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UNIMAR UNIVERSIDADE DE MARÍLIA MESTRADO EM LETRAS ANTONIA APARECIDA FLORES SAGGIORO OS DISFARCES DO DISCURSO POLÍTICO: UMA LEITURA DAS OBRAS DE JOSÉ CARDOSO PIRES E JOSÉ J. VEIGA MARÍLIA 2011

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UNIMAR – UNIVERSIDADE DE MARÍLIA

MESTRADO EM LETRAS

ANTONIA APARECIDA FLORES SAGGIORO

OS DISFARCES DO DISCURSO POLÍTICO:

UMA LEITURA DAS OBRAS DE JOSÉ CARDOSO PIRES E JOSÉ J. VEIGA

MARÍLIA

2011

ANTONIA APARECIDA FLORES SAGGIORO

OS DISFARCES DO DISCURSO POLÍTICO:

UMA LEITURA DAS OBRAS DE JOSÉ CARDOSO PIRES E JOSÉ J. VEIGA

Dissertação apresentada à Universidade de

Marília (UNIMAR), Faculdade de

Comunicação, Educação e Turismo, para

obtenção do Título de Mestre em Letras, Área

de concentração em Literatura Comparada.

Orientadora: Profa Dra. Ana Maria Gottardi.

MARÍLIA

2011

Saggioro, Antonia Aparecida Flores

Os disfarces do discurso político: uma leitura das obras de José

Cardoso Pires e José J. Veiga -- Marília: UNIMAR, 2011.

186p.

Dissertação (Mestrado em Letras) -- Curso de Letras da Universidade

de Marília, Marília, 2011.

1. Literatura Comparada 2. Realismo Mágico 3. Ironia 4. Paródia

I. Saggioro, Antonia Aparecida.

CDD -- 800

Página Institucional

Universidade de Marília - UNIMAR

Reitor Dr. Márcio Mesquita Serva

Pró-reitoria de Pesquisa e Pós-graduação

Pró-reitora Profª. Drª. Suely Fadul Villibor Flory

Faculdade de Ciências da Saúde

Diretor Prof. Dr. Armando Castello Branco Junior

Programa de Pós-graduação em Letras

Coordenadora Dra. Suely Fadul Villibor Flory

Orientadora: Dra. Ana Maria Gottardi

UNIMAR – UNIVERSIDADE DE MARÍLIA

NOTAS DA BANCA EXAMINADORA DA DEFESA DE MESTRADO

ANTONIA APARECIDA FLORES SAGGIORO

OS DISFARCES DO DISCURSO POLÍTICO:

UMA LEITURA DAS OBRAS DE JOSÉ CARDOSO PIRES E JOSÉ J. VEIGA

Data da Defesa: 17 de março de 2011.

Banca Examinadora

Prof. Dr. Ana Maria Gottardi

Avaliação: nota 10,0 (dez) Assinatura: ___________________

Prof. Dr. Márcia Valéria Zamboni Gobbi

Avaliação: nota 10,0 (dez) Assinatura: ___________________

Prof. Dr. Suely Fadul Villibor Flory

Avaliação: nota 10,0 (dez) Assinatura: ____________________

AGRADECIMENTOS

Primeiro agradeço a Deus porque criou todas as coisas e as sustenta. Sua presença nesses dias,

foi determinante. Obrigada Senhor.

A meu marido Valter. Um legítimo companheiro que também me sustentou e suportou neste

período, e posso dizer que não foi uma tarefa fácil. Obrigada. Você é o amor da minha vida.

A meus filhos Pietro e Luigi, tudo na minha vida. Foram privados do convívio, dos passeios e

também suportaram com bravura todo o período de minha dedicação ao trabalho. Grata. Amo

vocês.

A Dra. Ana Maria Gottardi minha orientadora que realizou muito mais que sua função, diria

que concebeu comigo o sonho que se transformou em projeto de aproximar Veiga e Cardoso

Pires, e a quatro mãos deu vida a um trabalho especial que agora compartilhamos com os

leitores.

À Claudia Martha amiga sempre, com afinidade de irmã, imprescindível ajuda.

A todos que de alguma forma contribuíram, os meus sinceros agradecimentos: família

ouvindo lamúrias e não entendendo nada, em especial à Ana Saggioro ouvindo sempre com

infinita paciência, à tia Raquel Flores aceitando as desculpas de não poder ficar mais tempo

com meus sobrinhos, à Márcia Nabeiro amiga para toda a vida, à minha mãe e minha irmã

Bárbara que mesmo longe, torceram sempre por mim, à Hicléa companheira de viagem,

amizade verdadeira, à Magda desabafos e conhecimentos compartilhados, à professora

Eleusis jamais esquecida, ao pessoal da secretaria da Unimar a simpatia.

Se porventura tiver me esquecido de mencionar alguém ou de dar a alguém o crédito que lhe é

de direito, foi porque a ―Máquina de Torturar Palavras‖ de Salazar, certamente, não permitiria

a divulgação do nome nem da verdadeira história sem sanções ou reprimendas, tampouco os

fiscais de Taitara permitiriam tal insubordinação, mas, se vocês olharem lá fora, para os

muros, verão escrito em letras garrafais simplesmente a verdade... aquela que vocês já

sabem...

Para ser grande, sê inteiro: nada

Teu exagera ou exclui.

Sê tudo em cada coisa. Põe quanto és

No mínimo que fazes.

Assim em cada lago a lua toda

Brilha, porque alta vive

Fernando Pessoa

RESUMO

Esta dissertação faz uma análise comparativa entre o conto ―Dinossauro Excelentíssimo‖, do

escritor português José Cardoso Pires, e o romance Sombras de Reis Barbudos, do brasileiro

José J. Veiga. Nosso objetivo foi confrontar os discursos dos dois autores, estabelecendo as

correspondências entre as obras, suas semelhanças e as diferenças. Aproximamos os dois

textos por apresentarem ambos um discurso cifrado, encoberto, típico de uma época de

ausência de liberdade de expressão, que caracteriza o momento histórico em que ambos foram

escritos. A análise da estrutura linguística revela o uso de recursos estilísticos que favorecem

uma leitura pelo avesso, como a ironia, a paródia, a sátira, a literatura fantástica ou o realismo

mágico, ou seja, os textos lançam mão de estruturas intertextuais. Faz-se a análise do texto de

Cardoso Pires, observando como acontecem as ironias, seu processo paródico e satírico da

ditadura salazarista, seguida da análise do romance brasileiro, salientando, além da ironia, da

paródia e da sátira, o parentesco com o realismo mágico latino-americano. Pautada nos

princípios da Literatura Comparada, esta pesquisa evidenciou o diálogo intertextual entre as

obras, objetivando atingir o escopo do trabalho, qual seja, desvendar os recursos de que

lançam mão os autores para encobrir e disfarçar suas mensagens; para narrar, numa

linguagem às avessas, os períodos críticos pelos quais passavam suas pátrias (Brasil e

Portugal) no momento de escrita de seus textos.

Palavras-chave: José Cardoso Pires. José J. Veiga. Ironia. Paródia. Sátira. Literatura

Comparada. Realismo Mágico.

Abstract

This dissertation analyzes comparatively the short story ―Dinossauro Excelentíssimo‖,

written by the Portuguese author José Cardoso Pires and the novel ―Sombras de Reis

Barbudos‖, written by the Brazilian author José J. Veiga. Our main objective was to

compare both authors´ discourse and establish similarities and differences. Both texts bring

a coded discourse, full of concealed information, typical of a time when there was lack of

freedom to express opinions – a characteristic of the period when both texts were written.

The analysis of the linguistic structure reveals the use of stylistics resources which lead to a

contrary reading with resources such as irony, parody, satire, fantastic literature or magical

realism. In other words, the texts contain intertextual structures. Cardoso Pires´ text is

studied by observing how the ironies happen, the parodic and satiric process of mentioning

Salazar´s dictatorship, followed by the analysis of the Brazilian novel, which emphasizes

not only irony, parody and satire, but also its relationship with the magical realism in

Latin America. Based on the principles of the comparative literature, the intertextual

dialogue between the texts was shown, aiming to reach the purpose of this research, which

is to unveil the resources used by the authors to hide and disguise their messages: to narrate,

in an inverted language, the critical moment experienced by their own countries (Brazil and

Portugal).

Key words: José Cardoso Pires, José J. Veiga, Irony, Parody, Satire, Comparative

Literature, Magical realism

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 10

CAPÍTULO 1 FUNDAMENTOS TEÓRICOS ............................................................................. 13

1.1 JOSÉ CARDOSO PIRES .............................................................................................. 14

1.1.2 JOSÉ J. VEIGA ........................................................................................................... 18

1.2 LITERATURA COMPARADA .................................................................................... 21

1.2.1 INTERTEXTUALIDADE .......................................................................................... 24

1.2.2 PARÓDIA ................................................................................................................... 31

1.2.3 IRONIA ...................................................................................................................... 36

1.2.4 SÁTIRA ...................................................................................................................... 45

CAPÍTULO 2 "DINOSSAURO EXCELENTÍSSIMO‖ .............................................................. 49

2.2 RECURSOS DO DISCURSO – IRONIA, PARÓDIA, SÁTIRA .................................. 54

2.2.1 MEXILHÕES NO REINO DO DINOSSAURO ......................................................... 56

2.2.2 INTERTEXTUALIDADE COM CONTOS DE FADAS .......................................... 60

2.2.3 O INTERTEXTO COM A CULTURA POPULAR .................................................... 64

2.2.4 DÊ ERRES / PIDE / CENSURA ................................................................................. 71

2.2.5 SALAZAR E AS PALAVRAS / CÂMARA DE TORTURAR PALAVRAS ............ 75

2.2.6 EUFEMISMOS DO DISCURSO OU MANEIRAS DE ENGANAR O POVO ........ 81

2.2.7 DINOSSAURO X IGREJA ........................................................................................ 91

2.2.8 DINOSSAURO MORTE PRIMEIRA / MORTE SEGUNDA ................................. 101

2.2.9 ESTÁTUA ................................................................................................................. 105

2.3 DAS IRONIAS MAIS SIGNIFICATIVAS EM ―DINOSSAURO EXCELENTÍSSIMO‖

............................................................................................................................................ 110

CAPÍTULO 3 SOMBRAS DE REIS BARBUDOS ...................................................................... 114

3.1 DAS IRONIAS EM SOMBRAS DE REIS BARBUDOS ............................................... 121

3.2 O INTERTEXTO COM OS DITADOS POPULARES .............................................. 129

3.3 DIMINUTIVOS IRÔNICOS ....................................................................................... 134

3.4 O MÁGICO UZK ........................................................................................................ 136

3.5 OS FISCAIS E A REPRESSÃO / MUROS ................................................................ 142

3.6 PESSOAS VOANDO ................................................................................................... 151

3.7 SOMBRAS DE REIS BARBUDOS: HIPÓTESES SOBRE O TÍTULO ....................... 155

CAPÍTULO 4 DINOSSAURO E REIS BARBUDOS OS DISFARCES DO DISCURSO . 159

4.1 TÍTULOS ..................................................................................................................... 159

4.2 NARRADOR E NARRATÁRIO ................................................................................ 161

4.3 REVELANDO O DISCURSO ENCOBERTO ........................................................... 172

4.4 DITADOS POPULARES ............................................................................................ 179

4.5 MANEIRAS DE DISTRAIR E ENGANAR O POVO ............................................... 181

4.6 OUTROS RECURSOS DE LINGUAGEM ................................................................ 182

4.7 INTERTEXTO BÍBLICO ............................................................................................ 183

4.8 OS REINOS E AS CIDADES ..................................................................................... 184

CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................... 186

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................... 190

10

INTRODUÇÃO

O nome do autor português José Cardoso Pires foi mencionado durante uma aula para

cumprimento dos créditos obrigatórios do curso de Mestrado, ministrada pela professora Dra.

Ana Maria Gottardi, que versava sobre narrativas portuguesas de autores modernos.

Entretanto, José Cardoso Pires não era um desconhecido para nós, pois durante um curso de

Especialização, estudamos uma de suas obras mais conhecidas, O Delfim. Por outro lado, a

indicação da professora fez com que iniciássemos a leitura de alguns contos da coletânea

Jogos de Azar; em seguida, lemos A República dos Corvos: veio logo o encantamento pela

linguagem extremamente singular desse autor e a curiosidade analítica de estudar em

profundidade ―Dinossauro Excelentíssimo‖. Vimos que o texto nos ofereceria um rico

material para uma análise dos recursos da ironia, da sátira e da paródia.

Uma vez que o foco da pesquisa do Mestrado em Letras da Unimar é Literatura

Comparada, pensamos em outro autor que também denunciasse as atrocidades dos governos

autoritários; lembramos então de Cavalinhos de Platiplanto e A Hora dos Ruminantes, do

brasileiro José J. Veiga, para finalmente constatar que Sombras de Reis Barbudos, do mesmo

autor, encaixava-se melhor em nosso objetivo, porque trabalha com questões de opressão e de

violência contra os seres humanos. Estava assim completo o dueto de autores e estabelecido

nosso objetivo principal, que era comparar as duas obras para tentar definir a estrutura de

textos que se disfarçam para driblar os rigores da censura.

Essa nossa proposta de análise será detalhada no 1º Capítulo, Fundamentos Teóricos,

em que procuraremos estabelecer com clareza nossas metas e definir as leituras teóricas que

servirão de base para nossas análises, evidenciando o viés textual chamado de literatura de

resistência, pelo qual os textos focalizados bem podem ser pautados. Com o objetivo de

contextualizar os autores, faremos um breve comentário sobre sua biografia e bibliografia,

enfatizando como estiveram sempre engajados com as causas de seu tempo, por meio de uma

ficção que, ou direta ou indiretamente, lançando mão da ironia, da sátira, do fantástico,

sempre teve como cerne o contexto social circundante.

Entre as leituras teóricas, salientaremos os objetivos e métodos dos estudos

comparados, bem como as atuais tendências desses estudos, privilegiando teóricos como

11

Sandra Nitrini, em Literatura Comparada – História, Teoria e Crítica (1997) e também Tânia

Franco Carvalhal, com o livro Literatura Comparada (2006). Enfocaremos ainda Linda

Hutcheon, autora norte-americana, cujos estudos a respeito da paródia e da ironia, em Uma

Teoria da Paródia (1985), foram essenciais ao nosso trabalho; o crítico brasileiro Affonso

Romano de Sant‘Anna e sua bem estruturada teoria sobre a paródia, a paráfrase e a

estilização, revelada no livro Paródia, Paráfrase & Cia. (2008); Gérard Genette, com

Palimpsestes (La Littérature au Second Degré) (1982), com a base teórica a respeito da

intertextualidade, paratextualidade, transcendência textual, hipertextualidade e

arquitextualidade; e finalmente, de grande valia para nosso estudo, um artigo de Laurent

Jenny, ―A Estratégia da Forma‖, publicado na Revista Poétique (1979).

Dedicaremos um item para o esclarecimento do conceito de paródia, ainda baseados

em Gérard Genette e nas valiosas considerações de Linda Hutcheon, que vê a paródia como o

gênero por excelência da literatura atual, devido a seu caráter de autorreflexividade, de

repetição com diferença crítica.

Também discutiremos o conceito de ironia, pois, como um discurso disfarçado, a

ironia serve muito bem aos propósitos dos autores estudados. Para isto, utilizaremos o texto

de Muecke, Ironia e o Irônico (1995), bem como dois outros de Linda Hutcheon, que

fornecem um amplo aparato teórico para sistematizar as questões e nuances da ironia, Teoria

e Política da Ironia (2000) e Poética do Pós-Modernismo (1991).

Finalmente, definiremos o recurso da sátira, estabelecendo seu parentesco com a

ironia. Para isso, utilizaremos o livro O Resgate da Dissonância (1981), de Ângela Maria

Dias, e o esclarecedor artigo ―Sobre a Sátira: Contribuições da Teoria Literária Alemã na

Década de 60‖, de Paulo Astor Soethe (1998).

O capítulo 2 será dedicado a ―Dinossauro Excelentíssimo‖, com uma breve explanação

a respeito do conto e do curioso episódio que possibilitou sua passagem livre pela ditadura da

época, bem como uma contextualização do momento histórico português. O capítulo será

dedicado, principalmente, à análise dos recursos da ironia, da paródia e da sátira, utilizados na

estrutura narrativa do conto, dando ênfase ainda à intertextualidade com contos de fadas e

com a cultura popular.

No capítulo 3 analisaremos Sombras de Reis Barbudos, delineando seu contexto

histórico e situando o texto na esteira da literatura fantástica e do realismo mágico da

12

literatura latino-americana, valendo-nos de um autor de referência no assunto, Tzvetan

Todorov, em Introdução à Literatura Fantástica (1975); Filipe Furtado, no livro A

Construção do Fantástico (1980), também servirá de referência, e finalmente, Selma Calasans

Rodrigues, em O Fantástico (1988), que muito elucida a respeito do realismo mágico de

origem latino-americana, vertente que melhor norteia o estilo de José J. Veiga. Em seguida,

analisaremos a questão da ironia na obra, principalmente a questão dos diminutivos irônicos,

além da intertextualidade com os ditados populares.

O capítulo 4 fará uma comparação entre os textos dos autores português e brasileiro,

procurando descobrir correspondências entre eles, suas semelhanças e peculiaridades,

objetivando atingir o escopo de nossa análise, qual seja, desvendar os recursos de que lançam

mão Cardoso Pires e J. J. Veiga para encobrir e disfarçar suas mensagens; para narrar, numa

linguagem às avessas, o momento crítico pelo qual passavam seus países no momento da

escrita de seus textos.

Desse modo, procuraremos estruturar nossa análise objetivando desconstruir, de modo

gradual e minucioso, os textos dos autores focalizados, a fim de tentar uma leitura crítica

detalhada, que evidencie os recursos linguísticos e retóricos mobilizados para realizar uma

mensagem cifrada, que iluda os censores e esclareça os leitores.

13

CAPÍTULO 1

FUNDAMENTOS TEÓRICOS

A boa prosa tem três estágios: o

musical, em que é composta; o

arquitetônico, em que é construída;

e o têxtil, em que é tramada.

Walter Benjamin, apud Revista

Língua Portuguesa, nº 52, p.7

Este trabalho tem por objetivo realizar uma leitura comparativa entre o conto

―Dinossauro Excelentíssimo‖1, de José Cardoso Pires, autor que, embora se enquadre no Neo-

Realismo português da década de 1950, possui um traço distintivo importante: o escritor

adaptou as técnicas das narrativas norte-americanas à situação histórico-cultural portuguesa, e

por esse motivo inovou a literatura neo-realista naquele país, e o romance Sombras de Reis

Barbudos, de José J. Veiga, que estreou na literatura brasileira em 1959, com a publicação de

Os cavalinhos de Platiplanto, e é apontado como um dos introdutores do realismo mágico na

literatura brasileira.

Nosso objetivo é, por meio da análise das narrativas, estabelecer as semelhanças entre

os autores: temática, comprometimento político revelado através da denúncia dos abusos e das

opressões sofridas pelas minorias, uso de alegorias; bem como as diferenças: estilo de

escritura, recursos literários utilizados na construção do texto, gênero narrativo predominante.

É interessante notar como a denúncia da opressão está presente nas obras dos dois

autores ainda que de forma diferente. Cardoso Pires apresenta uma fábula irônica satírica para

contar os horrores e absurdos da ditadura Salazarista em Portugal; compara o ditador

português a um dinossauro decrépito, vaidoso e opressor, utilizando-se da ironia e do

sarcasmo para fazer sua denúncia social. Já José J. Veiga, em estilo menos ácido, trata da

1 Neste trabalho os títulos de contos serão sinalizados com aspas duplas e os títulos de livros serão

escritos em itálico.

14

opressão do regime militar no Brasil, enveredando pela literatura fantástica, para mostrar

como o governo vai tirando nossa liberdade de escolha e como aceitamos tudo passivamente.

Já os animais presentes nas obras dos dois autores são alegorias que nos revelam muito do

caráter das personagens ou das situações de opressão vividas por elas. Estilos e discursos

diferentes com a mesma intenção: denunciar uma realidade social opressiva e absurdamente

autoritária.

Além de denúncias, os textos de ambos possuem ainda outra função, talvez a mais

importante e que somente a intertextualidade pode exercer ou despertar, que é a capacidade de

nos fazer rir ironicamente de um ditador dinossauro e decrépito e de seus delírios despóticos

ou nos encantar com a possibilidade de, por exemplo, literalmente sair voando de nossas

situações difíceis.

Esse tipo de literatura não aceita a situação vigente, pelo contrário, coloca-se como

instrumento de resistência às opressões e injustiças estabelecidas pelos sistemas políticos e

sociais. Literatura que exerce uma força contrária a algo que ela considera inadmissível

porque oprime, exclui ou promove a injustiça. Segundo Alfredo Bosi:

Resistência é um conceito ético, e não estético. O seu sentido mais profundo apela

para a força da vontade que resiste a outra força, exterior ao sujeito. Resistir é opor

força própria à força alheia. O cognato próprio é insistir; o antônimo familiar é

desistir. (BOSI, 2002, p. 118)

De acordo com o autor, a literatura e a arte de forma geral teriam um papel de

resistência porque revelam a vontade do artista de denunciar os problemas sociais, as

opressões e injustiças, enfim, os horrores que por vezes o ser humano é capaz de cometer.

1.1 JOSÉ CARDOSO PIRES

Se o sonho é já por si uma

memória, sem memória poderá o

indivíduo sonhar?

15

Cardoso Pires, 1997, p. 66

José Augusto Neves Cardoso Pires nasceu a 2 de outubro de 1925, na aldeia de Peso,

no distrito de Castelo Branco. Fixa residência em Lisboa, morando nesta cidade a maior parte

de sua vida, é aí morrendo a 26 de outubro de 1998.

O escritor inicia seus estudos no Liceu Camões e frequenta Matemáticas Superiores na

Faculdade de Ciências de Lisboa, curso que não chega a concluir. Dedica-se, então, à

tradução e ao jornalismo, iniciando sua carreira na revista Eva, em 1949; depois irá dirigir

também a revista Almanaque.

Os Caminheiros e Outros Contos é o primeiro livro do escritor, publicado e logo

retirado do mercado devido à censura. Em 1952 publica Histórias de Amor, que nem mesmo o

título inocente livrou da censura da época; livro e autor foram apreendidos pela PIDE (Polícia

Interna de Defesa do Estado).

A morte do irmão, num acidente de aviação, quando trabalhava no serviço militar, deu

origem ao romance, a ele dedicado, Os Hóspedes de Job, declarado protesto contra a guerra

fria e a colonização militar. Com este romance Cardoso Pires ganha o prêmio Camilo Castelo

Branco, da Sociedade Portuguesa de Escritores.

De 1966 a 1968 dedica-se ao jornalismo, fundando e dirigindo suplementos do Jornal

do Fundão e do Diário de Lisboa. É também em 1968 que publica O Delfim, romance

geralmente considerado como sua obra-prima.

Em 1972 publica o conto ―Dinossauro Excelentíssimo‖ pela Editora Arcádia, com

ilustrações e capa de João Abel Manta. A obra foi posteriormente incluída no livro A

República dos Corvos (1988), cuja temática é a crítica ao governo de Salazar e a expectativa

de uma Revolução que marcaria o recomeço da História de Portugal.

Após a queda da ditadura em 1974, Cardoso Pires volta-se para analisar o submundo

da PIDE e os efeitos psicológicos de terror causados por ela. Assim, em 1983 recebe pelo

romance A Balada da Praia dos Cães (1982), o Grande Prêmio do Romance e Novela, da

Associação Portuguesa de Escritores; o romance é apontado como o livro do ano pelo jornal

16

Sunday Times.2 Alexandra Alpha, romance de (1987), também focalizando a Revolução dos

Cravos, é premiado pela Associação Brasileira de Críticos.

Em 1996, José Cardoso Pires sofre um acidente vascular-cerebral e relata essa

angustiante experiência no emocionante De Profundis, Valsa Lenta (1997). Recebe dois

prêmios, dentre eles o Prêmio Pessoa. Seu último livro é Lisboa, Livro de Bordo (1997).

Reconhecido como um dos mais importantes escritores portugueses da segunda

metade de século XX, caracteriza-se pela diversidade e inovação de sua obra, pois cada novo

projeto literário inaugura uma fase e um ciclo diferentes em sua trajetória de escritor.

Identifica-se com o movimento neorrealista português, porque vivencia a ditadura salazarista,

influência marcante que determina sua preocupação social, revelando uma postura política de

resistência ao regime autoritário vigente. Cardoso Pires revela e desvenda, de forma precisa,

as questões da contingência humana de seu tempo, construindo seus textos com uma

linguagem ao mesmo tempo simples, irônica, sofisticada e principalmente bem humorada.

Atuante e preocupado com as questões de seu tempo, questionou o próprio fazer

literário, rompeu com linearidades estabelecidas por séculos de tradição, admitiu, por

exemplo, vários focos narrativos em suas histórias, defendendo que não há uma única visão

dos fatos. Inovou na questão do narrador, já não mais previsível, e principalmente foi um

defensor da ―obra aberta‖, ou melhor, o leitor é que tem que construir o sentido do texto,

presumir o final da história, ao escritor cabe o recorte crítico do real. O escritor revela um

pouco de sua produção em entrevista ao Diário de Notícia de Lisboa: ―(...) prefiro, em

literatura, pecar por defeito a pecar por excesso. Prefiro dizer de menos do que dizer de mais,

porque, se digo de mais, mato o leitor, o leitor apaga-se. Apaga-se a sua suspeita". (DNA,

21/12/1996).

Ou ainda: ―(...) a ficção só cai bem quando o leitor sente uma força criativa que o

ultrapassa. Enquanto o autor está dentro dele e ele está a dominar a situação, [...] o leitor não

vai lá. O leitor, de repente, tem de se render..." (DNA, 21/12/1996).

Assim, o texto de Cardoso Pires caracteriza-se por uma forma simples e enxuta de

escrever, o que o aproxima de uma narrativa cinematográfica. Estilo conciso, porém,

meticuloso, sua meta é a economia e sua maior preocupação, limpar o texto deixando somente

2 As informações sobre os prêmios recebidos pelo autor foram extraídas do site (acessado em

18/05/2010): http://www.citi.pt/cultura/literatura/romance/cardoso_pires/

17

o essencial: ―por isso é que sempre procurei não uma máquina de escrever, mas uma

"máquina de apagar‖, como diz no documentário realizado para a RTP, em 1998.

Com relação às temáticas, frequentemente se valendo da ironia, trata de Portugal e dos

portugueses. Transita do político ao existencial, em busca do autoconhecimento, sempre com

um discurso forte, crítico, irônico, da sociedade e de si mesmo. Maria Lúcia Lepecki observa

que:

(...) descodificar bem o romance cardosiano é sempre conhecer mais um pouco da

história nacional, tanto na sua objetividade – isto é, naquilo que podemos encontrar

em historiadores encartados - como, sobretudo, na sua subjetividade: quer dizer, no

modo como uma comunidade vive, entende e mitifica o seu percurso. (in:

MACHADO, org, 1996, p.387)

O escritor, além de ter vivenciado toda a ditadura salazarista, também foi influenciado

pelo movimento pós-moderno, época de grandes transformações sociais promovidas pelas

ideias de filósofos como Sartre e Simone de Beauvoir. Testemunhou a mudança social

ocasionada pelo existencialismo francês que salientava a importância do outro para a

realização do ser e também a bombástica constatação de que o ‗inferno‘ são os outros.

Cardoso Pires também presenciou as transformações ocorridas no foco de importância das

coisas, a súbita e crescente valorização dos objetos e do possuir em detrimento do ser. A

coisificação do homem, preso ao cotidiano e as suas ninharias, perdendo a sua essência

humana, interiormente fragmentado e caótico. Como afirma Linda Hutcheon em seu livro

Poética do Pós-Modernismo:

(...) o romance pós-modernista questiona toda aquela série de conceitos

interrelacionados (...) de humanismo liberal: autonomia, transcendência, certeza,

autoridade, unidade, totalização, sistema, universalização, centro, continuidade,

teleologia, fechamento, hierarquia, homogeneidade, exclusividade, origem.

(HUTCHEON, 1991, p. 84)

Essa fragmentação também é retratada na literatura, na maneira de escrever, inspirada

pelo Nouveau Roman francês: narração sem linearidade, sequência ou ordem, aparentemente

18

inacabada, e, principalmente, consciente de que tudo pode ser questionado: instituições,

religião, filosofias, ciências, psicologias. Enfim, a consciência relativista de que a verdade

depende do ponto de vista de cada um. Lemos ainda no estudo acima citado: ―O pós-

modernismo caracteriza um desafio às idéias que são admitidas como certas, mas também

reconhece o poder dessas idéias e se dispõe a explorar esse poder com o objetivo de realizar

sua própria crítica.‖ (HUTCHEON, 1991, p. 264)

E para fazer sua crítica, o pós-modernismo usa frequentemente da paródia, forma de

expressão recorrente nesta época. A autorreflexividade promovida pela paródia possibilita um

duplo movimento de referência, ou seja, permite ao texto ser contemporâneo e também

estabelecer relações complexas e imprescindíveis com o contexto social do qual emergiu.

Podemos dizer que essa estética diminuiu a distância entre a arte da elite e a arte

popular, uma vez que, com ela, veio o reconhecimento das diferenças e das contradições, bem

como a possibilidade de dar uma ‗voz‘ às minorias oprimidas.

1.1.2 JOSÉ J. VEIGA

É por isso que os meus livros têm

sido assim nesse tom, que até se

convencionou chamar de realismo

mágico, dizem uns, „realismo

fantástico‟, dizem outros. Eu vejo

nisso uma contradição,

principalmente na expressão

“realismo fantástico”, porque se é

real, como é que pode ser

fantástico?

Armoni Prado, 1989, p. 28

José Jacintho Pereira Veiga (nascido em 1915 e morto em 1999) atribuía a escolha de

seu nome ‗artístico‘ ou literário a Guimarães Rosa que, adepto da numerologia e também

embasado em motivos estilísticos, sugeriu José J. Veiga para a publicação do livro de estréia

19

Os Cavalinhos de Platiplanto, em 1959. José J. Veiga tinha então 44 anos; os outros 40 anos

de vida consolidaram uma carreira literária de mais de 15 títulos.3

Sua segunda publicação foi a novela A Hora dos Ruminantes, reescrita sete vezes, até

sua edição final, em 1966. Em 1972, dá-se a publicação do livro que será objeto de estudo

deste trabalho, Sombras de Reis Barbudos, no período político que se iniciava em 1969,

quando uma Junta Militar escolhe o general Emílio Garrastazu Medici para governar o Brasil.

São os chamados ―anos de chumbo‖, os mais duros e repressivos da história do país.

CAMPEDELLI (1982) nos diz que é muito curioso observar que na obra de J. J. Veiga

o Brasil rural sempre aparece; suas histórias, na maioria das vezes, são ambientadas no campo

ou em cidades muito pequenas, por vezes bastante atrasadas, que sequer ouviram falar de

modernidade ou civilização moderna; e é sempre muito agradável a vida nestes lugares a

princípio. Porém, no caso de Sombras de Reis Barbudos, a vida pacata e tranquila é

surpreendida pela chegada de uma empresa que acenava com a possibilidade de progresso,

mas, que acaba por instaurar um regime de opressão na cidade. A respeito do estilo do autor

lemos:

O mundo que J. J. Veiga traz para as páginas de seus livros retrata bem esse povo

das ―cidades miúdas‖, como ele fala. Povo que ainda não foi atingido em cheio pela

dita civilização moderna e sequer ouviu falar em capitalismo. E, paradoxalmente,

trabalha para ele: é esse povo que toca os latifúndios, planta a terra, tange o gado.

(CAMPEDELLI, 1982 p. 95)

Veiga usa uma linguagem enxuta e rica para retratar essa gente simples. Escreve com a

naturalidade de quem conta uma história em uma roda de amigos. O ritmo de seu texto segue

a calmaria do ambiente da maioria de seus romances e contos, ou seja, o ritmo tranquilo e

pacato da vida do interior, nas cidades pequenas, segundo CAMPEDELLI (1982). Usa

palavras simples, porém exatas, para dizer grandes coisas; uma simplicidade complexa, só

alcançada por escritores de destaque, acreditava estar no mais simples a essência maior.

Atrás dessa simplicidade aparente da linguagem instaura-se, em suas obras, um certo

clima de tensão ou de opressão causada pela violência física ou moral que subjuga a todos,

cidades inteiras, que são cenários de suas histórias. Essa forma própria de denunciar situações

3 As informações foram extraídas da biografia escrita por Moacir Amâncio e publicadas no livro José

J. Veiga- Literatura Comparada.

20

opressivas, principalmente em se tratando do sertão, é percebida também nas obras de

Guimarães Rosa, para citar um brasileiro. Mas podemos perceber também, segundo

CAMPEDELLI (1982), certa afinidade com o tcheco Franz Kafka (romance do absurdo) e

com o inglês Aldous Huxley. J. J. Veiga, porém, possui um jeito muito próprio e pessoal de

denunciar realidades absurdas e opressivas vividas pelo homem e parece buscar inspiração em

sua infância rural e no mundo a sua volta.

A autora observa, ainda, na obra de J. J. Veiga, algumas situações onde o

‗estranhamento‘ se instaura, uma atmosfera de pesadelo que se revela para denunciar a

opressão política e social. O fantástico de Veiga serve para denunciar as situações dolorosas

em que os indivíduos sofrem algum tipo de opressão; o fantástico serve ao autor como recurso

para revelar a verdade.

Alucinação ou realidade, certo é que J. J. Veiga coloca suas personagens diante de

fatos totalmente inusitados e situações incompreensíveis impostas por sistemas estabelecidos

alheios à vontade delas. Se isso não fosse suficiente, esse mundo insólito está ainda dividido

em dois polos: o do opressor e o do oprimido. Em Sombras de Reis Barbudos, a Companhia

que se instaura na cidade oprime os habitantes que aceitam tudo passivamente; não há um

confronto, um questionamento da situação, há somente a fuga através do elemento

maravilhoso ou fantástico, que é a possibilidade de voar.

O narrador é outro aspecto significativo na obra de J. J. Veiga, predominando o

autodiegético, segundo Gérard Genette4, aquele narrador que narra sua própria história. Esse

modo de narrar favorece o envolvimento do leitor com a história pelo tom confessional do

relato; diminuindo consideravelmente a distância entre quem narra e quem lê o escrito, tendo-

se a impressão de que o narrador fala diretamente ao leitor: ―Se estou aqui para contar a

verdade, não posso esconder o meu desapontamento quando vi o tio Baltazar descendo em

nossa porta‖ (VEIGA, 1983 p. 3).

J. J. Veiga escreve de uma forma próxima da oralidade, sem rebuscamento, buscando

sempre a economia da linguagem direta e objetiva mas com significado profundo. Essa

simplicidade linguística aparentemente displicente e fácil de ser conseguida, esconde um

labor inacreditável, pois, segundo lemos em CAMPEDELLI (1982), Veiga reescrevia várias

vezes seus textos, até alcançar a forma desejada. Essa recusa do autor à linguagem acadêmica

4 Em nosso trabalho utilizaremos a nomenclatura de Genette no livro Dicionário de Teoria da Narrativa de Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes, para os elementos da estrutura da narrativa: narrador, tempo, espaço, personagem.

21

e à metáfora, longe de tornar seus textos banais, torna-os mais ainda significativos, pertinentes

e extremamente reflexivos.

1.2 LITERATURA COMPARADA

“Polimorfa por sua natureza e seu

desenvolvimento”, a literatura

comparada acena para um

cruzamento de metodologias e de

sua negação, mas nem por isso

deixa de ocupar um espaço próprio

dentro dos estudos literários, seja

como objeto de discussão, seja

como perspectiva de aproximação

da literatura como tal e de sua

relação com outras artes e com

outros domínios do saber.

Sandra Nitrini, 1997, p. 123

A literatura comparada, segundo Sandra Nitrini, fundamenta-se basicamente em três

tendências: a francesa, a americana e a dos países do Leste europeu. O campo de estudo da

literatura comparada é amplo, igualmente extensas são as opiniões dos especialistas e dos

críticos a respeito do assunto, a variação se dá pela definição do próprio objeto, do método e

da finalidade dos estudos comparados. Diante do ecletismo que cerca os estudos

comparatistas, entendemos que esta é uma questão complexa; portanto, neste estudo

abordaremos apenas os aspectos que julgarmos relevantes para a nossa análise.

O ato de comparar não é um procedimento exclusivo da literatura comparada, é

inerente ao ser humano que a todo momento procura organizar o mundo em que vive;

portanto, comparar é um meio de organizar a própria vida e, por conseguinte, a literatura. Daí

a dificuldade para definir o objeto de estudo desta disciplina. Mas tentaremos, ao menos,

definir o objetivo da literatura comparada que é examinar a cultura e o contexto histórico-

social de um texto e de seu autor, estabelecendo relações com outros autores e obras, muitas

22

vezes esse diálogo comparativo é realizado com outras formas de arte, tais como o cinema, a

pintura, a escultura, etc. Nas palavras de Sandra Nitrini:

E, como disciplina autônoma, a literatura comparada tem seu objetivo e método

próprios. O objetivo é essencialmente o estudo das diversas literaturas nas suas

relações entre si, isto é, em que medida umas estão ligadas às outras na inspiração,

no conteúdo, na forma, no estilo. Propõe-se a estudar tudo o que passou de uma

literatura para outra, exercendo uma ação, de variada natureza. (NITRINI, 1997

p. 24)

Portanto, a literatura comparada servirá de método a nosso propósito de cotejar os

textos de Cardoso Pires e de J. J. Veiga, a fim de entender como ambos os autores,

pertencentes a comunidades geográficas diferentes, vivenciaram tipos de opressão

semelhantes, organizaram e estruturaram seus textos para retratarem e denunciarem a falta de

liberdade em que viviam.

As noções de intertextualidade e de paródia são as que nos interessam diretamente nos

estudos comparativos porque afirmam que a literatura nasce do diálogo constante entre os

textos e também por meio de retomadas, empréstimos e trocas. Em outras palavras, o sentido

de um texto e sua gênese dão-se em relação aos outros textos já produzidos. Nesta

perspectiva, escrever é um eterno dialogar de texto, entretextos e metatextos em obras do

passado e contemporâneas.

O termo ‗intertextualidade‘ foi usado primeiramente por Julia Kristeva; portanto, a ela

é atribuída a terminologia e a inovação dos conceitos das relações que se estabelecem entre os

textos, como observamos no artigo de Laurent Jenny publicado na revista Poétique:

Se se estender esta ideia de série extra-literária aos sistemas simbólicos não verbais,

chega-se à noção de intertextualidade, tal como a define Júlia Kristeva, a quem se

deve a invenção do termo. Se, com efeito, para Júlia Kristeva, <<qualquer texto se

constrói como um mosaico de citações e é absorção e transformação dum outro

texto>>, a noção de texto é seriamente alargada pela autora. É sinônimo de

<<sistema de signos>>, quer se trate de obras literárias, de linguagens orais, de

sistemas simbólicos sociais ou inconscientes. (JENNY, 1979, p. 13)

23

O conceito de intertextualidade inovou os estudos comparativos porque organizou e

renovou de forma eficiente os conceitos de fonte e de influência. Uma vez que a similaridade

entre textos não era mais vista como dependência ou dívida com relação ao texto original,

mas compreendida agora como um movimento natural da literatura. Com essa inovação, a

postura do comparatista passou da simples identificação de relações para uma análise em

profundidade a respeito dos motivos que levaram ao estabelecimento dessas relações.

Perguntas como: ―por que um texto resgata outro?‖ ―Com que intenção?‖ ―De que

forma?‖, são algumas indagações que o comparatista literário deve fazer, ou seja, analisar se

um texto retoma outro de forma passiva ou agressiva, com a intenção de destruí-lo ou

perpetuá-lo e como ele realiza esse feito. Cabe ainda a pergunta do porquê de determinado

texto (ou textos) ser retomado num momento específico por outro texto; determinar, por

exemplo, as razões que motivaram o autor recente a ler e resgatar um autor anterior; e o mais

importante, determinar o novo sentido que certamente este texto, deslocado de seu contexto

de origem e modificado, terá. As inúmeras questões levantadas demonstram o quanto se

ampliaram, com relação à antiga definição binária de fontes e influência, os conceitos

comparatistas.

Portanto, os conceitos de paródia e intertextualidade são extremamente relevantes para

nossa análise comparativa, uma vez que a paródia é, segundo Linda Hutcheon, repetição com

diferença crítica. O estudo e a sistematização de sua teoria possibilitam-nos os subsídios

necessários à análise comparativa.

Visto que todo discurso jamais é desprovido de ideologia, principalmente o literário, é

dever do comparatista investigar os porquês da repetição paródica ou intertextual, uma vez

que certamente esse ato está repleto de intencionalidade, seja para promover seja para criticar

o discurso anterior. A repetição acaba por realizar invariavelmente uma renovação, uma

atualização que abre um leque de possibilidades de reflexões para o novo texto:

Talvez a paródia tenha chegado a ser uma modalidade privilegiada da auto-

reflexividade formal do pós-modernismo porque sua incorporação paradoxal do

passado em suas próprias estruturas muitas vezes aponta para esses contextos

ideológicos de maneira um pouco mais óbvia, mais didática, do que as outras

formas. A paródia parece oferecer, em relação ao presente e ao passado, uma

perspectiva que permite ao artista falar para um discurso a partir de dentro desse

discurso, mas sem ser totalmente recuperado por ele. Por esse motivo, a paródia

parece ter se tornado a categoria daquilo que chamei de ―ex-cêntrico‖, daquele que

são marginalizados por uma ideologia dominante. (HUTCHEON, 1991 p. 58)

24

Talvez seja por esse motivo que Cardoso Pires tenha escolhido realizar uma paródia de

Salazar e de seu governo como uma forma de retomar um passado sombrio e sofrido de

maneira distanciada e promover uma crítica austera por meio da paródia satírica.

J. J. Veiga, de forma diferenciada, também retomou uma situação de opressão

pertencente a outro contexto histórico e a seu modo construiu seu texto. Nosso objetivo neste

trabalho é analisar como cada autor atualiza o período histórico que corresponde nos dois

países a ditaduras severas. Estabelecer as diferenças e as semelhanças e entender os motivos

que os levaram a escrever, qual a intenção de cada um e principalmente os efeitos e

possibilidades de reflexão e interpretação que os textos atualizados tornam possíveis.

Enfim, os autores que nortearão a nossa análise são, principalmente, Affonso Romano

de Sant‘Anna, que sistematizou muito bem algumas questões intertextuais já propostas por

Mikail Bakhtin e I. Tynianov, acrescentando ao binômio ―paródia / paráfrase‖ as noções de

estilização e de apropriação; Gérard Genette, que esclarece noções de transtextualidade e

Linda Hutcheon, que nos deu subsídios para desenvolver os conceitos de ironia, paródia e

intertextualidade.

1.2.1 INTERTEXTUALIDADE

De uma maneira ampla pode-se

dizer que as linguagens são

formuladas em espaços diversos

dentro do cotidiano. Há uma

linguagem burocrática, uma

linguagem jornalística, outra

linguagem informal nas ruas, etc.

Pois bem. A literatura tem a sem-

cerimônia de se apropriar dessas

linguagens todas. E, ao se apropriar

delas, cria um espaço novo a partir

do qual elas podem ser relidas.

Relidas, parafrásica ou

parodisticamente.

Romano Sant‟Anna, 2008, p. 72

25

O texto de Genette que servirá de base teórica para o conceito de intertextualidade é o

livro Palimpsestes (La Littérature au Second Degré), de Gérard Genette, que discute a

transtextualidade, ou seja, as relações estabelecidas entre os textos. O título consiste numa

metáfora da prática transtextual, uma vez que palimpsesto era um pergaminho feito de couro

de animais, utilizado e reutilizado para escrever; como era um material de difícil preparação,

o processo de reciclagem e reaproveitamento era fundamental. Assim, removia-se

seguidamente a escrita anterior para reutilizar o pergaminho, de modo que os textos acabavam

por ser compostos por diversas camadas que, mesmo raspadas, apareciam sob o novo texto.

Portanto, um palimpsesto era um texto cuja escrita anterior deixava-se entrever na nova

escrita. Desta forma, em sentido figurado, palimpsestos seriam hipertextos ou todas as obras

oriundas de uma outra obra anterior, seja por influência, imitação ou transformação.

Genette destaca cinco tipos de transtextualidade, nomenclatura criada por ele para

indicar tudo aquilo que coloca um texto em relação, manifesta ou secreta, com outros textos.

São eles: intertextualidade, paratextualidade, transcendência textual, hipertextualidade e

arquitextualidade. Cada um dos cinco tipos de transtextualidade foi conceituado por Genette e

passaremos a defini-los neste trabalho. Assim, segundo o crítico, a intertextualidade é o

primeiro tipo de relação entre textos:

[…] d‘intertextualité, et cette nomination nouns fournit évidemment notre

paradigme terminologique. Je le définis pour ma part, d‘une manière sans doute

restrictive, par une relation de coprésence entre deux ou plusieurs textes, c‘est-à-

dire, eidétiquement et le plus souvent, par la présence effective d‘un texte dans un

autre. Sous sa forme la plus explicite et la plus littérale, c‘este la pratique

traditionnelle de la citation (avec guillemets, avec ou sans référence précise); sous

une forme moins explicite et moins canonique, celle du plagiat chez Lautréamont,

par exemple), qui est un emprunt non déclaré, mais encore littéral; sous forme

encore moins explicite et moins littérale, celle de l‘allusion, c‘est-à-dire d‘un énoncé

dont la pleine intelligence suppose la perception d‘un rapport entre lui et un autre

auquel renvoie nécessairement telle ou telle de ses inflexions, autrement non

recevable: (GENETTE, 1982, p. 8)5

5intertextualidade, e esta nomeação nos fornece evidentemente nosso paradigma terminológico.

Quanto a mim, defino-o de maneira sem dúvida restritiva, como uma relação de co-presença entre dois ou vários textos, isto é, essencialmente, e o mais frequentemente, como presença efetiva de um texto em um outro. Sua forma mais explícita e mais literal é a prática tradicional da citação (com aspas, com ou sem referência precisa); sua forma menos explícita e menos canônica é a do plágio (em Lautréaumont, por exemplo), que é um empréstimo não declarado, mas ainda literal; sua forma ainda menos explícita e menos literal é a alusão, isto é, um enunciado cuja compreensão plena supõe a percepção de uma relação entre ele e um outro, ao qual necessariamente uma de suas inflexões remete. (tradução nossa)

26

No texto ―Dinossauro Excelentíssimo‖ de José Cardoso Pires, nosso objeto de estudo,

observamos a intertextualidade por meio dos ditados populares que são inseridos pelo

narrador no corpo da narrativa. Além de um recurso intertextual é também dialógico:

É uma forma de diálogo com a cultura popular: ―... a intertextualidade realiza-se no

interior do texto ficcional, pelo aproveitamento, transformação e incorporação de

alusões, montagens, citações, referências, imitações, paródias, reproduções de outros

textos, inseridos no próprio discurso, que revelam o ―velho‖ de um novo ângulo... (FLORY, Suely. 1997 p. 39)

Seguem abaixo alguns exemplos retirados do texto:

Quando o mar bate na rocha quem se lixa é o mexilhão (DE, p. 129)

Mais vale um rico na mão que dois pobres a voar. (DE, p. 138)

Com palavras e com moscas povoa a miséria do Reino. (DE, p. 162)

Já ensinavam os mexilhões-avós que fingir de cego é virtude de quem vê demais, e o

Mestre devia ser desses. (DE, p. 165)

Burro que aprende línguas esquece o coice e perde o dono. (DE, p. 164)

Ora como o surdo que muito canta acredita que tem boa voz (ditado dos Pedintes

Voadores) (DE, p. 190)

Contavam o conto e acrescentavam o ponto sem mais aquelas ... (DE, p. 196)

O aproveitamento de expressões latinas também se configura como um recurso

intertextual, estabelecendo um diálogo intercultural. No caso específico do texto em questão,

dialoga-se com a Igreja, com o Cristianismo ou Catolicismo. Constitui-se igualmente, uma

forma irônica de questionar o sistema e a tradição. Alguns exemplos do texto de Cardoso

Pires:

Pecatorum Orbi /Quod erat demonstrandum (DE, p. 115)

Códico-Codex-Abrenuntio (DE, p. 115)

Et nunc et semper (DE, p. 122)

Universitas Sapientia Omnium (DE, p. 125)

27

AD GLORIAM DEI (DE, p. 127)

<<IN HOC SIGNO VINCES!>> (DE, p. 131)

Dinossauro, pax perpetua, Dies iraes ... (DE, p. 193)

O segundo tipo de relação transtextual elencado por Genette é a paratextualidade, ou

seja, o fenômeno que se refere a todos os elementos que estão ao lado do texto, explicações

necessárias que também fazem parte do texto, tudo o que cerca o texto:

[...] paratexte: titre, sous-titre, intertitres; préfaces, postfaces, avertissements, avant-

propos, etc; notes marginales, infrapaginales, terminales; épigraphes; illustrations;

prière d‘insérer, bande, jaquette, et bien d‘autres types de signaux accessoires,

autographes ou allographes, qui procurent au texte un entourage (variable) et parfois

un commentaire, officiel ou officieux, dont le lecteur le plus puriste et le moins

porté à l‘érudition externe ne peut pas toujours disposer aussi facilement qu‘il le

voudrait et le prétend. (GENETTE, 1982, p. 10)6

A dedicatória do livro, “Para Ana e para Rita”, filhas de Cardoso Pires, que na época

em que o livro foi escrito, ainda eram pequenas, nos remete para o universo infantil da fábula,

ou pelo menos para a dupla leitura que se pode fazer do texto. Uma leitura ingênua e fabulosa

(quase impossível) e a leitura crítica do Dinossauro como alegoria da opressão da ditadura.

Essa mesma Rita aparecerá no diminutivo como Ritinha, na última frase do livro, também

como elemento extratextual.

O livro no qual se encontra o conto ―Dinossauro Excelentíssimo‖ chama-se A

República dos Corvos e possui uma epígrafe: ―<<Cada homem transporta dentro de si o seu

bestiário privado>> ─ disse o Juiz.‖ (Pires, 1988, p. 8). Essa epígrafe configura-se como

elemento extratextual e sinaliza para a bestialidade humana e também para a animalização do

ser humano, traço comum aos demais textos reunidos neste livro.

6 paratexto: título, subtítulo, intertítulos, prefácios, posfácios, advertências, prólogos, etc.; notas

marginais, de rodapé, de fim de texto; epígrafes; ilustrações; errata, orelha, capa, e tantos outros tipos de sinais acessórios, autógrafos ou alógrafos, que fornecem ao texto um aparato (variável) e por vezes um comentário, oficial ou oficioso, do qual o leitor, o mais purista e o menos vocacionado à erudição externa, nem sempre pode dispor tão facilmente como desejaria e pretende. (tradução nossa)

28

Na realidade, ―Dinossauro Excelentíssimo‖ é recheado de elementos extratextuais que

compõem seu significado; antes mesmo de iniciar-se a história, somos apresentados a outra

epígrafe: ―Hoje em dia pode roubar-se tudo a um homem, até a morte ─ disse o contador de

estórias à sua filha Ritinha.‖ (PIRES, 1988, p. 109). Somente depois dela começa a narrativa

da saga do Imperador Dinossauro. A vida desse Imperador desde seu nascimento é contada

por um narrador heterodiegético, tomando a nomenclatura de Gérard Genette, mais

precisamente por um contador de estórias que começa a narração da história do Imperador

diabo e ladrão, relatando os acontecimentos à filha, que é o narratário mencionado.

A frase que encerra o livro também não faz parte da saga do Dinossauro, pois, se

iniciamos essa história com uma epígrafe, terminamos com o fechamento de um livro que se

estava lendo, sinalizando uma mudança de assunto do contador de história ou narrador, que

refere-se a um fruto que está maduro. Assim, início e fim são ambos elementos extratextuais,

de certa forma caracterizando a narração como conto de ―moldura‘.

Ocorre também, em vários momentos da narrativa, a presença de pequenos títulos ou

palavras e expressões colocadas em destaque no corpo do texto, chamando a atenção.

Citaremos, para ilustrar, apenas uma ocorrência escolhida entre muitas que o texto traz:

<<NÃO POSSO MAIS, EXCELÊNCIA.

OS EXCELENTÍSSIMOS MENDIGOS TIRAM-ME

O SONO COM AS LAMENTAÇÕES.>>

[...]

<<INADAPTADOS SEMPRE EXISTIRAM

E CONTINUARÃO A EXISTIR

ATÉ NOS REINOS MAIS PRÓSPEROS.

DURMA EM PAZ.>>

[...]

<<SENHOR MESTRE EXCELENTÍSSIMO

PERDEMOS MAIS UMA BATALHA

NÃO CONHECEMOS AS LEIS DE GUERRA

DOS INFIÉIS NEM O CAMPO

QUE ESCOLHERAM POSSO-ME RETIRAR?>> (DE, pp. 140-141)

Os caracteres colocados com letra maiúscula para indicar a fala das personagens

concedem grande ênfase ao enunciado. São feitos para chamar a atenção do receptor para a

disposição irreverente das palavras no papel, parecem versos e não prosa, pois a distribuição

29

assemelha-se a estrofes, contribuindo para a ironia uma vez que de poética essa narrativa não

tem absolutamente nada.

A transcendência textual é a metatextualidade, ou melhor, a relação de comentário que

une um texto a outro texto sem, contudo, nomear necessariamente este outro texto. Aqui se

configura a relação de crítica textual; é o terceiro tipo de relação entre os textos, nomeado

pelo teórico francês. Alguns exemplos seriam textos de história da literatura ou de crítica

literária. Uma observação: normalmente os textos de crítica literária são nomeados.

