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Uma leitura crítica: a proposta teórica integracionista latino-americana de Jesús Martín Barbero1

Ana Maria Camargo Figueiredo2 Professora da Faculdade Cásper Libero; pesquisadora do Centro Interdisplinar de Pesquisa – CIP- da F. Cásper Líbero Resumo

O objetivo desse artigo é reconhecer a proposta teórica de Jesús-Martín Barbero ao elaborar uma teoria interdisciplinar da comunicação latino-americana, integracionista e continental, redefinindo conceitos, a partir de Gramsci e Walter Benjamin, revendo o lugar da recepção e o do popular de acordo com a especificidade histórica cultural da América Latina; por outro lado, como tal teoria não dá conta da própria história, tão ferrenhamente defendida e usada para desmistificar a indústria cultural na América Latina. Palavras-chave Jesús-Martín Barbero, comunicação, recepção, cultura popular, integracionismo.

Introdução

Ainda no início dos anos 60, a pesquisa de comunicação estava organizada em duas

vertentes básicas como nos recorda Maria Isabel Orofino (2001:60): uma pesquisa crítica

sobre o poder dos meios de comunicação na difusão de ideologias de mercado e outra, de

caráter administrativo, seguindo a orientação funcionalista..

No entanto, nos anos 70s, diante das contradições do momento histórico latino-

americano, os teóricos da comunicação procuram um novo locus para ela. Era um

movimento que ia além da relação entre trabalho e capital, ao perpassar outras dimensões

da cultura, colocando em cheque a cultura política tradicional.

Nesse mesmo período, com o desenvolvimento de novas tecnologias de difusão da

informação, ocorreu também uma ampliação significativa do mercado cultural, através do

crescimento e da expansão das indústrias midiáticas, o que ajudou a desencadear o interesse

acadêmico pela comunicação social.

Como nos aponta Ana Carolina ESCOSTEGUY (1999:72), essas transformações,

vivenciadas pela América Latina determinaram mudanças na antiga concepção de

transnacionalização, que, como estratégia de imposição cultural, desconhecia os modos de

1 Trabalho apresentado ao NP Teorias da Comunicação 2 Doutora em Ciências da Comunicação, ECA/USP.

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ressignificação das mensagens hegemônicas pelos diferentes grupos sociais. A teoria

predominante da dependência cultural não dava conta da dinâmica do novo momento em

que as sociedades viviam. Assim, a leitura ideológica dos meios de comunicação,

predominante nos anos 70s, teve que passar necessariamente por mudanças.

Mas foi somente em meados da década de 80 que a configuração da pesquisa em

comunicação passou a revelar “nítidos sinais de mudança, que [tinham] origem não

somente em deslocamentos internos ao próprio campo, mas, também, num movimento mais

abrangente das ciências sociais como um todo. O debate sobre a modernidade, o horizonte

marxista vigente na época e a questão da globalização obrigaram a repensar a trama teórica

vigente” (ESCOSTEGUY, 1999:65).

Os estudos culturais3 passam, então, a questionar as hierarquias sociais e políticas a

partir de oposições entre tradição e inovação, entre a grande arte e as culturas populares, ou,

ainda, entre níveis de cultura — alta, baixa e cultura de massa. Em decorrência, assistimos

a uma revisão de paradigmas sobre as questões de identidades regionais ou nacionais, que

se apresentam como universais, ao mascararem as diferenças de classe, raça ou gênero.

MARTÍN-BARBERO (1992:29) diz:

Mais decisiva, sem dúvida, que a tematização explícita de processos ou aspectos da comunicação nas disciplinas sociais, é a superação da tendência a destinar aos estudos da comunicação uma disciplina e a consciência crescente de seu estatuto transdisciplinar .

A análise central dos meios de comunicação, por esse prisma, na América Latina,

segundo ESCOSTEGUY (idem: 69)

[...]é vista como comunicação, mas em relação à cultura e aos processos políticos, isto é, como parte da problemática do poder de hegemonia. Daí a razão de se observar os processos de comunicação como uma forte referência nas ciências sociais, constituindo uma vertente singular de estudos culturais com forte atenção na base dos processos culturais.

