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Universidade de São Paulo
Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes
Curso de Especialização em “Arte na Educação: Teoria e Prática”
TEATRO E TEATRALIDADE NO CONTEXTO DA SURDEZ:
UMA INVESTIGAÇÃO SOBRE PRESENÇAS DO SURDO NO TEATRO
E ASPECTOS DE TEATRALIDADE NA LÍNGUA DE SINAIS
LETICIA SOARES DE LIMA GOMES
São Paulo
2017
LETICIA SOARES DE LIMA GOMES
TEATRO E TEATRALIDADE NO CONTEXTO DA SURDEZ:
UMA INVESTIGAÇÃO SOBRE PRESENÇAS DO SURDO NO TEATRO
E ASPECTOS DE TEATRALIDADE NA LÍNGUA DE SINAIS
Monografia apresentada à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo para a obtenção de título de especialista em Arte-Educação.
Orientador: Prof. Dr. Samir Signeu
São Paulo
2017
Dedico este trabalho à minha irmã Mariana,
cujo sinal1 é um brinco em formato de pluma pendendo do lóbulo direito -
que se explica pelo seu costume de usar brincos grandes
1 Na cultura surda, o sinal é uma identificação pessoal criada e dada por um surdo a uma pessoa a partir do momento que ela passa a ter contato com a comunidade surda. Ele é atribuído com base na observação de três aspectos principais: características físicas, comportamento marcante ou mania.
AGRADECIMENTOS
Mais que uma experiência acadêmica, o Curso de Especialização em “Arte na Educação:
Teoria e Prática” ofereceu-me momentos, bons amigos, recordações e tremores que guardarei
comigo com muito afeto. A todas as pessoas e espaços que, direta ou indiretamente, participaram
dessa história deixo meus agradecimentos.
Agradeço a todos os colegas do grupo de pesquisa na área de teatro pelas ideias e
inquietações compartilhadas em nossas reuniões. Em especial, ao Prof. Dr. Samir Signeu pela
disponibilidade e compromisso em me orientar ao longo do processo de investigação.
Aos amigos, surdos e ouvintes, que partilham das comunidades surdas, agradeço por
terem me acolhido com tanto carinho e me ajudado a enriquecer as reflexões que deixo
registradas neste trabalho.
A meu grande amigo Waldomiro L. S. J. um imenso obrigada pela sinceridade e pelas
leituras rigorosas que me ajudaram a me apropriar do meu caminho de escrita. Agradeço
profundamente também meus amigos Alexandre O., Felipe F., Rosa L. e Suellen L. pela
disponibilidade para ler este texto estando ele ainda no forno, por seus comentários e por suas
palavras de incentivo.
A meu companheiro Rafael, interlocutor amoroso e leitor incansável dos meus escritos,
agradeço pelo apoio constante e por me tranquilizar nos momentos de angústia em que os
pensamentos parecem resistir a ir para o papel.
A Maria Lúcia e Juan Carlos, meus pais, por me ensinarem a amar a diversidade e a
potência criadora do ser humano e a me dedicar com paixão a tudo o que faço.
Por fim, agradeço imensamente à Mariana, minha irmã, que me inspira desde que chegou
ao mundo, que está no começo, no meio e no fim deste processo de escrita e que me ensina que
não apenas é possível ser diferente: é necessário.
A todos, muito obrigada.
Leticia Soares de Lima Gomes
Março de 2017
O teatro não muda ninguém; são as pessoas que se
mudam a si próprias. Agora, eu não tenho dúvidas
de que o teatro pode ajudar-‐nos a encontrar uma
energia de mudança para nós fazermos outras
mudanças nas nossas vidas. E [...] essa mudança é
o tal recomeçar e o tal acreditar que é possível ser
diferente. E acho que termino por aqui.
-‐ HUGO CRUZ, Arte e Comunidade (2015)
RESUMO
As palavras que se seguem resultam de reflexões sobre a atual presença do surdo no
teatro e os aspectos de teatralidade que podem ser enxergados na língua de sinais. São registros
de pensamentos decorrentes de observações feitas em espetáculos em que a língua de sinais e
personagens surdos são incorporados pelo mainstream teatral ouvinte; em espaços em que os
surdos são criadores de poéticas próprias que guardam uma relação estreita com o fenômeno do
teatro; e em ocasiões em que o público surdo - enfrentando frequentemente a barreira da falta de
acessibilidade - deseja assistir um espetáculo teatral. Além disso, é um texto em que se arrisca
dedicar um possível olhar para a língua de sinais a partir de um ponto de vista teatral, mas
respeitando a complexidade que ela possui enquanto sistema linguístico de comunicação e
destacando sua importância histórica enquanto símbolo de resistência e artefato cultural do povo
surdo. Ora celebrando as potencialidades poéticas da língua de sinais e da corporeidade surda,
ora expressando uma não conformidade com as atitudes segregacionistas que, ainda hoje, têm
lugar mesmo em espaços que comumente se declaram favoráveis à diversidade - como é o caso
do teatro -, com esse texto se busca fazer coro com os novos discursos que entendem a diferença
a partir de uma perspectiva afirmativa. Com a convicção de que o desenvolvimento de
potencialidades poéticas contribui para a ampliação de horizontes emancipatórios, este trabalho
encerra uma etapa de um projeto pessoal - e por isso acadêmico - de compreender o papel que
desempenham o teatro e a teatralidade no processo de desconstrução das barreiras criadas ao
longo de décadas de práticas ouvintistas no caminho de desenvolvimento do sujeito surdo.
Palavras-chave:
Surdo, cultura e poéticas surdas,
teatro, teatralidade e corporeidade, língua de sinais.
SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 1 2. PRESENÇAS DO SURDO NO TEATRO ............................................................................... 6
2.1 Presença do surdo como tema ............................................................................................... 7
2.2 Presença do surdo como artista-criador .............................................................................. 10
2.3 Presença do surdo como público ......................................................................................... 13 3. ASPECTOS DE TEATRALIDADE NA LÍNGUA DE SINAIS .............................................. 16 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................ 23 5. REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 25 6. ANEXOS .............................................................................................................................. 28
1
1. INTRODUÇÃO
um bom poema
leva anos
cinco jogando bola,
mais cinco estudando sânscrito,
seis carregando pedra,
nove namorando a vizinha,
sete levando porrada,
quatro andando sozinho,
três mudando de cidade,
dez trocando de assunto,
uma eternidade, eu e você,
caminhando junto
-‐ PAULO LEMINSKI, Toda poesia (2013)
Embora eu preferisse ter sido capaz de compor um bom poema sobre o assunto aqui
abordado, este trabalho apenas consegue ser uma síntese temporária das minhas reflexões acerca
do teatro e a teatralidade no contexto da surdez. Assentando-me na linha de pesquisa que se
dedica às Representações Sociais e Práticas Educativas, o tema será desenvolvido a partir de dois
eixos principais: presenças do surdo no teatro e aspectos de teatralidade na língua de sinais.
Considerando a atual centralidade que toma a cultura para se pensar a organização e a relação
entre os diversos grupos sociais, a discussão aqui apresentada tem o escopo de criar uma
oportunidade de reavaliar padrões dominantes de linguagem, pensamento e subjetividade.
