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Uma mulher e uma obra – Astrid Cabral Carlos Antônio Magalhães Guedelha 1 Astrid Cabral Sua viagem pelos bosques da poesia inicia na alameda iluminada. É o torna-viagem da ironia da mulher que se fez rês desgarrada. Prossegue em estações e antessalas nos desvãos e intramuros da memória. Há mergulhos nos abismos e nas jaulas para Alice recontar a sua história. E nos pontos de cruz vão se tecendo alinhavos de amor, paixão e mágoa da terra que de terna se fez visgo. As dores sem remédio nem remendo deixaram os seus olhos rasos d’água: não se faz essa viagem sem perigos. (Carlos Guedelha, Poesia das fontes) 1 O veio que não secou... O primeiro contato que tive com os escritos de Astrid Cabral ocorreu quando eu fazia graduação em Letras, na Universidade Federal do Amazonas. Foi mais que isso: os meus primeiros contatos com o universo poético amazonense e amazônico fizeram-se através da lírica de Astrid. E a imersão em sua obra foi tão intensa que resultou daí minha dissertação de Mestrado, com o título “Manaus de águas passadas – a recriação poética de Manaus em Visgo da terra, de Astrid Cabral”, no ano de 2001. Quando tive a oportunidade de conhecê-la pessoalmente, ela autografou para mim o livro-reunião De déu em déu (1998) e afirmou em tom professoral, com visível convicção: “Se você quer me conhecer melhor, leia o meu trabalho. Ele diz mais do que eu possa dizer”. E acrescentou em seguida: “A poesia é o encontro comigo mesma, a restauração da identidade do meu ser”. Compreendi que ali estava sendo verbalizado um traço 1 Mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia – Literatura; professor da Universidade Federal do Amazonas.

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Uma mulher e uma obra – Astrid Cabral

Carlos Antônio Magalhães Guedelha1

Astrid Cabral Sua viagem pelos bosques da poesia inicia na alameda iluminada. É o torna-viagem da ironia da mulher que se fez rês desgarrada. Prossegue em estações e antessalas nos desvãos e intramuros da memória. Há mergulhos nos abismos e nas jaulas para Alice recontar a sua história. E nos pontos de cruz vão se tecendo alinhavos de amor, paixão e mágoa da terra que de terna se fez visgo. As dores sem remédio nem remendo deixaram os seus olhos rasos d’água: não se faz essa viagem sem perigos. (Carlos Guedelha, Poesia das fontes)

1 O veio que não secou...

O primeiro contato que tive com os escritos de Astrid Cabral ocorreu

quando eu fazia graduação em Letras, na Universidade Federal do

Amazonas. Foi mais que isso: os meus primeiros contatos com o universo

poético amazonense e amazônico fizeram-se através da lírica de Astrid. E a

imersão em sua obra foi tão intensa que resultou daí minha dissertação de

Mestrado, com o título “Manaus de águas passadas – a recriação poética de

Manaus em Visgo da terra, de Astrid Cabral”, no ano de 2001.

Quando tive a oportunidade de conhecê-la pessoalmente, ela

autografou para mim o livro-reunião De déu em déu (1998) e afirmou em tom

professoral, com visível convicção: “Se você quer me conhecer melhor, leia o

meu trabalho. Ele diz mais do que eu possa dizer”. E acrescentou em

seguida: “A poesia é o encontro comigo mesma, a restauração da identidade

do meu ser”. Compreendi que ali estava sendo verbalizado um traço

1 Mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia – Literatura; professor da Universidade Federal do Amazonas.

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fundamental do universo literário: o artista confunde-se com a sua obra.

Afirmo isto a despeito das conhecidas disposições em contrário,

sustentadas por Heidegger, Blanchot e Barthes, por exemplo. Apoiando-se

na natureza ambígua do texto literário e na possibilidade de interpretações

múltiplas, eles excluíam da obra qualquer vestígio de intenção do autor. Eu

também quero passar ao largo do inócuo biografismo, tão cultivado no século

XIX e tão execrado pelas correntes textualistas do século XX. Mas acho

pertinente não desprezar os liames entre o autor e sua obra, pois tentar

separá-los, o autor e a obra, tem se revelado também uma tentativa inócua.

A trajetória lírica de Astrid é a trajetória de uma vida que se reproduz

em muitas outras pela mediação da arte – uma mulher que se poetizou nos

muitos “eus” que criou em uma dúzia de livros, sendo um de contos, um de

literatura infantil e dez de poemas.

Alameda foi seu primeiro livro, de contos, publicado em 1963.

Composto de 20 contos, lavrados todos numa linguagem densamente

poética, já é, na verdade, o início do trajeto lírico que Astrid viria a percorrer

na linha do tempo. Nesse livro, as fronteiras entre prosa e poesia são

inteiramente suspensas, e a ilusão da “pureza dos gêneros” (lírico x

narrativo, conto x crônica, poesia x prosa) sofre uma implosão irreversível,

pois para ela “classificações são gavetas estreitas”2. Tanto individualmente

quanto no seu conjunto, os contos metaforizam o destino humano sutilmente

disfarçado no destino das plantas, que são as personagens das narrativas.

Em Alameda a morte em potencial, o cerceamento da liberdade, a

iminência da destruição, a fragilidade da matéria transformam-se em

imagens recorrentes, renitentes. Isso gera um forte sentimento de angústia,

abandono e solidão. Leio Alameda como quem contempla um grande quadro

cuja moldura é o existencialismo de matriz sartriana, como bem observou

Paulo Graça na apresentação do livro. Carregada de epifanias, a obra tece

diálogos sutis com Joyce, Borges e Clarice. Todos os protagonistas

pertencem ao reino vegetal e animal. São flores, arbustos, árvores, frutos,

sementes, pássaros etc. todos fadados à cinza mas nutrindo sonhos de vida

e perpetuação. Ou seja, a quase ausência humana nos textos é, na verdade, 2 Em entrevista a Álvaro Alves de Faria, para o jornal Rascunho, nº 45, Curitiba, janeiro de 2004.

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uma forma alegórica de presença. Ocultada pelas sutilezas da metáfora e da

metonímia, é a própria humanidade que – paradoxalmente – ama e mata,

vive e morre, sonha e destrói na contística de Astrid.

Ponto de Cruz (1979) e Lição de Alice (1986) são dois livros em que o

mundo é visto pela ótica feminina, num permanente olhar da mulher ora para

dentro de si mesma ora para os detalhes do mundo exterior, mesmo aqueles

fatos diários e objetos considerados prosaicos e insignificantes. Ela lança as

luzes da metáfora sobre os episódios domésticos, sempre numa atitude crítica

com vistas a reorganizar um mundo que se encontra de ponta-cabeça. Daí se

falar em forte dicção lírica feminina nas duas obras.

