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Universidade Federal do Paraná Letras - Português e Inglês - Bacharelado com Ênfase em Estudos da Tradução Uma tradução comentada de "The Beatrice Letters", de Lemony Snicket Isadora Bortoluzzi Massa Curitiba 2013

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Universidade Federal do Paraná

Letras - Português e Inglês - Bacharelado com Ênfase em Estudos da Tradução

Uma tradução comentada de "The Beatrice Letters", de Lemony Snicket

Isadora Bortoluzzi Massa

Curitiba

2013

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Isadora Bortoluzzi Massa

Uma tradução comentada de "The Beatrice Letters", de Lemony Snicket

Monografia apresentada como exigência para obtenção do grau de Bacharelado em Letras - Português e Inglês - Bacharelado com Ênfase em Estudos da Tradução da Universidade Federal do Paraná.

Orientador: Caetano Waldrigues Galindo

Curitiba

2013

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RESUMO Uma tradução comentada de The Beatrice Letters, do autor Lemony Snicket, romance complementar da série A Series of Unfortunate Events. Os comentários da tradução e o corpo do trabalho têm por intenção destacar possíveis problemas de tradução enfrentados por um tradutor que se proponha a traduzir o livro ou a série. Palavras-chave: Lemony Snicket, Daniel Handler, Desventuras em Série, The Beatrice Letters, tradução de literatura infanto-juvenil

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ABSTRACT A commented translation of Lemony Snicket's The Beatrice Letters, a novel containing supplementary material to Snicket's A Series of Unfortunate Events. The comments within the translation, as well as the bulk of the monograph, intend to point out possible problems that a translator who intends to translate the book or the series as a whole might face. Keywords: Lemony Snicket, Daniel Handler, A Series of Unfortunate Events, The

Beatrice Letters, translation of teenager literature

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 5

2 O AUTOR ................................................................................................................. 7

2.1 OBRAS PUBLICADAS ..................................................................................... 10

3 O LIVRO ................................................................................................................. 13

3.1 QUESTÕES DE TRADUÇÃO .......................................................................... 15

3.2 QUESTÕES DE EDITORAÇÃO ....................................................................... 19

4 TRADUÇÃO ........................................................................................................... 20

5 CONCLUSÃO ......................................................................................................... 59

6 ANEXOS ................................................................................................................ 61

REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 99

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1 INTRODUÇÃO

O objetivo deste trabalho é apresentar uma tradução comentada de The

Beatrice Letters, romance epistolar que serve de material complementar à série

de livros infanto-juvenis A Series of Unfortunate Events, conhecida no Brasil

como Desventuras em Série. A série foi escrita pelo americano Daniel Handler,

usando o pseudônimo Lemony Snicket.

O interesse pela proposta vem de um interesse prévio nos problemas de

tradução de literatura infantil e infanto-juvenil, bem como de uma leitura

extensiva dos livros pertencentes à série; leitura esta que permitiu a

identificação do extensivo uso da metalinguagem para criar efeito humorístico e

dramático, entre outros. A subsequente especulação sobre como um possível

tradutor lidaria com a tematização da língua inglesa dentro da série levou à

escolha do tema da monografia; The Beatrice Letters foi escolhido entre os

outros livros da série pelas questões específicas que apresenta (que serão

explicitadas na seção 3.1).

A tradução e os comentários buscam destacar questões de tradução a

serem enfrentadas por um tradutor que se proponha a traduzir o livro e/ou a

série, bem como apresentar possíveis soluções para essas questões; porém, a

monografia não busca soluções definitivas para esses problemas. O presente

trabalho não tem como objetivo a publicação do texto traduzido, nem busca

lidar com possíveis problemas de ordem editorial resultantes do projeto gráfico

do original, apesar de também fazer um levantamento desses eventuais

problemas.

A tradução aqui apresentada não se alinha com nenhuma teoria

tradutória em especial, mas busca lidar com os problemas apresentados pelo

texto original caso aacaso, refletindo sobre tópicos estudados pela teoria de

tradução em geral: a posição do tradutor, a preservação de efeitos do original,

a escolha entre afastar ou aproximar o texto de chegada da cultura de

chegada, entre outros. Alguns dos paradigmas da tradução podem ser

referidos durante o texto, mas não há nenhuma tentativa de seguir suas

propostas à risca ou mesmo de questionar sua validade.

O trabalho se organiza da seguinte forma: primeiro, uma breve

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apresentação do autor e de suas obras; em seguida, uma apresentação da

obra The Beatrice Letters, bem como do contexto de A Series of Unfortunate

Events em geral, além de uma breve apresentação das questões de tradução e

editoração que o livro apresenta. Segue-se então a tradução propriamente dita,

com comentários em forma de notas de rodapé. Por fim, haverá uma

apresentação das conclusões a que se chegou após o trabalho realizado; nos

anexos, estará o texto original, apresentado na forma de figuras; e, por último,

as referências bibliográficas.

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2 O AUTOR

Daniel Handler é um autor americano nascido em São Francisco,

Califórnia, em 1970. Filho de uma cantora de ópera e de um contador, sua

formação de leitor (e, consequentemente, seu estilo literário) foi fortemente

influenciada pelo trabalho de escritores como Roald Dahl (1916-1990) e

Edward Gorey (1925-2000). Sua ascendência judaica – seu pai e seus avós

eram refugiados da Alemanha nazista – é outro elemento de importância que

deixou sua marca em A Series of Unfortunate Events e em outras de suas

obras.

Após sua graduação na Wesleyan University, em 1992, ele recebeu uma

bolsa da Olin, que usou para começar a escrever seu primeiro romance, no

qual trabalhou por boa parte da década de 90. Por causa do tom sombrio da

narrativa, Handler só conseguiria publicar esse primeiro romance, The Basic

Eight (sem tradução para o português brasileiro), em 1998, pela Thomas

Dunne Books, após se mudar para Nova York, e ser rejeitado várias vezes. The

Basic Eight é supostamente inspirado nas experiências do autor durante o

Ensino Médio, e recebeu tanto críticas positivas quanto negativas na época de

seu lançamento.

Seu segundo romance para adultos, Watch Your Mouth (publicado em

2000 pela Thomas Dunne Books, sem tradução para o português brasileiro)

também foi alvo de críticas mistas, causadas pelo seu sombrio enredo

principal, enquanto que o terceiro, Adverbs (publicado em 2006 pela

HarperCollins, sem tradução para o português brasileiro) foi recebido de forma

mais favorável, ao se tratar de uma coleção de narrativas interligadas pelo

tema comum do amor em suas várias formas. O quarto dos romances

publicados sob o nome de Daniel Handler, Why We Broke Up (publicado em

2011 pela Little, Brown and Company; traduzido no Brasil por Érico Assis sob o

título Por isso a gente acabou, publicado em 2012 pela Cia. das Letras),

também recebeu críticas positivas; o livro é um romance epistolar que conta a

história do início e do fim de um relacionamento entre adolescentes, e o que o

torna interessante é o projeto de marketing gerado para promovê-lo: possíveis

leitores podiam contar histórias de relacionamentos que não deram certo no

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site oficial do projeto, e o próprio Daniel Handler gravou entrevistas na Estação

Central do metrô de Nova York, perguntando aos passantes sobre

relacionamentos desse tipo.

Embora o mérito das obras publicadas sob seu nome não possa ser

negado, Daniel Handler é mais conhecido pelas obras que publicou sob o

pseudônimo de Lemony Snicket; de fato, A Series of Unfortunate Events pode

facilmente ser considerado o seu magnum opus.

A proposta que daria origem à série nasceu do seu primeiro romance,

The Basic Eight: por ter adolescentes como protagonistas, o livro foi várias

vezes enviado para editoras que se especializavam em publicar livros infantis e

infanto-juvenis. Numa dessas ocasiões, a editora Susan Rich, que trabalhava

para a editora HarperCollins, teve oportunidade de ler o livro, e, embora o

considerasse inadequado para um público infanto-juvenil, percebeu que

Handler tinha potencial para escrever uma série desse gênero. De início,

Handler resistiu à ideia, mas acabou sendo atraído pela possibilidade de

escrever um livro infanto-juvenil que fosse o tipo de livro que ele teria gostado

de ler aos dez anos; depois de esboçar um projeto para uma paródia de

romance gótico, ele reconstruiu personagens e conseguiu transformar a história

numa série que, para sua surpresa, teve estrondoso sucesso: desde a

publicação do primeiro livro, The Bad Beginning (traduzido no Brasil por Carlos

Sussekind com o título Mau começo, publicado em 2001 pela Companhia das

Letras), em 1999, pela HarperCollins, os treze livros da série já foram

traduzidos para 41 línguas.

O nome do personagem Lemony Snicket foi concebido antes das séries;

Handler assinava revistas e se inscrevia em organizações de esquerda sob

esse pseudônimo enquanto pesquisava para escrever The Basic Eight. A ideia

de usá-lo como pseudônimo para a autoria do livro surgiu quando o narrador do

texto começou a ganhar vida própria. Em seu papel de narrador-personagem,

Snicket afirma ser um pesquisador que está reunindo e relatando as

desventuras dos órfãos Baudelaire (protagonistas da série). Embora de início

seu envolvimento com a narrativa não esteja explícito, no decorrer da série é

possível notar várias sugestões sobre o seu papel no enredo; essas sugestões

são depois explicitadas nos livros de material complementar, bem como no

décimo terceiro livro da série.

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Quanto ao estilo literário de Handler/Snicket, pode-se notar o uso de um

registro da língua inglesa escrita um pouco mais elevado que o inglês padrão

do cidadão americano comum; também é possível notar o uso frequente da

tematização da própria língua como forma de humor e de drama, bem como

um alto conhecimento das convenções dos gêneros que adota e uma frequente

intenção de paródia. Ele também faz uso constante de recursos visuais, de

forma que o sentido de seu texto está estritamente relacionado com a forma;

quando necessário, Handler/Snicket repete frases, interrompe parágrafos,

insere trechos de outros textos, inverte palavras, entre muitas outras técnicas.

Ele tem como temas frequentes a própria herança judaica, a auto-descoberta

de personagens (especialmente de adolescentes e crianças), e a sátira social;

dentro de A Series of Unfortunate Events, especificamente, ele trabalha com

temas como o fardo causado pela existência de segredos e a relatividade

moral, bem como a transição da infância para a vida adulta. Outra

característica de A Series of Unfortunate Events é a proposital vagueza; vários

detalhes da história nunca são completamente revelados ao leitor – detalhes

estes que incluem o passado e o futuro de certos personagens, bem como a

verdadeira natureza de um objeto que se torna extremamente importante nos

últimos livros.

Atualmente, Daniel Handler vive em São Francisco, com sua esposa

Lisa Brown, e seu filho, Otto Handler, nascido em 2003. Seus projetos atuais

incluem uma série de livros cuja ação é cronologicamente anterior àquela de A

Series of Unfortunate Events. All the Wrong Questions, que será uma série de

quatro livros, tratará da vida de Lemony Snicket durante seu treinamento sob a

instrução de uma organização secreta; o primeiro livro da série, Who Could It

Be at This Hour? (traduzido no Brasil por André Czarnobai, sob o título Quem

poderia ser a uma hora dessas?, publicado pela Companhia das Letras em

2012) foi publicado em 2012 pela Little, Brown and Company. Ele também

escreveu vários livros infantis, roteiros para cinema, e ainda trabalha como

acordeonista, tendo gravado músicas com bandas como The Magnetic Fields e

Stars.

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2.1 OBRAS PUBLICADAS

Como Daniel Handler:

Romances:

The Basic Eight (1999, Thomas Dunne Books/St. Martin’s Press)

Watch Your Mouth (2000, Thomas Dunne Books/St. Martin’s Press)

Adverbs (2006, HarperCollins)

Why We Broke Up (2011, Little, Brown and Company)

Como Lemony Snicket:

A Series of Unfortunate Events:

• The Bad Beginning (1999, HarperCollins; tradução para o português sob

o título Mau começo, de Carlos Sussekind, 2001, Cia. das Letras)

• The Reptile Room (1999, HarperCollins; tradução para o português sob

o título A sala dos répteis, de Carlos Sussekind, 2001, Cia. das Letras)

• The Wide Window (2000, HarperCollins; tradução para o português sob

o título O lago das sanguessugas, de Carlos Sussekind, 2001, Cia. das Letras)

• The Miserable Mill (2000, HarperCollins; tradução para o português sob

o título Serraria baixo-astral, de Carlos Sussekind, 2002, Cia. das Letras)

• The Austere Academy (2000, HarperCollins; tradução para o português

sob o título Inferno no colégio interno, de Carlos Sussekind, 2002, Cia. das

Letras)

• The Ersatz Elevator (2001, HarperCollins; tradução para o português sob

o título O elevador ersatz, de Ricardo Gouveia, 2003, Cia. das Letras)

• The Vile Village (2001, HarperCollins; tradução para o português sob o

título A cidade sinistra dos corvos, de Ricardo Gouveia, 2003, Cia. das Letras)

• The Hostile Hospital (2001, HarperCollins; tradução para o português

sob o título O hospital hostil, de Ricardo Gouveia, 2004, Cia. das Letras)

• The Carnivorous Carnival (2002, HarperCollins; tradução para o

português sob o título O espetáculo carnívoro, de Ricardo Gouveia, 2004, Cia.

das Letras)

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• The Slippery Slope (2003, HarperCollins; tradução para o português sob

o título O escorregador de gelo, de Ricardo Gouveia, 2004, Cia. das Letras)

• The Grim Grotto (2004, HarperCollins; tradução para o português sob o

título A gruta gorgônea, de Ricardo Gouveia, 2005, Cia. das Letras)

• The Penultimate Peril (2005, HarperCollins; tradução para o português

sob o título O penúltimo perigo, de Ricardo Gouveia, 2006, Cia. das Letras)

• The End (2006, HarperCollins; tradução para o português sob o título O

fim, de Ricardo Gouveia, 2006, Cia. das Letras)

Material complementar:

• Lemony Snicket: The Unauthorized Autobiography (2002, HarperCollins;

traduzido para o português por Ricardo Gouveia sob o título de Lemony

Snicket: autobiografia não autorizada, 2006, Cia. das Letras)

• The Beatrice Letters (2006, HarperCollins, sem tradução para o

português)

All the Wrong Questions

• Who Could That Be at This Hour? (2012, Little, Brown and Company;

traduzido para o português por André Czarnobai, sob o título Quem poderia ser

a uma hora dessas?, 2012, Cia. das Letras)

Outros:

• The Baby in the Manger (2002, Monotreme Press, sem tradução para o

português)

• The Lump of Coal (2008, HarperCollins; traduzido para o português por

Ricardo Gouveia, sob o título O pedacinho de carvão, 2010, Cia. das Letrinhas)

• Horseradish: Bitter Truths You Can’t Avoid (2007, HarperCollins;

traduzido para o português por Ricardo Gouveia, sob o título Raiz-forte:

verdades amargas que você não pode evitar, 2009, Cia. das Letras)

• The Latke Who Wouldn’t Stop Screaming (2007, McSweeney’s;

traduzido para o português por Antônio Xerxenesky sob o título O latke que não

parava de hritar, 2012, Cia. das Letrinhas)

• The Composer Is Dead (2009, HarperCollins; traduzido para o português

por Érico Assis sob o título O compositor está morto, 2012, Cia. das Letrinhas)

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• 13 Words (2010, HarperCollins; traduzido para o português por Érico

Assis sob o título 13 Palavras, 2013, Cia. das Letrinhas)

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3 O LIVRO

The Beatrice Letters foi publicado pela editora HarperCollins em

setembro de 2006, pouco menos de um mês antes da publicação do décimo

terceiro livro de A Series of Unfortunate Events, The End. O enredo consiste de

duas histórias paralelas, que se interligam e estão inseridas dentro do universo

de A Series of Unfortunate Events.

