uma tribo vai ao mercado yawanawa

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1 UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS DEPARTAMENTO DE DESENVOLVIMENTO, AGRICULTURA E SOCIEDADE CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO, AGRICULTURA E SOCIEDADE Uma tribo vai ao Mercado - Os Yawanawá: sujeitos ou objetos do processo? May Waddington Telles Ribeiro Sob Orientação do Professor José Augusto Pádua Co-orientação da Professora Maria José Carneiro 2005 UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS DEPARTAMENTO DE DESENVOLVIMENTO, AGRICULTURA E SOCIEDADE CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO, AGRICULTURA E SOCIEDADE

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    UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E SOCIAIS DEPARTAMENTO DE DESENVOLVIMENTO, AGRICULTURA E SOCIEDADE CURSO DE PS-GRADUAO EM DESENVOLVIMENTO, AGRICULTURA E SOCIEDADE

    Uma tribo vai ao Mercado - Os Yawanaw: sujeitos ou objetos do processo?

    May Waddington Telles Ribeiro Sob Orientao do Professor Jos Augusto Pdua Co-orientao da Professora Maria Jos Carneiro 2005 UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E SOCIAIS DEPARTAMENTO DE DESENVOLVIMENTO, AGRICULTURA E SOCIEDADE CURSO DE PS-GRADUAO EM DESENVOLVIMENTO, AGRICULTURA E SOCIEDADE

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    Uma tribo vai ao Mercado - Os Yawanaw: sujeitos ou objetos do processo?

    May Waddington Telles Ribeiro Sob Orientao do Professor Jos Augusto Pdua Co-orientao da Professora Maria Jos Carneiro Tese submetida como requisito para a obteno do grau de Doutor em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade rea de Concentrao em Sociedade e Agricultura

    Seropdica, Rio de Janeiro Maio de 2005

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    Dedicatria

    Dedico essa tese a quem dedico todo o esforo que fao nessa vida: meus filhos, a quem o que posso deixar aquilo que eu conseguir ser. Pela pa-cincia que tiveram com minhas longas ausncias e pelo orgulho que me inspiram, essa Tese deles, como eu sou deles. Em especial, minha menina, Liv, de quem recebo todo o carinho que me embala, e que cuidou de mim nos momentos mais difceis, onde a dor e a doena me assusta-vam.

    Biografia da autora: May Waddington se formou em Cincias Sociais pelo IFHCS, da UFRJ. autora de do-cumentrios em vdeo, como As Farmcias Vivas do Professor Matos e Roa Crua, As roas Orgncias das Quebradeiras de Coco do Maranho. Atualmente finaliza um longa metragem sobre a criao de abelhas no serto do Paiu (Mel da Terr) e An-jos, sobre o trabalho de santeiros de Teresina com crianas e adolescentes pobres.

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    Agradecimentos Essa tese foi o resultado da experincia mais transformadora e enriquecedora que tive, fazen-

    do de mim algum que anda pela Terra com a certeza de ter recebido o quinho que justifica toda uma vida. Eu no poderia ter conhecido os encantos da floresta, sobrevoado o mar de copas, andado longas horas sob as mesmas ou descido de canoa o belo rio Gregrio, no fossem o desafio lanado por Darrell Posey, a confiana que me foi depositada por Horst Rechelbacher e o carinho do cacique Biraci Brasil e de todo o seu povo. Com os Yawanaw eu brinquei, briguei, viajei, trabalhei, sorri, chorei, comi, me banhei e, acima de tudo, tive meus conceitos virados de ponta cabea, conheci a luz da Rainha da Floresta e compreendi algumas das coisas que realmente importam nessa vida. Mesmo que eu esteja afastada, a tribo Yawanaw mora em mim e s vezes um simples raio de sol me traz de volta o sorriso das comadres Ftima, Marizete e Aldelcia, a lealdade do compadre Missi, a risada das crianas da aldeia, a voz dos pajzinhos Yawarani e Tat a cantarem noite adentro.

    Dos amigos que fiz no Acre, Marcelo Piedrafita e Mariana Pantoja ficaro para sempre no meu corao e na minha memria mesmo que a vida tenha nos afastado, enquanto que a quase filha, Ingrid Weber, se sumir eu busco onde estiver! No Acre tambm, Mauro Almeida me desafiou a transformar essa experincia de vida em escrita. Acredito que ele nem saiba o quanto o fato de ter me levado a srio me fez levar esse projeto a cabo. Em Braslia, David Hathaway, Gisela Alencar, Paulo Peret e Nilo Melo acreditaram em mim e me alimentaram com longas conversas.

    Ao voltar para a academia, tive alguns dos encontros mais ricos que poderia ter com professores como Jos Augusto Pdua, meu orientador, a me abrir portas e me cobrar clareza e limpeza de esprito, e Maria Jos Carneiro a construir a pouca segurana que tenho nessa esfera de atividade. Agradeo, tambm, a Marco Antnio Melo por ter me levado s lgrimas tantas vezes, logo no incio dessa caminhada. Espero ter conseguido seguir alguns dos conselhos que recebi da finada Ana Galano e ter adquirido algum do capricho com o qual fui apresentada antropologia por Neide Esterci. Deixo aqui o meu agradecimento ao economista Nelson Delgado pelo respeito, capacidade de ouvir e honestidade na forma de discutir, com o qual tratou a mim e aos colegas dos cursos de Desenvolvimento Local. As amigas Fernanda Fonseca, Flaviane Canavesi, Pierina German e Juliana Loureiro foram blsamos na vida de estudante que espero poder ter por perto para sempre.

    No posso deixar de honrar C.W.Mills que me ensinou que o texto deve ter voz e que so-mos artesos a dar vida matria ao lidar com dados, e a Arturo Escobar cuja criatividade foi to inspiradora quanto a msica que me acompanha sempre, a qual tambm agradeo!

    Trs monumentos que conheci foram exemplos de tica, trabalho e amor pelo conheci-mento: Dra Nise da Silveira, Professor Francisco de Abreu Matos, e o operrio do cinema, Sannin Cherques. A eles agradeo por terem sido pais, avs e amigos e por me mostrarem para que serve o saber.

    No meu trabalho cotidiano, tive sempre a colaborao de pessoas pacientes com a minha pressa. Entre elas, a principal e primeira Eunice Maria que me acompanha h vinte e quatro anos, sendo me minha e de meus filhos tambm. Contei com Pati Maia, Carmem Castro e Cntia Reginaldo em momentos diferentes, me dando lastro para que eu pudesse navegar entre esses tantos mundos como intermediria entre a Aveda e os Yawanaw.

    Por fim, agradeo minha me e a meus filhos a quem eu tantas vezes abandonei em mi-nhas longas viagens, nos anos mais importantes de sua formao. Hoje, adultos e casados, merecem todo o meu respeito e amor. E falando de amor, agradeo a R.S. por ter me apoiado ao longo desses nos de escrita, com sua presena rara mas calma e reconfortante, mesmo quando essa presena se dava atravs de sinais de fumaa.

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    Sumrio da Tese

    Essa tese descreve um Projeto de Desenvolvimento Sustentvel financiado por uma em-

    presa de Cosmticos americana, realizado em uma rea indgena no Acre. Atravs do

    processo de negociao e das dificuldades encontradas na realizao do trabalho e na

    adaptao da aldeia nova atividade, revela o sutil jogo de interesses por trs do concei-

    to de Desenvolvimento Sustentvel. Os Yawanaw so apresentados como agentes do

    processo, e a forma como interpretam e alcanam seus objetivos desvenda como o dis-

    curso da Ordem da Economia impede que reconheamos como legtmos e passveis de

    financiamento, objetivos do Projeto de Vida da Comunidade Yawanaw. Mesmo que

    no tenham realizado algumas das metas de produo propostas, os Yawanaw conquis-

    taram muitos dos seus obejtivos prprios, se fortalecendo politicamente e se trasnfor-

    mando em uma espcie de sucesso editorial, com CD e filme gravados, escritrios em

    vrias cidades, e acesso s instituies modernas.

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    NDICE

    Agradecimentos ........................................................................... p. 05 Sumrio ......................................................................................... p. 06 ndice ......................................................................................... p. 07 Glossrio .........................................................................................p. 08 Mapa 1 aldeia, rios, Tarauac, Rio Branco............................. p. 09 Mapa 2 - Rio Gregrio ................................................................. p. 10 Mapa 3. esquema das colocaes do So Vicente at a aldeia... p. 11 Introduo ...................................................................................... p. 12 Captulo I ..................................................................................... p. 41 Captulo II ..................................................................................... p. 98 Captulo III..................................................................................... p. 157 Captulo IV .................................................................................... p. 196 Captulo V ..................................................................................... p. 244 Captulo VI .................................................................................... p. 305 Bibliografia .................................................................................... p. 348 Anexo I : Declarao de Belm, ISE............................................ p. 355 Anexo II : Ceres Principles .......................................................... p. 357 Anexo III: A Construo do Conceito de Desenv. Sust.............. p. 358 Anexo IV : Quadro e Consideraes Genealgicas ................... p. 362 Anexo V: Espelho de Pesquisa da Misso Novas Tribos........... p. 371 Anexo VI: O Alcance da famlia de R. L. no mundo Externo.... p. 380 Anexo VII: Policy da Aveda........................................................... p. 381 Anexo VIII Poema de Fernando Luis Yawanaw ...................... p. 383 Anexo IX Festas............................................................................. p. 385 Anexo X Fotos............................................................................... p. 388 Mapa 4: T.I. Rio Gregrio........................................................... p. 390

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    GLOSSRIO DAS SIGLAS ABCN - Associao Brasileira de Corantes Naturais em Vitria da Conquista, na Bahia; BID Banco Interamericano de Desenvolvimento BNDES Banco Nacional de Desnvolvimento CEE- Comunidade Econmica Europia EMBRAPA Empresa Brasileira de Pesquisa em Agricultura FUNAI Fundao Nacional do ndio INCRA Instituto Nacional de Reforma Agrria CNUMAD Conferncia Naes Unidas pelo Meio-Ambiente e Desenvolvimento UNEP United Nations Environmetal Program BSR Business for Social Responsibility BCSD - Business Council for Sustainable Development CERES - Corporations for Environmentally Responsible Economics CNN Cable News Network CVA empresa Couro Vegetal da Amaznia CEDI -Centro de Documentao Ecumnica. CIMI Conselho Indigenista Missionrio CPI-AC Comisso Pr-ndio do Acre CTI - Centro de Trabalho indigenista ISA Instituto Socioambiental ISE International Society of Ethnobiology NDI Ncelo de Direitos Indgenas RAN Rainforest Action Network ASAREAJ- Associao dos Seringueiros da Resrva Extrativista do Alto Juru ASKARJ Associao Kashinaw do Rio Jordo CNS Conselho Nacional dos Seringueiros CPI - Centro de Pesquisa Indgena (de Krenak) MPIVJ Movimento dos Povos indgenas do Vale do Juru OAYERG Organizao dos Agricultores Ezxtrativistas Yawaanw do Rio Gregrio STR Sindicato de Trabalhadores rurais UNI-AC Unio Nacional dos ndios do Acre

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    INTRODUO

    A presente tese se prope a desenvolver a anlise de um projeto de desenvolvimento

    comunitrio, denominado Plantio Comercial de 30 ha de Urucum promovido por uma comu-

    nidade indgena, os Yawanaw do Rio Gregrio, no Acre, em parceria com uma empresa de

    cosmticos americana, a Aveda Corporation. Tal Projeto teve incio em 1993, aps o encontro

    entre lideranas da comunidade e o dono da empresa durante o Parlamento da Terra, evento

    paralelo Eco-92. Previsto para durar dois anos, visava implementao do plantio e a comer-

    cializao da produo de urucum para a utilizao na produo de cosmticos pela empresa.

