universidade de brasÍlia instituto de psicologia de...

109
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA INSTITUTO DE PSICOLOGIA Programa de Pós-graduação em Processos de Desenvolvimento Humano e Saúde ENTRAVES NA CONSTRUÇÃO DA LEITURA E ESCRITA: SUBSÍDIOS À PSICOLOGIA ESCOLAR Emmila Di Paula Carvalho dos Santos Brasília, abril 2014

Upload: doanhanh

Post on 15-Dec-2018

219 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

UNIVERSIDADE DE BRASLIA

INSTITUTO DE PSICOLOGIA

Programa de Ps-graduao em Processos

de Desenvolvimento Humano e Sade

ENTRAVES NA CONSTRUO DA LEITURA E ESCRITA: SUBSDIOS

PSICOLOGIA ESCOLAR

Emmila Di Paula Carvalho dos Santos

Braslia, abril 2014

UNIVERSIDADE DE BRASLIA

INSTITUTO DE PSICOLOGIA

Programa de Ps-graduao em Processos

de Desenvolvimento Humano e Sade

ENTRAVES NA CONSTRUO DA LEITURA E ESCRITA: SUBSDIOS

PSICOLOGIA ESCOLAR

Emmila Di Paula Carvalho dos Santos

Dissertao apresentada ao Instituto de

Psicologia da Universidade de Braslia para a

obteno do ttulo de Mestre em Processos de

Desenvolvimento Humano e Sade, rea de

concentrao Desenvolvimento Humano e

Educao.

Orientadora: Professora Dra. Diva Maria Mores Albuquerque Maciel

Braslia, abril 2014

UNIVERSIDADE DE BRASLIA

INSTITUTO DE PSICOLOGIA

Programa de Ps-graduao em Processos

de Desenvolvimento Humano e Sade

DISSERTAO APROVADA PELA SEGUINTE BANCA EXAMINADORA:

_____________________________________________________________

Prof. Dra. Diva Albuquerque Maciel Presidenta

Universidade de Braslia, Instituto de Psicologia

_____________________________________________________________

Prof. Dra. Silmara Carina D. Munhoz - Membro externo

Universidade de Braslia, Faculdade de Educao

_____________________________________________________________

Prof. Dra. Regina Lcia Sucupira Pedroza Membro Interno

Universidade de Braslia, Instituto de Psicologia

_____________________________________________________________

Prof. Dra. Norma Lucia Neris de Queiroz Suplente

Secretaria do Estado de Educao do Distrito Federal Pesquisadora CNPq

Braslia, abril 2014

DEDICATRIA

A Deus, como uma forma de louvor ao seu nome, pelas inimaginveis bnos que

perpetua em minha vida.

minha me, Linete Carvalho, exemplo de vida, para quem barreira alguma tornou-se

grande no momento de oferecer famlia o maior e melhor amor do mundo.

minha filha, Yllare Dayelle, completude minha, razo da plenitude de meu viver,

outro pedacinho do cu que Deus trouxe Terra e que fez com que a vida ganhasse os mais

diversos e belos sentidos.

minha irm, Thalita Carvalho, que faz aprender que nas diferenas nos completamos

e fazemos mais fortes.

Ao meu irmo Paulo Welson, menino de ouro.

Ao meu pai que tem imensa participao na histria de vida que me fez ser quem sou.

Ao Aedson grande companheiro nessa caminhada.

minha famlia, grande fortaleza que no se restringe aos cinco seres humanos e

quatro bichinhos que residem no meu lar, mas que maior, unida pelo lao de amor comum

s famlias do interior e que se remexe ao sinal de ameaa a quaisquer de suas/eus

componentes.

A cada aluna/o escondida/o nessas escolas Brasil afora esperando que algum as/os

ajude a se encontrarem.

AGRADECIMENTOS

A Deus, sempre. Razo de todas as coisas, materializador de todas as possibilidades,

que desde o meu nascimento abenoou-me fazendo-me nascer no seio familiar a que perteno

e que perpetua as imensas graas, dia aps dia, consolidando minhas vitrias e fazendo-me

querer oferecer o melhor de mim

minha me Linete, caminho dos caminhos, por fazer de mim esta que sou com todas

as qualidades e todos os defeitos e por, mesmo sem saber, ter plantado em mim a semente do

querer mudar o mundo.

minha Yllare, razo de todos os propsitos, de toda a minha fora, principalmente

por suportar, sei que duramente, minhas ausncias fsicas, meus afastamentos durante esse

tempo e por fazer da minha vida esse mar de felicidade.

minha irm Thalita pelo apoio de sempre e, mormente pelos imensos amor e

cuidado dispensados razo do meu amor maior.

Ao meu irmo Welson pela categrica crena em minha competncia estudantil.

Ao meu pai pela importante presena na construo de minha histria.

minha famlia por ser a melhor das melhores. Em especial ao Tio Pedro, por tudo.

Ao Aedson pelo irrestrito estmulo, pelos ouvidos atentos, pelas palavras carinhosas

nos momentos de crise e por ter torcido e apoiado tanto essa minha realizao.

professora Dalva, a primeira e eterna, por ter sido minha alfabetizadora na primeira

srie, numa poca em que era obrigatrio saber ler e escrever na alfabetizao, por construir

em suas/eus alunas/os competncias muito bem estruturadas mesmo sem possuir nvel

superior ou outros cursos mais e por ter despertado em mim o amor pela educao.

professora Alessandra Leite por ter sido exemplo de competncia e tica, ter

apresentado o melhor da Psicologia que tanto aprendi a amar e ter aumentado mais ainda o

amor pelo campo educacional.

Ao Paulo e Aline Wanderer pelo apoio, por terem me estimulado a correr atrs desse

sonho.

Kelly e ao Felipe, primeira pela prestatividade realmente incondicional, ao

segundo pela companhia, ajuda e pelas caronas cheias de graa.

prefeitura de Barreiras, nas pessoas de Maria do Carmo, Otoniel, Rose, Irmo Joo

e, principalmente Geraldo Abbhussen. Este ltimo por, sem sequer conhecer-me, diante de

um documento arguido, ter tido uma postura de primar pelo bom senso, fazendo-me pensar

que ainda h esperana na poltica.

prefeitura de So Desidrio, na pessoa de Demir Barbosa, que mesmo no havendo

previso legal no municpio apostou na possiblidade de meu aperfeioamento profissional

enquanto servidora pblica municipal.

Ao Joo e todo o pessoal da Emtram pela ateno e por quebrar vrios galhos.

A todas/os as/os funcionrias/os do PGPDS pelo auxlio, principalmente Cludia

pela eficincia costumeira.

s professoras do PGPDS, cada uma a sua maneira, pelos ensinamentos em cada

detalhe e por terem me possibilitado perceber as inconsistncias que tambm existem na

academia, o que potencializou minha criticidade.

s professoras Norma, Regina e Silmara por terem aceitado fazer parte da banca e

auxiliar-me rumo a melhorias.

professora Diva, a doura na docncia, por ter-me acolhido e por me fazer

presenciar uma interessante articulao entre teoria e prtica, principalmente fazendo-me ver

na prtica o que a teoria prega em relao crena na autonomia, no crescimento, na

criatividade da/o aluna/o.

minha linda amiguinha Sandra por ouvir, compartilhar, pelos enfrentamentos e

aprendizados conjuntos, pela cumplicidade.

s/aos colegas do mestrado como um todo, em especial s Carine, Geane, Janana,

Priscila e Albenira, por sofrer e crescer junto.

Ao grupo do XIII Plenrio do CRP03 pelo companheirismo, pelas possibilidades e

portas de conhecimento abertas.

Psicologia, para mim uma entidade que sinto, que me modifica, que extrai de mim o

melhor e gera em mim o desejo de construir, de pouquinho em pouquinho, uma sociedade

mais humana.

equipe da EMGRC pelo acolhimento, pelas portas abertas, por confiar em meu

trabalho e fazer parte da concretizao desse sonho.

s lindinhas e aos lindinhos, pessoal de DPE, por compartilharem algo de vocs

comigo e pelo aprendizado que me proporcionaram. Com certeza melhor parte do mestrado.

s minhas meninas e aos meus meninos, as/os do trabalho em Barreiras e as/os da

pesquisa em So Desidrio, pela riqueza que geraram em meu ser, por me fazerem ver o

potencial de vocs e que juntas/os podemos maximiz-los.

s/os professoras/es e s famlias que participaram da pesquisa por se colocarem

disposio para a construo de novos conhecimentos cientficos.

turma do baralho pelo lado a lado enquanto eu produzia e vocs jogavam alegrando

minhas produes.

A cada pessoa que passou em minha vida deixando uma marca que me ajuda a ser

quem sou.

As palavras sempre ho de faltar para expressar o quo grata sou por cada pedacinho

de contribuio nesse caminho. Oxal que viro prximas vezes e vocs estaro comigo.

"(. . .) meu papel no mundo no s o de quem

constata o que ocorre, mas tambm o de quem

intervm como sujeito de ocorrncias. No sou

apenas objeto da histria, mas seu sujeito

igualmente. No mundo da histria, da cultura, da

poltica, constato no para me adaptar, mas para

mudar".

Paulo Freire.

Carvalho-Santos, E. P. (2014) Entraves na construo da leitura e escrita: subsdios

Psicologia Escolar. Dissertao de mestrado, Universidade de Braslia, Braslia.

