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Universidade de São Paulo Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes Curso de Especialização em “Arte na Educação: Teoria e Prática” TEATRO E TEATRALIDADE NO CONTEXTO DA SURDEZ: UMA INVESTIGAÇÃO SOBRE PRESENÇAS DO SURDO NO TEATRO E ASPECTOS DE TEATRALIDADE NA LÍNGUA DE SINAIS LETICIA SOARES DE LIMA GOMES São Paulo 2017

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Universidade de São Paulo

Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes

Curso de Especialização em “Arte na Educação: Teoria e Prática”

TEATRO E TEATRALIDADE NO CONTEXTO DA SURDEZ:

UMA INVESTIGAÇÃO SOBRE PRESENÇAS DO SURDO NO TEATRO

E ASPECTOS DE TEATRALIDADE NA LÍNGUA DE SINAIS

LETICIA SOARES DE LIMA GOMES

São Paulo

2017

LETICIA SOARES DE LIMA GOMES

TEATRO E TEATRALIDADE NO CONTEXTO DA SURDEZ:

UMA INVESTIGAÇÃO SOBRE PRESENÇAS DO SURDO NO TEATRO

E ASPECTOS DE TEATRALIDADE NA LÍNGUA DE SINAIS

Monografia apresentada à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo para a obtenção de título de especialista em Arte-Educação.

Orientador: Prof. Dr. Samir Signeu

São Paulo

2017

Dedico este trabalho à minha irmã Mariana,

cujo sinal1 é um brinco em formato de pluma pendendo do lóbulo direito -

que se explica pelo seu costume de usar brincos grandes

1 Na cultura surda, o sinal é uma identificação pessoal criada e dada por um surdo a uma pessoa a partir do momento que ela passa a ter contato com a comunidade surda. Ele é atribuído com base na observação de três aspectos principais: características físicas, comportamento marcante ou mania.

AGRADECIMENTOS

Mais que uma experiência acadêmica, o Curso de Especialização em “Arte na Educação:

Teoria e Prática” ofereceu-me momentos, bons amigos, recordações e tremores que guardarei

comigo com muito afeto. A todas as pessoas e espaços que, direta ou indiretamente, participaram

dessa história deixo meus agradecimentos.

Agradeço a todos os colegas do grupo de pesquisa na área de teatro pelas ideias e

inquietações compartilhadas em nossas reuniões. Em especial, ao Prof. Dr. Samir Signeu pela

disponibilidade e compromisso em me orientar ao longo do processo de investigação.

Aos amigos, surdos e ouvintes, que partilham das comunidades surdas, agradeço por

terem me acolhido com tanto carinho e me ajudado a enriquecer as reflexões que deixo

registradas neste trabalho.

A meu grande amigo Waldomiro L. S. J. um imenso obrigada pela sinceridade e pelas

leituras rigorosas que me ajudaram a me apropriar do meu caminho de escrita. Agradeço

profundamente também meus amigos Alexandre O., Felipe F., Rosa L. e Suellen L. pela

disponibilidade para ler este texto estando ele ainda no forno, por seus comentários e por suas

palavras de incentivo.

A meu companheiro Rafael, interlocutor amoroso e leitor incansável dos meus escritos,

agradeço pelo apoio constante e por me tranquilizar nos momentos de angústia em que os

pensamentos parecem resistir a ir para o papel.

A Maria Lúcia e Juan Carlos, meus pais, por me ensinarem a amar a diversidade e a

potência criadora do ser humano e a me dedicar com paixão a tudo o que faço.

Por fim, agradeço imensamente à Mariana, minha irmã, que me inspira desde que chegou

ao mundo, que está no começo, no meio e no fim deste processo de escrita e que me ensina que

não apenas é possível ser diferente: é necessário.

A todos, muito obrigada.

Leticia Soares de Lima Gomes

Março de 2017

O  teatro  não  muda  ninguém;  são  as  pessoas  que  se  

mudam  a  si  próprias.  Agora,  eu  não  tenho  dúvidas  

de  que  o  teatro  pode  ajudar-­‐nos  a  encontrar  uma  

energia   de   mudança   para   nós   fazermos   outras  

mudanças  nas  nossas  vidas.  E  [...]  essa  mudança  é  

o  tal  recomeçar  e  o  tal  acreditar  que  é  possível  ser  

diferente.  E  acho  que  termino  por  aqui.    

-­‐  HUGO  CRUZ,  Arte  e  Comunidade  (2015)  

RESUMO

As palavras que se seguem resultam de reflexões sobre a atual presença do surdo no

teatro e os aspectos de teatralidade que podem ser enxergados na língua de sinais. São registros

de pensamentos decorrentes de observações feitas em espetáculos em que a língua de sinais e

personagens surdos são incorporados pelo mainstream teatral ouvinte; em espaços em que os

surdos são criadores de poéticas próprias que guardam uma relação estreita com o fenômeno do

teatro; e em ocasiões em que o público surdo - enfrentando frequentemente a barreira da falta de

acessibilidade - deseja assistir um espetáculo teatral. Além disso, é um texto em que se arrisca

dedicar um possível olhar para a língua de sinais a partir de um ponto de vista teatral, mas

respeitando a complexidade que ela possui enquanto sistema linguístico de comunicação e

destacando sua importância histórica enquanto símbolo de resistência e artefato cultural do povo

surdo. Ora celebrando as potencialidades poéticas da língua de sinais e da corporeidade surda,

ora expressando uma não conformidade com as atitudes segregacionistas que, ainda hoje, têm

lugar mesmo em espaços que comumente se declaram favoráveis à diversidade - como é o caso

do teatro -, com esse texto se busca fazer coro com os novos discursos que entendem a diferença

a partir de uma perspectiva afirmativa. Com a convicção de que o desenvolvimento de

potencialidades poéticas contribui para a ampliação de horizontes emancipatórios, este trabalho

encerra uma etapa de um projeto pessoal - e por isso acadêmico - de compreender o papel que

desempenham o teatro e a teatralidade no processo de desconstrução das barreiras criadas ao

longo de décadas de práticas ouvintistas no caminho de desenvolvimento do sujeito surdo.

Palavras-chave:

Surdo, cultura e poéticas surdas,

teatro, teatralidade e corporeidade, língua de sinais.

SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 1 2. PRESENÇAS DO SURDO NO TEATRO ............................................................................... 6

2.1 Presença do surdo como tema ............................................................................................... 7

2.2 Presença do surdo como artista-criador .............................................................................. 10

2.3 Presença do surdo como público ......................................................................................... 13 3. ASPECTOS DE TEATRALIDADE NA LÍNGUA DE SINAIS .............................................. 16 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................ 23 5. REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 25 6. ANEXOS .............................................................................................................................. 28

1

1. INTRODUÇÃO

um  bom  poema

leva  anos

cinco  jogando  bola,

mais  cinco  estudando  sânscrito,

seis  carregando  pedra,

nove  namorando  a  vizinha,

sete  levando  porrada,

quatro  andando  sozinho,

três  mudando  de  cidade,

dez  trocando  de  assunto,

uma  eternidade,  eu  e  você,

caminhando  junto

-­‐  PAULO  LEMINSKI,  Toda  poesia  (2013)  

Embora eu preferisse ter sido capaz de compor um bom poema sobre o assunto aqui

abordado, este trabalho apenas consegue ser uma síntese temporária das minhas reflexões acerca

do teatro e a teatralidade no contexto da surdez. Assentando-me na linha de pesquisa que se

dedica às Representações Sociais e Práticas Educativas, o tema será desenvolvido a partir de dois

eixos principais: presenças do surdo no teatro e aspectos de teatralidade na língua de sinais.

Considerando a atual centralidade que toma a cultura para se pensar a organização e a relação

entre os diversos grupos sociais, a discussão aqui apresentada tem o escopo de criar uma

oportunidade de reavaliar padrões dominantes de linguagem, pensamento e subjetividade.

