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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS MICHELLE CERQUEIRA CÉSAR TAMBOSI UMA LEITURA ECOCRÍTICA DE A MAÇÃ NO ESCURO MARINGÁ/PR 2017

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

MICHELLE CERQUEIRA CÉSAR TAMBOSI

UMA LEITURA ECOCRÍTICA DE A MAÇÃ NO ESCURO

MARINGÁ/PR

2017

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MICHELLE CERQUEIRA CÉSAR TAMBOSI

UMA LEITURA ECOCRÍTICA DE A MAÇÃ NO ESCURO

Dissertação apresentada à Universidade Estadual

de Maringá, como requisito parcial para

obtenção do título de Mestre em Letras, área de

concentração: Estudos Literários.

Orientadora:

Profª. Drª. Evely Vânia Libanori

MARINGÁ/PR

2017

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Biblioteca Central - UEM, Maringá, PR, Brasil)

Mariza Nogami

CRB 9/1569

Tambosi, Michelle Cerqueira César

T155u Uma leitura ecocrítica de A maçã no escuro /

Michelle Cerqueira César Tambosi. -- Maringá, 2017.

128 f.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Evely Vânia Libanori.

Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de

Maringá, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes,

Programa de Pós-Graduação em Letras, 2017.

1. Lispector, Clarice, 1925-1977 - A maçã no

escuro - Ecocrítica. 2. Lispector, Clarice, 1925-

1977 - Ecofeminismo. 3. Lispector, Clarice, 1925-

1977 - Ética animal. I. Libanori, Evely Vânia,

orient. II. Universidade Estadual de Maringá. Centro

de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de

Pós-Graduação em Letras. III. Título.

CDD 23.ed. 801.95

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Para minha mãe, quem primeiro me ensinou a questionar e desobedecer.

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AGRADECIMENTOS

À Profª Drª Evely Vânia Libanori, pela confiança e os ensinamentos.

À Profª Drª Alba Krishna Topan Feldman por todas as poesias, as descobertas e a amizade.

À Profª Drª Zélia Monteiro Bora, a quem muito admiro, e que mesmo em carreira internacional

aceitou o convite para a minha banca, é uma honra professora!

À Profª Drª Clarice Zamonaro Cortez, por todo o zêlo, dedicação e interesse que nos dedica. O

seu amor pela literatura é também uma pedagogia ecofeminista.

Ao Profº Drº Wesley Cândido, por enegrecer o departamento de Letras da UEM e trazer

memória aos nossos estudos.

À Profª Drª Alice Áurea Penteado Martha, pelas inspirações.

À Profª Draª Luzia A. Berloffa Tofalini, pelo lirismo e as reflexões.

Ao Profº Drº Marciano Lopes, por ser quem ele era.

À Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pelo apoio

financeiro recebido, sem o qual eu não conseguiria ter feito esse mestrado.

E a todas e todos amigos e amigas do mestrado.

À Maria Julia Werneck, Maria, Majulia, Meidju, Maju, pela irmandade.

À Ana Lúcia, por todas as conversas e risadas que me ajudaram a entender isso daqui.

À Lani, por esse sorriso que eu sorrio agora só de escrever seu nome no papel. Por nós.

Aos meus amigos Gabriela, Maia, Nena, Camis, Thiago, André, Guilherme, Kélvia e Juliana,

amores amados

E à minha família, desde a bisa Enir, à todas as mulheres que vieram depois dela. À força da

minha vó, ao amor da minha tia Mariza, à sensibilidade da minha mãe, à ludicidade da minha

tia Gisele, à grandeza da minha irmã Juliana, à alegria da minha prima Aline, à humildade da

minha prima Thaiana, à inocência do meu irmão Caique, à paciência do Vinicius, às aventuras

do Arthur, à inteligência da Lua Clara, à resistência da Cléo, à criatividade do Gabriel e à

coragem da Betânia.

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“As maiores batalhas já travadas pela humanidade foram contra

obstáculos e prejuízos artificiais que ela própria se impôs e que

paralisam seu desenvolvimento. O pensamento humano sempre foi

falseado pelas tradições, pelos costumes, pela educação enganadora e

iníqua, dispensada para servir os interesses daqueles que detêm o poder

e gozam de privilégios; ou seja, pelo Estado e pelas classes proprietárias.

Esse conflito incessante dominou a história da humanidade” (Emma

Goldman em “O indivíduo, a sociedade e o Estado”).

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RESUMO

Essa dissertação tem como objetivo principal fazer uma análise ecocrítica de A maçã no escuro,

de Clarice Lispector. Especificamente, busca-se identificar, interpretar e discutir as

representações ecossistêmicas no corpus, a partir da interação entre os seres humanos, os

animais e o meio ambiente. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica de embasamento crítico

literário. Os principais aportes teóricos utilizados são a ecocrítica, o ecofeminismo e a ética

animal. A modalidade de análise ecocrítica estuda a relação entre a literatura e o meio ambiente.

A filosofia ecofeminista estuda a conexão entre diferentes formas de opressão, como a

exploração da natureza, das mulheres e de outras minorias sociais, a qual foi utilizada para

fundamentar a análise da relação entre as representações da natureza como um todo, da

humanidade e dos animais no romance de Clarice. E por fim, a ética animal foi desenvolvida,

nessa dissertação, em diálogo com a teoria ecofeminista de modo a aprofundar o entendimento

ético sobre os animais, presente no corpus. Essa pesquisa se justifica pela relevância dos estudos

ecológicos no contexto de crise ambiental e social contemporânea, bem como pela ampliação

das abordagens interpretativas ao texto de Clarice. O resultado dessa dissertação aponta que A

maçã no escuro subverte a representação de diferentes elementos naturais que antes

compunham o espaço narrativo, conferindo-lhes autonomia em relação às personagens

humanas. Além disso, o romance reconcebe o valor intrínseco de todas as formas de vida, e

tematiza a cultura em termos de ecologia humana.

PALAVRAS-CHAVE: Clarice Lispector. A maçã no escuro. Ecocrítica. Ecofeminismo. Ética

animal.

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ABSTRACT

This study aims to conduct an ecocritical analysis of A maçã no escuro, written by Clarice

Lispector. Specifically, the goal is to identify, interpret and discuss the ecosystemic

representations in the corpus from the interaction among humans, animals and the environment.

This is a bibliographical research based on literary criticism. The main theoretical contributions

used are ecocriticism, ecofeminism and animal ethics. The ecocritical analysis studies the

relationship between literature and the environment. The ecofeminist philosophy studies the

connection among different forms of oppression, such as the exploitation of nature, women and

other social minorities, which were used to ground the analysis of the relationship among the

representations of nature as a whole, of humanity and animals in Clarice’s novel. Finally, the

animal ethics was developed, in this dissertation, in dialogue with ecofeminist theory in order

to deepen the ethical understanding of animals, present in the corpus. This research is justified

by the relevance of ecological studies in the context of contemporary environmental and social

crisis, as well as by the extension of the interpretative approaches to the text of Clarice. The

result of this dissertation indicates that A maçã no escuro subverts the representation of different

natural elements that before composed the narrative space, granting them autonomy in relation

to the human characters. In addition to that, it reconcepts the intrinsic value of all life forms,

and thematizes the culture in terms of human ecology.

KEYWORDS: Clarice Lispector. A maçã no escuro. Ecocriticism. Ecofeminism. Animal

ethics.

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SUMÁRIO

PRIMEIRAS PALAVRAS .............................................................................................. 11

1 ECOCRÍTICA .............................................................................................................. 19

1.1 LITERATURA E MEIO AMBIENTE ....................................................................... 21

1.2 CAMINHOS ECOCRÍTICOS .................................................................................... 23

1.3 COMPREENSÕES HISTÓRICAS DA CRISE AMBIENTAL ................................. 26

2 ECOFEMINISMO ........................................................................................................ 30

2.1 FEMINISMO E O DOMÍNIO DA NATUREZA ........................................................... 32

2.2 O PENSAMENTO DUALISTA .................................................................................. 34

2.3 A TRADIÇÃO RACIONALISTA DE PLATÃO ........................................................ 39

2.4 O PENSAMENTO DE DESCARTES .......................................................................... 42

2.5 CAMINHOS ECOFEMINISTAS ................................................................................. 46

3 O MEIO AMBIENTE E A PERSONAGEM HUMANA ........................................... 49

3.1 SUPERAÇÃO DE DUALISMOS ................................................................................ 50

3.2 PRESENTIFICAÇÃO E CONSCIÊNCIA ANIMAL ................................................... 61

4 SOBRE OS ANIMAIS ................................................................................................... 75

4.1 RESUMO HISTÓRICO DE UMA TRADIÇÃO .......................................................... 75

4.2 PRINCÍPIOS ÉTICO ANIMALISTAS ......................................................................... 82

4.3 ÉTICA ECOFEMINISTA COMO RESPOSTA À ÉTICA ANIMAL ........................... 87

4.4 SOBRE FELINOS, SAPOS, RATOS, MOSCAS E OUTROS BICHOS ..................... 91

4.4.1 SOBRE HUMANOS E VACAS ................................................................................ 95

5 A ESPÉCIE HUMANA EM PERSPECTIVA ............................................................. 105

5.1 ECOLOGIA HUMANA E ECOLOGIA AMBIENTAL EM INTERSECÇÃO .......... 105

5.2 CLASSE, GÊNERO E RAÇA ...................................................................................... 116

CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................... 123

REFERÊNCIAS ................................................................................................................. 126

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PRIMEIRAS PALAVRAS

A pernambucana1 Clarice Lispector publicou seu primeiro romance, Perto do coração

selvagem, aos 18 anos, em 1944. O romance, recebido como inovador para os padrões do

gênero, ganhou o prêmio Graça Aranha daquele ano. No entanto, foi somente a partir do livro

de contos Laços de família, publicado em 1960, que Clarice foi amplamente reconhecida como

escritora no Brasil. Criadora de vasta obra, escreveu no total 8 romances, uma novela, 6 livros

de contos, 5 livros infantis, 5 livros de crônicas, traduções e outros escritos, como cartas e

entrevistas. A novela, A hora da estrela, publicada em 1977, foi adaptada para o cinema em

1985 pela direção de Suzana Amaral, e conta com a atuação de Fernanda Montenegro, Marcélia

Cartaxo e José Dumont. Também alguns de seus contos foram roteirizados para o cinema e o

teatro.

Conforme exposto por Alfredo Bosi, em História concisa da Literatura Brasileira

(2013), as experimentações estéticas impulsionadas pelo movimento modernista abriram o

caminho que desembocou na transformação do romance psicológico convencional, em romance

intimista, que culminou no Brasil, no fazer literário de Clarice2. Sua escrita se destaca pela

priorização do mundo subjetivo, sendo este elevado a um grau de abstração antes não conhecido

em nossa literatura. Clarice e o escritor João Guimarães Rosa foram considerados por Bosi,

(2013), os principais romancistas responsáveis pela revolução estilística da narrativa nacional,

a partir da década de 1930.

Reconhecida pela inventividade de sua escrita, a revolução do estilo de Clarice é

principalmente associada à forma do texto literário. Antônio Candido (1977), no artigo No raiar

de Clarice Lispector, acerca do primeiro livro da autora, publicado em 1944, afirma que ela foi

a responsável pelo aprofundamento da expressão literária do início do século XX. A

transformação da linguagem operada pela autora é explicada pelo escritor e crítico literário

Assis Brasil, em seu ensaio Clarice Lispector: “morre a narrativa, como narrativa “relatada””

(1969, p. 50), e a linguagem da prosa deixa de ser apenas um veículo para contar algo, ganhando

em sua função expressiva. Bem como explica Bosi (2013), o mundo subjetivo é incorporado ao

aspecto formal, de forma que “o fluxo psíquico [...] [é] trabalhado em termos de pesquisa no

universo da linguagem” (p. 414). Perdendo sua especificidade descritiva, ultrapassam-se os

1 Assim se declarava Clarice, que nasceu na Ucrânia, mas veio para o Brasil ainda bebê. Aqui chegou em Maceió,

Alagoas, mas mudou-se pouco tempo depois para Recife, onde foi criada e viveu até os doze anos de idade. 2 O autor também cita, “Maria Alice Barroso, Geraldo Ferraz, Louzada Filho e Osman Lins, que percorrem o

caminho da experiência formal” (BOSI, 2013, p. 415), avaliando-os, no entanto, como experimentadores menos

radicais.

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limites então estabelecidos do gênero romanesco, e à narrativa interpõe-se a forma de dizer da

poesia: Clarice inaugurava, no Brasil, o que hoje é denominado romance lírico3.

A tônica que dá o caráter experimental à literatura de Clarice é a motivação de um

“pensamento filosófico indagador” (BRASIL, 1969, p. 27), que perpetua uma movimentação

formal, também porque, a linguagem faz parte do que procura: o sentido do ser, da existência.

Essa busca orienta tanto o percurso da forma, quanto do conteúdo, de uma obra a outra, sendo

constantes de sua narrativa: “o uso intensivo da metáfora insólita [pois o que busca exprimir

beira o indizível], a entrega ao fluxo de consciência [que está todo nessa busca], [e] a ruptura

com o enredo factual [importando antes as perguntas do que os fatos]” (BOSI, 2013, p. 452).

Nos primeiros romances essa ruptura só se dá em partes, ainda que o primeiro já apresentasse

para Candido uma “tensão psicológica poucas vezes alcançadas em nossa literatura

contemporânea” (CANDIDO, 1977, p. 4). Conforme seu pensamento e sua escrita

amadurecem, e seu “estilo ensaístico” (BOSI, 2013, p. 454) se aprimora, a autora alcança ampla

liricização de sua prosa que já não existe (se não) por um (mínimo) enredo, mas por um contínuo

pensamento que se persegue e se revela.

A presença de animais também é uma constante na literatura de Clarice que investiga

sobre a identidade dos seres humanos e de outros animais, e a relação entre eles. Os animais

estão presentes nas obras como personagens, e muitas vezes, como temática principal. A autora

possui livros de contos e crônicas exclusivamente sobre os animais, dentre os quais a espécie

humana está incluída, de modo ambos compartilham espaços físicos e sentimentais. Em A

paixão segundo G. H., de 1964, situado no campo dos estudos literários brasileiros como a obra

mais emblemática da autora, e considerada divisor de águas do gênero romance no Brasil, a

personagem principal pensa sua existência e a de uma barata, sendo partir da comparação entre

as identidades existenciais e biológicas de ambas, que o conflito se dá.

A literatura infantil de Clarice é toda composta por personagens animais, e a relação

ética entre esses e os humanos é tematizada explicitamente pela autora nas obras O mistério do

coelho pensante, de 1967 e A mulher que matou os peixes, de 1968. Na primeira, a personagem

principal é o coelho Joãozinho, que foge constantemente de sua gaiola por tomar gosto pela

liberdade. Na segunda, a narradora pede desculpas a toda humanidade pelo assassinato dos

peixes, bem como inscreve pequenas narrativas de gatos, ratos, lagartixas, macacos e outros

animais. Em A vida íntima de Laura, de 1974, a personagem principal é a galinha Laura, que

disserta sobre a intimidade dos humanos e sobre a morte. E em Quase de verdade, de 1978, o

3 Para uma introdução ao romance lírico ver: TOFALINI, Luzia A. Berloffa. Romance Lírico: o processo de

liricização do romance de Raul Brandão. Maringá: Eduem, 2013.

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eu narrador é o cachorro Ulisses, que conta a história dele e de sua dona Clarice. Posteriormente,

em 1987, a autora publica Como nasceram as estrelas: doze lendas brasileiras, na qual reescreve

doze lendas tradicionais da nossa literatura popular, dentre as quais, diversas contam com a

presença de animais.

Escolhida como corpus dessa dissertação, a obra A maçã no escuro, quarto romance da

autora, publicado em 1961, já contém os fundamentos da literatura mais tardia de Clarice. Se o

romance posterior, A paixão segundo G. H., apresenta as variantes temáticas constantes no

conjunto de sua literatura – o sentido do ser e da vida, a identidade humana e animal – no estilo

mais ensaístico, atribuído posteriormente à autora, A maçã no escuro, além de um intenso

trabalho poético conferido ao discurso narrativo, também conta com uma flexibilização dos

limites das categorias narrativas, principalmente de narrador e personagem. Em O drama da

linguagem: Uma leitura de Clarice Lispector, o filósofo e crítico literário Benedito Nunes

explica esse processo de fusão entre as duas categorias: “A romancista [...] não se suprime como

instância externa da narração. Mas também percebe e sente com a personagem” (1973, p.10).

Inserindo-se no texto, a romancista se funde com a narradora, que por sua vez, se funde com a

personagem.

A escolha do corpus partiu da identificação de uma presença significativa da natureza

no romance, a temática de relações entre diferentes ecossistemas: da humanidade entre si, com

os animais, e com o ambiente físico. A maçã no escuro (1999) narra a história de Martim, um

homem que está fugindo por ter cometido um crime. Depois de se refugiar por duas semanas

em um hotel antigo, afastado por 50 km da nova estrada principal, Martim foge mata adentro,

“no coração do Brasil” (LISPECTOR, 2013, p. 20). Após dois dias de caminhada no campo, a

personagem encontra a fazenda de Vitória, na qual consegue abrigo em troca de trabalho. Desse

modo, a narrativa se passa inteiramente no ambiente rural, o que propicia a presença acentuada

da natureza no romance. Uma vez inserido de forma tão profunda na natureza, Martim passa a

ter contato com uma realidade antes inexistente para ele, e que contribui no reconhecimento de

sua identidade existencial, fator mais importante no conjunto da obra de Clarice, ao qual,

também, o enredo de A maçã no escuro se presta. Em meio aos fatos narrados, a narração se

divide entre as abstrações da interioridade de algumas personagens, e o mundo real exterior, o

ambiente natural.

A aproximação entre natureza e literatura, bem como o entendimento da literatura como

parte da ecologia e em participação com o meio ambiente, foi inicialmente teorizada pelo

professor e crítico literário William Rueckert, em 1978, no ensaio “Literature and Ecology: an

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Experiment in Ecocriticism”4, em que funda a modalidade de análise literária chamada

Ecocrítica. Em The ecocriticism reader: Landmarks in literary ecology5 (1996), a professora

Cheryll Glotfelty caracteriza a Ecocrítica como o estudo da relação entre literatura e o ambiente

físico. Segundo Glotfelty (1996), a Ecocrítica, bem como toda crítica ecológica, parte da mesma

ideia inicial e fundamental de que a cultura humana é conectada ao mundo físico, em uma

relação de influência mútua. Assim, conforme explicação da autora, as interconexões entre a

natureza e a cultura, mais especificamente os artefatos culturais como língua e literatura,

constituem a principal temática da Ecocrítica.

Cherryl Glotfelty (1996) indica a década de 1970 como o período no qual estudiosos da

literatura começaram a desenvolver crítica e teoria de formação ecológica. Foi principalmente

o indício de uma crise ambiental mundial que propiciou o aparecimento de estudos preocupados

com o futuro da existência e a diversidade do ambiente natural, nas mais diversas áreas das

humanidades. Segundo Glotfelty, “a maioria dos trabalhos ecocríticos compartilham uma

motivação em comum: a consciência preocupante de que atingimos a era dos limites

ambientais”6 (1996, p. xx)7. A autora explica que os problemas ambientais atuais são um

produto da cultura e cita o historiador Donald Worster, segundo o qual a humanidade vive uma

crise global por conta do funcionamento dos sistemas éticos humanos e não por conta do próprio

funcionamento dos ecossistemas. Nesse sentido, a filósofa brasileira Sônia T. Felipe

compreende a implicação dos modos de vida humanos na crise ambiental, sintetizando-a em

seu aspecto mais alarmante:

Estamos mais próximos da morte total do que jamais o estiveram nossos

antepassados. Refiro-me à morte de todas as espécies vivas, ameaçadas pela

violência de nosso modo atual de viver, produzir, consumir e descartar (2014,

p.119).

Para a filósofa, o sistema de produção capitalista, no qual a ordem é produzir, consumir

e descartar (para então reiniciar o ciclo) é o responsável pela iminência de morte de todas as

formas de vida. Por ser um sistema que tem como base a exploração, ele se sustenta desse

constante saqueamento da natureza, inclusive humana, que tem destruído todo tipo de

diversidade natural.

4 “Literatura e Ecologia: Um experimento em ecocrítica”. 5 O leitor ecocrítico: Marcos em ecologia literária. 6 Todas as traduções das obras em língua inglesa são da autora da dissertação. 7 “Most ecocritical work shares a common motivation: the troubling awareness that we have reached the age of

environmental limits”.

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Na introdução ao campo da ecocrítica atual, Ecocrítica (2006), Greg Garrard demonstra

a relação prática entre literatura e meio ambiente ao comentar o início do ambientalismo

moderno, surgido a partir do texto literário “Uma fábula para o amanhã”, presente na obra Silent

Spring (1962), de Rachel Carson. De acordo com Garrard (2006), contendo uma quantidade

significativa de dados científicos que denunciavam a ameaça de poluentes químicos para a

natureza, o texto de Carson proporcionou uma conscientização da população americana a

respeito dessas substâncias tóxicas, ocasionando, inclusive, modificações nas leis que se

referiam a seu uso. Como elucida o autor, declarações ambientalistas como a de Carson

desempenham contribuições de extrema importância para a cultura moderna. Por isso, a

ecocrítica “é uma modalidade de análise confessadamente política [...] [que] se relaciona de

perto com desdobramentos de orientação ambientalista na filosofia e na teoria política”

(GARRARD, 2006, p. 14).

Com a mesma postura marcada de Garrard, o filósofo e crítico literário Terry Eagleton,

em Teoria da Literatura: Uma introdução (2001), afirma a coerência de um posicionamento

ideológico por parte da crítica literária. Após fazer um traçado histórico da teoria literária, desde

os primeiros estudos ingleses no século XVIII, passando pela fenomenologia, a hermenêutica,

a teoria da recepção, o estruturalismo, a semiótica, o pós-estruturalismo e a psicanálise,

Eagleton conclui que as teorias literárias são, e sempre foram, todas políticas, e que

[...] não devem ser censuradas por isso, mas sim por serem, em seu conjunto,

disfarçada ou inconscientemente políticas; devem ser criticadas pela cegueira

com que oferecem como verdades supostamente “técnicas”, “autoevidentes”,

“científicas” ou “universais” doutrinas que um pouco de reflexão nos mostrará

estarem relacionadas com, e reforçarem, os interesses específicos de grupos

específicos de pessoas, em momentos específicos (EAGLETON, 2001, p.

268).

Para Eagleton (2001), a ideia de que existem formas “apolíticas” de se fazer crítica

literária é um mito, sendo essas formas, na realidade, uma outra forma de política. Entre a

escolha de uma forma ou outra, o autor afirma: “Não há como dizer qual a política preferível,

em termos de crítica literária. Temos, simplesmente de discutir política” (EAGLETON, 2001,

p. 287).

A fim de fornecer subsídio teórico para a abordagem literária ecocrítica, Greg Garrard

(2006) estuda distintas posturas políticas e filosóficas que se dedicam à questão ambiental.

Dentre elas, o ecofeminismo, iniciado a partir do movimento Chipko, na Índia, nos anos 1970,

um movimento social independente de mulheres, pela proteção das florestas, da qual obtinham

seus principais meios de subsistência. Chipko significa abraço e reflete uma das ações do

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movimento, em que as participantes (maioria mulheres) abraçavam as árvores ameaçadas pelos

madeireiros. Como teoria filosófica, o ecofeminismo se fundamenta na conexão entre a

exploração da natureza, a opressão das mulheres e outras formas de dominação. Conforme

explica Greta Gaard, em Ecofeminism: Women, animals, nature, da série Ethics and Action,

editada por Tom Regan,

a maneira como as mulheres e a natureza tem sido conceitualizadas

historicamente na tradição intelectual ocidental resultou na desvalorização de

tudo o que é associado às mulheres, à emoção, aos animais, à natureza e ao

corpo, ao mesmo tempo em que elevou o valor das coisas associadas aos

homens, à razão, aos humanos, à cultura e à mente (GAARD, 1993, p. 5).

Além disso, Gaard e Patrick Murphy, em Ecofeminist literary criticism: Theory,

interpretation, pedagogy8 (1998), também responsabilizam o sistema econômico capitalista

global, junto às sociedades patriarcais, pela degradação ambiental.

Diante do exposto acima, a presente dissertação tem como objetivo geral fazer uma

análise ecocrítica da obra A maçã no escuro, de Clarice Lispector. Trata-se de uma pesquisa

teórico-bibliográfica de embasamento crítico-literário. Os objetivos específicos desse trabalho

são identificar, interpretar e discutir as representações da natureza, dos animais e da

humanidade no discurso narrativo do corpus. Para tanto, utilizaremos a filosofia ecofeminista,

uma vez que o Ecofeminismo não estuda a ecologia ambiental isoladamente, mas em relação

com a sociedade humana, a partir de uma perspectiva feminista, de modo que nossa análise

literária, como uma análise ecocrítica, enfocará não apenas as relações ecossistêmicas entre a

humanidade e o mundo natural, mas também entre a própria cultura humana, parte desse

mundo. Buscaremos responder com a análise qual construção simbólica de natureza,

animalidade e humanidade está presente no discurso narrativo de A maçã no escuro.

Para o embasamento teórico ecofeminista, utilizaremos, principalmente, a obra Feminism and

the mastery of nature9 (2003), da australiana Val Plumwood, (2003) na qual a filósofa aponta a

identidade humana separada da natureza como a construção que dá base para a lógica dual, na

qual está assentada a cultura ocidental de exploração da natureza.

A fim de aprofundar as questões levantadas pela interpretação do texto no que se refere

aos animais não humanos, bem como contextualizar o desenvolvimento dos estudos ambientais

pré-ecofeministas, utilizaremos também a corrente filosófica denominada Ética animal. A

filosofia ético animalista será estudada a partir dos escritos do filósofo Peter Singer, um de seus

8Crítica literária ecofeminista: Teoria, interpretação, pedagogia. 9 Feminismo e o domínio da natureza.

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principais representantes, autor da obra Animal Liberation, de 1975, marco na filosofia ética

contemporânea implicada com os animais. A partir do diálogo entre as teorias referidas

buscaremos compreender a representação dos animais no tecido narrativo, bem como a relação

identitária desses com a humanidade.

Pensando essa dissertação como fonte bibliográfica para futuros pesquisadores, que

poderão se utilizar de nosso trabalho, concretizando, assim, uma de suas finalidades, incluímos

também uma breve historicização das principais teorias estudadas: a Ecocrítica, o

Ecofeminismo e a Ética Animal.

Essa pesquisa se justifica, primeiramente, pela relevância de estudos ambientais em

contexto de crise ecológica. Justifica-se, também, pela afirmação da modalidade de análise

ecocrítica no Brasil10, uma vez que se trata de um campo relativamente novo e em crescimento

no país e que enriquece a área da teoria literária brasileira. Também se justifica pela expansão

dos estudos literários sobre Clarice Lispector. Embora cristalizado em pesquisas de temática

filosófica, principalmente, existencialista, o conjunto da obra de Clarice demonstra a amplitude

de temáticas subjacentes a seu fazer literário. Crescem atualmente os estudos de suas obras por

meio de abordagens sociológicas/culturais e ecológicas. Sobre a presença dos animais na

literatura de Clarice, verificam-se dissertações e teses, como Sobre baratas, cães, galinhas e

macacos: Um estudo dos animais em Clarice Lispector11, de Maiara Usai Jardim, 2015, uma

dissertação de análise ecocrítica que faz um apanhado geral da presença dos animais em

diferentes textos literários da autora, e uma importante pesquisa feita pelo escritor e crítico

literário Silviano Santiago, chamada Bestirário12, referente a representação dos animais em

textos curtos da escritora. Entretanto, o restante da natureza ainda não foi estudada no conjunto

da obra de Clarice. Sobre A maçã no escuro, em pesquisa feita no banco de teses e dissertações

da CAPES e no Google acadêmico, não verificamos nenhum estudo ecocrítico sobre o romance,

nem mesmo, sobre a presença dos animais nele. As pesquisas encontradas sobre o corpus se

referem em suma à experiência da linguagem e às questões existencialistas e temporais da

narrativa. Nem mesmo na obra já citada, de Benedito Nunes, na qual o autor dedica um capítulo

inteiro para a análise de A maçã no escuro, a natureza recebe algum destaque como parte

10 Em 2012, aconteceu o I Congresso Internacional de Literatura e Ecocrítica no Brasil, em João Pessoa, Paraíba.

O congresso ocorre de 2 e em 2 anos na cidade. Em 2017, estudiosas e estudiosos brasileiros de norte a sul do país

estão articulando a participação brasileira na ASLE, a “Associação para o estudo de Literatura e Meio ambiente”,

criada nos Estados Unidos, mas espalhada por diversos países, como Alemanha e Japão. 11 Dissertação desenvolvida no Departamento de Letras da Universidade Estadual de Maringá, Paraná. 12 O artigo faz parte da edição Clarice Lispector dos Cadernos de Literatura Brasileira, organizada pelo Instituto

Moreira Salles, Edição especial, número 17 e 18, dezembro de 2004.

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fundamental do romance, sendo mencionada uma única vez, de forma antropocêntrica,

enquanto reflexo para os sentimentos das personagens humanas13.

Para desenvolver a análise ecocrítica do corpus satisfatoriamente, no primeiro capítulo,

apresentaremos o suporte teórico escolhido para esse trabalho. Nesse capítulo trataremos da

Ecocrítica: seu surgimento pelas primeiras associações entre literatura e meio ambiente e sua

posterior relação com o Ecofeminismo. Ainda nesse capítulo, traremos um breve resumo

histórico da crise ambiental, por meio de dois historiadores naturais. No segundo capítulo,

apresentaremos a filosofia ecofeminista, sistematizadas pela filósofa Val Plumwood, abarcando

desde o conceito de dualismo, crucial no pensamento da autora, até o desenvolvimento histórico

e filosófico do entendimento de natureza. No terceiro, faremos uma análise ecocrítica da

primeira parte da narrativa, focalizando a relação entre a humanidade e o ambiente natural, a

partir de uma leitura interpretativa, fundamentada pela filosofia ecofeminista. No quarto

capítulo, primeiramente, apresentaremos a filosofia ético animalista de Peter Singer.

Posteriormente, apresentaremos as considerações ecofeministas sobre a Ética animal. Então,

partiremos de ambas as filosofias para analisarmos a representação dos animais, bem como a

relação entre os humanos e eles no corpus. Por fim, no quinto capítulo, abordaremos a ecologia

humana sob a luz da ecosofia de Félix Guattari e analisaremos as categorias de classe, gênero

e raça, cumprindo assim a análise da intersecção entre as principais categorias de opressão

abarcadas pelo ecofeminismo.

13 Transcrevemos o trecho em questão: elementos exteriores da paisagem simbolicamente interiorizados [...]

formam o contorno alegórico de estados da alma” (NUNES, 1973, p. 42).

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1 ECOCRÍTICA

“A gestação do novo, na história, dá-se,

frequentemente, de modo quase imperceptível

para os contemporâneos, já que suas sementes

começam a se impor quando ainda o velho é

quantitativamente dominante. É exatamente por

isso que a “qualidade” do novo pode passar

despercebida. Mas a história se caracteriza como

uma sucessão ininterrupta de épocas. Essa ideia

de movimento e mudança é inerente à evolução da

humanidade. É dessa forma que os períodos

nascem, amadurecem e morrem” (Milton Santos).

Na coletânea de textos sobre a modalidade de análise denominada ecocrítica, The

ecocriticism reader: Landmarks in literary ecology14, publicada em 1996, nos Estados Unidos,

os editores Cheryll Glotfelty e Harold Fromm, tratam, em sua introdução, da inserção da

perspectiva ecológica no panorama dos estudos literários contemporâneos. Cheryll Glotfelty

(1996) parte de um guia oficial dos estudos literários contemporâneos, Redrawing the

boundaries: The transformation of English and american literary studies15, de 1992, publicado

pela MLA: Modern Language Association16, para discutir a ausência de uma abordagem

ambiental nos 21 textos que compõem o manual, visto que, seus editores se propõem a debater

as principais questões em que a academia responde às pressões contemporâneas. Para Glotfelty

(1996), ignorar a crise global ambiental, considerada pela autora a maior pressão de nosso

tempo, demonstra a inconsciência própria do academicismo no que se refere ao mundo natural.

Para contextualizar a discrepância entre a falta de preocupação da área dos estudos literários e

o cenário ambiental, a autora cita alguns dos graves problemas relativos ao meio ambiente,

encontrados nos jornais do período:

Derramamento de óleo, intoxicação por chumbo e amianto, contaminação por

resíduos tóxicos, extinção de espécies a uma taxa sem precedentes, combates

pelo uso de terra pública, protestos sobre lixões de resíduos nucleares, um

buraco crescente na camada de ozônio, previsões do aquecimento global,

chuva ácida, perda de solo superficial, destruição da floresta tropical, [...]

aquíferos sobrecarregados no Oeste, descargas ilegais no Leste [ambos dos

14 O leitor ecocrítico: Marcos em ecologia literária. 15 Redesenhando os limites: a transformação dos estudos literários ingleses e americanos. 16 Associação de Língua Moderna, tradução nossa. Fundada em 1883, a MLA é a principal associação americana

responsável pela publicação na área de estudo e ensino em Língua e literatura. Disponível em:

<https://www.mla.org/About-Us>. Acesso em: 5 de março de 2016.

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Estados Unidos], desastre de um reator nuclear em Chernobyl, novas normas

de emissões de automóveis, fome, secas, inundações, furacões [...] e uma

população mundial que superou os cinco bilhões (GLOTFELTY, 1996, p.

xvi17).

De acordo com Glotfelty (1996), enquanto outras disciplinas das humanidades, como

história, filosofia, sociologia e direito, tratavam de estreitar sua relação com as questões

ecológicas desde a década de 1970, as aproximações entre literatura e ecologia permaneceram

separadas em estudos individuais, encontrando uma comunidade literária organizada apenas a

partir da década de 1990. Em 1991, a MLA publica Ecocriticism: The greening of literary

studies18, pela organização de Harold Fromm, em 1992, é criada a ASLE: Association for the

Study of Literature and Environment19 e, em 1993, Patrick Murphy dá início a um novo

periódico, ISLE: Interdisicplinary Studies in Literature and Environment20, consolidando,

enfim, a ecocrítica como uma escola crítica reconhecida.

Respondendo de forma elementar ao conceito de ecocrítica, Glotfelty a define como

o estudo da relação entre literatura e o ambiente físico. Assim como a crítica

feminista examina língua e literatura a partir de uma perspectiva consciente

de gênero, e a crítica marxista traz para sua interpretação dos textos uma

consciência dos modos de produção e das classes econômicas, a ecocrítica

adota uma abordagem ecocêntrica dos estudos literários (1996, p.xviii21).

Seguindo esse raciocínio, a autora acrescenta que enquanto a teoria literária mais tradicional

examinava a relação entre os escritores, os textos e o mundo, sendo este último compreendido

enquanto sociedade, um ponto de vista ecocêntrico, ou centrado na terra, expandiu esse

entendimento de forma a incluir toda a ecosfera.

Dentre os estudos individuais que inicialmente trataram de associar as questões

ecológicas aos problemas concernentes à teoria literária, destaca-se o artigo de William

Rueckert, “Literature and Ecology: An Experiment in Ecocriticism”22, escrito em 1976, mas

17 “Oil spills, lead and asbestos poisoning, toxic waste contamination, extinction of species at an unprecedent rate,

battles over public land use, protests over nuclear waste dumps, a growing hole in the ozone layer, predictions of

global warming , acid rain, loss of topsoil, destruction of the tropical rain forest, [...] overlapped aquifers in the

West, illegal dumping in the East, a nuclear reactor disaster in Chernobyl, new auto emissions standards, famines,

droughts, floods, hurricanes, […] and a world population that topped five billion”. 18 Ecocrítica: A ecologização dos estudos literários. 19 Associação para o estudo de literatura e meio ambiente. 20 Estudos interdisciplinares em Literatura e meio ambiente. 21 “The study of relationship between literature and the physical environment. Just as feminist criticism examines

language and literature from a gender conscious perspective, and Marxist criticism brings an awareness of modes

of production and economic class to its reading of texts, ecocriticismo takes an earth-centered approach to literary

studies”. 22 “Literatura e Ecologia: um experimento em ecocrítica”.

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publicado em 1978, o qual legou ao autor o título de fundador da Ecocrítica. Ao contextualizar

a crítica literária de seu tempo, Rueckert (1978) se posiciona entre as abordagens vigentes e a

constituição de novas teorias e métodos, alegando que o critério a partir do qual deve se mover

a experimentação crítica é o da relevância. Consciente dos riscos dessa posição, como por

exemplo, uma rígida doutrinação, o autor insiste no uso do critério, justificado pelo caráter

experimental do tipo de crítica a que se propõe. Nas palavras do autor, “experimento a aplicação

da ecologia, e de conceitos ecológicos, no estudo de literatura, porque a ecologia (como uma

ciência, como uma disciplina, como a base para uma visão humana) tem a maior relevância

para o presente e o futuro do mundo” (RUECKERT, 1978, p. 7323).

Em acordo com a maioria dos ecologistas, Rueckert (1978) considera como o maior

desafio da humanidade encontrar maneiras de impedir que a comunidade humana destrua a

comunidade natural, bem como, a própria comunidade humana. O autor, assim como Sônia T.

Felipe (2013), responsabiliza o sistema econômico vigente pela degradação ambiental e explica

que uma economia estável ou sustentável é essencial para uma perspectiva ecológica. Nesse

segmento, ele ressalta o caráter subversivo da ecologia, uma vez que faz parte de suas visões

derrubar a contínua economia de crescimento, dominante na maioria dos Estados em

desenvolvimento industrial.

1.1 LITERATURA E MEIO AMBIENTE

Para compreender a relação entre literatura e meio ambiente, o criador da ecocrítica cita

a primeira lei da ecologia, cunhada pelo ecologista Barry Commoner, mas compartilhada por

todos os ecologistas e todas as visões ecológicas, “tudo está conectado a tudo24” (RUECKERT,

1978, p. 7325). Rueckert (1978) fundamenta sua proposição partindo de conceitos ecológicos,

reunidos de fontes variadas e comentados por ele de forma poética. Assim, partindo do gênero

poema para representar a literatura, ele introduz: “Um poema é energia armazenada, uma

turbulência formal, uma coisa viva, um redemoinho no fluxo. Os poemas fazem parte dos

caminhos energéticos que sustentam a vida” (RUECKERT, 1978, p. 7426). Desse modo, de

23 “I […] experiment with the application of ecology and ecological concepts to the study of literature, because

ecology (as a science, as a discipline, as the basis for a human vision) has the greatest relevance to the present and

future of the world”. 24 Essa lei, no entanto, não foi descoberta pela ecologia, uma vez que a ideia de “teia da vida” faz parte do

conhecimento antigo de populações indígenas norte americanos. No século XIX e início do século XX os líderes

indígenas Chief Seatle e Luther Standing Bear já falavam sobre ela. 25 “Everything is connected to everything else”. 26 “A poem is stored energy, a formal turbulence, a living thing, a swirl in the flow. Poems are part of the energy

pathways which sustain life”.

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acordo com o autor, a leitura, o ensino e a crítica literária liberam a energia armazenada na

poesia, que então flui pela comunidade humana, uma vez que os caminhos pelos quais perpassa

esse fluxo de energia vai da relação entre o poema e o leitor, como também, por meio da relação

interpessoal. Para explicar melhor o processo, Rueckert (1978) faz analogia com uma

formulação ecológica basilar, segundo a qual toda a energia da natureza vem do sol, enquanto

na literatura, toda a energia vem da imaginação criativa. O teórico designa a imaginação e a

linguagem como as matrizes geradoras dessa energia, e afirma que sua relevância vai além do

significado, como a capacidade que o poema tem de permanecer ativo em qualquer língua e

continuar a transmitir energia inesgotável. Rueckert (1978) acredita que a vida da comunidade

humana depende desse fluxo contínuo de energia criativa, o qual não se limita às questões mais

tradicionais da crítica, referentes à beleza e à verdade, mas se estende às motivações de

criatividade e comunidade. O autor cita o ecologista Eugene Odum, para quem a ecologia está

sempre relacionada a “níveis superiores aos do organismo individual. Está relacionada a

populações, comunidades, ecossistemas, e à biosfera” (1963, apud RUECKERT, 1978, p. 7727).

