universais e particulares-2

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Universais e Particulares João Branquinho Universidade de Lisboa Discutimos nesta monografia aspectos importantes do problema tradicional das categorias, o problema da identificação e caracterização dos tipos mais inclusivos e mais básicos nos quais todos os objectos se deixam dividir. Em particular, discutimos o ponto de vista conhecido como Realismo Metafísico, de acordo com o qual há duas categorias de objectos: universais e particulares. Examinamos a questão tradicional dos universais, o problema de determinar se algumas das propriedades que objectos familiares têm – por exemplo, cor, forma, peso, etc. – podem ser identificadas com universais, ou seja, entidades inteiramente presentes em cada um dos objectos que as exemplificam. Consideramos que os argumentos disponíveis a favor do Realismo Metafísico, tomados em conjunção com as objecções erguidas contra o ponto de vista rival, o Nominalismo, tornam aquele ponto de vista preferível a este. 1. Concreta e Abstracta Começamos por introduzir algumas observações de carácter preliminar sobre uma outra distinção importante em metafísica, a distinção entre objectos concretos e objectos abstractos. De acordo com uma respeitável tradição, tornou-se habitual distinguir em filosofia entre, de um lado, entidades concretas (concreta) como mesas e cadeiras, e, do outro lado, entidades abstractas (abstracta) como qualidades e números. Todavia, esta distinção, apesar de ser útil para certos propósitos, é frequentemente deixada num estado bastante impreciso. E talvez uma das consequências de tal situação seja a fusão incorrecta (veja-se abaixo) que é muitas vezes feita de abstracta com universais e de concreta com particulares, sendo desta maneira aquela classificação confundida com outra classificação com profundas raízes na tradição, a divisão entre universais e particulares (a qual vamos discutir mais adiante). As duas classificações pertencem por excelência à província da metafísica; e, dada a importância que a disciplina tem readquirido na filosofia mais recente

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  • Universais e Particulares Joo Branquinho

    Universidade de Lisboa

    Discutimos nesta monografia aspectos importantes do problema tradicional das

    categorias, o problema da identificao e caracterizao dos tipos mais inclusivos e

    mais bsicos nos quais todos os objectos se deixam dividir. Em particular, discutimos o

    ponto de vista conhecido como Realismo Metafsico, de acordo com o qual h duas

    categorias de objectos: universais e particulares. Examinamos a questo tradicional dos

    universais, o problema de determinar se algumas das propriedades que objectos

    familiares tm por exemplo, cor, forma, peso, etc. podem ser identificadas com

    universais, ou seja, entidades inteiramente presentes em cada um dos objectos que as

    exemplificam. Consideramos que os argumentos disponveis a favor do Realismo

    Metafsico, tomados em conjuno com as objeces erguidas contra o ponto de vista

    rival, o Nominalismo, tornam aquele ponto de vista prefervel a este.

    1. Concreta e Abstracta

    Comeamos por introduzir algumas observaes de carcter preliminar sobre uma outra

    distino importante em metafsica, a distino entre objectos concretos e objectos

    abstractos.

    De acordo com uma respeitvel tradio, tornou-se habitual distinguir em

    filosofia entre, de um lado, entidades concretas (concreta) como mesas e cadeiras, e, do

    outro lado, entidades abstractas (abstracta) como qualidades e nmeros. Todavia, esta

    distino, apesar de ser til para certos propsitos, frequentemente deixada num

    estado bastante impreciso. E talvez uma das consequncias de tal situao seja a fuso

    incorrecta (veja-se abaixo) que muitas vezes feita de abstracta com universais e de

    concreta com particulares, sendo desta maneira aquela classificao confundida com

    outra classificao com profundas razes na tradio, a diviso entre universais e

    particulares (a qual vamos discutir mais adiante).

    As duas classificaes pertencem por excelncia provncia da metafsica; e,

    dada a importncia que a disciplina tem readquirido na filosofia mais recente

  • (materializada em livros como Armstrong 1997), elas tm sido objecto de estudo

    intenso.

    Tal como sucede relativamente a outras classificaes, talvez a melhor maneira -

    muito provavelmente a nica maneira - de introduzir os conceitos a distinguir consista

    simplesmente em listar um conjunto de ilustraes paradigmticas daquilo que por

    eles subsumido. Com efeito, extremamente difcil proporcionar definies estritas para

    os termos abstracto e concreto aplicados a objectos, ou seja, conjuntos de

    condies separadamente necessrias e conjuntamente suficientes para um objecto dado

    ser um objecto abstracto ou um objecto concreto.

    Exemplos tradicionalmente apresentados como tpicos de (subcategorias de)

    objectos abstractos so os seguintes:

    a) propriedades ou atributos de particulares, como a Brancura e a Honestidade (e

    tambm propriedades de propriedades, como a propriedade de ser uma qualidade

    rara);

    b) relaes entre particulares, como a Semelhana e a Amizade;

    c) proposies, como a proposio que os homens so todos iguais perante a lei,

    e estados de coisas (ou factos), como o estado de coisas (ou o facto) de Teeteto

    estar sentado;

    d) classes de particulares, como a classe dos polticos corruptos e a classe dos

    barbeiros que no fazem a barba a si prprios;

    e) nmeros, como o nmero 7 e o nmero das luas de Marte;

    f) instantes e intervalos de tempo, como o momento presente e o ms de

    Setembro de 1997.

    E exemplos tradicionalmente apresentados como tpicos de (subcategorias de)

    objectos concretos so os seguintes:

    a) particulares espcio-temporais de dimenses variveis, bem como as suas

    partes componentes (caso as tenham), como pedras, asterides, planetas,

    galxias, pessoas e outros animais, partculas atmicas, etc.;

    b) acontecimentos no sentido de acontecimentos-espcime, como o naufrgio do

    Titanic, a queda do Imprio Romano e a sesso de ontem da Assembleia Geral

    da ONU;

    c) lugares, como a cidade de Edimburgo, o meu quarto e o Cear;

  • d) agregados mereolgicos de objectos fsicos, como a soma mereolgica

    daquela mesa com este computador e o agregado mereolgico de Plato e

    Teeteto;

    e) segmentos temporais de particulares materiais, como estdios temporais de

    coelhos (e.g., os discutidos por Quine), de pessoas (e.g., o corte temporal na

    existncia de Bill Clinton que corresponde ao perodo em que ele foi Presidente

    dos EUA), de esttuas (e.g., esta esttua de Golias desde que foi comprada at

    altura em que foi roubada), etc;

    f) tropos, ou seja, propriedades consideradas como indissociveis dos

    particulares que as exemplificam, como por exemplo a honestidade de Scrates,

    a brancura desta pea de roupa e a elegncia da Claudia Schiffer.

    A considerao da lista de exemplos supra introduzidos por si s suficiente

    para bloquear qualquer assimilao da distino concreto/abstracto distino

    particular/universal. De facto, basta reparar que objectos como classes ou proposies

    exemplificam a categoria de particulares abstractos (supondo que h objectos deste

    genro). A incorreco da assimilao em questo reflecte-se na ambiguidade com a

    qual so por vezes caracterizados certos pontos de vista em Ontologia, pontos de vista

    esses definidos pela rejeio, ou pela postulao, de determinadas categorias de

    objectos. Assim, por exemplo, o nominalismo tanto caracterizado como consistindo na

    rejeio de abstracta, como sendo a doutrina de que apenas h objectos concretos, como

    caracterizado como consistindo na rejeio de universais, como sendo a doutrina de

    que apenas h particulares. Analogamente, o ponto de vista rival do nominalismo,

    habitualmente designado como realismo, tanto caracterizado como consistindo na

    admisso de abstracta, possivelmente ao lado de concreta, como caracterizado como

    consistindo na admisso de universais, possivelmente ao lado de particulares. Por

    exemplo, em filosofia da matemtica, o formalismo, que para muitos a forma

    assumida pelo nominalismo na rea, tanto descrito como consistindo na rejeio de

    classes e outros objectos abstractos como consistindo na rejeio de universais (cf.

    Quine 1980, pp. 14-15). Naturalmente, tais caracterizaes esto longe de ser

    equivalentes.

    Como j foi dito, difcil encontrar um princpio, ou um conjunto de princpios,

    que permitam discriminar rigorosamente entre as duas putativas grandes categorias de

  • entidades ou objectos. Todavia, os seguintes trs parmetros tm sido sugeridos,

    conjunta ou separadamente, como bases para a classificao.

    I Localizao espacial

    Objectos abstractos, ao contrrio de objectos concretos, so aqueles objectos que no

    podem em princpio ocupar qualquer regio no espao; grosso modo, x um objecto

    abstracto se, e s se, x no tem qualquer localizao no espao (presume-se que os

    predicados concreto e abstracto so predicados mutuamente exclusivos e conjuntamente

    exaustivos de objectos). A proposio que Londres maior que Lisboa no est ela

    prpria em Londres, ou em Lisboa, ou em qualquer outro stio; e o mesmo sucede com

    o atributo da Brancura e com a classe das cidades europeias, muito embora os exemplos

    daquele e os elementos desta possam ter uma localizao espacial.

    Associada a esta caracterstica est a inacessibilidade de objectos abstractos

    percepo sensvel, mesmo quando esta tomada como ampliada por meio do uso de

    certos dispositivos e aparelhos. Proposies (no sentido no lingustico do termo),

    atributos, ou classes, no se podem ver, ouvir, cheirar, sentir, ou saborear.

    Um problema com o parmetro I o de que uma entidade como Deus, se

    existisse, no estaria no espao; mas tambm no seria, por razes bvias, um objecto

    abstracto. Esta objeco milita contra a suficincia do parmetro I, no contra a sua

    necessidade.

    II Existncia necessria

    Objectos abstractos, ao contrrio de objectos concretos, so aqueles objectos cuja

    existncia no contingente, ou seja, aqueles objectos que existem em todos os mundos

    possveis, estados possveis do mundo, ou maneiras como as coisas poderiam ter sido;

    grosso modo, x um objecto abstracto se, e s se, x existe necessariamente. Em

    contraste com isto, a existncia de objectos concretos ou particulares materiais

    caracteristicamente contingente: eles poderiam sempre no ter existido caso as coisas

    fossem diferentes daquilo que de facto so. A proposio que Londres maior que

    Lisboa, ao contrrio daquilo que se passa com os objectos acerca dos quais a proposio

    , viz. as cidades de Londres ou Lisboa, um existente necessrio; e o mesmo sucede

    com o atributo da Brancura e com a classe das cidades europeias, muito embora os

    exemplos daquele e os elementos desta gozem apenas de uma existncia contingente.

