uma literatura anfibia silviano santiago

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  • 8/11/2019 Uma Literatura Anfibia Silviano Santiago

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    13ALCEU - v.3 - n.5 - p. 13 a 21 - jul./dez. 2002

    Venho de pas onde um segmento considervel da populao ainda composto de analfabetos. Isso traz conseqncias para a literatura e asartes ali produzidas. Ns, escritores, temos considerado que a publica-

    o em livro das obras literrias que imaginamos to importante quanto aao persuasiva que esse livro pode exercer no plano poltico, caso seja lidopelo restrito grupo social letrado que o consome, ou se noticiado ou comenta-do pelos meios de comunicao de massa. N a falta de melhor explicao des-critiva, valho-me de uma metfora: o nosso sistema literrio se assemelha a

    um rio subterrneo, que corre da fonte at a foz sem tocar nas margens que,no entanto, o conformam.Outra conseqncia do analfabetismo que grassa entre os

    desprivilegiados, agora associado ao xito extraordinrio da mdia eletrnica,transcende o campo propriamente literrio. Da noite para o dia, o escritortransforma-se em intelectual de planto. Alcana o pblico que o seu livrono tem. O maior drama do analfabetismo no Brasil o de ter ele servido deadubo para a mdia eletrnica, com o conseqente desenraizamento da im-prensa escrita. O brasileiro aprendeu a escutar rdio e a ver televiso; poucos

    Uma literatura anfbia*

    Silviano Santiago

    Amphibious, adj. [Gr. amphibios, living a double life;amphi- , on both sides + bios, life. []

    3. having two natures or qualities; of a mixed nature.Websters Dictionary

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    sabem ou querem ler. Essa afirmativa desconcertante no recobre apenas acamada dos desprivilegiados, ela virou consenso nacional a partir da ditaduramilitar de 1964.

    Se num pas de mais de cento e cinqenta milhes de habitantes baixssima a taxa de consumo per capitado livro, j a fala de quem exerce oofcio literrio pode ser sintonizada sem graves empecilhos na mdia eletr-nica - em especial na televiso educativa e na televiso a cabo, mas no ex-clusivamente. Concedida aos pares da mdia televisiva, muitas vezes a entre-vista serve ao escritor de trampolim para discusses pblicas sobre idiasimplcitasna obra literria. O livro raramente apreciado pela leitura. Con-some-se a imagem do intelectual, assimilam-se suas idias, por mais com-plexas que sejam. Destas derivam um motor civilizacional de baixssima ro-

    tao, que impele o telespectador comum a enfrentar os problemas nacio-nais, sem ter de apoiar apenas nas agruras do cotidiano como alicerce para arevolta. H, por outro lado, um perigoso culto da personalidade a rondar oaprendiz de escritor. Muitos jovens se sentem to contentes com a imagempblica de intelectual, que logo se descuidam do artesanato literrio, ou oabandonam de vez.

    Se as margens do rio metafrico, a que nos referimos acima, passam aolargo do livro, elas acabam por se aproximarem indiretamente dele pelo visda entrevista. Ela o modo que o escritor encontrou para poder comunicar-secom um pblico mais amplo sem perder as prerrogativas excludentes do of-cio que abraou. Ao contrrio do que sucede em sociedades com maior taxade alfabetizao e escolaridade, o livro de boa qualidade no Brasil pode ser omvelda entrevista miditica, mas nunca o seu fim. Em outras palavras, aprogramao da venda de livros de boa qualidade no Brasil no passa, ou passamuito pouco, pela mdia eletrnica. Em compensao, idias de teor revoluci-onrio circulam com mais freqncia entre telespectadores brasileiros do queentre telespectadores do Primeiro mundo.

    Livro e entrevista, folha de papel e tela, escrita e fala estamos diante desituaes concretas excludentes, que se do como cmplices pelo escritor doublde intelectual e irreconciliveis pelo grosso da populao.

    Com o correr das dcadas a prtica da literatura no Brasil foi-se reves-tindo duma capa, ou seja, duma dupla meta ideolgica. Ao explorar os mean-dros da observao direta dos acontecimentos cotidianos ou histricos e aoincentivar a reflexo sobre os observadores privilegiados, nossa literatura tan-to configura a carncia scio-econmica e educacional da maioria da popula-o do pas, quanto define, pelo exerccio impiedoso da autocrtica, o grupo

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    reduzido e singular que tem exercido de uma forma ou de outra as formasclssicas de mando e governabilidade nas naes da Amrica Latina.