Le troisième type de transcendance textuelle, que jê nomme métatextualité, est la

relation, on dit plus couramment de <<commentaire>>, qui unit un texte à un autre

texte dont il parle, sans nécessairement le citer (le convoquer), voire, à la limite, sans

le nommer: (GENETTE, 1982, p. 11)7

O quarto tipo de relação esquematizado por Genette é chamado de hipertextualidade

ou qualquer relação que une um determinado texto a outro, salvo a relação de comentário que

já foi anteriormente explicitada. Neste item evidenciam-se os conceitos de hipertexto e

hipotexto: o hipertexto é o texto que resulta de outro, ou seja, o texto construído: a paráfrase,

a paródia, a apropriação, etc.; o hipotexto é a fonte, o modelo, a inspiração, a influência, o

texto que é referido e serve de referência para a construção do hipertexto. Assim lemos em

Genette:

C‘est donc lui que je rebaptise désormais hypertextualité. J‘entends par là toute

relation unissant un texte B (que j‘appellerai hypertexte) à un texte antérieur A (que

j‘appellerai, bien sûr, hypotexte) sur lequel il se greffe d‘une manière qui n‘est pas

celle du commentaire. (GENETTE, 1982, p. 13)8

7 O terceiro tipo de transcendência textual, que eu chamo de metatextualidade, é a relação, chamada

mais correntemente de “comentário", que une um texto a outro texto do qual ele fala, sem necessariamente citá-lo (convocá-lo), até mesmo, em último caso, sem nomeá-lo. (tradução nossa) 8 Entendo por hipertextualidade toda relação que une um texto B (que chamarei hipertexto) a um texto

anterior A (que, naturalmente, chamarei hipotexto) do qual ele brota, de uma forma que não é a do comentário. (tradução nossa)

30

Portanto, o hipertexto seria, segundo Genette, um texto de segundo grau ou texto

derivado de outro texto pré-existente. Muitas vezes o hipertexto não se refere ao hipotexto,

mas o hipertexto não poderia existir sem o hipotexto. Um hipertexto pode ser derivado de

transformação simples ou por transformação indireta, o que Genette chama de imitação. O

hipotexto é chamado pelo teórico de texto de primeiro grau porque serve de referência para o

hipertexto.

De certa forma, a hipertextualidade é um aspecto universal da literatura porque não

existe uma obra que, de uma forma ou de outra, não evoque outra obra literária.

A última categoria transtextual proposta por Genette é a arquitextualidade ou

caracterização do texto. A determinação do arquitexto é tarefa do leitor e da crítica:

Le cinquième type (je sais), le plus abstrait et le plus implicite, est l‘architextualité,

définie plus haut. Il s‘agit ici d‘une relation tout à fait muette, que n‘articule, au plus,

qu‘une mention paratextuelle (titulaire, comme dans Poésies, Essais, le Roman de la

Rose, etc.; ou, le plus souvent, infratitulaire: I‘indication Roman, Récit, Poèmes,

etc., qui accompagne le titre sur la couverture), de pure appartenance taxinomique.

(GENETTE, 1982, p. 12)9

Devemos esclarecer que a divisão em tipos é benéfica porque facilita a compreensão e

a classificação das relações intertextuais; porém, não podemos esquecer que os conceitos

propostos não são estanques e os diversos tipos de realizações linguísticas entrelaçam-se

muitas vezes. A relação efetiva-se ainda entre o texto e seu leitor como uma prática

consciente e organizada, como nos diz a estética da recepção, explorada posteriormente por

outros teóricos.

A consciência da transtextualidade amplia a significação de um texto, multiplicando-

lhe as possibilidades de interpretação. De qualquer modo, a visão e interpretação intertextual é

um componente do entendimento do texto, porque sempre permanece em nossa mente um

9 O quinto tipo, (eu sei), o mais abstrato e o mais implícito, é a arquitextualidade, definida acima.

Trata-se aqui de uma relação completamente silenciosa, que, no máximo, articula apenas uma menção paratextual (titular, como em Poesias, Ensaios, o Roman de la Rose, etc., ou mais frequentemente, infratitular: a indicação Romance, Narrativa, Poemas, etc., que acompanha o título, na capa), de caráter puramente taxonômico. Essa relação pode ser silenciosa, por recusa de sublinhar uma evidência, ou, ao contrário, para recusar ou escamotear qualquer taxonomia. (tradução nossa)

31

substrato de leituras anteriormente feitas, que num momento ou outro emergem. Portanto, em

maior ou menor grau, nossas experiências com textos sempre sofrerão influências implícitas

ou explícitas de nossa bagagem cultural. Na verdade, a intertextualidade sempre existiu, mas

o que é próprio da época representada por Genette é a consciência crítica do fenômeno, o seu

estudo e a criação de nomenclaturas para as práticas transtextuais.

1.2.2 PARÓDIA

Ora, o que o texto parodístico faz é

exatamente uma re-apresentação

daquilo que havia sido recalcado.

Uma nova e diferente maneira de

ler o convencional. É um processo

de liberação do discurso. É uma

tomada de consciência crítica.

Romano Sant‟Anna, 2008, p. 31

A paródia é uma modalidade discursiva tão antiga quanto a própria literatura. Pode ser

considerada uma repetição, porém com certa diferença e distanciamento crítico. Geralmente

são parodiados textos conhecidos e consagrados, parodiando-se o todo ou alguns de seus

elementos, como sua temática, sua estrutura, nome das personagens, ambiente, espaço,

estrutura, etc. A paródia sempre pressupõe a existência de um texto que transforma (imita) e

outro que é transformado (imitado), ou seja, um texto que parodia e outro que é parodiado.

Segundo Genette, respectivamente, um hipertexto e um hipotexto. Todas as formas de artes,

no entanto, são passíveis de serem parodiadas, como uma pintura ou uma escultura, por

exemplo.

A paródia é um tipo de texto que exige do leitor certa competência e conhecimento de

literatura, uma vez que o leitor, para realizar uma leitura adequada, tem que reconhecer que se

trata de uma paródia e conhecer o texto a que ela se refere, do contrário poderá decodificar

erradamente, caso em que a paródia não funciona, não atinge seu objetivo, que é fazer

referência ao texto parodiado.

32

A exigência de um leitor astuto e com competência cultural e literária tornaria a

paródia um texto elitizado, dirigido a um leitor ideal, o que se torna uma das maiores críticas a

esta forma moderna de literatura, ambígua por natureza, que pode tanto prestar uma

homenagem quanto ironizar ou satirizar a obra referida. Porém, realmente, não há paródia

sem o leitor que a reconheça, o leitor tem que acionar seu conhecimento de mundo para

entender as vozes dissonantes presentes no texto, e isso somente ocorre no ato da leitura. Daí

a importância do interpretador que tem que reconhecer, por meio das pistas deixadas no texto,

que se trata de uma paródia.

A paródia é um contracanto, um contraponto, um canto em outro tom, que deforma a

melodia original, por isso mesmo, segundo Genette, é uma prática transtextual, que recria um

texto num registro mais vulgar. Portanto, a paródia é marcada por uma oposição de vozes

dissonantes que estão em permanente contraste, voz que repete de forma crítica o objeto

parodiado, assinalando, desta maneira, a diferença em vez da semelhança.

Assim, o eixo parodístico promove uma tomada de consciência crítica, é a

intertextualidade das diferenças, libera a crítica, dá liberdade ao discurso. Por outro lado,

possibilitando a revisão crítica tanto de discursos históricos quanto literários, ao mesmo

tempo promove a manutenção desses discursos, daí seu caráter paradoxal, pois coloca em

xeque modelos e dogmas estabelecidos, mas, ao transgredi-los, acaba por legitimá-los

também. Nesse duplo movimento de transgressão das normas vigentes e recriação crítica dos

textos parodiados, porque sempre há vestígios do texto parodiado na paródia, ela acaba

promovendo a continuidade do texto parodiado, ressaltando também sua importância.

Como modo de construção formal do nosso tempo, a paródia não tem somente na

crítica negativa seu principal objetivo; pelo contrário, no sentido ampliado das possibilidades

de significação encontra-se sua essência: apresentar alternativas, questionar para entender

melhor, com distanciamento crítico. Como pode tanto exaltar quanto desmoralizar ou

denunciar uma realidade cruel, opressiva, é uma forma de resistência, de protesto e denúncia

da realidade.

O que a paródia promove, de fato, é a desconstrução, a desmistificação, uma releitura

contextualizada de algo pré-existente; essa repetição distanciada e crítica lança mão de muitos

recursos retóricos, dentre eles a ironia e a sátira, como iremos ressaltar ao longo de nosso

estudo.

33

Muitos estudiosos da literatura têm suas teorias sobre a paródia, ficaremos aqui com o

sentido de paródia de Linda Hutcheon: ―A paródia é, pois, na sua irônica

‗transcontextualização‘ e inversão, repetição com diferença. Está implícita uma distanciação

crítica entre o texto em fundo a ser parodiado e a nova obra que incorpora, distância

geralmente assinalada pela ironia.‖ (HUTCHEON, 1985, p. 48)

Para a autora, a paródia é o ícone da literatura atual, caracterizada pela

autorreflexividade e pela intertextualidade ou transtextualidade. Ao problematizar, inverter e

questionar, a paródia não traz respostas prontas; ao contrário, com seu método de subverter os

estados das coisas, de inverter a estrutura ideológica e os modelos sociais, acaba por provocar

questionamentos. A paródia sugere novas ideias, por isso mesmo é um canto paralelo, porque

deslocado dos padrões.

No caráter autorreflexivo da paródia reside sua tentativa de entender a cultura

tradicional, a história anterior, dar sentido às situações vividas. A paródia tornou possível a

ideia de que as coisas podem perder sua aura sagrada e de que a perfeição é uma ilusão que

pode, a qualquer momento, ser desfeita.

O artista moderno usa a paródia para, além de desfazer esses mitos sagrados, promover

uma reflexão profunda e também uma crítica por vezes severa dos costumes humanos.

A auto-reflexividade das formas de arte modernas toma muitas vezes a forma de

paródia e, quando o faz, fornece um novo modelo para os processos artísticos. Num

esforço para desmistificar o << nome sacrossanto do autor >> e para <<

dessacralizar a origem do texto >> (HUTCHEON, 1985, p. 16)

Percebemos que modernamente a paródia não é apenas imitação ridicularizadora como

pensávamos, e sim, repetição com diferença crítica e acréscimo do elemento irônico,

marcando, principalmente, a diferença e não a semelhança. ―É a este jogo irônico com

convenções múltiplas, a esta repetição alargada com diferença crítica, que me refiro quando

falo de paródia moderna‖ (HUTCHEON, 1985, p. 19)

No sentido que a autora atribui à paródia, realiza-se um duplo movimento de inversão

e transcontextualização dos textos parodiados. Inversão, porque é imitação com diferença e

tranconstextualização, porque está inserida numa nova realidade enunciativa.

34

Esse duplo movimento paródico dá aos textos que utilizam tal recurso, nuances

diversas, que variam de divertidas formas humorísticas até uma crítica mordaz, passando por

zombarias em diferentes graus, revelando-se desse modo a flexibilidade do texto paródico.

Como afirma Hutcheon:

a paródia pode, obviamente, ser toda uma série de coisas. Pode ser uma crítica séria

não necessariamente ao texto parodiado; pode ser uma alegre e genial zombaria de

formas codificáveis. O seu âmbito intencional vai da admiração respeitosa ao

ridículo mordaz. (HUTCHEON, 1985, p. 28)

Quando a paródia é agressiva e mordaz ela adquire nuances satíricas. Quanto mais

agressiva a crítica paródica, mais o texto se vale da ironia e da sátira para construir seu

significado. O que a ironia possibilita à paródia é o distanciamento crítico.

A paródia é, pois, na sua irônica << transcontextualização >> e inversão, repetição

com diferença. Está implícita uma distanciação crítica entre o texto em fundo a ser

parodiado e a nova obra que incorpora, distância geralmente assinalada pela ironia.

Mas esta ironia tanto pode ser apenas bem humorada, como pode ser depreciativa;

tanto pode ser criticamente construtiva, como pode ser destrutiva. O prazer da ironia

da paródia não provém do humor em particular, mas do grau de empenhamento do

leitor no << vai-vém >> intertextual (HUTCHEON, 1985, p. 48)

Desta forma, segundo a autora, a paródia, como síntese de uma contradição, prioriza a

antítese, dilata o alcance do signo literário e acaba tornando a escrita transgressora e

discordante. Como funciona como reflexão crítica, tem o dom de subverter as temáticas e suas

essências.

Outro autor que servirá de referência teórica para esta análise será o crítico brasileiro

Affonso Romano de Sant‘Anna, que amplia os conceitos de paródia e estilização instituídos

por Tynianov e Bakhtin e acaba por desdobrá-los em quatro elementos em gradação: paródia,

paráfrase, estilização e apropriação.

Segundo o autor, a paródia se liga ao antagonismo e à crítica, haja vista a formação da

palavra ―contracanto‘ ou ‗contraponto‘, marcada pelo prefixo ―contra‖: é um canto em outro

tom, que deforma o objeto representado. Além disso, a palavra paródia significa,

35

originalmente, uma ode que vem ao lado de outra, caracterizando-se como uma prática

transtextual, que transporta para um registro mais vulgar textos de cunho nobre ou elevado, o

mais das vezes acionando o registro cômico.

No extremo oposto ao eixo parodístico temos a paráfrase, que seria a réplica fiel ao

espírito do texto:

... paráfrase... ―é a reafirmação, em palavras diferentes, do mesmo sentido de uma

obra escrita. Uma paráfrase pode ser uma afirmação geral da ideia de uma obra

como esclarecimento de uma passagem difícil. Em geral ela se aproxima do original

em extensão‖ (BECKSON, Karl & GANZ, 2008, p. 17 APUD

SANT‘ANNA)

Ao contrário da paródia, a paráfrase liga-se ao eixo das semelhanças, procurando

reproduzir o discurso sem contestá-lo ou criticá-lo. As traduções de textos são um bom

exemplo de paráfrase, assim como a citação, a alusão, a transcrição direta e até o resumo, em

certa medida.

A inovação trazida pelo crítico está na noção de ‗desvio‘:

Consideremos que os jogos estabelecidos nas relações intra e extratextuais são

desvios maiores ou menores em relação a um original. Desse modo, a paráfrase

surge como um desvio mínimo, a estilização como um desvio tolerável, e a paródia

como um desvio total. (SANT‘ANNA, 2008, p. 38)

Se tomarmos como base os dois extremos: de um lado a paródia e de outro a paráfrase,

poderemos encaixar os conceitos de estilização e apropriação pela noção de maior ou menor

desvio em relação a esses dois polos.

A paráfrase, segundo o crítico, é o desvio mínimo, quase imperceptível; já a

estilização caracteriza-se por um desvio tolerável em relação ao texto original. De seu lado, a

paródia configura-se por um desvio total.

Como na estilização o desvio é tolerável, permanecem as características essenciais da

obra e não há perdas significativas de seus caracteres originais, não há, como na paródia, uma

‗traição‘ ou inversão do sentido original, mas sim transformações que não atingem o

36

significado essencial do texto. Assim, a estilização está mais próxima da paráfrase e mais

longe da paródia, e podemos dizer que as duas se opõem à paródia porque fazem parte de um

mesmo conjunto de textos que objetiva mostrar as semelhanças, a reafirmação de algo, a

continuidade, a imitação, a repetição.

A paródia junta-se à apropriação no outro extremo: são textos que se caracterizam por

desvios significativos do texto original, integram o chamado conjunto das diferenças. A

paródia já foi aqui conceituada, vamos agora enfocar a apropriação, que é, segundo o crítico,

o grau máximo de inversão de significado. É a paródia elevada à potencialidade máxima de

contestação, de crítica e negação do texto original. ―Já a apropriação propriamente dita, por se

situar não no conjunto das similaridades, mas no conjunto das diferenças, é uma variante da

paródia e tem uma força crítica. É uma interferência no circuito. Não pretende re-produzir,

mas produzir algo diferente.‖ (SANT‘ANNA, 2008, p. 48)

A apropriação apodera-se de diversos materiais disponíveis para confeccionar seu

objeto de arte, ou seja, é uma espécie de colagem, de mistura de objetos que são retirados de

seu contexto original, transformados e inseridos num novo contexto, adquirindo, desta forma,

um sentido diferente e novo.

1.2.3 IRONIA

Com certeza, a ironia tem sido

chamada de “filha de Janus, deus

dos começos, e sem dúvida o mais

malcomportado de todos os tropos

literários”

Linda Hutcheon, 2000, p. 25

O discurso irônico é um discurso disfarçado ou marcado pelo contraste entre uma

realidade e uma aparência. Na ironia afirma-se para negar ou nega-se para afirmar. E neste

jogo, entre a realidade e a aparência, de dizer uma coisa intencionando dizer outra, é que se

efetiva a ironia. Nas palavras de Muecke: ―A velha definição de ironia ─ dizer uma coisa e

37

dar a entender o contrário ─ é substituída; a ironia é dizer alguma coisa de uma forma que

ative não uma mas uma série infindável de interpretações subversivas.‖ (MUECKE, 1995, p.

48)

Portanto, segundo o autor, quem usa da ironia simula dizer algo, e o diz literalmente,

porém espera que a compreensão da mensagem seja outra. Desta forma a ironia caracteriza-se

por uma antífrase.

Muecke divide a ironia em dois grandes grupos: a situacional ou observável e a verbal

ou instrumental. A ironia observável, segundo o autor, é aquela que pode ser visualizada por

meio de uma situação que deve ser percebida pelo observador e julgada por ele como irônica.

Já na ironia verbal existe um sujeito que promove o discurso irônico porque há uma atitude

irônica expressa que se vale de uma inversão semântica para transmitir uma mensagem

cifrada.

Ao fazer essa diferenciação, Muecke adverte que nem sempre é possível uma distinção

entre os dois tipos de ironia estabelecidos por ele, porque a ironia situacional, por exemplo, é

descrita por meio da linguagem. Diz o autor:

Nem sempre é possível distinguir entre a ironia instrumental e a apresentação da

ironia observável, mas geralmente a distinção é clara: na ironia instrumental, o

ironista diz alguma coisa para vê-la rejeitada como falsa, unilateral, etc.; quando

exibe uma ironia observável, o ironista apresenta algo irônico – uma situação, uma

sequência de eventos, uma personagem, uma crença, etc. – que existe ou pensa que

existe independentemente da apresentação. (MUECKE, 1995, p.77)

Tanto a ironia observável quanto a instrumental tem em comum, de acordo com o

autor, o contraste entre uma aparência e uma realidade e guardam consigo uma oposição, uma

contradição, que se traduz numa incongruência e numa incompatibilidade, que fazem dos

textos irônicos um desafio instigante de interpretação.

O teórico assinala ainda os elementos imprescindíveis a todo discurso irônico: o

reconhecimento de um sentido literal e de um sentido figurado; a presença de um ironista e de

uma tensão irônica; uma estrutura, ou seja, um jogo para dois jogadores, um ironista que

motiva o leitor a rejeitar o seu sentido literal em favor de um significado implícito e

contrastante.

38

Acentua-se, desta forma, o caráter contraditório do discurso irônico que deve ser

percebido, na realidade, como o inverso do que está sendo dito.

A ironia provoca, segundo Muecke, duas sensações; a primeira, é a sensação de

paradoxo ou dupla realidade contraditória; a segunda, é a de libertação, um sentimento de

superioridade e divertimento, tanto do ironista quanto de quem interpreta: o primeiro, pela

capacidade de criação de um texto cifrado e ambíguo; o segundo, por conseguir desvendar e

interpretar as pistas desse texto intrigante e chegar ao sentido irônico. Assim teoriza ele:

A autoconsciência do observador irônico enquanto observador tende a acentuar sua

sensação de liberdade e induz um estado de satisfação, serenidade, alegria ou mesmo

de exultação. Sua consciência da inconsciência da vítima leva-o a ver a vítima como

se estivesse amarrada ou presa numa armadilha onde ele se sente livre;

comprometida onde ele se sente descompromissado, agitada por emoções, fustigada,

ou miserável onde ele está indiferente, sereno, ou mesmo movido ao riso; confiante,

crédula ou ingênua, onde ele é crítico, cético, ou disposto a parar o julgamento.

Onde sua própria atitude é a de um homem cujo mundo parece real e significativo,

ele considerará o mundo da vítima ilusório ou absurdo. (MUECKE, 1995, p.68)

O conceito de ironia é complexo, sofreu grande variação de sentido através dos tempos

e muitos foram os autores que se atreveram a estudá-la e sistematizá-la. Como não é nosso

propósito realizar um histórico do termo, ressaltaremos como base teórica o estudo Teoria e

Política da Ironia, da crítica Linda Hutcheon. Seguindo a linha da autora, nosso enfoque

limitar-se-á a estudar a ironia em um contexto específico, ou seja, como ela se manifesta no

discurso literário, mais precisamente nas obras de José J. Veiga e José Cardoso Pires.

Para isso, gostaríamos primeiramente de observar como Hutcheon estabelece uma

ligação entre a ironia e a política, explícita no próprio título do seu livro Teoria e Política da

Ironia; chega mesmo a dizer que a ironia atua no político, defendendo ou denunciando

posições:

A ironia tem sido sempre usada para reforçar ao invés de questionar atitudes

estabelecidas (cf. Moser, 1984: 414), como a história da sátira ilustra tão bem. E

isso, a natureza ―transideológica‖ (White, 1973: 38) da ironia, é o foco deste livro: a

ironia consegue funcionar taticamente a serviço de uma vasta gama de posições

políticas, legitimando ou solapando uma grande variedade de interesses. Foi esse

foco que determinou o que, na Introdução, eu chamei de ―cena‖ da ironia neste

estudo em particular. (Hutcheon, 2000, pp. 26-27)

39

Portanto, como ambos os textos que analisamos neste trabalho têm como cenário a

política, com todas as suas implicações históricas e sociais, justifica-se a nossa escolha pela

autora. No contexto político, a ironia é uma forma de combate e oposição contra formas

dominantes e repressoras; a ironia seria, então, uma voz contestadora. Pela sua peculiaridade

de ‗dizer sem na verdade dizer‘, ela acaba ou ganhando tempo ou fazendo com que o discurso

seja ouvido, o que sem ironia seria impossível ou não permitido. O ouvinte ou leitor é

surpreendido pelo discurso e só percebe seu conteúdo depois, como aconteceu no ato da

publicação do conto de Cardoso Pires, ―Dinossauro Excelentíssimo‖, que, sem a roupagem da

ironia e da fábula, jamais passaria pelo crivo da censura salazarista por seu conteúdo de

afronta e denúncia da ditadura militar.

Uma outra observação é esclarecer como a autora desenvolve seus estudos a respeito

da ironia. Segundo suas palavras:

Como uma resposta à extensa literatura — em vários campos, de lingüística a

psicologia, de retórica a crítica literária — que vê a ironia como uma inversão

semântica direta (antífrase — ou dizer uma coisa e querer dizer o oposto) e logo

como um instrumento retórico estático para ser usado, este capítulo expande a

sugestão feita antes neste livro que a ironia é, em vez disso, um processo

comunicativo. É nessa perspectiva, então, que eu argumento que o significado

irônico possui três características semânticas principais: ele é relacional, inclusivo e

diferencial. (HUTCHEON, 2000, p. 90)

Assim, Hutcheon propõe um conceito de ironia dinâmico e contextualizado, jamais

estático, ao afirmar que a ironia deve ser relacional, inclusiva e diferencial.

Relacional porque o significado irônico sempre acontece em relação, seja entre o dito

e o não dito, ou entre as pessoas envolvidas no processo de comunicação da ironia (quem

escreve, quem recebe e os alvos da ironia). A depreensão do significado irônico sempre

ocorre em consequência de uma interação, ou seja, algo dinâmico.

Inclusiva, segundo a autora, devido à sua característica de ser uma antífrase, onde o

dito e o não dito operam ao mesmo tempo, havendo sempre uma superposição de significados

que ocorrem concomitantemente.

E finalmente diferencial, porque o significado irônico nasce da junção de dois

conceitos diferentes, ou seja, há um signo que sinaliza para algo diferente de seu sentido

literal. Considera Hutcheon que o signo irônico sempre marca uma diferença, porque tem-se

40

apenas um significante para no mínimo dois significados diversos, ainda que não

necessariamente opostos.

Um efeito que podemos observar numa narrativa irônica, por exemplo, é o

distanciamento assumido pelo narrador diante do narrado; ele não se envolve emotivamente

com a diegese, ainda que às vezes ela seja trágica e triste; além disso, esse distanciamento não

permite ao leitor uma identificação ou uma empatia maior com a personagem. Portanto, o

distanciamento é condição imprescindível à ironia e à sátira, pois do contrário, a aproximação

do narrador seria outra, de identificação emocional. Enfim, recurso de cunho paradoxal, tem

que ser muito bem manejado pelo escritor, pois, se não for bem compreendido, pode tornar-se

um ruído de comunicação, uma vez que estão envolvidos no jogo da interpretação não só a

competência do receptor do texto como também suas referências culturais e valorativas.

Deste modo, o que entra em jogo na correta interpretação ou percepção da ironia é a

proximidade entre as bagagens culturais do emissor e do receptor da mensagem, a sintonia de

percepção e os valores morais compartilhados por ambos. Mesmo assim, não há garantias de

que quem irá interpretar vá perceber a ironia da mesma forma como ela foi idealizada.

Segundo Linda Hutcheon:

(...) a ironia acontece (...) no espaço entre o dito e o não dito (e que os inclui).

Sentido irônico é inclusivo e relacional: o dito e o não dito coexistem para o

interpretador, e cada um faz sentido em relação ao outro porque eles literalmente

interagem para criar o verdadeiro sentido irônico. (HUTCHEON, 2000, p. 30)

Se a ironia é o modo do não dito, do não ouvido ou do não visto, a rigor ela não existe

literalmente, ela somente se tornará realidade a partir da correta interpretação, da percepção e

da leitura do receptor. Por vezes torna-se difícil estabelecer com precisão num texto as

passagens irônicas; é quase impossível afirmar com certeza nesse jogo de construção e

desconstrução de sentidos. Uma vez que a ironia é uma forma ambígua, o significado

superficial do texto ou se anula ou se confunde e multiplica, já não podemos confiar na

relação entre significante e significado, e a atribuição de sentido irônico só poderá acontecer,

como salientou a autora, de forma inclusiva, complexa, relacional e diferencial. Desta forma,

a ironia não é apenas uma mera substituição de sentido pelo seu oposto, mas ela se constitui

de ambos: o dito e o não dito, operando juntos para criar um sentido novo.

41

Assim, revela-se a importância do receptor, como elemento criador da ironia, a cujo

respeito lemos:

Interpretadores têm intenção tanto quanto os ironistas e frequentemente em oposição

a eles: atribuir ironia onde ela é intencional e onde ela não é ou recusar-se a atribuir

ironia onde ela poderia ser intencional é também o ato de um agente consciente.

Esse agente está engajado num processo interpretativo complexo que envolve não

apenas a criação de sentido, mas também a construção de um sentido da atitude

avaliadora exibida pelo texto em relação ao que é dito e ao que não é dito.

(HUTCHEON, 2000, p. 29)

Hutcheon diz que os dois participantes do jogo irônico são os interpretadores e os

ironistas. Ao interpretador ou destinatário cabe interpretar a ironia. Alguns elementos

presentes no texto, somados ao contexto, fazem com que o interpretante perceba que se trata

de uma ironia. Porém, não há garantias de que esse destinatário irá atribuir sentido irônico ao

enunciado, uma vez que a criação ou inferência de um significado, que na verdade não foi

literalmente dito, é algo difícil de ser controlado. É por isso que a autora afirma ser a ironia

um negócio arriscado.

Há sempre duas intencionalidades por parte do ironista: ironizar e avaliar, ou seja,

quem escreve espera que quem interprete faça um juízo de valor sobre o assunto, tome

partido, assuma um posicionamento. Entretanto, nem sempre o ironista obtém sucesso em

estabelecer a relação irônica, pois o interpretador poderá não entender nem a atitude irônica

nem a avaliadora.

Assim, segundo Linda Hutcheon, a ironia possui duas funções: uma semântica

contrastiva e outra pragmática avaliadora. A função semântica contrastiva estabelece a

diferença de sentidos ou a sobreposição de conteúdos semânticos entre o que é afirmado e

aquilo que é intencionado pelo produtor daquele discurso. Já a função pragmática avaliadora

tem por ofício julgar, estabelecer juízos de valor, fazer com que o interpretador irônico se

posicione diante do texto. Afirma a teórica:

A função pragmática da ironia é, pois, a de sinalizar uma avaliação, muito

frequentemente de natureza pejorativa. O seu escárnio pode, embora não

necessariamente, tomar a forma de expressões laudatórias, empregues para implicar

um julgamento negativo; ao nível semântico, isto implica a multiplicação de elogios

42

manifestos para esconder a censura escarnecedora latente. (HUTCHEON, 1985,

p.73)

Tentaremos traçar algumas diretrizes para a percepção da ironia e reconhecer o que

Linda Hutcheon chama de marcadores irônicos ou pistas que nos fazem identificar a ironia em

textos escritos. A autora identifica pelo menos cinco tipos de marcadores, alguns deles

indicados pelo próprio autor tais como: título, epígrafes, declarações, sinais gráficos, mudança

de registro, exagero ou abrandamento nas figuras da hipérbole, do eufemismo, etc. Outro

indicativo consistente, segundo a autora, é a violação de conhecimento partilhado levando a

erros propositais de fatos ou julgamentos. Contradições no interior da obra, choques de estilo

e conflitos de crenças entre autor e leitor, também são fortes marcadores irônicos, de acordo

com Hutcheon.

A ironia poderá ter um tom levemente provocativo ou ameaçador e grosseiro, a

intenção poderá ser uma brincadeira inconsequente, daí ter um caráter humorístico e lúdico,

mas também transformar-se em uma crítica sarcástica e feroz. A ironia pode zombar, atacar

corrosivamente seu alvo, porque ela quase sempre intenciona ridicularizar, irritar, humilhar,

excluir, denunciar, embaraçar, expor, etc. Apesar de transitar pelo campo da ambiguidade, ela

sempre tem um objetivo e uma direção: ―(...) a ironia sempre tem um ―alvo‖; ela às vezes tem

o que alguns chamam de ―vítima‖. (HUTCHEON, 2000, p. 33)

Para uma correta leitura irônica temos que identificar essa ―vítima‖, o alvo de crítica

da ironia, pois certamente ela é usada para denunciar, reforçar, alertar ou desmascarar uma

posição, seja ela conservadora ou radical. Considerando as obras analisadas, sabemos que, no

caso de ―Dinossauro Excelentíssimo‖, o alvo é Salazar e seu governo ditatorial; já o alvo do

brasileiro, é a ditadura militar brasileira da época.

A ironia quase sempre é polêmica, pois é filha da ambiguidade, da controvérsia; é por

sua própria natureza conflitante. Ela sempre tem um alvo a atacar, como já mencionamos, e o

ataque é preciso e geralmente bem humorado. O humor vem para suavizar ou, quem sabe,

intensificar a ironia satírica, aquela que beira o escárnio e o desprezo, o ridículo e o absurdo

das situações: ―A tendenciosidade e a depreciação que frequentemente se encontram na base

do humor também têm sido empregadas nas teorias da ironia pelos satíricos ao longo dos

tempos no ocidente.‖ (HUTCHEON, 2000, p. 68)

43

Há nuances ou graus na ironia, que vão desde as ironias mais amenas até as mais

sarcásticas, fato que Linda Hutcheon sistematizou em uma tabela bastante icônica e útil, que

estabelece as gradações irônicas. Partindo do pressuposto de que num extremo temos as

ironias com carga afetiva mínima e no outro extremo as ironias com carga afetiva máxima,

temos, no polo das ironias de afetividade mínima, a primeira função classificada por

Hutcheon que é a reforçadora, usada apenas para destacar algo, dar maior ênfase ou precisão a

uma questão, às vezes meramente decorativa.

Em seguida temos a função complicadora, tipicamente ambígua, é a ironia enganadora

e por isso mesmo imprecisa, sendo seu elemento negativo justamente os equívocos que pode

provocar.

A função lúdica é classificada pela autora como uma ironia de caráter provocativo e

afetuoso, seu tom muitas vezes jocoso e humorístico beira a irresponsabilidade, podendo

beirar um discurso vazio e tolo.

Distanciadora é a função, segundo a autora, nada comprometida e indiferente, mas que

aponta sempre para uma nova perspectiva. Entretanto, o excessivo sentimento de

superioridade pode levá-la à prepotência.

Na ironia autoprotetora, o grau de afetividade aumenta, bem como o de distanciamento

irônico. É um tipo de ironia auto-depreciadora, insinuante, defensiva e arrogante, que

funciona como um mecanismo de defesa porque, mesmo assumindo uma atitude auto-

depreciativa, pode trazer disfarçado o desejo da auto-promoção.

Na função provisória da ironia, segundo Hutcheon, o ironista é mais evasivo, mais

hipócrita e ambíguo, caracteriza-se por desacreditar e não obedecer a nenhum dogma, por isso

mesmo acaba por desmistificá-lo. O ironista que objetiva manifestar-se por meio desta função

intenta questionar verdades absolutas e acaba por estabelecer posicionamentos opostos

relacionados ao mesmo objeto, ou seja, gera grande ambiguidade.

A próxima função classificada pela autora é a de oposição: mais agressiva que a

anterior, utiliza-se do insulto e da ofensa para atingir seus alvos. Pelo seu caráter, é também

chamada de transgressora e subversiva.

A ironia atacante é extremamente agressiva e destrutiva e sua representante maior é a

sátira. Se, por um lado, é considerada positiva por possuir uma motivação corretiva dos vícios

e loucuras da humanidade, tem, por outro lado, a face do ataque destrutivo e da humilhação

agressiva, da necessidade de registrar o desprezo e a zombaria.

44

Finalmente, a agregadora, no extremo oposto da escala, com carga afetiva máxima: é

uma ironia excludente, no sentido de formar grupos fechados que se ironizam uns aos outros.

Ao mesmo tempo que, esse tipo de ironia cria comunidades excludentes, gera também um

círculo de comunidades que se relacionam de modo amigável.

Todos os envolvidos no processo irônico, sejam eles ironistas, alvos e interpretadores,

possuem sua carga afetiva: o alvo, por ser a mira do ironista e receber todo seu potencial

irônico, pode ter sentimentos que vão da irritação leve, passando pela chateação mais

acentuada até a raiva incontida; os interpretadores sentem-se ou incomodados e com sensação

de exclusão de um determinado grupo, quando não conseguem captar a ironia, ou com um

sentimento de satisfação e prazer quando conseguem decifrar o sentido irônico de um texto; o

ironista passa do prazer à dor, por vezes à raiva, dependendo de sua posição em relação ao

alvo de sua ironia, devido a sua postura julgadora, geralmente, negativa, ou seja, suas críticas

são pejorativas, mordazes ou até satíricas.

Enfim, tanto ironia como paródia são conceitos e práticas essenciais para o

entendimento das obras analisadas neste trabalho; na realidade, são recursos que se

aproximam, ambos são marcados pela dissonância e pela contradição e exigem a participação

ativa do leitor para que o sentido seja revelado e completado. Vejamos o que diz Linda

Hutcheon:

A ironia é, por assim dizer, uma forma sofisticada de expressão. A paródia é

igualmente um gênero sofisticado nas exigências que faz aos seus praticantes e

intérpretes. O codificador e, depois, o descodificador, têm de efetuar uma

sobreposição estrutural de textos que incorpore o antigo no novo. A paródia é uma

síntese bitextual, ao contrário de formas mais monotextuais, como o pastiche, que

acentuam a semelhança e não a diferença. (HUTCHEON 1985, p.50)

Igualmente, paródia e ironia possuem dois níveis de leitura, marcados pela

sobreposição de textos e de contextos, com uma voz explícita, de superfície, e outra voz

implícita, subjacente. Ainda segundo Hutcheon:

Dada a estrutura formal da paródia, [...] a ironia pode ser vista em operação a um

nível microcósmico (semântico) da mesma maneira que a paródia a um nível

macrocósmico (textual), porque também a paródia é um assinalar da diferença, e

45

igualmente por meio de sobreposição (desta vez de contextos textuais, em vez de

semânticos). (HUTCHEON 1985, p.74)

Portanto, paródia e ironia são categorias da linguagem complexas e intrigantes que

intermedeiam o contato do ser humano consigo mesmo, com sua cultura, com os outros e até

com aquilo que ele não espera e não conhece. Para desvendar a ironia o receptor tem que

compreender a tensão entre o sentido literal e o sentido implícito, porque a ironia exige o

reconhecimento dos dois sentidos, ou seja, da contradição entre eles, como também ocorre no

caso da paródia, em que é necessário o reconhecimento do contraste opositivo entre os textos,

entre o hipertexto e o hipotexto.

1.2.4 SÁTIRA

... a forma satírica pelo aguçamento

da dissonância, pela concretização

artística do desafinado, do desigual,

do desarmônico, funda

artisticamente a consciência de um

real múltiplo, desordenado,

imprevisível. E constrói,

metaforicamente, o estatuto de uma

ambivalente supra-realidade.

Ângela Dias, 1981, p. 55

Não há consenso entre os teóricos sobre a definição do termo ‗sátira‘. Sabe-se, em

termos bastante genéricos, que há duas vertentes: a lucílica, de origem romana, cuja finalidade

maior era moralizadora, visando o riso como meio de denúncia dos vícios da humanidade, e

uma vertente menipéia ou luciânica, de origem grega, que foi introduzida na literatura latina

por Varrão e cujo propagador maior foi o grego Menipo, donde a origem do nome: mais

46

democrática, caracteriza-se por uma miscelânea de diferentes metros e versos e seu riso não

tem caráter exclusivamente moralista.

A sátira tem a intenção de atingir determinados objetivos e para tanto critica aquilo

que considera errado ou contrário à norma vigente. Seria como a punição ou a ridicularização

de um objeto através da troça e da crítica direta e agressiva. ―Ora, como já se viu, a realização

formal da dissonância constitui o termômetro da sátira, oscilante entre a burla mais explícita,

a farsa mais grosseira e a ironia mais refinada‖ (DIAS, 1981, p. 54)

O gênero satírico pode apresentar-se em verso ou em prosa, possuir um conteúdo tanto

objetivo quanto subjetivo ou os dois, e sua composição pode ser expositiva, mista ou

representativa. O traço distintivo da sátira, porém, é seu objetivo de ridicularizar ou zombar

dos vícios e das pessoas ou das situações vividas por elas, sendo os políticos o seu alvo

preferido.

Temos então, uma sátira moralizante, que deseja aprimorar o mundo e outra que, pelo

contrário, intenciona provocar o questionamento e promover o riso a partir de uma gozação

irônica, de uma raiva incontida, desmascarando comportamentos hipócritas. Frequentemente

observa-se neste tipo de sátira o subterfúgio da máscara, do fingimento, princípio da paródia,

da caricatura, da brincadeira, da gozação ou macaquice, também ingredientes do grotesco, que

na sua melancolia e tom sombrio torna-se a expressão maior do humor destrutivo.

Outra aliada da narrativa satírica é a ironia e o tom jocoso, que joga com a

ambiguidade dos sentidos e mobiliza o riso, ainda que muitas vezes amargo. Alguns traços

frequentes na sátira são: avidez, agressividade, egoísmo, humor, zombaria, malícia, inveja,

vingança, misoneísmo.

A sátira é um texto feito especificamente para fazer a crítica de uma situação, como é

o caso, por exemplo, de ―Dinossauro Excelentíssimo‖, que reproduz a época da ditadura

salazarista com todas as nuances, as personagens, os aspectos históricos vivenciados, de

forma paródica, mas também, satírica, humorística e crítica. No conto, a crítica é bastante

agressiva porque Salazar, o chefe do governo português, por exemplo, é representado por um

dinossauro decrépito, ladrão, vaidoso e louco, que comete grandes arbitrariedades só para

manter-se no poder. Percebemos claramente o alvo, Salazar. Sendo assim, ―Dinossauro

Excelentíssimo‖ é uma sátira da época salazarista porque é um texto feito para criticar e

ridicularizar uma situação real.

47

Como vimos, o autor satírico vale-se de uma realidade para realizar sua crítica e

mediante seu juízo de valor, revelado através do texto, percebemos seu ideal de conduta para

aquela determinada situação. Aqui se estabelecem dois elementos sempre presentes na sátira:

sua ligação com a realidade e seu caráter de agressão.

Para mostrar esse real que incomoda tanto o autor satírico, é necessário reduzir,

deformar, atenuar, exagerar, usar de diversos recursos linguísticos e estilísticos na construção

da sátira. Em ―Dinossauro Excelentíssimo‖ ocorre a deformação do real por meio da fábula,

um expediente que o autor utiliza para mascarar a real situação, e assim, passar pela censura

da época. Ao colocar animais como personagens, Cardoso Pires deforma o real, desfigura-o,

para então, recontextualizá-lo; assim, constrói sua sátira na forma de uma grande alegoria

sobre a vida política da ditadura salazarista.

O texto satírico, além de deformar o real, para revelar uma realidade ameaçadora ou

que o satirista deseja criticar, precisa da participação do leitor que irá construir o sentido do

texto a partir de uma leitura contextualizada; ou seja, é o discurso do satirista que faz com o

leitor construa os significados, mas não somente o discurso, adicionemos a esse elemento o

leitor, como indivíduo provido de uma bagagem cultural e também o contexto no qual ele está

inserido. Segundo o artigo de Paulo Astor Soethe, publicado na Revista Fragmentos, v. 7,

cuja referência completa encontra-se no item Referências deste trabalho:

O escritor seleciona arbitrariamente uma parte do real, ―mutila-o‖ em sua totalidade

e apresenta-o ao leitor. O leitor, então, é levado a tomar parte no processo de

significação, pois o recurso de linguagem utilizado pressupõe a retransposição da

designação imediata a uma realidade suposta mais ampla. (SOETHE, 1986,

p.20)

A deturpação do real é conseguida por meio do uso de recursos estilísticos tais como a

sinédoque, a metáfora, a comparação e a própria alegoria já mencionada anteriormente.

Uma vez que a sátira precisa de que o leitor compreenda o posicionamento do satirista

em relação ao seu alvo, para que haja uma compreensão efetiva de seu conteúdo e para atingir

seu objetivo, o satirista tem que adotar, também, um distanciamento daquilo que está sendo

narrado. O distanciamento permite uma análise mais profunda, criteriosa e livre, ou menos

sujeita a juízos de valor. De acordo com Soethe:

48

O satirista afasta-se de seu objeto de ataque, que pode se constituir em uma postura

ideológica ou um código mais amplo, rechaçando-o através do comportamento

específico que ―analisa‖. Tal combinação constitui um recurso formal bastante

comum naquelas sátiras em que a voz do satirista expõe-se mais. (SOETHE,

1986, p.21)

Finalmente, note-se que ao escrever a fábula satírica ―Dinossauro Excelentíssimo‖,

Cardoso Pires reafirma a tradição satírica da Literatura Portuguesa, acentuada desde a poesia

medieval, com suas cantigas de escárnio e maldizer, muito forte nas peças de Gil Vicente e na

poesia do neoclássico Bocage, que muito influenciará o brasileiro Gregório de Matos, o ―Boca

do Inferno‖.

49

CAPÍTULO 2

―DINOSSAURO EXCELENTÍSSIMO‖

<<Cada homem transporta dentro

de si o seu bestiário privado>>

─ disse o juiz.

Cardoso Pires, 1988, p. 8

O conto ―Dinossauro Excelentíssimo‖ insere-se numa linhagem satírica própria da

época, marcada por regimes autoritários em diversos países europeus, em particular na

Península Ibérica, com as longas ditaduras de Franco e Salazar. ―Dinossauro Excelentíssimo‖

foi escrito por Cardoso Pires quando morava em Londres, entre 1969 e 1971, ano em que

regressa a Portugal. O conto foi publicado pela primeira vez em 1972, e relançado na

coletânea A República dos Corvos (1989). Apresentamos, a seguir, algumas curiosidades

sobre a publicação do livro ―Dinossauro Excelentíssimo‖ porque são inusitadas e também

porque possibilitaram ou facilitaram sua publicação.

─ O Dinossauro foi escrito em Londres no Natal de 1970. Entreguei-o à Arcádia,

que era uma editora falida, porque naquele momento publicar um retrato grotesco de

Salazar era coisa que nenhuma casa ousaria. João Abel Manta aceitou fazer as

ilustrações sem hesitação, a Arcádia planeou com alguns livreiros certas precauções

na distribuição do livro, mas a grande dificuldade foi descobrir uma tipografia que

entrasse na aventura. Descobriu-se, vá lá. Quando o Dinossauro saiu; regressei de

Londres para estar presente ao lado do editor e do ilustrador no que viesse a

acontecer mas, para assombro de todos nós, em vez da excomunhão que era de

esperar, o livro ultrapassou a Censura e teve um acolhimento indescritível. Digo

«ultrapassou» porque aconteceu aquele escândalo monumental na Assembleia

Nacional, quando o professor Miller Guerra teve a coragem de afirmar que não

havia liberdade em Portugal. Foi uma sessão histórica, um berro de heresia! O

deputado ultrafascista Casal Ribeiro correu para Miller Guerra a espumar de raiva e

para o desmentir citou como prova o infame Dinossauro Excelentíssimo que acabava

de ser posto à venda em toda a parte. E, pronto, a partir daí a Censura ficou de mãos

atadas. Já não podia apreender o livro que o deputado salazarista tinha citado

estupidamente como demonstração da liberdade do regime, e, menos ainda,

promover a prisão do autor. Simplesmente, e isso foi realmente um carnaval

50

repugnante, uma vez que a censura oficial se viu impedida de actuar, apareceram as

censuras voluntárias de alguns particulares.

- Particulares?

- Um general Câmara Pina, que era combatente medalhado nas heróicas tertúlias do

Chiado, foi um deles. Andou pelas livrarias da Baixa mais os velhinhos do chá das

cinco, em operação de intimidação, para que o livro fosse retirado das montras. Um

industrial (de Santarém, salvo erro) retirou todas as suas encomendas da tipografia

que o estava a reimprimir e um administrador da Bertrand, Luiz Forjaz Trigueiros,

impediu que o livro fosse reeditado naquela empresa, apesar de já estar assinado o

respectivo contrato. Trigueiros era frequentador da Literatura, homem de lobbies

financeiros e suponho que sócio da Academia. (Cardoso Pires por Cardoso

Pires, entrev. de Artur Portela, 1ª edição, Publicações D. Quixote,

1991, 124 p., pp. 36 – 37)

Como podemos constatar pelas próprias palavras do autor, o ato de publicação do livro

já foi um episódio irônico, que começou desmascarando o governo autoritário e anti-

democrático, de modo que ―Dinossauro Excelentíssimo‖ revelou os disfarces do discurso

político mesmo antes de ser lido.

A longa ditadura de Salazar originou-se de conjunturas da situação portuguesa do

início do século xx, que podem ser assim delineadas:

O ano é 1926 e o poder ficou inteiramente nas mãos de militares em Portugal. Toda a

divergência política era uma afronta ao governo, bem como todo contato com governantes

anteriores ao período ditatorial era considerado suspeito. A censura prévia foi estabelecida à

imprensa e era exercida por comissões militares.

O Professor de Economia Política Antonio de Oliveira Salazar conseguiu equilibrar as

finanças portuguesas e começou a tornar-se importante e indispensável. Em 1929 foi nomeado

presidente do Conselho de Ministros e escolheu um ministério com maioria absoluta de

professores da Universidade. Durante os 40 anos da ditadura portuguesa, a Universidade de

Coimbra forneceu-lhe políticos. Salazar ficou com a pasta das Finanças e consequentemente

com a incumbência de supervisionar todas as despesas dos Ministérios do governo. Obteve

sucesso em sua empreitada para sanear as despesas governamentais e em 1932 tornou-se

chefe de governo.

A transição de Portugal da situação revolucionária da ditadura para uma constituição

institucionalizada foi a primeira medida de Salazar que através de uma manobra inteligente

conseguiu terminar com a ditadura e instaurar a nova Constituição, nasce o Estado Novo.

51

A despolitização reflectui-se na votação: 5505 votos não, 580.379 votos sim,

427.686 abstenções. O total dos eleitores recenseados foi de 1.014.150 (números do

Diário de Notícias de 23-3-33). Prevendo o desinteresse geral, o Governo tinha

decretado que as abstenções se considerassem aprovações tácitas, embora se

discriminassem os votos expressos dos votos tácitos. Com a entrada em vigor da

nova Constituição terminou a ditadura e começou o Estado Novo (1933-1974)

(SARAIVA, José Hermano. História Concisa de Portugal, 1991, p.

357)

Outras medidas, porém, foram tomadas para a instauração do Estado Novo, tais como:

a criação de um partido oficial, a União Nacional, que logicamente expressava as aspirações e

necessidades do povo português; o corporativismo imperou nas relações sociais e econômicas,

dificultando a organização de Sindicatos; Igreja e Estado fizeram uma aliança marcada pelo

conservadorismo tradicional (Deus, Pátria, Autoridade, Hierarquia, Moralidade, Família, Paz

Social e Austeridade eram as palavras de ordem); a censura sempre muito eficaz, barrando

qualquer manifestação contrária ao regime; uma polícia política que perseguia todo e qualquer

opositor do regime de Salazar (PVDE, PIDE, DGS); permanência de uma política

colonialista, mas que terminaria com a Guerra Colonial em 1961; uma política nacionalista

que jamais procurou contatos com o exterior, além das suas colônias, tinha por slogan a frase

―estamos orgulhosamente sós‖ tencionava, com isso, adquirir o apoio da massa popular

portuguesa; criação da Legião Portuguesa, milícia incumbida da defesa do regime e do

combate ao comunismo e da Mocidade Portuguesa, entidade destinada a imprimir nos jovens

os valores do regime vigente.

A oposição ao regime foi protagonizada principalmente pelo Partido Comunista

Português (PCP), pelo movimento estudantil e por outras figuras marcantes do cenário

político, social e cultural português. Segmentos ligados à cultura ofereciam oposição ao

regime salazarista, principalmente quanto à falta de liberdade de expressão. Salazar adotou

medidas severas de repressão contra os que ousavam discordar de sua maneira de conduzir o

país. A censura prévia controlava a imprensa, o teatro, o rádio, o cinema e, posteriormente, a

TV (1957). A ação da censura evitava que a população tivesse conhecimento do que

realmente acontecia, uma vez que todas as mídias e mecanismos de transmissão de

informação davam a ideia de paz, tranquilidade e ordem.

52

Em 1968 Salazar é afastado do governo por motivo de saúde, uma hemorragia cerebral

não se sabe se provocada pela queda que teve de uma cadeira. Ele é então substituído por

Marcelo Caetano. Vem a falecer em Lisboa em 27 de julho de 1970.

Como pudemos observar, o Estado Novo garantia os principais direitos dos cidadãos,

desde que não ferissem os interesses do Estado. Apesar do Presidente do Conselho ser

subordinado ao da República, isto nunca ocorreu em Portugal, pois, a autoridade incontestável

sempre foi de Salazar, sendo seu poder superior ao do Presidente da República.

Com o intuito de subverter e discutir esse período histórico, o autor busca, por meio do

discurso literário e contando com a percepção do leitor, revelar um outro discurso, discurso

este que possa questionar a versão oficial que circula na sociedade, questionar também uma

autoridade imposta pela força que usa a censura da palavra alheia como instrumento de

opressão e repressão.

Num evidente recurso para burlar o estado de censura vigente, ao mesmo tempo em

que aciona a capacidade de ridicularização crítica da sátira, ―Dinossauro Excelentíssimo‖ faz

uma crítica irônica à repressão imposta durante a ditadura militar ocorrida em Portugal; deste

modo, o narrador relata uma verdade mascarada na roupagem duma fábula, para questionar e

denunciar os mecanismos com os quais a esfera política exerce seu poder: a realidade do

poder ditatorial de Salazar é satiricamente reproduzida no governo do Imperador-Dinossauro

no Reino dos Mexilhões, em que as personagens reais do momento histórico português são

representadas por animais: ―De pai para filho e de filho para neto nunca nenhum mexilhão se

esquecia de apontar o Dinossauro nos seus vários pedestais e avisar:

<<ANDA LÁ DENTRO, É ESTE>> (DE, p. 196)

A história começa num certo Reino onde vivia um Imperador ‗astuto, diabo e ladrão‘,

que, numa evidente referência à biografia do ditador português, faz uma retrospectiva desde

sua origem humilde em uma pequena aldeia, e delineando sua trajetória ascendente para o

poder supremo. Na verdade, Cardoso Pires cria uma personagem ditadora que, por meio do

saber e da autoridade, manipula e tortura palavras com a intenção de censurar os discursos

que contrariam suas ―ideias‖, pretendendo, através desse processo, criar nova mentalidade nas

pessoas.

Num sentido mais amplo, o nome genérico de Imperador talvez se deva ao fato de ele

representar, com esse título, todos aqueles que exercem de modo autoritário e repressor o

poder que têm nas mãos. De acordo com a estrutura da fábula, a personagem coisifica-se na

53

figura de um Dinossauro, animal pré-histórico, imenso, desajeitado, que passa por cima de

tudo e de todos e, sobretudo, vive durante muito tempo, de certo modo ultrapassava sua

época. Há, assim, nesse uso do animal dinossauro, uma crítica ridicularizadora da longevidade

de Salazar, que provoca anacronicamente um imenso atraso no desenvolvimento da sociedade

portuguesa, levando o país à ruína econômica e cultural.

