universidade de lisboa faculdade de...

50
UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTES CORPO DO CONFLITO Marta Filipa Marques de Almeida MESTRADO EM PINTURA 2011

Upload: tranliem

Post on 24-Nov-2018

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTESrepositorio.ul.pt/bitstream/10451/6618/2/ULFBA_TES463.pdf · sugerindo que todo o ser humano possui um potencial criador educável,

UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE BELAS-ARTES

CORPO DO CONFLITO

Marta Filipa Marques de Almeida

MESTRADO EM PINTURA

2011

Page 2: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTESrepositorio.ul.pt/bitstream/10451/6618/2/ULFBA_TES463.pdf · sugerindo que todo o ser humano possui um potencial criador educável,

ii

UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE BELAS-ARTES

CORPO DO CONFLITO

Marta Filipa Marques de Almeida

MESTRADO EM PINTURA

Tese orientada pelo Prof. Doutor João Paulo Queiroz e

co-orientada pela Professora Catedrática Isabel Sabino

2011

Page 3: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTESrepositorio.ul.pt/bitstream/10451/6618/2/ULFBA_TES463.pdf · sugerindo que todo o ser humano possui um potencial criador educável,

iii

Resumo

―Corpo do Conflito‖ é uma tese teórico-prática de pintura que explora o conflito no e

pelo corpo. Esta investigação contempla o cruzamento dos universos da Arte e da Droga.

Associa consumos descontrolados e abusivos de substâncias psico-activas a manifestações

individuais. Diálogos que muitas vezes são focos expressão artística.

Na parte escrita são revistos alguns estudos que abordam os artistas como um grupo

com características específicas do ponto de vista do uso, abuso e dependência de drogas e

álcool, reflectindo sobre o processo criativo nestas circunstâncias. Aprofundam-se estes

conceitos através de alguns exemplos chave revisitando os percursos dos pintores Jackson

Pollock e Frida Kahlo e relacionando o seu trabalho com as manifestações dos conflitos nas

suas vidas.

Na parte prática, conceitos como o ‗mundo de fora‘ e ‗mundo de dentro‘, ‗conflitos‘ e

‗feridas‘, ‗espelho‘ e ‗auto-retrato‘ são usados de forma metafórica, num registo pictórico.

Esta é usada como uma pele, como um corpo, onde estes temas são registados pela matéria

para que ‗os olhos toquem e as mão vejam‘.

É uma busca de entendimento da capacidade que a dualidade física e mental tem de

suportar os conflitos. Uma procura do que pode estar na sua raiz. Tenta-se compreender o que

sucede quando as estruturas desse corpo não são suficientes para a pacificação de conflitos

‗ruidosos‘.

Contacto do autor: [email protected]

Palavras-chave: Artista, Pintura, Álcool, Drogas, Auto-Retrato

Page 4: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTESrepositorio.ul.pt/bitstream/10451/6618/2/ULFBA_TES463.pdf · sugerindo que todo o ser humano possui um potencial criador educável,

iv

Abstract

―From the Conflicted Body‖ is a practice oriented research thesis on painting that

explores the conflict both inside and conveyed by the body. This practice oriented research

covers the worlds of Art and Drugs on their intersections. This research establishes links

between drug abuse and their personal effects. Such dialogues are often found as a focus for

artistic expressions.

The written part of this thesis focuses on the review of previous literature on drugs and

their relation to artists. This is a group with specific characteristics in terms of use, abuse and

addiction to drugs and alcohol. This part intends to single out some the main issues on

creative processes under that kind of circumstances. These questions then are dug deeply by

revisiting some key examples: such painters like Jackson Pollock and Frida Kahlo, relating

their art work with the conflicts in their lives.

In the practice part of the thesis, concepts as ‗outside world‘ and ‗inner world‘,

‗conflicts‘, ‗wounds‘, ‗mirror‘ and ‗self-portrait‘ are used metaphorically, in a pictorial record.

This is used as a skin, as a body, where these issues are recorded through painting materials

trying that ‗the eyes can touch and the ands can see‘.

It is a quest for understanding the ability of the physical and mental duality to support

conflicts. A search for what might well be on its roots. It‘s an attempt to understand what

happens when the body structures are not enough to pacify such ‗noisy‘ conflicts.

To e-mail the author: [email protected]

Keywords: Artist, Painting, Alcohol, Drugs, Self-Portrait

Page 5: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTESrepositorio.ul.pt/bitstream/10451/6618/2/ULFBA_TES463.pdf · sugerindo que todo o ser humano possui um potencial criador educável,

v

Índice

Capítulo 1

Introdução 1

Capítulo 2

CORPO DO CONFLITO

2.1. Introdução……………………………………………………………………….. 6

2.2. Conflitos da criatividade em contexto…………………………………………… 9

2.3. Da curiosidade à experiência……………………………………………………. 9

2.4. Ao encontro do ‗eu‘ ou evasão de si: caminhos para a dependência química…... 12

2.5. Os arredores do Homem e as drogas……………………………………………. 14

2.6. O Mundo de dentro e o Mundo de fora…………………………………………. 15

Capítulo 3

UM OLHAR SOBRE OS PERCURSOS DE JACKSON POLLOCK E FRIDA KAHLO

3.1.Jackson Pollock: dança com telas…………………………….………………….. 17

3.2.Frida Kahlo: retratos de dor……………………………………………………… 24

Capítulo 4

“Quando os Olhos tocam e as Mãos vêem”: discussão de resultados…………… 32

Bibliografia………………………………………………………………………….. 41

Page 6: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTESrepositorio.ul.pt/bitstream/10451/6618/2/ULFBA_TES463.pdf · sugerindo que todo o ser humano possui um potencial criador educável,

vi

Lista de figuras

Capítulo 3

Figura 1. Jackson Pollock. Sem titulo (Xamã a Dançar), 1939/40…………….……. 19

Figura 2. Jackson Pollock. Macho e Fêmea, 1942…………………………….…….. 20

Figura 3. Jackson Pollock. Mulher-Lua, 1942……………………………….……… 20

Figura 4. Jackson Pollock. Mulher-Lua corta o círculo……………………….….…. 20

Figura 5. Frida Kahlo. Pensando en la Muerte, 1943…………………………..…… 26

Figura 6. Frida Kahlo. Autoretrato dedicado al Dr.Eloesser…………………….…. 26

Figura 7. Frida Kahlo. Diego y yo, 1949……………………………………….……. 26

Figura 8. Frida Kahlo. Árbol de la esperanza, mantente firme, 1946………….……. 26

Figura 9. Frida Kahlo. Árbol de la esperanza, mantente firme……………….……… 26

Figura 10. Frida Kahlo. Recuerdo o El Corazón ,1937……………………………… 26

Figura 11. Frida Kahlo. Henry Ford Hospital o La cama volando, 1932…………… 29

Figura 12. Frida Kahlo. La columna rota, cerca de 1944………………………….. 29

Capítulo 4

Figura 13. Marta Marques. A Calma Do Caos, 2011……………………,,…………. 33

Figura 14. Detalhe da pintura A Calma do Caos ………………………,…………… 33

Figura 15. Detalhe da pintura A Calma do Caos ……………………….…………… 33

Figura 16. Detalhe da pintura Cicatrizes privadas ………………………...………… 34

Figura 17. Detalhe da pintura Cicatrizes privadas…………………………………… 34

Figura 18. Marta Marques. Cicatrizes privadas, 2011…………………,,…………… 35

Figura 19. Marta Marques. Presença Ausente, 2011………………………………… 36

Figura 20. Detalhe da pintura Presença Ausente ………………………,…………… 37

Figura 21. Detalhe da pintura Presença Ausente ………………………,…………… 37

Figura 22. Marta Marques. Tenho uma Estranha por Dentro, 2011………………… 38

Figura 23. Detalhe da pintura Tenho uma Estranha por Dentro ………….………… 39

Figura 24. Detalhe da pintura Tenho uma Estranha por Dentro ……………….…… 39

Page 7: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTESrepositorio.ul.pt/bitstream/10451/6618/2/ULFBA_TES463.pdf · sugerindo que todo o ser humano possui um potencial criador educável,

vii

Agradecimentos

Desde que tomei a decisão de abordar o assunto desta tese que soube quem desejava

que me orientasse. Apesar de não constar na lista dos orientadores a Pintura, o professor João

Paulo Queiroz aceitou acompanhar-me neste desafio. Esse seu gesto de acolhimento, que se

transformou no impulso para assumir uma temática à qual sou extremamente sensível, faz-me

sentir uma gratidão que penso nunca conseguir retribuir. Agradeço também a ajuda na busca

de respostas, a disponibilidade e o auxílio sempre rápido e pronto. O tempo que me dedicou.

As conversas ‗desenhadas‘ que guardarei sempre comigo.

À professora Isabel Sabino, por se aproximar de mim e me fazer questionar enquanto

pintora. Acreditando em mim fez com que me interrogasse, corporificando assim o meu acto

criativo. O seu olhar atento e exigente foi o responsável pela motivação ao meu gesto da

Pintura. O seu confronto ajudou a desconstruir as minhas ‗verdades absolutas‘,

transformando-as em caminhos por descobrir. Agradeço a sua paciência à leitura das minhas

pinturas que juntamente comigo foram crescendo, propiciando-me novas descobertas do meu

‗eu‘.

Ao meu bom amigo, o fotógrafo Luís Pais, que se disponibilizou a fotografar as

minhas pinturas e a acompanhar-me no meu trabalho. Sinto um profundo carinho pela forma

em como manifesta a sua empatia comigo, ajudando a ver-me como artista e a sentir-me uma

pessoa melhor. Sem as nossas conversas intermináveis não teria chegado às perguntas

necessárias.

A todos aqueles que caminham a meu lado e me fazem ver neles espelhos, ajudando-

me a conversar comigo e a ouvir o silêncio. A entender-me e a moldar-me, a encontrar os

meus pedaços. A todos os que me ensinaram a saber dar e receber.

Mas por trás de cada passo meu estão três mulheres; mãe, mana e Célia. A elas devo a

memória de que sou feita e a manter-me no presente, que é onde a vida acontece. Em especial

à minha mãe por me ter ensinado a descobrir a beleza de um mundo onde vale a pena viver.

A Pintura só me acontece porque vocês me acontecem.

Page 8: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTESrepositorio.ul.pt/bitstream/10451/6618/2/ULFBA_TES463.pdf · sugerindo que todo o ser humano possui um potencial criador educável,

viii

Quem olha para fora, sonha. Quem olha para dentro acorda.

Carl Gustav Jung

Page 9: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTESrepositorio.ul.pt/bitstream/10451/6618/2/ULFBA_TES463.pdf · sugerindo que todo o ser humano possui um potencial criador educável,

1

Capítulo 1

Introdução

Corpo do Conflito surge como uma reflexão sobre a relação indirecta entre os

universos da arte e da droga, e da forma como em algumas situações estes universos se

cruzam.

Sem defender quaisquer ideologias com base no binómio arte e droga, nem das suas

possíveis associações, pretende-se retirar conteúdos pertinentes para a compreensão de certos

comportamentos adjacentes ao uso e abuso de substâncias psico-activas no mundo artístico.

O mundo das artes tem implícito um poder de comunicação ‗apurado‘, consequente do

avanço que a aquisição da linguagem trouxe à humanidade. Se as palavras constituem

símbolos inventados justamente para o fim da comunicação objectiva, como forma a

providenciar entendimento, a linguagem plástica surge da necessidade de promover um

entendimento mais íntimo, através de códigos subjectivos dos mundos interiores do artista,

únicos na sua expressão. É uma forma de comunicação, que ao proporcionar entendimento, se

pode traduzir metaforicamente em silêncio. Um ‗silêncio mental‘ sugerido pela quietude da

interacção harmoniosa entre os mundos interiores e exteriores do sujeito criativo.

Quando um artista olha para dentro de si e explora as suas zonas íntimas, menos

claras, mas de uma importância fulcral para o bom funcionamento das estruturas do seu

mundo interior e da sua interacção com o seu mundo exterior, procura na expressão artística

uma forma de libertação. Libertação das dúvidas, angustias, medos e ansiedades que a

caminhada pelas ruas da sua existência proporcionam.

Conhecer-se pode ser ameaçador e até por vezes doloroso, a fragilidade íntima dos

recantos da personalidade de cada um e a sua descoberta constituem um dos medos mais

profundos das pessoas.

