação Primeira’ foi tirado dele”), incluiremos a mesma data indicada no site oficial da Mangueira (www.mangueira.com.br), 1929.
17
Nesse caso, destacamos o contratempo do segundo tempo do 1o compasso sendo
executado de acordo com o paradigma; as colcheias do 5o compasso, também em
conformidade; e a compatibilidade perfeita entre melodia e paradigma no 13o compasso.
Além disso, percebe-se, mais uma vez, que em todos os momentos em que a última
semicolcheia do compasso é ligada a uma nota do compasso seguinte (síncopa), ritmo
similar é encontrado no paradigma.
Cabe aqui retomar o que foi dito apenas de passagem, no primeiro capítulo, a
respeito da forma dos sambas dos blocos e escolas. Os sambas dos primeiros anos de
desfile não tinham a letra da segunda parte fixa. Isso significa que os sambas escolhidos
para o desfile (nessa época, as escolas costumavam desfilar com mais de um samba9)
eram na verdade refrões, estando a segunda parte a cargo de improvisadores.
8 No já citado site oficial da Mangueira o samba é datado como sendo de 1930. No entanto, o próprio José Espinguela, em entrevista concedida ao jornal A Nação, em 1935, explica como se deu o concurso: “Foi em 1929. Realizei no Engenho de Dentro. Sagrou-se vencedora a Portela, sabiamente dirigida por Paulo. Mangueira também apresentou-se pujante, tendo os seus sambistas Cartola e Arthurzinho apresentado dois sambas monumentais. Foram Beijos e Eu quero nota” (SILVA & OLIVEIRA Fo, 1981: 31). Por conta da força do depoimento, frequentemente citado por pesquisadores de escolas de samba, incluiremos somente a data nele mencionada. 9 A Mangueira, por exemplo, desfilava no ano de 1932 com três sambas, apresentados em momentos específicos: “o primeiro [...] é para entrar no desfile [...]. O segundo é para passar em frente ao palanque [dos jurados]. O terceiro, para as despedidas” (MÁXIMO & DIDIER, 1990: 203).
18
Os sambas radiofônicos, pelo contrário, não podiam permitir a presença de uma
segunda parte “aberta”, em que os versos poderiam ser criados no calor do momento de
um desfile ou de uma roda de samba. De acordo com Sandroni,
a gravação, a publicação, os direitos autorais, tudo isso exigia a presença, ao lado do estribilho, de uma segunda parte, que fosse, tanto quanto ele, ‘propriedade’ de um samba dado. Ela precisava ser ‘exclusiva’, em dois sentidos: primeiro, seus versos não podiam aparecer em outro samba; segundo, seus versos deviam ser só aqueles, com a exclusão de quaisquer outros, negando a abertura da improvisação onde novos versos eram sempre bem-vindos (SANDRONI, 2001: 152-3).
Dessa forma, quando um samba de escola entrava em processo de gravação, a
letra da segunda parte deveria ser fixada. Esse é o caso de dois sambas da Mangueira:
Não faz, amor, de autoria de Cartola, gravado por Francisco Alves, e Sorrindo sempre,
de Gradim, gravado por João Petra de Barros, ambos cantados no desfile de 193210.
Nos dois sambas, quem compôs a segunda parte definitiva para o ingresso no
rádio foi Noel Rosa11. O compositor foi escolhido por dois motivos: sua presença no
meio profissional do rádio, o que levou Francisco Alves a lhe confiar a segunda parte do
samba de Cartola (MÁXIMO & DIDIER, 1990: 203); e seu costume de colocar
segundas partes em refrões de compositores com os quais mantinha bom
relacionamento, como é o caso de Gradim, ou, simplesmente, naqueles sambas que lhe
despertavam a atenção.
Não podemos afirmar se os improvisadores das escolas de samba seguiam um
modelo melódico fixo, mudando somente os versos. Ora, se esse fosse o caso, enquanto
do ponto de vista da canção (em que envolvemos, portanto, a letra) esses sambas com os
versos da segunda parte improvisados seriam considerados incompletos ou “abertos”,
do ponto de vista exclusivamente melódico os mesmos poderiam ser considerados
10 Mais uma vez encontramos divergência entre datas. No site da Mangueira consta que o samba “Não faz, amor” foi cantado no desfile de 1931; já o livro de Máximo e Didier, Noel Rosa, uma biografia, aponta-o como sendo de 1932. Buscamos no site do IMS e, felizmente, encontramos a data da gravação feita por Francisco Alves: 07/07/1932. Como Máximo e Didier (1990: 202) escrevem que, após assistir ao desfile da Mangueira no carnaval de 1932, “Francisco Alves fica entusiasmado [com o samba], pensa em gravá-lo e vai atrás de Cartola para que ele faça a segunda parte”, nos parece lógico supor que o cantor não demoraria muito tempo para gravá-lo, fazendo-o, portanto, em julho do mesmo ano para lançá-lo como samba de meio-de-ano. 11 De acordo com Máximo e Didier (1990:204), na partitura impressa de “Sorrindo sempre” aparecem, além dos nomes de Gradim e Noel, os de Francisco Alves e Ismael Silva. Logo, esse parece ser mais um dos muitos casos de parcerias nominais envolvendo os sambistas da década de 1930.
19
dentro da forma binária (A-B), já que bastaria que possuíssem melodias distintas e
definitivas para cada parte, não importando a variação do conteúdo da letra.
De qualquer forma, é muito provável que os improvisadores não se afastassem
muito do modelo do partido-alto carioca, bastante praticado por muitos dos antigos
compositores de escolas de samba. O partido-alto, na definição de Nei Lopes citada por
Carlos Sandroni, é uma
espécie de samba cantado em forma de desafio por dois ou mais contendores e que se compõe de uma parte coral... e uma parte solada com versos improvisados ou do repertório tradicional, os quais podem ou não se referir ao assunto do refrão (LOPES, 1992 apud SANDRONI, 2001: 104).
Sandroni ainda esclarece que
o partido alto não é nunca cantado em desfile, mas sempre em roda. A distinção é importante porque houve sambas cantados em desfile que correspondiam à descrição citada, mas estes não foram nunca considerados como pertencentes ao domínio do partido-alto (2001: 104).
Quanto às melodias das improvisações, essas costumam adequar-se a um
esquema harmônico já estabelecido. No entanto, a cada vez que são apresentadas por
um novo ou pelo mesmo versador, podem ser submetidas a modificações de altura e
ritmo necessárias para uma boa adequação entre letra e música, ou mesmo decorrentes
das vontades expressivas individuais.
Assim, retomando a discussão entre sambas de escola e sambas radiofônicos,
apresentaremos somente a parte A dos dois sambas citados acima, já que o que nos
interessa são as melodias cantadas pela Mangueira naquele desfile de 193212:
12Da mesma forma, o site da Mangueira inclui somente os versos da parte A de “Não faz, amor”, excluindo a segunda parte de Noel que não foi cantada em desfile.
20
Do mesmo modo que os anteriores, o samba em questão segue de modo nítido o
paradigma. A divisão rítmica dos compassos 6, 12 e 16, ligeiramente deslocada do
paradigma, é a mesma assinalada no 7o compasso de O que será de mim.
No samba seguinte, a interpretação feita João Petra de Barros nos compassos 4 a
8 faz parecer que houve uma quebra no paradigma:
21
No entanto, o recurso de acentuar a contrametricidade pelo uso de síncopas
praticamente constantes (só interrompidas, mas logo retomadas, no 1o tempo do 6o
compasso) é bastante comum, demonstrando, inclusive, o grau de familiaridade do
intérprete com a linguagem do samba. Da mesma forma, a prosódia textual em nada
seria prejudicada se o ritmo estivesse de acordo com o paradigma:
O caso do samba Na floresta, de autoria de Cartola e Carlos Cachaça, também
apresentado pela Mangueira em 1932, é mais um que envolve polêmica autoral. Vale a
pena reproduzir um trecho da entrevista dada por Cartola ao pesquisador Sérgio Cabral:
SÉRGIO CABRAL – E aquela história confusa do “Na floresta”, como é que foi? CARTOLA – Foi o seguinte: o Bucy Moreira tinha um samba que o Chico [Francisco Alves] gostava da letra mas não gostava da música. E a música do meu samba “Na floresta” encaixava direitinho na letra do Bucy. Aí ele comprou minha música pra botar na letra do samba do Bucy, que se chamava “Foi em sonho”. A letra era assim: “Foi em sonho Que te amei E risonho Te abracei”.
22
Isso era do Bucy, não me lembro o resto. Em cima daquela letra, ele botou a música do meu “Na floresta Dei-te um ninho E mostrei o bom caminho”. Aí minha letra ficou jogada fora. O Sílvio Caldas conhecia a letra e um dia resolveu botar uma música. E gravou. O Chico saltou, quis interditar o disco, coisa e tal. Mas o Sílvio convenceu o Chico que ele só tinha comprado a melodia: “Você deixou a letra de lado e o Cartola precisa ganhar dinheiro, pô”. Aí o Chico resolveu deixar pra lá (CABRAL, 1996: 273).
Através do site do Instituto Moreira Salles, conseguimos ter acesso aos dois
sambas citados: Foi em sonho, com melodia de Cartola e letra de Bucy Moreira,
atribuída somente a este último; e Na floresta, com letra de Cartola e melodia de Sílvio
Caldas. Embora Cartola tenha dito que sua melodia se encaixou “direitinho” na letra de
Bucy, fazendo-nos entender que não foi necessária nenhuma adaptação melódica para a
nova letra, não vamos aqui tentar associar a melodia de Foi em sonho com a letra de Na
floresta, por conta do risco de cometermos algum equívoco métrico. Portanto,
apresentamos somente a linha melódica da parte A de Foi em sonho cantada pela
Mangueira em seu desfile:
23
Nesse samba damos destaque aos ataques de colcheia pontuada nos compassos 1
e 5, e ao par de colcheias no segundo tempo seguidas por semínima no 1o tempo,
presentes nos compassos 9-10, 11-12 e 13-14.
Desse modo, concluímos que se podemos fazer uma diferenciação entre os
primeiros sambas de escola e os radiofônicos sob o ponto de vista formal (isso se
considerarmos a existência de variação na melodia da segunda parte dos sambas de
escola), não o podemos sob o ponto de vista rítmico-melódico. E nem poderia ser
diferente: basta lembrarmos que alguns dos maiores compositores do rádio no período
compreendido entre o final dos anos 1920 e começo dos anos 1930 eram oriundos das
escolas de samba ou intimamente ligados a elas. Esse é o caso dos já citados Ismael
Silva e Cartola, de Bide, Marçal e Nílton Bastos (da Deixa Falar), e de Heitor dos
Prazeres, “autor de muitos sucessos e, sem dúvida, uma figura muito importante na
fundação da Portela” (Viola, 1970). Além, é claro, do caso especial de Noel Rosa, que
se não era ligado a nenhuma escola de samba em especial, foi parceiro em diversas
composições desses mesmos compositores de escola, os quais o tinham em grande
estima.
Assim, fornecendo a matéria-prima para a música de rádio, a escola de samba
adquiriu uma importância que ultrapassou o âmbito estritamente carnavalesco, sendo
hoje considerada a criadora do modelo de samba que é “sinônimo de samba moderno,
de samba tal qual o reconhecemos hoje em dia” (SANDRONI, 2001: 131).
24
3 – O SAMBA-ENREDO
3.1 Transição
No capítulo anterior, utilizamos a denominação samba de escola para os sambas
compreendidos no período de 1929 a 1932, ao invés do comumente empregado samba-
enredo ou samba de enredo. Fizemos essa opção por julgarmos necessário salientar a
diferença entre os sambas até agora analisados e o samba-enredo propriamente dito, que
será abordado de agora em diante.
De acordo com José Ramos Tinhorão, o samba-enredo “surgiu a partir da década
de 40 como contrapartida musical da progressiva estruturação das escolas no sentido de
encenar dramaticamente seus enredos, sob a forma de uma ópera-balé ambulante”
(Tinhorão, s/d., 173). Portanto, verificaremos que sua formação como gênero musical,
assim como sua transformação ao longo das décadas, será sempre norteada pelos
diversos fatores ligados ao desfile das escolas de samba.
Ao contrário do que pode parecer, a composição de sambas com letra baseada no
enredo tardou a se tornar prática generalizada. A apresentação, pela Unidos da Tijuca
em 1933, do hoje considerado o primeiro samba-enredo da história13 não encontrou eco
imediato nas demais escolas. Foram necessários quase vinte anos, no desfile de 1952,
para que o gênero fosse oficializado em regulamento, embora Monique Augras ressalte
que já “numa data situada entre 1946 e 1948, o samba-enredo se tornara unanimidade”
(AUGRAS, 1998: 79).
Se o samba da Unidos da Tijuca não desencadeou nenhuma mudança no tipo de
samba de que vínhamos nos ocupando, o regulamento do desfile de 1935 traria em suas
linhas uma importante tomada de posição com relação à questão formal. Nesse ano,
atendendo ao pedido da escola Vizinha Faladeira, foi determinado o fim do quesito
versadores. Desse modo, sem os versos improvisados na segunda parte e,
consequentemente, sem as possíveis variações melódicas decorrentes dessas
improvisações, o samba feito pelas escolas assumiu definitivamente a forma binária.
É importante notar que mesmo quando o samba comportava duas letras para a
segunda parte, o desenho melódico era mantido. Esse é o caso de Não quero mais amar
13 O enredo era “O mundo no samba”.
25
a ninguém, de Cartola, Carlos Cachaça e Zé da Zilda, apresentado pela Mangueira em
193614:
Assim, a diferença entre os sambas de desfile e os radiofônicos agora não mais
existia. O que vai ao encontro da afirmação de Silva & Santos: “os argumentos da
escola de samba Vizinha Faladeira foram aceitos, porque se adequavam às necessidades
do consumo, do público estranho, das gravadoras, dos horários rígidos das autoridades”
(SILVA & SANTOS, 1980: 83).
Mesmo nos sambas hoje considerados “de enredo”, não é possível verificar
nenhuma mudança no padrão formal vigente. Um exemplo é Teste ao samba, de Paulo
da Portela, cantado por sua escola em 1939:
14 Na etiqueta do disco Victor no 34125, de 1936, que contém a gravação desse samba por Araci de Almeida (intitulado somente “Não quero mais”), constam apenas os nomes de Carlos Cachaça (Carlos Moreira da Silva) e Zé da Zilda (José Gonçalves). De acordo com Silva & Oliveira Fo (1983: 50), as duas segundas partes que foram cantadas no desfile, originalmente compostas por Cartola, foram substituídas na gravação por uma de autoria do mangueirense Zé da Zilda (também conhecido como Zé com Fome). Dessa forma, assim como antes, incluiremos somente a melodia apresentada pela escola, que, a propósito, atualmente é a mais conhecida.