Clara Rocha, argumentando sobre os recursos expressivos da fábula, revela que:

No regime da sátira, outro caso paradigmático é a novela Dinossauro Excelentíssimo

[...] uma charge ao velho tirano eternizando-se na sua torre de marfim. O recurso a

um bestiário carregado de intencionalidade alusiva [...] é nestes textos uma forma de

minar a imagem mítica do ditador, reencenando-a ironicamente e contrapondo ao

arquétipo do ―soberano terrível‖ a figura caricatural de um totem decrépito.

(ROCHA, Clara 2003, p. 30)

Pela descrição do reino desse Imperador percebemos que é um lugar muito semelhante

a Portugal, pela pobreza e pela miséria que o assolavam; ali o povo era representado pelos

mexilhões, animais insignificantes, que se contrapõem ao Dinossauro, configurando assim, a

clássica dicotomia das ditaduras: o frágil oprimido de um lado e o poderoso opressor de outro.

A escolha de ―mexilhões‖, certamente reporta-se à situação geográfica de Portugal, estreita

faixa de terra litorânea, ―agarrada‖ à beira da Península Ibérica, como um gigantesco

mexilhão.

O ―Lema Imperial: Saber e Autoridade, Saber e Autoridade, Dinossauro‖ (DE, p. 112)

que é repetido como um mantra, tem a intenção de reforçar essa dicotomia: povo / governo,

em que ao governo é classificado como sábio e poderoso a quem o povo deve obedecer

cegamente, porque é uma autoridade inquestionável por natureza.

Neste reino havia ainda os Dê-erres, filhos de camponeses que foram ensinados e

treinados nas cidades dos doutores, para tolherem a liberdade dos mexilhões. Uma clara

alusão a PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado), órgão governamental,

diretamente ligado ao mandatário supremo, que controlava toda a censura e punia as pessoas

que eram consideradas subversivas.

Há muitas outras semelhanças desse reino com o Portugal da época, tais como o

grande poder da Igreja Católica, a pobreza extrema da maior parte da população, e o pior, um

sentimento de honra incutido nas pessoas por esse fato, ou seja, ser miserável e sobreviver a

54

despeito de todas as privações e dificuldades, era uma virtude cultivada e estimulada pelas

autoridades. Para conseguir tal abnegação, o cerceamento da expressão do povo era algo vital,

a palavra precisava ser controlada, as mais perigosas suprimidas das bocas das pessoas. Então,

além da ação dos Dê-erres, temos também ―A Câmara de Torturar Palavras‖, instrumento que

literalmente acaba com as palavras consideradas subversivas pelo governo.

Cada vez mais imerso em sua própria realidade e recluso em sua torre de marfim, o

Imperador acaba por se tornar um mito, o do Imperador Dinossauro, mergulhando numa

obsessiva ânsia de proibições e de controle em seu governo. Dessa forma, deixa de governar

efetivamente, afastando-se do povo e da própria realidade, trazendo uma geral insatisfação

para a parte fraca desse dueto, os mexilhões/povo, que acabam cada vez mais massacrados

pela parte forte, ou polo opressor.

A fábula, reproduzindo os métodos do imperador, mobiliza narrativas simples, de

caráter popular, como provérbios, contos exemplares, com a intenção de retomar o saber

popular e utilizar, com propósitos de doutrinação ideológica, os ensinamentos que povoam

esses ditos populares, receitas e fórmulas cristalizadas, estereótipos, todos ligados às

experiências universais.

Portanto, José Cardoso Pires, por meio de sua fábula, inventa uma maneira inusitada e

criativa de reflexão, fazendo vir à tona questões cruciais para a construção do sentido de sua

narrativa, sejam elas: como o poder se constrói em cada esfera social, como o próprio poder

escolhe seus representantes, como esse poder se propaga e se impõe.

2.2 RECURSOS DO DISCURSO – IRONIA, PARÓDIA, SÁTIRA

Justamente a dimensão alegórica

da obra literária, enquanto

sugestão da voz do outro, vai

acentuar-se e prevalecer na

estrutura da paródia, entendida

etimologicamente com “canto

paralelo”.

Ângela Dias, 1981, p. 51

55

O narrador de ―Dinossauro Excelentíssimo‖ é heterodiegético, narrando uma história à

filha chamada Ritinha, todas essas informações são encontradas na epígrafe que abre o conto.

Portanto, há uma breve introdução ao texto do conto, feita por esse narrador que não participa

da história narrada e estabelece uma situação em que um contador de histórias conta a fábula

a sua filha Ritinha. A personagem Ritinha será retomada no final do conto, num adendo que

diz: ―... Ritinha, fecha o livro, é mais que tempo.‖ (DE, p. 196).

Poderíamos dizer que Cardoso Pires insinua-se na diegese como esse contador de

histórias, já que Ritinha é realmente o nome de sua filha; mais um dado a explicitar a projeção

da situação real de Portugal na fábula contada.

Por contar uma história que aconteceu há muito tempo num Reino distante, como

acontece nos Contos de Fadas, o narrador consegue o distanciamento necessário para a análise

crítica da situação, obtendo sucesso também em mostrar a história ocorrida de forma irônica e

muitas vezes satírica.

A presença desse narrador ‗contador de estória‘ caracteriza um narrador que se faz

presente na narrativa, muitas vezes emitindo seus juízos de valor e conferindo ao relato o tom

suave da oralidade; assim, interfere o tempo todo na narrativa através das perguntas diretas

que faz. Como a narrativa é em 3ª pessoa, o foco narrativo desses questionamentos às vezes

está com o narrador, outras vezes se desloca para as personagens, dando-lhes voz.

Esse diálogo narrativo faz-se também por meio de falas colocadas entre parênteses,

estabelecendo uma conversa com o leitor, aproximando-o do texto e incitando-o à reflexão:

Mas quem tem razão? Quem garante? (DE, p. 111)

Teria tido infância? (DE, p. 112)

Ou seria muito simplesmente a saudade do jumento que tinha trocado pelo curso de

imperador? (DE, p. 118)

... e não sei se me faço compreender. (DE, p. 132)

(por causa das Sagradas Escrituras) (DE, p. 115)

Usando esse recurso, o narrador ‗contador de estória‘ de que fala o texto, consegue o

efeito paradoxal necessário à ironia e à paródia. Por um lado, ele, narrador, dono da voz

56

narrativa, ao conversar com o leitor, coloca em dúvida certos fatos da história narrada, numa

atitude que deixa o interpretante indeciso de seu domínio sobre a história e revelando também

que se trata de uma ficção, uma vez que se coloca no texto. Por outro lado, ao fazer tais

indagações, acaba também por dar maior veracidade aos fatos narrados, porque os

questionamentos e devaneios do narrador enriquecem o texto, tornando-o mais verossímil.

2.2.1 MEXILHÕES NO REINO DO DINOSSAURO

Da humana Condição

Custa o rico a entrar no Céu

(Afirma o povo e não erra).

Porém muito mais difícil

É um pobre ficar na terra...

Mário Quintana, 2006, p. 41

Como ―Dinossauro Excelentíssimo‖ constitui uma fábula, suas personagens são

animais, cuja escolha não é aleatória: o Dinossauro para representar o Ditador e o mexilhão

para representar o povo.

Dinossauro, uma espécie de réptil terrestre que viveu na era mesozóica e que se

extinguiu no final da era cretácea, há cerca de 65 milhões de anos, segundo o Dicionário

Eletrônico Aurélio. Animal de dimensões gigantescas se compararmos ao tamanho de um

mexilhão, classificado como pré-histórico, viveu na terra há milhões de anos, hoje está

extinto. O mexilhão, ao contrário, é um animal pequeno, nem tão antigo e habitante do mar,

ambos pertencem a lugares diferentes.

O dinossauro simboliza o imutável, o perpétuo e o já apagado da face da Terra, já o

mexilhão, se fizermos uma rápida aproximação sonora com o verbo mexer, teremos

dinamismo e mudança, e são exatamente essas características, aliadas à flexibilidade e ao

poder de adaptação, que os fazem sobreviver no Reino do Dinossauro. Os mexilhões são

também chamados de ―Pedintes Voadores‖, lembrando a miséria na qual se encontram, mas

57

também, a esperteza e a agilidade que não lhes podem faltar para sobreviver neste Reino

Cretáceo.

Dinossauro e mexilhão estão separados definitivamente, pertencem a mundos

diferentes, o primeiro é um predador, bicho de grande porte, literalmente devora os bichos

menores, sua cadeia alimentar é vasta, em virtude de seu porte avantajado; já o mexilhão,

muitas vezes no livro colocado no plural como sinônimo de povo, coletividade, está nos

primeiros degraus da cadeia alimentar, bicho pequeno que é, um molusco de duas conchas,

talvez desenvolvidas para se proteger dos predadores, serve de alimento, com ele se prepara

um delicioso prato, parte de muitos cardápios de restaurantes. Na fábula analisada, o

mexilhão serve de comida ao Dinossauro, o Dinossauro manda no mexilhão e engana-o, fala

numa língua empolada que o pobre mexilhão desconhece.

Mexilhão é a representação alegórica do povo oprimido, enganado e sofrido e o

Dinossauro, do Governante Ditador, autoritário que oprime e governa com mãos de ferro.

Tanto que no livro, mexilhão é chamado de: ―na luta contra a maioria dos mexilhões vulgaris

Sp, o dê-erre fazia barreira ao lado dos restantes irmãos da espécie, espadeirando com o

canudo do diploma e entoando decretos até à confusão‖(DE, p. 155).

Desta forma, na fábula, o mexilhão é o legítimo representante do povo, vulgar até no

nome, opondo-se a ele temos o genuíno representante do poder autoritário na figura do

Dinossauro, figura singular e com letra maiúscula indicativa de seu poder.

O Imperador de que o texto fala nem sempre foi Dinossauro. Antes de se

metamorfosear em bicho, o Dinossauro era um ser humano normal, sua metamorfose, porém,

foi rápida e assustadora. Para ilustrar como o Dinossauro é apresentado como um animal

grotesco, observamos sua deformação desprezível e ridícula, própria da narrativa satírica: ―...

o Dinossauro, atrás da secretária dourada, sua varanda, suas patas leoninas, parecia um

sonâmbulo pousado num sonho desértico. Não dormia há séculos, dizia-se dele; outros

garantiam: repousa vivo à margem da morte, que é a linha donde se vê mais claro." (DE, p.

172)

Mais um exemplo:

Dobrado anos a fio à secretária, o Mestre tinha criado corcova que lhe ondulavam o

dorso de cima a baixo e ganhara um andar curvado e vigilante; e como escrevia com

ódio às palavras, murmurando-as e roendo-as ao correr do aparo, os lábios foram-lhe

58

desaparecendo. A boca não passava de uma cicatriz, salvo seja, e os dentes

estalavam em escamas. Um bicho. (DE, p. 176)

Ocorre uma deformação do real por meio da animalização do ser humano; a sátira,

assim como a ironia, possui um alvo, neste caso é ridicularizar e escarnecer de forma

extremamente agressiva o Imperador (Salazar), tornando-o um monstro grotesco.

Os traços e as atitudes animalizadas são muito acentuados no Dinossauro, fala-se ainda

que era muito solitário e vivia isolado, fato este que coincide com a história verídica de

Salazar, sempre recluso e muito bem protegido em sua ‗torre de marfim‘. O Dinossauro tinha

mania de grandeza e muitas vezes julgava desperdiçar seu latim com os mexilhões,

resolvendo, por esse motivo, oferecer seus discursos ao universo. Como podemos constatar:

―Ofereceu desinteressadamente o melhor da sua sabedoria às nações e aos mundos em redor‖

(DE, p. 17). Que ofereceu não há dúvida, o adjunto adverbial de modo ‗desinteressadamente‘

é que não combina com a personalidade do Imperador, certamente é irônico, jamais faria algo

sem interesse, por filantropia apenas. Aguardava uma resposta do universo que, ingrato, nem

se dava conta desse favor; o Imperador Dinossauro, porém, sabia esperar.

Os mexilhões, por sua vez, são retratados sempre como criaturas dos mares, não

deixando de ressaltar sua natureza insignificante, de indivíduo que sobrevive não se sabe

como, uma vez que alimento e condições de vidas não são fatos inerentes de sua espécie. O

mexilhão, no texto, é retratado como o bicho, ou criatura extremamente sofrida, que sobrevive

à custa de milagre, todas as forças naturais e não naturais estão contra ele. Talvez seja por isso

que o mexilhão tenha virado as costas à terra, finca o pé na rocha, o último lugar, não há para

onde fugir, a sua frente, somente o oceano:

Criatura (porque o é), criatura à margem e mirrada, coisa pequena; bicho que se

alimenta de água e sal, do sumo da pedra ou de milagres ─ o mexilhão, vida negra,

tem a ciência certa dos anônimos: pensa e não fala, sabe por ele. Se virou costas à

terra foi por culpa dos doutores ditos dê-erres e da conversa em bacharel com que o

enrolavam; unicamente por cansaço, desinteresse. (DE, p. 130)

O mexilhão representa o povo português nos tempos difíceis da ditadura salazarista,

povo sem perspectivas econômicas ou sociais, marcado pela opressão e falta de liberdade de

59

expressão. Cardoso Pires faz a relação explícita entre o mexilhão e o povo português,

percebemos claramente este vínculo pelo trecho: ―Ao cabo de largos anos de experiência estes

camponeses pendurados nas falésias, mexilhões no legítimo sentido da palavra, tinham criado

raízes de limo,‖ (DE, p. 130)

A respeito da escassez de alimento e das condições precárias de vida, diz o texto: ―À

falta de comida mastigavam os beiços e os pensamentos que lhes trazia a brisa marítima e

esse morder em seco e as rugas de tanto fitarem o além faziam-nos velhos antes do tempo.

Nasciam já velhos, parece impossível.‖ (DE, pp. 130-131)

Nestas linhas, evidencia-se também o grotesco da situação vivida nos respectivos

Reinos, miséria absoluta no Reino do Mexilhão e Mentira e abuso de poder no Reino do

Dinossauro, salientando-se, desta forma, os contrastes.

A questão de voltar-se para o mar é algo recorrente na literatura e também na cultura

portuguesa. Todas as conquistas territoriais portuguesas foram realizadas por caminhos

marítimos, uma vez que o território português é pequeno e parece estar como um adendo entre

o mar e a Península Ibérica. Foi por meio do mar que os portugueses chegaram a dominar

outros continentes, chegaram à África, ao Brasil. Os mexilhões; de igual modo, esperavam

que a libertação viesse do oceano, numa analogia também à doutrina Sebastianista, recriada

por Fernando Pessoa no livro Mensagem, mais um intertexto, como podemos observar nesta

passagem do conto: ―Estavam, (mexilhões) pois, assim, a mirar as nuvens, a estrela da Índia

ou a onda libertadora, e eis senão quando‖ (DE, p. 131)

Outro exemplo:

... apanhando-os (mexilhões) de costas para o Reino em posição de a ver o mar,

afirmavam que a conversa era outra e que estavam simplesmente de sentinela às

brumas, na esperança de verem regressar o Dinossauro que Deus tinha numa onda

de prata. Contavam o conto e acrescentavam o ponto sem mais aquelas, escrevendo

que o Imperador apareceria na desejada onda da lenda empunhando o último

discurso e que o mar o deixaria depositado nos cumes dum rochedo. (DE, p. 196)

O segundo comentário é feito pelos ‗cornetas‘ do Reino, espécie de espiões, e embora

haja referência ao Sebastianismo, ao salvador da Pátria, ao Desejado, é uma passagem

extremamente irônica, porque a última coisa que os mexilhões queriam era outro Imperador e

muito menos empunhando mais discursos vazios. Os mexilhões miravam o mar por outro

60

motivo, talvez por desolação, por falta do que ver na terra. Depreende-se isso ao desvelar-se a

ironia presente na narrativa, ou seja, percebemos o sentido oculto do texto, contrário ao

sentido literal, e por isso mesmo irônico.

O desânimo e o conformismo com a situação opressiva vivida reflete-se no ditado

popular perpetuado no Reino dos Mexilhões: ―Quando o mar bate na rocha / quem se lixa é o

mexilhão‖ (DE, p. 129), ou seja, aconteça o que acontecer, a história tome o rumo que tomar,

quem sempre pagará a conta, será o mexilhão.

Este ditado também irônico, porque, somente entendido pelos mexilhões, seus

criadores, é completamente incompreensível ao Dinossauro e aos Dê-erres, porque eles

somente entendem o texto em sua superficialidade, não atingindo seu outro nível de

interpretação, o irônico. Os mexilhões aproveitavam essa incapacidade do Dinossauro e dos

Dê-erres para se comunicarem, criavam assim, o que Linda Hutcheon chama de ‗ironia

agregadora‘, aquela que cria comunidades excludentes.

2.2.2 INTERTEXTUALIDADE COM CONTOS DE FADAS

“O que queres que te leia, querido?

„As fadas‟?”

Perguntei, incrédulo:

“As fadas estão aí dentro?”

Sartre, apud Nasponi, 1996, p. 23

Podemos perceber a alusão aos Contos de Fadas pelo trecho do livro: ―... certo Reino

onde nos velhos outroras vivia um imperador astuto, diabo e ladrão.‖ (DE, p. 109).

Percebemos também a ironia do narrador porque de fadas e de fábulas, esta história não tem

nada, muito menos um final feliz, pelo contrário, é um triste relato de opressão e abuso de

poder.

Percebemos nesta parte tanto a ironia situacional quanto a instrumental, pois temos

além das referências intertextuais aos contos de fadas, a descrição de uma cena que ilustra

essa modalidade narrativa: coloca-se um ―narrador de estórias‖ e um ―receptor‖, representado

61

por uma criança. E a grande ironia é justamente o texto dirigir-se aos adultos e não às

crianças; e mais, a adultos com capacidade intelectual e crítica para ler e entender o texto,

fazendo as necessárias relações interpretativas.

Operação semelhante é realizada, no texto, pela paródia; a intertextualidade com os

contos de fadas acaba dando origem a pequenas paródias no interior do conto, uma vez que

essas micro-paródias dos contos de fadas são a voz da dissonância porque invertem,

questionam e destroem o sentido do texto parodiado, para então reconstruí-lo com diferença

crítica.

No conto há referências a Contos de Fadas conhecidos como ‗Pinóquio‘ e ‗Branca de

Neve‘; sempre, porém, de forma irônica e por vezes satírica, caracterizando também o que

Genette chama de intertextualidade.

Quando o narrador descreve a transformação de Salazar no Imperador Dinossauro,

verdadeira animalização do ser humano, descreve a corcova, a boca, que praticamente

desaparecera, e o nariz, que não parava de crescer, a visão que se forma em nossa mente é a

de um monstro medonho, a esse respeito lemos:

A boca, também, era o menos, já que com a idade foi ficando escondida atrás dum

nariz em perpétuo crescimento. Porquê? ... o nariz foi pendendo, pendendo, até dar

naquilo. Já não era nariz, era monco e depois nem monco era: uma crista a meia cara

ou coisa assim. (DE, p. 176)

Arriscamos a responder a pergunta do narrador embasados no conteúdo da história do

boneco de madeira a quem, quando dizia uma mentira, crescia-lhe o nariz. O Imperador

Dinossauro, representante máximo da mentira, astuto na arte de enganar o povo, assim como a

personagem Pinóquio, possuía um nariz que crescia indefinidamente, deformando-lhe a

aparência humana, e denunciando sua natureza enganosa.

O toque satírico, de cunho grotesco, transformando o Imperador num monstro

repugnante e assustador e desumanizando-o, também fica por conta desse nariz crescer tanto,

a ponto de se descaracterizar como tal e perder as referências humanas, como podemos

observar pela passagem:

62

Entretanto o Mestre, pata arrastada, monco pendido, avançava assustadoramente

pelos desastres dos anos com os olhos postos na estátua da sua primeira encarnação.

Nunca alguém lhe diria que há muito tinha perdido o traço humano e que já

projectava para longe uma sombra de monstro de solidão, dorso ondulante, a errar

por paisagens crepusculares de cinza e metal. (DE, p. 177)

Observamos o caráter agressivo da sátira que ridiculariza e ataca ferozmente o alvo,

utilizando-se do recurso da caricatura ao selecionar um detalhe do ser, no caso o nariz, e

deformá-lo de maneira caricata.

O Conto de Fadas de Branca de Neve é referenciado no episódio dos espelhos

ensinados do Imperador, alusão aos espelhos da megera do Conto de Fadas e do conhecido

diálogo entre eles. Para que o Imperador não tomasse conhecimento de sua aparência de

Dinossauro, seus conselheiros encomendaram a um mágico os tais espelhos da beleza, que só

refletiam coisas belas. O Imperador Dinossauro, vaidoso por natureza, dava bom dia a si

mesmo, olhando-se nos espelhos e lhes perguntava também:―<<ESPELHO, FIEL ESPELHO,

ONDE É QUE ALGUÉM DESAFIOU O TEMPO COMO EU?>> <<NINGUÉM, SENHOR,

NINGUÉM. PALAVRA E VIDA REGRADA FAZEM O SÁBIO IMORTAL>>, respondiam

os espelhos ensinados.‖ (DE, p. 179)

Ao contrário do espelho da Branca de Neve que falava a verdade, os espelhos da nossa

história, inversão paródica daqueles, eram programados para mentir, para distorcer a verdade,

exatamente como seu dono, o Imperador Dinossauro. A ironia aqui se manifesta na

sobreposição de contextos semânticos. O Dinossauro é ludibriado pelos espelhos que ocultam

a verdade e simulam um mundo ideal, porém, irreal, o que é muito irônico, porque o que se

espera do Dinossauro é que ele engane as pessoas, não que seja enganado por elas, ou seja, o

maior mentiroso foi vítima de uma grande mentira também. Houve uma quebra de

expectativa, uma inversão marcada pela incongruência. Como fala o texto:

Realmente, qual não seria o desgosto dele (e do Reino) se um dia se visse

dinossauro-dino-saurus nos retratos dos jornais e na moldura da televisão?

[...]

Estavam neste engonhar de cautelosos quando chegou a notícia dum mágico que

fabricava espelhos de formosura e sonhava a cores, com borboletas. Não foi tarde

nem foi cedo, encomendaram-lhe uma boa dúzia deles que transformassem a

imagem do Dinossauro em imperador novo. (DE, pp.177, 178)

63

Os espelhos ensinados, porém, não enganavam apenas o Dinossauro; com eles, os

conselheiros do Reino podiam manter as aparências, manipulando a TV, os jornais, a mídia de

maneira geral. Os espelhos representam ainda uma grande ironia, principalmente para quem

os criou. A primeira versão dos espelhos foi uma brincadeira de distorcer pessoas e coisas

para deixá-las grotescas, era para ser uma espécie de entretenimento divertido e leve, deu

muito certo e rendeu muito dinheiro para seu inventor. Porém, ele teve a infeliz ideia de

realizar a brincadeira às avessas, não foi bem compreendido pelo povo acostumado com outro

tipo de distorção, pois, o feio diverte, o belo enfurece: ―Éramos felizes e escorreitos quando

nos punha aquelas caratonhas à nossa frente e agora atiras-nos com a imagem do impossível.

Some-te, Satanás dos olhos de anjo.‖ (DE, p. 178) Justamente os espelhos tiram do povo a

felicidade da inconsciência, despertando neles a inquietação e ânsia por um mundo melhor e

mais justo, entrevisto em utópicas visões nos espelhos.

Como todos os grandes inventos da humanidade, que servem tanto para fazer o bem

quanto para realizar o mal, dependendo de quem os usa, como usa e com qual intenção, com

os espelhos da formosura ocorreu o mesmo; uma pequena modificação, que o inventor julgou

que fosse para o bem, não foi interpretada dessa forma pelas pessoas que utilizavam os

espelhos. Aqui fica muito claro o valor do interpretante, daquele que recebe o texto. É por isso

que Hutcheon afirma que a ironia é um negócio arriscado, porque se quem estiver recebendo

o texto não conseguir decifrar as marcas irônicas, não conseguirá interpretá-lo da forma que o

ironista idealizou, portanto, seu sentido irônico será anulado.

A ignorância, às vezes, pode trazer felicidade, aquele povo era feliz, se divertia com a

brincadeira da distorção que os deixavam feios e engraçados, mas, ao perceberem o quanto

belos poderiam ser, acabavam por descobrir o quanto imperfeitos eram, e por se depararem

com essa realidade até então desconhecida, escorraçaram o inventor que depois disso viveu

miseravelmente. Mais uma vez há a quebra de expectativa, porque pensamos que aquele povo

iria gostar da novidade, o que não acontece realmente. Existe talvez uma auto-ironia do autor,

uma meta-ironia, pois de certa forma o objetivo de seu conto é conscientizar o povo da

terrível situação em que se encontram, possivelmente tirá-los de uma ignorância satisfeita.

Anos depois, o inventor dos espelhos foi descoberto pelos conselheiros do Dinossauro,

o valor de seus espelhos da formosura foi finalmente reconhecido pelo Reino da mentira.

Sempre a questão da inversão presente no texto, a quebra dos paradigmas, o questionamento

64

que acaba por problematizar o texto e fazer com que o leitor procure respostas e tome uma

posição.

2.2.3 O INTERTEXTO COM A CULTURA POPULAR

Os provérbios são sempre chavões

até você experimentar a verdade

contida neles.

Aldous Huxley, apud Revista

Língua Portuguesa, nº 45, p. 11

Os ditados ou máximas, os ditos populares, são fortes elementos intertextuais do conto

analisado, estabelecendo relações, principalmente, com a cultura popular.

Os ditados são sempre invenção dos mexilhões, e não poderia ser de outra forma, pois,

como legítimos representantes da cultura popular, essa classe social oprimida produzia sua

fala própria e peculiar. Um exemplo dessa linguagem é o seguinte ditado: ―Mais vale um rico

na mão que dois pobres a voar‖ (DE, p. 138). Essa máxima passou a circular pelo Reino por

ocasião do Imperador reforçar a ideia da difícil vida dos ricos e da alegria de ser pobre. Esse

provérbio, muito irônico, acaba por revelar a esperteza dos mexilhões que não acreditavam

naquela farsa que exaltava a miséria, muito pelo contrário. O Imperador Dinossauro, porém,

não compreendia o ditado, achando-o um absurdo. Segundo as palavras do próprio Imperador

Dinossauro: ―Os pobres não voam, tinha respondido o Imperador quando lhe vieram contar a

estupidez do provérbio. Ou se voam é porque têm dinheiro para o bilhete de avião e são falsos

pobres.‖ (DE, p.138).

A ironia revela-se nesta incomunicabilidade entre Dinossauro e mexilhão, ou melhor,

na incapacidade do Dinossauro entender o sentido figurado, conotativo do ditado popular, era

somente capaz de entender o provérbio ao pé da letra, em seu sentido literal, concreto. A

linguagem polissêmica usada pelos mexilhões por meio do ditado popular acabava excluindo

o Dinossauro que não era capaz de compreendê-la, e acabava por criar o que Linda Hutcheon

chama de ironia agregadora, aquela em que há interpretações contraditórias e que, portanto,

65

cria comunidades excludentes. A intenção dos mexilhões era exatamente a de excluir o

dinossauro, usando um código cifrado de linguagem. Não eram somente os mexilhões que

utilizavam a linguagem como um código excludente, mas também o Imperador: nem

Dinossauro nem mexilhão compreendiam a linguagem um do outro.

O mexilhão não entendia a linguagem acadêmica dos Mestres Doutores, falada pelos

Dê-erres e pelo Dinossauro, linguagem empolada e prolixa, feita para enrolar, ludibriar e

ocultar a verdade. Daí outro ditado mal compreendido pelo Reino do Dinossauro: ―Com

palavras e com moscas povoa a miséria o Reino‖ (DE, p. 162). As moscas simbolizam a

miséria e a pobreza do povo e as palavras representam os discursos vazios com que o

Imperador enganava o povo; mas a esse sentido conotativo somente os mexilhões tinham

acesso.

Nota-se que a sabedoria popular se mostra através dos ditados populares, sem contar

que este era o único meio dos mexilhões se expressarem, uma das poucas formas de expressão

que ainda restava ao mexilhão oprimido, uma espécie de código entre eles; os do Reino do

Dinossauro não entendiam essa linguagem cifrada, achavam-na ridícula. Os mexilhões

usavam essa linguagem cifrada para terem um pouco de liberdade de expressão e como defesa

daquela situação de repressão, já o Dinossauro e os Dê-erres usavam a sua linguagem

codificada para oprimir e enganar os mexilhões, como forma de ataque.

Aqui se mostra também a questão da variação linguística como ruído de comunicação.

A norma culta padrão, acadêmica, falada por aqueles que detinham o poder, e a norma

popular ou vulgar, falada pelo povo, a língua como instrumento de desentendimento, não

cumprindo seu principal papel que é tornar o pensamento comum. Acaba mostrando também

como Dinossauro e mexilhão pertenciam a mundos diferentes e estavam separados pelas

condições sociais, culturais e econômicas.

Portanto, os provérbios, sendo linguagem cifrada, só entendida pelos mexilhões,

servem tanto como forma de comunicação entre eles, quanto como uma maneira de protestar

veladamente contra o governo autoritário do Dinossauro; entretanto, são também

conhecimentos e preceitos passados de geração a geração, ensinamentos de pai para filho,

como diz o texto: ―Já ensinavam os mexilhões-avós que fingir é virtude de quem vê demais, e

o Mestre devia ser desses‖. (DE, p. 165). Sábios mexilhões, não subestimavam a esperteza do

adversário Dinossauro e, muitas vezes, calavam-se para sobreviver, ou segundo outra máxima

perpetuada pelo Reino do Mexilhão e seguida até pelos conselheiros do Reino: ―Ora como o

66

surdo que muito canta acredita que tem voz (ditado dos Pedintes Voadores) os velhinhos, que

além de surdos se alimentavam a pilha portátil, ao fim de muito reunirem convenceram-se de

que eram mesmo conselheiros.‖ (DE, p. 190).

Porém, a fala recorrente entre os mexilhões ou a única certeza passada de geração em

geração era a presença do Dinossauro, sempre a pesar sob suas cabeças:

De pai para filho e de filho para neto nunca nenhum mexilhão se esquecia de apontar

o Dinossauro nos seus vários pedestais e avisar:

<<ANDA LÁ DENTRO, É ESTE>>

passando a palavra a quem viesse depois, e daí a outros, depois e mais depois e...

(DE, p. 196)

As reticências e a repetição do advérbio de tempo ‗depois‘ sugerem uma continuidade,

sempre haverá um Dinossauro opressor porque também sempre haverá um povo que se deixa

oprimir.

Outro tipo de expressão popular não menos significativa e recorrente no texto são

expressões com o número 7. Sete é um número bastante significativo e simbólico se levarmos

em consideração que sete são os dias da semana, sete são as cores do arco-íris, sete são as

notas musicais, sete são as maravilhas do mundo antigo e que Deus fez o mundo em seis dias

e descansou no sétimo dia. Popularmente falando, sete é conta de mentiroso, o que combinaria

muito com a personalidade do nosso Dinossauro.

Mas há ainda muitos dados interessantes a respeito do número sete, considerado o

número da perfeição para muitas designações religiosas e, já que estamos falando de fábula e

Contos de Fadas, sete são os anões da história da Branca de Neve. Sete são as cabeças de

Hidra de Lerna, sete são os mares, sete são as virtudes humanas segundo Pitágoras,

coincidência ou não, o número sete em nossa cultura envolve muitos aspectos misteriosos, se

não curiosos. Segundo o Dicionário de Símbolos de Juan-Eduardo Cirlot:

Sete ─ Ordem completa, período, ciclo. É composto pela união do ternário e do

quaternário, pelo que se lhe atribui excepcional valor (43). Corresponde às sete

direções do espaço (às seis existentes mais o centro) (7). Corresponde à estrela de

sete pontas, à conexão do quadrado e do triângulo, pela superposição deste (céu

sobre a terra) ou pela inscrição em seu interior. Gama essencial dos sons, das cores e

das esferas planetárias (55). Número dos planetas e suas divindades, dos pecados

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capitais e de seus oponentes (41). Corresponde à cruz tridimensional (38). Símbolo

da dor (50). (CIRLOT, 1984, pp. 413-414)

No conto, há referências a ―General de Sete Estrelas‖ (pp. 113 e 114) feitas pelo

pároco no batismo do futuro Imperador, dizendo que o pequeno haveria de ser um General,

porém, com 7 estrelas, numa expressão exagerada, pois é sabido que o maior grau na

hierarquia dessa categoria são as quatro estrelas.

O episódio que narra os soldados portugueses batendo em retirada das terras africanas,

justamente quando esses mesmos soldados encontram a estátua do Imperador sem o braço,

diz: ―Os soldados atravessavam a floresta a sete pés na direcção da costa quando esbarraram

com ela‖ (a estátua) (DE, p. 145). A expressão ‗a sete pés‘ significa muito rápido, a toda a

velocidade. Curioso observar como as expressões com o número sete adquirem significados

diversos, tantos positivos quanto negativos: sete palmos abaixo da terra, sete léguas, viajar

pelos sete mares, sete pecados capitais, guardado a sete chaves.

Esta última expressão aparece bastante no texto de DE e uma explicação possível para

a origem dessa máxima é o fato de que, no século XIII, os reis de Portugal guardavam joias e

documentos importantes da corte num baú que possuía quatro fechaduras, sendo que cada

chave era distribuída a um alto funcionário do reino. Eram apenas quatro chaves. O número

sete passou a ser utilizado devido ao valor místico atribuído a ele, desde a época das religiões

primitivas. A partir daí começou-se a utilizar o termo ―guardar a sete chaves‖ para designar

algo muito bem guardado.

O intertexto com a cultura popular manifesta-se na utilização de um subtítulo de

capítulo com essa expressão: ―Passaporte em sete chaves‖ (p. 160). Neste momento do conto

fala-se sobre o principal ofício do Dinossauro, que era perseguir e destruir toda e qualquer

palavra que ele julgasse subversiva; fala também do isolamento do Imperador e dos poucos

felizardos que têm acesso ao seu ‗covil‘. A esse respeito diz o narrador: ―Poucos, raríssimos

cidadãos podiam entrar na torrezinha onde ele se tinha fechado a sete chaves, todas de

segredo e cada qual com o seu nome:‖ (DE, p. 160) Esse expediente é explicitado em seguida,

ao mesmo tempo em que o narrador enfatiza o quadro de um Reino burocrático e cheio de

segredos muito bem guardados; assim, enumera as sete chaves, cada uma com uma função

diferente: 1ª Chave, da força; 2ª Chave, da Bênção; 3ª Chave, do Comércio; 4ª Chave, dos

Espiões; 5ª Chave, das Alianças; 6ª Chave, do Suborno, e 7ª Chave, dos Caprichos e Acasos.

68

Diz o texto que: ―Conforme a pessoa, assim a chave que lhe dava entrada na torre.‖ (DE, p.

161) Tudo muito secreto e recluso; tal prática era reproduzida por todos aqueles que faziam

parte do Reino do Dinossauro, transformando o Reino num imenso segredar. Em trechos

como esse, percebe-se claramente o alvo da ironia e da sátira do narrador, Salazar e seu

governo burocrático e cheio de segredos.

A ocorrência de expressões latinas no texto caracteriza, além do intertexto com a

cultura e a tradição, o preciosismo e o pedantismo do Reino do Dinossauro, que faz questão

de exibir uma linguagem culta, própria de uma parcela mínima da população, extremamente

privilegiada. Quem usa o latim são geralmente personagens ligados à Igreja, os Mestres

Doutores, os Dê-erres, Cirurgiões, jamais um mexilhão falou neste dialeto elitista, utilizado

como instrumento de exclusão. O uso de uma língua morta que já foi, porém, símbolo de

grande poder político, juntamente com o apoio da Igreja Católica, principal responsável pela

manutenção do uso do latim, é muito significativo no texto, pois revela como tanto a religião

quanto a linguagem podem servir de instrumento de dominação e alienação. Abaixo seguem

alguns exemplos retirados do texto:

Silêncio à volta. Bem, nesse caso o prior sentia-se melhor do que qualquer um,

melhor do que ninguém, fosse quem fosse, para afirmar o que convinha à Santa

Madre Igreja e ao mundo Pecatorum Orbi e que era: Doutor. A criança estava

destinada às leis por muitas e muitíssimas razões, quod erat demonstrandum.

<<ÁMEN>> (DE, p. 115)

Pecatorum Orbi /Quod erat demonstrandum - ―terra dos pecados‖, ―como queríamos

demonstrar‖, esta última expressão é usada na matemática, como encerramento da solução

de um problema, de uma equação matemática.

As expressões foram utilizadas pelo pároco no batismo da criança que viria a ser o

Imperador Dinossauro. O pároco tentava convencer os presentes de que tinha autoridade e

sabedoria suficientes para saber com precisão o destino da criança. As expressões em latim

denotam sua autoridade como representante de Deus na Terra e também sua prepotência e

arrogância. O pároco elege-se como o mais capacitado para decidir o destino do menino, e

isto perante a Igreja e também ao mundo que em latim chama de pecador. O autoritarismo fica

69

ainda mais forte porque a fala é concluída com um ‗amém‘ também em latim, expressão de

concordância que significa, ‗assim seja‘.

Ao juntar uma expressão aparentemente religiosa com uma científica percebemos a

sátira que tem como alvo de sua crítica a Igreja Católica.

Mais adiante o pároco sempre tentando persuadir as pessoas de que seu palpite era o

melhor, diz:

O prior, como a sua paciência não tivesse limites (por causa das Sagradas

Escrituras), o prior repetia e tornava a repetir o seu palpite bem intencionado,

explicando a beleza dos doutores de leis. Apresentava-os como eminências que se

passeavam apoiadas no parágrafo de ouro e que era tão solene como o obstáculo dos

bispos mas com mais voltas. Depois, também eles tinham a sua bíblia, acrescentava,

o seu Código-Codex-Abrenuntio onde mergulhavam a todo o instante para

acertarem o relógio do castigo, razão por que estavam sempre tão estudiosos e

meditabundos. (DE, p. 115)

Códico-Codex-Abrenuntio - tanto códico como codex, referem-se aos códices (livros)

medievais, e abrenuntio era uma exclamação de repúdio ao diabo e suas formas, como

―Meu Deus‖, ―Ave Maria‖, de hoje.

O pároco para sustentar sua posição de que o menino deveria dedicar-se às leis, usa do

recurso argumentativo da comparação, colocando os Códigos das Leis no mesmo grau de

importância da Bíblia como o guia de conduta de vida a ser seguido.

O uso da expressão ―acertar o relógio do castigo‖ para ilustrar a consulta ao Código

das leis em busca de orientação para julgar e castigar as pessoas, evidencia a crítica à Igreja

Católica, pois esse Código é comparado à Bíblia com a intenção de desmascarar

comportamentos hipócritas, a comparação também deixa claro o caráter punitivo tanto da

Igreja quanto das Leis, e mostra também o poder que têm as pessoas por detrás dessas

instituições. Mais uma vez há a mistura entre elementos religiosos e seculares, na palavra

‗abrenuntio‘, por significar uma rejeição às diversas formas do maligno.

Mais uma evidência satírica, segundo Paulo A. Soethe, é a conexão com a realidade,

aquela que incomoda deveras o autor da sátira e o faz ridicularizar o alvo da crítica para

intensificar sua denúncia-agressão. Lemos no conto:

70

Ocuparam, como se diz, os pontos estratégicos para de repente, a eles, a eles, que é

uma pressa, caírem em cima dos mexilhões, brandindo os seus canudos de

bacharéis:

<<IN HOC SIGNO VINCES!>>

<<IN HOC SIGNO VINCES!>>

Apanhados de costas, os da beira-mar renderam-se sem discussão tanto mais que não

compreendiam a língua dos invasores. (DE, p. 131)

‗Sob esse signo venceremos‘ é o que significa a expressão latina e remete ao

pedantismo daquele Reino burocrático. Os Dê-erres se referiam ao palavreado difícil e

preciosista do Reino que intimidava o mexilhão porque este não conseguia decifrá-lo.

Apanhados de surpresa e de forma covarde pelas costas, o mexilhão não esboçava reação

diante daquela linguagem feita para enganar e excluir.

O narrador também utiliza de expressões em latim para compor a ironia em seu texto.

Ao falar da grande quantidade de padres na cidade dos doutores, diz:

Havia-os das mais variadas formas e feitios, à paisana ou em oficial ─ dependia do

lugar e da estação. Padres em rústico encontravam-se quase sempre à mesa do

lavrador ou a correr atrás das lebres; de bicicleta passavam os curas ditos operários a

tilintarem as encíclicas; de motoreta, os desportivos de paróquia agitada. Alguns, de

unha de verniz e boquilha nos dentes, patinavam nas avenidas de asfalto; outros

instalavam-se no écran da televisão, e assim por diante et nunc et semper. (DE, p.

122)

A ironia permeia todo o relato a respeito da imensa variedade de padres existentes na

cidade, julgando de forma pejorativa o alvo, porque ao terminar o parágrafo com a expressão

em latim que significa ‗agora e sempre‘, dá a exata dimensão do que pensa a respeito, de que

padres são como pragas ou ervas daninhas, que sempre existiram e existirão para azar da

humanidade. A figura do padre é ridicularizada e, portanto, deformada por meio da ironia

atacante, segundo Hutcheon, configurando a sátira.

A união de elementos dissonantes parece ser a tônica das expressões em latim, e as

incongruências, as antífrases, as ambiguidades, são também o que caracteriza os discursos

paródicos, irônicos e satíricos. Quando o Imperador Dinossauro finalmente morreu, lemos:

―Dinossauro, paz perpetua, Dies irae, faleceu com suores de santidade na hora mais alta do

século, ano da Comemoração‖. (DE, p. 193) Que significa ‗paz perpétua, da ira de Deus‘,

71

temos elementos que se excluem: ‗paz‘ e ‗ira‘. Percebemos a sátira mais uma vez, na

ridicularização da morte do Dinossauro por meio da ironia atacante altamente agressiva. A

expressão ‗suores de santidade‘ é a responsável pela antífrase irônica porque sabemos que

aquele Imperador Dinossauro não era nada santo.

2.2.4 DÊ ERRES / PIDE / CENSURA

Os governos suspeitam da

literatura porque é uma força que

lhes escapa.

Émile Zola, apud Revista Língua

Portuguesa, nº 43, p. 11

A censura no Reino do Dinossauro coube aos Dê-erres, numa alusão à PIDE (Polícia

Internacional e de Defesa do Estado) de Salazar, assim descritos no conto: ―DECLARA-SE A

INVASÃO DOS DÊ-ERRES. Eram cidadãos do interior, filhos ricos de montanheses, que

avançavam, friamente treinados pelos mestres da cidade dos doutores.‖ (DE, p. 131)

Os Dê-erres, segundo o texto, eram pessoas abastadas economicamente e vindos do

interior do país, cuja função era vigiar o mexilhão; para isso haviam sido treinados pelos

mestres doutores, caracterizando-se, pela instabilidade e desconfiança, qualidades

imprescindíveis à função de fiscais da lei. Diz o texto que eles estavam em toda a parte e que

sua conversa ou dialeto atordoava qualquer mexilhão.

Dê-erre pode significar tanto ―próprio de ‗erres‖, ―aqueles que detém os erres‖, ou

seja, os títulos de Doutores e outras designações, desde que sejam nobres, como exemplifica

o texto:

Naquele Reino da Comarca dos Doutores, o dê-erre, Dr, R-D, Herr D, Senhor D ou

Senhor Dom, distinguia-se à léguas dos restantes mexilhões pelo porte de todo

contentinho com a sua pessoa, pelos tons escuros com que revestia o corpo e pelo

cantar inconfundível, que era esdrúxulo e gargarejado. (DE, p. 154)

72

Percebemos que todos os Dê-erres possuem essa letra no nome como um diferencial,

um traço distintivo que enobrece a função dos fiscais, que objetiva manter a ordem e fazer

cumprir a lei estabelecida pelo Dinossauro ditador.

Dê-erre, ironicamente, poderia também significar ―aquele que erra‖, derivando de erro;

nesse caso, simbolizaria, alegoricamente, a repressão em Portugal. Como suas principais

armas de coerção eram a língua dos Mestres-doutores, incompreensível para aquela espécie, o

próprio diploma de Doutor empunhado como espada e muita tapeação, aos Dê-erres também

são atribuídas características grotescas ou animalescas, como constatamos pelo texto:

Deslocava-se com solenidade difusa à custa do canudo de bacharel que manobrava

como um apêndice perfurador para abrir caminho nos subterrâneos dos decretos e

que ao mesmo tempo lhe servia de membrana extensora do aparelho bucal. Ávido e

depredador, nisso ninguém o batia. Contudo, dotado de apreciável sentido colectivo,

observam os especialistas ─ (DE, p. 155)

Nota-se que o diploma faz parte do Dê-erre como extensão de seu próprio corpo e

possui uma dupla função: realiza o trabalho burocrático e intrincado da Polícia de Repressão,

ao mesmo tempo em que funciona como ampliação de sua boca, talvez para torná-lo mais

voraz na caça ao mexilhão subversivo ou para abrir caminhos por decretos. Nesses traços

caricaturais, evidencia-se o recurso ao grotesco e à coisificação, próprio da sátira.

Uma classe tão instruída como a dos Dê-erres deveria agir de forma mais civilizada;

ironicamente, porém, os Dê-erres não respeitavam nem aos da sua própria espécie, um queria

mandar mais que o outro, e usavam o poder do diploma, não somente com os mexilhões, mas

também com os seus:

[...] e como em toda a coroa imperial não havia senão 1-Único Mestre que tudo lo

podia e tudo lo mandava, cada dê-erre andava a enganar os outros, fingindo que era

o mais importante a seguir ao Chefe, conforme se pode ver pelo conhecido

parêntesis

<< O VOSSA EXCELÊNCIA NÃO SABE

COM QUEM ESTÁ A FALAR>> (DE, p. 155)

73

Essa última expressão é característica da soberba conferida pelo cargo e pelo diploma,

a famosa prepotência do poder que tudo compra e tudo corrompe.

Fica muito claro com os Dê-erres, quem é o alvo da ironia e qual é a paródia. O

narrador retrata muito bem a PIDE:

Mais para o finalmente, quando pouco havia que aprender, os dê-erres deram-se por

afinados e foi um varrer de feira. Lançaram-se à rédea solta pela escrita do país,

levantaram poeira e cascalho nos terreiros da televisão, praças públicas, academias,

caíram em cima dos jornais da cidade e de toda a folha de couve da província. (DE,

p. 165)

Neste trecho evidencia-se que não havia liberdade de expressão naquele Reino, toda a

mídia impressa era controlada pela Polícia de Repressão, pelos Dê-erres, e num toque irônico

do narrador, ressaltando o absurdo da situação; toda folha, até a vegetal, era considerada uma

ameaça ao poder central. A expressão ‗toda folha de couve‘ bastante usada pelos portugueses,

no texto seria uma metáfora para indicar as pessoas comuns, ou seja, todos os mexilhões do

Reino do Dinossauro. Portanto, o narrador, assim como os mexilhões, usa a linguagem

figurada para contar sua história; equiparando-se aos mexilhões, o narrador também tem que

se utilizar de formas alegóricas, da fábula, para se expressar, ele também não pode usar a

linguagem direta, tem que usar a linguagem cifrada, aquela que nem Dinossauro nem Dê-erre

é capaz de compreender. ―Dinossauro Excelentíssimo‖ é uma sátira da ditadura salazarista,

recriando de forma diferenciada e crítica tudo que aconteceu naquela época, usando do

disfarce e da dissimulação em seu discurso para poder ser publicado.

O trabalho de espionagem realizado pelos Dê-erres assim é narrado: ―Um a um, todos

os jardins foram ocupados por espiões com o ar de quem não quer a coisa e as bandas de

domingo e coreto, muito em piano, pianíssimo, foram-se afastando, afastando, e, andante,

sumiram-se sem dar nas vistas. As noites calaram-se, os pobres também.‖ (DE, p. 133)

O narrador utiliza ‗jardins‘, termo de extensão menor, para se referir a todos os

espaços ocupados pela polícia de repressão e que certamente não se limitavam aos jardins,

num recurso sinedóquico. Do mesmo modo que não foram somente as ‗bandas‘ e os ‗coretos‘

que se calaram, mas todo o povo que se viu obrigado a silenciar.

74

O narrador, para nos falar da repressão, e ao usar este recurso, aumenta a sensação de

invasão de privacidade que aquele povo sofreu. Os espiões estavam em toda parte e todas as

vozes, especialmente a do mexilhão, calaram-se. A principal arma do Dinossauro para oprimir

o povo era promover a privação das vozes.

Neste Reino do Dinossauro, em que se valorizava a sabedoria cristalizada dos mestres

doutores e a burocracia de todo o tipo, o vigiar constante dos súditos era o trabalho dos Dê-

erres. O narrador revela de forma irônica e satírica o quando a repressão e a censura foram

ativas neste Reino:

Tinham obrigado os mexilhões a vestir de escuro porque a vida não estava para

graças, e decretaram que de futuro o riso seria a máscara do desdém, o falar a capa

dos ignorantes e a alegria o fumo da inconsciência. Assim, sem mais conversa. Que

se passasse aviso e se cumprisse, soma e segue, Reino da Comarca, tantos de tal.

(DE, pp. 132, 133)

O sentido de imposição fica muito claro na fala do narrador, também é explícito que a

imposição se dirige aos mexilhões, especificamente o alvo da repressão e da censura.

Muito mais que mandar no ser social do cidadão, a censura e a repressão estendiam-se

ao controle do sentimento do indivíduo. Era punida toda manifestação genuína de alegria e

contentamento e a palavra na boca do povo seria sinônima de ignorância. Desde modo,

achavam eles que conseguiriam anular os mexilhões, tanto é verdade que o narrador nos

informa desta falta de liberdade transformando a silhueta de seu texto em uma ata, documento

ou decreto que deve ser cumprido, percebemos a mudança no estilo pelo uso das expressões

‗soma e segue‘, ‗Reino da Comarca‘, ‗tantos de tal‘, indicativos do preenchimento de um

documento oficial.

Mas como acontece nos governos ditadores e repressores, sempre há aqueles que têm a

coragem de contrariá-los, seja de forma ostensiva ou silenciosa, como no caso dos mexilhões

do texto, que sabiam das artimanhas para enganá-los e se fechavam no sofrimento: ―Os

mexilhões sabiam muito bem que era assim e fechavam-se na casca, segredando apesar de

tudo palavras que logo apareciam espalmadas nos muros (mesmo nos muros mais

frequentados pelas varejeiras do Paço) e que faziam perder a cabeça dos dê-erres.‖ (DE, p.

139) Nesta parte percebemos que por mais que o Dinossauro tentasse, não conseguiria calar

75

totalmente os mexilhões, sempre houve e haveria resistência, seja ela mais ou menos evidente

ou significativa. As ‗varejeiras do Paço‘, espécie de mosca repugnante que cerca tudo e todos,

poderiam ser comparadas à PIDE portuguesa, que de igual modo agiam como moscas em

cima dos pobres mexilhões.

2.2.5 SALAZAR E AS PALAVRAS / CÂMARA DE TORTURAR PALAVRAS

Certas palavras são como granadas.

Usadas com imperícia, explodem na

boca.

Graham Greene, apud Revista

Língua Portuguesa, nº 2, p. 7

Uma característica do Dinossauro era ser devorador de palavras. Que ironia, a criança

que trocara o burro por um curso de Imperador, para exatamente aprender palavras, agora

perseguia essa infame categoria da linguagem até à exaustão, na intenção de destruí-la. Mal

sabia o Imperador o seu destino, que nesse intento louco de exterminar as palavras, acabaria

arruinado por elas, como lemos no conto:

O que os viajantes trotamundo não sabiam era que, na cegueira de perseguir as

palavras, Sua Alteza iria cair

PRISIONEIRO

Encerrado no casulo. (DE, p. 163)

Como os mexilhões sabiam dessa obsessão do Imperador pelas palavras, espertos que

eram, simulavam ser as criaturas mais desprovidas delas. A bem da verdade, os mexilhões

eram desprovidos de tudo, habituados a passar fome, magros por natureza, agarravam-se às

rochas como podiam e ficavam a observar o mar, sobreviviam com muito pouco, quase nada,

como descreve o narrador: ―... o mexilhão: Pé na rocha e força contra a maré. Daí o nome de

76

Reino do Mexilhão que lhe pôs a geografia em homenagem a esse marisco mais que todos

humilde, só tripa e casca.‖ (DE, p. 129)

Portanto, se nem as necessidades básicas do mexilhão eram sanadas, quanto mais as

superficiais; assim, a arte das palavras era uma dádiva reservada a poucos privilegiados, leia-

se Dinossauro e Dê-erres.

O que acontece de interessante no conto é o tratamento dados às palavras pelos Dê-

erres e pelo Dinossauro, é como se as palavras fossem pessoas reais, por isso, ganham status

de personagem nesta fábula. E igualmente como qualquer personagem, tanto podem servir à

verdade como à mentira. As palavras que o Imperador julgasse subversivas e que, portanto,

segundo seu juízo de valor serviam para enganar e subverter a ordem vigente, eram

perseguidas até à extinção.