O desejo de me debruçar sobre esse tema se originou em setembro de 2014, quando, a

convite da minha irmã Mariana - que, entre inúmeros outros atributos e identidades, é surda -

2

participei de uma oficina de teatro surdo oferecida pelo Grupo Teatral Moitará, no Rio de

Janeiro. Eu era uma das poucas ouvintes na ocasião e pela primeira vez, em vinte e sete anos,

Mariana e eu “trocamos de papéis”: ela tinha o domínio da língua oficial do evento e eu me

sentia surda. Evocando a formulação de Larrosa (2016, p. 10) quando descreve a experiência

como “algo que (nos) acontece e que às vezes treme, ou vibra, algo que nos faz pensar, algo que

nos faz sofrer ou gozar, algo que luta pela expressão, e que às vezes (...) se converte em canto”,

nesse dia houve um terremoto dentro de mim. Mas dois momentos foram especialmente

significativos. O primeiro aconteceu quando, depois dos exercícios práticos da oficina, abriu-se

espaço para perguntas e Mariana, que até então eu reconhecia como uma pessoa tímida e um

pouco alheia quando estava em grandes grupos, levantou-se imediatamente sendo a primeira a

perguntar. Além do impacto que sua prontidão e desenvoltura me causaram, a complexidade e a

sinceridade do seu questionamento me levaram a conhecer suas capacidades de percepção e

abstração como nunca tinha acontecido. Dei-me conta imediatamente de que, apesar do afeto da

nossa relação, a precariedade da minha proficiência em Libras tinha feito com que nossas

conversas fossem pouco além do limiar da superficialidade e que eu queria que aquilo mudasse.

O segundo momento se deu durante o espetáculo que encerrou o evento. Em seu solo, inspirado

no gênero stand-up comedy, o ator francês Anthony Guyon apresentou uma sequência de cenas

curtas e cômicas cujo tema central era sua relação com a própria surdez. Num determinado

momento, ele contou que, quando menino, usou seu corpo para descrever o nascimento de uma

flor a uma professora. Na sequência, passou a demonstrar como fez isso. Nos instantes que se

seguiram, todo seu corpo pareceu adquirir outra pulsação, tornando-se flor por inteiro. A

minuciosidade do seu movimento ao representar cada etapa da germinação deixou a respiração

da plateia em suspenso. Eu, particularmente, fiquei atordoada com a singularidade de sua

expressividade e voltei para São Paulo no dia seguinte cheia de questionamentos a respeito das

origens do gesto poético e do movimento do ator.

Como certas experiências atravessam o tempo e ressoam “em outras experiências e em

outros tremores e em outros cantos” (Ibid. p. 10), um ano depois, Mariana me convidou para

participar de outra oficina; desta vez, de criação de poemas em língua de sinais. Idealizada pelo

projeto Corposinalizante (ver Fotografia 11) em parceria com os artistas do Núcleo Bartolomeu

de Depoimentos, a oficina tinha o objetivo de estimular a criação e difusão da poesia em língua

de sinais e promover o Slam do Corpo - um sarau em que surdos e ouvintes são convidados a

3

compor e apresentar seus poemas, com tradução simultânea em Libras ou português, para que

depois o público escolha o mais virtuoso. Eu não suspeitava, porém, que participar dessa oficina

me levaria a testemunhar novamente um tipo de poética em que o corpo adquire aquela outra

pulsação observada na cena do ator francês no Rio de Janeiro. A diferença era que dessa vez eu

via isso acontecendo no corpo da minha irmã. Durante a oficina nós duas trabalhamos em dupla

e compusemos um poema com uma partitura corporal a partir da Libras (ver Fotografia 1) cuja

temática espelhava, em certa, o modo como os vínculos afetivos da nossa relação como irmãs

estavam se estreitando a partir da nossa reaproximação através da Arte:

Nascemos do mesmo ventre

O sangue que circula pelas minhas veias circula pelas suas veias

Somos opostos

Eu sou seu espelho

Você é meu espelho

Mas o espelho se racha

Ele se rompe em pedaços

E ao me procurar entre os destroços

Sangue

Eu sou seu sangue

Você é meu sangue

Entretanto, o texto em português não é o poema. Acredito, aliás, que o poema que nós

criamos acontece apenas na fugacidade dos instantes em que nossos gestos dão corpo à nossa

intenção poética. Mas o que quero salientar é que o texto em português não é suficiente para

alcançar a singularidade do gesto poético da minha irmã, porque, assim como o do ator francês,

ele nasce e se manifesta em um corpo que, ao longo da vida, experimenta a condição humana da

surdez; ou seja, um corpo que capta o que o mundo comunica principalmente através dos olhos,

4

um corpo profundamente sensível aos atributos táteis dos órgãos que alberga, um corpo que

sente outras pulsações e que, portanto, é suscetível a outros tremores.

Este trabalho, portanto, é minha tentativa de converter em “canto apaixonado” os

tremores que me atravessam ao entrar em contato com a poética teatral de surdos; mas também

de converter em “canto de protesto” os tremores que me angustiam quando testemunho as

barreiras que ainda impedem os surdos de ter acesso a bens culturais produzidos por não surdos.

A exposição estará organizada em duas partes. Na primeira, me dedico a refletir sobre as

presenças do surdo no teatro, subdividindo-as em três modalidades: o surdo como tema, o surdo

como artista-criador e o surdo como público. Na segunda, proponho um olhar sobre a língua de

sinais destacando seus aspectos de teatralidade. Meus referenciais teóricos de maior relevância

ao longo do processo de reflexão e escrita foram Oliver Sacks, que me introduziu à história da

surdez, da luta pela legitimação das línguas de sinais e da emancipação dos surdos em relação

aos ouvintes; Lidia Becker, que me ajudou a construir um imaginário mais consistente sobre a

visão patológica da surdez e das terapias oferecidas aos surdos com o intuito de incrementar seu

poder de mobilidade numa sociedade com padrões ouvintistas; Sílvia Andreis Witkoski, que, ao

aumentar o poder de propagação das vozes de outros dezessete surdos em seu estudo de pós-

doutorado, permitiu-me conhecer inúmeras narrativas de surdos sobre suas experiências como

alunos de escolas inseridas num sistema de inclusão educacional que não atende a suas

necessidades; e Karin Strobel, que me ajudou a compreender melhor os artefatos culturais do

povo surdo a partir de uma perspectiva surda.

Além da pesquisa bibliográfica, meu percurso investigativo contemplou uma pesquisa de

campo - empírica qualitativa - realizada especificamente no decorrer do segundo semestre de

2016. Durante esse período participei do Grupo de Estudos do Surdo no Teatro - Projeto

GESTOS, com reuniões semanais de três horas orientadas pelo professor Carlos Eduardo

Carneiro (Cadu) na Unidade de Pinheiros da Escola Recriarte; assisti diversos espetáculos

teatrais com e sem intérprete de Libras na companhia de colegas surdos; fui ao Festival de

Folclore Surdo, realizado em Florianópolis no mês de dezembro; e frequentei festas e eventos

organizados pela comunidade surda.

Mesmo aceitando que a imprevisibilidade de seu poder de alcance é inerente ao canto,

espero que os tremores aqui registrados da minha experiência em contato com a alteridade que a

5

condição humana da surdez representa para mim encontrem ressonância em outras experiências,

em outros tremores e em outros cantos.

6

2. PRESENÇAS DO SURDO NO TEATRO

Teatro  é  por  essência  presença  e  potência  de  visão  

-­‐  espetáculo  -­‐,  e  enquanto  público,  somos  antes  de  

tudo   espectadores,   e   a   palavra   grega   θέατρον,  

teatro,   não   significa   senão   isso:   miradouro,  

mirador.

