universidade candido mendes faculdade … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade...

70
UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE INTEGRADA AVM PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU A INFLUÊNCIA DO LAICISMO NO DIREITO BRASILEIRO por JULIO CESAR TEIXEIRA JUNIOR Rio de Janeiro 2012

Upload: dangphuc

Post on 28-Jan-2019

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES

FACULDADE INTEGRADA AVM

PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU

A INFLUÊNCIA DO LAICISMO NO DIREITO BRASILEIRO

por

JULIO CESAR TEIXEIRA JUNIOR

Rio de Janeiro

2012

Page 2: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES

FACULDADE INTEGRADA AVM

PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU

A INFLUÊNCIA DO LAICISMO NO DIREITO BRASILEIRO

por

JULIO CESAR TEIXEIRA JUNIOR

Monografia apresentada à Universidade Candido Mendes como requisito parcial para obtenção do especialista em Direito Público e Tributário.

Professor-Orientador: Anselmo Souza

Rio de Janeiro 2012

Page 3: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

AGRADECIMENTOS

À glória do Grande Arquiteto do Universo que continua a nos prodigalizar Seus benefícios e a aumentar a nossa força enriquecendo as nossas vidas hosanas e graças.

Agradeço aos meus pais, Julio e Marina, cujo impulso dele fez-me caminhar, apesar das agruras do caminho, e a ela cuja doçura tornou tudo mais fácil e recompensador.

Agradeço, ainda, ao corpo docente da UCAM, que tão bem souberam repassar seus saberes, contribuindo para meu aperfeiçoamento profissional, especialmente ao meu orientador Anselmo que, através de seu espírito realmente docente, foi grande facilitador deste processo.

Page 4: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

DEDICATÓRIA

À minha esposa, Ellen, parceira e companheira em todas as ocasiões, pela compreensão e apoio nas tarefas nos momentos em que o esposo e pai desaparecia para dar lugar ao aluno. Sem ela, sem seu incentivo, este trabalho seria impossível.

À minha filha, Julia, fonte maior de incentivo para meu crescimento social e espiritual.

Page 5: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

RESUMO

Este trabalho versa sobre o laicismo, que surge como antítese, se

torna falho por ser extremado e não permitir que as influências positivas da

religião continuem se manifestando em nossa sociedade. Sendo assim, o

objetivo foi demonstrar que a laicidade, que surge como síntese, é

provavelmente a melhor opção a ser adotada no futuro da humanidade. Ela

permite que as relações públicas e privadas sejam guiadas de forma secular,

mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados.

Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres, e a

inclusão social de diferentes grupos minoritários religiosos não tenham a

liberdade de praticar rituais próprios. Existem, porém temáticas mais delicadas

que são a predileção estatal a determinados dogmas e a subvenção deles

através de subsídios do erário, ou prejuízos por meio de políticas fiscais

permissivas.

Page 6: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

METODOLOGIA

A pesquisa buscou estabelecer uma resposta e, para tanto, se

utilizou acervo bibliográfico aproximando-se de autores que dissertam sobre a

estrutura do Estado, liberdade fiscal e laicismo no Estado. A coleta desse

material foi realizada mediante visitação à Biblioteca Nacional sem, no entanto,

negligenciar a rede mundial de computadores na qual se buscou material,

através de indicadores como laicismo, privilégios fiscais, Estado e religião. De

posse deste material, foi realizada leitura seletiva, retendo informações

pertinentes ao tema proposto, as quais serviram de suporte aos capítulos do

presente trabalho.

Page 7: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 8 CAPÍTULO I 10 BREVES CONSIDERAÇÕES DA INFLUÊNCIA RELIGIOSA NO ESTADO BRASILEIRO

10

CAPÍTULO II 18 LAICISMO: PANORAMA DAS LUTAS DA SOCIEDADE PARA DESVENCILHAR O ESTADO DA IGREJA

18

CAPÍTULO III 33 OS DIREITOS HUMANOS CONTEMPORÂNEOS NO LAICISMO 33 CAPÍTULO IV 53 A IDEIA DE LIBERDADE NO ESTADO PATRIMONIAL E NO ESTADO FISCAL

53

CONCLUSÃO 64 BIBLIOGRAFIA

66

WEBGRAFIA

68

ÍNDICE

69

Page 8: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

8

INTRODUÇÃO

Atualmente, temos um mundo dinâmico cheio de mudanças para

serem conduzidas e administradas pelo Estado Social, enfim todos aqueles

que têm relacionamento direto e/ou indireto com o Estado têm direito a uma

contraprestação tal qual nos ensinou Thomas Hobbes através da figura do

Leviatã.

Dentre todas as obrigações que temos para com o Estado está o

dever de pagar tributos, que têm como papel fundamental, visar à consecução

de obras, prestação de serviços e bem estar social, pois sem ele o Estado, não

teria por si só recursos para atingir tais finalidades. O tributo é o dever

fundamental, consistente em prestação pecuniária, que limitado pelas

liberdades fundamentais sob a diretiva dos princípios constitucionais da

capacidade contributiva, do custo benefício ou da solidariedade do grupo e com

a finalidade principal ou acessória de obtenção de receita para as

necessidades ou para atividades protegidas pelo Estado, é exigido de quem

tenha realizado o descritivo em lei elaborada de acordo com a competência

específica outorgada pela Constituição.

Antigamente a Religião e o Estado formavam uma instituição

homogênea, haja vista, o faraó egípcio, antes de ser chefe de Estado era

cultuado como uma divindade. A Religião dominava o Estado, pois ela escolhia

os seus representantes. Essa estrutura foi válida até o momento em que

eclodiu a Revolução Francesa, no século XVIII, foram várias as demonstrações

de descristianização, e o homem passou a utilizar-se da razão. Nesta esteira,

mesmo sob a forte influência da instituição Igreja no Brasil, a sua

desvinculação com o Estado ocorreu a partir da Proclamação da República.

Mesmo assim, ainda há resquícios fortes dessa herança, provando

que a profunda influência religiosa atinge as decisões dos três poderes que, em

tese, deveriam se mantiver neutro em relação às questões religiosas.

Page 9: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

9

Talvez dentre esses resquícios de influência possamos apontar o

tratamento diferenciado dado as Igrejas que sob o pálio de “proteger o

princípios da liberdade de credo” concede privilégios fiscais que contrariam o

princípio de isonomia fiscal. É importante ressaltar que a religião é de ordem

privada, e sendo o Estado laico, os indivíduos têm o direito agirem, não

precisando se submeter à religiosidade de uma parcela dos cidadãos e nem

usar como argumento “Deus” para obter benefícios em detrimento de obrigação

a todos imposta.

Anteriormente, na história da tributação, os homens de determinada

posição social, a Igreja e o clero não pagavam tributos restando ao povo o

ônus de manter a maquina estatal. Essas práticas, entre outras, ensejaram a

Revolução Francesa, o modelo moderno de gestão do estado, tem que definir a

sua justiça fiscal organizando, valorizando principalmente seus valores de

igualdade, capacidade contributiva.

Por isso da importância de verificarmos se laicismo no Brasil está

sendo bem gerido na questão tributária, a fim de tornar a arrecadação mais

justa e para propiciar o desenvolvimento de uma sociedade mais justa e

igualitária.

Page 10: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

10

CAPÍTULO I BREVES CONSIDERAÇÕES DA INFLUÊNCIA

RELIGIOSA NO ESTADO BRASILEIRO

A necessidade de convivência social é uma realidade humana. A

religiosidade é uma das expressões da cultura que dá sentido à existência na

vida social. O diálogo entre as diversas expressões religiosas é um desafio

entre os humanos. As diversas tensões históricas entre os povos encontram

fundamentos na leitura religiosa que caracteriza a materialização da ação

religiosa, configurando o que chamamos de Igreja. (SÃO BERNARDO e

VIEIRA, 2010).

A organização de leis espirituais em preceitos normativos, sistemas

rígidos de conduta social têm proporcionado a construção de instituições que

muito tem significado para a história das civilizações. Todavia, valores que

subsidiam modelos políticos totalitários impõem relações que fundamentam a

realização material e a realização espiritual para derrotar e construir governos.

Hoje no Brasil, têm aparecido frequentes queixas contra

organizações religiosas de conteúdo dogmático/religioso para macular outras

organizações religiosas. Estas queixas estão associadas à inferiorizações,

conformando também a prática de um racismo difuso, como entende o artigo

20 da lei nº 7.716/89 que assevera tal conduta como impeditiva na sociedade

brasileira. A legislação pátria pune a prática de "curandeirismo" prevista no art.

284 do Código Penal, mas que está associada ainda a certa intolerância

quanto ás religiões de matriz africana no Brasil.

A Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), os

evangélicos, os religiosos de matriz africana, os ciganos têm protagonizado um

intenso debate sobre o perigo destas práticas que podem resultar em conflitos

civis com forte repercussão na ordem pública, já que diversas organizações

vítimas dos ataques mencionados têm feito manifestações públicas contra tais

atos. O Estado brasileiro vem produzindo políticas públicas de promoção de

igualdade e de reconhecimento legal de populações vulneráveis á realização

Page 11: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

11

formal do princípio da equidade, como por exemplo, os decretos: nº

6.872/2009, que aprova o Plano Nacional de Programação da Igualdade Racial

- Planapir, e institui o seu comitê de articulação e monitoramento; nº

6.040/2007 que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos

Povos e Comunidades Tradicionais; nº 4.886/2003, que institui a Política

Nacional de Promoção da Igualdade Racial - PNPIR e dá outras providências;

nº 4.887/2003 que regulamenta o procedimento para identificação,

reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por

remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato

das Disposições Constitucionais Transitórias; as leis de nº 10.639/2003,

alterada pela lei de nº 11. 645/2008 que estabelece as diretrizes e bases da

educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a

obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena; a

Portaria do Ministério da Saúde nº 922 que institui a Política Nacional de Saúde

da População Negra com a valorização do saber popular da medicina de matriz

africana como política de equidade no sistema único de saúde." (SÃO

BERNARDO e VIEIRA, 2010).

Neste sentido, com a proposição deste conjunto de políticas públicas

o Direito passa a ter como fonte normativa as características culturais e

históricas de um povo brasileiro permitindo uma mudança de paradigmas na

compreensão do que venha ser concretização da justiça social neste país. No

que tange ao direito da liberdade de manifestação religiosa, este é

essencialmente um direito subjetivo, que encontra dificuldades concretas

quando a intolerância e o desrespeito afetam as religiões dos grupos sociais

minoritários, principalmente os de matriz africana. (SÃO BERNARDO e

VIEIRA, 2010).

O Brasil já possui normas jurídicas que visam punir a intolerância

religiosa. A lei nº 7.716/1989, alterada pela lei nº 9.459/1997, considera crime a

prática de discriminação ou preconceito contra religiões. Em tal lei, são

considerados crimes de discriminação ou preconceito contra religiões as

práticas prescritas nos seguintes artigos: art. 3º "Impedir ou obstar o acesso de

alguém, devidamente habilitado, a qualquer cargo da Administração Direta ou

Indireta, bem como das concessionárias de serviços públicos", art. 4º "Negar

Page 12: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

12

ou obstar emprego em empresa privada", art. 5º "Recusar ou impedir acesso a

estabelecimento comercial, negando-se a servir, atender ou receber cliente ou

comprador", art. 6º "Recusar, negar ou impedir a inscrição ou ingresso de aluno

em estabelecimento de ensino público ou privado de qualquer grau", art. 7º

"Impedir o acesso ou recusar hospedagem em hotel, pensão, estalagem, ou

qualquer estabelecimento similar", art. 8º "Impedir o acesso ou recusar

atendimento em restaurantes, bares, confeitarias, ou locais semelhantes

abertos ao público", art. 9º "Impedir o acesso ou recusar atendimento em

estabelecimentos esportivos, casas de diversões, ou clubes sociais abertos ao

público", art. 10º "Impedir o acesso ou recusar atendimento em salões de

cabelereiros, barbearias, termas ou casas de massagem ou estabelecimento

com as mesmas finalidades", art. 11º "Impedir o acesso às entradas sociais em

edifícios públicos ou residenciais e elevadores ou escada de acesso aos

mesmos", art. 12 "Impedir o acesso ou uso de transportes públicos, como

aviões, navios barcas, barcos, ônibus, trens, metrô ou qualquer outro meio de

transporte concedido", art. 13 "Impedir ou obstar o acesso de alguém ao

serviço em qualquer ramo das Forças Armadas", art. 14 "Impedir ou obstar, por

qualquer meio ou forma, o casamento ou convivência familiar e social", art. 20

"Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia,

religião ou procedência nacional", e, art. 20, §1º, "Fabricar, comercializar,

distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou

propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do

nazismo".

Punição a incitações a violência, como agressões ou até mesmo

homicídios, por motivos religiosos ou não, estão previstos no Código Penal

brasileiro. Essa legislação (lei nº 7.716/89) também não retira o direito à crítica

que os seguidores de uma denominação religiosa (ou mesmo quem não segue

uma) podem fazer aos de outra. Isso está garantido na Constituição Federal do

Brasil de 1988, pela Cláusula democrática, presente no art. 1º "A República

Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios

e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito", pelo art.

5º, IV "é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato", pelo

art. 5º, VI, "é inviolável a liberdade de consciência e de crença", pelo art. 5º,

Page 13: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

13

VIII, "ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de

convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação

legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em

lei", e pelo art. 5º, IX, "é livre a expressão da atividade intelectual, artística,

científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença".

Como marco legal para discutir Estado e Religião a vigente

Constituição Federal de 1988 traz em seu texto o artigo 19 "é vedado a União,

aos Estados, ao Distrito Federal, e aos municípios: I - Estabelecer cultos

religiosos subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com

eles ou seus representantes relações de dependência, aliança, ressalvada na

forma da lei, a colaboração de interesse público.”.

Desde 1890 o país deixou de ter uma religião oficial para expressar-

se livremente no contexto religioso, com a mais ampla liberdade de consciência

e crença nos ideais outorgados pelo ilustre jurista Rui Barbosa. A partir da

separação Igreja/Estado, o Brasil tornou-se laico, desamordaçando as demais

religiões e credos que, até então, viviam mudos. O Brasil estabeleceu-se sobre

o princípio da laicidade, permitindo que expressões religiosas pudessem ter

vez e, por conseguinte, expressar seus princípios e fundamentos ao povo

brasileiro. O Estado Democrático de Direito também permite esta compreensão

da laicidade do Estado brasileiro e da isonomia do tratamento que deve ser

dispensado às religiões de diversas matizes no país, no entanto o Brasil ainda

deixa transparecer as marcas de uma presença secular colonizadora e

autoritária, sobretudo, das religiões de origem cristã sobre os povos indígenas

e negros, principalmente, que afetam seu processo de autoconhecimento com

suas raízes históricas e identitárias. (SÃO BERNARDO e VIEIRA, 2010).

Por força do art. 5º, § 2º, "Os direitos e garantias expressos nesta

Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela

adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do

Brasil seja parte". Neste diapasão, Tratados e Convenções Internacionais

através de seus enunciados preceituam a garantia do direito a liberdade de

crença e culto religioso. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de

1978 prescreve em seu art. 10 "ninguém deve ser molestado por suas opiniões,

mesmo religiosas, desde que sua manifestação não perturbe a ordem pública

Page 14: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

14

estabelecida pela lei"; a Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948

preceitua no art. XVIII que "toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento,

consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou

crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela

prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou

em particular"; O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, art. 18.1

"Toda pessoa terá direito à liberdade de pensamento, de consciência e de

religião." Esse direito implicará a liberdade de ter ou adotar uma religião ou

crença de sua escolha e a liberdade de professar sua religião ou crença,

individual ou coletivamente, tanto publica quanto privadamente, por meio de

culto, da celebração de ritos, de práticas do ensino; Ademais, ainda temos o

Programa Nacional dos Direitos Humanos que através de sua proposta 110

visa prevenir e combater a intolerância religiosa no que diz respeito a religiões

minoritárias cultos afro-brasileiros. (SÃO BERNARDO e VIEIRA, 2010;

HITCHENS, 2007).