RESUMO

O estudo teve como objetivo investigar situaes de entraves na construo da leitura e escrita

de alunas/os observadas/os nos anos finais do ensino fundamental, com vistas a promover

reflexes que subsidiem a atuao da/o psicloga/o escolar. Com base nos pressupostos da

Psicologia histrico-cultural e da abordagem Psicologia sociocultural construtivista, nos

estudos e pesquisas realizadas principalmente nos campos da Psicologia Escolar, Psicologia

do Desenvolvimento e da Educao em relao construo da leitura e escrita, foi realizado

um estudo em uma Escola da Rede Pblica Municipal de uma cidade do interior da Bahia. A

Escola est localizada na zona urbana e atende, no perodo diurno, no ensino fundamental

turmas de 5 ao 6 ano e de 6 a 8 srie e; no perodo noturno, na Educao de Jovens e

Adultos. Participaram deste estudo: nove alunas/os entre 10 e 25 anos de idade de turmas dos

5 e 6 anos e da 6 srie da escola selecionada e que apresentavam entraves na construo da

leitura e escrita; sete de suas/eus professoras/es; seis famlias e a pesquisadora. Coerente com

os pressupostos tericos, os procedimentos metodolgicos constaram de: entrevistas

individuais episdicas, com todas/os as/os participantes, observao das prticas pedaggicas

das salas de aula das/os professora/es envolvidas/os, realizao de atividades de leitura e

escrita desenvolvidas individual e coletivamente com as/os participantes discentes, anlise de

documentos e dirio de campo. A anlise dos resultados foi realizada em dois nveis: 1) as

informaes construdas foram organizadas de acordo com cada procedimento utilizado; 2) a

partir desse primeiro nvel de anlise, foi realizada a triangulao dos registros, que permitiu a

construo de categorias de anlise, possibilitando o exame minucioso e interpretativo das

informaes Os resultados indicaram que as concepes das/os participantes esto ainda

carregadas de interpretaes naturalizantes sobre a construo da leitura e escrita, contudo j

so observadas algumas concepes crticas que prenunciam a possibilidade de mudanas

futuras, as quais podem ser promovidas pela/o psicloga/o escolar a partir de uma prtica

crtica que entenda a complexidade e dinamicidade dos fenmenos estudados e que atue junto

equipe escolar, s/os alunas/os e s famlias, a fim de promover reflexes que permitam a

adoo de concepes mais crticas e a qualificao do processo de construo da leitura e

escrita.

Palavras-chave: entraves; construo da leitura e escrita; psicologia escolar;

desenvolvimento humano.

Carvalho-Santos, E. P. (2014) Restrain in the construction of reading and writing: subsidize

the school psychologists. Dissertao de mestrado, Universidade de Braslia, Braslia

ABSTRACT

The study aimed to investigate situations of restrains in the construction of reading and

writing of the students observed in the final years of primary school, in order to promote

reflections to subsidize the performance of the school psychologist. Based on the assumptions

of cultural-historical psychology and the constructivist sociocultural psychology approach, in

studies and research conducted mainly in the fields of School Psychology, Developmental and

Educational Psychology in relation to the construction of reading and writing, a study was

conducted in a municipal public school of a country town of state of Bahia. The School is

located in the urban area and attends during daytime in elementary school with classes from

5th to 6th years and from 6th to 8th grades, and at nocturnal period, in Youth and Adult

Education. Participants of this study were: nine students between 10 and 25 years old from

classes of 5th and 6th years and from 6th grade from selected school that presented restrains

in the construction of reading and writing; seven of their teachers; six families and the

researcher. Consistent with the theoretical assumptions, methodological procedures were

consisted by: episodic individual interviews with all participants, observation of pedagogical

practices of the classrooms of the teachers involved, performance of reading and writing

activities developed individually and collectively with the students participants, documents

analysis and field diary. Analysis of the results was performed on two levels: 1st) the

information constructed was organized according to each procedure utilized; 2nd) after this

first level of analysis, the triangulation of records was performed, which enabled the

construction of categories of analysis, allowing the thorough and interpretive examination of

information. The results indicated that the conceptions of the participants are still filled of

naturalizing interpretations about the construction of reading and writing, although some

critical conceptions that predict the possibility of future changes are already observed, which

can be promoted by school psychologist from a critical practice that understands the

complexity and dynamicity of the phenomena studied and acting with the school staff, to

students and families in order to promote reflections that permit the adoption of most critical

conceptions and qualification of the construction process of reading and writing.

Keywords: restrains; construction of reading and writing; school psychology; human

development

SUMRIO

APRESENTAO

I. FUNDAMENTAO TERICA

1.0 - Desenvolvimento humano e construo da leitura e escrita

1.1 - Desenvolvimento humano na perspectiva histrico-cultural

1.2 - Construo da leitura e escrita na perspectiva

da Psicologia histrico-cultural

2.0 - Psicologia Escolar: possibilidades de um campo em consolidao

3.0 - Entraves na construo da leitura e escrita: consideraes

sobre o cenrio brasileiro

II - OBJETIVOS DE PESQUISA

III - METODOLOGIA

Enfoques terico-metodolgicos

4.0 - Mtodo

4.1 - O contexto

4.2 - Participantes

4.2.1 - Cuidados ticos

4.3 - Instrumentos e procedimentos metodolgicos

4.3.1 - Anlise de documentos

4.3.2 - Observao

4.3.3 - Dirio de campo

4.3.4 - Atividade de sondagem da leitura e escrita

4.3.5 - Entrevistas individuais

5.0 - Procedimentos de anlise das informaes

IV RESULTADOS E DISCUSSO

6.0 - Dinmicas de sala de aula e atribuio de notas avaliativas

7.0 - Concepes das/os professoras/es

8.0 - Concepes das famlias

9.0 - Concepes das/os alunas/os

10.0 - A leitura e escrita das/os alunas/os

11.0 - Construindo a discusso

CONSIDERAES FINAIS

REFERNCIAS

APNDICES

13

17

17

18

23

28

34

40

41

41

42

42

43

45

45

46

46

47

47

49

51

53

53

56

65

70

74

77

94

98

100

LISTA DE QUADRO E FIGURAS

Quadro 1 - Forma de identificao das/os participantes da pesquisa 44

Quadro 2 - Atividades observadas em sala de aula 54

Quadro 3 - Categorias construdos a partir das entrevistas com as/os professoras/es 56

Quadro 4 - Categorias construdas a partir das entrevistas com as famlias 65

Quadro 5 - Categorias construdas a partir das entrevistas com as/os alunas/os 70

Quadro 6 - Caractersticas gerais da leitura das/os alunas/os 74

Figura 1 - Escrita espontnea F 16 anos, 6 srie. 75

Figura 2 - Escrita espontnea L 10 anos, 5 ano. 76

Figura 3 - Escrita espontnea E 25 anos, 6 ano. 76

Figura 4 - Escrita espontnea D 13 anos, 5 ano. 76

Figura 5 - Escrita espontnea M 16 anos, 5 ano. 77

Figura 6 - Escrita espontnea A 21 anos, 6 ano. 77

13

APRESENTAO

A Psicologia Escolar um dentre os campos de atuao e rea de conhecimento da

Psicologia e tem sido cada vez mais requisitada para oferecer suas contribuies melhoria

do processo ensino-aprendizagem. Minha atuao como psicloga da Secretaria Municipal de

Educao de um municpio do interior da Bahia tem me colocado em contato constante com

as problemticas enfrentadas pela localidade e, ao mesmo tempo, me dado base para avaliar

que contribuies a Psicologia Escolar pode oferecer educao.

Dentre os muitos desafios enfrentados em minha atuao profissional, ganha destaque

a quantidade de discentes encaminhadas/os1 para atendimento psicolgico, com queixas

escolares decorrentes de entraves na construo da leitura e escrita, que resultam em histrico

de repetncia ou progresso nos anos escolares, sem o correspondente domnio das

competncias curriculares. No ltimo caso, muitas/os alunas/os chegam aos anos finais do

ensino fundamental sem adquirir as competncias de leitura e escrita definidas no currculo

escolar.

Essa situao tem diversas repercusses na realidade escolar e na vida dessas/es

alunas/os e possvel observar indicadores de impotncia, manifestao de sentimentos de

tristeza e at de sintomas depressivos. Tambm, por parte das famlias, so observadas

manifestaes comportamentais diversas, que expressam sua angstia com o fato de

perceberem que suas/eus filhas/os no esto aprendendo.

Enquanto psicloga, a percepo dessa realidade na prtica profissional fez surgir o

desejo de compreender melhor o assunto, a fim de descobrir formas de auxiliar no

enfrentamento dessa problemtica. Minha perspectiva foi de que, enquanto psicloga que atua

no campo educacional, fosse possvel compreender alguns aspectos dessa realidade para

transform-la.

Atuo em dois municpios do interior da Bahia enquanto servidora pblica, em ambos

trabalho com educao. Entretanto, meu enquadramento de trabalho de Psicloga Clnica,

sendo que, na prtica, feito o atendimento a estudantes em um dos municpios e

professoras/es em outro. Apesar da atuao possuir contornos clnicos, sempre h o

desenvolvimento de intervenes caractersticas da Psicologia Escolar, trabalhando com

1 Nesse estudo utilizamos a linguagem gendrada, em que escrevemos ambas as flexes de

gnero. Esse um posicionamento poltico social que tem sido utilizado no mbito do

Sistema Conselhos de Psicologia e em outras cincias, como forma de luta contra

preconceitos de gnero, por entender que at manifestaes aparentemente imutveis, como a

lngua, carregam aspectos de uma realidade histrico-cultural que precisa ser repensada e

modificada.

14

formao de docentes, participao em eventos como mediadora de debates e orientao s

unidades escolares sobre casos relacionados ao processo ensino-aprendizagem.

A imerso nessa realidade sempre fez com que fosse sentida a necessidade de

modificar o foco do atendimento clnico para um atendimento no campo da Psicologia

Escolar. Contudo, a insero em espaos de poder em que gestoras/es municipais no

compreendem a Psicologia para alm da clnica, dificultam sobremaneira o dilogo para se

tentar propostas inovadoras. Apesar disso, entendemos que o que construmos a partir dessa

pesquisa pode subsidiar projetos futuros relacionados questo.

preciso repensar a configurao de nossa realidade educacional, pois mesmo com

alguns avanos histricos e com consolidao de uma srie de direitos, o retrato percebido na

prtica profissional de uma educao escolar amordaada, estagnada, na qual professoras/es,

em sua maioria, se cansam de sua prtica, em que discentes sofrem com problemas que

acabam se tornando psicossociais e cognitivos diversificados, e as famlias assistem a este

cenrio sem ao menos saber o que acontece e sem adotar uma atitude ativa diante do que se

apresenta.

Tais configuraes despertaram o desejo de estudar a realidade descrita, com o

objetivo de investigar situaes de entraves na construo da leitura e escrita de alunas/os

observadas/os nos anos finais do ensino fundamental, com vistas a promover reflexes que

subsidiem a atuao da/o psicloga/o escolar.

Optamos pela terminologia entraves, por entender que muitas vezes as nomenclaturas

dizem de nossas crenas e forma de interpretao dos fenmenos. Como veremos no decorrer

do trabalho, as terminologias comumente utilizadas tais como, fracasso escolar, dificuldades

de aprendizagem - para referir-se a problemas no processo ensino-aprendizagem,

comunicam/metacomunicam uma ideia inicial de que o problema reside em uma pessoa

especfica, geralmente na/o aluna/o. Vrios estudos rompem com essa viso e utilizam esses

mesmos termos com um olhar crtico, todavia, como as crenas na culpabilizao isolada de

pessoas pelos problemas na educao so ainda muito presentes, utilizamos o termo entrave.