-­‐  ORTEGA  Y  GASSET,  A  ideia  do  teatro  (2014)  

Dentro do heterogêneo panorama que caracteriza o Teatro, Ortega y Gasset (2014, p. 33)

nos ajuda a compreender que esse fenômeno, enquanto ato concreto no espaço cênico, é

composto por algumas dualidades. Concebido pelo pensador espanhol como um edifício com

uma finalidade, ele é, primeiramente, um espaço demarcado, ou seja, um “dentro” que se

contrapõe a um “fora”. No espaço interno, onde efetivamente acontece a representação teatral, as

dualidades, nas dimensões espacial, humana e funcional, organizam-se da seguinte forma: de um

lado, o cenário, onde estão os atores que, ativamente, pretendem fazer ver algo; do outro, a

sala, onde está o público que, numa atitude passiva, espera ver algo. Ainda que na prática

contemporânea a delimitação espacial entre cenário e sala pareça mais suscetível à

permeabilidade, essa organização nos serve de base para refletir sobre o papel desempenhado

pelos atores - que, neste trabalho, estendemos a todos os membros de uma equipe com função de

criação, como diretores, cenógrafos e produtores2 -, enquanto propositores do que deve ser visto,

e o papel desempenhado pelo público, que está ali para testemunhar o que é proposto e,

eventualmente, ter uma experiência. Partindo da dualidade humana proposta por Ortega y

Gasset, enxergamos um sistema triangular composto por artistas-criadores que determinam um

tema - e o tratamento que este receberá - para ser exposto ao público.

O que pretendo neste capítulo é compartilhar reflexões sobre a presença do surdo em

cada um dos vértices desse triângulo: como tema, enfocando as produções de tradição teatral

ouvinte em que aparecem marcadores da cultura surda ou personagens surdos; como artista- 2 Compreendo os produtores como membros da equipe de criação à medida que eles criam condições para viabilizar a realização de uma obra.

7

criador, apresentando uma síntese do que já encontrei registrado sobre o trabalho de artistas

surdos no âmbito teatral e relatando minha experiência ao participar do Projeto GESTOS e do

Festival de Folclore Surdo celebrado em 2016; e como público, expondo algumas observações

sobre o modelo de acessibilidade oferecido aos surdos quando estes desejam ir ao teatro para

assistir um espetáculo.

2.1 Presença do surdo como tema

No vasto campo das Artes da Presença3, já foram produzidos diversos espetáculos que

chamam a atenção por utilizarem as línguas de sinais como recurso para a criação de uma

linguagem cênica. A exemplo disso, na cidade de São Paulo, há alguns anos a Cia Mariana

Muniz de Teatro e Dança realiza um intenso trabalho de pesquisa explorando os sentidos

simbólicos da dança e do teatro em diálogo com a Libras, investigação que resultou em

espetáculos como 2 Mundos e Gestos. Mas já na década de 70, no espetáculo Nelken da

companhia alemã Tanztheater Wuppertal, dirigida por Pina Bausch, o bailarino Lutz Förster faz

uma memorável performance4 em que interpreta a canção The man I love em língua de sinais

acompanhado pela versão sonora de 1928, por sua vez interpretada vocalmente por Sophie

Tucker. A afortunada possibilidade que temos atualmente de difundir esse tipo de registro

através de DVD’s ou da internet nos permite, além de desfrutar de obras que surpreendem pela

simplicidade, confirmar que há décadas a língua de sinais, elemento de importância substancial

na formação identitária dos surdos, tem despertado o interesse de muitos artistas ouvintes, que

identificaram nela um meio de subverter a linguagem do teatro e da dança tradicional criando,

assim, novas poéticas. Sem ignorar o fato de que os espetáculos citados foram produzidos com

motivações e objetivos estéticos determinados por uma tradição de teatro e de dança

desenvolvida majoritariamente por e para ouvintes, são desempenhados no palco por artistas

ouvintes e talvez não despertem no público surdo o prazer estético - decorrente da

simultaneidade de estímulos sonoros e visuais - que despertam nos ouvintes, é possível 3 Dança, Teatro, Performance e outras criações que se originam nos espaços de fronteira entre as diferentes modalidades. 4 O vídeo da coreografia está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Z8wnBSclJjg (Acesso em 25 de janeiro de 2017)

8

considerar que a utilização desse marcador da cultura surda, a língua de sinais, representa uma

presença - ainda que simbólica - do surdo como tema, visto que nessas produções é explorada a

potencialidade poética da forma surda de comunicação e expressão.

Em obras de teatro em que há a presença de um personagem surdo, no entanto, nota-se

uma preocupação maior em abordar a questão da surdez e suas implicações nas relações

interpessoais que esse personagem estabelece com os demais. Isso pode ser verificado em duas

produções teatrais recentemente em cartaz na cidade de São Paulo: Tribos e Coração de herói. A

primeira, dirigida para o público adulto, é uma montagem do texto originalmente em inglês da

britânica Nina Raine. O texto aborda o contexto de uma família disfuncional judia na qual o mais

novo dos três filhos, Billy, é surdo e oralizado. Tendo sua diferença negada e se adequando

desde sempre à forma de comunicação e expressão dos demais familiares, o jovem somente

passa a construir um sentido de pertencimento a partir do momento que começa a interagir com a

comunidade surda e aprender a língua de sinais, o que acaba provocando diversas tensões em seu

núcleo familiar. Por outro lado, Coração de herói, com dramaturgia e direção de Liliane

Zimermann, é um espetáculo musical direcionado a crianças e adultos que enfoca a relação de

dois irmãos pequenos e as histórias bíblicas recriadas por eles à noite em seu quarto utilizando

seus brinquedos e sua imaginação.

Pensando na fruição do público surdo, o primeiro espetáculo contava com um intérprete

em Libras no último sábado do mês durante a temporada no teatro Tuca; já no segundo, optou-se

por criar dois personagens que representavam uma espécie de alter ego de cada irmão,

encarregados de acompanhar os protagonistas pelo palco e interpretar em Libras o que era dito e

cantado oralmente. A quinta personagem, uma boneca, utilizava a comunicação bimodal, ou seja,

falando em português e sinalizando em Libras ao mesmo tempo. A peça corria quase toda dessa

maneira. Porém, nos momentos finais, acrescentava-se o dado de que o menino mais novo era

surdo para justificar os conflitos gerados pelas diferenças entre os irmãos. Ainda que isso gerasse

um problema de continuidade na dramaturgia que confundia um pouco o público, a partir desse

momento, o ator que interpretava o caçula passava a se comunicar em Libras. Ao término de

ambos os espetáculos, previa-se alguns minutos para o público interagir com os artistas. No

primeiro, propunha-se um bate-papo em que o público fazia comentários e perguntas aos atores;

no segundo, o elenco, ainda caracterizado, se dirigia ao hall do teatro para conversar e tirar fotos

(ver Fotografia 2).

9

Somado a isso, é necessário comentar a representação dos personagens surdos criada nos

espetáculos em questão. Nos dois, nota-se que foi realizado um profundo trabalho de pesquisa

sobre a comunidade surda e a língua de sinais. Em ambos chama a atenção também o esforço

para que a maneira de falar dos personagens surdos tivesse as qualidades sonoras das

vocalizações eventualmente produzidas por pessoas surdas. Essa fidelidade ao representar o

modo de vocalizar dos surdos, aliás, foi elogiada por diversas pessoas do público - dentre as

quais havia uma que se apresentou como fonoaudióloga - no bate-papo do dia em que assisti

Tribos. No entanto, isso nos leva a questionar sobre o lugar a partir do qual está perspectivada a

surdez representada nos dois espetáculos. Lembrando que os atores que representam os

personagens surdos nas duas peças são ouvintes, o que se vê no palco é sua habilidade para

corresponder a uma imagem que o público ouvinte tem de como um surdo se comporta

oralmente, construindo para isso o aspecto externo que a surdez tem para o ouvinte. É evidente

que o trabalho do ator consiste na construção dessa máscara que ele compõe a partir de seu

repertório e sua imaginação, que o ajudam a projetar uma realidade ficcional que difere da sua

realidade pessoal. O que aqui se questiona, entretanto, é até que ponto a representação que tem

lugar no palco considera a experiência do surdo e não é condicionada apenas pela perspectiva

que os ouvintes têm da surdez e do modo como eles a ouvem manifestar-se no corpo do surdo.

Por se tratarem de informações acústicas, por exemplo, a qualidade dessas verbalizações orais,

tidas em tão alta conta pelos ouvintes, podem ter pouca ou nenhuma relevância para experiência

estética do surdo.

