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Universidade de Brasília UnB Instituto de Ciências Humanas IH Departamento de Serviço Social SER Trabalho de Conclusão de Curso Orientadora: Profª Drª Rosa Helena Stein Discente: Thaís Caroline Sena de Oliveira REDUZIDOS ÍNDICES DE EVASÃO E REINCIDÊNCIA CRIMINAL NO DISTRITO FEDERAL: O PAPEL DO SERVIÇO SOCIAL DA SEÇÃO PSICOSSOCIAL DA VARA DE EXECUÇÕES PENAIS SEGUNDO OS USUÁRIOS E AS ASSISTENTES SOCIAIS Brasília - Julho de 2009.

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Universidade de Braslia UnB

Instituto de Cincias Humanas IH Departamento de Servio Social SER

Trabalho de Concluso de Curso Orientadora: Prof Dr Rosa Helena Stein Discente: Thas Caroline Sena de Oliveira

REDUZIDOS NDICES DE EVASO E REINCIDNCIA CRIMINAL NO DISTRITO FEDERAL: O PAPEL DO SERVIO SOCIAL DA SEO

PSICOSSOCIAL DA VARA DE EXECUES PENAIS SEGUNDO OS USURIOS E AS ASSISTENTES SOCIAIS

Braslia - Julho de 2009.

Universidade de Braslia UnB

Instituto de Cincias Humanas IH Departamento de Servio Social SER

Trabalho de Concluso de Curso Orientadora: Prof Dr Rosa Helena Stein Discente: Thas Caroline Sena de Oliveira

REDUZIDOS NDICES DE EVASO E REINCIDNCIA CRIMINAL NO DISTRITO FEDERAL: O PAPEL DO SERVIO SOCIAL DA SEO

PSICOSSOCIAL DA VARA DE EXECUES PENAIS SEGUNDO OS USURIOS E AS ASSISTENTES SOCIAIS

Trabalho de Concluso de Curso apresentada ao Departamento de Servio Social - SER, da Universidade de Braslia UnB, como requisito para a obteno do grau de Assistente Social.

.

Braslia - Julho de 2009.

Oliveira, T. C. S.. Reduzidos ndices De Evaso E Reincidncia Criminal No

Distrito Federal: O Papel Do Servio Social Da Seo Psicossocial Da Vara De Execues Penais Segundo Os Usurios E As Assistentes Sociais / Thas Caroline Sena de Oliveira. Braslia, 2009.

Trabalho de Concluso de Curso Universidade de Braslia, Departamento de Servio Social, 2009.

Orientadora: Dr. Rosa Helena Stein.

THAS CAROLINE SENA DE OLIVEIRA

REDUZIDOS NDICES DE EVASO E REINCIDNCIA CRIMINAL NO DISTRITO FEDERAL: O PAPEL DO SERVIO

SOCIAL DA SEO PSICOSSOCIAL DA VARA DE EXECUES PENAIS SEGUNDO OS USURIOS E AS ASSISTENTES SOCIAIS

Trabalho de Concluso de Curso apresentada ao Departamento de Servio Social SER, da Universidade de Braslia UnB, como requisito para a obteno do grau de Assistente Social.

Banca Examinadora:

_________________________ Professora orientadora: Dr Rosa Helena Stein

__________________________ Professora: Daniela Neves de Sousa

__________________________ Joselito da Silva Pacheco

Braslia, 15 de julho de 2009.

DEDICATRIA

Dedico esta monografia a minha famlia, pela dedicao e compreenso ao longo desta jornada acadmica.

Dedico tambm a todos os meus amigos que souberem ser gentis e companheiros, sempre com palavras de incentivo e apoio.

Com carinho especial, dedico a todas s flores da turma de Servio Social do primeiro semestre de 2006.

AGRADECIMENTOS

Professora e amiga Rosa Helena Stein por ter me guiado durante toda a

execuo do curso de Servio Social com momentos de aprendizagem, inspirao e

confraternizao.

Aos gentis membros da banca examinadora, Professora Daniela Neves de Sousa

e Sr. Joselito da Silva Pacheco, pela rica contribuio a este estudo.

s amveis profissionais da Seo Psicossocial da Vara de Execues Penais,

em especial as quatro Assistentes Sociais que atenciosamente se dispuseram a participar

desta pesquisa, contribuindo imensamente com suas impresses.

Especialmente, agradeo aos usurios da SEVEP pela disposio de serem

entrevistados e poderem compartilhar um pouquinho de suas histrias.

A todos que direta ou indiretamente contriburam para que todo este esforo

pudesse se tornar concreto, o meu muito obrigada!

RESUMO

O Servio Social no espao scio-jurdico data da gnese da prpria profisso. A

atuao de Assistentes Sociais junto a sentenciados e familiares no mbito do Poder

Judicirio do Distrito Federal iniciou-se em 1987 com a edio da Portaria interna n 03

que criou a Seo Psicossocial da Vara de Execues Criminais SEVEC. Com o

objetivo de preparar o apenado para o retorno ao convvio social, uma equipe composta

por Assistentes Sociais, Pedagoga, Psiclogas requisitada a subsidiar a deciso de

magistrados por meio da elaborao de relatrios sociais. A partir disso, como forma de

identificar as percepes consolidada dos atores componentes desses servios, esta

pesquisa buscou analisar de que maneira assistentes sociais e usurios compreendiam a

interveno profissional do Servio Social para os reduzidos ndices de reincidncia e

fuga no Distrito Federal. Nessa perspectiva, inicialmente, foram analisados 90 relatrios

do trinio 2006-2008 com vistas a traar um perfil dos usurios; posteriormente, foram

realizadas quatro entrevistas com Assistentes Sociais e quatro entrevistas com

familiares de sentenciados atendidos na Seo com o objetivo de permitir a livre

expresso acerca da temtica.

PALAVRAS-CHAVE: ndice de evaso; ndice de reincidncia criminal; Servio

Social no campo scio-jurdico; percepes dos usurios; percepes das Assistentes

Sociais.

ABSTRACT

The Social Work practice in the Social-judicial field dates of genesis of the

profession itself. The work of Social Workers with sentenced people and their families

started in 1987 with the edition of Ordinance n 03 that created the Psicossocial of Court

of Criminal Execution. In order to prepare the prisoner to return to the society, a staff

made by Social Workers, Psychologists and Pedagogues was ordered to subsidize

judicial decisions. From that point and observing the necessity of identification the

perceptions of users and social workers about their comprehension of professional

intervention of Social Work to the reduced score of reconviction and tax evasion in

Distrito Federal. About methodology, it is been analyzed 90 reports signed by social

workers in 2006, 2007 and 2008 with the objective to specify a prisoner profile; then,

four interviews with social workers and four interviews with users attended in the

Section was processed in order to allow the free expression of the participants about the

thematic.

KEY-WORDS: Tax evasion; score of reconviction; Social Work practice in the Social-

judicial field; perception of users; perception of social workers.

LISTA DE SIGLAS

CAJE - Centro de Atendimento Juvenil Especializado

CAPS - Centro de Apoio Psicossocial

CFESS - Conselho Federal de Servio Social

CIR - Centro de Internao e Reeducao

CP - Cdigo Penal Brasileiro

CPI - Comisso Parlamentar de Inqurito

CPP - Centro de Progresso Penitenciria

CRESS - Conselho Regional de Servio Social

DEPEN - Departamento Penitencirio Nacional

EAPE - Equipe de Estudos e Acompanhamento de Presos e Egressos

ECA - Estatuto da Criana e Adolescente

FHC - Fernando Henrique Cardoso

FUNAP - Fundao de Amparo ao Trabalhador Preso

GDF - Governo do Distrito Federal

IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

IML - Instituto Mdico Legal

INFOPEN - Sistema de Informaes Penitencirias

IPEA - Instituto de Pesquisa Econmica e Aplicada

LEP - Lei de Execues Penais

LOAS - Lei Orgnica de Assistncia Social

MPDFT - Ministrio Pblico do Distrito Federal e Territrios

PDRE/MARE - Plano Diretor da Reforma do Estado

PEA - Populao Economicamente Ativa

PTR - Programa de Transferncia de Renda

SESIPE - Subsecretaria de Sistema Penitencirio

SEVEP - Seo Psicossocial da Vara de Execues Penais

STF - Superior Tribunal Federal

STJ - Superior Tribunal de Justia

TCLE - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

TJDFT - Tribunal de Justia do Distrito Federal e Territrios

UnB - Universidade de Braslia

VEP - Vara de Execues Penais

VEPEMA - Vara de Execues de Penas e Medidas Alternativas

SUMRIO

INTRODUO.................................................................................................................

01

1. UMA ABORDAGEM SOBRE A FAMLIA................................................................ 07

1.1 Informalidade e Desemprego Estrutural: A Nova Configurao do Trabalho............ 09

1.2 Polticas Sociais Brasileiras E A Sua Configurao Neoliberal.................................. 13

1.3 Violncia e a Culpabilizao dos Sujeitos...................................................................

15

2. DO ESTADO SOCIAL AO ESTADO PENAL ..........................................................

19

2.3 Ensaio sobre uma Instituio Total: a Priso...............................................................

23

3. JUDICIRIO: CONTEXTO E ESTRUTURA............................................................. 28

3.1 O Tribunal de Justia do Distrito Federal e Territrios...............................................

31

4. SERVIO SOCIAL NO ESPAO SOCIOJURDICO.................................................

33

4.1 Processos de Trabalho na Seo Psicossocial da Vara de Execues Penais..............

37

5. UM OLHAR MAIS PROFUNDO SOBRE O OBJETO DE PESQUISA: A

REINCIDNCIA CRIMINAL E A EVASO..................................................................

43

ANLISE DE DADOS .................................................................................................... 51

Configurao Dos Usurios Da SEVEP............................................................................ 51

As Observaes..................................................................................................................

58

As Entrevistas.....................................................................................................................

63

CONSIDERAES FINAIS............................................................................................ 73

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.............................................................................. 75

ANEXOS............................................................................................................................