  • Um problema com o parmetro II o de que, segundo certos pontos de vista

    acerca de proposies, h certas proposies cuja existncia contingente. A razo

    basicamente a de que tal existncia vista como dependendo da existncia dos

    particulares materiais acerca dos quais essas proposies so, e esta ltima existncia

    manifestamente contingente. Todavia, as proposies em questo no deixam por isso

    de ser abstracta. Assim, a adopo do parmetro II teria o efeito imediato de excluir os

    pontos de vista sob considerao. Esta objeco milita contra a necessidade do

    parmetro II, no contra a sua suficincia.

    III Interaco causal

    Objectos abstractos, ao contrrio de objectos concretos, so aqueles objectos que no

    so capazes de figurar em cadeias causais, aqueles objectos que nem esto em posio

    de ter algo como causa nem esto em posio de ter algo como efeito; grosso modo, x

    um objecto abstracto se, e s se, x no tem poderes causais. Em contraste com isto,

    objectos concretos ou particulares materiais so, por excelncia, susceptveis de

    interagir causalmente com outros objectos, igualmente concretos, de figurar em eventos

    que so causas ou efeitos de outros eventos.

    Um problema com o parmetro III o de que determinados pontos de vista

    atribuem certos poderes causais, designadamente aqueles que so requeridos para

    efeitos de explicao cientfica, a objectos abstractos como propriedades. Esta objeco

    milita contra a necessidade do parmetro III, no contra a sua suficincia.

    2. Propriedades

    Antes de examinarmos a distino entre universais e particulares e discutirmos o

    problema associado dos universais, conveniente introduzirmos com mais algum

    detalhe uma noo importante da metafsica e da teoria das categorias: a noo de

    propriedade ou atributo.

    Em geral, uma propriedade um atributo, um aspecto, uma caracterstica, ou

    uma qualidade, que algo pode ter.

    Propriedades so tradicionalmente descritas como constituindo uma categoria de

    entidades que se distingue de uma outra categoria ontolgica, a categoria de

    particulares ou indivduos. Grosso modo, a distino proposta a seguinte.

    Propriedades formam aquela categoria de entidades que se caracterizam por serem

    predicveis de, ou exemplificveis por, algo. Por exemplo, a propriedade de ser oval

  • predicvel de, ou exemplificvel por, objectos ovais; e diz-se destes objectos que so

    exemplos ou espcimes da propriedade, a qual por vezes vista como um tipo ou

    universal. Uma predicao consiste assim na atribuio de uma propriedade a um

    indivduo; a predicao ser verdadeira se o indivduo exemplifica a propriedade e falsa

    se a no exemplifica. Por outro lado, os indivduos formam aquela categoria de

    entidades que se caracterizam por serem sujeitos (potenciais) de predicaes ou

    exemplos (potenciais) de propriedades, mas que no so por sua vez predicveis de, ou

    exemplificveis por, o que quer que seja. Por exemplo, a minha mo esquerda

    exemplifica certas propriedades, designadamente a propriedade de ter um nmero mpar

    de dedos, e no exemplifica outras propriedades, designadamente a propriedade de ser

    solvel; mas no predicvel do que quer que seja.

    Naturalmente, esta descrio rude da diviso de entidades em particulares e

    propriedades no de forma alguma inconsistente com a circunstncia de muitas

    propriedades poderem por sua vez ser sujeitos de predicaes e exemplificar outras

    propriedades. Por exemplo, (presumivelmente) a propriedade de ser um poltico

    honesto, da qual certas pessoas so exemplos, exemplifica igualmente a propriedade de

    ser (uma propriedade) rara. usual chamar a propriedades deste gnero propriedades

    de segunda ordem; trata-se assim de propriedades que tm como exemplos propriedades

    predicveis de indivduos, sendo estas ltimas propriedades por sua vez designadas

    como propriedades de primeira ordem. Em geral, e ignorando certas complicaes,

    pode-se dizer que uma propriedade de ordem n uma propriedade exemplificvel

    apenas por propriedades de ordem n 1 ou inferior, se n 2, e por indivduos, se n = 1. Isto d-nos uma hierarquia de entidades na base da qual esto entidades de nvel 0

    (indivduos), seguidas de entidades de nvel 1 (propriedades de primeira ordem),

    seguidas de entidades de nvel 2 (propriedades de segunda ordem), e assim por diante.

    A adopo de uma estratificao deste gnero constitui uma das maneiras de bloquear

    uma verso simples do Paradoxo de Russell aplicado a propriedades.

    Simplificadamente, o paradoxo o seguinte. Por um lado, certas propriedades parecem

    ter a propriedade de no se exemplificarem a si mesmas; por exemplo, a propriedade de

    ser oval no se exemplifica a si mesma, isto , no tem ela prpria a propriedade de ser

    oval. Por outro lado, outras propriedades parecem ter a propriedade de se

    exemplificarem a si mesmas; por exemplo, a propriedade de ser abstracta exemplifica-se

    a si mesma, isto , tem ela prpria a propriedade de ser abstracta. Considere-se agora a

    propriedade de ser uma propriedade que no se exemplifica a si mesma. E perguntemo-

  • nos o seguinte. esta propriedade uma propriedade que se exemplifica a si mesma? Se

    respondermos afirmativamente, conclumos que a propriedade em questo no se

    exemplifica a si mesma. Se respondermos negativamente, conclumos que a propriedade

    em questo se exemplifica a si mesma. Obtemos assim uma contradio formal: aquela

    propriedade exemplifica-se a si mesma e no se exemplifica a si mesma. Naturalmente,

    o paradoxo no gerado se impusermos sobre propriedades a restrio acima

    introduzida de que uma propriedade s pode ser predicvel de propriedades de ordem

    inferior.

    Note-se ainda que plausvel introduzir propriedades (por exemplo, de primeira

    ordem) que, de acordo com a maneira como as coisas so, no tm quaisquer exemplos

    ou no so exemplificadas por qualquer objecto; um caso dado na propriedade de ser

    uma pessoa com mais de oito metros de altura. E parece ser plausvel introduzir mesmo

    propriedades que, necessariamente, no so exemplificadas por qualquer objecto; casos

    so dados na propriedade de ser uma pessoa mais baixa do que ela prpria, cuja

    exemplificao por algo metafisicamente impossvel, e na propriedade de ser um

    habitante do sexo masculino do Cartaxo que barbeia todos aqueles, e s aqueles,

    habitantes do sexo masculino do Cartaxo que no se barbeiam a si prprios, cuja

    exemplificao por algo logicamente impossvel.

    Em filosofia da linguagem e em semntica, propriedades so muitas vezes

    concebidas como aquilo que expresso por predicados mondicos ou de grau 1; ou,

    noutra terminologia, como sendo o significado ou o contedo semntico atribudo a

    predicados mondicos. Diz-se, por exemplo, que o predicado () oval exprime a

    propriedade de ser oval, e que o predicado ( um) admirador de Bob Dylan exprime a

    propriedade de ser um admirador de Bob Dylan. Para aqueles propsitos, ainda

    frequente relativizar propriedades a instantes de tempo de tal maneira que, por exemplo,

    possvel o mesmo objecto exemplificar numa dada ocasio a propriedade

    temporalmente indexada de ser oval em t e no exemplificar nessa ocasio a

    propriedade, distinta daquela se t e t' so tempos diferentes, de ser oval em t'. Naquela

    concepo de propriedades, estas so vistas como entidades intensionais no seguinte

    sentido. A propriedade de ser gua e a propriedade de ter dois tomos de hidrgenio e

    um de oxignio, por exemplo, so contadas como propriedades distintas, apesar de

    serem exemplificadas exactamente pelos mesmos objectos (lquidos) e de terem assim a

    mesma Extenso (ou determinarem o mesmo conjunto de objectos). Do ponto de vista

    semntico, predicados como gua e H2O no so considerados como

  • sinnimos, pois exprimem desse modo propriedades (intenses) distintas, muito embora

    tenham a mesma extenso (ou sejam co-extensionais). Do ponto de vista do aparato da

    semntica de mundos possveis, uma prtica corrente identificar a propriedade

    expressa por um predicado mondico F (a intenso de F) com uma funo cujos

    argumentos so um mundo possvel m e um tempo t e cujo valor para esses argumentos

    a classe de todos aqueles, e s daqueles, objectos existentes em m que satisfazem em

    m o predicado F em t (ou que exemplificam em m a propriedade de ser F em t); por

    exemplo, a propriedade expressa pelo predicado () sbio vista como sendo aquela

    funo que, dadas uma situao contrafactual e uma ocasio, determina a classe das

    pessoas existentes nessa situao que so a sbias nessa ocasio (obviamente, a classe

    determinada poder variar de mundo para mundo ou de ocasio para ocasio).

    Todavia, convm referir que uma tal construo de propriedades como entidades

    intensionais no de modo algum consensual; alguns filsofos adoptam um ponto de

    vista puramente extensional no qual propriedades so antes vistas como aquilo que

    referido ou designado por predicados mondicos e no qual, por exemplo, as

    propriedades de ser gua e ter dois tomos de hidrognio e um de oxignio so contadas

    como uma nica propriedade (os predicados gua e H2O podem no entanto

    estar associados a conceitos diferentes, ou representaes mentais diferentes, dessa

    propriedade).

    Para alm de poderem ser caracterizadas como aquilo que expresso por

    predicados mondicos, propriedades podem tambm ser caracterizadas como aquilo que

    designado ou referido por certas nominalizaes ou termos singulares de um certo

    tipo. Trata-se de termos complexos que resultam da aplicao a predicados mondicos,

    ou a frases abertas com uma varivel livre, de um Operador de Abstraco de

    propriedades (o smbolo tem sido usado para o efeito); este operador liga a varivel livre e produz designadores das propriedades expressas pelos predicados mondicos (ou

    frases abertas) em questo. Por exemplo, dado o predicado ou frase aberta x oval, a

    prefixao do operador de abstraco gera o termo singular x (x oval), o qual se l simplesmente A propriedade de ser oval; e, dado o predicado x sbio, a

    aplicao daquele operador gera o termo x (x sbio), o qual se l A propriedade de ser sbio ou (se quisermos) a sabedoria. Uma predicao isto , uma atribuio

    a um indivduo, por exemplo, Scrates, de uma propriedade, por exemplo, a sabedoria

    pode ser ento representada por meio de uma frmula do gnero

  • E (Scrates, x (x sbio)) (em que E a relao de exemplificao); obviamente, tem-se o seguinte:

    E (Scrates, x (x sbio)) se, e s se, Scrates sbio.

    Supondo que predicados como ( um) ser humano e ( um) bpede sem

    penas exprimem diferentes propriedades (intensionalmente concebidas), os termos

    singulares x (x um ser humano) e x (x um bpede sem penas) no sero co-referenciais e designaro propriedades co-exemplificveis mas distintas

    (nomeadamente, e por hiptese, aquelas que so expressas por aqueles predicados).

