uma relação na qual o equilíbrio é tudo

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Uma relação na qual o equilíbrio é tudo

A tecnologia sempre esteve ligada a vínculos. Quais as possibilidades e as preocupações que ela nos apresenta? Leia artigo para refletir a

partir da perspectiva da filosofia e da psicologia, desde o uso das

palavras até o uso das TIC

Rolando Martiñá*

Desde o princípio dos tempos, a tecnologia esteve

ligada a vínculos. Em geral, a vínculos dos seres humanos com o exterior e, em particular,

com essa parte tão especial do exterior que

são os outros seres humanos. Porque a

tecnologia é mais uma das manifestações do impulso básico do homem para ir mais além:

de poder mais, de saber mais, de comunicar-se mais, de interferir

mais.

Sempre desejamos intensamente experimentar o que J. Piaget

chamou de "prazer de causar", ou seja, de sentir-se potente,

influente, necessário, capaz…ativo e não passivo, agente da

existência. E a tecnologia – desde a primeira pedra lascada até o raio

laser – permite, facilita e amplifica isso. Ela nos dá mais força do que nossos músculos, mais vista do que nossos olhos e mais audição do

que nossos ouvidos.

Claro que, como ocorre com todos os recursos de que dispomos, essas imensas possibilidades podem ser usadas – e já foram usadas

– para diversos fins: com a mesma pedra lascada se constrói um

utensílio ou se fratura um crânio. Um cavalo domesticado serve para

aproximar uns aos outros ou para distanciá-los. Uma palavra – recurso tecnológico por excelência da espécie – emociona ou fere,

aproxima ou distancia, conecta ou desconecta. Assim foi, assim é e

nada nos faz pensar que vai deixar de ser no futuro.

Também é certo que, especialmente desde meados do século passado, o avanço foi tão diversificado e vertiginoso que resulta difícil

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se adaptar ou conseguir que esses novos e múltiplos recursos sejam

usados a nosso favor e não se convertam em uma ameaça para nossa sobrevivência e/ou bem-estar. Sabendo, contudo, que o

progresso humano sempre foi paradoxal: o mesmo que ajuda pode

prejudicar, e desse prejuízo, frequentemente, pode-se aprender…e

assim seguindo. Como disse P. Watzlawick, "para as coisas humanas, não há soluções definitivas"…e devemos estar preparados não só

para resolver os nossos problemas, mas também os que surjam de

nossas soluções.

Como a maior preocupação nesse tema está relacionada à influencia

das TIC na vida dos jovens, devemos começar esclarecendo que,

como diziam os antigos gregos, "nada em excesso é bom". Portanto,

não é conveniente que uma pessoa, independentemente da idade,

permaneça o tempo todo conectada com um objeto qualquer e não possa se desgrudar dele. Esse exagero na dependência revela

condutas de fascinação pelo objeto, mas não só isso: diz muito

também do sujeito, do significado do seu vínculo com o objeto e,

sobretudo, dos outros vínculos de sua vida. E, em qualquer um dos casos, é necessário lidar com isso.

Contudo, em termos gerais, a imagem de uma

criança, concentr@da em seu Ipad, seu celular ou chat, não me parece "a priori" uma imagem de alienação, de isolamento…estão

construindo um mundo próprio, "seu" mundo, a partir de seus

interesses e do que deverão viver. Talvez estejam desconectados de

nós, mas não entre eles, com as coisas que lhes interessam; estão sim, provavelmente, fugindo de seus pais, como nós, quando

pequenos, escapávamos para a rua antes de terminar a lição de casa

para jogar bola. Mas, no meu entender, não há razões para supor que

os adolescentes de outras épocas (ver Aristóteles, séc. IV aC) ou

Santo Agostinho (séc. IV dC, por exemplo) tinham um desejo incontrolável de se comunicar com os adultos, seguir seus

ensinamentos ou cumprir suas normas, ao contrário dos jovens

atuais. A diferença é que estes dispõem de mais recursos.

Se tivesse que me basear em minha experiência pessoal, não tenho

dúvidas: amo a tecnologia e as possibilidades que ela oferece. A

tecnologia modificou a minha vida pessoal e profissional (a qual

ultimamente inclui, por exemplo, a psicoterapia on line por meio do Skype) e, sobretudo, enriqueceu minhas possibilidades de contato,

comunicação e ajuda mútua com pessoas queridas que estão

distantes. Sem mencionar a participação ativa em comunidades

virtuais como esta que nos acolhe, com tudo o que isso implica.

