(uma peça para ser tocada ao piano) de bernardo … · um quarto pequeno e um piano era tudo que...
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ALGUM LUGAR ONDE NUNCA ESTIVE
(Uma Peça para ser Tocada ao Piano)
De Bernardo Florim
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ALGUM LUGAR ONDE NUNCA ESTIVE
(Uma Peça para ser Tocada ao Piano)
PRÓLOGO.
PRIMEIRO CENA: Sobre Ouvir.
SEGUNDA CENA: Sobre Tocar.
TERCEIRA CENA: Sobre Sentir.
CLARA –
DOMINGOS –
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Prólogo
(Enquanto a plateia se acomoda)
Clara caminha pelo palco. Verifica distância entre o piano e o banco.
Recolhe partituras espalhadas pelo chão. Escolhe uma.
Quando a casa estiver cheia, Clara abre o piano.
CLARA: Primeira vez?
Luzes sobre a plateia se apagam.
CLARA: O principal é não ser tímido. Depois de um tempo, é como respirar.
As mãos fazem todo o trabalho sozinhas. Os dedos vão doer no início.
Na primeira semana, vão ficar roxos. Se você começar em agosto, vai doer
mais ainda, por causa do inverno. Coloca a mão de molho na água quente.
Deixa descansar quinze minutos por dia. Com o tempo, suas mãos vão acabar
se acostumando ao piano. É uma daquelas sensações que você acaba
sentindo falta. Tocar um instrumento é uma sensação que faz falta. Eu sei que
nada disso tem sentido para você agora. Só faz sentido depois que você
aprende. Senão é como ouvir uma música do fim para o começo. Rebobinar
uma fita cassete para tocar de novo. Estou vendo a pergunta nos seus olhos.
Você é jovem demais para saber o que é uma fita cassete. Nunca deve ter
visto uma e provavelmente nunca mais vai ver. Mas, acredita em mim, um dia,
elas foram importantes. Era o único jeito de guardar as músicas e escutar
quantas vezes a gente quisesse. E os namorados, os amigos, os irmãos tinham
o costume de gravar músicas uns para os outros. Era um tempo em que
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ninguém tinha dinheiro para comprar nada. E a gente fazia os nossos próprios
presentes como podia. Foi assim que eu aprendi as minhas primeiras músicas:
só de ouvir. Depois me sentava ao piano e tocava o que estava na minha
memória. Um pianista precisa saber três coisas para começar. A primeira delas
é ouvir.
Clara oferece o piano aberto.
As luzes se apagam.
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Primeira Cena: Sobre Ouvir
Um fósforo riscado no escuro. Depois a fumaça.
Há uma sombra masculina – fumando – de costas. Não é possível
reconhecer o rosto, por enquanto.
DOMINGOS: Tchau.
(Silêncio)
DOMINGOS: Você está me ouvindo?
Todas as luzes se acendem, de repente. Inclusive na plateia.
Domingos é um homem comum - que começa a passar dos trinta anos,
relutantemente. E há alguém mais na sala – com quem ele fala. É Clara.
Poder-se-ia dizer que é uma mulher de cinquenta anos. Daquelas que
foram bastante bonitas quando jovens e, mesmo agora, ainda são.
Ela apoia a cabeça nas mãos, enquanto lê um jornal antigo. Os dois
estão distantes na geografia da sala.
Ela é a professora de piano. Ele, o aluno.
DOMINGOS: Já estudei como o som se propaga. Não me lembro de nada
agora. Mas tenho imaginação o suficiente para supor que você me escutou,
quando eu falei com você. E está me escutando agora. Não está, Clara?
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CLARA: Não.
Luzes sobre a plateia se apagam.
DOMINGOS: É a resposta mais curta que eu já recebi.
CLARA: Eu achei apropriada.
DOMINGOS: Eu posso repetir para você.
Domingos mete as mãos nos bolsos.
DOMINGOS: Tchau. Eu disse “tchau”. É a mesma coisa que dizer “adeus”.
Tenho certeza que você conhece a palavra. Já deve ter ouvido muita gente
dizer adeus na vida, antes de mim. Também achei uma resposta apropriada.
Já que é nossa última aula.
CLARA: Na semana passada, ficou claro para mim que não tenho mais nada
para te ensinar. E não quero que você me pague para ser sua amiga.
DOMINGOS: Não se preocupe. Nós não somos amigos.
Clara fecha o jornal, brevemente.
Pela primeira vez, os dois se olham.
DOMINGOS: Queria que você estivesse aqui. No meu lugar. Só para ver o jeito
como está me olhando.
CLARA: Também não gosto do jeito como você me olha.
DOMINGOS: Eu não sou o único culpado.
CLARA: Todos nós gostaríamos de ser inocentes, Domingos.