80

1

INTRODUO

O Judicirio historicamente uma instituio ligada ao controle social

promovido pelo Estado, inserido no modo de produo capitalista como aparato legal

para legitimao deste: na sociedade capitalista, o reino da mercadoria desdobra-se no

circuito das relaes contratuais, exigindo um conjunto de cdigos que formalizam e

institucionalizam as relaes de propriedade, grifos da autora (IAMAMOTO,

2004:278). Desta forma, Souza (2004) ressalta a funo social do poder judicirio, qual

seja a prestao de servios jurisdicionais e interpretao na aplicabilidade da lei,

objetivando a resoluo de conflitos e dissdios entre os cidados, entre os cidados e o

Estado e no seu interior do ponto de vista crtico, preciso compreender essa

(des)funo social a partir da prpria interpretao do direito positivista alienado vida

real, ao histrico-estrutural. Segundo essa anlise, Iamamoto (2004) citando Fvero

identifica a contradio de dois papis desempenhados pelo Poder Judicirio: o primeiro

de natureza punitiva, essencialmente dirigido aos setores marginalizados da sociedade; e

o segundo de natureza distributiva, que implica na vontade poltica da adoo de

critrios compensatrios e protetores para esses setores, tais como a instituio de

padres mnimos de eqidade, integrao e coeso social. Alia-se a esse entendimento a

insero do Servio Social que inicialmente adotou o conservadorismo do direito em

suas intervenes.

A atuao do Servio Social junto ao Poder Judicirio confunde-se com a

prpria gnese da profisso. As primeiras intervenes da categoria em Fruns,

comarcas e corregedorias foram observadas nos estados de Rio de Janeiro, So Paulo,

Esprito Santo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Paran, Pernambuco, Gois e Distrito

Federal no final da dcada de 1930. Os assistentes sociais foram requisitados para

subsidiar as decises judiciais junto s Varas de Famlia, de rfos e Sucesses, de

Execues Criminais e dos Juizados Especiais Cveis e Criminais. Segundo Souza

(ibidem), a insero do Servio Social no Poder Judicirio sucedeu-se, por um lado,

devido a complexificao das relaes sociais impostas pelo capital, ao prprio poder, e,

por outro, em virtude do movimento da profisso em busca de seu reconhecimento por

meio da renovao de prticas e do aspecto criativo de novas estratgias. De acordo

com o autor, o Servio Social foi, provavelmente, a primeira profisso de conhecimento

2

no-jurdico ou para-jurdicas a ser inserida nos tribunais tanto brasileiros quanto

internacionais. (SOUZA, 2004).

O incio da atuao dos Assistentes Sociais no Poder Judicirio do Distrito

Federal caracterizado por dois aspectos: o primeiro de cunho histrico-processual

coincide com o movimento de redemocratizao do pas que teve como marco a

Constituio de 1988 na qual a justia social referendada por meio da aplicao dos

direitos sociais. Nessa perspectiva cabe ao judicirio a garantia desses direitos no

somente aos cidados de modo genrico, mas para os seus prprios servidores que

concebidos como sujeito de direitos, demandam deste poder todo um aparato jurdico-

legal que viabilizem a sua efetivao. O segundo movimento, considerando a conjuntura

poltica, o de reflexo crtica no interior da prpria profisso iniciada em meados da

dcada de 1960 em toda Amrica Latina. Tal movimento intensificado nacionalmente

a partir do fim da dcada de 1970, quando h uma desmistificao do messianismo

gestado na categoria, em prol de um novo paradigma que pregava a atuao profissional

com base na ao revolucionria ligada aos movimentos sociais e que negava o espao

institucional como campo de interveno, caracterizando-o como mero reprodutor da

ordem capitalista vigente (SOUZA, 2004).

Para Iamamoto (2004) o trabalho do Servio Social compreendido a partir de

seu objeto de interveno, qual sejam as expresses fenomnicas da questo social.

Com base na compreenso do modo de produo capitalista, da sua relao primer entre

capital-trabalho, ou seja, a expropriao dos meios de produo da coletividade e a

apropriao privada da atividade ontolgica do ser social, o trabalho, que se faz

possvel a sinalizao de algumas expresses da questo social manifestas que se

encontram margem dessa relao dialtica, so elas: as desigualdades econmicas,

polticas e culturais de classe. Ainda nessa perspectiva, todo o aparato ideolgico

hegemnico de naturalizao da pobreza e da violncia social, desconstruindo qualquer

anlise histrica, traz consigo a perversa criminalizao da questo social, encarada

como caso de polcia. A autora entende, ento, que a atuao do assistente social

nesse campo tem como desafio o desvelamento do modo de vida, cultura, padres de

sociabilidade, necessidades desses sujeitos que demandam os servios jurdicos como

ltima instncia de resoluo dos conflitos uma vez que a busca pela proteo judicial

tem lugar quando todos os demais recursos so exauridos (IAMAMOTO, 2004: 283).

3

Retomando a anlise de Souza das condies scio-histricas da atuao do

Servio Social no Distrito Federal, o autor faz uma distino entre os assistentes sociais

que atuam nas reas ditas meio, que so atividades tcnico-adiministrativas

caracterizadas pela execuo de benefcios e programas assistenciais voltados para o

bem-estar dos servidores; e nas reas-fim, apoio tcnico-judicirio caracterizado pelo

trabalho em setores psicossociais. No primeiro caso, a insero profissional se d junto

a Sees de Assistncia ou Servio Social, caracterizadas pela subordinao a sees

nas reas de sade, recursos humanos ou de benefcios assistenciais. A demanda por

esses servios poder ser considerada interna na medida em que somente servidores,

magistrados e dependentes tm acesso. O autor avalia que esse tipo de atuao vincula-

se a um baixo nvel hierrquico na medida em que poucos so os assistentes sociais que

alam cargos de chefia ou, mesmo, esto subordinados a outras sees chefiadas por

mdicos, administradores e psiclogos. Nos setores psicossociais, a insero

profissional est pautada na natureza de conflitos e dissdios que chegam ao Tribunal

por intermdio das varas e juizados. Seus usurios, diferentemente das reas-meio, so

sujeitos externo-institucional, como adolescentes em conflito com a Lei, adultos que

cometeram crimes, adultos com transtornos psiquitricos que cometeram um crime,

entre outros (SOUZA, 2004).

Nessa perspectiva, entre as possveis inseres em setores psicossociais, a

atuao do Servio Social na Seo Psicossocial da Vara de Execues Penais SEVEP

visa o atendimento a demandas externas ao Tribunal advindas de conflitos e dissdios

encaminhados a Vara de Execues Penais em que se impe uma pena privativa a

liberdade, livramento condicional1 ou medida de segurana2. No Projeto de Interveno

1 Art. 83 do Cdigo Penal Brasileiro (1984) prev que o livramento condicional ser concedido condenado a pena privativa de liberdade igual ou superior a 2 (dois) anos, desde que:

I - cumprida mais de um tero da pena, no sendo reincidente em crime doloso e tendo bons antecedentes;

II - cumprida mais da metade se o condenado for reincidente em crime doloso; III - comprovado comportamento satisfatrio durante a execuo da pena, bom desempenho no

trabalho que lhe foi atribudo e aptido para prover prpria subsistncia; IV - tenha reparado, salvo efetiva impossibilidade de faz-lo, o dano causado pela infrao; V - cumprido mais de dois teros da pena, nos casos de condenao por crime hediondo, prtica

da tortura, trfico ilcito de entorpecentes e drogas afins, e terrorismo, se o apenado no for reincidente especfico em crimes dessa natureza.

2 A medida de segurana atribuda ao agente considerado inimputvel - aquele que por anomalia psquica ou retardo mental no pode responder por si judicialmente. O juiz determinar sua internao ou

4

da ento equipe de Estudos e Acompanhamento de Presos e Egressos EAPE (hoje

denominada como Equipe de Acompanhamento s Penas Restritivas de Liberdade),

afirma-se que o objetivo da interveno minimizar a perda de benefcios concedidos,

por meio de estratgias de acompanhamento aos sentenciados e egressos do Sistema

Penitencirio do Distrito Federal, evitando, assim, a reincidncia penal. Tendo em vista

que para alm da reduo da reincidncia penal, a diminuio dos ndices de foragidos

tambm pode ser considerado outro aspecto desse objetivo visto que sendo as Sadas

Especiais3 um benefcio concedido, em que seus dados sobre foragidos so fontes

importantes para implementao de novas polticas pblicas este estudo props-se a

analisar em que medida a atuao do Assistente Social contribui para os reduzidos

ndices de foragidos e ndices de reincidncia no Distrito Federal.

Uma primeira justificativa para a execuo deste estudo que, apesar da

interveno do Servio Social no espao scio-jurdico4 ser uma das suas primeiras

formas de atuao da profisso, consensual que, diferentemente de outras produes a

cerca das prticas profissionais tidas como clssicas profisso especificamente as

relacionadas s polticas sociais , estudos sobre a temtica sociojurdica so muito

reduzidos, ou mesmo a sua publicizao por meio de livros, revistas e artigos ainda

incipiente.

A problematizao do debate sobre essa rea de atuao ainda restringe-se ao

Servio Social nas Varas de Famlia inicial campo para assistentes sociais no Poder

seu tratamento ambulatorial, quando o fato previsto como crime for punvel com deteno. A internao, ou tratamento ambulatorial, ser por tempo indeterminado, perdurando enquanto no for averiguada, mediante percia mdica, a cessao de periculosidade. O prazo mnimo dever ser de 1 (um) a 3 (trs) anos (CDIGO PENAL, 1940).

3 Sada Especial um benefcio concedido aos internos que preencham os requisitos elencados no artigo 123 da Lei de Execuo Penal, quais sejam: comportamento adequado; cumprimento mnimo de 1/6 da pena, se o condenado for primrio, e 1/4, se reincidente; e compatibilidade do benefcio com os objetivos da pena, alm de outros que possam vir a ser determinados. No Distrito Federal, a execuo penal conta com seis sadas especiais para feriado: Pscoa, Dia das Mes, Dia dos Pais, Dia das Crianas, Natal e Ano Novo.

4 Segundo Iamamoto (2004), por scio-jurdico entende-se as atuaes da profisso junto s instituies do Poder Judicirio strito sensu - Tribunais de Justia e suas instncias e junto a instituies que realizam medidas emanadas desse poder, como as medidas protetivas ou scio-educativas, em presdios e ainda Conselhos de Direito e Conselhos Tutelares.

5

Judicirio visto que as novas perspectivas sobre famlia, ps-expanso dos direitos

sociais, advento de um processo de luta pela redemocratizao nacional e queda da

ditadura alm do processo de crtica do Servio Social latino-americano, prescindiram

de tal instrumentalizao para a profisso. O novo ordenamento sciojurdico expresso

pela Constituio de 1988, bem como por outros mecanismos legais como o Estatuto da

Criana do Adolescente e a Lei Orgnica da Assistncia Social legitimaram o exerccio

do poder por novos atores sociais, o que Bruno apud Valente (2006) analisa como a

horizonatalizao em detrimento da hierarquizao das relaes sociais, estando assim

mais pessoas aptas a litigiar. O Poder Judicirio como resposta a essa conjuntura

demanda a atuao do Servio Social na realizao de estudo social para entendimento

da complexidade dessa famlia contempornea.