O desejo de me debruçar sobre esse tema se originou em setembro de 2014, quando, a
convite da minha irmã Mariana - que, entre inúmeros outros atributos e identidades, é surda -
2
participei de uma oficina de teatro surdo oferecida pelo Grupo Teatral Moitará, no Rio de
Janeiro. Eu era uma das poucas ouvintes na ocasião e pela primeira vez, em vinte e sete anos,
Mariana e eu “trocamos de papéis”: ela tinha o domínio da língua oficial do evento e eu me
sentia surda. Evocando a formulação de Larrosa (2016, p. 10) quando descreve a experiência
como “algo que (nos) acontece e que às vezes treme, ou vibra, algo que nos faz pensar, algo que
nos faz sofrer ou gozar, algo que luta pela expressão, e que às vezes (...) se converte em canto”,
nesse dia houve um terremoto dentro de mim. Mas dois momentos foram especialmente
significativos. O primeiro aconteceu quando, depois dos exercícios práticos da oficina, abriu-se
espaço para perguntas e Mariana, que até então eu reconhecia como uma pessoa tímida e um
pouco alheia quando estava em grandes grupos, levantou-se imediatamente sendo a primeira a
perguntar. Além do impacto que sua prontidão e desenvoltura me causaram, a complexidade e a
sinceridade do seu questionamento me levaram a conhecer suas capacidades de percepção e
abstração como nunca tinha acontecido. Dei-me conta imediatamente de que, apesar do afeto da
nossa relação, a precariedade da minha proficiência em Libras tinha feito com que nossas
conversas fossem pouco além do limiar da superficialidade e que eu queria que aquilo mudasse.
O segundo momento se deu durante o espetáculo que encerrou o evento. Em seu solo, inspirado
no gênero stand-up comedy, o ator francês Anthony Guyon apresentou uma sequência de cenas
curtas e cômicas cujo tema central era sua relação com a própria surdez. Num determinado
momento, ele contou que, quando menino, usou seu corpo para descrever o nascimento de uma
flor a uma professora. Na sequência, passou a demonstrar como fez isso. Nos instantes que se
seguiram, todo seu corpo pareceu adquirir outra pulsação, tornando-se flor por inteiro. A
minuciosidade do seu movimento ao representar cada etapa da germinação deixou a respiração
da plateia em suspenso. Eu, particularmente, fiquei atordoada com a singularidade de sua
expressividade e voltei para São Paulo no dia seguinte cheia de questionamentos a respeito das
origens do gesto poético e do movimento do ator.
Como certas experiências atravessam o tempo e ressoam “em outras experiências e em
outros tremores e em outros cantos” (Ibid. p. 10), um ano depois, Mariana me convidou para
participar de outra oficina; desta vez, de criação de poemas em língua de sinais. Idealizada pelo
projeto Corposinalizante (ver Fotografia 11) em parceria com os artistas do Núcleo Bartolomeu
de Depoimentos, a oficina tinha o objetivo de estimular a criação e difusão da poesia em língua
de sinais e promover o Slam do Corpo - um sarau em que surdos e ouvintes são convidados a
3
compor e apresentar seus poemas, com tradução simultânea em Libras ou português, para que
depois o público escolha o mais virtuoso. Eu não suspeitava, porém, que participar dessa oficina
me levaria a testemunhar novamente um tipo de poética em que o corpo adquire aquela outra
pulsação observada na cena do ator francês no Rio de Janeiro. A diferença era que dessa vez eu
via isso acontecendo no corpo da minha irmã. Durante a oficina nós duas trabalhamos em dupla
e compusemos um poema com uma partitura corporal a partir da Libras (ver Fotografia 1) cuja
temática espelhava, em certa, o modo como os vínculos afetivos da nossa relação como irmãs
estavam se estreitando a partir da nossa reaproximação através da Arte:
Nascemos do mesmo ventre
O sangue que circula pelas minhas veias circula pelas suas veias
Somos opostos
Eu sou seu espelho
Você é meu espelho
Mas o espelho se racha
Ele se rompe em pedaços
E ao me procurar entre os destroços
Sangue
Eu sou seu sangue
Você é meu sangue
Entretanto, o texto em português não é o poema. Acredito, aliás, que o poema que nós
criamos acontece apenas na fugacidade dos instantes em que nossos gestos dão corpo à nossa
intenção poética. Mas o que quero salientar é que o texto em português não é suficiente para
alcançar a singularidade do gesto poético da minha irmã, porque, assim como o do ator francês,
ele nasce e se manifesta em um corpo que, ao longo da vida, experimenta a condição humana da
surdez; ou seja, um corpo que capta o que o mundo comunica principalmente através dos olhos,
4
um corpo profundamente sensível aos atributos táteis dos órgãos que alberga, um corpo que
sente outras pulsações e que, portanto, é suscetível a outros tremores.
Este trabalho, portanto, é minha tentativa de converter em “canto apaixonado” os
tremores que me atravessam ao entrar em contato com a poética teatral de surdos; mas também
de converter em “canto de protesto” os tremores que me angustiam quando testemunho as
barreiras que ainda impedem os surdos de ter acesso a bens culturais produzidos por não surdos.
A exposição estará organizada em duas partes. Na primeira, me dedico a refletir sobre as
presenças do surdo no teatro, subdividindo-as em três modalidades: o surdo como tema, o surdo
como artista-criador e o surdo como público. Na segunda, proponho um olhar sobre a língua de
sinais destacando seus aspectos de teatralidade. Meus referenciais teóricos de maior relevância
ao longo do processo de reflexão e escrita foram Oliver Sacks, que me introduziu à história da
surdez, da luta pela legitimação das línguas de sinais e da emancipação dos surdos em relação
aos ouvintes; Lidia Becker, que me ajudou a construir um imaginário mais consistente sobre a
visão patológica da surdez e das terapias oferecidas aos surdos com o intuito de incrementar seu
poder de mobilidade numa sociedade com padrões ouvintistas; Sílvia Andreis Witkoski, que, ao
aumentar o poder de propagação das vozes de outros dezessete surdos em seu estudo de pós-
doutorado, permitiu-me conhecer inúmeras narrativas de surdos sobre suas experiências como
alunos de escolas inseridas num sistema de inclusão educacional que não atende a suas
necessidades; e Karin Strobel, que me ajudou a compreender melhor os artefatos culturais do
povo surdo a partir de uma perspectiva surda.
Além da pesquisa bibliográfica, meu percurso investigativo contemplou uma pesquisa de
campo - empírica qualitativa - realizada especificamente no decorrer do segundo semestre de
2016. Durante esse período participei do Grupo de Estudos do Surdo no Teatro - Projeto
GESTOS, com reuniões semanais de três horas orientadas pelo professor Carlos Eduardo
Carneiro (Cadu) na Unidade de Pinheiros da Escola Recriarte; assisti diversos espetáculos
teatrais com e sem intérprete de Libras na companhia de colegas surdos; fui ao Festival de
Folclore Surdo, realizado em Florianópolis no mês de dezembro; e frequentei festas e eventos
organizados pela comunidade surda.
Mesmo aceitando que a imprevisibilidade de seu poder de alcance é inerente ao canto,
espero que os tremores aqui registrados da minha experiência em contato com a alteridade que a
5
condição humana da surdez representa para mim encontrem ressonância em outras experiências,
em outros tremores e em outros cantos.
6
2. PRESENÇAS DO SURDO NO TEATRO
Teatro é por essência presença e potência de visão
-‐ espetáculo -‐, e enquanto público, somos antes de
tudo espectadores, e a palavra grega θέατρον,
teatro, não significa senão isso: miradouro,
mirador.