A necessidade que se tinha até a década de 70 de que os terreiros

de candomblé, templos religiosos, obtivessem autorização mediante as

delegacias do Estado da Bahia para realizar seus cultos religiosos demonstra a

inconteste discriminação e criminalização do modo de vida dos

afrodescendentes que eram religiosos. O tratamento diferente dispensado as

religiões de matriz africana neste caso demonstra uma explícita forma de

discriminação negativa, e uma aplicação lesiva do princípio da igualdade

jurídica. Hoje, ainda permanecem as sequelas desta privação dos direitos

fundamentais, haja vista o preconceito advindo da opinião pública que

transparece um entendimento ignorante sobre as religiões de matriz africana.

Pode-se dizer que daí se multiplica os diversos casos de intolerância religiosa

pelo país. (SÃO BERNARDO e VIEIRA, 2010).

Alguns casos são emblemáticos na luta contra a tolerância religiosa

em todo o país. No Estado da Bahia - que possui 1.236 Terreiros de

Candomblé catalogados pela Secretaria Municipal da Reparação. (SÃO

BERNARDO e VIEIRA, 2010).

São Bernardo e Vieira (2010) relatam que se tem registrado pela

imprensa que, em Salvador, no ano de 1999, Mãe Gilda, a Iyalorixá do Terreiro

Page 15: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

15

Ilê Axé Abassá de Ogum, faleceu, ela tinha a saúde fragilizada e piorou quando

viu a sua foto publicada no jornal da Igreja Universal do Reino de Deus

vinculada a uma reportagem sobre charlatanismo que continha os seguintes

dizeres "Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes". No

intuito de obter justiça a sua filha e atual Iyalorixá da casa, Jaciara Ribeiro dos

Santos moveu uma ação fundada em danos morais e no uso indevido da

imagem. Neste caso, a justiça dos homens prevaleceu na primeira e segunda

instância na esfera do Poder Judiciário condenando a Igreja Universal do Reino

de Deus, mas a condenada ainda recorre da decisão. (SÃO BERNARDO e

VIEIRA, 2010).

Ainda, relatando um caso em Salvador na Bahia, o terreiro

OyáOnipó Neto, da Iyalorixá Rosalice do Amor Divino, em fevereiro de 2008 foi

demolido por um órgão municipal público, a Superintendência de Controle e

Ordenamento do Uso do Solo do Município (SUCOM), por denúncia de

moradores vizinhos do templo religioso baseados no fato de que a casa fora

construída de forma irregular. O Estado do Rio de Janeiro, assim como a

cidade de Salvador, estabeleceram o dia 21 de janeiro - dia de falecimento da

Iyalorixá Gilda - como o Dia do Combate à Intolerância Religiosa. Além de

Salvador e do Rio de Janeiro, o município de Vitória e o Estado de Alagoas

também tem um dia contra a intolerância religiosa e outras câmaras municipais

possuem projetos de leis sobre o assunto em tramitação. (SÃO BERNARDO e

VIEIRA, 2010).

As estatísticas de crimes de intolerância religiosa vão além destes

casos citados, elas estão ocultas, justamente pela invisibilidade e opressão

histórica que sofreu os grupos étnicos sociais minoritários - negros, índios,

povos ciganos, quilombolas, etc. - no que diz respeito à ocupação dos espaços

de poder e decisão política, mas consideravelmente em grande número pela

estatística populacional, muito embora o IBGE ainda não possua a

classificação religiões de matriz africana nas pesquisas do CENSO. A história

da intolerância religiosa no Brasil é marcada não só por estes fatos e relatos,

mas também por tantos outros tantos anônimos. A partir de uma retrospectiva

na história do Brasil, São Bernardo e Vieira (2010) levantam teorias racistas

que tiveram ampla aceitação pela sociedade, no que tange à comunidade

Page 16: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

16

judaica, e também a população negra e indígena pelo fato de o país concentrar

um grande contingente destas populações. A perseguição aos judeus, às

limitações da política imigratória brasileira, as várias formas de manifestação

do preconceito, parte da classe política aproveitava o ensejo para pôr em

prática seus preconceitos e dessa maneira auxiliar o então presidente Getúlio

Vargas na confecção de uma legislação imigratória nitidamente racista em

relação ao judeu e ao japonês.

Assim como ainda hoje, as religiões de matriz africana sofrem pala

tarja de cultuar "magia negra", o judaísmo era visto como um mal diabólico que

desce sobre a humanidade para seduzi-la e vencê-la. Os templos religiosos de

matriz africana se constituem como territórios históricos com total presunção de

resistência da ancestralidade afrodescendente, de tal modo que o Decreto

Federal de nº 4.887/2003 trouxe o conceito de auto-atribuição para definir as

comunidades remanescentes de quilombo, por exemplo. Estes argumentos

aqui descritos contribuem para justificação da criação de um plano nacional de

intolerância religiosa, haja vista que se trata do mesmo povo brasileiro que vem

historicamente sendo perseguido pelo seu modo de existir e viver. (HITCHENS,

2007; SÃO BERNARDO e VIEIRA, 2010).

A cooperação entre os Estados da República Federativa do Brasil

deve prevalecer nas esferas de gestão de modo a perseguir os princípios da

administração pública nos meios de comunicação, na rede pública de ensino,

na concepção do plano plurianual (PPA) e da Lei de Diretrizes Orçamentárias

(LDO), no poder judiciário, e demais setores que dialogam com os casos de

intolerância religiosa. Neste caminho deve ser construído um texto legal que

venha contemplar aquilo já consagrado na carta constitucional em que

assegura a laicidade, a isonomia e a pluralidade de tratamento entre as

expressões de fé e consciência. (SÃO BERNARDO e VIEIRA, 2010).

O direito à liberdade de consciência, de credo e o livre exercício dos

cultos religiosos para que sejam efetivamente assegurados, necessita de

proteção legal e de uma atitude do Estado ao reconhecer o caráter multicultural

da sociedade brasileira. Não há como conceber o mundo da religião restrito ao

mundo do privado. Do mesmo modo, não há como conceber o mundo da

política sem as devidas unidades de interesses próprios de cada manifestação

Page 17: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

17

religiosa e entendê-las como depositárias de princípios, costumes e sistemas

de crenças motivadores de sua condição coletiva. (SÃO BERNARDO e

VIEIRA, 2010).

Como o Estado Brasileiro deve lidar com os conflitos sociais que tem

a religiosidade como pano de fundo no Direito? A liberdade de manifestação

religiosa inclui aspectos sociais de convivência com a diferença e com as

normas que o Estado impõe para assegurar estas diferenças. Portanto, faz-se

necessário uma política pública que colabore para concretizar a pluralidade de

manifestações religiosas, a partir do princípio da isonomia e da justiça social.

(REALE, 2002).

Page 18: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

18

CAPÍTULO II LAICISMO: PANORAMA DAS LUTAS DA SOCIEDADE

PARA DESVENCILHAR O ESTADO DA IGREJA

2.1 Conceituação do Estado laico

Conforme Bicudo (2011) quando a sociedade buscou desvencilhar-

se da hegemonia da Igreja na organização do Estado, tivemos tensões entre o

poder dos reis e o do clero, ao invés de uma sociedade voltada para a paz,

perseguições que em nada diferiam das em que se empenharam setores das

Igrejas católica ou reformadas, na eliminação de quantos discordavam daquilo

que importava na manutenção de um status quo que se queria paralisado no

tempo. Num e noutro caso, afastava-se o povo de qualquer participação na

organização do Estado.

Esses embates foram permitindo o surgimento de uma consciência

cidadã que tinha em mira uma verdadeira participação do povo na condução

pública de seus problemas. Reconheceu-se, então, o papel que as religiões

tiveram no aperfeiçoamento da pessoa humana. É a partir daí que podemos

ver, nas Constituições políticas dos Estados democráticos, que essa

importantíssima contribuição das Igrejas cristãs foi contemplada em

dispositivos que desenham os direitos fundamentais do homem e determinam

os objetivos do Estado. (BICUDO, 2011).

Os direitos da pessoa humana, geralmente ignorados nas antigas

civilizações, somente começaram a ser valorizados através do ministério de

Jesus Cristo. Amai-vos uns aos outros é a pedra de toque dos Direitos

Humanos. Sobretudo, deve-se ter em consideração que o Estado laico, que

advém de todas essas lutas e que encontrou sua melhor definição no

Iluminismo, não pode ser entendido como o Estado ateu que, como aconteceu

no Estado totalitário, seja de esquerda, seja de direita, adota a ratio política da

negativa de Deus. O Estado laico é o Estado que se estrutura segundo normas

Page 19: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

19

que, embora não tenham qualificativos religiosos, não podem negar a sua

origem nas palavras e escritos que, como vimos, têm seus princípios no

Ministério de Cristo. (HARRIS, 2007).

A doutrina social da Igreja, as intervenções dos últimos Papas perante os problemas concretos contemporâneos, o Concilio Vaticano II, a ação dos bispos e as iniciativas de diversos grupos e comunidades revelam o reencontro do catolicismo com os direitos e liberdades fundamentais. As Constituições brasileiras, editadas a partir da Primeira República, recolheram, no tocante à estrutura organizatória da República, as ideias do liberalismo positivista. Um dos pontos considerados fundamentais no programa político então aconselhado se constituía na defesa de uma república laica e democrática. (BICUDO, 2011, p.2).

O laicismo, produto de uma visão individualista e racionalista,

desdobra-se em vários postulados como, entre outros, a separação entre o

Estado e a Igreja. Mas contempla também a igualdade e a liberdade de cultos e

a laicização do ensino. Relativamente à autoridade política, a religião deixa de

ser um tema público para se enquadrar na esfera dos assuntos privados, a não

ser quanto à vigilância da própria liberdade religiosa. Assim, de acordo com

Bicudo (2011) uma sociedade politicamente democrática, assente no

relativismo político, postula também uma sociedade religiosamente liberal,

tolerante para com todos os credos, aceites e praticados pelos cidadãos.

Não obstante, é preciso acentuar que, a despeito da coincidência no essencial entre a visão cristã das relações da pessoa com o poder público e o propósito de garantia dos direitos do homem, foi patente nos séculos XVIII e XIX, o grave conflito que opôs os defensores desse propósito e a Igreja católica. O conflito adveio de certas circunstâncias históricas, identificáveis no enciclopedismo e nas fundamentações nominalistas e laicistas dos direitos naturais, invioláveis e sagrados, no modo revolucionário como o liberalismo se implantou na Europa e na inserção constantiniana da Igreja desse tempo. (BICUDO, 2011, p.3).

Contudo, essas tensões iriam desaparecer ou atenuar-se, na medida

em que essas circunstâncias iam sendo ultrapassadas e que os direitos do

homem e as correspondentes instituições jurídico-objetivas adquiriam

dinamismo próprio e, por outro lado, segundo o que também a Igreja procurava

Page 20: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

20

libertar-se, ou seja, das amarras do poder e abrir-se em missão cada vez mais

para o mundo. A doutrina social da Igreja, as intervenções dos últimos Papas

sobre os problemas concretos contemporâneos, o Concílio Vaticano II, as

ações dos bispos e as iniciativas de diversas comunidades revelam o

reencontro dos católicos com os direitos e liberdades fundamentais, assim

como importantes contribuições para a mudança de mentalidades e de

estruturas em numerosos países, sobretudo na América Latina. (HARRIS,

2007).

Muito embora esses princípios se encontrem inscritos nos primeiros

artigos da Constituição de 1988, chamada a Constituição Cidadã, como se vê

dos fundamentos sobre os quais se assenta a República (arts. 1º e 2º), de seus

objetivos fundamentais (art. 3º) e dos princípios que regem suas relações

internacionais (art. 4º) e do rol dos direitos e garantias fundamentais (art. 5º),

muitas vezes temos resvalado para um anticlericalismo sectário, alimentado

pelo Poder Executivo e que encontra ressonância no Parlamento e até mesmo

em nossos tribunais superiores. Tomando como exemplo o direito à vida,

porque dele decorrem todos os demais, a Constituição de 1988 é enfática ao

afirmar a sua inviolabilidade (art. 5º). No entanto, são recorrentes as iniciativas,

muitas delas de inspiração do próprio Poder Executivo, mediante propostas de

seus ministérios ou secretarias respaldadas em resoluções adotadas nos

encontros promovidos pelo Partido dos Trabalhadores. Por outro lado, a Igreja

se vê tolhida na sua atuação em defesa da vida, sendo pura e simplesmente

impedida de contribuir, com sua experiência milenar, para um entendimento

compatível com as imposições do tempo sem, contudo, deixar de lembrar a

relevância da existência humana no plano universal. (BICUDO, 2011).

É sabido como, no Congresso Nacional, se organizam as comissões especiais para o estudo e a apresentação de propostas a serem apreciadas pelos plenários da Câmara de Deputados ou do Senado Federal. Se a intenção é a de aprovar determinada matéria, os membros dessas comissões são escolhidos a dedo. Reservam-se alguns assentos àqueles que possam ser contrários, para dar a impressão de que se preserva o direito de participação. A esse respeito, um pesquisador poderá levantar nos arquivos do Parlamento brasileiro inúmeros exemplos. Vai daí ser plenamente justificável o temor de representantes da Igreja católica relativamente à aprovação de projetos que objetivam

Page 21: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

21

descriminalizar o aborto ou conceder amparo legal à união de pessoas do mesmo sexo. (BICUDO, 2011, p.2).

Ora, o direito à vida vem explicitamente contemplado no mencionado

art. 5º da Constituição Federal, considerado o direito do qual todos os outros

decorrem. Tenha-se, ainda, em atenção que são considerados direitos

fundamentais, na forma do mesmo art. 5º, “os direitos e garantias expressos

nesta Constituição que não excluem outros decorrentes do regime e dos

princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República

Federativa do Brasil seja parte”. Pois bem, o Estado brasileiro ratificou em 1992

a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, subscrita em San Jose da

Costa Rica, em 22 de novembro de 1969, ressalvando, entretanto, o

reconhecimento da competência jurisdicional da Corte Interamericana de

Direitos Humanos, ressalva essa tornada sem efeito em 10 de dezembro de

1998, quando aquele tratado passou a sujeitar o Brasil em todos os seus

termos. (BICUDO, 2011).

Estabelece a Convenção Americana, em seu art. 4º, n. 1, que toda

pessoa tem direito a que se respeite sua vida. Este direito estará protegido pela

lei e, em geral, a partir da concepção. Ninguém pode ser privado da vida

arbitrariamente. Trata-se de norma que se insere, nos termos do § 2º do art. 5º,

já citado, no rol dos direitos e garantias individuais enunciados pela

Constituição brasileira. E, como tal, não pode ser alterado ou tornado sem

efeito, sequer por emenda constitucional. É uma das chamadas cláusulas

pétreas, que não podem ser alteradas. Aliás, a emenda constitucional que

pretendeu realizar a reforma do Poder Judiciário, mas que não passou de leve

maquiagem, estabelecendo que os tratados de Direitos Humanos para

ganharem o status constitucional devem ser submetidos a processo idêntico

àqueles a que se submetem os projetos de emenda constitucional. (BICUDO,

2011).

Esse dispositivo mostra, claramente, que se trata de novos tratados,

pois os anteriores, editados na versão do § 2º, já se arrolaram dentre os

direitos fundamentais, desde que ratificados pelo Congresso Nacional. Com o

novo dispositivo os atuais legisladores quiseram dificultar a passagem de um

tratado de direitos humanos para o rol dos direitos fundamentais, o que importa

Page 22: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

22

em concluir que o Estado brasileiro foge de suas responsabilidades

internacionais. Se assim é, e sem dúvida o é, não pode ser revogado ou

alterado o disposto no art. 4º, n. 1, da Convenção Americana, já incorporado na

Constituição Federal. E não pode, porque diz a Constituição, em seu art. 60,

§4º, que não será objeto de deliberação a proposta de emenda constitucional

tendente a abolir: IV – os direitos e garantias individuais. Em remate, o

Congresso, pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, rejeitará, in

limine, proposta de emenda tendente a abolir direitos e garantias individuais.

Basta que haja a intenção apreendida, no sentido de abolir um direito, para

que, sequer, seja objeto de deliberação. (BICUDO, 2011).

Uma proposta nesse sentido, acaso não seja rejeitada in limine, pode suscitar o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal, nos termos do art. 102, I, “a”, c/c. art. 103, IX, ambos da Constituição Federal. Os mesmos argumentos valem para a pretensão de legalizar a união de pessoas do mesmo sexo que, segundo já foi exposto, importa em atentado indireto ao direito à vida. Chegados a este ponto, convém indagar quais os instrumentos legais para se obter, mediante a imposição do cumprimento de obrigações internacionais livremente assumidas, uma vez esgotados os recursos que objetivam sua defesa, a participação dos cidadãos na defesa dos direitos fundamentais. (BICUDO, 2011, p.3).