O universo de A Series of Unfortunate Events trata da história dos órfãos

Baudelaire, Violet, Klaus, e Sunny, que, no primeiro capítulo do primeiro livro,

recebem a horrível notícia da morte de seus pais num incêndio, e são em

seguida levados para viver com um parente distante. Este parente, o Conde

Olaf, se revela um homem desprezível, tendo causado o mencionado incêndio

e recorrendo a quaisquer meios – como assassinato e sequestro – para obter a

fortuna que os órfãos herdaram. Forçados pelas circunstâncias a se mudar

com frequência, passando pelas mãos de vários guardiões legais, os irmãos

Baudelaire buscam impedir os planos do Conde, bem como descobrir mais a

respeito de uma organização misteriosa que parece ter estado por trás de

vários acontecimentos de suas vidas, numa saga que parodia histórias infanto-

juvenis comuns sem negligenciar o desenvolvimento dos personagens nem os

momentos em que a seriedade se faz necessária.

The Beatrice Letters, um dos livros de material complementar da série, é um

romance epistolar, constituído de cartas do personagem Lemony Snicket para

a personagem Beatrice Baudelaire (referida como Beatrice Baudelaire I) e de

cartas de uma segunda Beatrice Baudelaire (referida como Beatrice Baudelaire

II) para o mesmo Lemony Snicket. As cartas são dispostas de forma a criar

duas linhas do tempo paralelas: primeiro uma carta de Lemony Snicket para

Beatrice I, escrita muito antes dos acontecimentos do primeiro livro da série;

em seguida, uma carta de Beatrice II para Lemony Snicket, escrita de nove a

dez anos depois dos eventos registrados em The End. As cartas são escritas

em diversos tipos de papéis com fontes diferentes conforme a necessidade da

ocasião (por exemplo, um telegrama é mostrado num papel de telegrama

legítimo, e, na ocasião em que a segunda Beatrice Baudelaire é forçada a

escrever à mão, a carta é toda escrita na sua letra manuscrita).

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Sendo um livro de material complementar, The Beatrice Letters acaba por

esclarecer alguns elementos vagos da série principal. Os eventos relatados nas

cartas de Lemony Snicket a Beatrice Baudelaire I são relevantes para a série

por fornecer ao leitor um retrato da sua relação com a mesma que não está

explícito nos outros livros; os eventos relatados nas cartas de Beatrice

Baudelaire II a Lemony Snicket são relevantes por permitirem ao leitor deduzir

o destino de alguns personagens após o fim da série; os acontecimentos

relatados exploram alguns dos eventos mencionados mas nunca

completamente descritos durante a série. Como um romance epistolar, o

narrador diverge do narrador típico dos livros da série, que idealiza um leitor

sem conhecimento prévio das circunstâncias do texto, embora sua divergência

seja menos violenta do que a divergência feita pelo autor em Lemony Snicket:

The Unauthorized Autobiography.

Naturalmente, The Beatrice Letters tem várias características em comum

com a série. Como na série, é impossível determinar o exato tempo e lugar dos

acontecimentos: embora a sociedade retratada tenha várias características

americanas, não há menção de cidades não fictícias, e as marcações de tempo

no início de cada carta são vagas de maneira a parodiar o gênero epistolar,

com notações como “16h” e “duas semanas depois da minha última carta”. O

anacronismo de certos elementos não é tão explícito quanto na série; sem

informação sobre os outros livros, seria possível identificar o período de tempo

como antes do advento dos computadores, considerando que Beatrice

Baudelaire II escreve para Lemony Snicket em uma máquina de escrever em

várias ocasiões, mas o livro contém certas referências que, quando traçadas,

vão levar a problemas de anacronismo (um exemplo é a breve referência a um

certo N. na quinta carta de Lemony para Beatrice; esse N. claramente é o

diretor Nero, personagem secundário no quinto livro, e diretor de uma escola

onde há computadores avançados o suficiente para alterar imagens, numa

época em que, ao precisar contatar seu guardião legal, os irmãos Baudelaire

lhe enviaram um telegrama).

O livro lida com alguns dos temas comuns à série, como a crítica social e a

relatividade moral, mas também tem seus próprios temas: uma ideia importante

para a organização do livro é o poder das lembranças de formar laços, e como

estas, por consequência, transformam a identidade daqueles a quem

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pertencem; o livro também lida de maneira mais direta com a perda (seja de

um relacionamento, seja de pessoas reais) e o luto.

Uma das características principais do livro, que o distingue dos livros da

série principal, é as várias alusões crípticas à organização secreta da série (V.

F. D.), bem como sua escrita vagamente criptografada. Todos os personagens

mencionados, salvo as Beatrices e o próprio Lemony Snicket, são referidas

apenas por suas iniciais, cabendo ao leitor a tarefa de identificá-los; códigos e

mensagens estão espalhados por todo o texto, estando a chave de leitura

implícita em certas passagens. Enquanto o livro revela mais detalhes sobre

acontecimentos mencionados na série, ele levanta outras questões que ficam

sem resposta ao fim da leitura.

3.1 QUESTÕES DE TRADUÇÃO

Considerada como um todo, A Series of Unfortunate Events possui

várias características em seu enredo e estilo literário que podem se tornar

problemas para um potencial tradutor. Sendo parte deste universo, The

Beatrice Letters naturalmente exibe algumas dessas características.

Alguns desses problemas de tradução são decorrentes do status de

literatura infanto-juvenil atribuído à obra, e são partilhados por muitas outras

obras pertencentes ao gênero. Uma noção tradicional de literatura infanto-

juvenil é a de que esta é “inferior”, ou “mais simples”, que a literatura para

adultos. Numa série como A Series of Unfortunate Events, em que a

preservação dos elementos importantes para a obra será em grande parte

dependente da criatividade do tradutor, existe a possibilidade de sua liberdade

ser tolhida devido à concepção equivocada da “simplicidade” desse tipo de

literatura.

Há ocasiões, porém, em que o inverso acontece; um exemplo é o caso

da tradução adaptada, quando o tradutor tem a liberdade de modificar o original

de forma a adequá-lo a um novo gênero. A literatura infantil/infanto-juvenil abre

várias possibilidades de adaptação, uma vez que o gênero é frequentemente

considerado uma ferramenta para a educação da criança; Shavit (1986) diz que

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o tradutor/adaptador de textos infantis (ela não faz distinção entre os dois

termos) de livros para o gênero infantil/infanto-juvenil tem permissão de

manipular o texto como queira, desde que se mantenha fiel a dois princípios:

tornar o texto útil para a criança (o que vai de acordo com uma visão da

literatura infantil/infanto-juvenil como um gênero de propósito unicamente

educacional), e tornar o texto adequado à percepção da criança. Diferentes

culturas terão diferentes noções sobre o que é considerado adequado à

percepção de uma criança; assim sendo, uma adaptação poderá gerar

mudança de referentes e censura. Numa série como A Series of Unfortunate

Events, cheia de referentes que o leitor juvenil provavelmente não será capaz

de reconstruir, e de cenas com implicações que podem ser consideradas não

adequadas para uma criança, o tradutor responsável pela alteração do texto no

processo tradutório deve trabalhar com cuidado, pois certas referências

carregam consigo elementos importantes para o enredo; um erro pode impedir

o leitor de acessar esses elementos.

Outro problema decorrente da tradução de literatura infanto-juvenil é a

possível presença de ilustrações, muito mais comum nesse gênero literário do

que na literatura para adultos. Segundo Regina Yolanda Werneck, em seu

artigo O problema da ilustração no livro infantil (1986, parte de uma coletânea

de textos organizada por Sônia Khede sob o título de Literatura infanto-Juvenil:

um gênero polêmico), a ilustração é parte da construção do sentido do texto e

um auxílio para o leitor ainda não completamente alfabetizado; ela “confere ao

livro, além de seu valor estético, o apoio, a pausa e o devaneio tão importantes

numa leitura criadora”. (WERNECK et AL., 1986, p. 148). Ilustrações sendo

parte do processo de interpretação, e, quando consideradas dentro de um

contexto educacional, vitais para o desenvolvimento do leitor, é impossível

descartá-las no processo tradutório—o que pode vir a gerar problemas de

tradução. Para que o leitor da cultura de chegada possa reconstruir o

significado, a substituição de referências se faz necessária, muitas vezes;

porém, como é possível substituir as referências quando estas estão marcadas

no texto por ilustrações? Em The Beatrice Letters, essa questão se exemplifica

nas quatro fotos incluídas no livro e mencionadas na narração. Essas fotos

retratam objetos intencionalmente posicionados para lembrar letras – e, junto

com outros elementos da série, formam uma mensagem. Qualquer alteração

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da mensagem provavelmente irá gerar uma alteração das letras; mas como

alterar essas letras se elas estão retratadas nas fotos?

O estilo de Lemony Snicket/Daniel Handler também gera vários

problemas em potencial para um possível tradutor. O maior destes vem do uso

intenso da metalinguagem na série; Snicket dedica vários parágrafos à análise

de metáforas, e muito do humor vem da subversão das expectativas do leitor

quanto às palavras e expressões.

The Beatrice Letters oferece vários exemplos dessa tematização da

língua inglesa, um deles no próprio título: os dois sentidos da palavra letters –

“cartas” e “letras” – são importantes para a construção de sentido do livro. Em

várias cartas, o autor começa a trabalhar com um dos sentidos do termo, para

em seguida, sem sinalização alguma, passar a tratar do outro, gerando

momentânea confusão no leitor. Em outras ocasiões, ele irá usar os dois

sentidos de um verbo para colocar dois elementos divergentes na mesma

posição, como em “I will love you until all the codes and hearts have been

broken” (“Eu vou amar você até todos os códigos serem decifrados e todos os

corações serem partidos”); em português, usar o mesmo verbo nas duas

construções iria implicar uma mudança de referentes, e ambas as conotações

são importantes para a construção de sentido do texto. Em ambos os casos, o

tradutor terá que encontrar uma maneira de manter os dois sentidos do termo

e, se possível, preservar o jogo de palavras na língua de chegada.

Em outras ocasiões, o autor vai brincar com o sentido esperado de certas

expressões. Em sua terceira carta, Beatrice Baudelaire II relata ter sido

informada por alguns pastores de que “a man of your [Lemony Snicket]

description” (que corresponde à sua descrição) havia vivido ali por perto; sua

subsequente descrição de Lemony Snicket subverte as expectativas do leitor –

que, ao observar a expressão, estará esperando uma descrição das

características que destacam Lemony Snicket da maioria dos homens, e vai

receber uma descrição vaga que pode se aplicar a qualquer pessoa: “average

height, not bald, fully clothed, with the initials L.S.” (altura média, não é careca,

completamente vestido, com as iniciais L.S.). O tradutor terá que encontrar

uma expressão correspondente que carregue a mesma conotação.

Especialmente durante a carta cinco, Handler vai fazer jogos com a

sintaxe comum da língua inglesa, invertendo elementos dentro da frase para

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gerar frases sem sentido – indo, por exemplo, de “(…) until your face is fogged

by distant memory (…)” (até que sua fronte fique confusa na lembrança

distante) para “(…) your memory faced by distant fog (…)” (sua lembrança

enfrentada por distante confusão). O tradutor terá que encontrar uma maneira

de preservar as relações semânticas entre palavras ocupando diferentes

posições sintáticas – o que pode se tornar complicado numa língua em que o

adjetivo necessário não remeta ao substantivo usado.

A impossibilidade de determinar tempo e espaço exatos também vai

gerar questões passíveis de reflexão. Embora existam pistas suficientes dentro

da série para situar a ação nos Estados Unidos, não é possível determinar

exatamente qual região (ou quais regiões) do país é retratada na série; o

tradutor terá dificuldade de transmitir conotações de regionalismo. A questão

do tempo gera problemas similares; sem saber exatamente em que época a

ação se passa, como decidir se a palavra ou expressão a ser usada é “datada”

ou não?

Além de oferecer várias questões de tradução encontradas em outros

livros da série, The Beatrice Letters oferece alguns conflitos de outra natureza,

sendo diferente sua composição. Um desses conflitos diz respeito ao conceito

de anagrama; embora este conceito seja importante em algumas outras obras

da série (no oitavo livro em particular), nesse livro ele funciona como principal

chave de leitura do texto. Por meio de anagramas, o autor esconde várias

mensagens no livro, a principal sendo a frase “BEATRICE SANK” (Beatrice

afundou) – que pode ser construída a partir das letras sinalizadas nas cartas,

além das quatro fotos que retratam objetos posicionados de forma a parecer

letras. A frase se refere a um navio que aparece no décimo segundo e no

décimo terceiro livro; qualquer mudança na frase que buscasse recuperar sua

conotação semântica implicaria uma mudança nas letras envolvidas – mudança

esta que implicaria a substituição de ilustrações, entre outras coisas. Usar uma

nota de rodapé para transmitir o sentido da frase original, enquanto possível

solução para o problema da substituição das letras, entrega a mensagem

secreta para o leitor, o que vai claramente contra as intenções do autor. Como

resolver esse tipo de problema?