Ponto de Cruz subdivide-se em três seções: a primeira, não titulada,

celebra o amor e o erotismo, focalizando o exercício do ofício amoroso; a

segunda parte, intitulada “Carrossel dos dias”, metaforiza a angustiante

realidade da fugacidade do tempo e da efemeridade da vida; a terceira,

denominada “Pequeno Mundo”, tematiza a pequenez do ser humano e seu

cotidiano tacanho. Esse cotidiano é apresentado ao leitor através de

fragmentos, recortes, como metonímias do todo.

Lição de Alice contém duas partes: a primeira, sem título, apresenta a

vida como uma eterna aprendizagem; na segunda, “Rio do Tempo”, o rio é

tomado como metáfora do tempo que flui inexoravelmente, deixando apenas as

marcas da sua passagem. É um livro em que a Alice de Lewis Carroll,

habitante do país das maravilhas, cede lugar a uma outra Alice, que habita este

“mundo cão” em que pisamos e nos movemos. Assim, nas duas obras, presentifica-se a mulher com um olhar

revisionista sobre o mundo que a cerca. Mostra que é preciso reinventar o

mundo. Como lembra Cecília Meireles, “a vida só é possível reinventada”, e só

a arte pode operar essa reinvenção. É isso que Astrid faz através de sua arte:

reinventa o mundo. Um bom exemplo desse olhar revisionista é o poema

“Cardápio”, do livro Lição de Alice:

Nosso cardápio diário inclui carnes assadas e angústias bem passadas. Inclui sangrentos nacos cobertos de molhos pardos que sabem a desgosto.

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Inclui mil hipocrisias devidamente empanadas e servidas à francesa bem antes da sobremesa de frutas esquartejadas. Inclui entre as iguarias amizades congeladas sonhos em banho-maria deleites de amor requentado em rançosos azeites. Ódios com pó de pimenta e as trêmulas gelatinas de dúvidas coloridas. Inclui o tédio guarnecido de exóticos temperos. Inclui o medo camuflado em camadas de batatas. Inclui a morte servida sem o menor escrúpulo.

Torna-viagem (1981) e Rês desgarrada (1994) promovem viagens

líricas em outras geografias, diferentes da brasileira. O eu-lírico assim se

pronuncia: “Solto meus cavalos de sonhos no hipódromo deserto e vago... e lá

vão eles a perder de vista galopando eras”.

Em Torna-viagem, o eu-lírico, movido pelos ventos da poesia e pelas

correntezas da imaginação, empreende uma viagem de retorno ao Oriente

próximo, onde Astrid vivera, e à Grécia. O resultado dessa aventura são os

poemas-postais que oferecem ao leitor cenas flagrantes da vida oriental.

Paisagens, escombros, ruínas, guerra, mar, deserto, rebanhos, clima,

vegetação, comércio, religião, relações sociais. E como não poderia deixar de

ser, essa cultura e tradição diferentes aparecem temperadas com o

contraponto do sentimento amazônico. O absurdo e a estupidez da guerra são

retratados, por exemplo, no poema XX (todos os poemas desse livro são

numerados com algarismos romanos e não possuem títulos):

Em que beirais se refugiam agora os pássaros de Beirute quando cegas balas atravessam tardes a arremedar-lhes os voos? E as pessoas? Onde se escondem elas ao esmorecerem do calor da guerra a sede de viver vencendo o ódio? Antes, o caldo inocente das laranjas sanguíneas espremidas nas esquinas. Hoje, o sumo de crianças e homens

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o que nas ruas ferozmente se imola. Haverá quem ainda diga massalame invocando a suprema dádiva da paz? Ou tomados de sagrado espanto condenam-se todos ao silêncio ante a impotência das palavras corações vazados de dor recusando as cinzas da assassinada harmonia?

Em Rês desgarrada, livro que foi dedicado aos amigos de Chicago,

opera-se um giro turístico pelas paisagens urbanas e naturais daquela cidade

norte-americana. Mas o tom é de exílio, e isto justifica o título do livro: uma rês

dos pastos amazônicos perdida em pastos alheios, como bem confessa o eu-

lírico ao se identificar como vaca na balsa, rês desgarrada, sofrendo com

saudade dos “pastos brasis”. No poema “Velha América” há, inclusive, o grito

ecológico ante a constatação de um mundo postiço em que vive o “novo”

continente:

Desembarquei na América com atraso de séculos. Os búfalos já nos livros árvores na ciranda do papel rios rolando turvos sob o dossel das fumaças. A América de perto foram manadas metálicas fluindo no canyon de montanhas quadradas. Homens parafusos de máquinas a paz das nuvens rompidas por revoadas de alumínio. Onde está aquela América réplica selvagem do Éden? Onde se refugiam os centauros dos anos quarenta? cowboys e peles-vermelhas galopando pasto afora em telas preto-e-branco...

Em 1986, veio à luz o livro Visgo da Terra, caso único de um livro

inteirinho voltado para a cidade de Manaus, não a Manaus de hoje, mas a da

primeira metade do século XX – a cidade que serviu de chão e cenário para a

infância e adolescência da poeta. Aqui opera-se o inusitado encontro da

mulher de hoje com a adolescente de então, numa densa viagem pelos

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meandros da memória por uma cidade que não mais existe, uma vez que o

tempo a tornou pardieira. A menina serve de cicerone à mulher, e assim

ambas revisitam os seres, casas, ruas, instituições, crenças, relações sociais

e valores daquela “Manaus de águas passadas”.

A metáfora do título do livro faz ver ao leitor que, mesmo tendo Astrid

Cabral morado tantos anos fora do Amazonas (Rio de Janeiro e Brasília,

especialmente) e fora do Brasil (Estados Unidos e Líbano), Manaus ficou

colada à sua alma, exatamente como um visgo. Cada poema, cada verso,

cada imagem do livro apontam nessa direção.

O que ocorre em Visgo da terra é a construção da cidade nos moldes

apresentados por Raquel Rolnick, no livro O Que é cidade: superpõe-se uma

natureza segunda (obra humana) sobre uma natureza primeira (obra divina).