    Acabou por estender-se e transformar-se em uma parceria que dura at o presente momento, e

    que incluiu inmeras outras atividades tanto de cunho social (escola, posto de sade, etc.) como

    de produo comercial, envolvendo a parceria com outros agentes do setor privado e do setor

    pblico, como o governo do Estado do Acre e o Ministrio do Meio Ambiente. Escolhi adotar o

    enfoque diacrnico devido ao fato de ter acompanhado o projeto por um perodo de nove anos e

    meio, como coordenadora das atividades e mediadora entre empresa e tribo. Espero que a

    descrio diacrnica, associada tentativa de etnografia ampla das relaes do grupo com

    diferentes setores da sociedade envolvente, confira relevo analtico suficiente ao trabalho para

    que possamos identificar as formas de agncia do grupo face s oportunidades polticas e eco-

    nmicas que lhe foram apresentadas atravs da parceria.

    Tratava-se de uma proposta de desenvolvimento sustentvel atravs de negociao de

    preos sob a tica do mercado justo, que seguia uma lgica diferente da aferio mxima de

    lucro direto comum aos empreendimentos comerciais e industriais, sendo informada por valores

    originados no seio do movimento ecolgico. A tese descreve as condies que propiciaram o

    encontro da tribo com a empresa, tais como a conscincia ecolgica de consumidores europeus

    e americanos, as tendncias do desenvolvimento do capitalismo mundializado na contempora-

    neidade, a descomoditizao e as estratgias de pequenas empresas penetrarem o mercado

    dominado pelo capital monopolista. A forma como os termos da parceria foram apropriados e

    traduzidos pelos diferentes atores envolvidos analisada dentro do contexto histrico e cultural

    da aldeia e da empresa, revelando a forma como foram utilizados a servio dos objetivos e

    interesses de cada grupo. Se por um lado a empresa se beneficiava da associao de sua imagem

    quela da tribo, a comunidade indgena negociava com a empresa a fim de suprir suas demandas

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    internas para a realizao de um projeto prprio a que denominei Projeto de Vida da aldeia.

    Esse ltimo termo - emprestado de Arturo Escobar que o colheu junto s comunidades negras na

    Costa Pacfica Colombiana, atravs do processo de discusso que batiza de PCN (Processo de

    Comunidades Negras) (1998a) - representa o conjunto de interesses da comunidade indgena e

    metas a serem atingidas que estaremos comparando ao projeto econmico apresentado que-

    les que forneciam os recursos agncias financiadoras estatais e empresa - na linguagem e

    dentro dos critrios que os lderes da aldeia e seus assessores julgavam ter alguma chance de

    serem aprovados.

    A empresa precisou se adaptar s condies do trabalho desta parceria para superar os

    impasses que as diferenas culturais apresentaram, no apenas no relacionamento direto com

    uma tribo indgena mas tambm em sua insero no campo do ambientalismo. Em um primeiro

    momento, no dispunha de quadros que dessem conta de tal atividade, nem de uma insero no

    ambiente social, cultural e institucional do ambientalismo, composto por militantes polticos,

    acadmicos, representantes de grupos tradicionais ou agentes governamentais. A empresa fora

    atora da guinada histrica do processo de descomoditizao e parecia representar uma novi-

    dade no cenrio do capitalismo monopolista, ao conseguir se estabelecer em um mercado alta-

    mente concentrado atravs do diferencial ecolgico. Sua histria nos remete ao plano de anlise

    geral das tendncias do capitalismo tardio, com o deslocamento da gerao de valor do mundo

    fsico do cho de fbrica, do trabalho e at do ambiente financeiro para a esfera sutil da apropri-

    ao da imagem, da propriedade intelectual e da cultura. A oportunidade que encontrou para

    romper o bloqueio do capitalismo monopolista e se estabelecer no mercado atravs da associa-

    o de sua imagem aos valores que vieram tona com o movimento ambiental (como os limites

    de disponibilidade de recursos naturais e a contaminao silenciosa), cedeu diante das contradi-

    es estruturais atuais do desenvolvimento do capitalismo, com a aguda concentrao atravs

    de mergers e aquisies, acabando por ser vendida a uma multinacional, a Este Lauder, aps

    vinte anos de funcionamento independente.

    A observao ao longo de um perodo de tempo de aproximadamente dez anos revela a

    complexidade e o carter multifacetado das dificuldades da comunidade indgena em atender s

    metas estabelecidas pela atividade voltada para o mercado. As adaptaes que a comunidade

    teve que empreender para dar conta de sua parte do acordo fornecem indicaes da transforma-

    o que a atividade voltada para o mercado provocou em sua organizao interna, tanto no nvel

    econmico como no poltico, religioso, sexual, etc. Embora tais alteraes no se restrinjam de

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    forma alguma ao campo econmico - cuja integrao com o sistema de vida da comunidade

    como um todo parte fundamental da teoria que alimenta esta tese optei, inicialmente, por

    centrar a anlise, a ttulo de delimitao do problema, nas adaptaes efetuadas na organizao

    do trabalho da comunidade para fazer frente s demandas da nova atividade. No entanto, a

    imbricao do trabalho com as estruturas de poder dentro da aldeia eram to profundas, que a

    anlise acabou se centrando igualmente na organizao poltica do grupo, que no pde ser

    dissociada daquela do trabalho.

    Essa organizao poltica, por sua vez, se mostrou completamente dependente dos recur-

    sos que o grupo acessava atravs de sua relao com agentes externos. Veremos como a etnolo-

    gia pano clssica aponta para um sistema tendencialmente fechado de relaes internas aldeia

    como sendo historicamente complementado pela relao com um outro estrangeiro, de fora da

    aldeia. Sendo um sistema fechado que devorava os recursos internos, necessitando de um acesso

    ao mundo externo que o oxigenasse, a posio na estrutura poltica da aldeia que possibilitasse

    tal acesso conferia o poder. Fosse atravs das guerras milenares pela captura de mulheres que

    alimentavam o sistema de casamentos poligmicos; ou atravs das relaes de servio e parceria

    estabelecidas com os patres dos seringais; dos vnculos de dependncia estabelecidos com os

    missionrios americanos; da insero no Movimento Indgena; da relao com a empresa ame-

    ricana financiadora do Projeto ou com o pblico que esse disponibilizou aldeia de forma

    poderosa pela mdia televisiva e escrita, a competio interna pelo papel de mediador do grupo

    com tais recursos externos era um dos principais fatores a ordenar o poder dentro da aldeia.

    Acreditamos poder demonstrar que, ao pressionar principalmente o mundo do trabalho

    dentro da aldeia, a produo para o mercado revela o quo imbricadas esto as outras esferas da

    vida naquela do trabalho. Inversamente, demonstramos como a alienao provocada pelas

    demandas especficas do trabalho voltado para o mercado exige a alterao dessas outras esfe-

    ras. A escolha por delimitar o campo pesquisado s negociaes e adaptaes feitas em torno

    da organizao do trabalho no deve ser interpretada com uma incongruncia frente opo

    metodolgica que procura retirar a economia da posio de centralidade analtica que esta tem

    ocupado na histria das disciplinas acadmicas (Escobar, 1995, pg 58-59). Pretendemos de-

    monstrar, assim, que a transformao induzida pelo objetivo de sucesso junto ao mundo do

    branco (a autonomia construda a partir da produo voltada para o mercado) acaba por revelar

    a sobreposio de um sistema cultural capitalista sobre outro, tradicional e subordinado, e que

    tal sobreposio no se reduz ou limita s praticas econmicas, embora o discurso que justifica

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    a interveno em tempos ecolgica e politicamente corretos reitere repetidamente que no se

    pretende interferir nas esferas cultural, espiritual ou poltica da comunidade. A eficcia da

    sobreposio parece depender desta alegada iseno, conferida pelo isolamento do mundo

    econmico (Escobar, 1995, p. 60) em relao ao poltico, afetivo, familiar, etc.

    A comunidade, por outro lado, interpretava ativamente os interesses da empresa e dos

    outros parceiros externos, readequando sua prpria constituio identitria de forma a ter o

    maior sucesso possvel em acessar tais recursos. Como agentes, e no apenas enquanto objetos

    do processo de insero no mundo que os envolvia com um abrao cada vez mais prximo,

    diferentes elementos internos comunidade lutavam para escolher os caminhos que as bifurca-

    es da histria lhes apresentavam, fazendo escolhas por vezes acertadas, por vezes erradas, por

    vezes corrigidas e por vezes assumidas como independentes do processo da sociedade

    envolvente como um todo.

    O governo do Estado teve trs administraes diferentes no perodo estudado, passando

    de um governo de extrema direita que representava os interesses de madeireiros e ruralistas ao

    Governo da Floresta de Jorge Viana com seus compromisso com os interesses dos povos da

    floresta, com quem a comunidade estabeleceu parcerias. Mesmo reconhecendo que no seria

    possvel, no escopo deste trabalho, averiguar at que ponto estas mudanas histricas foram

    promovidas pela tica do mesmo discurso ambientalista que estimulou a empresa a desenvolver

    a parceria, a anlise diacrnica ajuda a revelar a dinmica de mudanas e a forma como lideran-

    as da comunidade negociam com as autoridades constitudas, como acessam os recursos

    pblicos disponveis, e quais as estratgias que utilizam tanto interna quanto externamente na

    competio por este acesso.