Outra questão decorrente do estilo próprio de The Beatrice Letters é a

dificuldade de identificação dos personagens sendo descritos nas cartas. Com

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a exceção das duas Beatrices e do próprio Lemony Snicket, todos os outros

personagens são referidos apenas pelas iniciais, e, enquanto é possível

identificá-los em certos casos pelas dicas que o autor dá – como descrições

físicas ou relação com certos interesses demonstrados anteriormente pelos

personagens em questão –, em outros casos é impossível discernir a qual

personagem exatamente a inicial está se referindo. Nesse caso, é preciso que

o leitor tenha acesso a todas as possíveis interpretações do texto – o que se

torna uma tarefa difícil numa língua que marca gêneros, por exemplo, ou que

usa pronomes diferentes dependendo do status da pessoa referida em relação

ao falante. O tradutor precisa ser versado em todos os personagens da série

para identificar os referentes das iniciais e permitir que o leitor tenha acesso a

todos esses possíveis referentes.

Outras questões de tradução observadas no decorrer do processo tradutório

serão examinadas com mais detalhes nos comentários da tradução.

3.2 QUESTÕES DE EDITORAÇÃO

Além dos problemas de tradução relatados na seção anterior, uma

possível tradução brasileira de The Beatrice Letters encontraria outros

obstáculos em seu processo de publicação; problemas estes de ordem

editorial.

A razão desses problemas é o livro em si, cujo projeto gráfico está

repleto de detalhes importantes para a construção de sentido do texto. O livro

físico consiste de uma capa dura (hardcover) com duas aberturas: uma para o

caderno com o conjunto de cartas, uma para um pôster que inclui um navio

despedaçado e uma imagem do que se presume ser uma caverna próxima ao

Lago Lacrimoso, uma localidade importante na série. As cartas dentro do

caderno não são impressas em papel off-white, mas em papel couché; em

cada carta, podemos ver a impressão do papel original usado no texto, e, em

certos casos, a aparência da folha de papel impressa pode fazer parte da

construção de sentido, como no caso da primeira carta de Beatrice II para

Lemony Snicket; ela menciona que o papel foi dobrado em forma de cisne

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algumas vezes, e, como que para provar suas afirmações, o papel exibe o

mesmo tipo de dobraduras radiais que um papel dobrado em forma de cisne e

desdobrado em seguida teria. A sexta carta de Lemony Snicket para Beatrice

Baudelaire, que consiste em um telegrama, é mostrada num papel de

telegrama adornado por um cabeçalho de uma companhia de comunicações

telegráficas. As fotos incluídas no texto são colocadas de forma a parecer que

realmente foram coladas no papel, e os cartões que iniciam e concluem a

exibição das cartas podem ser abertos e fechados.

É fácil perceber porque o livro enfrentaria problemas de editoração na

indústria literária brasileira; a maior parte dos livros publicados chega às

estantes com um preço muito maior do que o do original americano, mesmo em

casos em que o livro tenha um projeto gráfico simples. Um projeto gráfico

complicado como o de The Beatrice Letters geraria um livro com um custo

muito elevado e pouco retorno desse custo, e o fato de que o projeto gráfico faz

parte da construção de sentido torna impossível descartá-lo; esse dilema talvez

seja compartilhado por outras culturas/sociedadaes.

Essas questões de ordem editorial podem ser o motivo principal por trás

do estranho cenário que a obra de Lemony Snicket enfrenta no Brasil: todos os

livros de A Series of Unfortunate Events foram traduzidos, bem como Lemony

Snicket: The Unauthorized Autobiography e várias das obras infantis não

relacionadas com o enredo escritas pelo autor – mas um dos livros de material

complementar mais relevantes para a série continua sem tradução para o

português brasileiro.

4 TRADUÇÃO

As Cartas de Beatrice1

1 O primeiro problema pode ser encontrado no título. O termo original, letters, pode ser tanto “cartas” como “letras”, e os dois significados são importantes para a interpretação do texto: as cartas constituem um romance epistolar, e as letras são uma referência aos vários anagramas dentro do livro, assim como à própria noção de anagrama. Outra questão é a parte que se refere a Beatrice: há cartas para Beatrice (a primeira) e de Beatrice (a segunda, sua neta), e é difícil manter essa ambiguidade na tradução. Parece não haver muito a se fazer aqui: a escolha elimina outras possibilidades de interpretação.

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Desventuras em Série2

Mau Começo

A Sala dos Répteis O Lago das Sanguessugas

Serraria Baixo-Astral Inferno no Colégio Interno

O Elevador Ersatz A Cidade Sinistra dos Corvos

O Hospital Hostil O Festival Carnívoro

O Escorregador de Gelo A Gruta Gorgônea O Penúltimo Perigo

O Fim

Material Complementar: Lemony Snicket: Autobiografia Não-Autorizada

As Cartas de Beatrice

Dedicatória:

Para Beatrice e de Beatrice3

Primeiro Cartão:

De LS para BB Nº 1

Lemony Snicket

2 O título da série no Brasil é uma escolha adequada que evoca os momentos de paródia do gênero da literatura infanto-juvenil durante a série, mas e se o tradutor quisesse fugir disso? É difícil fugir dos nomes já estabelecidos na cultura brasileira, e dos termos usados dentro deles. Esta questão se torna relevante para a tradução brasileira da série, feita por dois tradutores diferentes; as escolhas do primeiro tiveram que ser mantidas pelo segundo, a despeito de possível discórdia. Usairei termos estabelecidos pela tradução brasileira para fins de continuidade. 3 O tradutor tem que deixar claro que há cartas para uma Beatrice e de uma Beatrice. Mas a dedicatória é meio ambígua; há aqui uma implicação de que o personagem Lemony Snicket deixou os livros para Beatrice II. Intencional por parte do autor ou não, é necessário manter a ambiguidade para que o leitor também possa fazer essa interpretação.

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Aluno de Retórica

Terceiro período

Sinto muito por ter envergonhado você na frente dos seus amigos. Eu só queria

falar com você. Você sempre me pareceu uma pessoa interessante, e eu

apreciei muito a sua apresentação4 sobre a história do soneto. Se você desejar

passar o intervalo da tarde comigo, me encontre do lado de fora do portão

leste, perto do qual há um bom café, que serve uma vaca preta5 excelente. Eu

serei o menino de onze anos usando uma gravata verde e um broche com a

insígnia da nossa organização.

[Mapa do café – Portão Leste – café]

De BB para LS Nº 1

Quarta-feira

Prezado Senhor,6

4 Original: oral report. A tradução literal geraria “relatório oral”, mas a ideia básica por trás de um desses se assemelha às apresentações que se fazem nas escolas. É difícil pensar no quanto da cultura original deve-se preservar no texto quando a própria cultura original é apenas vagamente americana; o mais indicado para o tradutor seria a consideração de cada caso de forma particular, em vez de uma rígida adesão a uma ou outra linha de pensamento. Minha escolha foi aproximar o texto da nossa cultura, uma vez que relatório oral iria mais confundir o leitor do que aproximá-lo da tradição escolar americana. 5 Original: root beer float. Sendo root beer uma bebida tipicamente americana similar (mas não equivalente) ao refrigerante, a escolha da tradução aqui é uma aproximação completa que se afasta da cultura original. Embora a ideia de deixar a bebida no original e explicar o que é seja interessante, deve-se pensar também no espaço do texto em questão, que deve ser formatado para se encaixar no cartão de apresentação. Talvez uma ideia com mérito seja uma nota de rodapé embaixo do cartão. 6 Como se dirigir a Lemony Snicket? Com tantos mistérios em torno de sua identidade, determinar sua idade com certeza é impossível. Se a sua idade é próxima da idade de Beatrice, podemos pensar que ele é um homem de meia-idade; Beatrice tinha idade suficiente para ter uma filha de quatorze anos. Também se deve considerar que as partes relacionadas à Beatrice II em The

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Eu não tenho como saber se essa carta vai alcançar o senhor, sendo muito

grande e problemática a distância entre nós. Este pequeno papel de carta tem

que atravessar montanhas e lanchonetes, dentro de porta-malas de

automóveis e em bolsos à prova d’água de nadadores de longa distância,

dentro de envelopes e dobrado em forma de cisne, para conseguir chegar até o

seu escritório pequeno e poeirento, no décimo terceiro andar de um dos nove

prédios mais lúgubres da cidade. Só o que posso fazer é torcer pelo melhor,

mas torcer pelo melhor, como torcer para que um morcego obedeça as suas

ordens, quase sempre leva à decepção.

E mesmo que esta carta o alcance, eu não tenho certeza se ela vai

alcançar a pessoa certa. Talvez o senhor não seja quem eu acho que é —

afinal, há muitas pessoas que têm as mesmas iniciais que o senhor, assim

como há pelo menos uma outra pessoa com as mesmas iniciais que as

minhas. Talvez o senhor também ache que eu sou outra pessoa, e faça uma

anotação suspeita na página, me acusando de ser essa ou aquela vilã.

(Anotação: E)7

Por muitos anos eu me mantive em silêncio, sentindo todas as minhas

palavras se torcendo e se entrelaçando dentro de mim como um emaranhado

de lã, enquanto procurava alguém que pudesse me ajudar. Agora eu preciso

desatar “O Nó do Meu Silêncio”8 e escrever para um homem que nunca vi,

mesmo que ele não seja o homem que estou procurando, e mesmo que eu

esteja procurando no lugar errado pelo homem certo, ou no lugar certo pelo

Beatrice Letters se passam dez anos depois de The End, o último livro. Senhor parece de um nível de formalidade excessivo, mas não há outra maneira respeitosa de se dirigir a um homem de meia-idade na norma padrão. 7 É preciso que o tradutor tenha familiaridade com toda a obra para reconhecer de que vilã a carta pode estar falando (Esme), e corresponder apropriadamente. Esse é apenas um entre vários exemplos. 8 My Silence Knot é o título de um poema no fim do livro, extremamente relevante para ambas as partes da narrativa. O problema principal gerado pela tradução do título do poema é o fato de ele ser um anagrama de “Lemony Snicket”; é impossível transmitir isso na tradução e também transmitir as conotações de “silêncio” e “nó”, tematizadas cada vez que se menciona o poema no texto. Uma perda que terá que ser compensada de outras maneiras durante o livro.

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homem errado, ou ambos, ou nenhum, ou ambos e nenhum9.

Pelo que me foi dito, eu acredito que o senhor possa ser a única pessoa

que pode me ajudar. Me foi dito10 que o senhor era uma espécie de detetive –

ou, pelo menos, me foi dito que a palavra “detetive” estava escrita na porta do

seu escritório. Me foi dito que o senhor é reservado e quase não fala com

ninguém, e que, nas raras ocasiões em que se dispõe a conversar, o senhor

nunca fala do seu passado, mas que pode ser encontrado às vezes numa

biblioteca, folheando as seções dedicadas ao teatro dos jornais velhos. No

entanto, eu torço para que o senhor me fale do seu passado. Torço para que o

senhor me conte uma história que começou muitos anos atrás, no que me foi

dito ser uma espécie de sala de aula. Torço para que o senhor seja quem eu

torço que o senhor seja, e eu torço para que ainda esteja no seu escritório

empoeirado, e eu torço para que esta carta o alcance. Em resumo, eu estou

torcendo pelo melhor.

O meu nome é Beatrice Baudelaire. Eu estou procurando a minha família

– Violet Baudelaire, Klaus Baudelaire e Sunny Baudelaire. Por favor, entre em

contato comigo a qualquer hora do dia ou da noite.

Beatrice Baudelaire

P.S.: Seria melhor de dia porque tenho que dormir cedo.

De LS para BB Nº 2

LEMONY SNICKET (Lemony Snicket escrito em Braile)

9 O original tem um jogo de palavras entre both e neither. Muito do humor do livro vem de jogos de palavras difíceis de serem reproduzidos em outras línguas. Em momentos assim, o tradutor que queira preservar a conotação cômica terá que buscar outras soluções, talvez até se afastando do aspecto semântico do texto. 10 Questões pertinentes à tradução do português: como lidar com a distância entre a língua considerada “culta” pelas gramáticas escolares e aquilo que realmente funciona como norma culta no uso corrente? “Foi-me dito” gera um estranhamento, uma vez que há muito começamos a usar pronomes átonos em início de frase. Me foi dito é “gramaticalmente incorreto”, e pode chamar a atenção de editores e revisores, uma vez que a carta tem um registro ligeiramente formal. O que se deve usar no produto final?

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Ano da Serpente11

Cara Beatrice,12

Como sempre, estou escrevendo essa carta sem nenhum motivo em particular,

e vou tentar fazer com que R13. lhe entregue ela para que você a possa ler

antes de nos encontrarmos para o nosso treino de esgrima. É fácil escrever

cartas durante o Curso de Código14, uma vez que nosso instrutor despreparado

e tedioso fica simplesmente resmungando as mesmas lições sobre escrever

cartas de negócios. Ele provavelmente vai ficar falando por vários e vários

anos.

Enquanto isso, pessoas sortudas, como você, estão tendo aula de

11 No original, “Year of the Snake”. Como Lemony Snicket esconde informações em vários momentos do texto, o tradutor pode encontrar alguma dificuldade em identificar o que é relevante ou o que não é. A notação parece ser uma referência ao calendário chinês, bem como uma maneira de manter o tempo dentro do texto vago, mas pode também se referir ao especialista em herpetologia que é um personagem importante no segundo livro. Uma possível maneira de se tomar uma decisão sobre a eventual adaptação dessa referência (em uma cultura em que o calendário chinês não seja relevante, por exemplo) é estabelecer contato com a figura de Daniel Handler. 12 Sendo The Beatrice Letters um romance epistolar, surge uma questão: seria interessante que o tradutor adequasse o texto às características do gênero “carta” presentes na cultura de chegada, ou seria mais interessante preservar as características do gênero “carta” do original, de maneira a apresentar a maneira de se escrever cartas na cultura de partida? 13 Novamente, reitera-se o quão importante é o tradutor ser versado na série para identificar os personagens aos quais Lemony Snicket se refere apenas pelas iniciais, e marcar o texto (conforme gênero ou outros aspectos) de forma correspondente. R., no caso, é a Duquesa de Winnipeg, personagem relevante no livro de material complementar Lemony Snicket: The Unauthorized Autobiography. 14 Original, “Code Class”. Durante toda a série, o uso de aliterações marca coisas relevantes para o enredo. Nem sempre é possível manter essas aliterações, e criar aliterações onde estas não existem como forma de compensação pode gerar outras interpretações, não existentes no texto original. Em casos de línguas que não usam o alfabeto romano, como o japonês e o chinês, o uso desse recurso se torna ainda mais difícil.

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teatro. Eu posso ouvir você correndo15 e fazendo o chão de madeira ranger

sobre a minha cabeça.