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DOMINGOS: Eu não estava sozinho aqui.
CLARA: Você não precisava ter voltado hoje.
DOMINGOS: Eu não tenho para onde ir.
Domingos indica o piano com a cabeça.
DOMINGOS: Posso tocar?
CLARA: Cinco minutos.
Domingos senta-se ao piano. Começa a tocar.
CLARA: Cinco minutos mesmo. Vou marcar no meu relógio.
DOMINGOS: Fica à vontade. Eu não uso relógio. Se dependesse de mim,
o tempo não passava.
CLARA: E se nós dois ficássemos em silêncio?
Domingos fecha a boca e toca piano.
Clara suspira.
Domingos observa, a princípio calado.
DOMINGOS: Você está cansada?
CLARA: Eu não dormi a noite passada.
DOMINGOS: Eu dormi bem. Até sonhei.
CLARA: Você não parece ser uma pessoa que sonha.
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DOMINGOS: Sonhei que eu estava sonhando. Nunca aconteceu com você?
Era como se os meus olhos estivessem abertos por trás dos olhos fechados.
Eu queria estar acordado. Mas um filme estava passando. Tinha desaprendido
a tocar piano. Meus dedos ficaram curtos. Depois vermelhos como sangue.
E finalmente foram caindo, um por um. E a senhora estava no meu sonho.
Me dizendo que era tarde. Que os cinco minutos tinham passado.
Que a senhora precisava voltar para casa, porque estava se sentindo muito
sozinha longe do piano. E nós fomos para lá. Porque a sua casa não era mais
nesta rua. A senhora morava num prédio vermelho. Que não tinha vista para
lugar nenhum. Um quarto pequeno e um piano era tudo que tinha lá.
CLARA: Eu morei num lugar assim.
DOMINGOS: Não te contei que fui cigano em outra vida?
CLARA: Não me surpreende.
DOMINGOS: Me deixa ler a sua mão?
CLARA: Conta o final do sonho, Domingos.
DOMINGOS (abre um sorriso): Nós não conseguimos abrir o piano. De algum
jeito, ninguém sabe como, tinha ficado fechado por dentro. E a senhora me
olhou, com esses olhos tristes, igual está me olhando agora, e me disse:
“fica mais um pouco”.
CLARA: E depois?
DOMINGOS: Eu acordei e vim para cá.
Clara meneia a cabeça, com impaciência.
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DOMINGOS: Queria contar para você.
CLARA: Que perda de tempo.
DOMINGOS: Você podia me dizer o que o meu sonho significa.
CLARA: Dinheiro, morte ou casamento. É sempre um dos três.
DOMINGOS: E, nesse caso, a senhora não sabe qual?
CLARA: Não faço a menor ideia.
Clara olha para Domingos, quase incrédula.
CLARA: Não acredito que você veio até aqui só para me perguntar isso.
DOMINGOS: Eu gosto de estar aqui.
Silêncio.
DOMINGOS: Eu preciso te ver.
CLARA: Você vai sobreviver sem mim, Domingos. Van Gogh sobreviveu sem
uma das orelhas.
DOMINGOS: Só durante dois anos. Depois se matou.
CLARA: Como ele se matou?
DOMINGOS: Um tiro no peito.
CLARA: É preciso morrer de alguma coisa.
Domingos começa a tocar a marcha fúnebre.
DOMINGOS: Não precisa se preocupar. Só mais vinte anos.
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CLARA: O que vai acontecer em vinte anos?
DOMINGOS: Você morre. Eu também.
CLARA (fazendo as contas): Se nós tivermos sorte.
Domingos tira uma partitura velha do bolso.
CLARA: Que música é essa?
DOMINGOS: Você sabe.
CLARA: Não vai me dizer o nome?
DOMINGOS: Gosto do poder que isso me dá.
CLARA: Esta é a última vez que eu pergunto.
DOMINGOS: Você vai se perguntar o resto da vida.
A música continua. É muito bonita.
Clara fecha os olhos.
DOMINGOS: Na semana passada...
CLARA: Shh...
DOMINGOS: Eu não queria ter ido embora.
CLARA: Aprende a ouvir a música.
Domingos para de tocar.
CLARA: Nem sempre a gente precisa dizer o que está sentindo, Domingos.
Domingos se irrita. Começa a bater nas teclas. Toca com raiva.
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CLARA: Você está batendo nas teclas!
DOMINGOS: Eu quero dizer o que estou sentindo. Minhas mãos estão doendo.
Não estou sentindo os meus dedos. Nem os meus ossos. Hoje os meus
ouvidos amanheceram sangrando. Esqueci todas as notas musicais. E você
quer me deixar ir embora assim.
Começa a errar a música. Tocar outras melodias.