Rueckert (1978) acrescenta que há um desenvolvimento mútuo, interligado, de todos os

sistemas de vida na terra, o que o leva a considerar a visão antropocêntrica, em oposição à

biocêntrica, como a principal falha da espécie humana, por sua compulsão em humanizar,

explorar, domesticar e violar todas as coisas naturais.

Questionando como podemos nos engajar em ações criativas e cooperativas

responsáveis, enquanto leitores, professores e críticos literários, o autor conclui que devemos

fazer o que sempre fizemos: voltarmo-nos para os poetas. Ao mesmo tempo, ele ressalta a

necessidade de nos voltarmos também aos ecologistas, uma vez que apenas a herança literária

não é suficiente para impedir os desastres ecológicos. Por fim, Rueckert (1978) ressalta o papel

de professores e críticos literários enquanto mediadores criativos entre a literatura e a biosfera,

propondo que a própria ecocrítica desenvolva o entendimento que possibilitará a ação da

comunidade literária a um alcance maior para a comunidade planetária.

A partir das considerações ecológicas do fundador da ecocrítica, Glotfelty (1996)

compreende que “a literatura não flutua sobre o mundo material em algum éter estético, mas

sim, faz parte em um sistema global complexo, no qual energia, matéria e ideias interagem”

(1996, p. xix, grifo do autor28). A autora caracteriza como premissa fundamental da ecocrítica

27 “Levels beyond that of the individual organism. It is concerned with populations, communities, ecosystems, and

the biosphere”. 28 “Literature dos not float above the material world in some aesthetic ether, but, rather, plays a part in an

immensely complex global system, in which energy, matter and ideas interact”.

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a interconexão recíproca entre a cultura humana e o mundo físico, de forma que sua temática é

centrada nas interconexões entre natureza e cultura, mais especificamente, as manifestações

culturais da Língua e da Literatura. Para ela, uma vez que os problemas ambientais são produtos

da cultura humana, os estudiosos literários, envolvidos com questões como de significado,

tradição, perspectiva, estão contribuindo de forma fundamental para o pensamento ambiental.

1. 2 CAMINHOS ECOCRÍTICOS

Em “Some principles of ecocriticism”29, texto integrante do compêndio de Glotfelty e

Fromm, William Howarth (1996) afirma que enquanto outras disciplinas adotavam o uso da

ecologia como forma de ler, interpretar e narrar a história da Terra, a literatura, desenvolvida

separada os estudos ecológicos, encontrou dificuldade em integrá-los ao seu campo de estudo.

Howarth (1996) enfatiza a atitude desconfiada de disciplinas clássicas frente a novas

abordagens, e a preservação do status quo por parte dos professores de literatura, ainda que eles

mesmos proclamem por inovação. O autor justifica a aproximação dos problemas ecológicos

ao campo literário, pela afirmação da relação entre a literatura e o mundo físico, revolucionando

a concepção tradicional de ciência, uma vez que considera a validade das análises literárias

como um discurso científico em sua própria especificidade:

Os textos refletem como uma civilização considera seu patrimônio natural.

Nós conhecemos a natureza por meio de imagens e palavras, um processo que

torna a questão da verdade na ciência ou na literatura inevitável, e se

encontramos a validade por meio de dados ou de metáforas, os dois modos de

análise são paralelos (HOWARTH, 1996, p. 7730).

A revolução do autor consiste em afirmar como científica a análise cultural, um saber

não desenvolvido pelos critérios considerados válidos pela ciência tradicional, como abstração

ou objetividade, considerando correlatas as distintas formas de saber. Promovendo a união de

ambas as metodologias, a análise ecológica e a análise literária, o teórico sugere quatro

disciplinas básicas para uma abordagem ecocrítica de textos literários: ecologia, ética,

linguagem e teoria crítica. Conforme o autor, essas disciplinas possibilitam, respectivamente,

descrever as relações entre natureza e cultura, oferecer meios de intermediar conflitos históricos

29 Alguns princípios da ecocrítica, tradução nossa. 30 “Texts do reflect how a civilization regards its natural heritage. We know nature through images and words, a

process that makes the question of truth in science or literature inescapable, and whether we find validity through

data or metaphor, the two modes of analysis are parallel”.

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e sociais, analisar como são representadas a vida humana e não humana, e promover a

disseminação dos trabalhos ecocríticos.

Em breve relato histórico, Howarth (1996) aponta as principais transformações pelas

quais passou a disciplina de ecologia. De acordo com o autor, o termo ecologia foi cunhado em

1869, por Ernst Haeckel, um zoologista alemão, que, por influência de leituras marxistas,

relacionou as manifestações de organismos individuais às manifestações de populações e

comunidades. Howarth (1996) também menciona o descrédito em relação à ecologia, a partir

do século XX, por cientistas que alegavam que as formulações ecológicas eram muito literárias.

Conforme aponta o autor, no contexto pós Segunda Guerra Mundial, devido ao uso de

princípios ecológicos no discurso de preservacionistas contrários a pesquisas militares e

industriais, estreitou-se a relação da disciplina com a política, sendo considerada ainda mais

subversiva a partir dos anos 1960, por sua associação a reivindicações de esquerda. Segundo o

relato de Howarth (1996), nesse mesmo período a ecologia chega a definir princípios éticos, por

meio do impacto que a obra literária Silent Spring, de Rachel Carson, 1962, teve sobre a

população da época.

De acordo com Greg Garrard, em Ecocrítica, uma introdução ao campo da ecocrítica

atual, publicado no Brasil em 200631, o texto literário de Rachel Carson é considerado a gênese

do ambientalismo moderno, o que evidencia a estreita relação entre a literatura e o meio

ambiente. Segundo Garrard (2006), o texto de Carson, cuja temática principal é a poluição,

proporcionou uma conscientização da população americana ao apresentar uma quantidade

significativa de dados científicos sobre a ameaça dos pesticidas orgânicos à vida selvagem e à

saúde humana, levando, inclusive, à mudanças nas leis referentes ao uso desses poluentes. É

nesse sentido que o autor declara a ecocrítica como “[...] uma modalidade de análise

confessadamente política” (GARRARD, 2006, p. 14), fundamentada nas contribuições feitas

por esse tipo de afirmação discursiva para a cultura moderna. Garrard (2006) define como

objeto de estudo da análise ecocrítica, a relação entre o humano e o não humano, ao longo da

história cultural, apontando como tarefa dos ecocríticos o entendimento das complexas

interconexões entre natureza e cultura, uma vez que, se de um lado a natureza é culturalmente

construída, de outro, ela realmente existe.

Garrard (2006) também problematiza a interdisciplinaridade essencial para a análise

ecocrítica, ao delimitar uma diferença entre os problemas de ecologia – referentes aos estudos

biológicos– e os problemas ecológicos – referentes aos “[...] aspectos de nossa sociedade

31 Publicado nos Estados Unidos em 2004.

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provenientes de nossas maneiras de lidar com a natureza” (GARRARD, 2006, p. 17).Ele

confessa que mesmo desconfiados da ideia de uma ciência neutra e objetiva, os ecocríticos,

como críticos culturais, acabam, por vezes, tendo de conceder a última palavra a uma análise

científica do mundo. A esse respeito, é valiosa a contribuição de Howarth (1996), o qual evoca

os críticos pós-modernos e sua descrição do conceito de ciência como cultura, a qual, além de

um impacto político e social, possui uma linguagem com notável poder de definição. Howarth

(1996) pontua a forte tendência, nas novas (re)leituras históricas da cultura, a trabalharem com

os conceitos de raça, gênero e classe enquanto fatores determinantes da vida social material,

implicando o contexto como um definidor de status social. Ao trazer a noção de contexto,

baseado nas teorias feministas e de gênero, caracterizadas por ele como as principais críticas

aliadas à ecocrítica, o autor pretende questionar a objetividade e neutralidade do discurso

científico, uma vez que seus produtores estão localizados em meio a fatores sociais que

influenciam suas visões de mundo.

A estreita relação entre a ecocrítica e a filosofia feminista é expressa também por

Glotfelty (1996), que, em busca de um sistema que pudesse ser um ponto de partida para a

análise literária ecocrítica, sugere uma analogia com o esquema dos três estágios de

desenvolvimento da crítica literária feminista, formulado por Elaine Showalter, uma das

criadoras da crítica literária feminista nos Estados Unidos. Conforme exposição de Glotfelty

(1996), o primeiro estágio da crítica feminista de Showalter diz respeito às representações, e se

dedica a analisar a maneira como as mulheres são retratadas na literatura canônica. Segundo a

autora, esse estágio é essencial pela possibilidade de conscientização que propicia por meio do

estudo dos estereótipos sexistas associados às mulheres, bem como, pelo questionamento da

“[...] suposta universalidade e até mesmo o valor estético da literatura que distorce ou ignora

completamente a experiência de metade da raça humana” (GLOTFELTY, 1996, p. xxiii32). O

argumento de Showalter demonstra que o pressuposto de universalidade na literatura, que

exclui a questão feminista, não se sustenta. Em analogia ao primeiro estágio, Glotfelty (1996)

propõe que a ecocrítica, em um primeiro momento, estude como a natureza é representada na

literatura. De forma semelhante, a autora acredita na conscientização a partir do desvelamento

de estereótipos conferidos ao mundo natural, ressaltando que as temáticas da natureza não se

tratam apenas do meio ambiente, mas também de “[...] fronteiras, animais, cidades, regiões

32 “[…] the purported universality and even the aesthetic value of literature that distorts or ignores altogether the

experience of half of the human race”.

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geográficas específicas, rios, montanhas, desertos, Índios, tecnologia, lixo e corpo”

(GLOTFELTY, 1996, p. xxiii33).

O segundo estágio da crítica literária feminista, descrito por Glotfelty (1996), trata da

tradição literária feminista. Esse estágio também é importante por sua capacidade de

conscientização, uma vez que reedita e reconsidera a literatura feita por mulheres. Da mesma

forma, a autora afirma que os ecocríticos têm promovido o mesmo esforço para recuperar o

gênero da escrita sobre a natureza, até então negligenciado, assim como os textos que

manifestam conscientizações ecológicas. De acordo com a autora, “Em uma sociedade cada vez

mais urbana, a escrita da natureza desempenha um papel vital em nos ensinar a valorizar o

mundo natural” (GLOTFELTY, 1996, p. xxiii34). E, por fim, a autora define o terceiro estágio

como o mais teórico na crítica feminista, o qual parte de uma ampla variedade de teorias, com

a finalidade de levantar questões relacionadas à construção simbólica de gênero e sexualidade

no discurso literário. Sua correspondência para a ecocrítica se dá quanto à construção simbólica

das espécies. Como exemplo, Glotfelty (1996) questiona como o discurso literário definiu o ser

humano. Segundo a autora, “[...] essa crítica questiona os dualismos predominantes no

pensamento ocidental, dualismos que separam significado de matéria, mente de corpo, homens

de mulheres, humano de natureza” (1996, p. xxiv35). Nossa análise se focará principalmente

nesse estágio da ecocrítica.

Ao destacar os campos da filosofia que se dedicam a compreender e criticar as causas

que originaram a degradação ambiental, bem como, desenvolver um ponto de vista alternativo

ético e conceitual a respeito do relacionamento com a Terra, Glotfelty (1996) menciona o

ecofeminismo, um discurso teórico fundamentado na relação entre a opressão das mulheres e a

dominação da natureza, da qual trataremos adiante.

1.3 COMPREENSÕES HISTÓRICAS DA CRISE AMBIENTAL

Na obra O homem e o mundo natural: mudanças de atitude em relação às plantas e aos

animais (1500-1800), 201036, o historiador Keith Thomas cita o artigo de Lynn White Jr., The

33 “[…] the frontier, animals, cities, specific geographical regions, rivers, mountains, deserts, Indians, technology,

garbage, and the body”. 34 “In an increasingly urban society, nature witting plays a vital role in teaching us to value the natural world”. 35 “[…] such a critique questions the dualism prevalent in Western thought, dualisms that separate meaning from

matter, sever mind from body, divide men from women, and wrench human from nature”. 36 Publicada originalmente em 1983.

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historical roots of our ecological crisis37, de 1974, como uma espécie de Bíblia para os

ecologistas contemporâneos. Nesse texto, Lynn White Jr. (1974) responsabiliza o legado

religioso europeu pela exploração ocidental da natureza. Em princípio, o autor disserta sobre a

potencialidade que todas as formas de vida apresentam em modificar seus contextos, para

explicar a espécie humana, que afetou seu ambiente de maneira significativa desde que se

tornou uma espécie numerosa. O autor reconhece a limitação da história no que se refere às

mudanças ecológicas38, de forma que não se sabe exatamente quando e onde essas mudanças e

seus efeitos começaram, mas ele afirma que os humanos foram frequentemente um elemento

integrado no processo de seus respectivos ambientes.

White (1974) declara que a crescente destruição do meio ambiente é produto de uma

dinâmica entre tecnologia e ciência, originadas no contexto do mundo medieval ocidental. De

acordo com o autor, a união entre ciência e tecnologia foi propiciada pela união da Europa

Ocidental e a América do Norte, por volta de 1850. Ainda que a ciência natural tenha surgido

em muitos períodos anteriores, assim como, o acúmulo de habilidades tecnológicas surgiu entre

muitos povos, que já haviam desenvolvido uma aproximação teórica e prática sobre a natureza.

O autor avalia que a tradição da ciência ocidental se inicia de fato no final do século XI, com

uma iniciativa massiva de tradução de trabalhos científicos árabes e gregos para o Latim, sendo

que antes desse período os estudos científicos raramente existiam nesse idioma. Segundo o

autor, no final do século XV, a Europa era tão superior em tecnologia que mesmo suas menores

nações puderam dominar, saquear e colonizar outros lugares ao redor do mundo.

De forma que tanto a tecnologia quanto a ciência ocidental começaram a dominar o

mundo na Idade Média, White (1974) analisa os desenvolvimentos ocorridos nessa época a fim

de compreender a causa do presente impacto sobre a ecologia. De acordo com o autor, no tempo

do arado de bois, os campos eram distribuídos para suportar apenas uma família, de modo que

a subsistência dessa família era o principal. Visto que os bois eram usados como força motriz

para sulcar a terra a fim de prepará-la para o plantio, e visto que nenhuma família possuía

quantidade significativa de bois para formar grandes arados, diferentes famílias de camponeses

juntaram seus bois. Desse modo, a distribuição de terras, antes baseada nas necessidades da

família, passou a ser baseada na capacidade de uma “máquina” para lavrar a terra em grande

37 As raízes históricas da nossa crise ecológica, tradução nossa. Esse artigo também integra a coletânea The

ecocriticism reader: landmarks in literary ecology (1996), base teórica fundamental para o estudo da ecocrítica. 38 De acordo com o dicionário Aurélio, ecologia significa o “estudo das relações entre os seres vivos e o meio onde

vivem, e de suas recíprocas influências”. Nesse caso, acreditamos que o autor se referia não às mudanças do estudo,

mas das relações entre os seres e o seu meio.

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escala, o que alterou de forma profunda a relação do ser humano com o solo: se antes ele tinha

sido parte da natureza, agora se tornava seu explorador.

O autor aponta a vitória do cristianismo sobre o paganismo39 como uma das maiores

revoluções psicológicas da história da cultura ocidental. Segundo ele, ao destruir o animismo

paganista da antiguidade, segundo o qual cada elemento da natureza, cada árvore, cada colina,

cada rio tinha seu próprio espírito, o cristianismo tornou possível a exploração da natureza pelo

sentimento de indiferença direcionado à natureza objetificada. A esse respeito, Thomas (2010)

exemplifica pelo contexto da Inglaterra por volta do século V, no qual a Igreja se posicionou

contrária ao culto das nascentes e dos rios, sendo que “as divindades pagãs do bosque, da

corrente e da montanha foram expulsas, deixando assim desencantado o mundo, e pronto para

ser formado, moldado e dominado” (THOMAS, 2010, p. 29). De acordo com o autor, o

predomínio da humanidade tinha lugar central no plano divino cristão. White (1974) considera,

o cristianismo, especialmente em sua forma ocidental, a religião mais antropocêntrica do

mundo; ao contrário do antigo paganismo, e das religiões asiáticas, o cristianismo “[...] não

apenas estabeleceu o dualismo entre o homem e a natureza, mas também insistiu que era a

vontade de Deus que o homem explorasse a natureza para seus próprios fins” (WHITE, 1974,

p. 440). Para o autor, o que as pessoas fazem em relação a sua ecologia41 depende do que elas

pensam e acreditam sobre elas mesmas e sobre as coisas ao redor delas, o que condiciona a

ecologia humana ao sentimento religioso.

Thomas (2010) comenta que White Jr. não foi o primeiro a associar a exploração

ocidental da natureza à herança religiosa cristã, mas que assim como seus predecessores, o

professor superestimou a determinação nas ações humanas da religião oficial, e menciona Karl

Marx, para quem, não foi a religião, “mas o surgimento da propriedade privada e da economia

monetária, o que conduziu os cristãos a explorarem o mundo natural de uma forma que os

judeus nunca fizeram” (THOMAS, 2010, p. 30). Segundo Thomas (2010), alguns críticos

contemporâneos da tese do professor White pontuaram a exploração dos recursos naturais pelos

antigos romanos no mundo pré-cristão. O autor acrescenta ainda que os problemas ecológicos

não são exclusivos do Ocidente, uma vez que os maias, os chineses e os povos do Oriente

39 “À semelhança do termo selvagem, o termo bruxa veio a ser compreendido como um pejorativo, mas

antigamente ele era uma designação dada às benzedeiras tanto jovens quanto velhas, sendo que a palavra witch

(bruxa, em inglês) deriva do termo wit, que significa sábio. Isso, antes que as religiões monoteístas suplantassem

as antigas religiões da Mãe Selvagem” (ESTÉS, 1994, p. 122). 40 “Not only established a dualism of man and nature, but also insisted that it is God’s will that man exploit nature

for his proper ends”. 41 Idem nota 37.

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Próximo42 também destruíram seu meio ambiente sem a influência do cristianismo. Dedicado

a analisar todas as transformações na maneira pela qual homens e mulheres de diferentes classes

sociais percebiam e qualificavam o mundo natural entre 1500 e 1800, na Inglaterra, o estudo de

Thomas (2010) relata diferentes posturas assumidas pela humanidade em relação ao mundo

natural no período citado, verificadas nos discursos oficiais e não oficiais. Dentre as principais

posturas, Thomas (2010) destaca a reivindicação de posse e direito ilimitado sobre o meio

ambiente, motivada principalmente por questões econômicas, e a contestação do direito à

exploração de outras espécies em benefício próprio, presente desde o início do período por ele

analisado.

42 Oriente Próximo é o nome da região geográfica que abrange diferentes países do sudoeste asiático. Disponível

em: <http://www.significados.com>. Acesso em: 10 de maio de 2016.

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2 ECOFEMINISMO

“Os patriarcas brancos nos disseram: penso, logo

existo. Mas a mãe negra dentro de nós – a poeta –

sussurra em nossos sonhos: sinto, portanto posso

ser livre” (Audre Lorde).

A corrente ambientalista denominada Deep Ecology (ecologia profunda) foi a

responsável pela identificação do dualismo antropocêntrico humanidade/natureza, como a raiz

da hierarquia que possibilitou crenças e práticas antiecológicas. O entendimento do dualismo

que fundamenta essas práticas constitui um passo além da pesquisa de Lynn White Jr. (1974),

na qual o historiador americano considera principalmente o antropocentrismo cristão o causador

da crise ambiental contemporânea. No entanto, o texto de Lynn Jr não perde sua validade, visto

o papel fundamental que a religião tem para a cultura humana, e visto o papel fundamental que

as religiões cristãs, principalmente a católica, têm para a cultura ocidental. Ainda que o inglês

Keith Thomas (2010), considere a influência grega e estoica na distorção do legado judaico,

influência que tornou a religião do Novo Testamento muito mais antropocêntrica que a do

Antigo, nem o historiador inglês, nem o americano, ou mesmo a ecologia profunda

ultrapassaram o entendimento de que ao dualismo antropocêntrico, base para a subordinação

da natureza43 pela humanidade, estão relacionados outros dualismos em uma lógica interligada

que sustenta outras hierarquias.

Foi o ecofeminismo, corrente filosófica originada a partir de movimentos sociais

práticos, baseado em ações diretas de mulheres em comunidade, o responsável por relacionar a

opressão das mulheres à opressão da natureza. A descoberta da conexão entre essas opressões

levou à descoberta de outras, que revelaram uma lógica conceitual comum entre diferentes

opressões. Conforme introduz a filósofa Karren J. Warren, em Ecofeminist Philosophy: A

western perspective on what it is and why it matters44, de 2000, o ecofeminismo explora as

interconexões entre mulheres, outros humanos, e a natureza, bem como as “[,,,] interconexões

entre todos os sistemas de dominação humana injustificada”45 (p. 2, grifo da autora). O termo

outros humanos se refere a outros grupos de pessoas subordinados, como homens de cor46,

43 Utilizaremos o termo natureza para denotar tudo aquilo que se referir ao mundo natural, à biosfera, com exceção

da espécie humana. 44 Filosofia ecofeminista: Uma perspectiva ocidental sobre o que é e por que importa. 45 “[…] interconnections among all systems of unjustified human domination”. 46 Embora a expressão “pessoas de cor” seja utilizada no Brasil de forma pejorativa, como um eufemismo para

pessoas negras, manteremos a tradução literal de forma a abarcar as pessoas não brancas, sem utilizar, no entanto,

a branquitude como padrão de referência.

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crianças e pessoas pobres. Segundo a autora, a investigação a respeito da destruição ambiental,

focada na categoria de análise ‘mulher’, revelou características importantes dos sistemas de

dominação humana, tanto entre outras pessoas humanas, quanto entre a humanidade e a

natureza, ambos afetados pelo problema.

De acordo com a teórica feminista Ynestra King, no artigo “The ecology of feminism

and the feminism of ecology”47 (1995), nossa cultura é fundada no desprezo e na dominação da

natureza. Conforme explica a autora, as religiões pagãs, fundamentadas em crenças animistas,

e portanto, integradas à natureza, foram vencidas pelo cristianismo, fundamentado no dualismo

hierárquico humanidade/natureza, que reduzia a natureza a recursos naturais. Conforme

explicação do termo ‘subject/subjectivity’ presente na obra Key concepts in post-colonial

studies, dos estudiosos em estudos pós coloniais Helen Tiffin, Gareth Griffiths e Bill Ashcroft,

a concepção cartesiana da consciência individual, pela formula cogito ergo sum – penso, logo

existo – acreditava na centralidade do ser humano autônomo individual, “[...] um preceito que

efetivamente separou o sujeito do objeto, o pensamento da realidade ou o ‘eu’48 do ‘outro’”

(2001, p. 21949). De acordo com King (1995), a compreensão da natureza como um ‘outro’,

essencialmente diferente de seu dominante, permitiu a sua objetificação e subordinação e a

natureza passou a ser dominada de forma a servir às necessidades do ser humano no processo

de construção da civilização industrial ocidental. Para ela, esse entendimento da objetificação

da natureza foi significativo para o feminismo, uma vez que o pensamento patriarcal acredita

que as mulheres são mais próximas da natureza do que os homens. Além disso, a autora não

trata da opressão das mulheres isoladamente, mas também abarca a opressão da população

negra, da classe trabalhadora, dos animais... todas em conexão e formando a base da moderna

civilização ocidental.

No mesmo viés de Warren e King, Greta Gaard, em Ecofeminism, de 1993, conclui

como a premissa básica do ecofeminismo a constatação de que “[...] a ideologia que autoriza

opressões como as baseadas na raça, na classe, no gênero, na sexualidade, nas habilidades

físicas, e nas espécies é a mesma ideologia que sanciona a opressão da natureza” (Gaard, 1993,

p. 150). Ela explica essa ideologia, baseada na distinção fundamental entre o ‘eu’ e o ‘outro’,

constituída por uma separação atomística, em oposição a um ‘eu’ conectado com toda as formas

47 “A ecologia do feminismo e o feminismo da ecologia”. 48 Durante toda a dissertação traduziremos o termo self como ‘eu’. 49 “[…] a precept that effectively separated the subject from the object, thought from reality, or the self from the

other”. 50 “[…] the ideology which authorizes oppressions such as those based on race, class, gender, sexuality, physical

abilities, and species is the same ideology which sanctions the oppression of nature”.

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de vida. King (1995) defende a recusa desse ‘outro’ originado na sociedade patriarcal e afirma,

junto à ciência da ecologia, não haver hierarquia entre os elementos da natureza, de um ponto

de vista universal, mas apenas no ponto de vista cultural humano.

Conforme explica a filósofa Val Plumwood, na obra Feminism and the mastery of

nature51, de 200352, as formas de opressão do presente e do passado estão marcadas na cultura

ocidental por uma estrutura lógica53 que funciona como base para a conexão de distintas formas

de opressão. Nessa obra, Plumwood (2003) desenvolve uma pesquisa profunda sobre a base

filosófica e cultural que assenta o dualismo54 entre a humanidade e a natureza, a partir do qual

outros dualismos se desenvolveram. A filosofia ecofeminista da autora critica tanto a

dominação humana quanto a dominação da natureza e propõe esta como uma quarta categoria,

além de raça, classe e gênero, para uma análise feminista. O estudo da autora faz parte da crítica

contemporânea da razão e da filosofia racionalista, surgida especialmente de feministas e

filósofos pós-modernistas da análise política. Por explicar os dualismos predominantes no

pensamento ocidental e articular a opressão da natureza a outras formas de opressão, a referida

obra de Plumwood será o principal aporte teórico utilizado na análise e interpretação de A maçã

no escuro.

2.1 FEMINISMO E DO DOMÍNIO DA NATUREZA

O argumento principal de Val Plumwood (2003) defende que a inclusão na esfera da

natureza tem sido o principal mecanismo de opressão das mulheres no contexto ocidental. Para

demonstrar a associação entre mulheres e natureza, a autora cita alguns exemplos de autores

canônicos, oriundos de diferentes fontes tradicionais, que descrevem as mulheres em oposição

à razão e em consonância com a natureza,

‘A mulher é um animal violento e descontrolado’ (Cato) [...]; ‘as mulheres

representam os interesses da família e da vida sexual; o trabalho da civilização

tornou-se cada vez mais o negócio dos homens’ (Freud); a mulher certamente

é capaz de aprender, mas elas não são feitas para as altas formas da ciência,

como a filosofia e certos tipos de atividade criativa; isto requer um ingrediente

universal’ (Hegel) (PLUMWOOD, 2003, p. 1955).

51 Feminismo e o domínio da natureza. 52 A publicação original é de 1993. 53 “A preposição clássica de lógica, como a lógica da razão instrumental”, (PLUMWOOD, 2003, p. 2, tradução

nossa). 54 A concepção do termo dualismo que utilizaremos neste trabalho é a concepção de Plumwood, que difere,

entretanto, da concepção mais geral na qual um dualismo não implica necessariamente em uma hierarquia. 55 “’Woman is a violent and uncontrolled animal’ (Cato) [...]; ‘women represent the interests of the family and sexual life; the work of civilization has become more and more men’s business’ (Freud); ‘woman

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Esse tipo de asserção infundada, com explícita pretensão de universalidade, era comum

no pensamento filosófico tradicional, e os teóricos responsáveis por elas, todos homens, se

consideravam os únicos seres dotados de razão, o sujeito humano universal. Esse sujeito

pertencia a uma elite econômica branca e masculina, a qual Plumwood (2003) denomina de

‘modelo mestre’56. De acordo com a autora, esse modelo foi compreendido como o modelo

‘humano’, enquanto a esfera do feminino era vista como uma derivação desse modelo,

pertencente a outra ordem, portanto não correspondendo à esfera da humanidade.

Conforme explica Plumwood (2003), as características associadas à masculinidade

foram as que definiram o que era considerado exclusivamente humano: racionalidade,

transcendência e intervenção e controle da natureza. Ao mesmo tempo, o conceito de humano

foi construído a partir da exclusão, negação e difamação da esfera do feminino, a esfera

associada à subsistência: a esfera da natureza. A autora demonstra que tanto “[...] a dignidade

da humanidade, como a dignidade da masculinidade, [são] mantida[s] pelo contraste com uma

classe inferiorizada e excluída” (PLUMWOOD, 2003, p. 2657). Visto que os ideais racionalistas

ocidentais de humanidade incorporaram normas que também excluiu raças, classes e outras

espécies animais, ela ressalta o apoio e reforço mútuo entre diferentes modos de dominação.

Plumwood (2003) introduz o conceito do dualismo, crucial para o entendimento da

cultura ocidental, abordado por diferentes orientações do pensamento crítico e feminista

contemporâneo, desde o feminismo pós-estruturalista e pós-modernista até o ecofeminismo. A

autora conceitua o termo dualismo como “[...] o processo pelo qual conceitos contrastantes [por

exemplo, as identidades de gênero masculina e feminina] são formados por dominação e

subordinação e construídos como opostos e exclusivos” (PLUMWOOD, 2003, p. 3158). Se

valendo da explicação do filósofo Jacques Derrida, a autora também caracteriza o dualismo

como uma forma de construir diferença por meio de uma lógica hierárquica. Conforme descreve

Plumwood (2003), em um dualismo, o lado mais valorizado de um contraste entre dois

elementos, como o gênero masculino, é construído como pertencente a categoria diferente que

a do lado menos valorizado, como o gênero feminino, sendo esse lado tratado como carente de

qualidades que torne possível um parentesco ou continuidade entre os dois. A exclusão de

qualidades compartilhadas entre ambos os lados permite que cada um seja construído de forma

are certainly capable of learning, but they are not made for the higher forms of science, such as philosophy and

certain types of creative activity; these require a universal ingredient’ (Hegel)”. 56 “Master model”. 57 “[…] dignity of humanity, like that of masculinity, is maintained by contrast with an excluded inferiorised class”. 58 “[…] the process by which contrasting concepts are formed by domination and subordination and constructed

as oppositional and exclusive”.

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polarizada, na qual “[...] o lado dominante é tomado como primário, [e] o lado subordinado é

definido em relação a ele” (PLUMWOOD, 2003, p. 3259).

A autora assinala o caráter político e cultural dos dualismos, entendidos enquanto um

processo no qual a identidade é formada pelo poder. Por esse motivo, ela atenta para o perigo

da reversão acrítica, que consiste em reverter os valores, valorizando de forma essencialista60 o

lado desvalorizado. Segundo ela, essa estratégia, além de manter a estrutura original dualística,

se baseia em pressupostos que só podem ser afirmados por meio de essencialização biológica.

Desse modo, no que se refere a construção de gênero, a autora afirma que homens e mulheres

devem desafiar a concepção dualizada da identidade humana, a fim de desenvolver uma cultura

que reconheça essa identidade de maneira completa, e como uma continuidade da natureza,

bem como, parte da cultura. A autora ressalta o caráter do ecofeminismo como um projeto

integrativo, que também diz respeito à libertação de outros dualismos característicos da cultura

ocidental, ligados filosoficamente ao racionalismo, e que correspondem às principais formas de

opressão, alienação e dominação.

2.2 O PENSAMENTO DUALISTA

Val Plumwood (2003) faz um recuo histórico a fim de identificar, na filosofia ocidental,

a origem do pensamento dualista, no qual a esfera da alteridade é construída de forma

desvalorizada. A autora explica o dualismo como resultante de uma negação de dependência de

um outro subordinado. No modelo ocidental das relações entre humanidade e natureza, as

principais exclusões e negações de dependência incluem não apenas o feminino e a natureza,

como também todas as características humanas consideradas naturais. Segundo a autora, a

negação de dependência e a relação de dominação/subordinação molda a identidade de ambos

os lados do dualismo, o que significa que a identidade do ‘mestre’ é moldada em relação à

identidade do ‘escravo’, e vice versa. Plumwood (2003) chama atenção para a relação política

de poder na construção da diferença em termos de esferas inferiores, e pontua a estreita

associação entre dualismos, dominação, e acumulação.

A autora explica o contraste entre humanidade e natureza como parte de um conjunto

inter-relacional de outros contrastes, no qual cada um é crucial em sua conexão com o outro, e

59 “[…] the dominant side is taken as primary, the subordinated side is defined in relation to it”. 60 Designado pelos estudos pós-coloniais, o termo essencialismo significa “[...] o pressuposto de que grupos,

categorias ou classes de objetos possuem uma ou várias características definidoras exclusivas para todos os

membros dessa categoria” (ASHCROFT; GRIFFITHS; TIFFIN, 2001, p. 7760).

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todos partilham de uma construção comum. Visto que, em princípio, qualquer distinção pode

ser tratada de forma hierárquica, como um dualismo, a autora reúne os principais dualismos do

pensamento ocidental, que refletem nas maiores formas de opressão de nossa cultura:

cultura / natureza

razão / natureza

macho / fêmea

mente / corpo (natureza)

mestre / escravo

razão / matéria (fisicalidade)

racionalidade / animalidade (natureza)

razão / emoção (natureza)

mente, espírito / natureza

liberdade / necessidade (natureza)

universal / particular

humano / natureza (não humano)

civilizado / primitivo (natureza)

produção / reprodução (natureza)

publico / privado

sujeito / objeto

eu / outro

(PLUMWOOD, 2003, p. 43, tradução nossa61).

Segundo a autora, os dualismos macho/fêmea, mente/corpo, civilizado/primitivo e

humano/natureza correspondem diretamente à opressão de gênero, de classe (mental/manual),

de raça, e da natureza. Plumwood (2003) caracteriza o dualismo razão/natureza como o mais

antigo, sendo que a partir da modernidade, principalmente no período pós-iluminista, a ele se

associam especialmente o dualismo humano/natureza e sujeito/objeto. De acordo com a autora,

no período da colonização no ocidente, no século XIV, configura-se o dualismo

civilizado/primitivo como uma variante dos dualismos razão/natureza, razão/animalidade e

mente/corpo, bem como, circunscreve o nascimento de respaldo científico baseado no dualismo

sujeito/objeto. Plumwood (2003) explica o papel chave que o dualismo razão/natureza

desempenha na cultura ocidental, na qual, tudo o que se situa no lado “superior” pode ser

virtualmente representado como formas da razão, e tudo no lado “inferior” pode ser

virtualmente representado como formas da natureza. Esses dualismos formam uma rede, na

qual os conceitos (futuras identidades) estão ligados entre si pelas vias dos pressupostos

filosóficos, e compartilham uma estrutura lógica herdada das exclusões feitas pela identidade

mestra. Como exemplo de fonte filosófica na qual diferentes dualismos estão conectados com

61 “Culture / nature; reason / nature; male / female; mind / body (nature); master / slave; reason / matter

(physicality); rationality / animality (nature); reason / emotion (nature); mind, spirit / nature; freedom / necessity

(nature); universal / particular; human / nature (non-human); civilised / primitive (nature); production /

reproduction (nature); public / private; subject / object; self / other”.

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o fim de justificar uma dominação, a autora cita uma passagem da obra A política, de

Aristóteles, da qual selecionamos os momentos chaves:

É claro que o domínio da alma sobre o corpo, e da mente e do elemento

racional sobre a paixão, é natural e conveniente; [...] o mesmo vale para os

animais em relação ao homem; [...] o macho é por natureza superior, e a fêmea

inferior; e um governa, e o outro é governado; Este princípio de necessidade

se estende a toda a humanidade. [...] alguns homens são por natureza livres e

outros escravos, e para estes últimos a escravidão é tanto conveniente quanto

correta (ARISTÓTELES, Politics, Book 1, chaps 4-5 apud PLUMWOOD,

2003, p. 4662).

Segundo Plumwood (2003), essa passagem demonstra que o dualismo razão/natureza,

o primeiro citado, fornece a base para demais hierarquias, sendo a suposta inferioridade do não

racional utilizada de forma a sustentar a inferioridade das mulheres, dos escravos, de todos

aqueles que realizam tarefas manuais em oposição às intelectuais. Vale notar a maneira

categórica com que Aristóteles faz afirmações em relação à natureza das coisas, sem se

preocupar em justificá-las de nenhuma forma, conduzindo à naturalização das desigualdades.

Conforme explicação da autora, o que diferencia o dualismo de uma dicotomia, já que

ambos se tratam de distinções, é o trato que essas distinções receberam, os pressupostos feitos

sobre eles. Ela ensina que nem toda dicotomia resulta em um dualismo. A dicotomia é

equiparada ao conceito de diferença, que não é necessariamente hierárquico. Para ela, a

caracterização de uma diferença não hierárquica compreende o outro não apenas

negativamente, mas independentemente de um referencial, com um papel independente no qual

suas exclusões são consideradas em relação a uma parte de um todo, e não em relação ao próprio

universo. Já em uma construção dualística, os valores culturais associados ao outro dualizado

são sistematicamente construídos como inferior. De acordo com Plumwood (2003) o dualismo

é uma relação de oposição entre ordens construídas como maior e menor, superior e inferior,

governador e governado, todas estabelecidas sistematicamente.

Plumwood (2003) argumenta que a dificuldade em distinguir a dicotomia do dualismo

reside no fato de este último ter sido compreendido sempre como parte inevitável da condição

humana, acentuado pelo existencialismo filosófico, como também pelo pós-modernismo, os

quais negam a possibilidade de uma identidade positiva. A esse respeito, a autora menciona a

lógica clássica, na qual se baseia a lógica da razão instrumental, tratada como a lógica natural,

62 “It is clear that the rule of the soul over the body, and of the mind and the rational element over the passionate,

is natural and expedient; the same holds good for animals in relation to men; […] the male is by nature superior,

and the female inferior; and the one rules, and other is ruled; this principle of necessity extends to all mankind.

[…] some men are by nature free and others slaves, and that for these latter slavery is both expedient and right”.

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a lógica em si, cuja estrutura compartilha características com a estrutura dualística. Segundo a

autora, “A naturalização da lógica clássica é a naturalização da dominação, dos conceitos de

alteridade enquadrados nos termos da perspectiva do mestre” (PLUMWOOD, 2003, p. 5663).

A autora descreve cinco características próprias da estrutura lógica do dualismo. A

primeira, a negação, ou o pano de fundo64. Trata-se da negação de dependência do benefício

criado pelo serviço de outros. Para ela, a principal forma de negar essa dependência consiste

em uma hierarquização das atividades, de forma que os serviços prestados são tratados como

não essenciais, como parte do pano de fundo. Contrastando o mestre com ‘o outro’

inferiorizado, o escravo, a autora exemplifica a dependência do primeiro tanto para sobreviver

quanto para definir sua identidade. Plumwood (2003) explica o processo de negação de

dependência pelo sentimento de medo e ódio do mestre em relação à sua dependência, visto

que essa desafia sua dominação, levando-o a negá-la (a dependência) de diversas formas, como,

tentando invisibilizá-la ou mistificá-la na cultura e tratando-a de forma paternalista.

A segunda característica é denominada pela autora como exclusão radical, ou

hiperseparação, uma característica essencial para o entendimento do dualismo, no qual o ‘outro’

é tratado não apenas como diferente, mas de natureza diferente, parte de uma ordem menor,

inferior. De acordo com Plumwood (2003), a identidade mestra se esforça em enfatizar ao

máximo a quantidade e a importância das diferenças encontradas em ambas as partes

comparadas, alegando que as qualidades compartilhadas entre elas são desnecessárias. A

continuidade entre as duas partes é negada, por meio da classificação das características, tanto

de um lado, quanto de outro, como exclusivas. A autora declara a polarização como o principal

objetivo da hiperseparação. Ela ilustra esse processo por meio da divisão de gênero, na qual os

homens são definidos como ativos, competitivos, intelectuais e dominadores, enquanto as

mulheres são definidas a partir dessas qualidades, de forma complementar: passivas, altruístas,

intuitivas e submissas, de forma que a dominação pareça natural.

A terceira característica, a incorporação ou definição relacional, trata-se da construção

da oposição de forma que o lado inferior da dualidade seja sempre definido em relação ao lado

superior, como uma falta, uma negatividade. A autora cita Simone de Beauvoir, na obra O

segundo sexo, cujo próprio título ilustra essa definição relacional: o segundo, o que vem depois

de um primeiro. Como explica Beauvoir, “a humanidade é macho, e o homem define a mulher

não por ela mesma, mas como relativa a ele. [...] ela é o acidental, o inessencial em oposição ao

63 “The naturalness of classical logic is the naturalness of domination, of concepts of otherness framed in terms of

the perspective of the master”. 64 A autora utiliza o termo backgrounding, o qual optamos pela tradução como ‘pano de fundo’.

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essencial. Ele é o sujeito, ele é o absoluto – ela é o outro” (1965, p. 8 apud PLUMWOOD,

2003, p. 5265). De acordo com Plumwood (2003), embora cada parte da relação dual dependa

uma da outra, seja na formação de sua identidade, ou na organização da vida material, as

qualidades do mestre são tomadas como primárias, e definidas como os valores sociais por

excelência, enquanto as qualidades do escravo são definidas por contraste, como negatividades.