Esse novo modo de pensar a comunicação, a partir da cultura, foi perseguido por

alguns autores latinos, entre os quais estava a figura-chave desta pesquisa, Jesús Martín

Barbero, além de: Carlos Monsivais, Jorge González, Guillermo Gómez Orozco, Rossana

3Vale lembrar que, desde o final dos anos 50s, a Inglaterra já produzia os primeiros estudos culturais: surgiam os trabalhos de Richard Hoggart, Raymond Williams e Edward Palmer Thompson, que influenciariam as pesquisas dos latino-americanos nos anos 70s, com desdobramentos no Brasil.

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Reguillo (México); Guillermo Sunkel, José Joaquim Bruner (Chile); Renato Ortiz (Brasil);

Beatriz Sarlo, Aníbal Ford (Argentina); Rosa Maria Alfaro (Peru); etc.

Tais estudiosos, a exemplo dos britânicos, procuram, nos estudos culturais, a marca

da interdisciplinaridade, embora tenham ficado mais restritos ao mundo acadêmico. O

momento conjuntural de redemocratização da sociedade e de observação intensa da ação

dos movimentos sociais da época também marca uma diferenciação. Como observa

ESCOSTEGUY (idem:70):

As profundas alterações que vêm ocorrendo na vida social dirigem o olhar dos intelectuais que individualmente têm colaborado nas análises críticas sobre a vida social e cultural contemporânea. É este tipo de engajamento político que se dá nos estudos culturais latino-americanos e os diferencia tanto do momento inicial da vertente britânica quanto do seu desenvolvimento em solo norte-americano.

Assim, a década de 80 é marcada pela perspectiva de redemocratização dos países,

até então dominados por governos militares, e pelo desenvolvimento de um capitalismo que

converge para um processo de globalização, propondo, no âmbito da cultura, um

questionamento da idéia de dominação. Essa discussão ocupa os estudos acadêmicos e,

conseqüentemente, estende-se até cobrir o tema da identidade da América Latina

Essa identidade, agora, deve ser pensada com base na descontinuidade e na

dissonância do mundo globalizado e com base no ritmo impresso pelas novas tecnologias

da informação e da comunicação no cotidiano dos homens no planeta. Jesús Martín-

Barbero é um autor fundamental, por ter intervindo na dinâmica da produção das teorias

que ainda resistiam às mudanças propostas pelos novos paradigmas de pensamento

comunicacional.

Martín-Barbero, já ao participar do Segundo Seminário CLASCSO, em Buenos

Aires, em 1983, diz:

La presión manifiesta de unos procesos tecno-económicos que configuran una situación comunicacional políticamente nueva definida básicamente por la transnacionalización y las nuevas tecnologías, el agotamiento y la incapacidad de las herramientas teóricas con que se venía trabajando para abordar la nueva situación, y la apuesta de algunos grupos de investigadores que se deciden a seguirle los pasos al proceso más que al método así sea a costa de perder el objeto.

Concomitantemente, ele começou a questionar os trabalhos funcionalistas e

procurou percorrer um outro caminho, contrariando os modelos hegemônicos àquela época.

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Complementando esse novo olhar para a América Latina incorporada no mundo

globalizado, ele afirma: “é a própria categoria de fronteira que perdeu suas referências e,

com ela, a idéia de nação, que inspirou toda a configuração do cultural” (MARTÍN-

BARBERO, 1995:73).

Assim, temos o integracionismo possível, teorias possíveis, lembrando que os

limites da possibilidade estão em não ultrapassarem as determinações postas pelo próprio

capital. E seus compromissos — sejam de projetos de inserção dos países latino-

americanos no mundo do capitalismo globalizado, ou aqueles em que a comunicação deve

ser associada aos estudos culturais para apreender a diversidade na mundialização da

cultura — com o desenvolvimento econômico e com a acumulação não deixam de revelar

sua face irracional do ponto de vista capitalista. O que está em questão não é qualquer

projeto que aponte para mudanças estruturais da América Latina, mas a forma de inserção

do povo no desenvolvimento capitalista moderno e/ou pós-moderno. Poder-se-ia dizer que

tal integracionismo esbarra no isolacionismo na medida em que seus projetos se

confundem com um nacionalismo regional possível.

