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RESENHA UMA HISTÓRIA DO FEMINISMO NO BRASil DE CÉu REGINA JARDIM PINTO Uma História do Feminismo no Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2003. 115p. POR IRLYS ALENCAR FIRMO BARREIRA * * Doutora em Sociologia, professora da Universidade Federal do Ceará. S e existem muitas maneiras de contar uma história é por- que as narrativas são fios de um enredo sem fim: a tessitura do tempo nos eventos e personagens permanentemente ressignificados. A história do movimento feminista é tam- bém passível de múltiplos enredos, exigindo a escolha de uma narrativa capaz de dar conta do eu caráter ao mesmo tempo singular e plural, evidenciado no registro de vidas e fatos que fa- zem a história das mulheres desde o século XIX. O movimento feminista, percebido de modo abrangente pela autora, manifesta-se de modo explícito e anônimo, consolidando-se, gradati- varnente, através de lutas cotidianas e conquistas ínfimas. Trata-se de um movimento fragmenta- do, aglutinando desde reuniões privadas até for- mas mais unitárias e visíveis de expressão. Diante dessa dificuldade de narrar a his- ória do movimento feminista de forma progres- siva e linear, a autora faz uma opção de "perseguir tendências", isto é, registrar o movi- mento em sua pluralidade, dentro de um campo de lutas particulares. Lutas não restritas a ten- dências políticas, estando também atravessadas por diferentes visões sobre o lugar da mulher em espaços públicos e privados, marcados, em ua maioria, por formas variadas de dominação. O livro está dividido em quatro capítulos. O primeiro aponta os primórdios do movimen- o, suas expressões e porta-vozes mais significa- tivos. A autora identifica nesse momento duas tendências. Uma primeira, sob liderança de Bertha Luz, é nomeada de "bem comportada", caracterizando-se por um tipo de mobilização que visa a conquista de espaços institucionais, tais como o direito de votar. Uma segunda ten- dência, que singulariza- se pela presença mais heterogênea de mulhe- res, posiciona-se de for- ma radical contra a chamada dominação masculina, nomeada pela autora de face "mal comportada" do feminismo. As informações obtidas para a elabora- ção do livro provêm, em sua grande maioria, de pesquisas já realizadas por especialistas na temática, entre os quais se enquadra a própria autora. O esforço de síntese e a organização das idéias, tendo em vista a construção de uma "his- tória", dão um caráter metodológico interessan- te que é o de buscar, através de manifestações variadas, as lógicas que subsidiam a demanda constante de reconhecimento das mulheres no espaço público. De fato, a busca da cidadania defi- nida pela luta por direitos sociais e reconheci- mento público caracteriza o conjunto de manifestações das mulheres desde época lon- gínqua. São mobilizações que, inicialmente esparsas, vão cedendo lugar a uma campanha mais orgânica pelo direito político das mulheres votarem e serem votadas. A organização em tor- no de direitos cívicos que caracteriza o feminis- mo no mundo tem no Brasil sua expressão na campanha liderada por Bertha Luz. Nas primeiras décadas do século XX, o feminismo esteve associado a personalidades, destacando-se o esforço pessoal de algumas mulheres que rompiam com papéis estabeleci- dos, imprimindo sua marca no mundo público. Nesse momento destacam-se três vertentes. Na primeira, a mulher emerge como sujeito capaz de exercer direitos políticos. A segunda verten- BARREIRA,IRLYSALENCARFIRMO: UMA HISTÓRIA 00 FEMINISMONOBRASIL. P. 135 A 138 135

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RESENHA

UMA HISTÓRIA DO FEMINISMO NO BRASil

DE CÉu REGINA JARDIM PINTO

Uma História do Feminismo no Brasil.São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2003. 115p.

POR IRLYS ALENCAR FIRMO BARREIRA *

* Doutora em Sociologia, professora da UniversidadeFederal do Ceará.

Se existem muitasmaneiras de contaruma história é por-

que as narrativas são fiosde um enredo sem fim:a tessitura do tempo noseventos e personagenspermanentemente ressignificados.

