uma tribo vai ao mercado yawanawa
DESCRIPTION
entografiaTRANSCRIPT
-
1
UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E SOCIAIS DEPARTAMENTO DE DESENVOLVIMENTO, AGRICULTURA E SOCIEDADE CURSO DE PS-GRADUAO EM DESENVOLVIMENTO, AGRICULTURA E SOCIEDADE
Uma tribo vai ao Mercado - Os Yawanaw: sujeitos ou objetos do processo?
May Waddington Telles Ribeiro Sob Orientao do Professor Jos Augusto Pdua Co-orientao da Professora Maria Jos Carneiro 2005 UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E SOCIAIS DEPARTAMENTO DE DESENVOLVIMENTO, AGRICULTURA E SOCIEDADE CURSO DE PS-GRADUAO EM DESENVOLVIMENTO, AGRICULTURA E SOCIEDADE
-
2
Uma tribo vai ao Mercado - Os Yawanaw: sujeitos ou objetos do processo?
May Waddington Telles Ribeiro Sob Orientao do Professor Jos Augusto Pdua Co-orientao da Professora Maria Jos Carneiro Tese submetida como requisito para a obteno do grau de Doutor em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade rea de Concentrao em Sociedade e Agricultura
Seropdica, Rio de Janeiro Maio de 2005
-
3
-
4
Dedicatria
Dedico essa tese a quem dedico todo o esforo que fao nessa vida: meus filhos, a quem o que posso deixar aquilo que eu conseguir ser. Pela pa-cincia que tiveram com minhas longas ausncias e pelo orgulho que me inspiram, essa Tese deles, como eu sou deles. Em especial, minha menina, Liv, de quem recebo todo o carinho que me embala, e que cuidou de mim nos momentos mais difceis, onde a dor e a doena me assusta-vam.
Biografia da autora: May Waddington se formou em Cincias Sociais pelo IFHCS, da UFRJ. autora de do-cumentrios em vdeo, como As Farmcias Vivas do Professor Matos e Roa Crua, As roas Orgncias das Quebradeiras de Coco do Maranho. Atualmente finaliza um longa metragem sobre a criao de abelhas no serto do Paiu (Mel da Terr) e An-jos, sobre o trabalho de santeiros de Teresina com crianas e adolescentes pobres.
-
5
Agradecimentos Essa tese foi o resultado da experincia mais transformadora e enriquecedora que tive, fazen-
do de mim algum que anda pela Terra com a certeza de ter recebido o quinho que justifica toda uma vida. Eu no poderia ter conhecido os encantos da floresta, sobrevoado o mar de copas, andado longas horas sob as mesmas ou descido de canoa o belo rio Gregrio, no fossem o desafio lanado por Darrell Posey, a confiana que me foi depositada por Horst Rechelbacher e o carinho do cacique Biraci Brasil e de todo o seu povo. Com os Yawanaw eu brinquei, briguei, viajei, trabalhei, sorri, chorei, comi, me banhei e, acima de tudo, tive meus conceitos virados de ponta cabea, conheci a luz da Rainha da Floresta e compreendi algumas das coisas que realmente importam nessa vida. Mesmo que eu esteja afastada, a tribo Yawanaw mora em mim e s vezes um simples raio de sol me traz de volta o sorriso das comadres Ftima, Marizete e Aldelcia, a lealdade do compadre Missi, a risada das crianas da aldeia, a voz dos pajzinhos Yawarani e Tat a cantarem noite adentro.
Dos amigos que fiz no Acre, Marcelo Piedrafita e Mariana Pantoja ficaro para sempre no meu corao e na minha memria mesmo que a vida tenha nos afastado, enquanto que a quase filha, Ingrid Weber, se sumir eu busco onde estiver! No Acre tambm, Mauro Almeida me desafiou a transformar essa experincia de vida em escrita. Acredito que ele nem saiba o quanto o fato de ter me levado a srio me fez levar esse projeto a cabo. Em Braslia, David Hathaway, Gisela Alencar, Paulo Peret e Nilo Melo acreditaram em mim e me alimentaram com longas conversas.
Ao voltar para a academia, tive alguns dos encontros mais ricos que poderia ter com professores como Jos Augusto Pdua, meu orientador, a me abrir portas e me cobrar clareza e limpeza de esprito, e Maria Jos Carneiro a construir a pouca segurana que tenho nessa esfera de atividade. Agradeo, tambm, a Marco Antnio Melo por ter me levado s lgrimas tantas vezes, logo no incio dessa caminhada. Espero ter conseguido seguir alguns dos conselhos que recebi da finada Ana Galano e ter adquirido algum do capricho com o qual fui apresentada antropologia por Neide Esterci. Deixo aqui o meu agradecimento ao economista Nelson Delgado pelo respeito, capacidade de ouvir e honestidade na forma de discutir, com o qual tratou a mim e aos colegas dos cursos de Desenvolvimento Local. As amigas Fernanda Fonseca, Flaviane Canavesi, Pierina German e Juliana Loureiro foram blsamos na vida de estudante que espero poder ter por perto para sempre.
No posso deixar de honrar C.W.Mills que me ensinou que o texto deve ter voz e que so-mos artesos a dar vida matria ao lidar com dados, e a Arturo Escobar cuja criatividade foi to inspiradora quanto a msica que me acompanha sempre, a qual tambm agradeo!
Trs monumentos que conheci foram exemplos de tica, trabalho e amor pelo conheci-mento: Dra Nise da Silveira, Professor Francisco de Abreu Matos, e o operrio do cinema, Sannin Cherques. A eles agradeo por terem sido pais, avs e amigos e por me mostrarem para que serve o saber.
No meu trabalho cotidiano, tive sempre a colaborao de pessoas pacientes com a minha pressa. Entre elas, a principal e primeira Eunice Maria que me acompanha h vinte e quatro anos, sendo me minha e de meus filhos tambm. Contei com Pati Maia, Carmem Castro e Cntia Reginaldo em momentos diferentes, me dando lastro para que eu pudesse navegar entre esses tantos mundos como intermediria entre a Aveda e os Yawanaw.
Por fim, agradeo minha me e a meus filhos a quem eu tantas vezes abandonei em mi-nhas longas viagens, nos anos mais importantes de sua formao. Hoje, adultos e casados, merecem todo o meu respeito e amor. E falando de amor, agradeo a R.S. por ter me apoiado ao longo desses nos de escrita, com sua presena rara mas calma e reconfortante, mesmo quando essa presena se dava atravs de sinais de fumaa.
-
6
Sumrio da Tese
Essa tese descreve um Projeto de Desenvolvimento Sustentvel financiado por uma em-
presa de Cosmticos americana, realizado em uma rea indgena no Acre. Atravs do
processo de negociao e das dificuldades encontradas na realizao do trabalho e na
adaptao da aldeia nova atividade, revela o sutil jogo de interesses por trs do concei-
to de Desenvolvimento Sustentvel. Os Yawanaw so apresentados como agentes do
processo, e a forma como interpretam e alcanam seus objetivos desvenda como o dis-
curso da Ordem da Economia impede que reconheamos como legtmos e passveis de
financiamento, objetivos do Projeto de Vida da Comunidade Yawanaw. Mesmo que
no tenham realizado algumas das metas de produo propostas, os Yawanaw conquis-
taram muitos dos seus obejtivos prprios, se fortalecendo politicamente e se trasnfor-
mando em uma espcie de sucesso editorial, com CD e filme gravados, escritrios em
vrias cidades, e acesso s instituies modernas.
-
7
NDICE
Agradecimentos ........................................................................... p. 05 Sumrio ......................................................................................... p. 06 ndice ......................................................................................... p. 07 Glossrio .........................................................................................p. 08 Mapa 1 aldeia, rios, Tarauac, Rio Branco............................. p. 09 Mapa 2 - Rio Gregrio ................................................................. p. 10 Mapa 3. esquema das colocaes do So Vicente at a aldeia... p. 11 Introduo ...................................................................................... p. 12 Captulo I ..................................................................................... p. 41 Captulo II ..................................................................................... p. 98 Captulo III..................................................................................... p. 157 Captulo IV .................................................................................... p. 196 Captulo V ..................................................................................... p. 244 Captulo VI .................................................................................... p. 305 Bibliografia .................................................................................... p. 348 Anexo I : Declarao de Belm, ISE............................................ p. 355 Anexo II : Ceres Principles .......................................................... p. 357 Anexo III: A Construo do Conceito de Desenv. Sust.............. p. 358 Anexo IV : Quadro e Consideraes Genealgicas ................... p. 362 Anexo V: Espelho de Pesquisa da Misso Novas Tribos........... p. 371 Anexo VI: O Alcance da famlia de R. L. no mundo Externo.... p. 380 Anexo VII: Policy da Aveda........................................................... p. 381 Anexo VIII Poema de Fernando Luis Yawanaw ...................... p. 383 Anexo IX Festas............................................................................. p. 385 Anexo X Fotos............................................................................... p. 388 Mapa 4: T.I. Rio Gregrio........................................................... p. 390
-
8
GLOSSRIO DAS SIGLAS ABCN - Associao Brasileira de Corantes Naturais em Vitria da Conquista, na Bahia; BID Banco Interamericano de Desenvolvimento BNDES Banco Nacional de Desnvolvimento CEE- Comunidade Econmica Europia EMBRAPA Empresa Brasileira de Pesquisa em Agricultura FUNAI Fundao Nacional do ndio INCRA Instituto Nacional de Reforma Agrria CNUMAD Conferncia Naes Unidas pelo Meio-Ambiente e Desenvolvimento UNEP United Nations Environmetal Program BSR Business for Social Responsibility BCSD - Business Council for Sustainable Development CERES - Corporations for Environmentally Responsible Economics CNN Cable News Network CVA empresa Couro Vegetal da Amaznia CEDI -Centro de Documentao Ecumnica. CIMI Conselho Indigenista Missionrio CPI-AC Comisso Pr-ndio do Acre CTI - Centro de Trabalho indigenista ISA Instituto Socioambiental ISE International Society of Ethnobiology NDI Ncelo de Direitos Indgenas RAN Rainforest Action Network ASAREAJ- Associao dos Seringueiros da Resrva Extrativista do Alto Juru ASKARJ Associao Kashinaw do Rio Jordo CNS Conselho Nacional dos Seringueiros CPI - Centro de Pesquisa Indgena (de Krenak) MPIVJ Movimento dos Povos indgenas do Vale do Juru OAYERG Organizao dos Agricultores Ezxtrativistas Yawaanw do Rio Gregrio STR Sindicato de Trabalhadores rurais UNI-AC Unio Nacional dos ndios do Acre
-
9
-
10
-
11
-
12
INTRODUO
A presente tese se prope a desenvolver a anlise de um projeto de desenvolvimento
comunitrio, denominado Plantio Comercial de 30 ha de Urucum promovido por uma comu-
nidade indgena, os Yawanaw do Rio Gregrio, no Acre, em parceria com uma empresa de
cosmticos americana, a Aveda Corporation. Tal Projeto teve incio em 1993, aps o encontro
entre lideranas da comunidade e o dono da empresa durante o Parlamento da Terra, evento
paralelo Eco-92. Previsto para durar dois anos, visava implementao do plantio e a comer-
cializao da produo de urucum para a utilizao na produo de cosmticos pela empresa.