Contudo, hoje em dia, não obstante, no caso brasileiro, a

Constituição vigente tenha adotado como um dos fundamentos do Estado a

dignidade da pessoa humana (art.1º, III), que entre seus objetivos

fundamentais estejam o de construir uma sociedade livre, justa e solidária e de

promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e

quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, I e IV), o que revela a força

do fermento cristão, a Igreja Católica vem sendo objeto de discriminações que

se refletem em posições e atitudes adotadas pelo Governo brasileiro, muitas

vezes acoroçoadas pelas manipulações dos meios de comunicação de

massas. É nessa linha que prevalecem as ideias da chamada legalização do

aborto e do casamento de pessoas do mesmo sexo. E procuram impor,

mediante apelos a alegados direitos reprodutivos que permitem à mulher livrar-

se de filhos indesejados ou de pseudodireitos à constituição de famílias,

segundo concepções incompatíveis com o próprio direito natural. Se a Igreja ou

Page 23: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

23

quaisquer pessoas se voltam contra essas pretensões que, ao contrário de se

constituírem em princípios para uma vida digna e construtiva da sociedade

humana, comprometem-na desde que desprezam a preservação da vida e a

base da comunidade humana que é a Família, são discriminadas e qualificadas

de retrógradas. E o que é de pasmar, essa discriminação passa pelo

Congresso Nacional que, nos debates sobre o problema da vida – problema

ínsito na prática do aborto ou na legalização da união de homossexuais –

conforma suas comissões temáticas segundo imposições de aguerridas

organizações, sejam feministas, sejam quanto à instituição de "pseudofamílias".

E mais ainda. A Presidência da República permite e estimula a atuação, nos

ministérios da mulher e da discriminação racial, a apresentação, em nome do

Governo, de projetos que, não podendo alterar os termos da Constituição,

procuram solapar seus termos mediante normas infraconstitucionais que

legalizam, sob os mais variados pretextos, o aborto e a união de pessoas do

mesmo sexo. Esquecem, com isso, toda a tradição histórica que se alimentou

de lições da Igreja, de que o bem supremo a ser preservado em quaisquer

condições é o direito à vida, base e fundamento de todos os direitos. E está na

Constituição, em seu art. 5º, quando se assegura a inviolabilidade do direito à

vida. (BICUDO, 2011).

2.2 Crise do Homem Contemporâneo

As muitas crises que abalam o mundo hodierno - do Estado, da

família, da economia, da cultura etc. - não constituem senão múltiplos aspectos

de uma só crise fundamental, que tem como campo de ação o próprio homem.

Em outros termos, essas crises têm sua raiz nos problemas de alma mais

profundos, de onde se estendem para todos os aspectos da personalidade do

homem contemporâneo e todas as suas atividades. (HARRIS, 2007).

É fácil explicar a escolha do assunto. “Catolicismo” deve ser julgado

principalmente em função do fim que seu combate tem em vista. Ora, a quem,

precisamente, quer ele combater? É frequente encontrar refutações do

comunismo, do socialismo, do totalitarismo, do liberalismo, do liturgicismo, do

Page 24: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

24

maritainismo, e de outros tantos “ismos”. Contudo, não se diria que temos tão

mais em vista um deles, que por aí nos pudéssemos definir. Por exemplo,

haveria exagero em afirmar que “Catolicismo” é uma folha especificamente

antiprotestante ou antissocialista. O estudo da Revolução e da Contra

Revolução excede de muito, em proveito, este objetivo limitado. Para

demonstrá-lo, basta lançar os olhos sobre o panorama religioso de nosso país.

(HARRIS, 2007).

Seguiu-se a Revolução Francesa, que foi o triunfo do igualitarismo

em dois campos. No campo religioso, sob a forma do ateísmo, especiosamente

rotulado de laicismo. E na esfera política pela falsa máxima de que toda a

desigualdade é uma injustiça, toda autoridade um perigo, e a liberdade o bem

supremo. O Comunismo é a transposição destas máximas para o campo social

e econômico. (HARRIS, 2007).

Este processo não deve ser visto como uma sequência toda fortuita

de causas e efeitos, que se foram sucedendo de modo inesperado. Já em seu

início possuía esta crise as energias necessárias para reduzir a atos todas as

suas potencialidades, que em nossos dias conserva bastante vivas para causar

por meio de supremas convulsões as destruições últimas que são seu termo

lógico. Influenciada e condicionada em sentidos diversos, por fatores

extrínsecos de toda ordem-culturais, sociais, econômicos, étnicos, geográficos

e outros - e seguindo por vezes caminhos bem sinuosos, vai ela, no entanto

progredindo incessantemente para seu trágico fim. (CIOTOLLA, 2010).

2.3. A Decadência da Idade Média

No século XIV começa a observar-se, na Europa cristã, uma

transformação de mentalidade que ao longo do século XV cresce cada vez

mais em nitidez. O apetite dos prazeres terrenos se vai transformando em

ânsia. As diversões se vão tornando mais frequentes e mais suntuosas. Os

homens se preocupam sempre mais com elas. Nos trajes, nas maneiras, na

linguagem, na literatura, na arte o anelo crescente por uma vida cheia de

deleites da fantasia e dos sentidos vai produzindo progressivas manifestações

Page 25: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

25

de sensualidade e moleza. Há um paulatino de perecimento da seriedade da

austeridade dos antigos tempos. Tudo tende ao risonho, ao gracioso, ao

festivo. Os corações desprendem gradualmente do amor ao sacrifício, da

verdadeira devoção à Cruz, e das aspirações de santidade e vida eterna.

(DAWKINS, 2007).

A Cavalaria, outrora uma das mais altas expressões da austeridade

cristã torna amorosa e sentimental, a literatura de amor invade todos os países,

os excessos do luxo e consequente avidez de lucros se estendem por todas as

classes sociais. Tal clima moral, penetrando nas esferas intelectuais, produziu

claras manifestações de orgulho, como o gosto pelas disputas aparatosas e

vazias, pelas argúcias inconsistentes, pelas exibições fátuas de erudição, e

lisonjeou velhas tendências filosóficas, das quais triunfara Escolástica, e que já

agora, relaxado o antigo zelo pela integridade da Fé, renasciam em aspecto

novos. O absolutismo dos legistas, que se engalanavam com um conhecimento

vaidoso do Direito Romano, encontrou em Príncipes ambiciosos um eco

favorável. E pari passu foi-se extinguindo nos grandes e nos pequenos a fibra

de outrora para conter o poder real nos legítimos limites vigente nos dias de

São Luís de França e São Fernando de Castela. Este novo estado de alma

continha um desejo possante, se bem que mais ou menos inconfessado, de

uma ordem de coisas fundamentalmente diversa da que chegara a seu apogeu

nos séculos XII e XIII. (DAWKINS, 2007).

A admiração exagerada, e não raro delirante, pelo mundo antigo,

serviu como meio de expressão a esse desejo. Procurando muitas vezes não

colidir de frente com a velha tradição medieval, o Humanismo e a Renascença

tenderam a relegar a Igreja, o sobrenatural, os valores morais da Religião, a

um segundo plano. O tipo humano, inspirado nos moralistas pagãos, que

aqueles movimentos introduziram como ideal na Europa, bem como a cultura e

a civilização coerentes com este tipo humano, já eram os legítimos precursores

do homem ganancioso, sensual, laico e pragmático de nossos dias, da cultura

e da civilização materialistas em que cada vez mais vamos imergindo. Os

esforços por uma Renascença cristã não lograram esmagar em seu germe os

fatores de que resultou o triunfo paulatino do neopaganismo. Em algumas

partes da Europa, este se desenvolveu sem levar à apostasia formal.

Page 26: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

26

Importantes resistências se lhe opuseram. E mesmo quando ele se instalava

nas almas, não lhes ousava pedir – de início pelo menos - uma formal ruptura

com a Fé. Mas em outros países ele investiu às escâncaras contra a Igreja. O

orgulho e a sensualidade, em cuja satisfação está o prazer da vida pagã,

suscitaram o protestantismo. (DAWKINS, 2007).

O orgulho deu origem ao espírito de dúvida, ao livre exame, à

interpretação naturalista da Escritura. Produziu ele a insurreição contra a

autoridade eclesiástica, expressa em todas as seitas pela negação do caráter

monárquico da Igreja Universal, isto é, pela revolta contra o Papado. Algumas,

mais radicais, negaram também o que se poderia chamar a alta aristocracia da

Igreja, ou seja, os Bispos, seus Príncipes. Outras ainda negaram o próprio

sacerdócio hierárquico, reduzindo-o a mera delegação do povo, único detentor

verdadeiro do poder sacerdotal. No plano moral, o triunfo da sensualidade no

protestantismo se afirmou pela supressão do celibato eclesiástico e pela

introdução do divórcio. A ação profunda do Humanismo e da Renascença entre

os católicos não cessou de se dilatar numa crescente cadeia de

consequências, em toda a França. Favorecida pelo enfraquecimento da

piedade dos fiéis - ocasionado pelo jansenismo e pelos outros fermentos que o

protestantismo do século XVI desgraçadamente deixara no Reino

Cristianíssimo - tal ação teve por efeito no século XVIII uma dissolução quase

geral dos costumes, um modo frívolo e brilhante de considerar as coisas, um

endeusamento da vida terrena, que preparou o campo para a vitória gradual da

irreligião. Dúvidas em relação à Igreja, negação da divindade de Cristo,

deísmo, ateísmo incipiente foram às etapas dessa apostasia. (HITCHENS,

2007).

Profundamente afim com o protestantismo, herdeira dele e do

neopaganismo renascentista, a Revolução Francesa realizou uma obra de todo

em todo simétrica à da Pseudo-Reforma. A Igreja Constitucional que ela, antes

de naufragar no deísmo e no ateísmo, tentou fundar, era uma adaptação da

Igreja da França ao espírito do protestantismo. E a obra política da Revolução

Francesa não foi senão a transposição, para o âmbito do Estado, da “reforma”

que as seitas protestantes mais radicais adotaram em matéria de organização

eclesiástica: (HITCHENS, 2007).

Page 27: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

27

- Revolta contra o Rei, simétrica à revolta contra o Papa;

- Revolta da plebe contra os nobres, simétrica à revolta da “plebe”

eclesiástica, isto é, dos fiéis, contra a “aristocracia” da Igreja, isto é, o Clero;

- Afirmação da soberania popular, simétrica ao governo de certas

seitas, em medida maior ou menor, pelos fiéis. No protestantismo nasceram

algumas seitas que, transpondo diretamente suas tendências religiosas para o

campo político, prepararam o advento do espírito republicano. São Francisco

de Sales, no século XVII, premuniu contra estas tendências republicanas o

Duque de Sabóia.

Outras, indo mais longe, adotaram princípios que, se não se

chamarem comunistas em todo o sentido hodierno do termo, são pelo menos

pré-comunistas. (HITCHENS, 2007).

2.4. O comunismo de Marx

Da Revolução Francesa nasceu o movimento comunista de Babeuf.

E mais tarde, do espírito cada vez mais vivaz da Revolução, irromperam as

escolas do comunismo utópico do século XIX e o comunismo dito científico de

Marx. E o que de mais lógico? O deísmo tem como fruto normal o ateísmo. A

sensualidade, revoltada contra os frágeis obstáculos do divórcio, tende por si

mesma ao amor livre. O orgulho, inimigo de toda superioridade, haveria de

investir contra a última desigualdade, isto é, a de fortunas.

E assim, ébrio de sonhos de República Universal, de supressão de

toda autoridade eclesiástica ou civil, de abolição de qualquer Igreja e, depois

de uma ditadura operária de transição, também do próprio Estado, aí está o

neobárbaro do século XX, produto mais recente e mais extremado do processo

revolucionário. A fim de evitar qualquer equívoco, convém acentuar que esta

exposição não contém a afirmação de que a república é um regime político

necessariamente revolucionário. Leão XIII deixou claro, ao falar das diversas

formas de governo, que “cada uma delas é boa, desde que saiba caminhar

retamente para seu fim, a saber, o bem comum, para o qual a autoridade social

é constituída”. (MATHEUS, 2011).

Page 28: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

28

Taxamos de revolucionária, isto sim, a hostilidade professada, por

princípio, contra a monarquia e a aristocracia, como sendo formas

essencialmente incompatíveis com a dignidade humana e a ordem normal das

coisas. É o erro condenado por São Pio X na Carta Apostólica “Notre Charge

Apostolique”, de 25 de agosto de 1910. Nela censura o grande e santo

Pontífice a tese do “Sillon”, de que “só a democracia inaugurará o reino da

perfeita justiça”, e exclama: “Não é isto uma injúria às outras formas de

governo, que são rebaixadas, por esse modo, à categoria de uma injúria às

outras formas de governo, que são rebaixadas, por esse modo, à categoria de

governos impotentes, aceitáveis à falta de melhor?”. Ora, sem este erro,

inviscerado no processo de que falamos não se explica inteiramente que a

monarquia, qualificada pelo Papa Pio VI como sendo em tese a melhor forma

de governo – praestantiorismonarchiciregiminis forma -, tenha sido objeto, nos

séculos XIX e XX, de um movimento mundial de hostilidade que deu por terra

com os tronos e as dinastias mais veneráveis.

A produção em série de repúblicas para o mundo inteiro é, a nosso

ver, um fruto típico da Revolução, e um aspecto capital dela. Não pode ser

taxado de revolucionário quem para sua Pátria, por razões concretas e locais,

ressalvados sempre os direitos da autoridade legítima, prefere a democracia à

aristocracia ou à monarquia. Mas sim quem, levado pelo espírito igualitário da

Revolução, odeia em princípio, e qualifica de injusta ou inumana por essência,

a aristocracia ou a monarquia. (MATHEUS, 2011).

Desse ódio antimonárquico e antiaristocrático, nascem as

democracias demagógicas, que combatem a tradição, perseguem as elites,

degradam o tônus geral da vida, e criam um ambiente de vulgaridade que

constitui como que a nota dominante da cultura e da civilização, se é que os

conceitos de civilização e de cultura se podem realizar em tais condições.

Como diverge desta democracia revolucionária a democracia

descrita por Pio XII: “Segundo o testemunho da História, onde reina uma

verdadeira democracia, a vida do povo está como que impregnada de sãs

tradições, que é ilícito abater. Representantes dessas tradições são, antes de

tudo, as classes dirigentes, ou seja, os grupos de homens e mulheres ou as

Page 29: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

29

associações, que dão, como se costuma dizer, o tom na aldeia e na cidade, na

região e no país inteiro". (MATHEUS, 2011).

Daqui, em todos os povos civilizados, a existência e o influxo de instituições eminentemente aristocráticas, no sentido mais elevado da palavra, como são algumas academias de larga e bem merecida fama. Pertence a este número também a nobreza. Como se vê, o espírito da democracia As presentes considerações sobre a posição da Revolução e do pensamento católico em face das formas de governo suscitarão em vários leitores uma interrogação: a ditadura é um fator de Revolução, ou de Contra Revolução? (MATHEUS, 2011, p.9).

Para responder com clareza a uma pergunta a que têm sido dadas

tantas soluções confusas e até tendenciosas, é necessário estabelecer uma

distinção entre certos elementos que se emaranham desordenadamente na

ideia de ditadura, como a opinião pública a conceitua. Confundindo a ditadura

em tese com o que ela tem sido in concreto em nosso século, o público

entende por ditadura um estado de coisas em que um chefe dotado de poderes

irrestritos governa um país. Para o bem deste, dizem uns. Para o mal, dizem

outros. Mas em um e outro caso, tal estado de coisas é sempre uma ditadura.

Ora, este conceito envolve dois elementos distintos:

- onipotência do Estado;

- concentração do poder estatal em uma só pessoa. (MATHEUS,

2011, p.54).

No espírito público, parece que o segundo elemento chama mais a

atenção. Entretanto, o elemento básico é o primeiro, pelo menos se

entendermos por ditadura um estado de coisas em que o Poder Público,

suspensa qualquer ordem jurídica, dispõe a seu talante de todos os direitos.