    Tendo apresentado as condies acima descritas, tentaremos chegar ao objetivo princi-

    pal desta tese, que o de descrever o sutil jogo de interesses por trs da apropriao, tanto pela

    empresa quanto pelo grupo indgena, do discurso (e muitas vezes dos recursos) do ambientalis-

    mo. Tomando a comunidade indgena no como um bloco homogneo, mas como composta por

    atores com poderes e acesso a recursos diferenciados e por vezes antagnicos, podemos ver o

    que cada ator interpreta como Projeto, como ambiental ou como sustentvel. As demandas

    atinentes ao projeto de vida da comunidade e os motivos pelos quais estas no poderiam ser

    apresentadas de forma direta nem aceitas abertamente pela empresa podem nos levar, enfim,

    pergunta preferida da antropologia: entender o que realmente estava em jogo por trs do discur-

    so do projeto sustentvel.

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    Uma das principais caractersticas deste trabalho o fato de estar sendo escrito por al-

    gum que participou como agente do caso a ser descrito e analisado, antes de adquirir o instru-

    mental acadmico para a anlise crtica posteriormente efetuada. Ao longo dos cinco anos de

    trabalho para a elaborao desta tese, a questo de como transformar a minha insero como

    agente naquela de uma analista, ocupou muito do tempo das discusses de orientao. Apesar

    da coragem dos orientadores em apoiar uma pesquisa que fugia dos moldes metodolgicos

    confortavelmente aceitos e das poucas mas slidas referncias, na literatura metodolgica, que

    nos abriam oportunidades de fortalecer a argumentao a favor da empreitada, o ato final da

    escrita carregou at o fim esta dificuldade. At as ltimas reunies de orientao, com os dados

    j dispostos de forma estruturada e a argumentao construda, discutamos dolorosamente se o

    meu papel como mediadora do processo deveria ser minimizado, e se isso poderia ser feito sem

    prejuzo para a argumentao. A deciso final foi a de trazer a questo para o primeiro plano,

    pedindo licena banca para apresentar, entre alguns dos principais atores do trabalho, dados de

    minha trajetria pessoal em um momento anterior ao da atividade acadmica. Essa apresentao

    facilitar o entendimento da posio que ocupei nas negociaes e na administrao do Projeto

    em anlise. Outras consideraes metodolgicas e os recursos utilizados para criar o distancia-

    mento necessrio, sero apresentados no final desta Introduo, junto com a discusso metodo-

    lgica.

    Contando com a pacincia dos membros da banca, ressalto que ao trazer esses eventos

    propositalmente tona, pretendo explicitar o encontro entre elementos to dspares como a

    poltica do movimento social de base florestal (seringueiros e ndios) e o mundo dos espetcu-

    los. Em se tratando de uma tese que versa sobre o encontro multifacetado de uma pequena

    comunidade no interior da floresta amaznica com uma empresa capitalista internacional em um

    mundo moderno e globalizado, a descrio destes elementos se tornar mais relevante com o

    andamento do trabalho.

    i.1 Alguns dos atores se encontram Em 1992, por ocasio da Conferncia das Naes Unidas para o Desenvolvimento e

    Meio Ambiente, chega ao Rio de Janeiro o etnobilogo Darrel Posey, conhecido mundialmente

    por seus estudos sobre etno-cincia especialmente da biologia Kayap - assim como pela

    defesa dos direitos de propriedade intelectual dos povos indgenas. Como presidente da Socie-

    dade Internacional de Etnobiologia (ISE) pretendia organizar a IV Conferncia Bianual da

    referida sociedade que se daria conjuntamente com o Primeiro Congresso da Coalizo Global

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    pela Diversidade Biocultural1. O duplo evento se deu sob a gide do Frum Global, que reunia

    a sociedade civil organizada em eventos paralelos Conferncia oficial. Dr. Darrell Posey

    recebeu a indicao de meu nome de um antroplogo cineasta alemo residente em Londres, Dr

    Herbert Girardet, como possvel organizadora do evento no Rio de Janeiro.

    Eu, ento com 34 anos, trabalhava como produtora de cinema e de msica no Rio de Ja-

    neiro. Embora houvesse estudado trs semestres de antropologia na UNB em Braslia e tivesse,

    na adolescncia, feito estgios em diversos setores do servio de sade pblica de So Luis do

    Maranho a fim de me candidatar a um emprego como atendente de sade da FUNAI, no havia

    construdo uma carreira relacionada com a questo indgena. Havia morado por dez anos no

    interior do Brasil (Maranho, Braslia, Piau, Santa Catarina, Amazonas), a maior parte do

    tempo acompanhando o marido agrnomo, me adaptando e readaptando a cada mudana sua de

    estado enquanto nasciam meus trs filhos. Ao retornar ao Rio aps a separao, acabei por ser

    absorvida pela indstria cultural trabalhando como produtora, profisso difusa e extremamen-

    te moderna que mesmo ainda no plenamente institucionalizado atravs de cursos universitrios

    e associaes profissionais na poca, j dispunha uma identidade definida nas dcadas anterio-

    res.

    Por extremamente moderna me refiro a caractersticas especificamente ps-

    modernas desta profisso que praticamente nasceu j flexibilizada com seu contingente de

    free-lancers pluriaptos. Mediadores que atuam em uma interface fragmentada e mltipla (artis-

    tas, imprensa, casas de espetculo, tcnicos, patrocinadores, autoridades pblicas, etc), os

    produtores culturais so classificados como profissionais de comunicao e comumente renem

    uma gama bastante vasta de talentos e de recursos como a capacidade de organizao, agilidade,

    rapidez de deciso e, acima de tudo, uma ampla rede de contatos e relacionamentos que compe

    o seu principal capital. Este capital acumulado atravs da credibilidade e do prestgio conferidos

    pela realizao de objetivos estabelecidos pelos clientes (artistas ou empresrios), se incrementa

    com cada tarefa bem executada que multiplica a gama de contatos e relacionamentos de confi-

    ana e cooperao do respectivo produtor cultural. Em um universo extremamente plstico,

    malevel e mutvel no qual realiza na prtica as tarefas ditadas pela imaginao de artistas e

    criadores do mundo da msica, publicidade, cinema, etc., mesmo quando se especializa, o

    1 A Sociedade Internacional de Etnobiologia tinha, como principal pauta, o reconhecimento de especialistas tradicionais, o respeito propriedade intelectual destes povos mas tambm sua sobrevivncia fsica, conforme fica indicado pela Declarao de Belm de 1986 (vide Anexo I).

  • 18

    produtor cultural age como um coringa que no se abala diante de desafios aparentemente

    impossveis como parar o trnsito, efetuar o transporte de grandes elementos (como colocar um

    elefante em Paquet), resolver questes alfandegrias, organizar a montagem de palcos em

    locais inusitados, etc. Apesar de trabalhar vinculado cultura, o habitus do produtor cultural

    geralmente incorpora uma atitude profissional e sria, no lhe cabendo ser desprendido e alheio

    s responsabilidades financeiras e comerciais, atitude essa que cabe mais ao tipo-ideal de artis-

    tas (ou a ndios) com quem os produtores estabelecem parcerias. Ao contrrio, cabe ao produtor

    saber dialogar com clientes que so geralmente empresrios, publicitrios e patrocinadores

    cujos cdigos exigem um acordo com a tica de mercado. Ao mesmo tempo, o produtor forma -

    junto com artistas, atores, figurinistas, produtores de elenco, o exrcito de tcnicos e firmas de

    aluguel de equipamentos, etc. - uma comunidade que se constela em funo de projetos (como

    filmes, turns ou espetculos) para depois se desintegrar, com seus indivduos voltando a

    figurar sob a forma de contatos a serem ativados a qualquer momento pela prxima demanda ou

    projeto. Trata-se de uma comunidade latente que est sempre aberta ao novo chamado e que

    desenvolve seus prprios cdigos em torno da unidade que se estabelece pela participao

    rotineira na construo daquilo que para o resto da sociedade consiste no extraordinrio: o

    numinoso mundo da arte e dos espetculos.

    Em funo de trabalhos realizados com cinema documentrio, acabei por retomar conta-

    tos na rea do indigenismo/ambientalismo ao participar de filmagens sobre as queimadas na

    Amaznia no filme Halting the Fires, de Herbie Girardet, na esteira do clamor contra o assassi-

    nato de Chico Mendes. Tendo participado da finalizao deste filme em Londres, me aproximei

    do setor do movimento ambientalista londrino que orbitava em torno da Fundao Gaia, em

    1989. L, assisti a uma palestra do antroplogo Terri de Aquino e do lder seringueiro e indige-

    nista acreano Antnio Macedo. Na ocasio, fui contratada para traduzir transcries de entrevis-

    tas de Alton Krenak, liderana indgena sediado em So Paulo cujo povo estava disperso pela

    Serra do Cachimbo em Minas Gerais, e que havia conquistado muitos coraes brasileiros (e em

    especial de brasileiras) ao ser televisionado proferindo um discurso eloqente e potico diante

    da Assemblia Constituinte, em 1988, enquanto pintava seu belo rosto com tintura preta. Alguns

    poucos anos mais tarde, quando eu trabalhava na turn de Paul McCartney pelo Brasil, o ex-

    Beatle me pediu que providenciasse uma autoridade brasileira que lhe entregasse um prmio de

    mrito ecolgico, conferido pelos Amigos da Terra de Londres. Argumentei que talvez fosse

  • 19

    mais adequado receber o prmio das mos de um dos heris do movimento ao invs de um

    representante do governo Collor, e consultei Alton Krenak em So Paulo. Este indicou o serin-

    gueiro Antonio Macedo como representante dos Povos da Floresta que entregou o prmio ao ex-

    beatle logo antes do histrico show no Maracan. Macedo apareceu em todos os principais

    jornais do Brasil ao lado do ex-Beatle e chegou-se a dizer, na poca, que tal exposio miditi-

    ca ajudou a preservar a vida deste lder seringueiro que estava sendo severamente ameaado por

    foras conservadoras na regio do vale do Juru, no estado do Acre. Minha participao no

    movimento popular, social, indigenista ou ambientalista se resumia, ento, a estas intervenes

    pontuais e geralmente ligadas atuao profissional junto indstria cultural.

    Tendo sido contatada pelo Doutor Darrell Posey, no Rio, me assustei ao tomar conhe-

    cimento da pouqussima estrutura disponvel dentro do Frum Global, no Hotel Glria, e do

    tamanho da tarefa a ser realizada O Parlamento da Terra, nome com o qual Dr. Posey batizou

    a dupla conferncia. Deveria realizar 15 dias de congresso com 8 horas de conferncias dirias

    traduzidas para trs idiomas, permeadas de apresentaes culturais, musicais e artsticas nas

    quais se dariam voz aos povos tradicionais (ndios, negros, ciganos, ribeirinhos, quebradeiras de

    coco, seringueiros,alm de ancios e crianas). Dr. Posey possua uma estrondosa capacidade

    de articulao, e alm das lideranas indgenas que eram os principais participantes e que eu

    desconhecia em sua quase totalidade, nomes ilustres no cessavam de se apresentar para serem

    organizados na programao: de Prncipe Charles a Paulo Freire, de Patativa do Assar ao ento

    Senador Al Gore, de Ted Turner e Jane Fonda a Dalai Lama. Quanto dinheiro havia? Nenhum.