A busca do auto-conhecimento faz-se por caminhos inquietantes e interrogativos mas

ao mesmo tempo produtores da descoberta do prazer de livremente pensar e agir, de ser e

sentir. No artista, essa busca, pode ser auxiliada pela sua forma particular de questionar e

comunicar pela linguagem plástica – rica pela sua diversidade e infinitas possibilidades.

Quando as pontes que ligam esses caminhos são expostas a obstáculos e ‗ruídos‘,

interferem no ‗silencio mental‘ que a criação artística pode propiciar. Surgem conflitos nos

‗estares‘ e ‗sentires‘ do indivíduo. Conflitos que podem ser traduzidos pelas perturbações que

Page 10: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTESrepositorio.ul.pt/bitstream/10451/6618/2/ULFBA_TES463.pdf · sugerindo que todo o ser humano possui um potencial criador educável,

2

surgem num dos mundos, o exterior e o interior, que logo são transportadas para o outro,

desequilibrando as suas interacções.

Explora-se nesta tese teórico-prática o corpo do conflito e o conflito no corpo. Intenta-

se compreender a capacidade do corpo, seja este o físico e/ou o mental de suportar os ‗ruídos‘

e o que pode estar na sua raiz, assim como o que acontece quando os seus próprios

mecanismos, sejam estes ou não os da libertação artística, não são suficientes para a

pacificação desses conflitos ‗ruidosos‘.

De que forma as substâncias químicas, exteriores ao corpo, surgem nessa tentativa de

pacificação, e o porquê da sua introdução no universo artístico, seriam boas perguntas para

começar.

Seus ‗adeptos‘, em muitos casos, artistas conhecidos com vidas e obras intensas,

terminam por encontrar nessas substâncias uma forma de conforto e fuga das suas

tempestades, tornando-se consumidores-problema e desenvolvendo adições ao longo dos seus

percursos.

Adições que terminam por se transformar num corpo tormentoso que se une às

tempestades das quais queriam fugir, e que traduzem a manifestação mais clara de conflitos

não resolvidos. Conflitos que por permanecerem escondidos em ‗sítios escuros‘, recalcados,

trazem novas zonas de desconforto e desencontro.

São artistas que terminam por ser julgados e apreciados pelo seu talento artístico, sem

normalmente se unir este ao uso que fazem das substâncias que os atraem, lhes dão alento,

silenciam os ‗ruídos‘ dos corpos conflituosos e os fazem jogar à morte com a própria vida.

Como o estudo do consumo de drogas e álcool e a sua incidência no processo criativo

é um tema muito amplio, foca-se nesta tese um período determinado, mirando casos práticos

de artistas plásticos de meados do século XX.

Algumas teorias e estudos deste período, são abordadas no segundo capítulo. Na

segunda metade do século XX surgem vários ensaios baseados na pedagogia da criatividade,

sugerindo que todo o ser humano possui um potencial criador educável, transmitindo a ideia

de que para ser-se criativo não é necessário ser fadado para as belas-artes.

Por esta altura o conceito de criatividade unida ao uso de drogas começou a ser

abordado despertando o interesse de muitos investigadores1.

1Gonzalez de Riviera, Creatividad y estados de conciencia; Morris I. Stein, Stimulating Creativity; Perera, Fenomenologia

paranormal en la inspiracíon artística; Pritzker, Alcohol and creativity

Page 11: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTESrepositorio.ul.pt/bitstream/10451/6618/2/ULFBA_TES463.pdf · sugerindo que todo o ser humano possui um potencial criador educável,

3

São experiências que fazem parte da nossa história mais recente e povoam muito do

universo da arte contemporânea, um período que conviveu com o uso de drogas de uma

maneira mais óbvia e ‗sincera‘ do que em séculos precedentes.

A todos nos é fácil assimilar a imagem do artista boémio, do artista maldito, do artista

solitário que se consolidou sobretudo a partir do século XIX. Tomemos como exemplos

Amedeo Modigliani (1884-1920), Charles Baudelaire (1821-1867), Vincent Van Gogh (1853-

1890), Henri Michaux (1899-1984) e Toulouse-Lautrec (1864-1901).

No terceiro capítulo revolvem-se estes conceitos, de forma mais aprofundada, com o

percurso dos pintores Jackson Pollock (1912-1956) e Frida Kahlo (1907-1954).

O primeiro, considerado uma forte influência na pintura moderna e uma das principais

figuras do Expressionismo Abstracto, pintor com um mundo interior bastante atormentado,

cuja vida e morte foram marcadas pelo consumo abusivo de álcool.

E Frida Kahlo, a artista mexicana que deixou marcas profundas na pintura do século

XX. Encontrou-se na pintura devido às vicissitudes dramáticas que o seu mundo de fora lhe

proporcionou, deixando muitas feridas no seu corpo e demasiadas cicatrizes no seu mundo de

dentro. Muitos conflitos, muita dor e sofrimento, que a uma dada altura tenta apaziguar com

álcool e barbitúricos. Um comportamento que se torna descontrolado e lhe cria dependências

que a acompanham até à sua morte.

Ao nível das sociedades em geral podemos falar de drogas e álcool como forma de

evasão, como busca de identidade, como encontro ou desencontro, como conforto, como

forma de fuga à dor e ao sofrimento que fazem parte da vida dos mundos de fora e de dentro.

Mas no universo das artes, podemos ainda falar de droga como uma forma de acalmar a

ansiedade que precede a criação, como forma a ultrapassar a angústia vital que no mundo

artístico se associa ao desejo de encontrar estímulos para a criatividade, assim como um

caminho para despertar ideias.

O facilitismo tentador que as drogas oferecem para substituir desprazer por prazer,

assenta numa ilusão de encontrar atalhos mais fáceis e rápidos para acalmar o ‗corpo do

conflito‘ da vida quotidiana. Também para abrir o espírito, elevando a consciência para níveis

mais difíceis de alcançar sem o seu uso, assim como acalmar o ‗ruidoso‘ que pode ser o

confronto com uma ―tela em branco‖.

No quarto capítulo expõe-se a série de pinturas ―Quando os Olhos tocam e as Mãos

Vêem‖: discussão de resultados, onde estas questões, de carácter não definitivo, são tomadas

como caminhos para novas explorações e indagações.

Page 12: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTESrepositorio.ul.pt/bitstream/10451/6618/2/ULFBA_TES463.pdf · sugerindo que todo o ser humano possui um potencial criador educável,

4

Parecem ser caminhos já muito explorados, percorridos uma e outra vez ao longo da

história da humanidade, mas ao mesmo tempo com tanto por questionar e por responder, com

muito por decifrar.

Page 13: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTESrepositorio.ul.pt/bitstream/10451/6618/2/ULFBA_TES463.pdf · sugerindo que todo o ser humano possui um potencial criador educável,

5

Capítulo 2

CORPO DO CONFLITO

Parece extremamente improvável que a humanidade, de um modo geral,

algum dia seja capaz de passar sem paraísos artificiais.

Aldous Huxley2

2.1. Introdução

Percorrendo as histórias de vida de alguns artistas que se cruzaram com o abuso de

substâncias psicoactivas, procura-se neste trabalho estabelecer pontos de afinidade e de

diferença dentro das suas ligações intermitentes com o real.

Tomaram-se as obras exemplares e paradigmáticas de Frida Kahlo e de Jackson

Pollock, contrapondo essa exemplaridade com as irregularidades dramáticas das suas

biografias. Destes contrastes espera-se suscitar uma inquietação capaz de aclarar um campo

de expansão criadora, zona de propostas de produção prática, neste projecto inserido no

programa de mestrado em Pintura da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa.

Trata-se pois de uma reflexão sobre o uso de substâncias alteradoras do estado de

espírito na comunidade artística e de que forma estas podem influenciar o desempenho

criativo do sujeito, explorando contextos e situações que possam conduzir a esse processo.

Pode-se dizer que a criação artística se manifesta pelo indivíduo, provocando nele uma

espécie de estado alterado da consciência. Alterado no sentido em que ultrapassa a recepção

primária de estímulos ou a sua simples transmissão. Acontece pela sua forma de interagir com

o mundo, de se expor, de questionar, de criticar. Uma forma de comunicar que ultrapassa as

palavras, como se novas sinapses entre o seu universo interior e o mundo que o rodeia se

tratasse.

Aldous Huxley reflecte sobre essa forma única que o artista tem de comunicar e de

percepcionar o mundo, numa das suas expansões de consciência, através do consumo de

mescalina, ao escrever:

O que nós, outros, só vemos sob a influência da mescalina pode, a qualquer tempo, ser

visto pelo artista, graças à sua constituição congénita. A sua percepção não está limitada

ao que é biológica ou socialmente útil. Algo do saber inerente à Omnisciência flui

2Aldous Huxley, As Portas da Percepção, p.51.

Page 14: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTESrepositorio.ul.pt/bitstream/10451/6618/2/ULFBA_TES463.pdf · sugerindo que todo o ser humano possui um potencial criador educável,

6

através da válvula redutora do cérebro e do ego e atinge sua consciência. Isso dá-lhe um

conhecimento do valor intrínseco de tudo o que existe. Tanto para o artista como para

quem ingere mescalina, o tecido é um hieróglifo vivo que representa, de certo modo

singularmente expressivo, os insondáveis mistérios da existência.3

Segundo a comparação estabelecida por Huxley entre o artista e os ‗outros‘, a forma

como experimentam o conhecimento do valor intrínseco das coisas, assim como ‗a

consciência de si‘, distingue-se na maneira de ser assimilada e transmitida. Este conhecimento

parece acontecer de forma hipersensível, mediado por uma abertura de consciência que

transcende o que é social ou biologicamente declarado. No artista de forma inata e nos

‗outros‘ através da mescalina.

Se o que distingue o artista é a forma criativa e singular de comunicar e percepcionar,

interroga-se neste trabalho a necessidade que por vezes nele surge de ‗procurar-se‘ em

substâncias químicas. Interroga-se se essa ‗busca‘ funciona como um veículo para potenciar a

sua criatividade, provocar desinibição e atenuar inseguranças que possam surgir no

desempenho criativo, ou se será uma forma de silenciar os seus conflitos.

2.2. Conflitos da criatividade em contexto

Se pudesse definir criatividade diria intuitivamente que é um estado de espírito,

caracterizado por uma sensibilidade fora do comum capaz de produzir novas imagens,

objectos e contextos. Manifesta-se pelo (e no) indivíduo quando este após ‗ouvir‘ o que se

passa no seu mundo de dentro, introduz algum tipo de ‗nova realidade‘ à existência. É como

uma sucessão de ‗ruídos‘ ou até de ‗silêncios‘ que povoam o mundo mental do artista, e que

ele tenta transpor para o mundo material, através da sua forma única de comunicar. Um

‗estado‘ que passa pelo transportar do mundo interior do sujeito para a realidade exterior.

As produções artísticas parecem ser, de um modo geral, manifestações do intelecto do

artista, que apesar de se materializarem no mundo físico é no psiquismo do indivíduo que as

produz que são ‗fabricadas‘, assim como são experimentadas pelo mundo mental de quem as

observa.

Apesar de não ser a área base desta investigação, a psicanálise pode enriquecer os seus

conteúdos e auxiliar na compreensão das questões levantadas. É neste campo que se

encontram muitos dos estudos que relacionam a criatividade, substâncias químicas e estados

de consciência.

3Aldous Huxley, As Portas da Percepção, p.27.

Page 15: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTESrepositorio.ul.pt/bitstream/10451/6618/2/ULFBA_TES463.pdf · sugerindo que todo o ser humano possui um potencial criador educável,

7

Por exemplo, Stein4 relacionou a sensibilidade com a criatividade, concluindo que um

sujeito criativo acede com mais facilidade ao seu inconsciente nos seus processos de

percepção e pensamento, que outro menos criativo. Reflectiu sobre o uso de drogas neste

contexto e a forma em como essa prática pode ajudar o artista a ‗vender ideias‘ e a lidar com o

stress que ocorre antes da produção artística.

Segundo o autor a criatividade desenvolve-se no processo de construção do

pensamento, no mundo das ideias. O indivíduo criativo parece utilizar o inconsciente e os

instintos em maior número que um sujeito não criativo. Parece ser essa movimentação que

singulariza as caminhadas pelo mundo interior e exterior do sujeito criativo.