Fabricada pelo homem, essa natureza segunda tende a ser reconstruída de

diferentes maneiras na linha do tempo. A escrita é uma dessas formas de

recriação, e se utiliza de uma arquitetura menos material e mais espiritual,

baseada nos signos verbais. Complementando essa ideia, a escritora Sandra

Pesavento, em O Imaginário da cidade, explica que o artista, munido de

sensibilidade, exercita o olhar literário e cria uma cidade do pensamento sobre

a cidade de pedra. Essa segunda cidade (do pensamento), concretizada em

palavras e imagens literárias, é o dizer do poeta sobre o espaço urbano que o

inspirou. É o caso de Visgo da terra. Em 1998, Astrid brindou o público leitor de poesia com um livro-reunião,

no qual foram agrupados todos os seus livros de poemas escritos até ali.

Intitulado De déu em déu, esse livro representou a síntese de sua trajetória

poética na linha do tempo (1979 – 1986), o que correspondia a cinco livros em

um.

O ano de 1998 viu nascer também o livro Intramuros. Astrid o dedicou a

todas as mulheres que, à sua semelhança, põem a mão na massa do pão e

da palavra, a quem ela chama de companheiras. Mulheres que, para realizar

o ofício da palavra, não abdicaram do ofício do pão – ambos igualmente

necessários à manutenção da vida, pois se o pão alimenta o corpo, a literatura

alimenta o espírito. Em Intramuros a mulher transita entre esses dois ofícios e

vai dando encantamento aos elementos das lides domésticas. É que a mulher,

libertando-se dos muros que a cercam cotidianamente, multiplica-se em feras

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indomáveis, gozando até a exaustão a liberdade conquistada por meio da

poesia e de sua expressão. Dessa forma, os muros cotidianos não são

suficientes para prendê-la, para retê-la em seus ímpetos de gozo, tormento ou

fúria.

No livro Rasos D’água (2003), o amargor que Astrid sempre contrapõe

à ternura se acentua sensivelmente. A mulher sofre os estigmas do

envelhecimento, da chamada terceira idade. Agora os olhos se voltam mais

para trás do que para a frente. O ímpeto e o fogo da infância e da

adolescência cedem lugar à reflexão assentada e quieta, embora

contestadora, da mulher que passa a vida em revista. A água, em suas

multifacetadas formas, é ao mesmo tempo testemunha e agente dessa

condição humana de caminhar inexoravelmente rumo à decrepitude. A chuva,

o rio, o mar e outras fontes de água metaforizam a instabilidade da vida, a

inconsistência do mundo, a fluidez da existência. Mas a síntese das sínteses

no que se refere à água concretiza-se através das lágrimas. Estas são

expressivas das perdas e ganhos ao longo da vida, inclusive a perda do

amado, cuja morte semeia-se por quase toda a obra.3

O livro divide-se em duas partes. Na primeira, ancorado em Jorge de

Lima, o leitor fica sabendo que o ser humano, cercado pelos limites que o

envelhecimento lhe impõe, não pode mais singrar os grandes mares, mas tem

sempre à sua disposição um “copo de mar” para navegar. A navegação,

então, opera-se unicamente por meio do sonho e da fantasia; na segunda

parte, o leitor pode aprender, em diálogo com Guimarães Rosa, que os

barquinhos de papel podem navegar em qualquer oceano. E se barquinho de

papel é o que resta, navegar é preciso. É o contraponto às subtrações e

castrações que o tempo forja no corpo e na alma do ser humano.

Os dois poemas a seguir, “Saudade” e “Acimabaixo”, são expressivos

da impotência humana ante a inexorabilidade do tempo, com suas

desconcertantes antíteses entre o ontem e o hoje:

3 O seu esposo, o também poeta Afonso Felix de Sousa, morreu no dia 7 de setembro de 2002, no Rio de Janeiro, um ano antes da publicação do livro Rasos d’água.

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Saudade

Já disse e repito: aos dezoito, saudade era trissílabo, paroxítono e nada mais. Hoje, saudade é sangue sangria desatada correnteza no mangue de mim mesma.

Acimabaixo Longe fica a fonte. alcançá-la é cruzar águas contrárias. Perto fica a foz. atingi-la é deixar-se à deriva veloz.

No livro Jaula, publicado em 2006, Astrid “solta os bichos” de sua jaula

poética. Apresenta ao leitor uma movimentadíssima fauna em que as

fronteiras entre o humano e o animal são praticamente diluídas, uma vez que

a poeta enfatiza a animalidade do homem ao mesmo tempo em que sugere a

humanidade do animal. Fala de animais como pretexto para falar de gente, ao

inconfundível sabor da metáfora. É o que se pode ler, por exemplo nos

expressivos versos do poema “Cave canem”: “Dentro de mim há cachorros /

que uivam em horas de raiva / contra as jaulas da cortesia /

e as coleiras do bom senso.” Aqui as jaulas e coleiras são as amarras das

convenções sociais criadas para domar a fereza bruta do ser, e contra isso o

eu-lírico se revolta, evocando o cachorro uivante que carrega consigo. Como observa Igor Fagundes, no prefácio do livro, os poemas de certa

forma contradizem o título da obra, pois os bichos estão soltos, as feras estão

libertas, não há grades nem cadeados. Assim, Astrid inaugura, pela palavra

poética, um tipo especial de jaula, a jaula-poesia – esta aberta a múltiplas

leituras – e ali aprisiona os seus bichos na metáfora, para em seguida soltá-

los. Trata-se de uma intensa expressão de humanidade.

Em 2007, Astrid publicou o livro Ante-sala. Nele, a poeta parece dar

eco a dois versos do também poeta amazonense Alencar e Silva, autor de

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Lunamarga: “Tudo traz sob a pele a sua morte” e “tudo caminha para um

presumível fim”. Todos os humanos e todos os seres vivos em geral estão

fadados à morte, e os poemas nos convidam a refletir sobre este estigma

humano de finitude. Mas entre a vida e o momento final (e fatal), decorre o

tempo, que nos obriga a pairar numa sala de espera, que é a antessala da

morte. E se tudo traz sob a pele a sua morte, essa sala de espera se abre

para nos receber a partir do momento em que nascemos, ou seja, nascemos

para morrer. No entanto, a constatação irrefutável desse estado de antessala

ganha maior visibilidade com a velhice, que faz avultar a expectativa e a

iminência da partida. Nesse sentido, o livro dialoga com os seus irmãos Rasos

d’água e Alameda, por mostrar que a morte espreita a vida, como realidade

inelutável. De certa forma, os poemas obrigam-nos a um flagrante cara-a-cara

com a morte. Morte e vida se entrelaçam e se complementam. Esta é a

constatação do eu-lírico em “Morte adiada”: “Chamo à vida sobremorte / e à

morte sobrevida”. Todos na antessala, alguns se desesperam, outros se

resignam e apenas esperam, e assim a humanidade segue a sua marcha

neste planeta “tisnado de morte”.