A história do movimento feminista é tam-bém passível de múltiplos enredos, exigindo aescolha de uma narrativa capaz de dar conta doeu caráter ao mesmo tempo singular e plural,

evidenciado no registro de vidas e fatos que fa-zem a história das mulheres desde o século XIX.O movimento feminista, percebido de modoabrangente pela autora, manifesta-se de modoexplícito e anônimo, consolidando-se, gradati-varnente, através de lutas cotidianas e conquistasínfimas. Trata-se de um movimento fragmenta-do, aglutinando desde reuniões privadas até for-mas mais unitárias e visíveis de expressão.

Diante dessa dificuldade de narrar a his-ória do movimento feminista de forma progres-siva e linear, a autora faz uma opção de"perseguir tendências", isto é, registrar o movi-mento em sua pluralidade, dentro de um campode lutas particulares. Lutas não restritas a ten-dências políticas, estando também atravessadaspor diferentes visões sobre o lugar da mulherem espaços públicos e privados, marcados, emua maioria, por formas variadas de dominação.

O livro está dividido em quatro capítulos.O primeiro aponta os primórdios do movimen-o, suas expressões e porta-vozes mais significa-tivos. A autora identifica nesse momento duastendências. Uma primeira, sob liderança deBertha Luz, é nomeada de "bem comportada",caracterizando-se por um tipo de mobilizaçãoque visa a conquista de espaços institucionais,

tais como o direito devotar. Uma segunda ten-dência, que singulariza-se pela presença maisheterogênea de mulhe-res, posiciona-se de for-ma radical contra a

chamada dominação masculina, nomeada pelaautora de face "mal comportada" do feminismo.

As informações obtidas para a elabora-ção do livro provêm, em sua grande maioria, depesquisas já realizadas por especialistas natemática, entre os quais se enquadra a própriaautora. O esforço de síntese e a organização dasidéias, tendo em vista a construção de uma "his-tória", dão um caráter metodológico interessan-te que é o de buscar, através de manifestaçõesvariadas, as lógicas que subsidiam a demandaconstante de reconhecimento das mulheres noespaço público.

De fato, a busca da cidadania defi-nida pela luta por direitos sociais e reconheci-mento público caracteriza o conjunto demanifestações das mulheres desde época lon-gínqua. São mobilizações que, inicialmenteesparsas, vão cedendo lugar a uma campanhamais orgânica pelo direito político das mulheresvotarem e serem votadas. A organização em tor-no de direitos cívicos que caracteriza o feminis-mo no mundo tem no Brasil sua expressão nacampanha liderada por Bertha Luz.

Nas primeiras décadas do século XX, ofeminismo esteve associado a personalidades,destacando-se o esforço pessoal de algumasmulheres que rompiam com papéis estabeleci-dos, imprimindo sua marca no mundo público.Nesse momento destacam-se três vertentes. Naprimeira, a mulher emerge como sujeito capazde exercer direitos políticos. A segunda verten-

BARREIRA,IRLYSALENCARFIRMO: UMA HISTÓRIA00 FEMINISMONOBRASIL.P. 135 A 138 135

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te é caracterizada por manifestações da impren-sa feminista alternativa, sob a ação de mulherescultas tais como professoras, escritoras e jorna-listas. As mulheres, através da imprensa, busca-vam formar uma opinião a favor das suas idéiasde libertação. Eram mulheres precursoras devalores alternativos à moral dominante, que pro-feriam discursos relacionados a temas como di-vórcio e sexualidade, configurando em seusprotestos a face menos comportada do movi-mento A terceira tendência, de natureza maispolitizada, é manifestada através da presença doPartido Anarquista e Partido Comunista, nomovimento feminista.

O novo feminismo que ocorreu nas déca-das de 1960 e 1970 esteve relacionado àefervescência política do contexto mundial àépoca. O movimento revolucionário em cursocolocava em cheque os valores conservadoresda organização social, questionando hierarquiasvigentes nos âmbitos público e privado. Foi nessemomento que emergiu o livro de Simone deBeauvoir, O Segundo Sexo, irrompendo também,no período, manifestações ritualizadas de con-testação, tal como a "queima de sutiãs", feitapor americanas lideradas por Beth Friedman.

O cenário no Brasil era, no entanto, dife-rente do quadro mundial. A ditadura no paístornava as lutas sociais articuladas a uma dimen-são mais ampla de demanda pela democracia.O movimento de mulheres, do mesmo modo,abrangia outras esferas de manifestação tais comoluta contra a carestia, movimento de mães pelaliberdade, anistia ete. Distinguia-se, assim, deoutros movimentos feministas vigentes em ou-tros países.