Outro autor que se debruçou sobre estas questões foi Pritzker5. Focando

especificamente o álcool, analisou a maneira como este é por vezes usado de forma a reduzir a

ansiedade e fugir da dor, aludindo a testemunhos de pessoas onde afirmam que o álcool as

ajudou nos seus trabalhos.

Segundo Pritzker existe uma relação romantizada entre álcool e criatividade, aludindo

também à desinibição que este provoca, para justificar o consumo como uma prática

recorrente na vida desses artistas.

Contudo o álcool é também um depressor do sistema nervoso central. Tem os seus

efeitos compreendidos em dois períodos, um que estimula e outro que deprime. Num primeiro

momento ocorre euforia e desinibição, que na continuação do consumo é seguido de

descontrolo, falta de coordenação motora e sonolência.

Pritzker fez um levantamento das situações que poderiam fazer, com que no meio

artístico, o álcool surgisse como um ‗aliado‘.

Refere num primeiro ponto a ‗oportunidade‘, que surge pelo tipo de trabalho, solitário,

normalmente desempenhado pelos artistas.

Num segundo ponto refere a ‗dificuldade no trabalho‘ artístico, pela sua incerteza de

resultados, que apelam ao desejo de sucesso.

Num terceiro ponto refere o stress, pois ―os criadores sentem muitas vezes que o que

se espera deles é superar a sua própria originalidade, corresponder a expectativas criadas é um

factor de stress. Ao mesmo tempo que o álcool alivia a tensão provocada pelo stress, pode

providenciar a desculpa perfeita para o falhanço.‖6

Abordou ainda pontos como; ‗razões sociais‘, ‗depressão‘ e a ‗adição‘, referindo que a

relação que se estabelece entre álcool e criatividade é intrigante e complexa. 4Morris I. Stein, Stimulating Creativity. 5Pritzker, Alcohol and creativity. 6Idem, Ibidem, p.56.

Page 16: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTESrepositorio.ul.pt/bitstream/10451/6618/2/ULFBA_TES463.pdf · sugerindo que todo o ser humano possui um potencial criador educável,

8

Este autor conclui que ―o uso prolongado e abusivo do álcool é um factor de

decadência das faculdades criativas e do indivíduo no seu total, sendo um factor directo ou

indirecto de morte.‖7

Outro autor que pensou estas temáticas no campo da psicanálise foi Riviera8. Este

estabelece associações pertinentes entre criatividade, estados de consciência e substâncias

psicoactivas, analisando a procura de alguns artistas nas drogas de um despertar na sua

criatividade. Prática que numa primeira instância poderá ‗elevar‘ o espírito artístico a níveis

que seriam mais difíceis de alcançar sem o uso dessas substâncias, concluindo contudo que o

seu consumo habitual provoca a deterioração progressiva das faculdades.

Analisa também a tensão interior, intrínseca à criatividade, como sendo a percepção

subjectiva do processo criador:

―La sensación de pensar o saber algo nuevo se acompaña de una tensión interior para

expresarlo y llevarlo a la práctica. Esta tensión es precisamente la percepción subjetiva del

proceso creador.‖9. Verificando que a dificuldade em lidar com esta tensão pode também ser

um dos factores da procura de substâncias psicoactivas.

Riviera afirma que:

La realidad puede contener una infinita cantidad de aspectos, todos ellos en continua

variación, pero nuestro cerebro es capaz de entresacar de ese caos una pauta, un

esquema estable que nos permita dar un alto grado de constancia y predictibilidad a esa

realidad. (…) Este es, precisamente, el primer requisito del acto creador: una

remodelación de la realidad interior, una nueva forma de ver las cosas, un cambio a

veces brusco, de nuestros esquemas conceptuales. Desde el punto de vista práctico, un

alto grado de plasticidad de los constructos y la existencia de ricos nexos entre ellos,

parece ser una de las bases importantes en la constitución de la mentalidad creativa,

tanto en el terreno artístico como en el científico.10

Segundo o autor, pode-se então definir criatividade como uma transformação da

realidade interior que origina novas perspectivas e uma mudança das tramas conceptuais. Para

haver criatividade é necessário um alto grau de plasticidade e um grande número de

interligações nas construções mentais.

É a maneira como o sujeito se relaciona com a realidade, a forma como este lida com o

seu mundo interior e o remodela, que faz com que a sua criatividade seja ou não potenciada.

Neste contexto não parece ser essencial que o indivíduo esteja relacionado com o mundo das

artes. Pode ser-se criativo na maneira de viver o mundo intra-psíquico e extra-psíquico, assim

7Pritzker, Alcohol and creativity, p.57. 8Gonzalez de Riviera, Creatividad y estados de conciencia. 9Idem, ibidem, p.1. 10Idem, Ibidem, p. 2.

Page 17: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTESrepositorio.ul.pt/bitstream/10451/6618/2/ULFBA_TES463.pdf · sugerindo que todo o ser humano possui um potencial criador educável,

9

como na forma de lidar com os conflitos. Estes normalmente surgem quando algo perturba um

desses mundos e consequentemente afecta o outro.

Contudo no artista parece haver um marco comum, que é a maneira singular e

complexa de construir pontes entre o seu mundo de dentro e o seu mundo de fora, denunciada

por uma forma criativa de comunicar.

Riviera centrou algumas das suas investigações numa população de pintores e

escritores, que ao longo dos seus percursos associaram a sua criatividade ao consumo de

drogas. Defendeu que essa população possuía uma predisposição a estados inabituais de

consciência.

Se a essa predisposição se juntarem certos tipos de condições propícias para a

utilização de substâncias psicoactivas, como o hedonismo, o individualismo, a solidão (o

próprio desempenho artístico que é por si só uma actividade solitária), certas situações sociais

assim como uma crescente necessidade de ser transportado para um outro mundo, podem

conduzir o artista a uma situação de dependência química.

Complementando estas investigações outro psicanalista, Perera11

, num estudo sobre a

fenomenologia da inspiração artística, mostra como um grande número de artistas, escritores e

cientistas recebem as suas ―inspirações‖ em estados alterados de consciência. Conclui que não

existe um estado de consciência específico para a criatividade e que a mera vivência de um

estado de consciência inabitual, não é suficiente para desenvolver a criatividade.

Este estudo sugere que a criatividade pode ser fruto de diversos estados de

consciência, assim como pode ser produtora dessa diversidade.

2.3. Da curiosidade à experiência

Esta temática há cerca de meio século começou a estimular a curiosidade dos

investigadores que iniciaram vários estudos, como os que aconteceram com grupos de

controlo, na década de 60, numa tentativa de verificar a influência de drogas psicadélicas no

comportamento criativo.

Por exemplo foi administrado LSD a 50 reconhecidos artistas no Instituto Max Planck

Institute em Munique12

, cujos resultados acabaram por ser inconclusivos devido às variantes

do estudo; desde as quantidades das substâncias, aos tempos do efeito devido às diferenças de

indivíduo para indivíduo, assim como o carácter abstracto do significado de ―criatividade‖.

11Perera, Fenomenologia paranormal en la inspiracíon artística. 12Pluker & Dana, ―Drugs and Creativity‖, in Enyclopedia of creativity, p.60.

Page 18: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTESrepositorio.ul.pt/bitstream/10451/6618/2/ULFBA_TES463.pdf · sugerindo que todo o ser humano possui um potencial criador educável,

10

Contudo os artistas validaram a experiência e os trabalhos executados sob esses efeitos

foram expostos numa galeria de Frankfurt.

O consumo de drogas nos anos sessenta esteve vinculado a uma reacção à cultura

instituída na época e representava uma via de acesso a um ‗novo mundo‘. ―Esse desejo de

transformações sociais era compartilhado colectivamente pelo ideal da contracultura e a droga

tornou-se um símbolo de contestação, partindo inicialmente de Walter Benjamin e Aldous

Huxley e depois acompanhado por Erns Jünger, Robert Graves, Antonin Artaud e Henri

Michaux.‖13

Aldous Huxley (1894-1963) ensaísta e romancista inglês, mostra-se inconformado

com as limitações do corpo humano, e em 1954 escreve As Portas da Percepção, onde revela

as suas experiências com a mescalina e reflecte sobre as suas implicações éticas e mentais.

A mescalina (principio activo do cacto Peyote) é um alucinogénio forte que se instala

nos receptores cerebrais provocando alterações de consciência e percepção, principalmente a

nível visual.

Huxley comprova essas alterações:

A mente preocupava-se, mais do que tudo, não com medidas e lugares, e sim com a

existência e o significado.

Essa minha experiência tinha sido, e ainda era, de duração indefinida, também

podendo ser considerada um perpétuo presente, criado por um apocalipse em

contínua transformação (…) O outro mundo ao qual a mescalina me conduzira não

era o mundo das visões; ele existia naquilo que eu podia ver com meus olhos abertos.

A grande transformação dava-se no reino dos factos objectivos. O que tinha

acontecido ao meu universo subjectivo era coisa que relativamente, pouco

importava.14

Outro exemplo prático é Henri Michaux (1899-1984) cujo uso de drogas psicadélicas,

impulsionou a sua filosofia como poeta e como pintor. A uma dada altura da sua vida também

usou propositadamente a mescalina, de forma a munir os seus universos líricos e imagéticos

de fantasia, magia e encantamentos, fruto da alteração da consciência do tempo, sinestesia e

alucinações que esta droga proporciona.

Michaux fez um filme sobre a mescalina intitulado ―Miserable Miracle‖ (1956) onde

descreve a sua experiência, quase como um estudo de causa-efeito, e se mostra mais

perturbado do que agradado com o consumo desta droga que considera poderosa.

13Katia Varela Gomes, Dependência Química em Mulheres; figurações de um sintoma partilhado, p.35. 14Aldous Huxley, As Portas da Percepção, p.17.

Page 19: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTESrepositorio.ul.pt/bitstream/10451/6618/2/ULFBA_TES463.pdf · sugerindo que todo o ser humano possui um potencial criador educável,

11

No século XIX Charles Baudelaire (1821-1867) relata em ―Os Paraísos Artificiais‖

experiências com o haxixe, o ópio e o vinho.

O ópio é destas três substâncias o mais retardador do organismo. É um opiáceo muito

forte, que tem como principal componente activo a morfina e cria habituação muito

rapidamente.

Baudelaire refere-se ao ópio como um ‗bálsamo suavizante‘ dos sentidos ― (…) para as

feridas que não cicatrizarão jamais e paras as angústias que induzem o espírito em rebelião,

levas um bálsamo suavizante: eloquente ópio!‖15

Fala também da dependência que este cria, no capitulo ―As Torturas do Ópio‖, descrita

em frases como:

A fascinação operou-se; a vontade está domada; a lembrança do prazer exercerá a sua

eterna tirania. (…) Adeus aos sorrisos e aos risos, adeus à paz de espírito, adeus à

esperança e aos sonhos tranquilos (…) chegou às torturas do ópio.16

Em relação ao vinho fala do seu carácter imprevisível quando afirma que:

O vinho é semelhante ao homem: não se saberá nunca até que ponto se poderá estimá-lo

e desprezá-lo, amá-lo e odiá-lo, nem de quantas acções sublimes ou de que perversidades

monstruosas é capaz.17

Walter Benjamin (1892-1940), um pouco à semelhança dos autores anteriormente

referidos, recorre a substâncias como o haxixe e a mescalina, retratando uma ‗outra realidade‘

em suas obras de crítica de arte. Reflecte sobre o uso de narcóticos no desenvolvimento da

literatura que analisava, fazendo apreciações como:

Quem percebeu que as obras desse círculo não lidam apenas com a literatura, e sim com

outra coisa, [...] sabe também que são experiências que estão aqui em jogo, não teorias,

e muito menos fantasmas. E essas experiências não se limitam de modo algum ao sonho,

ao haxixe e ao ópio. É um grande erro supor que só podemos conhecer das ‗experiências

surrealistas‘ os êxtases religiosos ou os êxtases produzidos pelas drogas. [...] A

superação autêntica e criadora da iluminação religiosa não se dá através do narcótico.

Ela dá-se numa iluminação profana, de inspiração materialista e antropológica18

Já antes Baudelaire mostrara uma concordância com esta suposição quando cita

Barbereau:

15Charles Baudelaire, Os Paraísos Artificiais, p.67. 16Idem, ibidem, p.114. 17Idem, ibidem, p.184. 18Walter Benjamin, Sobre o Haxixe e outras drogas.