    Por um lado, o trabalho literrio busca dramatizar objetivamente a ne-cessidade do resgate dos miserveis a fim de elev-los condio de seres hu-manos (j no digo condio de cidados) e, por outro lado, procura avanar- pela escolha para personagens da literatura de pessoas do crculo social dosautores - uma anlise da burguesia econmica nos seus desacertos e injustiasseculares. Dessa dupla e antpoda tnica ideolgica - de que os escritores noconseguem desvencilhar-se em virtude do papel que eles, como vimos, aindaocupam na esfera pblica da sociedade brasileira - advm o carter anfbiodanossa produo artstica.

    No sculo 20, os nossos melhores livros apontam para a Arte, ao obser-

    var os princpios individualizantes, libertadores e rigorosos da vanguarda est-tica europia, e ao mesmo tempo apontam para a Poltica, ao querer denunci-ar pelos recursos literrios no s as mazelas oriundas do passado colonial eescravocrata da sociedade brasileira, mas tambm os regimes ditatoriais queassolam a vida republicana. A atividade artstica do escritor no se descola dasua influncia poltica; a influncia da poltica sobre o cidado no se descolada sua atividade artstica. O todo se completa numa forma meio que manca naaparncia, apenas na aparncia. Ao dramatizar os graves problemas da socieda-de brasileira no contexto global e os impasses que a nao atravessou e atraves-sa no plano nacional, a literatura quer, em evidente paradoxo, falar em parti-cular ao cidado brasileiro responsvel. N o so muitos, infelizmente.

    Como conseqncia daquela dupla e antpoda tnica ideolgica surgeum vazio temtico na nossa literatura que, a meu ver, acaba sendo preenchidopela grande quantidade de livros de literaturas estrangeiras que so traduzidose consumidos no Brasil. Temos uma indstria editorial gil e atualizada e ummercado do livro cosmopolita e guloso de novidades. N a singularidade danossa indstria editorial e do nosso mercado do livro esto duas razes que

    justificam a importncia que ainda se d ao artesanato literrio entre escritoresque, sem a concorrncia macia das literaturas estrangeiras, h muito teriamabandonado a pretenso de fazer arte. O vazio temtico se refere parcadramatizao na literatura dos problemas dominantes na classe mdia, quefica espremida entre os dois extremos da sociedade. A literatura brasileira temfeito caricatura, tem passado por cima da complexidade existencial, social eeconmica da pequena burguesia, afiando o gume da sua crtica numa confi-gurao socioeconmica antiquada do pas, semelhante que nos foi legadapelo final do sculo XIX. Se o Brasil republicano alcanou o progresso mate-

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    rial, est muito longe do progresso social. Os escritores e intelectuais brasilei-ros so por demais sensveis a essa desarmonia.

    No por coincidncia que, na nossa literatura, a classe mdia s tomaconscincia da sua situao especfica sob a forma de desclassificao social.No por coincidncia que o tema da decadncia das grandes famlias ruraispercorre o grosso da nossa literatura novecentista, levando alguns crticos atomarem o ttulo dum romance de Lcio Cardoso A crnica da casa assassinada como metfora e emblema do processo constituinte da classe mdia urbanano pas. So os ricos oligarcas, despossudos do poder econmico pela indus-trializao e transformados em funcionrios pblicos ou profissionais liberaispelo Estado nacional em busca de modernizao, que encontram nas ruas dasmetrpoles os ambiciosos estrangeiros e filhos de estrangeiros, firmes na

    alavancagem do Brasil industrial. Ex-oligarcas e imigrantes novos ricos, todosassociados direta ou indiretamente ao capital estrangeiro, acabam por comporum matizado segmento mdio nas grandes cidades, infelizmente pouco pre-sente na nossa melhor literatura.

    Quando transcende as fronteiras nacionais pela traduo para outros ediversos idiomas, o livro brasileiro sai em busca de novos leitores, diferentes dosque foram configurados por dcadas de prtica literria espria e legtima. O

    carter anfbio da nossa produo artstica pode parecer e muitas vezes parece- pouco sedutor aos olhos exigentes de cidados do mundo. O olhar cosmopo-lita se relaciona com o livro pelo vis da notvel tradio literria ocidental, eno pelo vis da percepo poltica da realidade nacional em que se insere obrasileiro e da realidade global em que todos terminamos por nos inserir.