Que uma ditadura possa ser exercida por um Rei (a ditadura real, isto é, a

suspensão de toda a ordem jurídica e o exercício irrestrito do poder público

pelo Rei, não se confunde com o Ancien Régime, em que estas garantias

existiam em considerável medida, e muito menos com a monarquia orgânica

medieval) ou um chefe popular, uma aristocracia hereditária ou um clã de

banqueiros, ou até pela massa, é inteiramente evidente. Em si, uma ditadura

exercida por um chefe ou um grupo de pessoas não é revolucionária nem

contra-revolucionária. Ela será uma ou outra coisa em função das

Page 30: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

30

circunstâncias de que se originou, e da obra que realizar. E isto, quer esteja em

mãos de um homem, quer de um grupo. Há circunstâncias que exigem, para a

salus populi, uma suspensão provisória de todos os direitos individuais, e o

exercício mais amplo do poder público. A ditadura pode, portanto, ser legítima

em certos casos. (CIOTOLA, 2010).

Uma ditadura contra-revolucionária e, pois, inteiramente norteada

pelo desejo de Ordem, deve apresentar três requisitos essenciais:

Ø Deve suspender os direitos, não para subverter a Ordem, mas

para protegê-la. E por Ordem não entendemos apenas a tranquilidade material,

mas a disposição das coisas segundo seu fim, e de acordo com a respectiva

escala de valores. Há, pois, uma suspensão de direitos mais aparente do que

real, o sacrifício das garantias jurídicas de que os maus elementos abusavam

em detrimento da própria ordem e do bem comum, sacrifício este todo voltado

para a proteção dos verdadeiros direitos dos bons.

Ø Por definição, esta suspensão deve ser provisória, e deve

preparar as circunstâncias para que o mais cedo possível se volte à ordem e à

normalidade. A ditadura, na medida em que é boa, vai fazendo cessar sua

própria razão de ser. A intervenção do Poder público nos vários setores da vida

nacional deve fazer-se de maneira que, o mais breve possível, cada setor

possa viver com a necessária autonomia. Assim, cada família deve poder fazer

tudo aquilo de que por sua natureza é capaz, sendo apoiada apenas

subsidiariamente por grupos sociais superiores naquilo que ultrapasse o seu

âmbito. Esses grupos, por sua vez, só devem receber o apoio do município no

que excede à normal capacidade deles, e assim por diante nas relações entre

o município e a região, ou entre esta e o país.

Ø O fim precípuo da ditadura legítima hoje em dia deve ser a Contra

Revolução. O que, aliás, não implica em afirmar que a ditadura seja

normalmente um meio necessário para a derrota da Revolução. Mas em certas

circunstâncias pode ser. Pelo contrário, a ditadura revolucionária visa eternizar-

se, viola os direitos autênticos, e penetra em todas as esferas da sociedade

para aniquilá-las, desarticulando a vida de família, prejudicando as elites

genuínas, subvertendo a hierarquia social, alimentando de utopias e de

aspirações desordenadas a multidão, extinguindo a vida real dos grupos

Page 31: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

31

sociais e sujeitando tudo ao Estado: em uma palavra, favorecendo a obra da

Revolução. Exemplo típico de tal ditadura foi o hitlerismo. Por isto, a ditadura

revolucionária é fundamentalmente anticatólica. Com efeito, em um ambiente

verdadeiramente católico, não pode haver clima para uma tal situação. O que

não quer dizer que a ditadura revolucionária, neste ou naquele país, não tenha

procurado favorecer a Igreja. Mas trata-se de atitude meramente política, que

se transforma em perseguição franca ou velada, logo que a autoridade

eclesiástica comece a deter o passo à Revolução. Em cada etapa, essas

tendências e erros têm um aspecto próprio. A Revolução vai, pois, se

metamorfoseando ao longo da História. (MATHEUS, 2011).

Essas metamorfoses que se observam nas grandes linhas gerais da

Revolução, se repetem em ponto menor, no interior de cada grande episódio

dela. Assim, o espírito da Revolução Francesa, em sua primeira fase, usou

máscara e linguagem aristocrática e até eclesiástica. Frequentou a corte e

sentou-se à mesa do Conselho do Rei. Depois, tornou-se burguês e trabalhou

pela extinção incruenta da monarquia e da nobreza, e por uma velada e

pacífica supressão da Igreja Católica. Logo que pôde, fez-se jacobino, e se

embriagou de sangue no Terror. Mas os excessos praticados pela facção

jacobina despertaram reações. Ele voltou atrás, percorrendo as mesmas

etapas. De jacobino transformou-se em burguês no Diretório, com Napoleão

estendeu a mão à Igreja e abriu as portas à nobreza exilada, e, por fim,

aplaudiu a volta dos Bourbons. Terminada a Revolução Francesa, não termina

com isto o processo revolucionário. Ei-lo que torna a explodir com a queda de

Carlos X e a ascensão de Luís Felipe, e assim por sucessivas metamorfoses,

aproveitando seus sucessos e mesmo seus insucessos, chegou ele até o

paroxismo nossos dias. (MATHEUS, 2011).

A Revolução usa, pois, suas metamorfoses não só para avançar,

como também para operar recuos táticos que tão frequentemente lhe têm sido

necessários. Por vezes, movimento sempre vivo, ela tem simulado estar morta.

E é esta uma de suas metamorfoses mais interessantes. Na aparência, a

situação de um determinado país se apresenta como inteiramente tranquila. A

reação contra-revolucionária se distende e adormece. Mas, profundidades da

vida religiosa, cultural, social, ou econômica, a fermentação revolucionária

Page 32: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

32

sempre ganhando terreno. E, ao cabo desse aparente interstício, explode uma

convulsão inesperada frequentemente maior que as anteriores. Como vimos,

essa Revolução é um processo feito de etapas, e tem sua origem última em

determinadas tendências desordenadas que lhe servem de alma e de força

propulsora mais íntima. Assim, podemos também distinguir na Revolução três

profundidades, que cronologicamente até certo ponto se interpenetram. A

primeira, isto é, a mais profunda, consiste em uma crise nas tendências. Essas

tendências desordenadas, que por sua própria natureza lutam por realizar-se,

já não se conformando com toda uma ordem de coisas que lhes é contrária,

começam por modificar as mentalidades, os modos de ser, as expressões

artísticas e os costumes, sem desde logo tocar de modo direto - habitualmente,

pelo menos - nas ideias. Dessas camadas profundas, a crise passa para o

terreno ideológico. Com efeito - como Paul Bourget pôs em evidência em sua

célebre obra Le Démon de Midi - “cumpre viver como se pensa, sob pena de,

mais cedo ou mais tarde, acabar por pensar como se viveu”. Assim, inspiradas

pelo desregramento das tendências profundas, doutrinas novas eclodem. Elas

procuram por vezes, de início, um modus vivendi com as antigas, e se

exprimem de maneira a manter com estas um simulacro de harmonia que

habitualmente não tarda em se romper em luta declarada. O elemento

fundamental da cultura católica é a visão do universo elaborada segundo a

doutrina da Igreja. Essa cultura compreende não só a instrução, isto é, a posse

dos dados informativos necessários para uma tal elaboração, mas uma análise

e uma coordenação desses dados conforme a doutrina católica. Ela não se

cinge ao campo teológico, ou filosófico, ou científico, mas abrange todo o saber

humano, reflete-se na arte e implica na afirmação de valores que impregnam

todos os aspectos da existência. (MATHEUS, 2011).

Page 33: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

33

CAPÍTULO III OS DIREITOS HUMANOS CONTEMPORÂNEOS NO

LAICISMO

3.1. Direitos Humanos no laicismo brasileiro

Por onde começar uma história dos Direitos Humanos? Isto depende

do ponto de vista que se adote. Se for uma história filosófica, teremos que

recuar a algumas de suas remotas fontes na antiguidade clássica, no mínimo

até ao estoicismo grego, lá pelos séculos II ou III antes de Cristo, e a Cícero e

Diógenes, na antiga Roma. Se for uma história religiosa, é possível encetar a

caminhada, pelo menos no ocidente, a partir de certas passagens do Sermão

da Montanha. Se for uma história política, já podemos iniciar com algumas das

noções embutidas na Magna Charta Libertatum, que o rei inglês João Sem

Terra foi obrigado a acatar em 1.215. Ou podemos optar por uma história social

— melhor dizendo, por um método de estudo que procure compreender como,

e por quais motivos reais ou velados, as diversas forças sociais interferiram,

em cada momento, no sentido de impulsionar, retardar ou, de algum modo,

modificar o desenvolvimento e a efetividade prática dos Direitos Humanos na

sociedade. (MATHEUS, 2011).

Este último modo de abordagem pode tornar-se muito rico e

interessante, pois, ao conduzir às conexões entre as leis e as condições

histórico-sociais concretas que induziram ao seu surgimento, termina também

por integrar, ao menos, aquelas referências mais indispensáveis —

econômicas, políticas, filosóficas, religiosas etc. — que estiveram na gênese

dessas condições. Ademais, proporciona a vantagem adicional de já situar o

ponto de partida de nossa investigação no século XVIII ou, no máximo, em

certos antecedentes históricos da baixa Idade Média — o que convém à

concisão e permite transitar de modo menos árduo da noção moderna para a

noção contemporânea dos Direitos Humanos.

Page 34: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

34

Essa escolha metodológica nos remete, desde logo, a uma questão

à primeira vista intrigante. Trata-se do seguinte: se boa parte do espírito geral e

das aspirações que compõem o conjunto de noções do que hoje chamamos de

Direitos Humanos é muito antiga, porque durante alguns milênios produziu

efeitos sociais tão escassos, só exercendo influência fragmentária ou transitória

na vida real e quotidiana da maioria dos humanos? Por que essas noções só

começaram a vingar precisamente no final do século dezoito, precisamente em

alguns países do hemisfério ocidental, na forma e conteúdo específicos que

assumiram? O senso comum tem uma explicação à mão: antes daquela época,

a Humanidade "não estava preparada" para aquelas belas ideias. Como

assim? Parece claro que os oprimidos, os explorados e humilhados de todos os

tempos sempre estiveram "preparados" para obter liberdade, igualdade,

respeito — quase nunca deixaram de aspirar ou de lutar por isso. Uma outra

parte da Humanidade — os que foram, são, ou pensam que poderão vir a ser

beneficiários da exploração, opressão ou intolerância que exercem — é que

parece estar sempre "despreparada" para aceitar que aquela maioria alcance

tudo isso. (PLASTINO, 2001).

Outra resposta, do mesmo senso comum, poderia ser: faltavam

aqueles "grandes homens", com "grandes ideias", que só no século dezoito

surgiram para "inspirar" ou "conduzir" as pessoas. Este argumento também não

resiste à verificação. Em quase todas as épocas, em quase todos os países,

quando se reuniram as condições históricas adequadas, surgiram os filósofos,

os líderes, os antecipadores, os profetas e os dirigentes necessários a seu

tempo, além de outras tantas "grandes mentes" que sonharam, planejaram ou

tentaram colocar em prática utopias impossíveis ou historicamente prematuras.

Não resta dúvida de que as ideias inovadoras, usualmente sintetizadas de

modo mais apurado pelos intelectuais a partir do patrimônio cultural da

Humanidade e da vivência social concreta desses pensadores, são muito

importantes, ainda mais se oferecerem saídas mais ou menos adequadas a

inquietações sociais que a sua época já suscitou ou está em vias de suscitar.

Mas não basta a simples existência de ideias transformadoras para que o

mundo se transforme. É necessário, como se sabe, que as ideias conquistem

um grande número de seguidores dispostos a colocá-las em prática, mesmo

Page 35: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

35

correndo riscos, o que só acontecerá se eles se convencerem, mesmo de

modo algo intuitivo, de que essas ideias vão na mesma direção, tornam mais

clara ou organizam a luta que já travam por seus interesses, necessidades ou

aspirações coletivas. Depois, será preciso ainda que estejamos diante de

condições sociais e históricas que favoreçam ou não impossibilitem a mudança

pretendida e que, além disso, os interessados consigam desenvolver os meios

apropriados para vencer a resistência, não raro feroz, dos que se opõem à

transformação. É muito difícil combinarem-se todas essas condições. E, no

entanto, elas estavam reunidas, de modo mais ou menos acentuado, em

alguns países europeus no final do século XVIII, particularmente na França de

Luís XVI. O quê pretendiam e por quais causas lutavam aqueles franceses que,

em nome dos Direitos Humanos, fizeram uma revolução tão sangrenta? Contra

o quê lutavam? A resposta pode começar pela última das perguntas: lutavam

contra o feudalismo, ou o que restava dele. Não é propósito investigar aqui o

feudalismo, mas, para a compreensão dos primórdios da história social dos

Direitos Humanos, será útil trazer à memória seus traços mais gerais.

(PLASTINO, 2001).

3.2. A influência do Feudalismo

Como se sabe, o feudalismo foi um certo modo de organização da

sociedade e da produção social que dominou, durante um período imenso da

história, toda a Europa. Sua primeira característica a que convém chamar a

atenção é que se baseava numa rígida estratificação social fundada no

princípio do privilégio de nascimento. Daí derivavam amarras sobre todas as

atividade e sobre toda a vida das pessoas. Na da fase áurea do feudalismo

essas amarras eram muito fortes, e decorriam do próprio modo como a

economia da sociedade estava organizada. Como a terra era praticamente a

única fonte de sobrevivência e riqueza — e conservada como bem "fora do

comércio" — seu controle por nobres e membros da alta hierarquia da Igreja

garantia-lhes um imenso domínio político, jurídico e ideológico sobre a

população. (CIOTOLA, 2010).

Page 36: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

36

O "feudo", domínio territorial de um "senhor" (geralmente barão ou

bispo), consistia quase sempre de uma pequena aldeia de camponeses e suas

áreas circundantes, às vezes muito vastas. Seus pastos e florestas eram de

uso comum, mas as terras aráveis estavam divididas entre aquelas cujos

produtos e rendimentos pertenciam ao senhor (geralmente um terço do total) e

as restantes, que os senhores permitiam aos camponeses usarem para sua

sobrevivência. Em "contrapartida", os camponeses e seus familiares eram

forçados à "corvéia" durante dois ou três dias da semana nas terras do senhor,

deviam pagar impostos ao rei, dízimos à Igreja, uma infinidade de taxas em

moeda ou em produtos de suas colheitas particulares, prestar serviços

domésticos na casa ou castelo do senhor e nas igrejas, lutar nas guerras

quando convocados pelo senhor, além de curvar-se a uma série de obrigações,

proibições e atitudes de vassalagem - em algumas regiões até infames, como

submeter-se ao direito de "pernada". Se a terra mudasse de senhor, o

camponês era transferido junto (era "servo da gleba"), como as áreas de

cultivo, bois, carroções e outros bens móveis, imóveis ou semoventes.

Sua condição social diferia dos antigos escravos em dois aspectos

principais: não podia ser vendido separado da terra (exceto na Rússia e em

partes da Polônia) e tinha direito a uma espécie de usufruto oneroso à fração

de solo arável que o senhor lhe concedia (direito nem sempre respeitado,

quando convinha ao titular do feudo...). Uma economia assim organizada

conseguia produzir muito poucos excedentes para a troca externa ao feudo,

limitando-se praticamente à subsistência. Dos mercadores das cidades

compravam sal, artefatos de ferro e pouca coisa mais. A mobilidade social

estava perto de ser nula. Nas más colheitas, fomes horrorosas se alastravam

— menos, é claro, entre a nobreza e o alto clero, que estocavam grãos e, em

tese, deveriam prestar assistência cristã aos famintos, inválidos, viúvas e

órfãos. (MATHEUS, 2011).

As cidades, à época muito poucas e quase sempre pequenas,

viviam à sombra dos senhores feudais. Os mestres artesãos urbanos, em suas

oficinas domésticas, com um ou dois aprendizes, ou dois ou três empregados

(geralmente ex-aprendizes que não conseguiram se estabelecer), estavam

rigidamente organizados em "corporações de ofícios" que regulamentavam

Page 37: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

37

tudo, em minúcias, desde o modo de produzir cada artigo, seu preço, até

interditar o exercício da profissão aos não autorizados. A onipresente ideologia

religiosa condenava a usura como pecaminosa, o lucro como imoral, a ambição

de enriquecer como certeza de danação infernal. Vejam o exemplo de um

julgamento ocorrido em Boston, em 1.639: "Está havendo um julgamento; um

tal de Robert Keayne (...) é acusado de crime hediondo: teve mais de seis

pence de lucro sobre um xelim, ganho esse considerado ultrajante. A corte

debate se deve excomungá-lo pelo pecado cometido, mas, em vista de seu

passado sem manchas, finalmente se abranda e lhe dá a liberdade com uma

multa de duzentas libras". (HARRIS, 2007)

Mas esse é um retrato estático e esquemático da economia feudal

clássica, útil para efeito de contraste. Pois no ventre do feudalismo, e apesar

dele, as forças econômicas e sociais de sua futura destruição germinavam e se

debatiam. Para começar, a classe dos camponeses servos, larga maioria da

população, malgrado gerações de resignada imobilidade (todos os domingos

era-lhe recordado nos sermões que o poder tinha origem divina), volta e meia

se revoltava, às vezes aos milhares e de modo muito violento. Em algumas

ocasiões, os servos arrancavam concessões importantes aos senhores, outras

vezes eram massacrados. Mas na primeira onda de fome, esqueciam o medo e

recomeçavam tudo. Até acontecimentos inesperados podiam contribuir para

reacender essas irrupções. (CIOTOLA, 2010).