    A noo geral de uma propriedade invocada em certas formulaes correntes

    de dois princpios tradicionais acerca da identidade de objectos. Um deles, conhecido

    por princpio da Indiscernibilidade de Idnticos,1 estabelece que uma condio

    necessria para objectos serem idnticos eles exemplificarem exactamente as mesmas

    propriedades; em smbolos, tem-se

    x y (x = y x y) (em que x, y so variveis objectuais e toma valores num domnio de propriedades). O outro, conhecido por princpio da identidade de indiscernveis, estabelece que aquela

    condio suficiente para a identidade de objectos; em smbolos, tem-se a frmula

    conversa daquela:

    x y (x y x = y)

    O estatuto destes princpios dissemelhante. A indiscernibilidade de idnticos

    normalmente considerada como uma verdade lgica; e alegados contra-exemplos tm

    sido afastados como inadequados. Mas a identidade de indiscernveis s pode ser

    considerada uma verdade lgica se, contrariamente quilo que foi explicitamente

    assumido por alguns dos seus defensores (por exemplo, aparentemente, Leibniz),

    nenhuma restrio for imposta sobre as propriedades em que a varivel suposta tomar valores; em particular, se os valores da varivel forem limitados a propriedadades

    puramente qualitativas e/ou no relacionais de objectos (ver abaixo), o princpio no

    ser uma verdade lgica (na melhor das hipteses, trata-se de uma verdade contingente).

    Que o princpio irrestrito uma verdade lgica simples de estabelecer. Assuma-se x 1Este princpio atribuvel a Leibniz

  • y. Substituindo z por x = z, obtm-se x = x x = y; e, como se tem x = x pela reflexividade da identidade, deduz-se x = y.

    Para alm da classificao acima mencionada de propriedades quanto ordem,

    existem diversas outras maneiras de agrupar propriedades (muito embora algumas das

    noes propostas sejam notoriamente difceis de definir ou de caracterizar de modo

    completamente preciso).

    Em primeiro lugar, habitual distinguir entre propriedades (logicamente)

    simples e propriedades (logicamente) complexas. No mnimo, uma propriedade

    logicamente complexa uma propriedade que pode ser obtida a partir de propriedades

    dadas por meio de dispositivos lgicos familiares; por outras palavras, trata-se de uma

    propriedade em cuja especificao figura (de modo explicto ou implcito) pelo menos

    uma ocorrncia de um operador sobre frases (abertas ou fechadas), por exemplo, uma

    conectiva proposicional ou um quantificador. Caso contrrio, a propriedade ser

    logicamente simples. Assim, exemplos de propriedades logicamente complexas so as

    seguintes: a propriedade de ser um poltico honesto (a qual representvel por x (Poltico x Honesto x)), a propriedade de ser sbio se Scrates o for (x (Sbio Scrates Sbio x)), a propriedade de ser Scrates ou Aristteles (x (x = Scrates x = Aristteles)), a propriedade de no ser sbio a menos que 2 + 2 = 5 (x ( Sbio x 2 + 2 = 5)), a propriedade de ser casado (x (y Casado x, y)), e a propriedade de admirar todos os polticos honestos (x (y (Poltico y Honesto y Admirar x, y))). E as propriedades de ser oval, ser mais sbio que Scrates (x (Mais Sbio x, Scrates)), e ser uma boa actriz (x (Boa Actriz x)) so exemplos (o ltimo dos quais menos bvio) de propriedades logicamente simples.

    Diversos critrios de identidade para propriedades tm sido propostos. Uma

    sugesto habitualmente feita a seguinte (relativamente a propriedades de primeira

    ordem). Propriedades so idnticas se, e s se, so necessariamente co-exemplificveis,

    isto , so exemplificadas exactamente pelos mesmos objectos em qualquer mundo

    possvel; em smbolos, tem-se

    = NECx (x x)

    luz deste critrio, as propriedades de ser solteiro e de ser uma pessoa do sexo

    masculino no casada sero obviamente idnticas; e o mesmo se pode plausivelmente

  • dizer das propriedades de ser gua e ser H2O e das propriedades de ser Tlio e ser

    Ccero. Todavia, alega-se muitas vezes que um princpio daquele gnero no discrimina

    onde deveria discriminar. Por exemplo, o critrio torna idnticas todas as propriedades

    cuja exemplificao metafisica ou logicamente impossvel (o que o mesmo que dizer

    que s h uma dessas propriedades), e torna tambm idnticas todas as propriedades

    cuja exemplificao metafisica ou logicamente necessria; para alm disso, o critrio

    no permite distinguir entre propriedades como as de ser sbio e ser sbio a menos que

    2 + 2 = 5 (estas so necessariamente co-exemplificveis). Para evitar tais dificuldades,

    defende-se por vezes a ideia de que o critrio apenas aplicvel a propriedades

    logicamente simples (ou a propriedades puramente qualitativas, ou a propriedades no

    relacionais, ou a ambas).

    Em segundo lugar, existe tambm uma distino intuitiva entre propriedades

    puramente qualitativas (ou gerais) e propriedades no-qualitativas, e uma distino

    intuitiva entre propriedades relacionais e propriedades no relacionais (por vezes, os

    termos extrnsecas e intrnsecas so usados para o mesmo efeito). Grosso modo, uma

    propriedade qualitativa de um objecto uma propriedade em cuja especificao no

    feita qualquer referncia a um indivduo ou objecto particular (por exemplo, atravs do

    uso de um nome prprio ou de outro tipo de designador). Assim, a propriedade de ser

    sbio, a propriedade de estar beira de um ataque de nervos, e a propriedade de ser um

    filsofo portugus gago e mais presunoso do que todos os outros so propriedades

    puramente qualitativas (de pessoas que as exemplifiquem); e a propriedade de ser

    Ccero, a propriedade de ter atravessado o Guadiana numa noite escura, e a propriedade

    de admirar alguns fsicos que admirem Feynman e detestem Gellmann so propriedades

    no-qualitativas (de pessoas que as exemplifiquem). Por outro lado, uma propriedade

    relacional de um objecto uma propriedade em cuja especificao feita uma meno a

    uma certa relao entre objectos (por exemplo, atravs do uso de um predicado didico).

    Assim, a propriedade de ser casado, a propriedade de estar sentado entre Clinton e

    Bush, e a propriedade de ser o mais presunoso filsofo portugus so propriedades

    relacionais (de pessoas que as exemplifiquem); enquanto que a propriedade de ser um

    filsofo gago presunoso ser uma propriedade no relacional (de uma pessoa, se existe,

    que a exemplifique). Naturalmente, dado estas caracterizaes das noes, existiro

  • propriedades que so simultaneamente qualitativas e relacionais, como por exemplo a

    propriedade de ser idolatrado ou a propriedade de ser dono de um co rafeiro.2

    Alguns filsofos defendem (e outros rejeitam) uma classificao das

    propriedades exemplificadas por um objecto (ou por objectos de certas categorias) em,

    de um lado, propriedades essenciais do objecto, e, do outro, propriedades acidentais do

    objecto. A ideia a seguinte.3 Uma propriedade de um objecto x uma propriedade essencial de x se, e s se, x exemplifica em qualquer mundo possvel (ou situao contrafactual) no qual x exista; intuitivamente, trata-se no apenas de uma propriedade

    que o objecto de facto tem, mas de uma propriedade tal que se o objecto no a

    exemplificasse deixaria simplesmente de existir. Em smbolos, uma propriedade essencial de x no caso de a seguinte condio modal se verificar

    (Ex x) (em que Ex se l x existe). Por outro lado, uma propriedade de um objecto x uma propriedade acidental de x se, e s se, x no exemplifica em pelo menos um mundo possvel (ou situao contrafactual) no qual x exista; intuitivamente, trata-se de uma

    propriedade que o objecto de facto tem, mas que poderia no ter tido e continuar a

    existir. Em smbolos, uma propriedade acidental de x no caso de a seguinte condio se verificar

    (Ex x) Assim, por exemplo, as seguintes propriedades de Scrates poderiam ser vistas

    como propriedades essenciais de Scrates: a propriedade de ser este indivduo

    (Scrates) (x (x = Scrates)), a propriedade de ser uma pessoa (x (Pessoa x)), a propriedade de no ser Aristteles (x ( x = Aristteles)), a propriedade de ser idntico a si mesmo (x (x = x)), e a propriedade de ter um certo par de pessoas particulares a e b como progenitores (x (Prog a, x Prog b, x)). Destas propriedades essenciais de Scrates, a primeira (tradicionalmente conhecida como a haecceitas de Scrates)

    tambm uma essncia individual de Scrates (isto , uma propriedade que s Scrates

    exemplifica em qualquer mundo possvel em que exista); a segunda, a terceira, e a

    quinta so propriedades essenciais que Scrates partilha com outros membros da

    espcie humana (no primeiro caso com todos, no segundo com todos menos Aristteles, 2 Por vezes, aquilo que se tem em mente quando se fala de uma propriedade intrnseca de um objecto

    uma propriedade qualitativa e no relacional desse objecto.

  • e no terceiro apenas com os seus irmos e irms caso existam); por ltimo, a quarta

    uma propriedade essencial que Scrates partilha com qualquer objecto (de qualquer

    categoria). Por outro lado, as seguintes propriedades de Scrates poderiam ser vistas

    como propriedades acidentais de Scrates: a propriedade de ser um filsofo, a

    propriedade de ter bebido a cicuta, e a propriedade de ser casado com Xantipa. Note-se

    que, dada uma tal caracterizao das noes, as propriedades essenciais de um objecto

    no coincidem necessariamente com as suas propriedades intrnsecas (no relacionais

    e/ou puramente qualitativas); com efeito, a propriedade acima mencionada de ter as

    pessoas a e b como progenitores (argumentavelmente) uma propriedade essencial de

    Scrates, apesar de se tratar de uma propriedade extrnseca, relacional e no-qualitativa,

    de Scrates.

