uma volta pela cabeça de antónio lobo antunes

Upload: nuno-ribeiro-margarido

Post on 29-Feb-2016

8 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Entrevista realizada a António Lobo Antunes

TRANSCRIPT

A gente quer andar mais pela rua. Ouvi-lo com o merceeiro, a cabeleireira, o flautista da GNR, a dona do quiosque, mas ele d-nos a volta. Conde de Redondo, Gomes Freire, Gonalves Crespo, Conde de Redondo. Quando damos por isso estamos outra vez em casa. A casa como a cabea dele: livros, livros, livros1. A casaEm que pensa um lisboeta quando lhe falam no Conde de Redondo? Em travestis. Na Judiciria. Numa daquelas ruas cheias de autocarros para cima e para baixo, com penses de passagem e montras de bairro. Uma rua onde no se passeia, a no ser quem l mora.

Agora mora l Antnio Lobo Antunes. Mudou-se h dois anos para uma casa que por fora Conde de Redondo e por dentro podia ser Nova Iorque ou Zurique. Prdio recuperado por um arquitecto, trio em pedra escura, ferro, madeira, luzes a acender conforme andamos. Um elevador silencioso e, quando a porta desliza, uma espcie de antecmara do templo: Antnio Lobo Antunes em alemo (a propsito de "Manual dos Inquisidores"), Antnio Lobo Antunes em francs ("Antnio Lobo Antunes et le livre total"), Antnio Lobo Antunes to novo (ele diria: "quando eu era bonito"), cada poster na sua moldura e por cima a assinatura manuscrita a preto na parede do patamar: Antnio Lobo Antunes.

A porta de casa abre-se e aqui est ele - quase novo, quase magro, metade do que estava antes do cancro, aquele olho azul vagueante.

Cumprimenta, faz entrar, comea a mostrar tudo.

- Gosto desta casa porque aberta para dentro.

O Conde de Redondo mesmo l fora, at se v uma nesga do prdio em frente, encardido, cheio de marquises, e ouve-se, porque a janela est aberta. Mas a casa parece estar fora da cidade, suspensa. Um casulo muito amplo e alto, forrado a livros, todo branco, cinza e ocre, luz coada, linhas rectas sem um gro de p - e nem uma conta da gua, um casaco numa cadeira, um mao de SG Gigante, uma beata, nada.

como se Antnio Lobo Antunes se tivesse mudado para aqui ontem com a roupa que traz no corpo: ele, algumas imagens emolduradas e muitos milhares de livros.

- Isto estava na rua - diz, pondo a mo numa formidvel mesa de carpinteiro, ainda com os armrios de ferramentas e o torno de ferro, que faz as vezes de aparador entre a sala e a cozinha.

E a cozinha, virgem, imaculada, espera um chefe que a inaugure, com a mesa de jantar ao fundo e uma estante cabeceira.

De resto, h livros ao longo de todas as paredes, livros de lombada partida, meticulosamente arrumados at beirinha em estantes claras e slidas, pouco profundas, sem espao de sobra para aquelas coisas que as pessoas acumulam em frente aos livros.

- Quem lhe fez estas estantes?

- Foi um amigo - atalha. Portanto, era uma pergunta indiscreta, quase como perguntar-lhe por Deus.

Eis a biblioteca de um leitor compulsivo, manaco. Enquanto os reprteres a vem de perto, ele recua de mos nos bolsos, mas aqui e ali avana para corrigir uma lombada.

- No gosto de ver as coisas fora do stio.

Que imaginavam? Caos e fumo? que nem fumo, apesar de Antnio Lobo Antunes ter sempre um cigarro aceso.

Mas quem j viu as folhas onde ele desenha as letras (ele gosta de dizer que desenha as letras), talvez reconhea esta disciplina de quem foi educado num mundo antigo (sem cotovelos em cima da mesa).