Desde o final dos anos 40 e início da dé-cada de 50, do século XX, mulheres de diferen-tes classes sociais e ideologias lutavam contra acarestia. Eram mulheres associadas à Federaçãode Mulheres do Brasil, fortemente influenciadaspelo Partido Comunista que, em 1953, realiza-ram a passeata da panela vazia. Esse tipo deorganização manteve-se até início de 1970, prin-cipalmente nos bairros pobres, onde mulheres

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começam a lutar nos postos de saúde, nas esco-las, nas creches e nos serviços públicos em ge-ral. Essas organizações de bairro tiveram apoioda Igreja Católica, principalmente através dasComunidades Eclesiais de Base.

A singularidade do movimento feministaestava no fato de que, por um lado, se organiza-va a partir do reconhecimento de que ser mulher,tanto no espaço público como privado, acarretaconseqüências definitivas para a vida, havendo,portanto, uma luta específica, baseada na trans-formação das relações de gênero. Por outro lado,existia a compreensão de que no Brasil questõescomo a fome, a miséria e a desigualdade socialnão eram um problema menor, externo às lutasespecíficas. Principalmente na luta de mulheres enegros, questões ligadas à condição de classeestiveram fortemente presentes na conformaçãoe especificidade das demandas.

O movimento feminista no Brasil tantolutava por autonomia, em um espaço marcadopela política, como defendia a especificidade dacondição dominada da mulher. O ano de 1975 éconsiderado como momento inaugural deexpressividade do movimento feminista, saindoda condição de grupos específicos fechados eintelectualizados para incorporar segmentos so-ciais que se fizeram presentes em eventos maiamplos que marcaram a participação da mulherna esfera pública.

O Centro de Desenvolvimento da MulherBrasileira, criado nesse momento, tinha comoobjetivo "combater a alienação da mulher emtodas as camadas sociais para que ela possaexercer o seu papel insubstituível e até agoranão assumido no processo de desenvolvimen-to". O Centro teve um papel importante, abri-gando diferentes tendências do feminismo.enfrentando, no entanto, resistência das femi-nistas radicais, que priorizavam a centralidadeda questão da mulher e dos problemas ligadoao corpo e à sexualidade.

A partir de 1976, o Centro abrigava trêsgrandes tendências: a marxista, a liberal e a ra-dical. As duas primeiras tinham uma natureza

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mais política, para além da luta específica damulher. A terceira posição colocava a questãoda mulher no centro da discussão, expondo aaberta condição de opressão. Enquanto o movi-mento feminista em outros países era influenci-ado por uma democracia que expunha de formaaberta a especificidade das lutas sociais dasmulheres, no Brasil o paradoxo estava na di-mensão da luta unitária contra a ditadura e abusca de um feminismo mais autônomo. Se, nosestados Unidos e na Europa, os negros e asmulheres expunham com força as formas dedominação, no Brasil a luta dividia-se em doiscampos: a democracia contra a ditadura e o pro-letariado contra a burguesia. Uma oposição en-tre lutas gerais e lutas específicas emergia nessemomento. As reivindicações gerais referiam-seà anistia, eleições livres, assembléia constituintee fim da carestia. As específicas abrangiam a cri-ação de creches em bairros, áreas de lazer, es-colas, igualdades salariais etc.

A época de redemocratização no Brasil ca-racteriza a vigência de novos rumos para o movi-mento feminista. Ao longo da década de 1970,surgem grupos feministas temátícos, marcados pornovas divisões entre as feministas que lutavam pelainstitucionalização do movimento e as autonornistasque viam na aproximação com as esferas estataisum risco de cooptação. De todo modo, segundo aautora, percebe-se nesse momento a conquista deespaços institucionais tais como a criação de con-selhos e delegacia da mulher. A ligação orgânicaentre conselhos e partidos traduz a tensão entre astendências que definem a relação do movimentocom o Estado. O Conselho Estadual da CondiçãoFeminina, por exemplo, traduzia a busca de alar-gamento da participação, a partir do recrutamentode representantes.