    O pblico estrangeiro (e por pblico estrangeiro estou tentando caracte-rizar, talvez de maneira canhestra, os leitores que vivem nos pases consideradoscomo pertencentes ao Primeiro mundo) costuma ser radical no seu gosto arts-tico. Costuma ser radical na sua escolha do livro de literatura que vai comprar.

    Por isso pouco propenso a acatar, por um lado, a discusso poltica na estticae, por outro, os floreios estticos na poltica. O leitor estrangeiro cosmopolita,repetimos, costuma ser radical na sua definio dos campos disciplinares.

    No seu radicalismo generoso, o leitor estrangeiro tem sido duplamenteinfeliz na avaliao da produo literria brasileira. Ele rejeita a priorias obrasque se definem pelo carter anfbio. No servem nem de exemplo de arte nemde exemplo de poltica. Opta por desmembrar os elementos ambivalentes,constituintes da duplicidade ideolgica e temtica da literatura brasileira, em

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    elementos isolados, autnomos, com vida prpria. Ou Arte, ou Poltica de-fine a direo do interesse na hora da compra. N unca as duas ao mesmo tem-po e no mesmo lugar. ArteePoltica. O hbrido parece-lhe um fantasma. Fan-tasma que certamente o assombrar - caso seja menos respeitoso das fronteirasnacionais e das convenes disciplinares - no seu prprio cotidiano de habi-tante do Primeiro mundo. Como em Hamlet, o fantasma do hbrido podesussurrar-lhe no ouvido que the time is out of joint: Oh cursed spight, / Thatever I was borne to set it right [O mundo est fora dos eixos. Oh! malditasorte/ Por que nasci para coloc-lo em ordem!]

    O leitor estrangeiro no quer compreender as razes pelas quais, naLiteratura brasileira, o legtimo quer ser esprio a fim de que o esprio, porsua vez, possa ser legtimo. Sua vontade de leitor no se alicera na vontade do

    texto literrio. Desta quer distncia. Ele quer enxergar o esttico na Arte e opoltico na Poltica. Ele quer o que o texto no quer. Ele no deseja o texto queno o deseja. Cada macaco no seu galho, como diz o ditado. No compreendeque o duplo movimento de contaminao que se encontra na boa literaturabrasileira no razo para lamrias esteticizantes e muito menos para crticaspragmticas. A contaminao antes a formaliterria pela qual a lucidez seafirma duplamente. A forma literria anfbia requer a lucidez do criador etambm a do leitor, ambos impregnados pela condio precria de cidadosnuma nao dominada pela injustia.

    Por um lado, o leitor estrangeiro tende a buscar entre os livros de litera-tura que pretende ler aqueles que denunciam despudoradamente a condiomiservel de grande parte da populao brasileira. So em geral livros de lite-ratura que pouco se preocupam em satisfazer os mnimos requisitos que trans-formariam em obra de arte o fato bruto socioeconmico. Esto mais prxi-mos da reportagem jornalstica (no confundir esta com a linguagem

    jornalstica, que pode ser notvel recurso estilstico) do que da literatura. Abrutalidade em si do material representado motivo para o interesse senti-

    mental pelo Brasil (pas das desgraas humanas e das catstrofes civis), para aadmirao pelo escritor (a coragem e o destemor na denncia) e os elogiosrasgados ao livro.

    No tenhamos iluso, a brutalidade nua e crua tambm motivo para acomiserao do leitor estrangeiro.

    Antes de tudo, o leitor estrangeiro tem sido um ser de sentimentos cris-tos. Isso bom. Isso passa a ser mau quando ele confunde os bons sentimen-tos com uma mescla de altrusmo abstrato e filantropia remota, ou quando sedeixa confundir pela prpria bondade, sentindo-se mais desatento aos apelos

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    do mundo e menos deplorvel no seu conforto. Sente-se de tal forma imersonas guas empolgantes da denncia explorada pelo livro, que se esquece durante o processo da leitura - de refletir sobre o seu papel, mnimo que sejaele, nessa histria que, caso tivesse sido dramatizada com recursos artsticosmenos lastimveis, poderia ter colocado a hipocrisia contra a parede. O leitorde bons sentimentos se alimenta da brutalidade que lhe transmitida e perdeo norte de si mesmo na contundncia dela. A brutalidade o territrio ondeos bons sentimentos do leitor exorcizam o feitio armado pelo outro subde-senvolvido. Ela no faz parte da dura realidade sua de todos os dias. Se o faz,ele prefere enxerg-la com binculos: l longe, entre as capas do livro, numpas marginal. Fechado o livro, os bons sentimentos exalam o ltimo suspiro.