Est com 67 anos, o primognito Lobo Antunes, e as vezes que fintou a morte, desde a tropa em Angola.

No livro que acaba de publicar, "Que Cavalos So Aqueles Que Fazem Sombra no Mar", a morte a matria de toda uma famlia - uma filha que morre de cancro, um filho que tem "a doena, a doena, a doena", uma me que sempre foi gorda e de repente a roupa est-lhe larga, vai morrer s seis em ponto da tarde, como num poema de Lorca.

um livro com toiros ao fundo (Antnio Lobo Antunes escreve toiros, antiga).

Toiros, azinheiras e uma quinta a alternarem com a casa de Lisboa, o baldio de Lisboa onde uma filha compra droga de injectar, o parque de Lisboa onde um filho compra sexo com meninos, mas tudo isto mesmo l ao fundo, porque na verdade (como sabe quem o l) o livro no se passa em lado algum a no ser na cabea de quem o escreve.

E Antnio Lobo Antunes vai aparecendo mais uma vez com o seu prprio nome, invocado, descomposto por pai, me e filhos enquanto "aquele que escreve o livro".

E mais uma vez este ser "o ltimo livro", "o testamento", neste caso dividido nas etapas da corrida de toiros, at que o autor declara "finis laus deo", fim, graas a deus.

E quando o leitor v isto fica a saber que, claro, no o fim, pois se aquele livro no acabou com Antnio Lobo Antunes, Antnio Lobo Antunes comear outro, mais uma vez.

E assim foi.

No comeo de 2009, mal acabou de rever "Que Cavalos..." (ttulo, diz ele, de uma cano rural do sculo XIX), ps-se a escrever mais uma resma com letras desenhadas. Deu-lhe o camoniano (e ainda no definitivo) ttulo de "Sbolos Rios Que Vo". Est em fase de reviso.

L chegaremos, resma e poesia, ali uns degraus acima, numa espcie de pequena mezanine onde o autor agora trabalha.

C em baixo, junto janela, a primeira estante tem toda uma prateleira de Odisseias e Iladas em vrias tradues, depois uma prateleira de Bblias, Cores e livros sobre religio, e antes de passarmos terceira prateleira j Lobo Antunes se adianta pela sala.

- Quem este? - desafia, agarrando uma edio francesa, com o polegar firmemente em cima do nome do autor. S se v o ttulo: "Carnets". E a fotografia da capa mostra um homem jovem de chapu e feies finas. A gente pensa em Ezra Pound mas j passou o tempo:

- Sua ignorante - diz o autor, movendo o polegar.

Tchekov, muito novo, sem a cara redonda dos retratos posteriores.

A gente diz que est parecido com Ezra Pound, mas o autor acha que est parecido com Johnny Depp - o que vai dar ao mesmo porque Ezra Pound tambm parecido com Johnny Depp (ou vice-versa). E entretanto o autor j foi buscar um lbum de fotografias de Tchekov para mostrar como era bonito em todas as fases.

No comum nos heterossexuais da sua gerao, mas quando Antnio Lobo Antunes fala de um homem bonito diz que ele bonito, de Luandino Vieira a Le Clzio, e muitas vezes comea mesmo por a.

Talvez por tambm isso no lhe ter faltado - ser bonito.

Mas sigamo-lo, porque ainda faltam as fotografias antes de sairmos para o Conde de Redondo, tal como lhe foi proposto.

- A estante dos favoritos aquela - resume.

A saber: uma prateleira de Tolstois; outra de Joyces e Pounds; outra de Shakespeares e Dantes; outra com Gogol, Tchekov, Lewis Carroll, William Gaddis; outra com Conrad...

- Isto uma primeira edio que fanei em Chicago.

... e Salinger; ou ainda: Rabelais, Cervantes, Eugene O'Neill, Stendhal, Dostoievski, Flaubert.

- No so todos os que gosto, faltam alguns. As Brnts, a George Eliot esto no corredor...