Segundo a autora, o fato de o ‘outro’ ser percebido sempre em relação ao ‘eu’, se dá por este

não considerá-lo um ‘outro’ totalmente independente, mas reconhecido apenas em extensão a

si.

Decorrentes da exclusão radical seguem-se as duas últimas características da construção

dualística: instrumentalismo ou objetificação, e homogeneização. Sobre o instrumentalismo,

Plumwood (2003) explica como a relação entre o lado superior e o lado inferior da construção

dual é tida como separada, compreende-se como natural que o segundo sirva aos fins do

primeiro, de forma que esse vê o lado inferior como uma fonte de recursos, sem valor intrínseco.

Uma vez que ‘o outro’ não é visto como centro de desejos e necessidades, ou, possuindo

finalidade própria, é objetificado. O lado inferior forma parte de um conjunto de propósitos que

são definidos de acordo com o melhor aproveitamento para as necessidades do mestre. O

tratamento instrumental, tão naturalizado, conferido à natureza é indicativo desse mecanismo.

E por fim, a homogeneização ou estereotipagem, diz respeito a uma característica

necessária para que a dominação se realize. Segundo a autora, além da polarização entre os

termos, o lado inferior precisa parecer homogêneo para que seja possível definir sua “natureza”,

e para isso, recorre-se a todo tipo de generalizações. Um exemplo típico é a máxima “mulher é

tudo igual”, ou “mãe é tudo igual”, das quais se pretende a homogeneização de suas identidades.

De acordo com Plumwood (2003), o processo de homogeneização nega as diferenças e o outro

é referido como se não possuísse particularidades, ou individualidades, cravando sua identidade

apenas como membro de uma classe. Ela cita o escritor Albert Memmi, em The coloniser and

the colonised66 (1965), segundo o qual “O colonizado nunca é caracterizado de uma maneira

individual; ele só tem o direito de se afogar em uma coletividade anônima” (1965, p. 25 apud

PLUMWOOD, 2003, p. 5567), reduzida a uma função. A autora explica que para sua

manutenção, essa homogeneização demanda constante vigilância e a coerção dos indivíduos,

ainda que muitas vezes de forma sutil.

65 “Humanity is male and man defines woman not in herself but as relative to him; she is the incidental, the

inessencial as opposed to the essential. He is the subject, he is the absolute - she is the other”. 66 O colonizador e o colonizado. 67 “The colonised is never characterised in an individual manner; he is entitled only to drown in an anonymous

collectivity”.

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Após analisar as principais características da construção dualística, Plumwood (2003)

conclui que essa construção impõe uma rede conceitual que se polariza e separa em duas ordens

distintas de seres, de modo que os padrões de diferenças são reunidos na forma de uma

hierarquia. Segundo a autora, essas características também atuam como base para vários tipos

de centralizações, em consonância com a noção gramsciana de hegemonia centrada na classe,

à qual ela acrescenta a centrada na masculinidade, no euro e etnocentrismo, e no

antropocentrismo.

2.3 A TRADIÇÃO RACIONALISTA DE PLATÃO

A pesquisa de Plumwood (2003) prossegue no sentido de compreender como a estrutura

do dualismo humano/natureza se desenvolveu historicamente. A autora defende a tese de que a

negação de dependência da natureza, a exclusão radical e a desvalorização de suas qualidades,

emergiram nas tradições intelectuais do ocidente desde, pelo menos, os primórdios do

racionalismo na Grécia, com a filosofia de Platão. Conforme explicação da autora, a teoria

social de Platão, que sanciona a escravidão e outras formas de hierarquia social, é organizada

em torno de um dualismo hierárquico entre razão e natureza, no qual a natureza é desvalorizada

em todas as suas formas. Para exemplificar, ela cita a obra Timaeus, que visa justificar a

supremacia da razão (logos), com base na ideia de imposição da ordem racional, para ordenar

e governar o mundo natural, compreendido como caótico e desordenado. Dessa forma, a

natureza não é percebida como um outro independente, com o qual se pode trocar, mas como

um objeto de subordinação para a vontade humana.

Ela observa o tratamento instrumental que a humanidade, preocupada com a realização

única e exclusivamente de seus próprios fins, conferiu à natureza. A autora se utiliza do conceito

de ‘pano de fundo’, para explicar o papel que o mundo natural representou para a vida e para a

cultura humana no ocidente, como apenas “[...] o cenário ou o palco no qual o que realmente

importa é o drama da vida e da cultura humana” (PLUMWOOD, 2003, p. 6968). A autora

também aponta para o processo de homogeneização do mundo natural, bem como sua definição

negativa, na qual todos os seres naturais são descritos como iguais, naquilo que seria sua

deficiência: a falta de qualidades humanas69. Tal hegemonização, segundo a autora, expressa a

insensibilidade para a diversidade e riqueza da natureza, tratada como uma coisa só: o meio

68 “[…] the setting or stage on which what is really important, the drama of human life and culture”. 69 Keith Thomas (2010) elucida que na obra Timaeus, Platão supervalorizava a postura ereta, argumentando que

os animais olhavam para o chão, enquanto os homens olhavam para o céu.

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ambiente. Uma redução que iguala seres70 diversos como “[...] focas, ondas e rochas, ostras e

nuvens, florestas, vírus e águias” (PLUMWOOD, 2003, p. 7071). Plumwood (2003) classifica

as tendências do pensamento platônico como antiecológicas, principalmente na obra A Política,

de Aristóteles, pelo rebaixamento da natureza, juntamente à inferiorização do feminino, de

escravos e de animais. A autora apresenta paralelos significativos entre o trato de Platão em

relação à natureza e em relação ao feminino, associado com a parte mais baixa da natureza, em

oposição à razão.

Segundo a autora, na construção dualística que divide mente e corpo, considera-se que

cada um pertence a ordens bastante distintas, sendo a esfera da racionalidade diferente da esfera

da fisicalidade. Conforme sua explicação, os ideais considerados dignos pela vida humana,

todos relacionados à racionalidade, excluíram os aspectos comumente associados ao corpo, à

sexualidade, à emotividade, à intuição e ao instinto, vinculados ao mundo natural. A autora

declara que a conquista da identidade cultural humana definida pela rejeição do que é

considerado como inferior leva ao entendimento de uma identidade fora da natureza, e uma

negação de dependência em relação a esta. De acordo com Plumwood (2003), esse modelo de

relação social de subordinação entre uma determinada ordem superior e uma inferior,

caracterizadas como ontológicas no pensamento de Platão, expressa sempre a perspectiva do

mestre. Assim, em comparação com a natureza, o comportamento do escravo, por exemplo,

também é visto como desordenado, ou sem controle, porque é visto apenas por seu valor

instrumental, “como uma ferramenta viva” (PLUMWOOD, 2003, p. 8872).

Segundo Plumwood (2003), a divisão do eu em corpo e alma, hierarquizada em uma

ordem inferior e outra superior, cria um conflito com as condições básicas para a existência

física na terra, com a natureza do ‘eu’ como um ser animal. Conforme exposição da autora,

Platão define a exclusão radical e a hiperseparação como um princípio normativo: a melhor

vida corresponde à maior distância entre os elementos da esfera superior com a inferior, e é

totalmente atingida com a morte. Sendo a razão a parte mais digna da alma, identificada à

divindade, origina-se um dualismo no qual a continuidade humana com a ordem animal e

terrena é negada. Segundo a autora, essa negação implica uma identidade de “outro mundo”,

ou transcendental, na qual a terra é compreendida como um lugar de passagem sem significado

em comparação com o mundo além. Tanto para o sistema platônico, quanto para o sistema

70 A autora utiliza o termo ‘coisas’, no inglês ‘things’, mas optamos pela utilização de ‘seres’ com vistas a não

reforçar a ideia da natureza enquanto um objeto, algo desprovido de vida. 71 “Seals, waves and rocks, oysters and clouds, forests, viruses and Eagles”. 72 “[…] as a living tool”.

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Cristão, “[...] o significado da morte é que o significado da vida humana está em outro lugar,

não pode ser encontrado na terra ou na vida humana como parte da natureza, mas em um reino

separado acessível apenas aos seres humanos” (PLUMWOOD, 2003, p. 10073) e dentre esses,

apenas alguns escolhidos. A teologia da igreja católica, bem como outros desdobramentos da

religião cristã, utiliza a mesma ideia de mundo transcendental, no qual encontram-se as

recompensas para os sacrifícios da vida. Além da ideia de temor, utilizada com a finalidade de

dominar os fiéis, apropriar-se de bens e facilidades nesse mundo e impedir revoltas e

revoluções.

A autora chama o trabalho de Platão como filosofia da morte, em referência ao

significado que a morte assume para ele na relação entre corpo e alma, sendo a vida desta última

priorizada pelo filósofo como uma realidade transcendente mais digna, ou verdadeira, que ele

chama de mundo das ideias. Assim, a alma está aliada com a vida divina imaterial, e o corpo

com a vida material, da ordem da natureza; para ele, inferior. Os valores pautados na

centralidade da morte, para o sistema platônico, representam a perspectiva de valor do mestre,

pertencente a uma elite identificada com a razão, e por isso, com a ordem eterna da mente, da

cultura e da liberdade, enquanto despreza a esfera corporal e manual, representada pelo escravo,

as mulheres e os animais (PLUMWOOD, 2003). Para a autora, os preceitos dessa filosofia

parecem apresentar uma inversão do pensamento intuitivo, uma vez que o mundo sem vida das

ideias oferece vida eterna, e o mundo vivo da natureza representa a negação, ou a morte da

alma. Esse conflito também pode ser compreendido como a ideia de mundo da transcendência

para o primeiro e de mundo cíclico para o segundo.

Edgar Morin, em O homem e a morte, de 1970, refere-se a uma economia da morte, para

designar um sistema permanente de obsessões e angústias da comunidade arcaica, o qual “[...]

pode instalar-se no coração da vida quotidiana e fazer que a vida quotidiana gire em seu torno

[da morte]” (p. 29). Para o autor, essa economia leva à crença na imortalidade, um entre os dois

mitos fundamentais da morte, a sobrevivência da alma (ou da vida, mas em outro plano), e o

outro, o renascimento. A centralidade da morte na filosofia de Platão, ou, a negação do valor

da vida terrena é explicada por Plumwood (2003) a partir do papel chave da guerra para a

sociedade grega, que como uma sociedade escravocrata, dependia da guerra tanto para a

autodefesa quanto para a manutenção dos meios de produção. Mesmo na sociedade ideal,

imaginada em A república, a guerra é dita como essencial, e segundo a autora, é mencionada

como parte da razão. A autora cita a filósofa feminista Nancy Harstock, segundo a qual,

73 “[…] the meaning of death is that the meaning of human life is elsewhere, not to be found in the earth or in

human life as part of nature, but in a separate realm accessible only to humans”.

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enquanto o herói de guerra experimentava a natureza como uma força hostil, que lhe causava o

sentimento da inevitável morte natural, a cultura se apresentava como uma força positiva, que

promovia a continuidade da vida. De acordo com Morin, é no auge do terror da morte, nesse

caso atingido pela realidade da guerra, que o catecismo e a promessa divina aparecem

socialmente. A identidade platônica transcendental é uma solução para o problema desse herói,

que arrisca sua vida em combate e por esse motivo espera um status imortal.

Plumwood (2003) acredita que na modernidade essa descrição da morte não é mais

plausível, uma vez que o sujeito pós Nietzsche reconhece a vida após a morte como uma

invenção humana. A autora argumenta que a antiga religião foi substituída pela religião no

progresso, de forma que a antiga identidade humana, sem conexão com a natureza, permanece

na forma de um processo infinito e crescente de conquista do mundo natural, e do consumo de

mercadorias. Para Plumwood, a modernidade não proporcionou nenhuma outra identidade

baseada numa afirmação da vida terrena, ou que trate da morte como parte da condição humana.

No entanto, para Lynn White Jr. (1974), nós continuamos a viver atualmente da mesma forma

que vivíamos por volta de 1700, no contexto dos axiomas cristãos.

Plumwood (2003) pontua o significado cultural da morte no ocidente como revelador

sobre o significado da vida. Para ela, no contexto ocidental moderno, o significado geral da

morte é alienado, ou seja, separado do indivíduo, entendida como um vazio, ou um terrível fim,

no qual o único significado é sua falta de sentido. A esse respeito, Morin afirma que quanto

mais a morte foi mascarada pela sociedade ocidental no final do século XX, mais essa assumiu

a forma de diferentes angústias, diferentes facetas, que quanto mais recalcadas, mais

abomináveis pareciam se tornar.

2.4 O PENSAMENTO DE DESCARTES

De acordo com Plumwood (2003), uma vez que a racionalidade não foi considerada pela

filosofia platônica como apenas uma característica distintiva da humanidade, mas, uma

característica superior, essa visão conduziu a uma ordem fortemente hierárquica com a

humanidade no topo, e todo o resto na base. Discípulo de Platão, Aristóteles endossava um

modelo intelectual de identidade humana que tratava a razão como o bem supremo da

humanidade, e outras funções da espécie eram entendidas por ele como existentes apenas como

instrumento para a razão. Conforme explica Keith Thomas (2010), a filosofia de Aristóteles

compreendia a alma por três elementos: a alma nutritiva, pertencente a homens e vegetais, a

alma sensível, dos homens e animais e a alma racional, exclusiva dos homens. Segundo Thomas

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(2010), essa ideia, combinada posteriormente pelos escolásticos medievais, com a ideia

judaico-cristã do homem feito à imagem e semelhança de Deus,

[...] ao invés de representar o homem apenas como um animal superior, [...]

elevava [o homem] a um estado completamente diferente, a meio caminho

entre animais e anjos. No início do período moderno, ela se fez acompanhar

de boa dose de autossatisfação (THOMAS, 2010, p. 40).

Segundo Plumwood (2003), tanto Platão quanto Aristóteles viam a natureza humana

dividida em vários tipos, ao invés de uma concepção unificada com uma natureza em comum.

Assim, cada tipo era visto como naturalmente adaptado a certo tipo de vida, por exemplo, o

escravo, era tido como pouco diferente dos animais. Isso demonstra que nem todos os humanos

eram identificados à razão, à vida racional, mas apenas aqueles que condiziam com o modelo

mestre. De acordo com a autora, eles não consideravam um dualismo generalizado de

humanidade/natureza, visto que dividiam a própria humanidade pelo dualismo razão/natureza.

Foi apenas com o Humanismo que as categorias de humanidade e racionalidade foram tomadas

como sinônimos, formando um entendimento comum de uma natureza humana. Na mais tardia

revolução humanista protagonizada pela filosofia de René Descartes, os limites foram

redesenhados de forma a unificar os dualismos de humanidade/natureza e mente/corpo,

eliminando a divisão na categoria de humanidade e de alma: humanos que a possuíam, ou não.

O que não significa que o conflito entre humanos superiores e inferiores tenha desaparecido,

mas que tomou novas formas e aprofundou a necessidade, por parte do mestre, de legitimação

de um regime escravocrata.

De acordo com Plumwood (2003), o primeiro passo na evolução do dualismo

humanidade/natureza consistiu na construção de uma identidade normativa de humanidade

racional, excluindo ou inferiorizando diversas outras características humanas e não humanas.

Novas implicações no conceito de razão evoluíram para permitir a estrutura do dualismo

razão/natureza, de forma que a esfera da natureza tornou-se considerada o principal termo

contrastante com o mestre, enquanto uma esfera de múltiplas exclusões em relação a ele. No

contexto de crescimento das conquistas coloniais, aliadas à ideologia do progresso como

conquista tecnológica, a natureza foi caracterizada como o primitivo, o passado, pano de fundo

para certas culturas humanas superiores e avançadas, produzindo o dualismo

civilizado/primitivo.

O segundo passo foi a construção da razão em termos exclusivos e em oposição com a

natureza. E o terceiro, a construção da própria natureza como irracional. A autora atribui os

dois primeiros passos à filosofia de Platão, e o último à de René Descartes, do qual os

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pressupostos se assentam na filosofia do primeiro. Os três passos, juntos conceberam a grande

distância entre a humanidade e a natureza característico da tradição ocidental. Para ela, a

manutenção da hiperseparação entre humanidade e natureza correspondeu às transformações

na descrição da virtude humana em relação à descrição desvalorizada da natureza, sendo essa

entendida como um puro mecanismo, desprovida de qualquer elemento da mente. Para a autora,

a visão de mundo mecanicista desempenha o papel principal na sustentação do dualismo

humanidade/natureza, o qual foi constantemente atribuído novas exclusões em relação à

identidade humana, como por exemplo, o uso da linguagem.

De acordo com Plumwood (2003), como herdeiro do racionalismo platônico, o dualismo

no pensamento de Descartes emerge principalmente por meio da exclusão radical, da definição

relacional, bem como da instrumentalização e homogeneização74. Assim como os primeiros

racionalistas, o filósofo define o verdadeiro ‘eu’ como alheio ao corpo e à natureza, dos quais

também nega dependência. No que se refere especificamente ao dualismo entre mente e corpo,

esse emerge especialmente por exclusão radical das qualidades do corpo, em relação à mente,

e pela eliminação da continuidade entre ambos.

À diferença dos filósofos medievais, Plumwood (2003) indica que Descartes rejeita o

entendimento do ‘eu’ dividido entre a parte superior e inferior ou racional e irracional da alma,

compreendendo a divisão apenas entre a mente e o corpo. Para ele, as manifestações da

irracionalidade que não podem ser reduzidas a pensamentos não fazem parte da alma, mas do

corpo, e se utiliza do termo consciência para definir a mente, a base da racionalidade. De acordo

com a autora, a descrição da mente em termos de consciência aprofunda a descontinuidade entre

corpo e mente, uma vez que a mente se torna um conceito que ou está totalmente presente, ou

não está presente de forma nenhuma. Assim, não há lugar para distinções de tipo ou mesmo de

grau, nos quais seriam considerados diferentes tipos de consciência, e ter uma mente requer que

se tenha consciência, ou pensamentos. Na descrição cartesiana de mente, essa é o mecanismo

interior que explica as operações do corpo humano, a qual também distingue completamente os

humanos do resto da natureza, já que apenas os primeiros a possuem.

Conforme explicação de Plumwood (2003), a noção de consciência ou pensamento para

Descartes é uma combinação confusa de diferentes conceitos psicológicos, como ponderar,

calcular, querer, perceber e formular concepções. A partir da classificação desses conceitos

como peculiarmente humanos, o filósofo estabelece exclusão radical entre mente e corpo por

meio da oposição entre sensações de pensamentos, interpretada como um tipo de consciência,

74 A explicação das cinco características da estrutura dual encontra-se no tópico 2.2 deste trabalho.

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ou pensamento que dá conhecimento e sensações corporais. A autora acrescenta que essa

distinção, não apenas torna possível a polarização dualística entre a mente (pensante) e o corpo

(mecânico), mas também que a sensação animal pode ser interpretada em termos puramente

mecânicos e corporais qualificando incapacidade de pensamento para os animais.

Segundo Plumwood (2003), ao mesmo tempo em que o cartesianismo compreende a

mente como puro pensamento, incorpórea, o corpo, como seu ‘outro’ dualizado é compreendido

como pura matéria. Essas características tornam instransponíveis a esfera da natureza com a

esfera da mente, e o atributo mental é identificado com a própria ideia de humanidade. A autora

ressalta a acentuada negação de dependência do corpo, colocado como pano de fundo na

identidade humana, e ressalta que o contraste entre mente e corpo não exclui apenas o último,

mas a feminilidade, a animalidade, as atividades práticas, as emoções, a subjetividade, e outras

características também excluídas pelo racionalismo.

Plumwood (2003) caracteriza o poder e o objeto de poder como a principal diferença

entre o trabalho de Platão e o de Descartes. Para o primeiro, ainda que sua visão da verdadeira

identidade humana fosse como não pertencente à natureza, o filósofo não entendia como tarefa

da humanidade o controle da natureza, uma vez que está mais preocupado com o controle de

sua natureza interna, e a disciplina do corpo e dos sentidos. A percepção do poder humano em

relação à natureza só se faz explícita com o trato que Descartes dá ao tema. Para ele, a natureza

é associada às imagens da cera, que se pode moldar, e da máquina, feita para ser controlada.

Conforme explicação da autora, a imagem da máquina confirma a confiança que o homem

colocava no controle da natureza, bem como sua visão instrumental associada ao aspecto

tecnológico humano. Em relação à tradição racionalista de Platão, já não se trata de escapar do

mundo natural, ou superá-lo com a morte, mas de tornar-se seu mestre e proprietário.

De acordo com a autora, no paradigma do mecanicismo científico cartesiano, a natureza

é anulada, vista como não agente, não criativa, inerte e definida como uma falta; mera coisa,

matéria, desprovida de qualquer característica mental. Enquanto a esfera da humanidade é

tratada como a da liberdade, para a qual se admitem escolhas e transformações, a esfera da

natureza é tida como fixa e determinada, sem capacidade de escolhas. Conforme explicação da

autora, por ser uma construção dualística, a maioria das características atribuídas pela visão

mecanicista da natureza é definida como falta ou inabilidade em relação ao primeiro termo, no

caso a humanidade. O que levou a uma construção da natureza não como um ‘outro’

independente, cuja diferença deve ser respeitada, e seu poder reconhecido, mas como uma

nulidade homogênea carente da racionalidade, criatividade e liberdade humana. De acordo com

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Plumwood (2003), essa construção da natureza como uma nulidade, ou neutralidade, serviu ao

propósito de torná-la adaptável somente aos objetivos e propósitos dos seres humanos.

A autora enfatiza o fato da visão mecanicista da natureza ter se estabelecido mais

fortemente com a ascensão do capitalismo, que tinha necessidade de transformar a natureza em

mercadoria sem nenhuma espécie de constrangimento moral significativo. Conforme

explicação da autora,

A visão da natureza como uma terra nula disponível para anexação, como

vazia, passiva e sem um valor ou direção própria, está constantemente

subjacente e implícita nos primeiros argumentos liberais para a legitimidade

da propriedade privada (PLUMWOOD, 2003, p. 11175).

Ao apontar a relação entre a opressão da natureza com o sistema capitalista, ela

demonstra a relação entre diferentes formas de opressão, que se conectam e apoiam

mutuamente. A autora ressalta o papel dessa relação de interconexão como uma realidade chave

para o entendimento e a subversão de todas elas. Conforme explica, uma vez que o passado

filosófico está assentado em diferentes formas de opressão, a perspectiva teórica que o

interrogue necessita partir de um relato histórico diferente daquele que reconhece apenas uma

forma de opressão maior em relação a outras menores. Um exemplo nosso: o relato marxista

ortodoxo que considera a opressão de classe uma opressão maior, da qual derivam todas as

outras, como de raça, ou gênero.

2.5 CAMINHOS ECOFEMINISTAS

Além de procurar revelar as (in)fundamentações conceituais que possibilitaram os

sistemas de dominação e a formação e manutenção das identidades dominantes, Plumwood

(2003) se dedica a pensar as identidades sociais oprimidas pelo seu potencial emancipatório.

De acordo com a autora, ainda que não seja possível, e talvez nem mesmo necessário, que os

indivíduos abandonem a identidade subjugada como um todo, eles são capazes de uma

reconstrução subversiva ou libertária dela. Conforme explica, a dinâmica dualista, mesmo ao

criar entendimentos polarizados a respeito das identidades, baseados na subordinação e

dominação, não determina que esses entendimentos não possam ser valorizados de forma

positiva por meio de analogias liberatórias obtidas pela superação de falsas escolhas. Não se

trata mais de associarmos aos subjugados os mesmos valores associados à identidade

75 “The view of nature as terra nullius available for annexation, as empty, passive and without a value or direction

of its own, often underlies and is implicit in early liberal arguments for the legitimacy of private property”.

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dominante, mas da valorização de características associadas aos subjugados, por exemplo, o

cuidado e a empatia, associados ao feminino. Pela ambiguidade de poder, essas características

podem ser reavaliadas como empoderadoras.

Para escapar da identidade dualizada, Plumwood (2003) propõe uma reconstrução da

relação identitária por meio de uma concepção de diferença não hierárquica. A partir das cinco

características da construção dualista, a autora lista suas respectivas formas de reconstrução, as

quais transcrevemos a seguir:

1 Pano de fundo (negação): um conceito de diferença não hierárquico requer

uma mudança nos sistemas de pensamento, contabilidade, percepção, tomada

de decisão, que reconheçam a contribuição daquilo que foi colocado como

pano de fundo, e que reconheça dependência.

2 Exclusão radical: um conceito de diferença não hierárquico afirmará

continuidade, reconceberá a relação [entre as identidades] em formas mais

integradas, e romperá com a falsa escolha de hiperseparação presente na

recuperação da área negada na sobreposição.

3 Incorporação (definição relacional): um conceito de diferença não

hierárquico deve rever as identidades tanto do lado inferior quanto do lado

superior. Isso pode ter como objetivo redescobrir uma linguagem e uma

história do lado inferior, recuperar fontes positivas independentes de

identidade e afirmar resistência.

4 Instrumentalismo: um conceito de diferença não hierárquico implica no

reconhecimento do outro como um centro de necessidades, de valor e de luta

por sua própria conta, um ser cujos fins e necessidades são independentes do

eu e que deve ser respeitado.

5 Homogeneização: um conceito de diferença não hierárquico envolve o

reconhecimento da complexidade e diversidade das "outras nações" que foram

homogeneizadas e marginalizadas em sua constituição como o outro excluído,

como "o resto" (PLUMWOOD, 2003, p. 60, grifos da autora76).

Para uma afirmação crítica das identidades subjugadas, a autora reitera a necessidade de

um maior entendimento a respeito das identidades dominantes, camufladas, segundo os ideais

de racionalidade, como a identidade natural. E considera a afirmação crítica, juntamente com a

autocrítica, um caminho para ir além da identidade colonizada, argumentando ser possível

corrigir as distorções criadas pela cultura ocidental por meio da afirmação e do empoderamento

76 “1 Backgrounding (denial): a non-hierarchical concept of difference requires a move to systems of thought,

accounting, perception, decision-making, which recognise the contribution of what has been backgrounded, and

which acknowledge dependency.2 Radical exclusion: a non-hierarchical concept of difference will affirm

continuity, reconceive relata in more integrated ways, and break the false choice hyperseparation presents in

reclaiming the denied area of overlap.3 Incorporation (relational definition): a non-hierarchical concept of

difference must review the identities of both underside and upperside. It can aim to rediscover a language and story

for the underside reclaim positive independent sources of identity and affirm resistance. 4 Instrumentalism: a non-

hierarchical concept of difference implies recognising the other as a centre of needs, value and striving on its own

account, a being whose ends and needs are independent of the self and to be respected. 5 Homogenisation: a non-

hierarchical concept of difference involves recognising the complexity and diversity of the 'other nations' which

have been homogenised and marginalised in their constitution as excluded other, as 'the rest'”.

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da cultura e da vida associadas às identidades desvalorizadas, como o feminino e a natureza.

Ela defende que a afirmação desses indivíduos ou grupos se faz essencial para contrariar a

lógica do sujeito mestre.

Trata-se de valorizar, colocar como primeiro plano, os aspectos culturais até então tidos

como menores, ou desimportantes, como: valorizar a terra, a sombra e os frutos das árvores, a

chuva que nutre a terra, as mulheres que nutrem seus filhos e sustentam a vida da casa, a comida,

o cuidado, a orientação, a afetividade, a transmissão de conhecimentos, de sentidos, a limpeza,

a manutenção, o serviço doméstico e etc., sem negar a dependência de toda a humanidade nos

pontos mencionados. Trata-se também de reconhecer continuidade entre a humanidade e a

natureza, reconhecer que ser humano também é ser vivo natural que nasce de um ventre com

sangue, como outros bichos e que como outros seres da Terra, é cultura animada. E também de

rever as identidades no sentido de reavaliar o que a elas foi atribuído, repensando o que parecia

ser ruim, mas pode ser bom, e vice-versa. Bem como rever aspectos das identidades, formulados

como fontes de resistência pelos próprios grupos oprimidos nas situações de dominação. Com

empatia, por exemplo, é possível reconhecer o outro, os animais, as montanhas e rios, e o valor

intrínseco de cada sistema natural, também digno de respeito e independente do sujeito humano.

Para isso, contudo, é preciso que se desfaça a visão homogeneizante que nega a diversidade e

complexidade daquilo que é o ‘outro’, ou, que não é o ‘eu’.

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3 O MEIO AMBIENTE E A PERSONAGEM HUMANA

“Não humanizo bicho porque é ofensa – há que

respeitar-lhe a natureza – eu é que me

animalizo” (Clarice Lispector).

A escolha de A maçã no escuro como corpus deste trabalho se deve ao fato de

considerarmos a obra atravessada por perspectivas ecofeministas. Ainda que anterior à teoria

ecofeminista, veremos que o trabalho de Clarice prenuncia questões fundamentais concernentes

ao ecofeminismo, bem como à ética animal, inclusive superando limitações da ética animalista,

apontadas pelo ecofeminismo. Seguindo as orientações de Val Plumwood (2003), para a

reconstrução de uma identidade dualista por meio de uma concepção de diferença não

hierárquica, apoiamo-nos nos conceitos de pano de fundo, exclusão radical, incorporação,

instrumentalismo e homogeneização para analisar, no primeiro tópico, a relação entre a

personagem principal Martim e o entorno natural, bem como a unificação entre corpo e mente

da personagem. Priorizaremos, neste tópico, todos os elementos partes da natureza, em

detrimento dos animais, que serão analisados no capítulo quatro deste trabalho. No segundo

tópico, analisaremos a animalidade conferida à Martim no processo de presentificação

vivenciado por ele.

Nesse e nos demais capítulos de análise do corpus, não nos ateremos a uma ou outra

categoria especifica da narrativa, mas buscaremos abarcar as categorias que se impuserem a

partir da leitura do texto, em diálogo com as teorias escolhidas. Contudo, ressaltamos a

preponderância do discurso narrativo como centro de nossa análise, bem como as categorias de

narrador heterodiegético e personagem principal, que se misturam na narrativa de A maçã no

escuro. Conforme explica Benedito Nunes, em diferentes obras de Clarice,

O sujeito-narrador, sem retrair-se, está sempre à ilharga do personagem.

Acompanham-lhe os movimentos, os gestos, as impressões e os pensamentos,

inspeciona-o interior e exteriormente em atitude de máxima proximidade, mas

sem chegar a uma identificação completa, a um conhecimento efetivo de seu

modo de ser (NUNES, 1973, p. 48).

De forma a acompanhar a organicidade do processo da personagem principal, neste

capítulo analisaremos em sequência cronológica os momentos textuais aos quais associamos

conteúdos ecofeministas presentes na unidade77 do corpus.

77 Concebendo forma e conteúdo como partes indissociáveis de uma mesma estrutura.

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3.1 SUPERAÇÃO DE DUALISMOS

O texto inicia com a marcação temporal da narradora78 sobre o início da história que vai

narrar, estabelecendo dessa forma uma comunicação direta com o narratário, e assim,

explicitando o caráter ficcional da obra: “Esta história começa numa noite de março tão escura

quanto é a noite enquanto se dorme” (LISPECTOR, 1999, p. 13). Essa marcação temporal é

feita de duas formas, uma datando o mês de março e especificando que a história se inicia à

noite, e outra pela caracterização dessa noite como tão escura quanto é a noite percebida pelo

sono de quem dorme. Assim, a narração se inicia concebendo uma relação intrínseca entre

diferentes elementos naturais - a noite e os seres que dormem - como partes de um todo.

Acentuando essa relação, em seguida, a narradora desenvolve ainda mais a caracterização do

tempo, mensurado não apenas pelas medidas humanas convencionais – o mês de março, mas

também marcado a partir de um elemento natural, a lua: “O modo tranquilo como o tempo

decorria era a lua altíssima passando pelo céu” (LISPECTOR, 1999, p. 13). Sabemos que o

ambiente inicial da história é uma noite tranquila e escura, embora enluarada, “até que mais

profundamente tarde também a lua desapareceu” (LISPECTOR, 1999, p. 13).

No parágrafo seguinte, a narradora se refere à humanidade de maneira não

antropocêntrica, afirmando equivalência entre esta e outros elementos naturais, e integrando

Martim organicamente79 ao espaço: “Nada agora diferenciava o sono de Martim do lento jardim

sem lua: quando um homem dormia tão no fundo passava a não ser mais do que aquela árvore

de pé ou o pulo do sapo no escuro” (LISPECTOR, 1999, p. 13). Martim faz parte, como órgão80,

de um organismo maior: a natureza. A noite, a lua, um homem dormindo profundamente, o

jardim, uma árvore, um sapo pela metonímia de sua ação, são todos equiparadas

ontologicamente, junto à afirmação da narradora de que um homem81 não era mais do que essas

coisas eram. A descrição da narradora supera o dualismo hierárquico entre

humanidade/natureza, e com esse os dualismos cultura/natureza, razão/natureza e

mente/natureza, por meio da afirmação de integração entre os polos opostos dessa

78 A narração de A maçã no escuro é feita por uma voz feminina, desse modo, utilizaremos a forma narradora,

adaptando a categoria narrativa de narrador, a fim de alcançar maior equidade de gênero, um dos propósitos deste

trabalho. 79 Conforme o dicionário Aurélio, orgânico significa: “1. Relativo a órgão, organização, ou a seres organizados. 2.

Relativo a, ou próprio de organismo. [...] 4. Relativo a, ou derivado de organismos vivos. [...] 6. Fig. Que é natural

ou inato, ou profundamente arraigado, e não planejado ou imposto do exterior”. 80 A palavra órgão é descrita no dicionário Aurélio como “parte de um organismo”, o que demonstra o caráter de

reciprocidade inerente a um e outro. 81 Aqui compreendemos a palavra homem no mesmo sentido proposto pela narradora, o de ser humano.

Reconhecemos a personagem Martim como representante de uma humanidade localizada historicamente: o

humano contemporâneo ocidental.

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hiperseparação. O fato de se tratar do homem em sono profundo alude à condição de civilidade

que afastou a humanidade do restante da natureza. É dormindo profundamente, logo, despojado

de suas experiências mais civis, uma vez que, dormindo, a razão humana é relegada ao

inconsciente, o obscuro, o selvagem: o lado inferior do dualismo consciente/inconsciente, na

lógica da lista de dualismos de Plumwood82 (2003).

Depois de apresentar Martim, a narradora se volta para a caracterização do ambiente

natural:

Algumas árvores haviam ali crescido com enraizado vagar até atingir o alto

das próprias copas e o limite de seu destino. Outras já haviam saído da terra

em bruscos tufos. Os canteiros tinham uma ordem que procurava

concentradamente servir a uma simetria. Se esta era discernível do alto da

sacada do grande hotel, uma pessoa estando ao nível dos canteiros não

descobria essa ordem; entre os canteiros o caminho se pormenorizava em

pequenas pedras talhadas (LISPECTOR, 1999, p. 13).

Essa caracterização ultrapassa o nível descritivo de composição tradicional da natureza

como lugar ou paisagem, uma vez que a narradora atribui a ela uma qualidade mental, a

intencionalidade. Segundo Plumwood (2003), a delimitação cartesiana de mente incluía apenas

a consciência e a experiência subjetiva. Sendo essas fortemente presentes na espécie humana,

restringia-se, qualquer aspecto mental ao restante da natureza. No entanto, de acordo com a

filósofa, “[...] não há apenas um critério mental, mas um grupo que abarca consciência,

intencionalidade, experiência/senciência, imaginação, razão, direcionamento” (PLUMWOOD,

2003, p. 13183), entre outros, os quais não são restritos a humanos ou mesmo a seres animados.

No critério da intencionalidade, proposto por Plumwood (2003) como base alternativa para uma

descrição não reducionista de continuidade entre mente e natureza,

[...] as qualidades mentais são espalhadas pela natureza, e são necessárias para

a sua compreensão, mas há um alto nível de diferenciação entre diferentes

tipos de qualidades mentais e diferentes tipos de seres que as possuem. [...]

Ela fornece uma complexidade de distinções, uma rede de diferença contra

um terreno geral de continuidade, e uma maneira de rejeitar qualquer divisão

ou ruptura cósmica absoluta entre as esferas humana e natural com base na

posse da mente (PLUMWWOD, 2003, p. 13484).

82 Tópico 2.2 deste trabalho. 83 “[…] there is not just one criterion of the mind, but rather a whole cluster – consciousness, intentionality,

experience/sentience, imagination, reason, goal-directedness”. 84 “[…] mindlike qualities are spread throughout nature, and are necessary to its understanding, but there is a high

level of differentiation between different sorts of mindlike qualities, and between different sorts of beings which

have them. […]. It provides a complex of distinctions, a web of difference against an overall ground of continuity,

and a way to reject any absolute, cosmic division or break between the human and natural spheres based on the

possession of mind”.

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No corpus, a narradora reconhece a intencionalidade das árvores e dos canteiros,

expressa pelo destino específico das primeiras e pela ação de concentração (em servir a uma

simetria) dos segundos. De acordo com Plumwood (2003), para todas as criaturas vivas pode

ser atribuído teleologia: um objetivo geral de vida, e “Noções de crescimento, de florescimento,

por exemplo, são implicitamente teleológicas e não pressupõem a consciência” (2003, p. 13585).

Por meio da intencionalidade, a narradora confere às plantas o status de um ser vivo implicado

em sua própria história de vida, operando uma conceituação não hierárquica de diferença ao

reconhecer o ‘outro’ (em relação ao eu-Martim) como centro de suas próprias necessidades.

Segundo Plumwood (2003), uma visão menos antropocêntrica do “[...] mundo das plantas inclui

outros totalmente intencionais cujos esforços, interações e diferenças na estratégia da vida são

intrincados, incríveis e misteriosos” (2003, p. 134-13586). Uma forma de destacar a valorização

da natureza vegetativa e afirmá-la como um ser independente da humanidade é ressaltar a ordem

dos canteiros, não evidente de imediato à percepção humana, ainda que essa possa descobri-la

mudando de nível: do alto da sacada do grande hotel. No fim do trecho em questão, mesmo as

pequenas pedras, os mais frequentes exemplos de elementos abióticos87, integram a descrição

do ambiente natural focalizado pela narradora. E em outro momento, características de seres

animados são atribuídas às pedras: “[...] em silêncio uma lua desfalecida derramou-se sobre

pedras calmas” (LISPECTOR, 1999, p. 17).

Operando uma dialética entre as partes do dualismo humanidade/natureza, no momento

seguinte, a narradora retorna o foco para a humanidade, avisando que, “Sobretudo[,] numa das

alamedas o Ford estava parado há tanto tempo que já fazia parte do grande jardim entrelaçado

e de seu silêncio” (LISPECTOR, 1999, p. 13, grifo nosso). De forma que alude à personagem

principal, o termo sobretudo indica a maior relevância dos acontecimentos que se referem a

Martim, que vê no carro uma possibilidade de fuga. No início do primeiro capítulo, descobrimos

que Martim é um fugitivo, escondido em princípio num antigo hotel no meio rural. Mas mesmo

nesse momento de especial atenção à personagem humana, quando se refere ao jardim, o

narrador assinala uma qualidade da natureza conforme um dos princípios básicos da ecologia,

o de que tudo está interligado: entrelaçado, sendo o silêncio também compreendido como um

elemento parte dessa natureza.

85 “Notions of growth, of flourishing, for example, are implicitly teleological and do not presuppose

consciousness”. 86 “[…] the plant world includes fully intentional others whose strivings, interactions and differences in life strategy

are intricate, amazing and mysterious”. 87 Que não possuem vida.

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Com o foco de volta à natureza, a narradora acentua mais uma vez a conexão entre

diferentes elementos naturais: “[...] de dia a paisagem era outra, e os grilos vibrando ocos e

duros deixavam a extensão inteiramente aberta, sem uma sombra. Enquanto o cheiro era o seco

cheiro de pedra exasperada que o dia tem no campo” (LISPECTOR, 1999, p. 13). Aqui por

meio da correspondência e relação de causalidade entre o som vibrante dos grilos com a

extensão do ambiente ao redor. Verifica-se a presença de sinestesia na descrição da paisagem

do dia, inteiramente aberto à visão, sonoro, de um som seco e um cheiro de pedra dura ao toque.