26
O conteúdo dos versos ainda não era, portanto, um fator que pudesse atuar como
modificador formal.
3.2 O samba-lençol
Daremos um salto de alguns anos a fim de vermos em que estado se encontra o
samba-enredo em seu período de “unanimidade”. Procuraremos saber de que forma sua
27
singularidade no plano poético - a de contar em versos um enredo proposto - encontra
correspondência nos planos melódico e formal.
No regulamento do desfile de 1947 foi especificada pela primeira vez a
obrigatoriedade do motivo nacional nos enredos de escolas de samba (SILVA &
OLIVEIRA Fo, 1981: 73). Embora estas já desenvolvessem enredos nesse sentido15, a
exigência de enredos que exaltassem a história e as qualidades do Brasil atuaria de
maneira decisiva no formato do samba-enredo das duas décadas seguintes.
De acordo com Tinhorão (s/d: 179), “a necessidade de reduzir a poema
complicadas passagens da história do Brasil originou [...] os sambas de longas letras
com quarenta e cinquenta versos e até mais (os chamados lençóis)16”. Tal fato
demonstra que o samba-enredo tinha, enfim, um terreno fértil para seu
desenvolvimento.
Como consequência do aumento do número de versos, importantes mudanças
estruturais puderam ser verificadas. A primeira delas, naturalmente, é o aumento do
tamanho da linha melódica. Enquanto os primeiros sambas de escola contam, em sua
maioria, com apenas trinta e dois compassos divididos igualmente entre as duas partes,
os sambas-lençol ultrapassam facilmente o número de cem compassos.
A segunda mudança, em grande parte decorrente da primeira, é a flexibilização
da forma. Embora a estrutura binária não deixe de ser utilizada, podemos agora
encontrar sambas que chegam a ser de difícil classificação formal. E isso porque, de
acordo com Tatit (2000: 3), “o samba-enredo17 é um ‘gênero-fluxo’, com melodia que
sai ao encalço da letra, suplantando toda a sorte de entraves silábicos para garantir a
evolução de uma história preestabelecida”. Além disso, “a partir de um ritmo
cadenciado e ajustado pelo surdo e pela pulsação geral da bateria, o canto segue rotas
melódicas pouco previsíveis, que escapam ao controle perceptivo do ouvinte”. Em
suma: enquanto nos sambas dos primeiros anos de desfile o conteúdo tende a se adequar
à forma, nos sambas-lençol a forma se adéqua ao conteúdo.
O samba-lençol foi o gênero preferido dos compositores de escolas de samba até
o final da década de 1960, quando seu modelo começou a ser substituído por outro de
15 Destacamos o carnaval de 1946, chamado por Augras de “carnaval da vitória” (1996: 57), no qual todas as escolas apresentaram enredos alusivos à vitória dos Aliados e à participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial. 16 Tinhorão, entretanto, adverte que havia exceções, como é o caso do antológico “Exaltação a Tiradentes”, samba de apenas treze versos apresentado pelo Império Serrano em 1949. 17 Tatit se refere ao samba-enredo de uma maneira geral, mas sua definição nos parece melhor adequada ao samba-lençol de que estamos tratando.
28
mais fácil aprendizado pelo público presente ao desfile e, consequentemente, mais
adequado à execução nas rádios. Falaremos desse samba mais tarde.
No período de predominância do samba-lençol, reinou em absoluto o nome de
Silas de Oliveira (1916-1972), considerado o maior compositor de samba-enredo de
todos os tempos. Entre os seus quatorze sambas escolhidos para representar o Império
Serrano em desfile, destaca-se a sequência formada por Aquarela Brasileira (1964), Os
Cinco Bailes da História do Rio (1965), Glória e Graças da Bahia (1966), São Paulo,
Chapadão de glórias (1967), Pernambuco, Leão do Norte (1968) e Heróis da
Liberdade (1969). Sua obra foi fundamental para a consolidação do gênero e é tida
como referência na junção de perfeição formal a um alto nível de elaboração poética e
melódica.
3.3 Análises
A partir deste ponto, deixaremos de lado o paradigma rítmico proposto por
Sandroni. Julgamos que sua importância como ferramenta distintiva entre o samba
amaxixado e o samba do Estácio já não é relevante ao tratarmos do samba-lençol.
Portanto, concentraremos nossos esforços sob os aspectos mais precisamente formais e
melódicos desse novo gênero.
Escolhemos como primeiro objeto de análise o samba de 1951 do Império
Serrano, de autoria de Silas de Oliveira. Considerado um dos mais característicos
exemplos de samba-lençol, os versos procuram contar em detalhes os fatos mais
importantes dos então “sessenta e um anos de República”, o enredo apresentado.
29
30
A divisão formal aqui apresentada procurou levar em conta a progressão
harmônica, os pontos de relaxamento rítmico e/ou melódico e a ocorrência de elementos
que pudessem dar unidade a um determinado trecho. Conseguimos distinguir seis
partes18, número que contrasta fortemente com a forma dos sambas vistos
anteriormente. Os comentários sobre cada uma delas estão aqui relacionados:
18 Cabe lembrar que essa não pretende ser a única divisão formal possível. Um maior ou menor grau de detalhamento na análise poderia nos levar a outra visão da mesma composição.
31
Parte A (cc. 1-20): O material melódico dos compassos 5 e 6 é transposto tonalmente19
3a abaixo nos compassos 13 e 14. A ligeira modificação no segundo tempo do 14o
compasso adapta a melodia ao acorde de Bm do compasso seguinte.
Parte B (cc. 21-36): Sua unidade é percebida na transposição 3a acima (não
rigorosamente exata) do material dos compassos 20 a 25 nos compassos 28 a 33.
Parte C (cc. 37-72): É caracterizada pela breve modulação para a tonalidade relativa
maior (Ré maior) nos compassos 37 a 44. A repetição da frase dos compassos 64 a 67
nos quatro compassos seguintes, sugerindo um breve refrão, é o único momento em que
há interrupção do “fluxo” melódico.
Parte D (cc.73-88) O perfil intervalar do compasso 73 (2m desc./ 5J desc./ 3m asc./ 4J
asc.) é levemente modificado no compasso 77 (2m desc./ 6m desc./ 3m asc./ 4a asc.)
para se adaptar ao acorde de B7. A progressão harmônica de seus oito primeiros
compassos é idêntica à da parte A, o mesmo ocorrendo com os pontos de apoio
melódico: o uso da nota “Fa#” no compasso 75 e da nota “Si” no compasso 79 encontra
correspondência nos compassos 3 e 8. Isso faz com que esta parte possa ser considerada
um A’.
Parte E (cc. 89-104): De perfil bastante irregular, sua intensa movimentação rítmica (de
difícil respiração) fez com que considerássemos o trecho como sendo uma única parte.
Parte F (cc. 105-119): Apresenta quatro frases em que o relaxamento rítmico é sempre
feito no quarto compasso (compassos 107, 111, 115, 119). É importante notar que a
primeira frase começa antes da barra dupla que indica o início da parte F.
Como já adiantado pela explicação de Tatit, um dos aspectos mais notáveis do
samba-lençol é sua tendência de evitar a repetição em favor do fluxo contínuo. Está em
jogo uma preocupação do compositor em impulsionar, através da variação ou oposição
de elementos melódicos, o desenvolvimento da história a ser contada. No entanto, se
lembrarmos que, de acordo com Schoenberg, a “variação é uma repetição em que
alguns elementos são mudados e o restante é preservado” (SCHOENBERG, 1991: 37),
veremos que a repetição não está totalmente excluída desse gênero. Aliás, a necessidade
da repetição para uma boa compreensão do discurso já foi abordada pelo próprio
Schoenberg:
19 Na transposição tonal o padrão intervalar é mantido, mas adaptado às notas da tonalidade.
32
“A inteligibilidade musical parece ser algo impossível de se obter sem o recurso da repetição. Enquanto a repetição sem variação pode facilmente engendrar monotonia, a justaposição de elementos com pouca afinidade pode, com facilidade, resultar em absurdo, especialmente se os elementos unificadores forem omitidos” (SCHOENBERG, 1991: 5).
Assim, a retomada de materiais melódicos previamente apresentados, quando
ocorre, atua em favor do próprio fluxo, servindo como ponto de “retomada de fôlego”
para novos “devaneios”.
De qualquer forma, o evitamento da repetição está presente e acaba por se
refletir na diminuição da importância do refrão, visto que este atua como ponto de
“refreamento” do fluxo melódico da canção20. Desse modo, podemos encontrar sambas
com completa ausência de refrões (Sessenta e um anos de República, Império Serrano,
1951; Dona Beja, a feiticeira de Araxá, Salgueiro, 1968) e outros em que a melodia
atinge um refrão, mas “é como se o encontrasse por acaso ao final de longa jornada”
(Tatit, 2000: 3). Esse é o caso dos sambas-lençol que destinam os seus últimos
compassos à apresentação do refrão21, como, citando somente sambas de Silas de
Oliveira para o Império Serrano, Os cinco bailes da história do Rio (1965),
Pernambuco, Leão do Norte (1968) e Aquarela Brasileira (1964), este último
frequentemente encabeçando as listas de maiores sambas-enredo de todos os tempos:
20 De acordo com Márcio Coelho (COELHO, 3: em fase de pré-publicação, nota de rodapé), Luiz Tatit tem desenvolvido, em seus estudos sobre a canção, a ideia de “refreamento” imposto pelo refrão, embora ressalte que não tenha encontrado essa acepção na raiz etimológica da palavra “refrão”. Coelho, entretanto, verifica que, de acordo com o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, “reprimir” (um dos significados de “refránher”, origem de “refrahn”, que significa estribilho) é sinônimo de “refrear”, o que confirma a ideia proposta por Tatit. 21 Isso não significa, evidentemente, que não houvesse sambas em que o refrão está situado entre estrofes.
33
34
Nesse samba, chegamos ao número de sete seções, incluindo o refrão. Algumas
delas, entretanto, poderiam ser desmembradas, tamanha a variedade do material
melódico apresentado. Alguns apontamentos22:
22 Durante a pesquisa, nos perguntamos diversas vezes se deveríamos lançar mão de termos demasiadamente técnicos para a análise de um gênero de música popular em que a grande maioria dos compositores não teve educação musical formal. Acabamos por julgar que a observação e classificação dos fenômenos de acordo com o que nos oferece a teoria musical clássica se faziam necessárias, ainda
35
Parte A (cc. 1-28): Nos compassos 1 a 17, a repetição variada das frases a e b confere
simetria e unidade melódica ao início do samba. A cadência perfeita nos compassos 16
e 17 sugere um final de seção, o que poderia levar o trecho compreendido entre os
compassos 19 a 28 a ser considerado uma nova parte. Ainda que sensíveis mudanças
melódicas possam ser notadas, sua curta duração, aliada a uma breve polarização em Dó
maior nos compassos 19 a 21 para logo em seguida ser retomada a progressão em
direção à tonalidade de Lá menor (c. 23), fez com que este último trecho fosse analisado
como pertencente à primeira parte.
Parte B (cc. 29-44): A frase a é retomada de maneira levemente modificada no início
desta parte. Novamente há uma breve polarização para Dó maior (cc. 37-39), mas a
modulação não se concretiza.
Parte C (cc. 45-64): O acorde dominante (E7) dos dois últimos compassos da parte B
não atinge o 1o grau23 (I) da tonalidade de Lá menor, mas sim o dominante secundário
(A7) do IV (D) da tonalidade homônima maior (Lá maior). É interessante notar que a
tonalidade de Lá menor retorna no compasso 53 (com o IV menor) antes que o I de Lá
maior (A) seja atingido.
Parte D (cc. 65-88): A tonalidade de Lá menor é afirmada. Os compassos finais da
seção (85 e 86) são responsáveis pela modulação para Lá maior, tonalidade que será
afirmada pela progressão I – VIm – IIm – V7 nos compassos 87 e 88.
Parte E (cc. 89-104): Esta parte é caracterizada pelo aproveitamento do material
melódico de c. Com algumas pequenas variações, seu perfil é mantido durante todo o
trecho: o salto inicial de 6a (“Mi-Dó#”) em c é transformado em salto de 4a (“Mi-Lá”)
em c’, além de ser feita uma pequena mudança rítmica decorrente do verso cantado; nos
compassos 96 a 99, c é transposto uma 2a acima (adaptado ao IIm da tonalidade, Bm); e,
finalmente, o cromatismo atua como elemento de variação presente em c’’.
Parte F (cc. 105-136): A progressão harmônica em direção ao IIm e a relativa demora
para sua resolução faz com que o samba ganhe em tensão nos primeiros compassos
desta parte (cc. 105-111). Progressivamente, a melodia tende a assumir um caráter
que certos procedimentos composicionais realizados pelos sambistas tenham sido, quase sempre, resultado de um aprendizado exclusivamente auditivo. De qualquer forma, esse tipo de análise serve para demonstrar quão sofisticada pode ser a elaboração melódica no samba-lençol, especialmente quando se trata de uma obra de Silas de Oliveira. 23 A partir de agora, cada grau da tonalidade será aqui apresentado somente em numerais romanos.
36
conclusivo, com os últimos quatro compassos (cc. 133-136) sendo destinados para a
modulação para Lá menor, tonalidade do Refrão (G) (cc. 137-144).
3.4 Modulações
As modulações entre tonalidades homônimas24, como as assinaladas em
Aquarela Brasileira e tão comuns, como veremos, nos sambas-enredo de épocas
posteriores, começam a ser percebidas, na música das escolas, a partir dos sambas-
lençol, embora ainda não fossem prática generalizada. A modulação por meio do acorde
dominante25 é a mais empregada pelos compositores de escola de samba, possivelmente
por sua facilidade de execução, embora modulações diretas26 também possam ser
encontradas.
A utilização de um recurso composicional como a modulação é favorecida pela
própria extensão da linha melódica, a qual necessita constantemente de elementos de
variação para evitar a monotonia. Dessa forma, mais um elemento de diferenciação
entre os sambas das primeiras décadas e os sambas-lençol é agora identificado, visto
que os primeiros costumam apresentar unidade tonal entre as partes A e B.
24 Tonalidades de modos diferentes que possuem a mesma tônica (Ex: Dó maior/Dó menor). 25 Lembrando que tonalidades homônimas compartilham o mesmo acorde dominante (em Dó maior ou menor, o acorde de G7), basta substituir, após este acorde, o 1o grau da tonalidade inicial pelo 1o grau da tonalidade homônima (por exemplo, partindo da tonalidade de Dó maior atinge-se o acorde de Cm; partindo da tonalidade de Dó Menor atinge-se o acorde de C). 26 Por exemplo, estando em Dó maior, iniciar uma cadência plagal (subdominante-tônica) já em Dó menor (Fm – Cm).