Você e R. provavelmente estão aprendendo a transmitir mensagens

codificadas em diálogo melodramático enquanto eu escrevo isto. O único outro

aluno dessa turma que eu conheço é O., o qual só me incomoda. Enquanto eu

estou escrevendo, ele está enchendo o seu caderno de anagramas de palavras

obscenas. Estou tentado a dizer para ele que a expressão “verruga prevetina16”

não quer dizer nada, mas depois daquele incidente com o vidro de tinta e a

vaca preta, eu acho que é melhor ficar dentro do “Nó do Meu Silêncio” quando

aquele imbecil levanta aquela cabeça feia de uma sobrancelha só.

Eu estou bem animado17 com a nossa excursão. Eu sei que a R. é a sua

dupla na escalada, mas estou torcendo para que você possa se juntar a mim

por algumas horas para explorar umas cavernas. Minha irmã me disse que há

morcegos naquelas cavernas, e eu adoraria passar um tempo com uma certa

“morcegueira”18. Não importa onde a gente esteja—lá longe nas montanhas ou

15

Original: romping. É uma palavra de registro um pouco mais elevado do que se esperaria de um livro infanto-juvenil, assim como muitas outras palavras dentro da série. Algumas são explicadas, outras não. É possível pensar em uma tentativa de adaptação da linguagem da série para uma linguagem mais simples? O tradutor/a e a editora que se propõem essa tarefa não estariam apagando elementos importantes do estilo do autor? 16 Original: a wet viper perm. É um anagrama que, quando ordenado, forma a frase pre-emptive war, ou “guerra preventiva”. Como nos outros casos de anagrama, é necessário formar uma frase com mais ou menos o mesmo significado; o que difere dos outros casos é a necessidade de usar palavras mais ou menos reconhecíveis e cômicas no anagrama, para transmitir o efeito do original. 17 Original: excited. Uma possível escolha seria “ansioso”, mas Lemony Snicket passa um capítulo explicando a diferença entre nervoso e ansioso no livro cinco; a escolha de “ansioso” poderia ser interpretada como uma referência àquele capítulo em particular. Assim, como em outros casos, se torna necessário que o tradutor tenha uma noção geral das palavras que Lemony Snicket tematizou durante a série, evitando a criação de referências não existentes no texto de partida. 18 O original (baticeer) é uma palavra inventada pelo autor, que se refere a alguém que treina morcegos; mas também é um anagrama de “Beatrice”. Seria necessário tentar manter as duas conotações para assinalar a relevância de Beatrice II se tornando uma “baticeer” ao fim do livro, mas, como os outros anagramas do livro, é um recurso difícil de se transmitir.

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ali embaixo na lanchonete, nadando pelo oceano ou se escondendo dentro de

um automóvel19—eu gosto de estar junto com você, e sinto falta de você

quando não estou.

Estou com saudade. Vejo você daqui a algumas horas,

Lemony Snicket

(N desenhado do lado disfarçado de desenho de montanhas com morcegos.)

19 Original: automobile. Sendo o inglês uma língua cujo vocabulário de uso comum vem, em sua maior parte, de raiz germânica, é comum o uso de palavras da língua latina para chamar a atenção do leitor, aumentar o nível de formalidade do texto, entre outros efeitos. Isso se perde numa tradução para o português, em que quase todas as palavras são de origem latina e não temos um vocabulário particular que remeta à sofisticação. Aqui, essa sofisticação fica implícita na relação da palavra com seu sinônimo mais comum, “carro”, mas, em outros casos, ela poderá se perder no processo.

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De BB para LS Nº 2

28 de Fevereiro20

Prezado Senhor,

Escrevo esta na máquina de escrever em seu escritório pequeno e poeirento,

no décimo terceiro andar de um dos nove prédios mais lúgubres da cidade. É

uma sala sem nada especial21, mas a janela oferece uma vista interessante. Se

eu me reclinar nessa cadeira—sua cadeira, se não estiver enganada—consigo

enxergar um terreno vazio onde brotaram algumas plantas incomuns. Leva

anos para a terra se recuperar de um incêndio, mas mesmo nas cinzas mais

escuras algo pode crescer.

O senhor não está aqui, mas acho que sei onde o senhor está, graças a

algumas pistas que descobri. Por exemplo, há um mapa enorme preso com

tachinhas na parede direita22, e nele há um caminho marcado com lã e

alfinetes. Além disso, há várias anotações indicando hotéis, esconderijos,

20 As referências temporais dentro do livro não são úteis para determinar em que ano a história se passa, mas são úteis para determinar a passagem do tempo entre as cartas. É interessante mantê-las o mais intactas possível. 21 Original: dull. Como é difícil encontrar um equivalente óbvio que se refira a um espaço físico, minha escolha foi glosar a palavra. Enquanto isso transmite o significado, a estrutura sintática fica prejudicada, e, às vezes, a própria transmissão do estilo do autor é comprometida. 22 Original: east wall. No Brasil, referências a pontos cardeais não são muito usadas fora do contexto da geografia, então traduzir literalmente pode não ser de muita ajuda ao leitor brasileiro na questão da localização do mapa. Minha escolha é traduzir por “parede da direita”, mas mesmo essa escolha resulta em perdas; leste e oeste são pontos de referência “absolutos” (ou seja, não vão mudar não importa onde o referente esteja), e “direita” e “esquerda” são “relativos” (dependem de onde o referente esteja). Possivelmente, a única maneira de descobrir onde essa parede está em relação a Beatrice II seria entrar em contato com Daniel Handler.

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locadoras de carros, sinagogas23, bibliotecas públicas, bibliotecas privadas,

restaurantes, cafés, bufês do tipo “coma o quanto puder” e cinemas, cada um

desses marcados com uma data e um horário. Ou eu sou muito boa como

detetive, ou o senhor é muito ruim em esconder coisas—ou o senhor quer que

eu vá até onde o senhor está.

A caixa de madeira na sua mesa, onde está escrito “letras”24, está cheia

de letras. Mas as letras estão todas misturadas, e eu não sei determinar o que

elas diriam se eu as colocasse na ordem certa. As únicas letras que não estão

aqui são as da carta que eu mandei ao senhor. Ou ela nunca chegou ou o

senhor a levou consigo.

Por favor, eu preciso falar com o senhor. Eu ouvi boatos a respeito da

sua pesquisa, e tenho várias perguntas, e algumas críticas construtivas. Eu vou

sair da cidade, apenas algumas horas depois de finalmente vê-la pela primeira

vez, para seguir o seu caminho de lã e alfinetes. Estou indo para as colinas,

para que possa encontrar, depois de todos esses anos, os três irmãos que são

a única família que eu ainda tenho. Sem Violet, Klaus e Sunny, eu sou uma

órfã—uma órfã que vai deixar essa carta aqui, caso nos desencontremos.

Beatrice Baudelaire.

P.S.: Esse peso de papel é muito bonito, aliás, embora eu não saiba dizer se

ele representa uma cobra, um verme ou uma enguia elétrica25.

23 Entre os vários lugares descritos, sinagogas é o único que talvez soe exótico aos ouvidos do leitor brasileiro, que não convive tanto com a cultura judaica quanto os americanos. Porém, substituir essa referência implica a perda de uma ligação com outras referências à cultura judaica espalhadas pelo livro e pela série. 24 Original: letters. Aqui começa a tematização dos dois sentidos da palavra letters. O autor surpreende o leitor por se referir a um dos sentidos, depois a outro, sem sinalizar a mudança de referencial. Aqui tentei transmitir o significado da frase da melhor maneira possível, mas a pequena confusão (intencional) que o uso da palavra letters gera no leitor do texto de partida se perde na tradução. 25 Em locais onde esses animais não sejam comuns (o que talvez se aplicasse no caso da enguia elétrica em certas culturas), talvez fosse interessante substituí-los por animais que se pareçam com uma sanguessuga (o animal retratado na foto da página seguinte).

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De LS para BB Nº 3

LEMONY SNICKET

(Desenho de uma mão segurando uma caneta)

Aniversário de Scriabin

Caríssima Beatrice,26

Finalmente consegui tempo para lhe escrever, já que Eleanora Poe não está

nos escritórios, e, portanto, não está espiando por cima do meu ombro.

Quando eu disse para o diretor que eu me interessava por retórica e achava

que poderia ser interessante trabalhar como voluntário27 em um jornal, nunca

imaginei que ia me tornar um revisor de obituários assistente—e agora que me

vejo olhando para essa manchete errada, penso que deveria ter seguido você

na profissão teatral.

Madame Poe me disse para nunca revelar qualquer informação que eu

tenha descoberto antes que ela seja publicada no Pundonor Diário28, mas eu

não posso deixar de partilhar com você a informação do obituário que estava

26 Original: dearest Beatrice. A maneira como Lemony Snicket se dirige a Beatrice I muda de carta pra carta, aparentemente conforme a sua intimidade com Beatrice aumenta. O tradutor precisa buscar uma maneira de refletir esse aumento de intimidade e preservar a forma comum de se iniciar o gênero “carta”. 27 Original: volunteering. Volunteer é o termo para uma pessoa que trabalha no lado “bom” da organização VFD; o tradutor tem que prestar atenção para manter essa referência na tradução. 28 Original: The Daily Punctilio. A decisão aqui é seguir os termos já consagrados na tradução da Cia. das Letras para manter a continuidade.

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esperando por mim na minha mesa essa manhã, debaixo do peso de papel da

sanguessuga do Lago Lacrimoso29 que I.30 me deu como presente de

formatura.

“Corre31 a Duquesa de Winnipeg,” o obituário diz. Uma letra apenas

pode mudar tudo.

Pobre R.! Eu não posso nem imaginar o quão triste ela está com a morte

da mãe dela. Ela é uma órfã32 agora—e é a nova Duquesa de Winnipeg, com

todos os privilégios e perigos dessa posição. Isso também significa a

transferência de J33. para a Seção de Finanças, o que quer dizer que G.,

aquela garota tola, vai se tornar a nova editora de moda, o que quer dizer que

eu provavelmente vou me tornar o crítico de teatro. Com certeza, os próximos

meses serão difíceis para todos nós.

29

O original se refere apenas à sanguessuga (Lachrymose Leech). Como manter as aliterações é relevante para possíveis interpretações do texto, escolhi glosar e, assim, inserir a aliteração formada em “Lago Lacrimoso”. 30 O leitor atento (e, por consequência, o tradutor) pode inferir que o I. em questão é Ike Antwhistle, pela referência à sanguessuga do Lago Lacrimoso (o personagem em questão era um pesquisador dessa área fictícia). Ike Antwhistle também parece ser um trocadilho com I can’t whistle (não consigo assobiar); o tradutor que desejasse substituir o nome para preservar o trocadilho também teria que estar atento para identificar esta referência a Ike no texto. 31 Original: The Duchess of Winnipeg Is Deaf. Duas questões relevantes surgem aqui: o tradutor pode tentar adequar a manchete ao estilo de manchetes comum à cultura de chegada, ou preservar a forma original conforme a cultura de partida; a letra substituída é parte de um conjunto de quatro letras marcadas por esses “erros”, que formarão o anagrama FEAR. O tradutor deve observar e pode tentar encontrar uma maneira de preservar essas letras e esse anagrama. Minha escolha é traduzir o anagrama por MEDO, e substituí as letras de acordo. 32 Os órfãos sendo um tema comum do texto, tentar conservar a palavra é interessante. 33 Enquanto a G. que se segue é facilmente reconhecida como a personagem Geraldine Julienne, o J. aqui é mais ambíguo. Existe mais de uma personagem com essa inicial, sendo dois homens e uma mulher, ao menos. O tradutor de uma língua com marcações mais explícitas de gênero (como o português) pode ser forçado a impor sua própria interpretação de gênero, e, desta maneira, eliminar uma das possíveis leituras na tradução. O tradutor que adapta os nomes tem que estar atento a todos esses detalhes e conceber todas essas alternativas.

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Eu sei que numa hora dessas deveríamos estar pensando na nossa

organização, e no que podemos fazer para proteger os nossos voluntários, mas

eu só consigo pensar em você. Nós teremos que ter mais cuidado ao passar as

noites juntos. Devemos ficar longe de janelas abertas, mesmo quando

estivermos na rua, e checar com cuidado debaixo de cada cama, mesmo que

não haja ninguém dormindo na cama em questão. Você deve evitar pratos

suspeitos nos restaurantes, principalmente se o prato for a especialidade da

casa, e eu devo me sentar só em alguns bancos do parque quando leio os

sonetos que você me manda.

Quando vocês agradecerem ao público depois da apresentação de

sexta-feira, eu vou estar sentado na primeira fileira, mas não fale comigo.

Quando você se curvar para o público, jogue um dos alfinetes do chapéu para

fora do palco. Esse será o sinal de que é seguro nos encontrarmos no lugar de

costume para tomarmos a nossa vaca-preta de meia-noite. Eu tenho certeza

que a apresentação será muito boa, mas espero que você nunca mais tenha

que usar aquela fantasia de borboleta de novo.

Estou com saudades de você. Nos vemos daqui a alguns dias.

Lemony Snicket

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De BB para LS Nº 3

16h34 (Letra de Beatrice Baudelaire) Caro Senhor,

Eu finalmente encontrei o senhor—mas o senhor não está aqui. Os pastores

me disseram que um homem que corresponde à sua descrição (altura média,

não é careca, completamente vestido, com as iniciais L.S.) morou por alguns

meses nesse “outeiro”35, uma palavra que aqui significa “colina”. Eles me

disseram que o senhor raramente se aventurava para fora da sua pequena

caverna—“como se você estivesse esperando por alguém,” o pastor mais velho

disse, tocando o cincerro para chamar o seu rebanho, e me olhando bem nos

34 Original: 4 p.m. O tradutor de uma língua que não tenha uma maneira de distinguir as horas da manhã das horas de tarde pela notação apenas terá que glosar essa marcação. 35 Original: brae-man. A palavra original é marcada por regionalismo, sendo tipicamente escocesa; sendo esse efeito um efeito difícil de manter, e considerando o fato de que o português brasileiro não tem uma palavra única para designar “homem que vive nas colinas”, optei por glosar a expressão mas usar a palavra “outeiro”, relativamente arcaica e de registro mais elevado, para destacar o conceito, que vai ser recorrente no livro.

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olhos. Eu lhes dei um anel que eu tinha, que trazia gravado a inicial de uma

pessoa que eu acredito que você conhecia, por uma corrida de iaque para ver

a caverna por mim mesma. Eu não sei o que eu vou precisar trocar para

conseguir enviar essa carta.