    O evento seria realizado em conjunto com Marcos Terena, um lder indgena sediado em

    Braslia e funcionrio da FUNAI. Este me informava j ter articulado a vinda de 60 jovens

    guerreiros do Xingu que chegariam em menos de uma semana para construir a maloca da

    Aldeia Carioca nas terras do sanatrio Colnia Juliano Moreira. Dinheiro? Nenhum. Em deses-

    pero, apelei para o vice-governador do estado, Dr. Nilo Batista, que colocou disposio barra-

    cas de acampamento da defesa civil, cobertores e duas mudas completas de roupa para cada

    guerreiro. Em seguida, me endividei com profissionais de catering que estruturaram um

    sistema de alimentao bastante adequado ao acampamento dos guerreiros que construram a

    maloca da Aldeia Carioca.

    Neste momento, Dr Posey e Marcos Terena se desentenderam, e o Parlamento da Terra

    se desligou da Aldeia Carioca, sendo realizado em dois outros espaos: o muitssimo bem

  • 20

    equipado auditrio do BNDES que nos foi cedido gratuitamente, e o Circo Voador, espao que

    se pretendia democrtico e que tradicionalmente dera voz a artistas alternativos e fora do circui-

    to comercial mainstream da cultura brasileira.

    Consegui arregimentar um pequeno grupo de amigos da rea de produo cinematogr-

    fica, tipicamente capazes de enfrentar qualquer desafio para a realizao do impossvel e que

    estavam parados em funo da poltica cultural do governo Collor, exaustos de tanta inao,

    como me afirmou um deles ao se oferecer para embarcar no projeto. No fosse esta circunstn-

    cia desesperadora a que havia sido submetido este pequeno contingente brancalenico, alm,

    claro, da adeso do Circo Voador, a realizao do Parlamento da Terra certamente teria sido

    impossvel. Enquanto a lista de nomes tremendamente imponentes continuava a se confirmar

    para que ajustssemos a programao, Dr. Posey conseguia os primeiros recursos junto a ONGs

    americanas. Fazamos incrveis malabarismos na busca por cooperao, tal como passar no

    exame vestibular apenas para convencer o coordenador do curso de traduo simultnea da

    PUC-RJ de que o Parlamento da Terra seria o frum ideal para que seus formandos conseguis-

    sem as horas de vo necessrias ao estgio obrigatrio, economizando assim um dos maiores

    custos do evento. O grande custo de acomodao foi economizado ao revertermos a negativa da

    empresa mineradora Paranapanema em ceder um grande alojamento, situado justamente entre o

    Circo Voador e o BNDES. Enviamos um fax diretamente sua Presidncia afirmando conside-

    rar muito suspeita a recusa desta empresa (diga-se de passagem, notria por seus conflitos em

    reas indgenas) em colaborar com um evento da ECO-92, que mobilizara a cooperao de

    todas as foras pblicas e privadas da cidade. O Presidente da empresa ordenou imediatamente

    que o alojamento fosse liberado para a acomodao de quase duzentos participantes indgenas e

    alguns de seus assessores, e assim economizamos as despesas com hotel e tambm com trans-

    porte, visto que os participantes podiam caminhar entre o Circo, o BNDES, o refeitrio e mes-

    mo at o Parque do Flamengo caso quisessem participar de outros eventos do Frum. Aos

    poucos, em um ambiente de tremenda colaborao entre todas as foras do poder e do servio

    pblicos e as organizaes da sociedade civil, as dificuldades foram sendo superadas, at que

    recursos da Secretaria do Meio Ambiente do Governo do Estado foram comprometidos, nos

    dando alguma segurana para assumir compromissos com fornecedores.

    Mas as dificuldades polticas administradas por Dr. Posey comeavam a se avolu-

    mar, especialmente devido competio entre lideranas indgenas. A organizao do evento

    contava sempre com o apoio e clareza da cooperao de Jorge Terena na organizao da parti-

  • 21

    cipao indgena. Mas Paulinho Payak, que deveria ser o Presidente do Parlamento da Terra,

    quase fazia Dr.Posey arrancar os cabelos diante da reticncia que demonstrava em vir ao Rio de

    Janeiro e das exigncias que fazia. Marcos Terena havia se rebelado contra a tendncia de Posey

    de querer estender sua gide sobre a Aldeia Carioca que pretendia ser puramente indgena e

    independente. Alm disso, no queria compartilhar o espao com outras lideranas como Ailton

    Krenak . Este ltimo, por sua vez, no queria participar daquilo a que chamava de circo, mas

    tanto por respeito a Posey quanto Payak, acabou por nos mandar um enviado para estabelecer a

    forma de participao que seu grupo teria.

    Desta forma, em torno de um ms antes do evento, chegou ao Rio o personagem princi-

    pal deste estudo, Biraci Brasil Yawanaw, ento com 28 anos. Este jovem lder havia participa-

    do desde cedo no movimento poltico indgena vinculado ao grupo de Alton Krenak. Havia

    ajudado a fundar a Unio Nacional dos ndios do Acre (UNI-AC), liderado seu povo na demar-

    cao da primeira reserva indgena no estado do Acre e excelente orador que era tendia a

    ser convocado para falar em nome dos parentes de sua regio. No entanto, por motivos que

    analisaremos adiante, se indispusera com o movimento popular no Acre, do qual estivera afas-

    tado durante alguns anos nos quais residira em Rio Branco casado com uma oficial da polcia

    militar. Havia sido recentemente convidado a retornar poltica por Antnio Macedo, se mu-

    dando para Cruzeiro do Sul para organizar o Movimento dos Povos Indgenas do Vale do Juru

    que funcionava na sede da regional do Conselho Nacional dos Seringueiros em Cruzeiro do Sul.

    Eventualmente, Ailton Krenak levantou recursos para alugar um escritrio prprio para o

    MPIVJ e para um pequeno nmero de funcionrios, enquanto apresentava um grande projeto

    junto Comunidade Econmica Europia.

    Assim, Biraci Brasil chegou ao Rio como enviado de Alton para avaliar a importncia

    da participao do grupo acreano. Visitou Marcos Terena, e resolveu que havia espao de

    participao em ambos os eventos, visto estar ajudando a organizar a participao tanto de

    ndios como tambm de seringueiros vinculados ao CNS, compondo o fulcro do que se chamava

    ento de Povos da Floresta. O contingente acreano, ligado a Krenak, no foi o nico nem o

    mais numeroso de todos, pois o Parlamento da Terra recebeu grandes turmas de Kadiweos e

    Kayaps, e delegaes menores de ndios do nordeste, sul, sudeste, etc. alm de delegaes

    internacionais como os Penang da Tailndia, os Maoris da Nova Zelndia ou os Lapes da

    Noruega ou os Inuit do rtico canadense. Porm, a delegao acreana se transformou em uma

    das mais ativas e participantes e acabou por contribuir com o prprio trabalho de execuo do

  • 22

    Parlamento da Terra.

    O evento contou, tambm, com a presena de alguns poucos empresrios. Entre eles,

    Horst Rechelbacher, proprietrio da Aveda Corporation, empresa de cosmticos sediada em

    Minesota, nos Estados Unidos. Este viera ao Rio para participar do Parlamento da Terra e de um

    outro evento que reunia lderes espirituais como Dalai Lama, com quem mantinha uma relao

    de grande amizade, havendo feito polpudas doaes e usado toda a influncia local que tinha

    para ajudar vrias famlias tibetanas exiladas a se estabelecerem perto de sua propriedade em

    Wisconsin, EUA. Nascido na ustria, filho de um sapateiro e uma boticria, Horst passou

    alguns anos de sua infncia em um programa de adoo temporria em Portugal, to grande era

    a pobreza de seu pas no ps-guerra. Na juventude, ganhou inmeros prmios como cabeleirei-

    ro. Um deles foi uma turn pelos Estados Unidos, onde um acidente de carro nas proximidades

    de Mineapolis fez com que se demorasse l, trabalhando a fim de pagar as contas hospitalares.

    Acabou se casando e se estabelecendo profissionalmente nesta cidade. Desenvolveu os princi-

    pais conceitos da firma que fundaria, ao longo das viagens que fazia para a ndia e Nepal em

    busca de conhecimento espiritual. Se associando a qumicos indianos, familiarizados com a

    filosofia ayuvdica, lanou uma linha de produtos naturais para cabelos que j nascia personali-

    zada (para morenas, louras, ruivas, etc) e compromissada com o meio ambiente. Diferenciava-se

    assim dos produtos das grandes marcas por fugir da idia de commodities (grandes volumes

    para um mercado de massas), sendo vendido apenas por profissionais que eram educados

    (detestava a palavra treinamento) para poderem contar toda a histria de cada produto e saber

    aplic-lo de forma personalizada. Diferenciava-se tambm do ento j famoso BodyShop2 por

    ter um compromisso com a qualidade total de seus produtos, ambicionando a substituio total

    de insumos sintticos. Para Horst, o petrleo era o maior vilo e nenhum leo mineral poderia

    participar de suas composies. As plantas eram as fbricas de suas matrias primas, e a fotos-

    sntese era o seu processo industrial. O corpo um eco-sistema, no o polua era um dos

    principais slogans da firma. Outro era apresentado sobre a figura de Pinquio, onde se lia a

    pergunta: Esto lhe contando a verdade sobre o Natural? Com isto Horst pretendia rasgar o

    manto da hipocrisia do green-washing. Este ltimo consistia na estratgia das grandes

    indstrias de atribur o rtulo de natural a produtos industrializados a partir de derivados de

    petrleo e da sntese qumica. Vendia-se, para o senso comum, a idia de que na etapa atual da

    2 firma que crescia rapidamente na poca, comercializando produtos a partir de matria primas naturais e politicamente corretas, ajudando a comunidades como os Kayap e aldeias indianas

  • 23

    civilizao seria absolutamente impossvel a produo sem conservantes, preservantes e estabi-

    lizantes qumicos, difundindo amplamente a noo de que qualquer um que dissesse o contrrio

    estaria mentindo. Associava-se esta noo idia de democracia, pois o produto industrializado

    era para todos e mais barato por ser competitivo. Horst se esforou para que sua empresa

    derrubasse estes mitos paulatinamente, e acabou produzindo cosmticos caros e dirigidos ao

    publico A, no mximo B, mas que estabeleceram um critrio de qualidade e pureza, ferindo o tal

    manto de hipocrisia da grande indstria por utilizar insumos mais caros porm autenticamente

    naturais (no sintetizados e no derivados do petrleo). Em outras frentes, sua fbrica se

    adequava aos procedimentos industriais limpos, e ele participava politicamente de grupos

    empresariais com propostas ambientais e de responsabilidade social, tendo sido o primeiro

    signatrio dos Ceres Principles 3 em 1989 (Corporations for Environmentally Responsible

    Economics, ver Anexo II) e um dos fundadores do Business for Social Responsibility,4.