37
38
3.5 Refrões e Lirismo
Um procedimento bastante comum nos refrões de sambas-lençol é o canto sem
versos. Este pode ser feito com duas sílabas (geralmente lá e ia ou lá e rá) ou apenas
com vogais. Essa prática de composição evidencia antes uma utilização do refrão como
apoteose de toda uma construção melódica do que como auxílio à compreensão do
enredo27. Além disso, os refrões evidenciam o acentuado caráter cantabile desse sub-
gênero, resultado da utilização de figuras de longa duração.
27 Convém dizer que nem todos os sambas das décadas de 1950 e 1960 eram lençóis. No entanto, os procedimentos de composição aqui assinalados (com exceção da modulação entre tons homônimos, mais presentes em sambas de longa duração) são os mesmos para quase toda a produção dessas duas décadas, o que nos permite incluir refrões de sambas de duração mais curta. De qualquer modo, somente incluiremos trechos que poderiam facilmente figurar no interior de “autênticos” lençóis.
39
Já este refrão faz referência ao enredo, mas somente em seu final:
40
3.6 Dissonâncias
A partir do ano de 1959, o Acadêmicos do Salgueiro passou a contar com
profissionais ligados às artes plásticas para confeccionar seu carnaval. O casal de
artistas plásticos Dirceu e Marie-Louise Nery foi chamado para desenvolver o enredo
Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, baseado na obra de Debret. No ano seguinte,
juntaram-se a eles Nilton Sá, Arlindo Rodrigues e Fernando Pamplona, oriundos da
Escola Nacional de Belas-Artes do Rio de Janeiro. Pamplona propôs enredos que
valorizassem a figura do negro, até então raramente abordados pelas escolas de samba,
o que gerou carnavais como Quilombo dos Palmares (1960), Chica da Silva (1963) e
Chico Rei (1964). Era o surgimento28 e consolidação da figura do carnavalesco,
elemento que pensa no enredo, desenha os figurinos para as fantasias, desenha os complementos, indica os tecidos que devem ser usados, as cores, distribui entre os presidentes de ala ou diretamente entre os componentes, desenha as alegorias, os adereços de mão, acompanha sua montagem [...] e, mais recentemente [a referência é de 1984], interfere nas letras de escolas de samba (RODRIGUES, 1984: 43).
Se pessoas estranhas à escola, geralmente da classe média, passaram a atuar no
aspecto “plástico” do desfile, não podemos encontrar algo equivalente no samba-enredo
da mesma época. Embora composições de autores ligados a escolas de samba, como Zé
28 Fernando Pamplona afirma em entrevista ao site O Batuque que antes de fazer o enredo para o Salgueiro, teve conhecimento de uma “francesa [possivelmente Ded Bourbonois, citada em CABRAL, 1996: 187] que chegou ao Brasil com o Teatro Montpellier da Universidade de Paris [...]” e “fez a Portela umas três vezes”, e de “Julinho [...] que fabricava alegoria para dez escolas de sambas do Brasil” (Pamplona, 2004). Podemos citar ainda como importantes figuras no desenvolvimento de enredos os nomes de Lino Manuel dos Reis e Djalma Vogue, da Portela, e Hildebrando Moura, do Salgueiro. Entretanto, deve-se ao trabalho do grupo de artistas que atuou no Salgueiro a partir de 1959 a atual importância do “carnavalesco” na concepção de um desfile.
41
Kéti (Portela e União de Vaz Lobo), Élton Medeiros (Unidos de Lucas), Cartola e
Nélson Cavaquinho (Mangueira), passassem a ser valorizadas por artistas da Bossa-
Nova29 (símbolo musical da classe média carioca desse período), o caminho inverso não
foi feito: compositores ligados à estética da Bossa-Nova nunca participaram do processo
de escolha de um samba-enredo. De todo modo, mesmo que as escolas fizessem parte
das aspirações dos bossa-novistas, o rígido acesso às alas de compositores impediria a
participação de não-membros30.
Assim, se a valorização de intervalos de 9a, 11a ou 13a é parte essencial da
construção melódica na Bossa-Nova, não o é no samba-enredo do período abordado. O
uso da 7M como ponto de apoio31 no 1o grau da tonalidade (marcado com um “x”)
também não é usual, mas pode ser encontrado em alguns exemplares do gênero:
29 Particularmente por Nara Leão, que incluiu em seu primeiro disco, Nara (1964), Diz que fui por aí (Zé Kéti/Hortênsio Rocha), Luz Negra (Nélson Cavaquinho/Amâncio Cardoso) e O sol nascerá (Cartola/Elton Medeiros). 30 Atualmente, a maioria das escolas de samba admite que indivíduos não pertencentes à sua ala de compositores participem da disputa de sambas-enredo. Um bom exemplo de um rigoroso processo de admissão para essa ala pode ser encontrado no estudo de Maria Julia Goldwasser sobre a Estação Primeira de Mangueira, O Palácio do Samba (GOLDWASSER: 1975). 31 Consideramos como pontos de apoio notas de longa duração ou com caráter de resolução.
42
Entretanto, seu aparecimento, como provam as datas de alguns dos exemplos
acima listados, anteriores a 195832, nada tem a ver com alguma possível influência da
Bossa-Nova.
32 Ano de lançamento do LP Canção do amor demais, de Elizeth Cardoso, considerado o marco inicial da Bossa-Nova.
43
4 – NOVOS TEMPOS
4.1 Martinho da Vila
Considerado um dos mais belos sambas-enredo de todos os tempos, Heróis da
Liberdade, de 1969, foi o último samba de Silas de Oliveira escolhido para ser cantado
em desfile pelo Império Serrano. Ao mesmo tempo em que Silas atingia o completo
domínio na feitura do samba-lençol, um novo modelo de samba vinha sendo proposto
por Martinho da Vila na Unidos de Vila Isabel. Iniciada dois anos antes, a trilogia
formada por Carnaval de Ilusões (1967), Quatro séculos de modas e costumes (1968) e
Yayá do Cais Dourado (1969) seria responsável pela renovação do samba-enredo e
influenciaria fortemente a produção da década seguinte.
A transformação feita por Martinho no samba-enredo está intimamente ligada ao
seu modo de tratar o partido-alto. De acordo com Tárik de Souza,
Martinho apanhou o aleatório partido-alto, sempre complementado no ato por versos improvisados (o que é obviamente impossível numa reprodução gravada), e cristalizou-o, dando-lhe estrutura definida e formato identificável, tal como Luiz Gonzaga fez com o difuso baião nordestino (SOUZA, 1982: 2).
Já no caso do samba-enredo, o próprio Martinho da Vila explica:
O samba-enredo antes era didático, só servia para cantar com a escola. Havia muitos compassos vazios, sem letras. Dei uma dinâmica, tapei os buraquinhos, tirei a didática. O pessoal das escolas pensou que era fazer um samba curto, quando era fazer um samba dinâmico (citado por SOUZA, 1982: 1).
Carnaval de Ilusões, o primeiro samba de Martinho para a Vila Isabel, não
apresenta uma ruptura radical com o formato do samba-lençol. Sua duração é longa
(mais de 150 compassos) e um de seus refrões chega mesmo a apresentar o lirismo
característico dos lençóis:
44
No entanto, a novidade desse samba estava em seu refrão final, baseado em uma
conhecida cantiga popular:
O “dinamismo” objetivado por Martinho da Vila é ainda mais claramente
percebido em Quatro séculos de modas e costumes. Suas três estrofes são de tamanho
consideravelmente menor do que as encontradas nos lençóis e já se pode observar nos
refrões, em especial no segundo, uma maior movimentação rítmica e simplificação
melódica, decorrente do uso de estruturas repetitivas:
45
A intensificação de todos esses procedimentos pode ser vista em Yayá do Cais
Dourado. Nele, a influência do partido-alto se faz mais nitidamente presente, ou, antes,
é a matéria-prima para a construção melódica e formal.
46
47
Vimos na definição de Nei Lopes que o partido-alto é composto de uma “parte
coral [com versos já estabelecidos] e uma parte solada com versos improvisados ou do
repertório tradicional” (LOPES, 1992 apud SANDRONI, 2001: 104). Devemos lembrar
também que a parte coral (refrão) é melodicamente fixa e a parte solada pode ser
submetida a modificações de altura e ritmo.
Em Yayá..., Martinho elege uma curta frase musical como o refrão principal da
composição:
No entanto, diferentemente do partido-alto, os versos são modificados para
darem conta da história apresentada.
48
A linha melódica do outro refrão também é retomada mais adiante, mas, desta
vez, com semelhanças entre o que é cantado:
Rompendo com um dos alicerces do samba-lençol, o fluxo contínuo, Martinho
concede à repetição papel fundamental nesse samba. Os primeiros compassos são
flagrantes dessa importância: a linha melódica dos três primeiros versos (“No cais
dourado da velha Bahia / Onde estava o capoeira / A Yayá também se via”) é fielmente
reproduzida nos três versos seguintes (“Juntos na feira ou na romaria / No banho de
49
cachoeira / E também na pescaria”), procedimento que, se levado em conta apenas o
aspecto melódico, poderia caracterizar esse trecho como um refrão.
Até mesmo trechos não-pertencentes a refrões são repetidos em outro contexto:
A repetição atinge até mesmo o plano harmônico, visto que a progressão de
acordes é a mesma em praticamente todo o samba.
4.2 Repercussão
As inovações feitas por Martinho33, frutos de uma necessidade de tornar o
samba-enredo mais leve, não tardaram a encontrar eco nas outras escolas. No carnaval
de 1969, Yayá do Cais Dourado já não era o único samba que se distanciava dos
aspectos estilísticos do samba-lençol. A influência de Martinho podia nitidamente
33 O compositor, aliás, jamais deixaria de questionar as estruturas do gênero. Sambas-enredo como Sonho de um sonho (1980), Raízes (1987) e Gbalá – viagem ao templo da criação (1993), todos para a Vila Isabel, mereceriam ser estudados detalhadamente, tamanha a sua originalidade.
50
sentida nos refrões dos sambas da Unidos de Lucas e do Salgueiro, este último com
grande sucesso de público:
E como bem observou José Ramos Tinhorão, no carnaval do ano seguinte (1970),
tal como havia sido feito em Carnaval de Ilusões, “seis das grandes escolas de samba
do Rio [de um total de dez que desfilaram no 1o grupo] transformavam motivos
tradicionais em atração de seus sambas” (TINHORÃO, s/d: 181), incluindo, é claro, a
Vila Isabel de Martinho da Vila. As estruturas repetitivas, características das cantigas
tradicionais, podem ser identificadas na maioria deles:
51
52
As consequências dessas inovações não se limitavam a uma mudança estética no
interior do samba-enredo; em um curto espaço de tempo o gênero se tornava cada vez
mais apto para ingressar na indústria do consumo que há algum tempo assediava
determinados aspectos do carnaval carioca34.
No final de 1967 havia sido lançado o primeiro LP35 com os sambas-enredo das
escolas do primeiro grupo (hoje chamado de grupo especial) para o carnaval do ano
seguinte, dando início a uma prática que nunca mais seria abandonada.
A gravação e lançamento dos sambas-enredo alguns meses antes do carnaval
trouxe mudanças importantes na maneira com que a música era entendida no desfile. De
acordo com Ana Maria Rodrigues,
até o início da transformação do samba-enredo em ‘samba-comercial’, na década de 70, os compositores não se haviam ainda preocupado com o fato de o público assistente cantar ou não o samba da escola, uma vez que o samba era feito ludicamente, para diversão dos integrantes do desfile. Para um bom desempenho na avenida, o que era uma questão de honra, o samba se ocupava em contar mais detalhadamente o enredo. Isso, aliado à preocupação em situar o tema nos feitos históricos, tornava os sambas difíceis de serem apreendidos em pouco tempo. Como ainda não havia grande divulgação, somente os assistentes que tivessem tido um contato anterior com a música cantavam junto (RODRIGUES, 1984: 65).
34 Como, por exemplo, o início da cobrança de ingressos para assistir ao desfile, em1962. 35 “Festival de Samba – Gravado Ao Vivo”, lançado pela gravadora DiscNews.
53
Pela primeira vez o público que não frequentava os ensaios das escolas podia
chegar ao desfile sabendo cantar todos os sambas. Além disso, o samba-enredo
despertava cada vez mais o interesse das rádios. De acordo com Monique Augras,
os sambas-enredo de maior sucesso passaram a ser os de mais fácil memorização. O grande público, submetido ao constante assédio das emissoras de rádio, tornava-se juiz da excelência dos sambas já divulgados antes do carnaval. Consagrava-se um processo circular, pelo qual o melhor samba-enredo era na verdade o mais divulgado, e vice-versa (AUGRAS, 1998: 85).
O espectador que não houvesse sido exposto ao disco ou às rádios não deveria,
entretanto, se preocupar: as feições que o samba-enredo vinha tomando contribuíam
para o fácil aprendizado das letras e melodias no próprio momento do desfile. A
repetição atuava como uma valiosa ferramenta para a memorização.
4.3 Pega no ganzê
O ponto culminante do processo de renovação e massificação do samba-enredo
foi atingido pelo samba do Salgueiro de 1971, Festa para um rei negro (popularmente
conhecido como Pega no ganzê), de autoria de Zuzuca. Sérgio Cabral nos dá uma ideia
do sucesso desse samba:
Descoberto pelos veículos de comunicação bem antes do carnaval, a gravação do samba Festa para um rei negro passou a ser executada pelas emissoras de rádio e o seu autor foi convocado para cantá-lo na Discoteca do Chacrinha, o programa mais popular da televisão brasileira. Dos bailes pré-carnavalescos ao carnaval propriamente dito, passando pela banda de Ipanema e por outras bandas de rua, o samba do Salgueiro foi a música mais cantada no verão carioca de 1971 (CABRAL, 1996: 196-7).
Com Pega no ganzê, o samba-enredo assumia definitivamente o status de
música de carnaval por excelência. Para isso, entretanto, precisou tomar emprestado
características da antiga dona do carnaval carioca, a marchinha carnavalesca, que
“desde os primeiros anos da década de 60 enfrentava um inexorável processo de
decadência” (CABRAL, 1996: 196).