Dessa forma, o próprio atraso da realidade da América Latina cria a necessidade

desses projetos como caminhos para superá-lo e, conseqüentemente, cria uma “figura”

teórica como Jesús Martín Barbero.

A proposta teórica-metodológica de Barbero4 e os teóricos da comunicação no Brasil

Sob a perspectiva histórica da compreensão da sociedade, pode-se verificar como a

mídia desempenhou papéis específicos no processo de massificação na América Latina. A

constituição do massivo, na região, está presente desde os anos 30s do século passado. A

partir daí, vem se reafirmando, a cada década, como determinante na vida do povo latino.

4 A análise leva em conta a função social do pensamento do autor, a determinação desse pensamento pelo movimento da realidade e a sua revelação através do desnudamento da sua lógica imanente. Esse recurso o da análise dos elementos imanentes permitirá fazer o autor explicitar os seus próprios pressupostos, assim como os conflitos em voga nos períodos em que produziu. Para tanto, as obras escolhidas foram: De los medios a las mediaciones — comunicación, cultura y hegemonia; Os exercícios do ver — hegemonia, audiovisual e ficção televisiva; Cidade virtual: novos cenários da comunicação; e os artigos “De la Comunicación a la Filosofia y viceversa: nuevos retos e mapas noturnos”; “Globalización comunicacional y descentramiento cultural”; “Comunicación, campo cultural y proyecto mediador”; “Memória narrativa e industria cultural”; “América Latina e os anos recentes: o estudo da recepção em comunicação social”; e “Aventuras de un cartógrafo mestizo en el campo de la comunicación”.

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Assistimos um processo de modernização da América Latina que provocou a

emergência de um mercado interno consumidor em função da industrialização e da

urbanização crescentes, desencadeando rupturas no âmbito político, cultural e social.

Paralelamente a todas as mudanças sociais políticas e econômicas, vive-se a

situação pós-guerra, responsável por certo desencantamento em relação à Europa, o que

contribuiu para fortalecer a necessidade de construção de uma consciência nacional.

O povo e a nação aparecem nas narrativas como categorias mediadoras entre o local

e o universal. O povo era percebido como detentor da “alma nacional” da autenticidade e

originalidade da cultura.

No Brasil, nas narrativas modernistas, de Mário de Andrade a Sergio Buarque de

Holanda, como constatam as autoras Mariza Veloso e Angélica Medeiros, (1999:98) “é

possível identificar uma relação de igualdade, uma quase sinonímia entre povo e cultura. A

superposição dessas categorias dará uma feição particular ao nacionalismo então elaborado,

que permanecerá com todo vigor, nos debates culturais, até a década de 70”.

No entanto, essa preocupação também era parte dos governos populistas que se

empenhavam na construção de nações modernas — mediante a criação de uma cultura

nacional, de uma sensibilidade ou um sentimento nacional —, a tônica fundava-se na

constituição das identidades nacionais. Os meios de comunicação aí tiveram uma função

determinante. Apresentavam conteúdos em que as massas se reconhecessem, já que esse era

o período de constituição do “massivo” — no sentido de presença social das massas — e,

conseqüentemente, da própria idéia de massa.

Como diz MARTÍN-BARBERO (1985:11-12): “inicialmente, a função dos meios

residiu em sua capacidade de fazerem-se vozes da interpelação que a partir do populismo

convertia as massas em povo e o povo em nação”.

No Brasil, desde os anos 60s, como na maioria dos países latinos, dominados por

governos militares, a cumplicidade entre o Estado e a mídia teve o objetivo de promover a

união nacional. Como diz ORTIZ (1992:65), o conceito de povo foi transplantado para o

conceito de massa, na medida em que se inseria no jogo do mercado. “Por conseqüência, a

mídia intensificou a produção de bens que obtivessem aprovação popular e fossem

consumidos em larga escala, sendo esse o critério definidor da realização da cultura

massiva” (BRITTOS, 1999). O Estado incorpora uma nova função, e a própria noção do

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massivo, que dá idéia de acesso das massas aos bens, passou a referir-se aos meios de

comunicação. Mais tarde, já nos governos militares, a televisão vai cumprir, também, seu

papel na integração e na construção da identidade nacional.