Compreendemos entrave como uma barreira que se estabeleceu no processo ensino-

aprendizagem e que no apresenta nenhuma causa especfica ou uma pessoa culpada pela sua

consolidao, mas que se constri num movimento histrico-cultural multideterminado, em

que diferentes fenmenos humanos e sociais influenciam a manifestao dessa problemtica,

que precisa ser analisada em toda sua complexidade.

Para alcanarmos o objetivo de nosso estudo partimos do entendimento das

concepes de professora/es, alunas/os e famlias e de dinmicas escolares especficas, bem

como de observao sobre como competncias de leitura e escrita so apresentadas pelas/os

15

discentes participantes. Trabalhamos com um olhar diagnstico analisando as concepes

demonstradas pelos sujeitos da pesquisa e interpretando especificidades sobre as dinmicas

escolares, luz do referencial terico construdo e com base nas competncias tcnico-

profissionais enquanto psicloga.

A pesquisa buscou responder aos seguintes questionamentos: Como as dinmicas e

especificidades da realidade escolar podem orientar o trabalho da/o psicloga/o escolar?

Quais as concepes de professoras/es, alunas/os e famlias sobre o tema construo da leitura

e escrita? Como as interaes entre professora/or-aluna/o e entre aluna/o-aluna/o interferem

negativa ou positivamente nas situaes de entraves na construo da leitura e escrita? Quais

as competncias necessrias /ao psicloga/o escolar para o entendimento crtico sobre as

questes relacionadas aos entraves na construo da leitura e escrita? Como a/o psicloga/o

escolar pode atuar para qualificar a construo da leitura e escrita de alunas/os que se

encontram em situaes de entraves no desenvolvimento de tais competncias?

Como o ensejo do estudo foi entender especificidades mais abrangentes do fenmeno

a ser estudado, a pesquisa revelou novas nuances sobre o tema e adquiriu grande relevncia

social, uma vez que pode auxiliar psiclogas/os, professoras/es e famlias a lidarem melhor

com os entraves na construo da leitura e escrita de alunas/os que so promovidas/os nos

anos escolares sem construrem essas competncias.

Na busca pela consolidao do estudo, a primeira unidade debatida foi a

fundamentao terica, a qual se dividiu em trs sees: 1.0) desenvolvimento humano e a

construo da leitura e escrita, 2.0) Psicologia Escolar: possibilidades de um campo em

consolidao e 3.0) entraves na construo da leitura e escrita: consideraes sobre o cenrio

brasileiro. A primeira seo foi dividida em duas subsees: 1.1) desenvolvimento humano na

perspectiva histrico-cultural e 1.2) construo da leitura e escrita na perspectiva da

Psicologia histrico-cultural. A seo aprofunda o entendimento sobre o desenvolvimento

humano e a construo da leitura e escrita, de acordo com os postulados da Psicologia

histrico-cultural proposta por Vigotski e da abordagem sociocultural construtivista de

Valsiner.

As outras duas sees foram relacionadas abordagem terica escolhida e enfocaram

a compreenso sobre a atuao da/o psicloga/o escolar no Brasil, em sua relao com a

construo da leitura e escrita, e o entendimento sobre a relao entre as situaes de entrave

na construo dessas competncias e a realidade educacional brasileira.

A segunda unidade apresentou os objetivos de pesquisa e na unidade trs discorremos

sobre a metodologia, a qual teve uma orientao qualitativa baseada na perspectiva histrico-

cultural de Vigotski e nas propostas metodolgicas construdas pela Psicologia sociocultural

16

construtivista de Valsiner. Esclarecemos os instrumentos e procedimentos utilizados para a

construo das informaes de pesquisa, tais como: anlise de documentos, dirio de campo,

observao, entrevistas individuais episdicas, atividade de sondagem da leitura e escrita

individual e coletiva. Todo o desenvolvimento do estudo foi pautado nos preceitos ticos que

respaldam a pesquisa com seres humanos.

Por fim, a quarta unidade consistiu nos resultados e na discusso e foi estruturada de

modo que, a partir das informaes construdas, fosse possvel analis-las do ponto de vista da

Psicologia Escolar, em sua relao com os postulados destacados na fundamentao terica.

Interpretamos as informaes com base nos conhecimentos terico-cientficos e tcnico-

profissionais, as entrecruzamos ao referencial terico da pesquisa e assim foram construdos

subsdios para nortear a atuao da/o psicloga/o escolar no contexto dos entraves na

construo da leitura e escrita.

17

I FUNDAMENTAO TERICA

1.0 - Desenvolvimento Humano e Construo da Leitura e Escrita

O interesse em compreender como o ser humano se desenvolve remonta ao incio dos

tempos e postulados tericos sobre a temtica esto presentes em obras teolgicas e

filosficas h vrios sculos, contudo a fundao da Psicologia como cincia ainda recente.

No decorrer do tempo entre as elucubraes tericas seculares e a inaugurao da Psicologia

cientfica no sculo XIX as especulaes no se modificaram muito, os mtodos e tcnicas

para tentar responder aos questionamentos que foram, pouco a pouco, tomando outras

formas (Bock, Furtado e Teixeira, 2001; Schultz & Schultz, 2002).

Em um contexto geral, apesar da vasta gama de fenmenos psquicos e sociais

estudados pela Psicologia, possvel dizer que o interesse de tal cincia sempre foi

compreender como se desenvolve o ser humano em toda sua complexidade. Inicialmente, os

estudos estiveram mais concentrados em processos psicolgicos bsicos, personalidade,

cognio, mas sempre voltados ao entendimento de como o ser humano funciona (Schultz &

Schultz, 2002). Por conseguinte, o foco da Psicologia a busca para compreender as aes,

as atitudes, os comportamentos e tantos outros estados subjetivos humanos que se revelam

dinamicamente na relao dos homens entre si no mundo em que vivem (Cambaba, Silva e

Ferreira, 1998, p. 209).

Nos primrdios dos estudos sobre o tema, os postulados tericos sobre o

desenvolvimento humano defendiam a separao entre o biolgico e o social, compreendendo

a formao humana de uma maneira dissociada, radicalizando o discurso em relao ao tema

e gerando abordagens tericas divergentes que ou compreendiam o sujeito como produto da

realidade biolgica ou como produto do meio (Ades, 1987; Aspesi, Dessen & Chagas, 2005;

Madureira & Branco, 2005; Motta, 2005).

A histria da Psicologia do Desenvolvimento foi marcada pelas tenses entre essas

diferentes e dicotmicas abordagens. Segundo Aspesi et al. (2005) e Motta (2005) foi

somente na segunda metade do sculo XX que uma viso mais integradora passou a

influenciar os estudos sobre desenvolvimento humano. Antes de possuir essas caractersticas

tais estudos eram limitados e propunham definir parmetros ou padres normativos que

pudessem explicar o que, como e por que as mudanas ocorrem na infncia e na adolescncia,

alm dos possveis desvios que poderiam ocorrer nessa trajetria (Aspesi et al., 2005, p. 20).

A busca era por compreender o desenvolvimento apontando padres de normatizao

que permitissem avaliar se crianas e adolescentes estavam seguindo a suposta linha normal

de desenvolvimento e analisar os desvios regra, tentando construir possibilidades de fazer

18

com que tais desvios pudessem ser trabalhados para se adequar aos padres normativos. Outra

caracterstica dos primeiros estudos sobre desenvolvimento humano muito criticada na

atualidade, diz respeito ao fato de as teorizaes focarem somente os perodos da infncia e da

adolescncia (Aspesi et al., 2005; Motta, 2005).

Aspesi et al. (2005) enfatizaram que as crticas s vises dicotmicas, simplificao

do desenvolvimento humano com foco em algumas fases da vida e teorizao de que h

estgios universais de desenvolvimento levaram s modificaes nos estudos referentes

questo e a partir da segunda metade do sculo XX possibilitaram a ascenso de uma viso

pluralista permitindo a coexistncia de explicaes de naturezas tericas diversas, e de que o

desenvolvimento no um fenmeno linear, mas, sim um processo dinmico e complexo de

interaes entre fatores biolgicos e culturais (Aspesi et al., 2005, p. 21).

O entendimento que se tem na atualidade de que o desenvolvimento humano um

processo de construo contnua que se estende ao longo da vida dos indivduos, sendo fruto

de uma organizao complexa e hierarquizada que envolve desde os componentes

intraorgnicos at as relaes sociais e a agncia humana (Sifuentes, Dessen & Lopes de

Oliveira, 2007, p. 379). Por isso, abarca o estudo de variveis afetivas, cognitivas, sociais e

biolgicas em todo o ciclo da vida e faz interface com diversas reas do conhecimento como a

biologia, antropologia, sociologia, educao, medicina entre outras (Motta, 2005).

Compreendendo o desenvolvimento humano sob essa tica possvel construir

estratgias para a produo de pesquisas, a fim de entender de forma mais aprofundada como

o ser humano se constitui. Assim sendo, a pesquisa em desenvolvimento deve focalizar (. . .)

os indivduos inseridos em uma rede de relaes, o que requer considerar diferentes nveis de

complexidade social e a relao dialtica entre os indivduos e o meio social (Hinde, 1979,

citado em Dessen, 2005, p. 265).

1.1 - Desenvolvimento humano na perspectiva histrico-cultural

Compreender o ser humano dessa perspectiva considera-lo como sujeito em

permanente processo de construo, formao e mudana, sujeito que modifica e

modificado pelas suas realidades histricas, sociais e culturais. Essa uma das premissas da

Psicologia histrico-cultural proposta por Vigotski.

Vigotski (1984/2007; 1934/2008) prope que o ser humano se constitui a partir das

relaes entre os fatores filogenticos, ontogenticos, sociogenticos e microgenticos. A

inter-relao complexa entre essas esferas, atravs do papel ativo do ser humano, permite o

desenvolvimento do que o terico denomina de funes psicolgicas superiores. Estas so

prprias da espcie humana e foram foco dos estudos de Vigotski na busca para entender o

19

processo de desenvolvimento humano. O autor trabalhou ao lado de Luria e Leontiev tentando

alcanar uma compreenso aprofundada desse ser complexo e construdo a partir de uma

realidade histrica, cultural e social (Luria, 1930/2008).