    Finalmente, a bibliografia filosfica recente contm diversas referncias a

    propriedades de certo modo artificiais conhecidas como propriedades Cambridge. A

    ideia basicamente a seguinte. A exemplificao por um objecto numa ocasio de uma

    propriedade que o objecto no exemplificava anteriormente envolve normalmente uma

    certa mudana ou modificao no objecto em questo. Por exemplo, ao tomar posse e

    passar assim a exemplificar a propriedade de ser Presidente da Repblica Portuguesa,

    uma mudana certamente ocorre no indivduo Jorge Sampaio. No entanto, tal nem

    sempre o caso. Na ocasio em que Sampaio passar a exemplificar aquela propriedade,

    eu passo tambm a ter uma propriedade que anteriormente no tinha, designadamente a

    propriedade de ser tal que Sampaio Presidente da Repblica Portuguesa. Esta

    propriedade um exemplo de uma propriedade Cambridge que eu exemplifico naquela

    ocasio (embora no seja uma propriedade Cambridge de Sampaio). Trata-se assim de

    propriedades de algum modo no-genunas de um objecto, que no envolvem qualquer

    mudana no objecto (apesar de poderem envolver mudanas noutro objecto).

    ainda conveniente observar que o termo Atributo s vezes utilizado como

    termo genrico que cobre quer propriedades (no sentido anteriormente introduzido)

    quer ainda Relaes. Assim, um atributo frequentemente caracterizado como aquilo

    que expresso (ou, em certos pontos de vista, referido) por um predicado com qualquer

    nmero de argumentos ou n-dico (com n 1). Deste modo, a predicado mondicos (por exemplo, () oval) esto associados atributos mondicos ou propriedades (por

    exemplo, o atributo mondico, ou a propriedade, de ser oval); a predicados didicos (por

    exemplo, admira) esto associados atributos didicos ou relaes binrias (por

    exemplo, o atributo didico, ou a relao binria, de admirar), as quais so

  • exemplificveis por pares ordenados de objectos; a predicados tridicos (por exemplo,

    estar a leste de e a norte de) esto associados atributos tridicos ou relaes ternrias, as quais so exemplificveis por triplos ordenados de objectos; e assim por

    diante.

    3. Nominalismo versus Realismo

    Uma distino filosfica tradicional, a qual tem em traos gerais persistido ao longo da

    moderna bibliografia metafsica e lgico-filosfica, aquela que divide a totalidade das

    entidades ou dos objectos em duas grandes categorias mutuamente exclusivas e

    conjuntamente exaustivas: universais, objectos que so em essncia repetveis,

    exemplificveis, ou predicveis de algo; e particulares, objectos que em essncia no

    so repetveis, exemplificveis, ou predicveis do que quer que seja. Objectos abstractos

    como propriedades e atributos, por exemplo a propriedade de ser sbio e o atributo da

    Brancura, so ilustraes paradigmticas de universais; e objectos concretos como o

    meu relgio e Bill Clinton so exemplos paradigmticos de particulares.

    A aceitao ou rejeio da distino tem sido til para a caracterizao de alguns

    dos pontos de vista mais familiares disponveis em ontologia. Assim, o nominalismo

    muitas vezes caracterizado como a doutrina segundo a qual no h universais, a doutrina

    segundo a qual, numa ontologia razovel, todos os objectos so necessariamente

    particulares; ou, numa verso mais forte, a doutrina segundo a qual s h particulares

    concretos, objectos de algum modo localizveis no espao-tempo. O nominalismo tem

    tambm sido ocasionalmente descrito como a doutrina de que no h objectos

    abstractos, a doutrina de que, numa ontologia razovel, todos os objectos so

    necessariamente concreta. Todavia, as duas caracterizaes no so de todo

    equivalentes. Basta observar que h posies classificveis como nominalistas que no

    entanto admitem objectos abstractos, e.g., nmeros e classes. A primeira caracterizao

    assim de longe prefervel. O realismo, pelo menos enquanto posio metafsica e no

    epistemolgica, muitas vezes caracterizado como a doutrina de que h universais, a

    doutrina de que, numa ontologia razovel, pelo menos alguns objectos so

    necessariamente universais; ou, numa verso mais forte, a doutrina para a qual talvez

    seja mais apropriada a designao platonismo de que tudo o que h so universais.4

    4 Note-se que esta doutrina pode assumir a forma particular de uma anlise de particulares em termos de feixes de propriedades.

  • A distino muitas vezes introduzida em termos parcialmente lingusticos, sendo a

    admisso de universais motivada com base em determinados argumentos de carcter

    semntico. Em geral, trata-se de argumentos que visam estabelecer a indispensabilidade

    de certas categorias de objectos exibindo o seu estatuto de correlatos semnticos de

    certas categorias de expresses lingusticas. Assim, grosso modo, particulares tm sido

    descritos como sendo as contrapartes extra-lingusticas ou os valores semnticos de

    expresses referenciais e de termos singulares concretos: objectos do gnero daqueles

    que so nomeados (em contextos dados) por expresses como O meu relgio, Esta

    casa, Teeteto, O rio Tejo, etc. E universais tm sido notoriamente descritos como

    sendo as contrapartes extra-lingusticas ou os valores semnticos de termos gerais ou,

    mais em geral, de predicados e de certos substantivos abstractos: objectos do gnero

    daqueles que so aparentemente designados (em contextos dados) por expresses como

    Homem, Branco, Mais pequeno do que, Humildade, Sabedoria, etc. Dada

    uma frase simples como Teeteto humilde, a ideia a de que, tal como necessrio

    para fins semnticos reconhecer algo que o sujeito da frase a palavra Teeteto

    designa, viz., a pessoa Teeteto em carne e osso, tambm necessrio reconhecer algo

    que o predicado da frase a expresso humilde designa, viz., a Humildade ou a

    propriedade de ser humilde (s que aqui perde-se a inocncia, pois no se tem nada de

    carne e osso). Exemplos tpicos de universais enquanto valores semnticos de

    predicados so, por conseguinte, os seguintes:

    (a) atributos, os valores semnticos dos sujeitos de frases como A sabedoria uma virtude e A honradez rara;

    (b) propriedades, os valores semnticos dos predicados mondicos que ocorrem em frases simples; e

    (c) relaes, os valores semnticos dos predicados didicos em frases como Scrates ama Teeteto, dos predicados tridicos em frases como Coimbra est

    entre Lisboa e Aveiro, etc.

    Um postular de universais julgado necessrio com base na ideia de que uma

    especificao correcta das condies de verdade de uma predicao mondica como

    Teeteto humilde, por exemplo, envolve uma referncia aos dois gneros de objectos

    (particulares e tambm universais), bem como a uma relao especial que se verifica ou

    no entre eles, a relao de exemplificao ou predicao. Assim, diz-se que aquela

    frase verdadeira se, e s se, o particular Teeteto exemplifica a propriedade de ser

  • humilde ou o universal mondico Humildade (se, e s se, essa propriedade ou universal

    mondico predicvel de Teeteto). E a mesma estratgia generalizvel a predicaes

    de aridade arbitrria. Diz-se, por exemplo, que uma frase como Brutus detesta Csar

    verdadeira se, e s se, o par ordenado de particulares exemplifica a

    relao binria, ou o universal didico, Detestar (se, e s se, essa relao ou universal

    didico predicvel desses dois particulares tomados nessa ordem).

    Todavia, hoje cada vez mais consensual, entre os actuais defensores dos

    universais, a ideia de que a distino lingustica insuficiente ou mesmo deficiente; e

    que os argumentos de natureza semntica so em geral inconclusivos. Em particular, a

    crtica de Quine a argumentos com esse gnero de inspirao foi levada a srio e tornou-

    se extremamente influente, acabando por ter a vantagem de obrigar os realistas

    contemporneos a uma maior sofisticao das suas posies. Objecta-se que os

    argumentos semnticos, pelo menos nas suas formulaes mais correntes, dependem

    crucialmente de uma premissa muito pouco credvel, em virtude de estar fundada numa

    analogia claramente ilegtima. Essa premissa a tese de que predicados e termos gerais

    funcionam na linguagem exactamente como nomes prprios e outros termos singulares;

    presume-se incorrectamente que ambos designam ou nomeiam determinados objectos,

    que a funo de nomeao comum a ambas as categorias de expresso. Note-se,

    todavia, que este tipo de crtica ineficaz contra argumentos semnticos centrados no

    comportamento de certos termos singulares abstractos ao ocorrerem como sujeitos de

    predicaes mondicas de ordem superior, como por exemplo o caso da frase A

    honestidade rara. A rplica nominalista habitual consiste numa tentativa de

    parafrasear essas frases em frases nas quais j no h qualquer referncia nominal a

    alegados universais. Mas, se a estratgia da parfrase parece funcionar em relao a

    casos como A honestidade uma virtude, j no claro que ela funcione em relao a

    casos como A honestidade rara.

    Por outro lado, aquela objeco aos argumentos semnticos por vezes

    complementada com a observao de que a maneira atrs adoptada de especificar

    condies de verdade, utilizando o idioma de propriedades e relaes, est longe de ser

    mandatria e perfeitamente evitvel; por conseguinte, a argumentao a ela associada

    resulta ser extremamente frgil. Com efeito, um nominalista em termos de classes,

    como por exemplo o caso de David Lewis, pode sempre substituir satisfatoriamente

    uma aparente referncia a universais, por parte dos predicados de predicaes

  • mondicas, por uma referncia a classes; e estas so objectos particulares, embora

    abstractos. De facto, o seguinte tipo de especificao de condies de verdade

    igualmente satisfatrio: uma frase como Teeteto humilde verdadeira se, e s se, o

    particular Teeteto pertence classe das pessoas humildes. E mesmo as predicaes de

    ordem superior podem ser do mesmo modo vistas como envolvendo uma referncia

    apenas a classes, e no a universais; pode-se sempre dizer, por exemplo, que uma frase

    como A honestidade rara verdadeira se, e s se, a classe nomeada pelo sujeito,

    viz., a classe das pessoas humildes, pertence classe associada ao predicado, viz., a

    classe de todas as classes que tm muito poucos elementos. Alternativamente, um

    nominalista em termos de classes poderia mesmo aceitar a especificao anterior de

    condies de verdade em termos de propriedades mas insistir que propriedades se

    deixam afinal reduzir a classes de objectos, actuais ou meramente possveis; na

    metafsica de Lewis, por exemplo, a propriedade de ser sbio identificada com um

    particular abstracto: a classe das pessoas sbias, a qual inclui no entanto quer pessoas

    actuais quer pessoas meramente possveis, quer Scrates quer uma sua contraparte num

    certo mundo possvel no-actual.

    A moral da histria a de que, face vulnerabilidade dos argumentos semnticos,

    muitos realistas actuais preferem proceder a uma caracterizao substantiva e

    essencialmente no-lingustica dos universais, acabando por rejeitar a tese de que todo o

    predicado ou termo geral tem necessariamente um certo universal como seu valor

    semntico ou correlato ontolgico. Por exemplo, predicados como alto ou 2 + 2 = 4,

    frgil, auto-idntico, unicrnio, quadrado redondo, etc., no so vistos em

    algumas posies modernas como estando associados a quaisquer universais (por razes

    diferentes em cada caso). H quem queira distinguir entre propriedades (num sentido

    lato que inclui qualidades, atributos, relaes, etc.) e universais, e defender a ideia de

    que, apesar de todos os universais serem propriedades, h bastantes propriedades que

    no so universais. Do ponto de vista do chamado realismo cientfico subscrito por

    David Armstrong e outros, apenas aquelas propriedades que sejam causalmente

    eficazes, no sentido de figurarem em generalizaes tpicas da cincia, tm o estatuto de

    universais. assim possvel excluir do domnio dos universais propriedades no-

    atmicas como a propriedade disjuntiva associada ao primeiro dos predicados acima,

    propriedades disposicionais como a propriedade associada ao segundo predicado, e

    propriedades meramente formais como a propriedade associada ao terceiro predicado; e

  • possvel incluir nesse domnio propriedades como a propriedade de ter uma certa

    estrutura molecular, ter uma certa forma, ter uma certa massa, etc.