A reflexão teórica explicativa dessa realidade, particularmente da do Brasil, só vai

acontecer na década de 80, quando a indústria cultural, como fenômeno cultural e social,

torna-se objeto de estudo das Ciências Socais, coincidentemente com o surgimento das

novas formas de ver o fenômeno, trabalhadas por Martín-Barbero.

Alguns pesquisadores, a princípio, sob a influência de diferentes correntes teóricas

— funcionalista, estruturalista, semiótica ou marxista — acabam por optar por novas linhas

de estudo, em que o objeto da pesquisa de comunicação não está mais limitado à condição

de mero objeto, mas é visto na relação dialética sujeito/objeto.

O deslocamento de perspectiva analítica fica evidente no campo da comunicação

como cultura, e, mais especificamente, no da cultura popular; para que esse ponto fosse

atingido, o percurso do processo da recepção foi feito.

Alguns centros de pesquisa nacionais, como o da Universidade do Vale do Rio dos

Sinos — UNISINOS —, o da Universidade de São Paulo — USP — e o da Universidade

Metodista de São Paulo, sob a coordenação do professor Marques de Melo, tomaram

explicitamente esse caminho.

Martín-Barbero passou a ser, sem dúvida, referência obrigatória nos estudos de

recepção, que, a partir da década de 80, sob a influência de Gramsci e das metodologias

qualitativas, reorganizaram o trabalho de pesquisa em comunicação. Na década de 90, sua

teoria continuou presente no crescimento das pesquisas interdisciplinares e no dos estudos

de recepção, etnografia de audiência e de ficção televisiva no Brasil (LOPES, l997c:43-44).

Maria Immacolata Vassalo Lopes, Mauro Wilton de Souza, Ana Carolina Escosteguy,

Valério Brittos e Silvia Helena Borelli, entre outros, desenvolveram trabalhos nessa linha.

Lopes, por exemplo, é uma das estudiosas cujas investigações têm a preocupação de

elucidar os métodos de pesquisa em Comunicação, particularmente no Brasil. Desenvolveu

uma pesquisa sobre a telenovela (LOPES, l997a) como espaço de produção e consumo,

articulado pela cotidianidade e pela especificidade dos dispositivos tecnológicos e de

gêneros do meio discursivo. Para tanto, busca uma metodologia multidisciplinar que

alcance as diversas dimensões da recepção da telenovela.

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Wilton de Souza, por sua vez, estuda a emergência dos novos sujeitos na história e

suas relações com as novas configurações dos espaços públicos e privados, bem como a

evolução do conceito de recepção nas últimas décadas.

Para se ter uma idéia do investimento nessa área, basta olhar para os trabalhos no

GT “Mídia e recepção”, do VII Encontro anual da COMPÓS, em São Paulo, apresentados

pelos teóricos mais expressivos da área de Comunicação no Brasil: Francisco Rudiger, da

PUC do Rio, com “Comunicação e teoria do sujeito: a recepção ativa como processo de

assujeitamento”; Maria Immacolata Vassalo Lopes, da ECA/USP, com “Mediações na

recepção: um estudo brasileiro dentro das tendências internacionais”; Antonio Fausto Neto,

da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com “O indivíduo apesar dos outros, modo de

escrever, modos de construir o mundo da recepção”; Valério Brittos, da Universidade

Federal da Bahia, com “TV a cabo e cotidiano: a inserção da tecnologia”; Luiz Carlos

Lasbeck, da Universidade de Brasília, com “Produção e recepção na comunicação

publicitária: uma questão de identidade”; e Roseli Fígaro, da ECA/USP, com “Sujeito

receptor: a interdisciplinaridade nas pesquisas de comunicação”. Esses estudiosos têm um

eixo comum: a reflexão teórica sobre a construção de conceitos que possam explicitar os

contornos específicos dos estudos sobre a recepção, que é o locus de reconhecimento das

camadas populares como sujeitos da história.

Martín-Barbero contribuiu para essa nova leitura dos meios de comunicação,

revendo o lugar da recepção e o do popular de acordo com a especificidade histórica

cultural da América Latina.