Quando Astrid publicou Intramuros, em 1998, teve a generosidade de

me presentear com um exemplar autografado, onde ela registrou, entre outras,

a seguinte frase, que já peço absolvição pela total indiscrição de publicá-las:

“[...] Como você pode ver, o veio ainda não secou”. Intramuros era, naquele

instante, a mais nova pérola de Astrid, o seu oitavo livro, e depois viriam ainda

mais três, cada um com os seus traços peculiares de genialidade.

Enfim, mais de uma dezena de livros de poesia (incluindo Alameda, que

são contos grande poeticidade) constituem o legado com que Astrid Cabral até

o momento nos brindou. Creio que ainda nos brindará com outros livros da

mesma qualidade. Em cada título, uma expressiva metáfora. Se nos

debruçássemos apenas sobre os títulos de seus livros, já teríamos matéria

suficiente para grandes voos interpretativos. Todavia, navegar em seus

poemas nos permite imergir nas contingências da humanidade e voltarmos à

tona mais humanos.

Sua obra promove um entrelaçamento vivo e exuberante entre poesia e

filosofia, traço que marca toda a sua escritura poética, aliado à dicção feminina.

A mulher, com um olhar crítico e revisionista sobre o mundo, tenta reinventar a

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vida. Em suas obras tomamos contato com uma mulher que revolve o passado

com os olhos da memória. E nessas multifacetadas viagens poéticas, o já

vivido esparrama-se em direção ao presente, encharcando-o e permeando-o

irreversivelmente; em outras ocasiões, exercita o olhar expectante em direção

ao futuro, perscrutando o porvir.

Enfim, pela qualidade de sua obra Astrid Cabral é um dos nomes mais

significativos da poesia amazonense e também da literatura brasileira

contemporânea. Ainda bem que o veio não secou. Para o regozijo de todos os

amantes da boa poesia, espero que nunca seque.

2 Narciso faz strip-tease...

Em entrevista, ao receber o prêmio nacional Troféu “A Enxada”, em

1981, Astrid lançou mão de uma estonteante metáfora para falar sobre a sua

poesia: esclareceu que a mesma tem “uma vinculação existencial profunda.

Jorra mais de experiências pessoais que de leituras. É uma espécie de strip-

tease espiritual”, porque ela se apresenta em seus poemas “sem o pudor das

máscaras, com uma franqueza quase brutal.”4

Assim sendo, sinto-me autorizado a ver este “Olhar de Narciso”, sobre

o qual tenho o privilégio de me pronunciar, como strip-tease espiritual

despudorado (desculpem-me o contrassenso) diante de um sem-número de

“voyeurs espirituais” famintos: entrevistadores na primeira fila e leitores na

retaguarda, entre os quais me situo. O conjunto é formado, na sua quase

totalidade, por textos de entrevistas que a poeta concedeu no período de 1963

a 2006. Os entrevistadores, competentíssimos, foram felizes no atiçamento do

“espírito narcísico” de Astrid, estimulando-a a mostrar o que eles desejavam

ver.

A inteligência grega nos ensinou que o que caracteriza o Narciso é o

olhar. Ou o desejo forjado pelo olhar. A sina de Narciso é olhar sempre para

sua própria imagem, ao ponto de ser devorado pelo encanto avassalador da

autocontemplação. No decurso do tempo, aquela fonte mítica sobre a qual

Narciso se debruçara foi cedendo espaço a outros elementos simbólicos

4 Todas as citações textuais de Astrid Cabral, a partir daqui, foram extraídas dos textos que compõem este “Olhar de Narciso”.

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ligados à imagem, como o espelho.

O psicólogo britânico Havelock Ellis, em 1898, possivelmente foi o

primeiro a utilizar o mito grego para se referir à postura feminina diante do

espelho. Mas de qualquer forma, o Narciso grego amou a sua imagem foi

mesmo através do “espelho” da fonte em que se mirava. Assim, os narcisos

modernos olham-se no espelho para se admirarem de sua própria beleza

espelhada. E o que são os poetas, senão verdadeiros narcisos? Suas obras e

as estruturas poéticas que criam carregam muito do seu ser e constituem o

espelho no qual se miram.

Da estrutura do mito grego de Narciso, a civilização ocidental recupera

alguns motivos que, sob multifacetadas formas, são recontados na arte e,

especialmente, na poesia. Entre essas formas de recuperação do mito,

destaco a técnica do autorretrato, as estruturas especulares e a necessidade

de ser reconhecido pelo olhar do outro, além da construção do duplo, é claro.

Freud, considerado o pai da Psicanálise, ocupou-se bastante das expressões

narcísicas.

Mas aqui, diante desta seção de escritos, vi-me às voltas com uma

questão que tinha de resolver: como conciliar o espírito narcísico (que tem

prazer na autocontemplação) com o espírito stripper (cujo prazer consiste em

se mostrar)? A saída que encontrei foi imaginar a fusão desses dois

elementos em um só: um narciso que se despe e se mostra de corpo inteiro. E

na verdade é isso que acontece nesta seleção, pela poeta, de falas sobre

seus escritos pessoais. Um convite ao voyeurismo intelectual, através das

frestas disponibilizadas. Assim sendo, sigamos em frente. Aceitei o papel de

voyeur lírico e quero compartilhar com quem me lê as cinco frestas que mais

me atraíram o olhar.

A primeira fresta proporcionou-me o êxtase da estimulante fala de

Astrid sobre a elaboração de Alameda, quando ela afirma que o seu maior

pecado foi ter feito concessões de cunho realista, por não ter se restringido à

ficção pura naquele livro. Mas eu entendo que esse “pecado”, se é que ele

realmente existe, em nada prejudica a qualidade do livro. E ainda bem que

Deus perdoa os pecados, e os esquece. Pelo menos é isso que garantem as

Sagradas Escrituras, por meio de um dos seus mais represtativos porta-

vozes: o também poeta e salmista Davi. No Salmo 103: 3, afirma que “Ele

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perdoa todas as tuas iniquidades e sara todas as tuas enfermidades”. O

profeta Isaías (43: 25) ratifica essa garantia, ao dizer que Ele se esquece dos

pecados do homem. Se é assim, quem somos nós, simples mortais-leitores,

para não esquecê-los e absolver Astrid?