Para Vigotski, o processo de construo humana ocorre pelas relaes do sujeito com

seu mundo numa dinmica dialtica em que ambos transformam-se mutuamente. A dinmica

dialtica na constituio humana caracterizada por um processo que bidirecional, em que

os diferentes fenmenos influenciam um ao outro. Nessa linha de argumento, Vigotski

analisou que o mtodo dialtico, deve conter uma forma de anlise que compreenda os nveis

mais complexos dos fenmenos, ou seja, a anlise da forma mais desenvolvida alcanada por

aquele fenmeno (Duarte, 2000).

Duarte (2000) destacou que, no mtodo dialtico, a complexidade dos fenmenos no

se apresenta imediatamente, mas ter que ser descoberta atravs de um processo mediacional

em que a anlise focar processos de abstrao. Assim como o mtodo para compreender os

fenmenos dialtico, a relao do sujeito com o mundo tambm o . Sendo dialtica

tambm mediada, no contexto de desenvolvimento humano essa mediao ocorre por meio de

instrumentos ou signos e em todo o processo o ser humano desenvolve um papel ativo, no se

situando apenas como receptor das realidades advindas do meio externo (Vigotski,

1984/2007).

Essa concepo de ser humano compartilhada por vrios autores, dentre eles,

Valsiner (1994) que defende que somos seres culturais, mas no sendo simplesmente

constitudo pela cultura e sim, sendo ambos reciprocamente constitutivos. Assim, a influncia

da cultura, das realidades histrica e social sobre as pessoas, no unilateral, mas

bidirecional, em que sujeito e cultura so sistemas complexos e dinmicos (Valsiner, 1998;

2012).

Para compreender a complexidade desses sistemas, necessrio entender que as

funes psicolgicas superiores so construdas somente a partir da dialtica das relaes

sociais, culturais e histricas. Segundo Prestes (2010) a compreenso das funes

psicolgicas superiores o aspecto ao qual Vigotski ofereceu maior importncia quando

elaborou a concepo histrico-cultural.

Vigotski no negava a importncia do biolgico no desenvolvimento humano, mas

afirmava que ao longo do processo de assimilao dos sistemas de signos que as

funes psquicas biolgicas transformam-se em novas funes, em funes psquicas

superiores. Para ele, todo processo psquico possui elementos herdados

biologicamente e elementos que surgem na relao e sob influncia do meio (Prestes,

2010, p. 36).

20

nesse processo inter-relacional que o ser humano se constri e que as funes

psicolgicas superiores se desenvolvem. A aprendizagem foi muito estudada por Vigotski que

a entende como um fenmeno que constri e modifica o processo de desenvolvimento

humano por meio da internalizao das funes psicolgicas superiores. O que Vigotski

chama de internalizao no envolve uma recepo do que exterior ao sujeito, trata-se sim

da reconstruo interna de uma operao externa (Vigotski, 1984/2007, p. 56).

O autor ofereceu grande importncia ao conceito de funes psicolgicas superiores e

analisou que essas funes que so exclusivamente humanas se desenvolvem atravs de um

processo social, em que algo que exterior ao indivduo, ou seja, atividade socializada, passa

a ocorrer internamente sendo transformado, de um fenmeno interpessoal para um fenmeno

intrapessoal, por meio de uma srie de eventos sucessivos. So, portanto, os seguintes

processos que ocorrem no desenvolvimento das funes psicolgicas superiores:

a) uma operao que inicialmente representa uma atividade externa reconstruda e

comea a ocorrer internamente (. . .); b) um processo interpessoal transformado num

processo intrapessoal (. . .); c) a transformao (. . .) resultado de uma longa srie de

eventos ocorridos ao longo do desenvolvimento (Vigotski, 1984/2007, p.57-58).

a aprendizagem que permite o desenvolvimento das funes psicolgicas superiores,

o que s ocorre a partir de uma relao mediada entre sujeito e meio, na qual instrumentos e

signos possuem um papel preponderante. , destarte, a atividade mediada por instrumentos

e signos - que permite a consolidao da aprendizagem e consequentemente o

desenvolvimento das funes psicolgicas superiores (Vigotski, 1984/2007). Nesse processo,

esto envolvidos sentimentos e uma possvel reflexo sobre o sentir, mediante o uso de

signos (Valsiner, 2012, p. 250) caracterizando a dimenso afetiva da mediao e a postura

ativa do sujeito diante dessas construes.

Vigotski (1984/2007) afirmava que os instrumentos so utilizados na consolidao de

uma atividade prtica sendo externamente dirigidos, os signos por sua vez, relacionam-se com

o campo psicolgico, dirigindo-se internamente para controle do prprio indivduo. Nesse

contexto, a fala para Vigotski, o fenmeno simblico mais importante, sendo que

s vezes a fala adquire uma importncia to vital que, se no for permitido seu uso, as

crianas pequenas no so capazes de resolver a situao (. . .). As crianas resolvem

suas tarefas prticas com a ajuda da fala, assim como dos olhos e das mos. Essa

unidade de percepo, fala e ao, que, em ltima instncia, provoca a internalizao

do campo visual, constitui o objeto central de qualquer anlise da origem das formas

caracteristicamente humanas de comportamento (Vigotski, 1984/2007, p. 13).

21

A importncia das realidades culturais, histricas e sociais inegvel, tanto que as

funes psicolgicas superiores, inclusive a fala, so primeiramente dirigidas para o exterior.

No contexto da fala, por exemplo, desde as primeiras reaes que a criana tem voz

humana, at a consolidao da aprendizagem da linguagem falada, a funo social fica bem

clara, mas at esse momento, no h uma vinculao direta entre fala e pensamento. Vigotski

(1934/2008) destacou que esses so dois fenmenos diferentes, que seguem duas linhas

distintas e se cruzam em um momento especfico do desenvolvimento, sendo que, para o

autor, nesse cruzamento que reside um dos momentos de maior significado no processo de

desenvolvimento intelectual.

Esse instante crucial, em que a fala comea a servir ao intelecto, e os pensamentos

comeam a ser verbalizados, indicado por dois sintomas objetivos inconfundveis:

(1) a curiosidade ativa e repentina das crianas pelas palavras, suas perguntas sobre

cada coisa nova (O que isto?); e (2) a consequente ampliao do seu vocabulrio,

que ocorre de forma rpida e aos saltos (Vigotski, 1934/2008, p. 53).

O autor destacava que nesse perodo a criana j utiliza a fala exterior de modo

consciente, comunicando-se com as outras pessoas, estabelecendo contato social com o meio,

assim como fazia outrora, todavia passa a pronunciar palavras, o que no ocorria

anteriormente. Posteriormente, a fala que era somente exteriorizada passar a ser

interiorizada, utilizada com fins de organizao do pensamento.

Os processos de desenvolvimento da fala e do pensamento podem ser utilizados para

explicar como, de acordo com a perspectiva histrico-cultural de Vigotski, o processo de

desenvolvimento humano ocorre como um todo. Nas palavras do autor:

A natureza do desenvolvimento se transforma, do biolgico para o scio histrico. O

pensamento verbal no uma forma de comportamento natural e inata mas

determinado por um processo histrico-cultural e tem propriedades e leis especficas

que no podem ser encontradas nas formas naturais de pensamento e fala. Uma vez

admitido o carter histrico do pensamento verbal, possvel compreender que este

est sujeito a todas as premissas do materialismo histrico, que so vlidas para

qualquer fenmeno histrico na sociedade (Vigotski, 1934/2008, p. 63).

Como o desenvolvimento da fala, do pensamento e de todas as funes psicolgicas

superiores ocorre a partir de processos sociais, necessrio que haja mediao. De tal forma,

a criana no apresenta possibilidades de desenvolver tais funes se for privada de uma

convivncia social que dever orientar suas atividades. A criana tem um papel ativo nesse

processo, por conseguinte Vigotski (1934/2008) defendia que para alm de visualizar a

22

mediao do outro preciso observar os motivos e interesses, que guiam a criana para uma

atividade, s assim ser possvel entender seu processo de desenvolvimento.

Segundo Pelizzari, Kriegl, Baron, Finck e Dorocinski (2002), toda aprendizagem deve

possuir um significado para a criana, o qual se constri a partir dos conhecimentos que j

possui e dos que sero consolidadas. Esse processo no pode ser unidirecional, sem que a/o

professora/or considere o que a/o aluna/o traz, pois isso levar consolidao de uma forma

mecnica de aprendizagem que, muito provavelmente, no lograr sucesso na construo do

conhecimento. , portanto, indispensvel que aquilo que ser aprendido adquira um

significado para quem aprende, e a pessoa deve tambm implicar-se no seu prprio processo

de aprender, implicao essa que precisa ser permitida e estimulada pela/o professora/or.

Estimulado, pois responsabilidade da/o docente desenvolver estratgias que criem no

alunado interesse pela aprendizagem e permitida porque a/o docente ocupa um lugar de

autoridade que pode inibir a criao infantil ou permitir que ela se desenvolva.

A criana apresenta impulsos, motivos, necessidades, inclinaes (Vigotski

1934/2008). So esses motivos que orientam sua atividade em diferentes fases e a ao

ocorrida atravs da atividade que promove o desenvolvimento. De acordo com Prestes (2010,

p. 162), Vigotski denominou tal atividade de atividade-guia, conceituando-a como a

atividade que desempenha um papel fundamental nas mudanas psquicas da criana em

determinados estgios do desenvolvimento.

Na mesma obra, Prestes destacou, ainda, que a atividade-guia orienta o

desenvolvimento humano e responsvel pela formao e reestruturao dos processos

psquicos particulares, claro que em relao com as condies histricas e necessidades da

criana. Na fase pr-escolar a brincadeira a atividade-guia, na fase escolar a instruo

atividade-guia, na primeira so formados os processos de imaginao ativa, na segunda, so

formados processos de pensamento abstrato.

Analisando os pressupostos vigotskianos, Prestes (2010) enfatizou tambm que

Vigotski considerava que na fase escolar, tendo a instruo como atividade-guia, a mediao

proporcionada pela/o professora/or essencial e deve ser planejada conscientemente para

promover o desenvolvimento da criana.

Nesse processo a/o professora/or deve compreender a zona de desenvolvimento

proximal ZDP (Vigotski, 1984/2007)). Como sabemos, Vigotski enfatizou que a ZDP

revela as funes que ainda no amadureceram, mas que esto em processo de

amadurecimento, sendo que na fase escolar, podem consolidar-se a partir da instruo, papel

precpuo da/o professora/or.