Contorna os sofs.

- Isto do Ikea - gesto largo. - Mas tambm tenho Philippe Starck.

Sobe os degraus para a mezanine e aponta uma pequena mesa quadrada com quatro cadeiras.

- No parece mas confortvel, sente-se l.

A gente senta-se. Muito confortvel, com a vantagem - qual Philippe Starck - de termos mo mil pginas de letras redondas, infantis. Papel, caneta, um cinzeiro-espelho de to limpo. E na parede mesmo direita, s poesia.

Antnio Lobo Antunes espeta o dedo num Auden.

- Este tipo um grande poeta. Deste tambm gosto muito [William Carlos Williams]. Esta uma primeira edio [Lorca, obras completas]. Tem isto? Vale mesmo a pena [Blake, obras completas]. At aqui tenho poetas de segunda como o Neruda.

Da mezanine vai-se para os quartos, passando pela estante dos ingleses: Jane Austen, Virginia Woolf, muitos Graham Greene muito lidos. Em frente, h ensaios; dobrando a esquina, policiais - edies de bolso amolgadas.

- Isto s uma escolha - acentua ele, explicando que muitos caixotes no chegaram a vir.

Depois, o primeiro quarto tem centenas de livros e um nico autor: Antnio Lobo Antunes.

- So as tradues - Uma parede inteira de lnguas e alfabetos, de todos os tamanhos e gneros. H capas feitas sobretudo com letras, e capas como a da edio americana de "Que Farei Quando Tudo Arde", com uma boca de "pin up" entreaberta (uma das favoritas do autor, at est em poster na sala).

E finalmente Antnio Lobo Antunes entra no seu prprio quarto "en suite", onde tambm h estantes altas e baixas. As baixas mantm-se vazias, espera. Nas altas acham-se os autores portugueses, desde as crnicas medievais.

A cama est desfeita.

- Peo desculpa.

Mas a prova da existncia do homem. E em frente cama, a grande luz de Marilyn, a rir de perfil.

- Uma publicidade para a Chanel - fanada algures, conta ele.

Linda.

2. A ruaE samos, sim, samos - como diria Cesariny.

No elevador, Antnio Lobo Antunes fala no estado ideal para escrever (entre sono e acordar, ou quando se est cansado), e a gente lembra-se de ele j ter falado disto.

Mas o problema com quem deu milhares de entrevistas, e acaba agora de ver sair um livro com mais algumas ("Uma Longa Viagem com Antnio Lobo Antunes", de Joo Cu e Silva), que j a gente j no sabe quando algo novo. Provavelmente, nem ele.

Pra no trio para abrir o correio. H uma revista estrangeira.

- Quer? - oferece o autor. - Para saber se deito fora.

Quando a porta da rua se abre, como levar um estalo. C est a cidade, autocarros a deslocarem massas de ar. Mas dobrando a esquina, uma aldeia.

- Gosto deste bairro, porque so merceariazinhas, padariazinhas, lojinhas, parece que estou em Benfica outra vez. Costumo sair para comer aqui volta, e depois voltar a casa um sentimento de paz. Eu trabalhava na Gonalves Crespo, havia um letreiro aqui a dizer-se "Vende-se" e vim ver com a Tereza.

Tereza Coelho, sua editora na Dom Quixote. Morreu em Janeiro.

- Faz-me muita falta, a Tereza. Era uma ptima leitora. A divisa dela era a dos marines americanos: "Se fosse fcil no era para ns." E tinha a felicidade de ter um marido [Rui Cardoso Martins] que um homem nico. Tenho a maior admirao pelo Rui. um homem que eu beijo.

Viramos para a Gomes Freire.

Raparigas indianas no quiosque onde Antnio Lobo Antunes compra sempre, e hoje tambm.

- Ol, bom dia, doutor - diz a vendedora.