Observamos o caráter polissêmico do signo linguístico, as mesmas palavras julgadas e

condenadas pelo Dinossauro e pelos Dê-erres, eram sinônimas da expressão da mais pura

verdade e retratavam com exatidão e justeza a realidade; desse modo, se julgadas pelos

mexilhões, seriam absolvidas e deixadas em liberdade para cumprirem seu papel. Para cada

personagem, uma interpretação diferente do código, de acordo com sua bagagem, cultura e

interesses pessoais, como constatamos pela passagem do texto:

Quanto tempo gastou o Imperador a perseguir as palavras que empestavam, dizia

ele, o Reino? Meses e meses. Anos. O melhor da vida, o suor da insônia.‖ ―Bandos

de espiões batiam as ruas atrás da frase solta e do dito por dito, confrarias de

mafarricos adejavam pelas entrelinhas dos compêndios, sacudiam a letra de forma e

se fosse preciso esmagavam-na, davam-lhe jeitos, maneiras. (DE, p. 142)

É interessante observar a linguagem de duplo sentido utilizada pelo narrador, cheia de

trocadilhos, que deixa o texto irônico com um tom bem humorado, como por exemplo: ―atrás

da frase solta”, ou seja, possivelmente aquela que está livre nas ruas ou perdida no meio de

outras. A palavra “entrelinhas”, que nos conduz a diversos níveis de leitura, ao sentido literal

e a outros sentidos possíveis. Ou ainda a expressão corrente “o dito pelo não dito”, recriada

pelo narrador “o dito por dito”, ou seja, a palavra imposta, evidenciando a impossibilidade de

um diálogo democrático. E o mais interessante é o tratamento humano dado às palavras,

concentrado nos verbos: sacudir, esmagar e dar jeito, geralmente utilizados em relação às

77

pessoas, no texto literalmente se sacudia e esmagava letras como a polícia de inteligência

fazia com as pessoas, para tentar descobrir alguma insubordinação, a isso chamavam ‗dar

jeito‘ ou ‗maneira‘ às palavras, da mesma forma brutal que coagiam as pessoas.

Não deixa de ser irônica e satírica, porque ridícula, esta perseguição às palavras, como

se fosse delas a culpa e responsabilidade pelos atos das pessoas.

A obsessão do Imperador Dinossauro era tamanha que, usando de toda tecnologia

disponível, construiu ―a câmara de torturar palavras”, que poderemos considerar como uma

grande metáfora da censura. Contratou os melhores profissionais para construir esta máquina

infernal que possuía um complicado esquema de funcionamento em etapas que iam de A até

E. Sobre a construção desse artefato lê-se:

E ao ver o monstro a funcionar esfregou as mãos: agora sim, a música ia ser outra.

Seguidamente pagou aos engenhosos e despachou-os para o

OLHO DA RUA!

(Ou mandou-os matar, resta saber.)

Aquilo que até ali não passava de um gabinete de silêncio e mesa dourada iria ser

conhecido por

A CÂMARA DE TORTURAR PALAVRAS (DE, pp. 142, 143)

Este fato ressalta claramente o caráter violento do Governo Militar; há menção

explícita à prática de violência por parte desses governos. E violência em seu grau mais

elevado que tem como consequência a morte de pessoas.

O processo pelo qual as palavras passavam na tal câmara era muito semelhante a

qualquer processo pelo qual as pessoas investigadas e / ou torturadas passam. A sátira reside

nesta deformação da realidade, pois é muito ridículo e insano torturar as palavras, o normal

seria inquirir e atormentar quem as profere, mas em nosso conto, as palavras adquiriram status

de personagem, são tratadas como pessoas; o narrador deixa este fato muito claro quando

revela o nome da máquina: Câmara de Torturar Palavras.

No estágio A da Câmara de tortura de palavras, era feita uma espécie de triagem de

palavras. No estágio B havia uma seleção progressiva, tentava-se entender as intenções mais

ocultas de cada palavra. No estágio seguinte, cada palavra era esmiuçada em suas origens. No

estágio D, obtinha-se uma síntese da palavra por meio de sua compressão. Finalmente, no

último estágio, tudo era gravado numa fita de registro contínuo. O processo de torturar

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palavra é muito semelhante ao processo de tortura de pessoas, porque há uma investigação

somente das palavras suspeitas, depois pesquisam-se suas origens e intenções; já os estágios

da síntese e da compressão fazem alusão à tortura porque são processos de extração,

constituindo o registro a sentença final, a conclusão de culpa ou inocência.

Com o uso da Câmara de Torturar Palavras, a censura intensificou-se, como ilustra

essa passagem do texto:

Mas o Mestre tratava-lhes do desconversar, queimando diariamente uma boa porção

de palavras que lhes faziam falta. Queria o Reino lavado de termos menos legítimos

e da frase enviesada ou de dois bicos, e ia conseguindo. Não tardou muito os

dicionários estavam no nervo e os mexilhões já só falavam pela calada.

<<GENTE DISCRETA>> (DE, p. 162)

As palavras recebem tratamento humano, ou melhor, desumano, por parte do

Dinossauro; tanto é verdade que, à medida que o Imperador as destruía, elas faziam falta.

Assim, não era somente a questão da proibição de certos tipos de vocábulos ou frases que iam

contra o Governo, mas do extermínio das palavras como se fossem pessoas; elas, palavras

personagens, desapareciam de seu habitat natural que eram os dicionários, pela ação do

Dinossauro. E o mexilhão, gente discreta, falava cada vez menos e somente em segredo.

O alvo do Dinossauro, porém, não se restringia às palavras, estendia-se à pontuação,

forma eficaz de comunicação e expressão. Vejamos o que fala o texto: ―Mas, perguntou ele

um belo dia,

<<E A PONTUAÇÃO?>>

Bem perguntado: a pontuação nas mãos dos mexilhões anarquistas podia muito bem ser usada

como rasteira.‖ (DE, p. 173) E começa a discorrer a respeito da expressividade dos sinais de

pontuação e, principalmente, dos possíveis duplos sentidos que eles podem causar nas mãos

inimigas. Fala das perigosas reticências, das vírgulas mal colocadas, dos parênteses que

poderiam levar a erros. Usando um discurso metalinguístico, irônico e ambíguo, o narrador

expõe ao ridículo a atitude do Dinossauro, ressaltando suas características de animal pré-

histórico.

No exemplo que citaremos a seguir, o Imperador volta a censurar a pontuação, mas de

forma bastante original, utilizando uma metáfora que nos faz lembrar um decreto. Dizia

79

assim: ―ORDEM!!!‖ (DE, p. 174), justificando os três pontos de exclamação comparando-os

à uma escolta de baionetas e dizendo que, desta forma, o decreto a respeito da pontuação,

seria digno de quem detinha o poder e a autoridade. É a forma, a silhueta do texto, seu

aspecto gráfico reforçando o conteúdo, que alude para a hierarquia estabelecida naquele

Reino, no qual até as palavras eram tidas como soldados e recebiam o mesmo tratamento

militar, severo e autoritário.

Mais adiante, ainda falando a respeito da pontuação, encontramos uma passagem

irônica que salienta o ridículo dessa prática de se perseguir até a pontuação do discurso

linguístico: ―Lá ia o tempo em que os jardins da escrita eram um paraíso em lantejoulas de

tremas e de reticências e em que o til, essa borboleta, andava em liberdade beijando as vogais

da infância. Tempo bom? Tempo mau?‖ (DE, p. 174)

A humanização da linguagem torna-se muito clara porque vemos que, assim como

acontecia com as pessoas, antes de se instaurar a ditadura e com ela a repressão do governo do

Dinossauro, tinham elas liberdade de expressão e viviam inocentes e soltas, da mesma forma

que a escrita gozava seus dias em liberdade sem coerção; com a ditadura tudo muda, tanto

para as pessoas como para as palavras. A ironia consiste na forma com que o narrador coloca

a metáfora da linguagem, idealizando a felicidade vivida anteriormente nas expressões:

‗paraíso em lantejoulas‘, o til como uma ‗borboleta‘ beijando as ‗vogais da infância‘. O

questionamento final acerca do tempo, se ele foi bom ou ruim, denota ainda a ironia, é óbvio

que são tempos maus. Mas como afirma Muecke, a ironia nos deixa a sensação de paradoxo

de uma dupla realidade contraditória.

As questões linguísticas são ainda tema de um estranho sonho do Imperador

Dinossauro, pois parágrafos, vírgulas e pontos de exclamação povoavam a fantasia noturna do

ditador, porém, a comparação mais contundente ainda seria feita e seria também a derrocada

do Imperador, sua primeira queda, ou morte, aquela que o deixou mais debilitado do que já

estava; o delírio imperial de ver serpentes no lugar de tiras de papel elevaria sua obsessão pelo

controle das palavras.

Em sua fantasia onírica, palavras são comparadas com serpentes traiçoeiras, no

episódio da famosa queda do Imperador, dia também em que a Câmara de Torturar Palavras e

os computadores do Reino trabalhavam sem cessar. Tiras e mais tiras de papel com palavras,

saiam das máquinas em movimento contínuo e enchiam o gabinete do Imperador, deixando-o

ensandecido:

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SERPENTES, as palavras rastejavam-lhe aos pés; continuavam a cair na teia uma

por uma, amontoando-se no chão em tiras perfuradas que escorriam dos

computadores e que se revolviam, ondulavam,

ERAM SERPENTES

crescendo, crescendo sempre. (...) já iam nos joelhos do Dinossauro, marinhando por

aquela sonolência feroz e embalando-a com o farfalhar dos seus corpos de papel.

Não paravam, alongavam-se e reproduziam-se, salpicadas de furos, de pintas quero

eu dizer, e nesses furos, nessas pintas, vinha todo o código venenoso das palavras

proscritas. (DE, p. 182)

As tiras de papel que saem das máquinas ganham vida, rastejam, mexem-se e

multiplicam-se, são verdadeiras serpentes; há uma comparação direta entre palavras e seres

vivos quando lemos que o farfalhar dos ‗corpos‘ de papel embalavam a sonolência do

Imperador.

A serpente, desde a bíblia, teve sua história ligada à traição e ao pecado, foi a serpente

que enganou a mulher e a fez comer do fruto proibido. Ela sempre esteve ligada à ideia de

engano, de ardil, daí as ‗palavras serpentes‘ serem, segundo o Imperador, os indivíduos mais

subversivos e perigosos do Reino, os que mais deveriam ser destruídos. Quase sufocado pelas

palavras, o Imperador: ―Tentava alcançar os fusíveis, parar de vez as máquinas e os sons, mas

as tiras malignas, as danadas, tolhiam-lhe os passos. Começou a estrangulá-las, a parti-las‖

(DE, p. 182) Estabelece-se uma verdadeira luta entre o Imperador e as serpentes, cujo

desfecho será a queda do Dinossauro.

A ruína do gigante Dinossauro foi provocada pela pequenina palavra, por uma

infinidade delas, é verdade. Mas, de forma semelhante à história bíblica de Davi, que com

uma funda derrubou o gigante Golias, vencendo uma grande batalha, o Dinossauro dessa

história também foi derrotado por um inimigo bem menor em tamanho. Ainda que, ao

contrário da história bíblica, o Imperador Dinossauro jamais tenha menosprezado o poder de

destruição do inimigo.

Havia palavras muito especiais neste Reino, que eram indispensáveis a seus

governantes e principalmente ao Dinossauro. Eram palavras que serviam como verdadeiras

chaves, pois abriam portas e discursos, eram curingas, funcionando em todas essas situações;

leia-se o exemplo do texto:

Não menos importantes eram certas palavras que se usavam para abrir portas e

discursos. Bem manobradas, valiam como gazuas de ouro, feliz de quem as soubesse

81

usar. Ordem, nem se discutia, era infalível; Destino, Mortos, Heróis, obrigavam a

tirar chapéu; Fidelidade salvava a frase mais comprometida. (DE, pp. 161, 162)

É válido lembrar que tais palavras mágicas só funcionavam na boca das pessoas certas,

ou seja, dos Dê-erres e do Imperador Dinossauro. Não é de se estranhar que a palavra

‗Ordem‘ esteja entre as mais eficazes nesse sistema autoritário de governar. ‗Destino‘ também

é bastante conveniente, porque faz com que o povo permaneça conformado com a sua

situação e com quem a providência divina escolheu para governar.

2.2.6 EUFEMISMOS DO DISCURSO OU MANEIRAS DE ENGANAR O POVO

As palavras verdadeiras não são

agradáveis, e as agradáveis não são

verdadeiras.

Lao Tsé, apud Revista Língua

Portuguesa, nº 55, p. 7

O Imperador Dinossauro sabia muito bem o poder das palavras, tanto que queria

destruir essa verdadeira arma. Na verdade, o que ele desejava destruir era a palavra na boca

do mexilhão ou daquele que se opusesse ao seu governo, e manter bem viva a palavra em sua

própria boca, principalmente aquelas que serviam a seus interesses.

Como bem disse o narrador no início de sua narrativa: ―falando de certo Reino onde

nos velhos outroras vivia um imperador astuto, diabo e ladrão‖ (DE, p. 109); Imperador

ladrão de palavras e de sonhos e, semelhante ao diabo, se não era o pai da mentira, talvez

fosse um parente bem próximo dela. No seu Reino imperava o engano, tanto para os súditos

quanto para os que o ajudavam a governar. E essa fraude estendia-se para a vida privada do

Imperador, que mentia para si mesmo. Podemos dizer que era o Reino da enganação ou o

Reino do faz-de-conta, às avessas é claro, porque nada de mágico ou de virtuoso combinava

com aquele Reino desencantado, no qual reinavam a fome, a miséria, a injustiça e a falta de

liberdade de expressão.

82

O imperador jamais se dava por vencido, mesmo contra a evidência da realidade. Por

ocasião de perder uma batalha nas Colônias da África, ao ser informado da derrota, não se

deixou abater, disse que o inimigo nem possuía um exército organizado, com patente

reconhecida, portanto, não se poderia considerar como batalha perdida uma vez que nem

houvera batalha nenhuma, como podemos constatar pelo fragmento do texto: ―Ora, tanto

quanto era do conhecimento dele, Excelentíssimo, não acontecia assim com os infiéis, que

não passavam de uma tropa-fandanga sem capelão nem uniforme. Conclusão: não tinha

havido batalha nenhuma. Militarmente, pelo menos.‖ (DE, p. 141) O Imperador Dinossauro

manejava habilmente as palavras para distorcer as situações e os fatos a seu favor,

propiciando o surgimento de vozes dissonantes, característica essencial da paródia, e

suscitando também o humor satírico, porque a prepotência do Imperador não permitia que ele

admitisse a derrota embora ela fosse um fato. O Imperador preferia viver a mentira de que sua

autoridade não fora violada e a batalha jamais perdida.

Portanto, distorce ele os fatos a seu favor, minimiza suas derrotas, muda a ordem das

coisas para manter seu poderio. É a questão da mentira para os outros, e para si mesmo, base

de sustentação de todo seu governo, e ai daquele que o contestasse. Encontramos mais um

marcador irônico, a aparência da verdade, quando a realidade é bem outra.

Depois de perder aquela batalha na colônia, que sabemos ser uma referência ao

Continente Africano, onde Portugal colonizou muitas regiões, há a revolta de uma ilha que

não aceita mais o domínio português. Com essa menção ‗da ilha fora do mapa‘, como o

narrador a chama, de tão longínqua, o Imperador Dinossauro achou solução ou mentira

melhor, a mais ridícula e mais estapafúrdia possível.

Para não admitir a derrota perante todos, transferiu o governo da ilha para Portugal,

mudou a geografia e a história, a partir daquele momento a ilha foi reconstruída em todas as

suas especificidades: um prédio foi transformado em ambiente selvagem, foi colocada

bastante vegetação, a mata artificial foi decorada com pássaros de porcelana e plumagem de

nylon, animais embalsamados foram colocados nas árvores, as paredes foram ornamentadas

com insetos fluorescentes. Havia até a reprodução dos sons dos animais selvagens, sem contar

o sistema de governo, a moeda, tudo foi minuciosamente pensado e reproduzido com grande

fidelidade.

Tudo era muito bem encenado, tudo num faz-de-conta, digno dos melhores contos de

fadas, ironicamente falando: ―<<A ILHA NÃO SE PERDEU>> (...) <<QUE TODOS

83

TOMASSEM NOTA.>> Todos tomaram nota e a ilha passou a ser na cidade e não onde

queria a geografia.‖ (DE, pp. 156, 157)

Observamos a ironia semântica contrastiva, uma vez que sabemos que a afirmação de

que a ilha não se perdeu é falsa; o imperativo ‗tome nota‘ dirige de forma ostensiva a

interpretação do leitor para o sentido literal do enunciado; porém, por meio das marcas

irônicas já mencionadas e do contexto, evidencia-se a ironia. Ocorre então uma dupla

orientação irônica: somos levados a inferir que a ilha não se perdeu, mas devemos agir como

se isto tivesse acontecido.

A mentira era tão bem elaborada nesta ‗ilha fora do mapa‘, literalmente fora, porque

para ser ilha tem que ser cercada por água, pelo mar ou rio, o que não acontecia com aquela,

plantada bem no meio da cidade. E todos viviam aquela mentira, os habitantes e todos os do

Reino que exerciam alguma função administrativa na ilha, pois havia porteiro, uma alfândega,

até polícia de fronteira nesta ilha da fantasia. Sem contar a reprodução da monção:

―<<AMANHÃ HÁ MONÇÃO>>, avisava o porteiro, e era infalível porque já tinha topado os

engenheiros da mangueira a rondarem o bairro.‖ (DE, p. 159)

Tanto trabalho e dinheiro gastos para sustentar uma mentira era ridículo, mas não nos

esqueçamos de que naquele Reino a mentira era a Rainha, por falta de uma de carne e osso. O

Imperador Dinossauro parecia viver tão intensamente as mentiras que elas, paradoxalmente,

tornavam-se reais; ao menos, todos os habitantes do Reino aceitavam e agiam de acordo com

o que ditava o Dinossauro.

Nem mesmo os habitantes da ilha escapavam da censura e da vigilância desse

Dinossauro com manias de grandeza, como podemos observar pelo trecho: ―Fugas de divisas

só trariam prejuízos a ambas as partes e por isso os indígenas deviam ser revistados quando

saíam para as compras ou para irem ao cinema.‖ (DE, p. 160)

A ilha era a segurança do Imperador de que o povo do Reino e os indígenas o

respeitariam, mesmo sendo uma farsa, uma mentira sem precedentes; ainda assim, ela

significava que o poder estava nas mãos do Dinossauro, que a ilha verdadeira, aquela da

revolta, não havia se perdido de verdade.

É sabido que o território português é formado também pela Ilha da Madeira, apelidada

por sua beleza de ―Ilha das Flores‖ e pelo arquipélago dos Açores, conjunto de nove ilhas

localizadas no extremo oeste da Europa. Talvez este seja mais um indicativo de que Cardoso

Pires falava em seu texto de Portugal e de seu povo.

84

Outro ardil utilizado pelo Imperador para enganar o povo eram as loterias, forma

eficaz de contenção do descontentamento dos mexilhões.

É fato histórico que Salazar foi chamado para a pasta das finanças com o intuito de

sanear a dívida pública portuguesa, equilibrar as contas do Governo era seu maior objetivo,

alcançado graças a muito sacrifício do povo português que viveu uma época de grandes

privações. Desde o início de sua gestão seus discursos revestiam-se da roupagem da

humildade, pois ele não escondia sua origem modesta de camponês que estudou e tornou-se

professor, doutor, e finalmente, chefe supremo da nação. No conhecido discurso realizado no

Palácio da Bolsa do Porto, em 7 de Janeiro de 1949, começou por dizer assim:

«Devo à Providência a graça de ser pobre; sem bens que valham, por muito pouco

estou preso à roda da fortuna, nem falta me fizeram nunca lugares rendosos,

riquezas, sustentações. E para ganhar, na modéstia a que me habituei e em que posso

viver, o pão de cada dia, não tenho de enredar-me na trama dos negócios ou em

comprometedoras solidariedades. Sou um homem independente.

(http://www.reocities.com/CapitolHill/lobby/6559/perfil11.html)

acessado em 14/07/2010

Esse discurso de Salazar tem sua versão paródica no texto de Cardoso Pires, quando o

Imperador ainda mestre-doutor cita: ―a conhecida história da <<Camisa do Homem Feliz>>,

que é aquela que descreve a alegria de ser-se pobre e a difícil vida dos ricos.‖ (DE, pp. 137,

138)

E inicia-se, com este discurso, sua empreitada para tentar convencer o povo de que ter

pouco é muito mais honrado do que ter muito. Esse valor é perpetuado não somente em seus

discursos, mas nas escolas, segundo o texto: ―As cartilhas escolares salpicaram-se de histórias

de muito exemplo acerca da honra da pobreza e das desgraças que acontecem fatalmente aos

ricos, no outro mundo.‖ (DE, p. 138)

Temos alguns marcadores irônicos que nos permitem ler o texto não apenas em seu

sentido literal, mas direcionando para outras possibilidades de interpretação. A intenção

sistemática de incutir no povo as virtudes da pobreza por meio da instituição escolar é um

marcador irônico, porque, além de sinalizar a intenção de manipulação desse governo

autoritário, não são mencionadas quais desgraças eram as que poderiam acontecer com o

pobre rico, perdoem-me pelo trocadilho; e além do mais, elas só aconteciam em outra vida.

85

Nota-se aqui a estreita relação entre o poder político e o poder da Igreja Católica, ambos

imbuídos da mesma filosofia do sofrimento presente a ser recompensado em outra vida, e

vice-versa, o castigo dos privilégios do rico também numa vida futura.

Os mexilhões, porém, não se deixavam enganar por essa ‗conversinha mole‘, e

pensavam que pobres, efetivamente eram, mas honrados ou respeitados, jamais. A partir desse

episódio, começou a circular o famoso ditado dos mexilhões, absurdo para o Imperador,

anteriormente citado, de grande carga satírica ―<<mais vale um rico na mão que dois pobres a

voar>>‖ (DE, p. 138)

Sempre que havia oportunidade, o Dinossauro exaltava as virtudes do pobre e a

desgraça do rico. Começou pela troca de adjetivos atribuídos a certos indivíduos indesejáveis

do Reino: ―De agora em diante onde se lia pobreza devia ler-se modéstia, ditavam os dê-erres

marcando o compasso, e essa era uma das regras para o Reino andar em frente.‖ (DE, p. 133)

O próprio Dinossauro neste trecho propõe de forma explícita a ironia que deveria ser

implícita, ao dirigir a leitura do enunciado. O efeito que esse recurso causa no leitor, além de

potencializar o humor e, por conseguinte, a ironia, enfatiza o que Linda Hutcheon chama de

ironia avaliadora, aquela que julga, porque faz com que o leitor tenha uma visão negativa do

Dinossauro. A ironia avaliadora presentifica-se em todo o conto, dirigindo a leitura para as

qualidades sempre negativas do opressor Dinossauro e provocando simpatia pelo mexilhão

oprimido.

O astuto Imperador sabia manejar muito bem as palavras, a seu favor, é claro;

trocando pobreza por modéstia, alterou o conceito subjacente: pessoas que não têm o

necessário para sua própria sobrevivência, são percebidas como pessoas desprovidas de

vaidade e ambição. Com essa medida, em seu Reino, não haveria desigualdades sociais, tudo

estaria perfeitamente bem e, principalmente, todos ficariam felizes e satisfeitos.

O Dinossauro sabia que a chave do sucesso do seu reinado estava nas palavras, por

isso, até elas deveriam obedecê-lo. Sabia também que qualquer mudança ou rebelião somente

seria possível por meio delas, daí sua obsessão em persegui-las, em destruí-las, tinha

consciência de que uma linguagem coesa, comum, seria fundamental para estabelecer e

manter a sua tão sonhada ordem. A linguagem comum, à qual o Dinossauro se refere, de

comunitária logicamente não tinha nada, porque era, unilateralmente, a sua linguagem, como

ilustra a passagem irônica do texto: ―magicava um plano que pusesse o Reino a falar numa

86

linguagem pura e severa, sal e estopa, uma linguagem que unisse o jovem ao velho, o rico ao

necessitado, o caneta ao militar ─ ou seja, a dos dê-erres.‖ (DE, p. 139)

Na palavra ‗magicava‘ encontra-se o desejo utópico do Imperador de conseguir uma

linguagem na qual todos se entendessem, segundo seus parâmetros, certamente. E na

interpretação metalinguística do narrador encontra-se a ironia, principalmente a julgadora,

pois ao afirmar o nobre desejo do Imperador por uma linguagem comum, as qualidades

atribuídas a esta linguagem já denunciam seu caráter irônico: ‗pura, severa, sal e estopa‘,

predicativos que não combinam com uma linguagem que se quer fazer de todos. A explicação

metalinguística ‗ou seja‘ a linguagem dos Dê-erres, julga e denuncia a verdadeira intenção,

nada nobre, de instaurar essa linguagem. Reforça a carga negativa do Imperador e seu desejo

permanente de oprimir o povo.

É sabido que Portugal passou por um período extremamente difícil durante a ditadura

salazarista, de recessão e até de miséria. O narrador de ―Dinossauro Excelentíssimo‖, ao se

referir aos mexilhões, muitas vezes os chama de ‗pedintes voadores‘, referência direta às

pessoas em pobreza extrema que têm que mendigar o pão de cada dia. No texto, aparece

sempre a palavra Reino, como nos contos de fadas, num claro jogo irônico, pois é um Reino

onde impera o terror, a miséria e a opressão. O Reino é descrito de forma bastante

significativa, como se adquirisse vida com o uso da personificação: ―O Reino naquela época

tremia de frio e desconfiança. Tinha-se deslocado mais para a beira-mar, não se sabe porquê

mas calcula-se: fome. A fome vinha do interior e varria tudo para o oceano.‖ (DE, p. 128-129)

Percebemos a desolação desse Reino, assolado pela miséria, ocasionando o deslocamento para

o mar, pela necessidade dos mexilhões que não tinham para onde ir; o mar era o último

refúgio desse povo castigado.

Na tentativa de atenuar esse quadro desesperador, o recurso utilizado pelo Imperador é

a substituição da palavra ‗mendigos‘ por ‗inadaptados‘; assim, num passe de mágica, um

grave problema social é solucionado. Palavras ditas na hora certa, do modo correto, fazem

coisas inimagináveis. Desta forma, expandia-se o Reino da mentira:

O imperador encolheu os ombros e deu o problema por resolvido: quais mendigos,

inadaptados é que o cavalheiro do alto comércio queria dizer. E <<INADAPTADOS

SEMPRE EXISTIRAM E CONTINUARÃO A EXISTIR ATÉ NOS REINOS

MAIS PRÓSPEROS. DURMA EM PAZ.>> (DE, p. 141)

87

A ironia, bastante contundente, revela-se também na expressão ‗durma em paz‘, ou

seja, há a negação de um fato, em seguida a desobrigação de se tomar uma atitude, e o pior, a

convicção da consciência limpa, de que não há nada a ser feito, porque o problema enfrentado

é corriqueiro e banal, nem merece atenção. Naquele Reino da mentira, tudo está sempre bem,

e o argumento principal é de que em todo lugar existem inadaptados, e ser inadaptado é uma

deficiência leve.

É interessante observar que, nos casos citados, o Imperador Dinossauro orienta a

interpretação das situações que se apresentam em seu Reino para outro sentido, um sentido

que seja conveniente para o seu governo e que sirva para seus interesses. O leitor que capta a

ironia percebe essa manipulação do Dinossauro e entende sua tentativa de enganar,

constatando que o sentido é bem outro, acaba por ter uma avaliação bastante negativa do

Imperador Dinossauro. Os mexilhões, assim com o leitor, captam a ironia, sabem dos enganos

e mentiras contados pelo Dinossauro, porém, aceitam a manipulação, pouquíssimas são as

manifestações contrárias a seu Governo. Os Dê-erres, conselheiros e outros que fazem parte

do governo, também aceitam passivamente as mudanças e mentiras do Imperador, mas, de seu

lado, pois é de seu interesse, julgam o Dinossauro de forma positiva, como um líder que sabe

sair de qualquer situação difícil.

Mesmo com a pobreza extrema que reinava no país, o povo passando fome e outras

necessidades e já sobrecarregado de encargos, o Imperador Dinossauro manejava as palavras

a seu favor, e conseguia um feito impossível, oprimir e dificultar ainda mais a vida do

mexilhão. Trocando impostos por donativos, resolvia o problema de caixa do Reino e, numa

distorção ainda maior de sentidos e valores, não deixava brechas para os mexilhões se

esquivarem, incitando o espírito patriótico de auxiliar a pátria num momento difícil, deixando

bem claro que quem não o fizesse, seria considerado inimigo dela. Como se observa no

trecho:

Impostos ou donativos? Perguntou o Imperador, insistindo na diferença. (...) Não via

inconveniente em que fossem decretados donativos que só os indivíduos de maus

sentimentos ou inimigos da pátria se recusariam a pagar. E com gente dessa nada de

contemplações. (DE, pp. 141, 142)

88

Neste trecho nota-se a ironia pela maneira como a questão é colocada. A começar pela

pergunta que, democrática por natureza, tira o caráter de imposição da palavra ‗imposto‘,

trocada rapidamente por ‗donativo‘. A polidez e a naturalidade da expressão ‗não via

inconveniente em que fossem decretados donativos‘, é traída pela ironia do verbo decretar,

ordenar por meio de lei, o que não combina com donativo, doação com finalidade beneficente,

causando um paradoxo semântico. Donativos não precisariam de decretos para ser cumpridos,

deveriam ser doados espontaneamente.

As loterias também serviram como artifício para deixar o povo feliz e desviar sua

atenção dos problemas. Como era quase impossível enriquecer por meio do trabalho, a

fortuna, quando vinha, o que era raro, vinha por sorteio, e aquele povo que não tinha dinheiro

nem para seu sustento, gastava-o com jogos de azar. Um Reino que vivia da ilusão, do sonho

e da mentira.

Somente por meio da loteria é que um mexilhão poderia ascender à classe dos ricos.

Essa prática era estimulada, a esse respeito lemos: ―metade da nação vendia lotaria à outra

metade. Em conclusão: era um reino a vender o abstracto, a negociar o talvez.‖ (DE, p. 134)

Depreendemos a posição julgadora do narrador por meio da ironia; o objetivo de distrair e

elevar de forma enganosa a autoestima do povo foi atingido com as loterias, porém, na

avaliação do narrador, tal fato era algo terrível de acontecer, porque mascarava a realidade de

miséria vivenciada pelo povo que se alimentava de ilusão, da possibilidade de um lance de

sorte que, se chegasse a acontecer, contemplava uma minoria dos pobres, praticamente nada.

No entanto, era uma medida eficaz para deixar o pobre mexilhão feliz, e de quebra,

fazia também com que todos se tratassem bem: vislumbrando a esperança de enriquecer,

todos eram muitos cordiais e educados uns com os outros, porque o pobre de hoje poderia ser

o feliz rico de amanhã. Como se observa no texto: ―Não ignores o teu semelhante porque pode

estar ali o Sorte-Grande de amanhã segredava-lhes o bichinho do ouvido e só isso já era

cultivar a dignidade, o tão apreciado respeitinho que existe nas nações asseadas.‖ (DE, pp.

136, 137) Neste artifício, os mexilhões acreditavam sem pestanejar, deixavam-se envolver

pela ganância da riqueza fácil. A ironia é marcada pelo diminutivo ‗respeitinho‘ com valor

pejorativo, relegado apenas à convenção social, e da palavra ‗asseada‘, remetendo e uma

nação pobre, mas correta e esmerada; mais uma vez a questão do conformismo com relação à

pobreza, atenuado, porém, com a possibilidade remota de enriquecimento.

89

Juntamente com as loterias, outra campanha foi lançada para produzir felicidade

naquele povo, chamava-se ―A Cada Rico, Seu Pobre‖. A campanha foi lançada numa

tentativa de reduzir a quantidade de pobres no Reino, cada rico ficando responsável por

alegrar a vida de um pobre infeliz, fornecendo-lhe comida e, é claro, discurso político.

A campanha foi chamada ironicamente pelo narrador de ‗Golpe de Misericórdia‘, ou

seja, aquela pancada dada de forma violenta para matar, normalmente aplicada quando uma

pessoa ou animal já está quase morto, a fim de terminar com seu sofrimento. Portanto, o nome

da campanha revela o grau de carência do povo a quem ela era destinada, revela também que

a ajuda era pequena demais diante das necessidades. Apesar de ser um conjunto de ações que

deveriam revelar o altruísmo e o desejo de ajudar do rico, as marcas irônicas e a avaliação

negativa do narrador sinalizam para outra leitura, uma leitura que vê essa ‗boa ação‘ como

mais uma enganação, como se percebe nesta passagem do texto:

Para ajudar a reduzir os pobres os ilustríssimos mais dedicados combinaram o

chamado Golpe de Misericórdia, sorteando entre si um dado número de infelizes.

Cara ou coroa, a cada um coube o seu protegido e todos os domingos, chovesse ou

fizesse sol, lá iam os benfeitores nos automóveis brasonados a caminho da santa

miséria. Cada um levava ao seu protegido sustento e boa-vontade e discurso para o

resto da semana.

ERAM INCANSÁVEIS. (DE, p. 134).

Há um evidente tom irônico nesse uso de ‗ilustríssimos‘ e ‗dedicados‘ para se referir

aos ricos, porque na verdade a leitura conduzida pelo ironista orienta o entendimento do leitor

para o contrário, uma vez que a escolha dos pobres é feita aleatoriamente por meio da sorte e

além do alimento, os benfeitores aproveitavam para fazer propaganda de si e do sistema que

representavam, sem contar da exaltação da pobreza, algo que a classe dominante da época não

se cansava de promover: a ‗santa miséria‘.

Um episódio sobre essa adoção assistencialista dos pobres ilustra de forma clara a

verdadeira motivação dos ricos, ou seja, somente cumprir um papel social e fazer com que os

pobres permanecessem miseráveis e, principalmente, calados. Nenhum rico estava

preocupado efetivamente com seus assistidos, tudo era somente fachada, aparências. Quando

um rico percebeu que se enganou de pobre, ao chegar a seu leito de morte, deu meia volta e

foi embora, porque aquele pobre não era o que ele assistia. Há uma certa ambiguidade no

90

modo como avisa ao respectivo rico que o seu pobre é que estava precisando de ajuda, como

se passasse um encargo desagradável. Como podemos observar pelo trecho: ―Excelência,

disse, lamento muito mas não era o meu pobre, era o seu. <<PASSE BEM>>‖ (DE, p. 136)

O narrador expõe o absurdo e o ridículo dessa situação, na qual a carga afetiva é

grande, e somos obrigados, como interpretantes, tomando um termo de Linda Hutcheon, a

tomar uma posição, a julgar, a tomar um partido nesta paródia. Se o interpretante entende a

ironia que permeia todo o texto, ele tenderá a ver o Dinossauro e todo seu sistema de governo

como opressor e desumano.

Ainda sobre a frieza dos ricos, neste mesmo episódio, quando o benfeitor sai para

ajudar seu pobre, numa noite de inverno, há uma descrição do que acontecia no ambiente

físico e no psicológico daquele Reino, muito revelador: ―EM PLENA NOITE DE INVERNO,

gemia o frio pelas ruas e nevava nos corações, um determinado notável da Comarca, ao ser

acordado por outro notável para ir assistir já, já, ao último suspiro do protegido, tirou-se dos

seus lençóis e foi.‖ (DE, p. 135) A frieza era total tanto externa quanto interna. O frio,

humanizado (‗gemia‘), poderia ser ouvido pelas ruas, e a neve gelada sentida nos corações

petrificados.

Até a chamada ajuda humanitária era cumprida como um decreto, uma lei, que tinha

que ser executada à risca, porque os Dê-erres estavam atentos a tudo. Como os pobres eram

escolhidos por sorteio, pensavam que não se podia mudar esse princípio estabelecido pela

providência divina; no seu entendimento, Deus escolhia o pobre e o respectivo rico para

ampará-lo, e burlar esse princípio sublime seria uma heresia. Como se confirma pelo trecho:

―e ai do dê-erre que não cumprisse. O menos que se poderia dizer era que estava a atraiçoar a

vontade divina, visto que no amparo por sorteio há sempre a mão do altíssimo a comandar à

distância.‖ (DE, p. 136)

Colocando a responsabilidade da escolha na providência divina, a culpa dos

benfeitores era imediatamente extinta, pois, com esse sistema, era Deus quem escolhia, quem

e quantos pobres seriam beneficiados. Nada mais providencial para os ricos. O que está por

trás do enunciado irônico é a isenção da culpa e o não questionar. São os desígnios de Deus,

todas as coisas acontecem porque Deus permite e determina, qual mortal teria a ousadia de

questionar Suas decisões?

As Campanhas do Golpe de Misericórdia e das Loterias aconteceram antes da vinda do

Imperador Dinossauro. As loterias foram cortadas subitamente, porque daquele momento em

91

diante tudo mudaria com a entrada em cena do nosso tão conhecido Dinossauro. Fato

semelhante ao que aconteceu com Portugal, que na época nomeou Salazar para sanear as

finanças do país. Na fábula de Cardoso Pires, o governo do Reino foi buscar o Imperador que

ainda viria a transformar-se em dinossauro, como podemos observar pelo trecho: ―Então,

aproveitando a surpresa, uma embaixada de casaca e risca ao meio foi num instantinho às

montanhas e trouxe de lá um imperador. Trata-se, nem mais nem menos, do camponês nosso

conhecido, o dito,‖ (DE, p. 137).

2.2.7 DINOSSAURO X IGREJA

Lembrava a aliança que sempre

havia entre a espada e o crucifixo

nos reinos da cristandade, sem

esquecer o papel dos audazes

capitães no desbravar da selva dos

infiéis. Sendo assim, militar é que

convinha. Militar, insistia, porque

servia a Cristo e ao Rei.

Cardoso Pires, 1988, pp. 113-114

Em ―Dinossauro Excelentíssimo‖ há muitas alusões à Igreja Católica, estabelecendo

uma intertextualidade com a Bíblia. Questões a respeito da predestinação do Imperador

Dinossauro também são importantes no texto. O predestinado é aquele que é destinado de

antemão, fadado, eleito de Deus para ser ou realizar algo, portanto, Jesus já estava

predestinado a morrer por nós na cruz e o menino, protagonista dessa história, igualmente fora

eleito para ser o Imperador Dinossauro. Como revelam passagens do conto:

Dinossauro, criatura solitária desde o berço, estava escrito que iria subir altíssimo na

asa da compostura por cima do casebre mais pobre e do palácio mais louco e que

teria de tirar um curso que lhe desse para governar toda a gente. Leis, decidiu o

padre local, (DE, pp. 112, 113) Trabalhos. Desgraças que acontecem a quem se vê obrigado a suportar a ignorância

do próximo para cumprir um destino. (DE, p. 117)

92

Conta-se, não há provas, conta-se apenas, que o rapazito que amanhã viria a ser

imperador não se mostrou muito satisfeito com a jornada, embora a tivesse escrita

no signo. (DE, p. 117)

O nosso Imperador, porém, é um Jesus às avessas, porque não veio para dar vida nem

restabelecer a paz, muito pelo contrário, pois dedicou sua vida e também deu sua vida para

oprimir e tiranizar a existência das pessoas. Por isso, o Imperador Dinossauro é a versão

paródica de Jesus.

Encontramos algumas semelhanças entre a trajetória do nosso Imperador e a de Jesus;

uma delas, por exemplo, é que os dois exerceram a função de salvador da pátria. Jesus,

conforme acreditamos, dispensa comentários, seu ato de amor salvou toda a humanidade do

pecado. Já Salazar foi escalado para restaurar as finanças de Portugal e reerguer o país, foi

considerado aquele que livrou o país da ruína total. Nosso personagem Imperador, que se

transformou em Dinossauro, também veio como uma solução para aquela pátria tão carente de

ordem.

Outra similaridade é que ambos, Imperador e Jesus, tiveram origem humilde, filhos de

gente muito pobre, ligada ao campo, como comprova o texto: ―filho de gente-ninguém ou

pouca-coisa, camponeses ao desabrigo.‖ (DE, p. 111)

No batismo do menino, futuro Imperador, observa-se a revelação de sua verdadeira

aptidão na fala do pároco, que profetiza que a criança deveria seguir a carreira das leis. O

padre compara o código das leis como sendo a bíblia dos legisladores, ressaltando a

importância dessa função.

No episódio do batismo fala-se também da força da palavra, e nós nos lembramos de

uma referência bíblica conhecida: ―No princípio era o verbo”, que exalta o poder da palavra

como criadora de todas as coisas. Nesta passagem, Deus falou e tudo se fez, por intermédio do

verbo. Portanto, o pároco fundamentou sua argumentação a favor da carreira de juiz,

justificando que é por meio de leis e decretos que tudo acontece, e leis e decretos são feitos de

palavras, e que as palavras têm o poder, por exemplo, de mandar executar todas as coisas. O

princípio de Imperador estava formado, discurso (palavra) e ordem (execução). O argumento

convenceu os pais do menino, que venderam o burro e partiram para a cidade dos doutores.

A aliança entre a Igreja e o Exército fica por conta da opinião do regedor, que

palpitava que o menino nascera para ser militar, segundo o texto: ―Tinha futurado para a

93

criança um ofício em que o divino e o profano se servissem de mãos dadas. Militar.‖ (DE, p.

113)

O narrador revela-se também irônico porque apresenta uma contradição, o divino

jamais poderia andar em concordância com o profano. Percebemos a ironia com que o

narrador se dirige à Igreja, criticando a hipocrisia que reina nesta instituição e também a forte

influência que ela exerce sobre os governos, acabando também por se deixar influenciar por

eles. Como notamos em outra passagem do texto: ―Lembrava a aliança que sempre tinha

havido entre a espada e o crucifixo nos reinos da cristandade,‖ (DE, p. 113, 114) A palavra

‗sempre‘, referindo-se à aliança entre as instituições, denota que a parceria é antiga e

permanente.

A Igreja genuína deveria estabelecer apenas uma aliança com Deus e executar seus

desígnios, tudo o mais são interesses pessoais e não deveriam ser considerados. Mas,

interpretando a ironia, chegamos à conclusão de que a Igreja serve aos interesses do Estado e

este aos da Igreja, numa relação de ajuda mútua que, na verdade, esconde interesses e

vantagens individuais.

A questão acerca do nome da criança que viria a ser Imperador também é levantada.

Não há um nome específico para esse opressor, então, o narrador cogita nomes de outras

figuras perversas da história, que poderiam servir de inspiração para o nome de batismo do

menino. Vejamos o trecho: ―Nomes são safiras ao preço da água-benta, é só mergulhar e

escolher e Maximino ou Fulgêncio, Teobaldo ou Adolfo, Adolfo Hirto, Benito Bendito ou

Sebastião Desejado, embora nomes para fazer destino, naquela altura ainda não davam nas

vistas.‖ (DE, pp. 111, 112)

Podemos ver que os nomes são muito significativos, Adolfo Hirto é o anagrama de

Adolf Hitler, protagonista de uma das páginas mais tristes da história ocidental, a do massacre

do povo judeu pelo nazismo alemão. Maximino foi um Imperador romano de origem bárbara

que padecia de gigantismo, chegou a medir 2,59m. Fulgêncio Batista foi ditador em Cuba

entre 1933 a 1944; deposto por Fidel Castro, exilou-se em Portugal e depois em Espanha. E o

fascista italiano ―Benito‖ Mussolini é a antífrase de qualquer santo que se possa chamar de

bendito, porque foi um ditador dos mais cruéis que instaurou um regime militar na Itália por

volta de 1922 com a famosa marcha sobre Roma, protesto que culminaria com um golpe

militar e consequente estabelecimento do fascismo naquele país. Há ainda a menção a Dom

Sebastião, referindo-se à corrente sebastianista, recuperada pelo poeta português Fernando

94

Pessoa no poema Mensagem; Dom Sebastião, o desejado, aquele que viria devolver ao povo

português seu passado de glórias, fazer daquela nação o Quinto Império espiritual.

Portanto, o que o narrador nos diz, através de sua ironia, é que não importava se àquele

menino fossem atribuídos nomes de pessoas virtuosas ou perversas, seu destino já estava

determinado, não era o nome que iria mudá-lo. Mais adiante, porém, admite, com ironia e

humor satíricos, que o mal já fazia parte daquele menino, já quase se via, porque já o era, o

Imperador Dinossauro:

este pequeno cristão era dos tais que nascem à flor do maldivino e, com tal, nome, se

o teve, deixou-o na pedra do baptismo porque quando o mundo deu pela sua pessoa

já ele tinha o corpo e a idade da morte e só respondia por

IMPERADOR

Dinossauro Um, Imperador e Mestre. (DE, p. 112)

Em nenhum momento da narrativa o narrador dá um nome ao menino, nem mais

adiante ao Imperador, talvez porque todos nós sabemos que se trata de Salazar, e quem sabe

para deixar clara a importância que aquele Reino dava aos títulos, principalmente de nobreza

e titulação acadêmica, ou seja, a valorização de um aspecto social de aparência e privilégio de

poucos, em detrimento da essência dos seres humanos.

Outra semelhança entre a história do nosso candidato a Imperador e a história de Jesus

é que eles tiveram que fugir. Jesus teve de fugir para o Egito com seus pais, porque o Rei

Herodes queria matá-lo, uma vez que ele era o Rei dos cristãos. A passagem aparece neste

excerto: (Mateus 2.13-15):

¹³Tendo eles partido, eis que apareceu um anjo do Senhor a José, em sonho, e disse:

Dispõe-te, toma o menino e sua mãe, foge para o Egito e permanece lá até que eu te

avise; por que Herodes há de procurar o menino para o matar. 14

Dispondo-se ele, tomou de noite o menino e sua mãe e partiu para o Egito; 15

e lá ficou até à morte de Herodes, para que se cumprisse o que fora dito pelo

Senhor, por intermédio do profeta: Do Egito chamei o meu filho. (BÍBLIA,

1996)

95

Nosso futuro Imperador também saiu às pressas de sua aldeia, sem que ninguém

soubesse, rumo à cidade dos doutores, para fazer o curso de Imperador. Principalmente sua

mãe temia que os habitantes da cidade viessem atrás da família, por desaprovarem o ato:

Por estas e por outras, os pais do mocinho venderam o burro e o quintal e com o

dinheiro apurado levaram-no para uma universidade que ficava no alto duma

montanha,

ENTRE NUVENS.

[...]

Mas como diz o outro, o amor dos pais só dá meças ao perdão e um belo dia os dois

camponeses, apanhando a aldeia a dormir a sesta, pisgaram-se com o filho na

camioneta da carreira. (DE, pp. 116- 117

Volta não volta, a mãe estremecia debruçava-se à janela, receosa de ver levantar-se

no horizonte um enxame de camponeses a galope de burros poeirentos. Esperava-os

a todo o instante, disparados pelos montes abaixo, catapum, catapum, de punho no ar

e aos uivos: Avante, avante, contra a família desertora. (DE, p. 119)

Há outra passagem bíblica que podemos comparar com essa empreitada do menino

Imperador. Na época de Jesus, era costume os judeus levarem os meninos ao Templo de

Jerusalém, por volta dos 11 ou 12 anos, onde eram apresentados e recebidos pela comunidade

judaica. Os pais de Jesus seguiram essa tradição, e diz a história que quando Jesus esteve no

templo, conversou com os doutores da lei, ouvindo-os e interrogando-os, demonstrando

grande sabedoria, o que deixou a todos maravilhados. Podemos ler essa passagem em (Lucas

2. 41-52):

41Ora, anualmente iam seus pais a Jerusalém, para a Festa da Páscoa.

42Quando ele atingiu os doze anos, subiram a Jerusalém, segundo o costume da festa.

43Terminados os dias da festa, ao regressarem, permaneceu o menino Jesus em

Jerusalém, sem que seus pais o soubessem. 44

Pensando, porém, estar ele entre os companheiros de viagem, foram caminho de

um dia e, então, passaram a procurá-lo entre os parentes e os conhecidos; 45

e, não o tendo encontrado, voltaram a Jerusalém à sua procura. 46

Três dias depois, o acharam no templo, assentado no meio dos doutores, ouvindo-

os e interrogando-os. 47

E todos os que o ouviram muito se admiravam da sua inteligência e das suas

respostas. 48

Logo que seus pais o viram, ficaram maravilhados; e sua mãe lhe disse: Filho, por

que fizeste assim conosco? Teu pai e eu, aflitos, estamos à tua procura. 49

Ele lhes respondeu: Por que me procuráveis? Não sabíeis que me cumpria estar na

casa de meu Pai?

96

50Não compreenderam, porém, as palavras que lhes dissera.

51E desceu com eles para Nazaré; e era-lhes submisso. Sua mãe, porém, guardava

todas estas coisas no coração. 52

E crescia Jesus em sabedoria, estatura e graça, diante de Deus e dos homens.

(BÍBLIA, 1996)

É possível comparar essa passagem bíblica com a chegada do nosso Imperador à

Cidade dos Doutores que também eram os representantes do saber e receberam o menino,

candidato a Imperador, na Universidade dos Doutores, espécie de templo moderno da

sabedoria:

Sempre no denso, trepando a brancura, a marcha agora era cega e por passagens

desesperadas. De repente, céu aberto ─ e deram de caras com um grande mosteiro

ou coisa assim, pousado nas nuvens. Mosteiro, tinha todo o ar disso. Lá estava a

torre, o sino; lá estavam os claustros de pedra, fria paz da eternidade. Mosteiro, diria

qualquer um. Mas o rapaz não se deixou iludir: tinha chegado à Universidade dos

Doutores.

Os mestres receberam-no com dureza

<<QUEM É ESTE?>>

pareciam perguntar, pairando em sombrio cadeirões. Somente não se lhes ouvia a

mínima palavra e nem era de esperar que se ouvisse porque aqueles mestres estavam

no alto. Não diziam senão o que vinha dito nos livros antigos e nunca se dignavam

nomear pessoas que não tivessem sido nomeadas pelos mestres, seus defuntos ─ e

com o devido respeito. (DE, pp. 126-127)

Na página 121 de ―Dinossauro Excelentíssimo‖, encontramos uma ‗nota‘ do narrador,

um elemento transtextual, onde se questiona se a história registraria o burro como sendo o

animal que levaria nosso Imperador e sua família ao templo dos doutores. A passagem é a

seguinte: ―(Nota: Seria realmente de burro que os cronistas descreveriam a subida ao templo

dos doutores. O filho e a mãe em cima da albarda, o pai à frente abrindo caminho com um

ramo de esteva em flor).‖ (DE, p. 121)

A ironia que se coloca aqui é com relação à palavra ‗burro‘, por não ser um animal

nobre, sinaliza pobreza ou humildade do indivíduo que utiliza esse meio de transporte. O

burro é um animal muito desvalorizado em nossa cultura atual, e pode adquirir outro sentido,

o do indivíduo desprovido de inteligência, estúpido, asno; nas duas acepções, o sentido é

pejorativo e impróprio para um Imperador, principalmente o nosso, com aspirações

97

megalomaníacas; daí a dúvida do narrador com relação ao registro dos historiadores, dúvida

que marca também sua ironia. Certamente que se o Imperador estivesse montado em um

cavalo de raça ficaria bem mais elegante.

O episódio do burro é, ainda, a versão paródica da passagem bíblica que narra a

entrada triunfal de Jesus em Jerusalém. Essa foi a última semana da vida de Jesus e de seu

ministério terreno. Ele entrou em Jerusalém montado em um jumentinho e foi aclamado por

uma multidão que, com ramos de palmeiras nas mãos, dava glórias ao Rei de Israel, enviado

por Deus.

Diferentemente de Jesus, que escolheu o burro ou jumento em virtude de seu caráter

humilde e para mostrar que, apesar de ser o filho do próprio Deus, cultivava a modéstia e a

simplicidade, nosso Imperador desejava ir de burro por falta de opção ou para parecer

humilde como Jesus, mas sabemos que de modesto ele não tinha nada. Mas essa cena é a

inversão paródica do episódio bíblico que se comemora até hoje no Domingo de Ramos, que

antecede a comemoração da Páscoa cristã.

Na cidade dos doutores havia muitos padres, o narrador fala que havia montes deles, é

bastante irônico e satírico o comentário acerca dos inúmeros e diversificados padres na cidade

dos doutores. Havia padres para todos os gostos e para todas as ocasiões. Nesta cidade, além

da superpopulação de padres, havia doutores e candidatos a doutores, todos representantes do

sexo masculino; curiosamente, o que faltava efetivamente eram exemplares femininos, talvez

pelo celibato dos padres ou pelas horas de estudo que os doutores eram obrigados a realizar.

Fato é que mulheres eram raridade naquela cidade, o que, além de dar um ar de tristeza ao

lugar, ainda limitava as opções de diversão. Observemos o texto: ―E padres, sobretudo. Padres

e mais padres, o que ali ia de padres só contado. (...) Levantara-se uma pedra saltava um,

acendia-se uma luz voava outro e logo outro e outro e mais outro, padres a dar com um pau.

Pareciam gatos a espirrar das sombras.‖ (DE, p. 121)

A fala dos padres também se revela irônica, pois sendo propagadores do evangelho de

Deus na Terra, deveriam ter um discurso dominado pela esperança; entretanto a música que

saía de seus lábios, segundo o texto, contrariava sua função de anunciantes das boas novas:

―<<MISERERE... MISERERE...>>‖ (DE, p. 122) A ladainha ou refrão dos padres é um tipo

de ironia contrastiva, porque inverte os valores e acaba sendo também uma ironia avaliadora,

pois leva o interpretante irônico a ter uma ideia negativa a respeito dos padres e de sua

atuação como religiosos. A crítica do narrador coloca-os como praticantes de uma profissão

98

como outra qualquer e, por isso mesmo, participando igualmente das misérias do povo, tanto

materiais como espirituais.