Posteriormente, de volta à humanidade, Martim é então descrito em cima da sacada procurando

“[...] não perder nada do que se passava” (LISPECTOR, 1999, p. 14), primeira sugestão de que

ele está fugindo. E assim, a narradora se refere ao carro novamente:

[...] enquanto o homem dormia o carro se tornava enorme como é gigantesca

uma máquina parada. E de noite o jardim era ocupado pela secreta urdidura

com que o escuro se mantém, num trabalho cuja existência os vaga-lumes

inesperadamente traem; certa umidade também denunciava o labor. E a noite

era um elemento em que a vida, por se tornar estranha, era reconhecível

(LISPECTOR, 1999, p. 14).

Nota-se a relevância que o escuro tem na descrição do ambiente e de sua atmosfera, pela

simbologia de mistério que possui. A tessitura com que o mistério da noite se mantém pode ser

compreendida como intencionalidade, esse trabalho ativo da natureza “[...] intensamente viva

com seres envolvidos em vários tipos de atividades conscientes, intencionais e direcionais”

(PLUMWOOD, 2003, p. 13788). A respeito da escuridão, onde tudo foi inicialmente criado,

Clarice em vida afirmara:

Acredito no escuro. O poder das trevas – tudo sem forma em opaco e escuro.

É muito bom acreditar no absurdo, e trocar de absurdo. Pensando bem, os

fenômenos naturais são os mais sobrenaturais de todos. Eis que a escuridão se

dilata e se afina como um simples véu transparente – e eu vejo. Isto: Tudo é

mágico porque é ilusão porque se transforma de ilusão para realidade. Atrás

de uma coisa existe sempre outra coisa que tem atrás de si outra coisa que...

Assim sendo chego ao interior do átomo? Ou chegarei enfim à energia

primeira que me gerou? (Borelli, 1981, p. 55-56 apud ROSSONI, 2002, p. 23-

24).

Assim, se a noite expressa um velamento do entorno, ao mesmo tempo possibilita o

desvelamento da essência mais profunda da vida, de forma que ao não se dar inteiramente à

vista, por isso se faz reconhecível. O reconhecimento da vida se faz possível também pelo

cheiro, pela sensação térmica, e pelos ruídos, todas as sensações corporais aguçadas pelos

outros sentidos que não a visão, e todos interligados.

88 “[…] intensely alive with beings engaged in various kinds of mindful, purposive, directional activity”.

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Se o ambiente é descrito por meio de palavras que sugerem inexatidão, a máquina é

retratada como enorme e gigantesca, logo, imediatamente perceptível. Em Por uma outra

globalização: do pensamento único à consciência universal, de 2000, o geógrafo Milton Santos

se refere às máquinas como um sistema técnico incorporado ao solo como próteses, que

modificam a face da terra e alteram a relação entre as sociedades e os indivíduos, ao qual

acrescentamos, entre os indivíduos e o meio ambiente. A ideia de uma máquina incorporada ao

solo como prótese se aproxima da ideia de uma máquina parada parecer gigantesca. Em

analogia ainda mais perfeita com a caracterização de Santos, a narradora descreve o movimento

do carro que “[...] se desenraizara com rouquidão” (LISPECTOR, 1999, p. 16). Existe aqui

uma espécie de tensão entre o natural e o artificial, ora contrastado, ora assimilado, que

subscreve os dualismos cultura/natureza, humanidade/natureza e civilizado/primitivo, sem que,

no entanto, a narradora hipervalorize o primeiro elemento de cada par citado. Tampouco faz o

que Plumwood (2003) chama de reversão acrítica, que consiste na reversão do dualismo, de

forma que se hipervalorize o lado antes desvalorizado e vice-versa, não modificando a estrutura

dualista hierárquica. Ainda efetuando a dialética entre a humanidade e a natureza, o carro, que

representa a possibilidade de fuga, e então de segurança para Martim, também é visto por outra

perspectiva, a das aranhas, que “[...] tranquilizadas pela mobilidade envernizada [do carro],

haviam executado o aéreo trabalho ideal” (LISPECTOR, 1999, p. 15), ideal para sua espécie.

No momento seguinte,

Dentro do silêncio de novo intato, o homem agora olhou estupidamente o teto

invisível que no escuro era tão alto quanto o céu. Largado de costas na cama,

tentou num esforço de prazer gratuito reconstituir o ruído das rodas, pois

enquanto não sentia dor era de um modo geral prazer que ele sentia

(LISPECTOR, 1999, p. 16, grifo nosso).

A estupidez afirmada sem a negatividade comum a ela associada e o prazer gratuito do

pensamento de Martim se afastam da identidade humana forjada pelo ideal racionalista, que

exclui também a subjetividade, algumas emoções e desejos. Inferimos a condição geral de

prazer, quando não, de dor, à condição senciente de todos os animais, a de possuir consciência

e sensibilidade: “todos os animais têm a capacidade de percepção dos estímulos dolorosos e

prazerosos que afetam seus organismos” (FELIPE, 2014, p. 28). Assim, enquanto nada lhe

infligisse dor, como animal que também é, sentia, de um modo geral, prazer. A comparação do

escuro do quarto com o céu ressalta a situação dialética feita entre os elementos sociais humanos

e os elementos naturais não humanos, no caso, entre o teto e o céu. Situação dialética no nível

da frase, mas que corresponde à mesma situação no nível dos parágrafos, quando a narradora

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se divide entre as descrições do ambiente natural de menor e maior escala e a personagem

humana Martim. Na sequência, o mesmo acontece, e a descrição que está sendo feita de Martim,

dentro do quarto, é acrescida da descrição do jardim, fora do quarto:

Da cama não via o jardim. Um pouco de bruma entrava pelas venezianas

abertas, o que se denunciou ao homem pelo cheiro de algodão úmido e por

uma certa ânsia física de felicidade que a cerração dá. Fora apenas um sonho,

então. Cético, embora, ele se ergueu (LISPECTOR, 1999, p. 16).

A intensa descrição das sensações, possibilitada pelo trabalho poético da narradora

aproxima a percepção física do ambiente, o que atua como forma de valorização dos aspectos

naturais ignorados no meio urbano, próprio da condição das cidades maiores, tanto distanciadas

da natureza, como fator de sua extinção. A construção de uma nova estrada, pavimentada –

mais urbana e civilizada – desviou o curso de passagem para 50 quilômetros do hotel em que

Martim está “hospedado”, fato do qual depreendemos uma preocupação da narradora com o

meio rural e o crescimento urbano que marginaliza as áreas mais remotas, como quando essa

afirma que então “[...] o lugar todo morrera e não havia mais motivo de alguém vir a precisar

de hotel na zona agora entregue ao vento” (LISPECTOR, 1999, p. 15, grifo nosso).

A narradora continua a relacionar os elementos de ordem humana aos elementos de

outra ordem natural, justamente a fim de associar a humanidade à natureza, atitude que desfaz

o dualismo razão/natureza, humanidade/natureza e cultura/natureza, percebido nos seguintes

trechos “Ali, pois, deixou-se ficar, dócil, atordoado” (LISPECTOR, 1999, p. 16), “O homem

grunhiu aprovando” (LISPECTOR, 1999, p. 17). A associação de palavras utilizadas para se

referir ao comportamento dos animas: dócil e grunhir demonstra a afirmação da humanidade

enquanto animalidade e natureza.

A narradora descreve o processo no qual a personagem, recém acordado, está se

inteirando do ambiente ao redor. Quando a personagem dirige seu olhar para a alameda onde o

carro estivera até então estacionado, percebe que sua principal esperança de fuga desaparecera.

Nesse momento, “O corpo inteiro do homem subitamente despertou. Num relance astuto seus

olhos percorreram a escuridão toda do jardim – e, sem um gesto de aviso, ele se virou para o

quarto em leve pulo de macaco” (LISPECTOR, 1999, p. 17). Após esse alarme, Martim

procurou acentuar ainda mais sua visão, esfregando “[...] várias vezes os olhos com o dorso de

uma das mãos enquanto deixava a outra livre para a defesa. Foi inútil sua nova sensibilidade:

nas trevas os olhos totalmente abertos não viram sequer as paredes” (LISPECTOR, 1999, p.

17). A visão, o sentido mais utilizado pela espécie humana, é descrito como inútil no contexto

da escuridão, o que conota a limitação desse atributo e consequentemente, da humanidade. Em

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contrapartida, a reação corporal de Martim é valorizada: “De real só lhe restou a sagacidade

que o fizera dar um pulo para indistintamente se defender” (LISPECTOR, 1999, p. 17). A

reação de defesa descrita como indistinta, comum, sem um gesto de aviso, é nesse caso

considerada mais real do que uma tentativa premeditada de apreensão da realidade: o esfregar

os olhos para enxergar. Mas não se trata apenas de valorizar aquilo que seria alheio a qualquer

forma de pensamento, uma vez que a narradora também atribui como real “A mesma

[sagacidade] que o levava agora a raciocinar com inesperada lucidez que se o alemão tivesse

ido denunciá-lo levaria algum tempo para ir e voltar com a Polícia” (LISPECTOR, 1999, p. 17,

grifo nosso).

Explicando a faculdade de raciocínio de Martim como um processo natural de resposta

ao ambiente, tal qual o processo dos outros animais, a narradora marca uma distância da

personagem, com as características associadas à cultura: razão, inteligência e julgamento:

[...] findo [esse] raciocínio, ao qual chegara com a maleabilidade com que um

invertebrado se torna menor para deslizar, Martim mergulhou de novo na

mesma ausência anterior de razões e na mesma obtusa imparcialidade, como

se nada tivesse a ver consigo mesmo, e a espécie se encarregasse dele

(LISPECTOR, 1999, p. 18).

O pensamento de Martim é compreendido aqui como parte de sua animalidade, próprio

da espécie humana, devido a comparação com os animais invertebrados, desfazendo o dualismo

razão/natureza, mente/corpo e racionalidade/animalidade.

Alerta pelo perigo de ser capturado, Martim está inteiramente dedicado à ação de fugir,

o que exige dele uma presença não dualizada em mente e corpo:

Sem um olhar para trás, guiado por uma escorregadia destreza de movimentos,

começou a descer pela sacada apoiando pés inesperadamente flexíveis na

saliência dos tijolos. Na sua atenta remotidão o homem sentia perto da cara o

cheiro malévolo das heras quebradas como se nunca o fosse esquecer. Sua

alma agora apenas alerta não distinguia o que era ou não importante, e a toda

operação ele deu a mesma consideração escrupulosa (LISPECTOR, 1999, p.

18).

Os sentidos de Martim estão todos aguçados, ele sente fortemente o cheiro das plantas,

percebe a textura do que seus pés tocam. De acordo com a escritora e psicanalista analítica

Clarissa Pinkola Estés, em Mulheres que correm com os lobos, obra baseada na psicanálise

junguiana, “na psique instintiva, o corpo é considerado um sensor, uma rede de informações,

um mensageiro com uma infinidade de sistemas de comunicação – cardiovascular, respiratório,

ósseo, nervoso, vegetativo, bem como o emocional e o intuitivo” (1994, p. 251). No corpus, é

o corpo de Martim quem se adverte da transmissão de uma mensagem, e é seu corpo que tem

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consciência dessa cumplicidade com a natureza, sem que ninguém precisasse ensinar o que para

a narradora nos é dado como instinto:

Num pulo macio, que fez o jardim asfixiar-se em suspiro retido, ele se achou

em pleno centro de um canteiro – que se arrepiou todo e depois se fechou.

Com o corpo advertido o homem esperou que a mensagem de seu pulo fosse

transmitida de secreto em secreto eco até se transformar em longínquo

silêncio; seu baque terminou se espraiando nas encostas de alguma montanha.

Ninguém ensinara ao homem essa conivência com o que se passa de noite,

mas um corpo sabe (LISPECTOR, 1999, p. 18, grifo nosso).

Vivenciando uma experiência completamente física de seu corpo, com a “alma apenas

alerta”, o que entendemos por sem pensamentos, Martim se aproxima de uma condição

animalizada. Nesse trecho, a conexão entre corpo e mente se afirma enquanto parte ontológica

da humanidade. Além disso, descrevendo não apenas as ações e reações da personagem

humana, como também da natureza em relação com essa, a narradora afirma a consciência da

própria personagem sobre a relação intrínseca entre toda a diversidade natural, de que tudo está

interligado, ainda que de forma secreta: que não pode ser vista no escuro da noite. O

posicionamento da narradora atende a diretriz de Plumwood (2003) para um resolução mais

profunda do dualismo mente/corpo e o dualismo a este associado mente/natureza: “[...]

encontrar uma base não reducionista para reconhecer continuidade e recuperar o terreno de

sobreposição entre a natureza, o corpo e o humano” (2003, p. 12389).

Superando a separação ocidental tradicional que concebe as faculdades cognitivas

restritas à atividade mental, compreendida como exterior ao corpo, a narradora rompe com a

polarização própria do dualismo ao estabelecer uma fusão entre ambas as ordens. Tocando no

dualismo mente e corpo, toca-se também nos itens associados a cada parte da estrutura dual.

Assim, são fundidas também razão e natureza, macho e fêmea – já que a sabedoria é relacionada

à mente e a mente ao masculino – razão e emoção, liberdade e necessidade – Martim livre

obedece às necessidades de seu corpo em fuga – universal e particular, civilizado e primitivo.

Outro exemplo dessa superação entre as partes do dualismo mente/corpo: “Já caminhara

horas, o que pôde calcular pelos pés grossos de cansaço” (LISPECTOR, 1999, p. 19), explica

a narradora, por meio da integração da faculdade mental de calcular, com a da sensibilidade da

experiência corporal, principalmente os pés, durante a fuga, convergindo com a representação

de mobilidade e liberdade dos pés no simbolismo dos arquétipos, descrito por Clarissa Pinkola

Estés (1994). Essa integração entre mente e corpo é ainda verificável nos seguintes trechos:

89 “[…] finding a non-reductionist basis for recognising continuity and reclaiming the ground of overlap between

nature, the body and the human”.

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“[...] esta lembrança o homem há duas semanas guardava nos pés90 com aplicação cuidadosa,

conservando-a para um uso eventual” (LISPECTOR, 1999, p. 14), “[...] assim, pois, eu, pensou

seu corpo se comovendo” (LISPECTOR, 1999, p. 14-15), “[...] o corpo do homem achou bom

se sentir saudavelmente de pé” (LISPECTOR, 1999, p. 16), “[...] seus pés tinham a milenar

desconfiança da possibilidade de pisar em alguma coisa que se mova – os pés apalpavam a

moleza suspeita daquilo que aproveita a escuridão para existir” (LISPECTOR, 1999, p. 19),

“Apalpou com dedos sábios: era um galho” (LISPECTOR, 1999, p. 20) “[...] no escuro seus

pés dormentes haviam imaginado” (LISPECTOR, 1999, p. 21), “[...] seu corpo não soube se

havia ou não de sentir prazer nessa descoberta” (LISPECTOR, 1999, p. 21). Ainda, quando a

narradora descreve a sensação de estar próximo da cerração como felicidade física, unindo os

sentimentos às sensações corporais, materiais, e dessa forma, desfazendo a polarização dos

dualismos mente/corpo, razão/matéria (fisicalidade) e razão/emoção.

Se na estrutura do dualismo o lado inferiorizado é colocado como radicalmente

excludente em relação ao lado considerado superior, nos exemplos acima a narradora considera

os termos em continuidade, de modo que eles se relacionam de forma mais integrada, superando

a concepção de que são opostos. Essa sobreposição também modifica a negação de

dependência, a primeira característica da estrutura dualística descrita por Plumwood (2003), na

qual o lado inferiorizado é colocado como pano de fundo. Aqui, por meio de uma inversão

crítica da narradora, atribuindo sempre cognição ao corpo, esse é colocado em evidência em

relação à mente, que nesse momento da narrativa configura o pano de fundo da personagem. A

narradora também invalida a rigidez dos limites nos conceitos polarizados de identidade obtidos

por exclusão. Segundo Plumwood,

A filosofia pós-moderna está começando a descobrir o corpo na mente, a

mente no animal, o corpo como o lugar de inscrição cultural, a natureza como

outro criativo. Não precisamos e não devemos seguir posições reducionistas

que negam diferença, ao negar que o psicológico ou a intencionalidade é um

modo ou grau irredutível do discurso diferente da fisicalidade. Mas nós

podemos conceber a mente como mais corporal e o corpo como mais mental,

e também podemos conceber a relação entre eles em termos mais amigáveis e

cooperativos (2003, p. 12491).

90 Também converge com o pensamento arquetípico de Estés, no que se refere à memória corporal: “o corpo se

lembra, os ossos se lembram, as articulações se lembram. Até mesmo o dedo mínimo se lembra. A memória se

aloja em imagens e sensações nas próprias células” (1994, p. 251). 91 “Postmodern philosophy is beginning to discover the body in the mind, the mind in the animal, the body as the

site of cultural inscription, nature as creative other. We need not and should not follow reductionist positions in

denying difference, in denying that the psychological or intentional is an irreducible mode or level of discourse

different from the physical. But we can conceive mind as more bodily and body as more mindlike, and we can also

conceive their relationship in friendlier and more co-operative terms”.

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Consideramos que, embora a narradora pareça fazer, em alguns momentos, uma

reversão acrítica, fundindo corpo e mente de forma a excluir a diferença entre eles, trata-se de

um momento particular da narrativa no que se refere à fuga de Martim. Veremos posteriormente

que esse processo é modificado, contemplando a concepção de Plumwood (2003) em relação a

uma maior cooperação entre os termos. De qualquer forma, o tratamento conferido pela

narradora reconstrói a relação polarizada ao revisar “[...] o menor valor atribuído ao lado

inferior [dos dualismos], o corpo, os sentidos, a emoção, a imaginação, o animal, o feminino e

a natureza” (PLUMWOOD, 2003, p. 12392).

Em fuga, Martim andou quilômetros na escuridão da noite. “Com a mansidão de um

escravo, ele fugia. Certa doçura o tomara, só que ele vigiava a própria submissão e de algum

modo a dirigia. Nenhum pensamento perturbava sua marcha constante e já insensível”

(LISPECTOR, 1999, p. 19). A percepção do sentimento de ternura, junto à vigia desse

sentimento denotam o processo consciente de si, de Martim. Assim, quando a narradora

descreve que nenhum pensamento perturbava a marcha da personagem, não significa que esta

estivesse entregue a um estado não mental, mas que, Martim, experienciava uma

presentificação de sua consciência, no aqui do espaço e no agora do tempo.

“Já não mais atiçado pelo perigo, desaparecera a sagacidade que lhe seria agora apenas

um entrave. E de novo o embrutecimento suave o dominava” (LISPECTOR, 1999, p. 20).

Bruto, aquilo que é intocado, natural, de forma que a suavidade associada a ele não constitui

um paradoxo, mas demonstra que a associação da brutalidade com ferocidade denota a

transformação do sentido de bruto pelo dualismo hierárquico entre humanidade/natureza. Para

a narradora, a brutalidade associada à animalidade é não somente positiva como bela, “Guiava-

o a suavidade dos brutos, a mesma que faz com que um bicho ande bonito” (LISPECTOR,

1999, p. 24). Esse estado bruto também pode ser compreendido como um estado meditativo,

quando decide dormir, até que “[...] a primeira penumbra lhe revelasse um caminho”

(LISPECTOR, 1999, p. 20) “O homem não estava com sono mas no escuro não saberia o que

fazer da grande vigília. Além do mais não tinha assunto” (LISPECTOR, 1999, p. 20), ou,

vontade de pensar.

Martim se decide a deitar e dormir. “Mal porém tocara numa terra que aos pés se

esquivara, e esta instantaneamente se desencantou em algo resistente, cujas duras rugas estáveis

pareciam as do céu da boca de um cavalo” (LISPECTOR, 1999, p. 20, grifo nosso). Pelo

trabalho com as palavras grifadas, a narradora clama pela ideia de realidade, materialismo, mas

92 “[…] the lower value accorded the underside, the body, the senses, emotion, the imagination, the animal, the

feminine and nature”.

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sem deixar de relacionar essa existência real, palpável, com outras realidades naturais, também

palpáveis, como o céu da boca de um cavalo, ou não palpáveis, como a noite. Ainda que não se

saiba do além mundo, desse mundo, pelos sentidos corporais, animais e físicos, pode-se saber.

Sentidos físicos que, a partir de uma visão não dualizada entre corpo e mente, também

compreendem os sentidos psicológicos, virtuais.

A noite, a escuridão, a natureza são retratadas pela narradora como um ser intencional,

agente, consciente da presença de Martim: “O homem não se deixou enfeitiçar pela delícia que

sentiu na suavidade; adivinhava que léguas além a escuridão sabia que ele estava ali. Manteve-

se pois em espreita, tendo sob um perfeito controle os meios de comunicação da noite”

(LISPECTOR, 1999, p. 20, grifo nosso). Nesse trecho, compreendemos, principalmente, os

animais noturnos, que a quilômetros de distância apreendem por diferentes formas sensoriais a

presença de outros animais. Mas também outras formas de vida sensitivas, uma vez que não é

especificado o que compõe essa escuridão. Para a narradora, a natureza, representada por uma

forma mais abstrata: a noite, opera meios de comunicação, uma das principais características

relacionadas ao comportamento dos animais. Conforme explica Plumwood, “Uma resolução

mais profunda desses dualismos [mente/corpo, mente/natureza e sujeito/objeto] envolveria

estender conceitos de autonomia, agencia e criatividade àqueles que lhes foram negados sob a

divisão cartesiana do mundo” (2003, p. 124, tradução nossa93). No corpus, todos os elementos

naturais são compreendidos como possuidores desses conceitos.

Ocupando o lugar de sujeito, a narradora tem como seu objeto de observação o ambiente

natural, no entanto, essa relação não reproduz o dualismo sujeito/objeto no qual o objeto é

instrumentalizado e definido em relação aos objetivos do sujeito. Ao contrário, a posição da

narradora atende ao que a física americana Evelyn Fox Keller chama de objetividade dinâmica,

uma forma de observação baseada na continuidade, que “[...] visa uma forma de conhecimento

que concede ao mundo que nos rodeia sua integridade independente, mas que o faz de uma

forma que permanece ciente, na verdade depende dessa conectividade com esse mundo” (1985,

p. 117 apud PLUMWOOD, 2003, p.123, tradução nossa94). De acordo com Plumwood (2003),

observa-se exclusão radical quando o objeto de observação não é considerado como um outro

sujeito em potencial, ou, como um ser sociocultural com atributos mentais. Conforme

explicação da autora, o dualismo sujeito/objeto é outro legado da filosofia cartesiana, que, ao

93 “A deeper resolution of these dualisms would involve extending concepts of autonomy, agency and creativity

to those who have been denied them under the Cartesian division of the world”. 94 “[…] aims at a form of knowledge which grants to the world around us its independent integrity but does so in

a way which remains cognizant of, indeed relies on, our connectivity with that world”.

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negar características mentais ao mundo não humano, determinou inclusive os parâmetros

científicos de objetividade.

3.2 PRESENTIFICAÇÃO E CONSCIÊNCIA ANIMAL

Na sequência da narrativa, Martim dormia, e

Enquanto dormia não gastava do pouco que ele se tornara, mas sacava de

alguma coisa como de sua raça de homem, o que era indistinto e satisfatório.

Através dessa coisa feita de rugido ele atingia muito: sua boca estava grossa

de boa e nutritiva saliva. Assim, quando o último passo de seu futuro se

completou, Martim mexeu-se na dureza do chão (LISPECTOR, 1999, p. 21).

Quando a narradora se refere à condição de Martim, o faz associando-o à animalidade e

à natureza, de diferentes formas, como, caracterizando a humanidade como uma raça animal,

representando ferocidade pela metonímia do rugido e elogiando a alimentação que vem da sua

própria saliva. Afirmar o pertencimento a uma raça animal é uma forma de estabelecer

continuidade entre a humanidade e a natureza. Separada até mesmo da espécie animal, a

concepção cartesiana colocou a humanidade no topo de uma hierarquia em oposição à natureza,

fazendo-a perder o vínculo de parentesco e comunidade com esta. No último passo de seu futuro

ou no momento presente, a narradora simboliza a animalidade e a corporalidade negligenciadas

pelo racionalismo cartesiano, quando descreve a personagem mexendo-se no chão duro,

concreto, material. O vínculo com a também natureza é reestabelecido pela narradora, na

experiência de Martim:

Ora como se qualquer caminho terminasse fatalmente em costa aberta, o que

era uma verdade, mas difícil de ser atingida por pés; ora como se na realidade

ele não tivesse a menor pretensão de ir a algum lugar determinado. Depois,

com a continuação aplainadora de noites e dias – e aliar-se à continuação,

grudando a esta o corpo inteiro, havia-se tornado o secreto objetivo desde que

ele fugira (LISPECTOR, 1999, p. 24).

A narradora pensa a natureza como um todo, no entanto, sem deixar de individualizar

suas partes, como os animais: um ser humano com uma específica limitação geográfica em sua

locomoção por pés. Juntamente com o globo terrestre, inteiro terminado em mar, estão a

sucessão dos dias e as noites: o movimento de rotação da terra em torno do seu próprio eixo,

que manifesta a passagem do tempo, a realidade à qual Martim deseja se integrar de corpo

inteiro. Amparadas pelo ecofeminismo concluímos que esse desejo da personagem corresponde

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ao reconhecimento do eu como mais animalizado e encarnado95. Uma vez corporalmente

“grudado” a essa continuação do tempo, ou, presente no momento presente, no aqui e no agora,

o futuro e o passado são descritos como um impedimento: “[...] fora aos poucos se descartando

com sabedoria instintiva de tudo o que pudesse mantê-lo entravado por um futuro, pois o futuro

é faca de dois gumes, e futuro molda o presente” (LISPECTOR, 1999, p. 26, grifo nosso); “Com

o correr dos dias também outras ideias tinham ficado gradualmente para trás como se, [...] o

homem fosse se despojando do que pesa. E sobretudo do que ainda pudesse mantê-lo preso ao

mundo anterior” (LISPECTOR, 1999, p. 26, grifo nosso). O mundo antes do ato:

[...] desde que há duas semanas, aquele homem experimentara o poder de um

ato, parecia também ter passado a admitir a estúpida liberdade em que se

achava. Sem um pensamento de resposta, pois, suportou imóvel o fato de ele

ser o único próprio ponto de partida (LISPECTOR, 1999, p. 23).

A condição animal/natural, anteriormente descrita, associada a uma liberdade estúpida

ou não racional, coloca Martim em contato com o seu eu individual, “Ele mesmo era o seu

primeiro marco” (LISPECTOR, 1999, p. 27), em uma plenitude de comunhão com sua própria

natureza, que é animal, bem como da natureza maior que ele mesmo.

Qualquer motivação de ordem pragmática é eliminada, sendo a fruição de uma beleza

não explicita a descrição do sentimento de Martim:

[...] com a continuação de noites e dias o homem terminara por esquecer o

motivo pelo qual quisera encontrar o mar. Quem sabe, talvez não fosse por

nenhum motivo de ordem prática. Talvez fosse apenas para que, chegando

finalmente ao mar, num instante de obscura beleza, ali ele tivesse chegado

(LISPECTOR, 1999, p. 24).

O mar, porque seu “[...] rumor primário [...] seria o que menos comprometeria o modo

cauteloso como ele se tornara apenas um homem caminhando” (LISPECTOR, 1999, p. 25).

Martim deseja estar presente na continuação dos dias e noites, e de ser, uma vez que, no

momento presente se encontra na circunstância da fuga, apenas um homem caminhando. Desse

modo, um som primário como o do mar, primário como o surgimento da própria vida,

simbolizado pela água96, teria menos risco de comprometer o exercício cauteloso de

presentificação de Martim.

95Tomamos o termo de empréstimo de Plumwood (2003). 96 “Na simbologia, os grandes volumes de água representam o lugar em que se crê que a própria vida teve origem.

Nas regiões hispânicas do sudoeste dos Estados Unidos, o rio simboliza a capacidade de viver, de viver realmente.

Ele é considerado a mãe, La Grande Madre, a Grande Mulher, cujas águas não só correm nas valas e leitos de rios,

mas que se derramam de dentro do corpo das próprias mulheres quando seus filhos nascem. O rio é visto como a

Gran Dama que passeia pela terra com uma saia rodada e esvoaçante, azul ou prateada e às vezes dourada, que se

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Além de animalizar a identidade de Martim, a narradora dialoga com preceitos

religiosos orientais. A epígrafe de A maçã no escuro é um trecho do livro Upanixade, que

compõe os livros Vedas, as escrituras sagradas do hinduísmo, as mais antigas do Oriente:

Criando todas as coisas, ele entrou em tudo. Entrando em todas as coisas,

tornou-se o que tem forma e o que é informe; tornou-se o que pode ser definido

e o que não pode ser definido; tornou-se o que tem apoio e o que não tem

apoio; tornou-se o que é grosseiro e o que é sutil. Tornou-se toda espécie de

coisas: por isso os sábios chamam-no o Real (LISPECTOR, 1999).

Para a cultura ocidental são mais familiares outras representações religiosas orientais,

como o Budismo e o Zen, ainda que haja diferenças importantes entre eles. No corpus,

analisaremos principalmente o entendimento oriental da experiência do tempo presentificado,

também conhecido como nirvana, um estado mental de libertação da alma ou de dissolução do

ser no todo, uma vez que essa experiência do tempo também é associada ao tempo dos animais.

Nesse momento da narrativa, Martim contemplava: “[...] olhou em torno com inocente

deslumbramento, a cabeça fervendo de sol” (LISPECTOR, 1999, p. 26, grifo nosso), “Então

sentou-se numa pedra e muito teso ficou olhando. O olhar não esbarrou em nenhum obstáculo

e errou num meio dia intenso e tranquilo. Nada o impedia de transformar a fuga numa grande

viagem, e estava disposto a fruí-la. Olhava” (LISPECTOR, 1999, p. 27). “Mas há alguma coisa

numa extensão de campo que faz com que um homem sozinho se sinta sozinho. Sentado numa

pedra, o fato final e irredutível – é que ele estava ali” (LISPECTOR, 1999, p. 27). Existia.

Embora a narradora descreva o processo de consciência existencial da personagem, esse fato

passava isento de racionalização para o próprio Martim: “[...] o homem não pareceu ter a menor

intenção de fazer alguma coisa com o fato de existir. Estava era sentado na pedra. Também não

pretendia ter o menor pensamento sobre o sol. Era nisso pois que dava a liberdade”

(LISPECTOR, 1999, p. 27), ou, como explica o professor Igor Rossoni em Zen e a poética

autorreflexiva de Clarice Lispector: Uma literatura de vida e como vida97, “a sintonia plena

com a dinâmica da própria vida” (2002, p. 14).

Acompanhando a meditação de Martim, a narradora limita a narração ao momento

presente:

E depois? Bem, só mesmo o que aconteceria depois é que iria dizer o que

aconteceria depois. Por enquanto o homem fugido ficou sentado na pedra

deita com o solo para prepará-lo para o plantio” (ESTÈS, 1994, p. 380). A autora não especifica a quais populações

se refere. 97 Nesse livro, o autor relaciona o fazer literário de Clarice aos princípios Zen-budistas.

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porque se quisesse poderia não se sentar na pedra. O que lhe dava a eternidade

de um pássaro pousado (LISPECTOR, 1999, p. 28).

Compreendemos a eternidade do pássaro como a plenitude vivenciada na

presentificação. O tempo como fator essencial da narrativa também demonstra as concepções

existencialistas de Clarice. Isto porque, o existencialismo postula a vivência do momento

presente como forma de existência autêntica, uma vez que o ser humano é um ser-para-a-

morte98: não há garantias quanto ao futuro. Nas palavras de Clarice, citadas pela escritora Olga

Borelli, “vida é o desejo de continuar vivendo e viva é aquela coisa que vai morrer. A vida serve

é para se morrer dela” (1981, p. 18 apud ROSSONI, 2002, p. 21) e “não esquecer: hoje é agora.

[...] O tempo no futuro já passou” (1981, p. 16-17 apud ROSSONI, 2002, p. 39).

Na sequência da narrativa, “Martim se ergueu. E sem questionar o que fazia, ajoelhou-

se diante de uma árvore seca para examinar seu tronco: não parecia mais precisar de raciocinar

para resolver, tinha-se desembaraçado disso também” (LISPECTOR, 1999, p. 28). Conforme

explica Rossoni,

conhecer – para o Ocidente – implica raciocinar, [...] e se caracteriza como o

escrutínio do somatório de investigações parcializadas que propiciam o

entendimento de uma ideia ou conjunto delas, sempre circunscrito a um

paradigma de afirmações e negações. Contraditoriamente, o modelo estrutural

de pensar no Oriente vem norteado pelo veio da experiência impressiva (2002,

p. 26).

Contudo, se Martim está vivenciando um processo meditativo de apreensão da

realidade, e esse processo se assemelha ao processo meditativo oriental, em todo esse

movimento contínuo de busca interior a narradora descreve Martim como uma personagem

animalizada, como se a identidade animal fosse essa essência fundamental buscada pela

humanidade. Mas como um bicho humano que é, Martim não consegue se desvencilhar

totalmente dos pensamentos:

Todo um passado estava apenas a um passo da extrema cautela com que

aquele homem procurava se manter apenas vivo, e nada mais assim como o

animal brilha apenas nos olhos, mantendo atrás de si a vasta alma intocada de

um animal. Então, sem tocá-la, ele se dispôs a esperar impassível que a coisa

passasse. Antes que passasse, ele involuntariamente a reconheceu. Aquilo –

aquilo era um homem pensando... Então, com infinito desagrado, fisicamente

atrapalhado, ele se lembrou no corpo de como é homem pensando

(LISPECTOR, 2003, p. 32-33).

98 Termo cunhado por Martin Heidegger na obra Ser e tempo.

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Manter-se apenas vivo é não pensar, como um animal, um ser que, para a narradora, não

comunica sua alma. Pensamos que a comunicação a que se refere a narradora, se limita à

linguagem verbal, já que o brilho nos olhos também poderia ser visto como uma forma de

comunicação. Martim não queria pensar, mas pensava. Novamente a narradora afirma a

conexão entre mente e corpo, atrelando o pensamento às percepções corporais. E define o que

é homem pensando:

Homem pensando era aquilo que, ao ver algo amarelo, dizia com esforço

deslumbrado: essa coisa que não é azul. [...] E mais que isso ele reconheceu:

essa coisa na verdade estivera durante toda a fuga com ele. Fora apenas por

desleixo que quase a deixara se alastrar (LISPECTOR, 2003, p. 33).

Segundo o poeta e teórico da poesia Octávio Paz (1982), o pensamento ocidental se

diferencia do oriental da seguinte forma: “isto ou aquilo”, amarelo ou azul, para o primeiro, e

“isto e aquilo”, amarelo e azul, para o segundo. Aqui podem confluir tanto as ideias do

pensamento classificatório humano, demonstrado por Lévi-Strauss (2012) em povos ancestrais,

bem como a inversão desse dualismo ocidental. No que se refere à teoria de Lévi-Strauss

(2012), o filósofo explica os signos como a união entre uma imagem, no caso a cor, e um

conceito, o nome, destacando que “os termos nunca têm significação intrínseca; sua

significação é “de posição”, por um lado, função da história e do contexto cultural e, por outro,

da estrutura do sistema em que são chamados a figurar” (2012, p. 72). Para a inversão do

dualismo, isto e aquilo é uma posição que pode resultar, de acordo com Plumwood (2003), na

assimilação de um pelo outro, da qual resulta uma anulação de ambas, e, não uma resolução da

hierarquia entre os termos, e, assim, a superação do dualismo.

Martim não deixara de pensar, mas parecia agora conseguir impedir que esses

pensamentos o dominassem e o tirassem de um estado mais verdadeiro de consciência, não

interpelada por questões distantes no tempo, que o distanciavam do momento presente. Ele

“precisava defender o que, com enorme coragem, conquistara há duas semanas. Com enorme

coragem, aquele homem deixara enfim de ser inteligente” (LISPECTOR, 1999, p. 33). Mas

o que era ser inteligente? Martim se questiona se realmente fora inteligente ou se apenas fizera

aquilo que era considerado inteligência:

Na verdade, concluiu então muito interessado, apenas imitara a inteligência,

com aquela falta essencial de respeito que faz com que uma pessoa imite. E

com ele, milhões de homens que copiavam com enorme esforço a ideia que se

fazia de um homem, ao lado de milhares de mulheres que copiavam atentas a

ideia que se fazia de mulher e milhares de pessoas de boa vontade copiavam

com esforço sobre-humano a própria cara e a ideia de existir; sem falar na

concentração angustiada com que se imitavam atos de bondade ou de maldade

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- com uma cautela diária em não escorregar para um ato verdadeiro, e portanto

incomparável, e portanto inimitável, e portanto desconcertante. E enquanto

isso, tinha alguma coisa velha e podre em algum lugar inidentificável da casa,

e a gente dorme inquieta, o desconforto é a única advertência de que se está

copiando, e nós nos escutamos atentos embaixo dos lençóis. Mas tão

distanciados estamos pela imitação que aquilo que ouvimos nos vem tão sem

som como se fosse uma visão que fosse tão invisível como se estivesse nas

trevas que estas são tão compactas que mãos são inúteis. Porque mesmo a

compreensão, a pessoa imitava. A compreensão que nunca foi feita senão de

linguagem alheia e de palavras. Mas restava a desobediência (LISPECTOR,

1999, p. 34, grifo nosso).

O ato de copiar é criticado pela narradora como o oposto de criar, de modo que uma

pessoa não fosse nunca original, ou tivesse um ato verdadeiro, autêntico. Essa falta de

autenticidade, a verdadeira realidade, é compreendida como um desrespeito contra a natureza

desses milhões de homens e mulheres: a humanidade. A narradora faz um recorte de gênero

aludindo a diferença do “contrato social” ideal para mulheres e homens e situa a bondade e a

maldade como os dois polos entre os quais a humanidade se equilibra numa ordem social

dualizada, que não permite um ato incomparável, ou “além do bem e do mal” como preconizava

Friedrich Nietzsche por uma “filosofia do futuro99”. Compreendemos como filosofias do futuro

os pensamentos que para Nietzsche buscariam superar o maniqueísmo da filosofia ocidental.

Podemos interpretar o sofrimento de Martim, à luz dos ensinamentos orientais, representados

aqui por Dalai Lama, na obra O caminho do meio: Fé baseada na razão, como o nível mais

sutil de sofrimento, que é o sofrimento do condicionamento em si:

o sofrimento do condicionamento, é a própria qualidade de toda experiência

determinada pela ignorância – dolorosa, prazerosa, seja o que for. Sempre que

a ignorância é um fator em nossa percepção da realidade – e para a maioria

das pessoas é assim o tempo todo, quaisquer ações que desempenhemos e

quaisquer experiências que tenhamos são matizadas pela inquietação gerada

por essa percepção errônea (2015, p. 10).

Inquietação é justamente a palavra utilizada pela narradora para descrever o desconforto

do ser humano condicionado. Pensando à luz do ecofeminismo, compreendemos esse

distanciamento causado pela imitação como o processo cultural de repetição irrefletida, já que

até mesmo os modos de compreensão são imitações da cultura dominante. Como exemplo o

epistemicídio, conceito que tomamos de empréstimo da teoria pós-colonial, sobre a

colonização100 das formas de conhecimento pela identidade mestra. Mas, para a narradora, há

99 Para além do bem e do mal: Prelúdio a uma filosofia do futuro. Tradução de Alex Marins. São Paulo: Martin

Claret, 2002. 100 A esse respeito, Milton Santos explica: “Antes o que havia era uma história de lugares, regiões, países. As

histórias podiam ser, no máximo, continentais, em função dos impérios que se estabeleceram a uma escala mais

ampla. O que até então se chamava de história universal era a visão pretensiosa de um país ou continente sobre os

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uma espécie de intuição ou natureza instintiva que reconhece, não por meio de racionalização,

a possibilidade da revolta, a desobediência, ou o “insight sobre a verdadeira natureza da

realidade” (DALAI LAMA, 2015, p. 12), pelo qual é possível sair do engano e da ignorância.

A lógica na qual Martim estava inserido, baseada em copiar e repetir um modelo de

existência, é rompida após o ato súbito desencadeador da revelação, a epifania, o grande pulo:

“[...] através do grande pulo de um crime – há duas semanas ele se arriscara a não ter nenhuma

garantia, e passara a não compreender” (LISPECTOR, 1999, p. 34). Satisfeito, pois, “Pela

primeira vez Martim se achava incapacitado de imitar” (LISPECTOR, 1999, p. 36). Ele que

não executaria mais nenhum ato que não fosse verdadeiro, pois: “Com um único gesto, ele não

era mais um colaborador dos outros, e com um único gesto cessara de colaborar consigo

mesmo” (LISPECTOR, 1999, p. 37). A personagem tenta criar uma linguagem própria para

significar a nova realidade que vivencia, e a narradora descreve sua nova inteligência como

“[...] grosseira e esperta como a de um rato” (LISPECTOR, 1999, p. 36).