Acabou por estender-se e transformar-se em uma parceria que dura at o presente momento, e
que incluiu inmeras outras atividades tanto de cunho social (escola, posto de sade, etc.) como
de produo comercial, envolvendo a parceria com outros agentes do setor privado e do setor
pblico, como o governo do Estado do Acre e o Ministrio do Meio Ambiente. Escolhi adotar o
enfoque diacrnico devido ao fato de ter acompanhado o projeto por um perodo de nove anos e
meio, como coordenadora das atividades e mediadora entre empresa e tribo. Espero que a
descrio diacrnica, associada tentativa de etnografia ampla das relaes do grupo com
diferentes setores da sociedade envolvente, confira relevo analtico suficiente ao trabalho para
que possamos identificar as formas de agncia do grupo face s oportunidades polticas e eco-
nmicas que lhe foram apresentadas atravs da parceria.
Tratava-se de uma proposta de desenvolvimento sustentvel atravs de negociao de
preos sob a tica do mercado justo, que seguia uma lgica diferente da aferio mxima de
lucro direto comum aos empreendimentos comerciais e industriais, sendo informada por valores
originados no seio do movimento ecolgico. A tese descreve as condies que propiciaram o
encontro da tribo com a empresa, tais como a conscincia ecolgica de consumidores europeus
e americanos, as tendncias do desenvolvimento do capitalismo mundializado na contempora-
neidade, a descomoditizao e as estratgias de pequenas empresas penetrarem o mercado
dominado pelo capital monopolista. A forma como os termos da parceria foram apropriados e
traduzidos pelos diferentes atores envolvidos analisada dentro do contexto histrico e cultural
da aldeia e da empresa, revelando a forma como foram utilizados a servio dos objetivos e
interesses de cada grupo. Se por um lado a empresa se beneficiava da associao de sua imagem
quela da tribo, a comunidade indgena negociava com a empresa a fim de suprir suas demandas
-
13
internas para a realizao de um projeto prprio a que denominei Projeto de Vida da aldeia.
Esse ltimo termo - emprestado de Arturo Escobar que o colheu junto s comunidades negras na
Costa Pacfica Colombiana, atravs do processo de discusso que batiza de PCN (Processo de
Comunidades Negras) (1998a) - representa o conjunto de interesses da comunidade indgena e
metas a serem atingidas que estaremos comparando ao projeto econmico apresentado que-
les que forneciam os recursos agncias financiadoras estatais e empresa - na linguagem e
dentro dos critrios que os lderes da aldeia e seus assessores julgavam ter alguma chance de
serem aprovados.
A empresa precisou se adaptar s condies do trabalho desta parceria para superar os
impasses que as diferenas culturais apresentaram, no apenas no relacionamento direto com
uma tribo indgena mas tambm em sua insero no campo do ambientalismo. Em um primeiro
momento, no dispunha de quadros que dessem conta de tal atividade, nem de uma insero no
ambiente social, cultural e institucional do ambientalismo, composto por militantes polticos,
acadmicos, representantes de grupos tradicionais ou agentes governamentais. A empresa fora
atora da guinada histrica do processo de descomoditizao e parecia representar uma novi-
dade no cenrio do capitalismo monopolista, ao conseguir se estabelecer em um mercado alta-
mente concentrado atravs do diferencial ecolgico. Sua histria nos remete ao plano de anlise
geral das tendncias do capitalismo tardio, com o deslocamento da gerao de valor do mundo
fsico do cho de fbrica, do trabalho e at do ambiente financeiro para a esfera sutil da apropri-
ao da imagem, da propriedade intelectual e da cultura. A oportunidade que encontrou para
romper o bloqueio do capitalismo monopolista e se estabelecer no mercado atravs da associa-
o de sua imagem aos valores que vieram tona com o movimento ambiental (como os limites
de disponibilidade de recursos naturais e a contaminao silenciosa), cedeu diante das contradi-
es estruturais atuais do desenvolvimento do capitalismo, com a aguda concentrao atravs
de mergers e aquisies, acabando por ser vendida a uma multinacional, a Este Lauder, aps
vinte anos de funcionamento independente.
A observao ao longo de um perodo de tempo de aproximadamente dez anos revela a
complexidade e o carter multifacetado das dificuldades da comunidade indgena em atender s
metas estabelecidas pela atividade voltada para o mercado. As adaptaes que a comunidade
teve que empreender para dar conta de sua parte do acordo fornecem indicaes da transforma-
o que a atividade voltada para o mercado provocou em sua organizao interna, tanto no nvel
econmico como no poltico, religioso, sexual, etc. Embora tais alteraes no se restrinjam de
-
14
forma alguma ao campo econmico - cuja integrao com o sistema de vida da comunidade
como um todo parte fundamental da teoria que alimenta esta tese optei, inicialmente, por
centrar a anlise, a ttulo de delimitao do problema, nas adaptaes efetuadas na organizao
do trabalho da comunidade para fazer frente s demandas da nova atividade. No entanto, a
imbricao do trabalho com as estruturas de poder dentro da aldeia eram to profundas, que a
anlise acabou se centrando igualmente na organizao poltica do grupo, que no pde ser
dissociada daquela do trabalho.
Essa organizao poltica, por sua vez, se mostrou completamente dependente dos recur-
sos que o grupo acessava atravs de sua relao com agentes externos. Veremos como a etnolo-
gia pano clssica aponta para um sistema tendencialmente fechado de relaes internas aldeia
como sendo historicamente complementado pela relao com um outro estrangeiro, de fora da
aldeia. Sendo um sistema fechado que devorava os recursos internos, necessitando de um acesso
ao mundo externo que o oxigenasse, a posio na estrutura poltica da aldeia que possibilitasse
tal acesso conferia o poder. Fosse atravs das guerras milenares pela captura de mulheres que
alimentavam o sistema de casamentos poligmicos; ou atravs das relaes de servio e parceria
estabelecidas com os patres dos seringais; dos vnculos de dependncia estabelecidos com os
missionrios americanos; da insero no Movimento Indgena; da relao com a empresa ame-
ricana financiadora do Projeto ou com o pblico que esse disponibilizou aldeia de forma
poderosa pela mdia televisiva e escrita, a competio interna pelo papel de mediador do grupo
com tais recursos externos era um dos principais fatores a ordenar o poder dentro da aldeia.
Acreditamos poder demonstrar que, ao pressionar principalmente o mundo do trabalho
dentro da aldeia, a produo para o mercado revela o quo imbricadas esto as outras esferas da
vida naquela do trabalho. Inversamente, demonstramos como a alienao provocada pelas
demandas especficas do trabalho voltado para o mercado exige a alterao dessas outras esfe-
ras. A escolha por delimitar o campo pesquisado s negociaes e adaptaes feitas em torno
da organizao do trabalho no deve ser interpretada com uma incongruncia frente opo
metodolgica que procura retirar a economia da posio de centralidade analtica que esta tem
ocupado na histria das disciplinas acadmicas (Escobar, 1995, pg 58-59). Pretendemos de-
monstrar, assim, que a transformao induzida pelo objetivo de sucesso junto ao mundo do
branco (a autonomia construda a partir da produo voltada para o mercado) acaba por revelar
a sobreposio de um sistema cultural capitalista sobre outro, tradicional e subordinado, e que
tal sobreposio no se reduz ou limita s praticas econmicas, embora o discurso que justifica
-
15
a interveno em tempos ecolgica e politicamente corretos reitere repetidamente que no se
pretende interferir nas esferas cultural, espiritual ou poltica da comunidade. A eficcia da
sobreposio parece depender desta alegada iseno, conferida pelo isolamento do mundo
econmico (Escobar, 1995, p. 60) em relao ao poltico, afetivo, familiar, etc.
A comunidade, por outro lado, interpretava ativamente os interesses da empresa e dos
outros parceiros externos, readequando sua prpria constituio identitria de forma a ter o
maior sucesso possvel em acessar tais recursos. Como agentes, e no apenas enquanto objetos
do processo de insero no mundo que os envolvia com um abrao cada vez mais prximo,
diferentes elementos internos comunidade lutavam para escolher os caminhos que as bifurca-
es da histria lhes apresentavam, fazendo escolhas por vezes acertadas, por vezes erradas, por
vezes corrigidas e por vezes assumidas como independentes do processo da sociedade
envolvente como um todo.
O governo do Estado teve trs administraes diferentes no perodo estudado, passando
de um governo de extrema direita que representava os interesses de madeireiros e ruralistas ao
Governo da Floresta de Jorge Viana com seus compromisso com os interesses dos povos da
floresta, com quem a comunidade estabeleceu parcerias. Mesmo reconhecendo que no seria
possvel, no escopo deste trabalho, averiguar at que ponto estas mudanas histricas foram
promovidas pela tica do mesmo discurso ambientalista que estimulou a empresa a desenvolver
a parceria, a anlise diacrnica ajuda a revelar a dinmica de mudanas e a forma como lideran-
as da comunidade negociam com as autoridades constitudas, como acessam os recursos
pblicos disponveis, e quais as estratgias que utilizam tanto interna quanto externamente na
competio por este acesso.