54
De acordo com a definição de Luiz Tatit, as marchinhas “eram velozes e, ao
mesmo tempo, concentradíssimas: só refrão e segunda parte” (TATIT, 2000: 3). E é
exatamente essa a estrutura de Pega no ganzê 36. Com a simplicidade de sua forma
binária, e com seu reduzido número de compassos, o samba de Zuzuca golpeava
profundamente a tradição do samba-lençol ao acabar com o que ele tinha de excesso.
Tal golpe não se atinha apenas à questão formal. Se observarmos a parte A,
veremos que ela está inteiramente baseada no motivo rítmico-melódico aqui assinalado:
36 A segunda parte apresenta três letras distintas. As alterações melódicas decorrentes das diferenças entre os versos são mínimas, o que mantém a forma binária.
55
O mesmo ocorre com a parte B: a frequência com que a primeira frase é
retomada revela que nesse samba a repetição é o elemento a ser valorizado.
A estrutura rítmica de Pega no ganzê admitia ainda mais simplificações. A
famosa interpretação de Jair Rodrigues37, que retira o caráter sincopado presente na
gravação oficial da escola, revela a estreita ligação desse samba com a marcha.
37 No LP “Acadêmicos do Salgueiro apresenta: Os maiores sambas-enredo de todos os tempos”. Rio de Janeiro: Philips, 1971.
56
4.4 Refrões
Os refrões, de uma maneira geral, seriam bastante valorizados na década de
197038. São bastante comuns os sambas construídos com mais de dois deles; alguns,
como o exemplo abaixo, chegam mesmo a apresentar um refrão imediatamente após
outro, sem o intermédio de estrofes:
38 Raríssimos sambas, nessa década, não faziam uso de refrões. Esse é o caso de Mangueira em tempo de folclore (Mangueira, 1974) e Parapanã, o segredo do amor (Mangueira, 1977).
57
Cabe notar, igualmente, o menor número de compassos desse samba em
comparação com os lençóis.
Seriam justamente os refrões os principais atingidos pelas transformações
iniciadas por Martinho da Vila e radicalizadas pelo samba de Zuzuca. O grande sucesso
deste último não passou despercebido pelos compositores das outras escolas: no
carnaval do ano seguinte o Império Serrano já não tinha receio de desfilar com um
samba curtíssimo e de refrão bastante simples, mostrando que a era do samba-lençol,
gênero que seu maior compositor ajudou a consagrar, havia acabado39:
39 Isso não significa que sambas mais ou menos próximos do samba-lençol tenham desaparecido dos desfiles. Sua presença, no entanto, jamais voltaria ao nível das duas décadas anteriores.
58
E se olharmos alguns sambas dos anos 1970, veremos que simplicidade e
animação haviam se tornado as palavras-chave para um bom refrão40:
40 Fizemos questão de incluir nesses exemplos sambas anteriores ou do mesmo carnaval de Pega no Ganzê (1971) para mostrar claramente que, antes do aparecimento desse samba, refrões “simples e animados” já haviam caído na predileção de grande parte dos compositores. Assim, ao contrário do que prega o senso comum, Pega no Ganzê é uma consequência das rápidas transformações que passava o samba-enredo, e não uma ruptura radical com o que estava sendo feito.
59
A necessidade do fácil canto e memorização fez com que em pouco tempo os
compositores encontrassem as estruturas mais adequadas para sua realização. Entre
essas estruturas, chamou-nos a atenção uma bastante utilizada durante toda a década de
60
1970, a ponto de ter se tornado uma das marcas registradas do samba-enredo desse
período.
Ela é constituída de três partes: 1) apresentação de uma pequena célula rítmico-
melódica (proposição); 2) repetição rítmica dessa célula, geralmente com adaptações de
altura decorrentes da mudança harmônica 3) frase conclusiva de maior tamanho e
caráter contrastante (resolução).
PROPOSIÇÃO – REPETIÇÃO – RESOLUÇÃO
No exemplo acima, a diferença rítmica entre a proposição e a repetição só existe
por conta do melisma41 nesta última (sílaba lá entre o 2o e 3o compassos após a barra de
repetição).
Já no exemplo abaixo se dá o inverso: a proposição possui melisma e a
repetição o retira.
41 Canto de mais de uma nota em uma mesma sílaba.
61
Ainda outros exemplos:
62
A influência de Pega no Ganzê é inegável: expressões como “Oleolê, oleolá” (Em
cima da hora, 1975; Portela 1978), “Arerê, arerá” (Mocidade, 1976) e “Chuê, chuá”
(Vila Isabel, 1978) são herdeiras do famoso “Olelê, olalá” do samba do Salgueiro. E,
obviamente, a similaridade no plano poético é correspondida no plano melódico, ainda
que Pega no Ganzê tenha utilizado utilize somente proposição e repetição.
Sambas com o esquema de refrão acima mencionado ainda podiam ser
encontrados nos anos 1980, embora sua presença tenha diminuído consideravelmente a
partir da segunda metade dessa década:
63
O que não impediu seu aparecimento em alguns sambas dos anos 1990 e 2000:
4.5 Frases compartilhadas
Semelhanças rítmicas, melódicas e harmônicas, como as vistas nos sambas
acima citados, não são de exclusividade dos refrões e tampouco são restritas ao período
estudado. Antes, podemos afirmar que o compartilhamento de materiais melódicos por
64
diferentes sambas pode ser encontrado em todos os subgêneros do samba e - é
importante salientar - nas mais diversas épocas.
Durante a confecção desta pesquisa, conseguimos catalogar um grande número
de frases compartilhadas. Julgamos que não cabe aqui apresentá-las; sua leitura seria
exaustiva e, ainda assim, não daria conta de todas as situações existentes no gênero.
Além disso, oportunidades não faltarão para reconhecê-las, já que poderão ser vistas
quando tratarmos de estruturas de grande relevância para o entendimento do samba-
enredo.
De qualquer forma, durante a análise dos sambas da década de 1970, chamou-
nos a atenção uma prática, no mínimo, curiosa: o aproveitamento do material melódico
de um determinado samba por um ou mais sambas do ano imediatamente seguinte.
Algumas das situações mais relevantes estão relacionadas a seguir:
Exemplo 1
Exemplo 2
65
Exemplo 3
Exemplo 4
Exemplo 5
66
Exemplo 6
Para a maioria dos sambistas, o compartilhamento melódico não é considerado
uma prática de má-fé, sendo antes enxergado como vocabulário melódico característico
do gênero. Tendemos para essa mesma visão, amparados pelas descobertas que serão
apresentadas no próximo capítulo. Ainda assim, não podemos deixar de pensar, sem a
intenção de causar polêmica, que tal compartilhamento em sambas de carnavais
consecutivos, como os acima mencionados, pode ser um sintoma que fatores
extramusicais (a busca pelo sucesso, por exemplo, que, teoricamente, poderia ser mais
facilmente alcançado por meio do “empréstimo” de material melódico relevante de um
samba do ano anterior) poderiam estar influenciando a composição do samba-enredo.
67
5 – ESTRUTURAS CARACTERÍSTICAS
5.1 Padrão harmônico característico
Neste capítulo, faremos uma pausa na nossa cronologia das transformações do
samba-enredo para tratarmos de estruturas que, por atravessarem fronteiras temporais e
estilísticas, merecem ser observadas de modo atento.
A primeira delas diz respeito ao aspecto harmônico. O método de análise aqui
utilizado é o mesmo do livro “Harmonia e Improvisação” de Almir Chediak
(CHEDIAK, 1986), que enfoca a harmonia da música popular. Essa escolha foi feita por
conta da proximidade desse tipo de análise com a cifragem utilizada pelos músicos que
atuam nessa área.
A análise harmônica dos sambas-enredo de todas as décadas revelou-nos a
existência de um mapa harmônico que serve como base para grande parte das obras
pertencentes a esse gênero. Dizemos base porque geralmente esse mapa corresponde
aos primeiros compassos do samba, servindo como ponto de partida para o restante da
composição42. Sua estrutura está demonstrada logo abaixo:
Padrão harmônico característico
42 Ainda que o mapa harmônico possa estar inserido em outras partes do samba, sua presença só será considerada quando estiver em seu início. Isso servirá para comprovar a força de sua utilização na sua função principal, a de ponto de partida. Quando essa função é claramente exercida por um refrão (como é o caso de Pega no Ganzê), o mapa somente será considerado se for apresentado imediatamente após ele.
68
Nos quatro primeiros compassos, os acordes V colocados entre parênteses
podem ou não ser tocados, sendo encontradas nas gravações as duas possibilidades. Nos
compassos 5 e 6 a escolha do acorde vai depender da linha melódica. O uso, por
exemplo, na tonalidade de Do maior, das notas “Mib” ou “Fá#” é característico do
movimento descendente do acorde diminuto ao IIm. Nesse caso, o acorde bIII° é o
utilizado. Já o acorde V7 do último compasso pode ser substituído por um movimento
em direção a outro grau da escala.
Nesse mapa harmônico, os quatro primeiros compassos são destinados à
afirmação do I. Os compassos 5 a 8 preparam a polarização para o IIm, que será
afirmado no 9o compasso. E, por fim, a progressão a partir do 13o compasso garante o
retorno ao I. Cabe notar que essa estrutura de dezesseis compassos pode ser ainda
reduzida (menor número de compassos) ou expandida (maior número) sem que a
trajetória harmônica aqui descrita seja alterada. Sambas que se comportam dessa
maneira serão apresentados oportunamente.
A utilização desse mapa harmônico parece estar intimamente ligada ao
surgimento do samba-enredo, já que começa a ser mais claramente percebida a partir
dos anos 1950. Entretanto, é somente a partir dos anos 1970 que sua presença adquire
grande notabilidade, a ponto de tornar-se característica essencial do gênero. É por essa
razão que o denominamos padrão harmônico característico43.
Para se ter uma idéia da crescente importância desse padrão à medida que a
década de 1970 avançava, basta dizermos que em 1968, por exemplo, somente um (O
tronco do Ipê, da Portela) dos dez sambas apresentados pelas escolas pertencentes ao
antigo Grupo 1 (atual Grupo Especial) se utilizava dele. Três anos depois, em 1971, já
eram três44 dos dez sambas (Pega no Ganzê, Salgueiro; Lapa em três tempos, Portela;
Ouro mascavo, Vila Isabel). Em 1975, cinco dos doze sambas compartilhavam o
mesmo esquema (Imagens poéticas de Jorge de Lima, Mangueira; Macunaíma, herói de
nossa gente, Portela; Nos confins de Vila Monte, União da Ilha; O grande decênio,
Beija-Flor; Personagens marcantes do carnaval carioca, Em cima da hora) e outros três
eram variações (O mundo fantástico do Uirapuru, Mocidade Independente; Cidades
feitas de memórias, Unidos de Lucas; Quatro séculos de paixão, Vila Isabel). E em 43 É evidente que a utilização desse padrão é feita de maneira espontânea pelos compositores, e não por uma seleção a partir de uma possível lista de progressões harmônicas. 44 E isso porque não estamos considerando o samba da Imperatriz Leopoldinense (Barra de ouro, barra de rio, barra de saia), que tem o final expandido e o do Império Serrano (Nordeste, seu povo, seu canto e sua glória), que não segue rigorosamente a harmonia do padrão, embora os acordes utilizados tenham as mesmas funções.
69
1978, a maior proporção: sete dos dez sambas se valiam do padrão (O Amanhã, União
da Ilha; A criação do mundo na tradição nagô, Beija-Flor; Dos carroceiros do
imperador ao Palácio do Samba, Mangueira; Dique, um mar de amor, Vila Isabel;
Mulher à brasileira, Portela; Sonho infantil, Arranco do Engenho de Dentro; Talaque,
talaque, o romance da Maria-Fumaça, Arrastão de Cascadura).
Desde essa época, o padrão harmônico característico jamais deixou de ser
utilizado. E ainda que sua presença não tenha sido tão grande em alguns carnavais,
nunca deixou de dar sinais de força: em 1987, por exemplo, somente seis sambas
(Estrela Dalva, Imperatriz Leopoldinense; Tupinicópolis, Mocidade Independente;
Capitães do Asfalto, São Clemente; Raízes, Vila Isabel; O reino das palavras – Carlos
Drummond de Andrade, Mangueira; Com a boca no mundo, quem não se comunica se
trumbica, Império Serrano) dos dezesseis apresentados não seguiam o padrão. Se
levarmos em conta que os três primeiros são construídos em tons menores, e não
poderiam, de qualquer forma, estar de acordo com ele, o número torna-se ainda mais
impressionante.
E para demonstrarmos o quanto seu uso ainda é frequente, no carnaval do ano de
encerramento desta pesquisa (2009) cinco dos doze sambas fizeram uso do padrão de
maneira rigorosa (Tambor, Salgueiro; E por falar em amor, onde anda você?, Portela;
Vira-Bahia, pura energia, Viradouro; Mocidade apresenta: Clube Literário Machado
de Assis e Guimarães Rosa, estrelas em poesia!, Mocidade Independente; Não me
proíbam criar. Pois preciso curiar! Sou o país do futuro e tenho muito a inventar!,
Porto da Pedra) e um de maneira expandida (Tijuca 2009: uma odisséia sobre o espaço,
Unidos da Tijuca).
O fato de os compositores de samba-enredo preferirem essa progressão
harmônica a tantas outras possíveis intrigava-nos a cada vez que confirmávamos seu
constante e abundante uso. Qual seria a razão dessa supremacia? Algumas conclusões
podem ser tiradas a partir da análise do comportamento da melodia no interior do
padrão. É o que será visto nos próximos tópicos.
5.2 Transposição fraseológica
Uma das razões para a grande força do padrão harmônico característico pode
estar relacionada com a tradição de transposição fraseológica existente na música
70
popular brasileira, herdada, em parte, das técnicas de composição da música erudita
europeia45. O choro, por exemplo, faz bastante uso desse procedimento:
Schoenberg, em seu célebre Fundamentos da Composição Musical
(SCHOENBERG, 1991), ao tratar dos temas do repertório do período clássico,
argumenta que a transposição na forma dominante (transposição de uma frase no I para
o V), “através de sua formulação ligeiramente contrastante, gera variedade na unidade”
(1991: 49, grifo nosso). Obviamente, transposições para outros graus da escala também
favorecem o alcance desse objetivo.
No samba-enredo, a quase totalidade das transposições fraseológicas é feita no
IIm. E é nesse ponto que o padrão harmônico atua de maneira decisiva.
Se observarmos novamente sua estrutura, lembraremos que o IIm é pela primeira
vez atingido no 7o compasso, mas somente é afirmado no 9o, quando é mantido por
ainda mais um compasso:
45 Notadamente do Barroco (início do século XVII até a metade do século XVIII) e Classicismo (segunda metade do século XVIII até o início do século XIX).
71
A primeira frase (a), no I, costuma ser apresentada entre o 1o e 4o compassos.