Após se livrar da lógica opressora que determinava seu modo de vida opressor, “no ato

positivo de ruptura com a sociedade” (NUNES, 1973, p. 40), Martim passa a vivenciar a

realidade de maneira mais plena, meditativa e incorporada ao meio natural: “– Eu era como

qualquer um de vocês, disse então muito subitamente para as pedras pois estas pareciam homens

sentados. Dito isto, Martim de novo mergulhou num silêncio total como meditação”

(LISPECTOR, 1999, p. 37); “Era pouco o que ele era agora: um rato. Mas enquanto rato, nada

nele era inútil. A coisa era ótima e profunda” (LISPECTOR, 1999, p. 37). A narradora subverte

os dualismos humanidade/natureza e lógica/instinto ao priorizar a animalidade da espécie

humana, em detrimento do que conhecemos por civilidade, assim, conferindo valor aos lados

inferiores da comparação. O animal é referido como mais verdadeiro e profundo do que o ser

humano. Mesmo os ratos, estigmatizados no ocidente por serem considerados sujos, uma vez

que vivem no sub(mundo)solo de nossas cidades, para onde os empurramos e onde destinamos

os nossos dejetos.

Martim, enquanto homem, branco e caracterizado como pertencente à classe-média/alta

de uma metrópole brasileira pelo estereótipo de engenheiro/estatístico101, encarna a identidade

mestra de Plumwood (2003), como opressor das categorias de gênero, raça e classe. É desse

lado dos dualismos, o lado privilegiado, que ele experiencia uma vida não autêntica. O crime

outros, considerados bárbaros ou irrelevantes. Chegava-se a dizer de tal ou tal povo que ele era sem história...”

(2000, p. 170). 101 Embora a personagem no final da narrativa assuma ser estatístico, durante sua estadia ele finge ser engenheiro,

e é acreditado pelos moradores do sítio.

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que Martim cometera e que só é revelado no final do livro, fora o de tentar assassinar sua esposa.

Tratando do crime no que se aplica a Martim, a narradora descreve o caráter do ato em termos

naturais, como “[...] um movimento vital involuntário como o reflexo do joelho à pancada: todo

o organismo se reunira para que a perna, de súbito incoercível, tivesse dado o pontapé”

(LISPECTOR, 1999, p. 36, grifo nosso), porque “Ao contrário de um natural apodrecimento [a

morte da vida] – que seria obscuramente aceitável por um ser orgânico perecível – sua alma se

tornara abstrata, e seu pensamento era abstrato” (LISPECTOR, 1999, p. 46), não concreto, não

real. “De acordo com as leis da caça, um animal ferido se torna um animal perigoso”

(LISPECTOR, 1999, p. ??), Assim, por força de manter-se vivo, para se desprender dessa lógica

opressora na qual vivia, “[...] um homem um dia tinha que ter a grande cólera” (LISPECTOR,

1999, p. 37), “Até que um dia, então, um homem [antes abstrato] se concretiza na grande cólera”

(LISPECTOR, 1999, p. 47), capaz de romper “Uma boa educação cívica” (LISPECTOR, 1999,

p. 35) e “[...] um longo passado de embotamento tendencioso” (LISPECTOR, 1999, p. 39).

No entanto, livrar-se do vício de pensar, considerada pela acepção racionalista como a

característica distintiva da espécie humana e do vício de pensar como pensava, não seria tarefa

fácil, e Martim se percebe novamente pensando:

Mas no instante seguinte ele notou o processo. E porque aquele homem

parecia não querer nunca mais usar o pensamento nem para combater outro

pensamento – foi fisicamente que de súbito se rebelou em cólera, agora que

enfim aprendera o caminho da cólera. [...] Ilógico, lutava primitivamente com

o corpo, torcendo-se numa careta de dor e de fome, e com voracidade ele todo

tentou se tornar apenas orgânico (LISPECTOR, 1999, p. 48).

Para a narradora, o pensamento não é orgânico, de forma que a diferença entre as

características humanas e as características da natureza é dualizada por exclusão radical, como

se pensar não fosse também um processo fisiológico de uma espécie animal, mas algo fora da

esfera da natureza. De acordo com Plumwood (2003), o dualismo humano/natureza distorceu

nossa visão sobre semelhança e a diferença humana em relação à natureza, sendo as

características mentais consideradas como exclusivamente humanas. Concordamos com a

filósofa, para quem, reconhecer a natureza como mais mental, e da mesma forma, a mente como

mais natural é condição para romper com o dualismo mente/natureza.

Ainda que a narradora atribua a cognição a uma mente separada do corpo animal e do

restante da natureza, ela considera a intencionalidade, compreendida como vontade, como a

característica elementar que faz da natureza humana uma natureza também animal: “quem sabe

se “querer” seria de agora em diante a sua única forma de pensar. Martim continuou a avançar,

sem se dar conta de que apressava os passos em direção a nada mais que a uma alusão do vento”

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(LISPECTOR, 1999, p. 50). “O homem não tinha nenhum plano formado e, como arma, parecia

ter apenas o fato de estar vivo. [...] Sua vontade continuou a avançar” (LISPECTOR, 1999, p.

51). Sendo a própria condição de estar vivo associada à posse de intencionalidade.

Martim continuou caminhando, seguia a brisa do vento, buscando água pela umidade

do ar.

Mas quando aquele homem chegou ao alto da encosta – como se tivesse enfim

captado uma ilusão perseguida a vida inteira e tocado na sua própria

embriaguez, subitamente capturado por um redemoinho de finíssima alegria –

o ar se abria em vento turbilhonante e livre. E ele se achou em pleno alarido

que era tão inapreensível como se este fosse o som do poente. [...] Era uma

atmosfera de júbilo. De vazio e vertiginoso júbilo, como acontece

inexplicavelmente a um homem no alto de uma montanha. Ele nunca estivera

tão perto da promessa que parece ter sido feita a uma pessoa quando esta nasce

(LISPECTOR, 1999, p. 51).

Martim finalmente existia. Para Nunes (1973), nesse momento Martim experimenta “o

descortínio do esplendor do mundo do alto da montanha” (p. 42). Também podemos

compreender esse momento como a vivência existencial autêntica do momento presente, bem

como o estado de nirvana de integração com o todo, que se relaciona à figura do monge na

montanha. Ainda, uma outra correspondência filosófica pode ser feita pelo conceito de êxtase,

que de acordo com a definição de Plotino, no Dicionário de filosofia de Nicola Abbagnano,

significa “a supressão da alteridade entre aquele que vê e a coisa vista, e como identificação

total e entusiástica da alma com Deus” (ABBAGNANO, 2007, p. 420). Ou, pela acepção de

Boaventura, que compreende o êxtase como “a elevação acima de si mesmo, até a fonte do

amor supraintelectual” (ABBAGNANO, 2007, p. 421), que dimensiona a personagem à própria

natureza.

No entanto, “[...] à beira de sua mudez, estava o mundo. Essa coisa iminente e

inalcançável” (LISPECTOR, 1999, p. 53). E que talvez por isso não pudesse ser apreendido em

sua totalidade. A narradora parece optar por uma ação intermediária, que termina por colocar

Martim face à realidade presente, “até que tudo se esverdeou. Uma transparência pacificara-se

no descampado sem deixar uma mancha mais clara” (LISPECTOR, 1999, p. 54), mas

significada por meio de um diálogo entre filho e pai, que acreditamos se tratar de um monólogo

que simboliza Deus como parte da personagem:

– Que luz é essa, pai? Que luz é essa? Perguntou com voz rouca.

– É a do fim do dia, meu filho.

E assim era. A luz se transcendera em grande mistério.

Com a nova limpidez da visibilidade, o torpor do homem desapareceu. E como

se agora sua energia estivesse a seu próprio alcance e medida, ele se ergueu

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sem nenhum esforço. Uma alerteza impessoal o tomara como a de um tigre de

patas macias. Agora ele era real e silencioso (LISPECTOR, 1999, p. 54).

Logo após o momento em que Martim atinge um estado pleno de sua consciência, ele

avista o sítio da personagem Vitória, no qual se desenrolará o restante da narrativa: “[...] a casa

distante, um outro homem que ao longe estava sentado sob uma árvore, vários cachorros

espalhados pelo chão” (LISPECTOR, 1999, p. 54). Então, “Com a leveza do cansaço, como se

usasse sapatos de tênis, ele avançava. Uma elegância astuciosa já o tomara: ele estava se

preparando para defrontar gente” (LISPECTOR, 1999, p. 54). Descrito pela narradora em um

estado animal, Martim percebe as pessoas como se percebesse outra espécie animal, e essa

alteridade é sentida numa atmosfera de combate. A marca distintiva dessa espécie que ele agora

precisaria enfrentar é a astúcia, inteligência. Contudo, a animalidade não é caracterizada como

desprovida de consciência: “Embora soubesse que os cães inquietos já o haviam pressentido,

postou-se atrás de uma árvore para observar” (LISPECTOR, 1999, p. 55). Na verdade, no

corpus, a falta de consciência é uma característica atribuída à humanidade civilizada e Martim

experimenta o que seria, para a narradora, a verdadeira consciência existencial humana: a

animal/natural:

[...] o que o sustentava era a impessoalidade extraordinária que ele alcançara,

como um rato cuja única individualidade é aquilo que ele herdou de outros

ratos. Essa impessoalidade, o homem a manteve em leve repressão de si

próprio como se soubesse que, do momento em que se tornasse ele mesmo,

cairia emborcado no chão (LISPECTOR, 1999, p. 55)

Impessoal, como se Martim encarnasse o que seria comum a toda espécie humana.

Concordamos com Nunes, para quem Martim “perde a sua individualidade numa vida sensitiva

e animalesca (1973, p. 53), embora prefiramos o termo animalizada, que não carrega a

conotação negativa de animalesca. Contudo, Martim ainda está em processo, uma vez que

atingira esse estado de consciência presente e mais natural há pouco, sendo ainda necessário

reprimir qualquer expressão de cultura ou de outros pensamentos em si.

Logo,

Um cão mais negro de repente afundou a tarde como se Martim tivesse caído

num buraco insuspeito. Foi esse cão que o alertou vagamente e pareceu lhe

lembrar outras realidades. Ele se sentia tão leve que estava mesmo precisando

amarrar uma pedra no pescoço. Então forçou-se com dificuldade a lembrar-

se. Mas para a sua própria desvantagem, o lugar era bonito demais, e para a

sua própria desvantagem ele estava se sentindo bem – o que lhe tirava da

percepção a sua principal utilidade de luta (LISPECTOR, 1999, p. 58).

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Martim em transe de realidade percebia a beleza do lugar e sentia um bem-estar próprio

desse transe. Mas a realidade vivenciada por Martim se diferenciava da realidade vivenciada

pelos outros humanos. Aqui, o sentimento de plenitude com o mundo natural exclui a

perspectiva harmônica de um encontro com humanos, o que configura um fator de

desestabilização do estado que ele alcançara: “Como um homem que alcança, ali estava ele

exausto, sem interesse nem alegria. Estava envelhecido como se tudo o que lhe pudesse ser

dado já viesse tarde demais” (LISPECTOR, 1999, p. 59). Mas Martim continua sendo um

fugitivo e ser exitoso em sua fuga continua sendo sua preocupação principal:

Sob a coberta, o caminhão velho mas perfeitamente limpo e cuidado. E os

pneus? Ocorreu-lhe. Seus olhos míopes não distinguiam os detalhes dos

pneus. A dificuldade, enchendo-o da dúvida da esperança, rejuvenesceu-o.

[...] – Que é que o senhor deseja, perguntou uma voz baixa e serena

(LISPECTOR, 1999, p. 59).

No longo diálogo em que a personagem Vitória interroga Martim, trava-se uma batalha

silenciosa dentro dele e entre ele e a dona do sítio, exigindo de Martim uma postura que não o

denunciasse. Ela desconfia, sobretudo, do modo como Martim se diferenciava das outras

pessoas:

[...] sem se dar conta de que o espiava cruamente, a mulher descobriu

fascinada que ele não ria. Era o rosto que tinha uma expressão apenas física

de malícia, independente de qualquer que fosse seu pensamento – assim como

um gato às vezes parece rir. Apesar de tranquilos e vazios, seus traços davam

impressão de motejo [...]. Ele é ruim, viu ela com o faro desperto. Aquele

homem possuía uma cara. Mas aquele homem não era a sua cara. Isso a

inquietou e despertou-lhe a curiosidade. Aquele homem não era ele mesmo,

pensou ela sem procurar entender o que pensava; aquele homem

despudoradamente se carregava. E estava ali em pé numa exposição completa

de si mesmo, num silêncio de cavalo em pé (LISPECTOR, 1999, p. 65).

Comparado a um gato, um cavalo, um tigre, o incomum estado de Martim também é

percebido por Vitória como animalizado. A narradora também confere animalidade à

humanidade de Vitória, numa fusão da apreensão sensorial por meio do cheiro, característica

de animais cuja visão é reduzida, à visão da personagem humana. Vitória, por fim, reconhece

o estado distanciado da humanidade em que Martim se encontrava:

olhou-o de novo. Mas a verdade mesmo é que aquele homem não parecia

pensar em nada – constatou então com mais calma. Na cara dele havia

permanecido a estremecível sensibilidade que o pensamento dá a um rosto:

mas ele não pensava em nada. Talvez tivesse sido isto o que a horrorizava

(LISPECTOR, 1999, p. 66).

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Ao longo da estadia de Martim no sítio, ele atravessa um processo de busca existencial,

que se dá por meio de uma relação de alteridade e identidade com o reino vegetal e o reino

animal, como podemos verificar no seguinte momento:

Como acontecia que Martim nunca entendera nem de plantas nem de animais,

encontrou ali plantas e animais de novas e raras espécies. A ratazana era um

ser grande de espécie rara e peluda com um longo rabo. A planta grudava uma

boca no chão. O pássaro, levantando voo baixo, era uma advertência que o

homem acompanhava com a boca entreaberta. E ninguém guiava os passos de

ninguém: a planta suja de poeira se compreendia assim como se enroscava.

Ali era o escuro ar de que vive uma coisa viva. E Martim estava bem cercado

pelas coisas que ele entendia: as moscas desovavam. E o sentido daquilo era

o sentido mais primeiro daquele homem: estava ali como se houvesse um

plano que ele ignorava mas a que uma planta se agregava com a boca e a que

ele próprio correspondia sentando-se muito evidentemente na pedra – sentar-

se numa pedra estava se tornando sua atitude mais inteligível e mais ativa. E

a coisa era de tal modo perfeita que até a perspectiva da distância se agregava

àquele mundo sem Deus. Pois quando o homem erguia os olhos – as árvores

distantes eram tão altas, tão altas como uma beleza: o homem grunhia

aprovando. Quanto mais estúpido, mais em face das coisas ele estava. Assim

é que aos poucos, a força de Martim foi se reconstituindo (LISPECTOR, 1999,

p. 83).

Na revalorização dos elementos naturais, a narradora conceitua a diferença de maneira

não hierárquica, conforme o conceito ecofeminista de incorporação, ao dar destaque aos

animais estigmatizados pela cultura humana, como ratos e moscas, e tratando o que é

considerado sujeira com naturalidade102. Além disso, convergindo com o conceito de

instrumentalismo, a narradora evidencia a falta de hierarquia do mundo natural, independente

de Deus: ninguém guiava os passos de ninguém, reconhecendo os ‘outros’ como centro de suas

próprias necessidades: “ser[es] cujo os fins e necessidades são independentes do eu [humano]

e devem ser respeitados” (PLUMWOOD, 2003, p. 60103). A forma de compreender de Martim

estava relacionada a um tempo anterior ao pensamento humano, assim tão natural quanto o

enroscar-se de uma planta. Mas até sua atitude mais espontânea, sentar-se na pedra, é dúbia,

sendo a mesma atitude que caracteriza o humano homem pensador, ao qual o artista francês

Auguste Rodin materializou em escultura.

A atitude meditativa de Martim é limitada e ressignificada:

O que ele não notou é que já estava começando a tomar algum cuidado em ser

exatamente apenas aquilo que ele estava sendo. No seu alerta adormecido às

vezes um pensamento já faiscava nele como uma lasca de pedra: – a região é

árida, meditava ele com bastante profundeza (LIPECTOR, 1999, p. 91).

102 Outro exemplo: “o verde das árvores se balançava sujo, folhas novas espiavam entre as empoeiradas”

(LISPECTOR, 1999, p. 58). 103 “[...] being whose ends and needs are independent of the self and to be respected”.

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Verificamos a figura de linguagem paradoxo expressa nas palavras grifadas,

simbolizando a dualidade entre consciência e inconsciência. Mas aqui, ao estado meditativo se

mesclam pensamentos que a personagem já não podia evitar. Vencido o excesso de civilidade,

“pensar se transformara agora num modo de se esfregar no chão” (LISPECTOR, 1999, p. 93),

parte de sua natureza humana animal: “Veio-lhe, por exemplo, a vontade de comer – e ele

anotou-a com aprovação. Tinha agora todos os sentidos que um rato tem, e mais um com o qual

constatava o que acontecia: o pensamento” (LISPECTOR, 1999, p. 93). De qualquer forma, o

processo de Martim não terminara, ele ainda estava “crescendo”: “Quando dormia, dormia.

Quando trabalhava, trabalhava. Vitória mandava nele, ele mandava no próprio corpo. E algo

crescia com rumor informe” (LISPECTOR, 1999, p. 94).

O tempo de Martim, diferente das outras pessoas do sítio é examinado pela personagem

Vitória: “Pareceu-lhe uma injúria aquele homem jogando com o tempo e trazendo dúvida ao

correr mecânico dos dias, trazendo a estes uma liberdade assustadora como se a cada dia se

pudesse de súbito dizer sim, ou não” (LISPECTOR, 1999, p. 101); “Quanto a Martim, ele tinha

tempo. Na verdade parecia ter descoberto o tempo” (LISPECTOR, 1999, p. 105). Martim estava

de fato no tempo presente dos animais, ou dos humanos considerados primitivos que

compreendem a passagem do tempo de forma cíclica, e não linear:

É que vivendo ali era como se aquele homem já não contasse mais a vida em

dias nem em anos. Mas em espirais tão largas que ele já não poderia vê-las

assim como não via a larga linha de curvatura da terra. Havia algo que era

essência gradual e não para se comer de uma vez (LISPECTOR, 1999, p. 108,

grifo nosso).

A passagem do tempo e a forma do planeta correspondem ao mesmo mistério do mundo

natural, o qual se podia sentir a partir da experiência.

Foi assim que a vida de Martim começou a ultrapassá-lo: os dias eram grandes,

bonitos, e sua vida era muito maior que ele. E ele mesmo, aos poucos, tornou-

se mais do que um homem sozinho. Fizera-se um desgastamento de seus

conhecimentos anteriores, e, quanto a palavras, ele meramente as conhecia

como pessoa que tivesse uma vez adoecido delas. E se tivesse curado

(LISPECTOR, 1999, p. 108).

Podemos inferir a partir da vida de Martim que agora o ultrapassava e que era muito

maior que ele, o desprendimento do ego. Conforme exposição de Estés,

Na psicologia junguiana, o ego é frequentemente descrito como uma pequena

ilha de consciência flutuando no mar do inconsciente. No folclore, porém, o

ego é tratado como uma criatura de apetites, muitas vezes simbolizado por um

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animal ou ser humano não muito brilhante cercado de forças que são

mistificantes aos seus olhos e sobre as quais ele procura conquistar o controle.

Às vezes o ego é capaz de ganhar o controle por meios brutais e destrutivos

mas, no final, com o aperfeiçoamento do herói ou da heroína, é muito mais

provável que ele fracasse em sua tentativa de reinar” (1994, p. 339).

Livre da ignorância causadora do sofrimento existencial de Martim, próximo do final

da primeira parte, Martim enfim se distancia de sua vida anterior humana, aprimorando como

o herói que encarna a superação do ego, superando também tanto sua individuação – de acordo

com Lévi-Strauss (2012), o último nível classificatório, posterior à espécie – quanto sua

identidade civilizada, ao reconhecer o macrocosmo do qual se sente parte no estado de

consciência animal.

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4 SOBRE OS ANIMAIS

“Sabemos os que fazem os animais, quais são

as necessidades do castor, do urso, do salmão

e das outras criaturas, porque outrora os

homens se casavam com eles e adquiriram esse

saber de suas esposas animais... Os brancos

viveram pouco tempo neste país e não

conhecem muita coisa a respeito de animais;

nós estamos aqui há milhares de anos há muito

tempo que os próprios animais nos instruíram.

Os brancos anotam tudo num livro, para não

esquecer, mas nossos ancestrais desposaram os

animais, aprenderam todos os seus costumes e

fizeram com que esses conhecimentos

passassem de geração em geração” (Relato

indígena escolhido por Lévi-Strauss).

Como visto no segundo capítulo, a filosofia ecofeminista surgiu da necessidade de

conjugar diferentes teorias ambientais à perspectiva feminista, uma vez que, separadas, elas não

eram capazes de explicar o sistema de opressão que subordina tanto a natureza, quanto as

mulheres. Além dessas, o ecofeminismo também se caracteriza pela articulação de outras

formas de opressão, como as de classe e raça, entendendo que essas formas coexistem em uma

estrutura que se sustenta, devido à manutenção dessas opressões em relação mútua. Em Sensível

ao cuidado: Uma perspectiva ética ecofeminista, de 2015, a mestra em filosofia Daniela

Rosendo reúne o principal do pensamento da filósofa ecofeminista Karen Warren, a fim de

introduzir na literatura feminista brasileira uma filosofia sobre o masculino da natureza, e as

críticas ao machismo presente nessas propostas ambientais, que acabam por reproduzir

opressões. Warren avalia a insuficiência dessas propostas em abolir não apenas todas as formas

de opressão, mas mesmo àquelas a que se propõem: a dos animais e a da natureza como um

todo.

Nesse capítulo, a fim de avaliar as duas filosofias base deste trabalho, descreveremos,

por meio de uma abordagem histórico e filosófica, a filosofia ético animalista de Peter Singer,

seguida do entendimento ecofeminista dessa e de outras éticas ambientais contemporâneas,

analisadas por Warren. Em seguida, faremos uma análise da representação cultural dos animais,

em A maçã no escuro, pensando junto às teorias citadas as considerações ecocríticas sobre eles.

4.1 RESUMO HISTÓRICO DE UMA TRADIÇÃO

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Em Libertação Animal, publicada pela primeira vez em 1975, obra central da corrente

filosófica ético animalista, derivada da filosofia moral e ética utilitarista104, Peter Singer

apresenta uma breve história da dominação dos humanos sobre os animais. Ele baseia-se nas

formulações de destacados pensadores ocidentais, em diferentes períodos históricos, sobre as

atitudes herdadas pelos humanos em relação aos animais. Segundo o autor, essas atitudes no

contexto ocidental têm raízes nas tradições do judaísmo e da antiguidade grega, que confluíram

no cristianismo e por meio dele prevaleceram na Europa. O filósofo divide o relato histórico

em três períodos: pré-cristão, cristão e a partir do Iluminismo.

Para explicar a tradição judaica, Singer (2004) remonta à história bíblica da criação do

universo, na qual a relação entre a humanidade e os animais foi estabelecida conforme a

concepção do povo hebreu: Deus fez o homem a sua própria imagem, o que conferiu a esse

uma posição elevada no universo. Entretanto, o autor comenta que, no Jardim do Éden, retratado

como um lugar totalmente pacífico antes da queda do homem, o domínio da humanidade sobre

todos os seres viventes não envolvia a morte de outros animais para alimentação. Foi depois da

queda, pela qual a bíblia culpa uma mulher e um animal, que a morte dos animais passou a ser

permitida.

De acordo com Sônia Felipe, em Por uma questão de princípios: Alcance e limites da

ética de Peter Singer em defesa dos animais, de 2003, antes da escassez que resultou no dilúvio,

nas passagens do Gênese que se referiam à criação e à fartura, a ordem de Deus é que os homens

e os animais se alimentassem de plantas, frutas, legumes e cereais:

‘Veja, Eu dei a vós todas as plantas que produzem sementes que se encontram

sobre a face da terra, e todas as árvores que produzem sementes em seus frutos,

a vós, as dei por alimento. [...] E a todos os animais da terra, e a todas as aves

do ar, e a todas as coisas que se arrastam sobre o solo, a todas as coisas que

possuem o sopro da vida, Eu dei todas as plantas como alimento’ (Gênese 1:

20-32 apud FELIPE, 2003, p. 34).

Posteriormente, com o dilúvio, quando a criação foi punida pela maldade humana, veio

a escassez, e nessa circunstância Deus concedeu a Noé a autorização do domínio humano:

Abençoou Deus a Noé e a seus filhos, e disse-lhes: frutificai e multiplicai-vos,

e enchei a terra. Terão medo e pavor de vós todo animal da terra, toda ave do

céu, tudo o que se move sobre a terra e todos os peixes do mar; em vossas

mãos são entregues (Gênesis 9:1 – 3 apud SINGER, 2004, p. 213).

104 “O utilitarismo é a mais conhecida das teorias consequencialistas [que não partem de regras morais, mas de

objetivos], ainda que não seja a única. O utilitarista clássico considera uma ação correta desde que, comparada a

uma ação alternativa, ela produza um aumento igual, ou maior, da felicidade de todos os que são por ela atingidos,

e errada desde que não consiga fazê-lo” (SINGER, 1993, p. 11).

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Singer (2004) comenta que no Antigo Testamento, de maneira geral, a bondade para

com os animais é estimulada e que o domínio humano também pode ser interpretado como uma

tutela protetora dos animais. Por exemplo, o profeta Isaías, em seu livro, condenava o sacrifício

de animais. Mas conforme explica Felipe (2003), não há uma concordância entre os judeus

quanto ao direito do homem em matar os animais. No geral, o judaísmo admite a morte de

animais com a finalidade de servirem de alimento, mas desde que o abate seja feito conforme

as regras de Maimonides, sem sofrimento.

No que se refere a tradição grega do pensamento ocidental, Singer (2004) primeiramente

elucida que o pensamento grego não era uniforme, dividindo-se em escolas adversárias, que se

guiavam por meio de um renomado pensador, como a escola de Pitágoras, vegetariano, que

incentivava seus discípulos a tratar os animais com respeito. No entanto, a escola mais

importante era a de Platão e seu discípulo Aristóteles, o qual afirmava que os animais existiam

para servir aos interesses dos seres humanos. Singer (2004) também expõe a crença aristotélica

de que alguns homens eram escravos por natureza, e que eram considerados inferiores a outros

seres humanos por serem comparados aos animais, devido a uma suposta incapacidade de

raciocínio.

No tocante aos animais, o cristianismo é compreendido por Singer (2004) como o ponto

de convergência entre as ideias judaicas e a filosofia aristotélica. A fim de distinguir as atitudes

cristãs das que as precediam, o autor contextualiza o Império Romano, no qual o cristianismo

foi fundado e tornado poderoso. O autor demonstra o traço marcial da sociedade romana,

construída com guerras de conquista, que mesmo longe das guerras fronteiriças, acentuava o

caráter de luta do cidadão romano, fortalecido pelos chamados jogos de gladiadores. Jogos em

que, “homens e mulheres assistiam à morte tanto de seres humanos como de outros animais

como uma fonte normal de entretenimento” (SINGER, 2004, p. 215)105. Conforme exposição

do autor, nessa sociedade havia um limite para sentimentos morais determinados pela posição

social que as pessoas ocupavam, assim, alguns seres humanos, como criminosos, e todos os

105 “O historiador do século XIX, W.E.H. Lecky, faz o seguinte relato do desenvolvimento dos jogos romanos [...]:

o simples combate [entre gladiadores] tornou-se, por fim, insípido, e todo tipo de atrocidade era concebido para

despertar o interesse que diminuía. Certa feita, um urso e um touro acorrentados juntos, rolaram nas areias, num

combate feroz; outra vez, criminosos vestidos com peles de feras selvagens foram lançados aos touros, que eram

atiçados com ferros em brasa ou com dardos dotados de pontas em chamas. Quatrocentos ursos foram mortos

num único dia nos dias de Calígula... Com Nero, quatrocentos tigres lutaram com touros e elefantes. Em um único

dia, na inauguração do Coliseu por Tito, quinhentos animais foram mortos. Com Trajano, os jogos chegaram a

durar cento e vinte e três dias consecutivos. Leões, tigres, elefantes, rinocerontes, hipopótamos, girafas, touros,

cervos, e até crocodilos e serpentes eram utilizados para dar um toque de novidade ao espetáculo” (1869, p. 280

-282 apud SINGER, 2004, p. 215-216).

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animais, estavam situados fora da esfera da moralidade e do âmbito da compaixão, de forma

que a imposição de sofrimento para esses era considerada mera recreação.

De acordo com Singer (2004), no que diz respeito a seres humanos, a doutrina cristã foi

adiantada em muitos aspectos, conduzindo a uma expansão da esfera moral romana, na qual

apenas alguns cidadãos estavam inclusos. Mas no que diz respeito aos outros animais, essa

doutrina propagou apenas a visão de subalternidade, que deles já havia no Antigo Testamento.

Mesmo no Novo Testamento, não há nenhuma injunção que se manifeste a respeito da

crueldade contra os animais não humanos. Se na era cristã os jogos de gladiadores foram

condenados, e os combates entre seres humanos extintos a partir do século IV, os combates com

animais selvagens continuaram106, permanecendo inalterado o status moral dos animais. Como

explica Singer (2004), os jogos romanos ilustram o que aconteceu de forma mais genérica: o

cristianismo abrandou suas atitudes para com os seres humanos, mas manteve os outros animais

fora do âmbito da moralidade. Nesse sentido, o cristianismo trouxe o entendimento de

singularidade da espécie humana dentre todos os seres vivos da terra, fundamentado na

imortalidade da alma humana.

De acordo com o autor, assim como na tradição grega alguns filósofos se posicionaram

como Pitágoras, o primeiro, na época de 570-490 a. C., contra a hierarquização e consequente

exploração dos animais para consumo humano, também alguns romanos demonstraram

compaixão pelo sofrimento de todos os seres capazes de sentir dor, como Ovídio, Sêneca,

Porfírio e Plutarco. Plutarco foi “o primeiro a defender enfaticamente o tratamento bondoso de

animais com base na benevolência universal, independente de qualquer crença na transmigração

da alma107” (SINGER, 2004, p. 218-219). No entanto, esses pensadores não conseguiram

modificar o rumo do pensamento cristão. Singer (2004) demonstra o desenvolvimento da

tradição grega sobre os animais, no posicionamento de São Tomás de Aquino, para ele o

principal representante da filosofia cristã, antes da Reforma e da filosofia romana católica.

Conforme exposição de Singer (2004), para São Tomás, a proibição de matar não se

aplicava a criaturas não humanas, devido à suposta inferioridade dessas. Aquino considerava

os seres humanos mais perfeitos, e explicava, “ora a ordem das coisas é tal que o imperfeito é

feito para o perfeito... Assim, coisas como plantas, que meramente têm vida, são para os

animais, e todos os animais são para o homem” (AQUINO apud SINGER, 2004, p. 219).

106 “De fato, esses combates ainda podem ser vistos, na forma moderna de touradas, na Espanha e na América

Latina” (SINGER, 2004, p. 218). 107 Singer se refere a Pitágoras, que estimulava seus seguidores a tratar os animais com respeito porque acreditava

que a alma dos mortos migrava para os animais.

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Aquino também não afirma que a crueldade contra animais irracionais seja pecado, porque esses

seres não estão sequer inclusos na categoria de pecados concebida pelo autor, que classifica os

pecados em três: aqueles cometidos contra Deus, os cometidos pelo sujeito contra si próprio, e

aqueles contra seus semelhantes. Tampouco a caridade ou atos de bondade para com animais

são admitidos por ele, uma vez que os julga incompetentes para conhecer o bem, que é próprio

dos “animais racionais”. Mesmo considerando que os animais pudessem sentir dor, São Tomás

argumentava que essa dor não representava razão suficiente para condenar a crueldade contra

eles, exceto pelo fato de que isso poderia levar à crueldade contra seres humanos.

Singer (2004) relata que a corrente de São Tomás foi duradoura no pensamento

ocidental. No século XIX, o Papa Pio IX não permitiu que a Sociedade para a Prevenção da

Crueldade com Animais se estabelecesse em Roma. Apenas em 1988, o Papa João Paulo II fez

um pronunciamento a respeito de possíveis mudanças nos ensinamentos católicos, por

influência do movimento ecológico. O autor também menciona São Francisco de Assis, mas

como uma exceção da regra católica, e que, contudo, não escapava de ter uma visão

antropocêntrica da natureza. Conforme exposição de Singer (2004), ainda que São Francisco

de Assis declarasse amor por todas as criaturas, não apenas pelos animais, mas também pelo

sol, a lua, o vento e o fogo, aos quais chamava de irmãos e irmãs, ele também afirmava: “toda

a criatura proclama: “Deus fez-me para te servir, ó homem!” (SHERLEY-PRICE, 1959, p. 58).

No Renascentismo, Singer (2004) afirma que o pensamento humanista não abalou a

visão medieval antropocêntrica que se tinha sobre o status dos seres humanos e dos animais. Se

a principal característica do Humanismo, foi a insistência no valor dos seres humanos frente a

ordem divina, também foi, o lugar central ocupado por eles no universo. Conforme análise do

autor,

em vez de uma algo deprimente concentração no pecado original e na fraqueza

dos seres humanos em comparação com o poder infinito de Deus, os

humanistas da Renascença enfatizaram a singularidade dos seres humanos,

seu livre arbítrio, seu potencial e sua dignidade; e contrastaram tudo isso com

a natureza limitada dos “animais inferiores (SINGER, 2004, p. 225).

É por volta dessa época, de acordo com o autor, que Leonardo da Vinci e Giordano

Bruno aparecem como as primeiras vozes verdadeiramente dissidentes do domínio cultural da

humanidade sobre os animais. Da Vinci foi criticado por tornar-se vegetariano, e Giordano

Bruno, que estudava astronomia e afirmou que “o homem não passa de uma formiga na

presença do infinito”, foi queimado na fogueira, em 1600, por recusar-se a se retratar de suas

heresias.

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O pior legado das doutrinas cristãs, contudo, manifestou-se na filosofia de René

Descartes, considerado o pai da filosofia moderna, e cristão, conforme explicação de Singer

(2004), o que para o autor significa a base da filosofia cartesiana. A partir da ciência mecânica

então em voga, Descartes atribuiu princípios mecanicistas a toda matéria, fazendo uma analogia

com o mecanismo de um relógio. No entanto, para não classificar a natureza humana, composta

de matéria, como uma máquina, o filósofo se utilizou da ideia de alma, introduzindo a distinção

entre dois tipos de coisas no universo: coisas do espírito e coisas de natureza física. A

consciência, entendida como exclusivamente humana, se opunha a matéria, e foi identificada

por ele com a alma imortal, também exclusiva de nossa espécie e criada especialmente por

Deus. Para Descartes, os animais não apenas não possuem consciência, uma vez que não

possuem alma, como também se tratam de meras máquinas, seres autômatos, que nada sentem.

Descartes sabia da comodidade prática que seu pensamento tinha para os seres humanos,

afirmando inclusive, que sua opinião era menos cruel para os animais, do que condescendente

com os homens; o que os absolvia de acusações de crimes contra os animais.

Conforme explica Singer (2004), Descartes também era cientista, e nessa época a prática

de experimentação no corpo de animais vivos foi amplamente propagada na Europa. Os

experimentos de então não contavam com anestésicos e a dor que os animais apresentariam

poderia colocar em cheque a tese cartesiana de que eles não sentiam dor. Singer (2004) comenta

que muitos fisiologistas da época se declaravam mecanicistas e cartesianos. Como pensamento

oficial, a teoria de Descartes permitia que os experimentadores deixassem de ser escrupulosos

nas vivissecções. Por outro lado, os experimentos realizados em animais revelaram uma grande

semelhança entre a fisiologia dos seres humanos e de outros animais, o que junto a outras

influencias melhoraram a atitude em relação a eles. Embora o entendimento gradual de que os

animais sofrem e merecem consideração tenha sido compreendido, ainda, nos termos de sua

relação com os seres humanos. O filósofo escocês David Hume, por exemplo, afirmou que

segundo as leis das humanidades, essa era obrigada a usar os animais com gentileza, não

questionando a licença para usá-los de qualquer forma.

De acordo com Singer, no século XVIII, época do ‘bom selvagem’, de Jean-Jacques

Rousseau, seja de forma idealizada ou não, o ser humano percebeu-se como parte da natureza.

Essa participação, contudo, não era igualitária e o ser humano, quando muito, representava um

papel paternalista na relação com a natureza. Inclusive em relação às populações indígenas,

animalizadas e/ou infantilizadas pelo discurso colonial108. Segundo Singer, nesse período, as

108 Conforme explicação da historiadora Sheila Schvarzman, a associação do primitivismo com a infância decorre

da necessidade de “caracterizá-lo [o índio] como criança, destituindo-o de sua própria identidade” (2004, p. 174).

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ideias religiosas assumiram um caráter mais benevolente em relação aos animais, e o aumento

do anticlericalismo, principalmente na França, beneficiou o status deles. O autor cita Voltaire

e Rousseau, como exemplos de intelectuais que reconheceram premissas da argumentação em

torno da prática vegetariana. Em contrapartida, cita Kant, que afirmava, em suas aulas de ética,

que os seres humanos não tinham deveres em relação aos animais, uma vez, que a finalidade de

suas vidas era o homem.

Singer (2004) não apenas relata os discursos dominantes, mas também o de outros

divergentes, que desde o início dos períodos analisados se manifestaram a respeito do domínio

humano sobre os animais. A voz divergente mais importante depois de Plutarco, Jeremy

Bentham, em sua obra Uma introdução aos princípios da moral e da legislação, de 1778 avalia:

“a questão não é “eles [os animais] são capazes de raciocinar?”, nem “são capazes de falar?”,

mas sim: “eles são capazes de sofrer?”” (BENTHAN apud Singer, 2004, p. 230). De acordo

com Singer, Bentham foi provavelmente o primeiro a se referir ao domínio do homem sobre os

animais como uma tirania, e comparou a posição desses com a dos povos negros escravizados.

No início do século XIX, o naturalista Charles Darwin escrevia: “o homem, em sua arrogância,

acredita ser uma grande obra, merecedora da intermediação de uma divindade. É mais humilde

e, penso eu, mais verdadeiro considerar que foi criado a partir dos animais” (apud Singer, 2004,

p.232). Apenas 20 anos depois, Darwin conseguiu acumular provas suficientes para a aceitação

de sua teoria da evolução das espécies. Entretanto, apenas afirmou explicitamente que os seres

humanos descendiam dos animais em 1871, na obra A origem do homem, quando muitos

cientistas já concordavam com a teoria geral da evolução.

Para Singer (2004) foi a partir da revolução intelectual darwiniana, da qual legamos a

compreensão moderna da natureza, que os seres humanos passaram, de fato, a compreender que

eram também animais. O cientista também afirmou uma grande semelhança entre a espécie

humana e outras espécies, no que se refere tanto a sua fisiologia, quanto a seus sentimentos,

emoções, faculdades, e até mesmo ao senso moral humano, observado nos instintos sociais dos

animais. Contudo, ainda que as provas científicas da origem comum entre as espécies tenham

sido notáveis e o progresso intelectual acompanhado de leis contra a crueldade arbitrária para

com alguns animais, as ideias de que os seres humanos eram criaturas especiais de Deus e os

outros animais haviam sido criados para servi-los, não foram deixadas facilmente. Conforme

conclui Singer (2004), mesmo que a visão moderna seja diferente das anteriores, a moralidade

do passado, que colocou a espécie humana no topo da criação divina, está muito enraizada no

pensamento e na prática humana, de modo que os interesses de outros animais são levados em

conta somente quando os interesses humanos não estão em jogo.

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4.2 PRINCÍPIOS ÉTICO ANIMALISTAS

De acordo com Peter Singer (2004), a primeira menção teórica da ideia de direitos dos

animais foi feita por Mary Wollstonecraft, considerada precursora da primeira onda do

feminismo ocidental, no livro Vindication of the rights of woman – Em defesa do direito das

mulheres, ao qual o filósofo de Cambridge, Thomas Taylor, respondeu com a obra satírica e

anônima: A vindication of the rights of brutes – Uma defesa dos direitos dos brutos. Taylor

tentou desqualificar os argumentos de Wollstonecraft, afirmando que se o argumento de

igualdade fosse estendido às mulheres, poderia ser válido também no caso de gatos, cachorros

e outros animais. Destacamos a comparação das mulheres com os seres chamados por Taylor

de brutos, os animais, que simbolizava a associação das mulheres com a esfera da natureza, em

oposição a dos homens, associados com a razão.