Tendo apresentado as condies acima descritas, tentaremos chegar ao objetivo princi-
pal desta tese, que o de descrever o sutil jogo de interesses por trs da apropriao, tanto pela
empresa quanto pelo grupo indgena, do discurso (e muitas vezes dos recursos) do ambientalis-
mo. Tomando a comunidade indgena no como um bloco homogneo, mas como composta por
atores com poderes e acesso a recursos diferenciados e por vezes antagnicos, podemos ver o
que cada ator interpreta como Projeto, como ambiental ou como sustentvel. As demandas
atinentes ao projeto de vida da comunidade e os motivos pelos quais estas no poderiam ser
apresentadas de forma direta nem aceitas abertamente pela empresa podem nos levar, enfim,
pergunta preferida da antropologia: entender o que realmente estava em jogo por trs do discur-
so do projeto sustentvel.
-
16
Uma das principais caractersticas deste trabalho o fato de estar sendo escrito por al-
gum que participou como agente do caso a ser descrito e analisado, antes de adquirir o instru-
mental acadmico para a anlise crtica posteriormente efetuada. Ao longo dos cinco anos de
trabalho para a elaborao desta tese, a questo de como transformar a minha insero como
agente naquela de uma analista, ocupou muito do tempo das discusses de orientao. Apesar
da coragem dos orientadores em apoiar uma pesquisa que fugia dos moldes metodolgicos
confortavelmente aceitos e das poucas mas slidas referncias, na literatura metodolgica, que
nos abriam oportunidades de fortalecer a argumentao a favor da empreitada, o ato final da
escrita carregou at o fim esta dificuldade. At as ltimas reunies de orientao, com os dados
j dispostos de forma estruturada e a argumentao construda, discutamos dolorosamente se o
meu papel como mediadora do processo deveria ser minimizado, e se isso poderia ser feito sem
prejuzo para a argumentao. A deciso final foi a de trazer a questo para o primeiro plano,
pedindo licena banca para apresentar, entre alguns dos principais atores do trabalho, dados de
minha trajetria pessoal em um momento anterior ao da atividade acadmica. Essa apresentao
facilitar o entendimento da posio que ocupei nas negociaes e na administrao do Projeto
em anlise. Outras consideraes metodolgicas e os recursos utilizados para criar o distancia-
mento necessrio, sero apresentados no final desta Introduo, junto com a discusso metodo-
lgica.
Contando com a pacincia dos membros da banca, ressalto que ao trazer esses eventos
propositalmente tona, pretendo explicitar o encontro entre elementos to dspares como a
poltica do movimento social de base florestal (seringueiros e ndios) e o mundo dos espetcu-
los. Em se tratando de uma tese que versa sobre o encontro multifacetado de uma pequena
comunidade no interior da floresta amaznica com uma empresa capitalista internacional em um
mundo moderno e globalizado, a descrio destes elementos se tornar mais relevante com o
andamento do trabalho.
i.1 Alguns dos atores se encontram Em 1992, por ocasio da Conferncia das Naes Unidas para o Desenvolvimento e
Meio Ambiente, chega ao Rio de Janeiro o etnobilogo Darrel Posey, conhecido mundialmente
por seus estudos sobre etno-cincia especialmente da biologia Kayap - assim como pela
defesa dos direitos de propriedade intelectual dos povos indgenas. Como presidente da Socie-
dade Internacional de Etnobiologia (ISE) pretendia organizar a IV Conferncia Bianual da
referida sociedade que se daria conjuntamente com o Primeiro Congresso da Coalizo Global
-
17
pela Diversidade Biocultural1. O duplo evento se deu sob a gide do Frum Global, que reunia
a sociedade civil organizada em eventos paralelos Conferncia oficial. Dr. Darrell Posey
recebeu a indicao de meu nome de um antroplogo cineasta alemo residente em Londres, Dr
Herbert Girardet, como possvel organizadora do evento no Rio de Janeiro.
Eu, ento com 34 anos, trabalhava como produtora de cinema e de msica no Rio de Ja-
neiro. Embora houvesse estudado trs semestres de antropologia na UNB em Braslia e tivesse,
na adolescncia, feito estgios em diversos setores do servio de sade pblica de So Luis do
Maranho a fim de me candidatar a um emprego como atendente de sade da FUNAI, no havia
construdo uma carreira relacionada com a questo indgena. Havia morado por dez anos no
interior do Brasil (Maranho, Braslia, Piau, Santa Catarina, Amazonas), a maior parte do
tempo acompanhando o marido agrnomo, me adaptando e readaptando a cada mudana sua de
estado enquanto nasciam meus trs filhos. Ao retornar ao Rio aps a separao, acabei por ser
absorvida pela indstria cultural trabalhando como produtora, profisso difusa e extremamen-
te moderna que mesmo ainda no plenamente institucionalizado atravs de cursos universitrios
e associaes profissionais na poca, j dispunha uma identidade definida nas dcadas anterio-
res.
Por extremamente moderna me refiro a caractersticas especificamente ps-
modernas desta profisso que praticamente nasceu j flexibilizada com seu contingente de
free-lancers pluriaptos. Mediadores que atuam em uma interface fragmentada e mltipla (artis-
tas, imprensa, casas de espetculo, tcnicos, patrocinadores, autoridades pblicas, etc), os
produtores culturais so classificados como profissionais de comunicao e comumente renem
uma gama bastante vasta de talentos e de recursos como a capacidade de organizao, agilidade,
rapidez de deciso e, acima de tudo, uma ampla rede de contatos e relacionamentos que compe
o seu principal capital. Este capital acumulado atravs da credibilidade e do prestgio conferidos
pela realizao de objetivos estabelecidos pelos clientes (artistas ou empresrios), se incrementa
com cada tarefa bem executada que multiplica a gama de contatos e relacionamentos de confi-
ana e cooperao do respectivo produtor cultural. Em um universo extremamente plstico,
malevel e mutvel no qual realiza na prtica as tarefas ditadas pela imaginao de artistas e
criadores do mundo da msica, publicidade, cinema, etc., mesmo quando se especializa, o
1 A Sociedade Internacional de Etnobiologia tinha, como principal pauta, o reconhecimento de especialistas tradicionais, o respeito propriedade intelectual destes povos mas tambm sua sobrevivncia fsica, conforme fica indicado pela Declarao de Belm de 1986 (vide Anexo I).
-
18
produtor cultural age como um coringa que no se abala diante de desafios aparentemente
impossveis como parar o trnsito, efetuar o transporte de grandes elementos (como colocar um
elefante em Paquet), resolver questes alfandegrias, organizar a montagem de palcos em
locais inusitados, etc. Apesar de trabalhar vinculado cultura, o habitus do produtor cultural
geralmente incorpora uma atitude profissional e sria, no lhe cabendo ser desprendido e alheio
s responsabilidades financeiras e comerciais, atitude essa que cabe mais ao tipo-ideal de artis-
tas (ou a ndios) com quem os produtores estabelecem parcerias. Ao contrrio, cabe ao produtor
saber dialogar com clientes que so geralmente empresrios, publicitrios e patrocinadores
cujos cdigos exigem um acordo com a tica de mercado. Ao mesmo tempo, o produtor forma -
junto com artistas, atores, figurinistas, produtores de elenco, o exrcito de tcnicos e firmas de
aluguel de equipamentos, etc. - uma comunidade que se constela em funo de projetos (como
filmes, turns ou espetculos) para depois se desintegrar, com seus indivduos voltando a
figurar sob a forma de contatos a serem ativados a qualquer momento pela prxima demanda ou
projeto. Trata-se de uma comunidade latente que est sempre aberta ao novo chamado e que
desenvolve seus prprios cdigos em torno da unidade que se estabelece pela participao
rotineira na construo daquilo que para o resto da sociedade consiste no extraordinrio: o
numinoso mundo da arte e dos espetculos.
Em funo de trabalhos realizados com cinema documentrio, acabei por retomar conta-
tos na rea do indigenismo/ambientalismo ao participar de filmagens sobre as queimadas na
Amaznia no filme Halting the Fires, de Herbie Girardet, na esteira do clamor contra o assassi-
nato de Chico Mendes. Tendo participado da finalizao deste filme em Londres, me aproximei
do setor do movimento ambientalista londrino que orbitava em torno da Fundao Gaia, em
1989. L, assisti a uma palestra do antroplogo Terri de Aquino e do lder seringueiro e indige-
nista acreano Antnio Macedo. Na ocasio, fui contratada para traduzir transcries de entrevis-
tas de Alton Krenak, liderana indgena sediado em So Paulo cujo povo estava disperso pela
Serra do Cachimbo em Minas Gerais, e que havia conquistado muitos coraes brasileiros (e em
especial de brasileiras) ao ser televisionado proferindo um discurso eloqente e potico diante
da Assemblia Constituinte, em 1988, enquanto pintava seu belo rosto com tintura preta. Alguns
poucos anos mais tarde, quando eu trabalhava na turn de Paul McCartney pelo Brasil, o ex-
Beatle me pediu que providenciasse uma autoridade brasileira que lhe entregasse um prmio de
mrito ecolgico, conferido pelos Amigos da Terra de Londres. Argumentei que talvez fosse
-
19
mais adequado receber o prmio das mos de um dos heris do movimento ao invs de um
representante do governo Collor, e consultei Alton Krenak em So Paulo. Este indicou o serin-
gueiro Antonio Macedo como representante dos Povos da Floresta que entregou o prmio ao ex-
beatle logo antes do histrico show no Maracan. Macedo apareceu em todos os principais
jornais do Brasil ao lado do ex-Beatle e chegou-se a dizer, na poca, que tal exposio miditi-
ca ajudou a preservar a vida deste lder seringueiro que estava sendo severamente ameaado por
foras conservadoras na regio do vale do Juru, no estado do Acre. Minha participao no
movimento popular, social, indigenista ou ambientalista se resumia, ento, a estas intervenes
pontuais e geralmente ligadas atuao profissional junto indstria cultural.
Tendo sido contatada pelo Doutor Darrell Posey, no Rio, me assustei ao tomar conhe-
cimento da pouqussima estrutura disponvel dentro do Frum Global, no Hotel Glria, e do
tamanho da tarefa a ser realizada O Parlamento da Terra, nome com o qual Dr. Posey batizou
a dupla conferncia. Deveria realizar 15 dias de congresso com 8 horas de conferncias dirias
traduzidas para trs idiomas, permeadas de apresentaes culturais, musicais e artsticas nas
quais se dariam voz aos povos tradicionais (ndios, negros, ciganos, ribeirinhos, quebradeiras de
coco, seringueiros,alm de ancios e crianas). Dr. Posey possua uma estrondosa capacidade
de articulao, e alm das lideranas indgenas que eram os principais participantes e que eu
desconhecia em sua quase totalidade, nomes ilustres no cessavam de se apresentar para serem
organizados na programao: de Prncipe Charles a Paulo Freire, de Patativa do Assar ao ento
Senador Al Gore, de Ted Turner e Jane Fonda a Dalai Lama. Quanto dinheiro havia? Nenhum.