    Tal estratgia de produo personalizada, de compromissos ambientais e ticos, de regis-

    trar a rastreabilidade das matrias primas e ingredientes utilizados em seus produtos era parte

    de um movimento anti-comoditizao que favorecia a entrada de pequenas empresas nos mer-

    cados dominados pelo capital monopolista. As chamadas empresas de nicho eram favorecidas

    pelo hiper-aquecimento da economia americana e europia, pela diversificao dos mecanis-

    mos de distribuio e venda, e por uma reao cultural universalizao do consumo que

    acirrava o localismo e as identidades diferenciadas de grupos consumidores (Santos, M., 1997).

    A prtica da certificao dos produtos como orgnicos ou como ecologicamente ou politicamen-

    te corretos fortaleceu a entrada destas empresas no mercado. Tambm dava ao consumidor

    maior poder de barganha junto aos grandes conglomerados monopolistas, favorecendo a coloca-

    o no mercado de produtos de origem comprovada e fortalecendo a relao de determinados

    grupos de pequenos produtores com o mercado consumidor que desejava saber de quem com-

    prava. No entanto, poucos anos mais tarde, na medida em que os argumentos em torno da

    rastreabilidade ganharam enorme reforo atravs do medo generalizado que abateu estes merca-

    dos diante de fenmenos de contaminao como o da vaca louca, a febre da certificao assu-

    mia propores mundiais. Na medida em que os mercados se globalizavam, os prprios grandes

    m-ir

    3 Documento pioneiro no comprometimento de indstrias com questes ambientais, especificamente de limpeza e no poluio, de 1989. 4 BSR: grupo pioneiro de empresrios a lanar a agenda da responsabilidade social. Um grupo de epresrios brasileiros liderados por Oded Granjew em torno da Cives, de SP, se aproximou do BSR a partde 98.

  • 24

    conglomerados passavam a utilizar o processo como forma de controle e do estabelecimento de

    diferenciais que agiam tambm como excludentes em relao competio de produtores

    menores. O processo de certificao, que em determinados momentos servia para fortalecer o

    produtor, em um movimento inverso, assumiu tamanho nvel de complexidade que tendeu a

    excluir a possibilidade de participao de pequenos produtores. Passaram a se formar redes que

    buscavam formas participativas de certificao (Fonseca, 2005).

    Horst contratara Moonstar, uma bonita mulher que, apesar de sua origem iugoslava-

    croata, tinha grande semelhana fsica e identidade com os nativos-americanos (como politi-

    camente correto chamar os ndios de l) para estabelecer pontes entre a empresa e comunidades

    tradicionais5. Moonstar foi sua primeira emissria ao Rio de Janeiro, durante os preparativos do

    evento. Conheci-a em uma noite na qual o mundo parecia ter aportado na cidade de So Sebas-

    tio e descoberto justamente o pequeno e kitsch restaurante portugus no qual eu me escondia

    na Lapa para tomar as grandes decises, me reunindo para comer com nossa pequena equipe, ou

    simplesmente para me esconder da loucura e da acelerao geral atrs de um bom chope. Abri

    as portas do Nova Capela carregando, esbaforida, maos do programa recm e gratuitamente

    impresso pela grfica da UERJ para mostrar a Posey, apreensiva com sua possvel desaprova-

    o diante de toda a pressa com que os trabalhos eram fechados. O que as portas de vidro

    canelado do velho restaurante escondiam era uma indescritvel mistura de pessoas de todas as

    nacionalidades, raas, roupas e idades, todas animadas com a chegada ao Rio de Janeiro e

    fascinadas com o largado bar e restaurante que a recesso econmica dos ltimos tempos havia

    relegado s moscas... Os garons corriam de um lado para o outro, aflitos, por entre mesas

    lotadas, ao mesmo tempo em que me cumprimentavam agradecidos com os olhos, ao deduzirem

    a origem do fenmeno! Darrell Posey sentava-se com uma importante jornalista da CNN em

    uma mesa, to assombrado quanto eu, quase mal-humorado, como se as visitas tivessem chega-

    do antes do jantar estar pronto! Em meio multido que lotava o recinto, estava a bela Moons-

    tar ao lado do cantor de rock Apache, Robby Romero. Sentamo-nos juntos, os trs, e travamos

    amizade. Eu, assustada diante do tamanho de tudo o que acontecia, e sem ter a mnima idia de

    quem se tratava a moa, respondi sua oferta de ajuda meio sarcstica: que tal dez mil dlares

    e dez pessoas para trabalharem?; ao que Moonstar respondeu bem humorada: Sobre os dez

    5 algum trabalho neste sentido havia sido feito na ndia e no Nepal, com a compra, para peque-nas aldeias, de unidades de extrao de leos essenciais como o hilang-hilang por arraste a vapor, etc

  • 25

    mil dlares, terei que consultar meu chefe primeiro. Mas quanto s dez pessoas, te garanto que

    trabalho por elas todas juntas!.6

    Depois de terminados os trabalhos, Darrel Posey viajou com Moonstar pelas terras

    Kadivo, Kayap e pelo Acre. Ao retornar, Moonstar me convidou para trabalhar nos projetos

    que pretendia desenvolver no Brasil, pedindo que eu escrevesse uma carta de apresentao, que

    levou consigo de volta empresa. Poucas semanas aps chegar a Minepolis, Moonstar morreu

    em um trgico acidente de carro. Posey, que a acompanhara para participar do Congresso Anual

    da Aveda, me telefonou pedindo que me apressasse para viajar, pois estava sendo convocada a

    dar continuidade ao trabalho de Moonstar. L chegando, por minha vez, como tinha estabeleci-

    do maior afinidade com o grupo do Acre durante estes meses de trabalho, sugeri que comes-

    semos o trabalho no Brasil por l, mais especificamente atravs da intermediao de Biraci

    Brasil e Ailton Krenak.

    i.2 A Delimitao Temtica

    Propostas de desenvolvimento econmico sustentvel de pequenas comunidades na A-

    maznia se deparam com dimenses que no se limitam viabilidade econmica, pois abran-

    gem a interpretao de conceitos e expectativas que diferem entre agentes financiadores e

    comunidades beneficirias, assim como entre diferentes segmentos da sociedade civil (movi-

    mentos populares, organizaes no-governamentais, empresas capitalistas) e agncias gover-

    namentais com os quais se relacionam. A insero de grupos tradicionais na economia de

    mercado envolve modificaes em sua organizao social que podem ou no representar melho-

    ria de qualidade de vida. Tratando-se de um encontro entre culturas diferentes em uma relao

    assimtrica de poder, os parmetros de avaliao de desempenho por parte de agentes financia-

    dores tendem a valorar prticas administrativas que tiveram um longo percurso de incorporao

    na sociedade capitalista, tomando-as como dadas, desqualificando prticas tradicionais de

    diviso de trabalho, manejo do meio ambiente e distribuio de resultados7. A idia de desen-

    volvimento traz, em seu bojo, uma expectativa de mudana social com a qual o grupo tradicio-

    6 De fato, diferentemente de qualquer outra militante que tenha participado do evento, Moonstar em-prestou sua fora trabalhando incessantemente na organizao, at que seu chefe chegasse (e do-asse os dez mil dlares).

    7 Especificamente, no caso em questo, toma-se como dada a diviso de trabalho do modelo capitalista que, com sua constante produo de especialistas, desassocia a figura do administrador (gerente) da figu-ra do poltico (lder).

  • 26

    nal em questo negocia, compreendendo-a atravs dos instrumentos de que dispe (educao no

    sistema social moderno, seja atravs da escola ou do contato com agentes da economia da

    borracha, missionrios, ou diferentes agentes da sociedade civil), e modificando-a na medida em

    que o Projeto a ser analisado se efetua.

    A histria do Projeto em questo revela como diferentes significados se encontram em

    um campo discursivo instvel, onde os interesses investidos se manifestam, tanto atravs de

    conflitos entre os atores envolvidos na parceria, como na dificuldade encontrada pelos ndios

    em alcanar os objetivos do projeto (plantar, colher, armazenar, secar e transportar e comercia-

    lizar as sementes de urucum) sem que isto represente uma des-organizao do trabalho da aldeia

    com conseqncias desagregadoras. Os esforos por parte da comunidade indgena para se

    adequar s exigncias disciplinares da atividade voltada para o mercado nos mostram como

    estes conceitos esto referidos a uma ordem maior, a da Economia (ou do Capitalismo), que nas

    ltimas quatro dcadas se manifesta, em relao ao Terceiro Mundo, atravs das estratgias

    do desenvolvimento transformado em ordem discursiva (Escobar, 1995).

    Podemos acompanhar, atravs da histria do projeto, um deslocamento de poder entre os

    atores na rede discursiva que se constri em torno de novos conceitos (sustentabilidade, biodi-

    versidade) a partir de determinadas vises de mundo e de interesses especficos. Como o discur-

    so do desenvolvimento sustentvel se insere dentro de um campo em constante disputa, onde

    diferentes atores tentam impor suas diferentes vises e significados, a compreenso de lderes

    comunitrios e membros de comunidades tradicionais parcial e contingente e depende, especi-

    ficamente, do leque de agentes com os quais cada lder entrou em contato e atravs dos quais

    acessou a rede de discusso. Varia da mesma forma o seu poder de negociao na busca por

    financiamento para projetos de desenvolvimento, a fim de atender a demandas e objetivos

    determinados no interior da aldeia e adaptados ao discurso externo aldeia para que sejam

    aprovados. Tal compreenso e poder de negociao so modificados principalmente atravs

    da prtica: mais do que a apreenso terica ou conceitual, esta prtica se d pela vivncia das

    experimentaes efetuadas no dia a dia da aldeia face s exigncias do trabalho proposto; ou

    fora da aldeia face ao acolhimento que recebem por parte de diferentes segmentos da sociedade

    branca; ou mesmo da vivncia do jogo de prestgio que presenciam no contato com outros

    segmentos da sociedade civil (Ongs, artistas, imprensa, empresas) e mediadores que acabam por

    disputar uma forma de representao destas comunidades que confere uma forma de poder

    simblico ou capital simblico no explicitada, mas visvel para as lideranas indgenas. Estas

  • 27

    experincias diretas fornecem subsdios para que as lideranas envolvidas na negociao e os

    membros da comunidade envolvidos no trabalho re-interpretem e traduzam as expectativas da

    modernidade como agentes e no apenas como objetos do processo em questo, mesmo tendo o

    cuidado de salientar que essa agncia relativa e no subverte as estruturas de dominao

    estruturais.