Page 20: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTESrepositorio.ul.pt/bitstream/10451/6618/2/ULFBA_TES463.pdf · sugerindo que todo o ser humano possui um potencial criador educável,

12

Não compreendo porque o homem racional e espiritual se serve de meios artificiais

para chegar à beatitude poética, uma vez que o entusiasmo e a vontade bastam para

elevá-lo a uma existência supra natural. Os grandes poetas, os filósofos, os profetas

são seres que pelo puro e livre exercício da vontade chegam a um estado em que são ao

mesmo tempo causa e efeito, sujeito e objecto, magnetizador e sonâmbulo - penso

exactamente como ele.19

2.4. Ao encontro do „eu‟ ou evasão de si: caminhos para a dependência química

O uso de drogas está associado a experiências de prazer e desprazer. Procura-se nas

drogas um apaziguamento do sofrimento, um amortecimento ou aumento do campo sensorial,

seja este físico ou mental. Pode ainda representar uma forma de evasão de si ou da realidade

que não se deseja percepcionar. Traduz-se num desejo de fuga também descrito por Huxley

quando afirma que ―O impulso para fugir a nós mesmos e ao que nos rodeia está presente em

cada um de nós, quase todo o tempo. (…) é inevitável que perdure, apesar de tudo, a

necessidade de frequentes excursões químicas para longe da intolerável personalidade e dos

repulsivos arredores de cada um‖.20

Elementos conjugados simultaneamente pelo prazer ou desprazer, pela relação do

sujeito com a realidade ou com ele próprio. São elementos que ao serem encaixados na

memória podem produzir estímulos de repetição, e posteriormente transformados numa

necessidade exterior às condições primordiais do homem.

Caminhos apontados por Baudelaire quando afirma:

Com efeito é proibido ao homem, sob pena de decadência e de morte intelectual,

desordenar as condições primordiais de sua existência e quebrar o equilíbrio das suas

faculdades com os meios em que elas estão destinadas a mover-se, numa palavra,

desordenar o seu destino para o substituir por uma fatalidade de novo género.21

E reflecte sobre a ruptura do equilíbrio das faculdades, com o uso do haxixe, expondo

o seguinte pensamento:

E se, embora à custa da sua dignidade, da sua honestidade e do seu livre arbítrio, o

homem pudesse extrair do haxixe grandes benefícios espirituais, fazer dele uma espécie

de máquina de pensar, um instrumento fecundo?22

19Charles Baudelaire, Os Paraísos Artificiais, p.207. 20Aldous Huxley, As Portas da Percepção, p.53. 21Charles Baudelaire, Op.Cit., p.64. 22Idem, Ibidem.

Page 21: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTESrepositorio.ul.pt/bitstream/10451/6618/2/ULFBA_TES463.pdf · sugerindo que todo o ser humano possui um potencial criador educável,

13

Na sequência deste pensamento afirma ainda:

Esta esperança é um ciclo vicioso: admitindo por um instante que o haxixe dá ou pelo

menos aumenta o génio, esquecem que é da natureza do haxixe diminuir a vontade, e que

assim concede por um lado o que retira por outro, isto é a imaginação sem a faculdade

de a aproveitar.23

E por fim conclui: ―Aquele que recorre a um veneno para pensar não tardará a não

poder pensar sem veneno.‖24

Parece tratar-se de uma ruptura com a dimensão do sensível ao mesmo tempo que uma

impossibilidade de ser-se racional o tempo todo. O ser humano vive também de seus estados

emocionais, que apesar de muitas vezes serem impulsionados por estímulos exteriores, é no

seu mundo interior que essa informação é processada.

Sendo cada indivíduo um universo muito próprio de experiências, sendo ele o centro

de toda a sua existência, uma entidade que recebe e dá ao mundo, também com ele existe uma

necessidade de olhar para o seu mundo interior.

Em Céu e Inferno (1956), Aldous Huxley faz uma espécie de levantamento das

implicações éticas e mentais do uso de substâncias psicoactivas através da sua experiência

com a mescalina. Constata que o êxtase da ‗abertura espiritual‘ que os efeitos dessa substância

provocam, pode levar o indivíduo à auto-aniquilação sempre que esse meio se transforme

num destino.

Huxley acrescenta:

A maioria dos homens e mulheres leva uma vida tão sofredora em seus pontos baixos e

tão monótona em suas eminências, tão pobre e limitada, que os desejos de fuga, os

anseios para superar-se, ainda por uns breves momentos, estão e têm estado sempre

entre os principais apetites da alma.25

Estes ‗apetites da alma‘ podem estar na origem dos comportamentos relacionados com

a adição a drogas. Uma das características desta adição é o deslocamento da actividade

pensante do indivíduo para o objecto de refúgio; a droga, seja ela qual for.

Admite-se que sendo a vida energia, ela tem que ter pólos positivos e negativos.

Assume-se também que ninguém gosta de sentir o negativo da sua existência, nem de olhar

verdadeiramente para o seu lado ‗feio‘.

Interroga-se o porquê dessas ‗excursões para longe da intolerável personalidade de

cada um‘ acontecerem através dos químicos disponíveis.

23Charles Baudelaire, Os Paraísos Artificiais, p.64. 24Idem, ibidem. 25Aldous Huxley, Op.Cit., p.51.

Page 22: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTESrepositorio.ul.pt/bitstream/10451/6618/2/ULFBA_TES463.pdf · sugerindo que todo o ser humano possui um potencial criador educável,

14

2.5. Os arredores do Homem e as drogas

Apesar do conceito de dependência química e adição serem definições do nosso

tempo, o uso de substâncias psicoactivas é um fenómeno tão antigo quanto a própria

humanidade.

Substâncias psicoactivas são o que denominamos por drogas. Estas, uma vez em

contacto com o organismo, modificam as suas funções, sensações, emoções, o humor e o

comportamento. Podem ser naturais (oriundas de plantas, animais ou minerais) ou sintéticas

(fabricadas em laboratórios).

Os seus efeitos no organismo podem ser estimulantes (que aceleram as funções do

organismo), depressores (que retardam o funcionamento do organismo), perturbadores

(perturbam o funcionamento do sistema nervoso central), psicotrópicos (possuem tropismo,

alteram as actividades psíquicas e o comportamento)26

.

Existem registos de há 5 mil anos de folhas de coca serem utilizadas. Data de 3000

a.C. o uso de derivados de opiáceos e o consumo de cânhamo remonta à Antiguidade. No

século XIX, os princípios activos de certas plantas foram isolados para se produzir fármacos

―como a morfina (1806), a codeína (1832), a cafeína (1860), a heroína (1883), a mescalina

(1896) e os barbitúricos (1903) ‖27

, marcando uma revolução na indústria farmacêutica.

Nessa época substâncias como a cocaína e a morfina começam a ser usados fora dos

circuitos da medicina, cumprindo ‗caprichos hedonistas‘ com fins relacionados ―com o valor

absoluto da Idade Moderna – o indivíduo e os ditames do seu foro interior. Artistas

embarcavam no uso de ópio e haxixe para aventuras interiores, para a transformação dos

sentidos e dos pensamentos, usando como tema de inspiração para suas criações.‖28

No século XX com prolongamento no século XXI aumenta o que os especialistas

chamam de ―mania ocidental por pílulas‖29

que é um abuso do uso de medicamentos, muitas

vezes de forma exagerada e auto-suficiente.

Apesar do álcool ter uma historiografia distinta, ele é hoje considerado pelos

especialistas como uma droga, devido aos fins com que muitas vezes é usado, suas causas e

consequências relativamente ao sujeito.

A produção e os efeitos do álcool são conhecidos desde os tempos mais remotos da

humanidade. ―No período Neolítico, a cerveja e o seu fabrico já eram do conhecimento do

Homem. Egípcios, gregos e romanos são exemplo de povos que conheceram e desenvolveram

26Maria C. D‘Arcádia Novo, Drogas: Fora da Lei e Dentro do Usuário, p. 87. 27Katia Varela Gomes, Dependência Química em Mulheres; figurações de um sintoma partilhado, p. 33. 28Idem, Ibidem, pp. 33-4. 29Maria C. D‘Arcádia Novo, Op.Cit.

Page 23: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTESrepositorio.ul.pt/bitstream/10451/6618/2/ULFBA_TES463.pdf · sugerindo que todo o ser humano possui um potencial criador educável,

15

as artes do fabrico de bebidas alcoólicas, assim como os efeitos do seu uso pelo Homem.‖30

A prática do consumo abusivo de álcool e a dependência que esse comportamento

produz, fez com que na segunda metade do século XIX fosse conotado o alcoolismo como

uma doença que afecta o alcoólico em todos os aspectos da sua vida31

.

Embora esteja hoje já afastada, pela maioria dos autores, a hipótese de uma

personalidade pré-alcoólica típica, admite-se que certas características da personalidade

possam estar na base da procura do efeito psicofarmacológico do álcool.

Entre as correntes psicológicas explicativas da criação da dependência no indivíduo,

destacamos duas. A primeira fundamentada na ‗organização e funcionamento do

indivíduo‘ a procura do álcool. Este desempenha para o indivíduo o ‗objecto substituto‘

privilegiado, num histórico evolutivo de uma personalidade pré-mórbida oral e

narcisista. O alcoolismo é assim para os psicanalistas, um sintoma, uma manifestação de

um conflito não resolvido. A segunda de natureza comportamental, defende que o

alcoolismo deixa de ter o significado de sintoma para constituir ele próprio a doença,

sinónimo de comportamento inadaptado e mal aprendido e, por conseguinte, patológico.

Pela sua acção ansiolítica, o álcool, tornado agente habitual de redução de tensão e

ansiedade, de produção de alívio e bem-estar, constitui reforço para a persistência e

repetição do comportamento alcoólico.32

Segundo estas definições, parece ser que a adição, ao álcool ou a qualquer outro tipo

de drogas, reflecte um desequilíbrio comportamental. Um comportamento aditivo transparece

um sintoma de algo que não corre bem nos mundos do sujeito, contudo ao tornar-se doença

transforma-se ele próprio num sintoma, numa manifestação de conflitos não resolvidos.

Um outro psicanalista que reflectiu sobre as desordens comportamentais foi o

português Jaime Milheiro. Este chama ‗cicatrizes do foro privado‘ aos sofrimentos, feridas,

marcas e crises que acontecem nos mundos do indivíduo e que:

Formam uma armadura, uma outra forma de pele, onde sintomas, doenças,

psicopatologias se instalam e de que em boa parte o portador depende. (…) Cicatrizes do

foro privado que quando insuportáveis convertem-se em doenças físicas, anormalidades,

fugas comportamentais.33

2.6. Mundo de dentro e Mundo de fora

Ao longo deste trabalho várias vezes se refere o conceito do ‗mundo de dentro‘ e

‗mundo de fora‘, ou de ‗realidade intra-psíquica‘ e ‗realidade extra-psíquica‘, ou de ‗mundo

30MªLucília M. Mello e Outros, OMS: Álcool e problemas ligados ao álcool em Portugal, p.11. 31Idem, ibidem. 32Idem, ibidem, pp. 20-1. 33Jaime Milheiro, Loucos são os Outros, p.117.

Page 24: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTESrepositorio.ul.pt/bitstream/10451/6618/2/ULFBA_TES463.pdf · sugerindo que todo o ser humano possui um potencial criador educável,

16

subjectivo‘ e ‗mundo objectivo‘, ou ainda de ‗realidade abstracta‘ e ‗realidade concreta‘, como

dois aspectos de uma mesma existência, duas faces da mesma experiência.

A palavra ‗mundo‘ surge neste contexto metaforicamente. Estes mundos pertencem a

uma só existência, mas tendo em conta que cada indivíduo percepciona a realidade à sua

maneira, então pode-se afirmar, ainda que metaforicamente, que cada sujeito tem a sua

própria percepção do mundo que o rodeia e consequentemente do seu mundo interior.

São as experiências inerentes à interacção do ‗mundo de fora‘ do sujeito, que

estimulam o ‗mundo de dentro‘ e vice-versa. Experiências que apesar de serem muitas vezes

partilhadas, não são passíveis de serem percepcionadas por cada indivíduo de forma idêntica.