-‐ ORTEGA Y GASSET, A ideia do teatro (2014)
Dentro do heterogêneo panorama que caracteriza o Teatro, Ortega y Gasset (2014, p. 33)
nos ajuda a compreender que esse fenômeno, enquanto ato concreto no espaço cênico, é
composto por algumas dualidades. Concebido pelo pensador espanhol como um edifício com
uma finalidade, ele é, primeiramente, um espaço demarcado, ou seja, um “dentro” que se
contrapõe a um “fora”. No espaço interno, onde efetivamente acontece a representação teatral, as
dualidades, nas dimensões espacial, humana e funcional, organizam-se da seguinte forma: de um
lado, o cenário, onde estão os atores que, ativamente, pretendem fazer ver algo; do outro, a
sala, onde está o público que, numa atitude passiva, espera ver algo. Ainda que na prática
contemporânea a delimitação espacial entre cenário e sala pareça mais suscetível à
permeabilidade, essa organização nos serve de base para refletir sobre o papel desempenhado
pelos atores - que, neste trabalho, estendemos a todos os membros de uma equipe com função de
criação, como diretores, cenógrafos e produtores2 -, enquanto propositores do que deve ser visto,
e o papel desempenhado pelo público, que está ali para testemunhar o que é proposto e,
eventualmente, ter uma experiência. Partindo da dualidade humana proposta por Ortega y
Gasset, enxergamos um sistema triangular composto por artistas-criadores que determinam um
tema - e o tratamento que este receberá - para ser exposto ao público.
O que pretendo neste capítulo é compartilhar reflexões sobre a presença do surdo em
cada um dos vértices desse triângulo: como tema, enfocando as produções de tradição teatral
ouvinte em que aparecem marcadores da cultura surda ou personagens surdos; como artista- 2 Compreendo os produtores como membros da equipe de criação à medida que eles criam condições para viabilizar a realização de uma obra.
7
criador, apresentando uma síntese do que já encontrei registrado sobre o trabalho de artistas
surdos no âmbito teatral e relatando minha experiência ao participar do Projeto GESTOS e do
Festival de Folclore Surdo celebrado em 2016; e como público, expondo algumas observações
sobre o modelo de acessibilidade oferecido aos surdos quando estes desejam ir ao teatro para
assistir um espetáculo.
2.1 Presença do surdo como tema
No vasto campo das Artes da Presença3, já foram produzidos diversos espetáculos que
chamam a atenção por utilizarem as línguas de sinais como recurso para a criação de uma
linguagem cênica. A exemplo disso, na cidade de São Paulo, há alguns anos a Cia Mariana
Muniz de Teatro e Dança realiza um intenso trabalho de pesquisa explorando os sentidos
simbólicos da dança e do teatro em diálogo com a Libras, investigação que resultou em
espetáculos como 2 Mundos e Gestos. Mas já na década de 70, no espetáculo Nelken da
companhia alemã Tanztheater Wuppertal, dirigida por Pina Bausch, o bailarino Lutz Förster faz
uma memorável performance4 em que interpreta a canção The man I love em língua de sinais
acompanhado pela versão sonora de 1928, por sua vez interpretada vocalmente por Sophie
Tucker. A afortunada possibilidade que temos atualmente de difundir esse tipo de registro
através de DVD’s ou da internet nos permite, além de desfrutar de obras que surpreendem pela
simplicidade, confirmar que há décadas a língua de sinais, elemento de importância substancial
na formação identitária dos surdos, tem despertado o interesse de muitos artistas ouvintes, que
identificaram nela um meio de subverter a linguagem do teatro e da dança tradicional criando,
assim, novas poéticas. Sem ignorar o fato de que os espetáculos citados foram produzidos com
motivações e objetivos estéticos determinados por uma tradição de teatro e de dança
desenvolvida majoritariamente por e para ouvintes, são desempenhados no palco por artistas
ouvintes e talvez não despertem no público surdo o prazer estético - decorrente da
simultaneidade de estímulos sonoros e visuais - que despertam nos ouvintes, é possível 3 Dança, Teatro, Performance e outras criações que se originam nos espaços de fronteira entre as diferentes modalidades. 4 O vídeo da coreografia está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Z8wnBSclJjg (Acesso em 25 de janeiro de 2017)
8
considerar que a utilização desse marcador da cultura surda, a língua de sinais, representa uma
presença - ainda que simbólica - do surdo como tema, visto que nessas produções é explorada a
potencialidade poética da forma surda de comunicação e expressão.
Em obras de teatro em que há a presença de um personagem surdo, no entanto, nota-se
uma preocupação maior em abordar a questão da surdez e suas implicações nas relações
interpessoais que esse personagem estabelece com os demais. Isso pode ser verificado em duas
produções teatrais recentemente em cartaz na cidade de São Paulo: Tribos e Coração de herói. A
primeira, dirigida para o público adulto, é uma montagem do texto originalmente em inglês da
britânica Nina Raine. O texto aborda o contexto de uma família disfuncional judia na qual o mais
novo dos três filhos, Billy, é surdo e oralizado. Tendo sua diferença negada e se adequando
desde sempre à forma de comunicação e expressão dos demais familiares, o jovem somente
passa a construir um sentido de pertencimento a partir do momento que começa a interagir com a
comunidade surda e aprender a língua de sinais, o que acaba provocando diversas tensões em seu
núcleo familiar. Por outro lado, Coração de herói, com dramaturgia e direção de Liliane
Zimermann, é um espetáculo musical direcionado a crianças e adultos que enfoca a relação de
dois irmãos pequenos e as histórias bíblicas recriadas por eles à noite em seu quarto utilizando
seus brinquedos e sua imaginação.
Pensando na fruição do público surdo, o primeiro espetáculo contava com um intérprete
em Libras no último sábado do mês durante a temporada no teatro Tuca; já no segundo, optou-se
por criar dois personagens que representavam uma espécie de alter ego de cada irmão,
encarregados de acompanhar os protagonistas pelo palco e interpretar em Libras o que era dito e
cantado oralmente. A quinta personagem, uma boneca, utilizava a comunicação bimodal, ou seja,
falando em português e sinalizando em Libras ao mesmo tempo. A peça corria quase toda dessa
maneira. Porém, nos momentos finais, acrescentava-se o dado de que o menino mais novo era
surdo para justificar os conflitos gerados pelas diferenças entre os irmãos. Ainda que isso gerasse
um problema de continuidade na dramaturgia que confundia um pouco o público, a partir desse
momento, o ator que interpretava o caçula passava a se comunicar em Libras. Ao término de
ambos os espetáculos, previa-se alguns minutos para o público interagir com os artistas. No
primeiro, propunha-se um bate-papo em que o público fazia comentários e perguntas aos atores;
no segundo, o elenco, ainda caracterizado, se dirigia ao hall do teatro para conversar e tirar fotos
(ver Fotografia 2).
9
Somado a isso, é necessário comentar a representação dos personagens surdos criada nos
espetáculos em questão. Nos dois, nota-se que foi realizado um profundo trabalho de pesquisa
sobre a comunidade surda e a língua de sinais. Em ambos chama a atenção também o esforço
para que a maneira de falar dos personagens surdos tivesse as qualidades sonoras das
vocalizações eventualmente produzidas por pessoas surdas. Essa fidelidade ao representar o
modo de vocalizar dos surdos, aliás, foi elogiada por diversas pessoas do público - dentre as
quais havia uma que se apresentou como fonoaudióloga - no bate-papo do dia em que assisti
Tribos. No entanto, isso nos leva a questionar sobre o lugar a partir do qual está perspectivada a
surdez representada nos dois espetáculos. Lembrando que os atores que representam os
personagens surdos nas duas peças são ouvintes, o que se vê no palco é sua habilidade para
corresponder a uma imagem que o público ouvinte tem de como um surdo se comporta
oralmente, construindo para isso o aspecto externo que a surdez tem para o ouvinte. É evidente
que o trabalho do ator consiste na construção dessa máscara que ele compõe a partir de seu
repertório e sua imaginação, que o ajudam a projetar uma realidade ficcional que difere da sua
realidade pessoal. O que aqui se questiona, entretanto, é até que ponto a representação que tem
lugar no palco considera a experiência do surdo e não é condicionada apenas pela perspectiva
que os ouvintes têm da surdez e do modo como eles a ouvem manifestar-se no corpo do surdo.