A sua caverna é um lugar miserável—fria, infestada de morcegos, e

decorada com um papel de parede horroroso. O que quer que o senhor tenha

trazido dos seus pertences o senhor levou consigo quando foi embora—a única

coisa que encontrei foi o pedaço de papel onde estou escrevendo esta carta.

Num canto dele há uma única letra no que me disseram que era a sua

caligrafia—mais uma letra para a minha coleção, incluindo as letras das suas

iniciais, as letras que eu encontrei no seu escritório e as letras nas cartas36 que

eu escrevo para o senhor, sem jamais saber se foram recebidas.

Este ano de jornada tem sido difícil. Com exceção de uma ou outra

malta ensandencida, tenho viajado sozinha, e agora, após seguir o caminho

que o senhor deixou marcado no seu escritório para mim—se aquele for

mesmo o seu escritório, e se o senhor realmente deixou aquele caminho

marcado para mim, e se o senhor for quem eu acho que o senhor é—tudo o

que descobri foi o que o senhor disse quando deixou esta caverna numa noite

de quarta-feira, bem quando a estação da neve leve começou.

“Eu estou a fim de uma vaca preta,” o senhor disse, e eu também estou.

Vou voltar para a cidade, onde me informaram que posso encontrar as

melhores vacas pretas numa certa loja37, embora eu tenha esquecido o nome

da loja, o lugar, e a tabela de preços. É por isso que é importante que eu

encontre a minha família. Conforme o tempo passa, muitas lembranças

desaparecem. Violet amarrando seus cabelos com uma fita, para mantê-los

longe dos olhos, Klaus lendo um livro com os olhos semicerrados atrás dos

36 De novo os dois sentidos de “letters” são tematizados, e, novamente, minhas escolhas implicam a perda da súbita mudança de sentido que sobressalta o leitor durante a carta. 37 A loja em questão não parece ser o mesmo estabelecimento mencionado na primeira carta, uma vez que Beatrice II usa shop para se referir ao que Lemony Snicket chamou de cafe. Mesmo que os dois lugares sejam o mesmo e a mudança de palavras não reflita uma insinuação do autor que não são, o ideal seria manter-se essa distinção para que o leitor tenha acesso a essa leitura.

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óculos, Sunny na rádio, falando de suas receitas – eu não quero que estas

sejam as únicas coisas que eu vou lembrar das pessoas mais importantes da

minha vida. Por favor, senhor, entre em contato comigo a qualquer hora do dia

ou da noite, enquanto eu vou até o lugar onde eu espero que o senhor esteja

tomando um refresco.

Beatrice Baudelaire (K no canto da página cortada.)38

De LS para BB Nº 4

Beatrice

Essa carta me foi entregue por engano.

Os morcegos certamente precisam de treinadores melhores!

Espero que você esteja bem. R

SNICKET

(Mão e resto do nome do escritor estão encobertos pela nota acima)

Duas semanas depois da minha última carta

Minha querida Beatrice39,

38 Outro desafio para o tradutor que se propõe a adaptar e mudar nomes: essa inicial parece ser o começo do nome de Kit Snicket (o único personagem importante cujo nome começa com K na história), que estaria cortado pelo canto da página, mas é impossível saber com certeza; se o tradutor quisesse manter essa interpretação, precisaria substituir a inicial, o que não só implicaria a perda do anagrama BEATRICE SANK como a perda de outras leituras possíveis da inicial. 39 Original: My dearest Beatrice. É só nessa carta, onde a intenção de pedir Beatrice em casamento se insinua, que Lemony Snicket começa a usar o termo “minha”. O tradutor que se proponha a representar as cartas nas convenções

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Chegam informes de todos os lugares, de Tédia até Paltryville, dizendo que as

performances de O Nó do Meu Silêncio são esplêndidas, e que a sua atuação

de Morcegueira é o ponto alto do espetáculo, melhor até mesmo que a

performance do homem que mora no outeiro. Mais importante ainda, vêm

informes de todos os lugares40, de T. até P., dizendo que você conseguiu reunir

quase toda a evidência de que precisamos. Peço permissão para dar os

parabéns a você e ao seu colega de elenco agora que vocês estão se dirigindo

às colinas para a última performance da turnê.

Mas preciso admitir que sinto muito a sua falta. O mundo é muito

sereno41 sem você por perto. Eu vou para a cama cedo e levanto tarde e me

sinto como se mal tivesse dormido, o que provavelmente se deve ao fato de

que fiquei acordado lendo. Eu me arrasto para a minha mesa de manhã, e de

tarde não consigo me lembrar de chamar L. de “O.”, nem de chamar O. de “L.”,

e à noite eu jogo cartas, mas a minha cabeça nunca está na estratégia, e sim

em você, e R. ganhou uma boa parte da minha coleção de canetas. Com você

longe de mim, é como se todas as letras da minha vida estivessem sendo

embaralhadas em um anagrama42, e eu não vou conseguir colocar todas as

letras em ordem para que elas façam sentido antes de você voltar. Eu não

próprias ao gênero “carta” da sua cultura de partida precisa encontrar uma maneira de representar isso num típico início de carta. 40 No original, existe uma simetria sintática entre a primeira e a segunda frase aqui. Como essa simetria depende de dois significados da palavra “reports”, tradutores podem ter dificuldade de mantê-la; é preciso encontrar outra solução para preservar esse eco entre as duas frases. 41 Original: the world is too quiet. É uma frase que serve de lema à organização VFD, e uso o termo da tradução brasileira para preservar a continuidade. Referência a um poema chamado The Gardens of Proserpine, de Algernon Charles Swinburne, sem tradução “oficial” para o português. Outras línguas onde exista uma tradução “oficial” desse poema implicariam a substituição do lema pela tradução. 42 Considerando-se uma possível adaptação do livro, que simplificasse metáforas para a melhor compreensão do público infanto-juvenil, o tradutor teria que ser cuidadoso sobre quais metáforas serão substituídas. A dos anagramas parece um pouco além do nível do leitor comum de literatura infanto-juvenil, mas é extremamente importante, pois revela a chave de leitura do texto.

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quero nunca mais estar longe de você, Beatrice, a não ser no banheiro, quando

estivermos trabalhando, ou quando um de nós estiver vendo um filme que o

outro não quer ver.

Eu já fiz uma reserva no nosso lugar de sempre das vacas pretas depois

da sua performance na nossa cidade. Há algo que eu quero muito perguntar

para você, mas não vou perguntar numa carta—particularmente numa carta

que eu estou tentando lhe enviar por meio de um roedor noturno voador. Nesse

meio tempo, incluí alguns sonetos que eu escrevi para você, sobre as tardes

que passamos juntos.

Sinto saudades. Nos vemos daqui a algumas semanas.

Lemony Snicket

De BB para LS Nº 4

BEATRICE BAUDELAIRE

(Um A grande no canto da página, como de uma nota)

Véspera do Victoria Day43

Caro senhor,

Eu estou lhe escrevendo para fazer novas perguntas a respeito do assunto

43 Original: Victoria Day Eve. O original se refere a um feriado canadense/escocês celebrado na última segunda-feira antes de 25 de maio. É um feriado muito específico que não vai dizer nada para a maioria das pessoas que não de cultura anglo-saxônica – mas ao mesmo tempo permite acessar um referente temporal em relação às outras cartas. Num livro como esse, onde a forma de notas de rodapé parece pouco adequada, qual seria a solução?

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sobre o qual conversamos no começo do ano.44 Eu estou na minha aula de

Carta de Negócios, que é ministrada por um homem despreparado tão triste e

alienado que tenho certeza que ele vai me dar nota máxima45 por esse texto

sem ler nada além da primeira frase de cada parágrafo. Eu poderia escrever

qualquer coisa aqui. Por exemplo: uma “morcegueira” é uma pessoa que treina

morcegos. Eu aprendi isso com um poema que vi o senhor ler.

Depois de um período de ponderação, tenho o prazer de lhe transmitir

as seguintes informações. Era eu que estava batendo na sua porta do seu

escritório na noite de ontem. Eu sei que o senhor estava lá dentro, porque

segui o senhor desde a biblioteca, onde o senhor ficou quase uma hora

olhando um expositor onde havia vários documentos antigos da exposição

“Poesia no Palco: Sonetos de Atores e Atrizes”. Depois, o senhor se sentou

num banco do parque, examinando uma marca de copo deixada na superfície

de madeira por uma pessoa descuidada, e depois foi passear à margem de

uma lagoa próxima, até o momento em que de repente desatou a correr

desesperadamente até a Doldrum Drive46, onde um ônibus estava saindo

naquele exato momento. O senhor pegou o ônibus, enquanto eu chamava um

riquixá para segui-lo pelas ruas maçantes do bairro tedioso onde fica o seu

prédio lúgubre. Até eu conseguir abrir a fechadura da porta da frente, o senhor

já estava vários andares acima, nas escadas, mas eu ainda podia ouvir o

senhor ofegando por causa da subida quando cheguei à sua porta. Por que o

senhor não atendeu? Por que o senhor não quer responder as minhas

44 A brincadeira dessa carta é que todas as primeiras frases são escritas como em cartas de negócios; nesse caso, pode-se argumentar que o tradutor faria melhor em primar pela forma do que pelo conteúdo, traduzindo as frases por frases típicas de cartas de negócios, ou, pelo menos, frases com um registro similar ao de cartas formais de negócio. Tentar manter a forma do original estritamente, palavra por palavra, poderia gerar uma dificuldade de acesso a esse recurso metatextual. 45 A nota máxima no caso do texto original é A, que também é uma das letras que formam BEATRICE SANK, e, portanto, não deve ser substituída. Isso gera um conflito em culturas que tem outras maneiras de registrar notas. 46 Preserva-se o nome original da rua para preservar a aliteração.

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perguntas? Eu devo ter umas doze, pelo menos47.

Concluindo, por favor, não hesite em entrar em contato comigo assim

que o senhor puder. Uma carta só já pode mudar tudo. Os três Baudelaire

podem ter se ido há muito tempo, mas há uma quarta Baudelaire aqui,

esperando que você desate “O Nó do Meu Silêncio” e me ajude a achar o fim

de uma história que começou com o senhor—nessa mesma sala de aula onde

eu me sento agora, prestes a entregar esta carta para o meu professor para

que ele me dê uma nota e mande ela pelo correio.

Atenciosamente,

Beatrice Baudelaire (assinatura)

Beatrice Baudelaire

De LS para BB Nº 5

(Mesma mão que aparece nas outras cartas, mas sem o nome)

Crepúsculo

Minha querida, caríssima, Beatrice,48

47 O humor desse trecho vem do fato de que a pergunta anterior é construída como uma pergunta retórica (uma vez que Beatrice II não tem como receber a resposta de Lemony Snicket instantaneamente), e que, quando a personagem se refere a ter perguntas, ninguém espera que ela defina exatamente quantas perguntas tem. O humor é algo delicado e o narrador precisa ter cuidado com a tradução para transmiti-lo para a língua alvo. 48 Original: My dearest darling. A maneira de se dirigir à Beatrice vai ficando cada vez mais íntima a cada carta, culminando aqui num tratamento que une todos os tratamentos anteriores. Se pensarmos em traduzir o marcado pelo marcado, o tradutor que se propõe a adequar o texto ao gênero “carta” de sua cultura tem que encontrar uma forma que reflita essa mudança, mas que ao mesmo tempo remeta ao gênero “carta”.

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Eu recebi todas as duzentas páginas do seu livro me explicando porque você

não pode se casar comigo, e dei aos pombos-correios tantas sementes quanto

eles conseguiam comer, e acariciei suas penas com meus dedos trêmulos, e

banhei seus bicos com minhas lágrimas. Eu tive que ler o livro três vezes e

meia antes de conseguir desatar “O Nó do Meu Silêncio” e escrever a você.

Anexada à carta, você vai encontrar uma mecha do seu cabelo49, que eu

estou devolvendo a você, assim como você me devolveu o item que eu

coloquei no seu dedo naquela noite, quando os garçons estavam pondo as

cadeiras nas mesas para sinalizar que o café estava fechando, e esperavam

impacientemente que terminássemos de tomar aquele restinho de água

gaseificada, açúcar, extrato de noz de cola, cafeína, acidulante INS 338,

corante caramelo IV50 e sorvete de baunilha derretido. A carta de duzentas

páginas partiu meu coração, mas meu coração se desfez em pedacinhos

quando vi o anel e nele o vestígio do seu toque51. Você sabia que esse anel

pertencia à mãe da nossa duquesa? Tem um “R” gravado no seu centro, você

provavelmente reparou. Com certeza ela iria querer muito que você ficasse

com ele; mesmo que você não queira mais se casar comigo, o anel é seu

49 A mecha do cabelo em questão forma um C, que faz parte do anagrama de BEATRICE SANK. Se a editora se propusesse a substituir as letras implícitas nas fotos por outras para substituir o anagrama, o tradutor precisaria fugir completamente da forma semântica e substituir a mecha de cabelo por outra coisa. 50 No original, você tem ingredientes comuns de root beer, bebida sem equivalente na cultura brasileira. Como substituí o “root beer float” por vaca preta, aqui substituí os ingredientes pelos ingredientes da Coca-Cola. Isso implica um desvio semântico relativamente forte, mas necessário de acordo com a escolha anterior. 51 Aqui temos o começo de um código usado para passar mensagens secretas nesse livro, mas explicado com detalhes somente em The Unauthorized Autobiography: o Código de Sebald. Nesse código, o toque de um sino sinaliza que, na mensagem que se segue, deve-se marcar uma palavra a cada dez palavras, formando então estas palavras a mensagem verdadeira. Nesse caso, é muito mais interessante passar o código do que se fixar na semântica da carta; uma tentativa de adaptar o código vai com certeza se afastar do significado estrito do texto. É necessário que o autor tenha conhecimento do código (e, portanto, do texto de outros livros) para conseguir perceber o uso do recurso e traduzi-lo de acordo.

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ainda. Só posso lamentar o nosso fim, devido ao nosso colega de classe, o

Conde Olaf – que horror escrever as letras de seu nome odioso, depois do que

aconteceu! Entre todo um elenco de vilões, ele se destaca. Nem a estrela mais

brilhante é capaz de atravessar uma nuvem de fumaça, e O. é um tufão escuro

encobrindo os nossos céus. Um dia vão saber de sua perfídia e de sua higiene,

mas é tarde para nós52. Tocarão os sinos, mas não para celebrar o nosso

casamento; anel, cabelo, cartas e fotografias—todos os traços do nosso amor

hão de se espalhar pelo vento, como um anagrama53 de uma das nossas aulas

de código.