Para alm das poucas pesquisas nessa tradio judiciria da execuo penal, o

impacto dessa insero profissional ainda no objeto desses parcos estudos.

Contempla-se as mediaes desse trabalho, seus processos e a relao entre teoria-

prtica, porm desvincula-se a contribuio efetiva para os usurios a curto e a longo

prazo. Consensualmente, tem-se o reconhecimento sobre a importncia da interveno

do Servio Social no que diz respeito aos aspectos de subsdios s decises judiciais e

tambm como mecanismo de suporte institucionalizao dos dissdios. Entretanto,

preciso identificar como o usurio dos servios compreende a atuao do assistente

social, de que forma ele a percebe e reconhece a contribuio para o seu

desenvolvimento como sujeito de direitos.

Para abarcar o tema, esse estudo est dividido em cinco captulos, assim

estabelecidos: o primeiro tratar sobre a questo da famlia contempornea a partir da

perspectivas das alteraes que a ordem neoliberal impe a esse ator; o segundo

captulo diz respeito a passagem de um Estado Social para um Estado Penal; o terceiro

captulo visa abarcar o espao institucional onde se procede este estudo por meio da

compreenso, primeiramente, do Poder Judicirio a que o Tribunal de Justia do

Distrito Federal est submetido; o trabalho do Servio Social na Seo Psicossocial da

Vara de Execues Penais do Tribunal de Justia do Distrito Federal e Territrio o

foco do quarto captulo; e o quinto e ltimo captulo se prope a analisar o objeto de

pesquisa, qual seja a reincidncia criminal e a evaso penitenciria. Em seguida, so

6

apresentados os dados coletados na Seo Psicossocial da Vara de Execues Penais do

Distrito Federal e as consideraes finais a que esse estudo chegou.

Metodologicamente, esta pesquisa se caracteriza pela anlise quanti-qualitativa

dos dados e tem por base o mtodo materialista histrico-dialtico. Segundo Pires

(1997), esse mtodo apresentado pelo movimento do pensamento atravs da

materialidade histrica da sociedade, em outras palavras, significa descobrir as bases

que definem a forma organizativa dos homens em sociedade atravs da histria. Na

produo de conhecimento cientfico, o mtodo materialista histrico-dialtico

pressupe a superao da dicotomia sujeito e objeto para que se possa compreender a

totalidade da realidade.

Nessa perspectiva de compreenso da totalidade e complexidade do problema, a

presente pesquisa se utilizar de quatro tcnicas utilizadas seqencialmente, a saber:

anlise documental; observao no-participante ou simples; entrevista semi-

estruturada; e entrevista de grupo focal, ou simplesmente grupo focal. No

necessariamente, a ordem das tcnicas seguir a enunciao acima, visto que a anlise

documental ser utilizada em dois momentos distintos que se interpolaro ao incio da

coleta de dados e ao fim.

Enfocando mais nas tcnicas de pesquisas, foram implementadas sete entrevistas

distribudas da seguinte forma: quatro com as Assistentes Sociais da SEVEP, duas com

familiares de sentenciado, uma entrevista de grupo focal. Todas as entrevistas foram

precedidas de um momento de observao dos atendimentos realizados pelas

Profissionais. Como forma de se analisar a configurao dos usurios da Seo

Psicossocial tambm foi realizado um levantamento com 90 relatrios dos ltimos trs

anos de atividade.

7

1. UMA ABORDAGEM SOBRE A FAMLIA

Pensar a atuao do Servio Social no mbito das instituies judicirias tratar

do seu objeto as expresses dos fenmenos da questo social para alm da

abordagem funcionalista: profissional e clientela. No somente nas Varas que atuam

especificamente no trato da famlia Vara da Infncia e Juventude, rfos e Sucesses

e de Famlias mas nas Varas Criminais ou Penais, a interveno junto famlia,

contempla um eixo mais amplo da sociabilidade dos sentenciados, resgatando, assim, a

histria de vida desse sujeito coletivo que expressa, em seu particular, facetas da

realidade social do modo de produo capitalista no seu espectro mais contemporneo, a

reestruturao capitalista.

O neoliberalismo, que ideologicamente d arcabouo a essas mudanas

estruturais do capitalismo, configura-se como uma poltica de ajustes estruturais,

inserida num contexto de ajustes econmico mundiais, fomentada no Consenso de

Washington. Incorporada pelos governos brasileiros a partir da dcada de 1990, com

especial destaque para os governos de Collor, FHC e o atual governo Lula, as polticas

neoliberais promovem a precarizao das condies de trabalho destacando-se a, o

desemprego, o subemprego, a informalidade, e outras expresses que exemplificam o

contexto de desregulamentao dos contratos de trabalho com garantias mnimas de

sustentabilidade do trabalhador.

Uma segunda expresso desse modelo configura-se na reduo a patamares

mnimos de interveno do Estado no campo socioeconmico, incutindo na famlia a

autogesto de suas necessidades. De acordo com Mattoso citado por Fvero (2007),

esses ajustes atingiram as polticas sociais triplamente, a saber:

Primeiro, pela reduo de recursos que acompanhou os diversos ajustes fiscais e deteriorou qualitativa e quantitativamente os servios sociais bsicos, sobretudo nas reas com elevada participao de recursos da esfera federal, como a sade. Segundo, pela reduo do uso de polticas universalistas e pela generalizao do uso de programas sociais extremamente focalizados, sem estratgia, assistencialistas e clientelistas na relao com o pblico-alvo. Terceiro, porque estas mudanas vieram, quase sempre, acompanhadas de propostas de reformas sociais explicitamente privatizantes, favorecidas pela falncia organizada dos servios pblicos (MATTOSO apud FVERO, 2007:07).

8

Em conseqncia desses mecanismos neoliberais, a situao de pobreza

vivenciada por grande parcela da populao tem-se agravado. So milhares de pessoas

que para alm da reduo de suas rendas, se vem desamparados pelo Estado que os

nega o acesso bsico a seus direitos Telles interpreta como condio de privao de

direitos (1992, p. 352). Fvero (2007) apresenta que as condies de pobreza podem

ser entendidas como um conjunto de ausncias de renda, educao, trabalho, moradia e

rede familiar e social de apoio. Concatenando com uma das definies de Lavinas

(2002), pode-se dizer que pobreza um estado de carncia, privao, de no satisfao

de necessidades bsicas que pode colocar em risco a prpria condio humana.

Uma segunda expresso que designa esses sujeitos a excluso social, outro

termo tambm bastante discutido na literatura. Para Paugam (1999), um dos

idealizadores da denominao novas formas da pobreza, excluso social no se

resume carncia de bens materiais, mas tambm remete a idia de status social inferior

e desvalorizado. Segundo Lavinas (2002), excluso implica considerar aspectos

subjetivos, que mobilizam sentimentos de rejeio, perda de identidade, falncia dos

laos comunitrios e sociais, resultando numa retrao das redes de sociabilidade, com

quebra de solidariedade e reciprocidade. Uma terceira interpretao est na viso de

Castel (2003) que prefere a utilizao do termo marginalizao para caracterizar os

desafiliados sociais: indivduos que anteriormente crise da sociedade salarial estavam

integrados, de forma subordinada e dependente, e que agora so populaes

margem (Idem, p.29).

Para alm da conotao estruturante da sociedade capitalista, importante

abordar as mudanas nos padres familiares contemporneos. Fvero (2007), se

utilizando dos estudos de Eric Hobsbawn (1997), faz uma retomada do processo que

culminou com a revoluo cultural, que segundo o historiador pode ser traduzida na

transformao das convenes de comportamento social e pessoal. Uma das

principais peas dessa revoluo so as conquistas femininas do sculo passado, em

especial o direito de ingressar no mercado de trabalho.

O modelo de famlia nuclear burguesa monogmica composta de pai, me e

filhos, em que o primeiro era responsvel pela manuteno da casa inserido no mundo

do trabalho (produo capitalista); e o segundo ator era responsvel pelo trato dos filhos

9

e da casa (reproduo capitalista), vem sendo alterado progressivamente com a mudana

da relao de gneros, o direito ao divrcio, o nascimento de ilegtimos, aumento de

famlias monoparentais (em especial as chefiadas por mulheres) e das unies

consensuais. preciso compreender, porm, que essas mudanas, por vezes, ainda so

analisadas dentro dos padres de anormalidade, desordem e disfuncionalidade em

comparao com o modelo tradicional (FVERO, 2007).

A precariedade das condies de vida contribui cada vez mais para que esses

novos arranjos familiares sejam implementados. A luta pela sobrevivncia dificulta a

conciliao da vida ntima e a adoo de relaes conjugais tendo a criana como

centro. Dessa forma o modelo familiar nuclear no pode sobrepor-se a realidade

histrica para se avaliar as carncias, desvios ou anormalidades, com o objetivo de se

enquadrar, por meio de procedimentos profissionais ou imposies legais, quele

modelo burgus ou a punio ou interdio para os que no se enquadrarem (Idem).

Em sntese, a caracterizao dos usurios dos servios sociais nas instituies

scio-jurdicas passa por uma interpretao dialtica das singularidades em relao a

totalidade. O Servio Social a partir de sua abordagem marxista deve compreender o

caso que lhe repassado a partir das mediaes que este apresenta das relaes sociais

do modelo societrio capitalista. A culpabilizao das famlias pelos crimes que

algum de seus sujeitos tenha cometido pode ser interpretada como uma reao burguesa

em vista das crises cclicas do prprio capitalismo.

1.1 Informalidade E Desemprego Estrutural:

A Nova Configurao Do Trabalho

A partir de meados da dcada de 1970, nos pases desenvolvidos, e em fins dos

anos 1980, nos pas latinoamericanos, observa-se um quadro inflacionrio e recessivo

que comprometia a garantia dos lucros das empresas capitalistas, bem como o

acirramento das lutas trabalhistas do fim da dcada de 1960 que reivindicavam a

participao nos ganhos econmicos atravs de um sindicalismo de base ainda

fortemente marcado pelo fantasma do socialismo do leste europeu. Esses dois

10

movimentos vo colocar em xeque a hegemonia do capitalismo como projeto societrio

(ANTUNES e POCHMANN, 2007).