    No entanto, mesmo que as metas de produo estabelecidas pelo Projeto no tenham em

    nenhum momento sido atingidas da forma como postularia a ordem da Economia, os Yawanaw

    apresentaram sucessivas propostas de renegociao que foram aceitas pela empresa, demons-

    trando grande agncia e poder de interpretao dos interesses da empresa capitalista e de outros

    agentes no seu entorno. Embora qualquer critrio claro de avaliao dos resultados dos traba-

    lhos indique o insucesso na implementao da atividade ttulo do projeto inicial (Plantio

    Comercial de 30 hectares de Urucum), os Yawanaw desenvolveram uma srie de realizaes

    de interesse interno, o Projeto de Vida da aldeia, que no se encaixariam na lgica capitalista

    que orientava a negociao entre as partes, inicialmente. Localmente, podemos observar que

    houve grande incremento no acesso que a comunidade dispe aos bens pblicos e privados que

    garantem sua sobrevivncia. Houve sensvel modificao no nvel de qualidade de vida, tanto

    atravs do fortalecimento da infra-estrutura da aldeia - atravs da construo de escola, posto de

    sade, escritrios de representao em Tarauac e Rio Branco, galpes, centro de processamen-

    to de urucum na aldeia e fbrica de leo de andiroba em Tarauac, a instalao de rede de

    computao ligada Internet dentro da aldeia, a grande e surpreendentemente rpida ampliao

    da rea demarcada, etc. - como da construo de uma rede de contatos e de comunicao a nvel

    regional - que facilita a obteno de postos de trabalho para professores e agentes de sade ou a

    soluo rpida para ameaas sade da tribo no caso de surtos de epidemias aos quais governo

    estadual e agncias federais da rea de sade enviam equipes imediatamente. Mais surpreenden-

    temente ainda, podemos observar a ampliao da rede de alianas, contatos e prestgio a nvel

    nacional e internacional, que facilita a aprovao de projetos como o lanamento de uma grife

    de roupas com design prprio, o lanamento de CDs de msica e DVDs com filme documental

    que descreve o estado da cultura Yawanaw, no qual a lngua nativa, antes ameaada, est

    plenamente recuperada; antigas danas e formas de artesanato so resgatadas; pajelanas e

    dietas base da bebida sagrada ayhuasca que haviam sido abandonadas h vinte anos so

    retomadas por um nmero bastante grande de membros da aldeia, com significativas inova-

    es dessas tradies, como na introduo de mulheres em prticas antes restritas aos homens e

  • 28

    sua ampla divulgao na mdia... So tantas as realizaes do grupo, que no se pode negar a

    realizao de desenvolvimento econmico e social durante o perodo, mesmo que no atendam

    especificamente aos critrios de avaliao do IDH (ndice de Desenvolvimento Humano). Os

    Yawanaw se transformaram em uma espcie de grande sucesso editorial, figurando nos espa-

    os mais nobres da mdia nacional e internacional (pginas inteiras ou mesmo duplas de O

    Globo, Folha de So Paulo, Fantstico, Washington Post, New York Times, Libera-

    tion, etc.), sobre o qual sucessivas matrias jornalsticas tm, recentemente, descrito a bem

    sucedida insero de uma comunidade que se apresenta cada vez mais tradicional na medida em

    que se insere cada vez mais no mundo (cada vez mais) moderno.

    A tese analisa as sucessivas fases de insero do grupo no movimento social poltico re-

    gional e nacional nos anos setenta e oitenta, e o deslocamento deste eixo para a insero no

    movimento ambientalista a partir do final da dcada de oitenta. O desenvolvimento do movi-

    mento ambientalista e seus impactos na sociedade envolvente foram condies de possibilidade

    do encontro com a empresa capitalista americana e das modificaes na tica do pblico con-

    sumidor, que deram poder aos Yawanaw para que negociassem suas metas para alm das

    expectativas inicias do projeto.

    Mas a etnografia local e a observao das prticas do grupo indgena enquanto sujeitos

    que interpretam o capitalismo (pagamento, prazo, horrio, direitos de imagem) que acaba por

    traduzir a ordem de cultura e poder subjacente aos conceitos em disputa. Inicialmente a propos-

    ta desta tese foi, mesmo atenta a advertncia Godeliana de no procurar valores da economia no

    mundo da vida Yawanaw, a de centrar a anlise nas modificaes em torno da organizao do

    trabalho dentro da aldeia ressaltando o papel do lder nesta administrao e indicando at que

    ponto modernidade esperava que houvesse uma ciso entre a figura do lder e a do gerente que

    administra os recursos do projeto. Ao longo do processo de escrita, no entanto, a j esperada

    imbricao entre trabalho e poder poltico no mundo Yawanaw foi to onipresente, que a

    anlise das relaes de poder dentro da aldeia acabou por estabelecer uma precedncia sobre a

    anlise das relaes de trabalho. Como o poder se estabelece atravs das negociaes e constru-

    es efetuadas por arranjos familiares, a genealogia clssica se tornou imprescindvel anlise.

    Assim, acabei por ceder mais do que inicialmente imaginava, tradio etnogrfica.

    Como, nas discusses em torno do desenvolvimento sustentvel, tais transformaes

  • 29

    subjacentes geralmente se do sombra daquelas econmicas8, estas constituem justamente os

    elementos cegos sobre os quais devemos dirigir o foco terico. Ou seja, pretendo demonstrar

    que so tais dimenses especificamente no econmicas no sentido do branco (moderno,

    diferente do tradicional), que muitas vezes refletem a adaptao ao meio e o manejo sustentvel

    dos recursos naturais locais em sentido amplo e no restrito lgica de mercado. Tais esferas de

    organizao social extra-econmicas, justamente as que conferem sustentabilidade ao resultado

    das prticas de determinados grupos, precisam, ironicamente, ser corrigidos por programas

    de capacitao e treinamento para que se supere o atraso que impede que sejam aferidas, avalia-

    das e classificadas dentro do instrumental de controle gerado atravs de anos de atividades

    comerciais capitalistas. Assim, percebemos que antes de sustentvel, devemos discutir de-

    senvolvimento e econmico. Para alm da abstrao, a modernidade se apresenta nas formas

    concretas de organizao disciplinar que impe.

    i.2.1 A ideologia do mercado refletida na Organizao do Trabalho:

    Ao eleger o problema das adaptaes na organizao do trabalho tradicional dos Yawa-

    naw face s expectativas de agentes financiadores do projeto, nos aproximamos do processo de

    desencantamento do mundo que a racionalidade capitalista impe aos povos recm inseridos

    neste sistema (Bourdieu, 1979), buscando compreender o impacto que tais inovaes geram no

    tecido social da comunidade. A produo sociolgica brasileira dos anos cinqenta em torno do

    problema da mudana social extremamente rica, no que tange a reflexo sobre a racionaliza-

    o da produo diante da urbanizao e industrializao aceleradas da era Vargas, de mudan-

    as nos eixos virios, na contratualizao das relaes de trabalho, nas alteraes das solidarie-

    dades verticais em horizontais, etc. A literatura sobre a regio amaznica tem apresentado,

    recentemente, estudos como os de Weinstein,Teixeira e Franco, que se debruam sobre a reni-

    tncia que a formao social no entorno da economia da borracha (as elites amaznicas, os

    seringueiros) apresenta em ceder modernidade capitalista e sua secularizao, inovao tecno-

    lgica, racionalizao das relaes de trabalho.

    A presso pela modernizao da Amaznia, alm dos processos migratrios que acom-

    panham as alteraes nas redes virias, continua vinculada a processos de insero na economia

    globalizada, sedenta por seus produtos extrativos, desde a madeira a recursos genticos para a

    moderna indstria da biotecnologia. Mas tais presses so, hoje, parcialmente mediadas pela

    8 visveis, no mundo da organizao do trabalho, e passveis de monitoramento e avaliao que estabelecem poder e subordinao

  • 30

    forma como o problema ambiental interfere no mercado consumidor, pelo reordenamento do

    sistema global de comunicao, e pelas novas formas de disputa capitalista com sua sede e

    dependncia na legitimidade das identidades locais. Os mecanismos de dominao historica-

    mente colocados pela distncia e pelos obstculos naturais que facilitavam o controle colonial,

    se modificam na medida em que o remoto se conecta Internet e o acesso metrpole aberto

    em funo das especificidades culturais locais de origem comprovada, que conferem valor s

    mercadorias do sistema globalizado. A transposio da formao de valor ao nvel intelectual-

    cultural obriga a uma readequao de termos e posicionamentos no campo de discusso em

    torno do desenvolvimento, na medida em que a proposta de estender as benesses da modernida-

    de a uma rea remota e culturalmente distante do mundo desenvolvido para proteger o

    grupo em questo, se difere daquela anterior, onde os povos que habitam tais reas a cliente-

    la do desenvolvimento - eram tidos como massas passivas a serem includas na modernidade

    por um Estado que tinha a obrigao humanitria de salv-los da situao de pobreza. A posio

    de povos indgenas e tradicionais ainda no homogeneizados pela modernidade valorizada

    nesta rede discursiva na medida em que so considerados como detentores de um conhecimento

    tcnico (tradicional e sustentvel) que para o ambientalismo valioso pois segura a chave de

    modelos de desenvolvimento diferentes daquele estimulado at recentemente (madeireiros,

    mineradores, etc.) e para o grande capital representa a oportunidade de enormes lucros pela

    indstria de biotecnologia. O mercado (aqui representado pela empresa de cosmticos america-

    na), os valoriza pela oportunidade de agregar valor a seus produtos atravs de vantagens s-

    chumpterianas sobre seus concorrentes, buscando estabele cer uma relao de privilgio que lhe

    garanta um acesso direto ao mundo mais local possvel. Para a comunidade, a oportunidade se

    apresenta como forma de sanar a situao de explorao colonial a qual esteve historicamente

    submetida na relao com outros agentes mercantis como aqueles da indstria da borracha.

    i.2.2 O mbito poltico propriamente dito

    No mbito poltico, o estudo descreve a perspectiva de movimentos sociais, diferencian-

    do-a daquela comum a outros stios da rede de produo de significados tais como o campo

    cientfico, de governos nacionais ou de ONGs. Concordando com Escobar, que observa como

    diferentes regimes de representao da natureza se articulam em cada um destes nveis (Esco-

    bar, 1998a), e aceitando a poltica cultural enquanto o processo atravs do qual entram em

    conflito diferentes atores, que so moldados por e que personificam significados e prticas