Seus conceitos foram redefinidos, basicamente, sob a orientação teórica de A.

Gramsci e W. Benjamin. Embora ele tenha recortado conceitos de teóricos de estudiosos

ingleses, franceses e brasileiros dos mais diversos matizes teóricos, muitas vezes

antagônicos entre si, é nos aportes de Benjamin sobre experiência e modernidade e no

conceito de hegemonia de Gramsci que fundamenta a sua construção teórico-metodológica.

É possível apreender sua teoria da mesma forma com que ele vê a comunicação em

geral e, em particular, na América Latina: como um palimpsesto, um mosaico de

representações, no qual estão inscritos traços culturais das diferentes classes, em diferentes

épocas. Mais que mistura de raças, a mestiçagem constitui-se em uma mistura de culturas

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urbanas e rurais; populares e de elites; arcaicas e modernas; locais e regionais; nacionais e

transnacionais.

Se, para Martín-Barbero, na inter-relação entre as várias culturas, entre os diversos

segmentos sociais, pode-se encontrar a gênese de uma nova cultura, a da cultura de massa,

caracterizada por uma especificidade da América Latina, a mestiçagem, o mesmo não se

pode dizer com relação à sua teoria. Ele inter-relaciona os conceitos de vários autores na

construção de seu projeto teórico-metodológico, mas de um modo que não permite

apreender a gênese das contradições e dos antagonismos das estruturas econômicas, sociais

e culturais da região.

Segundo o autor, ao considerar a inter-relação de culturas, é possível apreender um

novo modo de “perceber e narrar, contar e dar conta” da realidade — e, inclusive,

apreender o novo papel que os meios massivos aí exercem. A mestiçagem, como categoria,

ganha dimensão conceitual em suas teses justamente porque não aparece apenas como um

dado de realidade latino de um passado remoto, mas como parte da modernidade que ali se

produz e reproduz. No entanto, na formação de sua teoria mestiça, a interação entre os

teóricos se dilui diante das condições concretas da história latino-americana, levando-o a

fazer a propor uma avaliação crítica e uma racionalidade compreensiva da Comunicação,

para desvendar o desencantamento da América a partir da tecnologia que atua sobre o

cotidiano do indivíduo. Vale lembrar que o indivíduo das camadas populares redefine e

recria sua história a partir da sua relação com os meios.

Seu projeto de elaborar uma teoria da comunicação latino-americana, continental,

integracionista — pela qual procura um lugar para a região no mundo globalizado e por

meio da qual quer indicar métodos de investigação no campo do local, do popular, do

cotidiano —, não dá conta da própria história, tão ferrenhamente defendida e usada para

desmistificar a indústria cultural como a responsável pela massificação na América Latina.

Contraditoriamente, a grande contribuição de Martín-Barbero para pesquisa da

comunicação — recolocar a recepção como agente do processo comunicacional — é

esgarçada pelo próprio método. O seu projeto integracionista acaba comprometido pela

própria articulação entre teoria e prática, pois, ao limitar-se às práticas do cotidiano,

abandona a História, construindo uma “teoria subdesenvolvida, de periferia”, à procura de

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um lugar para o homem simples pela comunicação, com a incorporação do moderno, mas

ainda muito longe da modernidade.

Tal como os projetos políticos e econômicos, que pretendiam a superação do atraso

latino-americano, Martín-Barbero, e os teóricos brasileiros, reapresentam teorias que

pretendem a superação das injustiças sociais e transformações da sociedade; o cotidiano,

porém, revelado apenas na perspectiva de reconhecimento de suas produções e diálogos

com a mídia, fica engessado em si mesmo. As teorias formuladas acabam não

integracionistas e sim isolacionistas. O que nos leva a perguntar: o que mudou

significativamente no modo de ver a transformação da sociedade, com a humanização da

sociedade, a partir dessas propostas teóricas e dos desvendamentos de realidades populares

baseados na relação com a mídia?

De meu ponto de vista, Martín-Barbero abandonou o processo, a História e o chão

no qual os homens das camadas populares constroem suas vidas. Também para o próprio

autor, essa descontinuidade é perceptível, e notada em seus últimos trabalhos, os da década

de 90. Agora, mais cheio de dúvidas e de reflexão, o autor justifica o conhecimento nômade

na contemporaneidade.