    Para alm deste gnero de motivao para a introduo de universais, a qual consiste

    em geral na sua indispensabilidade para fins de explicao cientfica, uma outra linha de

    argumentao independente tem sido frequentemente utilizada para o mesmo efeito.

    Trata-se do argumento, certamente dotado de uma longa histria na tradio filosfica,

    conhecido como o argumento do um-em-muitos. De uma forma simplificada, trata-se do

    argumento segundo o qual os universais, enquanto entidades essencialmente repetveis

    ou predicveis de um grande nmero de particulares, so indispensveis para explicar as

    semelhanas ou identidades qualitativas que se estabelecem entre particulares

    numericamente distintos. A semelhana entre particulares numericamente distintos, por

    exemplo a forte similaridade entre dois objectos fsicos que so rplicas exactas um do

    outro (e.g., duas fotocpias da mesma pgina), consiste na coincidncia de

    propriedades; ou seja, no facto de esses particulares exemplificarem as mesmas no

    sentido de numericamente as mesmas propriedades (obviamente, sob pena de uma

    regresso ad infinitum, no se poderia aqui invocar como explicao a mera semelhana

    entre propriedades!). Alega-se assim que Um e o mesmo universal, e.g., o universal

    Humildade (supondo que se trata de um universal), est presente em Muitos

    particulares, e.g., Scrates, Teeteto, Clias, etc., no sentido de todos estes particulares o

    exemplificarem; e este gnero de facto que permite explicar de forma satisfatria as

    relaes de semelhana verificadas entre particulares. Naturalmente, esta linha de

    argumentao a favor dos universais pode ser, e tem sido, consistentemente combinada

    com argumentos do primeiro tipo, argumentos centrados na aparente indispensabilidade

    dos universais para fins de explicao cientfica.

    Finalmente, conveniente fazer uma referncia a duas concepes distintas acerca

    da natureza dos universais que ocorrem com alguma frequncia na bibliografia mais

    recente. De um lado, h a doutrina segundo a qual os universais so essencialmente ante

    rem, ou seja, objectos completamente auto-subsistentes, cuja natureza e existncia so

    independentes da circunstncia de serem exemplificveis por particulares; esta posio

    tem sido descrita como concepo platonista dos universais. Do outro lado, h a

    doutrina segundo a qual os universais so essencialmente in rebus, objectos cuja

    natureza e existncia so dependentes da circunstncia de serem exemplificveis por

    particulares; esta posio, a doutrina de que (num certo sentido) os universais apenas

  • existem nos particulares, tem sido descrita como concepo aristotlica dos universais.

    Do ponto de vista aristotlico, no h universais que no sejam exemplificveis, como

    as propriedades de ser um unicrnio e ser um quadrado redondo; do ponto de vista

    platonista, h tais universais. Do ponto de vista platonista, os universais so existentes

    necessrios, objectos que existem em todos os mundos possveis; do ponto de vista

    aristotlico, os universais so existentes contingentes, apenas existem naqueles mundos

    nos quais so predicveis de algo. Naturalmente, o ponto de vista aristotlico em geral

    adoptado pelos proponentes do realismo cientfico e de posies afins acerca da

    natureza dos universais.

    4. Semelhana e Predicao

    Nominalimo e realismo metafsico so adequadamente descritos como teorias

    metafsicas que visam explicar os seguintes dois gneros de fenmenos importantes: (a)

    a semelhana ou recorrncia qualitativa existente no mundo, ou seja, o facto de

    inmeros objectos numericamente distintos, por exemplos todas as mesas vermelhas,

    terem certas caractersticas em comum, por exemplo a cor ou a forma; (b) a predicao,

    o facto de um objecto dado, por exemplo uma mesa especfica, possuir uma certa

    caracterstica, por exemplo a de ser vermelha.

    Tais teorias, ou famlias de teorias, so mutuamente inconsistentes, ou seja, no

    podem ser ambas verdadeiras, e parecem esgotar o domnio de posies, ou famlias de

    posies, possveis acerca daqueles dois fenmenos. De notar ainda que, embora

    habituais h centenas de anos, as designaes usadas para tais teorias so

    manifestamente infelizes. Com efeito, o nominalismo seria mais apropriadamente

    chamado particularismoou singularismo; e o realismo metafsico seria mais

    apropriadamente chamado universalismo.

    Queremos nesta seco caracterizar com mais alguma profundidade os dois

    pontos de vista, sobretudo tomando-os como teorias explicativas dos fenmenos da

    semelhana e da predicao.

    Comeamos por identificar as teses distintivas do realismo metafsico e do

    nominalismo a esse respeito.

    As teses distintivas do Realismo

  • Podemos descrever o realismo metafsico como sendo aquele ponto de vista que

    caracterizado pela adopo das seguintes trs teses metafsicas, teses acerca de que

    gnero de objectos h e qual a sua funo (as teses no so mutuamente independentes).

    Tese 1. H objectos universais, ou seja, objectos idnticos ao longo de

    possivelmente muitos objectos distintos uns dos outros.

    Exemplos de objectos desse gnero poderiam ser a brancura de todas as

    inmeras coisas brancas e a humildade de todas as inmeras pessoas humildes.

    (Note-se que estas propriedades so aqui mencionadas apenas a ttulo de

    ilustrao, pois h formas particulares de realismo nas quais elas no seraim

    vistas como universais.)

    Tese 2. Algumas propriedades de objectos (possivelmente todas as propriedades

    de objectos) so propriedades universais.

    A Brancura e a Humildade poderiam estar entre essas propriedades

    universais de objectos, no caso qualidades universais de particulares concretos.

    Mas os objectos em questo poderiam ser eles prprios propriedades, caso em

    que poderiamos ter entre as propriedades universais os chamados universais de

    ordem superior, por exemplo Cor, Forma, etc. (por oposio a Vermelho,

    Triangular, etc., os quais seriam universais de primeira ordem).

    Tese 3. Propriedades universais so indispensveis para explicar a semelhana,

    ou pelo menos algumas semelhanas objectivas entre as coisas, e a predicao

    (isto , a aplicao de atributos a objectos), ou pelo menos algumas predicaes.

    A qualidade universal da Humildade poderia ser tomada como

    indispensvel para explicar porque que as pessoas humildes so semelhantes

    entre si no que respeita humildade, ou seja, porque que os humildes so

    humildes. E essa qualidade universal poderia igualmente ser tomada como

    indispensvel para explicar em que que consiste a atribuio a uma pessoa

    particular, por exemplo Scrates, da propriedade de ser humilde.

    As teses distintivas do Nominalismo

    Podemos descrever o nominalismo como sendo aquele ponto de vista que

    caracterizado pela adopo das seguintes trs teses metafsicas, teses acerca de que

    gnero de objectos h e qual a sua funo.

    Tese 1. No h objectos universais. S h objectos particulares, objectos

    irrepetveis e impredicveis.

  • H apenas cada uma das inmeras coisas brancas e cada uma das muitas

    pessoas humildes, ou ento cada uma das muitas brancuras em questo e cada

    uma das muitas humildades em questo (tropos); no h, para alm disso e em

    cima disso, algo recorrente ao longo dessas coisas, algo como a Brancura ou a

    Humildade.

    Tese 2. Nenhuma propriedade uma propriedade universal.

    Propriedades ou atributos de objectos podem ser tolerados numa

    ontologia nominalista; mas ou no tm qualquer substncia ontolgica, tratando-

    se de meras maneiras de falar convenientes, ou ento so na realidade objectos

    particulares, nicos e irrepetveis (por exemplo particulares concretos como

    tropos, segundo o Nominalismo de Tropos, ou particulares abstractos como

    classes, segundo o Nominalismo de Classes).

    Tese 3. Universais no so necessrios para explicar as semelhanas objectivas

    entre as coisas e a predicao. Objectos particulares, em especial particulares

    concretos e/ou os seus tropos, so suficientes para o efeito.

    No preciso invocar algo como a qualidade universal da Brancura para

    explicar porque que as coisas brancas so brancas. A simples admisso dos

    particulares em questo, das coisas brancas que h por a, e/ou dos diversos

    tropos especficos de brancura neles presentes, suficiente para esse propsito.

    No preciso invocar algo como a qualidade universal da Brancura para

    explicar porque que uma certa coisa particular branca. A simples admisso

    do particular em questo, e/ou do tropo especfico de brancura nele presente,

    suficiente para esse propsito. Podemo-nos assim contentar com coisas

    familiares, coisas que povoam o nosso quotidiano e que se podem ver ou sentir,

    sem precisarmos de recorrer a coisas bizarras como qualidades universais, coisas

    que aparentemente no se podem ver ou sentir. (Na pior das hipteses,

    podemos ser obrigado a admitir objectos abstractos como classes de particulares

    concretos, como sucede na forma de nominalismo conhecido como

    Nominalismo de Classes; mas tais objectos so ainda particulares, no

    universais.)

    A explicao realista da predicao e da semelhana

    Para obtermos uma compreenso mais fina dos contornos da posio realista, convm

    dizermos mais alguma coisa sobre a natureza dos objectos universais nela postulados, o

  • que que eles seriam se existissem. Por uma questo de simplicidade, consideramos

    apenas propriedades de primeira ordem, aquelas que s so predicveis de particulares,

    propriedades como a Brancura e a Humildade.

    Podemos dizer que uma propriedade ou qualidade de particulares uma

    propriedade ou qualidade universal se satisfaz a seguinte condio:

    Quando se diz de particulares distintos que tm a mesma propriedade, a

    identidade em questo a identidade numrica ou estrita (ver a seco 1 deste

    ensaio), ou seja, uma s coisa, uma nica propriedade, atribuda a todos esses

    particulares

    Assim, quando dizemos que estas duas pessoas humildes, Scrates e Teeteto, so do

    mesmo gnero, tm uma caracterstica em comum, partilham a mesma qualidade,

    devemos ser entendidos literalmente no sentido de estarmos a dizer o seguinte: Scrates

    e Teeteto so casos ou exemplos distintos de um nico universal, a Humildade. Do

    mesmo modo, estes dois cavalos so do mesmo tipo, tm a mesma propriedade, no

    sentido literal do termo: so casos ou exemplos de um nico universal, a Cavalidade,

    ou melhor, a espcie Equus Cabalus (supondo, boa maneira aristotlica, que espcies

    animais so universais).