Singer (2004) inicia sua argumentação pautado no discurso de Taylor, para quem os

direitos de um grupo ao serem estendidos para outro demandariam igual tratamento entre seres

tão diversos (como eram para Taylor as mulheres, dos homens). Assim, Singer (2004) parte da

compreensão das diferenças notáveis entre seres humanos e animais para explicar a defesa “da

extensão do princípio básico da igualdade a animais não humanos” (SINGER, 2004, p. 02). O

autor se refere não ao tratamento igual para seres diferentes, mas da igual consideração de

interesses dos seres em questão. Em outras palavras, não significa que os dois grupos devam

ser tratados exatamente da mesma maneira, mas sim, de acordo com a natureza dos membros

de cada grupo. Para exemplificar, Singer (2004) observa as discriminações racistas e sexistas,

fundamentadas em uma suposta igualdade entre os membros de uma classe, considerada

superior por suas características. No entanto, o autor demonstra que essa igualdade não existe

enquanto essência, uma vez que:

[...] os seres humanos têm diferentes feitios e tamanhos, diferentes

capacidades morais e intelectuais, diferentes intensidades de sentimentos

benevolentes e sensibilidade com relação às necessidades dos outros,

diferentes capacidades de comunicar-se de forma eficaz e diferentes

capacidades de experimentar prazer e dor. Em suma, se a exigência de

igualdade tivesse de basear-se na igualdade efetiva de todos os seres humanos,

teríamos de deixar de exigi-la (SINGER, 2004, p. 04).

Nesse sentido, ele explica que embora os seres humanos sejam diferentes como

indivíduos, não diferem enquanto raça ou sexo, já que saber se uma pessoa é negra ou mulher,

não é saber das suas capacidades intelectuais ou morais. O autor explica as igualdades como

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factuais, existentes entre diferentes raças e sexos, e afirma não haver uma garantia de

determinadas capacidades e habilidades serem distribuídas uniformemente entre os seres

humanos, uma vez que essas diferenças são conhecidas em médias e localizadas em diferentes

contextos socioeconômicos que impossibilitam a distinção exata entre genética e ambiente.

Porém, e ainda mais importante, o autor elucida que a igualdade em si é antes uma ideia moral,

do que a afirmação de um fato, e, por isso, não necessita se ater apenas à determinações de

resultados científicos. Aqui o autor reconhece outras possibilidades de motivações éticas

humanas, ainda que trate daquelas referentes a direitos e deveres: “o princípio da igualdade dos

seres humanos não é a descrição de uma suposta igualdade de fato existente entre [eles]: é a

prescrição de como devemos [tratá-los]” (SINGER, 2004, p. 06).

Conforme explicação de Singer, a base essencial da igualdade moral é incorporada por

Jeremy Bentham, fundador da escola reformista utilitarista de filosofia moral, pela fórmula

“cada um conta como um e ninguém como mais de um”, o que nas palavras de Singer, significa

que “os interesses de cada ser afetado por uma ação devem ser levados em conta, e receber o

mesmo peso que os interesses semelhantes de qualquer outro ser” (SINGER, 2004, p. 06). Para

ele, levar em conta os interesses de um ser, elemento básico da igualdade, deve ser estendido a

todos os seres humanos e todos os outros animais, independente da aparência ou das

capacidades que eles apresentem. O autor afirma que esse fundamento deve ser aplicado tanto

contra o racismo e o sexismo, quanto contra o especismo, que ele caracteriza como o

preconceito ou atitude de alguém a favor dos interesses de membros de uma espécie, em

detrimento de outras. O princípio da igual consideração de interesses foi propagado por muitos

filósofos e escritores, mas poucos, como Bentham, compreenderam que ele era tão válido para

a espécie humana, quanto para outros animais.

Quando questiona a respeito da capacidade que os animais têm de sofrer, o filósofo

estabelece essa capacidade como a característica vital que concede a qualquer ser o direito a

que seus interesses sejam considerados. De acordo com Singer, a capacidade de sofrer e de

sentir prazer é condição básica para que um ser possua interesses:

se um ser sofre, não pode haver qualquer justificativa moral para deixarmos

de levar em conta esse sofrimento. Não importa a natureza do ser, o princípio

de igualdade requer que seu sofrimento seja considerado em pé de igualdade

com sofrimentos semelhantes – na medida em que comparações aproximadas

possam ser feitas – de qualquer outro ser (2004, p. 10).

Ele diferencia a capacidade de sofrimento, de outras como as de linguagem ou raciocínio

matemático, explicando que a escolha baseada em características arbitrárias, como também a

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cor da pele e o sexo, diferentes em diferentes seres, violariam o princípio da igualdade, uma

vez que favoreceriam a raça, o sexo, ou as habilidades escolhidas de uma determinada espécie.

Ao passo que a capacidade de sentir dor e prazer, a senciência, é compartilhada por todos os

animais, não apenas os das espécie humana.

Na continuação, Singer (2004) compartilha a necessidade de refutar, por mais

implausível que seja, a posição proposta por René Descartes, no século XVII, de que os animais

eram como máquinas (autômatos), e não sentiam dor. De modo que só podemos saber da

experiência direta da dor que sentimos, e não a dos outros, ainda que possamos ver os gestos

de contorções, ou gritos de dor, Singer afirma que essas reações não constituem a dor em si,

uma vez que essa é um evento da consciência de quem sente109. Contudo, ainda que uma

possível incerteza em relação à capacidade dos outros em sentir dor possa parecer um enigma

para os filósofos, para todos nós é certo que os outros, assim como nós, sentem dor. Para

sustentar isso, ele demonstra que todos os sinais externos presentes na sensação de dor dos seres

humanos, também podem ser observados em outras espécies, principalmente em mamíferos e

aves. Entre os sinais estão, “contorções, contrações do rosto, gemidos, ganidos, ou outras

formas de apelos, tentativas de evitar a fonte da dor, demonstrações de medo diante da

perspectiva de repetição, e assim por diante” (2004, p. 213).

Singer explica também que embora os seres humanos possuam um córtex cerebral mais

desenvolvido do que outros animais, essa parte do cérebro tem maior relação com pensamentos,

do que com sensações e emoções. E que a grande semelhança entre o sistema nervoso de

humanos e de outros animais, se deve ao fato de terem evoluído da mesma forma, se

diferenciando apenas depois que as características centrais do sistema nervoso já estavam

formadas. A partir dessas evidências, Singer estabelece:

Não é razoável supor que sistemas nervosos virtualmente idênticos do ponto

de vista fisiológico (tendo uma origem comum e funções evolucionárias

comuns), que resultam em formas semelhantes de comportamento em

circunstâncias análogas, devam, de fato, operar de uma maneira inteiramente

diferente no nível das sensações subjetivas (2004, p. 14).

Ainda que pareça inimaginável para alguns filósofos, Singer demonstra ser mais

coerente supor que a semelhança entre os sistemas fisiológicos de animais e humanos explica

o comportamento semelhante de ambos. Ele cita diferentes fontes científicas que corroboram

sua visão, compartilhada pela grande maioria dos cientistas dedicados a essa questão, dentre

109 Percebe-se que aqui, o autor separa mente e corpo, ao diferenciar as atividades mentais das corporais

constitutivamente, como duas coisas essencialmente diferentes, e não faces diversas de um mesmo evento.

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eles Lord Brain, referido por ele como um dos mais eminentes neurologistas contemporâneos.

O autor também cita três comitês governamentais britânicos que concordam com a tese

filosófica de que animais sentem dor. Ainda, além da dor física, no relatório do Comitê sobre a

Crueldade com Animais Selvagens110 (Commitee on Cruelty to Wild animals) os membros

estão convencidos que os animais sentem outras formas de sofrimento, como medo e terror. A

Declaração de Cambridge111 sobre a Consciência em animais humanos e não humanos,

proclamada publicamente em Cambridge, Reino Unido, no dia 7 de julho de 2012, comprova,

finalmente, a consciência de animais não humanos:

Evidências convergentes indicam que animais não humanos têm os substratos

neuroanatômicos, neuroquímicos e neurofisiológicos de estados de

consciência juntamente como a capacidade de exibir comportamentos

intencionais. Consequentemente, o peso das evidências indica que os humanos

não são os únicos a possuir os substratos neurológicos que geram a

consciência. Animais não humanos, incluindo todos os mamíferos e as aves,

e muitas outras criaturas, incluindo polvos, também possuem esses substratos

neurológicos (LOW, 2012, p. 2).

Embora pareça que a confirmação da capacidade de sentir dor nos animais resolva a

questão, Singer (2004) considera ainda a objeção a respeito da linguagem desenvolvida, como

um sinal comportamental que apenas os seres humanos podem apresentar ao sentirem dor.

Conforme relata o autor, alguns filósofos, dentre eles Descartes, priorizavam o fato de os

humanos serem capazes de falar com riqueza de detalhes. Outro filósofo influente, Ludwig

Wittgenstein, afirmava que estados significativos de consciência não podiam ser atribuídos a

seres que não possuíam linguagem, argumento que Singer (2004) refuta com a explicação de

que a linguagem pode sim ser necessária para o pensamento abstrato, mas desnecessária em

estados mais primitivos, como a dor. Citando Jeremy Bentham, Singer elucida que a capacidade

de utilizar uma linguagem não importa quando a questão é como um ser deve ser tratado, a

menos que a falta dessa capacidade deixasse dúvidas quanto ao sofrimento desse ser. Para

exemplificar isso, Singer (2004) questiona a capacidade de sofrer em bebês e crianças pequenas

da espécie humana, uma vez que também não utilizam uma linguagem além da corporal. Ele

endossa seu pensamento por meio do estudo sobre chipanzés, da primatologista e antropóloga

Jane Goodall, em que explica o papel secundário da linguagem na expressão de sensações e

110 Destacamos a designação de animais selvagens, que exclui animais domésticos, como vacas, porcos e algumas

aves, os principais animais abatidos para alimentação humana, da preocupação com a crueldade. 111 Phiplip Low, autor da Declaração e líder das pesquisas que resultaram nela, se tornou vegano e militante pela

libertação dos animais.

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emoções, que se dá, principalmente, por outros modos de comunicação corporal, como um forte

abraço, um tapinha nas costas, o choro e etc.

Uma vez que se compreende não haver justificativa moral para sustentar que a dor dos

animais seja menos importante que a dor sentida pelos seres humanos, Singer (2004) informa

que as consequências que se seguem a essa conclusão promoveriam mudanças radicais no

tratamento que dispensamos aos animais, envolvendo nossa dieta, métodos de criação,

procedimentos científicos, caças, e os mais variados usos de animais, como em vestimentas e

atividades de entretenimento, como rodeios e zoológicos.

Ainda que a teoria da dor e do sofrimento em animais seja bastante evidente, Singer

(2004) disserta sobre a questão da morte de um ser, a qual apresenta uma complexidade maior.

Se os argumentos a respeito da capacidade de sentir dor tornam injustificáveis a imposição de

dor aos animais, também deslegitima matar um animal sob as mesmas circunstâncias em que

não se mataria um ser humano. Ele explica que a própria ideia de que matar seres humanos seja

errada é vista de forma bastante diversificada pelas pessoas e, tampouco os filósofos morais,

chegaram a um acordo sobre o assunto. Os debates sobre eutanásia e aborto, por exemplo,

atestam que a sacralidade da vida, para a qual é sempre errado tirar uma vida inocente, não é

uma visão unânime. E que as pessoas que defendem esse princípio, o limitam para a vida

humana: são contra a morte de embriões humanos, mas não contra a morte de inúmeros

membros de outras espécies, bebês e adultos, como vacas e bezerros.

Para ilustrar o especismo inerente à crença sacrossanta da vida humana, o filósofo se

utiliza do exemplo de um bebê humano, nascido com lesões cerebrais graves, que o condenará

a uma vida não mais do que ““vegetativa” (incapaz de falar, de reconhecer outras pessoas, agir

de forma independente ou desenvolver um sentido de autoconsciência” (SINGER, 2004, p. 21),

a qual seus pais decidem, de forma indolor, interromper. De acordo com as leis atuais essa

escolha não seria legal, uma vez que defendem a visão de que a vida de cada ser humano é

sagrada. A esse respeito, Singer argumenta que muitos animais adultos superam

expressivamente crianças com lesões cerebrais, em capacidades que conferem, justamente, o

valor à vida: capacidade de relacionamento com os outros, agir de forma independente e ser

consciente de si, demonstrando o especismo em se conceder o direito à vida apenas para a

espécie Homo sapiens. Para tornar o preconceito mais explícito, ele faz um paralelo com o

racismo, que se vale da mesma classificação arbitrária de diferença, a da superioridade de uma

raça em relação a outra, como justificativa da discriminação racial.

Singer (2004) reafirma a coerência de que seres semelhantes nos aspectos mais

relevantes tenham direito semelhante à vida. O direito à vida, baseado em características antes

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consideradas apenas humanas, ignora que há alguns animais não humanos, cujas vidas são mais

valiosas do que de alguns seres humanos. Ele ressalva que uma posição antiespecista não

significa que a vida de pessoas com deficiência cerebral em estado grave ou alguns senis,

passarão a ser compreendidas como tão insignificante quanto a atual vida dos porcos, por

exemplo, e, tampouco, significa sacralizar a vida dos animais, ao ponto de que se torne errado

não os livrar de uma situação tanto imutável quanto ruim. Para ele, o mesmo vale para a política

contemporânea de preservação da vida humana a qualquer custo, mesmo quando essa vida não

tem (mais) sentido.

Singer (2004) conclui com a tese de que os animais não humanos devem ser

incorporados na esfera das considerações morais humanas, e que devemos levar em conta,

seriamente, o interesse desses animais. Por fim, o filósofo ressalta o tratamento descartável que

conferimos à vida dos animais, por motivos triviais, em práticas como as seguintes:

a caça, seja pelo esporte ou pela pele; a criação de vison, raposa e outros

animais, para retirar-lhes a pele; a captura de animais selvagens (muitas vezes

após terem matado suas mães) e seu aprisionamento em gaiolas pequenas, para

serem observados por seres humanos; a tortura de animais a fim de que

aprendam a fazer acrobacias exibidas em circos ou a entreter o público em

rodeios; a morte de baleias com arpões explosivos, à guisa de pesquisa

científica; o afogamento anual de mais de 100 mil golfinhos em redes

utilizadas na pesca do atum; a morte de três milhões de cangurus, todos os

anos, na Austrália, para retirar-lhes o couro e fabricar ração para animais de

estimação; e a desconsideração, de modo geral, dos interesses de animais

selvagens, à medida que ampliamos nosso império de concreto e poluição na

superfície do globo (SINGER, 2004, p. 25).

As quais acrescentamos a morte anual de bilhões de animais assassinados em

matadouros no Brasil, e no mundo.

4.3 ÉTICA ECOFEMINISTA COMO RESPOSTA À ÉTICA ANIMAL

Conforme exposição de Daniela Rosendo (2015), a ética animal, referida por Karen

Warren como ética ambiental, é um pressuposto da filosofia ecofeminista, uma vez que lida

com questões a respeito da forma que os seres humanos devem tratar a natureza. Rosendo

apresenta os limites da ética ambiental, apontados por Warren, para quem essa ética não

apresenta possibilidade de transformação das relações entre humanidade e natureza. De acordo

com Rosendo, Warren compreende a considerabilidade moral dos animais não humanos e da

natureza como a base das éticas ambientais, e apresenta as duas principais estratégias utilizadas

na defesa de que animais e natureza merecem consideração moral por parte dos humanos. A

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primeira, baseada no fato de que tanto animais quanto humanos possuem características que os

tornam moralmente consideráveis, como a senciência, a vida, ou alguma habilidade de

linguagem; e a segunda, baseada no fato de os animais, ou a natureza como um todo, possuírem

valor intrínseco, encontrado em características como a senciência, a racionalidade, ou a

autodeterminação de um ser.

Warren observa, no entanto, que as duas estratégias levam ao estabelecimento de

características que determinam a considerabilidade moral da natureza. Filiada ao pensamento

do filósofo político e legal Joel Feinberg, Warren defende que a considerabilidade pode ou não

ter fundamento, assim como o valor humano, e reivindica “[...] atitude de respeito pela natureza,

que, por sua vez, não pode ser justificada, mas incita a vontade por parte dos humanos em ver

animais não humanos como sujeitos, e não simplesmente como recursos ou objetos de

propriedade” (ROSENDO, 2015, p. 67). Conforme exposto por Rosendo, Warren afirma a

impossibilidade de provar a considerabilidade da natureza, mas que mesmo assim pode ser

explicada pelo respeito, o qual deve ser priorizado, uma vez que um mundo onde os seres

humanos tem respeito pela natureza é um mundo mais justo.

Rosendo relata a divisão feita por Warren das éticas ambientais contemporâneas, como

reformistas, mistas ou radicais. Warren classifica a ética de Peter Singer (e Tom Regan) como

reformista, por ser “extensionista moral” (ampliar o círculo de consideração moral para incluir

não humanos) e se basear no critério da proximidade entre animais e humanos. Fundamentado

no trabalho do utilitarista Jeremy Bentham, o pensamento de Singer parte do princípio de que

a capacidade dos seres em sofrer é o que determina a consideração moral que se deve ter com

eles. No entanto, Rosendo explica que, para Warren, as éticas ambientais reformistas são bem-

estaristas e limitadas, pois são pautadas em uma “teoria dos direitos”, e fundamentadas por

argumentos estritamente racionais, que excluem sentimentos ou emoções. Conforme explica

Rosendo, os filósofos utilitaristas não acreditam que os sentimentos possam levar os humanos

a reconhecer valor inerente aos animais e seu direito de serem respeitados igualmente. Rosendo

cita a teórica feminista Josephine Donovan, para quem a rejeição da emoção e dos sentimentos,

na ética desses autores, expressa “[...] justamente a direção para a qual caminha a teoria

contemporânea dos direitos animais, [para] o racionalismo, que, segundo Donovan,

paradoxalmente é a principal justificativa teórica para o abuso dos animais, baseada no

objetivismo cartesiano” (ROSENDO, 2015, p. 74).

De acordo com Rosendo, Donovan, filiada a Max Horkheimer, Theodor Adorno e

Carolyn Merchant, argumenta que o afastamento da esfera das emoções, influenciaram a visão

da natureza associada ao feminino, e sua consequente subjugação historicamente associada às

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mulheres pela divisão do trabalho e a caça às bruxas no início da era moderna, ambas impostas

por homens. Desse modo, a autora propõe que se pense as relações entre os seres humanos e os

animais a partir do feminismo cultural, por outras vias além da racionalidade, via que pode

acabar por reforçar a desigualdade nessas relações.

Rosendo também expõe a crítica da teórica feminista e abolicionista animal Carol

Adams, a respeito do papel dos sentimentos na moralidade, questionando junto à teoria

feminista, a tradição filosófica ocidental, que desvalorizando a emoção como uma fonte válida

na tomada de decisões, desvaloriza também as mulheres. Adams reconhece como o ponto forte

da teoria dos direitos (na qual se baseia a ética animal) o reconhecimento da realidade vivida

pelos animais, bem como o restabelecimento do que a autora chama de referente ausente, ou, o

reconhecimento dos animais em sua individualidade. Contudo, ela afirma que a teoria não

reconhece a profundidade do dualismo cartesiano razão/emoção e seu efeito na ideia de

racionalidade baseada no gênero. Por fim, Adams enfatiza a inter-relação entre as opressões, e

a consequente demanda de que não sejam tratadas individualmente.

Conforme demonstra Rosendo, a defesa de humanos e não humanos não pode se pautar

apenas nos conceitos tradicionais de “direito” e “igualdade”, pois isso denota o domínio de um

padrão masculinista de igualdade e universalidade no debate ético e político vigente, quando a

distribuição de liberdade já não é acessível para todos os humanos. A autora cita a filósofa

Sônia Felipe, quando ela recorda terem sido “[...] os homens que inventaram que os ‘iguais’

devem ter ‘direitos’ iguais. [...] que inventaram o sistema jurídico e a política que dá origem a

novas leis que regulamentam o uso das liberdades que viram direitos” (FELIPE apud

ROSENDO, 2015, p. 77). Para Warren, Felipe e demais filósofas ecofeministas, a esfera da

moralidade deve se ampliar apoiada em conceitos como o de “singularidade” e

“vulnerabilidade” da vida, que permite a consideração dos interesses animais como um dever

de cuidar da vida. Para além de direitos, Warren defende uma ética do cuidado, visto que ao

contrário do direito e da utilidade, o cuidado é central para a vida humana, e de outros animais,

e envolve os relacionamentos interpessoais e a consciência cultural necessárias em questões

morais.

A posição considerada mista por Warren situa-se entre a reformista e a radical e é

exemplificada pela ética da terra, de 1949, do renomado filósofo ambiental Aldo Leopold.

Conforme explicação de Warren, a proposta de Leopold apresenta três pressupostos

fundamentais para qualquer ética ambiental: “[1]humanos são comembros da comunidade

ecológica; [2]humanos devem amar e respeitar a terra; e, [3]é errado destruir a integridade,

estabilidade e beleza da comunidade biótica” (WARREN, 2000, p. 82 apud ROSENDO, 2015,

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p. 71). Para Warren, a ética da terra é holista, pois ressalta que os ecossistemas são merecedores

de consideração moral, além de propor como constitutivo de sua ética o dever de amar e

respeitar a terra, essa ética compreende também o processo emocional e o intelectual. A autora

apenas não a considera radical pelo seu terceiro pressuposto, caracterizado por ela como

consequencialista, pelo fato de estender a consideração moral de humanos para animais,

árvores, e ecossistemas.

E por fim, Rosendo apresenta a posição radical pela ecologia profunda, o

biorregionalismo, a ecologia social e o ecofeminismo, característicos por serem mais

abrangentes e não limitados à ética em si mesma. Em breve resumo da autora, a ecologia

profunda, surgida a partir dos escritos de Aldo Leopold e Rachel Carson, afirma que não é

possível fazer uma divisão ontológica no campo da existência, entre os humanos e os não

humanos e a partir disso desenvolve os princípios de autorrealização e igualdade biocêntrica.

A autorrealização se contrapõe a visão atomista de um eu isolado e a igualdade biocêntrica se

refere aos mesmos direitos que tudo na biosfera têm de viver e se realizar. Para o

biorregionalismo é fundamental o local ou região geográfica, bem como o contexto cultural na

fundamentação de uma ética ambiental. E a ecologia social sustenta que a razão, a

individualidade e a liberdade emergem da própria natureza, não contra ela.

Diferente das últimas posições citadas, estão presentes no discurso ético do

ecofeminismo quatro características comuns: absolutismo ético, monismo ético, objetivismo

moral e essencialismo conceitual. No que se refere ao absolutismo ético, a filósofa explica que

a dicotomia entre esse e o relativismo é falsa, e defende um contextualismo ético, no qual a

universalização de princípios morais reside na particularidade. Ou seja,

[...] na expressão dada aos valores morais significativos, tais quais direitos,

deveres, utilidade, cuidado, amizade, cujos significados e aplicações são

fundamentados nas particularidades e contingências da vida real das pessoas,

em circunstâncias reais históricas e materiais (ROSENDO, 2015, p. 83).

O monismo ético, ou, a crença na existência de um princípio supremo de moralidade, é

substituído no ecofeminismo de Warren pelo pluralismo ético, que não implica necessariamente

no abandono completo de princípios éticos, mas no abandono do papel determinante que esses

princípios desempenham nas tomadas de decisões, bem como o abandono da visão ocidental

tradicional da natureza. A questão da objetividade do ponto de vista moral, supostamente

desinteressada e racional, postura que chama de individualismo abstrato, também é objetada

por Warren, que se utiliza do exemplo de sua própria teoria, formada a partir de uma estrutura

conceitual particular, com valores e atitudes que a impedem de ser neutra ou imparcial. Afinal,

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ela defende o essencialismo estratégico, no lugar do essencialismo conceitual, “[...] para o qual

conceitos como agente moral e teoria ética são definíveis por um conjunto de condições a-

históricas, necessárias e suficientes” (ROSENDO, 2015, p. 84), que não se relacionam com

pessoas morais ou teorias morais práticas. É dizer, não é possível especificar as condições

suficientes para uma conduta moralmente aceitável, pois, para isso, faz-se necessário o

conhecimento do contexto histórico, material e social de cada condição.

Para Warren, ao rejeitar esses posicionamentos encontrados nas referidas éticas

ambientais, o ecofeminismo gera uma ética transformativa que supera os posicionamentos

atuais. Ela reitera a perspectiva feminista, carente nas outras abordagens, a qual objetiva a

erradicação de todas as formas de opressão, e a criação de um mundo sem dominação pela

diferença.

4.4 SOBRE FELINOS, SAPOS, RATOS, MOSCAS E OUTROS BICHOS

No capítulo destinado aos animais, de Ecocrítica (2006), Greg Garrard define as duas

principais linhas estudadas pelos ecocríticos, que pensam as relações entre animais e seres

humanos: “[as] considerações filosóficas sobre os direitos dos animais e a análise cultural da

representação deles” (2006, p. 192). Assim, partindo da relação entre a teoria de direitos da

ética animal e a filosofia ecofeminista de Karen Warren e Val Plumwood (2003), nesse tópico,

realizaremos uma análise da representação dos animais na obra.

No início do corpus, quando Martim está caminhando pela mata e as descrições do

entorno são intensas e contínuas, os animais são exaltados por suas especificidades, e

considerados em uma relação de alteridade com os humanos:

Sabiamente levando em conta a própria limitação que o tornava mais indefeso

que um coelho, ele então esperou de cabeça erguida como se uma atitude de

isenção o tornasse invisível. Também isso ninguém lhe ensinara. Mas em duas

semanas aprendera como é que um ser não pensa e não se mexe e no entanto

está todo ali (LISPECTOR, 1999, p. 22).

A narradora trata a humanidade de Martim como uma limitação, diante da animalidade

do coelho, valorizando o lado inferiorizado do dualismo humano/natureza, e invertendo a

relação de superioridade do dualismo racionalidade/animalidade. Como se a narradora dissesse

que, distanciado do ambiente natural, o ser humano tivesse perdido sua capacidade de

percepção territorial. Distância essa fruto do pensamento dominante da cultura ocidental, que,

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conforme explica Plumwood (2003), negou continuidade e dependência entre a humanidade e

a natureza produzindo um modelo de identidade humana minimamente conectada à Terra.

Garrard (2006) explica, a partir de Roy Willis, em Man and Beast, de 1974, a

semelhança e a diferença na relação entre seres humanos e animais, que se dão, no discurso,

por comparações metonímicas, baseadas na contiguidade e por comparações metafóricas,

baseada na analogia. Segundo Plumwood, “Os animais são uma fonte óbvia e importante de

continuidade entre a humanidade e a natureza, apresentando uma complexidade tanto de

semelhança quanto de diferença” (2003, p. 122112). No corpus, quando comparados por

analogia, a narradora contraria a lógica dominante, exposta por Plumwood (2003), segundo a

qual os animais são geralmente utilizados como metáforas para as facetas moralmente

duvidosas da humanidade, como voracidade e irracionalidade, e utiliza apenas qualidades

positivas dos animais, como podemos verificar nos seguintes exemplos, evidenciados pelos

grifos: “paciente como um burro” (LISPECTOR, 1999, p. 51); “[...] sua cara tinha uma

sabedoria física horrivelmente secreta como a de um puma quieto” (LISPECTOR, 1999, p. 66);

“[...] uma febre de precisão a tomara. E as minúcias a que descia lembravam uma mosca se

lavando” (LISPECTOR, 1999, p. 94); “Em aguçamento felino de memória, lembrou-se

instantaneamente de que vira Francisco limpar o caminhão...” (LISPECTOR, 1999, p. 132);

“[...] com as mandíbulas à mostra, como as de um bicho de presa, ela se revelou encarniçada e

suprema” (LISPECTOR, 1999, p. 188); “[...] olhos perdoados [leia-se inocentes] e delicados

como os de um bicho” (LISPECTOR, 1999, p. 206). Ou ainda, qualidades descritas sem

atribuição de valor, em que podemos verificar uma comparação não dualizada

hierarquicamente: “Ali era como um estábulo e pessoas se tornavam mais lentas e maiores como

animais” (LISPECTOR, 1999, p. 163).

Estabelecendo ainda mais continuidade entre os seres humanos e os animais, podemos

verificar comparações que se referem, inicialmente, ao estado animal vivenciado por Martim,

no qual a narradora reestabelece a animalidade da espécie humana pela ferocidade: “[...] agitou-

se à novidade, e coçou-se voraz sem parar de andar. Então, aprovando-se com ferocidade e

acompanhando o pensamento com um encorajamento rouco, repetiu: hoje deve ser domingo”

(LISPECTOR, 1999, p. 26 grifos nossos); “capturado, ele mexeu feroz a cabeça de um lado

para outro calculando a distância de um salto para fora do alpendre” (LISPECTOR, 1999, p.

132, grifos nossos). Também podemos verificar o inverso, os animais recebendo características

112 “Animals are an obvious and major source of human/nature continuity, presenting a complex play of both

similarity and difference” p. 122.

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humanas, mas com muito menor incidência: “[...] com o olhar humano que os bichos têm”

(LISPECTOR, 1999, p. 238).

Essa continuidade estabelecida entre a humanidade e a animalidade não se encontra

apenas no estado animal de Martim, mas também por meio de outras personagens, como nos

exemplos seguintes: “No meio de seu sofrimento, agora atingido em pleno, somente um mínimo

de consciência impedia que ela [Vitória] fosse se reunir aos sapos junto da janela. [...] Esse

esforço que semiacordada ela fez para não ser um animal, pois as orelhas deste nós já as temos

e a cara inocente também” (LISPECTOR, 1999, p. 233), “[...] em breve atravessava [Vitória] a

sala e o corredor sem nenhum ruído, deixando atrás de si os rastros molhados de um bípede”

(LISPECTOR, 1999, p. 238); “Vitória procurava se lembrar melhor do rapaz da fogueira.

Naquele inferno de fogo, na tarde suave, aquele rapaz que se movia com a sombria delicadeza

que um animal tem” (LISPECTOR, 1999, p. 281). No primeiro exemplo, a narradora evidencia

tanto a continuidade por meio dos atributos físicos – a cara e as orelhas, quanto a diferença – o

mínimo de consciência que separava Vitória dos sapos. Ressaltamos o uso das palavras

‘somente’ e ‘mínimo’, que expressam a diminuta diferença entre o estado mental dos humanos

e de outros sapos.

A continuidade entre humanidade e natureza não se limita aos atributos animais, como

pudemos verificar no capítulo três deste trabalho, sobre os momentos de integração de Martim

com o ambiente natural. Mas além da relação de semelhança, destacamos um trecho no qual

essa continuidade é caracterizada pela narradora a partir da diferença com outras formas de

natureza: “[...] um desejo profundamente confuso de ser amado misturou-se ao cheiro humano

da noite, e um vago suor começou a porejar, espalhando seu cheiro bom e ruim de terra e de

vacas e de rato e de axilas e de escuridão” (LISPECTOR, 1999, p. 128). O sentimento de Martim

é percebido junto a seu cheiro humano, o qual se exala pelo seu suor, o cheiro que também é da

o noite, o da terra, o das vacas, o dos ratos, todos diferentes, mas estabelecidos em continuidade

ao serem superpostos pela figura de sintaxe polissíndeto, na repetição da conjunção ‘e’.

Além da relação comparativa entre humanos e animais, os animais estão presentes na

narrativa em uma diversidade de modos. A seguir, selecionamos trechos em que protagonizam

o discurso narrativo, a partir de descrições de suas especificidades, as quais, por vezes,

interagem com a especificidade humana:

(1) Foi, pois, com o prazer mais legítimo da meditação que ele numa tarde se

lembrou, sem mais nem menos, de que “existem búfalos”. O que deu grande

espaço ao terreno, pois búfalos se movem devagar e longe (LISPECTOR,

1999, p. 93).

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(2) Um galho na sombra de súbito se despregou de outro galho, sobressaltou

a abelha, fazendo-a voar até se perder na distância da claridade... seu voo

deixou pressentir um mundo feito de lonjuras e repercussões, aquele mundo

profundo que parecia bastar ao claro-escuro de uma vaca e que basta a um

homem que levanta e abaixa uma enxada (LISPECTOR, 1999, p. 110).

(3) E só Deus sabe que Martim não sabia o que vinha fazer na encosta. Mas

tanto é verdade que alguma coisa objetiva devia lhe estar acontecendo ali que

– já que ele se habituara a revalidar sua própria natureza com o argumento

final da natureza dos animais – que bastava ele se lembrar de como um boi

fica de pé no morro. Olhando. Essa coisa objetiva como um ato: olhar. Às

vezes também um cachorro olha, embora rápido e logo em seguida inquieto,

pois um cachorro não tem tempo, ele precisa muito de carinho e é nervoso, e

tem um sentimento aflito do tempo que passa, e tem nos olhos o peso de uma

alma intransponível, só o amor cura um cachorro. Mas acontece que aquele

homem, por circunstâncias casuais, estava mais perto da natureza do boi, e

olhava (LISPECTOR, 1999, p. 127).

(4) Ser sapo era a humilde e grosseira forma de ser um bicho de Deus

(LISPECTOR, 1999, p. 232).

Assim como, pensar o movimento corporal lento e pesado dos búfalos faz Martim pensar

a dimensão de espaço e tempo, o movimento rápido e leve da abelha faz Martim pressentir a

dimensão do espaço, alargado na distância em que o animal rapidamente perde-se de suas vistas.

No final do segundo trecho e no terceiro percebemos o contraste entre as especificidades de

uma vaca e de um ser humano. Buscando sua identidade natural a partir da natureza animal,

Martim tenta se igualar ao boi em circunstância cotidiana, de pé no morro, olhando. As

características próprias da espécie bovina são contrastadas também com as da espécie canina,

sendo enfatizada a diferença de tempo entre elas, sereno para os bois, rápido para os cães,

compreendidos como mais sentimentais e dependentes. Clarissa Estés (1994) também considera

a afetuosidade como uma qualidade da natureza canina. Por fim, os sapos são personificados

pela humildade e destacados, apesar de sua forma grosseira, como bichos de Deus: o pai dos

homens.

A presença dos animais também se dá por diversas incursões poéticas de descrição do

ambiente, das quais destacamos algumas:

(1) Do curral veio de novo um tranquilo mover-se de patas. O sol

desaparecera, e uma claridade infinitamente delicada dava a cada coisa a sua

calma forma final (LISPECTOR, 1999, p. 58).

(2) O silêncio continuou, as moscas brilhavam imundas, azuladas, os

cachorros inquietos se cheiravam (LISPECTOR, 1999, p. 248).

(3) [...] os besouros estalavam no ar (LISPECTOR, 1999, p. 254).

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(4) [a] realidade cada vez mais emergida: as valas que se abriam pelas suas

mãos, o calor dourado cheio de mosquitos de vida breve, a roda da charrua

revolvendo uma terra mais negra (LISPECTOR, 1999, p. 289).

No primeiro trecho, a narradora, pelo uso da metonímia de parte pelo todo, acentua a

tranquilidade do movimento das vacas, referidas por suas patas. Nos outros três, os insetos são

retratados como brilhantes, faiscantes, dourados, ainda que sujos. A atitude de celebrar, junto

aos sapos e os ratos dos trechos anteriores, os animais mais estigmatizados pela cultura

ocidental, proporciona uma ressignificação dos códigos culturais tanto no que se refere à sujeira

quanto no que se refere a beleza.

Segundo Plumwood (2003), o ideal ocidental de humanidade potencializou a diferença

e a distância entre o humano e o animal, o natural, o primitivo, assim como identificou na

humanidade as capacidade mentais consideradas superiores. No corpus, os animais, e até

mesmo as plantas, são caracterizados como possuidores de uma mentalidade própria,

específica, e que, no entanto, se demonstra, por vezes, superior à da humanidade, revelando a

limitação dos sentidos humanos, face à percepção sensorial dos animais, como podemos

verificar nos seguintes trechos: “Era um silêncio como se fosse acontecer alguma coisa que um

homem não percebe, mas as poucas árvores se balançavam e os bichos já tinham desparecido”

(LISPECTOR, 1999, p. 22); “Embora soubesse que os cães inquietos já o haviam pressentido,

postou-se atrás de uma árvore para observar” (LISPECTOR, 1999, p. 55); “[...] aquela falta de

necessidade de ver para saber que os animais têm” (LISPECTOR, 1999, p. 96); “[...] nas trevas

os pássaros haviam percebido a acidez da aurora e, muito antes que esta raiasse para uma

pessoa, eles a respiravam e começaram a despertar” (LISPECTOR, 1999, p. 180).

4.4.1 SOBRE HUMANOS E VACAS

Martim vivencia um processo de ressignificação identitária, experimentando uma

condição meditativa, associada à natureza pela relação com os animais e as plantas: “[...] movia-

se lento como um homem que semeia. Seu grande silêncio não era apatia. Era uma profunda

sonolência em guarda, e uma meditação quase metafísica sobre o próprio corpo, no que ele

parecia estar atentamente imitando as plantas de seu terreno” (LISPECTOR, 1999, p. 84). A

aproximação com o ambiente natural se estabelece pelo ritmo ameno da gente do campo e pela

imitação das plantas como vontade de uma experiência vegetativa, mais distante da

humanidade. A distinção humana das plantas é descrita com desconforto, opondo-se ao prazer

de que as plantas eram feitas: “[...] no seu terreno ele sentia aquele prazer que em certos

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momentos nulos se sente, como se tudo na verdade fosse essencialmente feito de prazer. A

planta, por exemplo, era apenas prazer” (LISPECTOR, 1999, p. 91, grifo nosso). Esse

desconforto, enfatizado pela repetição da palavra ‘prazer’, se refere à condição humana

civilizada da qual a personagem tenta se livrar. No entanto, Martim

Obscuramente inquietava-se por começar a se sentir superior às plantas, e por

sentir-se de algum modo homem em relação a elas. Pois só homem era

impaciente: ele então mudou de novo a posição das pernas. [...] O homem

estava incomodadamente crescendo (LISPECTOR, 1999, p. 92).

Nesse crescimento, cabia a Martim, que começava a se diferenciar das plantas, encarar

os animais: “– E o curral? Interrogou-o um dia [Vitória] atenta, o senhor nunca limpou o curral!”

(LISPECTOR, 1999, p. 94), “Foi pois assim [...] que o novo e confuso passo do homem foi sair

uma manhã de seu reinado no terreno para a meia-luz do curral onde as vacas eram mais difíceis

que as plantas” (LISPECTOR, 1999, p. 94). O tempo das plantas parecia mais propício a

Martim que procurava atingir um estado interior silencioso e presentificado.

Desse modo,

Seu contato com as vacas foi um esforço penoso. A luz do curral era diferente

da luz de fora a ponto de estabelecer-se na porta um vago limiar. Onde o

homem parou. Habituado a números, ele recuava à desordem. É que dentro

era uma atmosfera de entranhas e um sonho difícil cheio de moscas. E só Deus

não tem nojo. No limiar, pois, ele parou sem vontade (LISPECTOR, 1999, p.

95).

A escuridão do curral conota a dificuldade de Martim em avançar em sua busca

existencial. A vida animal, simbolizada pelas entranhas dos animais, causava nojo a Martim,

que experimentava essa realidade nova, para o engenheiro/estatístico citadino que ele era.

Assim, assumir o seu nojo, distanciando-se de uma divindade, é como assumir sua mortalidade

e assumir, também, uma diferença identitária entre a humanidade e as vacas. Conforme explica

Plumwood, o reconhecimento da diferença,

é o reconhecimento do outro como um limite para si mesmo e como um centro

de resistência e opacidade [obscuridade]. O reconhecimento de outros

terráqueos [...] exige tal movimento dialético que reconheça parentesco e

diferença; isto é, mutualidade (2003, p. 157113).

O Reconhecimento do parentesco e o reconhecimento da diferença são os dois

movimentos necessários, segundo a filósofa, para superar as construções dualistas entre

113 “Recognition of the other as a limit on the self and as an independent centre of resistance and opacity

Recognition of earth others […] does require such a dialectical movement to recognize both kinship and difference;

that is, mutuality” p. 157.

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eu/outro. Para ela, o reconhecimento da diferença é fundamental na compreensão das interações

mútuas sociais entre indivíduos, identificados como centros diversos de luta e resistência.