CLARA: Segue a partitura. E não olha mais... para mim.
Domingos para de tocar.
DOMINGOS: Nunca te vi de batom.
CLARA: Eu não uso para você.
DOMINGOS: Por que você está de batom hoje?
CLARA: Vou sair, depois que você for embora.
DOMINGOS: Você nunca sai.
CLARA: Vou passar a noite fora.
DOMINGOS: Você podia ter me esperado sair. E depois colocado o batom.
CLARA: Por que eu faria isso?
DOMINGOS: Para eu não te ver assim.
CLARA: Qual é o problema de me ver assim?
DOMINGOS: Dá vontade de te beijar.
Clara levanta-se da sua poltrona. Fica ao lado da porta de saída.
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Domingos para de tocar. Começa a fechar o piano.
DOMINGOS: Meus cinco minutos acabaram?
CLARA: Faz muito tempo.
DOMINGOS: Você sabe. Eu só toco porque você está me escutando.
CLARA: Isso não é música, Domingos.
DOMINGOS: Se não é música, não sei qual nome dar para isso.
CLARA: É um jeito de me prender a você.
Silêncio.
CLARA: De me fazer olhar para você.
DOMINGOS: É tão difícil assim olhar para mim? Você devia tentar. Eu ainda
estou aqui. Daqui a pouco, vai ser tarde demais. Talvez eu não seja a pessoa
que você estava esperando chegar. Mas, com certeza, sou a única pessoa viva
nesta sala. A única pessoa que continua respirando. Eu estou com a minha
cabeça fora da água, Clara. E você?
Domingos desce o pano sobre o piano.
Clara abre o jornal na frente dos olhos.
CLARA: Eu não sei do que você está falando.
DOMINGOS: Este jornal é de ontem, Clara.
CLARA: Eu sei ler, Domingos.
DOMINGOS: Não tem ninguém mais interessante que eu aí.
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CLARA: Tenho que discordar de você.
Clara recorta um pedaço de jornal.
DOMINGOS: O que você está fazendo?
CLARA: Chico Buarque está na primeira página do caderno de cultura.
Clara guarda o recorte dentro da roupa.
DOMINGOS: Ele é seu namorado?
CLARA: Não.
Clara volta ler o jornal.
CLARA (provocando): É só sexo mesmo.
Domingos perde o controle: vai até ela e tira o jornal das suas mãos.
DOMINGOS: Estou falando com você! Olha para mim!
CLARA: Não preciso olhar para você, quando estou te escutando.
DOMINGOS: E quando não está?
Clara apanha o jornal do chão. Dobra e guarda.
DOMINGOS: E quando eu estou no piano e você está com o pensamento em
algum lugar onde eu nunca estive?
Um fio de sangue corre pelo nariz dele abaixo.
Clara, por um minuto, abre um sorriso de nervoso.
CLARA: Você está sangrando.
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Domingos tira um lenço do bolso e limpa o sangue.
CLARA: Você quer um copo d’água?
DOMINGOS: Eu não estou com sede.
CLARA: Está doendo?
DOMINGOS: Não. Só está sangrando mesmo.
CLARA: Isso acontece sempre?
DOMINGOS: Já me aconteceu antes.
CLARA: Quando acontece?
DOMINGOS: Quando eu falo mais do que estou acostumado.
Clara faz que sim.
DOMINGOS: E no verão também.
CLARA: Será que foi o calor?
DOMINGOS: Eu não acho que tenha sido o calor.
Domingos olha diretamente para Clara. Guarda o lenço no bolso. Depois
esfrega as mãos na roupa.
DOMINGOS: Minhas mãos estão frias.
Domingos mete as mãos nos bolsos, novamente.
DOMINGOS: Eu não estou me sentindo bem.
CLARA: Você quer sentar?
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DOMINGOS: Só se for no piano.
CLARA: Você precisa ir para casa.
Domingos estremece no meio do palco.
CLARA: Você tem alguém?
Domingos dá os ombros, como quem não entende.
CLARA: Alguém para cuidar de você, se estiver doente.
DOMINGOS: Eu não tenho ninguém.
CLARA: Assim você me deixa preocupada.
DOMINGOS: Não precisa ficar assim. Prefiro você rindo de mim.
CLARA: Quando eu ri de você, não era engraçado.
DOMINGOS: Talvez fosse engraçado para você.
CLARA: Não era.
DOMINGOS: Então por que você riu?
CLARA: Porque você é estranho, Domingos.
DOMINGOS: Pensei que me achasse bonito.
Domingos debocha dela. Começa a tocar por cima do pano. Tateia em
busca das notas. Parece se divertir.
CLARA: Você se acha bonito?
DOMINGOS: Eu nunca diria isso de mim mesmo.