Na realidade, não creio que – salvo os excessos mencionados – as

TIC atentem contra os vínculos interpessoais "per se", ainda que sim

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exijam adaptações a novas formas, ritmos e códigos. Em vez disso,

pode-se suspeitar que, em muitos casos, os vínculos interpessoais da geração dos meus avôs – começando pelo parceiro e pelos familiares

no geral – não eram muito mais transparentes, sinceros e respeitosos

em relação à autonomia do que os atuais. Mas sabendo das

dificuldades que o tema costuma gerar, não quero deixar de me referir a dois aspectos mencionados habitualmente: os riscos do

individualismo e o risco do consumismo.

O risco do individualismo

Ao se referir ao tema do individual e do coletivo, costuma-se produzir

algumas confusões. Por exemplo: se falamos de associações de indivíduos que escolhem estar juntos para levar adiante objetivos

comuns, isso nunca ocorreu mais que agora em toda a história da

humanidade. No real e/ou virtual. Trata-se de parceiros ou de ONGs.

Se nos referimos, ao contrário, a pessoas que nasciam no seio de coletivos preexistentes sumamente estruturados e estáveis no tempo

(tribos, famílias, clãs, grêmios, vizinhanças) e ali permaneciam

indefectivelmente durante toda sua vida, essa situação durou

milhares de anos e mudou radicalmente há só um ou dois séculos.

A humanidade avançou do menos autônomo ao mais autônomo; do

mais indiferenciado ao menos indiferenciado; do mais fechado ao

mais aberto. Ainda que sempre se mantenha algum grau de tensão entre ambas as forças. E há a tentação de regressar ao seguro,

quando os riscos de avançar parecem muito grandes. E esta parece

ser muitas vezes, e para muitas pessoas, a situação atual. De

qualquer modo, o processo de individuação, no desenvolvimento da

espécie e em cada pessoa, parece inexorável. Nenhuma espécie viva oferece – deveríamos dizer que afortunadamente - o grau de

diferenciação e identificação dos membros como a humana. E é

preciso lidar com os problemas que isso apresenta, mas sempre

lembrando que primeiro se inventou o automóvel e depois as regras de trânsito.

O risco do consumismo

Em relação ao consumo, poderíamos ir pela mesma direção: desde

que o primeiro carnívoro pintou sua caverna até as galerias de arte

ou os shoppings atuais, sempre interessa aos seres humanos produzir novidades e intercambiar objetos para a sobrevivência. Objetos de

expressão, de diversão, de ornamentação, de sedução; vestimentas,

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jóias, artesanato, detalhes característicos que também estiveram

historicamente ligados ao processo de individuação mencionado antes. Desde as feiras medievais até os mercados globais da

atualidade, a diferença é de grau e não de princípio. Uma vez

satisfeitos em relação a alimentação e abrigo, desejamos outras

coisas. E, por outra parte, se as pessoas só produzissem, vendessem e comprassem o estritamente necessário para sobreviver, milhões de

pessoas (três vezes mais do que há cem anos!) ficariam totalmente

sem trabalho. Parece-me, então, que aqui também, mais que ansiar

supostos paraísos, é preciso ir resolvendo os problemas à medida que a evolução os faz aparecer.

De fato, a oferta hoje é mais ampla, variada e sedutora do que nunca

e isso requer – sobretudo no caso de crianças e adolescentes – uma

intervenção adulta que previna e/ou limite a tendência ao excesso que também nos acompanha desde sempre. Intervenção que será,

em minha opinião, mais efetiva, na medida que contenha menos

advertências apocalípticas e mais apelações ao equilíbrio e à

racionalidade.

"Nada em excesso" deveria ser um lema inalterável para as crianças

e na educação delas. Também deveria ser o princípio de que, ao se

gastar mais do que se produz, tarde ou certo, irá a falência. A vida está cheia de oportunidades e ameaças e, se passamos o tempo todo

se queixando das segundas, não aproveitamos as primeiras. Sempre

se baseando na profunda convicção – comprovada uma e outra vez

na tarefa clínica – de que, embora às vezes pareçam entrar por um ouvido e sair por outro, os exemplos e as advertências saudáveis dos

pais – se são feitos com amor e inteligência – sempre deixam sua

marca na mente e coração dos filhos.

"El mito de la adicción a Internet", Manuel Ángel Méndez, El País,

Espanha, 27/05/2010

*Rolando Martiñá, pai de dois filhos e avô de quatro netos, é Professor Normal Nacional, Graduado em Psicologia clínica e

educacional. Realizou estudos de pós-graduação em Orientação

Familiar, convênio Fundación Aigle- Instituto Ackerman de Nueva

York. É membro do Programa Nacional de Convivência Escolar

(Ministério da Educação da Argentina). Conselheiro familiar e de instituições educativas. Autor de Escuela hoy: hacia una Cultura del

Cuidado, Geema, 1997; Escuela y Familia: una alianza necesaria,

Troquel, 2003; Cuidar y Educar, Bonum, 2006 e La comunicación con

los padres, Troquel, 2007. E-mail de contato: [email protected]

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