Por se tratarem de informações acústicas, por exemplo, a qualidade dessas verbalizações orais,
tidas em tão alta conta pelos ouvintes, podem ter pouca ou nenhuma relevância para experiência
estética do surdo.
Por último, há uma distinção bastante significativa entre a representação do surdo de cada
espetáculo. No primeiro, o público acompanha uma história de ruptura de paradigmas e de
emancipação de um surdo a partir do momento que ele encontra outros iguais em sua diferença;
no segundo, embora o recurso utilizado para incluir o intérprete na peça contribua para a fruição
do público surdo, persiste o discurso paternalista de que é preciso aceitar o outro - no caso o
surdo - pois diante dos olhos do Criador somos todos iguais. Particularmente, defendo que “os
indivíduos e os grupos sociais têm direito a serem iguais quando a diferença os inferioriza e o
direito a serem diferentes quando a igualdade os descaracteriza” (Santos, 1997, p. 30). Conforme
formulado por Todorov (2009, p. 55) ao discorrer acerca da experiência da alteridade, pensar no
outro apenas como um igual muitas vezes significa enxergá-lo como um idêntico, conduta que
desemboca no assimilacionismo, ou seja, na tendência de projetar no outro os próprios valores.
10
O salto paradigmático acontece quando se é capaz de reconhecer a diferença sem concebê-la
imediatamente em termos de superioridade e inferioridade, de modo que a existência humana do
outro não represente um estado imperfeito de um eu que se enxerga como norma.
2.2 Presença do surdo como artista-criador
Pensar na presença do surdo como artista-criador nas artes cênicas nos leva
necessariamente a refletir sobre o lugar do corpo no teatro. Segundo Lehmann (2007, p. 331),
“em nenhuma outra forma de arte o corpo humano ocupa uma posição tão central quanto no
teatro, com sua realidade vulnerável, brutal, erótica ou ‘sagrada’”. Ainda assim, “antes da
modernidade a realidade física do corpo permaneceu incidental no teatro (...), uma espécie de
‘subentendido’” (Ibid. p. 332). Pois bem, embora a atração que emana de atores, bailarinos e
cantores tenha sido um elixir da vida das representações, é a partir das vanguardas históricas que
aparecem novas concepções culturais sobre o corpo e, com isso, desenvolve-se no teatro o que
Lehmann nomeia como período pós-dramático, que vai dos anos 1970 aos 90. Aproximadamente
nessa mesma época - que coincide também com a retomada dos estudos sobre a língua de sinais
no campo da Linguística - o teatro de surdos começa a florescer nos mais diversos países criando
linguagens cênicas que exploram a língua de sinais, a visualidade, a expressividade imagética
das tramas, o corpo do ator, o ritmo dos gestos, as diferentes qualidades dos movimentos e o jogo
de luzes. A partir desse momento, conforme levantamento realizado por Hugo E. I. Nakagawa
(2012, p. 78) em sua dissertação de mestrado, desde grupos amadores coordenados por pequenas
associações até companhias mais estruturadas criam pelo mundo todo teatros com diferentes
formatos: só em língua de sinais, bilíngues, sem texto, visuais, físicos, com mímica ou com
pantomima. São teatros idealizados a partir de experiências e concepções surdas, diferentes dos
concebidos pelo mainstream ouvinte. Além disso, os espaços onde se desenvolvem esses
projetos promovem cursos, residências artísticas, entretenimento e formação artística no campo
das artes cênicas, assim como encontros em que surdos e ouvintes partilham experimentações e
reflexões sobre a língua, as artes, os textos dramáticos, os recursos cênicos, a história do teatro, a
cultura, a política e as identidades surdas. Como enfatiza Nakagawa (2012. p. 80), neste
contexto, “o ser Surdo é visto não como um impeditivo mas como uma mais valia”.
11
No Brasil, os grupos de maior repercussão são Signatores, Cia Arte e Silêncio, Cia
Teatral Mãos EmCena, Teatro Brasileiro de Surdos e o Projeto Palavras Visíveis. Contribuindo
para a expansão do modo surdo de fazer teatro, no segundo semestre de 2016, por iniciativa de
Alexandre Ohkawa (ver Fotografia 3) em parceria com a Escola Recriarte, foi criado em São
Paulo o Projeto GESTOS (ver Fotografia 4) com o objetivo de oferecer uma formação básica de
dois anos para atores amadores e criar um núcleo teatral formado por surdos e ouvintes.
Formaram-se três turmas e os encontros são semanais. O grupo em que participo é formado por
17 alunos, dos quais 14 são surdos e 3 ouvintes, além do professor e o intérprete. A intenção
primeira dos participantes não é necessariamente se profissionalizar nessa área, conforme pode
ser verificado nos depoimentos de três dos surdos ao serem questionados, no primeiro encontro,
sobre as motivações pessoais que os levavam a estar ali: “Eu quero desenvolver uma percepção
para o que antes eu era cego”, declara Valdeilton; “Eu preciso treinar para me libertar desse
quadrado”, afirma Paloma; e “Eu quero gritar mais”, sintetiza Alicy. Cada um à sua maneira,
revela o desejo de se transformar e desobstruir canais sensoriais, espaciais e físicos de
comunicação e expressão.
A metodologia utilizada pelo professor Carlos Eduardo Carneiro (Cadu) no primeiro
semestre tinha como objetivo trabalhar a partir da fisicalidade, para o que se buscou inspiração
nas pesquisas de encenadores pedagogos como Meyerhold, Grotowski e Eugenio Barba.
Especialmente a partir de jogos teatrais e improvisações, além da conquista de um sentido de
coletividade, entre os membros do grupo se estabeleceu uma aproximação física - que ninguém
poderia descrever de modo mais poético do que o colega Valdeilton ao sinalizar: “com um
abraço, uma moça dissolveu meu coração” - e se desenvolveu um aprofundamento na percepção
de si mesmo e do outro - notável no relato de Leonardo sobre sua experiência com surdocegos e
autistas e na sua posterior reflexão a respeito das sutilezas que podem estar contidas em um
toque segundo a percepção e a condição corporal do indivíduo que o recebe.
Além das práticas corporais, nossos encontros são sempre cheios de enriquecedoras
discussões sobre técnicas de atuação, história do teatro, uso ou não da Libras ou do português nas
cenas e condições de acessibilidade para surdos em espetáculos teatrais. Ainda parece necessário,
porém, ficar mais claro para o grupo se a postura que cada um deve assumir é de aluno/cliente,
que espera que o professor proponha tudo para que ocorra um aprendizado, ou de
investigadores/propositores, implicados num projeto de pesquisa e responsáveis pelo processo de
12
descobertas e de criação de uma poética teatral. Além disso, para possibilitar uma relação direta
entre os sujeitos e potencializar os processos de criação, seria importante a superação da
triangulação na comunicação: Surdos - Intérprete de Libras - Professor/Propositor;
Professor/Propositor - Intérprete de Libras - Surdos. Vale a pena mencionar que essa não parece
ser uma problematização pontual, pois a mesma necessidade é apontada pelo diretor português
João Pedro Correia (2015, p. 472) ao descrever o resultado do primeiro trabalho realizado com o
Grupo de Teatro de Surdos do Porto: “Faltava-nos o foco do olhar dos participantes surdos, pois
o foco da atenção estava na tradução, nas mãos que faziam a ponte linguística, em busca da
compreensão dos conteúdos, como é compreensível. Mas muito se perdia na tradução das duas
Línguas”. No trabalho seguinte, Correia e sua equipe decidem dispensar a mediação do intérprete
de maneira que todos passam a ser responsáveis pela comunicação, pois o que unia a surdos e
ouvintes naquele contexto era o desejo de fazerem teatro juntos.