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CLARA: Mas acabou de dizer para mim.
DOMINGOS: Disse que você me acha bonito. É bem diferente.
CLARA: Eu nunca disse isso.
DOMINGOS: Semana passada, você me disse.
Clara cogita por um segundo. Depois reage, zombando.
CLARA: Eu disse... Que a sua camisa era bonita.
DOMINGOS: Minha camisa era azul. Um pedaço de pano azul. Por que seria
bonita se eu não fosse?
CLARA: Eu só estava sendo educada. Quando entro no elevador e a gordinha
do andar de cima tomou um banho de perfume... E tenho que respirar dentro
da minha bolsa... Literalmente enfiar o meu nariz lá por sete andares... E sair
pela portaria roxa que nem uma mulher afogada... Mesmo assim, eu digo para
ela: “você está bonita hoje”. Pergunto o nome do perfume para comprar depois.
Dou parabéns ao namorado. Mesmo sabendo que ela não tem namorado,
nem alguém que possa vir a ser namorado, há uns dez anos. Estou sendo
educada, Domingos. Não me custa nada e faz as pessoas felizes. Se eu disse
que sua camisa era bonita, talvez fosse o tom de azul. Eu não estava falando
de você.
DOMINGOS: É da cor dos seus olhos.
CLARA: Meus olhos são castanhos. Se olhasse para mim e não para as
minhas pernas o tempo todo, talvez você soubesse.
DOMINGOS: Parecem azuis para mim.
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CLARA: As minhas pernas?
Domingos baixa os olhos pelo corpo de Clara.
CLARA: Desculpa. Faz muito tempo que não pego sol.
DOMINGOS: Quando eu olho para o chão, Clara. Não é para as suas pernas.
Só é difícil para mim olhar nos olhos.
Domingos sorri. Fecha o piano, em definitivo.
Dá as costas para Clara.
DOMINGOS: Tchau.
Domingos caminha para fora da cena. Clara o impede com a voz.
CLARA: Você deixou a partitura.
DOMINGOS: É para você.
CLARA: Era melhor ter comprado flores. Ou café, porque o meu acabou.
DOMINGOS: Eu compus para você.
Clara, desconfiada, aproxima-se do piano e lê a partitura.
DOMINGOS (declamando o que está no papel): “Uma música para a minha
primeira professora de piano...”.
CLARA (terminando): “... janeiro de 1982”.
Silêncio.
Clara deixa a partitura cair no chão.
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CLARA: Você era um menino naquela época.
DOMINGOS: Eu tinha treze anos. Você não se lembra de mim?
Clara não responde a tempo.
Domingos continua a sair de cena.
CLARA: Domingos...
Ele estanca no meio do caminho. Ela vai até lá.
Os dois se abraçam.
Clara tateia o rosto dele, como se reconhecesse alguém.
Olham-se.
CLARA: Tchau.
DOMINGOS: É tudo que você tem para me dizer?
CLARA: Tem mais uma coisa.
Os dois se separam.
Clara segue até o piano. Domingos continua no lugar onde estava.
CLARA: Não esquece do trem.
DOMINGOS: Eu não esqueci até hoje.
Domingos caminha para fora da cena. Um minuto antes de sair...
Estanca.
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DOMINGOS: O que eu faço agora todas as tardes?
CLARA: Não sei.
Os dois continuam imóveis.
Ele, na porta da sala. Ela, sentada na poltrona, com a cabeça nas mãos.
CLARA: Ouve música.
Todas as luzes se apagam.
CLARA (no breu): A segunda coisa que um pianista aprende é a tocar.
Cai o Pano
+ Fim da Primeira Cena +
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Segunda Cena: Sobre Tocar.
Música ao piano. Muito bem tocada.
De repente, um erro do pianista. As notas se atropelam. Quase de
imediato, as luzes estão acesas, novamente. Domingos cai do piano,
na pressa de se levantar dele. Guarda a partitura velha nos bolsos.
DOMINGOS: Eu não sabia que horas você ia voltar.
Clara entra.
DOMINGOS: Resolvi começar sozinho.
Clara faz que sim.
DOMINGOS: Me desculpe.
CLARA: Pelo quê?
DOMINGOS: Você estava no telefone. Eu comecei a tocar piano, de repente.
Porque assim eu não conseguia ouvir a sua conversa. Mas talvez você não
conseguisse ouvir também. Eu não tinha pensado nisso até agora.
CLARA: Não era um telefonema importante.
DOMINGOS: Mas você demorou para desligar.
CLARA: Foi difícil ouvir o outro lado com a música tocando aqui.
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Domingos tira a carteira do bolso e conta o dinheiro.
DOMINGOS: Faço questão de pagar a ligação.
Clara observa, incrédula.