O evento seria realizado em conjunto com Marcos Terena, um lder indgena sediado em
Braslia e funcionrio da FUNAI. Este me informava j ter articulado a vinda de 60 jovens
guerreiros do Xingu que chegariam em menos de uma semana para construir a maloca da
Aldeia Carioca nas terras do sanatrio Colnia Juliano Moreira. Dinheiro? Nenhum. Em deses-
pero, apelei para o vice-governador do estado, Dr. Nilo Batista, que colocou disposio barra-
cas de acampamento da defesa civil, cobertores e duas mudas completas de roupa para cada
guerreiro. Em seguida, me endividei com profissionais de catering que estruturaram um
sistema de alimentao bastante adequado ao acampamento dos guerreiros que construram a
maloca da Aldeia Carioca.
Neste momento, Dr Posey e Marcos Terena se desentenderam, e o Parlamento da Terra
se desligou da Aldeia Carioca, sendo realizado em dois outros espaos: o muitssimo bem
-
20
equipado auditrio do BNDES que nos foi cedido gratuitamente, e o Circo Voador, espao que
se pretendia democrtico e que tradicionalmente dera voz a artistas alternativos e fora do circui-
to comercial mainstream da cultura brasileira.
Consegui arregimentar um pequeno grupo de amigos da rea de produo cinematogr-
fica, tipicamente capazes de enfrentar qualquer desafio para a realizao do impossvel e que
estavam parados em funo da poltica cultural do governo Collor, exaustos de tanta inao,
como me afirmou um deles ao se oferecer para embarcar no projeto. No fosse esta circunstn-
cia desesperadora a que havia sido submetido este pequeno contingente brancalenico, alm,
claro, da adeso do Circo Voador, a realizao do Parlamento da Terra certamente teria sido
impossvel. Enquanto a lista de nomes tremendamente imponentes continuava a se confirmar
para que ajustssemos a programao, Dr. Posey conseguia os primeiros recursos junto a ONGs
americanas. Fazamos incrveis malabarismos na busca por cooperao, tal como passar no
exame vestibular apenas para convencer o coordenador do curso de traduo simultnea da
PUC-RJ de que o Parlamento da Terra seria o frum ideal para que seus formandos conseguis-
sem as horas de vo necessrias ao estgio obrigatrio, economizando assim um dos maiores
custos do evento. O grande custo de acomodao foi economizado ao revertermos a negativa da
empresa mineradora Paranapanema em ceder um grande alojamento, situado justamente entre o
Circo Voador e o BNDES. Enviamos um fax diretamente sua Presidncia afirmando conside-
rar muito suspeita a recusa desta empresa (diga-se de passagem, notria por seus conflitos em
reas indgenas) em colaborar com um evento da ECO-92, que mobilizara a cooperao de
todas as foras pblicas e privadas da cidade. O Presidente da empresa ordenou imediatamente
que o alojamento fosse liberado para a acomodao de quase duzentos participantes indgenas e
alguns de seus assessores, e assim economizamos as despesas com hotel e tambm com trans-
porte, visto que os participantes podiam caminhar entre o Circo, o BNDES, o refeitrio e mes-
mo at o Parque do Flamengo caso quisessem participar de outros eventos do Frum. Aos
poucos, em um ambiente de tremenda colaborao entre todas as foras do poder e do servio
pblicos e as organizaes da sociedade civil, as dificuldades foram sendo superadas, at que
recursos da Secretaria do Meio Ambiente do Governo do Estado foram comprometidos, nos
dando alguma segurana para assumir compromissos com fornecedores.
Mas as dificuldades polticas administradas por Dr. Posey comeavam a se avolu-
mar, especialmente devido competio entre lideranas indgenas. A organizao do evento
contava sempre com o apoio e clareza da cooperao de Jorge Terena na organizao da parti-
-
21
cipao indgena. Mas Paulinho Payak, que deveria ser o Presidente do Parlamento da Terra,
quase fazia Dr.Posey arrancar os cabelos diante da reticncia que demonstrava em vir ao Rio de
Janeiro e das exigncias que fazia. Marcos Terena havia se rebelado contra a tendncia de Posey
de querer estender sua gide sobre a Aldeia Carioca que pretendia ser puramente indgena e
independente. Alm disso, no queria compartilhar o espao com outras lideranas como Ailton
Krenak . Este ltimo, por sua vez, no queria participar daquilo a que chamava de circo, mas
tanto por respeito a Posey quanto Payak, acabou por nos mandar um enviado para estabelecer a
forma de participao que seu grupo teria.
Desta forma, em torno de um ms antes do evento, chegou ao Rio o personagem princi-
pal deste estudo, Biraci Brasil Yawanaw, ento com 28 anos. Este jovem lder havia participa-
do desde cedo no movimento poltico indgena vinculado ao grupo de Alton Krenak. Havia
ajudado a fundar a Unio Nacional dos ndios do Acre (UNI-AC), liderado seu povo na demar-
cao da primeira reserva indgena no estado do Acre e excelente orador que era tendia a
ser convocado para falar em nome dos parentes de sua regio. No entanto, por motivos que
analisaremos adiante, se indispusera com o movimento popular no Acre, do qual estivera afas-
tado durante alguns anos nos quais residira em Rio Branco casado com uma oficial da polcia
militar. Havia sido recentemente convidado a retornar poltica por Antnio Macedo, se mu-
dando para Cruzeiro do Sul para organizar o Movimento dos Povos Indgenas do Vale do Juru
que funcionava na sede da regional do Conselho Nacional dos Seringueiros em Cruzeiro do Sul.
Eventualmente, Ailton Krenak levantou recursos para alugar um escritrio prprio para o
MPIVJ e para um pequeno nmero de funcionrios, enquanto apresentava um grande projeto
junto Comunidade Econmica Europia.
Assim, Biraci Brasil chegou ao Rio como enviado de Alton para avaliar a importncia
da participao do grupo acreano. Visitou Marcos Terena, e resolveu que havia espao de
participao em ambos os eventos, visto estar ajudando a organizar a participao tanto de
ndios como tambm de seringueiros vinculados ao CNS, compondo o fulcro do que se chamava
ento de Povos da Floresta. O contingente acreano, ligado a Krenak, no foi o nico nem o
mais numeroso de todos, pois o Parlamento da Terra recebeu grandes turmas de Kadiweos e
Kayaps, e delegaes menores de ndios do nordeste, sul, sudeste, etc. alm de delegaes
internacionais como os Penang da Tailndia, os Maoris da Nova Zelndia ou os Lapes da
Noruega ou os Inuit do rtico canadense. Porm, a delegao acreana se transformou em uma
das mais ativas e participantes e acabou por contribuir com o prprio trabalho de execuo do
-
22
Parlamento da Terra.
O evento contou, tambm, com a presena de alguns poucos empresrios. Entre eles,
Horst Rechelbacher, proprietrio da Aveda Corporation, empresa de cosmticos sediada em
Minesota, nos Estados Unidos. Este viera ao Rio para participar do Parlamento da Terra e de um
outro evento que reunia lderes espirituais como Dalai Lama, com quem mantinha uma relao
de grande amizade, havendo feito polpudas doaes e usado toda a influncia local que tinha
para ajudar vrias famlias tibetanas exiladas a se estabelecerem perto de sua propriedade em
Wisconsin, EUA. Nascido na ustria, filho de um sapateiro e uma boticria, Horst passou
alguns anos de sua infncia em um programa de adoo temporria em Portugal, to grande era
a pobreza de seu pas no ps-guerra. Na juventude, ganhou inmeros prmios como cabeleirei-
ro. Um deles foi uma turn pelos Estados Unidos, onde um acidente de carro nas proximidades
de Mineapolis fez com que se demorasse l, trabalhando a fim de pagar as contas hospitalares.
Acabou se casando e se estabelecendo profissionalmente nesta cidade. Desenvolveu os princi-
pais conceitos da firma que fundaria, ao longo das viagens que fazia para a ndia e Nepal em
busca de conhecimento espiritual. Se associando a qumicos indianos, familiarizados com a
filosofia ayuvdica, lanou uma linha de produtos naturais para cabelos que j nascia personali-
zada (para morenas, louras, ruivas, etc) e compromissada com o meio ambiente. Diferenciava-se
assim dos produtos das grandes marcas por fugir da idia de commodities (grandes volumes
para um mercado de massas), sendo vendido apenas por profissionais que eram educados
(detestava a palavra treinamento) para poderem contar toda a histria de cada produto e saber
aplic-lo de forma personalizada. Diferenciava-se tambm do ento j famoso BodyShop2 por
ter um compromisso com a qualidade total de seus produtos, ambicionando a substituio total
de insumos sintticos. Para Horst, o petrleo era o maior vilo e nenhum leo mineral poderia
participar de suas composies. As plantas eram as fbricas de suas matrias primas, e a fotos-
sntese era o seu processo industrial. O corpo um eco-sistema, no o polua era um dos
principais slogans da firma. Outro era apresentado sobre a figura de Pinquio, onde se lia a
pergunta: Esto lhe contando a verdade sobre o Natural? Com isto Horst pretendia rasgar o
manto da hipocrisia do green-washing. Este ltimo consistia na estratgia das grandes
indstrias de atribur o rtulo de natural a produtos industrializados a partir de derivados de
petrleo e da sntese qumica. Vendia-se, para o senso comum, a idia de que na etapa atual da
2 firma que crescia rapidamente na poca, comercializando produtos a partir de matria primas naturais e politicamente corretas, ajudando a comunidades como os Kayap e aldeias indianas
-
23
civilizao seria absolutamente impossvel a produo sem conservantes, preservantes e estabi-
lizantes qumicos, difundindo amplamente a noo de que qualquer um que dissesse o contrrio
estaria mentindo. Associava-se esta noo idia de democracia, pois o produto industrializado
era para todos e mais barato por ser competitivo. Horst se esforou para que sua empresa
derrubasse estes mitos paulatinamente, e acabou produzindo cosmticos caros e dirigidos ao
publico A, no mximo B, mas que estabeleceram um critrio de qualidade e pureza, ferindo o tal
manto de hipocrisia da grande indstria por utilizar insumos mais caros porm autenticamente
naturais (no sintetizados e no derivados do petrleo). Em outras frentes, sua fbrica se
adequava aos procedimentos industriais limpos, e ele participava politicamente de grupos
empresariais com propostas ambientais e de responsabilidade social, tendo sido o primeiro
signatrio dos Ceres Principles 3 em 1989 (Corporations for Environmentally Responsible
Economics, ver Anexo II) e um dos fundadores do Business for Social Responsibility,4.