Quando o menino, futuro Imperador, e seus pais chegam à cidade dos doutores, além

dos inúmeros padres que encontram, deparam-se também com uma intensa movimentação

comercial. Naquela cidade, todos, mesmo os sem títulos, eram chamados de doutores, e para

ilustrar nossa afirmação, reproduzimos a passagem do texto: ―<<DOUTORES: VENHAM

CÁ, DOUTORES!>> que não percebiam que se estavam a dirigir a uma trindade de

camponeses em romagem, pai, mãe e filho secreto.‖ (DE, p. 124)

As palavras ‗trindade‘ e ‗romagem‘ nos fazem estabelecer relações, mais uma vez,

com o discurso religioso. A palavra trindade não aparece na bíblia, mas para o cristão, as três

pessoas que compõem a trindade santa são: o Pai, o Filho e o Espírito Santo, são os três seres

que constituem Deus; se quisermos ler a esse respeito, podemos consultar a Bíblia em

(Mateus 28:19, ou 2ª Coríntios 13:13): ―19

Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações,

batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo‖ / ―13

A graça do Senhor Jesus

Cristo, e o amor de Deus, e a comunhão do Espírito Santo sejam com todos vós.‖ (BÍBLIA,

1996).

Romagem é sinônimo de peregrinação ou romaria a lugares santos, onde acontece

reunião de devotos, práticas próprias do universo cristão. Ao referir-se a nosso Imperador e

sua família como uma ‗trindade em romagem‘ o narrador ironicamente junta o divino e o

maligno, porque essa trindade não veio para libertar, veio para oprimir. Mas já sabemos, pelas

tantas marcas irônicas presentes no texto, que essa trindade santa é falsa, é uma imitação

paródica da verdadeira.

Mais uma referência ao cristianismo encontra-se na página 125, leia-se: ―Andou,

andou, até que foi dar a um largozinho recatado onde o esperava um enorme crucifixo. Aí,

pausa: primeira estação. Ajoelhou como era seu dever, pedindo muitos triunfos para o estudo,

memória e disciplina.‖ (DE, p. 125)

O gigantesco crucifixo nos faz pensar na cruz que Jesus carregou até o Calvário e nas

estações da ―Via Crucis‖. O trajeto da cruz seguido por Jesus Cristo carregando uma cruz, vai

do Pretório até o Calvário, onde Jesus foi crucificado. São 14 as estações da ‗via crucis‘, a

saber:

1ª estação – Jesus é condenado à morte.

2ª estação – Jesus carrega a sua cruz.

99

3ª estação – Jesus cai pela primeira vez.

3ª estação – Jesus encontra Maria, sua mãe.

4ª estação – Jesus recebe ajuda de Simão Cirineu para carregar a cruz.

5ª estação – Verônica enxuga a face de Jesus.

6ª estação – Jesus cai pela segunda vez.

7ª estação – Jesus fala às mulheres de Jerusalém.

8ª estação – Jesus cai pela terceira vez.

9ª estação – Jesus é despojado de suas vestes.

10ª estação – Jesus é pregado na cruz.

11ª estação – Jesus morre na cruz.

12ª estação – Jesus é retirado da cruz.

13ª estação – Jesus é sepultado.

14ª estação – A ressurreição.

A primeira estação pela qual passou o futuro Imperador é a versão paródica dos passos

de Jesus em direção ao seu Calvário. É irônico porque um assunto tão sério, a base da fé

cristã, é tratado de forma banal. O pedido do Imperador não é nada altruísta, consiste em êxito

e sucesso para si mesmo, ao contrário de Jesus que morreu por amor a toda a humanidade.

De igual modo acontece na menção à segunda estação: ―Fez sinal aos pais para que

não se assustassem, avançou um passo, e humildemente baixou a cabeça. Raparam-lha.

Segunda estação.‖ (DE, p. 126) O menino parecia saber o que tinha que fazer, tudo pelo que

havia de passar para tornar-se Imperador; como Jesus, era esse seu destino, por isso

demonstrava segurança e humildade calculadas.

O ato de raspar a cabeça está ligado a rituais de iniciação, remete aos ritos iniciais de

alguma sagração ou acontecimento simbólico; no caso do nosso Imperador, sua entrada na

Universidade dos Doutores. Também significa ascensão de um nível de existência para outro

nível superior, deixando para trás o passado sem valor.

Mais uma referência à trindade bíblica e ao verbo também no sentido bíblico, acontece

na página 163, da seguinte maneira: ―Seguia-se com o ouvido diurno e nocturno, com o ar do

Mestre que segue o Discípulo e o Discípulo continha o Mestre e o Mestre estava no Discípulo

e eram uma única e só pessoa representada pelo Verbo, com letra grande.‖ (DE, p. 163)

Como o Imperador foi perdendo o contato, primeiro com o povo, depois com os

conselheiros do governo e fechou-se para todo tipo de contato social; assim, falava consigo

100

mesmo, fazia discursos para ele mesmo, numa demonstração de total egocentrismo. Esta

passagem do texto ilustra bem o ostracismo no qual caiu o Imperador, e revela mais, declara

que, num desdobramento metafórico, dentro do Imperador existiam o Mestre e o Discípulo,

duas pessoas em uma, mediadas pelo Verbo com letra maiúscula. Segundo o cristianismo, há

uma Trindade Santa composta por Deus, Jesus e o Espírito Santo, todos num só Deus, é o

mistério maior do Cristianismo, o Deus trino. De semelhante modo, em nosso Imperador há

uma espécie de Dualidade Santa, representada pelo Mestre e pelo Discípulo; esse fato reforça,

mais uma vez, os delírios de grandeza do Imperador, que na escala de comparação hierárquica

só poderia se equiparar com a mais alta, ou seja, com o ser divino.

Também são significativas as atribuições de Mestres e Discípulos, porque na Bíblia

Jesus é chamado sempre de Mestre, aquele que ensina e traz as boas novas e os Discípulos

são, além dos doze mais próximos de Jesus, também chamados de Apóstolos, aqueles que

aprendem com o Mestre.

O verbo remete às palavras, as vilãs dessa história, as mais subversivas e traiçoeiras de

todas as personagens. Isto pode ser também considerado um intertexto bíblico, está no

evangelho de João 1:1 ―No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era

Deus.‖ (BÍBLIA, 2006)

Uma menção ao Juízo final encontra-se no trecho: ―O mais estranho é que revelava

uma memória poderosa e, mais que isso, uma memória de Juízo Final, pois só se referia a

falecidos ou a gente desaparecida. E Fulano?, perguntava. E Sicrano?‖ (DE, pp. 192, 193)

O Juízo Final acontecerá, segundo os cristãos, com a segunda vinda de Jesus, para

julgar os vivos e os mortos, daí a alusão do narrador a essa profecia bíblica: fixava-se o

Imperador na memória do Juízo Final porque se lembrava de pessoas já falecidas. Nesta

época, o acidente que deixou o Imperador quase morto já havia acontecido e o Dinossauro,

num faz-de-conta nada mágico, achava que ainda governava seu Reino, mesmo de mentirinha

e a despeito de sua loucura.

A décima quarta estação da ‗via crucis‘ que é a ressurreição de Jesus, acontece no

conto de forma paródica, não por milagre divino, como se dá com Jesus, mas por obra dos

mais renomados médicos, cirurgiões plásticos e até curandeiros que havia no Reino. Esses

obstinados profissionais trabalharam sem cessar por um longo período de tempo para que o

Imperador voltasse à vida e também para que sua aparência permanecesse igual. Tanto

empenho foi recompensado porque o Dinossauro, dado como morto, foi literalmente

101

reconstruído pelos doutores e ressuscitou, como observamos pela passagem:

―<<RESSUSCITOU!>> bradaram os frades na capela do palácio.‖ (DE, p. 187)

Sabemos, de acordo com a fé cristã, que somente Jesus, em toda a história da

humanidade, morreu e voltou à vida, mas esse feito conseguiu-o também o nosso Imperador

Dinossauro, e essa morte foi chamada de Morte Primeira, porque houve a segunda, esta então,

definitiva.

Essa retomada paródica por meio do resgate da cultura e das tradições populares é,

segundo Linda Hutcheon, muito próprio do texto moderno: ―Além de serem indagações

―fronteiriças‖, a maioria desses textos pós-modernistas contraditórios também é

especialmente paródica em sua relação intertextual com as tradições e as convenções dos

gêneros envolvidos‖. (HUTTCHEON, 1991, p. 28)

2.2.8 DINOSSAURO MORTE PRIMEIRA / MORTE SEGUNDA

Então é que ele deu a última volta à

chave que o separa dos vivalmas,

foi então.

Cardoso Pires, 1988, p. 180

A primeira morte do Imperador Dinossauro aconteceu em seu gabinete em virtude de

uma queda que o deixou praticamente morto. Na verdade, seu processo de separação da vida

havia começado bem antes, quando resolvera viver recluso e isolado e a cada dia perdia mais

as feições humanas e se animalizava. O início do capítulo intitulado: ―Dinossauro, morte

primeira‖, começa assim: ―Então é que ele deu a última volta à chave que o separava dos

vivalmas, foi então.‖ (DE, p. 180)

Entre as inúmeras chaves desse Reino, cheio de segredos guardados, nosso Imperador

cortou definitivamente qualquer vínculo ou semelhança que ainda possuía com o humano.

Inclusive a capacidade, especificamente humana, que é a de usar a linguagem para se

comunicar, porque diz o texto que foi perdendo até as palavras dos discursos.

102

Falava com dificuldade, porque as palavras não o obedeciam, a ele que estudou tanto

para dominá-las e manipulá-las, e também não podia ouvir, porque estava surdo; ele que só

ouvia a si mesmo, nem desse prazer podia desfrutar agora. Culpava o ouvido pelo defeito, a

memória também e a infidelidade das máquinas, que não cumpriam seu papel e tentavam

desorientá-lo.

As ações praticadas pelo Imperador Dinossauro a partir desse momento são puramente

as de uma fera que urra, que fica possessa, na qual não cabe mais nenhum traço de

racionalidade. A descrição do Dinossauro preso à mesa do gabinete é extremamente grotesca,

caracterizando a sátira: ―Amarrado à secretária, a escorrer baba esquecida. Fedendo de sujo. À

deriva, entre a sonolência e o desespero.‖ (DE, p. 181) Percebemos aqui a ironia observável a

que Muecke se refere, aquela visível por meio da cena visualizada.

Era um completo animal que, além de irracional, apresentava-se senil e insano. O

narrador descreve o Imperador Dinossauro sempre ressaltando suas características grotescas, a

começar pela ausência do nome, somente aparece o cargo ostensivo de Imperador, seguido

pelo adjetivo que o qualifica: Dinossauro, com letra maiúscula. As características

animalizadas do Dinossauro vão se intensificando no decorrer da narrativa, tornando-se mais

grotescas, mais horrendas, mais tenebrosas. Essa ridicularização do alvo da crítica satírica

pela sua deformação, acaba dirigindo o julgamento do interpretante para avaliar o Dinossauro

de forma extremante negativa, digno de zombaria e de escárnio.

Como o Imperador Dinossauro não podia ouvir, ligava os aparelhos de alto-falantes no

volume máximo. O narrador, ironicamente, constrói um neologismo para nos dar a dimensão

do som proferido pelo Dinossauro, inventa a palavra ‗altissimofalante‘ e explica num

paradoxo o inferno que virou aquele Reino: ‗a surdez do Dinossauro podia ser ouvida‘.

E como o Mestre é quem dá o tom dos trabalhos, todos os conselheiros viviam a gritar,

comunicando-se também por meio de sinais, algo grotesco, uma regressão à barbárie, a

animalização do ser humano.

Com a primeira morte do Dinossauro, pelo menos dois problemas se instauraram: o

primeiro era quem iria governar o Reino; o segundo dizia respeito à desconfiança dos

mexilhões quando vissem o Imperador morto, muito diferente das fotografias dos jornais, da

TV, das estátuas; certamente iriam desconfiar de que não se tratava da mesma pessoa, fato

que poderia ocasionar uma revolução popular.

103

Assim, a preocupação, principalmente do Guarda-Mor, era a de que o Imperador

ficasse, acima de tudo, igual ao retrato, para passar uma imagem de unidade, de algo que não

muda, nem com o passar do tempo. Diz o conto: ―ninguém lhe garantia a ele, Guarda-Mor,

que essa gente boa e ingênua não desconfiasse que iam sepultar um desconhecido em vez do

seu amado protector.‖ (DE, p. 185)

É extremamente irônica esta frase porque os mexilhões poderiam ser bons mas bobos

certamente não eram, e ‗amado protetor‘ era uma denominação que jamais nenhum mexilhão

atribuiria ao Imperador Dinossauro; temido sim, e protetor dos direitos próprios talvez.

Portanto, a fala do Guarda-Mor deve ser interpretada de forma inversa do seu enunciado; onde

lia-se amado, leia-se detestado; onde lia-se protetor, leia-se opressor.

A intenção de perpetuar a imagem do Dinossauro, de estagná-la num rosto imutável,

em que a ação do tempo não deixa marcas, era compartilhada não só pelo Guarda-Mor, como

também pelos Conselheiros e demais autoridades daquele Reino. A imutabilidade e a rigidez

estavam tão presentes no Reino do Dinossauro que ditavam a forma de governar e moldavam

a própria face do ditador, que literalmente permanecia a mesma, a despeito do tempo. E como

num conto de fadas às avessas, a imagem do Imperador Dinossauro não envelhecia,

alcançando o sonho de quase toda a humanidade, a imortalidade ou juventude eterna.

As cenas dos médicos trabalhando no cadáver do Dinossauro são, ao mesmo tempo,

ridículas e grotescas. Os médicos ‗formigavam‘ em cima do corpo e havia muitas ‗moscas‘,

sinal de que algo muito malcheiroso e apodrecido as atraía. Diz o texto que os médicos

reconstruíram o Dinossauro, trabalharam 100 dias e 100 noites, no centésimo dia houve uma

pausa, mas nada de o Dinossauro se recuperar, então, mais 100 dias e outros 100 e então

ocorre o milagre da ressurreição.

Como Deus descansou ao sétimo dia da construção do mundo, os médicos fizeram o

mesmo na versão paródica da criação, porque a tarefa não era fácil. A palavra que o narrador

usa é ‗ressuscitou‘, pois é o que aconteceu: quando todo o Reino, inclusive os conselheiros, já

se preparava para o funeral do Dinossauro, ele voltou à vida, causando um sério problema,

porque outro governante já assumira o poder.

Como falamos de um Reino fictício, de faz-de-conta, onde a mentira é o discurso de

cada dia, com medo da reação do Dinossauro, todos resolveram fingir que nada havia

acontecido e que o Dinossauro ainda era Imperador. Assim diz o texto: ―Tudo em faz de

conta, numa palavra.‖ (DE, p. 189)

104

Os conselheiros estavam divididos entre ‗Reino do Dinossauro‘ e ‗Reino Real‘. Como

acontece com quem muito mente, um dia não sabiam mais distinguir entre o que era falso e o

que era verdadeiro, começaram a confundir os dois Reinos: ―Os a-fingir movimentavam-se

numa zona confusa, e tão turvada pelo mistério das suas pessoas que, hoje Reino do

Dinossauro, amanhã Reino Real, acabaram por não distinguir.‖ (DE, p. 191)

O Dinossauro continuou a governar de mentirinha, as reuniões governamentais eram

ridículas, em virtude tanto da saúde decrépita do Imperador como também por culpa dos

conselheiros que acabaram por se confundirem pelas mentiras. A situação foi ficando

insustentável, pois, a bem da verdade, o Imperador já estava nas garras da morte, talvez

apenas, por conta de tanto mentir, pensava que estivesse vivo. Como evidencia o narrador: ―E

então nesse vulto carregado de tempestade os velhos encontraram um rosto liso, de cera, e

perceberam que tudo nele, pele e cabelo, tinha as tintas dos mortos de museu.‖ (DE, p. 192)

A morte chegou para o Dinossauro muito tempo depois, diz o narrador: ―Dinossauro,

pax perpetua, Deis irae, faleceu com suores de santidade na hora mais alta do século, ano da

Comemoração.‖ (DE, p. 193)

A ironia consiste na antítese entre a paz e a ira, a paz viria não somente para o

Dinossauro, mas principalmente, para o povo oprimido descansar dos dias de cólera sofridos

naquele Reino. ‗Deis irae‘ pode fazer referência também ao dia do ‗Julgamento Final‘, destino

de todo ser humano, segundo a fé cristã, ser julgado por Deus após a morte. Pelos indicadores

irônicos textuais, porém, percebemos que a paz eterna ficou comprometida pelos dias de ira

vivenciados pelo Imperador.

Também a expressão ‗suores de santidade‘ é totalmente irônica: o adjetivo ―santidade‖

não se encaixa, de forma alguma, no retrato que o interpretante vem montando do Imperador,

fornecido pelos dados do narrador, ao longo da narrativa. Do mesmo modo, a referência ao

ano da Comemoração não é específica, mas irônica, porque o que se comemora,

provavelmente, é a morte do monstro, ou seja, do Dinossauro.

O medo do Guarda-Mor confirma-se, mas ao contrário; a desconfiança dos mexilhões

se estabelece exatamente porque acham o Imperador muito igual ao retrato e perguntam-se

como poderia não ter envelhecido? A esse respeito diz o texto: ―Os mexilhões comuns quando

o foram espreitar à urna de cristal abanaram a cabeça: acharam-no demasiado igual ao retrato

para ser verdade.‖ (DE, p. 193)

105

Ninguém conseguia convencer os mexilhões de que aquele corpo que estavam velando

era do Dinossauro, achavam que haviam trocado o Imperador, que aquilo que viam só podia

ser uma máscara, um disfarce, jamais um ancião de séculos. Não se conformavam, estavam

tão acostumados com a mentira que mal reconheciam a verdade, e vindo da parte de quem

vinha, ficava difícil de acreditar. Os mexilhões já haviam sido tão enganados pelos

governantes, havia tantos mistérios naquele Reino de faz-de-conta, que se calaram mais uma

vez.

Certeza, os mexilhões tinham somente uma, a de que se realmente havia morrido

aquele Dinossauro, logo haveria outro para substituí-lo: ―<<ANDA LÁ DENTRO, É ESTE>>

passando a palavra a quem viesse depois, e daí a outros depois, e aos depois e mais depois

e...‖ (DE, p. 196) e assim sucessivamente.

2.2.9 ESTÁTUA

Nenhuma das estátuas do

Imperador espalhadas na

imensidão da selva e das capitanias

tinha resistido à vingança dos

rebeldes, só aquela.

Cardoso Pires, 1988, p. 145

Uma estátua é uma obra criada para fazer uma representação. Os santos e anjos

católicos são representados por estátuas, são imagens divinizadas.

Representar um corpo em forma de estátua, como fizeram no conto, com a figura do

Imperador, é perpetuar sua imagem e consequentemente seu governo e poder. A estátua

impõe respeito e fica para sempre, porque é feita de material resistente. Segundo o conto, as

estátuas do Imperador foram espalhadas por toda parte, inclusive nas Colônias africanas. Era

uma maneira de tornar o Imperador presente mesmo estando ausente, sua representação estava

lá, imponente, a despertar respeito e medo nos súditos daquele Reino.

A estátua acaba por constituir-se a única amizade verdadeira do Imperador, exerce a

dupla função de manter o poder do Imperador junto a seus súditos e ainda faz as vezes de um

106

amigo fiel e confidente. No capítulo intitulado ―A estátua‖, observarmos que esse amigo do

Imperador começa por selecionar as pessoas que vão conversar com o Ditador; sua posição

estratégica, instalado na antessala do gabinete do Governo, permite-lhe fazer essa seleção.

É curiosa a explicação de como essa estátua foi encontrada: essa estátua, espécie de

secretário, amigo, confidente, discípulo do Imperador, fora encontrada numa colônia africana,

toda envolta em trepadeiras e por cima dela havia lacraus e excrementos de morcegos,

faltando-lhe ainda um braço, o direito.

Os soldados do Reino, em debandada, depararam-se com ela, e o magnetismo de sua

presença era tão intenso que não conseguiram deixá-la para trás, nem o braço que lhe faltava,

procuraram-no e o acharam. Leiamos o trecho:

Nenhum deles, retirantes em desordem, pôde resistir a uma tão súbita presença e

principalmente à soberania que comandava aquela figura de bronze, apesar de já

amarrada de pés e mãos pelas ervas trepadeiras, apesar dos lacraus que se passeavam

por cima dela e da merda dos morcegos. Apesar de, como notaram com estranheza,

lhe ter sido arrancado um braço e, param mais, o direito ─ repararam a seguir ─ o da

mão que assinava as sentenças. Aí perceberam

A LIÇÃO DA VINGANÇA.

Aquele sinal de punição aparecia como um aviso, uma profanação calculada, na

serenidade de um corpo que a morte tinha em seu poder. (DE, pp. 145, 146)

É grotesca a descrição da estátua desse Imperador tão imponente, naquelas

circunstâncias degradantes, a utilização do substantivo ‗merda‘, bastante vulgar, de cunho

escatológico, confere ao texto um tom agressivamente satírico. A estátua desse Imperador

Dinossauro estava, afinal de contas, no lugar apropriado para ela, ou seja, abandonada em

meio a dejetos.

Grotesca também é a falta de um braço, observa-se a questão de deformação, própria

da narrativa satírica. Por se tratar do braço direito, aquele que escreve os decretos e assina as

leis, a deformidade torna-se mais grave, além de ser também o braço que faz o sinal da cruz;

os soldados pensaram logo que fosse vingança dos nativos contra o Imperador. Ainda mais, as

condições nas quais encontraram o braço agravam a maldosa sátira do narrador; estava ele

estrategicamente enfiado numa fenda à beira-mar, não conseguiram saber ao certo se aquele

gesto significava um adeus ou uma chacota do inimigo. Fato é que não conseguiram fugir sem

ele, porque parecia acenar para eles ordenando que o pegassem: ―O braço foram encontrá-lo,

107

parece, espetado numa falésia como um adeus (ou como uma gargalhada do inimigo,

pensaram alguns) quando estavam já à vista do mar com milhares de selvagens às canelas‖

(DE, p. 147)

Então, numa tentativa de reconstrução da estátua, fundiram o braço faltante com o

material e os equipamentos de que dispunham, o resultado tornou a estátua mais estranha

ainda, como lemos no texto: ―A bordo soldaram-no (o braço) ao resto do corpo com pedaços

fundidos das inúteis bocas de fogo (...) não se pode dizer que tenham feito obra asseada, pois

enganaram-se nos cálculos da liga e quando deram pela coisa nada a fazer: o braço tinha

ficado maior do que o outro.‖ (DE, p. 147)

Portanto, se antes a estátua era ridícula e grotesca sem braço, continuou medonha com

aquele braço disforme colado a ela: ―Era um tanto ridículo com aquele braço da palavra

escrita e do sinal da cruz a sair como um enxerto, como uma veemência desmesurada. Mas

não importava, isto só a tornava mais arcaica e mais terrível.‖ (DE, p. 148)

Ironicamente, o que seria um demérito para a imagem do Imperador, o braço colado de

forma grosseira, acabou contribuindo para reforçar sua fama de arcaico, antiquado e opressor,

fazendo com que fosse temido e obedecido ainda mais.

Nota-se que há uma deformação generalizada da figura do Imperador Dinossauro,

tanto que até sua estátua é deturpada e ridicularizada. Percebemos a ironia observável na

figura da estátua cuja forma foi alterada para combinar com a deformidade de quem serviu de

inspiração para ela. O Imperador, que no decorrer da narrativa vai adquirindo mais e mais as

feições de dinossauro, ao final dela já está metamorfoseado no réptil pré-histórico e até sua

estátua sofre as deformações, para representar de maneira mais real a figura grotesca do

Imperador Dinossauro.

E mais, a estátua igualmente havia adquirido as características desprezíveis do ser que

representava, e, semelhantemente a ele, já carregava consigo as feições da morte. Como lemos

no conto:

E a morte, no parecer de um dos capelães da expedição, protegera a imagem

mutilada revestindo-a de um sal verde, de floresta, vómito ou fel de bronze, que a

tornava mais antiga e com manchas que faziam lembrar as chagas dos cadáveres

sagrados. E além da mortalha de azebre havia um perfume funerário de sândalo e de

hibisco a flutuar sobre o corpo e era um incenso, onda ou qualquer coisa muito

nobre que (cf. Relatório Militar) (DE, p. 146)

108

A expressão ‗(cf. Relatório Militar)‘ é uma nota transtextual, segundo Genette, que

revela a fonte da informação fornecida pelo narrador. O que não é comum é encontrar em um

relatório militar descrição tão minuciosa das impressões que a estátua causava nas pessoas,

tais como o cheiro e algumas nuances de cores bastante precisas. Trata-se de uma ironia do

narrador, porque o relatório militar acaba por se configurar numa visão muito particular e

avaliadora do narrador a respeito da estátua, com a tentativa de imprimir-lhe um caráter

fantasmagórico, apresentando-a já ligada à morte, salientando seu poder de divindade

cultuada e perpetuada através dos tempos.

Já a descrição da coloração verde que adquirira pela exposição ao sal, remete ao

caráter amargo e terrível do Imperador Dinossauro, não deixando de ser também um elemento

ridicularizante da figura do grande Imperador.

Portanto, essa estátua descomunal era a imagem e a semelhança do nosso Imperador

Dinossauro, poderíamos dizer que eram irmãos gêmeos. Na antessala do Imperador causava

arrepios a todos que lá passavam e as histórias a respeito de que tinha vida, podia ouvir, ver e

se mexer, viraram lenda naquele Reino.

Mais adiante, há a mobilização de uma conhecida história bíblica, que diz que Deus,

quando destrói as cidades de Sodoma e Gomorra, pelos pecados lá cometidos pelo povo,

poupa a família de Ló da morte. Porém, a mulher de Ló olha para trás, desobedecendo a uma

instrução de Deus e imediatamente torna-se uma estátua de sal, (Gn. 18. 20-21; 19.24-26-28):

20 Disse mais o SENHOR: Como efeito, o clamor de Sodoma e Gomorra tem-se

multiplicado, e o seu pecado se tem agravado muito. 21

Descerei e verei se, de fato o que têm praticado corresponde a esse clamor que é

vindo até mim; e, se assim não é, sabê-lo-ei. 24

Então, fez o Senhor chover enxofre e fogo, da parte do Senhor, sobre Sodoma e

Gomorra. 26

E a mulher de Ló olhou para trás e converteu-se numa estátua de sal. (BÍBLIA,

1996)

A passagem do texto que remete ao episódio bíblico é a seguinte:

mas também não constituía surpresa de maior para um conhecedor da História antiga

como ele. Estátuas de carne, não seria aquela a primeira: que se lembrasse, havia

109

pelo menos a do fugitivo que noutros tempos ficara empedernido em sal para todo o

sempre. Ou era confusão dele? (DE, p. 149)

Muitos eram os que conversavam com a estátua, ensaiavam o discurso com ela, para

depois o proferirem com o Imperador de Verdade. Até crimes foram confessados a ela. A esse

respeito diz o texto: ―De tanto fixar os olhos na estátua, jurou ter-lhe visto movimentos

secretos nos lábios e no braço descomunal, breves sinais talvez, coisas minúsculas mas

reveladoras como todos os avisos enviados por Deus.‖ (DE, p. 148)

O episódio mais hilariante aconteceu com o General cornetas, nome bastante

sugestivo, porque o general conspirador confessou todo o plano para a estátua. Não se sabe se

foi a espera excessiva, fato é que, às vezes, a estátua se revelava mais eficaz que os Dê-erres

na arte de fazer um subversivo confessar seus crimes. O general foi ficando tão amedrontado

e delirante diante dela, que passou a confundir tudo, e num ato tresloucado deu detalhes do

plano ao irmão de bronze do Imperador. Como lemos no conto: ―A CONFISSÃO: Eu,

cavaleiro de primeiro grau, declaro por minha honra que tomei parte com animus conspirandi

em reuniões de charuto e mascarilha com vista à transformação da ordem do Reino.‖ (DE, p.

152)

A amizade entre Imperador e estátua fortaleceu-se à medida em que o Dinossauro se

afastava da forma humana e dos humanos. A estátua era sua companheira e com ela assumia

atitudes de amizade como: ―Nessas ocasiões (diz-se também) tinha o costume, muito dele, de

passar o braço pelos ombros da estátua e ficarem ambos, irmão com irmão, voltados para a

mesa das reuniões.‖ (DE, p. 175)

É triste e ao mesmo tempo cômico ter por amigo e irmão uma estátua, mais um forte

elemento satírico da história. Tanto poder, tanta prepotência, tanta mania de grandeza,

jogados por terra porque aquele Imperador era extremamente solitário; é um toque tristonho

mas ao mesmo tempo cômico; tanta pompa e ser amigo de um ser inanimado. Por outro lado,

como era a cópia fiel do Imperador, revela seu lado narcisista e egocêntrico.

Nas piores horas da vida, quando precisamos de amizades sinceras, a estátua estava ao

lado do Imperador, seu irmão para consolá-lo. O Imperador, na ânsia de perseguir as palavras

e por ter se afastado do convívio humano, tornando-se um Dinossauro, já bastante debilitado,

encontra conforto em seu semelhante, a estátua: ―Desesperado, o Imperador corria para os

braços do irmão de bronze, outro surdo.‖ (DE, p. 180)

110

No horrendo episódio de sua queda, no qual seu gabinete fora invadido pelas

serpentinas de palavras que saíam das máquinas, o Imperador Dinossauro também procurou

refúgio no irmão de bronze: ―E quando alcançou a estátua e estendeu o braço à procura de

socorro é que percebeu como era antigo esse braço e como por dentro dele só havia fibras

secas, a estalar.‖ (DE, p. 183)

Ironicamente, seu único amigo deu-lhe o golpe de misericórdia, a estátua na qual o

Imperador pensava apoiar-se para evitar sua queda, caiu-lhe em cima da cabeça para aumentar

o impacto do tombo: ―Num último esforço começou a içar-se: foi nesse momento que a

estátua estremeceu um instante e, gentilmente, quase num segredar, inclinou-se sobre ele. Na

lenta oscilação de um segundo, Dinossauro, de olhos apavorados, viu-se hesitar, baixar-se,

baixar-se ainda mais, e desabar-lhe em cima. TCHAP!‖ (DE, pp. 183, 184)

É uma verdadeira tragicomédia, os dois Imperadores foram encontrados um sobre o

outro, caídos no chão, ambos muito pesados e verdes. A coloração esverdeada se deve ao

verde da estátua que ficou estampada no Dinossauro.

Segundo o conto, havia muitas estátuas espalhadas pelo Reino, elas serviam para

lembrar o povo da presença do Dinossauro, como um Deus que está em toda parte,

onipresente. Os mexilhões conheciam bem o sentido e o valor das estátuas, pois, sentiam o

seu jugo perpétuo: ―OUTRA ESTÁTUA concluíram os mexilhões, com um sorriso cansado.

Sabiam como ninguém o peso e o frio desses monumentos e da sombra que espalhavam a

toda a curva do Sol‖ (DE, p. 196)

Os espertos e sofridos mexilhões sabiam da opressão que elas simbolizavam, por isso

passavam esses ensinamentos de geração em geração para que nenhum de sua espécie se

esquecesse da sucessão das estátuas que funcionavam como uma alegoria dos governantes

que oprimem e exploram o povo e que se sucedem, estão sempre lá, permanecem, morre um,

mas já há outro na escala da sucessão.

2.3 DAS IRONIAS MAIS SIGNIFICATIVAS EM ―DINOSSAURO EXCELENTÍSSIMO‖

A mentira é uma verdade que se

esqueceu de acontecer

111

Mário Quintana, 2006, p. 60

O texto de Cardoso Pires é repleto de ironias, difícil é escolher, dentre tantas, as mais

significativas ou marcantes. Abordaremos nesta parte as que julgamos mais pertinentes e que

ainda não foram contempladas nos itens anteriores.

A respeito do título: ―Dinossauro Excelentíssimo‖, o segundo elemento é um adjetivo

superlativo usado como tratamento para certos indivíduos de alta hierarquia social, que são

considerados pessoas extraordinárias, magníficas e notáveis. Trata-se de uma ironia do

narrador chamar um dinossauro, um animal pré-histórico, primeiro de Imperador, depois de

Excelentíssimo, uma vez que as virtudes de um Excelentíssimo não condizem com a natureza

de um Dinossauro. Mas sabemos que o dinossauro do qual o texto trata é Salazar, o

Imperador Ditador, alvo da sátira do narrador, que é chamado assim em virtude de suas

atitudes arcaicas e por governar com mãos-de-ferro.

Outro elemento que nos chamou a atenção foi um recurso transtextual utilizado pelo

autor: A República dos Corvos é o livro de contos no qual se encontra o texto, objeto de nossa

análise e nele há uma epígrafe, informação transtextual, segundo Genette, que nos fornece

subsídios importantes para a leitura do conto. A epígrafe diz o seguinte: ―<<Cada homem

transporta dentro de si o seu bestiário privado ─ disse o Juiz.‖ (Pires, 1998)

Bestiário é um termo que se refere aos manuscritos medievais, eram descrições

detalhadas do mundo natural e essencialmente animal. Descreviam-se e inventariavam-se os

animais, pássaros e peixes, desde os mais comuns e facilmente reconhecíveis, como o leão, o

corvo e o golfinho, até os imaginários e fantásticos como o unicórnio, a fênix e a sereia. As

descrições dos animais não se baseavam em sua observação, mas sim nas informações

retiradas de outras obras. Os bestiários funcionavam como um livro de notas de um

naturalista, e estavam em permanente revisão. Seu objetivo fundamental era revelar o mundo

natural conhecido, mais do que documentá-lo ou explicar o seu funcionamento.

Outro objetivo do bestiário era instruir o homem, porque seus autores acreditavam que

para tudo que Deus criou havia uma função e uma intenção; então, os bestiários ajudariam na

edificação do homem pecador, pois o conhecimento da natureza e dos hábitos dos animais

poderia ensinar aos homens o caminho da redenção. Assim, a cada animal era atribuído um

significado místico, tendo como base as Sagradas Escrituras. Não era tarefa fácil, pois um ser

112

poderia representar o bem e o mal simultaneamente, de modo que alguns animais possuíam

uma duplicidade de sentido. Com o desenvolvimento científico, os bestiários iriam perder a

sua importância, mas influenciaram a Literatura (fábulas e alegorias), a Arte e até a Biologia

(na enumeração e estudo das espécies).10

―Dinossauro Excelentíssimo‖ representa um

bestiário, pois, do mesmo modo, os outros contos que compõem o livro são fábulas alegóricas

da vida humana. No conto analisado pudemos observar os diversos papéis representados pelos

animais, funções que nos levam a pensar no sentido da vida, das relações sociais, enfim, como

pretendia o bestiário, na própria redenção humana. De todo modo, a noção de que ‗todo

homem carrega dentro de si o seu bestiário privado‘ é o mote dos textos do livro.

Uma outra ironia evidente é a crítica ao excesso de burocracia do reino, numa clara

menção ao excesso de burocracia da cultura portuguesa, que foi legada, como uma herança

maldita, à sociedade brasileira.

Tudo se inicia com a formação do futuro Imperador, que é educado na fala rebuscada,

difícil, inacessível às pessoas comuns; carregada de latim, tão requintada e por isso mesmo

tão inacessível:

Os doutores, no trono da sua gravidade, acenavam que sim: tratava-se de um falar

muito próximo dos alfarrábios por onde tinham estudado, logo, o mais perfeito. (...)

gostavam daquela maneira encarreirada de complicar. (...) frases de longo ornato,

como iluminuras de breviário, quem a podia recusar? (...) De modo que foi chamado

para imperador. (DE, p. 128)

Originou-se assim o reino da enganação e das aparências, um reino de linguagem tão

rebuscada e tão apegado às tradições acadêmicas e religiosas que tinha que ser, igualmente,

burocrático. Assim, burocracia ou a arte de complicar e tornar moroso o desempenho do

serviço administrativo, não faltava àquele Reino:

Entretanto o Reino foi-se embandeirando em decretos e assinaturas. Esvoaçavam

papéis de amanuense, alegria das repartições, e no azul celeste deslizavam frases

difíceis através duma poeira dourada de louvores e oratórias. Não tardou muito a

10

Os dados foram consultados no Dicionário de Termos Literários, o endereço eletrônico encontra-se nas referências da dissertação.

113

nação estava toda dita e arquivada num imenso livro de decretos e castigos, ameaças

e mais que também (DE, p. 132)

Percebe-se, de forma clara, o clima que imperava naquele Reino, principalmente nas

palavras: decretos, assinaturas, oratórias e castigos. Reino de muitas regras que deveriam ser

cumpridas com rigor. O que realmente tinha valor era o papel escrito, assinado e depois

arquivado. Outra menção à burocracia: ―O reino desdobrava-se num imenso arquivo de

gavetas a abrirem-se umas às outras.‖ (p.161)

Toda essa preocupação excessiva com a documentação burocrática do Reino tornava-

se uma ironia diante das necessidades da população. Num Reino tão rico de regras e leis

escritas, o pobre estava cada vez mais miserável, tanto de bens materiais quanto de cultura

(palavras).

Enfim, para realizar o jogo irônico, um recurso utilizado pelo narrador é o

distanciamento, o narrador jamais tem certeza dos fatos narrados e com este artifício, obtêm o

efeito irônico, envolve o leitor na história e deixa a interpretação aberta, deixando para o leitor

a tarefa de preencher os vazios, as lacunas do texto, para construir o sentido da leitura.

Podemos observar esta tentativa de diálogo com o leitor pelo uso das expressões: ―dizem,

sabe-se, tudo leva a crer, supõe-se, etc.”

Ainda mais, o distanciamento evita o envolvimento e, por conseguinte, o surgimento

das emoções, que turvam a capacidade de realizar a crítica e de analisar de forma racional a

história, essenciais para o efeito irônico e satírico.

114

CAPÍTULO 3

SOMBRAS DE REIS BARBUDOS

Tudo é a ponta de um mistério.

Inclusive, os fatos. Ou a ausência

deles. Duvida? Quando nada

acontece, há um milagre que não

estamos vendo.

Guimarães Rosa, 2008, p.76

Sombras de Reis Barbudos aparece geralmente ligado à Literatura Fantástica ou ao

Realismo Maravilhoso latino-americano do século XX. Apesar de serem vertentes muito

parecidas no modo de conceber a literatura, os críticos e teóricos literários apontam diferenças

entre elas.

O Fantástico teria nascido na Europa no século XVIII e o Realismo Maravilhoso,

também chamado de Realismo Mágico, seria de origem latino-americana e datado do século

XX. O ponto de contato entre as estéticas seria a criação de narrativas que apresentam

realidades que fogem aos padrões do verossímil.

A proposta do Realismo Mágico era que escritores e público leitor voltassem seu olhar

para a realidade latino-americana numa tentativa de descobrir, por meio de um olhar atento, a

riqueza cultural desses povos. Defendiam a valorização da cultura dos países latino-

americanos, cultura até então desconhecida e subjugada pela Europa. Desta forma,

propunham uma busca de identidade do próprio discurso ficcional por meio da literatura.

Houve grande curiosidade por parte do povo europeu a respeito da literatura dos países

latino-americanos, por conta do exotismo e do estranhamento que os hábitos e os costumes

destes povos despertavam. Vem deste fato o grande avanço da literatura desses países, o

chamado ‗boom‟ da literatura hispano-americana dos anos 60, muito lida e estudada por

críticos de literatura, com nomes de prestígio internacional como Garcia Márquez, Juan Rulfo,

Alejo Carpentier, Julio Cortázar.

115

O realismo maravilhoso afasta-se da literatura fantástica por permitir que o insólito se

instaure no real sem, contudo, desestruturar por completo essa realidade. Na verdade, o

realismo maravilhoso se propõe a apresentar a realidade a partir de uma perspectiva incomum

que acaba por transcendê-la e por isso mesmo faz com que o leitor conviva,

concomitantemente, com um mundo de um lado natural e lógico e, de outro, sobrenatural e

ilógico. Este efeito é alcançado graças à sensação de encantamento do discurso por meio da

incorporação do insólito ao real e pela desarticulação entre causa e efeito dos acontecimentos.

A esse respeito lemos:

O sintagma ―realismo maravilhoso‖, aparentemente paradoxal (porque realismo

pressupõe uma relação de verossimilhança com o referente e maravilhoso, de

inverossimilhança), define o tipo de narrativa que encontramos em García Máquez,

em Juan Rulfo e em Carpentier, por exemplo. São narrativas que não excluem os

realia (real, no baixo-latim); entretanto, os mirabilia (maravilha) ali se instauram,

sem solução de continuidade e sem criar tensão ou questionamento (como no

fantástico). (RODRIGUES, 1988, p. 59)

Outras características desse realismo são a abordagem dos grandes temas sociais e o

enfoque político, objetivando desvendar, de forma crítica, o processo histórico de construção

das identidades latino-americanas sob a ótica dos conflitos, ou seja, do ponto de vista da

nação colonizada, com o intuito de denunciar a exploração ou o nepotismo dos governos

autoritários ou da classe dominante, como acontece em Sombras de Reis Barbudos, em que

vivenciamos o conflito entre uma pequena cidade do interior com a modernidade insólita com

a qual é obrigada a dialogar. Há também no livro uma total falta de motivação e / ou de

explicação a respeito dos acontecimentos da diegese, tudo parece muito difuso, tanto os atos

das personagens como os acontecimentos que se passam naquela cidade, porque há a omissão

de dados importantes. Ficamos assim, como que sem elementos para estabelecer as conexões

necessárias à coerência textual. Além disso, tudo é relativizado, ao mesmo tempo em que nos

deparamos com uma narrativa aberta, cujo final deixa o leitor em meio a dúvidas.

Antonio Candido, falando da tendência de fugir ao real, diz:

Outra tendência é a ruptura, agora generalizada, do pacto realista (que dominou a

ficção por mais de duzentos anos), graças à injeção de um insólito que de recessivo

116

passou a predominante e, como vimos, teve nos contos do absurdo de Murilo Rubião

o seu precursor. Com certeza foi a voga da ficção hispano-americana que levou para

este rumo o gosto dos autores e do público. Os seus adeptos são legião, mas bem

antes de a moda se instalar José J. Veiga tinha publicado Os cavalinhos de

Platiplanto (1959) ─ contos marcados por uma espécie de tranqüilidade catastrófica.

(CANDIDO, 2000, p.211)

Mas em meio a esta realidade habitada pelo insólito e por isso mesmo desarticulada,

Sombras de Reis Barbudos não deixa de realizar uma releitura crítica da história, como fez

toda a literatura hispano-americana que também denunciou realidades opressivas e seus

ditadores. Sobre o caráter político-social desse tipo de literatura lemos na Dissertação de

Mestrado de Gregório F. Dantas, ―O Insólito na Ficção de José J. Veiga‖:

[...] ou o que outros preferem chamar de ―realismo mágico de 70‖. Este, se assim

podemos chamá-lo, seria mais adequado para a crítica social.

Esta chave interpretativa é amplamente difundida na fortuna crítica de J. J. Veiga.

Em interessante estudo sobre o regime de 64 e o romance brasileiro, Regina

Dalcastagnè situa Sombras de reis barbudos (1972) ao lado de Incidente em Antares,

de Érico Veríssimo, e Os tambores silenciosos (1976), de Josué Guimarães,

romances onde a ―alegorização política e a paródia do discurso do poder‖

(DALCASTAGNÈ, 1996, p. 80) nascem de representações irreais, fantásticas. De

modo semelhante, o brasilianista Malcolm Silverman, em seu Protesto e o novo

romance brasileiro, reuniu autores representativos de uma literatura nascida como

reação ao golpe militar de 1964 e seus subseqüentes anos de repressão. J. J. Veiga é

enquadrado na categoria ―o romance da sátira política surrealista‖ através dos

romances A hora dos ruminantes, Sombra de reis barbudos, Os pecados da tribo e

Aquele mundo de Vassabarros. (DANTAS, 2002, pp. 128-129)

Portando, Sombras de Reis Barbudos, por denunciar o absurdo com que as práticas

cotidianas podem apresentar-se às pessoas sem que essas se dêem conta ou compreendam

como o inusitado ou o insólito se instaurou em suas vidas, opera uma transfiguração do real,

criando uma realidade ficcional alegórica, na qual, por meio do estranhamento, coexistem

elementos reais e maravilhosos.

O Brasil, menos pródigo que os países de língua espanhola, teve entretanto um autor

que, no século XIX, já usava elementos fantásticos em sua narrativa: Machado de

Assis em Memórias póstumas de Brás Cubas. Contemporaneamente, os autores que

mais se destacam nesse gênero são J. J. Veiga e Murilo Rubião. (RODRIGUES,

1988, p. 64)

117

Segundo Tzvetan Todorov no livro Introdução à Literatura Fantástica, todo e

qualquer elemento que cause estranheza numa narrativa pode aparecer de três principais

formas: por meio do estranho, do fantástico ou do maravilhoso. A incerteza do leitor,

provocada por acontecimentos estranhos ou irreais na narrativa, causa sensação de

ambiguidade; por outro lado, se esse paradoxo é resolvido, ou seja, tem uma explicação

plausível, a narrativa deixa de ser considerada fantástica para classificar-se como estranha. Se

o fato inusitado e insólito for plenamente aceito pelo leitor, estamos no domínio do

maravilhoso. Quando o fato estranho ou inusitado não pode ser explicado e permanece sem

esclarecimento, conservando-se sua hesitação, temos a categoria do fantástico:

O fantástico ocorre nesta incerteza; ao escolher uma ou outra resposta, deixa o

fantástico para se entrar num gênero vizinho, o estranho ou o maravilhoso. O

fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais,

face a um acontecimento aparentemente sobrenatural. (TODOVORV, 1975, p.

31)

O que caracteriza o fantástico é a ruptura da ordem do cotidiano e também a do

sobrenatural. Desse modo, tanto a natureza quanto a sobrenatureza são colocadas em xeque

pela literatura fantástica, pois o sobrenatural é um tema recorrente neste gênero literário. O

que ocorre é que o universo racional e o universo não racional convivem na literatura

fantástica, há um confronto entre essa duas ordens, sem que haja a destruição de uma das duas

lógicas, instaurando-se o questionamento e a ambiguidade.

O sonho também é uma motivação fantástica que compõe a narrativa e instaura o

insólito e o inverossímil. Por meio do sonho é possível a hesitação e o questionamento

necessários à narrativa fantástica e a ambiguidade é mantida em suspenso. Em vários

momentos da narrativa de Sombras de Reis Barbudos o narrador questiona se tudo não passou

de um sonho, o fato das pessoas estarem voando, a vinda do mágico à cidade e um momento

onírico é vivenciado pelo narrador por ocasião de uma visita à casa do tio Baltazar:

Ela me viu, eu voltei para o meu sofá no canto, comi os biscoitos e dormi.

Eu estive enganado o tempo todo. Tio Baltazar passava muito bem. A reunião era

uma festa para comemorar a torre que acabava de construir, obra nunca vista e muito

importante encomendada por uma comissão de reis barbudos. Como prêmio tio

118

Baltazar ia ser nomeado rei também, aquela gente toda esperava ali para ajudá-lo a

experimentar a roupa, a coroa e a barba postiça que ele ainda ia usar enquanto não

crescesse a verdadeira.

(...)

Quando tudo parecia perdido alguém me carregou nos braços, me deitou num jirau

macio e estendeu um cobertor por cima de mim. (SRB, pp. 81-82)

Somos introduzidos no sonho de Lu sem maiores esclarecimentos e convidados a sair

dele da mesma forma, por isso hesitamos se o episódio aconteceu ou não efetivamente na

narrativa; percebemos muito tempo depois, de forma bastante discreta, apenas sugerida, que

foi um sonho do narrador.

Dar vida a seres inanimados, ou seja, dar alma a eles, anima, fornecer-lhes

movimentos próprios é uma característica do maravilhoso, próprio dos contos de fadas, por

exemplo. Em Sombras de Reis Barbudos o mágico Uzk fez com que pedras voassem: ―Será

um mundo em que pedras e sapos voam, areia molha, fogo pode ser cortado e guardado no

bolso?‖ (SRB, p. 60)

A duplicidade dos seres é trabalhada pelo fantástico porque o desdobramento quebra o

equilíbrio por meio da ruptura com o mundo real. Como afirma Selma Calasans Rodrigues:

Variam as formas de representação do duplo: temos personagens que, além de

semelhantes fisicamente (ou iguais), têm sua relação acentuada por processos

mentais que saltam de um para outro (telepatia), de modo que um possui

conhecimento, sentimentos e experiências em comum com o outro. Ou o sujeito

identifica-se de tal modo com outra pessoa que fica em dúvida sobre quem é o seu

eu [...] Ou há o retorno ou repetição das mesmas características, das mesmas

vicissitudes e dos mesmos nomes através de diversas gerações (em Cem anos de

solidão, de Gabriel Garcia Márquez, os Aurelianos e os José Arcadios). Ou ainda,

um mesmo eu desdobra-se em pessoas distintas e opostas. (RODRIGUES, 1988,

p. 44)

O mágico Uzk é quem representa o duplo na narrativa porque ele é paradoxalmente

uma pessoa comum, marcada por um defeito físico, mas quando entra num palco transforma-

se no grande Uzk dos cartazes, tem sua estatura aumentada, o defeito não aparece, faz coisas

impossíveis.

O duplo representa também a perda da inocência, no caso de Lu houve um grande

impacto sinalizado pela decepção do menino ao conhecer o mágico real e compará-lo com o

119

mágico do cartaz. Instaura-se a dúvida, a ambiguidade e a dupla figura do mágico que parece

ser duas pessoas diferentes. A figura real que está à frente do narrador não coincide com a

figura dos cartazes nem posteriormente com o mágico em ação no palco.

A figura duplicada do mágico no cartaz aparece estilizada por meio dos olhos e de

todo o clima de mistério imprimido à propaganda: ―Até que apareceu esse mágico, o Grande

Uzk. Primeiro apenas o nome e a fama, o mágico nos olhando de cartazes em que os olhos

pareciam duas brasas queimando em um rosto apenas sugerido em fundo escuro.‖ (SRB, p.

52)

Em Sombras de Reis Barbudos há a presença dominante do fantástico e do

maravilhoso, uma vez que a pacata realidade cotidiana de uma cidade do interior é

atravessada por uma Companhia (que faz às vezes do estranho), criando uma atmosfera de

magia que subverte a ordem natural das coisas. Há uma incorporação do insólito (Companhia)

ao real cotidiano das pessoas que causa uma descontinuidade nas leis naturais e, por

conseguinte, gera a incerteza, condição para a instauração do fantástico. Lemos em Furtado:

[...] qualquer narrativa fantástica encena invariavelmente fenômenos ou seres

inexplicáveis e, na aparência, sobrenaturais. Por outro lado, tais manifestações não

irrompem de forma arbitrária num mundo já de si completamente transfigurado. Ao

contrário, surgem a dado momento no contexto de uma acção e de um

enquadramento espacial até então supostamente normais. (FURTADO, 2009, p.

19)

Essa ambiguidade ou hesitação presente neste tipo de literatura é reforçada pelo uso da

alegoria, no sentido de dizer uma coisa e significar outra diferente. Sendo a alegoria uma

figura que faz a proposição do duplo sentido, em Sombras de Reis Barbudos há um sentido

literal denotativo e outro conotativo possibilitado pelo uso da alegoria política e da paródia do

discurso do poder.

J. J. Veiga, cuja primeira obra data de 1959 (Cavalinhos de Platiplanto), situa seus

personagens num espaço rural, mas que acaba por ser um espaço alegórico que quer

falar sempre da relação entre opressor e oprimido ou da possibilidade de viver

apenas no sonho (o menino fica sabendo que os cavalinhos são seus, mas que ―levar

não pode. Eles só existem em Platiplanto‖). Seu fantástico, que começa leve, se

adensa, avizinhando-se do absurdo (cf. A hora dos ruminantes, A sombra dos reis

120

barbudos, A máquina extraviada), e a par das reflexões de caráter existencial, parece

ser a alegoria da sociedade brasileira dos anos de ditadura e opressão (...). O caráter

alegórico dessa literatura, longe de se esgotar em qualquer chave interpretativa, é

aberto e se oferece ao leitor em múltiplas possibilidades interpretativas.

(RODRIGUES, 1988, pp. 65- 66)

O livro é um relato em primeira pessoa do protagonista da história, um adolescente

que resolve escrever a respeito da instalação de uma Companhia na pequena cidade de

Taitara, onde mora, tarefa sugerida pela mãe do menino, numa tentativa de fazer o filho

permanecer em casa e ocupado, naqueles tempos difíceis.

Lucas inicia sua narrativa contando a chegada do tio Baltazar à cidade, o responsável

pela vinda e instalação da fábrica que viria a mudar a vida de todos, estendendo-se pelos

tempos de opressão e autoritarismo, até chegar ao momento atual da escrita.

Poderíamos dizer que, do mesmo modo que ―Dinossauro Excelentíssimo‖ é uma

paródia da ditadura salazarista, Sombras de Reis Barbudos é igualmente uma paródia da

ditadura militar brasileira, uma vez que retrata os horrores cometidos pelos governantes dessa

época de opressão de forma alegórica. J. J. Veiga usa uma linguagem cifrada para estruturar

sua narrativa, mas pela semelhança que a história apresenta com a situação vivida no Brasil,

sabemos que se trata do período pós-golpe militar de 1964, quando se instaura a ditadura

militar e com ela os mecanismos de controle daqueles que não concordam com a ordem

estabelecida.

Assim, por meio das memórias do menino Lucas, ficamos sabendo das mudanças que

ocorrem com a instalação da Companhia de Melhoramentos de Taitara. A Companhia passou

a controlar tudo e todos na cidade, domínio parecido com aquele que acontecia nos anos 70 no

Brasil com a ditadura militar. Inicia-se, desta forma, em Taitara, uma luta entre os fiscais

(funcionários da Companhia), interessados em manter a ordem e o controle de tudo e os

habitantes daquela pacata cidade interiorana que lutavam pela liberdade de expressão.