Mas na verdade, só vejo genialidade onde a autora vê “pecado”. Ela

não conseguiria fugir à sua tendência de pôr o dedo sobre os cruciais

problemas do mundo, embora se sinta impotente para resolvê-los. Seria uma

tentativa inócua para quem elabora uma poesia feita não de acalantos,

embalos, mas de “soluços, gritos, perguntas e protestos.” E essa atitude

protestante já está plenamente desenhada em Alameda.

Dizendo assim, pode parecer, a quem ainda não teve a oportunidade

de ler o livro, que ali se encontram textos panfletários, daqueles que muitas

vezes se comete o equívoco de chamar de “literatura engajada”. Não se trata

disso. Astrid passa longe – e muito longe – dessa doença do panfletarismo.

Refletindo sobre as lides poéticas, ela ensina que “se o poeta faz concessões

visando à comunicabilidade, compromete a qualidade do poema. O poema

programaticamente engajado é arma inadequada para o alvo político. Com

isto não quero dizer que a preocupação com a justiça social não seja um dos

grandes temas da poesia. [...] O verdadeiro papel do poeta é construir seu

texto. Não precisa de militância político-partidária para estar engajado com a

realidade social que o cerca. Essa é uma dimensão do humano que se não

estiver explícita estará latente em sua obra. Enquanto poeta cabe-lhe

subverter a linguagem e a sua dívida é com a revolução da linguagem.”

Essas palavras tão lúcidas de Astrid harmonizam-se com o pensamento

do teórico Aguiar e Silva, que tem a preocupação de estabelecer um marco

diferencial entre literatura comprometida (engajada) e literatura planificada ou

dirigida. Ele entende que

Na literatura comprometida, a defesa de determinados valores morais, políticos e sociais nasce de uma decisão livre do escritor; na literatura planificada, os valores a defender e a exaltar e os objetivos a atingir são impostos coativamente por um poder alheio ao escritor, quase sempre um poder político, com o consequente cerceamento, ou até aniquilação, da liberdade do artista. (AGUIAR E SILVA, 1976, p. 127)

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Em geral, o foco das discussões, na atualidade, não está tanto no fato

de o artista ser engajado ou não, mas no fato de a obra que ele produz ser ou

não engajada ou planificada. Evidentemente, o escritor é um homem como

qualquer ser humano comum, com direitos e obrigações, sujeito às

contingências da condição humana. Tem direito à

militância política, assim como a outros canais do exercício da cidadania.

Ninguém pode negar ao homem o direito à alteridade. Mas a literatura não

pode ser reduzida a um mural de panfletos com vistas à veiculação de

propaganda política, pois isso a empobrece, subtrai-lhe a força expressiva, e a

obra que se constrói com esse mister, além de não se fazer convincente,

apresenta-se como uma moeda falsa.

A literatura deve estar engajada com a realidade, sem estar atada ao

dirigismo ideológico, sob pena de cair na prática da panfletagem. Ao leitor não

apraz sentir-se como um menino puxado pelo braço e levado à catequese que

não pediu nem deseja. Se o escritor força a barra, o leitor fica ressabiado e

depois, confirmadas suas suspeitas, desqualifica a obra.

A esse respeito, Rachel de Queiroz deu um depoimento esclarecedor:

“Não acredito em Literatura engajada. Literatura engajada é um sermão, não é

Literatura. Mas é possível fazer um esforço e expressar seus sentimentos

políticos, apenas com talento, sem pregar nada”5

Há ainda o caso de João Cabral de Melo Neto (1969), cujo auto Morte e

vida severina faz parte do que melhor já se produziu no Brasil em termos de

literatura comprometida com a realidade. “Eu nunca pensei em fazer literatura

engajada ou não engajada”, disse ele, “eu fazia o poema pensando em fazer

bem o poema. O que se pode chamar de literatura engajada, na minha poesia,

são os temas da seca, da miséria do Nordeste”6

Detentor do único Prêmio Nobel de Literatura em língua portuguesa, o

romancista português José Saramago também mantém uma posição

equilibrada a respeito da cansativa controvérsia:

O que significa uma literatura engajada? Uma literatura a serviço de uma determinada ideologia? Se é assim, sou contra. Se é uma literatura na qual a ideologia do autor não está ausente, sou a favor.

5 Entrevista ao site www.ufmg.org.br. 6 Depoimento ao site AloEscola, da Tv Cultura.

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Pois, se quando escrevo, tenho minha ideologia na gaveta, é o caso de se perguntar: com o que eu iria escrever? Todos temos idéias, opiniões, sentimentos, aspirações, ilusões, enganos. Tudo isso compõe a vida humana. E não podemos ser separados disso. É possível que haja autores muito cuidadosos quando escrevem e que digam: “Não, eu não quero que na minha literatura haja contaminação política”. Não é o meu caso. Repito: não faço da literatura um panfleto e qualquer leitor pode verificar isto em cada página que escrevi. Toda literatura é engajada. Não há literatura inocente. E ser engajado não significa sair à rua com uma bandeira ou manifesto, mas ter uma presença na vida, na sociedade7.

Como se vê, Rachel, João Cabral, Saramago – e eles não estão

sozinhos nisto – são exemplos de escritores que, à parte a militância política ou

não do indivíduo, preferiram a obra de qualidade ao panfleto maniqueísta,

embora às vezes tivessem que pagar caro por isso. Parece haver entre eles

um certo consenso de que a experiência da obra pode possibilitar mudança

interior, que pode, por sua vez, produzir mudança social, sem que o escritor

necessite de armas catequéticas para melhorar o mundo. Portanto, Astrid

perfila-se e faz coro com eles. Em Alameda, “a realidade imediata funciona

como ponto de partida para outra realidade mais sutil, gerada pela

imaginação”, diz a autora. E acrescenta, quanto aos seus poemas, que são

impuros, carimbados por vivências concretas, “tão sujos de mundo”, fugindo da

poesia orvalho e se aproximando da poesia nódoa no brim de que fala Manuel

Bandeira em “Nova Poética”. Ou seja, a poesia que traz em si “a marca suja

da vida”.

Astrid entende que a poesia deve operar uma reflexão sobre a vida,

mostrando as suas fraturas, “no entanto a grande maioria prefere a anestesia

ao lúdico enfrentamento da condição humana”. Diplomaticamente, ela

condena a “poesia xilocaína” que não toma para si a função precípua de

incomodar e prefere acomodar, anestesiando. Assim sendo, tenho que

considerar que ela não cometeu pecado algum em Alameda.