Tal estratgia de produo personalizada, de compromissos ambientais e ticos, de regis-
trar a rastreabilidade das matrias primas e ingredientes utilizados em seus produtos era parte
de um movimento anti-comoditizao que favorecia a entrada de pequenas empresas nos mer-
cados dominados pelo capital monopolista. As chamadas empresas de nicho eram favorecidas
pelo hiper-aquecimento da economia americana e europia, pela diversificao dos mecanis-
mos de distribuio e venda, e por uma reao cultural universalizao do consumo que
acirrava o localismo e as identidades diferenciadas de grupos consumidores (Santos, M., 1997).
A prtica da certificao dos produtos como orgnicos ou como ecologicamente ou politicamen-
te corretos fortaleceu a entrada destas empresas no mercado. Tambm dava ao consumidor
maior poder de barganha junto aos grandes conglomerados monopolistas, favorecendo a coloca-
o no mercado de produtos de origem comprovada e fortalecendo a relao de determinados
grupos de pequenos produtores com o mercado consumidor que desejava saber de quem com-
prava. No entanto, poucos anos mais tarde, na medida em que os argumentos em torno da
rastreabilidade ganharam enorme reforo atravs do medo generalizado que abateu estes merca-
dos diante de fenmenos de contaminao como o da vaca louca, a febre da certificao assu-
mia propores mundiais. Na medida em que os mercados se globalizavam, os prprios grandes
m-ir
3 Documento pioneiro no comprometimento de indstrias com questes ambientais, especificamente de limpeza e no poluio, de 1989. 4 BSR: grupo pioneiro de empresrios a lanar a agenda da responsabilidade social. Um grupo de epresrios brasileiros liderados por Oded Granjew em torno da Cives, de SP, se aproximou do BSR a partde 98.
-
24
conglomerados passavam a utilizar o processo como forma de controle e do estabelecimento de
diferenciais que agiam tambm como excludentes em relao competio de produtores
menores. O processo de certificao, que em determinados momentos servia para fortalecer o
produtor, em um movimento inverso, assumiu tamanho nvel de complexidade que tendeu a
excluir a possibilidade de participao de pequenos produtores. Passaram a se formar redes que
buscavam formas participativas de certificao (Fonseca, 2005).
Horst contratara Moonstar, uma bonita mulher que, apesar de sua origem iugoslava-
croata, tinha grande semelhana fsica e identidade com os nativos-americanos (como politi-
camente correto chamar os ndios de l) para estabelecer pontes entre a empresa e comunidades
tradicionais5. Moonstar foi sua primeira emissria ao Rio de Janeiro, durante os preparativos do
evento. Conheci-a em uma noite na qual o mundo parecia ter aportado na cidade de So Sebas-
tio e descoberto justamente o pequeno e kitsch restaurante portugus no qual eu me escondia
na Lapa para tomar as grandes decises, me reunindo para comer com nossa pequena equipe, ou
simplesmente para me esconder da loucura e da acelerao geral atrs de um bom chope. Abri
as portas do Nova Capela carregando, esbaforida, maos do programa recm e gratuitamente
impresso pela grfica da UERJ para mostrar a Posey, apreensiva com sua possvel desaprova-
o diante de toda a pressa com que os trabalhos eram fechados. O que as portas de vidro
canelado do velho restaurante escondiam era uma indescritvel mistura de pessoas de todas as
nacionalidades, raas, roupas e idades, todas animadas com a chegada ao Rio de Janeiro e
fascinadas com o largado bar e restaurante que a recesso econmica dos ltimos tempos havia
relegado s moscas... Os garons corriam de um lado para o outro, aflitos, por entre mesas
lotadas, ao mesmo tempo em que me cumprimentavam agradecidos com os olhos, ao deduzirem
a origem do fenmeno! Darrell Posey sentava-se com uma importante jornalista da CNN em
uma mesa, to assombrado quanto eu, quase mal-humorado, como se as visitas tivessem chega-
do antes do jantar estar pronto! Em meio multido que lotava o recinto, estava a bela Moons-
tar ao lado do cantor de rock Apache, Robby Romero. Sentamo-nos juntos, os trs, e travamos
amizade. Eu, assustada diante do tamanho de tudo o que acontecia, e sem ter a mnima idia de
quem se tratava a moa, respondi sua oferta de ajuda meio sarcstica: que tal dez mil dlares
e dez pessoas para trabalharem?; ao que Moonstar respondeu bem humorada: Sobre os dez
5 algum trabalho neste sentido havia sido feito na ndia e no Nepal, com a compra, para peque-nas aldeias, de unidades de extrao de leos essenciais como o hilang-hilang por arraste a vapor, etc
-
25
mil dlares, terei que consultar meu chefe primeiro. Mas quanto s dez pessoas, te garanto que
trabalho por elas todas juntas!.6
Depois de terminados os trabalhos, Darrel Posey viajou com Moonstar pelas terras
Kadivo, Kayap e pelo Acre. Ao retornar, Moonstar me convidou para trabalhar nos projetos
que pretendia desenvolver no Brasil, pedindo que eu escrevesse uma carta de apresentao, que
levou consigo de volta empresa. Poucas semanas aps chegar a Minepolis, Moonstar morreu
em um trgico acidente de carro. Posey, que a acompanhara para participar do Congresso Anual
da Aveda, me telefonou pedindo que me apressasse para viajar, pois estava sendo convocada a
dar continuidade ao trabalho de Moonstar. L chegando, por minha vez, como tinha estabeleci-
do maior afinidade com o grupo do Acre durante estes meses de trabalho, sugeri que comes-
semos o trabalho no Brasil por l, mais especificamente atravs da intermediao de Biraci
Brasil e Ailton Krenak.
i.2 A Delimitao Temtica
Propostas de desenvolvimento econmico sustentvel de pequenas comunidades na A-
maznia se deparam com dimenses que no se limitam viabilidade econmica, pois abran-
gem a interpretao de conceitos e expectativas que diferem entre agentes financiadores e
comunidades beneficirias, assim como entre diferentes segmentos da sociedade civil (movi-
mentos populares, organizaes no-governamentais, empresas capitalistas) e agncias gover-
namentais com os quais se relacionam. A insero de grupos tradicionais na economia de
mercado envolve modificaes em sua organizao social que podem ou no representar melho-
ria de qualidade de vida. Tratando-se de um encontro entre culturas diferentes em uma relao
assimtrica de poder, os parmetros de avaliao de desempenho por parte de agentes financia-
dores tendem a valorar prticas administrativas que tiveram um longo percurso de incorporao
na sociedade capitalista, tomando-as como dadas, desqualificando prticas tradicionais de
diviso de trabalho, manejo do meio ambiente e distribuio de resultados7. A idia de desen-
volvimento traz, em seu bojo, uma expectativa de mudana social com a qual o grupo tradicio-
6 De fato, diferentemente de qualquer outra militante que tenha participado do evento, Moonstar em-prestou sua fora trabalhando incessantemente na organizao, at que seu chefe chegasse (e do-asse os dez mil dlares).
7 Especificamente, no caso em questo, toma-se como dada a diviso de trabalho do modelo capitalista que, com sua constante produo de especialistas, desassocia a figura do administrador (gerente) da figu-ra do poltico (lder).
-
26
nal em questo negocia, compreendendo-a atravs dos instrumentos de que dispe (educao no
sistema social moderno, seja atravs da escola ou do contato com agentes da economia da
borracha, missionrios, ou diferentes agentes da sociedade civil), e modificando-a na medida em
que o Projeto a ser analisado se efetua.
A histria do Projeto em questo revela como diferentes significados se encontram em
um campo discursivo instvel, onde os interesses investidos se manifestam, tanto atravs de
conflitos entre os atores envolvidos na parceria, como na dificuldade encontrada pelos ndios
em alcanar os objetivos do projeto (plantar, colher, armazenar, secar e transportar e comercia-
lizar as sementes de urucum) sem que isto represente uma des-organizao do trabalho da aldeia
com conseqncias desagregadoras. Os esforos por parte da comunidade indgena para se
adequar s exigncias disciplinares da atividade voltada para o mercado nos mostram como
estes conceitos esto referidos a uma ordem maior, a da Economia (ou do Capitalismo), que nas
ltimas quatro dcadas se manifesta, em relao ao Terceiro Mundo, atravs das estratgias
do desenvolvimento transformado em ordem discursiva (Escobar, 1995).
Podemos acompanhar, atravs da histria do projeto, um deslocamento de poder entre os
atores na rede discursiva que se constri em torno de novos conceitos (sustentabilidade, biodi-
versidade) a partir de determinadas vises de mundo e de interesses especficos. Como o discur-
so do desenvolvimento sustentvel se insere dentro de um campo em constante disputa, onde
diferentes atores tentam impor suas diferentes vises e significados, a compreenso de lderes
comunitrios e membros de comunidades tradicionais parcial e contingente e depende, especi-
ficamente, do leque de agentes com os quais cada lder entrou em contato e atravs dos quais
acessou a rede de discusso. Varia da mesma forma o seu poder de negociao na busca por
financiamento para projetos de desenvolvimento, a fim de atender a demandas e objetivos
determinados no interior da aldeia e adaptados ao discurso externo aldeia para que sejam
aprovados. Tal compreenso e poder de negociao so modificados principalmente atravs
da prtica: mais do que a apreenso terica ou conceitual, esta prtica se d pela vivncia das
experimentaes efetuadas no dia a dia da aldeia face s exigncias do trabalho proposto; ou
fora da aldeia face ao acolhimento que recebem por parte de diferentes segmentos da sociedade
branca; ou mesmo da vivncia do jogo de prestgio que presenciam no contato com outros
segmentos da sociedade civil (Ongs, artistas, imprensa, empresas) e mediadores que acabam por
disputar uma forma de representao destas comunidades que confere uma forma de poder
simblico ou capital simblico no explicitada, mas visvel para as lideranas indgenas. Estas
-
27
experincias diretas fornecem subsdios para que as lideranas envolvidas na negociao e os
membros da comunidade envolvidos no trabalho re-interpretem e traduzam as expectativas da
modernidade como agentes e no apenas como objetos do processo em questo, mesmo tendo o
cuidado de salientar que essa agncia relativa e no subverte as estruturas de dominao
estruturais.