"Burgueses", inicialmente, era a denominação genérica dos

habitantes dos "burgos", pequenas cidades que surgiam nos cruzamentos de

rotas comerciais, ou ao longo dessas rotas, às vezes fortificadas para proteger

as caravanas contra os inúmeros bandos de salteadores que proliferavam nas

estradas naquele tempo. De modo esperável, à medida em que iam crescendo

passaram a aglomerar toda sorte de pessoas "livres", isto é, que não estavam

mais submetidas às glebas dos barões e bispos, porque haviam comprado

essa liberdade, ou porque haviam fugido de seus senhores rurais, ou ainda

porque vinham de famílias que sempre haviam se dedicado exclusivamente a

atividades artesanais ou mercantis; ou eram funcionários administrativos,

advogados ou outros profissionais que não residiam há muito tempo nos

feudos; ou ainda uma massa disforme de adultos sem ocupação definida ou

Page 38: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

38

constante e crianças à busca de sobrevivência como aprendizes nas

corporações de ofícios, serviçais diversos ou, simplesmente, mendigos.

Com o tempo, aos poucos, uma parte desses citadinos conseguiu

acumular algum capital nas práticas do comércio, da usura (apesar da

condenação da Igreja aos empréstimos com juros) e da exploração de força de

trabalho alheia (ainda em pequena escala), empreitando a produção de

artefatos de uso corrente, artigos de luxo para consumo da nobreza ou

equipamentos para as guerras intermitentes, vindo a constituir uma pequena

elite economicamente independente que, por não se ocupar de trabalhos

braçais e ostentar um padrão de vida superior, discernia-se da massa dos

habitantes dos burgos e das cidades maiores. Nos séculos XV e XVI, esta

classe burguesa stricto sensu já era muito ativa e influente na maioria das

cidades da Europa ocidental. Emprestava dinheiro a juros, a mercadores, a

senhores feudais em dificuldades, fornecia assessores competentes para a

administração do Estado monárquico, e estava envolvida em todos os negócios

florescentes da época, como bancos, construção naval, abertura de

manufaturas e exploração dos "novos mundos" incorporados pelas grandes

descobertas marítimas. Nos séculos XVII a XVIII, a burguesia já estava

bastante diversificada em vários extratos, desde os mestres artesãos que

expandiram suas oficinas contratando muitos empregados e montando

manufaturas, até grandes (para a época) industriais e banqueiros, e constituía

o que podia ser chamado de uma "classe média" — no sentido de setores

intermediários entre a aristocracia e a grande massa do povo. (HARRIS, 2007).

Decididamente, a sociedade feudal não combinava com as

possibilidades que os burgueses viam diante de si. Os laços senhoriais e a

ideologia que os legitimavam eram camisas de força para a expansão do

mercado, crescimento do trabalho assalariado, florescimento da produção de

mercadorias — enfim, para o maior enriquecimento desses empreendedores

plebeus das cidades. Essa nova classe social tinha, pois, boas razões para ver

com olhos de interesse as reivindicações dos camponeses, porque também

sentia, a seu modo, as amarras do feudalismo — embora, por conveniência de

seus negócios, adotasse sempre a cautelosa posição de manter-se à distância

dessas agitações sociais (mais tarde, a mesma conveniência dos negócios a

Page 39: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

39

induziria a mudar de atitude). Esse conjunto de contradições internas ao modo

de produção feudal foi seu elemento dinâmico de transformação. Os

camponeses continuaram se rebelando, o comércio seguiu se desenvolvendo,

as cidades crescendo, conquistando autonomia e se diversificando

socialmente, a burguesia se fortalecendo, a nobreza e o clero perdendo terreno

(ao menos no plano econômico). Entre tornar-se dominante na esfera das

relações econômicas e assumir efetivamente o domínio político da sociedade

pode haver, às vezes, uma distância muito grande. Contudo, a autonomia da

política em relação à economia real de um país pode existir - mas até certo

ponto, e certamente não ao ponto de constituir-se por muito tempo em

obstáculo ao livre desenvolvimento daquelas relações econômicas já

triunfantes. (HARRIS, 2007).

Mas era essa a situação em que ainda se encontrava a maioria dos

países da Europa no final do século XVIII, com exceção da Inglaterra e, talvez,

da Holanda. As relações capitalistas fervilhavam por quase toda parte do

continente, a burguesia tresandava otimismo quanto a seu futuro, a ideologia

do progresso contínuo era sua música. Contudo, por mais obsoletos que

parecessem face à economia existente, muitos (não mais todos) dos laços

políticos, jurídicos, culturais e ideológicos do velho feudalismo persistiam como

fator de atraso. Reis, nobres e padres teimavam em ver-se ainda como há

quinhentos anos, como há mil anos. Resistiam tenazmente ao

desaparecimento da velha estrutura política feudal - marcada, repitamos, pela

estratificação social baseada no privilégio de nascimento. Embora pudessem

ser encontradas na Europa continental setecentista diferenças decorrentes de

desenvolvimentos e tradições próprias de cada país, podemos tomar o

exemplo, razoavelmente representativo, da França às vésperas da Revolução

de 1789. Persistia ainda um divisor de águas histórico em sua população,

separando os servos (como vimos, em redução contínua) das pessoas livres.

Estas últimas, por sua vez, continuavam divididas, de modo geral, em três

estamentos sociais (chamados, à época, de "estados"): primeiro estado (clero),

segundo estado (nobreza) e terceiro estado (plebeus livres em geral). "Pode-se

simbolizar esta estrutura política por uma pirâmide. Cada uma das ordens

(clero, nobreza, terceiro estado) é a expressão de uma função no seio da

Page 40: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

40

sociedade. O clero é encarregado do culto e das atividades que lhe estão

ligadas no espírito da época (ensino, saúde, assistência etc.); à nobreza

incumbe a obrigação de administração e de defesa do grupo social; o terceiro

estado ocupar-se-á da vida econômica da sociedade. O que é preciso notar é

que cada uma destas categorias políticas é regida por regras de direito

específicas. O clero tem suas próprias jurisdições, tal como a nobreza; o

imposto não é devido nem pelo clero, nem pela nobreza, enquanto é

pesadamente cobrado sobre os rendimentos do terceiro estado”. (DAWKINS,

2007).

Atenção para o "detalhe": “... o terceiro estado ocupar-se-á da vida

econômica da sociedade..." Mas quem era exatamente o terceiro estado?

Resposta: era quase toda a população livre, excetuados nobres e padres: os

camponeses, o pequeno e incipiente proletariado urbano, os artesãos, os

lojistas, os professores, os advogados, os funcionários públicos, todos os

profissionais e produtores de todos os ramos, os mercadores, enfim, todos que

trabalhavam, produziam ou dirigiam a economia, aí incluída a burguesia

propriamente dita. O primeiro e o segundo estados eram parasitários, mas

detinham todo o poder político e aferravam-se aos resquícios de seus

privilégios econômicos. (MATHEUS, 2011).

Pode-se até compreender porque os senhores dispunham-se a pagar honorários tão pesados a esses advogados especialistas em direito feudal, com a esperança de reviver privilégios: "As 400 mil pessoas aproximadamente que, entre os 23 milhões de franceses, formavam a nobreza (...) estavam bastante seguras. Elas gozavam de consideráveis privilégios, inclusive de isenção de vários impostos (não de tantos quanto o clero, mais bem organizado) e do direito de receber tributos feudais. (...) Economicamente, as preocupações dos nobres não eram absolutamente desprezíveis. Guerreiros, e não profissionais ou empresários por nascimento e tradição — os nobres eram até mesmo formalmente impedidos de exercer um ofício ou profissão — eles dependiam da rendas de suas propriedades ou, se pertencessem à minoria privilegiada de grandes nobres ou cortesãos, de casamentos milionários, pensões, presentes e sinecuras da corte. Mas os gastos que exigia o status de nobre eram grandes e cada vez maiores, e suas rendas caíam — já que eram raramente administradores inteligentes de suas fortunas, se é que de alguma forma as conseguiam administrar. A inflação tendia a reduzir o valor de rendas fixas, como aluguéis." (DAWKINS, 2007, p.68).

Page 41: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

41

A destruição de parte das instituições da Idade Média tornou cem

vezes mais odiosa a parte que ainda sobrevivia. Contudo, deve ser anotado

que a estrutura político-social tradicional e anacrônica já havia se tornado, no

final do século XVIII, bastante complexa. A dialética dos interesses sociais

contraditórios não era mais tão simples como fora há séculos. No primeiro

Estado, havia diferenças sociais evidentes entre o alto clero enobrecido

(bispos, abades, cônegos), senhor de imensas porções de terras, e o baixo

clero, que muitas vezes vivia pobremente e em contato íntimo com os

camponeses das aldeias. No segundo Estado já se podia divisar ao menos três

camadas: a restrita nobreza cortesã, beneficiária de pensões e outras

benesses reais, muito favorecida pela intimidade com os negócios da

monarquia; os senhores feudais tradicionais, que dependiam de rendimentos

fundiários e ainda detinham, provavelmente, uma quinta parte do reino; e até

burgueses enobrecidos, a chamada "nobreza de toga". No terceiro Estado, a

situação era ainda mais diversificada: já se configurava uma alta burguesia,

formada por banqueiros, industriais, grandes comerciantes, fornecedores do

exército etc., partidária de mudanças moderadas e que dava mostras de

contentar-se com uma monarquia constitucional; uma pequena burguesia

urbana já muito numerosa (viria a se tornar a principal base do radicalismo

revolucionário), que abrangia artesãos independentes, advogados, médicos,

alfaiates, barbeiros, pequenos lojistas etc.; uma pequena burguesia rural,

constituída pela fração crescente de camponeses com terras, livres da servidão

à gleba, mas ainda oprimidos pela sobrevivência de taxas senhoriais e outras

obrigações remanescentes do feudalismo; uma massa heterogênea (ainda

minoritária, mas em expansão) de trabalhadores assalariados na cidade e no

campo; além de uma multidão de desempregados, mendigos, andarilhos,

monges itinerantes, pessoas sem ocupação definida ou que exerciam

atividades cambiantes ou sazonais. De modo geral, podia-se observar, com o

desenvolvimento do capitalismo, um deslocamento progressivo — nem sempre

muito claro, mas no século XVIII já preponderante — da antiga estratificação

social por ordens e estamentos, baseada no privilégio (ou azar...) de

nascimento, para uma diferenciação em que contava mais a inserção de

Page 42: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

42

classe, isto é, a posição efetivamente ocupada pelas pessoas na economia:

burgueses (enobrecidos ou plebeus), proprietários de terras (bispos, barões e

até alguns burgueses), o proletariado incipiente (rural e urbano), a

multifacetada pequena burguesia, e assim por diante. É claro que, desde há

muito, existiam as classes sociais, e elas lutavam entre si por interesses

contraditórios, luta decisiva para o declínio econômico-social do feudalismo;

mas seus contornos e, acima de tudo, sua consciência social, eram "nublados"

pela divisão tradicional e antes muito estática baseada no nascimento.

Portanto, a elevação das relações sociais de produção capitalistas à posição de

categoria dominante nas relações humanas, estava, por assim dizer,

clarificando a dinâmica social num sentido novo, sobrepondo-se

progressivamente ao status nobiliárquico, clerical, plebeu livre ou plebeu servil.

(HITCHENS, 2007).

Essa tensa conformação estrutural da sociedade francesa portava

ainda um fator adicional de agravamento: a persistência anacrônica do

absolutismo monárquico. Entre os séculos XV e XVII, quando os reis europeus

travaram lutas bem sucedidas contra a antiga dispersão do poder entre os

senhores feudais, a burguesia deu-lhes apoio, pois isso representava certo

alívio dos laços senhoriais sobre suas atividades econômicas nas cidades e no

comércio entre as regiões de cada país. Vários desses reis absolutistas

notabilizaram-se como déspotas esclarecidos, sensíveis às renovações que

estavam em curso, estimulando a economia e as artes. Mas, na segunda

metade do século XVIII, essa utilidade inicial do absolutismo se esvaíra para a

burguesia, pois, sendo já uma classe muito forte, ele passou a significar

apenas sua eterna marginalização do poder político. Na França, a absorção de

poderes absolutos pela figura do rei havia atingido seu ápice no início do

século XVIII, durante o reinado do "rei sol", Luís XIV (a ele se atribuía a frase

reveladora: "L’Etatc’ est moi"). Desde então, o grosso da aristocracia,

(excetuado apenas o pequeno círculo da nobreza cortesã), foi esvaziado de

funções políticas e era mantido afastado das decisões importantes do Estado.

Mas nunca renunciou à luta para recuperar sua antiga influência nos negócios

públicos: "A feudalidade foi justificada pela conquista, pois os nobres eram

saídos dos conquistadores germânicos, constituídos, pelo direito das armas,

Page 43: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

43

senhores dos galo-romanos reduzidos à servidão. A aristocracia é anterior à

monarquia, uma vez que os reis, originalmente, eram eleitos. Abeberando-se

nesse arsenal ideológico (...), a aristocracia, tanto a da espada quanto a

togada, conduziu, durante todo o curso do século XVIII, o assalto contra a

autoridade real". Embora a monarquia representasse a garantia dos privilégios

sociais da nobreza, estava há muito tempo estabelecido entre ambas um

contencioso cheio de riscos: até ideias liberais começavam a ter aceitação

entre alguns nobres. (MATHEUS, 2011).

Assim, a França sob Luís XVI era:

(...) sob vários aspectos, a mais típica das velhas e aristocráticas monarquias absolutas da Europa. Em outras palavras, o conflito entre a estrutura oficial e os interesses estabelecidos do velho regime e as novas forças sociais ascendentes era mais agudo na França do que em outras partes. (MATHEUS, 2011).

O grau de ousadia, próprio de uma vanguarda tomando posição para

a ofensiva, era indicativo de que aqueles que estavam prestes a dirigir a

demolição revolucionária do ancien régime estavam seguros de já contarem

com um "grande número de seguidores dispostos a levar suas ideias à

prática”... (MATHEUS, 2011).

A concepção da existência de um Direito aproximadamente

equiparado à noção de Justiça, em forte conexão com a moral e, portanto, mais

perfeito do que o direito objetivamente encontrável nas sociedades humanas,

era muito antiga entre os pensadores, deitando raízes em filósofos da Grécia

antiga. Sua gênese helênica foi primordialmente laica, na medida em que esse

Direito superior decorreria da própria natureza, ou da observação do equilíbrio

a ela inerente, e não dos deuses. Na Idade Média, ao retomar Aristóteles, São

Tomás de Aquino buscou atualizar para o pensamento cristão a ideia desse

direito natural (jus naturae), esforçando-se para demonstrar sua

compatibilidade com a fé, uma vez que a natureza seria obra de criação divina.

Mas logo o direito natural seria dessacralizado pelo Iluminismo, substituindo-se

progressivamente a natureza em geral (isto é, o mundo físico ou social externo)

pela ideia de natureza humana e, especificamente, pela razão humana, fonte

Page 44: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

44

interior do conhecimento. O direito, portanto, poderia ser descoberto/produzido

pelo espírito humano, desde que se procedesse à sua investigação com os

rigores do raciocínio, configurando-se então como expressão moral de

possibilidades inalienáveis, universais e eternas do ser humano (os direitos

naturais humanos). Essa razão triunfante busca a liberdade, estado primordial

do homem; a natureza mostra que os homens nascem iguais, por isso todo

privilégio é antinatural; as pessoas podem estabelecer as cláusulas do contrato

que institui a sociedade; o indivíduo, portador de direitos imanentes (porque

naturais), deve ser protegido do poder absoluto pela repartição do poder; a

intolerância religiosa deve ser abolida, o Estado deve ser governado de acordo

com a vontade geral, por isso as leis devem ser as mesmas para todos — por

aí vai. (CIOTOLA, 2010).