Ele sorri-lhe, de mos no mar, nem uma palavra, ela volta costas e sai um pacote de 10 maos de SG Gigante.

- A gente j se entende sem falar.

Jornais e revistas, npias.

Voltamos direita e ele aponta uns azulejos por cima de uma porta.

- Olhe, este painel encantava-me. Ainda pensei vir aqui fanar isto noite, e depois descobri que havia muitos iguais.

um Cames retratado em 1907, com a evocao: "E vs, tgides minhas..." Agora, do outro lado da rua tem um Club Welness.

Entretanto Lobo Antunes est a falar mal de Musil.

- No gosto. Tal como h livros maus de que gosto, h livros bons de que no gosto. Musil, Thomas Mann...

Thomas Mann tambm?

- Tirando a "Montanha Mgica" e passagens do "Doutor Fausto", chateia-me de morte.

Para onde estamos a ir?

- O carteiro deixa-me correio numa merceariazinha.

A casa nova tem s dois anos, mas a ligao a este bairro antiga. Antnio Lobo Antunes costumava escrever na garagem-atelier de um parente, ali adiante, e mercearia ao lado que agora vai ver do correio, e tratando o merceeiro pelo nome:

- A sua senhora no est? Ento d-lhe os bons dias por mim. Quando que vai doutora? Olhe que eu na quarta-feira venho c buscar os iogurtes.

Para o pequeno-almoo, a nica refeio que toma em casa.

E, chave na mo, abre a garagem-atelier, a esta hora deserta.

- Venho aqui uma vez por semana - explica, a apanhar envelopes do cho.

Cada bairro um xadrez, com os seus reis, e disso que Antnio Lobo Antunes agora fala, da malandragem. A gente sabe como ele gostava de ter sido o Cisco Kid, e j viu o que ele leu de policiais.

Entretanto, o sol, aquece as nossas costas, quase meio-dia, e sobre folhas cadas que caminhamos, aquele leve crepitar na calada. Claro que este sol, estas folhas, estas rvores j entraram em algum livro de Antnio Lobo Antunes, porque os livros dele so debulhadoras.

Mas se lhe perguntamos:

- Nunca toma notas?

Ele responde:

- No. Porque no escrevo sobre nada.

E no podemos dizer que mentira. No escreve sobre nada porque escreve sobre tudo. No toma notas porque tem aquela memria monstruosa. Agora, por exemplo, est a citar Guilherme de Aquitnia quando aparece uma jovem loura a saud-lo.

- Ol, est bom?

Ele apresenta:

- a dona daquele cabeleireiro ali.

Cortou-lhe o cabelo no outro dia. Agora s daqui a dois meses.

- Nem quero outra pessoa j.

O charme.

Quanto a populares, as coisas esto a correr-lhe bem. Dizemos-lhe mais ou menos isso e ele:

- Deste algeroz para cima sou famoso.

E assim medido o horizonte ficamos com uma daquelas penses de passagem vista.

- Aquilo a taxmetro. H vrias.

Travestis?

- Os travestis so mais para l - aponta para baixo.

E volta aos populares:

- ptimo. Uma pessoa no tem guarda-chuva e eles emprestam.

Claro que depois, alm do algeroz, h milhares de pessoas hipnotizadas, por exemplo, a festa Literria de Paraty, Brasil.

- Diziam "Fica, fica, fica". Tive de sair de l com segurana e polcia.

A propsito, como que depois foram parar aos jornais as rosas que levou brasileira Raquel Cristina dos Santos, quando ela aterrou no aeroporto de Lisboa, alegadamente para se casarem, - as rosas e ele prprio, a receb-la?

- Saiu uma notcia no "Globo", na vspera.

E adiante, adiante. No quer falar mais disso.

Nem de propsito, um cavalheiro faz agora o jeito de o cumprimentar a meio da calada.

- Bom dia, stor - palmadinha no brao.

- Este senhor toca flauta, artista - explica Antnio Lobo Antunes.