DOMINGOS: Quanto foi?
CLARA: Não sei... Vinte e cinco centavos.
Clara começa a rir.
Domingos está sério, mas depois se deixa levar.
Os dois riem.
DOMINGOS: Nunca pensei que eu fosse engraçado.
CLARA: Você não é.
Domingos guarda a carteira.
CLARA: Bonita a sua camisa. Você vai para algum lugar depois daqui?
DOMINGOS: Sempre vou para casa depois daqui.
Clara ri novamente.
DOMINGOS: Tenho que ir. Você não me deixa passar a noite aqui.
CLARA: Quero dizer um lugar diferente.
DOMINGOS: Não. Me arrumei para te ver.
CLARA: Obrigada.
Domingos parece sem jeito.
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CLARA: Continua tocando.
Domingos ergue as duas mãos livres no ar. Faz a mímica de tocar piano
onde não há piano.
CLARA: O que você está fazendo?
DOMINGOS: Sempre faço isso, quando você não está olhando.
CLARA: Para quê?
DOMINGOS: Para não errar nunca mais. As paredes daqui são finas como
folhas de papel. Os vizinhos estão me escutando tocar. Quero que eles me
achem bom.
CLARA: Se te consola, muitos vizinhos estão ficando surdos.
DOMINGOS: Não me consola. Alguns não estão.
Domingos continua a ensaiar no ar.
CLARA: Meus vizinhos são velhos, Domingos. Eles assistem TV alto demais,
gritam o nome dos filhos pelo telefone, tomam remédio para dormir a qualquer
hora do dia, pensam no passado... Eles não têm tempo para ouvir você.
Este andar está cheio de viúvos, cachorros e apartamentos vazios. A música
faz eco para ninguém ouvir. Um casal de vinte e poucos anos se mudou para
cá na semana passada. Eles têm um filho de seis meses de idade. São os
únicos do prédio. Os únicos que ainda moram com os filhos. Tinha esquecido
que existe gente tão jovem assim. Eu coloco o meu ouvido na parede. Escuto
quando eles brigam. E quando fazem as pazes, também. Eles podem fazer a
mesma coisa e estar nos ouvindo agora. Mas a nossa vida não é interessante.
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Tem dias que eles fecham as janelas. Eu escuto a pancada daqui. Eles não
estão com ouvido para piano. Depende do aluno, claro. Mas você não é o pior
de se ouvir para uma segunda-feira.
DOMINGOS: Vou tentar fazer menos barulho.
CLARA: Não pensa nos vizinhos. Todos eles são apaixonados por música.
Mas não sabem diferenciar Nelson Freire tocando piano e um homem usando
um martelo.
DOMINGOS: Não é preciso conhecer a música para gostar de escutar.
Li que até as plantas crescem melhor com Mozart.
CLARA: Dizem o mesmo sobre adubo.
DOMINGOS: E os bebês nascem mais espertos.
CLARA: Como você.
DOMINGOS: Falando em mim. (indica o piano) Posso?
CLARA: Por favor. Você me paga para isso.
Domingos volta ao piano.
Clara deixa sua poltrona. Caminha até a beira do palco. Fica a observar
a plateia.
DOMINGOS: No que você está pensando agora?
CLARA: Quem abriu a janela?
DOMINGOS: É nisso que você está pensando?
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CLARA: Também.
DOMINGOS: Fui eu.
Domingos faz os primeiros exercícios no piano.
DOMINGOS: Você não gosta assim?
CLARA: É bom para arejar a sala. Deixar o sol entrar.
DOMINGOS: Mas você não gosta.
CLARA: Eu não gosto da sensação de que alguém possa estar me olhando
de longe, sem eu saber quem, por quanto tempo ou por quê.
DOMINGOS: Talvez ninguém esteja te olhando.
CLARA: Por que você abriu a janela?
DOMINGOS: Pensei que janelas fossem para ficar abertas.
CLARA: Você pensa demais.
DOMINGOS: Eu penso.
CLARA: Pensa em quê?
DOMINGOS: Quase sempre as mesmas coisas. Você pensa nas mesmas
coisas?
CLARA: Me dá um exemplo.
DOMINGOS: Você pensa em mim?
Domingos tira a velha partitura do bolso, de novo. Quase em segredo.
Começa a tocá-la. Mansamente.
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CLARA: Que música é essa, Domingos?
DOMINGOS: Dá um nome para ela.
CLARA: Já ouvi antes. Você sempre toca um pedaço.
DOMINGOS: Você gosta?
CLARA: É muito bonita.
DOMINGOS: Obrigado.
CLARA: Se não é sua, não tem o que agradecer.
DOMINGOS: Obrigado por me ouvir.
Clara olha para Domingos. Ele toca debruçado ao piano.