Com Rousseau, cuja influência foi enorme, a filosofia se radicalizou. Montesquieu continuava ligado às prerrogativas dos parlamentares, tendo sido um deles; Voltaire era um burguês abastado, indiferente à miséria popular. Rousseau vai mais longe, atacando a própria sociedade. Tudo o que o homem tem de bom vem da natureza; todo o mal, da sociedade que o alienou e corrompeu. Mesmo não se podendo voltar ao estado de natureza, ao menos é possível dela se aproximar. Uma boa constituição será, portanto, a que garantir, na medida do possível, a liberdade e a igualdade primitivas. (CIOTOLA, 2010, p.34).

É preciso ler essa brevíssima notícia histórica com cautelas

adequadas: as elaborações concernentes ao direito natural foram certamente

complexas, múltiplas, contraditórias, muitas vezes contemporâneas entre si —

a ponto de constituir empreitada de resultado incerto a tentativa de reuni-las

numa só "escola filosófica". Mas aprofundar a investigação sobre o

jusnaturalismo seria tarefa para outro estudo. Cabe mais, aqui, anotar o papel

social que efetivamente desempenhou, os reflexos que concretamente suscitou

na práxis social. Neste sentido, é fácil perceber porque essa construção

intelectual de um direito natural de base racional, prevalecente entre os

grandes pensadores do século das luzes, foi socialmente apropriada com muita

facilidade pela burguesia revolucionária como arma ideológica de combate.

(CIOTOLA, 2010).

Page 45: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

45

Bastavam extrair daí consequências políticas muito lógicas, de uso

imediato: a razão recusa-se a continuar acatando que mais de vinte milhões de

franceses prossigam governados por uma minoria que nada produz, e que

mantém uma vida de privilégios unicamente pelo privilégio de nascimento. Se a

ideia de privilégio não pode ser acolhida pela razão, há que se construir uma

sociedade constituída por indivíduos livres e iguais, cidadãos (não súditos),

todos sujeitos de direitos, submetidos a leis comuns para todos, clamando a

Nação a soberania para si, não mais para um monarca detentor de poder

absoluto. Por isso, “... se o terceiro estado é tudo na sociedade...", a razão

rechaça, naturalmente, que ele continue sendo "nada" na política e no poder. "A

teoria do direito natural inverte pois, completamente, a ‘pirâmide feudal’. Em

lugar de relações verticais (hierarquizadas) instaurar-se-ão relações horizontais

(comunidade nascida do contrato social). Deixará de haver ordens

correspondendo a funções separadas e desiguais em direitos, não haverá

senão homens livres e iguais, quer dizer, cidadãos. Deixará de haver rei no

cume da pirâmide para governar os homens, mas a expressão da sua vontade

geral, isto é, a lei". A burguesia e, particularmente a burguesia francesa,

finalmente encontrava um poderoso arsenal ideológico para refutar a visão

social de mundo do passado. (HARRIS, 2007).

Terminada a guerra, foi criada, em 26 de junho de 1945, pela Carta

de São Francisco, a Organização das Nações Unidas, retomando o caminho

interrompido da extinta Liga das Nações, agora com mais amplitude. Desde o

nascimento, a ONU não é um organismo democrático: ficou assegurado ao

pequeno grupo de Estados com assento permanente no Conselho de

Segurança o controle das decisões pelo exercício do direito de veto. Porém,

ante o balanço aterrorizante que os vencedores da guerra fizeram das

atrocidades dos vencidos, impôs-se à comunidade internacional o resgate das

noções de Direitos Humanos que haviam sido pisoteadas até recentemente. A

Carta de São Francisco, logo no seu artigo 1º, colocou como preceitos, dentre

outros, os seguintes: "Desenvolver relações entre as nações, baseadas no

respeito ao principio da igualdade de direitos e da autodeterminação dos

povos, e tomar outras medidas apropriadas ao fortalecimento da paz universal;

conseguir uma cooperação internacional para resolver os problemas

Page 46: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

46

internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário, e para

promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades

fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião...".

Iniciaram-se, então, os trabalhos que redundaram na "Declaração Universal

dos Direitos do Homem", adotada e proclamada pela Resolução número 217

da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948.

(PLASTINO, 2001).

Não cabe a este trabalho analisar essa "Declaração", pois ela e

outros importantes instrumentos constituem, precisamente, o objeto de estudo

dos demais capítulos deste livro. Vai, apenas, o seguinte registro geral: é

considerado que, no plano internacional, a "Declaração de 1948" inaugurou

uma concepção contemporânea de Direitos Humanos, na medida em que

integrou os direitos civis e políticos, que vinham se desenvolvendo desde o

século XVIII, especialmente após a "Declaração" francesa de 1789, aos direitos

econômicos, sociais e culturais, demandados nos séculos XIX e XX pelo

movimento operário, que foram valorizados particularmente após a

"Declaração" russa de 1918. O cerne dessa nova concepção consiste no

reconhecimento de que compõem o âmbito dos Direitos Humanos todas as

dimensões que disserem respeito à vida com dignidade — portanto, em Direito,

deixou de fazer sentido qualquer contradição, ou hierarquia, ou "sucessão"

cronológica entre os valores da liberdade e da igualdade. Os Direitos Humanos

conformam uma unidade universal, indivisível, interdependente e inter-

relacionada, ideia reiterada na "Declaração e Programa de Ação de Viena", de

25 de junho de 1993, com apoio do Brasil. (PLASTINO, 2001).

Na medida em que são tomados como universais, isto é, inerentes a

todas as pessoas, os Direitos Humanos exigem duas consequências. De um

lado, apontam para a gradativa revisão da noção tradicional de soberania

absoluta de cada país: sendo os Direitos Humanos tema de legítimo interesse

de todas as nações, que não se circunscreve à jurisdição interna de cada

Estado, o Direito preocupa-se com as hipóteses em que podem ser admitidas

intervenções supranacionais no plano interno de cada país nesta matéria.

Ao longo da segunda metade do século XX, a grande maioria dos

países aderiu aos instrumentos internacionais do sistema global de proteção

Page 47: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

47

dos Direitos Humanos, além de celebrarem pactos e convenções regionais

(Europa, África, Américas, etc.) com o mesmo propósito. Quase todos os

países do planeta incorporaram às suas Constituições e disposições

infraconstitucionais normas na mesma direção. Isto poderia ser um retrato a

cores do melhor dos mundos, se o direito positivo fosse o retrato fiel do mundo.

Se, no plano jurídico, a antiga contradição entre a liberdade (individualista) e a

demanda de igualdade real encontrou caminhos para ser conceitualmente

superada, é fácil constatar que nem mesmo no plano jurídico essa "superação"

foi incorporada — basta olhar para os compêndios de doutrina que insistem em

qualificar os direitos sociais como meramente "programáticos" (não

exigíveis...), ou para as normas legais que os tratam efetivamente dessa

maneira ou, ainda, para os tribunais que, quase sem exceções, acatam esse

entendimento. Não é sem motivos que aquela contradição, malgrado superada

conceitualmente, persiste com tanta força no interior do próprio Direito: é que

ela não foi ainda superada no terreno mais palpável e mais sensível da vida.

Aquela contradição persiste na sociedade. A solução jurídico-conceitual

concebida não corresponde à sua efetividade social. O problema não reside no

conceito, reside na realidade. Configura-se uma situação em que, entre dispor

formalmente de instrumentos jurídicos para a proteção dos Direitos Humanos e

efetivamente levá-los à prática, medeia, com cansativa frequência, uma

distância trágica — que se nutre de visões conservadoras de mundo, "razões

de Estado", interesses de classe e de grupos, preconceitos irracionais

persistentes, ou "resignação" objetivamente cúmplice. Na medida em que a

contradição não for também superada na própria sociedade em que vivem as

pessoas reais, será preciso atentar com cuidado se aquela fórmula conceitual

unificadora, tão placidamente aquiescida hoje por todos os Estados, não se

converterá em novo estratagema de ilusão social ou em mecanismo de

autoilusão. Isto já aconteceu outras vezes no passado, não chegaria a ser

propriamente novo na história do Direito. (PLASTINO, 2001).

Os direitos civis também não estão a salvo. Apesar de avanços em

alguns países em relação à igualdade de gêneros ou aos direitos de certas

minorias mais organizadas, é certo que as garantias dos direitos individuais

não são as mesmas para todos, ou o são nas leis, mas é de realidade que

Page 48: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

48

importa falar. Quem são as vítimas mais usuais de agressão policial, detenção

arbitrária, tortura, aprisionamento além da pena, preconceito, discriminação no

emprego, no acesso à educação, na representação política, e assim por

diante? As mesmas de duzentos anos atrás. Fortalece-se, por toda parte, o

cinismo de elites tendente a qualificar os trabalhadores — principalmente os

excluídos do mercado e do consumo — mais ou menos como categoria inferior

de humanos. Às vezes, isso se manifesta de modo dissimulado. Outras vezes,

extravasa como nostalgia de soluções fascistas contra os que são encarnados

como ameaça: migrantes, desempregados, grupos étnicos ou regionais,

presidiários, crianças de rua, miseráveis em geral etc. (PLASTINO, 2001).

A área decisiva das relações humanas no mercado vem minando as

bases de existência dos Direitos Humanos. E, no plano ideológico, enquanto os

porta-vozes mais toscos do "pensamento único" neoliberal investem

abertamente contra os Direitos Humanos, os arautos mais sofisticados do

neoliberalismo dedicam-lhes condescendência apropriada a romantismos fora

de moda. É como se tivessem concluído que não há mais necessidade de

combater os Direitos Humanos nas instâncias da racionalidade e dos valores,

pois se tornou mais eficiente "acatá-los" para melhor desacatá-los. Mas a

História não chegou ao fim. Se o discurso dos Direitos Humanos mantiver-se

como crítica da sociedade, cumprirá papel transformador. O fala do

conformismo, malgrado sua força alienadora, tem limites na própria realidade

que busca conservar. Os que, em todas as épocas, combateram pelos Direitos

Humanos nunca deixaram de saber quão árdua e sempre inacabada foi sua

conquista. Fará bem aumentar a consciência dos obstáculos a superar. Isso

sempre conduziu a que caminhos novos fossem iluminados e a que

florescessem forças que estavam guardadas no fundo do peito. (PLASTINO,

2001).

Recentemente os desembargadores da 2ª Câmara Criminal do

Tribunal de Justiça do Rio, por unanimidade, garantiram a uma jovem de 25

anos o direito de interromper sua gravidez de feto portador de anencefalia. O

habeas corpus preventivo foi impetrado pelo defensor público Nilsomaro de

Souza Rodrigues, em face do juízo da 4ª Vara Criminal de Duque de Caxias. A

Câmara determinou a expedição imediata de alvará para a realização do

Page 49: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

49

procedimento médico necessário, de acordo com o pedido formulado na ação.

O desembargador-relator, José Muiños Piñeiro Filho, disse na decisão que o

fato em questão trata-se antes de tudo de um problema de saúde pública, e

não apenas de um problema jurídico. Ele fez críticas à omissão estatal em

tornar efetivo o direito social à saúde, garantido pela Constituição Federal, e

alertou que as reiteradas negativas de autorização para a interrupção da

gestação ou a demora do Judiciário em analisar os pedidos podem culminar

com a realização do procedimento em clínicas clandestinas, resultando em alta

taxa de morbidade materna.

Segundo o magistrado, não é possível se omitir diante de problema

grave como o da jovem grávida:

O Estado brasileiro destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, o bem-estar, o desenvolvimento e a Justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, exatamente como disposto no Preâmbulo da Constituição, não pode se acovardar e, mais uma vez, se omitir diante de tal realidade. (PIÑEIRO FILHO In TJ, 2012).

Para o magistrado, “a ausência de norma escrita não é, e jamais

será óbice a que se preste a jurisdição, especialmente diante de todas as

normas constitucionais”.

Segundo a decisão, a literatura médica considera a anencefalia uma

malformação tão grave que a qualifica como “monstruosidade caracterizada

pela ausência de cérebro e da medula. Quando chega a nascer, pouco lembra

a aparência de um ser humano, tem apenas traços humanoides”. Mas o

desembargador lembra que, como alguns sobrevivem por dias, a controvérsia

se instala e há quem impetre ação para sustentar a viabilidade da vida.

Conforme a decisão, a ação constitucional do habeas corpus foi

aceita neste caso, pois ficou caracterizado risco à liberdade física da paciente e

violação ao princípio da dignidade humana. O relator afirmou ainda que a

decisão também encontra respaldo na liminar concedida pelo Pleno do

Supremo Tribunal Federal no tocante à matéria para suspender processos

dessa natureza.

Como podemos perceber no caso acima relatado, podemos notar

um dos raros momentos que as “razões de estado” ficam acima “de dogmas

Page 50: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

50

religiosos”. Não se levou em conta se existia ou não alma, se era uma

reencarnação necessária. Esta é a verdadeira postura de um estado laico,

julgar os fatos concretos em conformidade com a Lei Máxima, sem

fundamentar em “pensamentos mágicos”.

Ao arrepio da lei Anápolis, em Goiás, ignora Código Penal e proíbe

aborto legal com votação unânime dos 15 vereadores e sob forte pressão da

Igreja Católica local, a Câmara Municipal de Anápolis (GO) aprovou na última

segunda-feira a proibição no município da prática de abortos legais nos

hospitais públicos. São os casos em que a gravidez é fruto de estupro ou a

gestação coloca em risco a vida da mãe. O projeto, de autoria do vereador

católico Pedro Mariano (PP), exclui da Lei Orgânica do Município o artigo com

a previsão de que “caberá à rede pública de saúde, pelo seu corpo clínico, o

atendimento médico para a prática do aborto nos casos previstos no Código

Penal”. O projeto não precisa ser sancionado pelo prefeito. Um dos mentores

da proposta foi o padre Luiz Carlos Lódi, presidente do Pró-Vida de Anápolis,

que convenceu o vereador Mariano a apresentar o projeto. Lódi há décadas é

um dos maiores opositores da legalização da interrupção da gestação. Em

2010, durante a campanha presidencial, o padre divulgou manifesto contra a

presidente Dilma Rousseff, acusando-a de fazer a defesa do aborto. Mariano

entende incompreensível que justamente Anápolis, o berço cristão e

evangélico, ter expressado em sua Lei Orgânica a aceitação do aborto.

(ÉBOLI, 2012).

A OAB de Goiás anunciou que recorrerá à Justiça para suspender a

decisão dos vereadores de Anápolis e este é um dos casos que causa espécie

a concepção de um estado laico. (ÉBOLI, 2012).

3.3. O Laicismo contemporâneo no Direito

A Decisão selecionada foi elaborada pelo Juiz de Direito André Luiz

Nicolitt em junho de 2009, redigida durante o Plantão Judiciário Noturno. Trata-

se do caso de um senhor de 81 anos de idade que se recusa a receber uma

transfusão de sangue que poderia salvar sua vida. O motivo que o leva a essa

Page 51: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

51

recusa é claro: o senhor é Testemunha de Jeová, e, portanto, acredita que

receber a transfusão poderia comprometer sua vida após a morte no Paraíso.

Nesse contexto, a casa de saúde em que o senhor se encontrava internado

entrou com uma ação visando obrigá-lo a receber a transfusão. À primeira

vista, portanto, pode-se indicar que se trata de um conflito entre o direito à vida

e o direito à liberdade religiosa. (CIOTOLA, 2010).

O fato do julgador não ter as mesmas convicções pessoais do

senhor de idade reforça a existência da tolerância no âmbito do Estado

Brasileiro. Os três autores estudados – Harris, Dawkins e Hitchens –

compartilham inúmeras características. Suas semelhanças giram em torno não

apenas do ateísmo que professam e do repúdio comum pela religião, mas

também por críticas semelhantes às consequências sociais da religião. É um

consenso para eles que a religião possui força na esfera política, de modo que

pode vir a causar uma má aplicação de recursos públicos. Essa ideia é

principalmente defendida por Sam Harris:

Embora nenhum outro país desenvolvido se iguale aos Estados Unidos em termos de religiosidade, hoje todos os países precisam conviver com as consequências de tudo em que meus compatriotas americanos acreditam. Como é bem sabido, atualmente as crenças dos cristãos conservadores exercem uma influência extraordinária sobre o discurso público neste país – em nossos tribunais, nossas escolas e em todas as esferas do governo. (HARRIS, 2007, p.101).