Como forma de superao desse quadro crtico e retomada da reproduo social,

implementa-se, nos termos de Davi Harvey (1992), a alternativa de flexibilizao da

acumulao capitalista que visa a reduo dos custos dos fatores de produo atravs da

eliminao de barreiras para sua expanso. A transnacionalizao do capital e a sua

concentrao (monopolizao) em busca de economias mais rentveis vo se configurar

numa espcie de predatismo scio-econmico: enquanto nos mercados centrais

europeus e norte-americano vive-se a crise da empregabilidade, visto o alto custo da

mo-de-obra; nos mercados perifricos, a situao de extrema precariedade das

relaes trabalhistas, tenta-se ao mximo reduzir os curtos desse fator de produo.

A acumulao flexvel se inscreve no mbito ideolgico neoliberal em oposio

lgica social-democrata do Estado de Bem Estar Social. Em termos gerais, essa

doutrina possui duas conotaes: a primeira de retorno ao liberalismo clssico que

propunha a regulao da economia atravs da mo invisvel de Adam Smith, que

transplantado para esse ltimo quartel do sculo XX vai representar a

desregulamentao do Estado no trato da economia. O segundo movimento da tica

neoliberal representado, lembrando a tese de Franois Chesnais (1996), na

mundializao do capital por meio do aumento de sua financeirizao em contraposio

ao seu carter produtivo.

Outro mecanismo da flexibilizao do capital a chamada reestruturao

produtiva que, por meio dos pilares de inovaes organizacionais, inovaes

tecnolgicas e inovaes scio-metablicas (ALVES, 2007), prope-se ao

desenvolvimento de uma nova forma de extrao da mais-valia baseado no mais nos

moldes fordista-taylorista, mas num modelo de investimento na administrao eficiente,

de aperfeioamento do maquinrio e de desregulamentao da fora de trabalho.

As novas formas de insero no mercado de trabalho se mostram cada vez mais

eficientes nos trs termos em que vm se estruturando: flexibilizao, precarizao e

terceirizao. Cada forma na sua peculiaridade, todas concorrem para a

desregulamentao dos direitos trabalhistas conquistados at ento, de forma a produzir

um contingente enorme de trabalhadores desprotegidos socialmente. Constata-se,

11

portanto, a escassez dos postos de trabalho formais que conjuntamente ao crescimento

das taxas de desemprego formam o quadro deplorvel do atual mercado de trabalho.

De acordo com nmeros da Pesquisa Mensal de Emprego realizada pelo Instituto

Brasileiro de Geografia e Estatstica IBGE, o Brasil conta hoje com uma Populao

Economicamente Ativa - PEA na ordem dos 23 milhes, sendo que destes 8,8% esto

desempregados de forma aberta (dados de maio de 2009). Essa taxa somente consta

daqueles que esto includos na PEA, porm se inserirmos os grupos caracterizados

como marginalmente ligadas PEA5, desalentados6, que saram do ltimo trabalho

no perodo de 365 dias e subocupados por insuficincia horas trabalhadas7 veremos

que esse nmero cresce para 23%. Interessante observar que, apesar das taxas de

desemprego aberto virem caindo ms a ms tendncia normal se comparada com anos

anteriores o efetivo de pessoas desocupadas vem crescendo: no incio do ano eram

1.567 mil desempregados, j no ms de maio esse nmero cresceu para 2.036 mil.

No que tange o aspecto das relaes trabalhistas, o Instituto de Pesquisa e

Economia Aplicada IPEA, por meio do seu boletim de conjuntura de 2007, divulgou a

evoluo da ocupao por vnculo de empregatcio dos brasileiros demonstrando que os

trabalhadores intitulados por conta prpria no acumulado de 2006 a julho de 2007

tiveram um incremento de 5,2% de sua populao. Vale lembrar que no perodo

analisado, os trabalhadores com carteira assinada tiveram uma evoluo de 4,4%. O

IBGE aponta, ainda, que, evolutivamente, os caracterizados como conta prpria,

empregados sem carteira assinada no setor privado e empregados sem carteira

assinada no setor publico tem aumentado ao longo dos ltimos anos: no ano de 2008,

estes representavam 7.782 mil pessoas.

5 So definidas como marginalmente ligadas populao economicamente ativa na semana de referncia as pessoas no-economicamente ativas na semana de referncia que trabalharam ou procuraram trabalho no perodo de referncia de 365 dias e estavam disponveis para assumir um trabalho na semana de referncia (IBGE, 2007:21). 6 So definidas como desalentadas as pessoas marginalmente ligadas populao economicamente ativa na semana de referncia da pesquisa que procuraram trabalho ininterruptamente durante pelo menos seis meses, contados at a data da ltima providncia tomada para conseguir trabalho no perodo de referncia de 365 dias, tendo desistido por no encontrar qualquer tipo de trabalho, trabalho com remunerao adequada ou trabalho de acordo com as suas qualificaes (IBGE, 2007:21). 7 Define-se como subocupadas por insuficincia de horas trabalhadas as pessoas que trabalharam efetivamente menos de 40 horas na semana de referncia, no seu nico trabalho ou no conjunto de todos os seus trabalhos, gostariam de trabalhar mais horas que as efetivamente trabalhadas na semana de referncia e estavam disponveis para trabalhar mais horas no perodo de 30 dias, contados a partir do primeiro dia da semana de referncia (IBGE, 2007:24).

12

O declnio da empregabilidade se inscreve na substituio do trabalho vivo (do

operrio) pelo trabalho morto (do maquinrio). A chamada lean production ou

liofizao organizacional trata do enxugamento das empresas do operrio assalariado

e pela ampliao do maquinrio tecno-cientfico. Mistifica-se o papel do proletrio que

passa a ser chamado de colaborador numa significativa meno ao corporativismo

burgus (ANTUNES e POCHMANN, 2007).

A quase eliminao do trabalhador vivo do processo produtivo chama quele

que ainda persiste vivo a uma polivalncia de sua atuao. O trabalhador

multifuncional, desespecializado deve intervir de forma a complementar a parte

pensante daquela mquina substitutiva de trabalhadores. Para tal, faz-se necessrio o

maior nmero de horas em condies de maior stress fsico e psicolgico.

A informatizao do trabalho outra caracterstica da reestruturao produtiva.

A permuta do trabalho material, ou seja, aquele que efetivamente produz valor de uso,

pelo trabalho imaterial8, aquele que produz valor de troca, transplanta a lgica do

necessrio para a lgica fetichista. Vive-se, pois, a sociedade do conhecimento

baseada na esfera da comunicao e do marketing. Segundo Antunes e Pochmann

Estamos presenciando a sociedade do logos, da marca, do simblico. Nela, o design da Nike, a concepo de um novo software da Microsoft, o modelo novo da Benetton, resultam do labor chamado imaterial, que, articulado ao trabalho material, expressa vivamente as formas contemporneas da criao do valor. So novas formas de trabalho e de criao do valor (Ibid. p. 199).

Todas essas formas precrias de insero no trabalho vo representar a restrio

dos direitos sociais como exigncia do capital global a fim de uma sobre-extrao da

mais-valia. No item a seguir se perceber que esse desmonte do trabalho tem influncia

na forma como o Estado vai lidar com esse quantitativo da populao que, no inseridas

no mercado de trabalho, demandam mais polticas sociais.

8 Vale destacar que se reconhece a polmica existente acerca das categorias trabalho material e trabalho imaterial dentro do meio acadmico, porm como no se configura objetivo deste estudo reportar essa discusso, peo que faam essa observao na leitura deste captulo e que compreendam que a utilizao das mesmas categorias foi uma opo feita pelos autores referidos aqui.

13

1.2 Polticas Sociais Brasileiras E A Sua Configurao Neoliberal

As polticas sociais brasileiras na contemporaneidade no fugiram do contexto

estruturante scio-econmico que marcou as ltimas duas dcadas. Em tempos

neoliberais de recrudescimento da questo social e o retorno ao Estado mnimo, os

direitos sociais foram os primeiros a serem solapados. Vive-se um processo de

desfiliao social, como apresentado anteriormente por Castel (2003), ou de

desassistencializao da populao, segundo Pereira (1998), no que concerne o

atendimento das garantias sociais. Como se ver a seguir, o Estado brasileiro passa por

um momento de revisitao dos seus patamares legais institudos atravs da

Constituio de 1988 que sero implementados ora com vistas a reduo de direitos, ora

com vista a ampliao dos mesmos. A opo por um desses dois caminhos vai marcar a

relao entre Estado, famlia e indivduo nos ltimos anos.

O marco legal da construo do Estado Democrtico de direito brasileiro se d

por meio da Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988. A carta magna

definitivamente moldada nas bases da social-democracia, que, segundo Boschetti

(2006), chega ao pas com quase quarenta anos de atraso em uma conjuntura nada

favorvel a ampliao da ao do Estado. Emanada do povo9 por meio das lutas pela

redemocratizao aps vinte anos de ditadura militar, a Constituio brasileira vigente

singular ao incluir a responsabilizao do Estado em garantir os direitos sociais, quais

sejam: a educao, a sade, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurana, a previdncia

social, a proteo maternidade e infncia, a assistncia aos desamparados10.

Outras legislaes que se inserem na mesma tica de ampliao de direitos so

citadas por Mioto (2008), a saber: Lei n 8.080 de 1990 que dispe sobre as condies

de promoo, proteo e recuperao da sade; Lei n 8.042, que trata da participao

da comunidade na gesto do Sistema nico de Sade SUS; Lei Orgnica da

9 Pargrafo nico do art. 1: Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes

eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituio (BRASIL, 1988).

10 O captulo II trata especificamente dos direitos sociais. A inscrio destes abre o captulo no artigo 6 da Constituio. Segundo a emenda n 26 de 2000, a moradia tambm passa a ser considerada um direito social (BASIL, 1988).

14

Assistncia Social (LOAS) de 1993; Estatuto da Criana e do Adolescente ECA de

1990; Estatuto do Idoso de 2003; entre outras regulamentaes e normas operacionais.

Em contrapartida, muitas polticas pblicas implementadas desde a dcada de

1990 vo na contramo do direito, haja visto os governos reacionrios que se instauram

no pas, como Collor, que vetou a Lei Orgnica da Assistncia Social na sua primeira

tentativa de ser promulgada; Sarney, que instituiu planos econmicos de arrefecimento

dos salrios da populao brasileira; e Fernando Henrique Cardoso que instaurou o

Plano Diretor da Reforma do Estado (PDRE/MARE).