  • 31

    culturais diferentes (tentando redefinir o poder social) (Escobar, 1998, 64), tentaremos com-

    preender como os Yawanaw se apropriam ou utilizam o discurso da biodiversidade e da sus-

    tentabilidade para aproveitar as oportunidades que se lhes abrem para atingir objetivos definidos

    internamente, na aldeia. Trazendo luz a dinmica atravs da qual tais oportunidades se abrem,

    assim como quais so os objetivos internos almejados por este segmento do movimento social

    claramente diferenciado de outros atores da rede (Ongs e assessores), acreditamos poder fazer

    com que a contribuio que este stio local da rede de produo de discurso deixe de ser

    ignorado pelo campo cientfico. Este ltimo, dada a assimetria na relao de poder e distribui-

    o de conhecimento na rede discursiva, tende a se tornar cego s contribuies que, partindo de

    grupos locais, podem ser teis conceitualizao da sustentabilidade. Em outras palavras,

    abandonando a centralidade econmica e assumindo a atividade poltica como central ao projeto

    em questo, poderemos entender os objetivos que os Yawanaw escondem no jogo estratgico

    de negociao com o capital e com o conhecimento ocidental e moderno. Isso nos revelar tanto

    o que lhes convm (mesmo que por algum motivo seja considerado inaceitvel pela ordem que

    oferece o subsdio mudana) e porque o escondem (aquilo que os leva a crer que o outro

    com quem dialoga no considerar tais objetivos como legtimos). Talvez sejam justamente

    esses objetivos velados que contenham chaves para a sustentabilidade que est sendo buscada

    pela cincia do sistema subordinador que as recusa ou que cego a elas.

    Interagindo com as mudanas concretas na organizao do trabalho que foram tentadas

    ao longo do processo, precisaremos enfocar o lder em sua ao, no papel que lhe investido

    tanto pela estrutura social quanto pela contingncia histrica. A constante tenso das demandas

    do universo capitalista sobre esta posio dentro da estrutura (Bourdieu, 1989) compe, junto

    com as adaptaes no trabalho, um binmio extremamente revelador e central anlise pois

    neste vrtice que a sobreposio de sistemas se concentra. Acredito ser relevante para o nosso

    estudo a questo j citada da ideologia moderna categorizar o gerente como isento de ativida-

    des polticas ou da possibilidade de auferir interesses pessoais atravs de uma espcie de inter-

    dio, nem sempre explicitada, mas que veda o acesso do poltico ao mundo do administrador

    (Heilbroner, 1988). Na aldeia indgena em estudo isto era impossvel. Os dados coletados ao

    longo de dez nos de trabalho junto comunidade revelam uma intensa atividade poltica local,

    no qual a disputa pelo acesso aos recursos trazidos ao grupo pelo lder e a disputa por posies-

    chave na rede de relacionamentos da aldeia com o mundo externo se apresentam quase que

    como a atividade principal da elite Yawanaw. A falta de separao entre os dois papis, ou

  • 32

    mesmo a determinao do papel do lder por sua capacidade como provedor, acabava por gerar

    situaes nas quais para ser idneo em relao ao mundo do branco o lder no poderia utilizar

    os recursos do projeto a no ser para os fins especificamente negociados, mas para se manter

    como lder teria que disponibilizar tais recursos de acordo com os critrios ticos locais de

    atendimento s necessidades internas da tribo. A forma que encontrei para apresentar estes

    dados foi a descrio etnogrfica e o estudo da etno-histria concentrados nos captulos dois e

    cinco.

    Ainda em referncia construo do poder na aldeia, a literatura produzida mais recen-

    temente apresenta duas vertentes distintas: por um lado, suprem a escassez de dados formais e

    publicados sobre os Yawanaw na bibliografia Pano, as etnografias clssicas produzida pelo

    casal de antroplogos espanhis em trabalho de mestrado pela Universidade Federal de Santa

    Catarina - Laura Perez, versando sobre ritual e prticas mgicas, e Miguel Naveira cujo

    trabalho sobre a constituio do grupo atravs da guerra aproveitaremos mais. Outro trabalho

    recente, de Mariana Pantoja Franco, que reconstitui as condies de vida nos seringais especi-

    almente aps a poca clssica do seringal de apogeu9, cujo esteretipo pareceu se disseminar e

    estabelecer no senso comum e na literatura uma idia engessada de relao de dominao e

    subjugao unilateral na qual os seringueiros seriam destitudos de agncia. Franco relativiza a

    passividade de grupos familiares no perodo do declnio da indstria da borracha diante da

    autoridade do patro do barraco e da dependncia dos mesmos em relao a estes. Mais impor-

    tante ainda paras os nossos propsitos, Franco demonstra etnograficamente o que representa o

    patrimnio na floresta: as relaes de solidariedade construdas nos rotineiros tempos de paz (e

    no nos tempos da guerra descrita por Naveira) que acabam por gerar os bens de consumo

    necessrios sobrevivncia e reproduo dos grupos familiares. Pretendo transpor a anlise de

    Franco para a aldeia e demonstrar como o mesmo processo de construo das solidariedades

    atravs de laos familiares efetivamente constri e constitui o poder dentro da comunidade

    indgena Yawanaw e que a habilidade para tal construo depende de competncias que no se

    limitam s da guerra, envolvendo tambm as habilidades afetivas descritas por Franco.

    i.3 O problema metodolgico da transformao da mediadora em pesquisadora

    A maior dificuldade e possivelmente a maior riqueza deste trabalho derivam do proble-

    9 ps-apogeu: um perodo em que diversidade de atividades produtivas substitui a exclusividade total da coleta de seringa por seringueiros solitrios totalmente dependentes dos bens do barraco por grupos organizados em unidades familiares com atividades produtivas diversificadas entre caa, pesca, agricultu-ra, extrao de seringa, etc.

  • 33

    ma de minha insero como pesquisadora. Como mediadora que fui - no cargo de Coordenadora

    do Projeto por nove anos e meio - investi esforos e derivei interesses prprios dos seus resulta-

    dos. Se por um lado no foi difcil ser aceita pela comunidade, por outro fui aceita para desem-

    penhar uma funo especfica, sem a chance de ao menos pretender a neutralidade conferida

    pelo posto da observao cientfica. No se trata de observao participante ao estilo Nuer, nem

    da proposta de iseno negociada com o objeto conforme as proposies da metodologia

    antropolgica (Becker, 1993). O que houve foi uma significativa interao durante um perodo

    de tempo de dez anos , com no mnimo 2 viagens por ano aldeia, de no mnimo uma semana e

    no mximo dois meses e meio de cada vez (mais comumente de 2 a 4 semanas). Sobre as condi-

    es de observao, portanto, mais difcil do que a questo da insero do pesquisador para ter

    acesso a dados, ser a questo da apresentao da experincia para o grupo de colegas pesquisa-

    dores, j que as observaes e dados disponveis no foram colhidos por um personagem no

    desempenho deste papel, construdo ao longo de anos de relacionamento com pares na atividade

    acadmica. Foram dados colhidos por um agente do processo que procurou, desajeitadamente,

    adquirir o instrumental de pesquisa aps ter vivido a experincia de campo como agente.

    No sentido oposto ao perigo de enviezamento desta condio de agente, tal insero

    proporcionou um ponto de vista que dificilmente seria alcanada por uma pesquisadora em

    condies normais. Na condio dupla de assessora das lideranas da comunidade e de repre-

    sentante da empresa, pude participar de assemblias e reunies, acompanhar lderes em viagens,

    acumular ampla correspondncia e documentao e gastar muitas horas em campo acompa-

    nhando o trabalho em todas as suas etapas. verdade que a intimidade com a tribo se aprofun-

    dou a ponto de prejudicar o distanciamento que provoca o exotismo, to propalado enquanto

    condio da etnografia. No entanto, pde proporcionar minha entrada em universos que dificil-

    mente seriam freqentados por pessoas de fora, como o universo feminino e o universo da

    famlia, o mundo do trabalho no roado, as negociaes entre chefes de famlia, as disputas

    polticas internas e externas aldeia.

    O lder, por sua vez, parecia me aceitar justamente por no ser eu advinda do campo a-

    cadmico ao qual criticava sob a acusao de no trazer benefcios aldeia mas apenas ao

    status individual de cada pesquisador. Esta rejeio era uma manifestao da compreenso

    bastante aguda, por parte da elite da aldeia, do capital simblico e do prestgio que a associao

    com uma comunidade indgena parecia auferir aos aliados brancos com os quais entravam em

    contato. Havia o desejo, manifestado em diversas assemblias e reunies de planejamento de

  • 34

    projetos, dos Yawanaw contarem sua prpria histria, serem autores de seu material cultural10.

    Acompanhei algumas negociaes com diferentes pesquisadores que pretendiam entrar na

    aldeia, sendo que as duas negociaes (envolvendo trs pesquisadores) que acompanhei mais

    de perto foram marcadas pela insistncia por parte dos pesquisadores e reticncia por parte das

    lideranas, sendo ambos os casos resolvidos pela ida sem autorizao dos pesquisadores rea

    seguida pela posterior aquiescncia dos ndios sua presena para evitar conflitos maiores. Essa

    hesitao em aceitar ter sua histria contada por terceiros revelava a facilidade com que a

    comunidade indgena articulava o quase indizvel jogo de prestgio que reveste as relaes entre

    pesquisador e objeto, ou entre mediador e comunidade assessorada, em nossa sociedade. A elite

    Yawanaw administrava em benefcio da aldeia o desejo de aproximao dos aliados brancos,

    dosando com cuidado e parcimnia o favor da representao, chegando a lan-los em compe-

    tio para ver quem traria maiores benefcios aldeia moeda que constitui o capital simblico

    de mediadores e assessores do movimento popular.

    Tratava-se de uma experincia de vida que se iniciou como uma forma de neo-

    militncia ecolgica, se transformou em atividade profissional, e que passou a ambicionar se

    transformar em atividade intelectual na medida em que a riqueza de situaes que se apresenta-

    vam, a complexidade do campo indigenista no qual penetrava e atravs do contato com os

    agentes com os quais a comunidade interagia, despertavam a conscincia de minha ignorncia.