Para um minuto. Tosse.
Depois continua a tocar.
CLARA: Você vai morrer cedo se continuar assim.
DOMINGOS: Assim como?
CLARA: Magro desse jeito. Já te disseram isso?
DOMINGOS: As pessoas não me dizem muitas coisas, Clara.
CLARA: Não é que não digam. Você é que não escuta.
DOMINGOS: Às vezes, alguém no metrô me pergunta as horas.
CLARA: Você responde?
DOMINGOS: Até poderia. Mas acontece que nunca sei.
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CLARA: Você é tão tímido.
Domingos olha para ela. Abre um meio sorriso.
DOMINGOS: Este é o meu segredo com as mulheres.
CLARA: Você não tem nenhum segredo.
Domingos suspende os ombros. Como se não entendesse.
CLARO: Você é um livro aberto. Nunca conheci um homem assim. Que fosse
igual a um menino. Você me faz lembrar do meu filho.
DOMINGOS: Você tem filhos?
CLARA: Não pareço mãe?
DOMINGOS: Não parece a minha mãe.
CLARA: Como é a sua mãe?
DOMINGOS: Maior. Mais cinza. Tem mais pele que você.
Domingos pensa antes de continuar.
DOMINGOS: Pelo menos, é assim que eu me lembro dela.
CLARA: Faz muito tempo que você não vê a sua mãe?
DOMINGOS: Nunca mais vi.
CLARA: Ela mora longe de você?
DOMINGOS: Posso dizer que sim. É como se ela morasse bem longe.
CLARA: Vocês não se falam muito?
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DOMINGOS: Nós não nos falamos mais.
CLARA: O que ela te fez?
DOMINGOS: Não é que eu não goste dela.
Domingos para de tocar.
DOMINGOS: Ela está morta.
Silêncio.
CLARA: Me dê alguns anos.
DOMINGOS: Pensei que eu fosse morrer cedo. E você fosse ficar e contar a
minha história para os que vierem depois.
Domingos volta a tocar.
DOMINGOS: Por que você está me olhando?
CLARA: Você me lembra alguém.
DOMINGOS: Não é Beethoven?
CLARA: Só se for o cachorro... Você parece um aluno que eu tive. Não me
lembro mais o nome dele. Um menino muito calado. Vivendo uma adolescência
difícil. E a gente podia dizer isso só de olhar para ele. Eu nunca perguntei
nada. Mas eu sabia. E ele também sabia. Esse menino pagava as aulas só
com moedas. Ele mesmo pagava. Não era dinheiro da mãe, nem do pai.
Um dia, deixou de vir. Nunca mais tive notícias dele.
DOMINGOS: Ele deve pensar o mesmo da senhora.
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CLARA: Ele provavelmente me esqueceu.
DOMINGOS: Quanto mais tempo passa, mais coisas permanecem.
CLARA: Eu nunca entendi o tempo. Que horas são agora?
DOMINGOS: Quinze para as seis.
CLARA: Como você pode ter certeza disso?
DOMINGOS: Meu relógio está marcando. Eu acredito sem precisar de provas.
Deus não fez o mundo assim?
CLARA: Deus fez o mundo redondo. Muita gente morreu para provar isso.
E mesmo assim, a forma do mundo não explica muita coisa. Se você pensar
nesta sala... Uma sala dentro de uma cidade com milhões de salas... Em um
país com mais salas ainda... Nesta sala, estamos só nós dois. Nós somos dois
seres humanos, falamos a mesma língua. Você não me entendeu, eu também
não te entendo. Tem dias que eu penso que não tenho mais nada para
te ensinar, Domingos. Você toca músicas inteiras. E hoje, quando eu estava
na porta da sala, você caiu do piano.
DOMINGOS: Ouvi você chorando.
CLARA: Eu estava chorando. É minha maneira de gostar da música.
DOMINGOS: Me deixou nervoso. Eu errei o final.
CLARA: Parece que você erra só para eu ter o que te ensinar.
DOMINGOS: Nunca disse que eu era esperto.
CLARA: Vou te contar um segredo: você é.
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Clara fecha, no ar, a janela que se abria para a plateia.
DOMINGOS: Fechou?
CLARA: Não tinha nada para ver. Dez minutos encarando uma esquina vazia.
DOMINGOS: Abre de novo. Me diz o que você está vendo.
Clara acaba cedendo. Abre a janela no ar. Encara a plateia.
CLARA: Uma mulher pequena (Domingos toca o agudo do piano) passeando
com um cachorro quase maior que ela (e, então, o grave)...
Clara sorri.
CLARA: Um senhor idoso molhando uma samambaia morta no meio do verão.
Domingos faz a pantomina disso ao piano.
CLARA: Um homem vendo TV sozinho. Filme japonês.