Outras formas de lapidao dos direitos mais atuais se inserem no mbito dos

Programas de Transferncia de Renda (PTRs), vide o Bolsa Famlia, que objetivam o

enfrentamento (em outros termos, controle) da pobreza. Contudo, como Stein (2008)

afirma, ao invs de representarem a ltima possibilidade de acesso renda, configuram-

se como a primeira e nica possibilidade de acesso a qualquer recurso, j que com a

transmutao do mundo do trabalho e conseqentemente a reduo da proteo social

por meio do seguro, a assistncia social mediada pelos PTRs vai requisitar de seus

beneficirios o investimento em capital humano. Alm do mais, os assistidos so

selecionados entre os pobres entre os mais pobres, a focalizao a face mais cruel

desses programas, os testes de meio para o cadastramento e as condicionalidades

representam a outra face perversa dos PTRs visto que significam uma segunda

tributao, um repagamento pelos seus direitos se observarmos que os recursos para

esse programa so oriundos de tributos pagos por todos os brasileiros.

Os outros espaos desocupados pelo Estado vo ser preenchidos pelo chamado

Terceiro Setor, que responsabiliza a sociedade civil no trato da questo social11. O

voluntariado, as organizaes no-governamentais, chamadas de entidades sociais so

as expresses dessa nova configurao protetiva que se instaura a partir de dcada de

1990. Prope-se uma parceria entre o setor pblico e a sociedade civil, em que este

ltimo, entra com maior participao, um chamamento a solues em mbito

comunitrio no vis da solidariedade e caridade.

Mioto (2008), sobre essa contextualizao brasileira, declara que

11 Para maiores informaes a cerca do tema, ver Revista Servio Social & Sociedade n 73 da Editora Cortez.

15

A partir dos anos 1990 se acirra no Brasil um processo de disputa entre diferentes projetos polticos para a sociedade brasileira, nos quais a questo da proteo social joga papel principal. Nesse mbito, o processo caracterizado, por um lado, pela tenso entre a afirmao da proposta de institucionalizao da proteo social nos moldes definidos pela Constituio de 1988 e a sua desconstruo atravs da retrao do Estado. Esta inclui tanto as privatizaes como a adeso ao princpio da focalizao nas polticas pblicas e a afirmao do pluralismo de bem-estar. Por outro lado, pela tenso entre a afirmao da famlia como parceira na conduo das polticas sociais e a sua desfamiliarizao12

(MIOTO, 2008, p. 143).

Nesse seu artigo, a autora expe como a famlia foi reconhecida pelos trs

projetos societrios hegemnicos da histria do homem, a saber: o liberalismo, o

welfare state e o neoliberalismo. Mioto demonstra que o primeiro perodo vai

representar a promoo da proteo social por meio de aes caritativas e solidrias que

vinculam a famlia como agente natural do cuidado. J durante os Estados de Bem Estar

Social (uns com maior consolidao como na Europa nrdica e nos Estados Unidos e

outros menos, como na Amrica Latina e na Europa do Sul) a implementao de

polticas sociais que visavam a ampliao dos direitos foi a tnica norteadora da ao

estatal. Com a passagem para o neoliberalismo, a autora apresenta que houve uma re-

descoberta da famlia como instncia de proteo, na perspectiva de recuperao de

uma sociabilidade solidria (ibid.).

1.3 Violncia E A Culpabilizao Dos Sujeitos

A violncia deve ser compreendida como um complexo social que se objetiva

historicamente nas relaes entre os sujeitos, portanto, pensar essa categoria sem seus

determinantes e mesmo condicion-la a nico fator desvincul-la do seu processo de

objetivao e estruturao do que Jos Fernando Siqueira da Silva aborda como

concreto pensado. Apontar a violncia sob o enfoque do concreto pensado, diz o

autor, consider-la em sua totalidade, transcender a aparncia do fenmeno e buscar a

trama constitutiva da realidade por meio de suas mediaes (SILVA, 2007).

preciso analisar que toda ao violenta se baseia em uma relao fundamental:

a imposio ideolgica do violentador sobre o violentado, isso significa dizer que para

12 Desfamiliarizao diz respeito ao abrandamento da responsabilidade familiar na proviso da proteo social, seja por meio do Estado ou do mercado.

16

alm das expresses aparentes da violncia contempornea representada na

criminalidade urbana h de se avaliar que outras formas de violncia permeiam o

cotidiano: no seria a privao das necessidades humanas uma ao violenta contra o

indivduo? Perceber de que maneira alguns fatos so ideologicamente remontados como

violentos e outros no, perpassa a anlise da ordem social em que eles se afirmam, ou

seja, a burguesa (idem).

Como anteriormente apresentado, o capitalismo monopolista de fins do sc. XX

se apresenta como a forma mais acabada da ordem social baseada nas relaes entre

capital e trabalho. Caracteriza-se, pelo lado burgus, por meio da concentrao do

capital, a financeirizao dos mercados, a reduo dos custos da produo e o

desenvolvimento tecnolgico atenuante; pelo lado do proletrio, acentua-se a diviso

scio-tcnica do trabalho, a desregulamentao, precarizao e flexibilizao das

relaes trabalhistas. Todo esse contexto fomentado pela ideologia neoliberal que

prega o retrocesso na interpretao da questo social, isto , a sua naturalizao fatdica

como parte integrante da estrutura capitalista no podendo, portanto, ser expurgada e

devendo apenas ser amenizada. Nesse sentido, a compreenso da categoria violncia

vem sendo escamoteada por intelectuais burgueses que atribuem pobreza e

desigualdade social o fator causal das aes violentas diga-se de passagem, essa foi

uma posio adotada por muitos socilogos na dcada de 50 e 60 (VALLADARES,

1991).

Em citao de Ianni feita por Silva, o autor avalia que:

No se trata de simplificar a problemtica da violncia, como se ela coubesse no conceito, idia ou interpretao. Vista em toda sua complexidade, em suas mltiplas manifestaes coletivas e individuais, histricas e psicolgicas, objetivas e subjetivas, evidente que a violncia um acontecimento excepcional que transborda por meio de vrias cincias sociais; revela dimenses econmicas, subculturais, objetivas e subjetivas. (IANNI apud SILVA, 2007:192).

Isso importa em mostrar que a adoo de uma nica explicao para categoria

violncia do tipo se [...], ento [...] permeia a implementao de aes cada vez mais

coercitivas e preconceituosas para o combate violncia. O Estado, no uso legtimo

de sua fora repressiva, investe montantes em polcia (mal preparada) e armamentos

para que, assim, seja garantida a segurana. Mas segurana de quem? Para quem? E do

qu se quer estar seguro? So questionamentos que podem ser levantados quando se

17

analisa duas categorias apresentadas por Silva (2007): o binmio segurana-

insegurana; e a higienizao ou limpeza social.

Por binmio segurana-insegurana, o autor evidencia a complexa relao que se

constri entre polcia e bandidos. Em depoimentos apresentados em seu artigo,

perceptvel como essas duas classes tm suas funes interpoladas: ora o bandido

fonte de confiana, ora o policial fonte de medo. Isto porque, de forma velada ou no,

a populao pobre se v alvo de aes violentas por parte das foras policiais que

discriminam e criminalizam a pobreza (idem).

A categoria subseqente, a da higienizao ou limpeza social, se faz presente na

forma perversa com que a classe dominante da sociedade compreende o submundo do

crime a classe a qual dele faz parte, o material descartvel ao capital e o enfrenta

por meio de aes concernentes ao eixo represso-eliminao. Trata-se cada vez mais

de desvincular o foco da real dificuldade da ordem social capitalista, qual seja: o

enfrentamento da questo social e suas expresses, em prol de um puro e simples

banditismo e caos social (idem).

Em referncia aos trabalhos de Baronti (1978) sobre as implicaes da violncia

no que tange a famlia, Mioto (2008) afirma

A violncia nas suas mais diversas manifestaes, embora se realize no mbito do convvio social, implcita s relaes de produo sob a lei da acumulao capitalista. Portanto, em primeiro lugar, est a violncia econmica. Porm, essa violncia no aparece no em que produzida, mas se explicita atravs dos seus efeitos, tornando a famlia um palco privilegiado de manifestao desses efeitos e concomitantemente a absoro e desativao dos conflitos sociais (MIOTO, 2008, p.132).

A violncia, a partir de pressupostos neoliberais vai sensivelmente

responsabilizar a famlia pela sua evitao. Segundo essa perspectiva, a famlia como

provedora do bem-estar tem a obrigao em cuidar e tratar de seus componentes para

que esses sigam as regras e se estabeleam na sociedade como indivduos sos e

trabalhadores. O papel do Estado, nessa orientao, restringe-se apenas a uma ao

paliativa de trancafiamento daqueles que no se integraram na sociedade e, para alm

disso, a responsabilizao (leia-se estigmatizao) daquela que no cumpriu a sua

funo disciplinadora: a famlia, especialmente na figura da mulher, como se ver mais

adiante.

18

Por meio do exposto acima, verifica-se que a categoria violncia vem sendo

abordada de forma ahistrica e inconcreta. Correlacionar violncia e pobreza sem

abordar a estrutura que as permeia, desvirtuar o foco da ateno pblica. A violncia

nos moldes atuais no mais do que a (re)significao e constante reproduo da

ideologia que une pobres classes perigosas. Nesse olhar, a famlia vai ser, juntamente

com o bandido, a maior responsvel pelo descuido na educao dos filhos.

19

2. DO ESTADO SOCIAL AO ESTADO PENAL

Retomando a histria do capitalismo contemporneo, observa-se que a partir da

dcada de 1970 se empreende a crise do capitalismo contemporneo. Tida por muitos

autores como uma crise forjada, bem verdade que o capital vinha decrescendo sua

margem de lucro em prol de um welfare state que para alm de produzir maior proteo

social dos cidados tambm foi a forma encontrada por esse sistema produtivo para no

sucumbir a seu prprio desaparecimento em decorrncia da crise de 1930. Os chamados

anos dourados do capitalismo que vai de 1940 a 1960 representaram uma maior

interveno do Estado no mbito, no somente social, mas tambm econmico.

Mecanismos de regulao da economia foram impressos a fim de que se criasse um

sistema ideal de produo e reproduo capitalista, afastando os fantasmas da

superproduo e agregando maior demanda aos produtos comercializados.