Um sujeito, como o artista, com apetências natas para se expressar além da linguagem

verbal, tem uma vantagem acrescida de processar as informações desses dois mundos e de

certa forma equilibrar melhor a sua existência física e psíquica. Talvez não seja ‗vantagem‘ a

palavra certa, mas sim ‗necessidade‘, uma necessidade resultante da performatividade e

constante interrogação desse sujeito.

Parece ser na maneira como se interroga, como se suportam dúvidas, na maneira como

se lida com o corpo do conflito assim como com o conflito no corpo, que se distingue o

carácter do sujeito e a personalidade criativa.

Page 25: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTESrepositorio.ul.pt/bitstream/10451/6618/2/ULFBA_TES463.pdf · sugerindo que todo o ser humano possui um potencial criador educável,

17

Capitulo 3

UM OLHAR SOBRE OS PERCURSOS DE JACKSON POLLOCK E

FRIDA KAHLO

3.1.Jackson Pollock: danças com tinta

Jackson Pollock, nasceu no ano de 1912 em Cody, Wyoming, Estados Unidos da

América. Exerceu uma forte influência na pintura contemporânea sendo considerado uma das

figuras principais do Expressionismo Abstracto, movimento artístico ‗anunciado‘ por

H.Rosenberg para designar um ―automatismo pictórico, incluindo a força de expressão

criativa e concepção livre de formas imaginárias que se insinuou entre artistas da geração

intermédia residente em Nova York‖34

. Neste movimento Pollock marcou a diferença pela

técnica a que chamaram de ‗dripping‘, efectuada através de uma pintura de acção onde o

gesto fica implicitamente denunciado na tela por essa ‗dança‘ que Pollock tinha com as tintas

respingadas.

Pollock iniciou os seus estudos em Los Angeles, onde tem um primeiro contacto com

a escultura e o desenho na escola Manual Arts High School. Por esta altura Jackson começa a

manifestar a sua inquietação por tornar-se um artista.

Descontente com o seu rumo inicial escreve ao seu irmão Charles:

Os meus desenhos, digo-te com franqueza, são francamente péssimos, parece que não

têm qualquer liberdade nem ritmo, frios e sem vida, não valem os selos para o envio. (…)

Embora eu sinta que venha a ser algum tipo de artista, nunca provei nem a mim nem a

ninguém que o tenho dentro de mim.35

Em 1930 Jackson Pollock muda-se para Nova York onde frequenta as aulas de Thomas

Hart Benton36

, com quem aprende noções importantes de composição e tem contacto com os

trabalhos dos muralistas mexicanos; Diego Riviera, José Clemente Orozco e David Alfaro

Siqueiros que o impressionaram pela grande escala representativa de cenas revolucionárias.

Siqueiros foi o que mais o marcou pelos materiais invulgares que usava, como a tinta

de esmalte que Pollock viria também a usar.

34Mel Gooding, Movimentos de Arte Contemporânea: Arte Abstracta, p. 68. 35Jackson Pollock cit. por Leonhard Emmeling, Jackson Pollock, p. 11. 36Leonhard Emmeling, Op. cit., p. 12.

Page 26: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTESrepositorio.ul.pt/bitstream/10451/6618/2/ULFBA_TES463.pdf · sugerindo que todo o ser humano possui um potencial criador educável,

18

Pollock foi construindo uma forma ‗intuitiva‘ de pintar, como se impulsos o movessem

a projectar tinta nas telas. Essa forma de trabalhar poderá ter sido influenciada pelo seu

alcoolismo assim como toda a sua existência.

A adição ao álcool teve um papel principal nos seus problemas psicológicos, levando-

o inclusive a diversas estadias em clínicas psiquiátricas.

Em 1937 esteve internado quatro meses num hospital psiquiátrico e em Janeiro inicia

com L.Henderson um caminho em busca de respostas, ao seu comportamento, na terapia

psicanalítica37

.

Henderson era um seguidor da doutrina de Carl Gustav Jung (1875-1961). Jung

introduz a ideia de ‗consciência colectiva‘ e deixou uma herança na psicanálise relacionada

com a pesquisa de imagens visuais arquetípicas comuns a toda a humanidade.

Este fundo de interacção clínica de influência Junguiana terá sido muito útil a Pollock

que levava para as sessões de terapia desenhos dos seus diários gráficos. Esses esboços

facilitavam-lhe a comunicação com o terapeuta devido à dificuldade que tinha em expressar a

sua condição através da linguagem verbal.

Pollock viu aumentado o seu interesse por Jung devido a um certo fascínio que a

relação anímica entre homem e animal exercia sobre ele. A associação dos povos indígenas

americanos à figura do Xamã também levantava questões a Jackson.

A teoria Junguiana segundo a qual o Xamã “passava por um ou mais ciclos de

nascimento, morte e renascimento, foi um dos aspectos da psicologia Junguiana que se sabe

Pollock ter discutido com os seus terapeutas.‖38

As definições do Xamã como um mediador entre os reinos animal e humano,

permitiam a Pollock experimentar uma sabedoria que o impressionava e estimulava.

Observe-se a este respeito, na reprodução da figura 1, um dos desenhos de Pollock,

representativo de um Xamã a dançar.

37Leonhard Emmeling, Jackson Pollock, p.10. 38Idem, ibidem, p.23.

Page 27: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTESrepositorio.ul.pt/bitstream/10451/6618/2/ULFBA_TES463.pdf · sugerindo que todo o ser humano possui um potencial criador educável,

19

Figura 1. Jackson Pollock. Sem titulo (Xamã a Dançar), 1939/40.

Lápis de cor sobre papel, 38x29cm. Colecção particular.

Em 1943 manifestou numa entrevista

Sempre me impressionei muito com as características plásticas da arte dos índios

americanos. Os índios têm uma verdadeira abordagem de pintor, nas suas capacidades

de se apropriarem das imagens e no seu discernimento do que é tema de pintura (…)

algumas pessoas encontram referências à arte e caligrafia dos índios americanos em

partes do meu trabalho. Não foi intencional; foi provavelmente o resultado de antigas

memórias e entusiasmos. (…) A arte e a mitologia arcaicas contêm símbolos eternos (…)

dos medos e motivações primitivos do homem.‖39

Relativamente aos ‗desenhos psicanalíticos‘ de Jackson, questiona-se a sua relação

consciente da psicologia Junguiana, mas pode-se presumir que o pintor estivesse em contacto

com ela.

Os conceitos de animus e anima, de fêmea e macho, estão unidos à filosofia de Jung e

neste contexto a obra ―Macho e Fêmea‖ (Figura 2) aproxima Pollock da doutrina Junguiana.

39Jackson Pollock cit. por Emmeling, Jackson Pollock, p.18.

Page 28: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTESrepositorio.ul.pt/bitstream/10451/6618/2/ULFBA_TES463.pdf · sugerindo que todo o ser humano possui um potencial criador educável,

20

Figura 2. Jackson Pollock. Macho e Fêmea, 1942.

Óleo sobre tela, 186x124cm.

Philadelphias Museum of Art.

Outra indicação desta associação verifica-se em simbologias talvez mais psicanalíticas

do que estéticas, como o caso das obras; ―Mulher-Lua‖ (Figura 3), ―Mulher-Lua Louca‖,

―Mulher-Lua corta o círculo‖ (Figura 4).

Figura 3. Jackson Pollock. Mulher-Lua, 1942. Óleo sobre tela, 175x109cm. Colecção particular..

Figura 4. Jackson Pollock. Mulher-Lua corta o círculo, 1943. Óleo sobre tela, 110x104cm. Centre Georges Pompidou.

Page 29: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTESrepositorio.ul.pt/bitstream/10451/6618/2/ULFBA_TES463.pdf · sugerindo que todo o ser humano possui um potencial criador educável,

21

Segundo Pollock, nada do que pintava era ao acaso. O acaso nas suas obras era algo

completamente negado pelo pintor. Estas funcionavam como ‗narrações‘ com princípio, meio

e fim onde o acaso não tinha lugar.

It seems to be possible to control the flow of the paint, to a great extent, and I don‘t use

the accident – cause I deny the accident.40

Essas ‗narrações‘ formadas camada sobre camada, através de uma espécie de

‗dança‘com a tinta, com ritmos estabelecidos por Pollock onde ―o resultado é que interessa e

não faz muita diferença como a pintura é posta desde que alguma coisa seja dita. A técnica é

apenas um meio para chegar a uma afirmação.‖41

A sua técnica aperfeiçoa-se quando ele a e sua mulher Lee Krasner, também pintora,

se mudam em 1945 para uma pequena fazenda em Long Island.

É neste contexto de certa acalmia, fora das grandes cidades, que as suas obras se

tornam cada vez mais catárticas e elaboradas, proporcionando a que Pollock entre no auge da

sua consagração por volta de 1949.

Nesta fase Pollock descreve o seu contacto com a pintura como um ‗dar e receber‘

harmonioso

…porque a pintura tem uma vida própria. Tento deixá-la revelar-se. É apenas quando

perco o contacto com a pintura que o resultado é uma confusão. Caso contrario há pura

harmonia, um dar e receber fácil.42

Um pouco antes Peggy Guggenheim começara a preparar a primeira exposição

individual de Jackson, que inaugurou a 9 de Novembro de 1943 no Art of This Century. No

catálogo da mostra, Sweeney refere-se ao trabalho do pintor como sendo

Vulcânico. Tem fogo. É imprevisível. É indisciplinado (...) O que precisamos é de mais

jovens a pintar a partir de impulsos interiores sem dar ouvidos ao que pensam os

espectadores e os críticos – pintores que arrisquem estragar uma tela para dizer alguma

coisa à sua maneira. Jackson Pollock é um deles43

Lee Krasner teve um papel importante na vida Pollock, apaixonada pelo homem e sua

obra, Lee é quem acompanha e dá suporte psicológico e emocional ao pintor, e o auxilia com

os seus problemas.

40Jackson Pollock entrevistado por William Wrigth, em Pepe Karmel e Kirk Varnedoe (1999) ―Jackson Pollock: Interviews,

Articles, and Reviews.‖ In Jasmine Moorhead (ED.) Jackson Pollock. 41Leonhard Emmeling, Op. cit., p. 69. 42Jackson Pollock cit. por Emmeling, Op. Cit, p. 65. 43Sweeney cit. por Emmeling, Op. cit, p. 46.

Page 30: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTESrepositorio.ul.pt/bitstream/10451/6618/2/ULFBA_TES463.pdf · sugerindo que todo o ser humano possui um potencial criador educável,

22

Lee afirmou numa entrevista com Francine du Plessix e Cleve Gray44

feita em 1967,

que Jackson enfrentava os seus problemas, que tinha plena consciência da sua relação com o

álcool e que tentou tudo o que havia disponível para parar de beber, desde tratamentos

médicos a psicanalistas.

Logrou estar abstémio de 1948 a 1950 com a ajuda do Dr. Edwin Heller e da

medicação que este lhe receitara. Estes dois anos de sobriedade ficaram impressos no que

seriam provavelmente as pinturas mais significativas da sua carreira.

Algumas relações pouco exploradas, quiçá na génese do seu alcoolismo, foram as

conturbadas ligações que Pollock tinha com a sua família, principalmente com a sua mãe a

quem se referia como ―um velho útero com túmulo incorporado‖45

.

A confirmar esta ideia, seu irmão Sande escreve ao seu outro irmão Charles uma carta

onde descreve as desordens psicológicas de Pollock, atribuindo-as à sua relação com a mãe,

pelas seguintes palavras: ―Jackson sofre de uma neurose. Voltar à normalidade e auto-

dependência depende de muitos factores subtis e alguns óbvios. Uma vez que parte deste

problema recai sobre as suas relações em criança com a mãe em particular, e com a família

em geral.‖46

Muitos dos efeitos devastadores da adição ao álcool e como esse processo se manifesta

em comportamentos auto-destrutivos, podem assim ter tido origem neste conflito não

resolvido com a sua mãe.

Conta-nos Lee Krasner na mesma entrevista referida anteriormente, que Jackson

bebeu durante dias a fio, desaparecendo na noite anterior ao dia em que tinham um jantar

marcado com sua mãe, para que esta e Lee se conhecessem. Acabaram por o encontrar no

Bellevue hospital num estado deplorável.