O controle da Companhia, com o passar do tempo, torna-se absurdo, incoerente e

irracional, devido às proibições estapafúrdias que são decretadas pela empresa, que a cada dia

ressurge mais forte e influente na cidade. À Companhia são atribuídos poderes demiurgos

sobre a população, de tal maneira que, levando-se em consideração as características da

literatura fantástica, a Cia. representaria o elemento sobrenatural criador de tensão e

questionamento no interior da narrativa, fonte de todos os problemas e frustrações.

121

Baltazar, o fundador e idealizador dessa grande empresa, parte sem explicação,

desvinculando-se da Companhia, e o que se segue é um período de crescente tensão na cidade,

em virtude das proibições e das fiscalizações constantes. O ápice do controle e do

cerceamento exercidos pela Companhia é a aparição repentina de muros cercando toda a

cidade e fazendo com que a população, para se deslocar de um lugar para outro, percorra

verdadeiros labirintos, sem contar a redução drástica do campo visual das pessoas, agora

reduzido e fechado por paredões de concreto.

Outro absurdo é a invasão dos urubus que infestam a cidade, fazendo às vezes de

animais de estimação. Esses animais, que não nasceram para serem criados dentro de casa,

logo se tornam inconvenientes, permanecem por um tempo nas casas e depois vão embora.

O momento mágico ou lúdico, e também ambíguo, surge por conta do mágico Uzk,

que encanta os habitantes da cidade, é uma pausa para aqueles indivíduos tão cansados de

inúmeras proibições e regras severas.

As proibições e decretos da Companhia, por mais absurdos que possam ser, jamais são

contestados pela população, que aceita tudo muito conformada. Percebemos um

questionamento discreto por parte de Lucas, assim mesmo apenas em alguns momentos da

narrativa.

Podemos dizer que Sombras de Reis Barbudos é uma narrativa cujo final fica em

aberto, porque ela é suspensa enquanto Lu conversa com o senhor Chamun, dono de um

estabelecimento comercial na cidade. Também não ficamos sabendo sobre o destino do pai de

Lu que fora preso pela Companhia. A vida é uma incógnita para Lu e para todos os habitantes

de Taitara, fato que fica bem claro no final do livro, que nada conclui.

3.1 DAS IRONIAS EM SOMBRAS DE REIS BARBUDOS

O ataque de uma borboleta agrada

mais do que todos os beijos de um

cavalo.

Mário Quintana, 2006, p. 69

122

Companhia de Melhoramentos de Taitara, nome pomposo para uma empresa que se

propunha a trazer o progresso para a cidade. À medida que tomamos conhecimento dos fatos,

esse nome revela-se também irônico, por sinalizar para uma inversão semântica, uma

antífrase. Na contramão da promessa de melhoria na qualidade de vida e de geração de

empregos, o que se abateu sobre a cidade foi o controle extremo da Companhia em todas as

esferas da vida de seus habitantes; onde se lia ‗melhoramentos‘, passou-se a entender

‗opressão‘, ‗controle‘, ‗regime autoritário‘ e, consequentemente, piora na qualidade de vida

das pessoas. Como lemos no texto: ―Mas a história que vou contar começa mesmo é com a

chegada do tio Baltazar. Quem podia imaginar naquele tempo de alegria e festa que um sonho

tão bonito ia degenerar nessa calamitosa Companhia Melhoramentos de Taitara?‖ (SRB, p. 2)

O adjetivo feminino ‗calamitosa‘ referindo-se à Companhia, opõe-se à palavra

‗Melhoramentos‘ que faz parte do nome da empresa e sugere progresso e bem estar social.

Toda essa expectativa de uma vida melhor gerada pela instalação da Companhia é quebrada, e

o narrador deixa claro, por meio da qualificação de catástrofe atribuída à Companhia, que esse

sonho de progresso tornou-se um pesadelo.

Os habitantes da cidade acreditavam que a Companhia iria trazer realmente

melhoramentos para o Município, aquela gente simples valorizava uma novidade,

principalmente quando era importada. Por exemplo, tio Baltazar era uma figura famosa na

cidade, não somente pelo investimento na Companhia, mas também por ter vindo de fora,

possuir carro e outros bens, e ter o hábito de tirar fotografias, fato nada comum naquele lugar;

diz o texto que as fotos do tio Baltazar eram muito valorizadas pela população, mesmo antes

de ele ser presidente da Companhia:

Essa fotografia, com dedicatória para mamãe, fez o maior sucesso entre nossos

amigos, além de vê-la muitos queriam mostrar a outros. Entre zelosa e vaidosa

mamãe emprestava; mas se a pessoa demorava a devolver, eu recebia a missão de ir

buscá-la, um documento daquela importância não podia passar muito tempo em

mãos profanas. (SRB, p. 3)

Nota-se certa idolatria pela figura de Baltazar, uma vez que a população da cidade

demonstrava grande interesse em apenas ver e possuir por momentos sua fotografia, que era

generosamente cedida pela mãe de Lu, logo resgatada, porém, quando exageravam na posse

123

do documento importante, como era nomeado.

Como presidente da Companhia, o prestígio de Baltazar cresceu, todos gostavam

muito dele na cidade, era uma verdadeira celebridade. No núcleo familiar era bastante amado

pela irmã, mãe de Lu, e admirado pelo sobrinho. No início houve certa decepção da parte de

Lu em constatar que faltava um braço a Baltazar: aquele homem tão imponente e atlético das

fotografias tinha um defeito físico! Esse episódio foi logo superado pela convivência familiar,

dando lugar a uma admiração profunda. Esse laço entre tio e sobrinho nunca foi bem visto

pelo pai de Lu, Horácio, personagem que mais sofre mudanças segundo depreendemos da

narrativa. A princípio parece não gostar do tio Baltazar, mas depois planeja com o cunhado a

instalação da Companhia e vai trabalhar com ele. Quando Baltazar deixa a presidência da

Companhia, Horácio permanece no emprego e se adapta às novas funções, passa a ser um

fiscal.

Como fiscal da Companhia Horácio sofre nova transformação em sua personalidade,

torna-se agressivo e arrogante em casa, e passa a usar uma farda para trabalhar. Dentre todos

os fiscais, somente Horácio usava farda; no decorrer da narrativa percebemos que foi por

vontade própria, dizia que impunha respeito. Percebe-se uma referência ao Militarismo, ao

Exército, representado metonimicamente pela farda, esse símbolo do poder da Ditadura

Militar brasileira que acaba por uniformizar procedimentos e posturas.

A farda torna-se também uma escravidão para a mãe de Lu, pois tem que lavá-la e

passá-la muito bem; se a vestimenta não estivesse impecável, Horácio certamente exigiria que

todo o serviço fosse refeito:

Além de não ser dispensado, meu pai ainda foi promovido a fiscal não sei de que, e

parecia tão feliz como nos primeiros tempos da Companhia. Agora ele andava para

cima e para baixo vestido com uma farda azul que mamãe penava para manter

impecável, se descobrisse nela uma ruga ou mancha meu pai não a vestia enquanto o

defeito não fosse corrigido, ele até arranjou uma lente grande para examinar a farda. (SRB, p. 27)

Essa obsessão do pai pela farda incomodava Lu porque já havia presenciado muitas

brigas e discussões dos pais por causa do uniforme. Em um dos comentários de Lu a esse

respeito podemos constatar a ironia observável e também avaliadora; leiamos a passagem:

124

A culpa só podia ser daquela farda. Eu conhecia outros fiscais da Companhia, de vez

em quando um grupo deles se reunia aqui para combinar serviço com meu pai e

trocar informações, e nunca vi nenhum outro fardado. Se meu pai era o chefe deles,

como às vezes parecia, porque só ele andava fardado? (...)

─ Sou obrigado não, Lu. Essa farda eu mesmo inventei. Impõe mais respeito. ─

Girou para mostrar a farda. ─ Bonita, não é? ─ Você precisa ver como a cambada

me trata. Só faltam se mijar. Um dia vamos dar uma volta juntos para você ver.

Pensei em tio Baltazar paisano e aleijado e assim mesmo respeitado limpamente.

Quando me chamava para um passeio, era um presente que eu nunca pensaria em

recusar. (SRB, p. 28)

O comentário de Lu mostra-se bastante perspicaz ao observar que o tio Baltazar não

necessitava de uma indumentária para ser respeitado e amado, e mesmo sua deformidade

física não tirava o mérito daquela figura querida e reverenciada. Percebemos a ironia

observável nas figuras do pai que necessitava da farda para ser respeitado e do tio que mesmo

deformado era venerado por todos. É também uma ironia avaliadora porque coloca Horácio

como uma pessoa que valoriza as aparências e que deseja impor-se pela força. No outro

extremo avalia o tio como possuidor de característica nobres, respeitado por aquilo que ele é

em essência, mesmo faltando-lhe um braço e uma farda.

A instalação da Companhia exigiu investimento de um capital considerável, e esse

dinheiro veio de investidores que não moravam na cidade. Baltazar fazia muitos contatos com

empresários que vinham visitar Taitara para estudar a viabilidade do projeto. Eram

investidores muito ricos, pois o texto assim os descreve:

Então começou aquela romaria de gente de fora, uns homens muito prosas no vestir

e no falar. Eles se hospedavam no Hotel Síria e Líbano por conta do tio Baltazar,

tratavam a gente como se fôssemos índios ou matutos (meu pai vivia encrespando

com eles por causa disso) e reclamavam dos quartos, da comida, da poeira, como se

fossem reis acostumados com o bom e o melhor. (SRB, p. 10)

Eram pessoas muito diferentes dos habitantes da cidade, possuíam outros hábitos,

muito refinados e sofisticados, incompatíveis com os costumes rudes e selvagens dos nativos

locais. Observamos aqui algo típico da narrativa de J. Veiga, a oposição entre o campo e a

cidade, ou entre o homem simples e o dito civilizado, com a clara valorização da simplicidade

e uma carga negativa atribuída ao elemento civilizador ou moderno.

125

Aquela gente detentora do poder e do dinheiro exigia ser tratada como ‗reis‘, a

primeira menção ao título do livro. A primeira sombra que se projeta sobre a cidade de

Taitara, porque a segunda sombra seria a Companhia, e essa iria projetar-se muita mais longe.

É interessante observar o julgamento que os investidores faziam dos habitantes de

Taitara, chegando mesmo a chamá-los de índios e matutos, reclamando dos serviços

oferecidos pelos hotéis e restaurantes da cidade.

Como dissemos anteriormente, muitos empresários interessados em investir na cidade,

vieram conhecer o projeto do tio Baltazar, até que um deles resolveu tornar prática a ideia. Os

candidatos a investidores da Companhia, apesar do ar de superioridade, eram muito bem

educados; segundo o texto, pareciam pessoas de bem, embora esnobes. Quando vieram

conhecer Taitara causaram um alvoroço na população não acostumada com tantos automóveis

diferentes.

Diz o texto que os investidores falavam de forma diferente dos habitantes da cidade e

percebemos aqui a questão da variação linguística, provavelmente aquelas pessoas falavam o

dialeto culto padrão próprio da região de origem, diferente do dialeto falado em Taitara. A

esse respeito lemos:

Felipe falava engraçado. Pare ele o que era bom demais era ímpar, o que era ruim

era abominável, o feio era hediondo, o bonito era refinado, essas palavras que a

gente só encontra em livro de escritor importante. Em pouco tempo a meninada aqui

estava falando como eles, as pessoas mais velhas achavam graça e diziam que antes

aprender isso do que outras coisas. (SRB, p. 11)

O comentário de Lu demonstra que Filipe usava outras palavras para nomear as

mesmas coisas, ou seja, usava outra variação linguística, somente diferente do linguajar

utilizado pelos habitantes da cidade, esse fato reforça a diferença entre aqueles que vivem nos

grandes centros e aqueles que vivem no interior.

As pessoas simples de Taitara acolhiam a novidade, achando tudo muito divertido e

até bonito. Horácio é a voz divergente, como personagem mutante de personalidade que é, a

alertar tio Baltazar a respeito dos forasteiros, como no trecho que reproduzimos:

126

Enquanto Dr. Marcondes esteve aqui tio Baltazar quase não tinha tempo de nos

visitar, quando aparecia era correndo, só para dizer bom dia ou boa-tarde, nem

esperava um café, não podia deixar Dr. Marcondes esperando. Meu pai aproveitava

essas rápidas visitas para recomendar esperteza e lembrar que quanto mais

simpáticos são esses homens de fora, mais perigoso, como se soubesse tudo sobre

negócios e tio Baltazar não soubesse nada. (SRB, p. 11)

Mais uma vez o comentário de Lu acaba julgando Horácio de forma irônica. Na

avaliação do menino, é um disparate o pai dar conselhos a respeito de negócios para Baltazar

que, no julgamento de Lu, é alguém preparado e experiente para realizar essa tarefa. O

decorrer dos fatos, porém, comprova que Horácio estava certo, a Companhia trouxe o caos

para a cidade.

O capítulo que conta a instalação da Companhia na cidade intitula-se “Um Homem

Correndo‖, mas sabemos que todos correram para que a empresa ficasse pronta, o texto não

precisa ao certo o tempo; porém, percebemos que foi bastante rápido. Lu comenta novamente

da correria do pai, como lemos: ―Meu pai vivia correndo naqueles dias; se ele soubesse para

onde estava correndo teria moderado o passo.‖ (SRB, p. 13) Essa fala encerra o capítulo e

mostra a ironia do narrador, que conta uma história da qual já sabe o desenrolar dos fatos, ou

seja, tanto empenho em instalar uma empresa que viria a oprimir a cidade inteira, poderia ter

sido mais demorada a instalação.

O início deste mesmo capítulo também é bastante interessante porque temos a reflexão

do narrador a respeito de um tema recorrente no livro: a imposição de regras e normas à vida

das pessoas sem que essas se dêem conta. Vejamos o trecho ilustrativo: ―É curioso como

certas coisas vão acontecendo em volta da gente sem a gente perceber, e quando vê já estão aí

firmes e antigas. Depois mudam, do mesmo jeito manso.‖ (SRB, p. 7) A Companhia vai

impondo regras e limitando a vida das pessoas de forma gradual, sem que elas percebam,

quando notam, já perderam o domínio e cederam o espaço sem contestar.

A Companhia passou a mandar na cidade, não há menção a nenhum tipo de

autoridade, a não ser a da própria Companhia e a dos fiscais instituídos por ela.

Alegoricamente, aponta-se para o Brasil no período pós-golpe militar de 1964, pela

semelhança situacional. A Companhia seria o Governo Militar que tomou o poder, Baltazar

poderia ser associado a João Goulart, o representante do Governo anterior, o próprio livro usa

a palavra ‗golpe‘ referindo-se ao episódio da partida de Baltazar. Horácio simboliza o SNI

(Serviço Nacional de Informação), metonimicamente representando aqueles que faziam

127

cumprir as ordens determinadas pela Companhia. Lu e os demais meninos citados no livro

representam a resistência, os estudantes da época da ditadura que escreviam em muros seus

protestos, da mesma forma que os intelectuais e artistas da época que também não

concordavam com o regime vigente.

Depois de uma gestão de sucesso na Companhia, Baltazar é sumariamente deposto do

cargo, como lemos no texto:

Sem tio Baltazar a Companhia deixou de existir para nós. Meu pai continuava

trabalhando lá, mas nem eu nem mamãe esperávamos que fosse por muito tempo.

Logo nos primeiros dias do golpe muita gente ligada a tio Baltazar foi demitida em

duas ou três penadas, e não havia motivo para meu pai ser poupado. (SRB, p. 25)

Há a menção literal da palavra ‗golpe‘, ou seja, tio Baltazar foi, assim como João

Goulart, deposto do cargo que exercia por meio de força, não saiu por vontade própria. Outros

assumiram o controle da Companhia, que representa o Governo Militar brasileiro, e o modo

de gerenciar foi se mostrando bem diferente da administração anterior, como percebemos

pelas inúmeras proibições e pelos fiscais nomeados para que elas fossem cumpridas.

As proibições eram, em sua maioria, ridículas; trataremos daquelas que nos pareceram

mais irônicas e satíricas. O narrador diz que a Companhia proibia por diversão, ou seja,

apenas para não perder o hábito, porque o conteúdo da interdição era demasiado ridículo: ―A

Companhia baixou novas proibições, umas inteiramente bobocas, só pelo prazer de proibir

(ninguém podia mais cuspir para cima, nem carregar água em jacá, nem tapar o sol com

peneira, como se todo mundo estivesse abusando dessas esquisitices);‖ (SRB, p. 46)

Nota-se nas proibições impostas pela Companhia um intertexto com a cultura popular,

uma vez que são expressões tomadas por empréstimo dos ditados do povo. Assim, as

proibições tinham que ser entendidas em seu sentido literal, denotativo, e igualmente

cumpridas neste sentido, daí parecerem tão ridículas ao narrador. Mas há embutido nesses

ditados populares outro sentido, o não literal, o conotativo. Visto por este viés, o dito popular

―não tapar o sol com peneira‖, por exemplo, depõe contra a Companhia, porque não tem

sucesso quem tenta encobrir o sol com a peneira, uma vez que esta é cheia de furos, o que

permite a passagem da luz; logo, é um trabalho em vão, uma bobagem, é negar uma

evidência. Se os cidadãos daquela cidade, porém, em sentido conotativo, não tapassem o sol

128

com a peneira, desconfiariam da Companhia e de suas proibições absurdas, e, portanto, não se

submeteriam a tais abusos.

Mais uma proibição cômica da Companhia:

De um dia para outro, sem nenhum aviso, ficou perigoso até perguntar ou informar

as horas a um desconhecido. Muita gente se complicou por se queixar inocentemente

do calor, ou dizer que não estava fazendo tanto calor; por responder a cumprimentos

ou não responder por distração; por se abaixar para apanhar um objeto qualquer na

rua, ou por ver um objeto e não se abaixar para apanhá-lo. (SRB, p. 66)

Como podemos constatar, a Companhia se preocupava com aspectos da vida

corriqueira dos cidadãos, totalmente irrelevantes e ridiculamente desnecessários. Mais uma

vez percebemos o alvo da sátira que é a Companhia e seu risível controle dos habitantes

daquela cidade. Por outro lado, as pessoas de Taitara aceitavam passivamente todas as

proibições por mais estapafúrdias que pudessem parecer, e viviam num clima angustiante,

pareciam presas àquela realidade estranha e, por vezes, irreal, àquela Companhia que

subvertia a ordem natural das coisas, e obrigava aquelas pessoas a viverem naquele mundo

invertido, inacreditável e sob constante tensão.

Nas proibições absurdas e sem sentido da Companhia notamos o elemento fantástico,

aquele que aniquila a lógica da realidade em favor de sua própria lógica absurda e mágica e

por mais incoerentes que fosses as proibições, eram cumpridas pela população sem

questionamentos.

Até mesmo o pai de Lu, que estranhamente se manteve no emprego após a saída de

Baltazar, tornando-se fiscal, ou seja, alegoricamente representando a Polícia de Repressão

brasileira, no final da narrativa abandona a farda, símbolo do poder militar, para tentar uma

vida nova. Entretanto, não consegue abrir seu próprio negócio porque é boicotado pela

Companhia e pela população, que jamais se esqueceu dos dias em que ele exerceu de forma

despótica sua função de fiscal. Horácio acaba sendo preso pela Companhia, da mesma forma

como viu e ajudou a prender muita gente. É uma ironia observável pelo contexto da narrativa

e confirmada pelo discurso da personagem; a esse respeito lemos:

129

Perguntei a meu pai o que era que elas queriam, e por que o tanto choro. Ele deu de

ombros e respondeu:

─ Querem que eu faça o impossível. Por que não conseguiram os maridos a andarem

na linha? Agora agüentem. (SRB, p. 32)

Quando Horácio, agora na condição de pessoa comum, sem a farda nem as regalias do

cargo, foi preso injustamente pela Companhia, seu próprio discurso voltou-se contra ele: ―Eu

fiz o que pude por você e por Lu, mas eles puderam mais.‖ (SRB, p. 107) Naquele mundo às

avessas, o imponderável poderia acontecer a qualquer momento, e aconteceu. Talvez fosse

possível resumir num ditado popular: ―um dia da caça, outro do caçador.‖

3.2 O INTERTEXTO COM OS DITADOS POPULARES

Sentenças latinas, ditos históricos,

versos célebres, brocados jurídicos,

máximas, é de bom aviso trazê-los

contigo para os discursos de

sobremesa, de felicitações ou de

agradecimento.

Machado de Assis, apud Revista

Língua Portuguesa, nº 45, p. 11

No livro há muitas expressões populares, talvez porque seu narrador seja uma criança

que mora numa cidade do interior, embora seja uma característica de J. J. Veiga a linguagem

simples, popular, sem rebuscamentos. Essa intertextualidade com a cultura popular perpassa

toda a narrativa de Sombras de Reis Barbudos, assim, arrolaremos apenas aquelas que

julgamos mais significativas para nosso tema.

Como Horácio tinha acesso à Companhia, Lu ficava sabendo de algumas coisas

antecipadamente, porém eram indícios extremamente vagos, porque não se sabia quais eram

exatamente as atividades da Companhia nem a dos fiscais. Antes da queda de Baltazar,

Horácio deixou escapar um sinal de que algo poderia acontecer com o cunhado, por meio de

um dito popular: ―Mas você não sabe o que eu sei. Estou lá todo dia, vejo e escuto muita

130

coisa. É bom a gente ir pondo as barbas de molho. Lu deve aprender um ofício, ou arranjar

um emprego.‖ (SRB, p. 19).

Na página seguinte, a mãe de Lu, cujo nome não ficamos sabendo porque é nomeada

pela sua função e representa talvez a família brasileira ou a mulher oprimida da época,

preocupa-se com o possível perigo de Baltazar ser traído na Companhia. Numa conversa com

tia Dulce, esposa de Baltazar, esta a tranquiliza utilizando um ditado popular, que acaba por

se revelar também uma ironia ou uma antífrase, como lemos:

O objetivo de mamãe, não era bisbilhotar, mas alertar, e tia Dulce logo a sossegou

dizendo que tio Baltazar estava acostumado a enfrentar intrigas na Companhia, e

nunca ninguém ia apanhá-lo desprevenido; ele sabia de tudo que se passava lá,

enquanto os inimigos estavam coalhando o leite ele já estava comendo o queijo.

(SRB, p. 20)

As previsões da tia Dulce revelaram-se totalmente contraditórias porque pouco tempo

depois os inimigos é que comiam o queijo enquanto Baltazar nem havia chegado a coalhar o

leite.

Já as previsões de Horácio só se confirmavam. Por exemplo, com a saída de Baltazar

houve boatos na cidade de que a Companhia estava por falir, comentário refutado por

Horácio, que disse: ―─ Olhe, Lu: é mais fácil um burro voar do que a Companhia acabar. Pare

de repetir bobagens.‖ (SRB, p. 26) O pai de Lu tinha razão, a Companhia não acabou e, se não

foram os burros que passaram a voar, foram as pessoas daquela cidade, como veremos mais

adiante.

Outro ditado popular que merece nossa atenção refere-se aos urubus que de repente

invadiram a cidade: ―Urubu de vigília, luto na família; urubu no telhado, choro dobrado ─

diziam com a careta correspondente os que se guiavam por ditados.‖ (SRB, p. 36)

Esse dito popular bastante sonoro, porque contém rima, revela em seu conteúdo

semântico a associação que a ave tem com a morte e a destruição. Os urubus estavam por toda

a parte, houve muita especulação a respeito do fenômeno, no início por falta do que fazer e

depois porque a Companhia proibiu, a população passou a adotá-los, tornaram-se bichos

caseiros, vivendo como animais de estimação nas casas.

131

A Companhia não podia deixar de exercer o controle sobre os urubus, então decretou

que quem desejasse permanecer com o bicho em casa, deveria registrá-lo. Os urubus que não

tivessem identificação e estivessem na rua seriam sacrificados e cremados; e mais, os custos

seriam rateados entre os moradores da rua onde o bicho fosse preso. Tais medidas

demonstram o absurdo da situação e a imposição autoritária dessa Companhia, que invadia a

vida das pessoas, determinando até suas afeições.

Poderíamos perguntar o porquê de o autor ter escolhido o urubu para compor sua

narrativa, ave devoradora de entranhas, que se alimenta de corpos em decomposição e de

imundícies, também nada agradável aos olhos ou aos ouvidos, ainda para piorar com fama de

trazer mau agouro, ligada à morte. O próprio texto nos fornece a resposta, a população adotou

os urubus porque ia contra a vontade da Companhia que passou a controlá-los, foi uma forma

de contestação, de afronta e também de resistência àquele órgão que queria pôr limites em

tudo. Domesticando aquelas aves a despeito das proibições da Companhia, a população tinha

a sensação tênue de que podia resistir e de que havia escolha. O texto apresenta a seguinte

reflexão:

No fundo já estávamos mesmo nos cansando deles. Afinal urubu nunca foi animal

doméstico, não canta, é feio, ajunta piolho, fede a carbureto e ainda carrega aquela

sombra agourenta. Nós os adulamos porque a Companhia implicou com eles, só

isso. Quando enjoamos da brincadeira, nós os empurramos porta afora. (SRB, p.

49)

Outra explicação possível para a escolha do urubu viria do estranhamento de tal ave

tornar-se de estimação, o fato de domesticar urubu é insólito o suficiente para afrontar a

lógica da realidade; portanto, a escolha do urubu reafirma a linha do fantástico presente em J.

J. Veiga. A escolha do urubu reafirma ainda a questão do isolamento vivido pelos habitantes

de Taitara, uma vez que, no simbolismo cristão, a ave é alegoria da solidão.11

Nenhum urubu sem identificação poderia andar nos espaços públicos, o animal que

fosse pego nesse delito era preso pelos fiscais. Os fiscais, por sua vez, viram-se muitas vezes

correndo atrás das aves e passando por situações ridículas que causavam o riso. O problema

maior, porém, foi justamente a proibição de não rir em público que acabava sendo

11

Dicionário de Símbolos de Juan-Eduardo Cirlot. Editora Moraes, 1984.

132

descumprida frequentemente em virtude da comicidade de se ver um fiscal tentando pegar um

urubu em fuga. Para não transgredir a lei nem sofrer as punições, a população arrumou um

mecanismo de estancar o riso, colocavam uma bola ou rolha na boca para evitar que a

gargalhada saísse:

Mas um fiscal, homem ligado à Companhia e representante dela cá fora, não podia

ser motivo de risadas na rua, e a proibição não demorou. Agora quem visse um fiscal

esparramado no chão e um urubu ao lado esperando o fiscal se levantar para

continuarem a brincadeira, se não tivesse muito cuidado podia perder para sempre a

vontade de rir. (SRB, p. 47)

O comentário do narrador é irônico porque desmoraliza tanto a figura do fiscal quanto

a da Companhia, ao falar sobre a importância do fiscal como representante externo daquela

empresa. Assim, um homem que ocupava um cargo tão importante para um órgão igualmente

importante, não poderia ser motivo de chacota da população. Ao falar que as pessoas estavam

proibidas de rir quando vissem ―... um fiscal esparramado no chão e um urubu ao lado

esperando o fiscal se levantar para continuarem a brincadeira...‖ o narrador está sendo irônico

porque para o fiscal aquela situação era muito séria, ele estava cumprindo sua função, seu

dever, porém, ao dizer que o urubu esperava para que eles continuassem a brincadeira,

demonstra que para a ave e para a população aquele procedimento não passava de uma

ridícula brincadeira infantil. O que se observava na cena era a figura patética de alguém

perseguindo uma ave que se esquivava, portanto, um passatempo para a ave, um espetáculo

cômico para a população, mas uma humilhação para os ficais e a Companhia.

―Cavalos na chuva” é o nome do capítulo em que Lu permite que dois cavalos sejam

recolhidos ao armazém do pai por ocasião de uma forte chuva que caia sobre a cidade. A

situação é muito estranha porque normalmente os cavalos ou são abrigados em lugares

próprios para eles ou deixados para fora dos estabelecimentos. Esses cavalos, porém,

contrariando a normalidade, entram no armazém e acabam por urinar e defecar no

estabelecimento, deixando Lu e depois seu pai muito irritados. Percebemos uma inversão de

valores, um mundo às avessas, próprio da literatura fantástica, no qual todos os disparates são

possíveis, até mesmo cavalos ocuparem os espaços dos seres humanos. A sensação que se tem

com a leitura do capítulo é a de que algo não está no seu devido lugar, não sabemos bem

133

porque aqueles cavalos são colocados para dentro do armazém, não faz sentido, não no

mundo como o conhecemos.

Observando os cavalos parados dentro do armazém, o narrador faz uma comparação

entre a tristeza dos cavalos e a das pessoas:

Na loja os cavalos cochilavam com o corpo fumegando, indiferentes à chuva e à

nossa tristeza porque já deviam ter a deles, cavalo arreado esperando o dono é bicho

triste, não tem vontade própria, só pode ir para onde é levado ─ exatamente como

nós em nossos caminhos entre muros. (SRB, p. 100)

Nesta comparação explícita entre cavalos e seres humanos, cada qual em sua

respectiva prisão, percebemos o quanto os habitantes daquela cidade sentiam-se tolhidos em

sua vontade e o quanto as proibições da Companhia afetavam os ânimos daquela população

que se sentia prisioneira em meio aos muros, verdadeiras muralhas intransponíveis. Para

ilustrar o caráter indestrutível dessas construções de concreto, o narrador utiliza um ditado

popular:

[...] se ao menos ela derrubasse ou derretesse os muros que nos cercavam, mas na

construção tinha entrado uma pasta inventada pelos técnicos da Companhia, aquilo

quando secava era mais duro do que cimento, do que pedra, os muros iam durar para

sempre, quem estivesse pensando em derrubá-lo podia tirar o cavalinho da chuva ─

pelos menos era o que diziam os fiscais quando viam alguém experimentando a

resistência deles com os nós dos dedos. (SRB, pp. 99 – 100)

O ditado serve como argumento poderoso para fazer com que as pessoas desistam de

derrubar os muros, numa tentativa de convencer a população da inutilidade de se tentar

destruir aqueles paredões de concreto resistente. Não se trata, porém, somente da destruição

dos muros no espaço físico, é também uma destruição psicológica dos muros mentais, muros

tomados como barreiras, imposições e proibições impostas pela Companhia.

134

3.3 DIMINUTIVOS IRÔNICOS

A simplicidade resulta sempre de

um violento esforço. Não se atinge

uma expressão fácil, concisa e

harmoniosa, sem longas e

tumultuárias lutas em que

arquejam juntos espírito e vontade.

Eça de Queiroz, apud Revista

Língua Portuguesa, nº 2, p. 7

Há uma ocorrência significativa de diminutivos em Sombras de Reis Barbudos,

muitas vezes indícios de ironia. Fizemos um levantamento de todas elas no livro e

constatamos que são usadas tanto pela classe oprimida quanto pela classe opressora, ou seja,

tanto a população quanto a Companhia e seus representantes as utilizam.

Um pouco antes do golpe que iria mudar os rumos da cidade, o narrador comenta o

relacionamento sempre difícil entre Horácio e Baltazar; neste comentário usa um diminutivo

para desqualificar as ações de Horácio, como evidencia a passagem do texto que ilustra esse

momento:

A trégua entre meu pai e tio Baltazar nunca chegou a ser completa. (...) Da parte do

tio Baltazar isso não era muito notado porque sendo ele um homem rico podia passar

por cima de muitas coisas e fingir que não percebia outras. Já meu pai, sempre às

voltas com probleminhas miúdos, era mais desconfiado, mais pronto a tomar o pião

na unha. (SRB, p. 17)

O diminutivo ‗probleminhas‘, seguido do adjetivo ‗miúdos‘, reforça a pequenez dos

problemas paternos na avaliação de Lu, em relação à altivez do tio Baltazar que, para manter

uma convivência amigável, é capaz de passar por cima de desafetos pessoais. Ao menosprezar

e diminuir a importância dos conflitos vividos pelo pai usando um diminutivo, Lu acaba

sendo irônico e avaliando negativamente Horácio; em contrapartida supervaloriza tio

Baltazar, atribuindo-lhe qualidades nobres.

135

Dois diminutivos também merecem nossa atenção, são eles: ‗lunetinha‘ e

‗binoculinho‘, usados por Horácio de forma irônica numa referência ao povo que estava

utilizando esses objetos para observar os urubus que sobrevoavam a cidade. Lu pediu ao pai

uma luneta para também espreitar as aves, a resposta de Horácio foi negativa e a justificativa

para a recusa não foi falta de dinheiro ou por ser a luneta ou o binóculo objetos frágeis que se

quebram facilmente, como Lu pensava. A justificativa apontou para o controle excessivo da

Companhia: ―─ Não é por isso. É que dentro de alguns dias não vai ter ninguém andando por

aí de lunetinha e binoculinho na mão. Já estamos de olho neles.‖ (SRB, p. 37)

Ao usar o diminutivo para se referir à luneta e ao binóculo, Horácio usa do cinismo e

abusa do poder que seu posto lhe confere, a mensagem implícita em sua fala nos leva a

entender a inutilidade de se ter um desses objetos num futuro muito próximo, bem como a

efemeridade da alegria das pessoas que estava prestes a acabar, pois a Companhia iria

confiscar os objetos e proibir seu uso. A intransigência fica bastante evidente na fala: ―Já

estamos de olho neles.” Esse ‗neles‘ tanto pode se referir à luneta e ao binóculo quanto às

pessoas que deles faziam uso. O trecho revela também a fiscalização excessiva da Companhia

e o impedimento de toda e qualquer forma de distração ou divertimento da população.

No inusitado episódio da conferência das plantas do quintal da casa de Lu, os fiscais se

deparam com uma situação inesperada: registrar ou não a presença de uns pés de fumo que

nasceram involuntariamente no quintal, uma vez que não constavam do formulário declarado

pelo proprietário da plantação. O fumo era considerado por Lu e sua mãe como uma praga,

um mato e que, portanto, poderia ser arrancado, dada a sua inutilidade; entretanto, os fiscais,

não podendo desvencilhar-se da burocracia do preenchimento do documento, divergiam se

aquele fato era ou não uma transgressão às leis da Companhia, segundo lemos:

O do papel me olhou feio e disse que arrancar não era com eles. A Companhia tinha

uma brigada especial para esse serviço, mas só depois de feita a parte e aberto o

processo é que ela agia. E perguntou ao companheiro:

─ Como é que fazemos? Arrolamos ou não?

─ Sempre aparece uma besteirinha pra atrapalhar ─ disse o outro coçando a cabeça. (SRB, p. 127)

O diminutivo ‗besteirinha‘ utilizado pelos fiscais revela a inutilidade da sua função por

meio da ironia, segundo o fiscal, sempre havia uma ‗insignificância‘ para atrapalhar o

136

andamento do trabalho. Pelo diálogo que se estabelece entre os fiscais e Lu, percebemos a

ironia observável na ridicularização das figuras do fiscal e da Companhia que contabilizam

até o mato que cresce nos quintais das pessoas, fiscalização ridícula que se torna mais risível

por conta da hesitação dos fiscais em arrolar ou não as plantas não arroladas. Lu argumenta

com os fiscais dizendo que se eles contabilizarem o fumo, teriam que fazer o mesmo com

todas as outras plantas da mesma categoria. A ignorância dos fiscais por acharem que todo

aquele mato havia sido plantado e não crescera involuntariamente, encerra a ironia observável

da cena.

3.4 O MÁGICO UZK

O mundo exterior existe como um

ator num palco: está lá, mas é outra

coisa.

Fernando Pessoa, apud Revista

Língua Portuguesa, nº 18, p. 7

O mágico Uzk serve aos interesses da Companhia pois promove distração para o povo,

tornando sua vida mais suportável e desviando sua atenção dos problemas e incômodos

causados pela empresa: ―Pois esse homem que nos distraiu tanto, a ponto de desviar

inteiramente a nossa atenção das dificuldades com a Companhia, está ameaçado de nunca ter

vindo aqui.‖ (SRB, p. 64)

Entretanto, o mágico exerce uma dupla função no texto, pois seu espetáculo favorece a

reflexão e leva os habitantes de Taitara a perceberem que existem outras possibilidades e

formas diferentes de viver, em liberdade, por exemplo.

Havia uma grande expectativa por parte da população com o anúncio da chegada do

mágico, pois todos queriam assistir ao espetáculo do grande artista. Como o mágico demora

demais para chegar à cidade, há especulações de que a Companhia tenha vetado sua presença.

A frustração da população volta-se contra a Companhia, alguns muros são pichados com

frases de protesto. O próprio Lu participou de um desses atos. E quando em casa questiona o

137

pai se foi realmente a Companhia que não permitiu a vinda do mágico, obtém a seguinte

resposta: ―Não me consta que tenha proibido. Se ele não vem é porque não quer. A

Companhia não se envolve com assuntos miúdos. E onde foi que o senhor ouviu isso?‖ (SRB,

p. 53)

Percebemos o menosprezo da parte de Horácio pelo artista; enquanto todos na cidade

desejavam ver o espetáculo, o pai de Lu parecia totalmente indiferente, respondendo com

ironia que a Companhia tinha assuntos mais sérios para se preocupar do que a simples vinda

de um mágico de segunda categoria. E quando finalmente surgiram novos cartazes

anunciando o espetáculo, Horácio aproveita para reafirmar que a Companhia jamais fora

contra sua vinda à cidade. Lu, porém, tem outras fontes de informações e elas dizem

exatamente o contrário: ―Mas pessoas que sabiam do que acontecia atrás dos panos

explicavam que para poder vir o mágico tinha se comprometido a só fazer as mágicas que a

Companhia aprovasse.‖ (SRB, p. 55)

Por meio da ironia observável ficamos sabendo que o pai de Lu, apesar de ser o

representante da Companhia, não dispunha de todas as informações ou não as queria

compartilhar; também que havia pessoas conscientes do que se passava nos bastidores da

Companhia, conscientes inclusive do domínio e da opressão exercidos por ela.

Enfim, o grande Uzk realmente cumpriu o papel de distrair o povo, mas certamente

não cumpriu o que prometeu à Companhia porque as mágicas que realizou incentivaram os

moradores daquela cidade a pensar no mundo de outra forma. Na verdade, foram elas,

verdadeiras metáforas da situação vivenciada pela população daquela cidade:

Naquela noite, e nas outras, o Grande UZK fez o que quis, virou o mundo pelo

avesso na nossa frente, desmanchou-o de novo de maneira diferente, nós vendo tudo

e não acreditando, ainda hoje não acredito. Ele voou como borboleta por cima da

platéia, pousando aqui e ali, subindo e baixando. Endureceu chamas de vela em

forma de cabacinhas avermelhadas e distribuiu as cabacinhas às senhoras. Mudou

uma bola de bilhar em cubo do mesmo peso, verificado em balança, e mostrou o

cubo, a quem quisesse ver e pegar. Transformou areia em água, muita gente lavou a

mão nessa água e precisou enxugá-la. Jogou uma bandeja de sapos para cima,

pareceu que eles iam cair como sapos mesmo, no meio da queda viraram beija-flores

e saíram voando com aquele vôozinho ora arisco ora parado dos beija-flores, alguns

encontraram a saída e se perderam na noite lá fora. Atravessou uma parede de tijolos

construída no palco na vista do público por dois pedreiros e depois examinada por

uma comissão escolhida a esmo na platéia, tudo gente daqui, conhecida e respeitada,

atravessou para um lado, para o outro, quantas vezes quis, o público pedindo bis, ele

passando para lá e para cá como se não existisse obstáculo. (SRB, pp. 59-60)

138

São muitas as metáforas utilizadas nas mágicas de Uzk que podemos atribuir à vida

daquelas pessoas. Em primeiro lugar, a própria essência da mágica que é fazer o impossível

acontecer na frente de nossos olhos. Talvez seja este o maior legado deixado por Uzk, mostrar

que é possível transformar a realidade, inverter a ordem das coisas por mais inacreditável e

insólito que esse ato possa parecer. De acordo com o narrador, Uzk virou o mundo pelo

avesso, ou seja, desconstruiu-o para então montá-lo de forma diferente; já estava, portanto,

ensinando o caminho àquele povo, a possibilidade de se edificar uma realidade totalmente

diferenciada da então vivida.

O voar como borboleta já é também uma alusão ao que acontece no final do livro,

quando as pessoas adquirem essa habilidade de voar para escapar daquela situação opressiva.

Assim como a mágica de atravessar uma parede é uma metáfora de que as pessoas também

poderiam atravessar aqueles muros que as cercavam, uma demonstração de que qualquer

obstáculo poderia ser transposto.

A função do mágico era provocar a discussão, abrir os horizontes tão limitados

daquele povo carente de liberdade, por isso, traz como essência de sua magia o

questionamento sobre a realidade aparente, mostra que essa realidade pode ser transformada

em nova realidade, por absurda que pareça, questionando assim o conceito de absurdo e

apresentando um mundo com possibilidades jamais pensadas por aquela gente. Esse

questionamento a respeito da realidade e do absurdo das coisas tem que ser apresentado em

linguagem cifrada e metafórica para não despertar a suspeita da Companhia. É um mecanismo

de resistência àquela situação de opressão que tem de ser manipulado de forma a que a

Companhia não perceba sua verdadeira função. Vemos aqui mais uma mobilização da

imagem do duplo: a mensagem do espetáculo é uma linguagem cifrada dentro de uma

narrativa que lança mão deste mesmo recurso.

O espetáculo de Uzk deixou toda a população desconcertada porque suscitou muitas

perguntas que ficaram sem respostas: era preciso dar coerência, tentar explicar o que não tinha

explicação, mas todos tinham visto acontecer diante dos olhos, e as mágicas-metáforas de Uzk

surtiram o efeito desejado porque, segundo o narrador, houve um movimento de reflexão de

todos acerca da metafísica desse mundo, como lemos no texto:

Saímos do teatro maravilhados e assustados, procurando explicações e não

encontrando. No meu caso quanto mais eu pensava menos entendia, e mais

139

assustado ficava. Não seria perigoso mexer com aquelas coisas, mostrar que o

mundo que conhecemos desde pequenos não passa de ilusão, ou não é o único?

Sendo assim, qual é o mundo real? Será um mundo em que pedras e sapos voam,

areia molha, fogo pode ser cortado e guardado no bolso? E será que para um mundo

assim este nosso é que é absurdo? Então o que não é absurdo? (SRB, p. 60)

A própria figura do mágico sofre uma transformação quando sobe ao palco. Nos

cartazes espalhados pela cidade o mágico parecia espetacular, os olhos eram penetrantes,

supunha-se que fosse alto e tivesse uma bela voz muito imponente. Sua fama o precedia,

vinha de muito longe, do Oriente e não fazia mágicas e sim verdadeiros milagres. Tanto a

propaganda boca a boca quando os cartazes espalhados pela cidade sinalizavam para um

artista ímpar, jamais visto na cidade.

Esta fama causa em Lu a maior decepção ao ver o mágico antes do espetáculo porque

todo aquele estereótipo do grande mágico dos cartazes e do falatório do povo não

correspondia à figura a sua frente. Na ironia observável vemos o grande Uzk como o oposto

de grandeza: era um homem pequeno cuja voz fina assemelhava-se a de um palhaço e não de

um mágico de sua estirpe. Assim diz a passagem do texto:

A voz também não correspondia à de um homem que olha o mundo com olhos de

brasa e faz as coisas obedecerem a sua vontade. Como poderia aquela vozinha fina e

tremida, mais própria de palhaço, mandar sapo virar borboleta, água virar areia,

esterco virar ouro, e ser obedecida? Era como a gente preparar os olhos para ver um

dinossauro e ver uma lagartixa. (SRB, p. 56)

Lu não podia acreditar que o grande Uzk estivesse a sua frente, a realidade não

correspondia à ideia que tinha formado em sua mente a respeito do mágico, a realidade

naquele momento parecia absurda. Não somente a figura do mágico não correspondia à

função como também suas ações, como aquela pessoa comum, com aquela ‗vozinha‘;

salientamos aqui o uso do diminutivo em sentido pejorativo: como poderia ordenar que fatos

maravilhosos e inusitados acontecessem somente por meio do comando daquela voz?

O comentário final do narrador é bastante interessante e irônico porque encerra uma

antífrase e uma ironia observável ao comparar a sensação de decepção que ele tivera ao

conhecer o mágico, diz que era como se preparar para ver um dinossauro e ver uma lagartixa.

140

O choque foi grande porque o grau de expectativa era alto e se esperava muito, Lu teve que

focar novamente sua visão para conseguir ver a insignificante e pequena lagartixa que era Uzk

fora do palco.

O que podemos inferir com esse episódio é que Uzk era uma pessoa comum, como

qualquer habitante da cidade, e, se ele podia transformar a realidade, fazer maravilhas, outras

pessoas comuns iguais a ele também podiam. Uzk também tinha um defeito físico como tio

Baltazar, era uma mancha avermelhada de um lado do rosto e diz o texto que ele a enxugava

constantemente. Mais um sinal de humanidade do mágico.

Mas, ao subir ao palco o mágico se transforma no grande Uzk dos cartazes, talvez pela

magia que envolve o espetáculo. A esse respeito lemos:

―É difícil explicar, mas no momento que a cortina se abriu eu senti qualquer coisa

diferente no ar, assim um arrepio vindo não sei se de dentro ou de fora de mim, uma

mudança na qualidade dos sons, como se meus ouvidos tivessem acabado de passar

por uma limpeza sensacional, e sei que todo mundo sentiu a mesma coisa. O homem

que estava no palco de braços abertos para a platéia ─ o mesmo que eu tinha visto

dias antes na sala de espera ─ era novamente o Grande UZK dos cartazes. (SRB, p.

59)

Portanto, a transformação do pequeno homem no grande mágico Uzk ocorre no

momento em que se abrem as cortinas e começa o espetáculo. Desse modo, sob outro aspecto,

Uzk representa o duplo, apontando para outros ‗eus‘ dentro de uma mesma pessoa, uma vez

que se apresenta em imagem duplicada: o grande mágico dos cartazes e dos palcos, cujos

olhos de brasas hipnotizam as pessoas, carrega o toque da magia, daquele que não faz parte

deste mundo e por isso mesmo está acima dele; já o Uzk longe dos holofotes e do marketing é

uma pessoa comum, desprovida de glamour e de qualquer atributo especial.

A questão do duplo na literatura fantástica corrobora para o estranhamento, porque há

uma identificação do sujeito com outra pessoa, postura que coloca em xeque a verdadeira

identidade do ‗eu‘; outras vezes, o ‗eu‘ é substituído por um estranho, ocasionando a divisão

do ser ou a duplicidade. Essa sensação de réplica do ser causa uma atmosfera de ambiguidade

que propicia o fantástico, pois contribui para a falta de coerência da narrativa.

O duplo pode ser criado por um princípio psíquico, ou seja, por uma projeção de um

desejo íntimo, pelo desejo de mudar uma realidade insuportável; fato é que o duplo é sempre

141

inquietante porque, ao mesmo tempo em que é idêntico ao original, é também diferente.

Assim argumenta Rodrigues:

No famoso trabalho sobre o estranho, Unheimlich (1919), Freud nos faz ver que a

idéia do duplo tem a ver com um retorno a determinadas fases na evolução do

sentimento de autoconsideração (sic), em que o ego não se distingue do externo e de

outras pessoas. [...]

O duplo, portanto, pertence a essa fase de indiscriminação entre o eu e o outro, o eu

e o mundo. A mesma indiscriminação retorna em certas patologias mentais, além de

ser explorada no domínio da ficção e da arte em geral, por ser rica em sugestões e

crítica do que somos, do que poderíamos ser, das fantasias de poder ser outro etc. (RODRIGUES, 1988, p.47)

Muitas narrativas usam o recurso dos espelhos para instaurar a duplicidade porque é

por meio deles que somos duplicados. Assim, em Sombras de Reis Barbudos, os cartazes do

mágico fazem às vezes de espelhos que refletem, ou deveriam refletir, o eu. No entanto, os

cartazes duplicam de forma ambígua a figura do mágico, lançando dúvida a respeito de sua

verdadeira identidade.

Qual seria então a função da duplicidade do mágico Uzk na narrativa? Seria talvez a

de fazer saber a todos que é possível mudar, que a realidade pode ser alterada e que a

aparência depende do contexto, ou seja, um homem comum, até com um defeito físico (uma

mancha no rosto) poderia se transformar no famoso mágico Uzk dos cartazes e realizar o

impossível (mágica).

O narrador depois de dedicar um capítulo ao mágico Uzk e a seus grandes feitos na

cidade, depois de descrever toda a polêmica em torno de sua figura, questiona-se sobre se

tudo não passou de um sonho:

Pois esse homem que nos distraiu tanto, a ponto de desviar inteiramente a nossa

atenção das dificuldades com a Companhia, está ameaçado de nunca ter vindo aqui.

Parece até que a lembrança dele, e de suas mágicas incríveis, se queimou no

incêndio do teatro. Ou o esquecimento é outra mágica que ele nos deixou? Mas se é

assim, como explicar que nem todo mundo esqueceu? Alguma manobra do mágico

para gerar discussão e aumentar a confusão?

Eu mesmo já não sei quanto tempo o Grande Uzk esteve aqui. (SRB, pp. 64-65)

142

A passagem do mágico pela cidade deixou muitas questões em aberto. Admitir a vinda

do mágico e relembrar sua magia significava repensar posturas e tomar atitudes para mudar a

vida e a realidade em que se vivia. Esquecer o mágico era fugir do problema e continuar

naquela vida, significava não tomar nenhuma atitude, portanto, também não sofrer com elas.

Daí tamanha imprecisão a respeito de sua estada ou não na cidade.

O mágico Uzk é também a presença do maravilhoso no texto devido as suas mágicas,

pois num comandar de sua voz coisas impossíveis de acontecer no mundo real aconteciam.

Era o mundo da fantasia tomando conta do mundo real, daí o nome do capítulo ―Pausa para

um Mágico”, ou seja, como um descanso daquele mundo que também não tinha muita lógica,

para viver um conto de fadas, no qual os maiores disparates seriam possíveis.

3.5 OS FISCAIS E A REPRESSÃO / MUROS

O que me preocupa não é o grito

dos maus. É o silêncio dos bons.

Martin Luther King, apud Revista

Língua Portuguesa, nº 9, p. 7

Com a nova administração da Companhia instaurou-se na cidade um clima de

desconfiança em que todo cidadão teria o que esconder e, portanto, todos são vigiados

permanentemente. Para controlar melhor a população, a Companhia corta os canais de

comunicação da população, primeiro por meio dos muros que impedem a interação e a

convivência, depois, por meio das sucessivas proibições que impedem ao indivíduo o

exercício da liberdade. A vigilância constante leva as pessoas a desconfiarem também umas

das outras e, consequentemente, ao afastamento, ao isolamento pessoal.

A impossibilidade de comunicação e de locomoção, além da vigilância permanente da

Companhia, causam uma espécie de amnésia coletiva na população, uma vez que a memória é

prejudicada devido à massificação produzida pelo sistema repressor. Daí o clima angustiante

da narrativa e de seus personagens que vivem naquele espaço sem perspectivas de mudança,

143

com a paralisação do tempo e a repetição constante das mesmas ações sem finalidade, que

acabam por aprisionar ainda mais as pessoas naquele círculo opressor. Lemos:

[...] a vida era uma estrada comprida sem margens nem marcos, estar aqui era o

mesmo que estar ali, o hoje se confundia com o ontem e o amanhã não existia nem

em sonho; nós esperávamos qualquer coisa mas já nem sabíamos se era para adiante

ou para trás. (SRB, pp. 51- 52)

O primeiro indício de que as coisas haviam mudado na cidade foi a censura artística: a

peça que Lu e seus colegas ensaiavam na escola foi impedida de ser apresentada,

repentinamente, sem nenhuma explicação. Portanto, a primeira medida da Companhia foi

reprimir o movimento artístico e cultural de Taitara. Depois foram os muros que apareceram

cercando as casas de um dia para o outro sem que ninguém testemunhasse sua construção:

De repente os muros, esses muros. Da noite para o dia eles brotaram assim retos,

curvos, quebrados, descendo, subindo, dividindo as ruas ao meio conforme o

traçado, separando amigos, tapando vistas, escurecendo, abafando. Até hoje não

sabemos se eles foram construídos aí mesmo nos lugares ou trazidos de longe já

prontos e fincados aí. (SRB, p. 27)

Os muros representam separação, pois dividem as casas, as ruas, os bairros, isolando

as pessoas em suas casas, uma vez que era muito difícil se locomover por entre eles, porque

formavam verdadeiros labirintos, nos quais as pessoas se perdiam. Isso sem contar o tempo

que levavam para percorrer distâncias que, sem a presença dos muros, seriam percorridas

rapidamente. O fato é que os muros taparam a visão das pessoas com a projeção de suas

sombras, tornando o ambiente abafado. Os muros limitaram os espaços físicos e psicológicos

de Taitara, indicando a restrição da geografia da cidade e por extensão também do mundo

social, cultural e psicológico das pessoas, que preferiam ficar em suas casas porque as ruas

tornaram-se perigosas, lugares hostis pela presença dos fiscais. De acordo com o texto:

144

Com tanto muro por toda parte cansando e desanimando, era difícil saber o que

acontecia na cidade, o que o povo estava pensando e dizendo. Antigamente eu

chegava da escola cheio de novidades para mamãe, agora ia e vinha a bem dizer no

escuro, as poucas pessoas que encontrava também não sabiam de nada, nem tinham

disposição para falar. Em qualquer lugar só se via muro, a menos que se olhasse para

cima; mas o que era que a gente podia ver no céu a não ser nuvens e urubus? (SRB,

pp. 32-33)

Na realidade, dependendo do viés em que são considerados, muros podem ser

benéficos ou maléficos, pois se de um lado são barreiras erguidas com a função de impedir a

livre locomoção das pessoas, por outro, ajudam a defender a sua privacidade e segurança.