Pela segunda fresta, pude fruir o contraponto entre razão e emoção na

poesia. Diz Astrid: “Ponho brida nos cavalos do ímpeto. Há todo um lado

racional responsável pela ironia, pela crueza com que encaro os fatos e o

mundo. A doçura sempre vai quebrada pelo ácido e pelo amargo.” Astrid diz

isso após afirmar que a emoção é principal característica de sua poesia. Mas

7 (Entrevista ao site www.ufmg.org.br).

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a razão não é esvaziada, ela está ali, presente, cumprindo o seu papel de

fornecer chão ao cavalo alado.

Astrid não desconhece que, “na poesia brasileira de vertente

construtivista, herdeira do concretismo, a emoção virou pecado mortal,

doença infecciosa a ser evitada com assepsia. A tribo dos cerebrais, ao gerar

poemas rigorosamente abstratos, persegue a façanha artificial do desumano,

através de conceitos frios e versos sem sangue.” Mas a sua visão sobre o

trabalho do poeta é bem outra: “Talvez a ciência possa, ou mesmo deva, banir

a emoção de seu trabalho, mas a poesia estaria se empobrecendo ao abrir

mão de veio tão valioso. O descarte do fator emotivo serve para aprofundar o

fosso entre o mundo do autor e o do leitor, inviabilizando a comunicação.”

Nesse sentido, ela se posiciona “ao lado dos poetas que priorizam a realidade

objetiva sem amordaçar as emoções, aqueles para quem a poesia não está

acima da vida como algo sagrado, mas se imbrica no terra-a-terra, fiel às

contingências do dia-a-dia.”

É comum os poetas andarem às voltas com o velho dilema perturbador

entre ser apolíneo ou dionisíaco, buscando como âncora a razão ou a

emoção. O filósofo Nietzsche já assinalava que a soma dos dois modelos

herdados da sabedoria grega é um caminho bastante favorável para a arte,

como acontece na tragédia ática. Mas a corrente em prol do quase monopólio

da razão como meio de interpretação da realidade sempre foi muito forte,

desde que plantada por Platão e Aristóteles. No entanto, Nietzsche –

seguindo trilhas abertas por Kant e Schopenhauer – apresenta a arte como

um meio mais seguro de interpretação da realidade, já que considera a

linguagem racional ineficaz para abarcá-la. Para ele, só se pode chegar a um

conhecimento pleno da realidade através dos símbolos, dos quais a arte se

alimenta.

O poeta Fernando Pessoa demonstra, em seu “Autopsicografia”, que

vale por um curso de teoria da literatura, que na poesia quem manda é o

coração, a emoção sempre sobrepujando a razão e entretendo-a. Portanto,

uma não exclui a outra: ambas podem habitar na poesia, como metodologias

que se complementam. Mas o comando do espetáculo da poesia cabe à

emoção e não à razão. Todavia, a razão é imprescindível, pois ela é

responsável pelo “fazer sentido” necessário ao que se diz. Parece ser este o

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pensamento de Astrid.

A terceira fresta possibilitou-me o prazer de ver a relação entre a

mulher e a escrita. Sobre a questão, Astrid comenta que depois de tanto

tempo de exclusão e silêncio a que a mulher foi obrigada, percebe que há

uma crescente curiosidade para ouvir o que a mulher tem a dizer. E as

mulheres que ousam falar em voz alta têm por trás de si todo um contexto de

lutas e reivindicações. Ou seja, têm muita história para contar.

Em sua terra natal, o Amazonas, Astrid foi uma das vozes femininas

pioneiras no campo da literatura, antecedida por uma outra poeta, a Violeta

Branca, que nos idos de 1935 ensaiou os primeiros passos da poesia

modernista no Estado. Causou impacto, na época, a publicação do livro de

poemas de Violeta, Ritmos de inquieta alegria, pela ousadia de uma mulher

em irromper num mundo povoado quase exclusivamente por homens, e ainda

com versos carregados de insinuações eróticas. Depois viria Astrid, já em

meados do século XX, para circular também num universo eminentemente

masculino, participando do Clube da Madrugada, como ficou conhecido o

movimento que surgiu em 1954 com o propósito de arejar as empoeiradas

artes locais. Fato incomum na região, uma mulher (e ainda adolescente)

associar-se a um grupo homens para discutir os rumos da literatura e escrever

contos e poemas. E o que acontecia no Amazonas era simples reflexo do que

ocorria em todo o Brasil: a presença da mulher no cenário das letras era uma

raridade. E não só nas letras, mas também em muitos outros setores da vida

social, cujas portas encontravam-se fechadas para as mulheres.

Dessa forma, Astrid, assim como fora o caso de Violeta Branca, não

podia se dar o luxo de apenas produzir sua arte. Cabia a ela ainda o difícil

trabalho de abrir as portas fortemente travadas para poder entrar em cena. E

ao entrar, tomou o ofício literário como missão: Quando escreveu seu primeiro

livro de poemas, sua voz “juntou-se à de muitas outras poetas que assumiam

o erotismo e a denúncia da condição social da mulher.” Tomou-se de surpresa

quem esperava sentimentalismo da poeta: “quando apareci como poeta houve

quem dissesse ser minha poesia muito forte, parecendo de homem.”

Astrid destaca dois enfoques temáticos, em seus textos, que a inserem

na grande corrente das poetas mulheres que vêm contribuindo decisivamente

na configuração atual da poesia brasileira. O primeiro é “a celebração do

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cotidiano, bem terra-a-terra do mundo feminino entre quatro paredes”, e o

segundo diz respeito à “confissão do erótico, assunto tabu em que Gilka

Machado aplicou a primeira cajadada e que constitui na produção de hoje

traço marcante de poetas como Leila Miccolis e Adélia Prado, entre outras.”

Mas ela entende que a poesia prescinde da categorização de gêneros.

Assinala que “os poemas, além de serem ambíguos e polissêmicos, parecem

elidir a consideração masculino/feminino ao se desenvolverem em torno de

assuntos universais, relevantes a qualquer ser humano”. E complementa:

“Sem descartar a possibilidade de dicções diferenciadas, creio ser imensa a

dificuldade de identificá-las corretamente, sobretudo em casos fronteiriços.

Como definir, na pós-modernidade unissex, os conceitos de masculino e

feminino fora de estereótipos superados e generalizações grosseiras?”

Quando se refere à situação da mulher que se divide na busca do pão

e da palavra ao mesmo tempo, Astrid não titubeia: “Lar e literatura, embora

me proporcionem fortes motivações existenciais, estão sempre a me cobrar,

cada qual, seu grave tributo. Trata-se de um equilíbrio instável, e lá no fundo

de mim, a incômoda lembrança da condenação bíblica de que não se pode

servir a dois senhores. Mais a culpa de não ser capaz de abandonar nenhum

deles e pior, a ambição de permanecer fiel a ambos!”