No entanto, mesmo que as metas de produo estabelecidas pelo Projeto no tenham em
nenhum momento sido atingidas da forma como postularia a ordem da Economia, os Yawanaw
apresentaram sucessivas propostas de renegociao que foram aceitas pela empresa, demons-
trando grande agncia e poder de interpretao dos interesses da empresa capitalista e de outros
agentes no seu entorno. Embora qualquer critrio claro de avaliao dos resultados dos traba-
lhos indique o insucesso na implementao da atividade ttulo do projeto inicial (Plantio
Comercial de 30 hectares de Urucum), os Yawanaw desenvolveram uma srie de realizaes
de interesse interno, o Projeto de Vida da aldeia, que no se encaixariam na lgica capitalista
que orientava a negociao entre as partes, inicialmente. Localmente, podemos observar que
houve grande incremento no acesso que a comunidade dispe aos bens pblicos e privados que
garantem sua sobrevivncia. Houve sensvel modificao no nvel de qualidade de vida, tanto
atravs do fortalecimento da infra-estrutura da aldeia - atravs da construo de escola, posto de
sade, escritrios de representao em Tarauac e Rio Branco, galpes, centro de processamen-
to de urucum na aldeia e fbrica de leo de andiroba em Tarauac, a instalao de rede de
computao ligada Internet dentro da aldeia, a grande e surpreendentemente rpida ampliao
da rea demarcada, etc. - como da construo de uma rede de contatos e de comunicao a nvel
regional - que facilita a obteno de postos de trabalho para professores e agentes de sade ou a
soluo rpida para ameaas sade da tribo no caso de surtos de epidemias aos quais governo
estadual e agncias federais da rea de sade enviam equipes imediatamente. Mais surpreenden-
temente ainda, podemos observar a ampliao da rede de alianas, contatos e prestgio a nvel
nacional e internacional, que facilita a aprovao de projetos como o lanamento de uma grife
de roupas com design prprio, o lanamento de CDs de msica e DVDs com filme documental
que descreve o estado da cultura Yawanaw, no qual a lngua nativa, antes ameaada, est
plenamente recuperada; antigas danas e formas de artesanato so resgatadas; pajelanas e
dietas base da bebida sagrada ayhuasca que haviam sido abandonadas h vinte anos so
retomadas por um nmero bastante grande de membros da aldeia, com significativas inova-
es dessas tradies, como na introduo de mulheres em prticas antes restritas aos homens e
-
28
sua ampla divulgao na mdia... So tantas as realizaes do grupo, que no se pode negar a
realizao de desenvolvimento econmico e social durante o perodo, mesmo que no atendam
especificamente aos critrios de avaliao do IDH (ndice de Desenvolvimento Humano). Os
Yawanaw se transformaram em uma espcie de grande sucesso editorial, figurando nos espa-
os mais nobres da mdia nacional e internacional (pginas inteiras ou mesmo duplas de O
Globo, Folha de So Paulo, Fantstico, Washington Post, New York Times, Libera-
tion, etc.), sobre o qual sucessivas matrias jornalsticas tm, recentemente, descrito a bem
sucedida insero de uma comunidade que se apresenta cada vez mais tradicional na medida em
que se insere cada vez mais no mundo (cada vez mais) moderno.
A tese analisa as sucessivas fases de insero do grupo no movimento social poltico re-
gional e nacional nos anos setenta e oitenta, e o deslocamento deste eixo para a insero no
movimento ambientalista a partir do final da dcada de oitenta. O desenvolvimento do movi-
mento ambientalista e seus impactos na sociedade envolvente foram condies de possibilidade
do encontro com a empresa capitalista americana e das modificaes na tica do pblico con-
sumidor, que deram poder aos Yawanaw para que negociassem suas metas para alm das
expectativas inicias do projeto.
Mas a etnografia local e a observao das prticas do grupo indgena enquanto sujeitos
que interpretam o capitalismo (pagamento, prazo, horrio, direitos de imagem) que acaba por
traduzir a ordem de cultura e poder subjacente aos conceitos em disputa. Inicialmente a propos-
ta desta tese foi, mesmo atenta a advertncia Godeliana de no procurar valores da economia no
mundo da vida Yawanaw, a de centrar a anlise nas modificaes em torno da organizao do
trabalho dentro da aldeia ressaltando o papel do lder nesta administrao e indicando at que
ponto modernidade esperava que houvesse uma ciso entre a figura do lder e a do gerente que
administra os recursos do projeto. Ao longo do processo de escrita, no entanto, a j esperada
imbricao entre trabalho e poder poltico no mundo Yawanaw foi to onipresente, que a
anlise das relaes de poder dentro da aldeia acabou por estabelecer uma precedncia sobre a
anlise das relaes de trabalho. Como o poder se estabelece atravs das negociaes e constru-
es efetuadas por arranjos familiares, a genealogia clssica se tornou imprescindvel anlise.
Assim, acabei por ceder mais do que inicialmente imaginava, tradio etnogrfica.
Como, nas discusses em torno do desenvolvimento sustentvel, tais transformaes
-
29
subjacentes geralmente se do sombra daquelas econmicas8, estas constituem justamente os
elementos cegos sobre os quais devemos dirigir o foco terico. Ou seja, pretendo demonstrar
que so tais dimenses especificamente no econmicas no sentido do branco (moderno,
diferente do tradicional), que muitas vezes refletem a adaptao ao meio e o manejo sustentvel
dos recursos naturais locais em sentido amplo e no restrito lgica de mercado. Tais esferas de
organizao social extra-econmicas, justamente as que conferem sustentabilidade ao resultado
das prticas de determinados grupos, precisam, ironicamente, ser corrigidos por programas
de capacitao e treinamento para que se supere o atraso que impede que sejam aferidas, avalia-
das e classificadas dentro do instrumental de controle gerado atravs de anos de atividades
comerciais capitalistas. Assim, percebemos que antes de sustentvel, devemos discutir de-
senvolvimento e econmico. Para alm da abstrao, a modernidade se apresenta nas formas
concretas de organizao disciplinar que impe.
i.2.1 A ideologia do mercado refletida na Organizao do Trabalho:
Ao eleger o problema das adaptaes na organizao do trabalho tradicional dos Yawa-
naw face s expectativas de agentes financiadores do projeto, nos aproximamos do processo de
desencantamento do mundo que a racionalidade capitalista impe aos povos recm inseridos
neste sistema (Bourdieu, 1979), buscando compreender o impacto que tais inovaes geram no
tecido social da comunidade. A produo sociolgica brasileira dos anos cinqenta em torno do
problema da mudana social extremamente rica, no que tange a reflexo sobre a racionaliza-
o da produo diante da urbanizao e industrializao aceleradas da era Vargas, de mudan-
as nos eixos virios, na contratualizao das relaes de trabalho, nas alteraes das solidarie-
dades verticais em horizontais, etc. A literatura sobre a regio amaznica tem apresentado,
recentemente, estudos como os de Weinstein,Teixeira e Franco, que se debruam sobre a reni-
tncia que a formao social no entorno da economia da borracha (as elites amaznicas, os
seringueiros) apresenta em ceder modernidade capitalista e sua secularizao, inovao tecno-
lgica, racionalizao das relaes de trabalho.
A presso pela modernizao da Amaznia, alm dos processos migratrios que acom-
panham as alteraes nas redes virias, continua vinculada a processos de insero na economia
globalizada, sedenta por seus produtos extrativos, desde a madeira a recursos genticos para a
moderna indstria da biotecnologia. Mas tais presses so, hoje, parcialmente mediadas pela
8 visveis, no mundo da organizao do trabalho, e passveis de monitoramento e avaliao que estabelecem poder e subordinao
-
30
forma como o problema ambiental interfere no mercado consumidor, pelo reordenamento do
sistema global de comunicao, e pelas novas formas de disputa capitalista com sua sede e
dependncia na legitimidade das identidades locais. Os mecanismos de dominao historica-
mente colocados pela distncia e pelos obstculos naturais que facilitavam o controle colonial,
se modificam na medida em que o remoto se conecta Internet e o acesso metrpole aberto
em funo das especificidades culturais locais de origem comprovada, que conferem valor s
mercadorias do sistema globalizado. A transposio da formao de valor ao nvel intelectual-
cultural obriga a uma readequao de termos e posicionamentos no campo de discusso em
torno do desenvolvimento, na medida em que a proposta de estender as benesses da modernida-
de a uma rea remota e culturalmente distante do mundo desenvolvido para proteger o
grupo em questo, se difere daquela anterior, onde os povos que habitam tais reas a cliente-
la do desenvolvimento - eram tidos como massas passivas a serem includas na modernidade
por um Estado que tinha a obrigao humanitria de salv-los da situao de pobreza. A posio
de povos indgenas e tradicionais ainda no homogeneizados pela modernidade valorizada
nesta rede discursiva na medida em que so considerados como detentores de um conhecimento
tcnico (tradicional e sustentvel) que para o ambientalismo valioso pois segura a chave de
modelos de desenvolvimento diferentes daquele estimulado at recentemente (madeireiros,
mineradores, etc.) e para o grande capital representa a oportunidade de enormes lucros pela
indstria de biotecnologia. O mercado (aqui representado pela empresa de cosmticos america-
na), os valoriza pela oportunidade de agregar valor a seus produtos atravs de vantagens s-
chumpterianas sobre seus concorrentes, buscando estabele cer uma relao de privilgio que lhe
garanta um acesso direto ao mundo mais local possvel. Para a comunidade, a oportunidade se
apresenta como forma de sanar a situao de explorao colonial a qual esteve historicamente
submetida na relao com outros agentes mercantis como aqueles da indstria da borracha.