Entretanto, é com Martín-Barbero que a recepção constitui um novo locus para

pensar a cultura popular, especificamente, na América Latina. Ele transforma o estudo da

recepção, aliando uma pesquisa qualitativa a uma perspectiva teórico-metodológica distinta

de outros aportes, como os das pesquisas de audiência, dos usos e gratificações, dos efeitos

etc.

Sua linha teórica, segundo Immacolata Lopes (1997c), é pioneira e original para a

pesquisa em Comunicação, trazendo grandes contribuições para os estudos latino-

americanos de recepção. Pois, com sua proposta, ele resgata o sujeito no seu cotidiano,

contemplando a criatividade e a complexidade da vida cotidiana como espaço de produção

de sentido na relação com os meios.

Ao discutir o mapa dos conceitos básicos, ele recorre ao seu “mapa noturno” e

propõe uma nova visão do cotidiano, do consumo e da leitura. Para ele, a investigação e a

análise do cotidiano trazem outras informações: nas práticas cotidianas estão as chaves para

a recepção. Os diferentes modos de ler as mensagens estão muito ligados às tradições,

preocupações e expectativas da vida prática de cada um (LOPES, 1997:166).

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Descortina, ainda, outra realidade, dando ouvidos aos relatos dos setores populares,

por entender que é aí que se revela a criatividade, a liberdade. Com isso, redefine a própria

concepção de consumo:

[...] nem toda forma de consumo é interiorização dos valores das outras classes. O consumo pode falar e fala nos setores populares de suas justas aspirações a uma vida mais digna [...]. Daí a grande necessidade de uma concepção não-reprodutivista nem culturalista do consumo, capaz de oferecer um marco para a investigação da comunicação/cultura a partir do popular, isto é, que nos permita uma compreensão dos diferentes modos de apropriação cultural, dos diferentes usos sociais da comunicação (MARTÍN-BARBERO, l987:289-290)

Por outro lado, LOPES (1997c:16) comenta que Martín-Barbero entende a recepção

não como uma área de pesquisa, mas uma perspectiva integradora e compreensiva de

investigação, de maneira que todo o processo de comunicação é articulado a partir de

mediações. Nos termos do próprio MARTÍN-BARBERO (1992:20):

Las mediaciones son ese ‘lugar’ desde donde es posible compreender la interacción entre el espacio de la producción y el de la recepción: lo que se produce en la televisión no responde unicamente a requerimientos del sistema industrial y a estratagemas comerciales sino tambíén a exigencias que vienen de la trama cultural y los modos de ver.

Ou seja, a mediação é uma espécie de estrutura incrustada nas práticas sociais

cotidianas das pessoas, que, ao realizar-se através dessas práticas, se traduzem em múltiplas

mediações.

Como Lopes, reforçamos que, a partir da cultura, seu projeto de pesquisa de

recepção ganha relevância no campo na comunicação, ao apreender o cotidiano dos

produtores da cultura popular e sua relação com a mídia. Porém, nada há de exclusivo no

seu pensamento sobre o lugar dos marginalizados da história, isto é, sobre aquele homem

do campo e da periferia dos centros urbanos — os verdadeiros produtores da cultura

popular —, para os quais a modernidade não chegou e, quando chega, chega pela

apropriação, e não pela incorporação. Esse dado de realidade histórica da América Latina

insere Martín-Barbero no movimento de vários pensadores dessas sociedades, presente

desde o começo do século XX. Ao propor, pela sua teoria, o reconhecimento e o lugar do

homem comum na história, como sujeito e agente transformador de sua sociedade, ele se

põe na mesma empreitada, por exemplo, dos brasileiros Gilberto Freyre, Buarque de

Holanda, Caio Prado; dos literatos regionalistas de 30; dos pensadores do Iseb dos anos

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50s; dos produtores de cinema e dos cientistas sociais dos anos 60s; e, dos seus aliados de

ainda hoje: Renato Ortiz, Octavio Ianni, Maria Immacolata etc.