É perceptível nas obras estudadas que políticas públicas, para o

laicismo, nunca devem se guiar por valores morais religiosos. Isso se torna

ainda mais imperativo quando a religião ameaça a educação ou a vida de um

indivíduo. Assim, pode-se dizer que o senhor de idade, na Decisão que está

sendo utilizada como base de comparação, estaria, segundo a visão laicista,

fazendo uma má opção baseada na ausência da utilização da razão. Para o

laicismo, o fato de um Juiz de Direito ter tutelado a vontade do senhor de idade

é, ao mesmo tempo, uma interferência indevida da religião em uma decisão do

Poder Estatal e a tutela à ausência de razão do senhor de idade, que estaria

perturbado pelo pensamento religioso.

Page 52: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

52

O fato do Juiz de Direito não partilhar da mesma crença com o

senhor de idade revela, para o laicismo, uma tolerância “perigosa”: Sendo

assim, para laicismo, o respeito à vontade do senhor de idade não é louvável.

Esse “respeito” seria apenas uma aceitação que permite que o extremismo e a

“ignorância” religiosa possam crescer e se disseminar. (HARRIS, 2007).

Page 53: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

53

CAPÍTULO IV A IDEIA DE LIBERDADE NO ESTADO PATRIMONIAL E

NO ESTADO FISCAL

Ricardo Lobo Torres (2005), em estudo pioneiro sobre a ideologia

financeira do patrimonialismo e do liberalismo, assim no plano da história do

pensamento universal como no da sua projeção para a cultura luso-brasileira.

Concentra-se na ideia de liberdade, mas se reporta também à justiça e à

segurança.

Torres (2005) examina a ideia de liberdade no Estado Patrimonial,

que predominou na Europa por aproximadamente sete séculos, até o início do

oitavo, e que vive precipuamente das rendas dominiais do príncipe. A liberdade

é fundada no contrato fiscal e na Razão de Estado, e implica na tripartição da

fiscalidade entre a realeza, a Igreja e o senhorio. Na justifica da imunidade

fiscal da Igreja e do senhorio. O tributo não chega a aparecer como preço da

liberdade, pois ainda a oprime com a ênfase na riqueza do príncipe e com a

proibição da usura e do lucro. (TORRES, 2005)

Já analisando o Estado de Polícia, que aumenta as receitas e

centraliza a fiscalidade na pessoa do soberano, correspondendo à fase do

Absolutismo Esclarecido (século XVIII). O iluminismo, ideologia predominante,

defende a liberdade do príncipe, a redefinição da imunidades e dos privilégios

do clero e da nobreza e o reexame da questão da pobreza. O tributo começa

adquirir a função de preço da liberdade, mediante as ideias de que a riqueza e

a felicidade devem ser comuns ao príncipe e aos súditos e de que o trabalho e

os juros podem servir de substrato à imposição fiscal. Continuam, entretanto,

proibido o consumo de luxo e permitido o confisco.

Mais adiante o autor concentra a sua atenção sobre o Estado Fiscal,

definido como aquele que encontra o seu substrato na receita proveniente do

patrimônio do cidadão (tributo) e que coincide com a época do capitalismo e do

liberalismo. Nele a liberdade é individual, fundada na igualdade, na legalidade,

na representação e na busca da felicidade. Centraliza-se o poder impositivo no

Estado e se democratiza a fiscalidade, extinguindo-se o poder periférico da

Page 54: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

54

Igreja e do senhorio. As imunidades ganham a característica de limitação do

poder fiscal pelo prévio contrato social e se proíbem os privilégios odiosos do

clero e da nobreza. O tributo, como invenção burguesa, passa a exibir a

característica de preço da liberdade de comércio, trabalho e consumo.

A conclusão é a de que o Brasil viveu essas diversas fases históricas

e ingressou no Estado Fiscal a partir de 1824, mercê da nova estrutura da

receita pública, embora tenha mantido diversos condicionamentos do

patrimonialismo. Aderiu às ideias do liberalismo fiscal, fortalecendo-se o

relacionamento entre o tributo e a liberdade sob a perspectiva da investigação

filosófica, mas não chegou a explorar em sua plenitude o liberalismo,

conservando traços fortíssimos da escolástica, mesclada com o ecletismo e o

empirismo do iluminismo ítalo-germânico.

4.1. A proibição dos privilégios odiosos

De acordo com as normas e princípios constitucionais vigentes,

ressalta Torres (2005) as limitações constitucionais ao poder de tributar se

consubstanciam nas imunidades (art. 150, inc. IV, V e Constituição da

República), na proibição dos privilégios odiosos (art. 150, inc. II; arts. 151 e

152, da Constituição Federal), nas proibições de discriminação fiscal e nas

garantias normativas ou princípios gerais ligados à segurança dos direitos

fundamentais, tais como a legalidade, a irretroatividade, a anterioridade e a

transferência (art. 150, incs. I, II e §§ 5° e 6°, do texto constitucional).

A proibição do tratamento fiscal desigual o que, em análise, é

espécie do princípio isonômico, insculpido no caput, do art. 5°, da Magna Carta,

está previsto no art. 150, inc. II, da Constituição Federal, que veda o tratamento

desigualitário ou discriminatório em razão de ocupação profissional ou função

exercida pelos contribuintes, independentemente da denominação jurídica dos

rendimentos, títulos ou direitos. É, exatamente, nas palavras de Ricardo Lobo,

"o contraponto fiscal, sob forma negativa, do princípio proclamado

afirmativamente no caput do art. 5°". (TORRES, 2005)

Page 55: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

55

A proibição da desigualdade, na verdade, somente será aplicável no

tocante à apreciação da capacidade contributiva do cidadão ou da necessidade

do desenvolvimento econômico se não tiver fundamento na justiça ou na

utilidade social.

A proibição da desigualdade, tal como prevista no inc. II, do art. 150,

já referido, se especializa sob duas formas: (a) a proibição de privilégios

odiosos; (b) a proibição de discriminação fiscal. Tais vedações incluem

qualquer instrumento fiscal, tanto no campo das renúncias das receitas (como,

por exemplo, isenção, dedução, diminuição de alíquota) quanto na seara dos

gastos públicos (subsídios, subvenções ou restituições de tributos). O privilégio

fiscal negativo é representado pelas isenções ou reduções de tributos,

acarretando sempre uma concessão contrária à ordem legal. Por sua vez, o

privilégio fiscal positivo se consubstancia nos incentivos, subvenções,

subsídios e restituições de tributos, representando um tratamento preferencial a

alguém. É entendimento corrente que a Constituição Federal promulgada em

1988 deu tratamento mais consentâneo com o correto à questão referente aos

privilégios fiscais, ao proibir genericamente os odiosos e a permitir a concessão

dos não-odiosos. Os arts. 151 e 152 da Lei Maior cuidam de vedações

específicas relacionadas aos privilégios por parte da União, ou dos Estados ou

dos Municípios. (TORRES, 2005).

O princípio genérico da proibição da concessão de privilégios

odiosos, consagrado no inc. II, do art. 150, da Constituição da República,

impede a existência de qualquer elemento discriminador que conduza à

diminuição ou mesmo à exclusão da imposição tributária, acarretando a

desigualdade entre indivíduos. A redação adotada pela Assembleia Nacional

Constituinte, no tocante à adoção de tal princípio, teve por escopo suprimir os

privilégios odiosos que haviam sido concedidos na vigência da ordem jurídico-

constitucional de 1967/1969, como podem ser lembradas as isenções de

imposto sobre a renda concedidas aos militares, magistrados, deputados e

senadores. Houve proibição explícita à concessão de privilégios fiscais em

favor de empresas públicas, e reciprocamente, foram vedadas discriminações

contra as empresas privadas (art. 173, § 2°, da Constituição Federal de 1988).

Page 56: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

56

De se notar, no entanto, que apenas a discriminação infundada ou

desarrazoada é odiosa, já que o direito tributário, essencialmente

discriminatório, deve sempre introduzir distinções entre os contribuintes, com

base na capacidade econômica de cada qual Inexiste um rol exaustivo de

hipóteses de proibições de discrimine.

Os privilégios odiosos são vedados em virtude de violar direito

fundamental à igualdade de tratamento, não tendo por fundamento a liberdade.

No entanto, algumas imunidades previstas no inc. Vl, do art. 150 do texto

constitucional, características próprias de privilégios odiosos, como a dos

templos de qualquer espécie.

Privilégio significa a discriminação entre os cidadãos que estejam

em igualdade de condições.

4.2. As isenções fiscais e incentivos fiscais

A isenção fiscal é a principal espécie de privilégio fiscal de natureza

negativa, admissível no sistema jurídico brasileiro desde que não seja odiosa.

O Código Tributário Nacional, em seu artigo 175, Caput, prevê como causas de

exclusão do crédito tributário, a isenção e a anistia. Ao tratar dos motivos e

causas para a concessão de isenções, Baleeiro (1992) entendia que era

inconcebível a isenção geral e universal, a de todos os tributos, por isso

mesmo que ela, no mundo contemporâneo, não é privilégio de classe ou de

pessoas, mas uma política de aplicação da regra da capacidade contributiva ou

de incentivos a determinadas atividades que o Estado visa a incrementar pela

conveniência pública.

A isenção tributária tem por finalidade a aplicação de uma política de

incentivo a determinadas atividades, bem como a busca da justiça fiscal em

relação a certos indivíduos, dentro de um contexto de observância de princípios

relacionados à capacidade contributiva, e princípios econômicos, considerando

certos critérios que não sejam discriminatórios ou distintivos. A isenção não

deve ser concedida como favor ou privilégio de mão beijada, pois a todos

Page 57: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

57

incumbe o dever de contribuir para a manutenção dos serviços públicos.

(BALEEIRO, 1992).

Na exata conceituação feita por Ricardo Lobo Torres (2005), a

isenção (ou privilégio não-odioso) é a limitação fiscal derrogatória da incidência

fundada na ideia de justiça tendo por origem o direito positivo e por fonte a lei

ordinária; possui eficácia constitutiva é revogável com efeito restaurador da

incidência e abrange apenas a obrigação principal.

Enquanto a lei geral institui a obrigação tributária, a norma especial

do privilégio permite que alguém não pague o tributo, através de um privilégio

negativo (isenções) ou de outros instrumentos que a obrigação possa se

converter, como as subvenções e as restituições (privilégios positivos).

Nos períodos de autoritarismo no Brasil, mormente entre 1930 e

1945, 1964 e 1979, houve um aumento na política governamental de

concessão de privilégios fiscais em favor de certa parcela da burguesia, sob o

argumento da necessidade desenvolvimento econômico. Nesses períodos, as

isenções incentivos fiscais, as subvenções tornaram-se instrumentos comuns

para promover e sustentar o desenvolvimento econômico do País. Contudo, o

abuso na concessão de tais privilégios, de controle e fiscalização quanto ao

emprego correto do dinheiro público, além da crise econômico-financeira do

Tesouro resultou no descrédito e completo fracasso da ideologia de concessão

de privilégios fiscais. (TORRES, 2005).

A Constituição Federal de 1988, em época oportuna, traçou algumas

orientações e regras básicas para a política de isenções. Inicialmente, o art.

150, inc. II, proíbe a concessão de privilégios odiosos, ou seja, aqueles

destituídos de razoabilidade e de apoio nos princípios da capacidade

contributiva e do desenvolvimento econômico.

O art. 70, por sua vez, ao cuidar dos mecanismos de controle interno

e externo da Administração Pública, prevê o efetivo controle de legitimidade

exercido pelo Tribunal de Contas, aí inserido o exame de mérito do real

proveito das renúncias de receita para o efetivo desenvolvimento do País. O

art. 165, § 6º, que enuncia o princípio da transparência, ordena o

acompanhamento do demonstrativo dos efeitos de todas as renúncias e

Page 58: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

58

subvenções junto com o orçamento, possibilitando a descoberta de incentivos

camuflados e equiparando os privilégios positivos com os negativos.

Releva notar que a política governamental de concessão de

privilégios fiscais, principalmente sob a forma de isenções, entrou em franco

declínio em diversos países, quase que na mesma época, podendo ser

lembrada a reforma do ex-presidente Ronald Reagan, em 1985, que diminuiu o

número de isenções privilégios positivos. (SILVA, 2007).

Em tema de isenção tributária, é importante lembrar a diversidade de

entendimentos acerca da natureza jurídica e de tal instituto. Consoante Rubens

Gomes de Souza (1985), apesar da isenção, ocorre o fato gerador, nascendo a

obrigação tributária, havendo a dispensa do pagamento da obrigação por força

de lei. Esse entendimento encontra vários adeptos na doutrina brasileira, como,

por exemplo, Luiz Emygdio F. da Rosa Júnior (2007), para quem a isenção

significa a dispensa do pagamento do tributo devido, uma vez que ocorre o fato

gerador, dá-se a incidência tributária, sem, todavia, ser constituído o crédito

tributário, pois o lançamento não se efetiva.

De outro lado, Souto Maior Borges (2000) ensina que na isenção

tributária ocorre a derrogação da Lei de incidência fiscal, ou seja, suspende-se

a eficácia da norma impositiva. A isenção é verificada no plano da norma

jurídica e não no plano fático.

O fato abstrato, em virtude da isenção, deixa de existir e dessa

forma não há como nascer nenhuma obrigação tributária. O Supremo Tribunal

Federal continua a entender que, na isenção ocorre fato gerador, nasce a

obrigação tributária e a lei apenas dispensa o seu pagamento. Contudo, a

melhor orientação acerca do tema é a de que a isenção é uma limitação legal

do âmbito de validade da norma jurídica tributária, que impede que o tributo

nasça, ou, é a nova configuração que a lei dá à norma jurídica tributária, que

passa a ter o seu âmbito de validade restringido, impedindo, assim, que o

tributo nasça. (ROSA JÚNIOR, 2007).

Os princípios tributários, previstos em âmbito constitucional,

constituem verdadeiras limitações constitucionais ao poder de tributar e

objetivam estabelecer um equilíbrio entre o poder impositivo e os contribuintes.

As isenções tributárias subordinam-se a vários princípios constitucionais, sendo

Page 59: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

59

certo que duas ideias básicas as fundamentam: (a) justiça; (b) segurança

jurídica. À noção de justiça, estão atrelados os princípios da capacidade

contributiva, da economicidade e do desenvolvimento econômico. Ao ideal da

segurança jurídica, se vinculam os princípios da legalidade, da anterioridade e

da transparência orçamentária. (BALEEIRO, 1994).

De acordo com o princípio da capacidade contributiva em tema de

isenções, o benefício deve ser concedido àquele que não tenha capacidade

econômica para suportar o pagamento do sendo aplicável em regra, às

hipóteses de isenções genéricas e gratuitas que visam não agravar as classes

menos favorecidas da população, àqueles que tenham menor poder aquisitivo.

Tal princípio é perfeitamente possível de ser posto em prática, com os mesmos

fundamentos, no que concerne às isenções de contribuições de melhoria, já

que é a população de mais baixa renda quem mais necessita dos serviços e/ou

obras públicas. Aliomar Baleeiro (1994) ressaltava que o princípio fundamental,

fonte principal de critérios discriminatórios, é o da capacidade contributiva

(expresso no art. 202, da Constituição Federal de 1946, e suprimido pela

Emenda n° 18/65), que recomenda a personalização do imposto e a sua

graduação, segundo as possibilidades econômicas do contribuinte. Mas a

igualdade será respeitada dentro da mesma categoria de contribuintes.

E, conforme o princípio do desenvolvimento econômico, a

concessão de privilégio fiscal pelo Estado não será odiosa se fundar na

necessidade de crescimento econômico do País (ideologia das décadas de 60

e 70, no Brasil). Hoje em dia, tal princípio somente se justifica relativamente às

isenções se houver perspectiva de distribuição de rendas e da criação de

empregos, porquanto os resultados advindos da política governamental de

incentivos fiscais sem tais fundamentos foram catastróficos.

Finalmente, o princípio da economicidade propugna que o Estado

deve obter o maior proveito, com o menor gasto possível, monetária e

financeiramente falando.

As isenções, assim, devem ser financeiramente produtivas, ou

levando ao desenvolvimento econômico ou ao melhor resultado possível com

menor gasto ou despesa pelo Tesouro.