Para custeio desse programa estatizante, trabalhadores e capitalistas tiveram que

contribuir para o seu financiamento. O capital que at o momento estava acostumado

a sua dita auto-regulao sem qualquer preocupao com a parte mais importante do seu

processo produtivo, qual seja o trabalhador, se viu obrigado a ceder parte de seu

patrimnio econmico para a manuteno do prprio capital. Por outro lado, o

acirramento da questo social e o crescimento do pauperismo da classe trabalhadora

tambm serviram de fora motriz nessa mudana estrutural. As greves trabalhistas e

feministas das dcadas de 1930 em diante que alm de requisitarem melhores condies

de trabalho, j chamavam ateno para o trato de todo um conjunto de aes no campo

social, vide as caixas de previdncia, a questo dos hospitais, entre outros.

Os Estados de Bem-Estar Social vo nessa medida representar essa dialtica de

necessidade de implementao de um programa restitutivo do capitalismo e da

promoo da proteo social da classe trabalhadora por meio da chamada social

democracia. Na mesma medida em que esses Estados Sociais surgem como uma

demanda do modo de produo capitalista que no se exclua, como dito

anteriormente, o preponderante papel exercido pelas lutas trabalhistas para o surgimento

destes Estados a sua substituio por um projeto societrio retrgado em termos de

proteo social, com ntidos ranos da era pr-welfare state, demonstram tambm terem

20

sido forjados no mbito desse mesmo sistema produtivo como forma de reposio dos

lucros perdidos em face dessa reconstruo ps-crise e que no teria impedido um

segundo momento de crise que irradiava nos alvores da dcada de 1970. E para

concretizao deste objetivo, era necessrio se retirar, expurgar essa ideologia de

cidadania social do proletariado, era preciso se (re)tomar por direitos somente os civis e

polticos com tambm menor representao deste ltimo. A maneira encontrada,

ento, para se promover essa catarse social foi a partir da criao da ideologia de uma

pretensa insegurana.

Segundo Argullo (2005), em face do capitalismo no ser capaz de achar

solues coletivas para lhe dar com os problemas que aviltavam o sistema, se props,

ento, ao desvio de foco das incertezas de garantias de meio de vida da populao para

uma preocupao destinada com a segurana pblica. A autora em citao de estudos de

Bauman (2000) vai apresentar que alm da crise econmica, as crises existenciais e

polticas que so na verdade fenmenos de um mesmo problema global formaro

um quadro que em tudo coopta para construo de um Estado Penal em contraposio

ao Estado Social:

Essa uma das razes do triunfo das diretrizes neoliberais na medida em que prossegue desmantelando as instituies polticas que poderiam em principio opor resistncia liberdade do capital: dissemina uma insegurana (ansiedade) difusa, de modo que a natureza mesma dos problemas a serem enfrentados, como assinala Bauman, constitui-se um impedimento para solues coletivas: [...] pessoas que se sentem inseguras, preocupadas com o que lhes reserva o futuro e temendo pela prpria incolumidade no podem realmente assumir os riscos que a ao coletiva exige. Isso o que torna ainda mais intricada a situao e se traduz a crise existencial (Unsicherheit: incerteza, insegurana e falta de garantia) (ARGULLO, 2007:4).

Essa estruturao de uma ideologia do medo vai permear o controle social da

populao caracterizada como suprflua ao mundo do trabalho, ou seja, parafraseando

Medeiros (2007), o surplus excedente da fora de trabalho gerado a partir dos anos 1970

pelo capitalismo vai gestar formas de superviso balizadas em duas classificaes: a)

aqueles considerados como social junk13 sero geridos pela poltica de assistncia social

13 Expresso cunhada pelo criminlogo marxista Seven Spitzer para designar a parcela do subproletariado considerada inofensiva e, portanto, passvel de controle por meio de aes punitivas brandas de alistamento em programas sociais estigmatizadores do estado moderno.

21

que, atravs da crescente estigmatizao, os punir; e b) os adjetivados como social

dynamite14, por sua caracterstica explosiva, sero judicializados como criminosos em

processos penais.

Em termos de penas, essa nova ideologia se encerra no retorno a antigas prtica

punitivas. Cada vez mais se assiste ao retomada dos castigos fsicos, a incitao a

prticas de uma sociedade baseada no workfare. O significado da pena tambm ter

suas modificaes com o decorrer do processo histrico. Como se ver adiante, o

suplcio foi uma das primeiras formas punitivas utilizado na Idade Mdia a construo

da pena como um espetculo garantia o carter exemplificativo da ao. J no incio do

capitalismo em fins do sculo XVII a necessidade de formao de um exrcito de

reserva vai orientar as prticas penais no sentido da instaurao de uma poltica de

disciplinamento dos corpos, os presos eram considerados como uma mo-de-obra capaz

de ser utilizada a baixo custo operacional, visto que o estigma de preso valorava

negativamente o preo da sua fora de trabalho. Com o advento do neoliberalismo e a

desestruturao do mercado de trabalho, a pena ganha uma nova conotao que

podemos considerar ser a unificao dos dois perodos precedentes, isto , a

representao da cadeia como um local desumano retoma o carter exemplificativo da

Idade Mdia, ao passo que, a utilizao do trabalho do recluso ao custo inferior a um

salrio mnimo15 e a sua no submisso a Consolidao das Leis do Trabalho tambm

incute o retorno s prticas punitivas do sculo XVII em diante.

Nessa perspectiva de aprofundamento da questo penal no mundo

contemporneo, Wacquant (2001), ao fazer um estudo da temtica nos pases centrais,

14 Expresso cunhada pelo criminlogo marxista Seven Spitzer para designar o surplus potencialmente explosivo e perigoso para ordem devendo, portanto, serem tratados com o devido rigor repressivo do sistema penitencirio.

15 Art. 29. O trabalho do preso ser remunerado, mediante prvia tabela, no podendo ser inferior a 3/4 (trs quartos) do salrio mnimo.

1 O produto da remunerao pelo trabalho dever atender: a) indenizao dos danos causados pelo crime, desde que determinados judicialmente

e no reparados por outros meios; b) assistncia famlia; c) a pequenas despesas pessoais; d) ao ressarcimento ao Estado das despesas realizadas com a manuteno do condenado,

em proporo a ser fixada e sem prejuzo da destinao prevista nas letras anteriores (BRASIL, 1984).

22

aponta a adoo de duas doutrinas gestadas em Manhattan nos Estados Unidos: a da

tolerncia zero, inventariada por Charles Murray, que d plenos poderes policiais e

juzes para tratarem da pobreza que incomoda negros, desempregados, mendigos,

sem-teto, vadios em geral; e a da broken windows, formulada por James Q. Wilson e

George Kelling os quais afirmavam que a proliferao das incivilidades seria meio

caminho andado para o arrefecimento da delinqncia. Em conjunto essas duas teorias

criadas nos Estados Unidos vo rodar o mundo todo atrs de adeptos. Interessante que

o autor faz meno a aplicao da tolerncia zero em Braslia, ao citar que o ento

governador Joaquim Roriz a faria por meio da contratao de 800 policiais civis e

militares em resposta a uma onda criminosa que deveria ser combatida. Tendo sido o

governador alertado de que isso causaria uma superlotao dos presdios brasilienses os

quais j no comportavam mais presos poca, este teria dito que seria necessria, to

somente, a construo de novos presdios.

O autor indica que o processo de encarceramento que se vive nos dias atuais

segue cinco tendncias: i) hiperinflao carcerria com o aumento aviltante da

populao reclusa, a chamada expanso vertical do sistema; ii) a expanso horizontal da

rede penal por meio do crescimento da populao de alguma forma ligada a Justia seja

atravs das penas alternativas, das prises domiciliares ou dos benefcios de Livramento

Condicional (Wacquant demonstra que esse processo possui ntima relao com a

tipificao de novos delitos); iii) crescimento excessivo dos gastos da administrao

pblica com o setor penitencirio, no que isso signifique um maior gasto na

manuteno das condies mnimas do recluso, mas sim, o aumento do aparato

coercitivo fsico (mais policiais e agentes penitencirios para as prises; construo de

novas unidades; cursos de aperfeioamento de recursos humanos, etc.); iv) o

ressurgimento da privatizao das cadeias, um maior nmero de celas em prises

privadas e a sua prosperidade como indstria; v) a poltica de ao afirmativa

carcerria: mais negros so presos, o que o autor coloca como um escurecimento

contnuo da massa carcerria (ibidem).

Com essas cinco notas acerca do sistema penitencirio, Wacquant conclui que a

retirada do Estado do campo social no significa a reduo do seu escopo de atuao,

pois, com base na legitimidade (por parte dos capitalistas) do uso dos aparelhos

repressivos do Estado, este adotar intervenes muito mais nessa linha da coero e

23

controle como forma de manuteno hegemnica do sistema a que serve. Isto implica

em vrios espaos da reproduo social, a saber: compreenso do que vem a ser o

crime; de quem o comete; e qual a melhor soluo para o seu tratamento. Desvincula-

se a violncia do seu contexto estrutural, resignificando-a em termos de capacidade

cognitiva do ser humano, do seu quociente intelectual, naturaliza-se, portanto, a

criminalidade. O binmio pobreza-violncia toma o primeiro por causa e o segundo

como conseqncia, em uma ideologia transfigurada que promove a inverso da ordem:

a pobreza no causada por uma violncia estrutural contra o cidado, mas sim a

violncia que causada pela misria.

2.1 Ensaio Sobre Uma Instituio Total: A Priso

A priso como tema de estudos sociolgicos apresentada aqui a partir da

perspectiva de trs autores, sendo eles: Erving Goffman (1997), socilogo canadense, o

autor do livro Manicmios, Prises e Conventos; Michel Foucault (1975), filsofo

francs que traz suas contribuies por meio do livro Vigiar e Punir - Nascimento da

Priso; e Philippe Combessie (2001), socilogo francs aqui representado pela resenha

de Sociologia da Priso executada por Isabel Pojo do Rego (2004), doutora em

Sociologia pela Universidade de Braslia UnB.

Antes de caracterizarmos a instituio tomada aqui por base como total, faz-se

necessrio identificarmos o prprio termo instituio. Segundo Foucault (1975), a

instituio um espao de coero em que o poder exercido por meio do saber,

produz-se um discurso ideolgico caracterizado como verdadeiro. Na concepo de

Goffman (2001), as instituies so estabelecimentos sociais em que ocorre atividade de

determinado tipo, elas conquistam parte do tempo e do interesse de seus integrantes,

lhes proporcionando algo de um mundo.