Na quarta fresta, deliciei-me observando a crítica à critica. Astrid diz:

“Nas últimas décadas a crítica tem se deslocado para o âmbito universitário, e

focalizado, de preferência, escritores consagrados pelo cânon, em sua maioria

mortos. Dessa maneira fugiu, a meu ver, à sua função primordial, uma vez que

deixou de prestar orientação a autores em processo criativo, e a leitores em

busca de opinião abalizada sobre os textos recém-lançados.” Além disso, no

seu entendimento, “alguns críticos da linhagem acadêmica usam linguagem tão

hermética e exageram tanto em alusões e digressões eruditas, que acabam por

construir uma espécie de muralha em torno da obra.”

Por outro lado, existe também “a crítica dos que a exercitam de modo

leviano, em apressadas resenhas de jornal. Alguns de seus autores se

arvoram a opinar sobre o que entendem pela rama, e ao expor o despreparo

prestam o desserviço da má informação perigosa.” Talvez essa seja uma das

causas de um fenômeno bastante corriqueiro quando se pensa em mercado

editorial: “Bons livros, se lançados por pequenas editoras, desaparecem no

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anonimato, enquanto baboseiras viram best-sellers sob os holofotes do

marketing.”

Astrid diz que valoriza “a crítica exercida pelos autores que são também

artistas da criação. A visão deles é bastante antenada e expressa com

elegância e estilo. Dá gosto ler as apreciações que fazem.” Essa preferência da

poeta afina-se com aquela visão de Oscar Wilde em seu ensaio intitulado O

crítico como artista, no qual estabelece, pelo diálogo entre as personagens

Gilberto e Ernesto, seu posicionamento a respeito da atividade crítica como

uma atividade de criação do mais alto nível. Wilde chega inclusive a colocar a

“crítica elevada” em uma posição superior à obra de arte no sentido do trabalho

criativo. Enquanto a crítica é autossuficiente, a obra de arte não pode prescindir

de modelos exógenos para se realizar. Essas considerações de Wilde são

convergentes com as de Tadié, quando este metaforiza a crítica como o “farol

de Alexandria” que joga luzes sobre as obras, sem as ter criado. No entanto, se

a crítica não é “elevada”, para usar o termo ao gosto de Wilde, cai no criticismo

vazio e inócuo que provoca ojeriza em Astrid.

Por fim, chego à quinta fresta, onde me agasalhei para saborear as

metáforas metalinguísticas da autora. Toda vez que exercitamos a

metalinguagem, conscientes de que o estamos fazendo, prestamos um tributo

ao linguista russo Roman Jakobson, já que coube a ele a descoberta da

realidade do fenômeno metalinguístico, ao definir as diferentes funções da

linguagem, em seu clássico ensaio Linguística e poética.

E tudo neste volume de textos que li é metalinguagem. Astrid fala sobre

a sua escrita como crítica de si mesma. E se mostra, de corpo inteiro, de corpo

e alma, uma crítica aos moldes da sua própria exigência, em consonância com

as diretrizes de Wilde: quando responde aos entrevistadores, e quando teoriza

sobre literatura, revela-se, até aí, uma grande poeta. Isso porque à função

metalinguística associa quase sempre uma outra função da linguagem, a

poética, pelo uso fluente da metáfora em sua fala. Falando a interlocutores,

parece que faz poesia o tempo todo.

Por isso, não me pude furtar em pinçar dos textos as metáforas

metalinguísticas que ela produziu nessas respostas dadas aos entrevistadores.

Chamo de metáforas metalinguísticas porque são metáforas de grande força

expressiva utilizadas para exercitar o dizer sobre a sua produção poética. Tony

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Berber Sardinha, no livro Metáfora, comprova que as metáforas são recursos

poderosíssimos que os poetas (e outros profissionais também) utilizam para

dar mais “cor” e “força” ao que falam ou escrevem. Ele vê as metáforas

também como meios econômicos de expressar uma grande quantidade de

informação. Possibilitam um modo simples de externar um rico conteúdo de

ideias. E Aristóteles, o primeiro a refletir sobre a metáfora, realça nela o poder

de conferir “graça” e “urbanidade”, de chamar atenção por sua força expressiva

e elegância. Vejamos, a título de exemplos, cinco dessas metáforas da lavra de

Astrid nos textos de “Olhar de Narciso”:

a) “Livros são filhos de papel.” Astrid criou essa metáfora para falar

sobre seus escritos. Revela com isso ter o mesmo entendimento que tinha

Euclides da Cunha a respeito de seus livros. Por exemplo, em carta para o

pai, ele fez referência ao “seu grande neto Os Sertões”. Depois, escreveria a

D. Agustín de Vedi nos seguintes termos: “Os Sertões [...] é o primogênito do

meu espírito”8. Se entendermos a metáfora como a verbalização de uma

forma de pensar, como queriam Lakoff e Johnson em Metáforas da vida

cotidiana, podemos inferir que a família literária de Astrid já pode ser

considerada relativamente numerosa, por contar com mais de uma dezena de

livros-filhos, e isso não é nenhum problema, pelo contrário, os amantes da

boa poesia torcem para que a poeta continue profícua na missão de cumprir o

mandado bíblico de ser fecunda, multiplicar-se e encher a terra.

b) “[..] Os versos no papel eram o cofre perfeito para os segredos do

coração.” Refere-se à sua forma de pensar no início da carreira como poeta.

Ela comenta que possivelmente o que a levou a se tornar poeta e escrever foi

a timidez. E até hoje, quando se encontra só, em colóquio com o papel,

consegue expandir o coração e com ele as emoções, o que é muito difícil de

acontecer no burburinho e nas turbulências das relações sociais. “Devo

confessar”, diz ela, “que me sinto muito mais à vontade à sombra do que à luz

de holofotes”.

c) “A poesia me visita a qualquer hora, em qualquer lugar”. Esta é uma

metáfora personificadora, conforme a tipologia apresentada Walter de Castro

8 GALVÃO, Valnice Nogueira; GALOTTI, Oswaldo. Correspondência de Euclides da Cunha. São Paulo: EDUSP, 1997, p. 249 e 384).

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em Metáforas machadianas. A poesia é apresentada como uma pessoa,

ocupada em visitar a poeta, para ofertar-lhe o poema que precisa ser escrito.