Outros episódios de comportamentos descontrolados manifestaram-se ao longo da

vida do pintor. Um dos mais conhecidos aconteceu no dia de Acção de Graças quando Pollock

deitou ao chão a mesa do convívio, expulsando de sua casa em Long Island os colegas e

admiradores que se tinham juntado nesse dia.47

Outro igualmente conhecido aconteceu no dia

em que urinou na lareira de Peggy Guggenheim durante uma festa.48

Estes comportamentos apresentam uma aparente ‗zanga‘, acompanhada da perca de

controlo característica de um alcoólico. Mas a sua companheira que dividia com ele os seus

dias, não o considerava violento. 44Lee Krasner entrevistada por Francine du Plessix e Cleve Gray, ―Who Was J.P.?‖ Art in America. 45Leonhard Emmeling, Op.Cit, p. 13. 46Idem, ibidem. 47Jeremy Lewinson, Interpreting Pollock. 48Idem, ibidem.

Page 31: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTESrepositorio.ul.pt/bitstream/10451/6618/2/ULFBA_TES463.pdf · sugerindo que todo o ser humano possui um potencial criador educável,

23

If I conjure the gentle part of Jackson, that was one part. But there was the other part, the

other extreme, the angry man. Both of them existed in extremes. He was not violent.

Angry, yes. Bitter, yes. Impatient, yes. Not violent.49

Pela sua personalidade conturbada e frágil Pollock foi o primeiro artista americano a

enquadrar-se no estigma do artiste maudit50

, ressurgido da imagem do génio atormentado.

Tormentos do seu mundo de dentro que transportava para o seu mundo de fora. Falando

também dele, expressou numa entrevista em 1950:

The modern artist, it seems to me, is working and expressing an inner world, in other

words expressing the energy, the motion, and other inner forces (…) is working whit

space and time, and expressing his feelings rather than illustrating.51

Era a partir do seu mundo interior que Jackson pintava; ―Trabalho de dentro para fora,

como a natureza.‖52

. Afirmação que traduz um sentimento de pertença ao cosmo, contudo

num mundo atormentado com todo o caos inerente ao consumo abusivo de um depressor do

sistema nervoso central como é o álcool.

Nos anos que se seguem a 1951 começa a ser evidente a degradação de Pollock, a

vários níveis. Acidentes, a que sobreviveu, quando conduzia embriagado eram sinónimo de

um desgoverno absoluto. A sua produção artística entra em declínio, evidenciando uma

degradação das suas capacidades criativas e ausência de motivação. A sua união com Lee

Krasner ficara comprometida com a deterioração do casamento a ponto de Pollock começar a

procurar outras mulheres.

A consequência mais grave e irreversível do seu consumo excessivo de álcool foi a sua

morte, quando a 11 de Agosto de 1956 sofre, embriagado, um acidente de viação.

49

Lee Krasner entrevistada por Francine du Plessix e Cleve Gray. ―Who Was J.P.?‖ Art in America 50Emmeling, Op.Cit., p.86 51Jackson Pollock entrevistado por William Wrigth, em Pepe Karmel e Kirk Varnedoe (1999) ―Jackson Pollock: Interviews,

Articles, and Reviews.‖ In Jasmine Moorhead (ED.) Jackson Pollock. 52Jackson Pollock cit. por Emmeling, Op.Cit., p.48

Page 32: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTESrepositorio.ul.pt/bitstream/10451/6618/2/ULFBA_TES463.pdf · sugerindo que todo o ser humano possui um potencial criador educável,

24

3.2. Frida Kahlo: retratos de dor

Voy a alimentar la tesis sobre el sufrimiento como elemento determinante del arte.

Todavía hay mucho que decir sobre eso. (...) No tengo miedo a la muerte, pero quiero

vivir. El dolor sí que no lo soporto.53

Nestas palavras de Frida está o que mais caracterizou a sua existência: dor, sofrimento

e arte.

Os precedentes da infância de Frida Kahlo não indicam uma pré-disposição para o

desenvolvimento de adições. Sem conflitos familiares, Frida apenas detecta nesta fase

dificuldades de natureza social: "A minha infância foi maravilhosa porque embora o meu pai

fosse doente (tinha vertigens a cada mês e meio) era um exemplo notável de ternura e de

trabalho (fotógrafo e também pintor) e sobretudo de compreensão para com os meus

problemas, que desde os meus quatro anos já eram de natureza social."54

Sobre a procura de apoio psicológico por Frida Kahlo, sabe-se por uma referência de

Martha Zamora que ela foi talvez a primeira mulher no México a fazer psicanálise55

, o que

demonstra a abertura de Frida enquanto mulher de meados do século XX, com sede de

entendimento dos seus comportamentos: ―Frida era una muchacha extraordinariamente

inquieta y de una inteligencia muy particular en el médio de aquel entonces‖56

Seria talvez esta sua inquietação unida às circunstâncias dramáticas que enquadram a

sua vida que promovem em Frida a busca do entendimento de si.

O acidente de autocarro que sofreu aos 18 anos e a imobilizou durante um longo

período57

trouxe-lhe problemas de saúde para sempre. Este prenúncio de morte provocou o

confronto quotidiano com o absurdo da existência, movendo a sua demanda de se encontrar.

Frida ausenta-se da própria vida para se tornar presente.

Contudo este acidente, a que se juntara uma poliomielite aos seis anos, feriu-lhe o

corpo e o espírito deixando-lhe cicatrizes profundas, acompanhadas de muita angústia e

sofrimento.

Um espelho colocado por sua mãe, na parte superior da cama que a acolheu durante

esse longo período de convalescença após o acidente de autocarro, vai obrigá-la a olhar-se

incessantemente:

El espejo! Verdugo de mis días, de mis noches. Imagen tan traumatizante como los

propios traumatismos. Todo el tiempo esa impresión de ser señalada con el dedo. ‗Frida,

53Frida Kahlo cit. por Rauda Jamis, Frida Kahlo: autoretrato de una mujer. 54Frida Kahlo cit. por Urania Peres, Frida Kahlo: Dor e Arte. 55Martha Zamora, Frida Kahlo: the brush of anguish, p. 118. 56Alejandro Gómez Arias cit. por Rauda Jamis, Frida Kahlo: autoretrato de una mujer, p. 40. 57Andrea Kettenmann, Frida Kahlo, 1907-1954: dor e paixão, p. 17.

Page 33: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTESrepositorio.ul.pt/bitstream/10451/6618/2/ULFBA_TES463.pdf · sugerindo que todo o ser humano possui um potencial criador educável,

25

mírate‘. ‗Frida, contémplate‘. Ya no hay sombra de verdad dónde esconderse, ni cueva

dónde retirarse, entregada al dolor, para llorar en silencio sin marcas en la piel.

Comprendí que cada lágrima traza un surco en la cara, por joven y tersa que sea. Cada

lágrima es una fragmentación de vida.

Escrutaba mi rostro, mi mínimo gesto, los dobleces de la sábana, su relieve, las

perspectivas de los objetos dispersos a mi alrededor. Durante horas, me sentia

observada. Me veía. Frida adentro, Frida afuera, Frida en todas partes, Frida hasta al

infinito.58

Frida inicia uma viagem, em frente ao espelho, sem sair do lugar. Uma pausa forçada

onde o único movimento era o da procura do Eu por detrás de si, diante do espelho.

Existe um conto de Guimarães Rosa que, sem intenção, se cruza com esta experiência

da pintora, chamado precisamente ―O Espelho‖. Neste conto, mais do que uma viagem pelas

imagens que aí se desdobram, irrompe a magia do conhecimento de si. Um exemplo dessa

experiencia, pelas palavras do autor:

Comecei a procurar-me — ao eu por detrás de mim — à tona dos espelhos, em sua lisa,

funda lâmina, em seu lume frio (…) Quem se olha ao espelho, fá-lo partindo dum

preconceito afectivo (…) O que se busca, então, é verificar, acertar, trabalhar um

modelo subjectivo, preexistente; enfim, ampliar o ilusório, mediante sucessivas novas

capas de ilusão.‖59

O que poderia Frida contemplar? Nessa quase impossibilidade do seu corpo interagir

com o mundo exterior, começa uma viagem através do seu universo interior. Traça linhas,

constrói formas que despertaram o sentimento de si.

Nesta recomposição começam os auto-retratos de Frida.

Com efeito até à data Frida não pensava em dedicar-se à pintura, ―queria estudar

ciências naturais, em especial biologia, zoologia e anatomia e esperava vir a ser médica‖60

,

mas a vida levou-a para caminhos diferentes acabando por redefinir a sua identidade na

pintura.

A grande maioria das obras que nos deixou a pintora são auto-retratos, onde o seu

corpo funciona como o centro do encontro consigo. Observem-se como exemplos as obras:

―Pensando en la Muerte‖ (Figura 5), ―Autoretrato dedicado al Dr. Elosser‖ (Figura 6), ―Diego

y yo‖ (Figura 7), ―Árbol de la esperanza, mantente firme‖ (Figura 8), ―Las dos Fridas‖

(Figura 9) e ―Recuerdo o El Corazón‖ (Figura 10).

58Frida Kahlo cit. por Rauda Jamis, Op.Cit., p. 75. 59Cit por. Tania Rivera, Guimarães Rosa e a Psicanálise: ensaios sobre a imagem e a escrita, p. 14. 60Andrea Kettenmann, Op.Cit., p..11.

Page 34: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTESrepositorio.ul.pt/bitstream/10451/6618/2/ULFBA_TES463.pdf · sugerindo que todo o ser humano possui um potencial criador educável,

26

Figura 5. Frida Kahlo. Pensando en la

Muerte, 1943. Óleo sobre tela,

45x36cm.

Colecção particular.

Figura 6. Frida Kahlo. Autoretrato

dedicado al Dr.Eloesser, 1940.

Óleo sobre masonite, 60x40cm.

Colecção particular.

Figura 7. Frida Kahlo. Diego y yo,

1949. Óleo sobre tela, 28x22cm.

Colecção Sam e Carol Williams.

Mais que uma autobiografia, os seus auto-retratos revelam imagens de uma ‗viagem

ao interior‘ de uma entidade, em busca da consciência de si.

Pinto mucho, sin parar: ese es mi viaje. . . hacia las tierras del interior.61

Figura 8. Frida Kahlo. Árbol de la

esperanza, mantente firme, 1946.

Lápis sobre papel, 56x41cm.

Colecção Dolores Olmedo.

Figura 9. Frida Kahlo. Las dos Fridas, 1939.

Óleo sobre tela, 174x173cm. Museo de Arte

Moderno, Cidade do México.

Figura 10. Frida Kahlo. Recuerdo

o El Corazón ,1937. Óleo sobre

metal, 40x28cm. Colecção Michel

Petitjean.

61Cit. por Rauda Jamis, Op.Cit., p.75

Page 35: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTESrepositorio.ul.pt/bitstream/10451/6618/2/ULFBA_TES463.pdf · sugerindo que todo o ser humano possui um potencial criador educável,

27

É a partir do corpo que muito do mundo se nos apresenta como algo que ‗está aí‘. É

nessa relação entre o mundo e o corpo que se manifesta muita de experiência e do desejo do

‗acto de sentir‘.

Frente ao vazio deixado pela perca de parte de si, parte do seu corpo, surge na pintura

um modo de evasão dessa realidade e ao mesmo tempo um modo reconstrutor de olhar para

dentro, uma possibilidade de sustentação, um ganho.

A maneira como Frida (re-) conhecia o seu corpo, e como este era simbólico na sua

pintura, foi referida num artigo de Marta Zarzycka:

This interchange of inside and outside is visible in Kahlo‘s paintings: her body either

contains her pain or projects it outwards. (…) Frida Kahlo‘s art has its basis in her body.

Kahlo knew her body not only through her sexuality and elaborate costumes, but also

through operations, doctors‘ diagnoses, medical textbooks, the metal apparatuses her

deformed foot, and her plaster or metal corsets. She knew it through miscarriages and

abortions, and her addiction to alcohol and drugs.62

A sua união com Diego Riviera foi também um factor muito significativo na vida da

pintora. Casaram-se duas vezes; a primeira em 1929, ela com 22 anos e ele com 42.

Seria mais uma forma de se definir, mas ao mesmo tempo um grande foco de

sofrimento. A própria Frida viria a referir-se ao seu encontro com Diego como o segundo

acidente da sua vida.63

O amor que entregava a Diego manifestava-se através de uma co-dependência. A sua

intensidade e desespero, faziam-se sentir em cartas que lhe escrevia, ou em notas no seu

diário, como esta:

Diego:

Nada se compara às tuas mãos e nada é igual ao ouro-verde dos teus olhos.