    Dadas estas consideraes acerca daquilo que faz com que uma propriedade de

    particulares possa ser tomada como uma propriedade universal desses particulares,

    vejamos agora como que o fenmeno da predicao, a circunstncia de um particular

    possuir uma propriedade, deve ser explicada do ponto de vista do realismo metafsico.

    Basicamente, o realista metafsico prope o seguinte esquema de anlise para a

    predicao, para qualquer predicao:5

    (P) Um particular x tem a propriedade de ser um F, ou seja, um F o que , um

    F, em virtude de x estar numa certa relao, a relao primitiva que os realistas

    designam por exemplificao, com uma certa propriedade universal, o universal

    F. Ou seja, x tem a propriedade de ser um F porque x exemplifica o, ou um

    exemplo do, universal F.

    Assim, esta rosa tem a propriedade de ser vermelha em virtude de exemplificar o, ou ser

    um exemplo do, universal Vermelho; e desta propriedade universal diz-se que tem a

    rosa em questo como exemplo. Por conseguinte, do ponto de vista realista, predicaes

    so factos a analisar, so factos cuja verificao se deve verificao de factos mais

    bsicos; estes factos mais bsicos consistem invariavelmente em exemplificaes de 5 Veja-se a este respeito a excelente exposio em Loux 1998.

  • universais. Assim, a teoria realista emprega dois conceitos primitivos centrais: o

    conceito de universal e o conceito (relacional) de exemplificao.

    E como que a semelhana ou a recorrncia qualitativa no mundo, a

    circunstncia de certas caractersticas serem partilhadas por inmeros particulares

    numericamente distintos uns dos outros, explicada do ponto de vista do realismo

    metafsico? Basicamente, o realista metafsico prope o seguinte esquema de anlise

    para a semelhana, para qualquer caso de coincidncia de aspectos ou caractersticas:

    (S) A mesma propriedade, a propriedade de ser um F, pertence a particulares

    distintos, isto , Fs so Fs, em virtude de todos eles estarem na relao de

    exemplificao com um nico universal, o universal F. Por outras palavras, Fs

    so semelhantes entre si (qua Fs) em virtude de serem exemplos de um e do

    mesmo universal, o universal F.

    Assim, as rosas brancas so brancas em virtude de todas elas exemplificarem o

    universal Brancura; e so rosas em virtude de todas elas exemplificarem o universal

    Rosa (ou Rosidade). Por conseguinte, do ponto de vista realista, semelhanas so factos

    a analisar, so factos cuja verificao se deve verificao de factos mais bsicos; estes

    factos mais bsicos consistem invariavelmente num conjunto de exemplificaes de um

    e do mesmo universal.

    Terminarmos a nossa elucidao do realismo metafsico com a introduo de

    dois aspectos com base nos quais possvel distinguir liminarmente os universais

    postuladas pelo realista dos particulares que os exemplificam. Esses aspectos so a

    repetibilidade e a localizao. Eles permitem realar o carcter sui generis dos

    universais, a sua irredutvel universalidade (por assim dizer).

    Repetibilidade

    Universais so objectos repetveis, no sentido de objectos numericamente idnticos ao

    longo de particulares numericamente distintos uns dos outros. Assim, a brancura repete-

    se, ou est integralmente presente, em cada uma das coisas brancas.

    A repetibilidade dos universais est associada sua mltipla exemplificao:

    propriedades universais so objectos multiplamente exemplificveis no sentido em que

    muitas coisas distintas numericamente distintas umas das outras podem ser exemplos de

    uma e da mesma propriedade universal.

    A repetibilidade dos universais faz com que eles sejam objectos recorrentes ao

    longo do espao e do tempo. A Brancura distribui-se pelo espao no sentido de estar de

  • algum modo inteiramente presente, numa dada ocasio, em todas as coisas brancas que

    ocupam lugares diferentes nessa ocasio. A Brancura distribui-se pelo tempo no sentido

    de estar de algum modo inteiramente presente, em ocasies distintas, em todas as

    diversas coisas brancas que existem nessas ocasies.

    Em claro contraste com isto, particulares, em especial objectos materiais como a

    mesa na qual estou a escrever e acontecimentos especficos como o jogo Sporting-Porto

    deste sbado, so objectos irrepetveis, nicos. De facto, objectos materiais s esto

    integralmente presentes num nico lugar, numa nica poro do espao, em cada

    ocasio. E acontecimentos especficos no so recorrentes ao longo do espao ou ao

    longo do tempo: ocorrem algures no espao durante um certo perodo de tempo, e no

    podem ocorrer mais nenhuma vez.

    Por outro lado, propriedades particularizadas ou tropos, como o castanho desta

    mesa castanha (e s desta mesa castanha), e classes, como a classe de todas as mesas

    castanhas, so igualmente objectos irrepetveis. De facto, numericamente a mesma

    propriedade particularizada no pode estar presente na ntegra em mais do que um

    particular material; este tropo de branco s pode estar presente nesta mesa branca, em

    mais nenhum particular. Propriedades concebidas como particulares no so recorrentes

    ao longo do espao e do tempo: esto presentes numa nica regio do espao em cada

    ocasio. E no tem qualquer sentido dizer de uma classe de coisas, por exemplo a classe

    de todas as pessoas humildes, que se repete em todos e cada um dos seus membros, que

    a classe das pessoas humildes est de algum modo presente em cada pessoa humilde.

    Localizao

    Podemos dizer que particulares, ou pelo menos particulares materiais ou no abstractos,

    so objectos individualizados, pelo menos parcialmente, pelas pores do espao que

    ocupam numa dada ocasio. Por outras palavras, particulares materiais so aquele

    gnero de coisas que so governadas pelos dois seguintes princpios intuitivos de

    individuao.

    Princpio 1. Um e o mesmo particular no pode estar integralmente presente,

    numa dada ocasio, em duas regies descontnuas do espao, ou seja, regies

    que no tenham qualquer parte em comum.

    certo que uma caneta pode estar em dois stios ao mesmo tempo, com a

    sua tampa numa mesa e o resto na mo de uma pessoa, mas no na ntegra, na

    totalidade.

  • Princpio 2. Dois particulares no podem estar integralmente presentes, numa

    dada ocasio, numa s regio do espao.

    certo que duas canetas podem estar presentes ao mesmo tempo na mesma

    regio do espao, com a tampa de cada uma delas inserida no corpo da outra,

    mas no na ntegra, na totalidade.

    Em claro constraste com isto, universais so por excelncia aquele gnero de

    coisas que se distinguem justamente por violarem princpios como os Princpios 1 e 2.

    Com efeito, universais parecem antes satisfazer condies do seguinte gnero, as quais

    so manifestamente inconsistentes com aqueles princpios.

    Princpio do um-em-muitos. Um e o mesmo universal pode estar integralmente

    presente, numa dada ocasio, em duas regies descontnuas do espao, regies

    que no tenham qualquer parte em comum.

    O universal Vermelho est inteiramente presente, numa e na mesma ocasio,

    nas regies descontnuas do espao ocupadas por estas duas canetas vermelhas.

    Princpio do muitos-em-um. Dois universais podem estar integralmente

    presentes, numa dada ocasio, numa s regio do espao.

    Os universais Vermelho e a Triangularidade esto ambos inteiramente

    presentes, numa e na mesma ocasio, na regio do espao ocupada por, e apenas

    por, esta mesa triangular vermelha.

    5. Argumentos contra o Realismo

    O objectivo desta secco introduzir e discutir trs argumentos historicamente

    salientes contra o realismo metafsico, a doutrina de que h universais, ou seja,

    propriedades repetveis ou estritamente idnticas ao longo de objectos distintos. Esses

    argumentos tm como alvo o realismo metafsico in toto, no apenas esta ou aquela

    variedade particular da doutrina. Os argumentos em questo so recorrentes na

    bibliografia filsfica disponvel na rea da metafsica, quer a tradicional quer a mais

    recente. Por outro lado, a maioria dos argumentos tem uma forte inspirao nominalista.

    Vamos designar tais argumentos como Argumento da Parcimnia, Argumento da

    Incoerncia e Argumento da Auto-Predicao.

    O Argumento da Parcimnia

    O Argumento da Parcimnia um argumento de sabor nominalista frequentemente

    aduzido nas discusses sobre o problema dos universais. O argumento diversas vezes

  • utilizado ao longo dos trabalhos de Willard Quine, um filsofo nominalista que inclui

    atributos (= propriedades universais) naquilo que designa como criaturas da

    escurido: universais fazem a companhia a outras entidades intensionais, por

    exemplo proposies. A concluso do Argumento da Parcimnia a ideia de que

    universais so entidades dispensveis ou redundantes, uma categoria de coisas que no

    de todo necessrio que figure num sistema credvel de ontologia, numa teoria geral

    adequada de objectos.

    A premissa tpica do Argumento da Parcimnia um velho princpio de

    economia ontolgica conhecido como Navalha de Ockham ou Princpio da Parcimnia.

    A economia em questo no uma economia quantitativa, no uma economia no

    nmero de coisas, mas uma economia qualitativa, uma economia no nmero de

    categorias ou tipos de coisas (a distino entre estes dois sentidos de economia

    ontolgica de Lewis ver Lewis 1983).

    A Navalha de Ockham consiste na adopo da regra geral de que as entidades,

    no sentido de tipos de entidades, no devem ser multiplicadas para alm da necessidade;

    na frmula da escolstica medieval, entia non sunt multiplicanda praeter necessitatem.

    Por outras palavras, uma condio necessria para que entidades de um certo gnero

    sejam admitidas num sistema razovel de ontologia essas entidades servirem para

    alguma coisa, fazerem algum trabalho, desempenharem alguma funo, explicarem

    algum conjunto de dados ou fenmenos. Presume-se ainda, naturalmente, que tal

    trabalho, funo ou explicao no podem ser realizados ou executados por entidades de

    outro tipo: s entidades do tipo em questo so apropriadas para o efeito.

    Uma das maneiras mais naturais de a condio de utilidade mencionada na

    Navalha de Ockham ser satisfeita por um gnero de entidades essas entidades serem

    necessariamente invocadas em explicaes proporcionadas pela melhor cincia. assim

    que coisas como buracos negros, quarks e espcies animais so consideradas como

    fazendo necessariamente parte de qualquer sistema apropriado de ontologia.

    A outra premissa do Argumento da Parcimnia consiste, evidentemente, na

    observao de que putativos objectos como propriedades ou relaes universais no

    fazem de facto nenhum trabalho substantivo, no desempenham na realidade nenhum

    papel terico, no explicam de todo nenhum conjunto de dados ou fenmenos que

    necessitem de uma explicao.