Falando sobre a poesia, Astrid oferece-nos um verdadeiro torneio de

metáforas: “Poesia para mim é o colete salva-vidas que me permite, após

naufrágios, retornar à tona. Ponte pênsil que, volta e meia, lanço entre a luz

da consciência e as trevas da inconsciência. Em meio à algazarra de tantas

vozes alheias e contraditórias, a voz interior que procuro ouvir e externar.

Conversa íntima que mantenho comigo mesma desde a puberdade, e que

atravessa fases de silêncio, mas acaba por se reatar em dinamismo

espontâneo.”

E tem mais: “A poesia lírica liberta o mundo do óbvio, graças à boa

vizinhança que mantém com o onírico e a natureza do olhar abrangente,

capaz de percepções extraordinárias e ousadas. É, portanto, prática salutar,

processo de enriquecimento espiritual. Através dela, o homem educa os

sentimentos e alarga o universo sem precisar embarcar em nave sideral.”

Astrid, ao dizer isso, conscientemente ou não está dialogando em Aristóteles

e seu conceito de catarse: o poder que tem a arte de purificar as emoções, de

purgar os males, de pôr o indivíduo frente a frente com a sua dor para que,

refletindo sobre ela, e até rindo dela, liberte-se da pressão dessa dor. É isso

que Astrid reconta ao dizer: “se a vida me faz penar e já me feriu muitas

vezes, a literatura sempre me proporcionou prazer. Através dela posso

dialogar com a dor e transfigurá-la.” E “quem amordaça sentimentos

compactua com a falsidade e constrói a doença.” É preciso entender que “a

arte tem um lado terapêutico”.

Aristóteles apresentava também a fantasia como uma necessidade. Na

Poética, ele ressalta que a necessidade congênita que o ser humano tem para

fantasiar é uma das causas do surgimento da poesia. E o tempo iria

comprovar a assertiva do filósofo e torná-la ainda mais completa, no sentido

de que o homem não tem apenas “necessidade” de fantasiar. Ele tem,

também, “capacidade” de fantasiar. E a poesia é o lugar por excelência para o

homem exercitar a fantasia da sua dor. Astrid revela-se plenamente

consciente disso: “Assim como temos necessidade de pão, temos

necessidade de ficção, de contemplar e de desenvolver a sensibilidade. A

fantasia é indispensável à vida.”

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d) “Os que chegam procuram espaço, e ao encontrá-lo ocupado, tratam

de esvaziá-lo através da demolição impaciente, a marretadas.” Aqui ela reflete

sobre o inevitável choque entre o novo e o velho na literatura, o conhecido

confronto de gerações. Em tudo na vida parece haver um eterno recomeço. A

dinâmica dos chamados estilos de época revela isso à exaustão: todo estilo

que se inicia apresenta-se como “o novo” em oposição ao “velho” que ainda

ocupa o cenário. Mas o que é velho não quer morrer, pois o homem, mesmo

sabendo que é feito de matéria perecível, tem ânsias de eternidade. O velho

tem anseios de perpetuidade, daí os inevitáveis choques, nos quais o novo

acaba vencendo, sobrepujando o velho, e se estabelecendo. Ocupa o cenário

por algum tempo, mas aos poucos começa a saturar, pois nada que é novo

permanece novo para sempre... e em novos confrontos, aquele que era novo

já envelheceu...

e) “Classificações são gavetas estreitas”. Uma metáfora muitíssimo

interessante, que verbaliza o pensamento de quem é avesso às taxonomias.

E como há pessoas que se deleitam com a estreiteza das gavetas! Que se

comprazem com o apoucamento dos rótulos! Sobre a questão, ao ponto de

vista de Astrid é claro: “há na minha natureza uma espécie de rebeldia a

balizas e portas fechadas”, porque “a poesia sendo, por princípio, território de

liberdade, não abriga proibições.”

E quando os aficcionados por balizas e rótulos lhe exigem

demarcações, ela força a natureza e engendra esta explicação: “considero

minha poesia equidistante do formalismo e do antidiscursivismo. Pertenço

cronologicamente à geração de 60, uma geração marcada pela diversidade

estética, e compartilho das vertentes mítico-regionalista, lírica de configuração

epigramática, erótica ou de protesto social.” A “geração de 60”, segundo

Pedro Lyra, tem essa tendência, encontrada em Astrid, de inserir o lírico na

prosa e o prosaico na poesia, deflagrando tensões que põem em xeque os

tratados convencionais da teoria literária.

Em outros momentos, livre da camisa de força das taxonomias, define-

se com mais sobriedade: “examinando minha produção, vejo que ora sou

centrípeta (Alameda, Visgo da terra), ora centrífuga (Torna-viagem, Rês

desgarrada). Posso também ser universal, desvencilhando-me da sombra de

geografias (Ponto de cruz, Lição de Alice, Intramuros)”. E com mais precisão:

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“toda uma trajetória de vida pode ser rastreada nos meus textos: os arroubos

da juventude, as indagações existências que me perturbam, os momentos

cruciais, os espaços por onde andei e que me causaram deslumbramentos ou

decepções, os encontros transformadores. É um itinerário emocional.”

Enfim, fora das frestas, parece que estou ouvindo Heráclito quando

ouço Astrid dizer: “Depois que publico um poema, é como se ele não fosse

mais meu. Porque aquela Astrid que escreveu já é outra.” O filósofo de Éfeso,

para quem nada é imutável e tudo se move, dizia que uma pessoa jamais

pode entrar duas vezes no mesmo rio, porque numa segunda vez o rio já não

é mais o mesmo, e a pessoa também já não é mais a mesma. Tudo se

modificou. Para Heráclito, a dialética rege o confronto dos opostos, gera a

alternância das coisas e provoca a mudança (o devir). É desse embate dos

contrários que nasce a harmonia, o equilíbrio. Portanto, o equilíbrio que se vê

na escrita astridiana nasceu e continua nascendo dos muitos embates, dos

inúmeros confrontos em que ela se envolveu, da infância à maturidade,

passando pelas quadras difíceis da adolescência e da juventude. A harmonia

e o equilíbrio inserem-se no longo aprendizado que só cessa quando a fatal

fiandeira, na sua faina de tecer fatalidades, estica o fio e o corta. Faz parte

desse aprendizado a tranquila aceitação, por parte da poeta, de que “o reino

da literatura não é monopólio de gênios”. Mas Astrid diz uma coisa com a qual

não posso concordar em hipótese alguma: “se algum dia fui guerreira, acho

que já aposentei as armas”. Pelo que vi nas frestas, só posso dizer que não é

verdade!

E como o veio ainda não secou, narciso pode continuar se mirando no

espelho dessas águas...