A instituio total uma expresso utilizada por Goffman (2001), apesar de no

ter sido cunhada pelo autor, para caracterizar um local de residncia e trabalho onde

um grande nmero de indivduos com situao semelhante separados da sociedade mais

ampla por considervel perodo de tempo leva uma vida fechada e formalmente

24

administrada (idem, p. 11). O autor assinala que todas as instituies tm tendncias de

serem mais ou menos fechadas. Esse seu carter, que tambm pode ser traduzido

como total, representado pela barreira relao social com o mundo externo e por

proibies sada, s vezes mediadas pelo prprio ambiente fsico com portas fechadas,

paredes altas, arame farpado, fossos, guas, florestas e pntanos.

Goffman prope cinco tipos de instituies totais: i) instituies criadas para

cuidar de pessoas incapazes e inofensivas; ii) locais para cuidar de pessoas consideradas

incapazes de cuidar de si mesmas e que so tambm uma ameaa comunidade, embora

de maneira no-intencional; iii) estabelecimentos organizados para proteger a

comunidade contra perigos intencionais, e o bem-estar das pessoas isoladas no

constitui problema imediato; iv) instituies criadas para realizao de alguma tarefa de

trabalho, que se justificam apenas atravs dos fundamentos instrumentais; v) locais que

servem para refgio do mundo, algumas tambm utilizadas para instruo religiosa. A

que nos interessa diz respeito ao estudo do terceiro tipo de instituio total,

exemplificados pelas cadeias, penitencirias, campos de prisioneiros de guerra, campos

de concentrao (idem).

Na primeira parte de seu livro, Goffman (1997) apresenta algumas

caractersticas comuns das instituies totais, alm das perspectivas do mundo do

internado, do mundo da equipe dirigente alm das chamadas cerimnias institucionais

momento de contato desses dois grupos. Inicialmente, o autor destaca que o local para a

realizao das atividades cotidianas, como trabalho, lazer e vida ntima o mesmo,

sendo todos esses aspectos realizados em bandos, a partir de um roteiro racionalmente

pr-estabelecido e sob a vigilncia de uma mesma autoridade. Frise-se que o papel

dessa autoridade no orientar ou inspecionar periodicamente, mas fazer com que todos

executem o que foi exigido.

Antes de passar para a anlise de cada grupo que compe a instituio total, o

autor sinaliza que cada agrupamento concebe o outro de maneira estereotipada e hostil:

da parte dos internados, os dirigentes so mesquinhos e arbitrrios; e da parte dos

dirigentes, os internados so amargos e no merecedores de confiana. Ao apresentar o

mundo do internado e dos dirigentes, Goffman destaca que o internado passa por um

processo de mortificao do eu a partir do momento da iniciao na instituio,

25

identificada como as boas-vindas, incluindo desde processos de admisso, testes de

obedincia, exposio contaminadora, etc. Outro aspecto interessante do sistema de

castigos e privilgios que promove a reorganizao pessoal do indivduo segundo o

modelo da instituio total.

Com relao s cerimnias institucionais, o autor destaca que se trata de

um conjunto de prticas institucionalizadas seja espontaneamente, seja por imitao atravs dos quais os internados e a equipe de dirigentes chegam a ficar suficientemente perto para ter uma imagem um pouco mais favorvel do outro, e a identificar-se com a situao do outro (Idem, p. 85).

Essas aes, por vezes, objetivam a legitimao dessas instituies e suas

prticas. Quando uma autoridade, familiares ou convidados visitam a instituio

realizado todo um processo de maquiagem da realidade visando assim o

consentimento para manuteno dessa forma de exerccio de poder, o que o autor

caracteriza como exibio institucional. Por parte do internado, essas cerimnias so

entendidas como um dos poucos momentos em que se pode fugir da rotina cotidiana da

instituio e ter acesso a privilgios, porm preciso lembrar que mesmo nesse

ambiente de aparente harmonia social, os que apresentarem ms condutas so

castigados.

O autor finaliza a sua abordagem trazendo alguns aspectos para serem estudados

mais adiante como a estratificao dentro desses prprios agrupamentos, e a

necessidade de certa impermeabilidade institucional, que caracterizada pelo baixo

nvel de aceitao do status social que os indivduos possuam fora da instituio, alm

do trato do estigma dos internados aps sarem dessas instituies e retornarem para a

sociedade.

Na obra Vigiar e punir, Foucault (1996) investiga o direito penal nos regimes

absolutistas europeus, contrastando-os com o modo operado nos regimes democrticos

que se consolidaram na Europa a partir do final do sculo XVIII. Descrevendo o modo

como os delitos penais foram (e so) assimilados historicamente, Foucault demonstra o

contraste de duas formas de exerccio de poder, apresentadas no modo de tratamento do

criminoso: nos regimes absolutistas, o poder se exercia e se reafirmava por meio do

severo exerccio da punio; no mundo emergente ps-revoluo francesa at os dias

26

atuais, a modalidade do poder objetiva o vigiar e disciplinar, sendo denominada,

portanto, de sociedade disciplinar.

No regime absolutista, encontramos um direito penal que exercido pela

autoridade de um poder judicirio central, subordinado figura do rei. Nessa

perspectiva, todo delito praticado , acima de tudo, ato ilcito que afronta ao ilimitado

poder real. Por isso, uma caracterstica central desse perodo a prerrogativa do suplcio

como forma de punio e manuteno do poder. Por suplcio entende-se uma pena

corporal dolorosa com requintes de atrocidade, cujo grau de crueldade variar de acordo

com o delito praticado. Foucault destaca que o suplcio era antes de tudo um grande

espetculo, momento em que a autoridade do rei era reforada por uma aterrorizante

demonstrao de fora. Alm da punio, o suplcio tinha a finalidade de reavivar nas

mentes dos sditos o que ocorria com qualquer um que ousasse desafiar a vontade do

soberano.

A partir do sculo XVIII, filsofos e juristas comeam a se manifestar contra o

carter desumano do suplcio. Surge, ento, a idia de que toda e qualquer forma de

punio poderia ser amenizada, alm de criar mecanismos que proporcionassem

garantias de que o menor nmero possvel de delitos fosse praticado. Surge o que

Foucault chama de sociedade disciplinar, caracterizada como um modo de organizar o

espao, controlar o tempo e obter um registro ininterrupto do indivduo e de sua

conduta. No que tange ao exerccio do poder, essa sociedade se caracterizaria por

implantar o poder panptico, derivado do Panapticon do jurista britnico Jeremy

Bentham, que o modelo de edifcio com celas dispostas em torno de um crculo e ao

centro uma torre elevada. Seu desenho previa que o vigia colocado na torre central

podia ver todos os movimentos daqueles trancados nas celas, sem que estes o pudessem

ver.

Foucault observa que o modelo de seqestro de delinqentes proposto por

Bentham caracterizaria o que na sociedade contempornea denominado vigilncia, o

pleno controle e a correo dos indivduos. Ela representa um novo ponto de vista do

poder que ao invs de punir um indivduo que pratique qualquer ato ou infrao, tem

suas aes previstas, antevistas pelo sistema bem como torna possvel tambm a

correo de tendncias desajustadas, reorientando-as na direo estipulada pelo poder

27

panptico. Assim, esse poder se legitima por meio do surgimento de instituies que

referendam o modelo do Panapticon, tais como: a fbrica, a priso, o hospital, a escola.

De acordo com o autor, o poder panptico se efetiva mediante o cumprimento de

algumas funes: o controle do tempo, o controle dos corpos e a instaurao de uma

polimorfia do poder que inclui um brao epistemolgico. Nas instituies panpticas, o

indivduo seqestrado e abstrado do tempo de sua vida. Seu carter moldado por

meio de um jogo de castigos e recompensas. Seu corpo confiscado pela sociedade, que

ser moldado de acordo com a funo social que ocupar dentro do sistema de

produo. O controle do tempo e do corpo instaurado graas a uma polimorfia de

poderes. Assim que um poder econmico claramente se instaura com a instituio das

fbricas, e, atrelado a este, um poder poltico. Esses poderes se articulam a um poder

judicirio, o qual impe normas, d ordens e toma decises.

Por fim, o poder panptico permite o surgimento de uma cincia prpria.

Foucault atribui a seu exerccio, as circunstncias que tornaram possvel o surgimento

das cincias humanas. Encontramos em todas as instituies disciplinares a produo de

um conjunto de saberes. Este se delineia em dois sentidos: dos indivduos e sobre os

indivduos. O autor interpreta o conhecimento como uma grande inveno, ferramenta

indispensvel legitimao de uma forma de poder.

28

3. JUDICIRIO: CONTEXTO E ESTRUTURA

O surgimento do Poder Judicirio tal conhecemos hoje remonta origem do

sistema capitalista de produo. Primeiramente, porm, necessrio reconhecer que a

Justia como uma instituio dos homens surgiu muito antes da constituio de um

Poder especfico, haja vista que estudos comprovam que nas sociedades antigas a

funo de Juiz sempre fora exercida por algum, seja o patriarca da famlia, seja o

chefe da tribo. Ulteriormente, na Grcia Antiga, os tribunais j eram espao

consolidados de julgamento, cita-se, por exemplo, os tribunais da Atenas como o

Arepago, o Paldio, o Delfino, o Pritaneu etc.. Em Roma a magistratura era exercida

pelos pretores que se incumbiam de aplicar a justia; em certas ocasies tais funes

eram atribudas ou ao Senado ou ao cnsul. nessa poca que a retrica surge como

artfice principal no poder de persuaso do julgador.

Ao longo da Idade Mdia, antes mesmo da constituio dos Estados Nacionais, a

funo de Juiz passa a ser exercida, durante o feudalismo, pelo Senhor feudal que, tendo

sob a sua responsabilidade toda uma gama de indivduos em regime de servido,

outorga suas leis de maneira ditatorial. O no cumprimento dessas leis era passvel de

punio com requintes de crueldade: enforcamento, decapitao, separao dos

membros, etc.. A partir do surgimento dos Estados e dos regimes absolutistas, o rei

passa a ser o grande Julgador das desobedincias de seus servos16. O dspota autoritrio

era considerado a lei e a ordem na antiga sociedade medieval e, assim como nos feudos,

qualquer forma de contraveno da lei era punida com rigor.