23

Aspecto central das teorizaes vigotskianas reside no conceito de zona de

desenvolvimento proximal e na importncia dada ao processo de instruo, situando-o como

anterior ao desenvolvimento, desfazendo a ideia de que a tarefa da/o psicloga/o ou da/o

professora/or seja caracterizar o desenvolvimento e adaptar a instruo ao mesmo. O autor

defendeu que a funo do processo de instruo descobrir o que foi semeado, aquilo que s

oferecer frutos amanh (Vigotski, 1984/2007).

A esse respeito, Prestes retomou Vigotski afirmando que, apesar de ser necessrio

levar em conta o desenvolvimento das funes da criana como essas ocorrem segundo suas

prprias leis, ao mesmo tempo, necessrio considerar que essas leis adquirem diferentes

expresses dependendo de se a criana est ou no sendo instruda (citado por Prestes 2010,

p. 267). Por isso, a instruo deve orientar-se para a construo dos processos de abstrao,

focando, consequentemente, a tomada de conscincia.

O bom desenvolvimento da instruo papel da/o professora/or que, de acordo com

Raposo e Maciel (2005), possui maiores possibilidades de alcanar sucesso se na relao

professora/or-aluna/o forem promovidos espaos de coconstruo do conhecimento, pautados

em relaes de confiana e na promoo da interdependncia entre pares. A configurao da

instruo e de uma relao professora/or-aluna/o pautadas nesses pressupostos torna-se

propulsora da qualificao do processo ensino aprendizagem e, consequentemente, da

construo da leitura e escrita.

1.2 - A construo da leitura e escrita na perspectiva da Psicologia histrico-cultural

Vigotski e seu grupo de colaboradores desenvolveram estudos sobre a construo da

leitura e escrita e essas teorizaes orientaram o presente trabalho. Contudo, antes de analisar

os fundamentos de tais tericos em relao ao tema, til entender alguns aspectos histricos

sobre as teorizaes que o fundamentam. Ao analisar a literatura disponvel possvel

perceber que os estudos sobre o assunto so relativamente recentes, mas segundo Salles e

Parente (2007), despertaram o interesse de educadoras/es, linguistas, psiclogas/os e

fonoaudilogas/os.

Maciel (1996; 1999; 2004) corroborou tais ideias afirmando que o assunto passou a

receber maior ateno somente a partir do sculo XIX, quando se comeou a compreender

que a aprendizagem da leitura e escrita se tratava de um processo complexo que necessitava

ser mais bem estudado. A autora esclareceu que at a dcada de 60, no sculo XX, os estudos

sobre o processo de construo da leitura e escrita focalizavam a tentativa de elaborar os

melhores mtodos para alfabetizar.

24

poca as discusses estavam centralizadas nos debates sobre o mtodo global de

Declory e o mtodo fontico multissensorial de Montessori. O primeiro baseava-se numa

concepo gestaltista afirmando que, no momento de aprender a ler e escrever, primeiramente

a/o aluna/o teria uma viso da totalidade antes de chegar s partes constituintes da palavra.

Quanto ao mtodo montessoriano, enfatizava que a aprendizagem deveria partir do simples

para o complexo e que h uma correspondncia estreita entre as linguagens oral e escrita

(Maciel, 2010).

Freire e Macdo (1997) tambm estudaram abordagens referentes leitura e escrita,

destacando quatro delas: a acadmica, a utilitarista, a cognitiva e a romntica. Para os autores,

na perspectiva acadmica, as competncias de leitura e escrita so vistas como aquisio de

habilidades voltadas principalmente decodificao e ao desenvolvimento do vocabulrio. A

abordagem utilitarista, enfatiza a aprendizagem mecnica da leitura e escrita, com o objetivo

de produzir leitores que atendam aos requisitos bsicos de leitura da sociedade

contempornea (Freire & Macedo 1997, p. 177).

J a abordagem cognitiva d destaque construo do significado pelo qual os

leitores se envolvem numa interao dialtica entre eles e o mundo subjetivo (. . .). Segundo o

modelo do desenvolvimento cognitivo, a leitura encarada como um processo intelectual,

mediante uma srie de etapas de desenvolvimento fixas, no valorativas e universais (Freire

& Macedo, 1997, pp. 179-180). A abordagem romntica, segundo Freire e Macdo (1997),

enfoca que as competncias de leitura e escrita esto centradas na construo de significado,

sendo que esse gerado somente pela/o leitora/or e no pela interao entre leitora/or e

autora/or a partir do texto.

Fica claro que o debate sobre as diferentes abordagens tericas referentes construo

da leitura e escrita sempre esteve presente na histria do desenvolvimento do tema e, de

acordo com Soares (2004), no Brasil, isso se refletiu principalmente nas tentativas de cada

abordagem para compreender e defender a eficcia de diferentes mtodos de alfabetizao,

mormente os chamados mtodos analticos e sintticos (Soares, 2004).

Apesar dos desenvolvimentos ocorridos com o passar dos anos, ainda hoje, as

discusses metodolgicas so proeminentes nos estudos sobre o assunto. Sobre isso Freire e

Macedo (1997) destacaram que

no correr dos ltimos dez anos, a questo da alfabetizao adquiriu nova importncia

entre os educadores. Infelizmente, o debate que surgiu a respeito tende a ser uma

reciclagem de velhos pressupostos e valores relativos ao significado e utilidade da

alfabetizao. A ideia de que a alfabetizao questo de aprender a lngua padro

ainda permeia a enorme maioria dos programas de alfabetizao e manifesta sua lgica

25

na nfase que, novamente, se d leitura tcnica e s habilidades para a escrita

(p.170).

Morais (2006) discorreu que em pleno sculo XXI ainda so debatidos velhos mtodos

de alfabetizao e defendeu que alm da distino entre mtodos e metodologias de

alfabetizao, parece-nos necessrio considerar questes mais abrangentes como as condies

materiais para o exerccio dos ofcios de professor e de aluno, um debate especfico sobre a

formao do professor alfabetizador (Morais, 2006, p. 1).

No obstante, atualmente tambm tm sido produzidos trabalhos com concepes

mais crticas, voltados ao entendimento de como ocorre a aprendizagem da leitura e escrita.

Ribeiro (2011), ao estudar o estado da arte na alfabetizao, constatou que nas pesquisas em

que foram desenvolvidas anlises mais crticas, o aluno parou de ser responsabilizado pelo

fracasso de sua alfabetizao, existindo uma busca incessante - por parte dos pesquisadores

que se dedicam a rea em saber como todo o processo alfabetizatrio se desenvolve

(Ribeiro, 2011, p. 96).

A cincia psicolgica continua, at a atualidade, tendo grande influncia nos estudos

sobre a construo da leitura e escrita, o que se justifica pelas contribuies que buscou

oferecer ao mbito da educao. Luria j enfatizava claramente a fertilidade que o

entendimento das especificidades sobre a produo da leitura e escrita apresenta Psicologia,

afirmando que do momento que uma criana comea, pela primeira vez, a aprender a

escrever at a hora que domina finalmente essa habilidade, h um longo perodo,

particularmente interessante para a pesquisa psicolgica (Luria, 1930/2006, p. 180).

Por conseguinte, a construo da leitura e escrita ser aqui entendida como um

processo complexo que envolve o desenvolvimento de diferentes funes psicolgicas

superiores, tratando-se portanto de uma habilidade cognitiva, construda numa relao

dialtica entre sujeito e cultura, atravs da consolidao de processos de mediao (Luria,

1930/2006). A aprendizagem dessa competncia um ato criativo que implica uma

compreenso crtica da realidade (Freire & Macedo, 1997, p. 194). Assim sendo, ler e

escrever no compreende somente o domnio de uma habilidade cognitiva, mas o

desenvolvimento de competncias que so cognitivas, culturais, sociais e histricas e que s

esto qualificadamente construdas quando permitem que os sujeitos as utilize para refletir

criticamente sobre sua realidade social.

Vigotski (1984/2007) afirmava que a linguagem escrita, diferentemente da linguagem

falada, no se desenvolve naturalmente, sua construo deve ser mediada, assim como todo o

processo de desenvolvimento, porm no somente pela insero no meio social, mas pela

estruturao do processo de instruo planejado pela/o professora/or. Nesse contexto, a lngua

26

escrita no deve ser imposta pela/o professora/or ou socialmente, deve ser fundamentada na

atividade prpria da criana e nas necessidades naturalmente desenvolvidas na mesma.

Considerar os desejos, motivaes e as necessidades da criana perpassa pelo

entendimento de que a construo da leitura e escrita ocorre bem antes da insero da criana

na escola, pois est se mobilizando ainda na esfera familiar, nos espaos culturais, histricos e

sociais em que a criana se insere antes do contato com a realidade escolar (Melo, 2012;

Munhoz & Maciel, 2008). A forma como ocorre esse contato inicial da criana com a leitura e

escrita influenciar a construo dessas competncias aps a insero escolar (Cavaton,

2010).

Nessa realidade se circunscreve o papel inicial da famlia quando da construo da

leitura e escrita, o qual promover espaos familiares, culturais e sociais em que tais

competncias possam ser vivenciadas, atravs das brincadeiras, do faz de conta, do contato

com o desenho, com materiais escritos, livros, materiais diversos como revistas, panfletos,

outdoors e outros que, no necessariamente, implicam a necessidade de aquisio material

para serem apresentados criana.

Ao adentrar o espao escolar, a atividade principal da criana se volta ao processo

ensino-aprendizagem, momento em que, segundo Queiroz e Maciel (2014), o papel da/o

professora/or enquanto promotora/or da participao ativa da criana preponderante para a

qualidade dessa construo e pode ser potencializado a partir do planejamento do processo de

instruo. Tambm nesse momento, a famlia continua possuindo um papel primordial que

no diz respeito mediao dos ensinamentos escolares, mas ao olhar atento, ao estmulo da

produo infantil e ao acompanhamento ativo da escolarizao.

A considerao s vivncias anteriores da criana indispensvel para a construo da

leitura e escrita, que segundo Vigotski e seus colaboradores, ocorre atravs da utilizao de

instrumentos e signos, de forma que, gradativamente, simples sinais indicativos e traos e

rabiscos simbolizadores so substitudos por pequenas figuras e desenhos, e estes, por sua vez

so substitudos pelos signos (Vigotski 1984/2007, p.139).