Sua transposição (a’), no IIm, é feita quando este é afirmado, ou seja, a partir do 9o
compasso até, aproximadamente, o 12o.
A distância relativamente grande entre a frase original e sua transposição deve
ser preenchida de alguma maneira. Para isso, é utilizada uma frase entre o 5o e 8o
compassos (geralmente antecedida por anacruse) que atua como elemento contrastante
(b), fazendo com que a transposição apareça de forma bastante destacada. A partir do
13o compasso, o elemento de contraste é repetido de forma variada (b’) ou faz uso de
novo material (c), ambos com a finalidade de conclusão do padrão harmônico
característico46.
Essa maneira de organização do material melódico no interior do padrão é
bastante próxima da ideia de período formulada por Schoenberg. Nessa estrutura,
“a primeira frase [ou membro de frase] não é repetida imediatamente, mas unida a formas-motivo mais remotas (contrastantes), perfazendo assim, a primeira metade do período: o antecedente. Após esse
46 Embora tenhamos denominado os materiais melódicos apresentados a cada quatro compassos do padrão como frases, talvez fosse melhor classificá-los como membros de frase. De acordo com Benward & Saker (2003: 113), “a frase é uma idéia musical sólida geralmente finalizada por uma cadência harmônica, melódica e rítmica” que pode, conforme adiantamos, ser dividida em membros. Estes são, ainda segundo os mesmos autores, “geralmente separados por uma nota de longa duração ou pausa, e de maneira suficiente para que possamos distingui-los como unidades individuais”, sendo que “o segundo membro de frase é, por vezes, uma repetição ou sequência do primeiro”, ou, mais frequentemente, “um elemento contrastante” (2003: 113). Como em vários sambas que seguem o padrão harmônico característico só podemos perceber um repouso melódico mais claro por volta do 7o e 8o compassos, podemos considerar os oito primeiros compassos como uma frase dividida em dois membros (a cada quatro compassos), agindo da mesma maneira os oito compassos seguintes.
72
elemento de contraste, a repetição não pode ser muito adiada, a fim de não colocar em risco a compreensibilidade47; daí o fato de a segunda metade, o consequente, ser construída como uma espécie de repetição do antecedente” (SCHOENBERG, 1991: 51).
A maioria dos consequentes do repertório clássico começa no I, repetindo o
perfil melódico do início do antecedente. Entretanto, Schoenberg acrescenta que o
“consequente pode, inclusive, iniciar em um grau diferente” (1991: 52). É exatamente
isso o que ocorre no padrão harmônico característico do samba-enredo, já que, como
vimos, a repetição (consequente) da frase inicial (antecedente) é apresentada transposta
no IIm.
Finalmente, apresentaremos exemplos de sambas construídos a partir do padrão
e que utilizam a transposição fraseológica48. Neste primeiro, cabe assinalar que os
elementos contrastantes b e c são antecipados, aparecendo nos compassos 4 e 12,
respectivamente, ao invés dos compassos 5 e 13, como é o de costume.
47 Conceito que é bastante caro ao famoso compositor e teórico, ao ponto de ter afirmado que “o real propósito da construção musical não é a beleza, mas a inteligibilidade [ou compreensibilidade]” (SCHOENBERG, 1991: 51; nota de rodapé). 48 O leitor deverá notar as semelhanças rítmicas de a e sua transposição (a’) entre os exemplos 1, 2 e 3, assim como entre os exemplos 5 e 6. Isso demonstra que semelhanças de qualquer espécie podem ser encontradas até mesmo em sambas separados por décadas de distância.
73
Exemplo 1
Bastante interessante é o samba da Portela de 1971, Lapa em três tempos, no
qual seus compositores (Ary do Cavaco e Rubens) aproveitam o material melódico do
samba Abre a Janela, de autoria de Arlindo Marques Júnior e Roberto Riberti e lançado
com sucesso por Orlando Silva no carnaval de 193849, e transpõe-no de acordo com o
mapa harmônico:
Exemplo 2
No exemplo seguinte, o elemento contrastante praticamente não existe, visto que
é quase uma inversão perfeita do sentido melódico de a:
49 Disco Victor número 34279 (78 rpm).
74
Exemplo 3
O próximo samba utiliza, nos compassos 12 e 13, o próprio material de a’ antes
de apresentar o elemento contrastante conclusivo (c), se enquadrando nos casos em que
o segundo membro de frase é “uma repetição ou sequência do primeiro” (BENWARD
& SAKER, 2003: 113).
Exemplo 4
75
Já os sambas abaixo seguem a organização fraseológica habitual:
Exemplo 5
Exemplo 6
76
O fato de a transposição fraseológica ser, consagradamente, um dos recursos
mais eficazes para um bom desenvolvimento do discurso musical explica em parte a
grande utilização do padrão harmônico característico, visto que este, por sua própria
estrutura, fornece as condições ideais para sua realização.
5.3 Frase característica
A importância do padrão não se limita ao favorecimento da técnica de
transposição fraseológica. O estudo fraseológico do samba-enredo nos revelou algo
ainda mais surpreendente: a existência de uma frase musical atrelada a esse mapa
harmônico.
Antes de qualquer análise, observemos os primeiros compassos de dois sambas
que seguem o padrão harmônico característico. Todos os exemplos aqui citados estarão
na tonalidade de Dó maior com o objetivo de facilitar a comparação.
77
Podemos perceber nos dois casos, a utilização, entre os compassos 9 e 11, da
mesma frase musical. Essa frase, conforme já assinalado nos colchetes, será denominada
frase característica:
Frase característica
A frase característica está quase tão presente no samba-enredo quanto o padrão
harmônico característico, ainda que este último não implique o uso da primeira. Essa
correspondência é tão grande que pode ser notada mesmo nos sambas em que o padrão
harmônico não aparece nos primeiros compassos:
78
Na realidade, a frase característica não tem um perfil melódico fixo, admitindo
inúmeras variações em seu contorno. Optamos por escolher uma dessas possibilidades
por conta de seu grande uso, embora outras igualmente frequentes pudessem ser eleitas
para ilustração. De qualquer maneira, a frase característica deve obrigatoriamente seguir
os seguintes requisitos:
• estar posicionada na afirmação do IIm (mais comumente no 9o compasso,
embora, como veremos, possa ser antecipada ou atrasada);
• ser concluída com uma suspensão 4-3 (4a justa resolvendo na 3a maior) no
acorde dominante do 11o compasso, frequentemente precedida por um salto
ascendente de 3a (portanto, em Dó maior, as últimas notas serão lá-dó-si).
Alguns exemplos de sambas que apresentam a frase característica com perfil
melódico distinto do que foi aqui apresentado ou com posicionamento diferente do
usual estão abaixo relacionados:
79
Nesse samba são mantidos os saltos, no 10o compasso, de 4a justa descendente
(ré-la) e 3a menor ascendente (lá-do), e no 11o compasso o movimento por grau
conjunto próprio da suspensão 4-3.
No exemplo acima, o tamanho da primeira frase, maior que o usual, fez com que
o padrão harmônico característico fosse expandido em dois compassos (a harmonia dos
compassos 3 e 4 é repetida nos compassos 5 e 6), deslocando a frase característica para
o compasso 11. No que concerne a essa, são mantidos os mesmos desenhos melódicos
80
assinalados no exemplo anterior. A suspensão no acorde dominante (c. 13) apresenta
ritmo mais curto, mas ainda se faz presente.
Nesse caso, percebe-se que ocorreu o inverso: enquanto no anterior o mapa
harmônico foi expandido em dois compassos, neste são suprimidos os compassos 3 e 4
do padrão característico. Dessa vez, portanto, a frase característica é adiantada dois
compassos, aparecendo no 7o compasso.
No início deste capítulo, dissemos que no ano de 1978 foi encontrada uma das
maiores porcentagens de sambas construídos sobre o padrão harmônico característico:
sete entre os dez sambas. Para se ter uma ideia da importância da frase característica,
basta dizer que desses sete, apenas três (O amanhã, da União da Ilha, Mulher à
Brasileira, da Portela, e Dique, um mar de amor, da Vila Isabel) não se valem dela.
Vejamos como a frase se comporta nos outros quatro sambas:
81
Neste último, o padrão harmônico aparece em dois momentos distintos, sempre
com a frase característica:
E veremos que, tal como o padrão harmônico, a frase atravessa décadas:
82
A frase característica é o exemplo máximo de compartilhamento de material
melódico no samba-enredo. Podemos mesmo considerá-la como o mais expressivo
elemento identificador desse gênero, sua marca sonora50. Não é à toa que o cantor e
50 Acácio Tadeu de Camargo Piedade tem desenvolvido pesquisas acerca da aplicação da teoria das tópicas na música brasileira. As tópicas são figuras “de retórica musical que portam significado cultural e historicamente marcado”, sendo que “sua plenitude significativa se dá não apenas por sua feição interna, mas também pela posição de sua articulação no discurso musical” (Piedade, 2006). Assim, gestos musicais característicos da música brasileira como, usando as classificações de Piedade, o “nordestino”, o
83
compositor João Bosco se vale dela em seu samba Plataforma51, no qual faz referência
ao universo das agremiações carnavalescas:
“brejeiro” ou “época de ouro”, quando usados no momento correto, carregariam em si uma mensagem que poderia ser apreendida pelo público. Dessa forma, poderíamos considerar a frase característica do samba-enredo como uma tópica dotada, ao mesmo tempo, de máximo e neutro potencial retórico: máximo quando em uma situação fora de seu contexto de origem, como, por exemplo, em uma improvisação livre, sua utilização poderia remeter o ouvinte treinado a esse gênero; e neutro quando levamos em conta que, já tratando do samba-enredo propriamente dito, a linha melódica da frase característica é vestida em versos adequados aos mais diferentes enredos, o que nos impede de afirmar com segurança a existência de uma expressão extramusical em seu interior. De qualquer maneira, estudos sobre a retórica musical do samba-enredo já estão sendo desenvolvidos pelo autor da presente pesquisa, e parecem nos indicar um diálogo ainda maior do que imaginávamos entre a melodia do samba e os outros elementos do desfile. 51 Presente no disco Tiro de Misericórdia (1977).
84
6 – TEMPOS RECENTES
6.1 Marcha-enredo
A partir do início década de 1980, começam a aparecer os primeiros sinais do
fenômeno que mais tem causado polêmica nos debates acerca do samba-enredo.
Apontada por pesquisadores e sambistas como elemento central da descaracterização do
gênero, a cometricidade ganha espaço nas linhas melódicas a partir do período
mencionado, a ponto de ter sido criada uma nova classificação (pejorativa, ressalta-se),
marcha-enredo, para os casos em que há seu uso excessivo.
Tal classificação tem razão de existir, pois se lembrarmos de qualquer
marchinha carnavalesca, veremos que a cometricidade é um de seus elementos
característicos52:
52 Cabe notar no exemplo de Lamartine Babo (Hino do Carnaval Brasileiro) a mesma sequência de acordes do padrão harmônico característico, assim como a utilização da técnica de transposição fraseológica, o que nos faz pensar que esse padrão pode ter uma importância ainda maior para o estudo da música popular brasileira.
85
No samba-enredo, a cometricidade se manifestou com mais força inicialmente
nos refrões, muito provavelmente por conta da necessidade, nesses lugares, de um
momento de explosão e comunhão entre todos os componentes da escola:
O caráter cométrico parecia querer invadir até mesmo o famoso samba do
Império Serrano que criticava os rumos do carnaval carioca, Bumbum Paticumbum
Prugurundum:
86
Não demoraria, entretanto, para que as estrofes também fossem atingidas:
A tendência de cometricidade ganhou tal força no gênero que, já na segunda
metade da década de 1980, podemos encontrar “sambas” com linha melódica quase
inteiramente marcheada. Este é o caso do exemplo abaixo:
87
88
A explicação mais aceita para esse fenômeno é aquela que o relaciona ao
processo de “gigantismo” que acometeu as escolas a partir da década de 1970. Como o
número de desfilantes crescia enormemente (desfiles com mais de 4000 pessoas
tornaram-se comuns) e o tempo de desfile não aumentava na mesma proporção, tornou-
se necessário acelerar o andamento do samba para garantir a passagem de todos os
componentes pela avenida no tempo especificado pelo regulamento53.
Márcio Coelho, em seu artigo Frevo-enredo: de como o samba-enredo tende a se
tornar marchinha de carnaval, explica que “quando antecipamos um acento [síncopa], já
estamos imprimindo velocidade a um arranjo rítmico” e que “ao acelerar[mos] o
andamento de uma música, os pulsos ficam [ainda] mais próximos e, no limite, tendem
a se conjungir, ou se fundir” (COELHO: 4, em fase pré-publicação). Ou seja, com a
diminuição do espaço sonoro, decorrente da aceleração excessiva, a execução da
síncopa, elemento considerado essencial ao samba, torna-se dificultada. É por essa razão
que, no samba-enredo acelerado, cada tempo do compasso acaba sendo preenchido por
duas colcheias, visto que essas, por sua própria estrutura simples (tempo forte e sua
metade, contratempo), podem admitir andamentos extremamente velozes sem prejuízo
de sua execução.
53 Graças à Internet, pudemos ter acesso a trechos dos desfiles do carnaval das mais diversas épocas. Em 1972, por exemplo, verificamos que o andamento imposto pelas escolas girava em torno de 115 a 120 bpm (http://www.youtube.com/watch?v=4xkF9-8RKsI). Quinze anos depois, no carnaval de 1987, o andamento do exemplo aqui citado, O Tititi do Sapoti (Estácio de Sá), já ultrapassava 130 bpm (http://www.youtube.com/watch?v=aCQ6zjwLEK4). E no desfile de 2004, Breazail, da Imperatriz Leopoldinense, chega a ultrapassar a impressionante marca dos 150 bpm (http://www.youtube.com/watch?v=-5zGOTGXXv4&feature=related).
89
É importante dizer que o andamento rápido facilita o aparecimento de marchas-
enredo, mas não, necessariamente, as implica. A reedição54, por exemplo, de Aquarela
Brasileira pelo Império Serrano em 2004 foi executada em andamento bastante rápido
(acima de 140 bpm), mas ainda suficiente para que as síncopas fossem preservadas.