Em conclusão, vou tentar responder as treze perguntas que você me fez

na página 189. Depois de ler o seu livro, eu entendo porque você não pode

viver comigo. Espero que depois de ler as respostas abaixo, você entenda

porque eu não posso viver sem você.

Pergunta Número Um54: Não.

Pergunta Número Dois: Claro que eu lembro. Você entrou naquela

enorme sala de madeira verde. Você tinha chegado cedo para a nossa primeira

aula, assim como eu. Eu sempre acreditei, muito antes que me ensinassem

isso, que chegar cedo aos compromissos é um sinal que marca uma pessoa

nobre, e deixei você envergonhada ao dizer isso na frente de R. e B. e dos

outros.

Pergunta Número Três: Definitivamente não.

Pergunta Número Quatro: Não, eu acho que não. Eu lembro da

performance, claro, e lembro do seu traje esplêndido, e lembro do alfinete de

chapéu que você jogou para fora do palco, e lembro da discussão que eu tive

com Eleanora Poe na manhã seguinte, quando entreguei minha crítica com

52 O tradutor pode eventualmente ter que criar frases para preservar o código, como eu tive que fazer aqui; isso implica identificação do estilo do autor para se reproduzir frases que nãosejam muito diferentes do resto do texto. Porém, é possível formar frases que soem ligeiramente estranhas; o original oferece essa oportunidade. 53 Importante preservar a referência a anagrama, por causa da chave de leitura do texto. 54 Original: Question One. O normal seria colocar tudo em letras minúsculas, mas acredito aqui se justifica destacar essa estrutura com letras maiúsculas, uma vez que ela funciona como uma topicalização.

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mais de uma hora de atraso, mas não lembro nada do programa da peça. Se

eu tive o programa em minhas mãos, não lembro de tê-lo aberto. Se o abri, não

lembro de ter visto um poema nele. Se vi um poema, não lembro de tê-lo lido, e

se o li, não lembro de tê-lo relido, e se o reli, não lembro de ter ficado confuso

ou de ter continuado confuso. Em resumo, estou confuso.

Pergunta Número Cinco: Três crianças.

Pergunta Número Seis: “Um homem que vive num outeiro.”

Pergunta Número Sete: “Um homem ou uma mulher que treina

morcegos.”

Pergunta Número Oito: “Uma alteração da ordem das letras de uma

palavra, nome ou frase, para construir uma nova palavra ou frase.”

Pergunta Número Nove: Sempre. Continuamente. Com uma apreensão

que só aumenta, e uma esperança que vem diminuindo. Eu vou amar você

sem me importar com as ações dos nossos inimigos ou com os ciúmes dos

atores. Eu vou amar você sem me importar com a ofensa de certos pais ou

com o tédio de certos amigos. Eu vou amar você, não importa o que esteja

sendo servido nas cantinas do mundo, ou que jogos estejam sendo jogados

durante o recreio. Eu vou amar você não importa quantos treinamentos de

incêndio nós tenhamos que enfrentar, e não importa o que esteja desenhado

no quadro em giz borrado e tedioso. Eu vou amar você não importa quantos

erros eu cometa enquanto estou reduzindo frações, e não importa o quão difícil

for memorizar a tabela periódica. Eu vou amar você não importa qual tenha

sido a combinação do seu armário55, ou como você tenha decidido passar o

tempo durante a hora do estudo. Eu vou amar você não importa como o seu

time tenha ido no campeonato ou quantas manchas eu tenha no meu uniforme

de líder de torcida. Eu vou amar você mesmo que eu nunca mais a veja de

novo, e eu vou amar você mesmo que eu a veja toda terça-feira. Eu vou amar

você mesmo que você corte o seu cabelo e eu vou amar você mesmo que você

corte o cabelo dos outros. Eu vou amar você mesmo que você abandone sua

carreira de morcegueira, e eu vou amar você mesmo que você se aposente do

55 Vestígios da cultura americana: crianças brasileiras não costumam ter armários para guardar materiais. Ainda assim, o conceito não é muito difícil de se entender aqui; em certas culturas, pode ser mais difícil, o que talvez gerasse oportunidades de mudança e adaptação.

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teatro para seguir outra carreira menos perigosa. Eu vou amar você se você

largar a sua capa de chuva no chão ao invés de pendurá-la pra secar, e eu vou

amar você se você trair o seu pai. Eu vou amar você mesmo que você grite

para o mundo que a poesia de Edgar Guest56 é a melhor das poesias, e

mesmo que você grite para o mundo que a obra de Zilpha Keatley Snyder é

incrivelmente tediosa. Eu vou amar você mesmo que você abandone o teremim

e comece a tocar gaita, e eu vou amar você mesmo que você doe os seus

saguis para o zoológico e seus sapos arbóreos para M. Eu vou amar você

como a estrela-do-mar ama os recifes de corais, e como o cipó-chumbo57 ama

as árvores, mesmo que os oceanos se encham de algas pardas58 e as árvores

caiam nas florestas sem ninguém para ouvi-las. Eu vou amar você como o

molho pesto ama o fettucini59 e como a raiz-forte ama o miyagi, como o

tempurá ama o ikura, e como o pepperoni ama a pizza. Eu vou amar você

como o peixe-boi ama a alface e como a mancha preta ama o leopardo, como

a sanguessuga ama os tornozelos das aves pernaltas e como um cadáver ama

56 Gera-se um problema de referência aqui: Edgar Guest é um poeta com pouca relevância fora dos Estados Unidos; o leitor vai fazer a conexão com o livro onze, onde a sua poesia é tematizada, mas vai ser incapaz de reconstruir a referência. O mesmo acontece com a autora de livros infantis Zilpha Keatley Snyder, algumas linhas abaixo. Seria possível trocar os escritores para escritores relevantes na cultura de chegada?

57 Original: kudzu. É uma planta parasita que parece com um tipo de cipó, existente no Japão e nos Estados Unidos. Não tem nome em português, e, mantê-la talvez implicasse uma incapacidade de acesso do leitor (o importante é manter o humor causado pela comparação curiosa, não a referência da planta em si). Minha escolha foi substituir por cipó-chumbo, para preservar a comparação com uma planta parasita que se enrola nos troncos das árvores.

58 Original: even if the oceans turn to sawdust. Isso é uma referência a um fenômeno chamado sea sawdust, quando algas pardas da família Trichodesmium se juntam em uma nuvem de coloração marrom. Esse fenômeno aparentemente não tem nome no Brasil (o mais próximo é maré vermelha), e traduzir por “oceanos virarem serragem” não vai preservar a referência. A glosa aqui vai tirar um pouco a graça da situação (é um trocadilho com a frase comum “oceans turn to dust”), mas vai manter a ligação com a ideia dos corais na primeira parte da frase.

59 Aqui ele busca incluir comida italiana e japonesa. Aqui os dois tipos são comuns, mas o que acontece em países onde essas culinárias não sejam conhecidas?

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o bico de um urubu. Eu vou amar você como um médico ama o seu paciente

mais doente e como um lago ama o seu verão mais seco. Eu vou amar você

como a barba ama o queixo, e as migalhas amam a barba, e o guardanapo

úmido ama as migalhas, e o documento importante ama a umidade do

guardanapo, e o olho do leitor ama a tinta borrada do documento, e as lágrimas

de tristeza amam o olho quando ele vai lendo errado o que está escrito. Eu vou

amar você como o iceberg ama o navio, e como os passageiros amam os

botes salva-vidas, e como os botes salva-vidas amam os dentes do cachalote,

e como o cachalote ama o sabor dos uniformes navais. Eu vou amar você

como uma criança ama ouvir seus pais conversando, e como os pais amam

ouvir suas vozes discutindo, e como a caneta ama anotar as palavras que

essas vozes falam em um caderno para conferir depois. Eu vou amar você

como uma telha ama cair de uma casa em um dia de ventania e acertar uma

pessoa rabugenta no queixo, e como um fogão ama dar defeito quando está

assando um peru. Eu vou amar você como um avião ama cair de um céu azul e

claro, e como uma escada-rolante ama prender cachecóis caros em suas

engrenagens. Eu vou amar você como o papel-toalha ama virar uma bolinha e

ser atirado no teto no banheiro e como uma borracha ama deixar restos nos

penteados de pessoas que falam demais. Eu vou amar você como uma

abotoadura ama escapar da camisa e explorar a festa sozinha60 e como um par

de luvas brancas ama deslizar delicadamente para dentro da vasilha de

ponche61. Eu vou amar você como um táxi ama uma poça lamacenta e como

uma livraria ama o paciente barulho de um relógio. Eu vou amar você como um

ladrão ama uma galeria e como um corvo ama um bando62, como uma nuvem

ama morcegos e como uma planície ama um outeiro. Eu vou amar você como

60 É provável que o público ideal do livro – crianças e adolescentes – não vá entender o que é uma abotoadura. Abre-se outra possibilidade de substituir referências. 61 O ponche é típico da cultura americana, e não se pode esperar que seja conhecido em todas as culturas. Outra oportunidade de se substituir referências. 62 Original: murder. Murder é o coletivo que designa grupos de corvos, mas também é uma óbvia referência a assassinato, que minhas escolhas tradutórias acabaram perdendo.

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o infortúnio ama os órfãos, como o fogo ama a inocência, e como a justiça ama

se sentar e ficar vendo tudo dar errado. Eu vou amar você como o campo de

batalha ama os jovens e como balas de hortelã amam suas alergias, e eu vou

amar você como a casca de banana ama o sapato de um homem que acabou

de ser atingido por uma telha que caiu de uma casa. Eu vou amar você como

uma corporação pelo salvamento das chamas63 ama correr para dentro de

prédios em chamas, e como os prédios em chamas amam enxotá-los para fora,

e como um paraquedas ama pular de um dirigível e como o piloto do dirigível

ama ir atrás do paraquedas. Eu vou amar você como um punhal64 ama as

costas de uma certa pessoa, e como uma certa pessoa ama usar vestes à

prova de punhais, e como uma veste à prova de punhais ama ir para a

lavanderia, e como um certo empregado de uma lavanderia ama ficar acordado

até tarde com um par de binóculos, observando uma fábrica de punhais por

horas na esperança de ver uma ladra65, e como uma ladra ama se esgueirar

por trás de pessoas com binóculos, de repente percebendo que deixou o

punhal em casa. Eu vou amar você como uma gaveta ama um compartimento

secreto, e como um compartimento secreto ama um segredo, e como um

63 Original: volunteer fire department. Esse é o nome oficial da organização secreta V.F.D.; como minha decisão é manter os termos já usados pela tradução brasileira, usei o nome traduzido da organização no lugar. O tradutor de The Beatrice Letters deve ser capaz de reconhecer o nome e substituí-lo de acordo. 64 Original: dagger. Dagger geralmente se traduz por adaga, mas parece também ser uma referência à expressão stabbing in the back, que quer dizer traição. No português temos a útil expressão “apunhalar pelas costas” – por isso minha escolha de “punhal” – mas uma língua sem uma expressão equivalente poderia perder a conotação de traição da frase. 65 Original: burglar. O original é um adjetivo neutro que pode se referir tanto a homens quanto a mulheres; isso torna a revelação do gênero do “burglar” talvez um pouco surpreendente, e não deixa explícito se a pessoa com os binóculos sabe quem é a ladra ou não. Como não há um adjetivo neutro em português equivalente, perde-se a surpresa, e o tradutor é forçado a impor sua interpretação dos acontecimentos e decidir se o personagem em questão sabe o gênero da ladra ou não.

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segredo ama fazer uma pessoa se sobressaltar66, e como uma pessoa

sobressaltada ama um copo de conhaque para acalmar seus nervos, e como

um copo de conhaque ama se estilhaçar no chão, e como o barulho de vidro

quebrando ama fazer outra pessoa se sobressaltar, e como outra pessoa

sobressaltada ama ter uma mesa próxima para se apoiar, mesmo que se

apoiar nessa mesa pressione uma alavanca que ama abrir uma gaveta e

revelar um compartimento secreto. Eu vou amar você até todos esses

compartimentos serem abertos e descobertos, e até todos os segredos irem

sobressaltados para o mundo. Eu vou amar você até todos os códigos serem

decifrados e até todos os corações serem partidos, e até todos os anagramas

serem revelados e todos os ovos desmexidos67. Eu vou amar você até todos os

incêndios serem apagados e todas as casas reconstruídas com as mais belas

e vulneráveis florestas, e até cada criminoso ser algemado pelo policial mais

indolente68. Eu vou amar você até o momento em que M. odiar cobras e J.

odiar gramática, e eu vou amar você até que C. perceba que S. não é digno do

seu amor e N. perceba que ele não é digno do V.69 Eu vou amar você até o

66 Original: gasp. Como não temos um verbo onomatopeico adequado para substituir “gasp”, preferi preservar a conotação de choque que a palavra traz; perde-se a conotação de barulho, porém. 67 A similaridade sintática dessa frase dependia das colocações de broken heart e broken code, e scrambled letters e scrambled eggs; usar os mesmos verbos geraria falta de sentido. Minha escolha foi modificar a estrutura sintática da frase para preservar a similaridade, mas usando outros verbos. 68 Original: laziest. A escolha mais óbvia, preguiçoso, gera um eco

desnecessário. A palavra indolente é de um registro mais formal, mas não incomum a Lemony Snicket. 69 O tradutor precisa ter um conhecimento básico dos personagens da série para conseguir identificá-los e adaptar a linguagem a contento. Os dois primeiros exemplos são facilmente identificáveis (M. é Montgomery Montgomery de The Reptile Room e J. é Josephine Antwhistle de The Wide Window), mas os exemplos que se seguem podem facilmente gerar erros de tradução se não identificados. C. e S. provavelmente se referem a Charles e Sir, de The Miserable Mill; um tradutor desavisado que não percebesse o contexto poderia aplicar o gênero feminino a um dos dois (sem falar no nome de Sir, que é um pronome de tratamento e, portanto, vai mudar de língua para língua), e N. é o diretor Nero de The Austere Academy; sem saber que o diretor adora tocar violino e toca extremamente mal, o tradutor não vai entender o que

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momento em que o pássaro odeie seu ninho e o bicho odeie a maçã, e até que

a maçã odeie uma árvore e a árvore odeie o ninho, e até que um pássaro odeie

uma árvore e a maçã odeie um ninho, embora eu não consiga imaginar esse

último acontecimento não importa o quanto eu tente. Eu vou amar você quando

envelhecermos, o que acabou de acontecer, e aconteceu de novo, e aconteceu

dias atrás, continuamente, e muitos anos antes, e vai continuar a acontecer

conforme os ponteiros dos relógios girem e as páginas dos calendários virem e

marquem a passagem do tempo, exceto por aqueles relógios em que as

pessoas esqueceram de dar corda e os calendários que as pessoas

esqueceram de pôr num lugar visível. Eu vou amar você conforme nos

afastamos um do outro, quando um dia estivemos tão próximos que podíamos

passar o canudo dobrável e a colher, longa e fina, entre nossos lábios e dedos,

respectivamente. Eu vou amar você até que a chance de nos encontrarmos vá

de “mínima” a zero, e até que sua fronte fique confusa na lembrança distante, e

que sua lembrança seja enfrentada70 pela distante confusão, e sua confusão

seja lembrada por uma fronte distante, e sua distância distante seja lembrada

pela lembrança de uma confusão confusa. Eu vou amar você não importa

aonde você for e quem você vir, não importa aonde você evitar ir e quem você

não vir, e não importa quem vir você evitando ir. Eu vou amar você não importa

o que acontecer com você, e não importa como eu descobrir o que aconteceu

com você, e não importa o que acontecer comigo quando eu descobrir isso, e

não importa como me descobrirem depois que o que for acontecer comigo

acontecer comigo quando eu descobrir isso. Eu vou amar você se você não se

casar comigo. Eu vou amar você se você se casar com outra pessoa—seu

colega de elenco, talvez, ou Y., ou O., ou qualquer um, Z. ou A. ou até mesmo

R.—embora eu acredite que, infelizmente, vai demorar algum tempo antes de

permitirem o casamento de duas mulheres—e eu vou amar você se você tiver

um filho, e eu vou amar você se você tiver dois filhos, ou três filhos, ou até mais

é o V. no fim da frase, e, numa língua em que a palavra para violino não comece com V., pode acabar impedindo o leitor de acessar essa informação. 70 Aqui é o começo de uma série de brincadeiras com estruturas sintáticas e verbos que Lemony Snicket faz; o tradutor de uma língua que não tem tanta facilidade de criar verbos como o inglês tem vai ter que usar sua criatividade para transmitir o recurso.