Luria (1930/2006) descreve em detalhes como se desenrola esse processo afirmando

que no incio, para a criana, o ato de escrever funciona como um brinquedo. A criana

adquire uma postura imitativa e tenta escrever, assim como fazem os adultos, com o passar do

tempo, sob a mediao do outro, cria o que se pode chamar de auxlios tcnicos memria, de

maneira que seus rabiscos no significam nada, mas a posio, situao e a relao com

outros rabiscos, auxiliam a memria. Esta a primeira forma de escrita no sentido prprio da

palavra. As inscries reais, no so diferenciadas, mas a relao funcional com a escrita

inequvoca (Luria, 1930/2006, p. 158).

27

Nesse momento, um pequeno sinal feito pela criana organiza seu comportamento (. .

.) mas ainda no possui contedo prprio; e indica a presena de algum significado, mas ainda

no determina qual seja esse significado (Luria, 1930/2006, p. 158). Posteriormente, a

criana dever conseguir diferenciar o signo criado e faz-lo expressar realmente um

contedo especfico. Deve criar os rudimentos da capacidade de escrever no sentido mais

exato da palavra (Luria, 1930/2006, p. 161). Assim, processualmente, linhas e rabiscos no

diferenciados evoluiro para figuras e imagens e posteriormente para signos diferenciados.

Em todo o processo, os desenhos desenvolvidos pelas crianas apresentam relevncia

incontestvel. De acordo com Vigotski (1984/2007), com o passar do tempo, a criana

aprende que alm de desenhar coisas, pode tambm desenhar a fala. Por todas essas

peculiaridades, h que se considerar, no momento em que a criana adentra o espao escolar,

que ela j carrega uma srie de conhecimentos construdos no que Luria e Vigotski chamam

de a pr-histria da linguagem escrita.

Cavaton (2010) corroborou os postulados dos autores e constatou a importncia que o

desenho possui no processo de construo da leitura e escrita, assim como outras produes

grficas livres tambm adquirem um significado precpuo para o sucesso da construo de tais

competncias. Segundo a autora, quando a/o professora/or estimula as produes grficas

livres na sala de aula, possvel compreender o que a criana j sabe, desenvolver

mecanismos mais eficientes de avaliao, principalmente, permitir a construo de formas de

estratgias de ensino que promovam a zona de desenvolvimento proximal.

Amaral (2002) concordou com as consideraes supracitadas, no entanto concentrou

seu debate na produo textual, enfatizando o quanto essa atividade, especificamente grfica,

permite a troca intensa entre alunas/os e professoras/es. Dessa forma, os alunos vivenciem

situaes de interao verbal, constituem-se sujeitos na relao apropriando-se e recriando a

fala do outro (p. 92).

Cavaton (2010) e Amaral (2002) destacaram a funo da/o professora/or como

indispensvel no processo de construo da leitura e escrita. Munhoz e Zanella (2008)

corroboram essa ideia e enfatizam a importncia de que, no movimento de aprendizagem do

ler e escrever, a/o professora/or estimule nas/os alunas/os o estabelecimento de relaes

estticas com essas competncias. Para as autoras as relaes estticas so formas de relao

do ser humano com o mundo em que os fenmenos so notados pelos sujeitos. No contexto

da leitura e escrita isso significa que necessrio que as/os aluna/os estabeleam com a leitura

e escrita uma relao em que as percebam, contemplem e notem. O estabelecimento dessas

relaes estticas, segundo Munhoz e Zanella (2008), permite /ao aluna/o um movimento de

28

aproximao e afastamento com o objeto, o que leva construo de novos sentidos para a

sua produo e para a de outrem.

Sem dvida, todos esses processos ocorrem sem um desenvolvimento fixo, pois so

extremamente complexos e devem ser entendidos dentro dessa complexidade. Qualquer

profissional que se dedique ao estudo da construo da leitura e escrita precisa atentar-se a

essas especificidades entendendo que:

A linguagem escrita constituda por um sistema de signos que designam os sons e as

palavras da linguagem falada, os quais, por sua vez, so signos das relaes e

entidades reais. Gradualmente, esse elo intermedirio (a linguagem falada) desaparece

e a linguagem escrita converte-se num sistema de signos que simboliza diretamente as

entidades reais e as relaes entre elas. Parece claro que o domnio de um sistema to

complexo de signos (. . .) o culminar, na criana, de um longo processo de

desenvolvimento de funes comportamentais complexas (Vigotski,1984/2007, p.

126).

Todas essas consideraes so extremamente importantes para auxiliar a atuao

das/os profissionais que trabalham com a leitura e escrita. Especificamente para a Psicologia

Escolar, as contribuies de Vigotski e Luria, adquirem relevncia no auxlio ao entendimento

do tema da construo das competncias enfocadas. Por conseguinte, tm embasado os

conhecimentos sobre a forma como o ser humano se desenvolve e aprende, sido utilizadas

para o fortalecimento entre a educao e a Psicologia e respaldado o desenvolvimento de

pesquisas sobre o assunto no contexto da Psicologia Escolar.

2.0 - Psicologia Escolar: Possibilidades de um Campo em Consolidao

Para compreendermos como os conhecimentos supracitados tm auxiliado a educao

importante conhecermos alguns aspectos histricos e atuais sobre a Psicologia Escolar, a

fim tambm de entendermos melhor como esta rea de atuao e campo de conhecimento da

Psicologia interage com a temtica da construo da leitura e escrita.

A relao entre Psicologia e educao muito estreita, entretanto atualmente,

apresenta contornos bem mais complexos do que alguns momentos da histria fizeram

acreditar. nessa complexidade que reside o desenvolvimento da Psicologia Escolar. Schultz

e Schultz (2002) destacaram que, historicamente, o surgimento da Psicologia aplicada data do

incio do sculo XX e teve a educao como primeiro campo.

Tanto a aplicao da Psicologia aos problemas de ordem prtica, ou seja, para alm

dos laboratrios de pesquisa, quanto os desenvolvimentos tericos d poca tiveram, no

sculo XX, inicialmente em pases da Europa e posteriormente nos Estados Unidos, seus

29

maiores expoentes. Sem dvida, foram essas produes que influenciaram a constituio e o

desenvolvimento da Psicologia brasileira como um todo e da Psicologia Escolar

particularmente (Schultz & Schultz, 2002; Antunes, 2003).

Desde o perodo colonial j existiam, no pas, produes acadmicas que se dedicavam

a entender a relao entre Psicologia e educao, sendo que tais produes estavam presentes

em teses de doutoramento de mdicos da Bahia e do Rio de Janeiro (Antunes, 2003; Marinho-

Arajo & Almeida, 2010). Em um contexto geral, os temas abordados nesses trabalhos:

refletiam o pensamento mdico da poca, considerado como expresso do

conhecimento cientfico, capaz de explicar as condutas e para elas prescrever regras.

Assim, a escola e o processo educativo em geral tornaram-se alvos importantes para o

projeto de saneamento (. . .). Muitos escritos mdicos da poca demonstravam

preocupao com a prtica profiltica no interior das escolas, incidindo estes

sobretudo, na formao moral, com base na ideia de normalizar as condutas e hbitos

dos educandos pela representao aos comportamentos considerados nocivos

(Antunes, 2003, p. 146).

As evolues tericas posteriores seguiram a mesma perspectiva, a qual foi enfatizada

a partir de 1930 e perdurou, com poucos questionamentos, at a dcada de 80 (Antunes, 2003;

Marinho-Arajo, 2010). O pressuposto terico hegemnico da poca defendia que a funo da

Psicologia aplicada educao, seria analisar e classificar os sujeitos para trabalhar

especificidades comportamentais, a fim de control-los, conforme exigia a realidade social

forjada naquele momento histrico. Segundo Campos e Juc (2010), os instrumentos de

avaliao psicolgica eram amplamente utilizados e se relacionavam diretamente presena

da Psicologia no interior das escolas.

A evoluo histrica da relao entre Psicologia e educao seguiu, portanto um

percurso inicialmente atrelado s concepes deterministas, individualistas e adaptacionistas

(Barbosa, 2012; Bock, 2003; Marinho-Arajo & Almeida, 2010; Patto, 2003), defendendo

uma viso liberal de homem, encarando tal sujeito como natural e a-histrico.

A Psicologia enquanto cincia e profisso e a Psicologia Escolar particularmente,

assumiram em escala mundial e no contexto da histria brasileira, uma relao com a

necessidade historicamente posta de justificao da desigualdade estrutural e de controle de

corpo social com procedimentos compatveis com a ideologia liberal (Patto, 2003a, p. 33).

No contexto educacional, era percebido, no Brasil,

um claro desejo de controle, por meio da educao (. . .). A pedagogia, para ser

eficiente, precisava conhecer a matria-prima a ser processada pelo ensino as

crianas para classific-la e, assim, mold-la para um exerccio estreito da cidadania

30

e para diferentes carreiras escolares. Da o seu encontro com uma Psicologia de cunho

normativo, indispensvel a esse projeto. Da a relevncia assumida pelos instrumentos

psicomtricos (Patto, 2003a, p. 33).

Em todo esse processo histrico, no Brasil, o trabalho de Maria Helena Novaes foi

pioneiro em construes mais especficas relacionadas Psicologia Escolar, mesmo que,

incialmente, focasse uma perspectiva mais diagnstica e classificatria, gradativamente, foi

modificando-se para uma perspectiva mais crtica e integrada (Witter, 1997).

Essas modificaes gradativas na forma de pensar a Psicologia Escolar ocorreram

acompanhando o esprito histrico de uma poca de questionamentos, de movimentos

reivindicatrios em nvel nacional, levaram a uma reviso dessas abordagens e teorias na

relao entre Psicologia e Educao, que se iniciou ainda na dcada de 60, mas tomou uma

forma de crtica mais efetiva a partir da dcada de 1980 quando houve grande movimentao

da sociedade em busca de melhores condies de vida (. . .). Os psiclogos fizeram-se

presentes nesse cenrio, participando de sindicatos, conselhos regionais e no conselho federal

e engajando-se neles (Marinho-Arajo & Almeida, 2010, p.15).

No mesmo contexto, Marinho-Arajo e Almeida (2010) afirmaram que, nos anos

1990, os questionamentos tornaram-se mais prementes, possibilitando a reformulao de

ideologias, teorias, mtodos de interveno, dentre outros. Assim, a dcada de 1990 foi um

marco na histria da Psicologia, especificamente da Psicologia Escolar. Foi nessa dcada que

a relao entre Psicologia e Educao ganhou contornos de criticidade mais engajada no pas

e levou delimitao do que hoje se entende como Psicologia Escolar (Barbosa & Marinho-

Arajo, 2010). poca, foi criada a Associao Brasileira de Psicologia Escolar e

Educacional (ABRAPEE) e organizado o primeiro Congresso Nacional de Psicologia Escolar

(Marinho Arajo & Almeida, 2010, Barbosa & Marinho-Arajo, 2010; Barbosa, 2012;

Pfromm Netto, 2001).