O Manual do Julgador do Carnaval 2008, publicado pela Liga Independente das
Escolas de Samba (LIESA)55, orienta os jurados do quesito samba-enredo a observarem,
no sub-quesito melodia, “as características rítmicas próprias do samba” (LIESA, s/d:
26). Essas talvez sejam as mesmas recomendadas pela Carta ao Samba, documento
aprovado no I Congresso Nacional do Samba, realizado no Rio de Janeiro em 1962, no
qual consta que “[...] o samba caracteriza-se pelo emprego da síncopa. Preservar as
características tradicionais do samba significa, portanto, em resumo, valorizar a
síncopa” (CARNEIRO, 1974 apud SANDRONI, 2001: 19). De qualquer maneira,
sambas-enredo marcheados nunca foram punidos rigorosamente pelos jurados, fato que
pode ter estimulado sua permanência nos desfiles até os dias de hoje56.
Por fim, mostraremos alguns sambas que chamam atenção pela acentuada
cometricidade:
54 A partir de 2004, as escolas passaram a poder reapresentar enredos e sambas de carnavais passados. 55 Disponível em http://liesa.globo.com/2008/por/03-carnaval08/manual/Manual_Julgador_2008.pdf 56 Cabe dizer que essa permanência deve-se ainda ao apelo irresistível que o andamento frenético e a melodia marcheada podem causar no folião, em especial no turista estrangeiro, que se sente mais à vontade com divisões rítmicas de mais fácil decodificação.
90
6.2 Figuras de preenchimento
Pudemos verificar, no samba-enredo do período agora abordado, o aparecimento
de estruturas musicais que se tornaram bastante utilizadas durante anos, mas que,
progressivamente, acabaram deixando de despertar interesse nos compositores.
Estamos nos referindo às figuras de preenchimento, células rítmicas que têm
como função preencher o espaço, antes ocupado por pausas, entre duas frases musicais.
Não devemos confundi-las com os preenchimentos realizados pelos intérpretes (também
chamados de cacos): estes geralmente têm caráter improvisatório e não são
acompanhados pelo canto dos componentes e integrantes do corpo coral da escola. As
91
figuras de preenchimento, por seu lado, são consideradas pertencentes à linha melódica
do samba e, por isso, cantadas por todos. Além disso, até mesmo a bateria da escola
costuma, nesses casos, acompanhar sua divisão rítmica. De qualquer maneira, a origem
dessas figuras parece estar na necessidade dos compositores de integrarem o que
somente era privilégio dos intérpretes ao plano melódico fixo.
Embora tenham se tornado prática corrente em meados da década de 1980, as
figuras de preenchimento podem ser vistas já no final da década de 1970, como é o caso
do samba da Mocidade Independente de 197957:
As primeiras figuras desse tipo que apareceram no gênero quase sempre
apresentavam a mesma divisão rítmica:
É evidente que o aparecimento dessa divisão não implica sua classificação como
figura de preenchimento. Para que seja considerada como tal, a letra que a reveste deve
ser uma repetição da(s) última(s) palavra(s) do verso que a antecede ou, pelo menos,
fazer referência a ele. Isso evidencia sua função como preenchimento e não como um
novo elemento para a compreensão do enredo58.
57
Na gravação oficial desse samba-enredo podemos ter uma indicação da ligação dessas estruturas com a figura do intérprete, já que na repetição do samba (onde, tradicionalmente o corpo coral acompanha o intérprete) o corpo coral se abstém de cantá-las. No vídeo do desfile, entretanto, podemos ver claramente a sua execução por todos os componentes da escola, demonstrando que elas já eram entendidas como parte da linha melódica (http://www.youtube.com/watch?v=4V29SPmkElQ). 58 Embora este trabalho tenha se comprometido a abordar apenas o aspecto musical, o reconhecimento de um elemento tão importante como as figuras de preenchimento não teria sido possível se não
92
Como podemos ver nos sambas a seguir, a divisão rítmica é sempre fixa, mas a
melodia pode ser alterada:
estivéssemos atentos também ao aspecto poético, o que é fundamental quando se estuda, em qualquer ângulo, um gênero de canção.
93
Não demorou muito, entretanto, para que os compositores encontrassem novas
maneiras de preenchimento. A partir do final dos anos 1980 já podemos perceber uma
maior agilidade rítmica nessas figuras:
94
Neste samba, por exemplo, um dos preenchimentos é feito da maneira
“tradicional” e o outro tem divisão mais “arrojada”:
A utilização dessa técnica diminuiu consideravelmente no final dos anos 1990,
estando hoje em dia praticamente em desuso. O exemplo abaixo foi um dos últimos
catalogados em nossa pesquisa que ainda se valiam dela:
95
6.3 Tons homônimos
A prática de modulação entre tonalidades homônimas, que havia sido iniciada no
samba-lençol de maneira relativamente tímida, cresceu enormemente no samba-enredo
das últimas três décadas. Atualmente, são raros os sambas construídos em apenas um
modo (maior ou menor): no ano de 2008, por exemplo, todos os sambas das escolas do
Grupo Especial fizeram uso dessa forma de modulação, o que faz com que a
consideremos um dos pilares do samba-enredo contemporâneo.
Não é difícil entender as razões de sua larga utilização: sua execução é
relativamente simples e, assim como ocorria no samba-lençol, garante a tão almejada
diversidade à linha melódica.
Alguns sambas-enredo destacam-se pela maneira com que utilizam esse recurso.
Nos exemplos abaixo, a tonalidade inicial se sustenta por apenas alguns compassos para
logo ser transformada em seu homônimo:
96
Evidentemente, procedimentos como esses não são muito comuns, mas ilustram
bem a que ponto essa prática pode atingir.
A partir da década de 1990, os refrões também passam a ser alvos da modulação
homônima. Os sambas a seguir são bons exemplos disso:
97
Esse recurso, aliás, está atualmente bastante em voga: no carnaval de 2009, por
exemplo, cinco (No chuveiro da alegria, quem banha o corpo lava a alma na folia,
Beija-Flor; E por falar em amor, onde anda você?, Portela; Vira-Bahia, pura energia,
Viradouro; Neste palco da folia, é minha Vila que anuncia: Theatro Municipal, a
centenária maravilha, Vila Isabel; Não me proíbam criar. Pois preciso curiar! Sou o
país do futuro e tenho muito a inventar!, Porto da Pedra) dos doze sambas-enredo
apresentados pelas escolas do Grupo Especial possuem um refrão composto nesses
moldes.
A propósito, a importância da modulação pôde ser observada no fato ocorrido
com o samba da Portela acima citado. Os primeiros compassos de seu refrão central,
98
originalmente construído em tonalidade menor e apresentado dessa maneira durante
todo o período de eliminatórias, foram alterados, na gravação oficial, para a tonalidade
homônima maior59. A mudança, causadora de bastante polêmica em fóruns de discussão
na Internet e atribuída por muitos à diretoria da escola, elevou consideravelmente a
tessitura melódica desses compassos, o que parece ser indício, mais uma vez, da quase-
obrigatoriedade de um elemento de empolgação no refrão. As duas versões,
apresentadas aqui na mesma tonalidade, estão logo abaixo:
59 A primeira versão desse samba, composto por Ciraninho, Wanderley Monteiro, Diogo Nogueira, L.C. Máximo e Júnior Escafura pode ser encontrada na sessão de fonogramas do site Galeria do Samba (http://fonogramas.galeriadosamba.com.br/).
99
6.4 Refrões responsoriais
Assim como as figuras de preenchimento, a estrutura de que trataremos agora
apareceu inicialmente de maneira discreta e, comprovada sua funcionalidade, foi
adotada pelo samba-enredo como mais uma ferramenta de composição.
Os refrões responsoriais, assim chamados por conta de seu formato de
“pergunta e resposta”, começaram a ser percebidos em grande escala a partir da década
de 1990 (e para isso muito contribuiu o imenso sucesso de Peguei um Ita no Norte,
samba do Salgueiro de 1993 popularmente conhecido como Explode coração) e
seguem, nos dias de hoje, sendo bastante utilizados pelos compositores. Sua
organização interna é feita da seguinte maneira:
a) apresentação de uma frase musical composta por dois membros: pergunta (o
maior deles) e resposta (sempre de curta duração). Estes são separados por
pausa ou nota de longa duração pertencente à pergunta;
b) uma ou duas repetições variadas dessa frase;
c) frase intermediária(em alguns casos) frequentemente sugerindo o elemento
responsorial;
d) frase conclusiva (resolução).
Refrões como esses estão abaixo citados. Cabe notar que todos eles
compartilham, com algumas poucas alterações, a mesma sequência harmônica:
100
101
6.5 Padrão formal
Em nosso trabalho, tivemos a oportunidade de constatar a versatilidade do
samba-enredo quanto à questão formal. Vimos que o gênero já esteve moldado em
estruturas simples como a forma binária, em outras mais complexas como as dos
lençóis, e se valeu, em cada período estudado, de um maior ou menor número de
refrões.
Diante dessa pluralidade de formas, chamou-nos a atenção, nos “tempos
recentes” abordados neste capítulo, a preferência cada vez maior dos compositores por
um único padrão formal. Seu esquema está aqui descrito:
PRIMEIRA PARTE
REFRÃO CENTRAL
SEGUNDA PARTE
REFRÃO PRINCIPAL (OU DE CABEÇA)
Padrão formal
Na verdade, essa estrutura é antes uma forma poética do que uma forma musical,
já que cada uma dessas quatro divisões corresponde a uma estrofe. Isso não significa
que cada estrofe corresponda a apenas uma parte musical60; duas ou mais partes
musicais podem estar contidas na primeira e segunda partes poéticas. Os refrões, por
sua vez, sempre apresentam somente uma parte musical cada um.
Para ficar mais claro, mostraremos como o samba-enredo com o padrão formal
poético poderia ser organizado:
Exemplo 1:
FORMA POÉTICA: A (1ª parte) B (refrão central) C (segunda parte) D (refrão principal)
FORMA MUSICAL: A B C D
Exemplo2:
FORMA POÉTICA: A (1ª parte) B (refrão central) C (segunda parte) D (refrão principal)
FORMA MUSICAL: A, B (...) C D, E (...) F
60 Como dissemos anteriormente, a divisão de partes aqui apresentada procura levar em conta a progressão harmônica, os pontos de relaxamento rítmico e/ou melódico e a ocorrência de elementos que possam dar unidade a um determinado trecho.
102
Em resumo, a forma poética é sempre fixa; já a forma musical apresenta dois
refrões e, teoricamente, um número ilimitado de materiais melódicos entre eles.
Podemos ver tudo isso que acabamos de dizer no samba da Viradouro de 2000,
Brasil: visões de paraísos e infernos. Sua letra integral é a seguinte:
Brasil: visões de paraísos e infernos
(Gilberto Gomes, R. Mocotó, Gustavo, P.C. Portugal, Dadinho)
Na era medieval começa o meu carnaval
No paraíso eu me vesti de branco
E no "martírio eterno", o vermelho é meu manto
Navegando ao Oriente, "seu" Cabral
O "Jardim das Delícias" descobriu
"Seu" Caminha escreveu o que ele viu (PRIMEIRA PARTE)
Maravilhas do Brasil
Bordunas, tacapes e Ajarés
Na dança o índio põe aos seus pés
Mas nascem ideias diversas, são mentes perversas
Não foi essa a lição dos pajés
Irê, irê, pra agba yê
O negro canta, o negro dança em liberdade (REFRÃO CENTRAL)
Irê, irê, pra agba yê
Pra agba yê, felicidade
Bem longe daqui, na festa da coroação
O negro africano, nos seus desenganos
Desfaz-se dos planos, pro branco explorar
Preso nas correntes da vida (SEGUNDA PARTE)
São marcas que jamais esquecerá
Mas o tempo passou e a felicidade eu vejo brotar
Na luz da esperança, há paz e alegria
Pro rei do universo abençoar
O dia vai raiar, amor, amor
Com a Viradouro eu vou, eu vou, eu vou (bis) (REFRÃO PRINCIPAL)
Meu canto de amor se espalha no ar
Quinhentos anos vamos festejar
103
Já sua divisão melódico-formal é feita desta maneira:
104
105
Portanto, as formas poética e musical desse samba se comportam assim:
FORMA POÉTICA: A (1ª parte) B (refrão central) C (segunda parte) D (refrão principal)
FORMA MUSICAL: A, B, C D E, F G
De qualquer maneira, a construção da forma e do discurso musical é orientada
pela forma poética, isto é, cada uma das partes desta última é correspondida no plano
melódico de maneira mais ou menos pré-definida. Por exemplo, o refrão principal (“D”
na forma poética), conforme nos disse em entrevista um dos compositores do samba
acima citado, Gusttavo Clarão61, “normalmente é o auge, é a parte que deve marcar para
cair na boca do povo” (CLARÃO, 2009, entrevista)62. O refrão central, por sua vez,
geralmente é menos explosivo que o principal, assumindo, em muitos casos, um caráter
lírico.
Já a primeira e segunda partes (“A e “C” da forma poética), por contarem
frequentemente com farto material melódico, o que diminui a unidade, são mais difíceis
de serem definidas de maneira generalizada. Com relação à segunda parte, entretanto,
ainda podemos ver o que tem a dizer Gusttavo Clarão: “acredito que atualmente é usada
essa forma [a padrão] por causa da caída da bateria para segunda [parte], o que
chamamos de dinâmica no samba” (CLARÃO, 2009, entrevista). Além do decaimento
dinâmico, observamos que frequentemente a melodia dessa parte é iniciada em uma
região mais grave, o que salienta seu contraste com o refrão. É o que pode ser observado
no samba do Salgueiro de 1995, Ocaso do por acaso:
61 Gusttavo Clarão, 39 anos, músico, é um dos mais destacados compositores de samba-enredo da atualidade. Já foi vencedor da disputa de sambas na Estácio de Sá, na Viradouro (8 vezes) e Mangueira. 62 Entrevista concedida por e-mail ao autor no dia 06 de fevereiro de 2009.
106
Nos dias de hoje, a questão formal parece estar enterrada no gênero: poucos
compositores se atrevem a quebrar o formato de dois refrões e duas estrofes aqui
apresentado. No Carnaval de 2009, por exemplo, todos os sambas das escolas do Grupo
Especial estavam de acordo com ele (incluindo a reedição feita pelo Império Serrano de
seu samba de 1976, A lenda das sereias e os mistérios do mar).
Acreditamos que a grande utilização dessa forma resida no equilíbrio entre o
legado do samba-lençol, representado na primeira e segunda partes pelo fluxo contínuo
e extenso, e o do samba dos anos 1970, representado pelos refrões de empolgação de
grande parte dos sambas-enredo contemporâneos63. Julgamos, entretanto, que a
utilização excessiva de padrões melódicos, harmônicos e formais no período aqui
abordado, embora tenham dado coesão ao gênero e o tenham tornado reconhecível
estilisticamente, acabou por dar origem a uma cristalização excessiva que colocou em
risco sua própria capacidade de renovação.