    Por outro lado, h entre ns escritores que so indiferentes dupla ca-

    mada ideolgica a que nos referimos no incio. Curiosamente, pela indife-rena aos problemas da misria nacional que chegam a encontrar um pblicocativo no estrangeiro. No h como criticar os companheiros de letras queoptaram pelo caminho da pureza artstica num pas onde, por esse ou aquelemotivo, no teriam os livros comprados pelos conterrneos. Vestem-se deanacoretas ou ascetas. Sentem-se tentados pela realidade cruel que os assom-bra a cada dobrar de esquina e buscam, no entanto, a pureza artstica. Querema reencarnao, na obra literria que realizam a duras penas e poucas recom-pensas financeiras, de uma tica platnica (o bem, o bom, a luz...).

    O leitor estrangeiro, no seu radicalismo disciplinar, tende a comprar e ler em complemento obra exclusivamente poltica, s vezes de teor demaggico- a obra literria pura. Esta dramatiza os pequenos grandes dramas humanoscom rigor estilstico e delicadeza psicolgica. N o seu universalismo earistocratismo confessos, essa obra desprovida de qualquer vnculo originriocom a cultura onde brota. Transcende territrios geogrficos para se instalar naeternidade do trabalho artstico. U ma cumplicidade de sensibilidade e casta uneautor brasileiro e leitor estrangeiro pelo exerccio da leitura de livro totalmente

    comprometido com os valores fortes e tradicionais da literatura ocidental.Na obra de literatura pura brasileira est representado, sob a forma deespelho, o retrato de Dorian Gray. A estilizao literria no torna mais agudosos problemas da representao, antes os elidem num passe de mgica artstica. Ocompromisso com o Tempo, com maiscula, emascula os destemperos do tem-po, com minscula. A eternidade se faz escrita e a escrita literria se faz atemporal.

    Por desconhecer o seu outro - a poltica nacional -, o territrio especifi-camente literrio amplo e no tem fronteiras estilsticas nem barreiras ideo-lgicas. Escritores brasileiros e estrangeiros, leitores brasileiros e estrangeiros -

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    vivem todos numacomunidadede eleitos, onde domina a pureza dos princpiose valores artsticos. A obra de arte objeto de comoo e deleite por parte dosiniciados. Isso no mau para a literatura brasileira, uma literatura que se querto nossa contempornea e sofisticada quanto as demais literaturas desta partedo mundo a que pertencemos. Isso no mau para os escritores que, tendofeito a opo pelo hbrido, nunca se descuidam do eterno aprendizado doofcio literrio.

    Teremos chegado a um impasse? A um desencontro entre livro de boaqualidade brasileiro e leitor estrangeiro? Deveramos ficar cada um no seu can-to, j que idiossincrasias de um grupo contrastam com idiossincrasias do outrogrupo? N o acredito. Antes de tudo, para isso que existem esses encontrosculturais, onde territrios e bandeiras nacionais so colocados de lado, e noabandonados, a fim de que nos encaminhemos em direo ao entendimentoque se quer comum. Busca-se conhecer melhor uma forma de saber particular o saber literrio na sua forma brasileira -, para que funcione ao mesmo tempocomo a marca de que cada um de ns busca o conhecimento universal ao seperder a si para se reencontrar na linguagem e na experincia do Outro.

    No se trata de alocar aos participantes desse encontro na cidade de Boston que aqui esto para debater as singularidades das literaturas escritas em lngua

    portuguesa no se trata de alocar-nos, repito, o otimismo que os grupos domi-nantes destinam a eles por serem dominadores inquestionveis. Trata-se antesde ressaltar um otimismo p-de-boi, para usar a expresso popular. Um otimis-mo cansativo e suado, trpego e destemido, polmico, a ser construdo por ume pelo outro, por todos. Importa o processo precrio da construo da utopia. Oedifcio pronto, passvel de ser habitado, s existe na terra para os ricos e podero-sos e desde sempre no reino dos Cus para todos os humanos.