Contudo, não foi apenas nojo o que Martim sentiu, e o reconhecimento de parentesco também

se efetua na percepção da personagem:

A névoa evolava-se dos bichos e os envolvia lenta. Ele olhou mais no fundo.

Na imundície penumbrosa havia algo de oficina e de concentração como se

daquele enleio informe fosse aos poucos se aprontando concreto mais uma

forma. O cheiro cru era o de matéria-prima desperdiçada. Ali se faziam vacas.

Por nojo, o homem que repentinamente se tornara de novo abstrato como uma

unha quis recuar; enxugou com o dorso da mão a boca seca como um médico

diante de sua primeira ferida. No limiar do estábulo no entanto ele pareceu

reconhecer a luz mortiça que se exalava do focinho dos bichos. Aquele homem

já vira esse vapor de luz evolando-se de esgotos em certas madrugadas frias.

E vira essa luz se emanar de lixo quente. Vira-a também como uma auréola

em torno do amor de dois cachorros; e seu próprio hálito era essa mesma luz.

Ali se faziam vacas profundas (LISPECTOR, 1999, p. 95).

A atmosfera de trabalho, depreendida das palavras ‘oficina’ e ‘concentração’, parece se

referir ao “trabalho” da natureza animal, aquilo que produz a vida das vacas, sua natureza

existindo, a partir do critério primeiro de intencionalidade. O reconhecimento da vida,

materializada no ínfimo vapor de luz que Martim enxergara em outras matérias orgânicas, nos

cachorros e até nele mesmo, faz com que ele reconheça a profundidade da vida das vacas, e o

parentesco entre as diferentes formas de vida citadas.

Ali, no curral,

[...] com repugnância e curiosidade, ele inesperadamente se lembrou de que

houve uma morta época em que répteis enormes tinham asas. É que ali uma

pessoa não escapava de certos pensamentos. Ali ele não escaparia de sentir,

com horror e alegria impessoal, que as coisas se cumprem (LISPECTOR,

1999, p. 95-96).

Remontando a tempos primitivos, à passagem do tempo terrestre, Martim pensa a

evolução das espécies animais no acontecimento da história. Consciente da animalidade das

vacas, a alteridade animal confirma em Martim sua própria animalidade. A alegria impessoal

diz respeito à alegria do reconhecimento de uma animalidade intrinsicamente humana.

Nesse momento, a narradora diferencia a vida animal da vegetal:

[...] bastar-lhe-ia um passo para trás, e ele se encontraria em plena fragrância

da manhã que já é coisa aperfeiçoada nas menores folhas e nas menores

pedras, e é trabalho acabado e sem fissuras – e que uma pessoa pode olhar sem

nenhum perigo porque não tem por onde entrar e perder-se (LISPECTOR,

1999, p. 96).

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Há uma distinção entre a fragrância da manhã e o cheiro morno do curral, que, no

entanto está para além da sensação física. Por meio da manhã, a narradora simboliza a luz, a

qual se contrasta com a penumbra do interior do curral. Para ela, as folhas e as pedras menores

se opõem aos animais, em profundidade, sendo a vida animal dotada de uma vida interior que

os minerais e vegetais não tem. Enquanto esses são trabalho pronto, de modo que, quando uma

pessoa olha, já vê o que há, para a narradora, todos os animais possuem uma existência para

além de sua exterioridade. Podemos pensar que ela caracteriza os animais conforme a descrição

de Plumwood (2003), segundo o entendimento de uma continuidade adequada com a natureza,

que não nega diferença. A visão da narradora corresponde ao critério ético animalista de

senciência, definido pela filósofa Sônia Felipe como, “[...] a condição mental, afetiva,

emocional e consciente de todos os animais” (2014, p. 28). Segundo esse critério, é

estabelecida, a partir dessa semelhança ontológica, a senciência, distintiva dos seres animados,

a mesma semelhança fundamental para a considerabilidade moral dos animais, e que Warren

chama de extensionismo moral.

Após uma hesitação significativa, Martim

[...] então deu um passo para a frente. [...] as vacas habituadas à obscuridade

haviam percebido o estranho. E ele sentiu no corpo todo que seu corpo estava

sendo experimentado pelas vacas: estas começaram a mugir devagar e

moviam as patas sem ao menos olhá-lo – com aquela falta de necessidade de

ver para saber que os animais têm, como se já tivessem atravessado a infinita

extensão da própria subjetividade a ponto de alcançarem o outro lado: a

perfeita objetividade que não precisa mais ser demonstrada. Enquanto ele, no

curral, se reduzira ao fraco homem: essa coisa dúbia que nunca foi de uma

margem a outra (LISPECTOR, 1999, p. 96).

A narradora descreve a percepção das vacas, que ‘experimentavam’ Martim, e a reação

corporal destas. Pela oposição entre ‘perfeita objetividade’, ‘fraco homem’ e ‘essa coisa dúbia’,

a subjetividade humana é tratada pela narradora como inferior à objetividade dos animais, uma

vez que esses alcançaram o outro lado de si, enquanto os humanos não. É na tentativa de

experimentar esse estado de objetividade, que Martim, por meio de uma atitude meditativa, que

também consiste em imitar a natureza, busca encontrar sua animalidade:

Num suspiro resignado, pareceu ao homem lento que “não olhar” também

seria o seu único modo de entrar em contato com os bichos. Imitando as vacas,

num mimetismo quase calculado, ele ali em pé não olhou para parte alguma,

tentando ele também dispensar a visão direta. E numa inteligência forçada pela

própria inferioridade de sua situação, deixou-se ficar submisso e atento.

Depois, por um altruísmo de identificação, foi que ele quase tomou a forma

de um dos bichos. E foi assim fazendo que, com certa surpresa,

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inesperadamente pareceu entender como é uma vaca (LISPECTOR, 1999, p.

96).

Abdicando da visão e reconhecendo sua inferioridade diante da objetividade das vacas,

Martim se entrega a uma identificação com a natureza animal delas, que o permite compreendê-

las. O processo de Martim pode ser relacionado ao que, para a psicologia junguiana, se chama

“mística da participação”:

[...] termo tomado de empréstimo do antropólogo Levy-Bruhl – [...] usado

para designar um relacionamento no qual “a pessoa não consegue se distinguir

como entidade separada do objeto observado”. Entre os freudianos, é uma

atitude chamada de “identificação projetiva”. Entre os contadores de histórias,

ela é chamada de “magia solidária” – querendo dizer a capacidade da mente

de se afastar do seu ego por um tempo e se fundir com uma outra realidade,

ali vivenciando e aprendendo ideias que ela não pode aprender em nenhuma

outra forma de consciência para depois trazê-las de volta à realidade

consensual (ESTÉS, 1994, p. 478).

Martim precisava desse relacionamento projetivo para compreender o valor intrínseco

da vida das vacas. O fato de Martim reencontrar sua animalidade a partir desse contato não é

gratuito. As vacas, animais sagrados para diferentes culturas orientais, no ocidente são tratadas

“[...] exclusivamente como matéria alimentar humana” (FELIPE, 2012, p. 108), constituindo

nossa principal fonte de dieta animalizada, da qual são utilizadas suas carnes, suas peles e

chifres, seus filhos e o leite desses. Conforme exposição de Lévi-Strauss, acerca da condição

bovina na cultura ocidental, “[...] o gado faz parte da sociedade humana, mas dela faz parte –

se assim se pode dizer – a-socialmente, pois está situado no limite do objeto” (2012, p. 244),

ou, “colocado na parte inumana da sociedade humana” (2012, p. 245). No corpus, que trata

enfaticamente da relação entre a humanidade e os animais, assim que Vitória dá de comer a

Martim, ela questiona o consumo de carne por parte da personagem:

Há muito tempo a mulher não via a fome, e, olhando agora o prato vazio,

franziu as sobrancelhas. Ela não conseguiu determinar em que momento é que

sentira a crueldade daquele homem. Olhando o prato vazio, pensou então

como se pensa de um cachorro: ele é cruel porque come carne. [...] Não ter

carinho por si mesmo era o começo de uma crueldade para com tudo. Ela o

sabia em si mesma (LISPECTOR, 1999, p. 68).

Martim é comparado por Vitória a um animal que mata outros animais para comer, o

cachorro. Ainda que logo em seguida ela o absolva com a justificativa114 de sua crueldade como

falta de carinho por si próprio, em outro momento da narrativa a personagem também julga-se

cruel por matar para comer, ou, por matar mais do que poderia comer:

114 Trataremos dessa questão no capítulo 5 deste trabalho.

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ela se lembrou de uma frase num livro para crianças: “O leão não é um animal

cruel. Ele não mata mais do que pode comer.” O leão não é um animal cruel,

ele não mata mais do que pode comer, o leão não é um animal cruel – e era

culpa sua, se sua fome era tão grande? Mas poderia jamais comer tanto quanto

matara? ela que já matara tanto, ela que já matara tanto. Sentada na cama,

matara mais do que poderia comer. Eis toda a sua grande culpa (LISPECTOR,

1999, p. 234).

A incidência repetitiva das frases sobre crueldade e, principalmente, ‘ela que já matara

tanto’ conotam uma culpa intensa da personagem em relação à morte de animais para

alimentação. Essa preocupação também pode ser verificada no seguinte trecho: “Martim

compreendia o que representava como revolução a visita do professor e de seu filho: na manhã

alegre duas galinhas aos gritos foram agarradas e apareceram mortas na cozinha. Da despensa

saiu marmelada para rechear um bolo” (LISPECTOR, 1999, p. 207). Apesar do tom natural

com que a narradora descreve a cena, há uma oposição antitética entre a manhã alegre e a morte

das galinhas, o que ressalta a incongruência, justamente, dessa naturalidade.

O que as vacas e Martim tinham em comum era a animalidade, a qual Martim buscava

em si mesmo, e que a partir do encontro com as vacas, no curral, começa a criar:

Tendo de algum modo entendido, uma pesada astúcia fez com que ele, agora

bem imóvel, se deixasse ser conhecido por elas. Sem que um olhar fosse

trocado, aguentou de dentes apertados que as vacas o conhecessem

intoleravelmente devagar como se mãos percorressem o seu segredo. Foi com

mal-estar que sentiu as vacas escolhendo nele apenas a parte delas que havia

nele [...] Só que as vacas escolhiam nele algo que ele próprio não conhecia –

e que foi pouco a pouco se criando (LISPECTOR, 1999, p. 96).

Plumwood (2003) considera a consciência da diferença entre as pessoas e os outros

terráqueos, uma força potencial de experiência de contato e de autoconhecimento. Para ela, o

sentimento de união ocorre em uma troca ativa com o outro, que a partir de sua diferença,

estabelece um limite ao eu. Processo que ela chama de transformação ou reconhecimento

mútuo: “[...] a dança da interação” (PLUMWOOD, 2003, p. 156). Nessa dança, o limite das

vacas estabelece o limite de Martim.

A consciência de sua animalidade faz com que a personagem não se sinta mais abstrata,

“Foi um grande esforço, o do homem. Nunca, até então, ele se tornara tanto uma presença.

Materializar-se para as vacas foi um grande trabalho íntimo de concretização” (LISPECTOR,

1999, p. 97). E além do esforço,

[...] a essa altura, a alegria de viver já o tomara [...] e o guiava instintivamente

na luta. Martim já não saberia se estava apenas obedecendo à ordem

informulada com que as vacas terminam por forçar um vaqueiro a um modo

peculiar de olhar e de ficar em pé. Ou se, verdade, era ele próprio quem estava

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buscando, em doloroso esforço espiritual, libertar-se enfim do reinado dos

ratos e das plantas – e alcançar a respiração misteriosa de bichos maiores”

(LISPECTOR, 1999, p. 97)

A ideia da dança da interação também pode ser percebida nesse trecho, no qual Martim

e as vacas se inter-relacionam. A narradora utiliza a expressão ‘ordem informulada’ por não

haver precisão no que narra, ao especular acerca da intencionalidade presente na relação entre

os seres. Martim empenhava-se em (re)conquistar sua identidade animal, que no entanto, não

se assemelhava com animais de pequeno porte. Em princípio pode parecer que essa distinção é

especista, mas pensamos, junto a Plumwood (2003), para quem a resolução de dualismos

implica na marcação da diferença entre os seres, que Martim estabelece uma relação de

identificação com as vacas pois sua identidade animal especifica está mais próxima a dos

animais maiores. Pensando, por exemplo, nos macacos, dos quais estamos mais próximos na

escala evolutiva, fica mais simples compreender porque Martim se sente distante dos ratos, e

ainda mais das plantas. No entanto, não pretendemos com isso legitimar a distinção feita pela

narradora a fim de estabelecer qualquer tipo de parâmetro ético, mas analisar as identidades

humanas expressas na obra, em relação com a natureza. Dissertando sobre identidades futuras,

Plumwood (2003) prevê virtudes que expressarão “o reconhecimento de relações específicas

de dependência, responsabilidade, continuidade e interconexão, bem como as de diferença

(incluindo a diferença humana) e de respeito pela independência e ilimitação do outro” (2003,

p. 185115). Conforme argumenta Warren (2000), é necessário um conceito de comunidade moral

que reconheça as diferenças mesmo onde existe semelhança.

Martim, nesse momento, atingira enfim a objetividade que antes reconhecia apenas nos

animais. Nessa objetividade, ele tinha o conhecimento de uma única lei:

Que não devia brutalizar-lhes o ritmo próprio, e que lhes devia dar tempo, o

tempo delas. Que era um tempo inteiramente escuro, e elas ruminavam feno

com baba. Aos poucos também este se tornou o tempo do homem. Redondo,

lento, incontável por um calendário, pois assim é que uma vaca atravessa um

campo (LISPECTOR, 1999, p. 97).

A narradora cita a diferença entre o tempo dos seres humanos e o das vacas, esse,

totalmente escuro, do qual depreendemos lentidão e um tipo de visão diferente da visão humana

– que se faz na luz. As características da espécie bovina destacadas, junto à alusão poético-

sensível que dá movimento, e assim realidade às vacas – atravessando o campo – reforçam a

115 “Other virtues would express recognition of specific relations of dependency, responsibility, continuity and

interconnection, as well as those of difference (including human difference) and of respect for the independence

and boundlessness of the other” p. 186

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alteridade delas. A essa alteridade, Martim sabe ser a única lei: respeitar. Em Galactolatria:

Mau deleite: Implicações éticas, ambientais e nutricionais do consumo de leite bovino, Sônia

Felipe disserta sobre o tempo das vacas:

[...] ao contrário da tese de que as vacas são seres vazios de qualquer

consciência, emoção, memória e sensibilidade, apregoada no senso comum e

nos meios acadêmicos formatados por essa moral especista eletiva, elas

possuem um tipo de inteligência e sensibilidade manifestas na paciência com

a qual seguem a cadência de sua natureza [...]. “Profundamente enraizadas no

ritmo da terra”, escreve John Robbins (FELIPE, 2012, p. 109-110).

A brutalidade, culturalmente atribuída aos animais, é relacionada a Martim, no desafio

de se integrar à serenidade das vacas. E é nesse cuidado de não brutalizá-las, que Martim

transforma seu tempo, sua presença, sua identidade. O eu de Martim, nesse momento do curral,

pode ser visto, como o eu ecológico, descrito por Plumwood: “[...] um tipo de eu relacional,

que inclui o objetivo do florescimento de outros terráqueos e da comunidade terrestre entre seus

próprios fins primários e, portanto, respeita ou se preocupa com esses outros pelo seu próprio

bem” (2003, p. 155116). A filósofa, também fala sobre outras virtudes do eu ecológico, não

consideradas na ética tradicional de direitos, como a generosidade, a capacidade de se colocar

no lugar do outro – empatia - e de responder às necessidades do outro. Conforme pontua

Rosendo, “Outros valores fazem parte da moralidade: cuidado, empatia e respeito. Negar que

esses valores fazem parte das decisões dos agentes morais é negar que os sujeitos são

constituídos de razão e emoção” (ROSENDO, 2015, p. 193).

Por fim,

[...] já que as coisas tendem a chegar a uma conclusão e a descansar num

estágio – o curral enfim começou serenar. O calor do corpo do homem e dos

bichos se confundiu na mesma mornidão amoniacada do ar. O silêncio do

homem automaticamente se transformara. Ele enfim ganhara uma dimensão

que uma planta não tem. E as vacas apaziguadas com a justificação que

Martim lhes dera, deixaram de se ocupar dele (LISPECTOR, 1999, p. 97).

O homem e os bichos estavam integrados no calor de seus corpos. Por sinestesia, a

narradora intensifica os sentidos sensoriais, pelos quais percebemos intensamente a natureza

narrada: a temperatura atmosférica e o cheiro de urina. Enfim animalizado, agora Martim

pertencia ao curral, e

[...] pôde olhá-lo como uma vaca o veria: o curral era um lugar quente e bom

que pulsava como uma veia grossa. Era à base dessa larga veia que homens e

116 “[...] a type of relational self, one which includes the goal of the flourishing of earth others and the earth

community among its own primary ends, and hence respects or cares for these others for their own sake”.

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bichos tinham filhos. Martim suspirou cansado com o enorme esforço: acabara

de “descortinar”. Era a partir dessa veia larga que um grande animal

atravessava um riacho espalhando água que brilha – o que o homem já havia

visto, tendo porém tido apenas aquele mínimo aviso de beleza que agora

repousava em base profunda. Era por causa dessa pulsação que as montanhas

eram longe e altas. Era por isso que as vacas molhavam o chão com um

barulho forte. Era à base de um curral que o tempo é indefinidamente

substituído pelo tempo. Era por causa desse latejar que levas migratórias saíam

de zonas frias para as temperadas. Aquele – aquele era um lugar quente que

pulsava (LISPECTOR, 1999, p. 98).

A palavra dita no silêncio117 desse trecho é vida. Úmido e quente, condições ideais para

a vida, o curral pulsava, nele Martim descortinava: reconhecia a vida no conjunto de suas

condições físico-químicas. Diferentes imagens são figuradas pela narradora para simbolizar a

vida, a partir da metáfora da veia, onde corre sangue, um de seus principais símbolos. A

humanidade e os bichos são colocados juntos como seres que geram vida, e diferentes tipos de

animais são figurados em relação ecossistêmica. Como parte da biosfera, o curral representa-a.

A personagem reconhecia agora a existência dos animais, a partir de uma base mais profunda

do que a da aparência. E reconhecia também a vida até mesmo nas montanhas, como se

reconhecesse em cada elemento natural o seu valor intrínseco. Plumwood (2003) disserta sobre

o valor intrínseco das montanhas, explicando-as como “produtos de um longo processo natural

de desdobramento, tendo um certo tipo de história e direção como parte desse processo, e com

certo tipo de potencial de mudança” (2003, p. 135118). O reconhecimento do valor intrínseco do

outro é parte das éticas ecofeministas do cuidado e respeito pela diferença.

Então, “com o coração cheio de pesado vigor, escondendo a emoção, estendeu a mão e

deu algumas palmadas no corpo enxuto de uma vaca. Uma grande transfusão tranquila

começara entre ele e os animais” (LISPECTOR, 1999, p. 98). Reconectado ao seu eu animal,

Martim desenvolve um eu mútuo, como um “indivíduo distinto, separado, mas não

hiperseparado” (PLUMWOOD, 2003, P. 156) em troca com os animais, “consciente do outro

como um outro significante” (PLUMWOOD, 2003, p. 157), uma vez que os “‘outros’ serão

reconhecidos eticamente apenas na medida em que sejam marcados como ‘eus’”

(PLUMWOOD, 2003, P. 159). De acordo com Plumwood (2003), para um aprofundamento da

preocupação com a natureza, as relações especiais de cuidado e empatia precisam ser

experimentadas, de forma que a natureza não fique apenas na abstração.

A interação de Martim com as vacas no curral configura exemplo de um eu ecológico,

117 Sobre o silêncio como forma de comunicação, ver ORLANDI, Eni P. As formas do silêncio: no movimento dos

sentidos. 3 ed. Campinas: Ed. Unicamp, 1995. 118 “products of a lengthy unfolding natural process, having a certain sort of history and direction as part of this

process, and with a certain kind of potential for change”.

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[...] uma forma de individualidade mútua na qual o ‘eu’ experimenta uma

conexão essencial com os outros terráqueos, e portanto, [...] produto de um

certo tipo de identidade relacional. Ao expressar essa identidade, o individuo

cumpre seus próprios fins, assim como os do ‘outro’ (PLUMWOOD, 2003, p.

184-185119).

Semelhante a ética da Virtude, descrita por Plumwood (2003), o cuidado com o ‘outro’ não se

realiza a partir de alguma forma proibitória, como a teoria de direitos, mas ““flui naturalmente”,

isto é, expressa o que o indivíduo quer fazer, baseando-se em uma atitude ética identitária, ao

invés de uma obrigação:

Por consideração e docilidade, [Martim] transformou-se em instrumento de

seu próprio trabalho. Nunca, por exemplo, abria a vala onde a terra se quisesse

dura. E quando a vaca se negava, ele não tirava leite. Isso exigia uma

dedicação paciente de sua parte, ele sentia o prazer de quem descobriu um

estilo mais delicado (LISPECTOR, 1999, p. 289, grifo nosso).

Martim não pensa as vacas, e tampouco a terra, em termos de moralidade ou direitos,

mas por meio de uma identificação emocional com essas, verificadas pelas palavras em

destaque, na qual a personagem passa a identificá-las como ‘outros’ dotados de valor intrínseco,

e então, dignos de respeito. Assim, distanciando de uma identidade racionalista pelo processo

de busca de sua animalidade perdida, a personagem rompe também com o padrão masculinista

de racionalidade, superando assim os dualismos macho/fêmea, razão/emoção,

civilizado/primitivo e público/privado.

119 “[…] a form of mutual selfhood in which the self makes essential connection to earth others, and hence as a

product of a certain sort of relational identity. In expressing that identity, the individual fulfils his or her own ends

as well as those of the other”.

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5 A ESPÉCIE HUMANA EM PERSPECTIVA

“Um ecossistema saudável, balanceado, incluindo

habitantes humanos e não humanos deve manter a

diversidade. Ecologicamente, a simplificação

ambiental é um problema tão significativo quanto

a poluição ambiental. A simplificação biológica,

isto é, a extinção de todas as espécies,

corresponde à redução da diversidade humana em

trabalhadores sem rostos, ou à homogeneização

do gosto e da cultura por meio do mercado de

consumidores em massa. A vida social e a natural

são literalmente simplificadas ao inorgânico para

a conveniência da sociedade de mercado”

(YNESTRA KING).

Nesse capítulo, a análise ecocrítica do corpus se voltará para a ecologia humana, a partir

das questões políticas levantadas em A maçã no escuro. No primeiro tópico, sob a luz de

Ecocrítica (2006), de Greg Garrard, que abrange os principais tópicos da análise ecocrítica,

trataremos da intersecção entre ecologia ambiental e ecologia humana, amparadas pela ecosofia

de Félix Guattari, a partir da obra As três ecologias (1990) e a filosofia ecofeminista, teoria

basilar que articula os registros ecológicos presentes no corpus. No segundo tópico, a fim de

cumprir uma análise das quatro categorias de opressão abordadas pelo ecofeminismo,

analisaremos as opressões de classe, gênero e raça em intersecção no discurso narrativo.

5. 1 ECOLOGIA HUMANA E ECOLOGIA AMBIENTAL EM INTERSECÇÃO

Em As três ecologias, o filósofo e psicanalista Félix Guattari (1990) propõe que à

ecologia do (1)meio ambiente e das (2)relações sociais, seja vinculada a ecologia da

(3)subjetividade humana, como parte das preocupações ecológicas gerais, formando, juntas, as

três ecologias do título. Conforme explicação do autor,

O planeta Terra vive um período de intensas transformações técnico

científicas, em contrapartida das quais engendram-se fenômenos de

desequilíbrios ecológicos que, se não forem remediados, no limite, ameaçam

a vida em sua superfície. Paralelamente a tais perturbações, os modos de vida

humanos individuais e coletivos evoluem no sentido de uma progressiva

deterioração (GUATTARI, 1990, p. 7).

Do macrocosmo do planeta ao microcosmo da humanidade, a psicologia individual e

coletiva é pensada pelo filósofo como um ecossistema específico, que se relaciona a outros

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ecossistemas: a interioridade humana com sua exterioridade, “[...] seja ela social, animal,

vegetal [ou] cósmica” (GUATTARI, 1990, p. 8). Assim como “os seres humanos são animais

e têm a mesma dependência de uma biosfera saudável como outras formas de vida”

(PLUMWOOD, 2003, p. 06120), para Guattari, pensar a psicologia social como fator de saúde

pública é pensar ecologicamente.

O filósofo critica o atraso da integração da psicologia no escopo dos estudos ecológicos,

demonstrando o caráter excludente da desconsideração da subjetividade humana como parte do

ambiente físico, uma vez que esta é determinante para as relações sociais que se dão nesse

ambiente. Conforme exposição do autor,

as formações políticas e as instâncias executivas parecem totalmente

incapazes de apreender essa problemática no conjunto de suas implicações.

Apesar de estarem começando a tomar uma consciência parcial dos perigos

mais evidentes que ameaçam o meio ambiente natural de nossas sociedades,

elas geralmente se contentam em abordar o campo dos danos industriais e,

ainda assim, unicamente numa perspectiva tecnocrática (GUATTARI, 1990,

p. 8).

A par do movimento ecofeminista, Guattari (1990) compreende a implicação mútua

entre as diferentes formas de opressão, e, assim, demonstra a necessidade de uma articulação

ético-política, a qual denomina ecosofia, entre os três registros ecológicos. Além disso, o

filósofo enfatiza a necessidade de uma revolução política, social e cultural que reoriente a lógica

da produção de bens, materiais e imateriais121, sem a qual não se pode enfrentar a crise

ecológica. É dizer, consoante ao ecofeminismo, a incapacidade de enfrentar os problemas

ecológicos, a partir de soluções que não questionem o modo de produção capitalista e os

discursos hegemônicos totalitários.

No corpus, Clarice aborda as três ecologias propostas por Guattari (1990), por meio dos

conflitos sócio-existenciais de Martim, a descoberta/revelação de um mundo natural e a

supervalorização dessa natureza. Na obra a preocupação ambiental e a preocupação social estão

presentes e em interação em toda a narrativa, trabalhadas junto às questões subjetivas

existenciais vividas por Martim, típicas do fazer literário de Clarice. Na fase mais tardia de sua

produção, Clarice prioriza a interioridade das personagens – os pensamentos, sensações,

sentimentos e emoções – em A maçã no escuro, no entanto, como obra de transição entre uma

maior quantidade de descrições exteriores a uma menor, há um balanço equilibrado entre a

120 “[…] humans are animals and have the same dependence on a healthy biosphere as other forms of life”. 121 Ressaltamos o papel da produção de conhecimento teórico/artístico, como o deste trabalho, quanto a sua

coerência revolucionária/ecológica.

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interioridade humana e a exterioridade natural, sendo a interioridade pensada como parte

intrínseca do mundo natural.

Quando Martim chega sozinho no sítio em que se passará a maior parte da narrativa, ele

é um desconhecido da região e tem um aspecto animalizado, destoante das outras pessoas.

Contudo, por mais que o comportamento estranho de Martim despertasse desconfiança em

Vitória, no final do primeiro diálogo entre eles, que é narrado em tom de embate, ela acaba por

aceitá-lo para alguns trabalhos de que o sítio precisava. Então, a primeira coisa que Vitória faz,

é dar de comer a Martim:

Há muito tempo a mulher não via a fome, e, olhando agora o prato vazio,

franziu as sobrancelhas. Ela não conseguiu determinar em que momento é que

sentira a crueldade daquele homem. Olhando o prato vazio, pensou então

como se pensa de um cachorro: ele é cruel porque come carne. Mas talvez a

impressão de crueldade viesse de que, diante do alpendre, ele estava com fome

e no entanto sorria: via-se a fome na sua cara mas ele, numa capacidade de

crueldade feliz, sorria. Não ter carinho por si mesmo era o começo de uma

crueldade para com tudo. Ela o sabia em si mesma (LISPECTOR, 1999, p. 67-

68).

Assim que a personagem come, a fome é ressaltada pela concretização do sentimento

visto por Vitória, e o consumo de carne é questionado: matar para comer é considerado por ela

crueldade. Mas não uma crueldade injustificada, para a narradora, a crueldade se dá para os

animais porque primeiro se dá para a própria humanidade. Ao explicar a crueldade contra os

animais como um problema anterior, da crueldade humana contra si própria, a narradora expõe

as diferentes partes de uma mesma realidade social: a morte dos animais para consumo, e suas

implicações mútuas entre os humanos. Guattari (1990) explica a violência e a negatividade

como resultantes de “agenciamentos subjetivos complexos: elas não estão intrinsecamente

inscritas na essência da espécie humana, são construídas e sustentadas por múltiplos

agenciamentos de enunciação” (p. 41-42). Deslocando a questão do âmbito individual,

podemos também compreender a questão da violência segundo a acepção de Milton Santos,

Fala-se, hoje, muito em violência e é geralmente admitido que é quase um

estado, uma situação característica do nosso tempo. Todavia, dentre as

violências de que se fala, a maior parte é sobretudo formada de violências

funcionais derivadas, enquanto a atenção é menos voltada para o que

preferimos chamar de violência estrutural, que está na base da produção das

outras e constitui a violência central original. Por isso, acabamos por apenas

condenar as violências periféricas particulares (SANTOS, 2000, p. 55).

Sob esse mesmo viés, a abordagem ética e política de Karen Warren reconhece as

práticas alimentares como “socialmente construídas, culturalmente incorporadas,

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economicamente moldadas, politicamente reforçadas” (2000, p. 143 apud ROSENDO, 2015,

p. 115). Isso explica que a brutal violência contra os animais na indústria alimentícia capitalista

que os reduz a mercadorias, seja posta em prática pela humanidade. Isso explica também a

crueldade de Martim, construída socialmente, ou seja, cultural, assim como o especismo, o

sexismo, o racismo e o classismo.

No artigo “Ecologia humana: um enfoque das relações homem-ambiente”, de 1993,

Alpina Begossi122 explica a cultura a partir do conceito de Luigi Luca Cavalli-Sforza e Marcus

Feldman123, retirado de Cultural transmision and evolution, de 1981, que enfatizam a

transmissão cultural, diferenciando-a da transmissão genética, para defini-la (a cultura) como

“a capacidade de aprender e transmitir conhecimento entre gerações” (BEGOSSI, 1993, p.14-

15). A partir de Roberto Boyd e Peter J. Richerson124, Begossi distingue os diferentes modelos

de transmissão cultural:

a) variação ao acaso (análoga à mutação): por exemplo, a tradição oral "muda"

os fatos; b) oscilação cultural (análogo à oscilação genética): perdas de traços

culturais ao acaso, em populações isoladas e pequenas; c) variação dirigida

(guided variation): inclui aprendizado por tentativa-e-erro, introduz variação

na população; d) seleção natural: comportamentos que aumentam as chances

de sobrevivência aumentam de frequência em uma população; e) transmissão

desviada (biased transmission): inclui os desvios diretos, indiretos e

dependentes de frequência (BEGOSSI, 1993, 15).

A partir dos autores citados, Begossi (1993) explica o último modelo como uma das

principais forças de evolução cultural, que se baseia na imitação, já que imitar é uma forma de

evolução menos custosa do que tentar e errar. Para a narradora de A maçã no escuro, esse é

também o modelo cultural predominante, como podemos depreender da descrição de Martim

como um homem que “copiava”125 os comportamentos transmitidos, e assim: “[...] como toda

122 Pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais da UNICAMP e professora credenciada junto à

Pós-graduação em Ecologia da UNICAMP e da UFRJ. 123 O primeiro é um Geneticista italiano membro emérito da Pontifícia Acadêmica das Ciências, em Roma e o

segundo professor de ciências biológicas da faculdade de Stanford, Califórnia e diretor do Instituto Morrison para

Estudos de população e Recursos. 124 O primeiro é um Antropólogo americano, professor da Escola de Evolução Humana e Mudança Social na

Universidade Estadual do Arizona e o segundo é professor emérito do Departamento de Ciência e Política

Ambiental da Universidade de Califórnia Davis, ambas nos Estados Unidos. 125 “Na verdade, concluiu então muito interessado, apenas imitara a inteligência, com aquela falta essencial de

respeito que faz com que uma pessoa imite. E com ele, milhões de homens que copiavam com enorme esforço a

ideia que se fazia de um homem, ao lado de milhares de mulheres que copiavam atentas a ideia que se fazia de

mulher e milhares de pessoas de boa vontade copiavam com esforço sobre-humano a própria cara e a ideia de

existir; sem falar na concentração angustiada com que se imitavam atos de bondade ou de maldade - com uma

cautela diária em não escorregar para um ato verdadeiro, e portanto incomparável, e portanto inimitável, e portanto

desconcertante. E enquanto isso, tinha alguma coisa velha e podre em algum lugar inidentificável da casa, e a gente

dorme inquieta, o desconforto é a única advertência de que se está copiando, e nós nos escutamos atentos embaixo

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pessoa, ele era uma ideia preconcebida” (LISPECTOR, 1999, p. 312). A palavra cultura é dita

em silêncio e aludida pela narradora de diferentes formas:

(1) [...] mesmo que ele falasse de seu “descortinar” a uma pessoa apenas, esta

pessoa contaria a outra, como numa “cadeia de boa vontade”. Ou então –

pensou ele desenvolto – essa pessoa transformada pelo conhecimento seria

percebida por outra, e assim por diante. E no ar haveria aos poucos a sub-

reptícia notícia assim como a moda se espalha sem que ninguém tenha sido

obrigada a segui-la. Pois que eram as pessoas senão a consequência de um

modo de compreender e de amar de alguém já perdido no tempo? “Ele viveu

assim”, diria uma pessoa a outra como a senha esperada. “Ele viveu assim”,

correria o boato (LISPECTOR, 1999, p. 168).

(2) Restos transfigurados de civismo e de colação de grau, leiteiros que não

falham e entregam diariamente o leite, coisas assim que parecem não instruir,

mas instruem tanto, uma carta que nunca se pensou que viria e que vem,

procissões que dão voltas lentas pela esquina, as paradas militares onde uma

multidão inteira vive da seta que lançou (LISPECTOR, 1999, p. 305-306).

(3) Em última análise, [os homens] se levam adiante. E para levar adiante, eles

se protegiam sendo pequenos e vazios – vazios coisa nenhuma! – e estúpidos;

e se fraquejassem na dúvida, milhares de outros pequenos brotariam do chão

e continuariam a tarefa da certeza (LISPECTOR, 1999, p. 309).

A cultura é compreendida pela narradora como uma cadeia de relações entre as pessoas,

as quais moldam um determinado modo de ser. Cerimonias, a cotidianidade das relações

sociais, a religiosidade, as instituições, repetições em repetições irrefletidas, naturalizadas, e

assim tidas como certas, ao longo das gerações. A ação de copiar dos milhões de homens e

mulheres denota a repetição de hábitos ditados por antepassados e não refletidos pela

humanidade herdeira: “[...] é que nossos pais não estavam mortos. Pelo menos não tão mortos

assim” (LISPECTOR, 1999, p. 313). Martim, que vivendo uma vida mecanizada pela

predominância do modelo de transmissão cultural desviada, instruído por diferentes

agenciamentos de enunciação (racionalista, masculinista, elitista) “[...] se havia feito

depositário da cólera alheia” (LISPECTOR, 1999, p. 224), num momento de extrema raiva, em

que desconfia que sua esposa tem um amante, tem um rompante de liberação de energia

reprimida, e tenta matar sua esposa. Somente no fim da narrativa descobrimos, junto com

Martim, que ela havia sobrevivido.

dos lençóis. Mas tão distanciados estamos pela imitação que aquilo que ouvimos nos vem tão sem som como se

fosse uma visão que fosse tão invisível como se estivesse nas trevas que estas são tão compactas que mãos são

inúteis. Porque mesmo a compreensão, a pessoa imitava. A compreensão que nunca foi feita senão de linguagem

alheia e de palavras. Mas restava a desobediência” (LISPECTOR, 1999, p. 34). A citação também está na página

67, no capítulo 3 dessa dissertação.

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A visão de que os crimes cometidos contra as mulheres se dá pela perpetuação de uma

construção sóciocultural sexista é uma visão precursora no pensamento feminista brasileiro.

Uma vez que para o senso comum esse tipo de violência é vista como casos isolados de homens

maus ou que amam demais (su)as mulheres. Se em 2017, o sexismo ainda é extremamente

enraizado e mistificado na sociedade brasileira, pode-se imaginá-lo na década de cinquenta do

século passado, quando o corpus foi escrito. Popularmente falando, crimes contra as mulheres,

como a violência doméstica ou o estupro, são considerados ou culpa das vítimas, como castigo

por uma má conduta, ou culpa de homens “loucos” ou “doentes”, que “não sabem o que fazem”

ou “fazem o que fazem por amor”, sob a legitimação legislativa de crime passional. Caracterizar

a violência sexista como cultural implica, não apenas em absolver as mulheres da culpa que,

como vítimas, jamais carregam, mas também em absolver os homens de uma essência cruel,

caracterizando essa crueldade como socialmente construída. Assim, “a perversidade deixa de

se manifestar por fatos isolados, atribuídos a distorções da personalidade, para se estabelecer

como um sistema” (SANTOS, 2000, p. 60).

Conforme argumenta Rosendo,

o poder e [o] privilégio conferido aos grupos dominantes (por exemplo,

homens ou brancos) são herdados pelo nascimento com tais características.

Portanto, não são baseados no mérito, na habilidade, no esforço ou na

necessidade individual; logo, não é algo pelo qual os indivíduos mereçam

elogios ou culpa (2015, p. 50).

Warren também afirma que as estruturas conceituais não são determinadas

geneticamente, mas aprendidas, e portanto, podendo ser mudadas, ainda que para isso seja

necessário um intenso exame de consciência capaz de alterar crenças profundamente

enraizadas. “Porque afinal não somos tão culpados, somos mais estúpidos que culpados”

(LISPECTOR, 1999, p. 335), afirma a narradora no último parágrafo da narrativa. Assim, por

mais que não se possa evitar o poder institucionalizado, a filósofa explica que os “de cima” são

responsáveis por perpetuá-lo com sua linguagem e comportamento: “[...] o perigo está apenas

nos atos das pessoas ruins pois estes têm consequência, mas elas próprias não são perigosas,

são infantis, são cansadas, precisam dormir um pouco” (LISPECTOR, 1999, p. 284). “Mas

restava a desobediência”, potência de todos os seres humanos, que denota a agência da

humanidade face à hegemonização cultural e o determinismo biológico: “[...] qualquer

transformação no rito torna um homem individual, [...] [e] deixa em perigo a construção toda e

o trabalho de milhões” (LISPECTOR, 1999, p. 324).

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O crime de Martim é considerado pela narradora como o ato final desencadeador da

ruptura com o condicionamento social, ainda que exprimindo-o, no caso da violência de gênero,

em seu ápice: o feminicídio: com seu “[...] crime executara o seu primeiro ato de homem. Sim.

Corajosamente fizera o que todo homem tinha que fazer uma vez na sua vida: destruí-la. Para

reconstruí-la em seus próprios termos” (LISPECTOR, 1999, p. 130). O ato primeiro, a explosão

inicial, leva Martim à revelação de que até então ele nada mais fizera do que reproduzir uma

forma de viver, e agora, “[....] aquele homem terminara por cair na profundeza que ele sempre

sensatamente evitara” (LISPECTOR, 1999, p. 173).

No romance O estrangeiro, de Albert Camus, publicado em 1942, a personagem

principal também comete um crime, a partir do qual coloca sua existência em perspectiva.

Considerados os dois romances existencialistas, ambos representam, por meio da personagem

principal, o ser humano que vivendo antes uma vida sem questionamentos existenciais, se

depara com a falta de sentido da vida. Martim hesita a compreensão existencialista da realidade,

como se “[...] soube[sse] que depois de compreender, seria de algum modo irremediável.

Compreender podia se tornar um pacto com a solidão” (LISPECTOR, 1999, p. 148) a mesma

em que vive Meursault, que não tece relações estreitas nem com a sua mãe, nem com Marie,

sua namorada, nem com ninguém no trabalho, mantendo apenas uma relação superficial com o

vizinho. Também a mesma solidão em que vai viver o pai, do conto ‘A terceira margem do rio’,

de Guimarães Rosa, publicado no livro Primeiras estórias, em 1962. O pai, Meursault e Martim

simbolizam os “estrangeiros” do mundo. Estrangeiros porque distanciados dos outros em sua

consciência existencial.