63 É interessante pensarmos que a forma do samba está intimamente ligada ao comportamento do componente. Um samba com muitos refrões poderia ser exaustivo para quem o canta por muito tempo, como ocorre na situação do desfile; um samba sem refrões, por sua vez, poderia ser fastidioso. A alternância entre refrões e estrofes na forma padrão garante o equilíbrio ideal, tão necessário ao folião, entre momentos de maior ou menor empolgação.
107
7 – “SAMBISTA MODERNO EU SOU...”64
7.1 Um mouro no quilombo
No ano de 2001, a escola Paraíso do Tuiuti levou para a Marquês de Sapucaí, em
sua primeira participação no Grupo Especial, um samba que chamou a atenção de boa
parte dos sambistas e especialistas em carnaval. Com linha melódica bastante incomum
e progressões harmônicas ousadas, o samba da escola de São Cristóvão, Um mouro no
quilombo. Isto a história registra!, assinado por Kleber Rodrigues, César Som Livre,
David Lima e Cláudio Martins, parecia ser uma viva reação ao modelo de samba-enredo
vigente.
Procuramos saber mais sobre esse grupo de compositores. Através da sessão de
fonogramas do site Galeria do Samba65, verificamos que suas raízes estavam na
parceria que desde meados da década de 1990 concorria na disputa de sambas-enredo da
Imperatriz Leopoldinense, tendo, inclusive, a vencido em dois anos, 1995 (Mais vale
um jegue que me carregue, que um camelo que me derrube... lá no Ceará) e 1999
(Brasil, mostra a sua cara em... Theatrum Rerum Naturalium Brasiliae). Além do já
citado César Som Livre, faziam parte dela Eduardo Medrado, João Estevam e Waltinho
Honorato.
Em todos os fóruns de discussão na Internet consultados, o nome de Eduardo
Medrado parece ocupar uma posição de destaque nesse grupo. O próprio João
Estevam66, em entrevista ao site O Batuque (ESTEVAM, s/d, entrevista), ao ser
perguntado sobre seu compositor de preferência, indica “Eduardo Medrado. Um amigo
e parceiro. Motivo de muita honra”. Em entrevista ao autor da presente pesquisa,
Medrado esclarece que, na verdade, “eu [Medrado] sou da parceria aquele que gosta de
falar; o cara que em anos recentes mais perambulou pelas rodas de samba da vida e por
isso talvez tenha essa equivocada imagem de "posição de destaque" no grupo. Em
termos musicais, e, sobretudo, no foco de seu trabalho, se tivermos que destacar alguém
64 Trecho do refrão central do samba concorrente de Eduardo Medrado, Kleber Rodrigues, João Estevam e Marcinho para o carnaval de 2002 da Imperatriz Leopoldinense, Goitacazes... Tupi or not Tupi in a South American Way. 65 http://www.galeriadosamba.com.br 66 João Estevam, 43 anos, radialista.
108
o nome seria o de Kleber [Rodrigues]. Ele traz o real diferencial melódico em nosso
grupo” (MEDRADO, 2009a, entrevista)67.
Sobre a formação da parceria, Medrado explica que “eu e Kleber somos
parceiros para além do samba-enredo. Fazemos sambas de meio-de-ano, para blocos
[...]. Para as escolas de sambas tem o João Estevam , que forma o núcleo da nossa
parceria junto com o César Som Livre [...]. Recentemente, tem havido a inclusão de
novos elementos, sempre alguém de grande afinidade pessoal ou musical”
(MEDRADO, 2009a, entrevista).
Eduardo Medrado nos conta ainda que mantém amizade bastante estreita com
Kleber, e que, de alguma forma, “estão juntos em todos os sambas-enredo que um dos
dois assine” (MEDRADO, 2009b, entrevista)68. O compositor, portanto, confirma sua
participação em Um mouro no quilombo, dizendo que, nesse samba, “é de
conhecimento generalizado o fato de que estávamos juntos69” (MEDRADO, 2009b,
entrevista). João Estevam também nos confirmou em entrevista sua contribuição “na
confecção da letra e melodia” (ESTEVAM, 2008, entrevista)70.
Observemos o samba. Como dissemos, sua singularidade reside em sua melodia
e harmonia incomuns. Seus primeiros compassos chamam logo a atenção do ouvinte por
sua complexidade:
No quinto compasso, a linha melódica se alterna entre a 3m (Sib) e a 7M (Fa#)
do acorde diminuto (G°). Esta última nota, criadora de bastante tensão, não é resolvida, 67 Eduardo Medrado, 45 anos, psicólogo. Entrevista concedida ao autor no dia 20 de fevereiro de 2009, Rio de Janeiro. 68 Entrevista concedida por e-mail ao autor no dia 05 de março de 2009. 69 Nesse ano (2001), Medrado estava concorrendo com um samba na Imperatriz Leopoldinense. Como é negado aos compositores o direito de assinarem obras de duas ou mais escolas pertencentes ao mesmo grupo, seu nome foi omitido do samba do Tuiuti. 70 Entrevista concedida por e-mail ao autor no dia 14 de outubro de 2008.
109
como se poderia esperar; quem exerce essa função é o “Sib”, que resolve
cromaticamente na nota “Lá” do 7o compasso. A partir desse ponto, tem início uma
sucessão cromática descendente de acordes dominantes, procedimento inédito no
gênero. Destacamos também o salto de 7M no 8o compasso, de difícil canto. Por fim, a
frase a partir do 11o compasso garante o retorno ao I. O samba continua:
No compasso 15, tem início um trecho na tonalidade homônima menor,
procedimento, como vimos, comum no gênero. O que há de original é o retorno a Sol
maior: este é feito pelo movimento cromático ascendente na linha melódica, a partir do
segundo tempo do 23o compasso. E no compasso 33, o acorde de E7 não resolve no IIm,
como é o comum; este é omitido e o dominante do I (D7) é antecipado. Além disso, a
melodia desses compassos não prepara a entrada do refrão central. Sobre esse aspecto,
cabe aqui abrirmos parênteses sobre mais uma prática bastante comum no samba-
enredo.
110
Se nos lembrarmos de alguns sambas, veremos que os refrões são quase sempre
antecedidos por uma frase na cadência perfeita (movimento V-I ou V-Im com resolução
melódica na fundamental da tonalidade):
111
Essa é a chamada preparação para o refrão, a qual demonstra claramente a
conclusão do material melódico da estrofe. Sua importância parece ser tão grande que,
no carnaval de 2007, a jurada Alice Serrano chegou a tirar pontos do samba Ser
diferente é normal: o Império faz a diferença no Carnaval, do Império Serrano,
justificando que a “entrada do refrão não é antecedida por uma preparação”71 (LIESA,
2007: 3)72. Provavelmente, a jurada se referia à transição da primeira parte para o
primeiro refrão, onde não ocorre a resolução habitual na fundamental do I:
71 O que nos faz refletir sobre alguma possível influência dos jurados no formato do samba-enredo atual. 72 Disponível na seção “Outros Carnavais” do site da Liga Independente das Escolas de Samba - LIESA (http://liesa.globo.com/).
112
Retornando ao samba de Medrado e seus parceiros, observamos que sua segunda
parte tende a retomar elementos mais tradicionais do gênero. Destacamos, entre esses, o
movimento cromático de quintas na harmonia dos compassos 59 a 63 e a cadência
perfeita que encerra essa parte, nos compassos 72 e 73. O refrão principal, por sua vez, é
caracterizado pela divisão entre lirismo (semínimas em seu início) e movimentação
(figuras sincopadas a partir da metade do compasso 84).
Eduardo Medrado nos falou sobre a recepção desse samba no Paraíso do Tuiuti:
“Fiquei preocupado com o impacto que ele teria, por ser inusual. Falei pro carnavalesco
[Paulo Menezes]: ‘essa é a nossa linha. Não sei se é a linha do Tuiuti, porque ele é um
samba diferente...’. Aí ele disse: ‘A Tuiuti está no Grupo Especial agora. Ela não tem
linha’. E hoje o samba é considerado o hino da escola” (MEDRADO, 2009a,
entrevista).
113
O impacto entre os compositores também foi grande. Medrado conta que
Arlindo Cruz, vencedor do Estandarte de Ouro73 naquele ano, “deu uma entrevista
dizendo: ‘o melhor samba-enredo deste ano é o do Tuiuti. É um divisor de águas na
história do samba-enredo’” (MEDRADO, 2009a, entrevista).
Em contrapartida, o samba não foi tão bem recebido pelos jurados. No mapa de
notas desse carnaval, disponível no site Galeria do Samba74, verificamos que lhe foram
atribuídas uma nota 10, e duas notas 9.0. Infelizmente, não tivemos acesso às
justificativas para as duas notas baixas.
Ainda que seja o de maior destaque, Um mouro no quilombo não é o único
samba-enredo da parceria que propõe novas soluções ao gênero. No tópico a seguir,
serão observadas outras de suas composições, menos conhecidas, mas igualmente
importantes para a compreensão do projeto estético dos compositores.
7.2 Outros sambas
Embora sejam reconhecidos, no meio do samba, como “inovadores”, os
compositores de que estamos tratando começaram sua trajetória de maneira
relativamente tradicional. O primeiro samba da parceria escolhido para representar a
Imperatriz Leopoldinense, o famoso Jegue (1995), assinado por Eduardo Medrado, João
Estevam, César Som Livre e Waltinho Honorato75, é iniciado, inclusive, com o padrão
harmônico característico visto nesta pesquisa:
73 Troféu concedido desde 1972 pelo jornal O Globo aos destaques de cada ano. Dividido em várias categorias, é a mais prestigiosa premiação do carnaval carioca. 74 Seção Carnavais > 2001. 75 Devemos lembrar que, de acordo com Eduardo Medrado, Kleber Rodrigues participou de todos os sambas compostos pela parceria, ainda que não tenha assinado muitos deles. Para evitar qualquer equívoco, incluiremos somente os autores oficiais. Os casos em que não houve participação de algum dos dois compositores serão devidamente mencionados.
114
No entanto, segundo Medrado, a necessidade de contestação já estava presente
nesses primeiros dias: “Quando a gente ganhou o Jegue [...] falei para os meus
parceiros: ‘Ah é? Ganhamos? Então vamos fazer um samba como se fazia antigamente
[...], vamos fazer um nariz de cera76, aquelas entradas, pode ser um samba grande’[...]. E
fizemos um samba que até hoje eu adoro [concorrente para o enredo Imperatriz
Leopoldinense honrosamente apresenta: "Leopoldina, a Imperatriz do Brasil”, de
1996], mas que não chegou nem na final” (MEDRADO, 2009a, entrevista).
De qualquer maneira, os sambas da década de 1990 ainda não tinham as
inovações melódico-harmônicas dos sambas da década seguinte. Nesse sentido, Um
mouro no quilombo parece ter sido um “divisor de águas” não somente para o samba-
enredo, como disse Arlindo Cruz, mas para a própria parceria: a partir dele,
praticamente todos os seus sambas trariam procedimentos de composição incomuns no
gênero. Falaremos sucintamente de alguns deles, já advertindo que uma análise mais
profunda nos levaria a muitas outras conclusões.
O primeiro está no concorrente para o Carnaval de 2002 da Imperatriz
Goytacazes... Tupi or not Tupi in a South American Way (Eduardo Medrado, Kleber
Rodrigues, João Estevam e Marcinho):
76 Abertura de um texto de maneira rebuscada ou vaga, sem ir direto ao assunto principal, tal como ocorria em muitos sambas-lençol.
115
Os quatorze primeiros compassos desse samba se mantém estáveis na tonalidade
de Lá maior. No 15o, tem início um ciclo de quintas justas a partir do acorde de Dm
(IVm) até o acorde de Bb (bII), o que deixa a tonalidade temporariamente suspensa77.
No entanto, ela é imediatamente retomada pela cadência perfeita nos compassos 21 a
23.
O cromatismo também tem lugar de destaque nos sambas da parceria. Podemos
encontrá-lo na segunda parte Goytacazes...:
No samba composto para concorrer no Salgueiro no ano seguinte, Salgueiro,
Minha Paixão, Minha Raiz - 50 Anos de Glória (Eduardo Medrado, João Estevam,
Marcinho, Duda Ferreira), a progressão harmônica e, consequentemente, a linha
melódica dos primeiros compassos são baseadas nele:
77 Ciclos de quintas justas seguindo o campo harmônico (por exemplo, IIIm – V/IIm – IIm – V7 – I) são, obviamente, comuns no repertório; entretanto, ciclos similares ao ocorrido no samba acima citado nunca haviam sido antes vistos.
116
Frases cromáticas ainda podem ser vistas no samba concorrente para a
Imperatriz em 2007, Teresinhaaa, uhuhuuu!!! Vocês querem bacalhau?(Eduardo
Medrado, Kleber Rodrigues, Diego Moura, Seu Nelson):
E no samba concorrente para o Carnaval de 2009 da União da Ilha, Viajar é
preciso - viagens extraordinárias através de mundos conhecidos e desconhecidos
(Kleber Rodrigues, Almir da Ilha, João Brizola, Aurinho da Ilha) 78:
Breves polarizações na mediante cromática79 do I da tonalidade principal
também foram vistas nos sambas concorrentes de 2005, Uma Delirante Confusão
Fabulística (Eduardo Medrado, João Estevam, César Som Livre, Diego Moura e
78 Eduardo Medrado nos explicou em entrevista (MEDRADO, 2009b, entrevista) que não participou da composição de nenhum samba feito por Kleber Rodrigues para a União da Ilha. 79 Na verdade, a relação cromática mediante se dá quando duas tríades da mesma qualidade (maior ou menor), com fundamentais separadas por intervalo de terça, são tocadas sucessivamente. Embora não seja isso que ocorra no caso aqui apresentado, nomeamos dessa forma a tríade maior situada terça acima da fundamental da tonalidade porque ela não está agindo como dominante do VIm, e sim como um breve ponto de chegada.
117
Marcinho), e 2006, Um por todos e todos por um (Eduardo Medrado, João Estevam,
César “Som Livre” e André Bonatte), para a Imperatriz:
E, por fim, até mesmo uma sonoridade modal (mixolídio) pôde ser encontrada
no refrão central do já citado samba de 2007 para a Imperatriz:
O uso de procedimentos de composição complexos como esses poderia sugerir
que estamos tratando de compositores com educação musical formal.
Surpreendentemente, o próprio Medrado explica que “[Kleber Rodrigues é] o único da
118
parceria que toca algum instrumento” (MEDRADO, 2008, e-mail)80. Kleber Rodrigues
completa: “Faço uso do violão e do cavaquinho de maneira intuitiva sem conhecimentos
aprofundados de música” (RODRIGUES, 2009, entrevista)81.