Para finalizar, o Festival de Folclore Surdo (ver Fotografias 5, 6, 7, 8, 9 e 10), realizado a
cada dois anos na Universidade Federal de Santa Catarina, consiste num encontro internacional
para promover artefatos da cultura surda. Com participação massiva de surdos de vários países, o
evento também é aberto a ouvintes interessados e que sejam proficientes em língua de sinais. O
foco principal é dado à poesia, à contação de histórias e às piadas, lembrando que na produção
surda essas três modalidades guardam uma relação muito íntima com as artes cênicas.
Enfatizando que no Teatro prevalece a ação de ver, Ortega y Gasset (2014, p. 36) já havia
concebido que nesse gênero há uma predominância do visionário e espetacular sobre o literário,
pois, não se trata de uma experiência que acontece de forma solitária, como pode ser a da leitura;
para vivenciá-la temos que sair de nós. De modo similar, nas modalidades apresentadas no
Festival é inerente a performance visuo-espacial. Além disso, assim como no teatro, no corpo de
quem sinaliza uma poesia, uma história ou uma piada se alojam temporariamente personagens,
cenários e paisagens, fazendo desaparecer o que é real para deixar aparecer, através de sua
corporeidade, seus gestos e movimentos, o irreal. Os poetas, os contadores de histórias e os
humoristas surdos têm o dom da transparência - semelhante aos atores - e através deles aparecem
outras coisas, mostrando-nos que no espaço limitado de cada corpo cabe o infinito5.
5 Embora não seja possível aprofundar a seguinte reflexão neste trabalho, pois para isso seria necessário amparo teórico em outros autores e pesquisas, parece-me relevante comentar que a teatralidade observada nas cenas e performances apresentadas no Festival de Folclore Surdo não está condicionada à música, ainda que se possa
13
2.3 Presença do surdo como público
Sempre que eu entrava em cartaz com algum espetáculo teatral, Mariana me dizia que
não iria assistir pois nunca entendia a história. Então, em julho de 2013, para minha peça de
formatura, pedi à intérprete que a havia acompanhado durante sua graduação em Pedagogia na
PUC que participasse em uma das apresentações para garantir a acessibilidade a ela e a um
pequeno grupo de amigos seus que foram assistir. Assim tiveram início minhas primeiras
reflexões sobre acessibilidade para surdos no teatro.
Na última década houve um aumento significativo na presença do intérprete em língua de
sinais em espetáculos de teatro. Essa mudança - certamente vinculada à oficialização da Língua
Brasileira de Sinais (Libras) através da Lei 10.436, de 24/04/2002 e do Decreto 5.626, de
22/12/2005, à regulamentação da profissão de Tradutor e Intérprete da Língua Brasileira de
Sinais (Libras) através da Lei 12.319, de 01/09/2010, e a outras políticas afirmativas já
implementadas - foi muito importante para a formação de um novo público, que antes se via
alijado dessas vivências culturais.
Contudo, ainda não é possível afirmar que o teatro é um ambiente cultural por onde o
surdo circule sem entraves. Enquanto as leis supracitadas comprometem o poder público em
geral e as empresas concessionárias de serviços públicos com o projeto de incentivar a difusão da
Libras e assegurar ao surdo o acesso à comunicação, à informação, à saúde e à educação, não
contêm especificações quanto à garantia de acesso aos conteúdos dos bens culturais e artísticos,
de modo que a criação de programas de acessibilidade nessa área historicamente tem ficado mais
a cargo das Secretarias estaduais e municipais, da agenda política de cada gestão e da boa
vontade de indivíduos interessados em eliminar as barreiras para a fruição do público surdo que
se interessa por arte. A Lei 13.146, conhecida como Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com
Deficiência, com a qual se decretou, entre outros, o direito da pessoa com deficiência à cultura e
ao acesso a bens culturais, a programas de televisão, cinema e teatro em formato acessível,
identificar nela traços de musicalidade. Isso pode parecer uma obviedade, mas esse traço distintivo nos levou ao questionamento a respeito do atual uso que se faz da música no teatro de tradição ouvinte, tendo em vista sua forte presença tanto para criar atmosferas, estados e tensões no espetáculo em si quanto como um estímulo durante o processo de criação dos atores.
14
somente foi sancionada em 6 de julho de 2015. De maneira que seu impacto na sociedade ainda é
pouco perceptível6.
No meio teatral, especificamente, é notável a carência de uma reflexão mais profunda
sobre a questão da acessibilidade para o espectador surdo. Conforme aponta o ator e teatrólogo
surdo Lucas Sacramento em entrevista realizada para este trabalho, a perspectiva dos surdos
raramente é considerada pelos produtores de espetáculos teatrais ao elaborarem um projeto de
acessibilidade:
A: Qual é sua visão sobre as políticas para garantir acessibilidade ao
público surdo que quer assistir produções teatrais no Brasil?
L.S.: Atualmente melhorando a acessibilidade a politica compreender nossos
Leis, LBI. Os produções teatrais não têm os grandes conhecimentos de
acessibilidade ao público surdo, pois as produções convidam os interpretes,
poucas experiências dos trabalhos, outro não tem os conhecimentos dos
trabalhos teatrais, também as produções dificilmente convidar os atores surdos
incluso e debate dos trabalhos! Os atores surdos são bons informantes pra ajudar
os produções teatrais tomam conhecimentos, corrigir mais uma melhoria da
acessibilidade. (ver Entrevista completa no Anexo)
Com isso, no melhor dos cenários - embora ainda não represente o ideal, uma vez que para que o
surdo tenha a oportunidade de fruição a tradução simultânea pode não ser suficiente -, a
acessibilidade proporcionada consiste em disponibilizar um intérprete em algumas datas que a
produção do espetáculo considera convenientes durante a temporada.
Todavia, a ação mais celebrada por produtores de obras teatrais, ao serem questionados
sobre seu compromisso com projetos de acessibilidade, é a de promover sessões exclusivas para
pessoas com deficiência auditiva e visual, sem se darem conta do quão segregacionista é essa 6 Na edição de 2017 da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MiTsp), por exemplo, somente dois dos dez espetáculos contaram com intérpretes de Libras; os apresentados no Itaú Cultural e no Auditório do Ibirapuera: Black off e A missão em Fragmentos: 12 cenas de descolonização em legítima defesa. É importante lembrar que os intérpretes foram chamados não pelos organizadores do evento, mas sim por iniciativa do Itaú Cultural - instituição que também administra o Auditório do Ibirapuera e de longa data possui uma política de acessibilidade. Ainda assim, os intérpretes foram comunicados com pouca antecedência e a divulgação para o público surdo aconteceu apenas dois dias antes da data de apresentação dos espetáculos.
15
conduta. Em minhas idas ao teatro na companhia de colegas surdos pude comprovar que esse
discurso não é uma exceção, chegando a ouvir de uma produtora que não era possível ter
intérprete em todas as apresentações porque ele atrapalha os atores.
A frequência com que nos deparamos com visões como essa nos leva a concluir que,
apesar de muitas vezes a questão da acessibilidade aparecer em projetos para editais como uma
contrapartida social, ela ainda é compreendida como um inconveniente, como algo com o que o
produtor tem que lidar tentando não comprometer a experiência dos artistas e do público padrão
que se espera receber no teatro. Finalmente, promover apresentações exclusivas para pessoas
com deficiência como medida de acessibilidade é um paradigma que tem que ser superado se
verdadeiramente se enxerga de forma afirmativa a diversidade de perspectivas e condições
humanas.
16
3. ASPECTOS DE TEATRALIDADE NA LÍNGUA DE SINAIS
Nada é mais prodigioso, ou mais digno de
celebração, do que algo que liberta as capacidades
de uma pessoa e lhe permite crescer e pensar.