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filhos, embora eu pessoalmente acredite que três filhos é o suficiente, e eu vou

amar você se você nunca se casar, e nunca tiver filhos, e passar os anos

desejando que você tivesse se casado comigo no fim das contas, e devo dizer

que nas madrugadas frias eu prefiro esse quadro em vez de todos os outros

que mencionei. É assim, Beatrice, que eu vou amar você mesmo que o mundo

continue no seu caminho cruel.

Pergunta Número Dez: Não.

Pergunta Número Onze: Tudo. Uma letra pode estar em código, uma

palavra pode estar em código, e uma carta pode estar em código71. Uma

performance de teatro pode estar em código, e um soneto pode estar em

código, e às vezes parece que o mundo todo está em código. Alguns acreditam

que se pode decodificar o mundo pesquisando na biblioteca. Alguns acreditam

que se pode decodificar o mundo lendo o jornal. Mas no meu caso, a única

coisa que fazia o mundo ter sentido era você, e sem você o mundo vai parecer

confuso e trágico como uma máquina de escrever que não funci9na.72

Pergunta Número Doze: Vide resposta da pergunta número cinco. Kit,

Jacques e eu.

Pergunta Número Treze: “Sinto muito, não posso responder a última

pergunta.”

Estou com saudades. Quem sabe quando poderei ver você?

Lemony Snicket

71 Uma frase aqui é adicionada para preservar a ideia tanto de letra quanto de carta; é um desvio da semântica não tão justificado quanto na transmissão do código de Sebald, mas necessário para permitir ao leitor acesso a todas as informações que permitem descobrir a chave de leitura do livro. De novo, perde-se a confusão intencional gerada pelo uso de letters com dois referenciais diferentes. 72 A palavra alterada no original era typewriter, mas outra palavra é alterada para preservar o anagrama FEAR/MEDO.

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De BB para LS Nº 5

BEATRICE BAUDELAIRE

Quinto Dia do Arrependimento73

Caro senhor,

Se o senhor estiver no seu escritório—e eu espero que esteja, porque posso

ouvir uma pessoa no andar de baixo andando para lá e para cá e fazendo

ranger o seu chão de madeira—o senhor poderia simplesmente sair, seguir

pelo corredor à direita74 até a escadaria, subir um andar e bater na porta do

73 Original: midway through the Days of Awe. Os “Days of Awe” – Dias do Arrependimento em português – são os dez dias entre o ano novo judaico e o Yom Kippur, o Dia do Perdão. É uma referência à religião judaica que leitores de culturas que não têm muito contato com esta podem não conseguir reconstruir, o que se torna um problema quando ela também é uma indicação de quanto tempo se passou desde a última carta de Beatrice Baudelaire (aproximadamente quatro meses.) 74 Original: east staircase. A cultura americana se apoia muito em pontos cardeais para localização, algo que a cultura brasileira não faz. Um leitor brasileiro dificilmente seria capaz de localizar mentalmente “a escadaria do lado leste”. Minha escolha foi substituir leste por direita, o que trará outras conotações e pode não estar de acordo com a intenção do autor, mas a única maneira possível de resolver esse caso satisfatoriamente seria entrar em

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escritório diretamente acima do seu, e me encontraria aqui, sentada à minha

máquina de escrever. Mas o senhor não vai fazer isso. Uma das razões é que

o senhor tem um péssimo senso de direção, e pode não saber de que lado é a

direita. Outra é que o senhor certamente não quer falar comigo.

Violet uma vez me disse que eu salvei a vida dela, e Klaus afirmou que

sem mim ele teria morrido de desespero não muito tempo depois da destruição

do Hotel Denoument75. Até mesmo Sunny disse que não poderia ter

sobrevivido sem mim. Mas eu não tenho que lhe dizer o quão corajosas e

astutas, o quão leais e estudadas essas três pessoas são. Eu é que estaria

perdida sem eles. Sem os reparos de emergência que Violet fez, eu jamais

teria chegado à cidade para procurar pelo senhor. Sem as anotações de Klaus

sobre escalada de montanhas, eu nunca teria deixado a cidade para procurar

pelo senhor de novo. Sem o vasto conhecimento de Sunny sobre como fazer

lanches com ervas e flores selvagens, eu jamais teria tido a força para retornar,

primeiro de iaque, depois a pé, depois a pé de iaque, à cidade, na esperança

de finalmente vê-lo cara-a-cara. E sem todas as histórias que os três irmãos

me contaram sobre suas desventuras—que às vezes divergem muito dos seus

relatos—eu jamais teria encontrado a escola de secretariado, de onde escrevi

minha carta anterior. Não era uma escola de secretariado, claro—não de

verdade—mas eu tive que assistir àquela aula de Carta de Negócios até que

acreditassem no nome que eu disse ao vice-diretor quando cheguei. Sem

Violet, Klaus e Sunny eu jamais teria continuado meus estudos com esses

poucos voluntários que restaram, e me tornado a “morcegueira” que sou hoje.

Eu devo minha vida a eles, e agora que nos separamos, eu não vou descansar

até encontrá-los de novo.

Eu me instalei aqui, no escritório acima do seu. Daqui a pouco eu vou

fazer um furo no chão, com um instrumento de metal que me foi dado pela

contato com Daniel Handler para definir a posição exata da escadaria em relação ao referente do escritório. 75 A palavra Denouement está escrita errado aqui. Isso é intencional; a letra que falta, E, faz parte do anagrama FEAR/MEDO observado em outras cartas. O tradutor tentado a corrigir esse erro vai impedir o leitor de acessar esse anagrama.

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minha última instrutora76, antes que ela mesma tivesse que ir para as colinas,

para procurar por outros órfãos, e para fugir de outros inimigos. O senhor

provavelmente tem um desses—na verdade todos nós, eu espero, recebemos

uma ou duas coisas úteis antes que os nossos instrutores desapareçam e nos

deixem sozinhos no mundo. Eu vou enrolar esse papel em forma de tubo, e

deixá-lo cair das minhas mãos pelo buraco. De acordo com os meus cálculos,

ele vai bater nas pás do ventilador de teto e se desdobrar em pleno ar, caindo

gentilmente na superfície da sua mesa como um morcego depois de uma longa

noite de caça. Por favor, responda essa carta. Por favor, entre em contato

comigo a qualquer hora do dia e da noite, de preferência de dia. Eu não

consigo imaginar porque alguém nobre como o senhor—presumindo, de novo,

que o senhor seja quem eu creio que o senhor seja—não quer encontrar

alguém que quer tanto falar com o senhor. Por favor, senhor, eu lhe imploro,

simplesmente saia do seu escritório, siga pelo corredor à direita até a

escadaria, suba um andar e bata na porta do escritório diretamente acima do

seu, e desate “O Nó do Meu Silêncio”.

Beatrice Baudelaire (assinatura)

76 Outro caso em que o gênero da pessoa não é revelado instantaneamente, mas o português nos força a aplicar gênero ao substantivo, revelando o gênero da pessoa antes que no texto de partida.

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De LS para BB Nº 6

(Papel de telegrama. Um enorme cabeçalho em vermelho, cercado por uma

faixa vermelha ladeada por desenhos de postes de telégrafos.

Na parte de cima da faixa está escrito: Corporação Noturna Fonográfica

Telegramática

Na parte de baixo da faixa está escrito: Indepengente77 Competitiva

Progressiva

Dentro da faixa: à esquerda, há um logotipo com um desenho que parece ser

uma representação do deus grego Hermes. No logotipo está escrito Correio

Telegráfico Linhas Telegráficas, e dentro de uma faixa branca, Telegrama

77 Original: Independant. É uma grafia errada da palavra independente, e a última palavra do anagrama MEDO, bem como mais um exemplo da atenção ao detalhe necessária ao tradutor desse livro, uma vez que a palavra modificada não está no corpo da carta.

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Noturno.

À direita, está escrito Telegrama Noturno em letras grandes. Debaixo, está a

seguinte frase: “Apesar da língua, apesar da inteligência e da intuição e da

simpatia, ninguém consegue comunicar nada a ninguém de verdade.” A citação

é atribuída a Aldous Huxley, no livro Collected Essays78 (Ensaios Reunidos).

Abaixo, há uma linha. Abaixo da linha, há duas notações: Recebido Em: De LS

para BB Nº 6 e Entrega nº: Fim do Verão (com Fim do Verão escrito em letra

cursiva.)

O texto está todo escrito em letras maiúsculas e fonte típica de máquina de

escrever.)

CARA SRA. BAUDELAIRE79,

EU NÃO TENHO COMO SABER SE ESSE TELEGRAMA VAI CHEGAR

ATÉ VOCÊ, SENDO A DISTÂNCIA ENTRE NÓS TÃO GRANDE E TÃO

PROBLEMÁTICA PONTO80 ESSE TELEGRAMA TEM QUE VIAJAR POR

78 Nesse caso, o livro em questão não foi traduzido para o português, mas como lidar com um livro que tenha uma tradução já estabelecida, e permitir que o leitor que, por acaso, tenha tido acesso a essa tradução, possa reconhecer a citação? 79 Aqui, Lemony Snicket se dirige à Beatrice da maneira mais formal que já se dirigiu durante a série inteira. Aqui a formalidade é marcada pelo retorno ao cara e pelo uso de Sra. Baudelaire; outras línguas terão de encontrar outras formas de marcar essa formalidade. 80 O original STOP é uma maneira de sinalizar fim de frase em um telegrama, nos Estados Unidos. Cada tradutor de cada cultura terá que recorrer à maneira de sinalizar fins de telegrama em sua própria língua... o que talvez seja complicado em culturas em que o telégrafo não tenha sido relevante. Outro problema é que, como de costume, Lemony Snicket brinca com o sentido comum de STOP para criar frases como “STOP THIS TRANSMISSION STOP”, o que provavelmente se perderá na tradução. O uso de PONTO nesse telegrama está de acordo com a tradução de Ricardo Gouveia do livro oito, The Hostile Hospital, cujo enredo envolve uma breve discussão sobre o gênero textual do telegrama.

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CABOS QUE PODEM ESTAR CORTADOS, QUEIMADOS, ENFERRUJADOS,

AFOGADOS, OU SABOTADOS DE ALGUMA OUTRA MANEIRA—TÃO

CORTADOS, QUEIMADOS, ENFERRUJADOS, AFOGADOS OU

SABOTADOS DE ALGUMA OUTRA MANEIRA QUANTO O MUNDO EM QUE

NÓS VIVEMOS PONTO

FUI INFORMADO QUE VOCÊ E O SEU MARIDO AINDA VIVEM, E

OUVI RUMORES SOBRE SUA GRAVIDEZ PONTO ESPERO QUE VOCÊ

TENHA UMA LINDA MENININHA – UMA MENINA COM TODA A SUA

INTELIGÊNCIA, CHARME, ASTÚCIA, E FEIÇÕES AGRADÁVEIS, QUE UM

DIA VAI PASSAR ALGUMAS HORAS FELIZES SOZINHA COM ALGUÉM

QUE ELA AMA81, LÁ NAS MONTANHAS ONDE PESSOAS COM

IMAGINAÇÃO E INTEGRIDADE AINDA PODEM SE REUNIR, ASSIM COMO

NÓS FIZEMOS TANTO TEMPO ATRÁS PONTO SE NÃO, EU ESPERO QUE

VOCÊ TENHA UM MENININHO SAUDÁVEL, OU TALVEZ GÊMEOS PONTO

PERDOE-ME POR ENTRAR EM CONTATO COM VOCÊ UMA ÚLTIMA

VEZ PONTO DEPOIS DE TODOS ESSES ANOS, EU SEI COMO É

PERIGOSO, MAS TEM ALGO QUE VOCÊ PRECISA SABER PONTO É ALGO

TÃO PERIGOSO E TERRÍVEL QUE EU ESTOU PRESSIONANDO O CÓDIGO

MORSE POR MEIO DESSE TELÉGRAFO O MAIS FORTE QUE CONSIGO,

PARA QUE A MENSAGEM SEJA IMPRESSA EM FONTE GIGANTE82 PONTO

EU REZO PARA QUE O TAMANHO DA MENSAGEM NÃO QUEBRE O

TELÉGRAFO E DÊ UM PONTO FINAL83 À MENSAGEM PONTO EU TORÇO

PELO MELHOR, ASSIM COMO VOCÊ TORCEU, HÁ TANTOS ANOS, PARA

QUE UM MORCEGO SEGUISSE SUAS ORDENS PONTO

A MENSAGEM É A SEGUINTE

81 Isso é uma referência a um acontecimento no livro dez, The Slippery Slope; o tradutor precisa ter conhecimento da cena original para transmitir a referência de modo que o leitor que leu a série possa reconhecê-la. 82 Original: type. Enquanto a palavra fonte é muito moderna para telegramas, a escolha é intencional, se encaixando no período de tempo vago da obra. 83 Enquanto essa forma se afasta da forma do texto original, é uma tentativa de reproduzir o jogo de palavras do original (“STOP THIS TRANSMISSION STOP”).