    Caso analisado o processo precrio de construo da utopia a que estamosnos referindo, verificar-se- que ele no to diferente do processo de cons-

    truo da obra literria que vimos classificando de anfbia, ou hbrida.No h como no se autoclassificar de visionrio se voc escritor num

    pas como o Brasil. Visionrio significa que voc tem vises - no caso literriase polticas , que significam que a situao socioeconmica e educacional dopas no ser para sempre a mesma. Ela pode e vai melhorar.

    O escritor brasileiro tem a viso da Arte como forma de conhecimento,to legtima quanto as formas de conhecimento de que se sentem nicas possui-doras as cincias exatas e as cincias sociais e humanas. Ele tem tambm a

    viso da Poltica como exerccio da arte que busca o bom e o justo governo dos

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    povos, dela dissociando a demagogia dos governantes, o populismo dos lde-res carismticos e a fora militar dos que buscam a ordem a ferro e fogo.

    Arte e Poltica se do as mos na Literatura brasileira para dizer queeducao, como nos alertou Ansio Teixeira nos idos de 1957 (ano em queentrei para a Universidade Federal de Minas Gerais), no privilgio. Vale apena rel-lo nesta ocasio:

    Quando, na Conveno Francesa, se formulou o ideal de uma educa-o escolar para todos os cidados, no se pensava tanto em universalizara escola existente, mas em uma nova concepo de sociedade em queprivilgios de classe, de dinheiro e de herana no existissem, e o indiv-duo pudesse buscar pela escola a sua posio na vida social.

    Caso a educao no tivesse sido privilgio de poucos desde os temposcoloniais, talvez tivssemos podido escrever de outra maneira o panorama daLiteratura brasileira contempornea. Talvez o legtimo no tivesse tido neces-sidade de buscar o esprio para que este, por seu turno, se tornasse legtimo.

    Talvez pudssemos nos ater apenas a dois princpios da esttica: o livro deliteratura existe ut delectete ut moveat(para deleitar e comover). Pudssemosnos ater a esses dois princpios, e deixar de lado um terceiro princpio: ut doceat(para ensinar).

    esta, e no outra, a maneira como nos toca narrar-lhes neste dia pri-maveril o panorama da literatura brasileira contempornea.

    Silviano Santiago Ensasta e Escritor

    Nota

    *Trabalho lido no dia 19 de abril de 2002, na John F. Kennedy Library (Boston),por ocasio da homenagem prestada ao Prmio N obel Jos Saramago (Tribute

    to Jos Saramago).

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    ResumoNo Brasil, a literatura um campo em que a esttica - seu componente cosmopolita - inseparvel da poltica - seu componente nacional. A natureza hbrida, ou anfbiada literatura brasileira contempornea pode ter como efeito a alienao dos leitores

    tanto no Brasil quanto no estrangeiro. Para os escritores-literrios, a fico constituisimultaneamente a produo e a disseminao de conhecimento, atravs de princpiostomados vanguarda. Este projeto duplo s consumido por alguns poucos no Brasil,em virtude da alta taxa de analfabetismo. Programas de entrevista na televiso muitasvezes substituem a leitura. O duplo projeto tambm encontra poucos entusiastas noestrangeiro, j que os leitores do Primeiro mundo tendem a privilegiar os textosexportados que denunciam as injustias sociais atravs do uso de uma retricasentimental, muitas vezes demaggica.

    Palavras-chave

    Literatura e poltica, literatura brasileira contempornea, retrica sentimental edemaggica.

    AbstractIn Brazil, literary art is a realm in which esthetics - its cosmopolitan component - isinseparable from politics - its local component. This mixed, or amphibious, natureof contemporary Brazilian literature can have the effect of alienating readers bothdomestically and abroad. For literary artists, fiction constitutes simultaneously theproduction and dissemination of knowledge. This dual project is only partially attainedin Brazil, where book shows on television have in many instances replaced reading,and internationally, where foreign readers have tended to prefer texts produced forexport by lesser Brazilian writers, who denounce social injustice through the use ofshocking rhetoric. This presentation addresses the difficulties that writers face in theirutopian quest to explore the liberating aspects of art and politics in a country and ina region in which economic inequality, violence and social alienation are definingtraits of the social order.

    Key-wordsLiterary and politics, contemporary Brazilian literature, shocking rhetoric.