-‐ OLIVER SACKS, Vendo vozes (2010)
Entre os ouvintes, é muito comum sentir-se impulsionado a acompanhar uma conversa
em idioma estrangeiro ouvida fortuitamente. Ainda que isto possa se dar apenas no nível do
inconsciente, ao detectar uma fala com estrutura prosódica, rítmica e entonacional e sistema
fonológico diferentes dos que se está habituado, tem-se a impressão de ser tomado por uma
necessidade imperiosa de decifrar as pistas que levariam a descobrir de que língua se trata e,
evidentemente, do que se fala. Eventualmente, essa curiosidade inicial evolui transformando-se
em interesse por esse outro e pelo que ele tem para contar, mesmo que as perguntas que
acompanham a vontade de conhecer o que não se sabe fiquem resguardadas no universo íntimo
de cada um, servindo apenas para alimentar fantasias.
No entanto, a história nos mostra que a condição de prestígio ou de depreciação de um
idioma no imaginário social é determinada não apenas pelo uso e valoração que dele fazem seus
usuários, como também pelo que essa língua pode representar dentro do espectro mais amplo das
relações de poder instituídas por um Estado e por seus representantes. Estendida para o debate
corrente sobre a condição das línguas de sinais a nível nacional e mundial, tal discussão ganha
novos matizes.
Atualmente a língua de sinais parece despertar certo fascínio entre ouvintes em geral.
Não raro atribuem a ela uma expressividade não observada nas línguas orais, como se ela viesse
a preencher uma espécie de lacuna deixada por um modelo de educação regulador do corpo,
limitador do movimento e empenhado em determinar - ou mesmo impor - os parâmetros da
gestualidade desejável para que o indivíduo atue adequadamente no meio social. No contexto
escolar brasileiro, por exemplo, a Educação Física, “herdeira de uma tradição científica e política
que privilegia a ordem e a hierarquia desde sua denominação inicial de Ginástica” (Soares, 2006,
17
p. 113), se consolidou como matéria destinada a fornecer o modelo de educação corporal. Cabe
acrescentar que a Ginástica, “afirmada ao longo de todo o século XIX no Ocidente europeu como
parte integrante dos novos códigos de civilidade” (Ibid. p. 113), compreende o corpo como:
[...] objeto de intervenção da ciência, como máquina a ser manipulada. Em seus
tratados, o que se menciona abundantemente são funções e mecanismos
corporais e o que ocupa maior espaço é a Anatomia, a Mecânica e, mais tarde, a
Fisiologia. Este conjunto de saberes elaborado no interior da Medicina
especialmente a partir do século XVII vai influenciar fortemente o modo de
conceber os exercícios físicos e, mais amplamente, o conjunto das práticas
corporais” (Ibid. p. 114).
No mesmo artigo, a autora faz referência ainda a um outro conjunto de saberes que
também foi incorporado pela Ginástica no século XIX e ressignificado sob a ótica da utilidade,
da economia de energia, da moral e da higiene, mas cuja origem foi apagada de seus registros
para atender às imposições da nova ordem social capitalista: as práticas populares tradicionais de
artistas de rua, acrobatas e funâmbulos, artistas nômades que apresentavam o corpo como
espetáculo, mas que passaram a ser tomados naquele momento como um antiexemplo a ser
combatido por seus excessos e por possuírem um modo de vida entendido como uma ameaça à
ordem.
Se a ideologia higienista - com tendências eugenistas - do século XIX determinou o modo
de ver o corpo do homem ocidental em geral, não surpreende o fato de que seu impacto foi ainda
mais acentuado para as populações vistas como “imperfeitas”, “anormais” ou “deficientes”. Em
linhas muito gerais, as práticas predominantes na relação com esses grupos no mesmo período
foram discriminatórias e segregacionistas (Fernandes, 2012, p. 20). Quanto aos surdos,
especificamente, as resoluções tomadas no Congresso de Milão, realizado em 1880, tiveram
implicações sentidas por essa população até a atualidade. Nesse evento, por um lado se
determinou a exigência de que todos os governos criassem medidas para que todos os surdos
recebessem educação (Becker, 2015, p. 87); por outro se votou pelo predomínio absoluto do
oralismo no processo educativo de pessoas surdas. É importante ressaltar que os professores
18
surdos foram excluídos da votação que resultou em tal deliberação e que esta significou a
redução da educação dos surdos ao aprendizado da língua oral, provocando um retrocesso
incalculável tanto no processo de legitimação da língua de sinais quanto no de emancipação
do surdo em relação ao ouvinte. Segundo Oliver Sacks (2010, p. 35), em 1850 nos Estados
Unidos, aproximadamente 50% dos professores de surdos eram surdos, caindo para 25%
em 1900 e para 12% em 1960. Além disso, a exclusão da língua de sinais no sistema de
ensino oferecido aos surdos afetou profundamente a imagem que estes passaram a ter de si
mesmos e de toda a comunidade e cultura surdas. Portanto, ainda que desconhecido pela
imensa maioria dos ouvintes, o Congresso de Milão teve consequências profundamente negativas
e prejudiciais nas condições de educação e comunicação dos surdos, uma vez que a imposição do
oralismo acarretou uma deterioração do aproveitamento educacional e uma disseminação do
sentimento de menos-valia entre os próprios surdos, que apenas começam a ter espaço para
buscar alternativas compatíveis com suas necessidades a partir da década de 70 do século XX.
Retomando a questão do aparente deslumbramento que a língua de sinais provoca nos
ouvintes na atualidade, não é mero detalhe o fato de que esse fenômeno começa a acontecer
paralelamente ao de reelaboração discursiva a respeito do corpo. Isso não significa que a ideia de
um ideal de corpo a ser alcançado foi eliminada. Pelo contrário: de acordo com o discurso
hegemônico, o corpo é concebido como “santuário do músculo, como emblema da cultura da
aparência regulada por um ciclo de absorção e de eliminação” (Soares, 2006, p. 119). Além de
ser educado para estar em forma a partir de uma norma que delimita o que é a boa forma, o
corpo, nessa etapa que se estende desde a década de 70 até os dias atuais, passa a ser sexualizado
e sensualizado, adquirindo uma visibilidade nunca antes vista que atende a um amplo projeto
estético da aparência (Ibid. p. 119). Entretanto, os mais diversos campos do saber propõem
outras concepções interessadas na construção de “novos mapas do corpo” (Albuquerque, 2003,
p. 31), reivindicando espaço para “novas corporeidades que retrucam às gestões civilizadoras do
corpo e procuram resgatar a espontaneidade natural perdida com o projeto tecnocientífico” (Ibid.
p. 31).
Alguns dos desdobramentos promovidos a partir das décadas de 60 e 70 no interior de
três áreas do pensamento são de especial interesse neste trabalho. Na área da Educação, assiste-
se ao surgimento de correntes pedagógicas que questionam os constrangimentos impostos aos
19
corpos dos aprendizes. Além disso, nos Estados Unidos, como consequência dos movimentos
organizados nas décadas de 50 e 60 por pais de crianças com deficiência que exigiam o direito de
seus filhos estudarem de forma menos segregadora, tem início a criação de leis que determinam
o acesso à educação regular a todas as crianças com deficiência (Fernandes, 2012, p. 21). No
terreno do Teatro, as experimentações que caracterizam o Teatro Físico que começa a ser
desenvolvido no Reino Unido, por exemplo, se contrapõem aos padrões estabelecidos na arte
teatral buscando restabelecer a importância do corpo humano enquanto instrumento expressivo
(Romano, 2013, p. 34). No campo da Linguística, oitenta anos depois do evento que relegou a
língua e a cultura surdas a um lugar inferior e aniquilou os esforços dos interessados em
identificar a gramática da língua de sinais, ressurgem pesquisas que conduzirão ao
reconhecimento do sistema de comunicação utilizado pelos surdos como língua (Becker, 2015, p.
90).