Aps a superao deste perodo e a definitiva entrada na Era Moderna, assiste-se

a toda uma transformao da sociedade com o surgimento do capitalismo. Antes

mesmo, toda a ideologia gestada durante as Revolues Inglesa e Francesa por

intelectuais como Thomas Hobbes, Jonh Locke, Denis Diderot, Nicolau Maquiavel,

16 A figura do Rei no surge como novidade, porm a sua preponderncia como chefe de Estado que vai torn-lo uma importante pea no cenrio poltico. Como apresentado, anteriormente, os chefes dos feudos eram os grandes responsveis pela manuteno da ordem em seus latifndios e no o rei, que j era figura patente nas sociedades at ento.

29

Charles de Montesquieu, entre outros, dar arcabouo para a materializao desse novo

modo de produo. Nas obras de todos esses autores apontada a necessidade da

liberalizao da propriedade privada e da promoo de formas de asseguramento desse

direito por meio de leis. nesse intento, que a formulao de uma Justia mais rgida (e

um tanto desigual do ponto de vista que separa os indivduos entre detentores e no

detentores de propriedade privada) e institucionalizada no Estado contra aqueles que

infringissem qualquer direito dos proprietrios concebida por meio da separao dos

poderes em Executivo, Legislativo e Judicirio com clara definio dos papis a serem

executados por cada um.

A partir dessa abordagem histrica, Jos Eduardo Faria (1994), estudioso da

Sociologia Jurdica e de Metodologia da Cincia do Direito, ajuda-nos a entender o

papel do Poder Judicirio no Brasil contemporneo. O autor suscita trs desafios que

foram objeto de polmica na compreenso da funo de mediao do Judicirio em face

das novas relaes de produo econmica e poltica ps-Constituio de 1988: 1) os

tribunais comearam, cada vez mais, a operar em casos de natureza tributria, reduzindo

a capacidade de execuo de polticas econmicas pelo Estado; 2) os movimentos

populares constituem-se como importantes atores na defesa de direito, principalmente

humanos, com o propsito de judicialmente reivindic-los para as maiorias

marginalizadas; 3) a postura tradicional que a maioria dos juzes ainda se utiliza na

interpretao dos litgios, contrape-se a uma minoria que opta por uma abordagem

mais politizada, crtica e com grande sensibilidade social.

Inicialmente, Faria (idem) prope um entendimento da sociedade brasileira

como um todo. Descreve o Brasil como um pas, que desde os anos 70, pode ser

considerado industrializado e de carter predominantemente urbano, em que as classes

operrias, mdia e rural atingiram um nvel mnimo de organizao em prol de seus

direitos; em contrapartida, apresenta-se como uma sociedade de dualismos: pobreza

urbana massiva e bolses de riqueza. O autor coloca que esses dualismos so frutos de

trs crises estruturais: no plano scio-econmico, crise de hegemonia dos setores

dominantes; no plano poltico, crise de legitimao da representatividade; e no plano

jurdico-institucional, uma crise da matriz organizacional do Estado. Numa tentativa de

interligao dos trs planos, afirma-se que as condies scio-econmicas, gerando

demandas para as quais as instituies no tm condies de oferecer respostas rpidas

30

e eficientes, terminam por afetar a prpria estrutura organizacional do Estado (FARIA,

1994:13).

A crise, em um plano mais geral, tem sua origem no prprio modelo de

desenvolvimento burocrtico-autoritrio adotado pelo governo ps-64. Isso significava

medidas de conteno de reivindicaes sociais que dificultassem a execuo

programtica da poltica econmica, neutralizando canais tradicionais de participao

poltica, intervindo nos sindicatos e adotando polticas trabalhistas que restringiam o

aumento da massa salarial. Porm a partir de 1974, com o primeiro choque do petrleo e

a crescente crise financeira global, esse modelo de desenvolvimento comeou a

apresentar seus primeiro sinais de colapso: o Estado que havia assumido o papel de

empresrio, criando agencias burocrticas, empresas pblicas e gastos incontrolveis,

acabou por comprometer a sua prpria racionalidade, reduzindo a liberdade de agir em

face do novo contexto. J nos anos 80, com o definitivo esgotamento do modelo

burocrtico-autoritrio, as regies metropolitanas se tornaram espao de conflito

generalizado, isto porque, continuando o Estado a dar prioridade a projetos ambiciosos

nessas regies mobilizando contingentes de mo-de-obra desqualificada que ao

conclurem as obras deixavam um rastro de tenso social e marginalidade econmica

ampliou a crise de sua prpria legitimao (FARIA, idem).

No plano jurdico-institucional, todo esse contexto de conflitos de interesses em

uma sociedade em transformao, exponenciou as tradicionais dificuldades enfrentadas

pelo Judicirio para enfrentar as novas configuraes histricas, conduzindo a uma

progressiva desconfiana com relao a objetividade das leis, como critrio de justia,

quanto na sua efetividade, como instrumento de regulao e direo da vida scio-

econmica. Gera-se, ento, uma cultura da impunidade e da ilegalidade: os cdigos

abstratos e irreais e sua violao sistematicamente tornaram-se parte da regra e no da

exceo, expressando, assim, a falncia das instituies jurdico-judiciais, que

anacrnicas no teriam conseguido se renovar. Um sistema legal caracterizado por ser

ineficaz, que limita o papel arbitral em um contexto social to contraditrio, e os limites

tanto profissionais criatividade e flexibilidade interpretativa das leis quanto

institucionais de renovao desses cdigos, so motivos que impedem o verdadeiro

cumprimento das sentenas engendrando a imagem de anomia jurdica perante a

sociedade (FARIA, idem).

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Todas essas questes apontam para uma necessidade de renovao da cultura

jurdica urgente, revendo assim as funes exercidas pelos operadores do direito que,

em um contexto de crise, so demandados a atuar com foras contrrias at ento

inexistentes que abrem caminho para impasses jurdicos e institucionais. As reflexes

tericas sobre o direito como instrumento de promoo social, observada a

heterogeneidade da sociedade e o carter intervencionista do Estado, apontam para dois

objetivos bsicos: a) explicar como as formas jurdicas influenciam e so influenciadas

pela organizao das relaes de produo econmicas e polticas; e b) demonstrar

como a pretensa neutralidade e objetividade configuram-se como empecilho no

conhecimento de uma sociedade permeada de conflitos scio-econmicos. Pretende-se

considerar as leis e os cdigos no como meros procedimentos ahistricos, mas como

vinculados ao saber de seu tempo: o sistema jurdico faz parte da formao social

determinada (FARIA, idem).

3.1 O Tribunal De Justia Do Distrito Federal E Territrios

Segundo o stio do Tribunal de Justia do Distrito Federal e Territrios, a

instituio tem por misso: proporcionar sociedade do Distrito Federal e dos

Territrios o acesso Justia e a resoluo dos conflitos, por meio de um atendimento

de qualidade, promovendo a paz social. J a viso do Tribunal buscar o

reconhecimento da sociedade como uma instituio de excelncia na prestao de

servios de forma eficiente por meio de recursos humanos capacitados, gesto

estratgica e utilizao de inovaes tecnolgicas.

Segundo Faria (2001), o Tribunal de Justia do Distrito Federal e Territrios

(TJDFT), integrante do Poder Judicirio brasileiro, tem por finalidade: a) uma funo

instrumental (dirimir conflitos); b) uma funo poltica (promover o controle social) e;

c) uma funo simblica (promover a socializao das expectativas interpretao das

normas legais) (p. 9). O TDFT um rgo que tem por objetivo julgar os conflitos e

dissdios entre os cidados, menos entres estes e o Estado e o prprio Estado; sendo

passvel de recurso no Superior Tribunal de Justia STJ, ou no Superior Tribunal

Federal STF.

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Segundo Souza (2004), o surgimento da justia do Distrito Federal e Territrios

data da fase republicana provisria brasileira, ainda quando o Brasil era denominado de

Estados Unidos do Brasil, sofrendo alteraes e se complexificando com o decorrer do

tempo. J neste perodo a organizao judiciria brasileira contava com a figura do Juiz,

posteriormente, com a complexificao da Justia brasileira, surgem outros elementos

jurdicos, como o Tribunal de Jri, Tribunal de Imprensa, o Corregedor de Justia e o

Conselho de Justia.

A partir da transferncia da capital para o Distrito Federal em 1960, a lei n 3754

disps sobre a nova organizao judiciria do Distrito Federal, compondo-se de 07

desembargadores e mantendo a estrutura anterior. Com a Constituio de 1988 d-se

autonomia para que os rgos do poder judicirio, em nvel federal e estadual,

elaborassem normas e leis que regulamentassem o funcionamento e a organizao dos

seus rgos jurisdicionais e administrativos, sendo que a justia do Distrito Federal

passou a ser organizada pela Lei de Organizao Judiciria do Distrito Federal, o

Regimento interno do TDFT e o provimento da corregedoria (ibidem.).

Atualmente, o TJDFT composto de Primeiro e Segundo de jurisdio. A

Magistratura de Primeiro Grau compe-se de Juzes de Direito e Juzes de Direito

Substitutos. A justia de Primeiro Grau compreende a Vara de Execues Penais (VEP)

onde est inserida a Seo Psicossocial com competncia em todo territrio do

Distrito Federal. A VEP possui um Juiz de Direito e trs Juzes de Direito Substitutos,

responsveis por julgar, monitorar e acompanhar toda execuo penal no Distrito

Federal.

Segundo a Lei de Execuo Penal em seu artigo 66, alm da Vara de Execues

Penais, outra instituio responsvel pela execuo penal o Juzo da Execuo, que

possui por competncia aplicar aos casos julgados, lei ulterior que favorea o ru,

declarar a extino da punibilidade, decidir sobre a soma ou unificao de penas,

progresso ou regresso nos regimes, detrao ou remio da pena, suspenso

condicional da pena, livramento condicional, e com isso, zelar pela aplicao correta da

lei e do cumprimento da pena e da medida de segurana.

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4. SERVIO SOCIAL NO ESPAO SOCIOJURDICO

Apresentada as configuraes em que se inscreve a atuao profissional da

Assistente Social no contexto de Justia, cabe agora, nos encaminharmos para uma

anlise mais aprofundada desse campo de trabalho. Posto esse objetivo, este captulo

procura, primeiramente, interpelar o significado da utilizao dos termos trabalho,

processos de trabalho, atuao e interveno profissional como categorias de referncia

ao exerccio profissional da Assistente Social. Em seguida, efeti