Por último, há uma distinção bastante significativa entre a representação do surdo de cada

espetáculo. No primeiro, o público acompanha uma história de ruptura de paradigmas e de

emancipação de um surdo a partir do momento que ele encontra outros iguais em sua diferença;

no segundo, embora o recurso utilizado para incluir o intérprete na peça contribua para a fruição

do público surdo, persiste o discurso paternalista de que é preciso aceitar o outro - no caso o

surdo - pois diante dos olhos do Criador somos todos iguais. Particularmente, defendo que “os

indivíduos e os grupos sociais têm direito a serem iguais quando a diferença os inferioriza e o

direito a serem diferentes quando a igualdade os descaracteriza” (Santos, 1997, p. 30). Conforme

formulado por Todorov (2009, p. 55) ao discorrer acerca da experiência da alteridade, pensar no

outro apenas como um igual muitas vezes significa enxergá-lo como um idêntico, conduta que

desemboca no assimilacionismo, ou seja, na tendência de projetar no outro os próprios valores.

10

O salto paradigmático acontece quando se é capaz de reconhecer a diferença sem concebê-la

imediatamente em termos de superioridade e inferioridade, de modo que a existência humana do

outro não represente um estado imperfeito de um eu que se enxerga como norma.

2.2 Presença do surdo como artista-criador

Pensar na presença do surdo como artista-criador nas artes cênicas nos leva

necessariamente a refletir sobre o lugar do corpo no teatro. Segundo Lehmann (2007, p. 331),

“em nenhuma outra forma de arte o corpo humano ocupa uma posição tão central quanto no

teatro, com sua realidade vulnerável, brutal, erótica ou ‘sagrada’”. Ainda assim, “antes da

modernidade a realidade física do corpo permaneceu incidental no teatro (...), uma espécie de

‘subentendido’” (Ibid. p. 332). Pois bem, embora a atração que emana de atores, bailarinos e

cantores tenha sido um elixir da vida das representações, é a partir das vanguardas históricas que

aparecem novas concepções culturais sobre o corpo e, com isso, desenvolve-se no teatro o que

Lehmann nomeia como período pós-dramático, que vai dos anos 1970 aos 90. Aproximadamente

nessa mesma época - que coincide também com a retomada dos estudos sobre a língua de sinais

no campo da Linguística - o teatro de surdos começa a florescer nos mais diversos países criando

linguagens cênicas que exploram a língua de sinais, a visualidade, a expressividade imagética

das tramas, o corpo do ator, o ritmo dos gestos, as diferentes qualidades dos movimentos e o jogo

de luzes. A partir desse momento, conforme levantamento realizado por Hugo E. I. Nakagawa

(2012, p. 78) em sua dissertação de mestrado, desde grupos amadores coordenados por pequenas

associações até companhias mais estruturadas criam pelo mundo todo teatros com diferentes

formatos: só em língua de sinais, bilíngues, sem texto, visuais, físicos, com mímica ou com

pantomima. São teatros idealizados a partir de experiências e concepções surdas, diferentes dos

concebidos pelo mainstream ouvinte. Além disso, os espaços onde se desenvolvem esses

projetos promovem cursos, residências artísticas, entretenimento e formação artística no campo

das artes cênicas, assim como encontros em que surdos e ouvintes partilham experimentações e

reflexões sobre a língua, as artes, os textos dramáticos, os recursos cênicos, a história do teatro, a

cultura, a política e as identidades surdas. Como enfatiza Nakagawa (2012. p. 80), neste

contexto, “o ser Surdo é visto não como um impeditivo mas como uma mais valia”.

11

No Brasil, os grupos de maior repercussão são Signatores, Cia Arte e Silêncio, Cia

Teatral Mãos EmCena, Teatro Brasileiro de Surdos e o Projeto Palavras Visíveis. Contribuindo

para a expansão do modo surdo de fazer teatro, no segundo semestre de 2016, por iniciativa de

Alexandre Ohkawa (ver Fotografia 3) em parceria com a Escola Recriarte, foi criado em São

Paulo o Projeto GESTOS (ver Fotografia 4) com o objetivo de oferecer uma formação básica de

dois anos para atores amadores e criar um núcleo teatral formado por surdos e ouvintes.

Formaram-se três turmas e os encontros são semanais. O grupo em que participo é formado por

17 alunos, dos quais 14 são surdos e 3 ouvintes, além do professor e o intérprete. A intenção

primeira dos participantes não é necessariamente se profissionalizar nessa área, conforme pode

ser verificado nos depoimentos de três dos surdos ao serem questionados, no primeiro encontro,

sobre as motivações pessoais que os levavam a estar ali: “Eu quero desenvolver uma percepção

para o que antes eu era cego”, declara Valdeilton; “Eu preciso treinar para me libertar desse

quadrado”, afirma Paloma; e “Eu quero gritar mais”, sintetiza Alicy. Cada um à sua maneira,

revela o desejo de se transformar e desobstruir canais sensoriais, espaciais e físicos de

comunicação e expressão.

A metodologia utilizada pelo professor Carlos Eduardo Carneiro (Cadu) no primeiro

semestre tinha como objetivo trabalhar a partir da fisicalidade, para o que se buscou inspiração

nas pesquisas de encenadores pedagogos como Meyerhold, Grotowski e Eugenio Barba.

Especialmente a partir de jogos teatrais e improvisações, além da conquista de um sentido de

coletividade, entre os membros do grupo se estabeleceu uma aproximação física - que ninguém

poderia descrever de modo mais poético do que o colega Valdeilton ao sinalizar: “com um

abraço, uma moça dissolveu meu coração” - e se desenvolveu um aprofundamento na percepção

de si mesmo e do outro - notável no relato de Leonardo sobre sua experiência com surdocegos e

autistas e na sua posterior reflexão a respeito das sutilezas que podem estar contidas em um

toque segundo a percepção e a condição corporal do indivíduo que o recebe.

Além das práticas corporais, nossos encontros são sempre cheios de enriquecedoras

discussões sobre técnicas de atuação, história do teatro, uso ou não da Libras ou do português nas

cenas e condições de acessibilidade para surdos em espetáculos teatrais. Ainda parece necessário,

porém, ficar mais claro para o grupo se a postura que cada um deve assumir é de aluno/cliente,

que espera que o professor proponha tudo para que ocorra um aprendizado, ou de

investigadores/propositores, implicados num projeto de pesquisa e responsáveis pelo processo de

12

descobertas e de criação de uma poética teatral. Além disso, para possibilitar uma relação direta

entre os sujeitos e potencializar os processos de criação, seria importante a superação da

triangulação na comunicação: Surdos - Intérprete de Libras - Professor/Propositor;

Professor/Propositor - Intérprete de Libras - Surdos. Vale a pena mencionar que essa não parece

ser uma problematização pontual, pois a mesma necessidade é apontada pelo diretor português

João Pedro Correia (2015, p. 472) ao descrever o resultado do primeiro trabalho realizado com o

Grupo de Teatro de Surdos do Porto: “Faltava-nos o foco do olhar dos participantes surdos, pois

o foco da atenção estava na tradução, nas mãos que faziam a ponte linguística, em busca da

compreensão dos conteúdos, como é compreensível. Mas muito se perdia na tradução das duas

Línguas”. No trabalho seguinte, Correia e sua equipe decidem dispensar a mediação do intérprete

de maneira que todos passam a ser responsáveis pela comunicação, pois o que unia a surdos e

ouvintes naquele contexto era o desejo de fazerem teatro juntos.

Para finalizar, o Festival de Folclore Surdo (ver Fotografias 5, 6, 7, 8, 9 e 10), realizado a

cada dois anos na Universidade Federal de Santa Catarina, consiste num encontro internacional

para promover artefatos da cultura surda. Com participação massiva de surdos de vários países, o

evento também é aberto a ouvintes interessados e que sejam proficientes em língua de sinais. O

foco principal é dado à poesia, à contação de histórias e às piadas, lembrando que na produção

surda essas três modalidades guardam uma relação muito íntima com as artes cênicas.