- J fui - retorque o cavalheiro, modesto.

- Estava esta senhora a perguntar se as pessoas no bairro sabem quem eu sou. O que que fao?

- Escreve.

- Ah, achava que no sabia.

Palmadinha no brao.

O cavalheiro prossegue em sentido contrrio.

- Era flautista da banda da Guarda Republicana - remata o autor.

E depois conta que torceu o nariz a jantar com Kundera, ainda h dias, porque ia ser uma chatice.

Tambm torce o nariz a que lhe falem de personagens, a propsito deste ltimo livro (de qualquer um).

- So smbolos de verdades mais profundas, no so pessoas. O que interessa so as palavras. Se eu quisesse contar histrias, contava.

por isso, diz, que a crtica portuguesa o aborrece.

- Ainda muito cedo. No nada disto que eu queria, a maneira como as pessoas falam dos livros.

A gente, por exemplo, fala-lhe na famlia deste ltimo livro e ele vai s urtigas.

- Famlias! Todos os livros so famlias. Olhe o Tchekov. No se passa nada mas ele consegue dar as emoes todas. uma viagem ao interior de ns mesmos. O que so "As Meninas" do Velzquez? As pessoas pensam que so as infantas. Nada disso. Um bom leitor aquele que pergunta: onde est o livro? O livro s comea quando a gente acaba o livro.

E de repente, parando a olhar o passeio, diante da Clnica de Todos os Santos, conta a histria de um tio que esteve ali internado.

- Era um homem de uma elegncia. Eu vinha visit-lo e o pijama dele estava mais engomado que a minha roupa. E nunca era grosseiro, reles.

Estamos a chegar rua do Conde de Redondo, um sol quase de Vero, j Outubro passou de meio.

A propsito, era em Frana que Antnio Lobo Antunes estava quando o Nobel foi anunciado. Conhecia Herta Mller?

- No, e os franceses tambm no.

Mas um dos prmios que ganhou e gostou de ganhar foi o Prmio Jerusalm, que s dado de dois em dois anos, e tem vencedores como Borges. Ganhar implica ir l, Lobo Antunes foi. E ento?

- Nunca andei sozinho. No consegui ir ao bairro rabe. De cada vez que eu ia a algum lado, era logo um problema de segurana.

No quer falar mais disto. Em geral, no quer falar do mundo. Comeamos a falar-lhe do mundo e quando damos por ele est a falar de livros.

Ok.

Este livro termina com graas a Deus, e numa das suas ltimas crnicas diz que Deus que lhe guia a mo.

- Acho que sim. uma relao muito ntima.

Responde com uma histria:

- J perto do fim do meu pai, que era patologista e nunca falou de Deus, perguntei-lhe se acreditava em Deus, o que uma pergunta muito ntima. E ele respondeu: "O nada no existe na biologia."

Isto, ainda vamos ns na Gonalves Crespo.

- Est a ver? Um poeta to pequeno para uma rua to grande.

E depois de uma pausa:

- To pequeno, injusto.

Uma mulher pe moedas no parqumetro, outras falam debaixo de uma rvore:

- ... tu.

- Tu...

- ... tu...

Podia ser um livro de Antnio Lobo Antunes. Ele desenhava logo as letras que faltam.

A gente a pensar nisto e ele entretanto a pensar no que pensa - nos livros que escreve.

- No sei de onde que aquilo vem. Sei que est bem por uma espcie de exaltao interior que s vezes chega s lgrimas.

Invoca Beethoven:

- A Terceira Sinfonia... pam pam papapa. A melhor crtica que teve foi dizerem: isto no msica, rudo.

- " p, pra l! - grita uma mulher de saia justa ao telemvel.

Caricas Sagres espalmadas na calada, desce um rapaz com um barril de Super Bock. Cheira a fritos. A croquetes fritos.