Nota-se, portanto, que a legitimação da língua de sinais está intimamente ligada à
visibilidade que o corpo adquire e à pluralidade de discursos produzidos em torno dele
especialmente a partir da segunda metade do século XX. Com um olhar mais atento à
corporeidade7 já não se podia ignorar as potencialidades comunicativas e expressivas de uma
língua que se materializa no corpo e no espaço. Contudo, não se deve passar por alto três coisas:
em primeiro lugar, que o status de língua só foi atribuído ao sistema utilizado pelos surdos
devido ao esforço hercúleo investido por pesquisadores8, surdos e ouvintes, nas áreas da
Linguística e da Neurociência e às contribuições de educadores e artistas, também surdos e
ouvintes; em seguida, que primeiro foi necessário esse reconhecimento no âmbito científico para
que, só então, a condição humana de seus usuários primordiais - os surdos - passasse a ser
reconhecida como diversidade por meio de políticas afirmativas; e finalmente, que tanto a
legitimação da língua de sinais quanto as políticas públicas já criadas ainda não garantem a
acessibilidade e a equidade de direitos dos surdos em relação aos ouvintes.
7 A corporeidade é a manifestação cotidiana que se nos apresenta nos movimentos naturais e mais simples, naqueles primeiros modos de se estar no mundo que integram o sentir, pensar e agir. (Azevedo, 2015, p. 35) 8 Em uma breve passagem de Vendo vozes, Sacks menciona que, apesar da publicação em 1960 de um importante estudo sobre a estrutura das línguas de sinais realizado por William Stokoe, precursor em pesquisas nessa área, nem mesmo Noam Chomsky, “o mais revolucionário linguista de nossa época” (p. 120), reconhecia a língua de sinais como língua verdadeira no prefácio de sua obra de 1966 Cartesian linguistics.
20
Diante desse breve histórico, a admiração atual dos ouvintes não familiarizados com a
língua de sinais em relação à expressividade que atribuem ao corpo que sinaliza pode ser
comparada, guardadas as devidas proporções, à surpresa despertada no público pelos artistas de
rua - que tinham o corpo como espetáculo - antes de serem amaldiçoados em defesa da ordem no
século XIX. Hoje, de fato não é raro sair de uma sala de teatro ao término de um espetáculo com
tradução simultânea em Libras e testemunhar entre os espectadores ouvintes comentários
exaltando a desenvoltura e o vigor do intérprete na realização de seu trabalho. Eventualmente,
inclusive, afirmam terem prestado mais atenção no intérprete do que nos atores. Ainda assim,
não é possível afirmar que esse encantamento inicial é suficiente para superar a tendência de
projetar no outro, e na sua língua, os próprios valores, faltas e desejos. Ora, se na
contemporaneidade a visibilidade vale ouro e é a nova meta rumo à qual o indivíduo rema
incansavelmente, a expressividade, a vivacidade e a presença - faculdades tão importantes para
um ator quanto para um intérprete devido à natureza de seu trabalho - adquirem socialmente o
status de recurso útil para conquistá-la. Desse modo, a exaltação da língua pelo ouvinte no
contexto da interpretação de um espetáculo teatral em Libras se (con)funde com sua admiração
em relação à expressividade do indivíduo que encarna os atributos performáticos dessa língua.
Entretanto, pelo surdo que utiliza e depende da Libras para se comunicar, a língua é
experimentada de modo profundamente diferente. Primeiramente porque ela é um elemento
imprescindível para possibilitar minimamente sua compreensão e, eventualmente, sua fruição.
Além disso, considerando que a língua de sinais não se limita a um léxico ou um código, sendo
uma língua que se desenvolve seguindo os mesmo princípios da “gramática profunda” (Chomsky
cit. por Sacks, 2010, p. 72) das línguas orais, mas com a peculiaridade de refletir padrões visuais
de pensamento, o que um ouvinte identificaria, por exemplo, como expressão facial, pode
consistir em um “comportamento” facial específico que serve para indicar construções sintáticas
como tópicos, orações relativas e perguntas, funcionar como advérbios ou ainda quantificar. O
mesmo ocorre com outras partes do corpo; são recursos - inflexões reais ou potenciais, espaciais
ou cinéticos - que podem convergir sobre os sinais radicais, fundir-se com eles e modificá-los,
compactando uma quantidade enorme de informações nos sinais resultantes. De maneira que a
língua, que deleita os olhos dos ouvintes, consiste num sistema complexo de comunicação e
expressão muito difícil de ser decodificado por alguém que não o domina. Aliás, foi o fato de
todas essas informações linguísticas serem espaciais - e isso ser totalmente diferente de qualquer
21
língua falada - que impediu que ela fosse considerada uma língua e, consequentemente, manteve
por décadas o surdo sujeito às condições de inserção na sociedade impostas pela percepção de
realidade dos ouvintes. Ainda assim, as comunidades surdas, muitas vezes marginalizadas, foram
capazes não só de preservar, transmitir e enriquecer sua língua, como de se expressar
poeticamente através dela.
Uma dessas formas de expressão é a teatralidade. Partindo da premissa formulada no
início do século XX por Nikolai Evrêinov de que “a teatralidade seria um instinto natural do ser
humano, (...) portanto é anterior ao desenvolvimento de um projeto artístico” (Concílio, 2015, p.
165) e aceitando que “a manifestação do instinto de teatralidade estaria comprovada no desejo de
mudança constante pelo homem” (Ibid. p. 165), é possível considerar que a semente do que
entendemos como fenômeno teatral - e cujo espaço de germinação máxima é o Teatro - existe no
próprio cotidiano. Somado a isso, conforme desenvolvido por Josette Féral (2003, p. 14), esse
conceito tem tanto uma dimensão de produção quanto de recepção, de maneira que definir algo
como provido de teatralidade resulta de um julgamento, de um processo interior através do qual
reconhecemos certas características que nos foram ensinadas como teatrais. Como o foco neste
momento é uma língua e o que entra em jogo quando o sujeito se comunica através dela, vale a
pena lembrar que “de um ponto de vista teatral, a gramática paradigmática expressa os
pensamentos e a emotividade subjacentes à atividade social” (Burns cit. por Féral, 2003, p. 21)9.
Compreendemos que, como no uso de qualquer idioma, é possível encontrar pontos de
convergência entre a comunicação em língua de sinais e a teatralidade cênica, ainda que no
cotidiano. A peculiaridade da língua dos surdos reside em sua natureza espacial, visual e
cinética; portanto, assim como no teatro, através dela se vê e se faz algo para ser visto,
empregando mais acentuadamente para isso os gestos, a disposição corporal, a consciência de
estar exposto ao olhar do outro e a energia para sustentar a sedução desse olhar.
Por último, é Féral (Ibid. p. 21) quem também nos lembra que hoje se adota
metaforicamente a ideia de que os indivíduos são atores, pois, assim como no teatro - e embora
movidos pelas forças sociais, psicológicas e naturais que determinam sua vida -, desempenham
papéis e atuam de acordo a convenções. Consequentemente, envolvidos nas relações sociais
cotidianas, somos ao mesmo tempo atores para os outros e espectadores dos outros - e, às vezes,
9 Tradução nossa.
22
de nós mesmos. Portanto, ademais da experiência visual que se tem em contato com o indivíduo
que, por meio da língua de sinais, expressa pensamentos e emoções em imagem e transforma o
corpo todo em cenário, a teatralidade - gerada pelo público, portador do olhar - subsiste no fato
de que, para o ouvinte, o surdo ocupa o lugar de ser o outro. O que nos parece positivamente
significativo é que, através da teatralidade - agora como manifestação do desejo de mudança e
como forma de produção de memória social - inerente ao ser humano, o surdo demonstra seu
rechaço ao papel social que por décadas foi forjado para que desempenhasse. E à medida que,
além de espectador, desempenha também o papel de ator nos debates que lhe dizem respeito,
reivindica a criação de novas convenções em palcos que estão dentro e fora do Teatro.