Domingos improvisa.
CLARA: E um casal se beijando devagar na praça. Aquela idade em que
a gente começa a gostar disso.
Domingos toca uma balada romântica.
CLARA: Dancei tanto esta música. Toda a minha geração dançou. Esta música
ensinou para a gente o que era está apaixonado. Não é da sua época,
claro que não. Sua geração provavelmente se apaixonou no banco de trás de
um carro. Vocês conheceram o sexo antes do amor.
Clara fecha os olhos. Como num ritual. Escuta.
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DOMINGOS: Você está chorando?
CLARA: Lembra do aluno que eu te falei? Ele me pediu para ensinar ele
a dançar. Queria ganhar uma menina. (começa a se deixar envolver pela
balada, arrisca alguns passos discretos) Ele tinha gravado uma fita cassete
para mim. Com dez músicas para a gente dançar. Era o tempo da aula.
Eu dizia para ele me abraçar... Me abraça... Coloca a cabeça aqui no
meu ombro... Mas o menino não fazia nada. Ficava parado me olhando. Então
fiz uma coisa que não devia ter feito. Não sei até hoje por que eu fui fazer
aquilo. Dei um beijo na boca do menino. Ele me abraçou. Eu senti o corpo dele
no meu. Estava molhado por baixo da roupa. Molhou o meu vestido também.
Depois foi ficando duro de novo. Quando ele se deu conta, abriu a porta e
foi embora. Foi a única vez que ele não tocou piano.
Domingos continua tocando. Espia Clara dançar.
DOMINGOS: E na aula seguinte?
Clara para de dançar, um momento.
CLARA: Ele nunca mais voltou, Domingos. E às vezes eu me pergunto:
Será que ele ganhou a menina?
Clara ainda dança sozinha. Domingos deixa o piano. Aproxima-se dela.
Recolhe seu braço do ar. Começam a dançar juntos. No silêncio.
CLARA: Você seria um ótimo aluno... Se não fosse maluco.
DOMINGOS: Você seria uma ótima professora... Se não fosse mulher.
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CLARA: Sei que tem um elogio aí. Só não consigo encontrar.
DOMINGOS: Você é linda.
Clara prende a respiração. Como quando fica nervosa.
DOMINGOS: A música fica em segundo plano.
Clara tenta se desvencilhar da dança.
DOMINGOS: É bom ouvir que nós somos bonitos. É bom saber que alguém
está olhando para nós. Principalmente quando se é tão sozinho.
Clara tenta escapar aos braços dele.
DOMINGOS: Ser bonita é o que te faz não olhar para mim?
Domingos continua dançando com ela. À força.
DOMINGOS: Ou é ser sozinha?
Clara o empurra para longe. A dança acaba.
CLARA: O que foi isso?!
DOMINGOS: Isso fui eu... apaixonado por você.
CLARA: Tem um jeito estranho de demonstrar.
DOMINGOS: Você também.
CLARA: Eu não estou apaixonada por você.
Clara e Domingos se olham.
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CLARA: Mesmo se eu estivesse...
DOMINGOS: Continua.
CLARA: Eu ia dizer não.
DOMINGOS: Por quê?
CLARA: Porque dói menos.
DOMINGOS: Comparado com o quê?
CLARA: Com dizer sim e nunca mais te ver.
Silêncio.
CLARA: Eu sou professora, Domingos. Vou estar sempre aqui. Você não.
Você é meu aluno. Hoje você está aqui. Amanhã, vai me deixar esperando.
Clara suspira.
DOMINGOS: Você gosta mais de mim do que pensa.
Domingos vai até o piano. E fecha-o sobre os seus dedos.
Propositalmente.
Clara avança para ele. Pega as mãos machucadas. Olham-se.
Visivelmente transtornados.
DOMINGOS: Eu não poderia me sentir assim... Se você não se sentisse
também.
CLARA: A aula já terminou. Por que não vai embora?
Domingos segura Clara pelo braço.
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Beijam-se nos lábios.
Pouco a pouco, caem na direção do chão. Domingos levanta a saia dela.
Abre o zíper da própria calça. Meio nus, meio vestidos, começam a
fazer amor. Suspiram. Gemem. Sentem prazer. Mas o sexo termina
precocemente. Domingos se deixa abraçar por Clara, quase
adormecido.
CLARA: O que foi?
Domingos não consegue responder.
CLARA: Olha para mim, Domingos.
Domingos vira o rosto na direção dela.
CLARA: É sua primeira vez?
Domingos se levanta do chão. Deixa Clara deitada ali. De costas para
ela, com a cabeça baixa, fecha o zíper e recoloca as roupas.
CLARA: Você vai embora?
Domingos caminha na direção da porta.
Antes de sair, olha para Clara.