    Alega-se, em particular, que os universais acabam por no realizar qualquer uma

    das funes que lhes so tipicamente atribudas pelos proponentes do realismo

  • metafsico. A ideia que suporta esta alegao a de que das duas uma. Ou as

    explicaes que invocam universais so irremediavelmente deficientes, caso em que

    eles afinal no so adequados para fazer o trabalho que so supostos fazer. Ou ento

    concede-se para benefcio da discusso que tais explicaes so satisfatrias, mas

    defende-se que h outras que so igualmente satisfatrias e que no recorrem de todo a

    universais. Estas ltimas explicaes invocam uma ontologia que contm apenas

    objectos particulares, objectos irrepetveis (presume-se, naturalmente, que objectos

    deste ltimo gnero tm em todo o caso que estar disponveis). Em qualquer dos casos,

    conclui-se que os universais no so precisos para fazer o trabalho que so supostos

    fazer.

    Considere-se, por exemplo, a funo tipicamente atribuda a propriedades

    universais de serem o fundamento in rerum natura da recorrncia qualitativa no mundo,

    ou seja, da distribuio pelas diversas coisas no mundo dos mesmos traos, das mesmas

    qualidades, das mesmas caractersticas, dos mesmos aspectos. O proponente do

    Argumento da Parcimnia alegar ento, ou que a explicao realista desse fenmeno

    insatisfatria ou obscura, no sendo os universais adequados para o efeito, ou que

    apenas invocando particulares, por exemplo propriedades particularizadas (= tropos),

    ele consegue explicaes no mnimo to boas como aquelas que invocam universais.

    Para qu ento admitir dois tipos de coisas (universais e particulares) se s com

    um deles (particulares) se consegue aparentemente explicar tudo o que preciso

    explicar? Supondo que temos em todo o caso que admitir particulares na nossa melhor

    ontologia, a Navalha de Ockham obriga-nos assim, argumenta-se, economia

    qualitativa e a dispensar universais. Conclui-se que universais esto para alm da

    necessidade, ofendem a Navalha e devem ser deste modo banidos de qualquer sistema

    razovel de ontologia.

    Como que se pode avaliar o Argumento da Parcimnia contra o realismo

    metafsico? Trata-se de um bom argumento?

    Em primeiro lugar, note-se que a Navalha de Ockham um princpio

    relativamente incontroverso de economia e simplicidade. Apesar de ser muitas vezes

    (erroneamente) assimilado ao nominalismo, como se fosse um trao constitutivo desta

    posio, o que certo que, por si s, o princpio no decide a disputa a favor do lado

    nominalista.

    Com efeito, a Navalha pode bem ser aceite pelo realista metafsico. Na verdade,

    o princpio mesmo adoptado com naturalidade na maioria das verses de realismo

  • metafsico contemporneo. O realista metafsico pode, por exemplo, fazer uso da

    Navalha para dispensar tropos, alegando que estes no fazem qualquer trabalho que no

    possa ser feito por universais. E pode tambm excluir propriedades no exemplificadas,

    como a propriedade de ser um quadrado redondo, do domnio das propriedades

    universais alegando que elas no so aptas para explicar aquilo que os universais so

    primariamente supostos explicar, as semelhanas objectivas entre as coisas.

    Em segundo lugar, a outra premissa do Argumento da Parcimnia est longe de

    ser slida, o que faz com que o argumento no seja um argumento conclusivo contra a

    admisso de universais. H duas razes principais para tal falta de solidez.

    Por um lado, so muitos e de diversos tipos as funes e os papes explicativos

    atribuveis a universais. Eis alguns desses papes e funes: darem conta dos

    agrupamentos e classificaes naturais de particulares; servirem de valores semnticos

    para predicados; explicarem os poderes causais de particulares; darem conta da nossa

    capacidade para reconhecer novos exemplos de propriedades dadas; explicarem a

    mudana de particulares materiais ao longo do tempo; etc. Um fardo muito pesado cai

    sobre o filsofo nominalista quando este alega que os universais no so adequados para

    executar nenhuma dessas mltiplas funes

    Por outro lado, e mais importante, no de todo claro que o recurso a

    particulares, e s a particulares, seja suficiente para dar conta das funes em questo,

    ou pelo menos para dar conta daquelas funes que o nominalista est preparado para

    reconhecer como centrais. No , por exemplo, lquido que um sistema de ontologia que

    contenha apenas particulares seja dotado de recursos adequados para explicar de modo

    satisfatrio a existncia de classes naturais de particulares, a existncia de classificaes

    objectivas de particulares (por exemplo, espcies animais e partculas fsicas). So

    notrias as dificuldades encontradas a esse respeito por parte de quase todas as

    variedades de nominalismo, com destaque para o nominalismo de classes e o

    nominalismo de predicados. Assim, um fardo igualmente pesado tambm aqui

    imposto sobre o proponente nominalista do Argumento da Parcimnia quando este

    alega que particulares so necessrios e suficientes para realizar as funes explicativas

    centrais alegadamente realizveis por universais.

    Conclumos assim que o Argumento da Parcimnia no um argumento

    conclusivo: muita coisa teria ainda de ser feita para provar que universais so entidades

    redundantes ou dispensveis do ponto de vista da explicao.

  • O Argumento da Incoerncia

    A finalidade deste argumento mostrar que a prpria ideia de um universal a ideia de

    um repetvel, de uma coisa inteiramente presente em diversas outras coisas uma

    ideia incoerente, pois conduz a contradies (ou inconsistente com um punhado de

    verdades indisputveis).

    O Argumento da Incoerncia pode ser esquematicamente representado da

    seguinte maneira.

    Premissa 1. Os universais so, por definio, coisas repetveis (ou pelo menos

    alguns universais so repetveis, designadamente aqueles que tm exemplos).

    Como repetveis, os universais podem estar presentes em diversos stios distintos

    numa e na mesma ocasio.

    Premissa 2. Uma coisa espacialmente descontnua, ou est disseminada pelo

    espao, se e s se est presente em duas regies distintas ou no sobrepostas do

    espao, isto , regies que no tm qualquer parte em comum.

    Assim, alguns pases (a Suia), algumas cidades (Lisboa) e algumas ruas

    (a Alameda da Universidade em Lisboa) no so coisas espacialmente

    descontnuas nesse sentido; mas alguns pases (Portugal), algumas cidades

    (Budapeste) e algumas ruas (a rua Barata Salgueiro em Lisboa) so coisas

    espacialmente descontnuas nesse sentido. Outros exemplos de coisas

    espacialmente descontnuas so o Imprio Romano e o relgio desmontado que

    est na mesa de trabalho do relojoeiro.

    Concluso 1. Os universais (ou pelo menos alguns universais) so, ou podem

    ser, coisas espacialmente descontnuas.

    Premissa 3. S coisas que possuam partes espaciais podem ser espacialmente

    descontnuas.

    A razo a de que uma coisa s pode ocupar regies distintas do espao em

    virtude de possuir partes componentes que ocupem na ntegra cada uma dessas

    regies. Assim, todos os exemplos antes introduzidos de coisas espacialmente

    descontnuas so exemplos de coisas compostas por partes espaciais: Portugal

    est disseminado pelo espao na medida em que tem partes (Aores, Madeira e

    Continente) que ocupam regies no sobrepostas do espao.

  • Premissa 4. Os universais so coisas repetveis (pelo menos alguns). Mas,

    enquanto coisa repetvel, um universal (qualquer universal) no uma coisa que

    possa possuir partes espaciais.

    A razo a de que a repetibilidade implica que cada universal esteja presente na

    ntegra, e no apenas parcialmente, em cada um dos seus exemplos: a Brancura

    repetvel em virtude de ser numericamente a mesma propriedade que est

    presente em todas as coisas brancas. A posse de partes espaciais assim

    inconsistente com a repetibilidade: Portugal (o pas enquanto objecto fsico, no

    o pas enquanto ideia ou algo do gnero) no est seguramente presente por

    inteiro em cada uma das suas partes.

    Concluso 3. Os universais no so (qualquer um deles) coisas que sejam ou

    possam ser espacialmente descontnuas, no so de todo coisas como pases,

    relgios, cidades e ruas.

    Concluso 4. As concluses 1 e 3 so inconsistentes entre si, o que faz com que

    a prpria ideia de universal, a ideia de uma entidade inteiramente presente em

    stios distintos numa dada ocasio, seja incoerente

    O que que se pode dizer do Argumento da Incoerncia contra o realismo

    metafsico? Trata-se de um bom argumento?

    H duas linhas de rplica possvel ao argumento por parte de um realista

    metafsico (supondo que se trata de um argumento vlido, o que parece ser uma

    suposio razovel).

    Em primeiro lugar, os realistas metafsicos (ou pelo menos alguns realistas

    metafsicos) podem alegar que, tomada literalmente, a Premissa 1 do Argumento da

    Incoerncia falsa. Com efeito, de acordo com variedades do realismo metafsico como

    o realismo transcendente ou mesmo o realismo imanente fraco (ver a prxima seco

    deste Captulo), universais no so coisas das quais se possa dizer com verdade que

    estejam localizadas no espao, no sentido de ocuparem regies dadas do espao em

    ocasies dadas.

    Tomado literalmente, o predicado didico est presente em, o qual utilizado

    na Premissa 1, significa o mesmo que est localizado em (se um fumador est presente

    na sala, porque um fumador ocupa um certo lugar na sala). Mas, nesse caso, a

    Premissa 1 falsa e o Argumento da Incoerncia no corre (note-se que a interpretao

    literal exigida para fazer correr o argumento). Segundo tais verses de realismo, os

  • universais no esto localizados onde os seus exemplos esto localizados simplesmente

    porque no esto localizados onde quer que seja (supondo que uma coisa com uma

    localizao uma coisa que enche uma regio do espao). Assim, a fortiori, no o

    caso que os universais estejam, ou possam estar, presentes em stios distintos numa dada

    ocasio, o que falsifica a Premissa 1.

    Na melhor das hipteses, a Premissa 1 seria constitutiva de apenas algumas

    variedades de realismo metafsico, designadamente aquelas que atribuem de algum

    modo aos universais uma localizao no espao, em especial a variedade que

    designamos mais frente como realismo imanentista forte.