i.2.2 O mbito poltico propriamente dito
No mbito poltico, o estudo descreve a perspectiva de movimentos sociais, diferencian-
do-a daquela comum a outros stios da rede de produo de significados tais como o campo
cientfico, de governos nacionais ou de ONGs. Concordando com Escobar, que observa como
diferentes regimes de representao da natureza se articulam em cada um destes nveis (Esco-
bar, 1998a), e aceitando a poltica cultural enquanto o processo atravs do qual entram em
conflito diferentes atores, que so moldados por e que personificam significados e prticas
-
31
culturais diferentes (tentando redefinir o poder social) (Escobar, 1998, 64), tentaremos com-
preender como os Yawanaw se apropriam ou utilizam o discurso da biodiversidade e da sus-
tentabilidade para aproveitar as oportunidades que se lhes abrem para atingir objetivos definidos
internamente, na aldeia. Trazendo luz a dinmica atravs da qual tais oportunidades se abrem,
assim como quais so os objetivos internos almejados por este segmento do movimento social
claramente diferenciado de outros atores da rede (Ongs e assessores), acreditamos poder fazer
com que a contribuio que este stio local da rede de produo de discurso deixe de ser
ignorado pelo campo cientfico. Este ltimo, dada a assimetria na relao de poder e distribui-
o de conhecimento na rede discursiva, tende a se tornar cego s contribuies que, partindo de
grupos locais, podem ser teis conceitualizao da sustentabilidade. Em outras palavras,
abandonando a centralidade econmica e assumindo a atividade poltica como central ao projeto
em questo, poderemos entender os objetivos que os Yawanaw escondem no jogo estratgico
de negociao com o capital e com o conhecimento ocidental e moderno. Isso nos revelar tanto
o que lhes convm (mesmo que por algum motivo seja considerado inaceitvel pela ordem que
oferece o subsdio mudana) e porque o escondem (aquilo que os leva a crer que o outro
com quem dialoga no considerar tais objetivos como legtimos). Talvez sejam justamente
esses objetivos velados que contenham chaves para a sustentabilidade que est sendo buscada
pela cincia do sistema subordinador que as recusa ou que cego a elas.
Interagindo com as mudanas concretas na organizao do trabalho que foram tentadas
ao longo do processo, precisaremos enfocar o lder em sua ao, no papel que lhe investido
tanto pela estrutura social quanto pela contingncia histrica. A constante tenso das demandas
do universo capitalista sobre esta posio dentro da estrutura (Bourdieu, 1989) compe, junto
com as adaptaes no trabalho, um binmio extremamente revelador e central anlise pois
neste vrtice que a sobreposio de sistemas se concentra. Acredito ser relevante para o nosso
estudo a questo j citada da ideologia moderna categorizar o gerente como isento de ativida-
des polticas ou da possibilidade de auferir interesses pessoais atravs de uma espcie de inter-
dio, nem sempre explicitada, mas que veda o acesso do poltico ao mundo do administrador
(Heilbroner, 1988). Na aldeia indgena em estudo isto era impossvel. Os dados coletados ao
longo de dez nos de trabalho junto comunidade revelam uma intensa atividade poltica local,
no qual a disputa pelo acesso aos recursos trazidos ao grupo pelo lder e a disputa por posies-
chave na rede de relacionamentos da aldeia com o mundo externo se apresentam quase que
como a atividade principal da elite Yawanaw. A falta de separao entre os dois papis, ou
-
32
mesmo a determinao do papel do lder por sua capacidade como provedor, acabava por gerar
situaes nas quais para ser idneo em relao ao mundo do branco o lder no poderia utilizar
os recursos do projeto a no ser para os fins especificamente negociados, mas para se manter
como lder teria que disponibilizar tais recursos de acordo com os critrios ticos locais de
atendimento s necessidades internas da tribo. A forma que encontrei para apresentar estes
dados foi a descrio etnogrfica e o estudo da etno-histria concentrados nos captulos dois e
cinco.
Ainda em referncia construo do poder na aldeia, a literatura produzida mais recen-
temente apresenta duas vertentes distintas: por um lado, suprem a escassez de dados formais e
publicados sobre os Yawanaw na bibliografia Pano, as etnografias clssicas produzida pelo
casal de antroplogos espanhis em trabalho de mestrado pela Universidade Federal de Santa
Catarina - Laura Perez, versando sobre ritual e prticas mgicas, e Miguel Naveira cujo
trabalho sobre a constituio do grupo atravs da guerra aproveitaremos mais. Outro trabalho
recente, de Mariana Pantoja Franco, que reconstitui as condies de vida nos seringais especi-
almente aps a poca clssica do seringal de apogeu9, cujo esteretipo pareceu se disseminar e
estabelecer no senso comum e na literatura uma idia engessada de relao de dominao e
subjugao unilateral na qual os seringueiros seriam destitudos de agncia. Franco relativiza a
passividade de grupos familiares no perodo do declnio da indstria da borracha diante da
autoridade do patro do barraco e da dependncia dos mesmos em relao a estes. Mais impor-
tante ainda paras os nossos propsitos, Franco demonstra etnograficamente o que representa o
patrimnio na floresta: as relaes de solidariedade construdas nos rotineiros tempos de paz (e
no nos tempos da guerra descrita por Naveira) que acabam por gerar os bens de consumo
necessrios sobrevivncia e reproduo dos grupos familiares. Pretendo transpor a anlise de
Franco para a aldeia e demonstrar como o mesmo processo de construo das solidariedades
atravs de laos familiares efetivamente constri e constitui o poder dentro da comunidade
indgena Yawanaw e que a habilidade para tal construo depende de competncias que no se
limitam s da guerra, envolvendo tambm as habilidades afetivas descritas por Franco.
i.3 O problema metodolgico da transformao da mediadora em pesquisadora
A maior dificuldade e possivelmente a maior riqueza deste trabalho derivam do proble-
9 ps-apogeu: um perodo em que diversidade de atividades produtivas substitui a exclusividade total da coleta de seringa por seringueiros solitrios totalmente dependentes dos bens do barraco por grupos organizados em unidades familiares com atividades produtivas diversificadas entre caa, pesca, agricultu-ra, extrao de seringa, etc.
-
33
ma de minha insero como pesquisadora. Como mediadora que fui - no cargo de Coordenadora
do Projeto por nove anos e meio - investi esforos e derivei interesses prprios dos seus resulta-
dos. Se por um lado no foi difcil ser aceita pela comunidade, por outro fui aceita para desem-
penhar uma funo especfica, sem a chance de ao menos pretender a neutralidade conferida
pelo posto da observao cientfica. No se trata de observao participante ao estilo Nuer, nem
da proposta de iseno negociada com o objeto conforme as proposies da metodologia
antropolgica (Becker, 1993). O que houve foi uma significativa interao durante um perodo
de tempo de dez anos , com no mnimo 2 viagens por ano aldeia, de no mnimo uma semana e
no mximo dois meses e meio de cada vez (mais comumente de 2 a 4 semanas). Sobre as condi-
es de observao, portanto, mais difcil do que a questo da insero do pesquisador para ter
acesso a dados, ser a questo da apresentao da experincia para o grupo de colegas pesquisa-
dores, j que as observaes e dados disponveis no foram colhidos por um personagem no
desempenho deste papel, construdo ao longo de anos de relacionamento com pares na atividade
acadmica. Foram dados colhidos por um agente do processo que procurou, desajeitadamente,
adquirir o instrumental de pesquisa aps ter vivido a experincia de campo como agente.
No sentido oposto ao perigo de enviezamento desta condio de agente, tal insero
proporcionou um ponto de vista que dificilmente seria alcanada por uma pesquisadora em
condies normais. Na condio dupla de assessora das lideranas da comunidade e de repre-
sentante da empresa, pude participar de assemblias e reunies, acompanhar lderes em viagens,
acumular ampla correspondncia e documentao e gastar muitas horas em campo acompa-
nhando o trabalho em todas as suas etapas. verdade que a intimidade com a tribo se aprofun-
dou a ponto de prejudicar o distanciamento que provoca o exotismo, to propalado enquanto
condio da etnografia. No entanto, pde proporcionar minha entrada em universos que dificil-
mente seriam freqentados por pessoas de fora, como o universo feminino e o universo da
famlia, o mundo do trabalho no roado, as negociaes entre chefes de famlia, as disputas
polticas internas e externas aldeia.
O lder, por sua vez, parecia me aceitar justamente por no ser eu advinda do campo a-
cadmico ao qual criticava sob a acusao de no trazer benefcios aldeia mas apenas ao
status individual de cada pesquisador. Esta rejeio era uma manifestao da compreenso
bastante aguda, por parte da elite da aldeia, do capital simblico e do prestgio que a associao
com uma comunidade indgena parecia auferir aos aliados brancos com os quais entravam em
contato. Havia o desejo, manifestado em diversas assemblias e reunies de planejamento de
-
34
projetos, dos Yawanaw contarem sua prpria histria, serem autores de seu material cultural10.
Acompanhei algumas negociaes com diferentes pesquisadores que pretendiam entrar na
aldeia, sendo que as duas negociaes (envolvendo trs pesquisadores) que acompanhei mais
de perto foram marcadas pela insistncia por parte dos pesquisadores e reticncia por parte das
lideranas, sendo ambos os casos resolvidos pela ida sem autorizao dos pesquisadores rea
seguida pela posterior aquiescncia dos ndios sua presena para evitar conflitos maiores. Essa
hesitao em aceitar ter sua histria contada por terceiros revelava a facilidade com que a
comunidade indgena articulava o quase indizvel jogo de prestgio que reveste as relaes entre
pesquisador e objeto, ou entre mediador e comunidade assessorada, em nossa sociedade. A elite
Yawanaw administrava em benefcio da aldeia o desejo de aproximao dos aliados brancos,
dosando com cuidado e parcimnia o favor da representao, chegando a lan-los em compe-
tio para ver quem traria maiores benefcios aldeia moeda que constitui o capital simblico
de mediadores e assessores do movimento popular.
Tratava-se de uma experincia de vida que se iniciou como uma forma de neo-
militncia ecolgica, se transformou em atividade profissional, e que passou a ambicionar se
transformar em atividade intelectual na medida em que a riqueza de situaes que se apresenta-
vam, a complexidade do campo indigenista no qual penetrava e atravs do contato com os
agentes com os quais a comunidade interagia, despertavam a conscincia de minha ignorncia.