A participação de mulheres na esfera maisampla da representação política constitui outrafrente de luta. Mesmo que as mulheres eleitasnão pertencessem ao movimento feminista, poismuitas delas faziam parte de partidos tradicio-nais, a chamada bancada feminina teve atua-ção relevante. Apresentou 30 emendas, ao

Congresso Nacional, sobre o direito das mulhe-res, englobando as reivindicações do movimen-to feminista.

O Conselho Nacional dos Direitos da Mu-lher foi presença fundamental durante os traba-lhos de preparação da Assembléia NacionalConstituinte, reunindo em Brasília grupo de fe-ministas que elaborou a "carta das mulheres". AConstituição de 1988 consagrou conquistas im-portantes no espaço do direito das mulheres,sendo decisiva a presença de militantes, duran-te os trabalhos constituintes.

Na década de 80, registra-se a presença denovos temas no interior do movimento feminis-ta, não restritos à temática política. Emergem,então, a violência e a saúde como bandeiras deluta e espaço de atuação. Surgem em tais circuns-tâncias Na década de 80 surgem inúmeras orga-nizações de apoio à mulher vítima da violência.Nesse momento, a temática da violência contra amulher vai tornar claro a diferença entre catego-rias sociais, fazendo com que a militância femini-na tome outra forma, passando a organizar-se comassessoria da área jurídica. Registra-se, ainda, nesseperíodo, a presença de mulheres na delegacia,vista antes como espaço exclusivamente mascu-lino, dando visibilidade a agressões antes restritaà área privada. O tema da saúde extrapolou aspolíticas do Estado, questionando tabus ligadosà sexualidade e ao aborto. Também nesse planohouve criação de grupos com efeitos diretos naconstrução de políticas públicas.

O feminismo acadêmico constitui umoutro espaço de atuação que caracterizou omovimento de mulheres. Nele destacaram-sepesquisas, publicações e eventos que consoli-daram uma dimensão importante de visibilida-de do movimento feminista. Os estudos sobre amulher e os financiamentos para pesquisa so-bre o tema redundaram em livros e revistas, con-solidados como veículos com forte poder dedifusão de idéias. As associações científicas cri-aram, por outro lado, grupos de trabalho sobreas questões de gênero, legitimando um novocampo de estudos.

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a virada do milênio, o movimento femi-nista se expressa através de novas formas. Exis-te uma dissociação entre pensamento feministae movimento feminista que, embora complemen-tares, agem em direções diferentes.

Uma outra classificação aparece nessa nar-rativa sobre a história do movimento feminista.Trata-se da existência de um feminismo difuso,que não tem militantes e organizações, sendomuitas vezes defendido por homens e mulheresnão necessariamente identificados como feminis-tas. A título de exemplo, destacam-se discussõessobre o assédio sexual, mostrando que o direitodas mulheres passa a ser tema de interesse geral.

As O Gs constituem um dos espaços demais importante atuação do movimento de mu-lheres na virada do século. O CFMEA mantémimportante papel no poder legislativo sendo in-termediária entre o campo político e a socieda-de. As publicações desta ONG dão publicidadea tramitações e decisões governamentais de in-teresse das mulheres. Outras ONGs de menorporte complementam ações no campo político,incluindo mulheres de outras camadas sociais.Adquirem, assim, legitimidade diante das esfe-ras estatais e públicas, constituindo um fenôme-

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no novo na política, por conta da possibilidadede intensa atuação na sociedade civil. Uma gamade organizações desse porte atua hoje no Brasilcom clientelas variadas e capacidade de inter-venção, representando a face mais recente dofeminismo no país.

O livro integra uma coleção denominada"História do povo brasileiro", que tem por obje-tivo oferecer uma visão abrangente e alternativada história do país, combinando rigor historio-gráfico com linguagem acessível e autoria com-petente. A própria analista da "história domovimento feminista" é especialista na temática,havendo publicado livros e artigos sobre a par-ticipação das mulheres na política

A expressão mais recente do feminismoparece, na visão da autora, configurar um cam-po mais difuso, porém competente e insti-tucionalizado de lutas sociais. Supondo-se queas lutas das mulheres efetivam-se com baseem valores culturais e políticos, o feminismotem uma longa história pela frente. Essa ques-tão menos explorada no livro poderá ser ob-jeto de um outro estudo. O fio condutor destanarrativa sem fim que é a luta social e políticadas mulheres ...

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