    Todavia, mesmo estas verses de realismo poderiam resistir ao Argumento da

    Incoerncia atravs do seguinte gnero diferente de rplica. A ideia a de que o

    argumento falha ao assumir erroneamente para universais princpios que apenas se

    aplicam a particulares, e, em especial, a particulares materiais. De facto, subjacente

    Premissa 3 do argumento est um dos chamados axiomas da localizao, o princpio

    aparentemente intuitivo que introduzimos atrs e que estabelece que uma e a mesma

    coisa no pode estar em dois stios ao mesmo tempo (o outro axioma da localizao o

    princpio no menos intuitivo de que duas coisas no podem estar num e no mesmo stio

    numa dada ocasio). Ora, como vimos, este princpio s plausvel se a coisa em

    questo for um particular material, um objecto tri-dimensional; ou seja, trata-se de uma

    verdade constitutiva do nosso conceito de um particular material. Assim, a Premissa 3

    do Argumento da Incoerncia s pode ser tomada como verdadeira se o universo das

    coisas a mencionadas for limitado a particulares materiais. Mas, nesse caso, o

    Argumento da Incoerncia acaba por incorrer numa petio de princpio, pois assume

    implicitamente aquilo que quer provar, que apenas h particulares: essa parece ser a

    nica maneira de tornar verdadeira a Premissa 3.

    Naturalmente, o realista metafsico fica livre de considerar essa premissa como

    falsa e defender a ideia de que coisas especiaiscomo universais, coisas que no tm de

    todo partes espaciais, podem de facto estar presentes ou localizadas em muitos stios ao

    mesmo tempo.

    O Argumento da Auto-Predicao

    Terminamos a nossa discusso do realismo metafsico com o Argumento da Auto-

    Predicao.

  • Este um argumento que visa conduzir a suposio de que h propriedades

    universais a um paradoxo, um paradoxo anlogo ao clebre Paradoxo de Russell para a

    Teoria dos Conjuntos. Esquematicamente, o Argumento da Auto-Predicao o

    seguinte.

    Premissa 1. Alguns universais no so auto-predicveis ou auto-

    exemplificveis, no sentido em que as prprias propriedades universais em que

    eles consistem no lhes so aplicveis com verdade.

    Por exemplo, a propriedade universal de ser um objecto concreto no auto-

    predicvel, pois no (supe-se) ela prpria um objecto concreto, mas sim um

    objecto abstracto (como qualquer propriedade). Do mesmo modo, tambm no

    auto-predicvel a propriedade universal de ser um gato.

    Premissa 2. Alguns universais so auto-predicveis ou auto-exemplificveis, no

    sentido em que as prprias propriedades universais em que eles consistem so-

    lhes aplicveis com verdade.

    Por exemplo, a propriedade universal de ser um objecto abstracto auto-

    predicvel, pois (supe-se) ela prpria um objecto abstracto (como qualquer

    propriedade). Do mesmo modo, a propriedade de ser uma propriedade mondica

    auto-predicvel, uma vez que ela prpria uma propriedade mondica.

    Concluso 1. Por conseguinte, no h nada de errado ou de ininteligvel na ideia

    de auto-predicao, ou auto-exemplificao, de uma propriedade universal.

    Premissa 3. Considere-se agora a propriedade universal de no ser uma

    propriedade auto-predicvel. Designemos este universal, o universal da No

    Auto-Predicabilidade, por P. Assim, por definio, uma coisa ou propriedade x

    exemplifica o universal P se e s se x no exemplificada por x.

    Podemos agora certamente perguntar se o nosso universal P ele prprio auto-

    predicvel, j que podemos fazer a mesma pergunta acerca de qualquer

    universal. Faamos a pergunta e suponhamos, primeiro, que P auto-predicvel.

    Ento P exemplifica o universal da No Auto-Predicabilidade, donde se segue

    que P no auto-predicvel. Suponhamos, em segundo lugar, que P no auto-

    predicvel. Ento P no exemplifica o universal da No Auto-Predicabilidade,

    donde se segue que P auto-predicvel.

    Concluso 2. Segue-se que P auto-predicvel e que P no auto-predicvel, o

    que uma contradio.

  • O que que se pode dizer do Argumento da Auto-Predicao? Trata-se de um

    bom argumento?

    No se trata manifestamente de um bom argumento. Com efeito, o realista

    metafsico tem ao seu dispor uma maneira simples de bloquear o argumento: alegar que

    a Auto-Predicabilidade e a No Auto-Predicabilidade no so universais, pois nem

    sequer se trata de propriedades e s propriedades podem ser universais. A concluso a

    extrair do paradoxo da auto-predicao para propriedades simplesmente a de que no

    h de todo qualquer propriedade como a propriedade da no auto-predicabilidade. Tal

    como a concluso a extrair do Paradoxo de Russell a de que no h de todo qualquer

    classe como a classe de todas as classes que no pertencem a si mesmas.

    Por conseguinte, o Argumento da Auto-Predicao s constituiria uma ameaa

    sria para aquelas posies que defendem a ideia de que todo o predicado mondico

    dotado de sentido, e assim tambm o predicado no auto-predicvel, exprime ou

    denota uma correspondente propriedade universal. Mas esta ideia no constitutiva do

    realismo metafsico, na medida em que a sua adopo no de todo mandatria em

    qualquer forma de realismo metafsico, incluindo mesmo as variantes platonistas e

    transcendentistas de realismo. Assim, a lio a tirar pelo realista metafsico do

    Argumento da Auto-Predicao precisamente a de que nem todo o predicado

    mondico dotado de sentido exprime ou denota um universal.

    6. Variedades de Realismo

    Nesta seco final queremos fazer o seguinte. Em primeiro lugar, introduzir trs

    problemas bsicos acerca da natureza dos universais, entendidos como propriedades

    numericamente idnticas exemplificadas por objectos numericamente distintos. Em

    segundo lugar, caracterizar trs tipos de disputas acerca desses problemas no interior do

    realismo metafsco, a doutrina de que h universais, disputas essas que do origem a um

    conjunto de variedades distintas de realismo. Finalmente, identificar algumas das

    conexes existentes entre os problemas e disputas em questo.

    Os trs problemas acerca da natureza dos universais so os seguintes.

    Problema 1: A Localizao dos Universais. So os universais localizveis no

    mundo fsico, no espao-tempo? Esto os universais situados no mundo povoado pelos

    particulares materiais (mesas, cavalos, pessoas) que em muitos casos os exemplificam?

    Ou pertencem os universais a um mundo parte, um mundo sem qualquer conexo com

  • o mundo fsico, um mundo povoado por e apenas por objectos abstractos, objectos no

    situveis no espao-tempo?

    A alternativa aqui entre o mundo fsico e aquilo a que Frege chamou o 3

    Reino, um domnio de coisas que nem so fsicas (o 1 Reino) nem so mentais (o 2

    Reino): as coisas do 3 Reino so auto-subsistentes e independentes da mente e da

    linguagem. Esto os universais no espao-tempo ou povoaro eles algo semelhante ao

    Paraso de Plato, um putativo sector da realidade habitado por Formas ou Ideias?

    Problema 2: A Exemplificao dos Universais. Est a existncia de universais

    dependente da existncia de coisas que os exemplifiquem? Ser que um universal s

    existe se exemplificado?

    So os universais objectos ontologicamente dependentes, objectos cuja

    existncia condicionada pela existncia de objectos de outros gnero (supondo que os

    seus exemplos so em alguns casos objectos de outro gnero)? Est, em especial, a

    existncia de universais dependente da existncia de particulares que os exemplifiquem?

    Teria Aristteles razo quando disse que se no houvesse coisas brancas no haveria a

    brancura? Ou ser a existncia de um universal algo incondicionado, independente da

    existncia ou no de exemplos do universal? a relao entre um universal e um seu

    possvel exemplo do mesmo gnero do que a relao entre um sorriso e uma pessoa que

    sorria, uma pea de relgio e um relgio, uma experincia e uma criatura senciente?

    Problema 3: O Modo de Ser ou Existir dos Universais. So os universais

    coisas como Deus e os nmeros naturais, existentes necessrios, coisas que existem de

    forma no contingente? Trata-se de coisas que no s existem de facto, como no

    poderiam no ter existido, ou seja, coisas tais que impossvel no existirem (no

    sentido de impossvel no qual no impossvel um corpo deslocar-se a uma

    velocidade superior da luz)?

    Ou sero os universais, pelo menos em alguns casos, coisas como Scrates,

    Lisboa e esta mesa de madeira, existentes contingentes? Podem os universais ser coisas

    como estas, coisas que existem de facto, mas poderiam no ter existido se o mundo no

    fosse o que ? E sob que condies que se poderia ento dizer que um universal

    poderia no ter existido?

    a existncia da brancura do mesmo gnero do que a existncia de Scrates?

    Scrates poderia no ter nascido e logo poderia no ter existido. E a brancura? Existiria

    se no houvesse coisas brancas?

  • cada universal um existente eterno, algo que existe para sempre? Ou so

    alguns universais existentes temporrios? Podem os universais ser coisas perecveis,

    coisas como esta folha de papel, coisas que no existem em pelo menos uma ocasio

    (por exemplo uma ocasio posterior sua eliminao por uma mquina recicladora)?

    Realismo Imanente versus Realismo Transcendente

    Os realistas metafsicos dividem-se em dois grandes grupos conforme a resposta

    que esto inclinados a dar ao problema 1, o problema da localizao dos universais.

    De um lado, h os adeptos do Realismo Imanente, os quais defendem a seguinte

    tese:

    (IMAN) Alguns universais (possivelmente todos os universais) esto situados

    no mundo fsico, no espao-tempo.

    Na terminologia escolstica, o realismo imanente defende a doutrina dos universalia in

    rebus (universais nas coisas).

    Do outro lado, h os adeptos do Realismo Transcendente, os quais defendem a

    seguinte tese:

    (TRANS) Nenhum universal est situado no mundo fsico, no espao-tempo.

    Na terminologia escolstica, o realismo transcendente defende a doutrina dos

    universalia ante rem (universais prvios s coisas)

    Comecemos por explorar a doutrina do realismo imanente. A primeira coisa a

    notar que este ponto de vista admite ainda duas verses, caracterizveis do seguinte

    modo:

    (a) uma verso forte, a tese de que todos os universais esto no mundo fsico;

    (b) uma verso fraca, a tese de que apenas alguns universais esto no mundo

    fsico.

    H trs observaes imediatas a fazer acerca da verso forte do realismo

    imanente. Primeiro, a forma de imanentismo mais habitualmente proposta na literatura

    recente na rea (ver, por exemplo, Armstrong 1989). Segundo, naturalmente a verso

    mais vulnervel, na medida em que a mais forte. Terceiro, a verso de imanentismo

    que compatvel com o naturalismo estrito, ou melhor, com a consequncia desta

    concepo segundo a qual tudo o que existe est localizado no espao-tempo, no mundo

    fsico. Este ltimo aspecto pode ser usado, e tem sido usado, para argumentar a favor da

    defesa da verso forte de imanentismo, pois a verso fraca da doutrina alegadamente

  • incompatvel com o naturalismo e este, alega-se, algo que tem de ser preservado a

    todo o custo.

    Note-se que seja qual for o sentido que se queira dar ideia de que os universais

    esto localizados no mundo fsico, a verso forte de imanentismo incompatvel com a

    admisso de universais exemplificados por particulares a