Ela ainda está no chão.
CLARA: Você vai embora?
Domingos faz que sim
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Clara recoloca as roupas, vagarosamente.
DOMINGOS: Posso voltar na semana que vem?
Todas as luzes se apagam.
Cai o Pano
+ Fim da Segunda Cena +
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Terceira Cena: Sobre Sentir.
[batidas na porta]
Todas as luzes se acendem, de repente.
Clara está sentada ao piano, num momento particular. As mãos ainda
esperam, paralisadas, acima das teclas. Dir-se-ia que acabou de tocar.
[batidas na porta, novamente]
CLARA: A porta está aberta...
Domingos entra em cena. Timidamente.
DOMINGOS: Boa tarde.
CLARA: Boa tarde. Eu devia saber seu nome.
DOMINGOS: Falamos pelo telefone. Quero aprender a tocar piano.
CLARA: Disso ninguém duvida. Já que você está aqui.
DOMINGOS: Quero que a senhora me ensine.
CLARA: Eu sei. Também é um pouco óbvio. Você não acha?
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Domingos mete as mãos nos bolsos. Sem graça.
DOMINGOS: Nunca disse que eu era esperto.
Clara chama-o para perto. Domingos se aproxima. Ela oferece o piano.
Curiosamente, Domingos toca uma das teclas do piano. O som
reverbera.
DOMINGOS: Desculpe.
Clara sorri.
CLARA: Sabe começar?
DOMINGOS: Não.
CLARA: Senta aqui.
Domingos toma o lugar dela ao piano.
CLARA: Primeira vez? (Domingos faz que sim) O principal é não ser tímido.
Depois de um tempo, é como respirar. As mãos fazem todo o trabalho
sozinhas. Os dedos vão doer no início. Na primeira semana, vão ficar roxos...
DOMINGOS: Eu sei. Você me disse pelo telefone.
Domingos coloca as mãos sobre o piano. Ainda imóveis.
DOMINGOS: Coloquei de molho na quente.
Clara sorri.
DOMINGOS: Por onde a gente começa?
CLARA: Primeiro são os dedos.
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DOMINGOS: Já suspeitava.
CLARA: Depois é só sentir a música.
Clara olha para ele. Fixamente. Demora algum tempo.
Domingos toca. Surpreendentemente bem.
CLARA: Parece que você sabe tocar.
DOMINGOS: As aparências enganam.
CLARA: Mas não toca há muito tempo. É como se o piano perguntasse:
“por onde você andou?”.
Domingos sorri. Clara continua olhando para ele.
CLARA: Você me lembra alguém.
DOMINGOS: Sempre acontece comigo.
CLARA: Você me lembra alguém que eu conheci.
DOMINGOS: Você também.
CLARA: Só que mais velho.
DOMINGOS: Todo mundo já foi mais novo. Eu já tive 20 anos.
CLARA: Eu também.
DOMINGOS: Tive 16 anos, uma vez. Que eu me lembre.
CLARA: Eu nunca tive 16 anos. Não é isso que os homens pensam das
mulheres mais velhas?
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DOMINGOS: A senhora não está em posição de me dizer o que os homens
pensam.
CLARA: Me chama de Clara.
DOMINGOS: Domingos.
Apertam as mãos.
DOMINGOS: Desculpa pelo atraso. Queria ter chegado mais cedo.
CLARA: Eu estava esperando.
DOMINGOS: Eu sei.
Clara espia o modo como ele toca.
CLARA: Não esquece do trem.
Faz um gesto com as mãos. Curvando apenas a ponta dos dedos.
DOMINGOS: Não sei que trem é esse.
CLARA: É uma maneira de ensinar. Principalmente para as crianças.
(faz a posição com a mão) Está vendo só? O trem passa debaixo dos seus
dedos.
DOMINGOS: E vai para onde?
CLARA: Algum lugar onde eu nunca estive.
DOMINGOS: Seria muito complicado um trem passar por baixo dos meus
dedos. E muito doloroso, se passasse por cima.
CLARA: Ninguém falou que seria fácil.
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Domingos tira uma partitura velha do bolso. Bate no banco. Um espaço
vazio ao seu lado.
DOMINGOS: Toca esta comigo?
Ela sorri. Ele chama-a novamente.
Clara se senta ao piano, também. Ficam lado a lado.
CLARA: Que música é essa?
Começam a tocar. Passo a passo. Juntos.
Clara e Domingos se olham.
DOMINGOS: Vai ver você conhece.
Uma valsinha a dois. Bem simples.
Os dois tocam juntos.
As luzes vão morrendo aos poucos.
CLARA (no breu): A última coisa que um pianista aprende...
É a sentir.
Cai o Pano.
+ Fim do Espetáculo +