Surgiram novos espaos de discusso que permitiram o aprofundamento em questes

da teoria e da prtica em Psicologia Escolar. Esta continua se desenvolvendo historicamente,

sendo mais reconhecida na atualidade e conceituada como uma rea de atuao e da

Psicologia que, entre outras atribuies assume um compromisso terico e prtico com as

questes relativas escola e a seus processos, suas dinmicas, resultados e atores (Marinho-

Arajo & Almeida, 2010, pp. 18-19). Por conseguinte, a Psicologia Escolar busca consolidar

compromissos com a melhoria do processo ensino-aprendizagem.

A/o psicloga/o escolar precisa comprometer-se com o lugar da escola - esse espao

de possibilidades em que so visveis as diversas contradies das polticas educacionais

brasileiras - e trabalhar a possibilidade de contribuir para a superao das indefinies

31

terico-prticas que ainda se colocam nas relaes entre Psicologia e Educao (Tanamachi,

2002, p. 85).

A Psicologia Escolar tem se desenvolvido cada vez mais e vrias/os pesquisadoras/es

tm buscado ampliar estudos que possibilitem s/aos psiclogas/os escolares refletirem sua

prtica e participarem da construo e consolidao da Psicologia Escolar com o objetivo de

alcanar transformaes sociais. Del Prette (2007), por exemplo, afirmou que evolues so

efetivadas, inclusive no campo legislativo, mas tambm so encontradas problemticas

diversificadas que se configuram como convites reformulao da formao da/o

psicloga/o, ao engajamento em pesquisas e atuao crtica da/o psicloga/o escolar.

Mesmo com os avanos h ainda muitos impasses que precisam ser debatidos

profundamente e a formao da/o psicloga/o um desses (Del Prette, 2007). preciso

investimento na formao (Checchia & Souza, 2003; Del Prette, 2007; Guzzo, 2005;

Marinho-Arajo & Almeida, 2005; Marinho-Arajo & Almeida, 2010; Novaes, 2010; Rossi

& Paixo, 2010; Senna & Almeida, 2005) que deve ser capaz de:

Implementar discusses e elementos que constituem o que se chama de uma atuao

crtica em Psicologia Escolar. A apropriao de uma modalidade de atuao

profissional cuja ruptura epistemolgica baseia-se em um olhar crtico e

comprometido com uma concepo poltica emancipatria, implica a realizao de um

trabalho alicerado na realidade educacional/escolar brasileira (Checchia & Souza,

2003, p. 134).

Uma formao crtica deve permitir um engajamento tico respaldado em concepes

epistemolgicas e ideolgicas que promovam uma atuao de qualidade e que possibilitem a

intencionalidade no desenvolvimento da prtica, comprometendo-se com os diferentes

contextos educativos, todavia desenvolvendo tambm reflexes sobre a necessidade de a

Psicologia Escolar comprometer sua atuao, como defendem Marinho-Arajo e Almeida

(2010), preferencialmente com o espao da escola.

Marinho-Arajo e Bisinoto (2011) destacaram que a ampliao da atuao da/o

psicloga/o escolar relevante e tem sido fonte de interesse de pesquisadores e profissionais,

devido ao reconhecimento de que outros ambientes institucionais, tambm revestidos da

funo educativa, so espaos potenciais de desenvolvimento humano (p.193). Assim como

se dedica a atuar em diferentes contextos, a/o psicloga/o escolar busca compreender

diferentes fenmenos configurando um movimento legtimo na busca pela consolidao da

Psicologia Escolar no Brasil.

Uma boa formao e o desenvolvimento de pesquisas so requisitos para a

qualificao da atuao em Psicologia Escolar. Isso exige um olhar comprometido para lidar

32

com as novas realidades socioeducativas e atender s demandas de uma sociedade plural e

multideterminada (Novaes, 2010). Uma das preocupaes emergentes seria a de articular a

influncia do psiclogo no contexto sociocultural evitando-se um olhar meramente

psicologizante, interpretaes reducionistas e artificiais, assim como atitudes profissionais

alienadas, radicais ou individualistas (Novaes, 2010, p. 129).

A/o psicloga/o escolar comprometida/o com a realidade social precisa compreender a

multideterminao dos fenmenos sociais e educacionais e da prpria constituio humana

(Meira, 2003). Novaes (2010) destacou que necessrio ter competncia, criatividade e

conhecer diferentes pressupostos tericos, sobre desenvolvimento, aprendizagem, dinmica

de grupo, dentre outros.

Para alm disso, necessrio o investimento em pesquisas, por parte da academia e de

profissionais. A formao perpassa a produo de pesquisa e leva construo da identidade

profissional da/o psicloga/o escolar. A construo de um perfil profissional atuante e

participativo, que valorize a especificidade de seu trabalho e de seu grupo profissional

(Marinho Arajo & Almeida, 2005, p. 247) implica em reviso da formao de psicloga/os,

na prtica da pesquisa e consequentemente na atuao crtica e compromissada.

Uma atuao comprometida com os desdobramentos do que Novaes (2010) denomina

de crise da educao, a qual tem como cerne o abismo existente entre aquilo que se almeja e

idealiza e aquilo que realmente oferecido e vivenciado pelos protagonistas envolvidos (p.

130). Essa atuao no almeja unificao das prticas em Psicologia Escolar, pelo contrrio,

valoriza a maneira multifacetada e emergente como a Psicologia Escolar se apresenta,

permitindo o entendimento de expresses comuns (Maluf, 2010), mas defende ser necessrio

fazer jus ao momento histrico no qual, segundo Barbosa (2012), a atuao da/o psicloga/o

tem sido bastante requisitada.

Compreendendo a/o psicloga/o escolar como agente de mudana, que busca entender

as constituies dos espaos histricos, sociais e culturais nos quais se inserem e constroem as

prticas pedaggicas e polticas educacionais brasileiras, h possibilidades de que a atuao

profissional em Psicologia Escolar promova transformaes efetivas nas realidades sociais

(Novaes, 2010).

As novas configuraes histrico-culturais e sociais so convites ao e revelam

possibilidades, trazendo consigo desafios que exigem das/os profissionais da educao,

incluindo neste contexto a/o psicloga/o escolar, uma postura crtica que permita

conscientizao das diversas facetas dessa realidade e uma postura intencional que leve ao

desdobramento de aes que mobilizem a mudana.

33

Produzir pesquisas que compreendam algumas especificidades dessa realidade escolar

tambm se trata de um objetivo da atuao em Psicologia Escolar e possibilidade de forjar

novas construes terico-prticas nesse e em diferentes espaos, permitindo que ocorra o que

Yamamoto (2012) entende como ainda uma carncia na Psicologia, qual seja, a melhoria da

competncia tcnica e da qualidade da atuao.

Neste contexto, vrias pesquisas tm sido produzidas sobre diferentes fenmenos um

deles a construo da leitura e escrita, porm, essas produes so ainda incipientes e se

concentram mais na questo metodolgica do que na forma como essas competncias se

constroem e como a/o psicloga/o pode auxiliar essa construo. Como possvel constatar

pela anlise dos estudos especificados abaixo.

Analisando alguns trabalhos produzidos sobre o assunto no campo da Psicologia e que

dada sua insero no campo da educao, so produes tambm da Psicologia Escolar,

possvel observar que muitas pesquisas desenvolvidas tentam oferecer defesas categricas

relacionadas s metodologias de alfabetizao (Azevedo, 2007; Crenite, Buso, Magalhes &

Jorge, 2008; Cruz & Costa, 2008; De Mier, Abchi & Borzone, 2009; Diniz, 2008; Lpez

Hernandez & Guevara Bentez, 2008; Marder, 2011; Mota, 2012; Pimenta, 2012; Roazzi,

Asfora, Queiroga & Dias, 2010; Santos & Maluf, 2010; Sebra & Dias, 2011). Algumas

defenderam a abordagem cognitivista com a veiculao dos conceitos de conscincia

fonolgica e metalinguagem, demarcando-os como habilidades indispensveis aquisio da

leitura e escrita. Outras defenderam a abordagem construtivista especificamente proposta pela

psicognese da lngua escrita desenvolvida por Emlia Ferreiro.

H tambm, nas produes em Psicologia, consideraes tericas sobre a Psicologia

histrico-cultural discorrendo sobre os postulados de Vigotski e Luria em relao aquisio

da escrita, afirmando que a educao brasileira deve utilizar os postulados de tais autores para

compreender a alfabetizao pela perspectiva do desenvolvimento humano (Gerken, 2008;

Gomes, Fonseca, Dias & Vargas, 2011; Palma Filho & Ghiringhello, 2010; Sawaya, 2008;

Temple, 2007; Tuleski, Chaves & Barroco, 2012).

As produes referidas desenvolveram suas investigaes com o objetivo de

compreender melhor problemticas relacionadas essa temtica, no ensejo de contribuir para

a melhoria da educao no pas. A anlise dos textos permitiu verificar que as concepes que

buscam analisar a complexidade do processo de construo da leitura e escrita e sua extrema

relevncia para o desenvolvimento humano, esto ganhando forma e sendo cada vez mais

mobilizadas. Logo, a relao entre a Psicologia Escolar e a construo da leitura e escrita

inegvel e o desenvolvimento de mais pesquisas sobre o fenmeno pode contribuir

significantemente para a otimizao do processo ensino-aprendizagem.

34

A partir do estudo que desenvolvemos, com a anlise das concepes e das dinmicas

escolares enfocadas, foi possvel refletir sobre as possibilidades de atuao da/o psicloga/o

escolar, o que adquire extrema importncia e, no contexto brasileiro, pode auxiliar a trabalhar

alguns dos impasses historicamente percebidos em nossa realidade educacional.

3.0 - Entraves na Construo da Leitura e Escrita: Consideraes Sobre o Cenrio

Brasileiro

Para iniciar essa reflexo, necessrio lembrar que a prpria importncia oferecida

discusso sobre leitura e escrita ocorre, especificamente, pela relevncia que essas

competncias representam em nossa cultura. No obstante, esse no um fenmeno

universal. Rogoff (2005) destacou que a importncia da leitura e escrita em dada sociedade

relativa, pois para vrias culturas essa competncia no essencial.