Page 60: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

60

Como regra, as isenções fiscais só devem ser concedidas se houver

diferenças substanciais entre os indivíduos ou atividades poupados do ônus

tributário, e os que a ele se sujeite. As isenções, para serem válidas, devem

alcançar toda uma categoria de indivíduos ou atividades, identicamente

situados. Como lembrava Sampaio Dória (1986), as franquias tributárias se

outorgam apenas no interesse público.

As isenções estão intimamente relacionadas com os direitos e

garantias fundamentais, e principalmente em virtude do princípio isonômico

(art. 150, inc. II, da Constituição Federal). Três orientações básicas relativas às

isenções podem ser verificadas pela exegese do art. 150, inc. II: (a) proíbe os

privilégios odiosos, ou seja, isenções e quaisquer outros benefícios que não

encontrem fundamento razoável no direito para distinguir entre cidadãos; (b)

proíbe as discriminações odiosas, representadas por exceções ou por

condições inconstitucionais criadas no ato concessivo da isenção, como

aquelas que excluem certas pessoas ou bens do gozo da exoneração fiscal; (c)

permite os privilégios não-odiosos, consubstanciados nas isenções outorgadas

para manter o equilíbrio regional (art. 151, I) ou para respeitar o princípio da

capacidade contributiva. (SILVA, 2007).

Desse modo, qualquer privilégio fiscal que se desgarre do principio

isonômico da capacidade contributiva ou do desenvolvimento econômico viola

o direito fundamental à igualdade de tratamento, convolando-se em

discriminação odiosa, a atingir o patrimônio alheio.

As situações fiscais análogas devem ser igualmente tributadas, sem

discriminação ou privilégios odiosos. Tal é o entendimento de Silva (2007),

segundo o qual o princípio da igualdade tributária relaciona-se com a justiça

distributiva em matéria fiscal; diz respeito à repartição do ônus fiscal do modo

mais justo possível.

Em célebre obra acerca do assunto, José Souto Maior Borges

(2000) demonstrou que somente se pode isentar com a razoabilidade

presumida em qualquer ato legislativo, como estimam dizer os autores

argentinos. Segundo o citado jurista, o ordenamento constitucional tributário do

País exige que os contribuintes, em idênticas circunstâncias características de

capacidade contributiva, se submetam a idêntico tratamento tributário. No

Page 61: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

61

Moderno Estado de Direito, a igualdade e a generalidade são princípios

básicos de tributação, com os quais colidem as isenções de pessoas ou grupos

sociais estabelecidos pura e simplesmente intuitu personae, isto é, sem

nenhuma consideração de justiça fiscal ou de ordem social ou econômica As

exceções ao princípio da generalidade da tributação são fundadas nas

exigências da justiça fiscal, adequando-se aos princípios da capacidade

contributiva, do desenvolvimento econômico.

Objetivando finalizar esse tópico, faz-se imperiosa a referência à

possibilidade da União conceder incentivos discriminatórios, em favor do

desenvolvimento de áreas em prol da expansão do mercado interno e da

homogeneização da economia no País. Durante a vigência da Constituição

Federal de 1946, vários diplomas legais instituíram incentivos a determinadas

áreas geográficas, como por exemplo, a Zona Franca estabelecida em

Manaus. (BORGES, 2000).

4.3. Justiça fiscal, desenvolvimento urbano e utilitarismo.

Com o aparecimento do Estado Fiscal, as finanças passaram a se

basear nos tributos, exigidos com fundamento na Justiça distributiva, e no seu

princípio fundamental da capacidade contributiva. Procurava-se, por meio da

tributação, adequar o sistema impositivo às diversas situações, objetivando

alcançar o ideal de justiça. A despeito do distanciamento havido, durante certo

período, entre a tributação e a justiça financeira, através de considerações com

a utilidade reconhece-se, hoje em dia, o retorno do pensamento sobre a justiça

fiscal. Como ressaltava Baleeiro (1994), desde muitos séculos pensadores e

moralistas à luz do Direito ou da religião clamam unissonamente por impostos

justos sem que se acordem nos caracteres de tais tributos;

contemporaneamente tende a tornar-se geral a crença de que a justiça

tributária deve repousar na personalidade e na graduação dos tributos segundo

a capacidade econômica do contribuinte.

A justiça fiscal é basicamente distributiva, característico do sistema

publicístico, significando a sistemática de tratar desigualmente aos desiguais

Page 62: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

62

na medida em que se desigualam. Mas pode ser detectada a natureza

comutativa, própria das relações de troca, como ocorre relativamente às taxas

e contribuições.

Previsto como um dos princípios cardeais da ideia de justiça fiscal, o

princípio da capacidade contributiva ingressou no ordenamento constitucional

brasileiro no início do século passado, tendo sido posteriormente esquecido, e

retornado na Constituição de 1946. Novamente abolido do texto constitucional

em 1967 e 1969, ressurgiu em 1988, conforme § 1°, do art. 145. A capacidade

contributiva é a capacidade econômica do contribuinte, significando o princípio

que cada um deve contribuir na proporção de seus bens e rendas,

independentemente de sua eventual disponibilidade financeira. (ROSA

JÚNIOR, 2007).

O princípio da capacidade contributiva não justifica a incidência de

tributo sobre o mínimo necessário à vida (imunidade do mínimo existencial),

nem sobre a totalidade da riqueza (vedação do tributo confiscatório). A

expressão utilizada no texto constitucional sempre que possível é indicativa da

necessidade do ajustamento do princípio da capacidade contributiva às várias

espécies de impostos, mas não admite a ausência de sua aplicação quando

isso não for possível.

No tocante à aplicação do princípio da capacidade aos incentivos

fiscais, há necessidade da distinção da espécie de privilégio. Aqueles que

atuam na vertente da receita, como as isenções, se subordinam aos princípios

da capacidade contributiva, enquanto os privilégios positivos (operam na via da

despesa) se orientam pelos princípios do desenvolvimento econômico, da

igualdade entre as regiões, e não são fundados no princípio da capacidade

econômica. (NOGUEIRA, 1999).

Não se toleram discriminações, nem isenções que razoabilidade e

compatibilidade com o sistema constitucional. Razoável será a classificação

que um homem bem informado, inteligente, de bom senso e civilizado possa

racionalmente prestigiar. A classificação deve repousar sobre uma diferença

real e não aparente de modo que todos situados identicamente sejam tratados

com igualdade; que a classificação de finalidade ou a consecução de uma

política dentro da competência do Estado; e que a diferença deve ter um

Page 63: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

63

objetivo da legislação que seja substancial e não apenas remoto ou

especulativo. (ROSA JÚNIOR, 2007).

De acordo com o princípio do desenvolvimento, os tributos devem

ser cobrados de modo a não criarem obstáculos ao desenvolvimento

econômico, sendo certo que constitui um dos objetivos fundamentais da

República Federativa do Brasil (art. 3º, inc. II, da Constituição Federal).

Basicamente, os incentivos fiscais têm justificativa na ideia de crescimento

econômico. O princípio do desenvolvimento econômico, hodiernamente,

propugna um mínimo de intervenção direta do Estado na economia,

redirecionando os investimentos para as obras de infraestrutura, e se

compatibiliza com outros princípios como a redistribuição de rendas e a

capacidade contributiva visão utilitarista, segundo a qual a sociedade é

ordenada de forma justa quando suas instituições são organizadas de forma

que se tenha o maior saldo positivo da soma de satisfações de todos os

indivíduos que a ela pertençam, mesmo com sacrifício da justiça fiscal, não

mais prevalece. O utilitarismo, compreendido como uma visão do desejo de

obter um bem-estar social cada vez maior, sem se preocupar com a repartição

ou distribuição das satisfações obtidas entre os cidadãos, fracassou, conforme

a experiência demonstrou. A história brasileira é demonstrativa de tal

afirmação, conforme visto. Nas épocas de Estado totalitário, adotou-se uma

política governamental de concessão de privilégios fiscais, sob o fundamento

da sua necessidade para o desenvolvimento econômico do País (visão

utilitarista) sem que houvesse perspectiva de futura distribuição de rendas e de

geração de empregos. Os resultados de tal política são conhecidos, e

persistem até hoje no panorama econômico-financeiro do País. (NOGUEIRA)

Page 64: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

64

CONCLUSÃO

Analisando a atual constituição, a Constituição da República

Federativa do Brasil de 1988, e alguns acontecimentos atuais podemos ainda

observar claramente as influencias das religiões e a mitigação do laicismo no

Direito Pátrio.

A separação do Estado e da Igreja no Brasil é um princípio basilar,

visto que o Estado brasileiro é laico desde a Constituição de 1891, e a atual

Constituição Federal de 1988 consagra essa separação no art.19. Porém, é

possível citar inúmeros exemplos de assuntos polêmicos que estão tão

vinculados à religião, ou melhor, a Igreja, que acabam sendo discriminados, por

grande parte da sociedade.

A maior crítica feita ao laicismo advém do fato dele ser interpretado

como um pensamento que considera como conhecimento verdadeiro e válido

apenas o conhecimento científico. As convicções religiosas podem não

decorrer de um pensamento racional – mas são perfeitamente válidas para as

religiões, são traços culturais de determinados povos e, ao contrário do que

várias pessoas consideram o laicismo não julga se elas permanecem tendo

uma razão de ser na sociedade atual. A fé se mantém como fortalecedora da

coesão social na medida em que une pessoas e, além disso, diversas

instituições religiosas possuem um papel incontestável de assistência social e

de consolo para o sofrimento humano.

Inúmeras tragédias foram motivadas pelo fanatismo religioso, e isso

é indiscutível ao pensarmos na Inquisição, nas Guerras Santas e nas

perseguições religiosas que acompanharam praticamente toda a história da

humanidade.

Assim, o laicismo não visa à erradicação da religião e não é a

alternativa a ela. O laicismo almeja evitar a obrigatoriedade ou a prevalência de

um dogma sobre os demais, principalmente no que diz respeito aos ateus.

É inviável em uma política de Estado que gere a imposição dos

valores de determinada religião sobre as minorias praticantes de outras ou

distinção à obrigação a todos imposto como é o caso dos tributos. Mas, Como

se sabe, o STF já enfrentou vários casos em que se discutiu o alcance do

Page 65: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

65

termo “templo”, para fins de imunidade. Isso porque as entidades religiosas são

compostas não apenas de um local de culto, como também de outros espaços

vinculados aos cultos, como ainda, possui bens e eventualmente, pode prestar

serviços. Neste caso, houve a interpretação extensiva do dispositivo, e o STF

entendeu que o local de culto inclui não só o templo em si, como também

outros espaços correlatos à finalidade do culto, como é o caso dos cemitérios

anexos.

Como vimos, sustenta Aliomar Baleeiro que serão imunes à

tributação todos os bens que estejam vinculados ao culto, que não possuam

fins econômicos, incluídos aí conventos, a casa do pároco e outras

dependências. Observe-se que é requisito para esse tipo de interpretação o

local físico, que necessariamente deve ser anexo ao local de culto.

Já Ricardo Lobo Torres defende que os serviços imunes devem estar

ligados à finalidade religiosa e desta forma, IPI e ICMS, pela própria natureza,

não estão incluídos na imunidade. No mesmo sentido, os serviços de

comunicação radiofônica ou televisiva, que não possuem finalidade essencial

para a atividade religiosa. Por fim, cabe salientar que diferentemente do

disposto na alínea “c” do art. 150, VI da CRFB, a imunidade dos templos é

assegurada pela Constituição, sem os requisitos necessários às outras

imunidades, presentes no art. 14 do CTN.

Page 66: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

66

REFERÊNCIAS

BALEEIRO, Aliomar. Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar. Rio

de Janeiro: Forense, 1994.

______. Imunidades: contra impostos na Constituição anterior e sua disciplina

mais completa na Constituição de 1988. 2° ed. São Paulo: Saraiva, 1992.

BORGES, José Souto Maior. Isenções Tributárias. 2° ed. São Paulo:

Sugestões Literárias, 2000.

CARRAZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 27ª

ed. São Paulo: Malheiros, 2011.

CIOTOLA Marcello Raposo. Ética Cívica. In: BARRETO, Vicente de Paulo.

Dicionário de Filosofia Política. São Leopoldo: Unisinos, 2010.

DAWKINS, Richard. Deus, um delírio. 9ª reimpressão. São Paulo: Companhia

das Letras, 2007.

DÓRIA, Antônio Roberto Sampaio. Direito Constitucional Tributário e Due

Process of Law. Rio de Janeiro: Forense, 1986.

HARRIS, Sam. Carta a uma nação cristã. 2ª reimpressão. São Paulo:

Companhia das Letras, 2007.

HITCHENS, Christopher. Deus não é grande – Como a Religião Envenena

tudo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2007.

NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Curso de Direito Tributário. 17ª ed. São Paulo:

Saraiva, 1999.

PLASTINO, Carlos Alberto. O primado da afetividade - A crítica freudiana ao

paradigma moderno. Rio de Janeiro: RelumeDumara, 2001.

REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito. 27ª ed. São Paulo: Saraiva,

2002.

Page 67: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

67

ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio da. Manual de Direito Financeiro e Direito

Tributário. São Paulo: Renovar, 2007.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 29ª ed.

São Paulo: Malheiros, 2007.

SOUZA, Rubens Gomes de. Compêndio de legislação tributária. São Paulo:

Resenha Tributária, 1985.

TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.

Page 68: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

68

WEBGRAFIA

BICUDO, Helio.A Igreja Católica e o Estado Brasileiro. Publicado em

01/01/2011. http://interessenacional.uol.com.br/2011/01/a-igreja-catolica-e-o-

estado-brasileiro/.p.1-1,acessado em 19/08/2012.

ÉBOLI, Evandro. Presidente da OAB-GO diz ser ‘lamentável’ proibir aborto

legal. Publicado em 08/03/2012. http://extra.globo.com/noticias/brasil/presidente-

da-oab-go-diz-ser-lamentavel-proibir-aborto-legal4262438.html. p.1-1, acessado em

28/08/2012.

MATEUS, Luis M. Laicismo e Laicidade. Net, Lisboa, Outubro de 2006.

Seção Laicismo e Laicidade. http://www.laicidade.org. p.1-1, acessado em

10/08/2012.

SÃO BERNARDO, Sérgio; VIEIRA, Gabriele. Por que um plano nacional contra

a intolerância religiosa? In: Seminário Nacional Sobre A Proteção À

Liberdade Religiosa. Publicado em 10/04/2010.

http://sergiosaobernardo.blogspot.com.br/2010/04/por-que-um-plano-nacional-

contra.html#!/2010/04/por-queum-plano-nacional-contra.html. p.1-1, acessado em

17/09/2012.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Poder Judiciário do Rio de Janeiro. TJ do Rio

autoriza interrupção de gravidez de feto anencéfalo. Publicada em

13/03/2012. http://portaltj.tjrj.jus.br/web/guest/home/-/noticias/visualizar/63501.

Acessado em 12/09/2012.

Page 69: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

69

ÍNDICE

FOLHA DE ROSTO 2

AGRADECIMENTOS 3

DEDICATÓRIA 4

RESUMO 5

METODOLOGIA 6

SUMÁRIO 7

INTRODUÇÃO 8

CAPÍTULO I 10

BREVES CONSIDERAÇÕES DA INFLUÊNCIA RELIGIOSA NO ESTADO BRASILEIRO

10

CAPÍTULO II 18

LAICISMO: PANORAMA DAS LUTAS DA SOCIEDADE PARA DESVENCILHAR O ESTADO DA IGREJA

18

2.1. Conceituação do Estado laico 18

2.2. Crise do Homem Contemporâneo 23

2.3. A Decadência da Idade Média 24

2.4. O comunismo de Marx 27

CAPÍTULO III 33

OS DIREITOS HUMANOS CONTEMPORÂNEOS NO LAICISMO 33

3.1. Direitos Humanos no laicismo brasileiro 33

3.2. A influência do Feudalismo 35

3.3. O Laicismo contemporâneo no Direito 50

CAPÍTULO IV 53

A IDEIA DE LIBERDADE NO ESTADO PATRIMONIAL E NO ESTADO FISCAL

53

4.1. A proibição dos privilégios odiosos 54

Page 70: UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES FACULDADE … · mas sempre a tolerância e o respeito pela liberdade religiosa são conservados. Não podemos permitir, portanto, que entre homens e mulheres,

70

4.2. As isenções fiscais e incentivos fiscais 56

4.3. Justiça Fiscal, Desenvolvimento urbano e utilitarismo 61

CONCLUSÃO 64

BIBLIOGRAFIA 66

WEBGRAFIA 68