Lemos no Dicionário de Símbolos as acepções ligadas à imagem ―muro‖ que refletem sua

duplicidade de sentido:

Como parede, que fecha o espaço, é o ―muro das lamentações‖, símbolo do

sentimento ―de caverna‖ do mundo, do imanentismo, da impossibilidade de transir

ao exterior (da metafísica). Expressa a idéia de impotência, detenção, resistência,

situação, limite. Pois bem, o muro em forma de cerca e considerado a partir de

dentro tem um caráter associado, que se pode tomar como principal ─ depende da

função e do sentimento ─ de proteção. (CIRLOT, 1984, p. 396)

De qualquer modo, no caso da narrativa analisada, os muros cercearam os espaços

físicos e psicológicos, restringindo o horizonte das pessoas e revelando a carga negativa da

imagem: impotência, detenção.

Os fiscais eram representantes diretos da Companhia de Melhoramentos de Taitara,

eram eles que promoviam a ordem e faziam cumprir todas as determinações da Companhia.

Exerciam suas funções de forma arbitrária e despótica refletindo a filosofia de governar

autoritária e repressora da Companhia; faziam com que as leis fossem cumpridas por mais

absurdas que pudessem parecer, e também aplicavam as punições cabíveis em caso de

descumprimento das normas. Fiscalizavam e investigavam a vida das pessoas chegando a

provocar o desespero da população, e, é claro, muitas desavenças e antipatias.

O controle da população estabelecido pela Companhia e executado pelos fiscais,

privando as pessoas de sua liberdade num ato de violência sem precedentes, torna inevitável

sua comparação com o momento histórico vivido pelo Brasil por ocasião do golpe militar de

1964, porque além da data da publicação do romance, 1972, coincidir com o período da

145

ditadura, há outras semelhanças que nos permitem tal comparação, tais como a perda da

liberdade de expressão, seguida pela violência contra o indivíduo que não cumprisse as regras

estabelecidas por um governo autoritário. Como observamos no texto: ―Eu não sabia o que

poderia acontecer a meu pai se a Companhia descobrisse quem tinha dado o aviso, eles agora

estavam com a mania de fazer inquérito para tudo, mais cedo ou mais tarde descobriam.‖

(SRB, p. 40)

Mesmo com tamanha falta de liberdade e inúmeras regras a seguir, os habitantes de

Taitara pareciam presos de forma definitiva àquela realidade e conformados, não acreditavam

na possibilidade de fazer alguma coisa para mudar aquela situação, viviam numa espécie de

letargia. Somente Lu em alguns momentos da narrativa e alguns de seus colegas projetam-se

como a voz da resistência, por meio das pichações de protesto, segundo lemos: ―No caminho

vi os avisos nos muros e fiquei orgulhoso, como se eu mesmo os tivesse escrito. Por uma

decisão minha ninguém ia perder sua luneta, a menos que fosse muito descrente.‖ (SRB, p.

43) Foi a primeira vez que Lu se posicionou contra a Companhia e consequentemente contra

Horácio que a representava, para defender os colegas que iriam perder as lunetas e os

binóculos que serviam para observar os urubus, já que a Cia iria confiscá-los.

Em outro episódio, Lu participa efetivamente da ação revolucionária, revoltado com a

Companhia por achar que ela proibira a vinda do mágico Uzk à cidade:

E a nossa frustração se voltava contra a Companhia. Uma noite eu e alguns colegas

saímos com umas bagas de tucum no bolso desabafando a nossa raiva nos muros,

enquanto dois vigiavam as pontas da rua outros escreviam ABAIXO A CIA

raspando o tucum no muro. (SRB, p. 53)

Percebemos claramente os mecanismos de repressão exercidos pela Companhia e

também a fraca resistência nas figuras de Lu e de seus colegas, que, por analogia, são os

estudantes, intelectuais e artistas da época da ditadura militar no Brasil, aqueles que não se

conformavam com a situação vigente.

As proibições impostas pela Companhia são absurdas e insólitas e acabam por

ridicularizar a empresa. O absurdo e o grotesco das regras estabelecidas pela Cia não deixam

dúvida de que ela é o alvo da sátira do narrador porque, além de ser a causadora de todos os

146

problemas da cidade, é também motivo de escárnio e comicidade. De um lado encontra-se a

população oprimida e de outro, a Companhia opressora.

A Companhia se preocupa com absolutamente tudo que o povo faz ou deixa de fazer,

o controle é total e por vezes impossível de ser estabelecido. Nesta situação tensa de domínio

absoluto, gerou-se um clima de desconfiança não somente entre população e fiscais, mas entre

as próprias pessoas da cidade, uma vez que havia muitos informantes. Se a Companhia apenas

desconfiasse que alguém havia burlado uma lei ou era subversivo, não havia maneira de o

cidadão provar sua inocência.

Portanto, as pessoas viviam um paradoxo sem precedentes, com o abuso de poder

estampado na falta de critério da Companhia para julgar quem era inocente e quem era

culpado. Na verdade a população andava às escuras porque qualquer ação sua poderia ser mal

interpretada e o que hoje parecia correto no minuto seguinte poderia não o ser.

Além das proibições já tratadas em itens anteriores, como a de observar os urubus, por

exemplo, há outras também inacreditáveis, como a de não se permitir o riso em público, nem

pular muro para cortar os longos caminhos desenhados pelos muros. A desobediência era

punida com rigor e então percebemos, além dos mecanismos de repressão, também os de

punição e de tortura física. Exatamente como acontecia no Brasil após 64, quem fosse contra

o regime militar ou era preso ou exilado, na pior das hipóteses era também torturado e morto.

O próprio Veiga, ao falar deste seu romance, relaciona-o com a situação política

brasileira:

[...] tive de fazer o meu terceiro livro, que foi Sombra de reis barbudos, em que

aquele clima [de sufoco] é levado ao auge, porque na vida, cá fora, a opressão estava

no auge. Assim, a minha literatura, (...) sempre esteve presa à atmosfera política do

país. (...) Então eu não tinha outro jeito senão continuar fazendo os livros que a

situação política, o clima político-social não só permitiam, mas acho que talvez

pediam que eu fizesse. (PRADO, 1989, pp. 27-28)

Mário da Silva Brito, na contra capa de Sombras de Reis Barbudos, faz suas

observações a respeito de Veiga e de sua obra, esclarecendo:

147

Apólogo, fábula, parábola, não importam as classificações, Sombras de reis

barbudos é uma opressiva história de terror e tensão logo fecundada por mais

amplos e profundos objetivos. O que nela há de delirante, de pesadelo angustioso,

em última análise não nasceu da imaginação do escritor. Promana do mundo em que

o homem vive sufocado, com seus passos seguidos e perseguidos por estranhas e

invisíveis forças. É o retrato de um tempo histórico universal. (BRITO, contra

capa SRB, 1983)

Portanto, segundo ele, apesar de Sombras de Reis Barbudos revelar uma situação

opressiva específica que foi a ditadura militar brasileira, sua leitura se faz atual porque

transcende este momento específico e atualiza-se como denúncia das muitas formas de

opressão sofridas pelos seres humanos.

Ainda refletindo o clima da época ditatorial, percebemos o caráter punitivo da

Companhia pelas descrições de tortura realizadas por ela, punições absurdas infligidas aos

habitantes de Taitara que ousassem desobedecer às ordens:

A Companhia devia saber o que estava fazendo porque apesar de todos os perigos

algumas pessoas tentaram pular muro e foram agarradas antes mesmo de porem os

pés do outro lado. Um menino gaguinho que sentava perto de mim na escola teve os

dedos da mão direita costurados um no outro no hospital da Companhia e passava o

tempo olhando para a mão como abobalhado. (Quem pensar que isso não incomoda

experimente agüentar meia hora que seja com os dedos colados ou amarrados.)

Outros voltaram do hospital com um aparelho de ferro atarrachado nas pernas para

impedi-las de se dobrarem, outros voltaram com a mão metida numa espécie de

sacola de couro presa no punho com um peso de muitos quilos dentro. Ainda bem

que eu acreditei na proibição. (SRB, pp. 46- 47)

É num tom inocente que Lu narra todas essas atrocidades cometidas pela Companhia,

são torturas e punições físicas impostas ao cidadão e mostradas sem pudor para servir de

exemplo aos outros habitantes caso pensassem em desobedecer às ordens. Agindo desta

maneira a Companhia queria desencorajar atos de rebeldia.

Mais uma alusão aos atos punitivos da época é feita quando numa conversa em que Lu

pergunta a Horácio sobre uns prédios construídos pela Companhia, afirmando que a

população dizia que seriam usados para laboratórios; a resposta de Horácio é dada de forma

irônica:

148

─ Laboratório. Vocês cá fora não sabem de nada mesmo, hein? ─ Sorriu, sacudindo

a cabeça para a nossa ignorância.

─ É o que estão dizendo ─ resmunguei desapontado.

─ Até que não ficava muito esquisito chamar cadeia de laboratório.

─ Cadeia? Pra que agora?

─ Pra que é que serve cadeia rapaz? Ficou bobo?

─ Eles vão prender mais gente? (SRB, p. 69)

Percebemos a ironia do pai de Lu ao avaliar de forma negativa a população tão mal

informada sobre as ações da Cia. e também ao julgar seu próprio filho que por meio de uma

pergunta retórica ―─ Cadeia? Pra que agora?” intencionava descobrir mais a esse respeito. O

uso irônico do eufemismo que sugere achar interessante chamar cadeia de laboratório

comprova o tom de desdém e cinismo de Horácio para com o filho e o restante da população,

ressaltando a superioridade e o autoritarismo da Companhia.

Outro episódio que mostra a desconfiança da Companhia é a menção a uma máquina

de pegar mentiroso, espécie de aparelho que detectava quando alguém estava faltando com a

verdade nos inquéritos da Cia. Os próprios fiscais se perguntavam se eles poderiam ser

submetidos a tal máquina por causa das pichações nos muros. Portanto, o clima de opressão e

desconfiança afetava até mesmo quem aparentemente estava do lado do sistema; a

instabilidade era tamanha que qualquer um, mesmo um fiscal, poderia ser considerado

subversivo:

─ Com certeza vão abrir inquérito ─ disse um fiscal arrancando pedacinhos das

unhas com os dentes e cuspindo para o lado.

─ Com certeza ─ disse meu pai.

(Ele já tinha curtido o medo dele, agora se divertia com o dos outros.)

─ Será que vão passar a gente pela máquina de pegar mentiroso? ─ indagou outro.

─ Em último caso sim. Mas não creio que seja necessário ─ disse meu pai. (SRB,

p. 43)

A Companhia não tolerava traidores nem admitia ser contestada em suas ordens e na

sua filosofia de governo; tanto é verdade que quando Horácio resolve sair da Companhia e

investir em negócio próprio é boicotado por ela e por todos os habitantes da cidade, estes

últimos por motivo de vingança, lembrando ainda os dias em que o pai de Lu era fiscal. A

149

esse respeito reproduzimos um diálogo entre um carpinteiro que se recusou a fazer as

prateleiras para o armazém de Horácio:

─ É? Olhe aqui rapaz. Já foi o tempo que você andava aí para cima e para baixo com

uma fardinha engomada amedrontando todo mundo. Fique sabendo que eu hoje

trabalho para a Companhia e não tenho medo de você. E é bom não me ameaçar com

processo e outras bobagens. (SRB, p 104)

Pode-se perceber a ironia observável e também a contrastiva, na qual a inversão

semântica é realizada mais uma vez pelo diminutivo irônico ‗fardinha‘. O termo é utilizado

em sentido pejorativo para lembrar a época em que Horácio tentava impor respeito por meio

daquela indumentária e se achava muito superior ao restante da população porque trabalhava

para a Companhia e tinha o poder de investigar e controlar as pessoas. O carpinteiro, agora

funcionário da Cia., se vingava de Horácio utilizando as regalias que o posto lhe oferecia.

Horácio estava em situação inversa, diante de um funcionário da Companhia que, embora não

estivesse fardado, ironicamente utilizou o mesmo argumento de autoridade que ele usava

naqueles tempos em que sentia prazer em ameaçar os outros.

Seria no mínimo ingênuo da parte de Horácio pensar que a Companhia iria permitir

toda essa liberdade de escolha, uma ilusão para alguém que trabalhara tantos anos para a

Companhia e por consequência deveria saber que ela jamais permitiria essa insubordinação.

Com a prisão de Horácio, denunciado como contrabandista, Lu e a mãe passaram por

muitas dificuldades financeiras, mas sobreviveram, assim como o restante da população. A

Companhia fechou o cerco ainda mais, chegando ao absurdo de fechar as estradas; nem cartas

recebiam, era o isolamento total.

A fiscalização aumentou, estavam registrando até as plantações de fundo de quintal

das pessoas, ou seja, a Companhia chegou ao ridículo de querer saber até quantos pés de

alface as pessoas tinham em suas hortas domésticas:

─ Sabe o que foi mais que eles inventaram? Agora quem tem plantação no quintal é

obrigado a se registrar na Companhia.

(...) ─ Você acha pouco? Declarar quantos pés a gente tem de cada planta! (SRB,

p. 120)

150

Na segunda visita dos fiscais à horta da mãe de Lu, a descrição da conferência da cada

planta é minuciosa, até os pés de matos que nascem a despeito da vontade de seus donos são

catalogados pelos fiscais:

Levei-os primeiro à horta, eles contaram e conferiram cada tomateiro, cada

quiabeiro, as pimenteiras, os jilozeiros, os pés de alface e de couve, anotando as

falhas abertas nos canteiros desde a remessa do formulário; a cebola, a salsa, o alho,

as abobreiras, tudo era examinado por cima, por baixo, cheirado, um contando, outro

marcando no papel. Eu ficava de lado olhando e pensando cá minhas coisas. Um

deles desconfiou que eu estivesse criticando e disse ajoelhado diante de uma

abóbora, a cabeça virada para mim:

─ É assim mesmo que se faz. Não pense que não gostamos desse trabalho.

Quando já estava tudo conferido e julgado conforme, e íamos passar às quadras de

batata e mandioca e às fruteiras, o fiscal que tomava conta do formulário apontou

uns pés de fumo no canto da cerca e disse:

─ Aquilo ali não foi arrolado.

─ Está vendo? Ia escapando ─ disse o outro. (SRB, p. 126)

O narrador descreve de forma irônica a cena dos fiscais vistoriando a horta de sua

mãe, diz que olhavam tudo, ‗cada‘ tomateiro, conferindo para ver se batia com o formulário

preenchido pelo proprietário. A ironia observável fica por conta da imagem do fiscal

ajoelhado em frente a um pé de abóbora: diante do ridículo da situação diz que gosta do que

faz. A cena consegue ficar ainda mais risível quando os fiscais questionam a respeito das

plantas que nascem involuntariamente na horta; a esse respeito lemos:

─ Como é que fazemos? Arrolamos ou não?

─ Sempre aparece uma besteirinha pra atrapalhar ─ disse o outro coçando a cabeça.

Vocês usam esse fumo? Perguntou para mim.

─ Pra que? Não serve para nada. Só pra passar no corpo quando a gente apanha

carrapato.

─ Então usa. Vamos anotar.

─ Então convém anotar também o fedegoso, o assapeixe, as moitas de bambu ─ eu

disse olhando em volta e citando ─ E lá mais no fundo tem muito melão-de-são-

caetano, taioba, capim-malícia, tanta coisa que o papel não vai caber.

─ Tudo plantado?

─ Tudo nascido contra a nossa vontade. (SRB, p. 127)

O controle obsessivo da Companhia é ridicularizado quando os fiscais ficam em

dúvida se contam ou não as plantas que nasceram involuntariamente. Quando um dos fiscais

151

pergunta a Lu se ele usa aquela planta e a resposta é positiva, imediatamente o fiscal conclui

que aquela planta deve ser declarada no formulário. Lu então diz que se eles declararem o

fumo, teriam que declarar todas as outras inúmeras plantas que inofensivamente cresciam nos

quintais das pessoas sem que elas por vezes se dessem conta e sem que conseguissem

controlar o mato. A resposta de Lu é irônica de uma maneira inocente porque todos que têm

horta parecem saber do fato, menos os fiscais que, indecisos, discutem o assunto que é digno

de riso.

3.6 PESSOAS VOANDO

... não existe dor insuportável; dor

insuportável ninguém sabe como é

porque ainda não sofreu.

J. J. Veiga, 1983, pp. 115-116

O último capítulo de Sombras de Reis Barbudos é chamado de “Das Profundezas do

Céu” nome bastante sugestivo porque é olhando para o alto que as pessoas começam a ver

algo impossível, algo que contraria a realidade tal qual a conhecemos, que desafia todas as

leis já existentes no mundo: as pessoas estão voando. No início são poucas, mas depois muitas

são vistas viajando pelo céu.

Há um questionamento por parte do narrador e também por parte de todos que vivem

em Taitara a respeito da veracidade desse fato. Será mesmo que as pessoas estão voando ou

todas sofrem de alucinação coletiva? Lu chega a pensar que é um truque, uma estratégia da

Cia. para enganar as pessoas. O objetivo de se fazer tal coisa, ninguém sabia: ―Voltei para

casa desapontado e apreensivo. Ou mamãe tinha razão em achar que eu estava doente ─

doença de ver gente voando? ─ ou aquilo era uma nova manobra da Companhia, e tão

perigosa que as pessoas preferiam fingir que não estavam vendo.‖ (SRB, p. 123)

O ato de voar significa, numa leitura metafórica, a busca da liberdade ou da harmonia

interior, voar não somente no contexto físico, mas também psicológico, ultrapassar aquela

situação de opressão e estreitamento dos horizontes. As pessoas começaram a voar porque

152

não aguentavam mais viver naquela redoma, sentiam-se sufocadas pelo ambiente opressivo

dos muros, somente o céu apresentava-se como uma chance de libertação.

O voo das pessoas também é um dos momentos da narrativa que mais caracterizam a

literatura fantástica, por conta da quebra que o fato promove na realidade tal qual a

conhecemos, uma vez que um ser humano voar, sem estar em um avião, contraria as leis da

física e da gravidade, segundo as quais os corpos tendem a ficar presos à terra caso seu peso

seja maior que o do ar. A esse respeito lemos o que diz Todorov:

Somos assim transportados ao âmago do fantástico. Num mundo que é exatamente o

nosso, aquele que conhecemos, sem diabos, sílfides nem vampiros, produz-se um

acontecimento que não pode ser explicado pelas leis deste mesmo mundo familiar.

Aquele que o percebe deve optar por uma das duas soluções possíveis; ou se trata de

uma ilusão dos sentidos, de um produto da imaginação e nesse caso as leis do

mundo continuam a ser o que são; ou então o acontecimento realmente ocorreu, é

parte integrante da realidade, mas nesse caso esta realidade é regida por leis

desconhecidas por nós. (1975, p. 30)

É o que ocorre em Sombras de Reis Barbudos com o advento do voo das pessoas, o

fato é aceito, mas é questionada sua veracidade. Uma das hipóteses é alucinação coletiva mas

a resposta é deixada em aberto, não se chega a uma conclusão, ou seja, algo bem próprio da

literatura fantástica: a coexistência do possível e do impossível.

Não tardou muito e a Companhia proibiu também o voo das pessoas, mas como não

obteve sucesso na proibição e a cada dia mais e mais pessoas voavam, tomou medidas de

contenção, primeiro proibiu os habitantes de olharem para cima, assim não podiam ver o mal

exemplo das outras pessoas voando como pássaros. Uma medida como essa, porém, além de

ser ridícula, é muito difícil de ser cumprida, porque não olhar para cima enquanto se realizava

afazeres diários era praticamente impossível; além do mais, como resistir à tentação de olhar

para o céu, única esperança de liberdade uma vez que não havia nada de bom para se olhar

para baixo, somente muro? A população achou por bem inventar um mecanismo para que as

pessoas não fossem punidas injustamente, criaram um aparelho que coibia as pessoas de

olharem para cima e desta forma elas não seriam castigadas pela Cia.:

153

Como é que os nossos netos ou bisnetos vão saber para que serviam esses blocos de

madeira formados de duas partes unidas por dobradiças de um lado e fechadas com

trinco de outro, tendo no meio um buraco da grossura de um pescoço, e numa das

metades um espeto com a ponta inclinada para o centro? Será que alguém vai

descobrir que isso é um aparelho que usávamos em volta do pescoço quando

saíamos à rua, e que o espeto servia para cutucar a nuca quando a pessoa se distraia

e erguia um pouco a cabeça? (SRB, p. 133)

A descrição do aparelho inventado pela população para não olhar para cima mais

parece a exposição de um objeto de tortura, o que na verdade era, uma verdadeira

materialização do poder indiscriminado da Cia.

O fato das pessoas voarem parece ter afetado bastante a Companhia porque as

providências que foram tomadas para coibir esse hábito revelam a gravidade do feito; são

medidas sofisticadas, surreais e cruéis, são objetos que caem do céu, coisas muito esquisitas

que causam mal estar às pessoas ou acabam por machucá-las:

Para convencer o povo de que nada de bom pode vir lá de cima a Companhia deu

para nos fazer advertências práticas. Frequentemente caem coisas esquisitas sobre a

cidade, um dia são pedaços de uma matéria pegajosa em forma de orelhas, caem em

lugares muito freqüentados, grudam onde batem e ficam exalando uma catinga

horrível, de repente pegam fogo e somem, deixando no lugar uma mancha vermelha;

outro dia são uns objetos difíceis de serem descritos porque caem a grande

velocidade e quando tocam o chão saem pulando em ziguezague guinchando,

roncando, gargalhando, e ainda têm um ferrão serrilhado que corta esgarçando: outro

dia baixam enxames de mutucas mecânicas que picam a torto e a direito, injetando

uma substância que produz inflamação e febre alta, e desaparecem com a mesma

rapidez.

Apesar de todas essas manobras a Companhia não está conseguindo amedrontar o

povo. Dia a dia aumenta o número de gente no ar, não é preciso olhar o céu para

saber, basta ver a quantidade de sombras no chão, principalmente ao meio-dia, e

notar a falta de tanta gente aqui embaixo. (SRB, p. 133)

É uma tentativa de desacreditar ou desvalorizar o espaço ‗céu‘, visto pela população

como o paraíso, assim, de lá é que passou a vir os castigos impostos pela Cia, portanto, não

poderia ser um lugar tão bom quanto a população acreditava que fosse. Mas não obtém

sucesso porque praticamente toda a população adquire a habilidade de voar e a usa, a despeito

das estranhas punições impostas pela Companhia.

A descrição das punições impostas pela Companhia reproduzidas na citação remete-

nos ainda ao que Todorov chama de „maravilhoso instrumental‟:

154

Aparecem aqui pequenos gadgets*, aperfeiçoamentos técnicos irrealizáveis na época

descrita, mas no final das contas perfeitamente possíveis. Na ―História do Príncipe

Ahmed‖ da Mil e uma noites, por exemplo, esses instrumentos maravilhosos são, no

início: um tapete voador, uma maçã que cura, um ―tubo‖ de longa visão; em nossos

dias, o helicóptero, os antibióticos ou o binóculo, dotados das mesmas qualidades,

não são absolutamente do domínio maravilhoso; o mesmo acontece com o cavalo

voador em ―A História do cavalo encantado‖. (TODOROV, 1975, p.62) *Em inglês no original. O gadget, palavra americana que significa ―artigo

engenhoso‖, a mechanical contrivance ordevice, da palavra francesa gachette, é um

pequeno objeto ou acessório de um objeto maior (gadgets de automóveis) e pertence

à classe dos diminutivos. Definição: ―Objeto artificioso destinado a satisfazer essas

pequenas funções particulares na vida diária‖. Abraham Moles, O Kitsch (―O que

é o gadget?‖, p. 206), tradução da Editora Perspectiva, Col. Debates.

(N. da T.)

Portanto, os objetos estranhos que caiam do céu não correspondiam às coisas que

sabíamos existir na realidade da época, pareciam ter vindo de um futuro ou de um livro de

ficção científica. O mesmo se aplica ao aparelho inventado para que as pessoas não olhassem

para cima, um verdadeiro „gadget‟, uma engenhoca mecânica inventada para satisfazer uma

necessidade da vida diária.

Com relação aos castigos aplicados pela Companhia, ocorre o que Todorov chama de

„maravilhoso científico‟, ou seja, o sobrenatural é explicado de uma maneira racional, mas a

partir de leis que a ciência contemporânea não reconhece. Não havia, na época, tecnologia

suficiente para a construção e operacionalização daqueles artefatos; eles tornam-se, porém,

parte integrante da narrativa. A tese do fantástico se fortalece porque as hipóteses

permanecem abertas, o fenômeno não é explicado nem pela vertente do ‗maravilho científico‘

nem pelo ‗maravilhoso instrumental‘ e muito menos pela racionalidade da lógica.

Nos momentos finais do livro há o intrigante diálogo entre o senhor Chamun e um

homem apenas chamado de professor, que defendia a ideia de que as pessoas na verdade não

voavam, estavam sofrendo de amnésia coletiva devido a um desejo intenso de liberdade. Mas

esclarece que amnésia coletiva não é doença e sim remédio, e adianta também que todos um

dia vão voltar e participar da festa dos reis barbudos. Lu espera que se esclareça quem são

esses reis barbudos, mas o homem vai embora sem que seja explicado o intrigante diálogo:

─ Alucinação coletiva. É uma doença então?

─ Não, não. Pelo contrário. É remédio.

─ Remédio. E serve para que?

155

─ Contra loucura, justamente.

Seu Chamun ficou calado, pensando ou simplesmente caprichando na apontação do

lápis. Depois perguntou:

─ E quando é que vamos parar de tomar esse remédio? Quero dizer, quando é que

aqueles lá em cima vão voltar? Ou não voltam nunca mais?

─ Voltam. Um dia voltam.

─ Mas quando vai ser?

─ Para a festa dos reis barbudos. (SRB, p. 135)

Uma explicação possível sobre quem seriam esses reis barbudos é que eles seriam as

próprias pessoas que estavam voando, e a sombra que faziam ao voar podia ser vista por quem

estava no chão para lembrar que era possível ascender para outra dimensão. Eram nomeados

reis porque a sua volta seria um sinal de que a Cia havia sucumbido e de que quem reinava

agora eram eles, haveria uma grande festa, uma grande comemoração pela vitória da

liberdade. Porém, essa é apenas uma leitura dentre as inúmeras possíveis, a própria narrativa

deixa a questão em aberto.

Essa grande festa dos reis barbudos já fora anunciada anteriormente por meio do sonho

de Lu, anteriormente referido, sem dúvida um momento onírico da narrativa que privilegia a

fuga da realidade cruel para uma realidade desejada.

3.7 SOMBRAS DE REIS BARBUDOS: HIPÓTESES SOBRE O TÍTULO

A reunião era uma festa para

comemorar a torre que ele acabava

de construir, obra nunca vista e

muito importante encomendada

por uma comissão de reis barbudos.

J. J. Veiga, 1983, pp. 81-82

Há algumas hipóteses para explicar o título do livro, são três palavras bastante

significativas para a narrativa: reis, sombras e barbudos.

156

Rei, segundo o Dicionário de Símbolos12

, pode ser considerado um símbolo do SELF.

Nas sociedades primitivas, ao rei ou ao chefe da tribo eram atribuídas qualidades mágicas.

Eles incorporavam um princípio divino do qual dependiam o bem-estar físico e psíquico de

toda a nação. Era o poder vital místico da nação. Se o Rei estava doente, o reino adoecia, os

rios secavam, as árvores não davam frutos, os animais morriam. O momento de coroação do

rei equivale à realização, à vitória e ao ponto culminante. Ao rei é atribuída também a ideia

de imortalidade vinda dos deuses e repassada diretamente ao monarca.

Ainda segundo o Dicionário de Símbolos, o rei e a rainha juntos constituem a imagem

perfeita da ‗hierogamia‘, ou seja, da união do céu e da terra, do sol e da lua, do ouro e da

prata. O título de rei se concede invariavelmente àquele que é considerado o melhor de cada

espécie e muitas vezes sua figura está ligada ao do pai ou herói, com fortes características

messiânicas.

Na Coreia, aos reis era atribuída também a responsabilidade pelas condições

atmosféricas e caso chovesse em excesso ou se houvesse uma seca prolongada, o povo ou

destronava ou matava o rei. Os suecos sempre atribuíram ao rei o fracasso ou o sucesso de

suas colheitas, tanto que o rei Olaf foi oferecido em sacrifício a Odin, em consequência da

escassez que houve durante seu reinado. Em todas as culturas, o rei era visto como sendo o

sucessor do mágico, dai a dignidade atribuída ao processo sucessório real. Portanto, quando

Lu vai visitar tio Baltazar depois que ocorre o golpe e tem um sonho, e neste sonho o tio seria

coroado rei por uma comissão de reis barbudos, ocorre exatamente o inverso do que

aconteceu na vida real, quando Baltazar foi deposto do cargo que exercia na Companhia.

Assim, no sonho do menino, o tio ainda detinha o poder e a majestade.

Os reis poderiam ser relacionados com os reis magos da bíblia ―Gaspar, Belchior e

Baltazar‖, este último homônimo do tio de Lu. Segundo a Bíblia, essa comissão de reis levou

presentes para Jesus, o salvador, por ocasião de seu nascimento. No sonho de Lu essa

comissão viria para restaurar a majestade do tio Baltazar, nome significativo porque indica

aquele que é iluminado, ou portador de boas notícias, como a do nascimento do Salvador; o

mesmo Baltazar também trouxe a Cia para a cidade, entidade que num primeiro momento

promoveu progresso e felicidade, mas depois, com a destituição de Baltazar, somente trouxe

tristezas à população.

12

CIRLOT, Juan-Eduardo. Dicionário de Símbolos. São Paulo: Editora Moraes, 1984.

157

A palavra sombra se opõe a luz, as sombras são frequentemente identificadas com a

alma da pessoa e são consideradas entidades escuras com vida própria. Na perspectiva

junguiana, a sombra é o oposto do EGO. A sombra é sempre o "outro", são "eles", é o

contrário de tudo aquilo com o qual eu me identifico. Arquétipo do inconsciente, símbolo dos

aspectos obscuros, reprimidos e negligenciados da personalidade que não encontram

acolhimento em nossa vida consciente. É uma parte da nossa personalidade que, por não

considerarmos adaptáveis ao papel social que desejamos representar no mundo,

negligenciamos e, não a considerando como uma parte nossa, vamos perdendo nossa

espontaneidade. Esses aspectos reprimidos regridem o ser a um estado primitivo e quando

irrompem em nosso cotidiano, atuam de forma hostil e desintegrada.

Assim lemos no Dicionário de Símbolos:

Como o Sol é a luz espiritual, a sombra é o ―duplo‖ negativo do corpo, a imagem de

sua parte maligna e inferior. Entre os povos primitivos é geralmente arraigada a

ideia de que a sombra é um alter ego, uma alma, ideia que se reflete no folclore e na

literatura das culturas avançadas (35). Frazer já indicou que é frequente que o

primitivo considere sua sombra, ou sua imagem na água ou num espelho, como sua

alma ou uma parte vital de si mesmo (21). Jung denomina sombra à personificação

da parte primitiva e instintiva do indivíduo. (CIRLOT, 1984, p. 539)

Sombras poderiam ser, portanto, todas a coisas negativas na vida das pessoas, aquelas

que projetam escuridão, tais como os muros; sombra viria também do fato do narrador

conduzir a narrativa de forma apenas esboçada, ou seja, o mundo apresentado no livro seria

apenas uma sombra do mundo real, uma silhueta obscura em oposição ao mundo de luz.

Barba13

é um símbolo de virilidade, uma vez que só os homens a possuem, e de

sabedoria: na Antiguidade, os sábios deixavam suas barbas crescerem para simbolizar seu

saber. Também nesse período, as imagens de animais com barba sinalizavam que se tratava

de um animal cerimonial e simbólico, posto que a barba era considerada sagrada nessas

imagens.

Tradicionalmente, uma barba longa representa idade avançada, ‗insight‘ e sabedoria.

13

http://www.salves.com.br/dicsimb/dicsimbolon/barba.htm Acessado em 8/9/2010

158

O sonho de Lu com reis barbudos tem um significado positivo porque indica o

desejo do menino pela mudança e sua confiança em que o tio pudesse promover essa

mudança.

Por ser um texto que sinaliza para a representação alegórica das personagens e dos

fatos narrados, o significado do título aponta para muitas leituras possíveis.

O certo é que Sombras de Reis Barbudos, em linguagem simples e fluida, é o relato

do menino Lu sobre os estranhos acontecimentos em sua cidade, Taitara. Um relato de quem

participou da instalação da Companhia de Melhoramentos e também viveu a história de

terror e opressão imposta por essa empresa. As situações mais improváveis são apenas

relatadas por Lu, assistimos às personagens da diegese totalmente dominadas por um clima

insólito de pesadelo, para o qual não há uma explicação coerente.

Como a história é contada por meio de flash-backs, temos, em caráter memorialista,

a reconstrução dos fatos realizada sob a ótica do personagem Lu, que narra os

acontecimentos de acordo com sua perspectiva, o que favorece a literatura fantástica,

segundo Filipe Furtado (1980):

De facto, por motivos adiante discutidos, convém ao fantástico que o sujeito da

enunciação coincida com uma figura de certo relevo na acção. Por isso, este tipo de

narrador deve ser considerado um factor importante quando se pretender estabelecer

com clareza a delimitação do gênero, embora não se possa dizer que constitui um

traço distintivo dele pois não está presente na totalidade das narrativas que o

integram. (FURTADO, 1980, p. 107)

Portanto, a focalização do narrador personagem Lu, item que será abordado com maior

profundidade no próximo capítulo, em comparação com ―Dinossauro Excelentíssimo‖,

contribui para a instauração e manutenção do clima de estranhamento e pesadelo, da

ambiguidade necessária ao gênero em questão.

159

CAPÍTULO 4

UMA LEITURA COMPARATIVA: DINOSSAURO E REIS BARBUDOS

“Minha liberdade é escrever. A

palavra é o meu domínio sobre o

mundo.”

Clarice Lispector, apud Revista

Língua Portuguesa, nº 60, p. 7.

Neste capítulo iremos estabelecer pontos de contato entre duas narrativas que se

caracterizam por representarem, ambas, uma literatura de desafio a uma situação de opressão

e falta de liberdade de expressão, tendo, portanto, de lançar mão de recursos que encubram a

verdadeira mensagem dos textos: no caso de ―Dinossauro Excelentíssimo‖, os recursos da

sátira e da ironia; no de Sombras de Reis Barbudos, o uso do realismo maravilhoso.

4.1 TÍTULOS

O título é um elemento indispensável para a compreensão da mensagem de um texto,

porque, além de chamar a atenção do leitor e despertar sua curiosidade para a leitura, auxilia

na interpretação da obra, revelando muitas nuances do texto.

Nossa leitura revelou que o título ―Dinossauro Excelentíssimo‖ é irônico como todo o

texto de Cardoso Pires. O primeiro elemento do título é incompatível com o segundo

elemento, ou seja, ocorre o que Linda Hutcheon classifica de função semântica contrastiva da

ironia, aquela que estabelece a diferença de sentidos, ocasionando a sobreposição de

conteúdos semânticos entre o que é declarado e aquilo que é intencionado pelo produtor do

discurso. Pois, como pode um ‗dinossauro‘, animal pré-histórico, ser chamado de

160

‗excelentíssimo‘, uma qualidade somente atribuída àqueles que se destacam por serem

brilhantes, admiráveis, notáveis, excepcionais; certamente nenhum desses atributos é

compatível com um dinossauro. ―Dinossauro Excelentíssimo‖ é, portanto, um título irônico,

porque o dinossauro representa Salazar e seu governo arcaico e atroz.

No título escolhido por Cardoso Pires ocorre também a função avaliadora da ironia,

aquela que Hutcheon afirma ter por missão julgar, estabelecer juízo de valor, fazer com que o

interpretante tome uma posição diante do texto. E o leitor presume que, a julgar pelo título, o

texto promete ser bastante irônico também.

Já o título Sombras de Reis Barbudos aponta para muitas leituras, porque é composto

por signos polissêmicos. As três palavras que compõem esse título são ricas em significados,

portanto, podemos interpretá-las de diferentes formas. Optamos por consultar um dicionário

de símbolos para nossa análise. Poderíamos ter nos pautado nos conhecimentos da psicologia,

por exemplo. Fato é que, nossa leitura é apenas uma possibilidade entre tantas outras.

Os reis têm a função e o dever de governar com dignidade seu povo. No livro, a

função de líder era por direito de Baltazar, por ter fundado a Cia. e pelo intertexto com os reis

magos que levaram presentes a Jesus, como descreve a Bíblia. Baltazar, contudo, é coroado

rei somente em sonho, uma vez que foi deposto do cargo de chefia que ocupava na

Companhia. A barba entra como elemento que indica a virilidade e a liderança do rei para

conduzir seu povo. O terceiro elemento são as sombras, elas relacionam-se a tudo que é

negativo na narrativa: a opressão sofrida pelo povo, a repressão, as punições. Nessa

perspectiva, o título Sombras de Reis Barbudos poderia indicar que apenas a escuridão e as

trevas desse governo de reis barbudos chegaram à cidade de Taitara.

O importante, porém, é que nos títulos das obras analisadas reside uma diferença

significativa, porque enquanto ―Dinossauro Excelentíssimo‖ revela-se desde o início

extremamente irônico, Sombras de Reis Barbudos declara-se, desde o começo, polissêmico,

misterioso, inusitado, características muito próprias do realismo mágico latino-americano. Por

outro lado, ambos já apontam para o caráter ideológico e político das obras analisadas.

161

4.2 NARRADOR E NARRATÁRIO

O ponto que focalizaremos agora será o tipo de narrador presente em cada um dos

textos, visto que o narrador é a entidade que organiza os acontecimentos da história, de modo

que sua postura diante dos fatos narrados é de extrema importância para que o leitor interprete

e compreenda o verdadeiro significado do texto.

Já foi dito que em Sombras de Reis Barbudos o narrador é autodiegético14

, segundo a

nomenclatura de Genette: Lu narra a história da instalação da Companhia de Melhoramentos

em Taitara de forma retrospectiva, por meio da analepse15

, ou seja, algum tempo depois

resolve contar a história, segundo esclarece, a pedido da mãe. As datas não são muito claras,

mas infere-se que Lu inicia o relato com apenas 11 anos, terminando-o com aproximadamente

15 a 16 anos, como confirma a passagem do texto: ―Eu tinha onze anos quanto tio Baltazar

chegou da primeira vez. Estava casado de novo, mas veio sozinho e com fama de muito

Rico.‖ (SRB, p. 2)

A opção de Veiga por esse narrador autodiegético justifica-se pela intenção da

construção do fantástico, pois a tendência natural deste tipo de narração é deformar a

realidade que retrata, tendência intensificada também pelo fato do narrador ser um pré-

adolescente, em um momento confuso de plena transformação psico-somática e de

autoconhecimento. Assim, a instauração do fantástico é a função mais importante desse

narrador, porque permite a ocorrência de situações inexplicáveis que beiram as fronteiras do

sonho e da fantasia.

Esse narrador quer firmar-se também como testemunha dos fatos ocorridos. Como

personagem que vivenciou todos os acontecimentos, faz questão de tornar claro ao leitor que,

além de estar satisfazendo um pedido da mãe, escrevendo a história da cidade, também se

propõe a narrar somente a verdade, ou seja, o que realmente aconteceu. A esse respeito lemos:

14

REIS & LOPES, 1988, p. 118 – 1. A expressão narrador autodiegético, introduzida nos estudos

narratológicos por Genette (1972: 251 et seqs.) designa a entidade responsável por uma situação ou

atitude narrativa específica: aquela em que o narrador da história relata as suas próprias experiências

como personagem central dessa história.

15 REIS & LOPES, 1988, p. 230 – 1. Corresponde genericamente ao conceito designado também pelo

termo flashback, entende-se por analepse todo o movimento temporal retrospectivo destinado a

relatar eventos anteriores ao presente da ação e mesmo, em alguns casos, anteriores ao seu início.

162

―Estou aqui para falar do que aconteceu, e não do que deixou de acontecer. [...] Se estou aqui

para contar a verdade não posso esconder o meu desapontamento quando vi tio Baltazar

descendo do carro em nossa porta.‖ (SRB, p. 3)

Percebemos que o menino-narrador confirma seu compromisso em relatar somente a

verdade da mesma forma que um jornalista afirma o compromisso de divulgar ao público,

com total transparência, os fatos tal como eles aconteceram.

O relato do menino inicia-se de forma despretensiosa, mas apenas aparentemente,

porque há um jogo com o leitor virtual por meio dos questionamentos e das prolepses16

realizadas pelo narrador; essas antecipações, ao mesmo tempo, convidam e instigam a

curiosidade do leitor com relação à história que será contada.

Um exemplo desses artifícios utilizados para envolver e despertar a curiosidade do

leitor pela história é a insistência do narrador menino em deixar claro que os fatos narrados

não serão lidos por ninguém, nem mesmo pela mãe que pediu que a história fosse registrada.

O narrador, porém, não acredita que a mãe se privará do prazer da sua leitura e conjectura que

terá que guardar muito bem seus escritos para que nem a mãe nem ninguém os ache:

Mamãe diz que não vai ler os meus escritos porque não tem cabeça para leitura e

também porque já sabe tudo melhor do que eu. Está claro que é mais um truque para

me deixar à vontade. Ela é esperta, pensa em tudo. Preciso ter muito cuidado para

não deixar o caderno esquecido por aí, principalmente se eu resolver falar no meu

procedimento em casa de tio Baltazar. (SRB, p. 2)

O julgamento do narrador com relação à mãe é positivo no sentido de ressaltar a

astúcia na arte do convencimento: primeiramente, convencendo-o a registrar tudo o que se

passou na cidade de Taitara com a vinda da Companhia de Melhoramentos; em seguida,

deixando o narrador da história tranquilo para escrever livremente, sem preocupar-se com o

público leitor.

A mãe supunha que, sem a preocupação com um possível leitor, a escrita do filho

seria mais fluida e autêntica, mas este acaba percebendo as manobras por trás do discurso

materno; tanto é verdade que se mostra temeroso ao revelar os acontecimentos na casa do tio

16

REIS & LOPES, 1988, p. 283 – 1. Constituindo um signo temporal funcionalmente simétrico da analepse (v.), a prolepse corresponde a todo o movimento de antecipação, pelo discurso, de eventos cuja ocorrência, na história, é posterior ao presente da ação (cf. Genette, 1972: 82).

163

Baltazar. Lu refere-se ao episódio envolto em uma atmosfera onírica e também fantástica que

viveu com sua tia Dulce; neste episódio, tem-se a impressão de que Lu relacionou-se

amorosamente com sua própria tia; tudo, porém, é uma sugestão muito vaga: ―Ela, minha tia,

podendo ser minha mãe na idade? Mas se fosse tão absurdo porque ela também fazia aquelas

coisas comigo? Estava tudo muito confuso e perigoso, a solução era eu ir embora depressa,

antes que tio Baltazar morresse para aumentar o meu remorso.‖ (SRB, pp. 91-91)

As páginas iniciais de Sombras de Reis Barbudos são bastante esclarecedoras, pois,

nelas, o narrador acaba por revelar-se não tão ingênuo quanto quer se fazer parecer ao leitor,

uma vez que percebe as manobras da mãe para fazê-lo escrever a história da instalação da Cia

e reconhece a necessidade de ocultar o ocorrido na casa da tia. Além disso, seus

questionamentos, logo no início do relato, estimulam a curiosidade do interlocutor, por meio

do diálogo que se estabelece entre narrador e leitor. A partir da primeira linha da narrativa,

Veiga começa a ‗fisgar‘ o leitor com perguntas que o instigam a avançar na leitura do texto,

tais como:

Será que eu estaria aqui escrevendo se tio Baltazar não tivesse vindo para cá com a

idéia de fundar a Companhia? Não estou pensando que a culpa foi dele; a idéia era

boa e entusiasmou todo mundo. Mas a história que vou contar começa mesmo é com

a chegada de tio Baltazar. Quem podia imaginar naquele tempo de alegria e festa

que um sonho tão bonito ia degenerar nessa calamitosa Companhia Melhoramento

de Taitara? (SRB, p. 2)

Muito da história que será contada ao leitor revela-se por meio dos questionamentos

inseridos no relato; eles deixam entrever, por exemplo, que o tio Baltazar terá um papel

fundamental na história, porque foi ele quem implantou a Companhia na cidade; que a

Companhia em seu início foi algo positivo, mas depois tornou-se um instrumento de opressão,

fato enfatizado pelo contraste entre os expressões ‗calamitosa‘ e ‗melhoramento‘, ambas

referindo-se à Companhia.

Já que o narrador, na qualidade de testemunha, conta fatos já consumados, narra com

propriedade e segurança as antecipações, como a notícia da morte do tio Baltazar, por

exemplo: ―Pobre tio Baltazar, como estaria sofrendo se ainda vivesse. Acho que foi pensando

no sofrimento dele que mamãe não chorou muito quando finalmente recebemos a notícia.‖

164

(SRB, p. 2) É desta forma que ficamos sabendo, mesmo antes do narrador iniciar a narrativa

dos acontecimentos em Taitara, que tio Baltazar morre no decorrer do relato.

Com a narrativa já iniciada, ocorrem mais questionamentos do narrador, que se

pergunta, em dado momento, se tudo não teria sido diferente se o tio não tivesse insistido

tanto em construir a Companhia. Na realidade, faz isso menos para imaginar outras

decorrências possíveis para os acontecimentos e mais para reafirmar a importância daquela

personagem como estopim da saga narrada:

Agora eu pergunto de novo: se ele tivesse voltado naquela ocasião, será que ainda

estaria vivo? E se ele não tivesse fundado a Companhia, será que teríamos passado

por tudo o que passamos? Mas perguntar essas coisas agora é o mesmo que dizer

que se o bezerro da vizinha não tivesse morrido ainda estaria vivo. (SRB, p. 3)

Por outro lado, o efeito retórico é poderoso; admitir a inutilidade dos próprios

questionamentos, admitir a incapacidade de chegar a respostas significativas é um artifício

que aproxima o narrador do leitor, pois quem nunca se fez perguntas deste tipo? Quem nunca

pensou que escolhas diferentes resultariam em consequências igualmente diversas?

Em Sombras de Reis Barbudos há uma progressão temporal como em toda narrativa,

mas há também, e este fato é mais importante, o amadurecimento do menino Lu como

indivíduo e cidadão. É por meio desse narrador, inocente a princípio, praticamente uma

criança inexperiente, que tomamos ciência dos fatos. Os equívocos, a desinformação e a

imaturidade desse narrador infantil contribuem para a instauração do fantástico. Esse

narrador, como já dissemos acima, assume a autoria da história e estabelece também o

narratário que, de início, é a mãe, e, posteriormente, toda a população de Taitara, preocupada

em entender o que se passou desde a vinda de Companhia:

Está bem, mãe. Vou fazer a sua vontade. Vou escrever a história do que aconteceu

aqui desde a chegada do tio Baltazar. Sei que esse pedido insistente é um truque para

me prender em casa, a senhora acha perigoso eu ficar por aí mesmo hoje, quando os

fiscais já não fiscalizam com tanto rigor. (SRB, p. 1)

165

Lu deixa claro em seu discurso que desconfia das verdadeiras intenções de sua mãe ao

convencê-lo em escrever a história da instauração da Companhia na cidade, e de tudo que se

passou desde então; intui que a mãe quer vê-lo fora de perigo, no abrigo do lar. Também as

próprias intenções são questionadas, num exercício metalinguístico; nas reflexões em que se

assume como organizador dos fatos narrados, discute a dificuldade em relembrar e descrever

os acontecimentos, que, embora vivos na memória, são difíceis de serem enfrentados num

discurso coerente: ―Pensei que ia ser fácil escrever a nossa história, estando os

acontecimentos ainda vivos na minha lembrança. Mas foi só eu me sentar aqui, pegar o lápis e

o caderno, e ficar parado sem saber como começar.‖ (SRB, p. 2)

Desta forma, Lu, como um narrador-testemunha, que além disso traz a presença

corroborante de um narratário, conquista a credibilidade do leitor. A instauração do fantástico

é facilitada por meio destes artifícios narrativos, pois, segundo Filipe Furtado, representam

eles as condições essenciais para a criação do absurdo:

Em termos gerais, o narrador que é simultaneamente personagem está incumbido de

funções importantes no que respeita a vários planos da construção fantástica. De

facto, tendo supostamente presenciado ou acompanhado de perto os acontecimentos

narrados, vê reforçada a sua autoridade como testemunha, o que confere maior

credibilidade à acção. Essa função testemunhal do narrador-actor patenteia-se

frequentemente desde o início da história e, por vezes, antes de ela começar, com se

referiu atrás. (FURTADO, 1980, p. 114)

A respeito do papel também importante do narratário para a literatura fantástica lemos

ainda, conforme o mesmo autor:

A personagem torna-se, assim, um importante elemento de orientação na floresta dos

sinais erguidos ao longo do texto, indicando repetidas vezes ao leitor real

(diretamente ou por intermédio do narratário) o percurso de leitura a seguir. É tão

evidente, por vezes, a preocupação de criar para as personagens um papel em tudo

idêntico ao do narratário que, de onde em onde, mais parece transferir-se para

aquelas a função que em princípio deveria caber ao destinatário imediato da

narrativa. (FURTADO, 1980, p. 85)

166

Assim, a mãe de Lu, como narratária mencionada, ratifica a veracidade dos fatos

narrados pelo filho, contribuindo para o clima de ambiguidade, uma vez que compartilha e

ratifica igualmente as situações insólitas que se apresentam no decorrer da narrativa.

À medida que essas situações inusitadas e estranhas vão sendo descritas e apresentadas

por Lu, ocorre algo paradoxal no receptor: ao mesmo tempo em que ele se identifica com o

narrador-testemunha, duvida de sua percepção dos fatos por sua condição de criança; essa

desconfiança deriva também da percepção de que o narrador omite deliberadamente muita

explicações, deixando incoerentes determinados segmentos da narrativa. É exatamente desta

forma que o fantástico instaura-se na narrativa de Sombras de Reis Barbudos, insinuando-se

mesmo no dia-a-dia das pessoas, sem grandes feitos de magia, apenas por meio do cotidiano

desarticulado e fragmentado.

Esse dia a dia desordenado e caótico que nos é apresentado por Lu, deve-se, entre

outras coisas, às diferentes perspectivas adotadas por ele, que ora adota a sua visão a respeito

do mundo, ora fala pela família, ora pelos habitantes de Taitara, resultando numa

superposição de pontos de vista que confundem o quadro apresentado. Por exemplo, quando

Lu decidiu avisar os amigos de que as lunetas seriam apreendidas pela Cia., assumiu o viés do

grupo social em questão, como percebemos no trecho a seguir:

Ainda quente da decisão, fui avisando todo mundo pelo caminho, meninos e gente

grande. Mas como é difícil prestar um serviço desinteressado! Ninguém acreditava,

pensavam que era molecagem minha, imagine proibir luneta e binóculo, isso não é

arma, não mata nem fere ninguém (SRB, p. 39)

Percebemos que a atuação pronta e decisiva de Lu, na situação acima, foi favorável ao

seu grupo social, vivenciando os conflitos sociais dominantes; deste modo, ao dar ênfase ao

episódio, o narrador evidencia também as motivações sociais da narrativa.

Observamos, da mesma forma, no discurso do narrador, o uso da 1ª pessoa do plural e

não da 1ª do singular, como é o esperado de um narrador autodiegético, para se referir a fatos

ocorridos na cidade, adotando, desta maneira, o ponto de vista dos cidadãos de Taitara, como

ilustram as partes do texto que agora reproduzimos: ―Sem tio Baltazar a Companhia deixou de

existir para nós.‖ (SRB, p. 25) / ―Com tanto muro para encarar quando estávamos parados e

rodear quanto tínhamos de andar, a vida estava ficando cada dia mais difícil para todos,‖

167

(SRB. p. 27) / ―Nossa vida voltou à triste rotina de fitar muro, contornar, praguejar contra

muro‖ (SRB, p. 51) / ―No fundo já estávamos mesmo nos cansando deles.‖ (SRB, p. 49).

Em outras partes da narrativa, o narrador expõe o próprio olhar sobre as coisas, ou

seja, o olhar parcial do menino sobre o mundo adulto. Poderíamos elencar aqui uma porção de

elementos que Lu desconhece, tais como: o verdadeiro problema do relacionamento entre seu

pai e tio Baltazar; o porquê da antipatia da mãe por sua tia Dulce; porque Baltazar afastou-se

da Companhia; qual era a atividade de seu pai dentro da Cia.; porque Horácio não fora

despedido juntamente com tio Baltazar, pelo contrário, fora promovido a fiscal da Cia.; quais

eram as verdadeiras intenções da tia para com ele. São inúmeras as lacunas deixadas pelo

narrador menino, em virtude do mundo inacessível a ele, e por isso mesmo incompreensível.

Portanto, poderíamos pensar que uma das justificativas para a falta de explicação dos

absurdos ocorridos na história seria a ingenuidade do narrador, sua condição de criança que

não compreende determinadas coisas, principalmente do mundo adulto.

Outra justificativa possível seria a falta de conhecimento não somente de Lu, mas de

toda a cidade, a respeito da Cia. e de suas atividades. Em Sombras de Reis Barbudos ocorre

um ‗desconhecimento‘ coletivo, ou seja, a alienação dos fatos atinge toda a cidade de Taitara.