Enfatizando que no Teatro prevalece a ação de ver, Ortega y Gasset (2014, p. 36) já havia

concebido que nesse gênero há uma predominância do visionário e espetacular sobre o literário,

pois, não se trata de uma experiência que acontece de forma solitária, como pode ser a da leitura;

para vivenciá-la temos que sair de nós. De modo similar, nas modalidades apresentadas no

Festival é inerente a performance visuo-espacial. Além disso, assim como no teatro, no corpo de

quem sinaliza uma poesia, uma história ou uma piada se alojam temporariamente personagens,

cenários e paisagens, fazendo desaparecer o que é real para deixar aparecer, através de sua

corporeidade, seus gestos e movimentos, o irreal. Os poetas, os contadores de histórias e os

humoristas surdos têm o dom da transparência - semelhante aos atores - e através deles aparecem

outras coisas, mostrando-nos que no espaço limitado de cada corpo cabe o infinito5.

5 Embora não seja possível aprofundar a seguinte reflexão neste trabalho, pois para isso seria necessário amparo teórico em outros autores e pesquisas, parece-me relevante comentar que a teatralidade observada nas cenas e performances apresentadas no Festival de Folclore Surdo não está condicionada à música, ainda que se possa

13

2.3 Presença do surdo como público

Sempre que eu entrava em cartaz com algum espetáculo teatral, Mariana me dizia que

não iria assistir pois nunca entendia a história. Então, em julho de 2013, para minha peça de

formatura, pedi à intérprete que a havia acompanhado durante sua graduação em Pedagogia na

PUC que participasse em uma das apresentações para garantir a acessibilidade a ela e a um

pequeno grupo de amigos seus que foram assistir. Assim tiveram início minhas primeiras

reflexões sobre acessibilidade para surdos no teatro.

Na última década houve um aumento significativo na presença do intérprete em língua de

sinais em espetáculos de teatro. Essa mudança - certamente vinculada à oficialização da Língua

Brasileira de Sinais (Libras) através da Lei 10.436, de 24/04/2002 e do Decreto 5.626, de

22/12/2005, à regulamentação da profissão de Tradutor e Intérprete da Língua Brasileira de

Sinais (Libras) através da Lei 12.319, de 01/09/2010, e a outras políticas afirmativas já

implementadas - foi muito importante para a formação de um novo público, que antes se via

alijado dessas vivências culturais.

Contudo, ainda não é possível afirmar que o teatro é um ambiente cultural por onde o

surdo circule sem entraves. Enquanto as leis supracitadas comprometem o poder público em

geral e as empresas concessionárias de serviços públicos com o projeto de incentivar a difusão da

Libras e assegurar ao surdo o acesso à comunicação, à informação, à saúde e à educação, não

contêm especificações quanto à garantia de acesso aos conteúdos dos bens culturais e artísticos,

de modo que a criação de programas de acessibilidade nessa área historicamente tem ficado mais

a cargo das Secretarias estaduais e municipais, da agenda política de cada gestão e da boa

vontade de indivíduos interessados em eliminar as barreiras para a fruição do público surdo que

se interessa por arte. A Lei 13.146, conhecida como Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com

Deficiência, com a qual se decretou, entre outros, o direito da pessoa com deficiência à cultura e

ao acesso a bens culturais, a programas de televisão, cinema e teatro em formato acessível,

identificar nela traços de musicalidade. Isso pode parecer uma obviedade, mas esse traço distintivo nos levou ao questionamento a respeito do atual uso que se faz da música no teatro de tradição ouvinte, tendo em vista sua forte presença tanto para criar atmosferas, estados e tensões no espetáculo em si quanto como um estímulo durante o processo de criação dos atores.

14

somente foi sancionada em 6 de julho de 2015. De maneira que seu impacto na sociedade ainda é

pouco perceptível6.

No meio teatral, especificamente, é notável a carência de uma reflexão mais profunda

sobre a questão da acessibilidade para o espectador surdo. Conforme aponta o ator e teatrólogo

surdo Lucas Sacramento em entrevista realizada para este trabalho, a perspectiva dos surdos

raramente é considerada pelos produtores de espetáculos teatrais ao elaborarem um projeto de

acessibilidade:

A: Qual é sua visão sobre as políticas para garantir acessibilidade ao

público surdo que quer assistir produções teatrais no Brasil?

L.S.: Atualmente melhorando a acessibilidade a politica compreender nossos

Leis, LBI. Os produções teatrais não têm os grandes conhecimentos de

acessibilidade ao público surdo, pois as produções convidam os interpretes,

poucas experiências dos trabalhos, outro não tem os conhecimentos dos

trabalhos teatrais, também as produções dificilmente convidar os atores surdos

incluso e debate dos trabalhos! Os atores surdos são bons informantes pra ajudar

os produções teatrais tomam conhecimentos, corrigir mais uma melhoria da

acessibilidade. (ver Entrevista completa no Anexo)

Com isso, no melhor dos cenários - embora ainda não represente o ideal, uma vez que para que o

surdo tenha a oportunidade de fruição a tradução simultânea pode não ser suficiente -, a

acessibilidade proporcionada consiste em disponibilizar um intérprete em algumas datas que a

produção do espetáculo considera convenientes durante a temporada.

Todavia, a ação mais celebrada por produtores de obras teatrais, ao serem questionados

sobre seu compromisso com projetos de acessibilidade, é a de promover sessões exclusivas para

pessoas com deficiência auditiva e visual, sem se darem conta do quão segregacionista é essa 6 Na edição de 2017 da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MiTsp), por exemplo, somente dois dos dez espetáculos contaram com intérpretes de Libras; os apresentados no Itaú Cultural e no Auditório do Ibirapuera: Black off e A missão em Fragmentos: 12 cenas de descolonização em legítima defesa. É importante lembrar que os intérpretes foram chamados não pelos organizadores do evento, mas sim por iniciativa do Itaú Cultural - instituição que também administra o Auditório do Ibirapuera e de longa data possui uma política de acessibilidade. Ainda assim, os intérpretes foram comunicados com pouca antecedência e a divulgação para o público surdo aconteceu apenas dois dias antes da data de apresentação dos espetáculos.

15

conduta. Em minhas idas ao teatro na companhia de colegas surdos pude comprovar que esse

discurso não é uma exceção, chegando a ouvir de uma produtora que não era possível ter

intérprete em todas as apresentações porque ele atrapalha os atores.

A frequência com que nos deparamos com visões como essa nos leva a concluir que,

apesar de muitas vezes a questão da acessibilidade aparecer em projetos para editais como uma

contrapartida social, ela ainda é compreendida como um inconveniente, como algo com o que o

produtor tem que lidar tentando não comprometer a experiência dos artistas e do público padrão

que se espera receber no teatro. Finalmente, promover apresentações exclusivas para pessoas

com deficiência como medida de acessibilidade é um paradigma que tem que ser superado se

verdadeiramente se enxerga de forma afirmativa a diversidade de perspectivas e condições

humanas.

16

3. ASPECTOS DE TEATRALIDADE NA LÍNGUA DE SINAIS

Nada   é   mais   prodigioso,   ou   mais   digno   de  

celebração,  do  que  algo  que  liberta  as  capacidades  

de  uma  pessoa  e  lhe  permite  crescer  e  pensar.

-­‐  OLIVER  SACKS,  Vendo  vozes  (2010)  

Entre os ouvintes, é muito comum sentir-se impulsionado a acompanhar uma conversa

em idioma estrangeiro ouvida fortuitamente. Ainda que isto possa se dar apenas no nível do

inconsciente, ao detectar uma fala com estrutura prosódica, rítmica e entonacional e sistema

fonológico diferentes dos que se está habituado, tem-se a impressão de ser tomado por uma

necessidade imperiosa de decifrar as pistas que levariam a descobrir de que língua se trata e,

evidentemente, do que se fala. Eventualmente, essa curiosidade inicial evolui transformando-se

em interesse por esse outro e pelo que ele tem para contar, mesmo que as perguntas que

acompanham a vontade de conhecer o que não se sabe fiquem resguardadas no universo íntimo

de cada um, servindo apenas para alimentar fantasias.