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(Um grande A que some no fim da página.)

De BB para LS Nº 6

Beatrice Baudelaire

Morcegueira Extraordinária84

O Prédio Retórico – 4º Andar

84 Original: extraordinaire. É uma palavra de raiz francesa, de um registro ainda mais elevado que sua outra forma, extraordinary. Sendo o português uma língua em que a maior parte das palavras é de raiz latina, perde-se a conotação de sofisticação do original.

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(Caligrafia da Beatrice)

Hora do coquetel

Sinto muito por tê-lo envergonhado na frente dos seus amigos. Eu só queria

falar com o senhor.85

O garçom concordou em lhe levar esse cartão junto com o seu drinque.

Se o senhor não quiser conversar, rasgue o cartão no meio quando terminar de

tomar sua vaca preta, e eu vou embora e nunca vou tentar entrar em contato

com o senhor de novo.

Mas, se quiser conversar comigo, eu sou a garota de dez anos na mesa

do canto.

B.

Carta ao Editor

Hoje86

Ao Meu Amável Editor,

Como o senhor sabe, não é fácil invadir um depósito. Nunca se tem certeza se

85 A estrutura aqui é semelhante à do primeiro cartão, e é necessário refletir isso na tradução. 86 Ao contrário de certas marcações temporais, essa aqui é irremediavelmente vaga. Há que se primar, então, pela vagueza na tradução; também há que se primar ligeiramente pela forma – a simplicidade da notação temporal implica um humor ligeiramente sombrio por parte do autor.

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o dono do depósito colocou aquelas placas dizendo “Cuidado: Cão Bravo”87 só

para assustar ladrões, ou se realmente há um cão bravo por perto, ou se “Cão

Bravo” é o apelido que o dono do depósito deu para um poço fundo, e é muito

desconcertante perceber que você trouxe bifes marinados em sonífero quando

o que você devia ter trazido era um par de pernas-de-pau dobrável, ou vice-

versa. Uma vez dentro do depósito, se torce para que tudo esteja organizado

de maneira sensata—porque se não for o caso, pode-se levar a noite toda

apenas para encontrar a sala em que exposições literárias antigas estão

guardadas, e a manhã toda para encontrar o arquivo certo. Eu procurei em

“Poesia no Palco”. Eu procurei em “No Palco, Poesia”. Eu procurei em

“Sonetos Escritos por Atores e Atrizes.” Eu procurei em “Atores e Atrizes,

Sonetos Escritos por.” Eu procurei em “Poemas de Quatorze Linhas”. Eu

procurei em “Exposições de Teatro”. Eu procurei em “Exposições que

Envolvem Teatralidade”. Eu procurei em “Drama”88. Eu procurei em

“Melodrama”. Eu procurei em “Melanoma”. Eu procurei embaixo89 das tábuas

do chão.

Finalmente, me ocorreu procurar pelo nome da poetisa.90 Isso deveria

87 É interessante aqui se replicar uma placa de aviso de “cão bravo” conforme a cultura de chegada, para preservar o humor na brincadeira que se segue. Em culturas onde esse tipo de placas não seja relevante, haveria a possibilidade de escolha de outro elemento com efeito similar, que resultaria em vários desvios da semântica do texto de partida ao se adequar o texto ao novo exemplo escrito. 88 Tanto em inglês quanto em português, a palavra relacionada a teatro e a palavra relacionada a performances expressando tragédia são a mesma. Mas numa língua em que não exista uma palavra com essas duas conotações, a brincadeira com melodrama logo em seguida é prejudicada, sem falar na alteração de sentido implícita. O tradutor precisaria encontrar soluções adequadas. 89 Original: looked under the floorboards. Aqui você tem várias frases começando com um sentido de looking under (pesquisar dentro de uma seção), e uma última frase em que a expressão looking under é interpretada em seu outro sentido (olhar debaixo de algo). O tradutor em outra língua vai ter que reproduzir esse efeito de alguma outra maneira, ou, caso isso seja impossível, compensar em algum outro ponto. 90 Aqui, ainda não se foi dito explicitamente que o que Lemony estava procurando é um soneto de Beatrice; usar uma palavra marcada por gênero aqui é talvez permitir ao leitor um acesso a essa informação antes do

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ter me ocorrido muito antes, mas algumas das coisas mais simples da vida são

as mais difíceis de se imaginar. Por exemplo, porque eu a amei tanto, nunca

me ocorreu que poderia haver mais de uma Beatrice Baudelaire. Foi um bom

tempo antes eu receber a primeira carta de Beatrice Baudelaire que eu percebi

que todas as cartas de Beatrice Baudelaire poderiam ser encontradas não só

na primeira Beatrice Baudelaire mas também na segunda Beatrice Baudelaire e

que talvez se eu reunisse as cartas da primeira Beatrice Baudelaire que restam

com as primeiras cartas da Beatrice Baudelaire que resta, então as cartas de

Beatrice poderiam explicar as cartas de Beatrice e até mesmo as letras91 de

Beatrice, não importa que letras sejam essas, e não importa em que ordem

elas estejam. Eu imediatamente comecei a trabalhar no arquivo.

E agora, depois de todo esse tempo, eu encontrei o mesmo pedaço de

papel que uma vez examinei num expositor de vidro—e, anos antes, examinei

num corredor da biblioteca, com o pedaço de papel no expositor de vidro.

Infelizmente, esse soneto perdido é como uma meia perdida—esteve perdido

por tanto tempo que tudo se desenrolou completamente em sua ausência. Por

muitos anos acreditei que se eu reunisse todos esses documentos e as coisas

efêmeras junto com eles – “efêmera” é uma palavra que aqui significa

“documentos e itens que eu temia terem desaparecido, e que logo podem

desaparecer de novo”—eu poderia colocá-los na ordem certa, como que

resolvendo um anagrama ao colocar todas as letras na ordem certa. Mas

cartas não são letras, então a organização das cartas não é tão simples quanto

a organização das letras, e mesmo que fosse, a organização das letras poderia

formar mais de uma palavra, da mesma maneira que existe mais de uma

Beatrice, e então um mistério poderia se tornar dois mistérios, e cada um

desses mistérios poderia se tornar mais dois mistérios, até o mundo todo estar

necessário. Nesse caso, é implícito antes que ele está procurando pelo poema no final do livro, já mencionado em outras cartas, então talvez a perda gerada não seja muito grande. 91 Novamente, a ambiguidade entre os dois sentidos de letters é tematizada. Como essa tematização tem um efeito dramático, talvez seja mais fácil mantê-la; a ligeira confusão gerada no leitor de início provavelmente já é esperada nesse trecho. O tradutor tem que buscar manter a consistência durante o livro para permitir ao leitor o acesso da ligação entre os vários usos dessa ambiguidade, bem como o acesso à chave de leitura do texto.

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submerso nos mistérios, como está agora. Não importa quais documentos você

investigar, e quais objetos você recuperar, você pode nunca encontrar as

respostas que são mais caras a você, mas, no entanto, cedo ou tarde você tem

que acabar o arquivo que começou.

Esse arquivo acabou—bem quando eu achava que ele ia acabar

comigo. Eu não consigo olhar mais para esses papéis, ou correr minhas mãos

pela tinta, meus olhos cheios de lágrimas e meus dedos manchados e cortados

pelo papel. Os segredos contidos aqui são como todos os segredos—perigosos

para aqueles que os descobrem e inofensivos para aqueles que não os

percebem. Por isso, recomendo que ou o senhor destrua esse arquivo ou faça

quantas cópias quanto possível.

Eu não sei quando vou lhe escrever de novo. Eu não ouso nem escrever

minhas iniciais no fim dessa carta, quando tantas outras letras foram perdidas.

Embora isso possa parecer estranho, ainda torço pelo melhor, mesmo que o

melhor, como uma correspondência interessante, chegue tão raramente, e,

mesmo quando chegue, possa tão facilmente se perder.

Respeitosamente,

O NÓ DO MEU SILÊNCIO

(Um poema sobre uma peça sobre uma história de duas pessoas que (rasgo)92

92 A palavra aqui está oculta por um rasgo no papel. A ênfase dada à palavra “dies” no fim do poema, somada ao que sabemos de Beatrice, sugere que a palavra oculta é alguma forma de “die.” Talvez, no caso de uma tradução em

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escrito pela pessoa na história (na peça, no poema) que (rasgo))

Com o silêncio amarro o meu cabelo93 Longe dos olhos fica o meu amor Seguro o alfinete com mui zelo

Com ele não posso falar, temor94

Meu papel na peça é de morcegueira95 Ou “a pessoa que treina morcegos” Como que fitando uma fogueira96 O público está em desassossego

Num outeiro o meu colega mora

Em solidão que é mais que fingimento Um dia uma carta perde-se mundo afora97

Isso se baseia em real sofrimento98

O nó se rompe quando o pano corre

que o correspondente a “die” seja uma palavra maior, seja preciso formatar a página de alguma maneira para que o leitor possa deduzir qual é a palavra que falta. 93 Esse soneto é um típico soneto inglês, com três quartetos e um dístico escritos em pentâmetro iâmbico e com um esquema de rimas abab abab abab cc. Optei por manter a forma original, embora a forma de soneto mais popular na nossa cultura seja a do soneto italiano (dois quartetos e dois tercetos); uma adaptação não está fora de questão. Usei o decassílabo heroico como correspondente, acentuando a sexta e a décima sílaba, exceto em casos pontuais que serão marcados em seguida; alguns versos têm leitura ligeiramente mais forçada para compensar as aparições de pés trocaicos, pírriquios e espondaicos durante o soneto. 94 Como forma de compensação pelos troqueus e espondeus da primeira estrofe, esse verso é acentuado na quinta, na oitava e na décima sílaba. 95 Da mesma forma, os três primeiros versos dessa estrofe têm acentos variados, em compensação pela variação de pés do original e pelo verso hipométrico. 96 A ideia de fogueira não está no soneto original, mas pode ser facilmente extrapolada pela recorrência do símbolo do fogo e do incêndio na série. 97 O verso original nesta posição tem um pé a mais, sendo um hexâmetro iâmbico; como tal, ele foi traduzido como um alexandrino clássico, com acento na sexta e na décima segunda sílaba. 98 Assim como em outras estrofes, o último verso desta é acentuado na quinta, na sétima e na décima sílaba como forma de compensar pelos pés troqueus e pírriquicos do original.

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E quebra o silêncio aquele que morre99

Contracapa:

O FIM

Contracapa da capa dura do livro:

Para uso dos correios:

Para: Meu Amável Editor

(Várias categorias)

Contém cartas para Beatrice

Contém cartas de Beatrice

Contém cartas encaminhadas para Beatrice

Contém soneto(s)

Totalmente escrito em código

Aprovação

Desaprovação

Para a sua informação

Para a sua assinatura

Escrito totalmente em código

Favor destruir

Favor fazer muitas cópias

Pode conter pistas

Me encontre no lugar combinado

(Caligrafia de Lemony Snicket) Confidencial – apenas para leitores

profundamente interessados no caso Baudelaire.

Como eu sinto por esses leitores.

Respeitosamente,

99 Original: dies. É importante manter o lugar de destaque desse “morre” pela sua posição como possível palavra oculta no texto abaixo do poema.

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Lemony Snicket.

Data: BB. Re: (Informação sobre a editora HarperCollins e o site de

Lemony Snicket, Arte da Capa © 2006 Brett Helquist)

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5 CONCLUSÃO

O objetivo desse trabalho foi apresentar uma tradução comentada de

The Beatrice Letters, destacando problemas de tradução que aqui foram e

terão de ser enfrentados por um tradutor que se proponha a traduzir o livro; a

realização desse processo tradutório nos levou a algumas conclusões sobre o

status da literatura infanto-juvenil e de sua tradução, e as dificuldades

particulares do tradutor de A Series of Unfortunate Events.

No que diz respeito às dificuldades particulares do possível tradutor de A

Series of Unfortunate Events, e de The Beatrice Letters em particular,

concluímos que uma tentativa de tradução da série exigiria do tradutor uma

atenção meticulosa a detalhes para a preservação da continuidade entre as

obras. Sendo The Beatrice Letters uma obra de difícil leitura, o livro ilustra bem

o papel do tradutor como primeiro leitor de uma obra e a hercúlea tarefa de

identificar o maior númerode interpretações possível e preservá-las na

tradução; bem como na tradução de poesia, o tradutor terá que buscar

maneiras de preservar forma e conteúdo ao mesmo tempo sem descartar

elementos de estilo do autor original, numa espécie de reescrita que preserve

as características importantes do texto de partida, mesmo que se afaste dele

em certos aspectos.

No que diz respeito à literatura infanto-juvenil, acreditamos que o próprio

processo tradutório de The Beatrice Letters serve como evidência do equívoco

do senso comum sobre a simplicidade desta em relação à literatura produzida

para adultos. O cuidado e o trabalho necessários para a construção (e para a

tradução) dos códigos exibidos no livro por si só demonstram um potencial para

complexidade maior do que o de várias obras escritas para adultos. “The

Beatrice Letters” também comprova que a literatura infanto-juvenil pode lidar

com temas comuns à literatura para adultos (como o luto e o amor) de forma

adequada ao seu público sem perda de impacto ou sofisticação.

No que diz respeito à tradução de literatura infanto-juvenil, concluímos

que é um processo tradutório com um vasto potencial de complexidade. A

tradução de literatura infanto-juvenil, de maneira similar à tradução de literatura

infantil, por vezes lidará com problemas diferentes daqueles da tradução de

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ficção para adultos (é possível falar de uma “especificidade da tradução de

literatura infantil/infanto-juvenil”), além dos problemas similares decorrentes da

tradução de textos ficcionais em geral; ao considerar as dificuldades

enfrentadas pelo tradutor de literatura infanto-juvenil como um todo, talvez não

seja exagero dizer que o processo tradutório de literatura infanto-juvenil por

vezes será mais trabalhoso e complexo que o processo tradutório de literatura

para adultos. Haveria a necessidade de estudos mais aprofundados na área

para confirmar essa hipótese.