A última, e mais ambígua, é aquela que se instaura entre o narrador e o leitor, ou seja,

ficamos com a sensação de que Lu sabe mais do que nos diz, porque sua ingenuidade muitas

vezes é traída por atitudes articuladas; por exemplo, para conseguir uma informação do pai a

respeito da Cia. ou para esconder informações do pai com receio de punições. Portanto, a

ambiguidade que se instaura por meio das relações estabelecidas pelo narrador causa o efeito

do insólito.

Voltemos ao episódio da apreensão das lunetas; nele, Lu mostra todo o seu potencial

dissimulatório, e concluímos que, se ele é capaz de fingir, de encobrir com astúcia e disfarçar

os acontecimentos, pode muito bem jogar com a credibilidade do leitor. Portanto, a

confiabilidade do narrador fragiliza-se, porque o leitor percebe que, embora Lu seja um

menino ingênuo, também se apresenta capaz de manipular os fatos e escolher o que desejar

contar, conduzindo, desta forma, a narrativa. Vejamos essa passagem:

A bomba estourou logo na manhã seguinte. [...] Imediatamente me lembrei das

lunetas e fui armando minha defesa. Eu sabia o que era que eu tinha feito e estava

pronto para as conseqüências, mas também não ia me entregar voluntariamente.

Confessar era bonito, mas podia ser um desperdício. [...] Por que me apresentar

168

como culpado logo no começo? Melhor negar por enquanto. Mas muito cuidado

para não negar o que não for perguntado, muito mentiroso é apanhado por querer por

o carro adiante dos bois. O assunto pode até ser outro. Se for o caso das lunetas, eu

não disse nada a ninguém. Não disse porque esqueci. Esqueci porque não acreditei.

Não acreditei porque achei absurdo, luneta não é arma, não fere ninguém. E nada de

afobação ao falar. Pensar antes de responder. (SRB, pp. 40-41)

Fica clara a frieza de raciocínio do narrador para armar sua defesa e negar o ato

criminoso. Lu pensa nos detalhes que podem denunciar sua culpa, em não responder ao que

não for perguntado, lembrando um ditado popular: ‗não colocar a carroça na frente dos bois‘;

enfim, manter a aparente tranquilidade do inocente. Lu vai ainda além, prevê as perguntas que

lhes serão feitas e já ensaia as melhores respostas, atitude de um mentiroso profissional.

Dando segmento a seu plano, nega o crime, primeiro para a mãe e logo em seguida

para o pai:

O que foi que você andou fazendo Lu?

─ Fiz nada não. O que é que ele quer?

─ Está furioso com uns escritos nos muros.

─ Ah. Escrevi nada em muro não.

(Não desmentir o que não for perguntado)

─ Vai depressa antes que ele venha te buscar. Calce os chinelos.

Entrei inocente na sala, disse bença pai, ele não respondeu. Me olhou com raiva e

atacou:

─ Tem a língua grande demais, não é? [...]

─ Não senhor. Eu não fiz nada.

─ Não fez nada. [...]

Ele estava com medo. E o medo dele me mostrou um caminho melhor: confessar e

dividir a culpa com ele. Era uma maldade, mas ele precisava de uma lição. Fui

pensando e falando devagar.

─ Eu contei sem querer. E não foi a todo mundo. Foi só a uns meninos da rua que

vieram me fazer inveja. Fiquei com raiva e falei sem querer. E eles nem acreditaram,

pensaram que era despeito.

─ Eu não falei que ele podia não ter feito por mal? ─ disse mamãe, ansiosa por

provar a minha inocência.

Eu ia me envergonhando de vê-la tão enganada, me lembrei do que ela sofria por

causa da farda e tudo mais, e agüentei firme. Eu tinha contado de propósito, mas não

por mal. Se meu pai perdesse o emprego, nós todos íamos lucrar, até ele; todo fiscal

da Companhia já era olhado com ódio na rua. (SRB, pp. 41-42)

Portanto, Lu nega categoricamente que tenha dado alguma informação a respeito da

apreensão das lunetas; o uso da interjeição ‗ah‘ antes da segunda negativa sobre o crime,

denota sua tentativa dissimulada de parecer inocente. Em seguida temos uma observação

169

irônica entre parênteses, uma intervenção do narrador na diegese, evidenciando a diversidade

entre o Lu narrador e o Lu personagem; demonstrando ainda, neste distanciamento crítico,

uma certa ironia no discurso do narrador em relação à atitude dissimulada do menino .

A narração enfatiza a ideia de inocência do menino ao registrar o cumprimento filial

respeitoso: ―entrei inocente na sala, disse bença pai‖, o que, pelo contraste, acentua as

asserções inverídicas que virão a seguir. A ironia instaura-se porque narrador e receptor

compartilham um conhecimento, ambos sabem que o menino é culpado.

Ainda mais, percebemos que o menino não é tão ingênuo quanto pensávamos, pois

constatamos que ele percebe o medo estampado na face de seu pai e imediatamente traça

outra estratégia, muito mais elaborada que a primeira: resolve admitir a culpa, diz que deixou

escapar a informação sem intenção, porque não resistiu ao impulso de se vingar dos meninos

que tinham luneta e ele não. Caindo no engodo, a mãe é a primeira a acreditar que essa foi a

verdadeira motivação de Lu para contar sobre a apreensão das lunetas. O menino esboça ter

uma crise de consciência por enganar a mãe tão descaradamente, mas logo essa crise é

substituída pela possibilidade do ocorrido fazer o pai perder o emprego na Companhia e,

consequentemente, oprimir menos sua mãe e a ele próprio. De tudo isso, deduzimos que o

narrador, na verdade, escolhe o que contar e como contar ao leitor, para criar uma atmosfera

ambígua, de modo que o receptor sente-se pisando em falso e inseguro quanto á veracidade do

relato.

De seu lado, o narrador de ―Dinossauro Excelentíssimo‖ é heterodiegético17

, aquele

que não participa da história narrada, diferentemente do que ocorre em Sombras de Reis

Barbudos, em que a própria personagem é ativa participante da ação:

[...] um determinado notável da Comarca, ao ser acordado por outro notável para ir

assistir já, já, ao último suspiro do protegido, tirou-se dos seus lençóis e foi. Foi (em

roupão estremunhado e a dar esporar no chauffeur) mas ao chegar à cabeceira do

moribundo, eis, que, graças ao Altíssimo, descobriu, FALSO ALARME, que estava

diante doutro pobre, não do dele. Coçou o queixo mas, regras são regras, deu meia

volta e regressou aos lençóis pelo caminho da vinda. (DE, p. 135)

17

REIS & LOPES, 1988, p. 121 - 1. A expressão narrador heterodiegético, introduzida no domínio da

narratologia por Genette (1972: 251 et seqs.), designa uma particular relação narrativa: aquela em

que o narrador relata uma história à qual é estranho, uma vez que não integra nem integrou, como

personagem, o universo diegético em questão.

170

Esse narrador heterodiegético justifica-se pelo distanciamento necessário à crítica

satírica, uma vez que reconstrói de forma analítica o cenário ditatorial português. Assim, o

contador de história nomeado para revelar ao leitor os fatos que ocorreram há muito tempo

num Reino distante, alcança o distanciamento necessário para a análise crítica da situação

retratada. É um narrador que, por não participar dos fatos narrados, tenta atingir a

imparcialidade; porém, percebemos, por meio dos recursos da ironia, da paródia e da sátira

presentes em seu discurso, dos juízos de valor que emite em muitos momentos, a parcialidade

de sua posição e de sua intenção de criticar o governo autoritário do Imperador Dinossauro.

Teria tido infância? Mistério, neste ponto mesmo os cronistas mais cautelosos

tropeçam no aparo e vão estatelar-se na História, uns anos mais adiante. À falta de

melhor põem-se a escrever Saber e Autoridade, Dinossauro, copiando o lema

imperial gravado nas moedas, nas placas de rua e nos edifícios, e assim apuram a

caligrafia. (DE, p. 112)

Mesmo apoiando-se na história, as indagações do narrador promovem a reflexão

necessária à crítica almejada por ele e alcançada por meio do diálogo com o leitor. A conversa

com o interlocutor é estabelecida o tempo todo em ―Dinossauro Excelentíssimo‖,

principalmente por meio dos muitos questionamentos e da intromissão desse narrador.

Vejamos alguns exemplos da interferência desse narrador heterodiegético na narrativa:

―Criatura (porque o é), criatura à margem e mirrada, coisa pequena; bicho que se alimenta de

água e sal‖ (DE, pp. 129-130) / ―Mas as lotarias tinham mais que se dissesse porque, além de

serem uma receita de produzir felicidade (a mais sábia), eram também uma forma de despertar

a dignidade nos mexilhões adormecidos.‖ (DE, p. 136) / ―Chave que abre chave, discurso que

abre discurso, quando é que aquilo teria fim? Teve. O povo deixou de ouvir o Mestre, QUE

INGRATIDÃO! (DE, p. 166) / ―Até que um dia sentiu a saliva a incentivar-se perigosamente

na língua e antes que secasse de vez cortou o discurso. <<PRESCINDO>>, disse. (O que em

dê-erre elementar significava que se estava nas tintas).‖ (DE, p. 170)

O diálogo com o leitor é mantido pelo narrador por meio do uso do recurso do

questionamento constante, que faz com que o interlocutor, a todo o momento, também

formule respostas, mantendo-se, assim, atento ao texto. ―Quem mais faltava? Os pássaros,

faltavam os pássaros, esses mensageiros franciscanos que alegram a natureza e despertam a

171

inocência. Onde estavam eles, os pássaros? Resposta: no lugar que lhes competia ─ entre a

folhagem.‖ (DE, pp. 158-159). A obviedade da asserção evidencia a ironia do narrador.

Em outros dois momentos da narrativa, o narrador dirige-se especificamente ao leitor:

em ―A partir daqui, atenção escolas, atenção cartógrafos atenção navegantes, havia que

corrigir a população, que era de oitenta e três nativos, todos funcionários, o clima, menos

húmido que antigamente, e a divisão administrativa em dois distritos autônomos‖ (DE, pp.

157-158) / e no trecho ―Para quê igual? Pergunta a nossa curiosidade. Provavelmente para que

o povo ficasse com uma recordação digna do Chefe, é o que se depreende.‖ (DE, pp. 184-

185). No primeiro fragmento, existem vários interlocutores mencionados: escolas,

cartógrafos, navegantes, no segundo fragmento o narrador coloca-se como interlocutor, usa o

pronome ‗nossa‘ para referir-se à curiosidade do leitor e a sua própria, causando uma empatia

entre a figura do narrador e a do leitor, um artifício para envolver o leitor na história, levando-

o a adotar a perspectiva do narrador. Esse artifício é fundamental num texto de

posicionamento político e social, de crítica a uma situação ditatorial.

―Dinossauro Excelentíssimo‖ é uma fábula, possui uma dimensão moral ou

pedagógica por trás do enredo alegórico, e, como toda fábula, é um texto com altas doses de

oralidade em sua constituição. O narrador contador de história descreve os acontecimentos e

os pensamentos das personagens à medida em que eles vêm a sua mente; desta forma, como

narrador instituído para romper o silêncio e contar as atrocidades desse Imperador

Dinossauro, trava um diálogo com o leitor. Neste sentido o narrador heterodiegético de

―Dinossauro Excelentíssimo‖ é um mediador entre leitores e sociedade.

Ocorre também a figura do narratário especificado, pois o narrador, nomeado como

contador de história, narra os acontecimentos à filha Ritinha. Aparentemente a história está

contida num livro, porque ao final, o contador de história pede à filha que feche o livro. ―...

Ritinha, fecha o livro, é mais que tempo. Repara, há um riso acolá naquela romã em cima da

mesa. Verdade: estalou de sumo e de sol e agora parece que ri, não notas?‖ (DE, p. 196)

Em ambos os textos, portanto, ocorre a figura do narratário, recurso que denota o

desejo de que os fatos sejam perpetuados, ou melhor, de que as pessoas fiquem sabendo o que

aconteceu. Igualmente, nos dois textos são contadas histórias que já ocorreram, ou seja, é por

meio de flashbacks que os narradores organizam sua narrativa.

Outro recurso utilizado pelo narrador de ―Dinossauro Excelentíssimo‖ para envolver o

leitor é a prolepse, também utilizada em Sombras de Reis Barbudos; esse recurso permite que

172

sejam revelados, antecipadamente, acontecimentos que somente depois acontecerão na

narrativa, aguçando a curiosidade do leitor. Vejamos os exemplos do conto: ―Ora, estudo e

meditação era o que o padre encontrava à vista na maneira de ser da criança, não falando já

(como revelou anos depois) no vício de aprender palavras raras que ultimamente lhe tinha

notado. Um orador, era o que se estava ali a gerar.‖ (DE, pp. 115-116).

Ou ainda:

Conta-se, não há provas, conta-se apenas, que o rapazito que amanhã viria a ser

imperador não se mostrou muito satisfeito com a jornada, embora a tivesse escrita

no signo. Na sua infância sabedora conhecia todos os passos que lhe estavam

reservados mas havia qualquer coisa que o contrariava. O que era, o que não era, só

mais para diante se veio a descobrir: queria ir de burro, queixou-se ele e apenas mais

uma vez. (DE, p. 117)

Pelas antecipações do narrador ficamos sabendo da habilidade que o futuro Imperador

terá com as palavras, e de que aquele menino, cujo nascimento e batizado são descritos na

história, viria a tornar-se o Imperador Dinossauro opressor.

4.3 REVELANDO O DISCURSO ENCOBERTO

Pela análise dos dois textos pudemos constatar que ambos usam de um discurso

cifrado para atingir seu objetivo, que é a denúncia de uma situação opressora. Usando de

expedientes distintos, os autores codificaram seus discursos de forma que, ao sentido literal,

sobrepõem-se outros sentidos possíveis, ou seja, o leitor atento percebe, para além do sentido

denotativo, o sentido conotativo proporcionado por meio da ironia, da paródia, da sátira, da

intertextualidade e do fantástico.

Sabemos que tanto Cardoso Pires quanto J. J. Veiga, viveram ditaduras severas em

seus respectivos países, e que essa experiência dolorosa com o autoritarismo e com a injustiça

social fez com que surgisse o desejo da denúncia daquela forma horrenda de repressão, por

meio do instrumento de que dispunham: a literatura, recurso este não somente de denúncia

mas também de resistência diante daquela situação.

173

Cardoso Pires recriou a saga do Imperador Dinossauro por meio de uma fábula

satírica, num discurso permeado totalmente pela ironia em seu grau de afetividade máxima;

oscilando entre as ironias de oposição, atacante e agregadora, segundo a classificação cunhada

por Linda Hutcheon, criou ele a paródia da ditadura salazarista em Portugal.

Falaremos de dois casos de ironia que, julgamos, irão ilustrar bastante a fábula satírica

de Cardoso Pires: ironia à sabedoria dos mestres doutores e à burocracia do Reino do

Dinossauro.

Os mestres doutores habitavam a cidade do mesmo nome, que ficava, obviamente, nas

alturas. Neste lugar o futuro Imperador estudou para adquirir o manejo das palavras e o título

necessário ao cargo. O narrador assim descreve esses senhores renomados:

Vestiam paramentos negros e usavam estolas de grandes sacerdotes, mais ou menos.

Rostos rapados, cinzentos, olhos encovados, olhos de muita vigília, ali dormitavam

eles num friso de catedral como apóstolos da sabedoria. Cada qual empunhava o seu

diploma selado a ouro e púrpura e, à maneira de mitra, ... (DE, p. 127)

A descrição dos mestres doutores remete-nos a uma valorização do saber acadêmico e

da titulação, os doutores são tidos como seres superiores que habitam lugares elevados,

separados do restante dos mortais e fazem questão de que esta diferença seja marcada e

claramente percebida.

O narrador é irônico ao narrar a respeito desse templo da sabedoria, usa um recurso

linguístico conhecido, a onomatopeia ou imitação dos sons, para realizar seu intento, dizendo:

todos tinham sobre os joelhos o tal chapéu conhecido por capelo que só cabe na

cabeça dos muito eminentes e não na de qualquer dos colegiais que circulavam aos

pés deles, decorando a sebenta:

<<PATITI, PATITÁ... NOVES FORA, NADA.>>

Diga-me ainda que naquela casa havia muito latim pelos corredores, patiti, muitas

memórias pelas paredes, patitá, e que só se falava a pensar nos mortos, nossos

maiores,

AD GLORIAM DEI. (DE, p. 127)

174

As onomatopeias introduzidas no discurso pelo narrador quebram a solenidade e a

importância do que está sendo dito a respeito dos doutores. Diz-nos que tudo aquilo é uma

formalidade inútil.

O latim não poderia faltar, dá o toque arcaico, antiquado e tradicional próprio dos

doutores, assim como o costume de cultuar os mortos, hábito muito peculiar dos doutores, a

tendência acadêmica em valorizar os mestres falecidos e os ensinamentos deixados por eles

em livros seculares. Formavam, assim, uma sociedade fechada, ensimesmada e excludente.

O futuro Imperador viu na linguagem dos doutores uma forma de manipulação e diz o

narrador que sua dedicação foi incansável para tornar-se um deles: ―atirou-se aos livros para

aprender a maneira de pensar e de fazer que o havia de tornar doutor: seria uma língua

calculada e muito útil porque só a entenderiam os mestres e os defuntos, o quanto basta.‖ (DE,

p. 128)

Portanto, o que importava realmente no Reino do Dinossauro eram as aparências

sustentadas pelos títulos acadêmicos, e por um governo igualmente encoberto pela burocracia

que lhe conferia uma fachada de Reino que funcionava com destreza.

J. J. Veiga, por sua vez, menos ácido que seu contemporâneo português, recriou o

ambiente repressivo brasileiro pós-golpe militar utilizando de uma ironia com uma carga

afetiva menor; utilizou o realismo mágico para mostrar o absurdo da situação de opressão

depois da instalação de uma Companhia na cidade:

Quem tinha condições de viver fora estava largando tudo e fugindo. No princípio a

Companhia não se importou, talvez por achar que quanto menos gente houvesse na

cidade, mais fácil seria a fiscalização. Mamãe mesmo chegou a pensar em nos

mudarmos para outro lugar, porém mais como quem sonha, porque as dificuldades

eram muitas e tínhamos ainda o problema de meu pai. Depois a porta do sonho foi

fechada quando a Companhia cercou as estradas. Com isso ficamos isolados do

mundo, gente de fora não ia querer entrar sabendo que não podia sair. Nem carta

recebíamos porque os carteiros agora trabalhavam na fiscalização e ninguém era

bobo de ir buscar correspondência no correio: esperta como era a Companhia na

certa estava vigiando a agência; as cartas que ficassem lá mofando, coisas muito

mais importantes tínhamos perdido e estávamos perdendo todo dia. (SRB, p. 114)

A Companhia exercia seu controle sobre todos os habitantes da cidade, chegando ao

absurdo limite de fechar as estradas de acesso ao município e impedir toda comunicação com

o mundo exterior.

175

As ironias de Veiga, bem mais suaves que as de Cardoso Pires, são constituídas apenas

por incongruências que ratificam o inusitado das situações às quais as pessoas são submetidas;

na realidade, o escritor vai além de uma reflexão a respeito da situação política e social

brasileira, faz-nos ver como a vida por vezes parece inacreditável e como aceitamos

passivamente o absurdo. A esse respeito lemos: ―É curioso como certas coisas vão

acontecendo em volta da gente sem a gente perceber, e quando vê já estão aí firmes e antigas.

Depois mudam, do mesmo jeito manso.‖ (SRB, p. 7)

Observamos que o fantástico de Veiga nutre-se do insólito do cotidiano, são pequenos

fatos rotineiros da vida das pessoas que, de repente, apresentam-se como inabituais, anormais

mesmo, fora dos padrões aceitáveis pela realidade tal qual a conhecemos.

Ressaltamos aqui o veio característico do fantástico de J.J. Veiga, que segue a esteira

do realismo mágico latino-americano: por um lado, o fantástico invade a vida cotidiana dos

habitantes da cidade; por outro lado, a situação absurda oprime os habitantes, tolhendo sua

liberdade, adquirindo uma conotação política. Desta forma, a narrativa de Veiga desvela um

quadro subtendido, o da sociedade brasileira sob a ditadura militar, que, da mesma forma que

a Cia., oprimiu o povo brasileiro, inibindo, de forma repressora, toda e qualquer manifestação

de expressão, fosse artística, social, e, principalmente, política.

Nos dois textos analisados percebemos claramente o alvo da crítica e a figura do

opressor no âmbito da diegese; para além dela, a leitura paródica e satírica, aponta para os

alvos focados na projeção contextual. O Dinossauro é o alvo da crítica satírica de Cardoso

Pires e também o elemento opressor dentro da história; para além dela, há uma clara

referência ao ditador Salazar. Já no romance de J.J. Veiga, a Companhia é o alvo da crítica e

também o órgão opressor no espaço diegético, demonstrando o avanço científico e

tecnológico do mundo capitalista invadindo os espaços e destruindo a vida das pessoas; na

relação com o contexto, evoca alegoricamente a ditadura brasileira pós 64. A esse respeito

lemos:

Os personagens dessa ficção vivem num mundo dividido em dois grupos: de um

lado, o opressor; de outro lado, o oprimido. Um sistema assim formado poderia

expressar o caráter de confronto, passível de se estabelecer. Entretanto, o

questionamento nunca acontece com evidência. (CAMPEDELLI, 1982, p.

102)

176

É interessante observarmos também, que em ―Dinossauro Excelentíssimo‖ a face do

opressor é conhecida, ou seja, o poder está nas mãos de um Imperador ladrão, arcaico e

mentiroso, cujas feições sãos bem conhecidas pelo mexilhão oprimido. Já em Sombras de

Reis Barbudos a face do opressor é desconhecida, sabemos que se trata de uma companhia, de

uma instituição, mas é somente esse o conhecimento que se tem a respeito. Não sabemos que

tipo de atividade a Companhia desenvolve, quem é o dono. Sabe-se tão somente que a Cia.

manda em tudo e em todos. Portanto, a face do opressor em Sombras de Reis Barbudos está

envolta em muito mistério, temos a marca do desconhecido, do estranho, própria do realismo

mágico de Veiga.

Outro dado significativo nos dois textos é a presença da repressão. Em ―Dinossauro

Excelentíssimo‖, são os Dê-erres os responsáveis pelo cerceamento da vida das pessoas,

espécie de versão paródica da PIDE portuguesa. Em Sombras de Reis Barbudos, são os fiscais

da Companhia de Melhoramentos de Taitara, que controlam tudo e todos na cidade, também

se configurando como uma representação alegórica da polícia brasileira de repressão da

época, o famoso DOPS (Delegacia de Ordem Política e Social). Esses agentes repressivos

tolhem as pessoas, limitam suas ações e principalmente sua expressão, fazendo com que elas

fiquem apáticas e sem esperança.

O Dinossauro reprime o discurso das pessoas, pois com falta de palavras elas não

podem se articular e mudar a situação. A Companhia limita ao máximo a expressão da cidade

inteira de Taitara, por meio da falta de informação e pela restrição do espaço físico, com a

construção dos muros, assim dificultando a comunicação e a interação entre as pessoas,

provocando seu isolamento.

Interessante observar também os objetos criados pelo governo militar para garantir a

ordem: em ―Dinossauro Excelentíssimo‖ foi inventada a ‗máquina de torturar palavras‘ para

que o mexilhão ficasse cada vez mais pobre dessa matéria prima poderosa. A esse respeito

lemos:

A CÂMARA DE TORTURAR PALAVRAS onde o verbo e o substantivo, a cedilha

e restante população dos dicionários sofreriam tratamentos de último grau.

Seguindo o esquema (que deve andar algures pelos arquivos ou nalgum microfilme

em código-espia) a máquina infernal devia resumir-se a (DE, p. 143)

177

Cardoso Pires concretiza os mecanismos de repressão do governo português ao criar

em seu texto uma máquina que literalmente devora palavras e, simbolicamente, cerceia ideias

e opiniões.

Em Sombras de Reis Barbudos há relato de uma ‗máquina para falar a verdade‘, o que

não deixa de ser também um instrumento torturador, porque somente imposto aos suspeitos de

subversão: ―─ Será que vão passar a gente pela máquina de pegar mentiroso? ─ indagou

outro.‖ (SRB, p. 43)

Ainda em Sombras de Reis Barbudos há descrições dos mecanismos de tortura e

relatos das punições às pessoas que se mostrassem resistentes ao governo e às suas ordens,

numa clara referência à tortura imposta pela ditadura militar brasileira. Os castigos aplicados

pela Companhia são descritos pelo narrador de maneira cômica e até ridícula, uma situação

humilhante que deveria ser repelida pela população da cidade, mas que é aceita por todos

como normal, caracterizando, mais uma vez, o realismo mágico.

Em ―Dinossauro Excelentíssimo‖, o opressor manipula as palavras de forma a servir a

seus interesses; portanto, há muitas mentiras sustentadas pelo Imperador e por seu governo

para manter o povo sob seu controle. Em Sombras de Reis Barbudos, não é a mentira a vilã,

mas a falta de informação: os habitantes de Taitara não sabem absolutamente nada a respeito

da Cia., somente obedecem cegamente; então, a falta de coerência ocasionada pela escassez

de informações é o grande mal da história.

Nossa vida voltou à triste rotina de fitar muro, contornar muro, praguejar muro ─ e

esperar por algum acontecimento indefinido que nos tirasse desse molde. Os dias se

emendavam iguais, de tão iguais se confundiam e pareciam um só. Tínhamos caído

em um desvio onde a ideia de tempo não entrava, a vida era uma estrada comprida

sem margens nem marcos, estar aqui era o mesmo que estar ali, o hoje se confundia

com o ontem e o amanhã não existia nem em sonho; nós esperávamos qualquer

coisa, mas já nem sabíamos se era para adiante ou para trás. (SRB, pp. 51-52)

Diante das situações absurdas que se apresentam às pessoas, não há, em nenhum dos

dois livros estudados, uma reação efetiva dos oprimidos, apenas algumas isoladas e tímidas

manifestações de protesto em Sombras de Reis Barbudos, por parte do protagonista Lu e dos

seus amigos estudantes, que representam parodicamente a resistência estudantil brasileira da

época da ditadura militar. Uma vez que a população de Taitara aceitava tudo pacificamente,

178

sem contestar, a Companhia via-se no direito de invadir os espaços sociais e até pessoais dos

habitantes da cidade que assimilavam essa invasão cotidiana da Cia. de forma natural. Em

―Dinossauro Excelentíssimo‖, um receoso protesto é disfarçado nos ditados populares falados

pelos mexilhões, como forma de resistência ao governo do Imperador Dinossauro.

Ambos os textos abordam, ainda, a miséria material e psicológica dos oprimidos: em

―Dinossauro Excelentíssimo‖ o ambiente narrativo é mais debochado por conta da crítica

satírica; já em Sombras de Reis Barbudos, predomina o clima de pesadelo e a sensação de

imutabilidade de tudo. O que se nota, porém, é o aspecto devastador do elemento opressor nas

duas narrativas. Neste último lemos: ―Retidos em casa, ignorando o que se passava lá fora,

vivíamos praticamente como prisioneiros. Chegar à janela não adiantava muito porque só

víamos muros, e ainda corríamos o risco de cometer alguma infração nova.‖ (SRB, p. 66)

Tanto em Cardoso Pires quanto em Veiga, ocorrem situações inusitadas e absurdas,

seja porque um dinossauro ditador quer a qualquer custo devorar palavras ou uma Companhia

quer se fazer de Deus para oprimir uma cidade inteira; fato é que em ambos temos muitas

situações que ferem as regras da lógica e da razão. Em Sombras de Reis Barbudos elas são

mais numerosas por conta do viés fantástico, podemos citar as mais disparatadas como os

muros que de uma hora para outra cercaram as casas, os urubus como animais de estimação, a

catalogação até das ervas daninhas das hortas dos habitantes, a proibição de olhar para cima,

pessoas voando. Também citamos os mecanismos de coerção, tais como objetos de aparência

estranha, que pareciam saídos de um livro de ficção científica, que caiam do céu para inibir as

pessoas.

As esquisitices em ―Dinossauro Excelentíssimo‖ ficam por conta das excentricidades

do Dinossauro, da reprodução do ambiente físico, político e social de uma ilha, somente para

demonstrar o poderio político do Imperador (ilha fora do mapa); da existência de espelhos da

formosura que refletiam sempre a beleza, de um Imperador que na sua ânsia de enganar e

manipular o povo transformou-se em um dinossauro decrépito e secular.

Outro elemento comum decisivo na estrutura dos dois textos é a presença de elementos

alegóricos, mais especificamente de animais. Em ―Dinossauro Excelentíssimo‖ os animais

representam o opressor e o oprimido nas figuras do dinossauro e do mexilhão. Já em Sombras

de Reis Barbudos quem faz às vezes do opressor é uma instituição, a ―Companhia de

Melhoramentos de Taitara‖, mas há a presença significativa do animal, como os urubus que

invadem a cidade e que, ou por falta de opção dos moradores ou por um ato de rebeldia,

179

acabam sendo adotados como animais de estimação.

A escolha das figuras do dinossauro e do urubu se justifica porque, sendo animais

grotescos, prestam-se melhor aos objetivos satíricos. O dinossauro, como já analisamos, por

suas características pré-históricas e ferocidade, é a representação perfeita para o Imperador da

narrativa de Cardoso Pires; já o urubu, animal de carga semântica sinistra, contribuiu para a

instauração do insólito e para o clima de pesadelo da narrativa veiguiana.

4.4 DITADOS POPULARES

Outra aproximação entre os textos é o fato de que os dois autores utilizam os ditados

populares para construir seus discursos, numa forma de diálogo intertextual com a cultura

popular, pois talvez aqueles sejam a única voz genuinamente do povo em meio ao discurso

elitizado do opressor. Essas vozes se fazem ouvir por meio das máximas, numa eclosão da

sabedoria popular.

No caso de ―Dinossauro Excelentíssimo‖, são elas geralmente conselhos úteis aos

mexilhões que desejam sobreviver no Reino do Dinossauro; além disso, constituem-se

também num código excludente, porque somente o mexilhão consegue decifrá-lo, é

totalmente estranho para o Dinossauro ou para os Dê-erres, da mesma forma que os latinismos

ditos pelos opressores excluem o mexilhão, que não os compreende. Portanto, em

―Dinossauro Excelentíssimo‖, os ditados populares dos mexilhões, que em código cifrado

debocham do Reino, representam uma receosa forma de resistência ao poder despótico do

Dinossauro.

Como exemplo, citaremos um provérbio dito pelos Pedintes Voadores, quando a

palavra de ordem do Reino do Dinossauro era, exatamente, falar o ‗estilo Dinossauro‘. A

máxima era a seguinte: ―<<Burro que aprende línguas esquece o coice e perde o dono.>> Um

despropósito. O que vale é que vozes de pedintes não chegavam ao céu e os doutores já iam

muito alto para as poderem ouvir.‖ (DE, p. 164). Outra pérola da sabedoria popular dos

mexilhões. A palavra ‗pedinte‘ alude claramente a mendigo, aquele que precisa reivindicar o

pão, evidencia também a separação por classes sociais e o abismo linguístico que se instaurou

entre povo e governantes. O preconceito, por parte dos que detêm o poder, revela-se por meio

180

do comentário de que nem as preces dos mexilhões seriam ouvidas por Deus, porque

certamente não chegariam ao céu, mostrando a prepotência daqueles que mandavam.

O ditado popular foi modificado pelo narrador para servir aos interesses da história

contada, o fato dos governantes não conseguirem decifrar algo tão simples como um dito

popular, por si só já é irônico, uma vez que são tão instruídos. Poderia significar que tanta

instrução ao invés de clarear as ideias, pode até atrapalhar ou, quando a pessoa desvia-se de

suas origens ou características acaba perdendo-se, não sabendo quem é.

A ironia do provérbio, no entanto, concentra-se na sobreposição de contextos

semânticos, na polissemia do dito mobilizado, ―burro que aprende línguas esquece o coice e

perde o dono‖: encontramos algumas variações populares para esse ditado, como ―burro velho

não aprende línguas‖, ―burro velho não toma ensino‖ ―burro carregado de livros é doutor‖.

Em todas as máximas a palavra ‗burro‘ é tomada no sentido de alguém desprovido de

inteligência, incapaz de aprender, o que torna o ditado mais irônico, pois burro não deveria

aprender línguas, não é próprio de sua natureza, e quando o faz, acaba traindo seus princípios

e causando danos.

Portanto, o ditado popular torna-se uma maneira de protesto velada, de dizer à classe

dominante do Reino do Dinossauro, de forma disfarçada e irônica, que todo o esforço para

falar em ‗estilo Dinossauro‘ e submeter a linguagem àquela pátria solene, burocrática e

opressora, poderia trazer, a quem tentasse fazê-lo, consequências desastrosas e prejudiciais.

Já em Veiga, os ditados populares ratificam o conformismo das pessoas, ou seja, a

linguagem corrente expressa por meio deles denota a aceitação sem questionamento das

regras e dos valores sociais estabelecidos: ―[...] quando de repente a situação muda de água

para vinho.‖ (SRB, p. 8) / ―Ninguém sabe o dia de amanhã.‖ (SRB, p. 18) / ―[...] como meu

pai as vezes dizia, a minha também não era nenhum mar de rosas.‖ (SRB, p. 29) / ―[...] ─

tudo um dia passa, o bom e felizmente também o ruim [...]‖ (SRB, p. 112) Todos os exemplos

evidenciam como a população aceitava a situação insólita imposta pela Cia., de forma muito

natural, manifesta pela própria linguagem utilizada pelo habitantes de Taitara, ou seja, a

situação muda de repente, de água para vinho, mas ninguém se questiona ou toma uma

providência; a vida não estava nada boa, (uma mar de rosas) porém, nenhum habitante tomava

uma atitude para melhorá-la.

Como vemos, em Sombras de Reis Barbudos, as situações inusitadas são aceitas pelas

pessoas de forma natural, são assimiladas pelo cotidiano, tornam-se rotineiras. Entretanto, o

181

clima de opressão e pesadelo gera uma atmosfera estranha e denuncia a presença dessas

situações insólitas na vida cotidiana, o que acaba fazendo com que o leitor também se sinta

desconfortável.

Os ditados populares ainda são utilizados para indicar algumas proibições absurdas da

Cia., e a maioria deles é modificada, o que causa grande estranheza às personagens do livro;

esse discurso é usado pela Companhia para decretar suas proibições, e, proferidos por ela, os

ditados populares tornam-se estranhamente absurdos e inusitados, acabando por reforçar a

ideia do fantástico, ou melhor, da ambiguidade no seio do cotidiano. Por exemplo, um ditado

marcante em Sombras de Reis Barbudos foi a proibição de ‗tapar o sol com a peneira‘,

impedimento que beira a utopia porque inútil, acabando por ridicularizar a Cia.

Ainda discorrendo a respeito das expressões populares, porque permeiam toda a

narrativa de J. J. Veiga. Percebemos que elas conferem grande fluidez e oralidade ao texto,

cumprindo também sua função de convidar o leitor a refletir a respeito das atitudes das

personagens, de como suas ações enquadram-se no ambiente sócio-cultural do enredo de

Sombras de Reis Barbudos. Reproduzimos abaixo alguns exemplos: ―[...] muito amigos,

formavam uma espécie de corda-e-caçamba‖ (SRB, p. 8) / ―Mas o castigo veio a galope‖

(SRB, p. 49) / ―Você está cuspindo no prato em que come.‖ (SRB, p. 54) / ―Um mal que veio

para bem.‖ (SRB, p. 70) / ―quem estivesse pensando em derrubá-los podia tirar o cavalinho da

chuva‖ (SRB, p. 99) As falas acima são a representação da simplicidade do povo de Taitara, e

é nesse cotidiano pacato e simples que o fantástico de Veiga se instaura.

4.5 MANEIRAS DE DISTRAIR E ENGANAR O POVO

Também, nos dois textos, temos a presença de mecanismos que tentam distrair o povo,

evitando que as pessoas façam uma reflexão mais profunda sobre a realidade vivida ou

protestem contra a forma como o governo conduz sua pátria. Em ―Dinossauro

Excelentíssimo‖, eram as loterias e jogos de azar que ludibriavam o povo, deixando-o na

expectativa da felicidade futura; desta forma, esquecia-se do sofrimento presente. Em

Sombras de Reis Barbudos, é tarefa do mágico Uzk desviar a atenção da população de seus

problemas, dando-lhe um pouco de ânimo para aguentar mais cargas absurdas de proibições

182

insanas. Entretanto, neste caso, vimos que o mágico acaba assumindo uma outra função na

narrativa, qual seja a de promover a reflexão e o questionamento a respeito das mudanças.

Há também a questão do duplo: em ―Dinossauro Excelentíssimo‖, o duplo do

Imperador é sua estátua, réplica perfeita que o narrador chama de ‗irmão de bronze‘; em

Sombras de Reis Barbudos, o duplo está na figura do mágico Uzk, nos cartazes que propagam

a figura de um artista magnífico em contraposição ao mágico real fora dos palcos,

praticamente pessoas diferentes. De qualquer modo o conceito de duplicidade paira soberano

sobre textos que mobilizam recursos como a ironia, a paródia, a sátira, artifícios que se

pautam pela intertextualidade.

4.6 OUTROS RECURSOS DE LINGUAGEM

A personificação é uma característica presente tanto em ―Dinossauro Excelentíssimo‖

quanto em Sombras de Reis Barbudos. José Cardoso Pires dá vida às palavras, que recebem o

mesmo tratamento de uma pessoa, incluindo o direito à investigação e a tortura dos

vocábulos, levando à criação de uma máquina de torturas somente para eles: Câmara de

Torturar Palavras.

Como ―Dinossauro Excelentíssimo‖ é uma fábula, um tipo de narrativa que possibilita

um intertexto com os contos de fadas, não é de se estranhar que ocorra a prosopopéia, figura

de linguagem que dá vida a seres inanimados. Na fábula, não são apenas as palavras que são

personificadas, mas todas as categorias a elas associadas, ou seja, toda forma de comunicação

e expressão: pontuação, acentuação, letras, dicionários. Cardoso Pires, além de dar vida à

categoria da linguagem, por meio da personificação, utiliza também uma metáfora quando

compara as palavras a serpentes traiçoeiras e perigosas.

Evidentemente, estruturado como uma fábula, o conto de Cardoso Pires tem a

personificação ou antropomorfização como um recurso fundamental, lançando mão de

animais-personagens para retratar os antagonistas do enredo, o tirânico imperador Dinossauro,

de um lado, e os mexilhões, de outro, figurativizando o povo oprimido.

Dar alma a seres que não a possuem, fornecer-lhes movimentos próprios é uma

característica inerente também ao realismo mágico e J. J. Veiga usa as mágicas de UZK para

183

dar ‗anima‘, movimento, ao que na realidade comum não possui movimento. O mágico UZK

apresentou à população de Taitara a possibilidade de enxergar o mundo de outra forma, ou

seja, lançou a possibilidade da mudança na vida daquelas pessoas. E lançou esse desafio por

meio das mágicas, transformando o que parecia impossível: fez sapos e pedras voarem; ele

próprio voou pelo palco, já um prenúncio do voo que ocorreria com os habitantes da cidade.

Duas figuras de linguagem muito interessantes ocorrem nos textos: diminutivos e

eufemismos. Os diminutivos são formas afetivas e carinhosas que revelam também o estágio

de intimidade entre os interlocutores. No caso de Sombras de Reis Barbudos, que é onde eles

ocorrem, o uso desse recurso justifica-se por ser o narrador um pré-adolescente, praticamente

uma criança, portanto, sua linguagem acompanha um ritmo infantil.

Mas em determinados momentos do texto, quando usados por outras personagens da

narrativa, como exemplo por Horácio, o pai do narrador, os diminutivos tornam-se irônicos,

como tão bem exemplificam os episódios da apreensão das ‗lunetinhas‘ e dos ‗binoculinhos‘;

ou da referência irônica de Lu aos ‗probleminhas‘ miúdos do pai, em oposição aos problemas

maiores enfrentados pelo Tio Baltazar. Sem contar que em ‗probleminhas miúdos‘ temos um

pleonasmo que intensifica a noção de pequenez.

No ―Dinossauro Excelentíssimo‖ são os eufemismos que disfarçam o verdadeiro

sentido do texto, funcionando também como marcadores irônicos. Como uma das maiores

armas do Imperador Dinossauro era manipular as palavras do discurso a seu favor, o uso do

eufemismo era fundamental, pois a troca da palavra verdadeira pela palavra atenuante

disfarçava ou acabava com os problemas no Reino do Dinossauro. Assim, ―pobreza‖ foi

trocada por ―modéstia‖, ―mendigos‖ por ―inadaptados‖, ―impostos‖ por ―donativos‖, etc.

Assim, eufemismos e diminutivos reforçam a ironia, ao servir de disfarce do discurso.

4.7 INTERTEXTO BÍBLICO

Percebemos a presença da questão messiânica, em ambos os textos. Em ―Dinossauro

Excelentíssimo‖, o Imperador parece a versão paródica de Jesus, aproximação sugerida pela

intertextualidade com a Bíblia. A semelhança entre o Imperador Dinossauro e Jesus começa

desde a origem humilde, passa pela migração (fuga) com os pais para outro território, chegada

184

à Cidade dos Doutores (Templo de Jerusalém), referencia as estações da Via Crucis, até

chegar ao evento mais importante para o Cristianismo, que é a ressurreição de Cristo.

Mas o Imperador Dinossauro é um messias às avessas, porque vem para roubar e

destruir, portanto, a versão antípoda de Jesus, o salvador.

Em Sombras de Reis Barbudos, cabe a Baltazar a função messiânica, por sua relação

com os Reis Magos, a começar pela coincidência do nome. Baltazar fazia parte da comissão

de reis que, segundo a Bíblia, levou presentes para Jesus por ocasião de seu nascimento. No

livro analisado, tio Baltazar traz prosperidade para a pequena cidade de Taitara, implantando a

Companhia no município. Ao menos enquanto ele esteve à frente da Cia., a cidade prosperou

e desenvolveu-se economicamente, mas, com sua saída da empresa, aos poucos esta revelou

sua faceta dominadora e foi ocupando todos os espaços da cidade.

Concluímos que nos dois textos, o que veio para salvar acabou por destruir, ou seja, o

que, aparentemente, iria contribuir para o bem-estar e progresso da população, mostrou-se um

instrumento de opressão e repressão.

4.8 OS REINOS E AS CIDADES

Percebemos nas obras analisadas uma dicotomia muito significativa, ou seja, Cardoso

Pires contrapõe o Reino do Dinossauro ao reino do mexilhão, são reinos completamente

opostos em todos os sentidos, um abismo os separa:

O povo lembrava-se dele pelos retratos oficiais e pelos bustos de jardim ou, mais

dificilmente, pelas notas de banco que traziam a cena histórica do <<Imperador

Entre os Doutores, Saber & Autoridade, moeda-ouro>>. Poucos, raríssimos cidadãos

podiam entrar na torrezinha onde ele se tinha fechado a sete chaves, todas de

segredo e cada qual com o seu nome: (DE, p. 160)

Diz o texto que o Imperador Dinossauro foi-se distanciando do povo e terminou

completamente recluso, solitário, surdo e senil. O Reino do Dinossauro, que representa o

poder despótico, é composto pelos cidadãos mais abastados tais como os doutores, os Dê-

185

erres, caracterizados pela riqueza e poder; o reino dos mexilhõe, formado pelo povo oprimido,

encontra-se no extremo oposto, miserável e desamparado.

De seu lado, Veiga também estabelece uma dicotomia entre a Cia. e a cidade de

Taitara. A Cia. representa a modernidade e o progresso que invadem, sem pedir licença, a

pequena cidade do interior, criando a oposição: evolução versus pacata vida interiorana, sendo

a primeira vista negativamente, trazendo malefícios para a segunda, como constatamos pela

passagem do texto:

Então começou aquela romaria de gente de fora, uns homens muito prosas no vestir

e no falar. Eles se hospedaram no Hotel Síria e Líbano por conta do tio Baltazar,

tratavam a gente como se fôssemos índios ou matutos (meu pai vivia encrespando

com eles por causa disso) e reclamavam dos quartos, da comida, da poeira, como se

fossem reis acostumados com o bom e o melhor. (SRB, p. 10)

Fato é que os dois textos analisados têm um final que sugere uma continuidade e abre

um leque de significados para o leitor. Em Sombras de Reis Barbudos, muitas perguntas

ficam por responder, o próprio narrador busca ao final uma explicação para as pessoas

voarem, surgindo especulações sobre uma ―alucinação coletiva‖; do mesmo passo, a menção

à ―festa dos reis barbudos‖ fica pairando no ar, sem qualquer esclarecimento do narrador.

Em ―Dinossauro Excelentíssimo, de igual forma, há uma espécie de sugestão de que

nada vai mudar, de que virão outros Imperadores Dinossauros, e por isso mesmo, a história é

cíclica. E a história que se inicia como um conto de fadas, num reino distante, não tem o final

feliz próprio desse tipo de narrativa; ao contrário, termina de forma imprecisa e infeliz.

Enfim, vemos que nos caminhos ora diversos, ora semelhantes, os autores buscam

―disfarçar‖ seu discurso para burlar a censura, pautando-se por uma intenção análoga, qual

seja, a de denunciar e criticar os governos autoritários, bem como refletir sobre seus

mecanismos de opressão.

186

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em uma visão retrospectiva de nosso trabalho, lembramos que a escolha das narrativas

de José Cardoso Pires e José J. Veiga foi motivada pelo fato dos dois autores terem retratado

nos textos a vivência, em seus respectivos países, de um terrível período de opressão

ditatorial: a ditadura salazarista, em Portugal, e a ditadura militar oriunda do golpe de 1964,

no Brasil; em consequência, presenciaram e sentiram na pele os horrores desses regimes e

suas sequelas para a nação e seus cidadãos. Assim, foi esse o ponto de contato crucial que nos

levou a aproximar Cardoso Pires e Veiga para uma análise comparativa de seus textos,

respectivamente, o conto ―Dinossauro Excelentíssimo‖ e o romance Sombras de Reis

Barbudos.

Qual teria sido a intenção dos autores ao optarem pelo enfoque de regimes tirânicos?

Uma possível motivação seria o registro das atrocidades cometidas num momento histórico

deplorável, como um testemunho documental, como um alerta para as consciências e um

marco na memória dos cidadãos, na tentativa talvez de evitar a recorrência de situações

semelhantes. Evidentemente, enfoques como esse, em tempo real, pois lembramos que tanto o

conto português como o romance brasileiro foram publicados em plena vigência das ditaduras

que denunciavam, teriam que vir sob o manto do disfarce, em discursos repletos de

subtendidos, desvãos e ambiguidade, no afã de burlar a censura da época.

Justamente nessa questão focou-se nossa análise; tentamos realizar um exame

criterioso dos recursos estruturais dos discursos analisados, na tentativa de deslindar o

arcabouço que sustenta textos que primam pela dissimulação, pela linguagem encoberta, pelo

dizer não dizendo, pela mensagem às avessas. A análise evidenciou que para conseguir esse

intento, os autores privilegiaram a mobilização de expedientes discursivos como a

intertextualidade, a ironia, a paródia, a sátira, o maravilhoso, o fantástico. O rol de figuras

aparentemente díspares fundamenta-se num substrato comum, a busca da duplicidade, pois

todas transitam entre dois vetores ou universos paralelos: o dito e o não-dito, o hipertexto e o

hipotexto, a realidade e a supra-realidade, o verossímil e o inverossímil. Desse modo,

caminham ambas as narrativas numa fissura entre dois discursos, o aparente e o encoberto, o

inócuo e o crítico, o inocente e o perverso, escapando nas entrelinhas do olho obtuso e

pragmático do censor.

187

Evidentemente, como textos que trabalham com o duplo sentido irônico,

caracterizando-se pelos subtendidos e pelas lacunas, exercendo ao máximo o caráter lúdico do

fazer artístico, exigem, consequentemente, a participação ativa do receptor, sua capacidade de

decodificação dos vários estratos de leitura, bem como sua participação no preenchimento dos

‗vazios‘ do discurso. Como afirmamos ao longo da análise, apoiados em Hutcheon:

A natureza participativa da ironia envolve um ―conhecimento culturalmente

partilhado de regras, convenções e expectativas‖ (Pratt, 1977:86) interagindo num

contexto particular. Assim, deve existir uma comunidade discursiva ... o contexto

imediato e o próprio texto devem sinalizar ou provocar alguma noção de que a ironia

é possível. (HUTCHEON, 2000, p. 178)

Observamos, em relação aos elementos da narrativa, que tanto em ―Dinossauro

Excelentíssimo‖ quanto em Sombras de Reis Barbudos, há narradores nomeados e instituídos

para relatarem os fatos, como se cumprissem uma missão, qual seja, fazer conhecer ao leitor

todo o ocorrido naqueles tempos de tirania. A maneira como o fazem, entretanto, difere

significativamente. Assim, a fábula ácida de Cardoso Pires, pautada sobremaneira pela ironia

atacante, de intenção moralizante, distancia-se do discurso menos agressivo, mas não menos

crítico, de Veiga e seu realismo mágico.

Cardoso Pires, pendendo para a paródia satírica e para a fábula, criticou severamente

Salazar e seu governo autoritário, retratando de forma mais evidente o sofrimento e miséria do

povo português, na oposição metafórica entre um Dinossauro opressor e tiranizados

mexilhões.

Veiga, por sua vez, denuncia alegoricamente o governo brasileiro no autoritarismo da

Companhia, e, se parece menos contundente ao enveredar pelo fantástico e pelo maravilhoso,

em verdade promove um questionamento ainda mais amplo e abissal, levando a questionar as

circunstâncias do ser humano, a refletir na precariedade da sua contingência, fechado e

oprimido em sua experiência vital pelo insólito que há em todas as situações de um cotidiano

aparentemente corriqueiro.

Em ambos os textos ressalta o fato de que não importa a forma ou a face com que a

repressão e a censura se apresentem, se metamorfoseadas em um animal pré-histórico, ou

nomeadas por um neologismo (Dê-erre), ou exercidas por uma instituição (Cia.) ou praticadas

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por fiscais, de toda forma seu efeito é devastador sobre os oprimidos.

Com o olhar de hoje, em que vivemos um regime democrático, tanto no Brasil quanto

em Portugal, qual o sentido que os textos têm, assim fora de seu contexto original? De pronto,

parece-nos que constituem um alerta, como relatos históricos de uma época de ‗sombras‘

imposta por déspotas. Ressalvamos ainda que, segundo Johann Wolfgang Von Goethe (1749-

1832), escritor alemão, ―Escrever a história é um modo de livrar-se do passado.‖ (Revista

Língua Portuguesa, 2010, p.7). Ademais, são obras ficcionais; se de certo modo são engajadas

e refletem seu momento histórico, esse compromisso não invalida sua natureza e seu valor

literário.

De todo modo, esse tipo de literatura, narrativas que são metáforas e figurações da

resistência e da luta contra a opressão não são raras em países onde a situação social e política

é conturbada, onde os direitos dos cidadãos são desrespeitados e a liberdade política é, por

motivos diversos, restrita.

As considerações até aqui feitas, a modo de um derradeiro enfeixar de raios paralelos e

cruzados que tencionaram criar uma leitura de textos ambíguos, destacaram duas linhas

mestras: uma, a duplicidade na arquitetura textual; outra, o caráter crítico da mensagem.

Completam-se as duas no tom sério do texto, sob as aparências do humor e ludismo,

confluência que motiva o registro das considerações de Hutcheon sobre a seriedade da ironia,

principal diretriz da mensagem dupla:

Muitos dos adversários do pós-modernismo consideram a ironia como sendo

contrária à seriedade, mas isso é um equívoco e uma interpretação errônea sobre a

força crítica da dupla expressão. Conforme Umberto Eco disse a respeito de sua

própria metaficção historiográfica e de sua teorização semiótica, o ―jogo da ironia‖

está intrinsecamente envolvido na seriedade do objetivo e do tema. Na verdade,

talvez a ironia seja a única de podermos ser sérios nos dias de hoje. Em nosso

mundo não há inocência, ele dá a entender. Não podemos deixar de perceber os

discursos que precedem e contextualizam tudo aquilo que dizemos fazemos, e é por

meio da paródia irônica que indicamos nossa percepção sobre esse fato inevitável.

(HUTCHEON, 1985, p. 62)

Desta forma, como espécies de parábolas históricas, pendendo ou para sátira ou para o

fantástico, promovem os textos um repensar cuidadoso relativamente aos mecanismos, não

somente locais, mas universais, que fazem com que os sistemas opressivos se repitam no

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decorrer da história humana. Portanto, promovendo o questionamento sobre a conduta e as

motivações dos poderosos, suas aspirações megalômanas, enseja que não somente se

compreenda melhor os mecanismos e as tendências predominantes nos regimes autoritários e

opressores, como também alerta para as consequências e os perigos decorrentes de tal forma

de governo.

Finalmente, julgamos que sempre algo novo pode ser dito, sempre haverá um novo

ângulo para se perceber as coisas, sempre poderemos mudar o que parece eternamente igual,

mesmo que seja a História, já registrada e documentada nos livros. Nisto reside a grandeza do

escritor: sugerir novas comparações, sentidos, questionamentos e reflexões sobre o homem e

seu estar no mundo.

Encerramos com a consciência de que em nossa análise fizemos apenas uma leitura

possível, que muitos outros estratos significativos estão por ser desvendados, pois a natureza

da literatura é mesmo assim, polissêmica, permitindo-nos viajar em seu universo por

inúmeros caminhos, aventura cujo grande benefício é a própria viagem. Ou seja,

reconhecendo humildemente que todas e quaisquer conclusões são transitórias e mutáveis.

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