Meu corpo enche-se de ti por dias e dias, és o espelho da noite, a luz violenta do

relâmpago, a humidade da terra.

O côncavo das tuas axilas é o meu refúgio, as pontas dos meus dedos tocam teu sangue.

Toda minha alegria é sentir a vida brotar de tua fonte-flor que a minha guarda para

encher todos os caminhos dos meus nervos que são os teus.64

A notoriedade do muralista mexicano sem dúvida a ajudou a integrar-se no mundo da

pintura. Mas o amor que entregava a Diego era o mesmo que fazia com que Frida procurasse

a sua plenitude através de ―um sentimento violento, imperioso, intransigente que, por sua vez,

62Marta Zarzycka, ―Now I live on a Painful Planet‖ Frida Kahlo Revisited, p. 78. 63Urania Peres, Frida Kahlo: Dor e Arte, p. 15. 64Idem, ibidem, p. 14.

Page 36: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTESrepositorio.ul.pt/bitstream/10451/6618/2/ULFBA_TES463.pdf · sugerindo que todo o ser humano possui um potencial criador educável,

28

é toda a sua força e toda a sua fraqueza, e que faz com que se dedique de corpo e alma ao

homem que escolheu‖65

.

O sofrimento chega a Frida também por Diego e pelas suas inúmeras traições: ―O

amor que ela sente por Diego não é um luxo, mas uma necessidade, e ama-o como só as

mulheres sabem fazê-lo, mais que a ela mesma, mais que a seu amor-próprio‖66

Acabam por divorciar-se em 1939, após mais uma das traições de Diego, desta feita

com a irmã de Frida, Cristina.

Este acontecimento somado aos sucessivos abortos, devidos às suas limitações físicas,

fizeram-na entrar num estado de desespero que tornava a sua vida insuportável, como declara

numa carta escrita a António Rodriguez:

Não tenho palavras para descrever-te o que tenho sofrido. Tu sabes quanto amo a Diego

e compreenderás que esses problemas nunca desaparecerão de minha vida. Depois da

última briga que tive com ele (por telefone, pois não o vejo há quase um mês) dei-me

conta que abandonar-me foi o melhor para ele (...). Agora sinto-me tão mal e só que não

creio que pessoa alguma no mundo haja sofrido como eu, mas certamente será diferente

dentro de alguns meses.67

As suas mazelas físicas unidas ao sofrimento a que Frida se permitia abraçar perante a

relação que desenvolvia com Diego, faziam-na entrar numa espiral de dor da qual não

conseguia sair:

―Sufría. Y además me sentía culpable de sufrir, porque ese sufrimiento era indigno de

alguien que pretendía tener ideas liberales. Era un círculo vicioso del que no podía salir.‖68

Toda essa amálgama de dor quase se toca nas suas pinturas, como se pode observar

nas figuras 11 e 12.

65Le Clézio, Diego et Frida, p.110: ―Un sentiment violent, impérieux, intransigeant, qui est à la fois toute sa force et tout sa faiblesse, et qui la fait se consacrer corps et âme à l'homme qu'elle a choisi". 66Idem, ibidem, p.202: "L'amour qu'elle ressent pour Diego n'est pas un luxe, mais une nécessité, et qu'elle l'aime comme

seules les femmes savent le faire, plus qu'elle-même, plus que son amour-propre". 67Frida Kahlo cit. Por Urania Peres, Op.Cit., p.15. 68Frida Kahlo cit. por Rauda Jamis, Op.Cit..

Page 37: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTESrepositorio.ul.pt/bitstream/10451/6618/2/ULFBA_TES463.pdf · sugerindo que todo o ser humano possui um potencial criador educável,

29

Figura 11. Frida Kahlo. Henry Ford Hospital o La cama volando,

1932. Óleo sobre metal, 31x35cm .

Colecção Dolores Olmedo.

Figura 12. Frida Kahlo. La columna rota, cerca de

1944. Óleo sobre molde de gesso com correias.

Museu Frida Kahlo

Buscava formas de fuga à dor, e a pintura completava-a: ―La pintura me completó la

vida. Perdi trés hijos y otra serie de cosas que hubieran llenado mi vida horrible‖69

, mas o

álcool começa a acompanhá-la de uma forma preocupante, como Henriette Begun escreveu

num dos seus relatórios médicos: ―O desespero dela está a levá-la a beber muito‖70

.

Há registos que escondia bebida em frascos de perfume, que transportava consigo na

tentativa de beber sem ser notada71

, mas viria depois a assumir esse comportamento de forma

aberta:

Bebía mucho, salvo cuando estuve en el hospital, por los colibacilos. Mucho: nunca rodé

por el suelo y tampoco conté las copas. Pero sin duda eso no quiere decir nada: el

alcohol marca de modo diferente los cuerpos y los espriritus (…) bebí para olvidar

algunas cosas y agudizar otras en mí.72

No entanto não apreciava beber enquanto pintava: ―Nunca he pintado bien cuando

bebo. Nunca he pintado la ebriedad.‖73

Tentava por vezes abrandar o consumo de álcool como manifestou numa carta dirigida

a Ella Wolf, uma amiga:

Puedes decirle a Boit que ya me estoy portando bien, en el sentido de que ya no bebo

tantas ‗copiosas‘…lágrimas de coñac, tequilla, etc., eso lo considero como otro adelanto

69Frida Kahlo cit. por Raquel Tibol, Frida Kahlo: Una vida abierta. 70Cit. por Andrea Kettenmann, Op. cit., p. 52. 71Urania Peres, Frida Kahlo:Dor e Arte. 72Rauda Jamis, Frida Kahlo: autoretrato de una mujer. 73Idem, ibidem.

Page 38: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTESrepositorio.ul.pt/bitstream/10451/6618/2/ULFBA_TES463.pdf · sugerindo que todo o ser humano possui um potencial criador educável,

30

hacia la liberación de las clases oprimidas. Bebía porque quería ahogar mis penas, pero

las malvadas aprendieron a nadar y ahora me abruma la decencia y el buen

comportamiento!74

Neste período da separação de Diego, Frida estava muito deprimida e Diego também

sentia a sua falta. Este afirma: ―A nossa separação estava a ter um efeito prejudicial aos

dois‖75

e voltaram mesmo a casar-se em 1940, com mudanças significativas na vida do casal.

Foram viver para a ‗Casa Azul‘ e aproximou-se um período mais calmo e de maior

maturidade para Frida. Contudo o seu estado de saúde continuava a degradar-se. Várias vezes

a encontraram quase inanimada, várias vezes a escutavam pronunciar ―Un tiempo para

morir‖76

, um tempo para escapar dos seus sofrimentos, da dor, de Deigo, da vida, de si.

Por volta de 1950 a pintora tinha cada vez menos esperanças de melhoras na sua

saúde. As operações à coluna, as promessas dos médicos, a amputação de uma perna, fizeram

Frida entrar num circuito de desespero. Por esta altura Diego afirmou que ―ela tinha perdido a

vontade viver‖77

A 11 de Fevereiro de 1954 escreve no seu diário:

Me amputaron la pierna hace seis meses; me han hecho sufrir siglos de tortura y en

momentos casi perdí la «razón». Sigo queriendo matarme. Diego es el que me detiene,

por mi vanidad que me hace pensar que le hago falta. Me lo ha dicho, y le creo, pero

nunca en la vida he sufrido más. . . esperaré un tiempo. . .78

Muita dor que só acalmava com grandes doses de morfina que um corpo esgotado

tolerava com dificuldade. No fim da sua vida o Demerol juntamente com a bebida,

neutralizava as suas dores físicas e as da alma, criando-lhe uma dependência que a acompanha

até ao fim dos seus dias: ―Bebia demasiado, coñac, brandy, tequilla, kahlúa, o todo mezclado.

Sabía que se hacía daño, pero su desesperación era demasiado grande y ya no quería detener

su engranaje. A las mezclas de alcoholes fuertes sumaba las pastillas, todas las medicinas de

que podía disponer. Y no lo hacía inocentemente: prefería terminar antes que seguir así.‖79

Frida estava rendida, cansada de lutar, sem forças e o que lhe restava de vida era

destruído com o consumo de álcool e drogas depressoras. Não fazia caso de recomendações,

já não tinha vontade de lutar.

74Cit. por Herrera, 2001, p. 171. 75Cit. por Andrea Kettenmann, Op. cit., p.56. 76Cit. por Rauda Jamis, Op.Cit. 77Cit. por Andrea Kettenmann, Op.cit., p. 84. 78Idem, ibidem, p. 204. 79Rauda Jamis, Op. cit.

Page 39: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTESrepositorio.ul.pt/bitstream/10451/6618/2/ULFBA_TES463.pdf · sugerindo que todo o ser humano possui um potencial criador educável,

31

Sí, bebo mucho. Para que mi cabeza flote un poco, y los pensamientos por encima de

ella. El resto de mi cuerpo se impregna de todos los medicamentos posibles para sentirse

menos dolorido. No dejan de recordarme que este tipo de coctel es terriblemente

peligroso. Ya no me interesa la vida, ahora, sólo porque el hilo de mi pensamiento me ata

a ella todavía. Apta solamente para el sufrimiento físico —el que escapa,

desdichadamente, de todo análisis—, el resto ya no me sigue. Entonces, ¿qué importa, a

esta altura, una copa, una pastilla, o que la mezcla de ambas cosas sea demasiado?80

A verdade é que essas substâncias lhe tornavam a existência um pouco mais

suportável. Existência que finda a 13 de Julho de 1954, quando Frida Kahlo foi encontrada

morta na sua cama.

O seu último diagnóstico foi uma embolia pulmonar, ainda que com algumas dúvidas.

A última entrada registada em seu diário: ―Espero a partida com alegria…e espero

nunca mais voltar.‖81

80Cit. por Rauda Jamis, Op.Cit. 81Cit. por Andrea Kettenmann, Op.Cit., p. 84.

Page 40: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTESrepositorio.ul.pt/bitstream/10451/6618/2/ULFBA_TES463.pdf · sugerindo que todo o ser humano possui um potencial criador educável,

32

Capítulo 4

Quando os Olhos tocam e as Mãos vêem”:

discussão de resultados

A escolha de abordar Jackson Pollock e Frida Kahlo nesta investigação não foi

aleatória. Existe uma identificação com certos aspectos da vida e obra de ambos que

estimulou o nascimento e desenvolvimento da série de auto-retratos intitulada ―quando os

Olhos tocam e as Mãos vêem‖, que acompanham a dissertação desta tese teórico-prática. O

nome da série também não foi aleatório. Sugere uma mistura dos sentidos do tacto e da visão

numa busca de entendimento através da contemplação do corpo físico, que se vai

transformando numa interrogação do mundo interior a esse corpo.

A dificuldade que por vezes surge em habitar a realidade é apaziguada através das

ligações que unem o mundo interior ao exterior e ao corpo. Ligações que vivem também na

comunicação libertadora da pintura. O intento de compreensão do Eu por trás do espelho, e

toda a angústia inerente a perguntas sem resposta harmoniza-se nesta forma da comunicação,

com base na aceitação. Esta série de auto-retratos procura uma aceitação da condição do

corpo e do seu lugar no mundo. Pacificando assim o desequilíbrio que por vezes acontece

quando ‗ruídos‘ interferem nas pontes que ligam os dois mundos, e estas ficam interrompidas.

O espelho é um elemento possível para a primeira fase da contemplação. Um diálogo íntimo

com o espelho permite um ponto de partida para um entendimento do corpo físico. Ao mesmo

tempo o espelho permite a pausa necessária para um consequente entendimento do corpo

mental, harmonizando as perturbações que possam surgir no desentendimento de qualquer um

dos corpos e seus universos.

Quando surge alguma resposta pacificadora, cristaliza-se o momento através de

linguagem intencionalmente simbólica. O ‗mundo de fora‘ e o ‗mundo de dentro‘ são

abordados de forma metafórica, num registo pictórico onde a tela é usada como uma pele,

como um corpo, que deixa visíveis as suas feridas e cicatrizes. Elementos aparentemente

vegetalistas surgem em altos-relevos feitos de ‗artérias‘, observe-se como exemplo a

reprodução da pintura ―A Calma do Caos‖ (Figura13) e os detalhes da mesma (Figuras 14 e

15).