Em todos esses sambas, o único aspecto do samba-enredo atual a não ter sido
questionado foi o padrão formal. Com relação a isso, Eduardo Medrado argumenta que
“nós [a parceria] já tivemos sambas que quase resultaram nisso [quebra do padrão]. [...]
A manutenção dessa forma, pra gente, ainda é necessária, porque seria mais complicado
ainda [vencer a disputa de sambas-enredo]” (MEDRADO, 2009a, entrevista).
Esta última fala de Medrado revela um dado que o leitor atento já deve ter
apreendido: todos os sambas da década de 2000 foram somente concorrentes, ou seja,
não chegaram a ser escolhidos pelas escolas a que foram destinados. Isso significa que,
até o ano de encerramento desta pesquisa, os compositores nunca mais conseguiram
vencer nenhuma disputa de samba-enredo desde Um mouro no quilombo. E cabe dizer
que embora tenha sido considerado, na época de seu lançamento, um “divisor de águas”,
o samba do Paraíso do Tuiuti não deixou seguidores, permanecendo isolado, no que diz
respeito à estética melódico-harmônica, no rol dos sambas já apresentados na Sapucaí.
Sobre esse fato, Medrado argumenta:
[...] nós formamos uma parceria que definiu para si uma espécie de identidade de estilo [...] que, aparentemente, segue na contramão do que hoje se faz (ou do que hoje vence nas disputas nas escolas de samba) em termos de sambas de enredo. [...] Eu costumo dizer que temos ainda grandes compositores nas escolas de samba (muitos já as abandonaram, é verdade) e que poderiam estar produzindo obras de qualidade superior. Mas boa parte desses autores ficaram reféns dessa "camisa de força monocórdica", sabendo que fugir desse padrão de composição os deixaria fora de quaisquer chances nas disputas nas escolas (MEDRADO, 2008, e-mail).
Kleber Rodrigues pensa a mesma coisa:
[Trabalhamos] com fortes doses de exigências para não cairmos no lugar comum. O lugar comum que nos referimos é o modelo único de melodia atualmente utilizado, um copiando o outro, e de forma [ainda] mais acentuada no que tange aos refrões. Isso vem confundindo os
80 E-mail enviado por Eduardo Medrado no dia 16 de dezembro de 2008. A íntegra desse texto está no Anexo I desta pesquisa. 81 Kleber Rodrigues, 57 anos, contabilista. Entrevista concedida por e-mail ao autor no dia 04 de março de 2009.
119
nossos carnavais. [...] Abriram-se espaços para todos, o que é bom, entretanto a vaidade de ser compositor trouxe ao cenário do samba gente que nunca viveu a criação musical, e agora incentivados por esse modelo único de melodia se sentiram encorajados a fazê-lo. [...] Também o fato das competições nas quadras passarem a ser alavancadas por gastos elevados, [fez com que] mais ainda o poder de criação fosse substituído pelo poder econômico, ou seja, em muitas parcerias o cara da grana passou a ser a voz mais forte na construção do samba. Em resumo, como diz meu parceiro Eduardo Medrado, o esmero, o uso de melodias diferenciadas, passaram a ser singularidades que as escolas entendem como erros [...]. [Estas acabaram] jogando para baixo o gosto popular, institucionalizando padrões empobrecidos de linhas melódicas (RODRIGUES, 2009, entrevista).
Medrado conclui:
[...] O que mais ouvimos é que fazemos ‘obras belíssimas, mas difíceis’ ou que fazemos ‘sambas lindos, mas que não servem para os desfiles’, etc. Ou seja, somos "emparedados" por uma série de preconceitos que visam a justificar o fato de que a qualidade melódica e poética dos sambas está sendo colocada em segundo plano (MEDRADO, 2008, e-mail).
120
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Desde a fase de elaboração do projeto desta pesquisa, me impus (e agora o seu
autor fala em primeira pessoa) a obrigação de manter a imparcialidade em face de cada
transformação sofrida pelo samba-enredo. Tarefa bem difícil, essa, visto que qualquer
pessoa que se envolve com esse gênero cria um sentimento passional para com ele. No
entanto, acredito que cumpri esse objetivo.
“Samba-enredo é tudo igual”. Essa foi a frase que mais ouvi de pessoas que não
têm contato com o universo das escolas. Intrigava-me saber por que um gênero de tanta
pluralidade estética era tratado de maneira tão generalizada. Creio que essa questão foi
em parte respondida ao vermos que o samba-enredo, assim como qualquer gênero
popular, tem uma tendência de padronização inerente a ele.
No entanto, há ainda outras coisas a serem ditas. O samba-enredo, que na década
de 1980 chegava a vender milhões de seus discos anuais, se distanciou do ouvinte
comum. Muitos sambistas e pesquisadores relacionam a vertiginosa queda da vendagem
dos discos dos últimos anos à queda de qualidade dos sambas-enredo atuais em
comparação com os mais antigos. Gusttavo Clarão, entretanto, discorda desse
pensamento:
O que acontecia antigamente era uma grande mídia. Em novembro já se escutavam os sambas nas rádios, as pessoas acabavam se acostumando, mas isso não quer dizer que não existiam sambas ruins. O carnaval não tem mais tanto peso como antes, mas a qualidade é a mesma (CLARÃO, 2009, entrevista).
Questionado sobre o assunto, Eduardo Medrado vai mais além:
A diminuição da penetração do samba-enredo na classe média ou na grande massa, para mim não é derivada somente da queda de qualidade [...], e sim porque foi a música baiana que se sobrepôs, como música de carnaval, ao samba-enredo. [...] E não podemos dizer que ela se sobrepôs porque tem melhor qualidade. [...] [Portanto,] a queda de vendagem dos Cds é um fenômeno mais complexo do que a justificativa da queda de qualidade. Esta contribuiu, mas não a justifica plenamente (MEDRADO, 2009a, entrevista).
121
Medrado concorda com Clarão quando diz que “de fato, sempre houve sambas
bons e ruins”. Mas completa: “o que não havia é essa padronização” (MEDRADO,
2009a, entrevista).
A padronização de que fala Medrado não é a sua natural, de afirmação como
gênero. É a que está ligada ao abuso de clichês melódicos pelos compositores (sem falar
nos clichês literários, não abordados nesta pesquisa), ao engessamento formal (o qual
nunca ocorreu com tanta força como atualmente), e, já em outras esferas, à má vontade
das diretorias das escolas em arriscar, já que desfilar com um samba-enredo fora dos
padrões poderia descontar décimos preciosos à escola, caso este não fosse devidamente
compreendido pelos jurados.
A necessidade de corresponder às expectativas estéticas de milhões de pessoas
pelo país afora, além dos turistas estrangeiros, os quais muitas vezes não têm referência
de samba de qualidade, fez mal ao gênero. Por essa razão, acredito que poderá ser o
afastamento entre o samba-enredo e o ouvinte comum, refletido na queda da vendagem
de discos e na quase hostilidade com que os novos sambas são recebidos pelo público
distante do dia-a-dia das escolas, o fator de mudança do atual estado de crise. Voltando
seus olhos para seu lugar de origem, o samba-enredo poderá, mais uma vez, se
reinventar. É o que desejam todos aqueles que, assim como eu, esperam ansiosamente a
chegada de cada fevereiro.
122
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123
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de Glória. Rio de Janeiro: Som Livre, 1970. 1 CD (37 min. aprox.). Remasterizado em digital, 2002.
ENTREVISTAS CLARÃO, Gusttavo. Gusttavo Clarão. Entrevista concedida por e-mail ao autor desta
pesquisa no dia 06 de fevereiro de 2009. ESTEVAM, João. João Estevam. Entrevista concedida por e-mail ao autor desta
pesquisa no dia 10 de outubro de 2008. __________. João Estevam. O Batuque.com. <
http://www.obatuque.com/Radio%2094/enjoaoestevam.htm >. Entrevista concedida ao site O Batuque.com [s.d.].
MEDRADO, Eduardo. Eduardo Medrado. E-mail enviado ao autor desta pesquisa no
dia 18 de dezembro de 2008. __________. Eduardo Medrado. Entrevista concedida ao autor desta pesquisa no dia
20 de fevereiro de 2009. Rio de Janeiro: 2009a. __________. Eduardo Medrado. Entrevista concedida por e-mail ao autor desta
pesquisa no dia 05 de março de 2009. 2009b.
124
PAMPLONA, Fernando. Fernando Pamplona. OBatuque.com. < http://obatuque.com/baluartes_da_midia/fernando_pamplona/fernando_pamplona.htm >. Entrevista concedida ao site O Batuque.com publicada no dia 23/11/2004.
RODRIGUES, Kleber. Kleber Rodrigues. Entrevista concedida por e-mail ao autor
desta pesquisa no dia 04 de março de 2009.
DISCOGRAFIA OS CINCO CRIOULOS. Samba no duro. [S.l.]: Emi-Odeon, 1968. 1 CD (25 min.).
Remasterizado em digital, 2003. VELHA GUARDA DA PORTELA. Portela Passado de Glória. Rio de Janeiro: Som
Livre, 1970. 1 CD (37 min. aprox.). Remasterizado em digital, 2002.
SITES GALERIA DO SAMBA. < http://www.galeriadosamba.com.br >. Acesso em 4 de maio
de 2009. IMS. < http://ims.uol.com.br/ims >. Acesso em 4 de maio de 2009. LIESA. < http://liesa.globo.com >. Acesso em 4 de maio de 2009. MANGUEIRA. < www.mangueira.com.br >. Acesso em 4 de maio de 2009. O BATUQUE. < http://www.obatuque.com >. Acesso em 4 de maio de 2009. YOUTUBE. < http://www.youtube.com >. Acesso em 4 de maio de 2009.
125
ANEXO
Disponibilizamos abaixo a íntegra do primeiro e-mail enviado por Eduardo
Medrado ao autor desta pesquisa. Por se tratar de um depoimento de um personagem
que vive o problema abordado nesta pesquisa e, principalmente, por conta da lucidez
com que o assunto é abordado, julgamos imprescindível anexá-lo ao trabalho.
Yuri,
Será um prazer ajudá-lo em sua pesquisa sobre samba-enredo.
De fato, nós formamos uma parceria que definiu para si uma espécie de
identidade de estilo e que, aparentemente, segue na contramão do que hoje
se faz (ou do que hoje vence nas disputas nas escolas de samba) em termos
de sambas de enredo. E, concordo com você, o nosso esforço é a busca de
caminhos singulares, ou a fuga ao que você denominou como "...o uso de
clichês melódicos e harmônicos".
Tenho insistido em dizer que os sambas têm se "padronizado", têm se
emoldurado numa "fórmula" e isso, penso eu, é o inverso da pretensão
artística. Um dos fundamentos da Arte é justamente a criatividade, a fuga
das fórmulas; é a busca da expressão de uma diferença singular. Em suma,
concordo com sua tese, de que a estagnação do gênero está em muito
associada a essa circunstância de banalização. Em verdade, há um caminho
investigativo bem interessante (que talvez não seja o foco do seu trabalho) que é o de
traçar as condições que levaram a essa padronização.
Eu costumo dizer que temos ainda grandes compositores nas escolas de samba
(muitos já as abandonaram , é verdade) e que poderiam estar produzindo obras
de qualidade superior. Mas boa parte desses autores ficaram reféns dessa
"camisa de força monocórdica", sabendo que fugir desse padrão de composição
os deixaria fora de quaisquer chances nas disputas nas escolas.
Nossa parceria é fiel ao seu estilo, somos insistentes, porém parece que
somos o exemplo do que declarei acima: nos últimos anos sequer conseguimos
chegar às disputas finais nas escolas em que participamos dos certames.
126
O que mais ouvimos é que fazemos "obras belíssimas, mas difíceis" ou que
fazemos "sambas lindos, mas que não servem para os desfiles", etc. Ou seja,
somos "emparedados" por uma série de preconceitos que visam a justificar o
fato de que a qualidade melódica e poética dos sambas está sendo colocada
em segundo plano.
Em verdade, estão matando a "galinha dos ovos de ouro". A tradição do
carnaval carioca foi fortemente sedimentada em cima das obras musicais dos
autores das escolas de samba. Os desfiles eram a culminância dessa forma de
manifestação musical; em contraposição a um conceito, que alguns defendem
hoje, de que os sambas de enredo são apenas o "fundo musical" de um
espetáculo essencialmente "estético-visual". Tratam os sambas de enredo
como uma obra de encomenda e com sua vida útil limitada aos poucos minutos
do desfile (ou alguns eventuais momentos pré e pós-desfile). Não! Samba-enredo não é
um jingle à disposição dos carnavalescos. Os sambas de enredo (e seus autores) eram
representativos de uma linhagem fundamental do estilo musical chamado samba.
Muitos autores das escolas eram (ou se tornaram) compositores reconhecidos na
música brasileira. Hoje os compositores vencedores nas escolas formam quase um
grupo à parte: vivenciando um universo de reconhecimento restrito ao ambiente dos
apaixonados pelas escolas. Poucos desses compositores gozam de fama ou
reconhecimento fora desse contexto (evidentemente há outros aspectos a
serem considerados para explicar esse fato).
Um exemplo típico disso: na chamada retomada do "samba de raiz" - que teve
como força propulsora os bares da "Nova Lapa" - praticamente se deu de forma alheia
ao universo das escolas de samba. Nesses bares, sobretudo no início do movimento,
quase não havia representação dos compositores da nova geração das escolas e os
sambas executados, até hoje, são os "clássicos" das décadas 50-80.
Por ter vivenciado de perto essa retomada, sei que os novos autores e os
sambas mais recentes eram recebidos com certo desprestígio. E me orgulho em
dizer que, nesse aspecto, a nossa linha melódica foi um fator de aprovação
de reconhecimento dos méritos de nossa parceria. Eu de alguma forma fiz
parte desse movimento e me orgulho disso.
Desculpe o "desabafo", mas é que o tema me toca de forma apaixonada.
Ressalto, então, estar à disposição para ajudá-lo: sei que falo em meu nome
e de meus parceiros. É claro, essa ajuda se dará no limite das nossas possibilidades e
127
dos nossos conhecimentos. Talvez você se surpreenda em saber, mas nenhum de nós
tem formação musical formal. Um interlocutor importante nessa “conversa” é meu
parceiro Kleber Rodrigues: o único da parceria que toca algum instrumento (cavaco) e
que certamente traz um grande diferencial para nossa linha melódica. Repassarei
essa mensagem para ele e tentaremos responder conjuntamente às suas
indagações.
Enfim, nos sentimos honrados por estarmos sendo colocados no foco de uma reflexão
que nos parece tão necessária.
Saudações,
Eduardo Medrado