Lobo Antunes fala do pianista Alfred Brendel e dos seus favoritos.

- No so pianistas sinistros como o Glenn Gould.

O Glenn Gould sinistro?

E assim, sem darmos por isso, j Antnio Lobo Antunes est a subir a caminho de casa, e com uma boa razo alm dos livros. A filha Joana est quase a ter um beb. Vai ser outra vez av.

- esquisito, no ? Ainda agora nasci.

3. A cabeaA porta da rua fecha-se e silncio. Parado no trio, Antnio Lobo Antunes reflecte sobre aquele assunto, o Nobel.

- Toda a gente sabe quem deve ganhar o prmio da Literatura e o prmio da Paz...

No lhe vamos perguntar pelo Obama. No lhe vamos perguntar.

- ... mas nunca deram o prmio ao Gandhi! No deram ao Tolstoi!

Tenta repetir como um russo:

- Tlsti.

E depois:

- Dasssetaivski.

Pausa.

- Ando a aprender russo sozinho.

Subimos no elevador e c est a bela casa, a pairar.

- Depois, noite, os livros bons no dormem. Ficam a olhar para ns. Olhe, "Os Irmos Karamazov" ficam a olhar para si toda a noite. Os livros maus que dormem. Por isso que no tenho muita literatura portuguesa contempornea.

Carto amarelo. Livre. Livre para os que no jogam em casa.

Mas ele segue para penalti, atira-se ao resto do mundo:

- Diga-me cinco grandes escritores. No encontra.

preciso chate-lo:

- Em Portugal?

Pra fulminado.

- Em Portugal?! Est a brincar comigo.

Senta-se num dos sofs Ikea, mas de caminho acerta um dos livrinhos que tem em cima da mesa de apoio, porque estava um milmetro mais para a esquerda.

uma coleco de novelas erticas espanholas "retro".

O anfitrio puxa de um SG. De volta a casa, deixou de ter pressa. Quer conversar. E isto:

- Se o Steiner no tem razo ao atacar o Gaddis, e eu acho que no tem, se calhar tambm est enganado a meu respeito, quando diz que sou o melhor escritor do mundo.

Pausa. O olhar vagueia.

- Olhe, o seu amigo Pound est ali.

Cinco anos. Cisco Kid.

E de volta aos pensadores:

- Sabe de onde vm os intelectuais? Do caso Dreyfus.

O famoso judeu preso por espionagem que dividiu a Europa em debates apaixonados no incio do sculo XX. Um dos seus mais clebres defensores foi mile Zola, em "J'Accuse". Dreyfus um smbolo do ponto a que chegou o anti-semitismo nessa poca.

- Um grupo de mil pessoas que assinaram por Dreyfus definiram-se como intelectuais por oposio a quem trabalhava com as mos. Depois a palavra foi-se desvirtuando.

Por causa de Dreyfus, a gente puxa Proust (o caso atravessa "Em Busca do Tempo Perdido"), mas Lobo Antunes puxa para outro lado e vamos dar poesia.

- Leio mais poesia agora. Aprende-se mais.

Portugueses?

- No necessariamente. Mas acho que se alguma coisa temos de bom, pessoas vivas e a escrever, a poesia.

Tem-lo dito, e repetido.

Poetas?

- Vasco Graa Moura. Antnio Franco Alexandre. Manuel Antnio Pina. Jos Tolentino Mendona.

E apaga o cigarro dentro do mao. Eis como os cinzeiros desta casa se mantm.

E mulheres poetas?

Pensa.

- Rosala de Castro. Emily Bront.

Portuguesas?

Pensa.

- Temos o Antnio Nobre, apesar de tudo - sorri Cisco Kid. - O "S" um grande livro.

Desata a recitar:

- " minha terra cheia de sol, campanrios.

A propsito ou no, este "Sbolos Rios" tem o qu em fundo, que cenrio?