Page 41: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTESrepositorio.ul.pt/bitstream/10451/6618/2/ULFBA_TES463.pdf · sugerindo que todo o ser humano possui um potencial criador educável,

33

Figura 13. Marta Marques. A Calma do Caos, 2011.

Técnica mista sobre tela, 150x150cm.

Figura 14. Detalhe da pintura A Calma do Caos (Fig. 13).

Figura 15. Detalhe da pintura A Calma do Caos (Fig. 13).

Page 42: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTESrepositorio.ul.pt/bitstream/10451/6618/2/ULFBA_TES463.pdf · sugerindo que todo o ser humano possui um potencial criador educável,

34

Os olhos e as mãos são importantes na história que se pretende contar. As janelas e

portas simbolizam as prisões que por vezes surgem nos bloqueios da passagem entre o

‗mundo de fora‘ e o ‗mundo de dentro‘. Observem-se como exemplos as reproduções das

pinturas ―Cicatrizes Privadas‖ (Figura18) e ―Presença Ausente‖ (Figura19). E ainda os

respectivos detalhes (Figuras 16, 17 e 20, 21).

Figura 16. Detalhe da pintura Cicatrizes Privadas

(Fig. 18).

Figura 17. Detalhe da pintura Cicatrizes Privadas

(Fig. 18).

Page 43: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTESrepositorio.ul.pt/bitstream/10451/6618/2/ULFBA_TES463.pdf · sugerindo que todo o ser humano possui um potencial criador educável,

35

Figura 18.

Marta Marques. Cicatrizes Privadas, 2011.

Técnica mista sobre tela, 175x80cm.

Page 44: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTESrepositorio.ul.pt/bitstream/10451/6618/2/ULFBA_TES463.pdf · sugerindo que todo o ser humano possui um potencial criador educável,

36

Figura 19.

Marta Marques. Presença Ausente, 2011. Técnica mista sobre tela, 175x80cm.

Page 45: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTESrepositorio.ul.pt/bitstream/10451/6618/2/ULFBA_TES463.pdf · sugerindo que todo o ser humano possui um potencial criador educável,

37

Figura 20. Detalhe da pintura Presença Ausente

(Fig. 19).

Figura 21. Detalhe da pintura Presença Ausente

(Fig. 19).

O corpo é o elemento central das histórias que a pele das telas conta. É a afirmação

desse ‗estar aí‘, desse desejo de sentir. As mãos percorrem o corpo das telas, como num

acarinhamento. As pinturas resultam muito matéricas, com baixos e altos-relevos que

permitem ao toque identificar as formas. Há vazios preenchidos e vazios por preencher num

jogo entre a bidimensionalidade e a tridimensionalidade com a intenção de permitir ao tacto

uma identificação singular e individual da visão. Veja-se a reprodução da pintura ―Tenho uma

Estranha por Dentro‖ (Figura 22) e seus detalhes (Figuras 23 e 24)

Page 46: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTESrepositorio.ul.pt/bitstream/10451/6618/2/ULFBA_TES463.pdf · sugerindo que todo o ser humano possui um potencial criador educável,

38

Figura 22. Marta Marques. Tenho uma Estranha por Dentro, 2011.

Técnica mista sobre tela, 175x80cm

Page 47: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTESrepositorio.ul.pt/bitstream/10451/6618/2/ULFBA_TES463.pdf · sugerindo que todo o ser humano possui um potencial criador educável,

39

Figura 23.

Detalhe da pintura Tenho uma Estranha por Dentro (Fig. 10).

Figura 24.

Detalhe da pintura Tenho uma Estranha por Dentro (Fig. 10).

Esta série funciona como um processo e não como um produto acabado, ainda que

nesse processo existam unidades separadas que se podem considerar acabadas. É um

caminho, um percurso, onde a única meta é uma busca de entendimento das interferências que

habitam os dois palcos, o interno e o externo, do mesmo teatro que neste contexto representa a

existência do corpo.

É uma meta sem destino nem fim, traduzida por um impulso de assimilar as

experiências exteriores para o mundo interior, e ao mesmo tempo transpor as imagens que

surgem do interior para o mundo material, o palco que se conhece como ‗realidade concreta‘.

Nunca poderá ter fim pois a busca de entendimento vive no indivíduo e caminha a seu lado,

juntamente com a Pintura, sempre e quando este viver em ambos os mundos. É como uma

troca onde prevalece o sentido de subjectividade do mundo interior, mas ao mesmo tempo

tenta alcançar uma objectividade harmoniosa para o mundo tal como nos é apresentado.

Page 48: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTESrepositorio.ul.pt/bitstream/10451/6618/2/ULFBA_TES463.pdf · sugerindo que todo o ser humano possui um potencial criador educável,

40

Sendo o corpo o centro de toda essa busca, dessa experiência do ‗sentir‘, desse ‗estar no

mudo‘ e interagir com ele.

É nesta forma de ‗alívio‘ no auto-conhecimento que esta série de auto-retratos se

identifica com os trabalhos de Pollock e Frida. Ambos ‗conversaram‘ com telas e tintas,

ambos se perderam e se (re) encontraram na pintura, ambos procuraram alívio da dor, da

confusão, do desespero em coisas exteriores a eles. Ambos olharam para dentro: a Frida mais

objectiva, direccionado o observador para o que queria ‗gritar‘ e Pollock mais abstracto e

movimentado, dispersando o olhar do observador permitindo-lhe criar as suas próprias

histórias.

O comum? Ambos pintaram de dentro para fora.

Page 49: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTESrepositorio.ul.pt/bitstream/10451/6618/2/ULFBA_TES463.pdf · sugerindo que todo o ser humano possui um potencial criador educável,

41

Bibliografia

BAUDELAIRE, Charles (2010) Os Paraísos Artificiais. Lisboa: Editorial Estampa Lda.

BENJAMIN, Walter (2010) Sobre o Haxixe e outras drogas. Lisboa: Assírio & Alvim.

BILLETER, Erika (1993) The blue house: the world of Frida Kahlo. Houston: University of

Washington Press in association with Museum of Fine Arts.

CAMERON, Julia (2002) The Artist's Way: A Spiritual Path to Higher Creativity. New York:

Jeremy P. Tarcher Putnam.

CERNUSCHI, Claude (1993) Jackson Pollock, Meaning and Significance. New York: s.e.

CERNUSCHI, Claude (1999) Jackson Pollock: Psychoanalytic Drawings. London: s.e.

CSIKSZENTMIHALYI, Mihaly (1996) Creativity: Flow and the Psychology of Discovery

and Invention. New York: Harper Collins

DACEY, John S. (1989) Fundamentals of Creative Thinking. Lexington: Lexington Books

DACEY, John S. & LENNON, Kathleen H. (1989) Understanding Creativity, San Francisco:

CA: Jossey-Bass Publishers.

EMMERLING, Leonhard (2004) Jackson Pollock, s.l.: Taschen.

ESPINHO, Rute Patrícia e SOUSA, Fernando Cardoso (2001) ―Criatividade e antecedentes ao

consumo de drogas‖ Analise Psicológica nº3, XIX, Julho-Setembro, pp. 389-398.

Lisboa: Editores Distribuidores e Livreiros Lda.

GARDNER, Howard (1993) Creating Minds, New York: BasicBooks.

GOODING, Mel (2002) Movimentos de Arte Contemporânea: Arte Abstracta. Lisboa:

Editorial Presença.

HERRERA, Hayden (1995) ―Bela para sua Fera: Frida Kahlo e Diego Rivera‖ in Amor &

Arte: duplas amorosas e criatividade artística, Rio de Janeiro: Zahar, pp. 101-112.

HERRERA, Hayden (2001) Frida: una biografia de Frida Kahlo. México: Diana.

JAMIS, Rauda (1987) Frida Kahlo: autoretrato de una mujer. México: Edivisión Compañia

Editorial.

KAHLO, Frida (1996) O diário de Frida Kahlo: um auto-retrato íntimo. Rio de Janeiro:

J.Olympio.

KARMEL, Pepe; VARNEDOE, Kirk (1999) ―Jackson Pollcok: Interviews, Articles, and

Reviews.‖ In MOORHEAD, Jasmine (ED.) Jackson Pollock. New York: the

Department of Publications, The Museum of Modern Art, the Pollock-Krasner

Foundation (ARS).

KETTENMANN, Andrea (1994) Frida Kahlo, 1907-1954: dor e paixão. S.l.: Taschen.

KRIPPNER, S. (1999) ―Altered and transitional states‖ in Encyclopedia of creativity, vol.1.

New York: Academic Press, pp. 59-70.

LE CLÉZIO, J.M.G. (1993) Diego et Frida. Paris: Stock.

LEWINSON, Jeremy (1999) Interpreting Pollock. London: s.e..

MANN, K. H. D. & HEINZ, A. (2000) ―One Hundred Years Of Alcoholism: The Twentieth

Century‖ Alcohol & Alcoholism, vol. 35, pp. 10-15.

MELLO, Mª Lucília Mercês, BARRITAS, José, BREDA, João (2001) Álcool e problemas

ligados ao álcool em Portugal. Lisboa: Direcção Geral de Saúde.

MILHEIRO, Jaime (1999) Loucos são os Outros. Lisboa: Edições Asa.

Page 50: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTESrepositorio.ul.pt/bitstream/10451/6618/2/ULFBA_TES463.pdf · sugerindo que todo o ser humano possui um potencial criador educável,

42

PERERA, R. (1976) Fenomenologia paranormal en la inspiracíon artística, IV Congresso

Internacional INSEA-UNESCO. Madrid, 23 de Novembro de 1976.

PERES, Urania Tourinho, ―Frida Kahlo: Dor e Arte‖, [Consult. 2011-05-23]. Disponível em:

URL: http://www.estadosgerais.org/terceiro_encontro/peres-kahlo.shtml

PESCHEL, Enid Rhodes (1974) ―Arthur Rimbaud: The Aesthectics of Intoxication‖ Yale

French Studies, nº50, Intoxication and Literature, pp. 64-80.

PLESSIX, Francine, GRAY, Cleve (1967) interview with Lee Krasner ―Who was Jackson

Pollock?‖ Art in America, Vol. 55, nº3, pp.48-51.

PLUCKER, J.A. & DANA R. Q. (1999) ―Drugs and Creativity‖ in Encyclopedia of creativity,

vol.1. New York: Academic Press, pp. 607-611.

PRITZKER, S. R. (1999) ―Alcohol and creativity‖, in Encyclopedia of creativity, vol. 1. New

York: Academic Press, pp. 53-57.

REGO, Paula e MELO, João (2007) O Vinho. Lisboa: Publicações Dom Quixote.

RIMBAUD, Jean-Arthur (2007) Iluminações uma Cerveja no Inferno. Lisboa: Assírio &

Alvim.

RIVERA, Tania (2005) Guimarães Rosa e a Psicanálise: ensaios sobre a imagem e a escrita.

Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

RIVIERA, J.L. Gonzalez (1978) ―Creatividad y estados de conciencia‖ Revista de Psicologia

General Y Aplicada nº33, pp. 415-426.

RIVIERA, J.L. Gonzalez (1983) ―Las psicosis creativas. Un estudio de la experiencia

psicótica en la investigación científica‖ Piquis nº4, pp. 54-60.

ROTHENBREG, Albert & HAUSMAN, Carl (1976) The Creativity Question. Durham NC:

Duke University Press.

RUNCO, Mark A. & PRITZKER, Steven A. (1999) Encyclopedia of Creativity vol.2. New

York: Academic Press.

STEIN, Morris I. (1974/5) Stimulating Creativity, Volume I/II: Individual Procedures. New

York: Academic Press.

STERNBERG, Robert J. (1999) Handbook of Creativity. Cambridge UK: Cambridge

University Press.

SEQUEIRA, J. P. (2006) As origens psicológicas da toxicomania. Lisboa: Climepsi.

ZAMORA, Martha (1999) Cartas apaixonadas de Frida Kahlo. Rio de Janeiro: J. Olympio.

ZAMORA, Martha (1990) Frida Kahlo: the brush of anguish. San Francisco: Chronicle

Books.

ZARZYCKA, Marta (2006) ''Now I Live on a Painful Planet'', Third Text, 20: 1, 73 — 84

[Consult. 2011-05-23]. Disponível em: URL:

http://dx.doi.org/10.1080/09528820500472555