No entanto, a história nos mostra que a condição de prestígio ou de depreciação de um

idioma no imaginário social é determinada não apenas pelo uso e valoração que dele fazem seus

usuários, como também pelo que essa língua pode representar dentro do espectro mais amplo das

relações de poder instituídas por um Estado e por seus representantes. Estendida para o debate

corrente sobre a condição das línguas de sinais a nível nacional e mundial, tal discussão ganha

novos matizes.

Atualmente a língua de sinais parece despertar certo fascínio entre ouvintes em geral.

Não raro atribuem a ela uma expressividade não observada nas línguas orais, como se ela viesse

a preencher uma espécie de lacuna deixada por um modelo de educação regulador do corpo,

limitador do movimento e empenhado em determinar - ou mesmo impor - os parâmetros da

gestualidade desejável para que o indivíduo atue adequadamente no meio social. No contexto

escolar brasileiro, por exemplo, a Educação Física, “herdeira de uma tradição científica e política

que privilegia a ordem e a hierarquia desde sua denominação inicial de Ginástica” (Soares, 2006,

17

p. 113), se consolidou como matéria destinada a fornecer o modelo de educação corporal. Cabe

acrescentar que a Ginástica, “afirmada ao longo de todo o século XIX no Ocidente europeu como

parte integrante dos novos códigos de civilidade” (Ibid. p. 113), compreende o corpo como:

[...] objeto de intervenção da ciência, como máquina a ser manipulada. Em seus

tratados, o que se menciona abundantemente são funções e mecanismos

corporais e o que ocupa maior espaço é a Anatomia, a Mecânica e, mais tarde, a

Fisiologia. Este conjunto de saberes elaborado no interior da Medicina

especialmente a partir do século XVII vai influenciar fortemente o modo de

conceber os exercícios físicos e, mais amplamente, o conjunto das práticas

corporais” (Ibid. p. 114).

No mesmo artigo, a autora faz referência ainda a um outro conjunto de saberes que

também foi incorporado pela Ginástica no século XIX e ressignificado sob a ótica da utilidade,

da economia de energia, da moral e da higiene, mas cuja origem foi apagada de seus registros

para atender às imposições da nova ordem social capitalista: as práticas populares tradicionais de

artistas de rua, acrobatas e funâmbulos, artistas nômades que apresentavam o corpo como

espetáculo, mas que passaram a ser tomados naquele momento como um antiexemplo a ser

combatido por seus excessos e por possuírem um modo de vida entendido como uma ameaça à

ordem.

Se a ideologia higienista - com tendências eugenistas - do século XIX determinou o modo

de ver o corpo do homem ocidental em geral, não surpreende o fato de que seu impacto foi ainda

mais acentuado para as populações vistas como “imperfeitas”, “anormais” ou “deficientes”. Em

linhas muito gerais, as práticas predominantes na relação com esses grupos no mesmo período

foram discriminatórias e segregacionistas (Fernandes, 2012, p. 20). Quanto aos surdos,

especificamente, as resoluções tomadas no Congresso de Milão, realizado em 1880, tiveram

implicações sentidas por essa população até a atualidade. Nesse evento, por um lado se

determinou a exigência de que todos os governos criassem medidas para que todos os surdos

recebessem educação (Becker, 2015, p. 87); por outro se votou pelo predomínio absoluto do

oralismo no processo educativo de pessoas surdas. É importante ressaltar que os professores

18

surdos foram excluídos da votação que resultou em tal deliberação e que esta significou a

redução da educação dos surdos ao aprendizado da língua oral, provocando   um   retrocesso  

incalculável  tanto  no  processo  de  legitimação  da  língua  de  sinais  quanto  no  de  emancipação  

do  surdo  em  relação  ao  ouvinte.  Segundo  Oliver  Sacks  (2010,  p.  35),  em  1850  nos  Estados  

Unidos,  aproximadamente  50%  dos  professores  de  surdos  eram  surdos,  caindo  para  25%  

em  1900  e  para  12%  em  1960.  Além  disso,   a   exclusão  da   língua  de   sinais  no   sistema  de  

ensino  oferecido  aos  surdos  afetou  profundamente  a  imagem  que  estes  passaram  a  ter  de  si  

mesmos   e   de   toda   a   comunidade   e   cultura   surdas.   Portanto,   ainda que desconhecido pela

imensa maioria dos ouvintes, o Congresso de Milão teve consequências profundamente negativas

e prejudiciais nas condições de educação e comunicação dos surdos, uma vez que a imposição do

oralismo acarretou uma deterioração do aproveitamento educacional e uma disseminação do

sentimento de menos-valia entre os próprios surdos, que apenas começam a ter espaço para

buscar alternativas compatíveis com suas necessidades a partir da década de 70 do século XX.

Retomando a questão do aparente deslumbramento que a língua de sinais provoca nos

ouvintes na atualidade, não é mero detalhe o fato de que esse fenômeno começa a acontecer

paralelamente ao de reelaboração discursiva a respeito do corpo. Isso não significa que a ideia de

um ideal de corpo a ser alcançado foi eliminada. Pelo contrário: de acordo com o discurso

hegemônico, o corpo é concebido como “santuário do músculo, como emblema da cultura da

aparência regulada por um ciclo de absorção e de eliminação” (Soares, 2006, p. 119). Além de

ser educado para estar em forma a partir de uma norma que delimita o que é a boa forma, o

corpo, nessa etapa que se estende desde a década de 70 até os dias atuais, passa a ser sexualizado

e sensualizado, adquirindo uma visibilidade nunca antes vista que atende a um amplo projeto

estético da aparência (Ibid. p. 119). Entretanto, os mais diversos campos do saber propõem

outras concepções interessadas na construção de “novos mapas do corpo” (Albuquerque, 2003,

p. 31), reivindicando espaço para “novas corporeidades que retrucam às gestões civilizadoras do

corpo e procuram resgatar a espontaneidade natural perdida com o projeto tecnocientífico” (Ibid.

p. 31).

Alguns dos desdobramentos promovidos a partir das décadas de 60 e 70 no interior de

três áreas do pensamento são de especial interesse neste trabalho. Na área da Educação, assiste-

se ao surgimento de correntes pedagógicas que questionam os constrangimentos impostos aos

19

corpos dos aprendizes. Além disso, nos Estados Unidos, como consequência dos movimentos

organizados nas décadas de 50 e 60 por pais de crianças com deficiência que exigiam o direito de

seus filhos estudarem de forma menos segregadora, tem início a criação de leis que determinam

o acesso à educação regular a todas as crianças com deficiência (Fernandes, 2012, p. 21). No

terreno do Teatro, as experimentações que caracterizam o Teatro Físico que começa a ser

desenvolvido no Reino Unido, por exemplo, se contrapõem aos padrões estabelecidos na arte

teatral buscando restabelecer a importância do corpo humano enquanto instrumento expressivo

(Romano, 2013, p. 34). No campo da Linguística, oitenta anos depois do evento que relegou a

língua e a cultura surdas a um lugar inferior e aniquilou os esforços dos interessados em

identificar a gramática da língua de sinais, ressurgem pesquisas que conduzirão ao

reconhecimento do sistema de comunicação utilizado pelos surdos como língua (Becker, 2015, p.

90).

Nota-se, portanto, que a legitimação da língua de sinais está intimamente ligada à

visibilidade que o corpo adquire e à pluralidade de discursos produzidos em torno dele

especialmente a partir da segunda metade do século XX. Com um olhar mais atento à

corporeidade7 já não se podia ignorar as potencialidades comunicativas e expressivas de uma

língua que se materializa no corpo e no espaço. Contudo, não se deve passar por alto três coisas:

em primeiro lugar, que o status de língua só foi atribuído ao sistema utilizado pelos surdos

devido ao esforço hercúleo investido por pesquisadores8, surdos e ouvintes, nas áreas da

Linguística e da Neurociência e às contribuições de educadores e artistas, também surdos e

ouvintes; em seguida, que primeiro foi necessário esse reconhecimento no âmbito científico para

que, só então, a condição humana de seus usuários primordiais - os surdos - passasse a ser

reconhecida como diversidade por meio de políticas afirmativas; e finalmente, que tanto a

legitimação da língua de sinais quanto as políticas públicas já criadas ainda não garantem a

acessibilidade e a equidade de direitos dos surdos em relação aos ouvintes.