Um foco na alfabetizao ou nos estilos discursivos promovidos nas escolas pode no

ter tal importncia em alguns ambientes culturais em que talvez seja mais relevante

para as crianas aprender a prestar ateno nas nuanas dos padres do clima ou nas

indicaes sociais com relao s pessoas ao seu redor (. . .) (Rogoff, 2005, p. 29).

Diferentemente, em nossa cultura, ler e escrever algo indispensvel e condio para

a ascenso social. Por isso mesmo, estudos sobre a questo so comuns na atualidade. Sendo

assim, os entraves na sua construo podem gerar diversas formas de excluso social e

conforme destacou Maciel (1996), a sociedade no tolera a inabilidade na construo de tais

competncias ou aquisio apenas parcial das mesmas.

Essa intolerncia, personificada na permanente cobrana por parte de pais, parentes,

professores, irmos, e at mesmo de vizinhos, significar para a criana, includa nesse

grupo, o ingresso em um espiral de excluso. A linguagem escrita passa a ser uma

fonte persistente de sofrimento, corporificado pelo sentimento de fracasso e de auto-

desvalorizao (Maciel, 1996, p.10).

So motivos a mais que justificam a busca em compreender melhor o processo de

construo da leitura e escrita, especificamente em sua relao com a Psicologia Escolar. As

problemticas que tm sido enfrentadas h sculos para consolidar essa construo de maneira

otimizada so outro motivador, o que faz com que, no Brasil, particularmente, a temtica seja

constantemente estudada. Soares (1989) relacionou a grande quantidade de estudos, ao

fracasso que a educao brasileira demonstrou em alfabetizar e destacou que muitos dos

estudos sobre o tema tentam aprofundar o entendimento do fracasso na construo da leitura e

escrita. Viegas (2012) tambm discutiu as mazelas da educao brasileira citando que as taxas

35

de analfabetismo, ainda alarmantes na atualidade, so reflexo de uma falta de compromisso

histrico que deve ser superado.

Apesar de as produes cientficas da Psicologia sobre o fracasso escolar terem

evoludo de concepes puramente adaptacionistas e naturalizantes, em que ocorre a

culpabilizao da/o aluna/o e da famlia com a adoo de uma concepo a-histrica do

desenvolvimento humano, para concepes que compreendem, com criticidade, o cenrio

educacional brasileiro e suas dificuldades em desenvolver o processo ensino aprendizagem de

maneira otimizada (Patto, 2003; Marcondes & Proena, 2004, Bock, 2003); entendemos que

as ideias que relacionam o termo fracasso uma perspectiva mais unidirecional em que a/o

aluna/o culpabilizada/o pelos problemas enfrentados so ainda muito fortes.

As terminologias comumente utilizadas tais como fracasso escolar, dificuldades de

aprendizagem - para referir-se a problemas no processo ensino-aprendizagem, veiculam uma

ideia inicial de que o problema reside em uma pessoa especfica, geralmente na/o aluna/o.

Vrios estudos rompem com essa viso e utilizam esses mesmos termos com um olhar crtico,

no entanto como as crenas na culpabilizao isolada de pessoas pelos problemas na educao

so ainda muito presentes, utilizamos o termo entrave.

Compreendemos como uma barreira que se estabeleceu no processo ensino-

aprendizagem e que no apresenta nenhuma causa especfica ou uma pessoa culpada pela sua

consolidao, entretanto que se constri num movimento histrico-cultural multideterminado,

em que diferentes fenmenos humanos e sociais influenciam a manifestao desse entraves,

que precisam ser analisados em toda sua complexidade.

Sobre o tema do fracasso escolar - o qual ser aqui enfocado como entrave possvel

encontrar literatura diversificada no campo da Psicologia Escolar, j que este sempre foi, e

ainda , recorrente na rea da educao e no mbito da cincia e da profisso de psicloga/o.

Em A produo do fracasso escolar: histrias de submisso e rebeldia, por exemplo, Patto

(2003a) buscou desfazer concepes antigas e lanar um novo olhar sobre a realidade

educacional brasileira. Analisou os problemas enfrentados como produzidos histrica, social e

culturalmente, pela forma pouco crtica e excludente com que a escola lidou, desde seus

primrdios, com seu pblico de modo a culpabilizar a famlia, patologizar a pobreza e enfocar

tais pressupostos como causa para os problemas enfrentados. Patto (2003a) abriu as portas

para uma nova forma de se pensar a educao no Brasil, principalmente pelo vis da

Psicologia.

Cagliari (1997) desenvolveu uma respaldada crtica referente configurao da escola

atual, analisando como a escola condena e exclui alunas/os de acordo com sua condio

material. Referente ao mesmo assunto, Sawaya (2000, p. 79) afirmou que, ainda no

36

conhecemos a criana brasileira, ignoramos o que ela sabe e conhece, suas capacidades e

habilidades, e continuamos a adiar a implantao de um projeto poltico comprometido com

as classes populares.

No mesmo sentido, Guzzo (2005) retratou com clareza e perspiccia o sofrimento de

crianas marginalizadas, rejeitadas e excludas pela sociedade que interpreta a situao de

pobreza como mal inexorvel e justificativa para prticas desumanas. A autora ainda relatou o

desespero de professores e equipe administrativa das escolas, que acabam em situao de

desalento e desesperana e deixam de acreditar que ainda pode haver mudana.

Kalmus e Paparelli (2004), por sua vez, expuseram as repercusses do fracasso escolar

nas vidas de crianas e de suas famlias. Analisando um grupo de crianas com histrico de

reprovaes, as autoras visualizaram as repercusses do fracasso para alm dos muros da

escola e descobriram que os sofrimentos aos quais essas crianas e suas famlias so

submetidas uma dessas repercusses. Segundo as autoras, alunas/os e famlias tem tomado

de si o direito de terem esperana, de conseguirem desenvolver suas habilidades e

capacidades e de se sentirem parte de um mundo que insiste em fingir que tais sujeitos no

existem.

Marcondes e Souza (2004) analisaram a prtica das escolas que excluem alunas/os que

apresentam problemas de escolarizao e/ou de aprendizagem, enfocando-as/os como

alunas/os-problema e cristalizando ideias e prticas que no permitem o desenvolvimento das

potencialidades de tais crianas, pois lhes impede de se perceberem como pessoas em

desenvolvimento, dotadas de diversas habilidades e possibilidades de superao.

So portanto, algumas produes desenvolvidas no campo da Psicologia Escolar, as

quais discorrem sobre entraves diferenciados na educao e que podem ser utilizadas como

referncias para se retratar os entraves que ocorrem tambm na construo da leitura e escrita.

A modificao dos enfoques cientficos relacionados problemtica da construo da

competncia da leitura e escrita tem evoludo, no mesmo contexto que a Psicologia Escolar,

de concepes adaptacionistas, que culpabilizam diferentes sujeitos sociais envolvidos no

processo ensino-aprendizagem para concepes que compreendem, com criticidade, o cenrio

educacional brasileiro e suas dificuldades em desenvolver o processo de construo da leitura

e escrita de maneira qualificada.

Iniciativas so praticadas com o objetivo de promover melhorias, modificando a

realidade de ensino, desenvolvendo novas metodologias. Grande exemplo disso a adoo da

progresso continuada por alguns estados, visando contornar problemas, tais como os altos

ndices de evaso e repetncia (Vigas, 2006). A autora analisou pontos positivos e negativos

da progresso continuada, em muitos casos, desenvolvida na prtica simplesmente como

37

promoo automtica, e enfatizou que, na adoo de novos programas e projetos similares,

no se deve perder de vista a qualidade do ensino.

Muitas vezes podem ocorrer entraves durante esse processo de promoo ou

progresso, de maneira que mesmo que as/os alunas/os

avancem pelos anos escolares, nem todos conseguem acompanhar as classes pelas

quais, sucessivamente, passam. Muitos so os relatos sobre alunos com defasagem

de conhecimento e sobre o aumento da indisciplina ou da apatia discentes (. . .). Nesse

novo contexto escolar, porm, a excluso de alunos no interior da escola ficou

sutilizada, tornando-se imperceptvel ao olhar apressado que se ativer apenas s

estatsticas oficiais (Vigas, 2006, p. 175).

possvel que os entraves na construo da leitura e escrita de crianas que estejam

em anos mais avanados do ensino fundamental se devam a programas como os citados por

Vigas (2006), no pela elaborao terica e ideologizao, mas pelas impossibilidades de

uma prtica mais efetiva e comprometida com as realidades sociais e educacionais dos

sujeitos envolvidos no processo de ensino-aprendizagem.

Vigas (2006) no se posiciona contrariamente progresso continuada, mas a

problematiza, explanando contradies e explicita, em sua pesquisa, que ainda h a

necessidade de uma verdadeira transformao, sendo fundamental a realizao de um

trabalho institucional que vise problematizar e alterar as relaes intersubjetivas que

produzem o fracasso no processo de escolarizao, o que requer aes coerentes com o

objetivo democratizante (Vigas, 2006, p. 183).

A pesquisa da autora pode ser utilizada para desenvolver uma anlise comparativa

com a realidade descrita pela mesma sobre a implantao da progresso continuada no estado

de So Paulo, e a realidade enfrentada por mim em minhas atividades como psicloga de um

municpio do interior da Bahia. Mesmo que este municpio no tenha implantado a progresso

continuada ou a promoo/aprovao automtica, muitas crianas tm sido aprovadas

seguidamente sem ainda construir a competncia da leitura e escrita e este fato gera

problemticas diversificadas, que colocam em evidncia a necessidade de reviso dessa

realidade enfrentada na educao brasileira.

Temple (2007) analisou programas similares enfatizando que a forma como se conduz

a educao, principalmente a alfabetizao no Brasil, faz com que se gere o chamado

analfabetismo funcional. Kataguiri (2011), por sua vez, enfatizou que, a proposta da

aprovao automtica, tem grande possibilidade de criar alunas/os academicamente

despreparadas/os, com nvel inferior de conhecimento, o que pode gerar dificuldades na

insero no mercado de trabalho. Os estudos citados so exemplos tericos da realidade

38

prtica observada pela pesquisadora em sua atuao profissional e incitam o desejo em

entender melhor as questes propostas.

necessrio compreender a temtica de maneira mais aprofundada e crtica

desfazendo algumas concepes distorcidas que so fruto de mitos construdos por

interpretaes tericas equivocadas