É pacífica a afirmação de Martín-Barbero de que a Comunicação tem um papel

reorganizador na vida social e, portanto, na reorganização do reconhecimento. Mas, como

visto em seus últimos escritos, encontramos, na sociedade pós-moderna, novas

fragmentações do sujeito social — que não são mais que uma renovação das tradicionais

divisões estruturais da sociedade, embora sejam novas na forma de produzir — e novas

tecnologias de comunicação que reforçam a divisão entre a informação e a cultura dirigidas

a aqueles que tomam as decisões e as dirigidas para o restante da sociedade, com a

finalidade de mero entretenimento.

Em função dessas fragmentações e técnicas presentes no cotidiano dos homens,

assiste-se a uma segmentação cada vez mais acentuada entre os jovens e entre os públicos,

criando novas sensibilidades. Atualmente, está em curso uma grande mudança: a

reorganização dos espaços públicos e privados. Está ocorrendo uma alteração das funções e

dos significados de ambos e das relações que se estabelecem com eles. Diante dessa

realidade, MARTÍN-BARBERO (1999) afirma:

En esta situación necesitamos reaprender el sentido de la crítica, el sentido que tiene hoy pensar críticamente la comunicación. Al desbordar el orden de la explicación especializada, los retos que la "sociedad de la técnica" nos plantea están exigiendo ser reubicados en ese otro régimen del pensar que es el de la comprensión. Que es desde el que podemos plantearnos la pregunta por el sentido de la crítica. O dicho de otro modo, ¿cómo repensar las tradiciones desde las que pensamos: desde el mundo de la estrategia o de la táctica? Creo que la crítica hoy debería aprender de la lucha secular de los sectores populares que, al no poder escoger ni el tiempo ni el lugar, desarrolló en ellos un peculiar sentido del "desciframiento de las ocasiones" y de la Iógica de las coyunturas". O no es verdad que, con el desdibujamiento de las ideologías y el abandono de las utopías, el pensamiento crítico ha ido perdiendo su territorio propio y se encuentra hoy luchando desde el campo que traza y domina el adversario? Exilado de su espacio, y en cierta manera de su tiempo, por el emborronamiento de su pasado, el pensamiento crítico sólo puede otear y dibujar futuro abndonando las seguridades en que se resguardaba y volviéndose nómada. Y la primera clave de un pensamiento nómada reside en asumir esa des-ubicación que nos desazona empujándonos, machadianamente, a hacer camino al andar, esto es a imaginar el futuro. (...) Pensar críticamente la comunicación implica imaginarla como modo de relación con el pasado y forma de construcción de futuro.

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O autor, aqui, faz uma aposta no futuro. Em compasso de espera, repete-se o

movimento usado para construir as bases de sua proposta teórica da recepção: é uma

ferramenta do presente que se articula com o passado, e cujas matrizes pressupõem a

construção do futuro. Mas que futuro é esse? Onde desemboca?

As dúvidas dele sobre o futuro espelham as minhas próprias dúvidas sobre o projeto

teórico latino americano por ele desenvolvido.

Algumas considerações

Tendo em vista todas essas colocações, torna-se um desafio dar conta de um autor

como Jesús Martín Barbero. Não tanto quanto à complexidade da obra do ponto de vista da

“teoria da comunicação”, pois o autor é muito mais um enunciador e reformador do que um

inovador. Ele cumpre em dar corpo às idéias dos vários teóricos das ciências sociais e

àquelas que buscam um objeto da comunicação no intricado mundo cultural, híbrido e

colonizado, da América Latina, mesclado de atraso econômico e político; e é justamente

esse atraso que cria o chão social adequado para suas idéias: a comunicação como cultura.

No entanto, a sua proposta teórico-metodológica está longe de ser reconhecida como uma

teoria barberiana; é mais uma bandeira de luta na defesa do povo e do popular mediados

pelos meios de comunicação no mundo globalizado. Pode-se verificar, também, que Jesús

Martín Barbero é muito mais aludido do que conhecido, aumentando a necessidade de seu

desvelamento. É evocado, mas, curiosamente, pouco estudado em função do alarde que seu

nome produz no mundo da comunicação.

Bibliografia

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