    Cinco anos de atividade como mediadora entre a tribo e a empresa capitalista americana e em

    relao freqente com entidades ambientalistas e indigenistas, rgos governamentais como a

    FUNAI, no entrecruzamento de interesses e disposies das mais variadas e que interpretavam o

    papel que eu desempenhava de maneiras incrivelmente dspares (desde amiga dos ndios

    representante de interesses norte-americanos no Brasil), tive uma crise de identidade que se

    manifestava por uma aguda e dolorosa sensao de ser eu composta por uma colcha onde

    faltavam retalhos tericos fundamentais para manter sua integridade e evitar sua fragmenta-

    o. Calou fundo, neste momento, o conselho de um amigo de que era necessrio que eu estabe-

    lecesse um projeto de vida prprio para que conseguisse interagir com tantos mundos diferentes

    10 Em 1997, fui procurada por um agente literrio americano que me props escrever um livro contando minhas experincias junto tribo. As lideranas reagiram idia, considerando que este deveria ser um projeto executado por Joaquim Yawanaw, um jovem que vivia na cidade, filho do lder Raimundo. Aps vrias reunies, a proposta acabou se transformando em uma proposta de financiamento da compra de gravadores, cmeras e computadores para o registro no qual os velhos da aldeia contariam sua histria. A editora acabou por no aceitar a proposta por ach-la cara. Mas o ento jovem Joaquim se transformou de fato no autor de filmes, vdeos e CDs musicais que contam a histria de seu povo, adquirindo um alto grau de competncia na administrao da imagem da tribo, se relacionando com a imprensa nacional e internacional.como um especialista.

  • 35

    sem perder o que sobrava de minha identidade, fragilizada que estava, em meio a um antropo-

    logical blues leigo, porm real. Assim, tive literalmente - que pedir ao cacique a permisso

    para voltar a estudar.

    As opes que se apresentavam, ao refletir sobre a dificuldade de me transformar de a-

    gente em pesquisadora (sair, como diria Becker, da experincia individual e iniciar o caminho

    at a etapa de trazer os dados para a anlise na interface com a academia) (Becker, 1993) se

    resumiam a desistir da empreitada ou correr o risco de v-la rejeitada pela crtica objetivista de

    pares que seriam novos, recm adquiridos, ao invs de acumulados ao longo do processo normal

    de formao universitria. Assumir o risco acarretava a empreitada duplamente trabalhosa:

    investir, com constante vigilncia epistemolgica sobre mim mesma (Tavares dos Santos,

    1991), teoria em dados j adquiridos e muitas vezes sedimentados, necessitando ser re-avivados

    pela capacidade crtica recm-adquirida. Desistir envolveria em uma das vertentes do desper-

    dcio da experincia, no sentido da Crtica da Razo Indolente de Boaventura Santos (Santos,

    1995) que acusa a teoria moderna de vacilar diante dos problemas criados pela modernidade

    para as quais a critica moderna no mais encontra solues: ou resolve que, por no haver

    solues possveis, no existem problemas a se perseguir; ou no reconhece problemas que no

    condizem com as solues indicadas por seu mtodo de anlise.

    Este seria o desperdcio de uma experincia vivida no cruzamento de campos que no se

    encontram gratuitamente na atualidade, campos estes to dspares como a indstria de cosmti-

    cos, o mercado da moda, a aldeia indgena, o campo ambientalista, a academia e diversas insti-

    tuies polticas. Este enorme entroncamento pode nos dar pistas da complexidade dos proble-

    mas que um objeto de estudo recortado ao sabor de um mtodo academicamente consagrado

    talvez dissimulasse. Uma experincia, como talvez tivesse Boaventura a coragem de nomear

    como ps-moderna, que pudesse ajudar a desvendar problemas criados pela modernidade

    colonial, mas que se desenvolvem em ambiente ps-moderno: globalizado, interconectado,

    multi-situado, complexo.

    Assim, no podemos reduzir este dilema diferena entre a observao participante e a

    participao observante discutidos por Eunice Durham (Durham, 1986). No se trata de esco-

    lher ou evitar ser seduzido pela militncia e/ou se prender ao compromisso com o rigor cientfi-

    co. O papel de antroplogos e intelectuais que optaram por participar ou por se afastar para o

    posto de observao crtica da ao de interveno nas comunidades tradicionais a serem inva-

    didas pelas foras da modernidade , em si mesmo, parte do problema a ser enfrentado nesta

  • 36

    empreitada. Diante do problema epistemolgico desta transformao de participante em

    observante face ao objeto que o prprio encontro multifacetado no qual a ao de antrop-

    logos interfere nos rumos da histria e das polticas pblicas, o objeto deixa de ser a comunida-

    de indgena passando a ser o campo foras do movimento social e aquele mais amplo, do desen-

    volvimento econmico como expresso da modernidade e do capitalismo em seu estgio atual

    (a alta modernidade de Giddens ou o capitalismo avanado de Jameson).

    i.4 A diacronia como recurso

    Entre as diversas sugestes metodolgicas para facilitar meu distanciamento face imer-

    so que experincia provocou, estavam os conselhos de Louis Pinto sobre a observao clara

    do pesquisador dentro do campo da pesquisa alm do recurso documentao e uso constante

    de comparaes, (Pinto in Champagne et alli, , 1998). No entanto, no pude usar o quarto

    recurso recomendado por este autor, entre tantos outros, de partir para a coleta de dados com

    uma pergunta fundante bem formulada, visto que o ato de pesquisa se deu aps a vivncia do

    campo, e os dados coletados o foram sem que houvesse sido articulada a pergunta capaz de

    transformar os fatos sociais em sociolgicos. Os dados colecionados ao longo de dez anos de

    arquivamento de informaes captadas atravs de entrevistas gravadas ou filmadas, fotos,

    documentao contbil, relatrios de viagem e de avaliao de projetos, atas de assemblias,

    desenhos de ndios, etc. eram na realidade um enorme excesso de difcil administrao. Desta

    forma, uma estranha inverso se deu atravs da qual meus arquivos se tornaram o campo.

    Neste campo, os dados passaram a ser selecionados em funo da delimitao que provisoria-

    mente estabeleci em torno da organizao do trabalho, mas rebelde e significavelmente insisti-

    ram em se apresentar como relacionados organizao poltica do grupo, apontando para essa

    imbricao fundamental.

    Tambm foram fundamentais os conselhos da professora Ana Galano, de que desse tem-

    po ao tempo, e que observasse a mim mesma, atenta s transformaes causadas pelo retorno

    universidade, registrando o olhar que eu mesma tinha antes e depois de ter adquirido o instru-

    mental analtico que a academia forneceu. No papel de mediadora entre a empresa e a tribo,

    com participao muito ativa nas reunies e tomadas de deciso e na organizao direta dos

    trabalhos ao longo deste tempo, como um personagem que transparece nas cartas e relatrios,

    transcries de fitas e fotografias, a autora se constitui como agente do processo a ser observado

    e cujas aes devem ser analisadas. A tarefa passa a ser recuperar a viso de mundo que se tinha

    em determinado momento, j alterada e transformada tanto pela experincia como pelo acmulo

  • 37

    de informao e de teoria no prprio processo de aprendizado acadmico.

    A transformao de uma experincia no mundo da vida em aventura intelectual e socio-

    lgica, acabou se ancorando, assim, no andar do tempo e no distanciamento crtico facilitado

    pela anlise diacrnica. Ao mesmo tempo, na medida que observava as diferentes descries e

    comentrios que outros observadores teciam sobre a aldeia aps visitas nicas e curtas, percebia

    como o objeto observado se apresentava como um cristal furta-cor que deixava nos visitantes

    fortes impresses que dependiam inteiramente do momento e da conjuntura de cada visita.

    Assim, aqueles que iam Nova Esperana em tempos de festa ou durante surtos epidmicos,

    pareciam descrever aldeias diferentes. Percebi ento como o acompanhamento de um perodo

    longo poderia tambm dar relevo aos conflitos e revelar o dinamismo e a agncia viva dentro da

    estrutura flagrada no sincronismo. Optei, por todos estes motivos, por apresentar de forma

    cronolgica os eventos de constituio e desenvolvimento do Projeto atravs de uma histria

    crtica, termo esse que no constitui um conceito ou metodologia estabelecida por qualquer

    autor, mas que defino, aqui, como a descrio etnogrfica densa de eventos dispostos diacrni-

    camente.

    O Projeto em questo no se d em um vazio histrico, no configura uma relao entre

    partes genricas - nem o ndio genrico de Lins Ribeiro nem a empresa capitalista genrica.

    Para tanto, os leitores percebero que cada captulo se inicia com a tentativa de anlise descriti-

    va ampla que favorea a genealogia dos conceitos e o mapeamento das alianas estabelecidas

    pela comunidade ou pela empresa, e se seguir de uma aproximao do foco da lente em direo

    aos atores que interagem com tais estruturas.

    O relevo que busco na descrio diacrnica estar constantemente referido s discusses

    entre estrutura e ao da forma como foram propostas por Bourdieu, e acredito que esta tese seja

    uma tentativa de demonstrar a agncia de indivduos dentro de estruturas estruturadas e estrutu-

    rantes, modificadas por esta ao de indivduos que determinam rumos tomados nas bifurcaes

    que a histria apresenta. Tentaremos desempacotar o papel de atores que trafegam nas estru-

    turas gerais atravs do tempo, mostrando como respostas imbudas de escolhas e especificidades

    s situaes que se apresentaram ao longo deste perodo, determinaram direes possveis a

    partir dessas bifurcaes. Ao mesmo tempo, vemos como padres gerais resultam em efeitos

    muitas vezes inesperados, como polticas pblicas negociadas em altas esferas governamentais

    que afetam o mundo da vida local de formas diferentes do previsto. No sentido inverso, a ao

    de indivduos e a formao de alianas afetam as estruturas institucionais, estabelecem tendn-

  • 38

    cias, fecham ou abrem portas que determinam a direo do desenrolar de eventos.

    Tentarei, assim, situar o incio do projeto em um continuum que considera e coloca em

    relevo a experincia da comunidade, acumulada atravs de diversas fases de contato com a

    sociedade envolvente, portanto diacrnica. No entanto, em se tratando o nosso objeto de um

    encontro, seu recorte exige uma descrio dirigida a mais de uma direo, podendo incorrer

    no pecado da superficialidade, j que possui o compromisso com a concatenao de fatores to

    distantes entre si a ponto de estarem por vezes excludos do mesmo campo discursivo. Pautado

    na teoria da antropologia literria, Castro Rocha, estudando o pblico e o privado na literatura

    brasileira, desenvolve, o conceito de campo discursivo como sendo composto de dados que

    necessariamente o antecedem, mas, no ato de transform-los em objetos de discurso... no

    apenas d forma aos dados, como pode inform-los de contedos que no poderiam ter sido

    determinados pelos dados em si mesmos (Rocha, 1998, p. 32). Ao adotar a metodologia com-

    parativa, esse autor percebe que toda resposta, em virtude de seu carter histrico particular,

    possui elementos irredutveis a uma abordagem comparativa, o que soluciona, ento, atravs

    da aproximao de problemas ao i