Cinco anos de atividade como mediadora entre a tribo e a empresa capitalista americana e em
relao freqente com entidades ambientalistas e indigenistas, rgos governamentais como a
FUNAI, no entrecruzamento de interesses e disposies das mais variadas e que interpretavam o
papel que eu desempenhava de maneiras incrivelmente dspares (desde amiga dos ndios
representante de interesses norte-americanos no Brasil), tive uma crise de identidade que se
manifestava por uma aguda e dolorosa sensao de ser eu composta por uma colcha onde
faltavam retalhos tericos fundamentais para manter sua integridade e evitar sua fragmenta-
o. Calou fundo, neste momento, o conselho de um amigo de que era necessrio que eu estabe-
lecesse um projeto de vida prprio para que conseguisse interagir com tantos mundos diferentes
10 Em 1997, fui procurada por um agente literrio americano que me props escrever um livro contando minhas experincias junto tribo. As lideranas reagiram idia, considerando que este deveria ser um projeto executado por Joaquim Yawanaw, um jovem que vivia na cidade, filho do lder Raimundo. Aps vrias reunies, a proposta acabou se transformando em uma proposta de financiamento da compra de gravadores, cmeras e computadores para o registro no qual os velhos da aldeia contariam sua histria. A editora acabou por no aceitar a proposta por ach-la cara. Mas o ento jovem Joaquim se transformou de fato no autor de filmes, vdeos e CDs musicais que contam a histria de seu povo, adquirindo um alto grau de competncia na administrao da imagem da tribo, se relacionando com a imprensa nacional e internacional.como um especialista.
-
35
sem perder o que sobrava de minha identidade, fragilizada que estava, em meio a um antropo-
logical blues leigo, porm real. Assim, tive literalmente - que pedir ao cacique a permisso
para voltar a estudar.
As opes que se apresentavam, ao refletir sobre a dificuldade de me transformar de a-
gente em pesquisadora (sair, como diria Becker, da experincia individual e iniciar o caminho
at a etapa de trazer os dados para a anlise na interface com a academia) (Becker, 1993) se
resumiam a desistir da empreitada ou correr o risco de v-la rejeitada pela crtica objetivista de
pares que seriam novos, recm adquiridos, ao invs de acumulados ao longo do processo normal
de formao universitria. Assumir o risco acarretava a empreitada duplamente trabalhosa:
investir, com constante vigilncia epistemolgica sobre mim mesma (Tavares dos Santos,
1991), teoria em dados j adquiridos e muitas vezes sedimentados, necessitando ser re-avivados
pela capacidade crtica recm-adquirida. Desistir envolveria em uma das vertentes do desper-
dcio da experincia, no sentido da Crtica da Razo Indolente de Boaventura Santos (Santos,
1995) que acusa a teoria moderna de vacilar diante dos problemas criados pela modernidade
para as quais a critica moderna no mais encontra solues: ou resolve que, por no haver
solues possveis, no existem problemas a se perseguir; ou no reconhece problemas que no
condizem com as solues indicadas por seu mtodo de anlise.
Este seria o desperdcio de uma experincia vivida no cruzamento de campos que no se
encontram gratuitamente na atualidade, campos estes to dspares como a indstria de cosmti-
cos, o mercado da moda, a aldeia indgena, o campo ambientalista, a academia e diversas insti-
tuies polticas. Este enorme entroncamento pode nos dar pistas da complexidade dos proble-
mas que um objeto de estudo recortado ao sabor de um mtodo academicamente consagrado
talvez dissimulasse. Uma experincia, como talvez tivesse Boaventura a coragem de nomear
como ps-moderna, que pudesse ajudar a desvendar problemas criados pela modernidade
colonial, mas que se desenvolvem em ambiente ps-moderno: globalizado, interconectado,
multi-situado, complexo.
Assim, no podemos reduzir este dilema diferena entre a observao participante e a
participao observante discutidos por Eunice Durham (Durham, 1986). No se trata de esco-
lher ou evitar ser seduzido pela militncia e/ou se prender ao compromisso com o rigor cientfi-
co. O papel de antroplogos e intelectuais que optaram por participar ou por se afastar para o
posto de observao crtica da ao de interveno nas comunidades tradicionais a serem inva-
didas pelas foras da modernidade , em si mesmo, parte do problema a ser enfrentado nesta
-
36
empreitada. Diante do problema epistemolgico desta transformao de participante em
observante face ao objeto que o prprio encontro multifacetado no qual a ao de antrop-
logos interfere nos rumos da histria e das polticas pblicas, o objeto deixa de ser a comunida-
de indgena passando a ser o campo foras do movimento social e aquele mais amplo, do desen-
volvimento econmico como expresso da modernidade e do capitalismo em seu estgio atual
(a alta modernidade de Giddens ou o capitalismo avanado de Jameson).
i.4 A diacronia como recurso
Entre as diversas sugestes metodolgicas para facilitar meu distanciamento face imer-
so que experincia provocou, estavam os conselhos de Louis Pinto sobre a observao clara
do pesquisador dentro do campo da pesquisa alm do recurso documentao e uso constante
de comparaes, (Pinto in Champagne et alli, , 1998). No entanto, no pude usar o quarto
recurso recomendado por este autor, entre tantos outros, de partir para a coleta de dados com
uma pergunta fundante bem formulada, visto que o ato de pesquisa se deu aps a vivncia do
campo, e os dados coletados o foram sem que houvesse sido articulada a pergunta capaz de
transformar os fatos sociais em sociolgicos. Os dados colecionados ao longo de dez anos de
arquivamento de informaes captadas atravs de entrevistas gravadas ou filmadas, fotos,
documentao contbil, relatrios de viagem e de avaliao de projetos, atas de assemblias,
desenhos de ndios, etc. eram na realidade um enorme excesso de difcil administrao. Desta
forma, uma estranha inverso se deu atravs da qual meus arquivos se tornaram o campo.
Neste campo, os dados passaram a ser selecionados em funo da delimitao que provisoria-
mente estabeleci em torno da organizao do trabalho, mas rebelde e significavelmente insisti-
ram em se apresentar como relacionados organizao poltica do grupo, apontando para essa
imbricao fundamental.
Tambm foram fundamentais os conselhos da professora Ana Galano, de que desse tem-
po ao tempo, e que observasse a mim mesma, atenta s transformaes causadas pelo retorno
universidade, registrando o olhar que eu mesma tinha antes e depois de ter adquirido o instru-
mental analtico que a academia forneceu. No papel de mediadora entre a empresa e a tribo,
com participao muito ativa nas reunies e tomadas de deciso e na organizao direta dos
trabalhos ao longo deste tempo, como um personagem que transparece nas cartas e relatrios,
transcries de fitas e fotografias, a autora se constitui como agente do processo a ser observado
e cujas aes devem ser analisadas. A tarefa passa a ser recuperar a viso de mundo que se tinha
em determinado momento, j alterada e transformada tanto pela experincia como pelo acmulo
-
37
de informao e de teoria no prprio processo de aprendizado acadmico.
A transformao de uma experincia no mundo da vida em aventura intelectual e socio-
lgica, acabou se ancorando, assim, no andar do tempo e no distanciamento crtico facilitado
pela anlise diacrnica. Ao mesmo tempo, na medida que observava as diferentes descries e
comentrios que outros observadores teciam sobre a aldeia aps visitas nicas e curtas, percebia
como o objeto observado se apresentava como um cristal furta-cor que deixava nos visitantes
fortes impresses que dependiam inteiramente do momento e da conjuntura de cada visita.
Assim, aqueles que iam Nova Esperana em tempos de festa ou durante surtos epidmicos,
pareciam descrever aldeias diferentes. Percebi ento como o acompanhamento de um perodo
longo poderia tambm dar relevo aos conflitos e revelar o dinamismo e a agncia viva dentro da
estrutura flagrada no sincronismo. Optei, por todos estes motivos, por apresentar de forma
cronolgica os eventos de constituio e desenvolvimento do Projeto atravs de uma histria
crtica, termo esse que no constitui um conceito ou metodologia estabelecida por qualquer
autor, mas que defino, aqui, como a descrio etnogrfica densa de eventos dispostos diacrni-
camente.
O Projeto em questo no se d em um vazio histrico, no configura uma relao entre
partes genricas - nem o ndio genrico de Lins Ribeiro nem a empresa capitalista genrica.
Para tanto, os leitores percebero que cada captulo se inicia com a tentativa de anlise descriti-
va ampla que favorea a genealogia dos conceitos e o mapeamento das alianas estabelecidas
pela comunidade ou pela empresa, e se seguir de uma aproximao do foco da lente em direo
aos atores que interagem com tais estruturas.
O relevo que busco na descrio diacrnica estar constantemente referido s discusses
entre estrutura e ao da forma como foram propostas por Bourdieu, e acredito que esta tese seja
uma tentativa de demonstrar a agncia de indivduos dentro de estruturas estruturadas e estrutu-
rantes, modificadas por esta ao de indivduos que determinam rumos tomados nas bifurcaes
que a histria apresenta. Tentaremos desempacotar o papel de atores que trafegam nas estru-
turas gerais atravs do tempo, mostrando como respostas imbudas de escolhas e especificidades
s situaes que se apresentaram ao longo deste perodo, determinaram direes possveis a
partir dessas bifurcaes. Ao mesmo tempo, vemos como padres gerais resultam em efeitos
muitas vezes inesperados, como polticas pblicas negociadas em altas esferas governamentais
que afetam o mundo da vida local de formas diferentes do previsto. No sentido inverso, a ao
de indivduos e a formao de alianas afetam as estruturas institucionais, estabelecem tendn-
-
38
cias, fecham ou abrem portas que determinam a direo do desenrolar de eventos.
Tentarei, assim, situar o incio do projeto em um continuum que considera e coloca em
relevo a experincia da comunidade, acumulada atravs de diversas fases de contato com a
sociedade envolvente, portanto diacrnica. No entanto, em se tratando o nosso objeto de um
encontro, seu recorte exige uma descrio dirigida a mais de uma direo, podendo incorrer
no pecado da superficialidade, j que possui o compromisso com a concatenao de fatores to
distantes entre si a ponto de estarem por vezes excludos do mesmo campo discursivo. Pautado
na teoria da antropologia literria, Castro Rocha, estudando o pblico e o privado na literatura
brasileira, desenvolve, o conceito de campo discursivo como sendo composto de dados que
necessariamente o antecedem, mas, no ato de transform-los em objetos de discurso... no
apenas d forma aos dados, como pode inform-los de contedos que no poderiam ter sido
determinados pelos dados em si mesmos (Rocha, 1998, p. 32). Ao adotar a metodologia com-
parativa, esse autor percebe que toda resposta, em virtude de seu carter histrico particular,
possui elementos irredutveis a uma abordagem comparativa, o que soluciona, ento, atravs
da aproximao de problemas ao i