- Uma vila que no nomeada e um hospital de Lisboa. Mas isso no cenrio, plateia. L est ela com o cenrio. como perguntarem: de que que trata o teu livro? Resposta de D. Francisco Manuel de Melo: trata do que vai escrito nele.

Mais um SG, e muda para Hermann Broch.

- "A Morte de Virglio" espantoso. Aquela chegada dos barcos...

De caminho, diz que no gosta de Cervantes.

- Mas um dia abri ao acaso e encontrei isto: no podemos fazer nada contra a vontade do cu, sobretudo se est a chover. Passei logo a gostar. O Quixote tem imensos truques, como quando o prprio Cervantes aparece como personagem.

Neste ponto, o sol bate nas janelas em frente, reflectindo a rua, e a gente tenta mais uma vez pux-lo para fora, falar do mundo. Mas ele no ouve, continua a falar.

- ... dizia-se que o Virglio escrevia como as ursas a parir. O parto difcil e elas levam que tempos a lamber o beb. O escritor deve trabalhar 10 horas por dia, dizia Horcio, duas para escrever, oito para corrigir.

Quando um autocarro trava l fora, Antnio Lobo Antunes est a falar de Ovdio.

- ...custa-me a leveza com que se aborda estas coisas. Um livro tem de ser lido de joelhos. O Proust, por exemplo. O homem leva uma vida inteira a fazer aquilo, depois um caramelo l e debita sobre aquilo.

Podia viver isolado no campo, ou precisa da cidade, deste bairro, de sair rua, de ver o merceeiro e a cabeleireira?

- No preciso. Dei a voltinha por causa de si. No com essas pessoas que escrevo.

Ao mesmo tempo tambm no quer estar com "os que escrevem".

- Apetece-me l. J no esto c o Z [Cardoso Pires], o Eugnio. Sobra o Eduardo [Loureno]. O Eduardo escreveu sobre mim talvez das coisas mais inteligentes em portugus. Tenho ali uma fotografia dos dois em que parecemos um casal de namorados.

E o que que anda a ler?

- Tenho na mesa de cabeceira a biografia do Garca Marquz. A est um escritor que gosto de ler mas detestaria ter escrito aqueles livros - tal como o Simenon, o Greene.

E Garca Marquz d passagem a isto:

- No h uma cena de sexo num livro meu.

O que verdade, e volta a ser verdade neste ltimo livro. Antnio Lobo Antunes consegue pr um pedfilo a falar e em tudo aquilo h sempre um pudor profundo.

- No por uma questo de pudor. que no necessrio.

J a morte, atrs dela que andam sempre as palavras.

- O que se sente com o cancro um vazio imenso. Dizem que estou curado. Olhe, a aprendi muita coisa sobre a vida. E que a maior parte das pessoas so melhores do que eu.

Fala na dignidade das pessoas com quem se cruzou na quimioterapia.

- Talvez a grande funo da arte seja dignificar o homem, e talvez seja o triunfo sobre o sofrimento, a dor, a morte. Em face disto... Agora estou a ficar comovido e uma gaita...

Pra. Olha em volta.

- ... no me venha falar de personagens. E como todos ns sofremos tanto, e como ns estamos to sozinhos. No fundo o que a fama? Uma soma de equvocos volta de um nome. Quem o Antnio Lobo Antunes? Uma soma de equvocos. E depois deixa de ser um nome, uma pessoa, para ser uma marca registada.

Acerta os livros da coleco de novelas erticas, que na verdade no se tinham mexido. Acende mais um SG.

- Tive tudo. Deram-me tudo. Nasci numa famlia boa, com imensa beleza fsica. Nasci inteligente. Quantos prmios ganhei importantes? Mais de 20, fora os que recusei. Ainda agora, disseram-me que tinha ganho o grande Prmio do Canad e por momentos pensei que era um piloto de Frmula 1.

http://ipsilon.publico.pt/livros/texto.aspx?id=243439