Como se buscasse se libertar da condição ontológica existencialista do ser-com-o-

outro126, Martim explica seu crime:

(1) [...] a cidade, que era uma forma de viver e que ele repudiara com um

assassinato (LISPECTOR, 1999, p. 136).

(2) “Um homem sem vocação deveria ao menos ter a vantagem de ser livre”,

divagou Martim absorto. Mas todos o chamavam a exercer um mister. E a

verdade é que, ao sol, ele estava tão definitivamente emaranhado quanto o fora

antes; em qualquer lugar onde um homem pisava, instalava-se uma cidade, só

faltavam os bondes e os cinemas. [...] no sol, perseguido pela presença de

Vitória ele pensou assim: “que o único meio de ser livre, como um homem

sem vocação tinha direito, fora cometer um crime, e fazer com que os outros

não o reconhecessem mais como semelhante e nada exigissem dele; mas se

essa explicação era a certa, então seu crime fora inútil: enquanto ele próprio

sobrevivesse, os outros o chamariam” (LISPECTOR, 1999, p. 275-276).

126 Termo cunhado por Martin Heidegger na obra Ser e tempo.

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A explicação de Martim se assemelha à explicação que Meursault dá a seu crime: “como

se essa grande cólera tivesse lavado de mim o mal, esvaziado de esperança, diante dessa noite

carregada de signos e estrelas, eu me abria pela primeira vez à terna indiferença do mundo”

(CAMUS, s. d., p. 22). Também relacionamos o papel do sol como influenciador das atitudes e

pensamentos de ambas as personagens, sendo o calor e a luz forte do sol a justificativa dada por

Meursault quando questionado sobre as motivações de seu crime. Na referência ao meio urbano

como símbolo do ambiente social “adoecido” do qual foge Martim, se dá a principal diferença

entre as duas personagens, que simbolizam ambas a fuga do homem comum, pois, se Meursault

encontra na morte o único sentido para sua vida, quando condenado por assassinato, mais por

não ter chorado no enterro de sua mãe, do que por matar um estrangeiro, Martim encontra um

modo de ser mais natural, que corresponde na obra a uma existência mais livre.

Em Ecocrítica, de 2006, Greg Garrard discute os principais tropos127 que construíram a

ideia de natureza na literatura ocidental. No que se refere ao meio ambiente como um todo, ele

distingue a construção da pastoral e a construção do mundo natural como as formas

predominantes. A pastoral é descrita pelo autor como a tradição literária da fuga da cidade para

o campo, motivada pelos danos da civilização, e considerada o tropo mais problemático do

ambientalismo, uma vez que nele, a natureza é tratada como “uma localização ou como um

reflexo das vicissitudes humanas, em vez de sustentar um interesse pela natureza em si e por

si” (GARRARD, 2006, p. 56). No corpus, ao fugir de sua identidade humana civilizada, a “[...]

civilidade de um homem que transpira discretamente” (LISPECTOR, 1999, p. 298), ao fugir de

si, Martim se torna o fugitivo citadino no meio rural.

Verificamos uma posição dupla quanto ao tropo da literatura pastoril, no que se refere a

seu caráter instrumental presente no corpus. Pois, ainda que Martim materialize o dilema da

civilização adoecida, distante de sua natureza mais primeva e do ambiente natural, a natureza é

tratada com autonomia em relação às personagens humanas, e em interação com estas,

subvertendo a lógica da natureza retratada como pano de fundo para as ações humanas.

Também dupla, é a atitude no que se refere à distinção espacial pastoril da narrativa, entre a

cidade (frenética, corrupta e impessoal) e o campo (pacífico e farto)” (GARRARD, 2006, p.

56), uma vez que a escassez da natureza, a seca, é tematizada durante toda a narrativa, sendo a

fartura estabelecida apenas depois da chuva, como veremos no próximo tópico deste capítulo.

Já sobre a metáfora do mundo natural, Garrard explica:

127 O termo é usado por Garrard no sentido de “metáforas culturais da natureza, subjacentes e de larga escala”

(2006, p. 257).

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As narrativas sobre o mundo natural partilham com a narrativa pastoral típica

o tema da fuga e do retorno, mas a construção da natureza que elas propõem

e reforçam é fundamentalmente diferente. Se a pastoral é a construção da

natureza tipicamente feita pelo Velho Mundo, adequada a paisagens há muito

povoadas e domesticadas, o mundo selvagem combina com a experiência dos

colonos nos Novos Mundos – particularmente os Estados Unidos, o Canadá e

a Austrália -, com suas paisagens aparentemente indomadas e a clara distinção

entre as forças da cultura e da Natureza (2006, p. 89).

No corpus, as forças da cultura e da natureza se mesclam. Como explica o geógrafo

Milton Santos, “o território não é apenas o lugar de uma ação pragmática e seu exercício

comporta, também, um aporte da vida, uma parcela de emoção, que permite aos valores

representar um papel” (SANTOS, 2000 p. 111). Regendo as manifestações da vida social, como

afirma Santos (2000), o território onde se refugia Martim o leva a buscar sua natureza mais

primitiva em um ambiente doméstico, o sítio de Vitória, tendo assim que conviver com outras

personagens humanas – Vitória e sua prima Ermelinda, a cozinheira do sítio e sua filha e

Francisco, outro trabalhador do sítio. Ainda que, por vezes estimulados pelas variações

climáticas e outros fenômenos naturais, os moradores do sítio experimentem processos

meditativos, apenas Martim experiencia a busca inconsciente de sua identidade animal. Embora

vivendo em um ambiente doméstico, Martim evita o máximo possível o contato com outras

personagens, e encontra um verdadeiro refúgio, no terreno, atrás do depósito de lenha, onde

dormia:

Era uma madrugada muito bonita. [...] Os olhos de Martim, tornados

ignorantes pela longa noite, olharam então com estranheza o terreno baldio

que a meia claridade de sonho revelou pela janela atrás do depósito. [...] No

terreno, através da névoa rasa, viu com curiosidade infantil uma terra suja e

seca, endurecida pela madrugada. O homem não antecipou nada: viu o que

viu. Como se olhos não fossem feitos para concluir mas apenas para olhar.

Até que, mais um segundo dessa própria isenção, e também sua cabeça foi

atingida com graça pela incompreensão do que ele via. E num engano de que

certamente precisou, um engano tão certo quanto a queda certa de uma maçã,

ele teve um sentimento de encontro: pareceu-lhe que no grande silêncio ele

estava sendo saudado por um terreno da era terciária, quando o mundo com

suas madrugadas nada tinha a ver com uma pessoa; e quando, o que uma

pessoa poderia fazer, era olhar. O que ele fez (LISPECTOR, 1999, p. 81).

A narradora descreve os sentimentos e as percepções de Martim em seu contato com um

ambiente natural antigo. Se o sentimento de conexão com a natureza é um engano ou não, é

descrito pela narradora como um engano natural, assim como a gravidade sobre a maçã. A

cabeça atingida e o engano parecem tratar de pensamentos, de qualquer forma, como afirma

Guattari, “os [...] modos de apreensão – seja pelo conceito, seja pelo afeto e pelo percepto –

são, com efeito, absolutamente complementares” (1990, p. 19). Sobre os pensamentos, a

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narradora enfatiza, ao se referir à era terciária, na qual surgiram os primeiros hominídeos, o

período sem distinção entre natureza e cultura, quando homens não pensavam, olhavam:

É verdade que seus olhos custaram a entender aquela coisa que nada mais do

que: acontecia. Que mal acontecia. Apenas acontecia. O homem estava

“descortinando”. O terreno fora provavelmente uma tentativa, por fim

abandonada, de jardim ou horta. Percebiam-se restos de um trabalho e de uma

vontade. Certamente haviam alguma vez tentado estabelecer ali ordem

inteligível. Até que a natureza, antes expulsa pelo plano de ordem, voltara

sorrateiramente e lá se instalara. Mas em seus próprios termos (LISPECTOR,

1999, p. 81).

Entendemos o uso do verbo descortinar como uma nova percepção da realidade:

descortinava o papel da cultura, integrando-se à natureza. Ao mencionar a interação de

subsistência e trabalho128 entre os moradores do sítio e a natureza intocada, a narradora subverte

a ideia tradicional do espaço ideal do mundo selvagem como totalmente puro, independente

dos seres humanos, exposta por Garrard (2006), mas repete a metáfora de um sujeito humano

cuja existência mais autêntica se situa nesse mesmo mundo:

[...] dia após dia [...] ele descia da luz aberta e superior do campo, de onde

vinha cego de incompreensão. E guiado por uma obstinação de sonâmbulo

[...] ia enfim ao terreno terciário de vida apenas fundamental, a par da sua. E

com um suspiro de quem voltasse a si mesmo, encontrava a sombra vacilante,

o movimento dos ratos, as grossas plantas. Naquele porão vegetal, que a luz

mal nimbava, o homem se refugiava calado e bruto como se somente no

princípio mais grosseiro do mundo aquela coisa que ele era coubesse

(LISPECTOR, 1999, p. 82).

Como visto, há uma oscilação entre a perpetuação e a subversão do dualismo

cultura/natureza, sendo a cultura, ora integrada ao todo natural, ora hiperseparada. Vale notar

que além de ser trabalhada enquanto exterioridade, a natureza é privilegiada no espaço

interiorizado da personagem Martim, que procura reaver o estado mais animal da humanidade,

sua forma de vida mais fundamental e anterior, no tempo em que humanos, ratos e plantas não

se diferenciavam em sua naturalidade. Essa oscilação confere uma duplicidade ao caráter

ecológico do corpus, uma vez que a visão do mundo como um ideal sagrado

[...] tem consequências perniciosas para nossas concepções da natureza e de

nós mesmos, porquanto sugere que a natureza só é autêntica quando estamos

128 Essa interação também pode ser verificada no seguinte trecho: “o cheiro de terra arrebentava-se sob a enxada

de Martim. Os grão se esfarelavam, o cheiro de capim à luz, o cheiro de certas ervas secretas que o calor fazia

exalar, as ervas confusas que davam no seu entrelaçamento sombra para algum reino mais obscuro que o visível:

Martim trabalhava, a enxada subia e descia, subia e descia” (LISPECTOR, 1999, p. 109-110).

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inteiramente ausentes dela [...], “pureza” [...] adquirida ao preço de uma

eliminação da história humana (GARRARD, 2006, p. 103).

A atitude ecológica em relação à própria humanidade também é dupla, uma vez que essa

é rebaixada à antagonista do mundo natural, perpetuando o dualismo humanidade/natureza, só

que com a inversão dos termos. Pensando a partir da classificação de Garrard, do ambientalismo

como “um movimento que vai do transcendentalismo antropocêntrico juvenil para a perspectiva

biocêntrica madura” (2006, p. 79), compreendemos o corpus como representante de uma

transição entre ambos os polos considerados.

A narrativa que se desenvolve no refúgio de Martim, o sítio de Vitória, acaba com ele

confessando seu crime e sendo preso pela polícia. Mas para a narradora, “[...] o verdadeiro

julgamento” (LISPECTOR, 1999, p. 131) se baseava não nos atos da humanidade, uma vez que

os considera frutos de ações condicionadas, mas na sua verdadeira vontade. E após se

conscientizar de sua autonomia existencial, a vontade de Martim era:

[...] reconstruir. Mas era como uma ordem que se recebe e que não se sabe

cumprir. Por mais livre, uma pessoa estava habituada a ser mandada, mesmo

que fosse apenas pelo modo de ser dos outros. E agora Martim estava por sua

própria conta (LISPECTOR, 1999, p. 131).

Martim encarna o desafio ecológico da humanidade contemporânea sintetizado por

Guattari: “tal problemática, no fim das contas, é a da produção da existência humana em novos

contextos históricos” (1990, p. 15), ou, “reconstruir a existência” (LISPECTOR, 1999, p. 141),

já que “a identidade humana e a relação com a natureza é que é o problema, não o estado de ser

humano como tal” (PLUMWOOD, 2003, p. 12129).

Mas, pela primeira vez livre de um condicionamento social, Martim

[...] fez o que pessoas presas fazem: amava o vento áspero, amava o seu

trabalho nas valas. Como um homem que tivesse marcado o grande encontro

de sua vida e jamais chegasse porque se distraísse leso examinando folhinhas

verdes. Era assim que ele amava e se perdia. E o pior é que amava sem ter

uma razão concreta. Apenas porque uma pessoa que nascia, amava? E sem

saber para quê. Agora que criara com suas próprias mãos a oportunidade de

não ser mais vítima nem algoz, de estar fora do mundo e não precisar mais

perturbar-se com a piedade nem com o amor, de não precisar mais castigar

nem castigar-se – inesperadamente nascia o amor pelo mundo (LISPECTOR,

1999, p. 145).

A narradora caracteriza a capacidade de amar como um atributo ontológico da espécie

humana: “[...] aquilo de que é feito o amor: de nós mesmos” (LISPECTOR, 1999, p. 198), como

se essa não pudesse se libertar da condição de ‘eu’ com ‘o outro’. Também demonstra a relação

129 “[...] human identity and relationship to nature which is the problem, not the state of being human as such”.

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de reciprocidade entre vítima e algoz, ou, entre os diferentes lados da estrutura dual

hierarquizada, na qual, opressor e oprimido, um define o outro, de modo que essa identidade,

que no processo dualista é formada pelo poder, “requer uma reafirmação de hierarquia

constante” (PLUMWOOD, 2003, p. 51130), para se manter sempre do mesmo lado da estrutura

dual.

Investigando uma forma de reconstruir-se e reconstruir o mundo, Martim

[...] calculou com lucidez que se obtivesse um novo modo de amar o mundo,

o transformaria de algum modo. A coisa mais importante que podia acontecer

em terra de homens – não era o nascimento de um novo modo de amar? O

nascimento de uma compreensão? Era. Tudo para Martim estava

inesperadamente se harmonizando... Então, embebedado de si mesmo,

arrastado pela insensatez a que podia levar o pensamento lógico, ele pensou

com tranquilidade o seguinte: se conseguisse esse modo de compreender, ele

mudaria os homens. Sim, não teve vergonha desse pensamento porque já

arriscara tudo. "Mudaria os homens, mesmo que demorasse alguns séculos”,

pensou sem se entender (LISPECTOR, 1999, p. 167-168).

Para a personagem a reconstrução do mundo se daria pelo amor, o qual não surgiria se

não a partir do amor próprio: “[...] enquanto não tivesse recuperado em si o respeito pelo próprio

corpo e pela sua própria vida, [...] o primeiro modo de respeitar a vida que havia nos outros”

(LISPECTOR, 1999, p. 295), por interação subjetiva na qual se desenvolve o ‘eu’ mútuo

designado por Plumwood (2003). É a partir de uma relação de mutualidade com os outros que

Martim reencontra em si a bondade:

[...] como se a maldade fosse a mesma coisa que a bondade, apenas com

resultados práticos diversos: mas vem do mesmo desejo cego, como se a

maldade fosse a falta de organização da bondade; muitas vezes a bondade

muito intensa se transborda em maldade. Sendo que a maldade, naturalmente,

é mais rápida como meio de comunicação. Mas de agora em diante organizarei

minha maldade em bondade, agora que não tenho mais a mesma voracidade

de ser bom. Agora que estou pronto para minha própria alma, agora que eu

amo os outros (LISPECTOR, 1999, p. 323).

5.2 CLASSE, GÊNERO E RAÇA

A opressão de classe é uma questão tocada ao longo da narrativa, de diferentes formas.

A pobreza quando mencionada pelo narrador é descrita em tom elogioso, que remete a trabalho:

“[...] uma tentativa pobre de fazenda” (LISPECTOR, 1999, p. 94); “[...] era um lugar pobre e

pretensioso. Ele gostou logo” (LISPECTOR, 1999, p. 56), por meio da ação da ‘tentativa’ e

‘pretensão’. É também o fato social que mais inquieta Martim, quando esse tentava livrar-se da

130 “[...] requires constant reassurance of superiority and hence constant reassertion of hierarchy”.

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coerção cultural que “[...] terminaria de novo por fazer com que a fome dos outros fosse uma

abstração, o mesmo hábito que é o medo que um homem tem” (LISPECTOR, 1999, p. 138),

Pois, se ele queria reconstruir o mundo, ele próprio não servia... Se queria,

como último termo final de seu trabalho, chegar aos outros homens – teria

antes que terminar de destruir totalmente seu modo de ser antigo. Para que o

mendigo à porta do cinema não fosse uma pessoa abstrata e perpétua, ele teria

que começar de muito longe, e do primeiro começo (LISPECTOR, 1999, p.

137).

A fome é mencionada com ênfase lírica e é considerada pela narradora como a medida

humana: “Martim fechou os olhos rindo muito emocionado. Era a alegria. Sua alegria vinha de

que ele estava com fome, e quando um homem tem fome ele se alegra. Afinal uma pessoa se

mede pela sua fome – não existe outro modo de se calcular” (LISPECTOR, 1999, p. 124). E

ainda mais explicito é o lamento da personagem Vitória, quando fala de si para Martim: “Não

queria dizer que sou boa, repetiu, forçando-se a uma franqueza que lhe doeu mas que lhe deu

imediatamente um alívio e uma resignação – nunca fiz nada para os pobres de Vila Baixa, tudo

o que faço é sofrer por eles” (LISPECTOR, 1999, p. 261). Lamento semelhante ao que Clarice

faz em um texto seu, intitulado ‘O que eu queria ter sido’, presente no livro Crônicas para

jovens: de bichos e pessoas:

O que eu gostaria de ser era uma lutadora. Quero dizer, uma pessoa que luta

pelo bem dos outros. Isso desde pequena eu quis. [...] Em pequena, minha

família por brincadeira chamava-me de “a protetora dos animais”. Porque

bastava acusarem uma pessoa para eu imediatamente defendê-la. E eu sentia

o drama social com tanta intensidade que vivia de coração perplexo diante das

grandes injustiças a que são submetidas as chamadas classes menos

privilegiadas. Em Recife eu ia aos domingos visitar a casa de nossa empregada

nos mocambos. E o que eu via me fazia como que me prometer que não

deixaria aquilo continuar. [...] No entanto, o que terminei sendo, e tão cedo?

Terminei sendo uma pessoa que procura o que profundamente se sente e usa

a palavra que o exprima. É pouco, é muito pouco (LISPECTOR, 2012, p. 15-

16).

Contudo, a principal representação da opressão de classe tematizada no corpus é feita

em intersecção com a opressão da natureza, representada pela seca. O nordeste relatado na

vivência da autora é tema recorrente em seu trabalho. Na novela A hora da estrela, ela tematiza

a realidade dos imigrantes nordestinos nas grandes metrópoles, por um ponto de vista tanto

sociológico quanto existencial. O lugar de fala de onde parte a autora é o de mulher da primeira

metade do século XX, estrangeira, de infância vivida no nordeste, mas branca e de classe

econômica média-alta. Selecionamos alguns exemplos do corpus que falam sobre a seca.

Primeiro, sobre sua ameaça:

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(1) O milharal talvez secasse antes da colheita... E secasse o capim para o

pasto. Talvez não, indagou com os olhos no céu. Mas o céu alto e a diária

relutância do poente em se fazer noite - nada prometiam senão a probabilidade

de mais uma seca. É verdade que a terra ainda estava úmida. E o verde viçoso.

Mas por quanto tempo? Há dias Vitória fingia não perceber que havia menos

sapos: eles estavam desertando... E que pouco a pouco as cigarras enchiam

persistentes o crepúsculo. Mas a mulher encarou o ar com luta: é que os

pássaros ainda não haviam emigrado! O que alargou seu olhar na dureza da

esperança, como se a autoridade de sua fé impedisse a deserção das aves.

Enquanto estas estivessem por ali, ela se conservaria silenciosamente

batalhadora (LISPECTOR, 1999, p. 74-75).

(2) [...] vinda de parte nenhuma, a ameaça da seca se aproximava, rodeando-

os de calor brilhante. Cada dia o sol custava mais a morrer. Era uma agonia

que a mulher suportava de pé, sozinha. Mesmo depois de desaparecido o sol,

a fazenda ficava a reverberar por um tempo indeterminável e inquietante. De

dia era aquele faiscar, aquelas marteladas, o suor. Mas a noite – ela bem o

sabia – não seria uma trégua. A noite das secas conserva em seu bojo uma

radiosa profundidade como uma luz encerrada em dura noz (LISPECTOR,

1999, p. 100).

(3) Eram dias grandes, claros e, enquanto duravam, ameaçadoramente

infinitos. [...] As lagartixas, atraídas pela promessa de fulguração e glória,

apareciam em maior abundância, surgidas não se sabia de onde. Estalavam na

terra seca e crepitavam. Vitória olhou os corpos áridos que se multiplicavam,

examinou de perto algumas folhas que já se enrolavam nos bordos, levantou

o rosto inquisitivo para um céu puro e deserto (LISPECTOR, 1999, p. 109).

(4) A pequena população do sítio olhava para o céu, perscrutando e

trabalhando. Tudo estremecia num calor que aumentava gradativamente sem

que se sentisse suas transições. Os ramos tremiam, o calor duplicava cada

objeto em refração fulgurada. Do fundo de seu próprio mistério, Martim

olhava as plantas que no seu viço inocente ainda não pareciam sentir a

ameaça que o sol rubro chispava: a seca (LISPECTOR, 1999, p. 144, grifo

nosso).

No primeiro trecho, é por meio do trabalho poético que a narradora imprime sentimento

a respeito de todas as coisas vivas. A imagem vai ganhando em cor e movimento conforme ela

descreve as diferentes formas de vida do sítio, o que, além de conferir à natureza o caráter de

diversidade que ela tem, sugere um contraste com a seca – a morte. Nesse trecho, assim como

no quinto, é observando o comportamento dos animais que Vitória perscruta sobre a seca, o que

demonstra a relação de conexão entre a personagem humana e os animais, bem como a

consequência da seca para diferentes espécies. No segundo, a narradora descreve a noite,

também quente no período de seca, intensificando a ideia de calor a partir da percepção de

diferentes períodos do dia. Nesse e no último trecho, o calor é intensificado também por meio

de construção sinestésica de visão e sensação térmica: ‘calor brilhante’, ‘aquele faiscar’, ‘o

suor’, ‘radiosa profundidade, ‘tudo estremecia num valor’ ‘os ramos tremiam’ ‘o calor

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duplicava cada objeto em refração fulgurada’. Os raios de um sol vermelho eram como faíscas

que queimariam tudo. Separadas, algumas palavras e frases do último trecho poderiam compor

poemas carregados de figuras de harmonia, como aliteração, paronomásia e rima interna,

conforme sugerimos pelos grifos.

E depois, sobre a chuva:

(1) Quando começou enfim a chover, a senhora chegara a um ponto de silêncio

em que a chuva lhe parecia a palavra. Surpreendida com o doce e inesperado

encontro, ela se entregou sem resistência à água, sentindo no corpo que as

plantas bebiam, que os sapos bebiam, que os bichos do sítio ouviam o barulho

da água no telhado – o aviso se espalhara nebuloso e ensopava a fazenda toda:

chovia, chovia, chovia (LISPECTOR, 1999, p. 235).

(2) [...] depois da grande chuva, cada coisa tranquila estava no seu lugar

(LISPECTOR, 1999, p. 288).

(3) Seguiu-se um período de enorme calma. A vida revelava um progresso

evidente assim como de súbito se percebe que a criança cresceu. Com a grande

chuva a natureza, amadurecendo, caminhara para um ponto máximo, o que se

sentia no modo mais folhudo das árvores se balançarem. E os poucos dias que

se seguiram emendaram-se uns aos outros sem um incidente, como um dia só.

Eram dias claros e altos, tecidos no ar pelos passarinhos. Asas, pedras, flores

e sombras profundas formavam o novo calor úmido. As nuvens se

acumulavam brancas no céu e se desfaziam com graça, deixando ver a

profundidade imaterial que rodeava a casa, o trabalho de cada um, e as noites

grandes. De manhã, no céu altíssimo os primeiros farrapos de nuvens serviam

de repouso para que o olhar pudesse prosseguir na distância: de manhã cedo

as coisas raiavam tranquilas (LISPECTOR, 1999, p. 288).

(4) O milho crescia pesado, a macieira apontava em brotos como se a ferida

lhe tivesse alertado um impulso, o vento apressava o riacho. Esse mesmo

vento trazia às vezes um cheiro pesado de fertilização e amadurecimento –

que Martim, interrompendo em surpresa o trabalho, reconhecia como se já

tivesse dormido com trigo e milho, e reconhecesse do fundo dos séculos o

cheiro do movimento de fecundação. O mundo nunca tinha sido tão grande.

Passarinhos ativos como crianças participavam da terra revolvida para o

plantio: mergulhavam de asa fechada nas ondas do ar, e do infinito voltavam

para vigiar com o ruflo de asas o trabalho das sementes. Desaparecida a seca,

as árvores agora cheias cobriam de sombra a casa, dando ao seu interior uma

frescura de sesta. No pasto as vacas babavam. O mundo pensava por Martim;

e ele o aceitava (LISPECTOR, 1999, p. 289).

No primeiro trecho a conexão entre Vitória e os animais da fazenda se dá de forma a

acentuar a saciedade de ambos pela água. O volume de água pode ser depreendido pela palavra

‘ensopava’ e pela sucessão da chuva no tempo com a repetição do verbo no pretérito imperfeito.

Com a chuva, fora reestabelecida a ordem das coisas, a tranquilidade. A mesma atmosfera de

tranquilidade e ordem é repetida nos dois últimos trechos. A vida já se mostrava em

fertilização/fecundação/crescimento/amadurecimento, como pode ser percebido na

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comparação com a criança e com a grossura das folhas, no primeiro trecho, e o peso do milho,

no último. Se antes da chuva as descrições do entorno acentuavam o calor, as cores quentes e

por meio de metáforas relativas ao fogo, depois da chuva o ar recobrava uma beleza mais suave,

trazida pela água que umidificava o calor e acentuava o cheiro das plantações, pelo movimento

dos passarinhos que interagem com as sementes, pelo movimento do riacho, pela nova

qualidade da terra revolvida para plantação, pela nova frescura do ar, sentido pelos moradores

do sítio na hora de descanso e pela presença das vacas, também tranquilas em seu ritmo natural,

figurado pela ação de babar. A tranquilidade de um mundo que se fazia sem que Martim o

precisasse pensar. Mas se Martim o pensava, “[...] aprovava o modo de ser da terra”

(LISPECTOR, 1999, p. 165): “Grande era a campina: uma multidão de pontos brilhantes num

fundo obscuro e incerto, ao seu alcance era a água que o sol tornara um duro espelho, e assim

devia ser” (LISPECTOR, 1999, p. 165).

Ainda que com distanciamento lírico, falar da seca no nordeste, também é falar da não

distribuição dos recursos naturais dos brasileiros, o recurso mais básico da vida humana: a água.

E o que a ameaça da falta de água representa: a falta de alimentos: a fome, a pobreza e a morte,

primeiro dos animais, depois dos humanos. De acordo com Rosendo, “secas e inundações têm

implicações de classe e gênero, pois são as pessoas mais pobres que sofrem mais com tais

questões e esses grupos são significativamente formados por mulheres e crianças” (2015, p. 41-

42). No enredo, no entanto, acaba por chover, e da relação entre as mulheres – presença

majoritária entre os personagens: três para dois homens, e uma criança menina – e a seca é

tematizada apenas pela angustia da ameaça vivida principalmente por Vitória, a proprietária do

sítio.

Sendo uma mulher de mais de cinquenta anos, a idade da personagem gera motivo para

diferentes reflexões de gênero, como podemos verificar nos dois trechos seguintes:

(1) Pois então também não julgue, ao ver uma mulher envelhecida cuidando

de uma fazenda, que essa mulher é apenas uma mulher envelhecida cuidando

de uma fazenda, disse com grande autoridade como se tivesse dito alguma

coisa inteligível (LISPECTOR, 1999, p. 256).

(2) “Medo? ela? Seu impulso foi o de rir, como se o riso pudesse retrucar ao

absurdo. Medo! Abanou a cabeça, incrédula. Ela que dirigia a fazenda com

pulso de homem? Ela que mandava naquele homem ali em pé, sem medo de

si nem dele? Ela que surdamente lutara contra a seca e a vencera! ela que

soubera esperar que chovesse. Medo! Ela que andava com suas botas sujas e

com o rosto exposto sem ter medo de jamais ser amada. Ela que dilapidava

corajosamente a herança do pai para manter aquela fazenda funcionando, sem

sequer saber para quê, corajosamente à espera do dia incerto em que aquele

sítio seria o maior da zona, e então ela pudesse enfim abrir as cercas. Medo?”

(LISPECTOR, 1999, p. 264-265).

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Já no primeiro trecho podemos depreender o esforço que era para aquela mulher dirigir a

fazenda, envelhecida e exigindo ser vista além disso, como se uma mulher velha não tivesse

uma personalidade relevante. E no segundo, o estereótipo masculino do pulso como metonímia

de firmeza é reproduzido, mas associado à personagem mulher, o que configura não uma total

ruptura mas um deslocamento desse estereótipo. Verificamos rupturas com o estereótipo de

gênero quando ela reconhece em si sua capacidade de mandar em Martim e não temê-lo, de não

temer expor seu rosto, de não temer jamais ser amada – esse que é o “melhor” destino das

mulheres. Os seguintes trechos exemplificam porque para Vitória era um ato de coragem expor

seu rosto: “Eu era moça, eu não tinha um pingo de pintura no rosto, eu era linda, idealista”

(LISPECTOR, 1999, p. 280); “Até bonita ela fora! até jovem ela fora – coisas que jamais seria

no futuro” (LISPECTOR, 1999, p. 280).

Outras rupturas também podem ser verificadas quando a mesma personagem reconhece

sua capacidade de administrar a fazenda a partir dos recursos financeiros herdados pelo pai, e

na sua ambição de que o sítio fosse o maior da zona. Acentuado pela palavra medo em anáfora:

o sentimento de medo é confrontado pela mulher que se conscientiza de suas próprias coragens,

ainda que depois confesse sentir medo, mas com coragem: “Lembrou-se de como uma vez

aceitara humilde o medo como quem se ajoelha e de cabeça baixa recebe o batismo. E de como

sua coragem, daí em diante, fora a de viver com o medo” (LISPECTOR, 1999, p. 265). E ainda,

a denúncia do silenciamento feminino com a frase reivindicatória: “É que uma mulher uma vez

tem que falar” (LISPECTOR, 1999, p. 275). Além da temática do feminicídio, analisada no

primeiro tópico desse capítulo.

Mas se o corpus debate a opressão de gênero, desconstruindo inclusive alguns

estereótipos femininos, com a opressão de raça não acontece o mesmo. As personagens negras

do corpus: a jovem cozinheira do sítio e sua filha criança são as únicas personagens do sítio, o

local central da narrativa, que não recebem um nome. Durante a narrativa, as personagens são

chamadas ‘a mulata’ e ‘sua filha’, ou ‘a criança’, ‘a criança negra’. De acordo com o Dicionário

de teoria da narrativa, de Carlos Reis e Ana Cristina Lopes (1988), o nome próprio, junto à

caracterização e o discurso das personagens, configuram-se como os principais processos de

identificação dessas. Ao chamar as personagens negras apenas pela sua cor – ainda que com

beleza na descrição dessa cor: “A vida se arranjara nela de modo escuro e doce” (LISPECTOR,

1999, p. 106) – a narradora confere uma desumanização dessas personagens, destituindo-as de

uma personificação identitária individual. Além disso, o termo ‘mulato’, segundo o livro de

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termos Key concepts in post-colonial studies, 2001, é utilizado pelo discurso racista

escravocrata para designar uma pessoa miscigenada.

A cozinheira e sua filha também recebem pouca representação psicológica – a criança

menos ainda – e junto do empregado Francisco, são as únicas personagens planas dentre os

moradores do sítio, núcleo central da narrativa. Ao longo do corpus, a moça negra é retratada

pela repetição do estereótipo do negro alegre e servil, como podemos verificar a partir da

percepção de Martim e da narradora no trecho seguinte:

Não olhara uma vez diretamente para a mulata. Mas ela ria, E uma força

pacífica acordara nele. Era um poder – ele bem se lembrava ainda. Alerta, sem

nenhum plano, ele esperou dia após dia pelo momento em que faria a mulata

deixar de rir. Tanto a mulata como a criança o observavam dissimuladas de

longe sem se aproximar. Quanto à criança, Martim evitava-a, confuso,

evasivo. Mas a mulher ria muito. Na verdade pode-se dizer que ria demais.

Sem um pensamento, ele sabia o que significava o riso. E às vezes era como

se o riso fosse um mugido: ele então erguia a cabeça, atordoado, chamado,

poderoso. Mas aguardava. Como se a paciência fizesse parte do desejo, ele

aguardava sem se apressar. A mulata era uma larga natureza, tão larga quanto

o seu riso – ela ria antes de saber de quê (LISPECTOR, 105-106, grifo nosso).

A narradora descreve a atração de Martim pela moça negra como instintiva, uma vez

que ele experimenta um estado animal, mas não explica porquê a personagem animalizada não

sente também atração pela outra fêmea jovem da casa, que, inclusive, assedia-o insistentemente.

A retratação da moça negra como uma fêmea reitera a associação da negritude com

animalidade, como se as pessoas negras fossem somente natureza, destituídas de cultura,

elaboração cognitiva, complexidade mental... Junto a isso, a caricaturização do riso reforça o

estereótipo da pessoa negra sempre feliz, uma felicidade quase que infundada, num estado de

alienação de si mesma. A felicidade, junto ao lúdico e o corpo fazem parte das qualidades

sempre atribuídas aos negros, repetida no discurso narrativo. A perspectiva pela qual a

personagem negra é vista pela narradora perpetua o olhar branco que “atravessa o negro”,

ignorando a complexidade que é um ser humano em sua integridade. Principalmente quando se

tratando de pessoa negras, com um histórico de dor e violência pela escravidão.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

De acordo com Greta Gaard, “o ecofeminismo, exige que façamos conexões” (1993, p,

vii131). Conectando as diferentes partes do entorno social e planetário, a narradora de A maçã

no escuro trata do ambiente natural encontrado pela humanidade/animalidade de Martim.

Também trata dos animais encontrados nesse ambiente mais distanciado da civilização, e da

relação entre eles, o meio ambiente e as personagens humanas. E ainda, da relação da

humanidade com si própria. Todos vivendo no mesmo planeta.

Como pudemos verificar nas análises, a natureza é tratada com autonomia em relação

às personagens, sendo secundária a representação da natureza como composição do espaço no

qual se desenvolve a história das personagens humanas. A narradora realiza uma mudança de

procedimento narrativo e confere à natureza, no plano discursivo, a participação que lhe cabe,

numa focalização mais ampla (para além do umbigo humano) da sociedade humana. A rica

descrição poética dos diversos sistemas ecológicos presentes e a incorporação da natureza no

texto com autonomia em relação aos seres humanos recuperam a soberania do ambiente natural.

A natureza como um todo também está presente no eixo temático, pela iminência da seca, que

ameaça a região. O tempo da narrativa são os diferentes tempos de todas as formas de vida

presentes no texto, desde o tempo interiorizado das personagens, que podem ser lentos, como

quando Martim está no campo, ou rápido, nos fluxos de consciência de Martim e Vitória, até o

tempo dos pássaros, das vacas, da terra, dos ventos.

Os animais também ganham destaque na obra, estando presentes tanto nas imagens de

comparações metafóricas, como, e principalmente, por suas próprias existências enquanto

personagens/indivíduos. No romance, eles existem por e para seus próprios fins, e não para

servidão dos humanos. Além de uma vasta citação de toda sorte de espécies, como: pássaros,

ratos, cães, gatos, tigres, pumas, cavalos, macacos, sapos, búfalos, galinhas, rinocerontes,

peixes, aranhas, moscas e mosquitos, as vacas ganham uma atenção especial no romance.

Objetificadas pela cultura ocidental, no corpus, elas têm a dignidade de suas existências

reestabelecidas pelo olhar humano. Elas participam da narrativa no mesmo nível das

personagens humanas, recebendo, inclusive, maior focalização do que outras personagens

humanas, como Francisco, também morador do sítio. A narradora confere às vacas o status de

sujeito, de um modo que não lhes humaniza, a partir do reconhecimento de sua identidade

animal.

131 “Ecofeminism requires us to make connections”.

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Em uma atitude essencialmente ecofeminista, a narradora problematiza os hábitos

culturais que se desenvolveram de modo a resultar em um afastamento da humanidade com o

restante da natureza, a tal ponto, que a própria humanidade deixa de reconhecer-se como

natureza. Mas no corpus, a humanidade é pensada também como uma espécie animal, a espécie

humana. Propiciado por sua localização geográfica: (a fuga n)o meio da mata, a Martim sucede

um processo de (re)conhecimento de sua identidade animal, antes, alienada pelo excesso de

civilização. A narradora tematiza a crise social contemporânea, da qual a crise ecológica é

reflexo, por meio das reflexões da narradora a respeito da perda da identidade animal, e da

naturalidade humana, igualando as pessoas a “robôs” que perderam sua capacidade de atitudes

criativas e originais. De acordo com explicação de Santos, “Na esfera da racionalidade

hegemônica, pequena margem é deixada para a variedade, a criatividade, a espontaneidade”

(2000, p. 120-121).

Apoiadas pelas alusões da narradora no que se refere ao comportamento cultural dos

seres humanos, compreendemos a violência de Martim, a tentativa de matar a sua esposa, como

um estado extremo a que pode levar uma educação hierárquica: “[...] se habituara sadiamente a

abusar de um inferior e a ser abusado por superiores” (LISPECTOR, 1999, p. 41). Conforme

explica Estés, “a palavra feral, em inglês, deriva do latim fer... que significa “animal selvagem”.

No emprego mais comum da palavra, um animal “brabo” é aquele que um dia foi selvagem, foi

depois domesticado e voltou ao estado natural ou indomado” (1994, p. 269). Pensando nisso,

interpretamos a atitude violenta de Martim como a explosão de energia (reprimida) que o fez

sair do estado em que se encontrava, alienado de si, de sua própria natureza. A narradora

considerada a naturalidade (simbolizada pela animalidade) melhor, mais saudável, do que a

civilidade, essa que seria a domesticação da natureza selvagem. O herói da trama e dos títulos

dos dois primeiros capítulos, martim, em uma ato heroico busca sua identidade existencial e

animal perdidas, reconstruindo-as à medida que reestabelece vínculos, conexões com outros

animais e a natureza ao seu redor.

Ainda que a narrativa de A maçã no escuro tenha se demonstrado por vezes ambígua

quanto a seu caráter ecológico, ela é compreendida por nós como um importante registro

literário face à dominação da natureza pelo ser humano, uma vez que recoloca a humanidade

na esfera da natureza e recupera os valores intrínsecos dessa. Conforme afirma Garrard (2006),

a ecocrítica deve buscar discursos que promovam uma poética da responsabilidade.

Acreditamos que o corpus promove essa (po)ética, pelos princípios do cuidado, da empatia, do

respeito, da solidariedade e da liberdade que se pode ler no texto.

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A análise dessa obra, pela perspectiva ecofeminista, nos permitiu compreender o papel

da cultura na formação dos indivíduos, e suas implicações existenciais, políticas e ecológicas.

Essas três últimas palavras definem, inclusive, as principais temáticas do fazer literário de

Clarice. A maçã no escuro é um verdadeiro ecossistema, pintado de todas as cores, e que

denuncia o risco de morte da natureza, e das pessoas, que ameaçam a vida. Compreendemos o

ecofeminismo como uma filosofia do presente, atenta à sobrevivência da Terra e ao pensamento

contemporâneo mais progressista: não anda só, não se impõe como verdade, questiona(-se) e

promove descolonização. Mas ainda precisa ter suas obras traduzidas e tornadas acessíveis à

população, bem como desenvolvido em nosso próprio país. A literatura de Clarice tem muitos

frutos a oferecer a análises ecocríticas e ecofeministas. Em A maçã no escuro, por exemplo, há

questões acerca da narração feminina, das personagens femininas e suas diferenças de classe e

raça, a construção da feminilidade e da masculinidade, o esboço de um Brasil rural, a filosofia

oriental, entre outros. Além desse, outros textos literários, como A cidade sitiada, A paixão

segundo G.H., todas as obras infantis da autora e muitos contos, podem ser abordados pela

perspectiva ecofeminista. As possibilidades de estudo e pesquisa de uma das mais importantes

escritoras e intelectuais brasileiras não se limitam apenas às abordagens teóricas

tradicionalmente utilizadas para a análise de seus textos, a saber, a filosofia existencialista.

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