7 A corporeidade é a manifestação cotidiana que se nos apresenta nos movimentos naturais e mais simples, naqueles primeiros modos de se estar no mundo que integram o sentir, pensar e agir. (Azevedo, 2015, p. 35) 8 Em uma breve passagem de Vendo vozes, Sacks menciona que, apesar da publicação em 1960 de um importante estudo sobre a estrutura das línguas de sinais realizado por William Stokoe, precursor em pesquisas nessa área, nem mesmo Noam Chomsky, “o mais revolucionário linguista de nossa época” (p. 120), reconhecia a língua de sinais como língua verdadeira no prefácio de sua obra de 1966 Cartesian linguistics.

20

Diante desse breve histórico, a admiração atual dos ouvintes não familiarizados com a

língua de sinais em relação à expressividade que atribuem ao corpo que sinaliza pode ser

comparada, guardadas as devidas proporções, à surpresa despertada no público pelos artistas de

rua - que tinham o corpo como espetáculo - antes de serem amaldiçoados em defesa da ordem no

século XIX. Hoje, de fato não é raro sair de uma sala de teatro ao término de um espetáculo com

tradução simultânea em Libras e testemunhar entre os espectadores ouvintes comentários

exaltando a desenvoltura e o vigor do intérprete na realização de seu trabalho. Eventualmente,

inclusive, afirmam terem prestado mais atenção no intérprete do que nos atores. Ainda assim,

não é possível afirmar que esse encantamento inicial é suficiente para superar a tendência de

projetar no outro, e na sua língua, os próprios valores, faltas e desejos. Ora, se na

contemporaneidade a visibilidade vale ouro e é a nova meta rumo à qual o indivíduo rema

incansavelmente, a expressividade, a vivacidade e a presença - faculdades tão importantes para

um ator quanto para um intérprete devido à natureza de seu trabalho - adquirem socialmente o

status de recurso útil para conquistá-la. Desse modo, a exaltação da língua pelo ouvinte no

contexto da interpretação de um espetáculo teatral em Libras se (con)funde com sua admiração

em relação à expressividade do indivíduo que encarna os atributos performáticos dessa língua.

Entretanto, pelo surdo que utiliza e depende da Libras para se comunicar, a língua é

experimentada de modo profundamente diferente. Primeiramente porque ela é um elemento

imprescindível para possibilitar minimamente sua compreensão e, eventualmente, sua fruição.

Além disso, considerando que a língua de sinais não se limita a um léxico ou um código, sendo

uma língua que se desenvolve seguindo os mesmo princípios da “gramática profunda” (Chomsky

cit. por Sacks, 2010, p. 72) das línguas orais, mas com a peculiaridade de refletir padrões visuais

de pensamento, o que um ouvinte identificaria, por exemplo, como expressão facial, pode

consistir em um “comportamento” facial específico que serve para indicar construções sintáticas

como tópicos, orações relativas e perguntas, funcionar como advérbios ou ainda quantificar. O

mesmo ocorre com outras partes do corpo; são recursos - inflexões reais ou potenciais, espaciais

ou cinéticos - que podem convergir sobre os sinais radicais, fundir-se com eles e modificá-los,

compactando uma quantidade enorme de informações nos sinais resultantes. De maneira que a

língua, que deleita os olhos dos ouvintes, consiste num sistema complexo de comunicação e

expressão muito difícil de ser decodificado por alguém que não o domina. Aliás, foi o fato de

todas essas informações linguísticas serem espaciais - e isso ser totalmente diferente de qualquer

21

língua falada - que impediu que ela fosse considerada uma língua e, consequentemente, manteve

por décadas o surdo sujeito às condições de inserção na sociedade impostas pela percepção de

realidade dos ouvintes. Ainda assim, as comunidades surdas, muitas vezes marginalizadas, foram

capazes não só de preservar, transmitir e enriquecer sua língua, como de se expressar

poeticamente através dela.

Uma dessas formas de expressão é a teatralidade. Partindo da premissa formulada no

início do século XX por Nikolai Evrêinov de que “a teatralidade seria um instinto natural do ser

humano, (...) portanto é anterior ao desenvolvimento de um projeto artístico” (Concílio, 2015, p.

165) e aceitando que “a manifestação do instinto de teatralidade estaria comprovada no desejo de

mudança constante pelo homem” (Ibid. p. 165), é possível considerar que a semente do que

entendemos como fenômeno teatral - e cujo espaço de germinação máxima é o Teatro - existe no

próprio cotidiano. Somado a isso, conforme desenvolvido por Josette Féral (2003, p. 14), esse

conceito tem tanto uma dimensão de produção quanto de recepção, de maneira que definir algo

como provido de teatralidade resulta de um julgamento, de um processo interior através do qual

reconhecemos certas características que nos foram ensinadas como teatrais. Como o foco neste

momento é uma língua e o que entra em jogo quando o sujeito se comunica através dela, vale a

pena lembrar que “de um ponto de vista teatral, a gramática paradigmática expressa os

pensamentos e a emotividade subjacentes à atividade social” (Burns cit. por Féral, 2003, p. 21)9.

Compreendemos que, como no uso de qualquer idioma, é possível encontrar pontos de

convergência entre a comunicação em língua de sinais e a teatralidade cênica, ainda que no

cotidiano. A peculiaridade da língua dos surdos reside em sua natureza espacial, visual e

cinética; portanto, assim como no teatro, através dela se vê e se faz algo para ser visto,

empregando mais acentuadamente para isso os gestos, a disposição corporal, a consciência de

estar exposto ao olhar do outro e a energia para sustentar a sedução desse olhar.

Por último, é Féral (Ibid. p. 21) quem também nos lembra que hoje se adota

metaforicamente a ideia de que os indivíduos são atores, pois, assim como no teatro - e embora

movidos pelas forças sociais, psicológicas e naturais que determinam sua vida -, desempenham

papéis e atuam de acordo a convenções. Consequentemente, envolvidos nas relações sociais

cotidianas, somos ao mesmo tempo atores para os outros e espectadores dos outros - e, às vezes,

9 Tradução nossa.

22

de nós mesmos. Portanto, ademais da experiência visual que se tem em contato com o indivíduo

que, por meio da língua de sinais, expressa pensamentos e emoções em imagem e transforma o

corpo todo em cenário, a teatralidade - gerada pelo público, portador do olhar - subsiste no fato

de que, para o ouvinte, o surdo ocupa o lugar de ser o outro. O que nos parece positivamente

significativo é que, através da teatralidade - agora como manifestação do desejo de mudança e

como forma de produção de memória social - inerente ao ser humano, o surdo demonstra seu

rechaço ao papel social que por décadas foi forjado para que desempenhasse. E à medida que,

além de espectador, desempenha também o papel de ator nos debates que lhe dizem respeito,

reivindica a criação de novas convenções em palcos que estão dentro e fora do Teatro.

23

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Expondo reflexões, evocando a história, celebrando conquistas, reivindicando direitos,

explicitando incertezas, compartilhando angústias, dedicando olhares, admirando poéticas,

entretecendo afetos, fruindo e experimentando tremores no contato com a alteridade, este texto

foi se construindo, se desconstruindo e se constituindo. Mais que espelhamento do espírito

inquieto que - porque tinha um prazo a cumprir - colocou-lhe um ponto final para pari-lo, ele é a

tentativa de criar alguma corporeidade a partir da imaterialidade de pensamentos. Tarefa

laboriosa - por se tratar de falar de linguagens tridimensionais utilizando um suporte

bidimensional -, mas muito menos solitária do que parecia no início do processo de pesquisa. Há

muito sendo pensado, produzido e registrado sobre a história, a cultura e as artes dos surdos.