23
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Expondo reflexões, evocando a história, celebrando conquistas, reivindicando direitos,
explicitando incertezas, compartilhando angústias, dedicando olhares, admirando poéticas,
entretecendo afetos, fruindo e experimentando tremores no contato com a alteridade, este texto
foi se construindo, se desconstruindo e se constituindo. Mais que espelhamento do espírito
inquieto que - porque tinha um prazo a cumprir - colocou-lhe um ponto final para pari-lo, ele é a
tentativa de criar alguma corporeidade a partir da imaterialidade de pensamentos. Tarefa
laboriosa - por se tratar de falar de linguagens tridimensionais utilizando um suporte
bidimensional -, mas muito menos solitária do que parecia no início do processo de pesquisa. Há
muito sendo pensado, produzido e registrado sobre a história, a cultura e as artes dos surdos.
Um dos desafios talvez seja fazer chegar esse material a mais pessoas, tanto surdas
quanto ouvintes, de modo que a exposição a essa produção colabore no processo de dissolução
dos discursos normalizadores, paternalistas, assistencialistas, discriminatórios, segregacionistas e
estigmatizantes em relação ao surdo e à surdez. Como enfatiza Schneider (2012, p. 40) ao se
posicionar sobre a questão da acessibilidade, “o recurso realmente necessário é a superação de
preconceitos e da discriminação (...). Por melhores que sejam os recursos tecnológicos, materiais
e logísticos, eles não serão suficientes se não houver uma mudança de concepção sobre o que e
quem é o ser humano”. E essa adoção de novos paradigmas precisa acontecer em todas as esferas
sociais, a começar pela Educação; não apenas pensando em como “incluir” o aluno surdo, mas
principalmente valorizando o educador surdo, que frequentemente tem a mesma titulação de um
ouvinte, mas não é registrado e remunerado como professor, e sim como “instrutor” ou
“auxiliar”. Essa situação deixa evidente que os surdos continuam sendo “produzidos e narrados
como trabalhadores inseridos na lógica binária da eficiência/deficiência” (Klein cit. por
Witkoski, 2012, p. 63).
Dentre todas as modalidades artísticas, o teatro é o mais permeável às mudanças sociais.
Segundo Romano (2013, p. 23), “o corpo de uma cultura numa certa época tende a refletir-se no
corpo cênico, assim como mudanças nas técnicas corporais do teatro têm relação com mudanças
na sociedade”. Deste modo, ainda que o surdo continue sujeito a adequar seu tempo ao das
brechas abertas em temporadas de espetáculos em que se disponibiliza um intérprete - e torcer
24
para que o intérprete esteja num lugar visível que facilite sua fruição -, a produção de artefatos
poéticos no seio da comunidade surda tem aumentado significativamente, de modo que hoje o
surdo não apenas reconhece traços de sua identidade representados nas obras da tradição teatral
ouvinte, mas, ao subir ao palco, também escolhe do que quer falar e a forma como quer se
expressar.
As reflexões poderiam se multiplicar indefinidamente. Mas gostaria de encerrar
recordando um fato ocorrido durante as apresentações dos poemas na oficina do Slam do Corpo
ocorrida em 2015. Quem melhor resumiu o momento atual da produção cultural e artística dos
surdos foi uma mãe, ouvinte, que estava com seus dois filhos pequenos, o maior ouvinte e o
menor surdo, participando do evento. Ao ser gentilmente convidada para ser “a voz” do filho
menor quando este se dirigiu ao palco para apresentar seu poema em Libras, ela respondeu “uma
coisa que eu não quero ser é a voz dele, ele tem sua própria voz”.
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FESTIVAL DE FOLCLORE SURDO. Disponível em <https://festivaldefolcloresurdo.com/>.
Acesso em 13/12/16.
WORLD FEDERATION OF THE DEAF. Disponível em <https://wfdeaf.org/who-we-are/>.
Acesso em 20 dez. 2016.
29
Fotografia 2
A autora e sua irmã com os atores do musical Coração de herói Jeferson Kucioyada, Renan
Souza, Caroline Martins, Mirian Caxilé e Katiuscia Pinheiro
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Fotografia 3
Alexandre Ohkawa (à direita) em uma performance de Butoh no SESC Vila Mariana em
novembro de 2016
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Fotografia 5
A sul-africana Atiyah Asmal (à direita) no Festival de Folclore Surdo ministrando aula
mestre sobre conto em língua de sinais, acompanhada por Renata Rezende (à esquerda)
interpretando o conteúdo em Libras
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Fotografia 6
Participantes do Festival de Folclore Surdo ao final da aula mestre sobre conto em língua de
sinais oferecida pelas sul-africanas Susan Njeyiyana e Atiyah Asmal (ao centro)
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Fotografia 7
Show na Concha Acústica do campus da Universidade Federal de Santa Catarina durante o
Festival de Folclore Surdo
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Fotografia 8
Mestres surdos brasileiros responsáveis pela aula mestre de teatro no Festival de Folclore Surdo:
Marlene Prado, atriz e professora na Universidade Federal do Rio de Janeiro; Silas Queiroz,
arquiteto, ator, humorista, poeta, diretor e coordenador do Projeto Palavras Visíveis no grupo
Moitará do Rio de Janeiro; e Carlos Alberto Goes, ator
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Fotografia 9
O ator surdo brasileiro Nelson Pimenta (ao centro) mediando uma roda de conversa,
acompanhado por Renata Rezende (à esquerda) interpretando a exposição do ator para os
participantes estrangeiros
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Fotografia 10
Presente no Festival de Folclore Surdo, o ator e teatrólogo Lucas Sacramento foi o primeiro
surdo do Brasil com curso superior em Teatro
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Entrevista por escrito realizada pela autora ao ator e teatrólogo surdo Lucas Sacramento
A: O que é o teatro para você?
L.S.: O teatro me faz feliz, A arte me faz feliz, A arte Surda me faz rir a remédio!
A: Que papel tem o teatro atualmente para a comunidade surda?
L.S.: Os papeis são adaptados da Literatura a parte inclusão e facilitando a acessibilidade a
plateia ouvintes com traduções dos personagens.
Os papeis da Comunidade Surda fazem naturalmente de trabalhar o teatro, são principais
improvisações, contar as piadas e fábulas (lenda). O outro lado são poucos que foram espetáculos
profissionais (incluindo o iluminação, figurinos, cenografia), pois estamos fortalecendo a cultura
Surda! Atualmente está indo Folclore Surdo, é o começo!
A: Como aconteceu sua formação como artista-ator-teatrólogo?
L.S.: Minha formação me fez os desafios que eu quebrar minhas barreiras até eu formar! Eu
aprendi muito a teoria e prática como eu ser, o humano faz isso que quer! Não tem regras que
não são obrigatórios, pois o ator é humano que ele quer! Então faz!
Atualmente eu sinto novo profissional, trabalhando próprios projetos, roteiros e metodologias
que o que é Teatro dos Surdos! A pesquisa é sem fim!
A: Qual é sua visão sobre as políticas para garantir acessibilidade ao público surdo que
quer assistir produções teatrais no Brasil?
L.S.: Atualmente melhorando a acessibilidade a politica compreender nossos Leis, LBI. Os
produções teatrais não têm os grandes conhecimentos de acessibilidade ao público surdo, pois as
produções convidam os interpretes, poucas experiências dos trabalhos, outro não tem os
conhecimentos dos trabalhos teatrais, também as produções dificilmente convidar os atores
surdos incluso e debate dos trabalhos! Os atores surdos são bons informantes pra ajudar os
produções teatrais tomam conhecimentos, corrigir mais uma melhoria da acessibilidade.