Um dos desafios talvez seja fazer chegar esse material a mais pessoas, tanto surdas

quanto ouvintes, de modo que a exposição a essa produção colabore no processo de dissolução

dos discursos normalizadores, paternalistas, assistencialistas, discriminatórios, segregacionistas e

estigmatizantes em relação ao surdo e à surdez. Como enfatiza Schneider (2012, p. 40) ao se

posicionar sobre a questão da acessibilidade, “o recurso realmente necessário é a superação de

preconceitos e da discriminação (...). Por melhores que sejam os recursos tecnológicos, materiais

e logísticos, eles não serão suficientes se não houver uma mudança de concepção sobre o que e

quem é o ser humano”. E essa adoção de novos paradigmas precisa acontecer em todas as esferas

sociais, a começar pela Educação; não apenas pensando em como “incluir” o aluno surdo, mas

principalmente valorizando o educador surdo, que frequentemente tem a mesma titulação de um

ouvinte, mas não é registrado e remunerado como professor, e sim como “instrutor” ou

“auxiliar”. Essa situação deixa evidente que os surdos continuam sendo “produzidos e narrados

como trabalhadores inseridos na lógica binária da eficiência/deficiência” (Klein cit. por

Witkoski, 2012, p. 63).

Dentre todas as modalidades artísticas, o teatro é o mais permeável às mudanças sociais.

Segundo Romano (2013, p. 23), “o corpo de uma cultura numa certa época tende a refletir-se no

corpo cênico, assim como mudanças nas técnicas corporais do teatro têm relação com mudanças

na sociedade”. Deste modo, ainda que o surdo continue sujeito a adequar seu tempo ao das

brechas abertas em temporadas de espetáculos em que se disponibiliza um intérprete - e torcer

24

para que o intérprete esteja num lugar visível que facilite sua fruição -, a produção de artefatos

poéticos no seio da comunidade surda tem aumentado significativamente, de modo que hoje o

surdo não apenas reconhece traços de sua identidade representados nas obras da tradição teatral

ouvinte, mas, ao subir ao palco, também escolhe do que quer falar e a forma como quer se

expressar.

As reflexões poderiam se multiplicar indefinidamente. Mas gostaria de encerrar

recordando um fato ocorrido durante as apresentações dos poemas na oficina do Slam do Corpo

ocorrida em 2015. Quem melhor resumiu o momento atual da produção cultural e artística dos

surdos foi uma mãe, ouvinte, que estava com seus dois filhos pequenos, o maior ouvinte e o

menor surdo, participando do evento. Ao ser gentilmente convidada para ser “a voz” do filho

menor quando este se dirigiu ao palco para apresentar seu poema em Libras, ela respondeu “uma

coisa que eu não quero ser é a voz dele, ele tem sua própria voz”.

25

5. REFERÊNCIAS

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SANTOS, Boaventura de Souza. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista

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<http://www.boaventuradesousasantos.pt/media/pdfs/Concepcao_multicultural_direitos_hu

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SCHNEIDER, Laino A. “O sujeito com deficiência no contexto das relações sociais”. In: LIPPO,

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Canoas: Ed. ULBRA, 2012, p. 31 – 42.

SOARES, Carmen. “Corpo, conhecimento e educação”. In: SOARES, Carmen (org.). Corpo e

História. Campinas: Autores Associados, 2006, p. 109 – 129.

STROBEL. Karin. As imagens do outro sobre a cultura surda. Florianópolis: Ed. da UFSC,

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TODOROV, Tzvetan. La conquista de América - el problema del otro. Tradução de Flora Botton

Burlá. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 2009.

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WITKOSKI, Sílvia A. Educação de surdos, pelos próprios surdos: uma questão de direitos.

Curitiba: CRV, 2012.

WEBSITES

CULTURA SURDA. Disponível em <https://culturasurda.net/>. Acesso em: 25/01/2017.

CULTURA SORDA. Disponível em <http://www.cultura-sorda.org/>. Acesso em: 25/01/17.

FESTIVAL DE FOLCLORE SURDO. Disponível em <https://festivaldefolcloresurdo.com/>.

Acesso em 13/12/16.

WORLD FEDERATION OF THE DEAF. Disponível em <https://wfdeaf.org/who-we-are/>.

Acesso em 20 dez. 2016.

28

6. ANEXOS

Fotografia 1

A autora e sua irmã na oficina do Slam do Corpo em 2015

29

Fotografia 2

A autora e sua irmã com os atores do musical Coração de herói Jeferson Kucioyada, Renan

Souza, Caroline Martins, Mirian Caxilé e Katiuscia Pinheiro

30

Fotografia 3

Alexandre Ohkawa (à direita) em uma performance de Butoh no SESC Vila Mariana em

novembro de 2016

31

Fotografia 4

Projeto GESTOS, turma de segunda-feira realizando um exercício de improvisação

32

Fotografia 5

A sul-africana Atiyah Asmal (à direita) no Festival de Folclore Surdo ministrando aula

mestre sobre conto em língua de sinais, acompanhada por Renata Rezende (à esquerda)

interpretando o conteúdo em Libras

33

Fotografia 6

Participantes do Festival de Folclore Surdo ao final da aula mestre sobre conto em língua de

sinais oferecida pelas sul-africanas Susan Njeyiyana e Atiyah Asmal (ao centro)

34

Fotografia 7

Show na Concha Acústica do campus da Universidade Federal de Santa Catarina durante o

Festival de Folclore Surdo

35

Fotografia 8

Mestres surdos brasileiros responsáveis pela aula mestre de teatro no Festival de Folclore Surdo:

Marlene Prado, atriz e professora na Universidade Federal do Rio de Janeiro; Silas Queiroz,

arquiteto, ator, humorista, poeta, diretor e coordenador do Projeto Palavras Visíveis no grupo

Moitará do Rio de Janeiro; e Carlos Alberto Goes, ator

36

Fotografia 9

O ator surdo brasileiro Nelson Pimenta (ao centro) mediando uma roda de conversa,

acompanhado por Renata Rezende (à esquerda) interpretando a exposição do ator para os

participantes estrangeiros

37

Fotografia 10

Presente no Festival de Folclore Surdo, o ator e teatrólogo Lucas Sacramento foi o primeiro

surdo do Brasil com curso superior em Teatro

38

Fotografia 11

Intervenção em notas de dois reais criada pelo grupo Corposinalizante

39

Entrevista por escrito realizada pela autora ao ator e teatrólogo surdo Lucas Sacramento

A: O que é o teatro para você?

L.S.: O teatro me faz feliz, A arte me faz feliz, A arte Surda me faz rir a remédio!

A: Que papel tem o teatro atualmente para a comunidade surda?

L.S.: Os papeis são adaptados da Literatura a parte inclusão e facilitando a acessibilidade a

plateia ouvintes com traduções dos personagens.

Os papeis da Comunidade Surda fazem naturalmente de trabalhar o teatro, são principais

improvisações, contar as piadas e fábulas (lenda). O outro lado são poucos que foram espetáculos

profissionais (incluindo o iluminação, figurinos, cenografia), pois estamos fortalecendo a cultura

Surda! Atualmente está indo Folclore Surdo, é o começo!

A: Como aconteceu sua formação como artista-ator-teatrólogo?

L.S.: Minha formação me fez os desafios que eu quebrar minhas barreiras até eu formar! Eu

aprendi muito a teoria e prática como eu ser, o humano faz isso que quer! Não tem regras que

não são obrigatórios, pois o ator é humano que ele quer! Então faz!

Atualmente eu sinto novo profissional, trabalhando próprios projetos, roteiros e metodologias

que o que é Teatro dos Surdos! A pesquisa é sem fim!

A: Qual é sua visão sobre as políticas para garantir acessibilidade ao público surdo que

quer assistir produções teatrais no Brasil?

L.S.: Atualmente melhorando a acessibilidade a politica compreender nossos Leis, LBI. Os

produções teatrais não têm os grandes conhecimentos de acessibilidade ao público surdo, pois as

produções convidam os interpretes, poucas experiências dos trabalhos, outro não tem os

conhecimentos dos trabalhos teatrais, também as produções dificilmente convidar os atores

surdos incluso e debate dos trabalhos! Os atores surdos são bons informantes pra ajudar os

produções teatrais tomam conhecimentos, corrigir mais uma melhoria da acessibilidade.