uma geraÇÃo em risco: retrato das crianÇas … · acima de 50% da população, os escassos...

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UMA GERAÇÃO EM RISCO: RETRATO DAS CRIANÇAS HAITIANAS NO SÉCULO XXI Caroline Alves Salvador 1 isitar o Haiti era um dos grandes projetos profissionais que tracei ao cursar o Mestrado na Universidade de Lisboa. Apresentei um projeto para o Exército Brasileiro e o Ministério da Defesa; fui prontamente atendida e quando menos esperava, no dia 1º de setembro de 2010, lá estava eu embarcando para o tão aguardado destino. Os motivos do projeto de pesquisa in loco eram profissionais, pois a parte teórica eu tive contato por mais de três anos ininterruptamente por meio de livros, jornais, revistas e sites virtuais. Contudo, sempre acreditei que só com uma visita a campo, onde uma missão de paz estivesse plenamente em andamento, é que eu poderia sentir a dimensão do trabalho da ONU e dos capacetes azuis. E por que não o Haiti, que recebe uma missão considerada sem precedentes? E por que não o Haiti, já que o Brasil está empregando naquele país esforços nunca antes vistos? Porto Príncipe é tudo aquilo que se vê na mídia: pobreza, miséria e destruição. Porto Príncipe é também solidariedade, esperança e força. Falar em pobreza não é fazer jus à realidade. Lá repousa a extrema pobreza de uma nação arrasada pelas brigas políticas, pelas guerras e pelas catástrofes naturais. Não é sem motivo que o Haiti é o país mais pobre das Américas, classificado entre os mais pobres do mundo segundo os relatórios do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD. 1 Advogada. Mestre em Ciências Jurídico-Internacionais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Católica de Santos. Criadora e administradora do blog “Parceiros pela Paz”. www.parceirospelapaz.wordpress.com V

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UMA GERAÇÃO EM RISCO:

RETRATO DAS CRIANÇAS HAITIANAS NO SÉCULO XXI

Caroline Alves Salvador1

isitar o Haiti era um dos grandes projetos profissionais que tracei ao cursar o Mestrado na

Universidade de Lisboa. Apresentei um projeto para o Exército Brasileiro e o Ministério da Defesa;

fui prontamente atendida e quando menos esperava, no dia 1º de setembro de 2010, lá estava eu

embarcando para o tão aguardado destino.

Os motivos do projeto de pesquisa in loco eram profissionais,

pois a parte teórica eu tive contato por mais de três anos

ininterruptamente por meio de livros, jornais, revistas e sites

virtuais. Contudo, sempre acreditei que só com uma visita a

campo, onde uma missão de paz estivesse plenamente em

andamento, é que eu poderia sentir a dimensão do trabalho da

ONU e dos capacetes azuis.

E por que não o Haiti, que recebe uma missão considerada sem

precedentes? E por que não o Haiti, já que o Brasil está

empregando naquele país esforços nunca antes vistos?

Porto Príncipe é tudo aquilo que se vê na mídia: pobreza,

miséria e destruição. Porto Príncipe é também solidariedade,

esperança e força.

Falar em pobreza não é fazer jus à realidade. Lá repousa a extrema pobreza de uma nação arrasada

pelas brigas políticas, pelas guerras e pelas catástrofes naturais.

Não é sem motivo que o Haiti é o país mais pobre das Américas, classificado entre os mais pobres do

mundo segundo os relatórios do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD.

1 Advogada. Mestre em Ciências Jurídico-Internacionais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Católica de Santos. Criadora e administradora do blog “Parceiros pela Paz”. www.parceirospelapaz.wordpress.com

V

No meio de toda aquela pobreza figuram como coadjuvantes crianças de todos os tamanhos; as

menores, em sua maioria, completamente nuas; as maiores usam trapos surrados que comprovam

muito tempo de uso.

Durante a estadia na capital haitiana fui com a comitiva do Ministério

da Defesa visitar dois pontos de extrema pobreza em Porto Príncipe,

os bairros Fort Dimanche e Cité Soléil. Os dois bairros estavam

repletos de crianças vivendo, ou melhor, sobrevivendo nas mesmas

condições precárias de higiene, habitação e desnutrição.

Em Cité Soléil o desespero por comida fez com que as mulheres

criassem uma nova forma de alimento. O té, uma mistura de barro,

água, sal e manteiga. Inicialmente, era um produto feito para as

mulheres grávidas, hoje é usado para enganar a fome de quem não

tem nada para comer.

Cientes ou não dos problemas que aquele “alimento” pode causar a longo prazo as pessoas ignoram

os fatos, pois a fome aperta no estômago, as crianças choram desesperadas. Assim os biscoitos de

barro se tornaram parte integrante do cardápio diário dos habitantes de Cité Soléil e uma atração para

os visitantes e jornalistas que por ali passam.

Algumas famílias descobriram na miséria uma fonte de renda com a venda do biscoito de barro. É a

luta pela sobrevivência.

Num país em as pessoas comem em média um prato de comida – dia sim, dia não – as crianças

sofrem com a desnutrição aguda. Na cultura haitiana é natural que entre dois filhos com condições de

sobrevivência diferentes seja dada preferência para aquele que tem mais chances de sobreviver. A

embaixatriz brasileira Roseana Kipman, que está no Haiti há dois anos e meio, explica que os mais

fortes são os primeiros a comer. As crianças ficam para o fim. Um homem forte pode salvar uma

criança. Mas alimentar a criança que não vai poder salvar a vida de um adulto forte não faria o menor

sentido. Em suas palavras ela explica que “ninguém pode ficar se pegando a uma criança que pode

morrer”2.

2 http://noticias.r7.com/blogs/correspondentes-internacionais/2010/01/23/olhando-o-haiti-com-outro-filtro/. Repórter Heloisa Vilella. Publicada em 23 de janeiro de 2010. Pesquisado em 03 de outubro de 2010.

No meio de Cité Soléil nos misturamos à população. Num piscar de olhos eu estava rodeada de

crianças, todas querendo tocar minha mão, todas querendo dizer seus nomes, todas implorando por

um pouco de atenção.

Em poucos instantes eu mal conseguia caminhar e entre aqueles sorrisos que se abriam em minha

direção ficamos ali alguns minutos. Eu permaneci hipnotizada pelas crianças e guiada pelos soldados

que vinham me avisando sobre os biscoitos de barro que estavam estendidos em um pedaço de pano

no chão.

O assunto da nossa conversa logo mudou de foco, as crianças começaram a pedir água, comida ou

dinheiro. Eu tinha apenas uma resposta, a mais dura de todas, talvez mais para mim – já que era a

primeira vez que negava algo tão necessário – do que para elas que estão acostumadas a pedir e,

como numa loteria, ganhar ou não.

O “não” saiu com um gosto amargo nunca antes experimentado.

As crianças no Haiti poderiam sonhar com um futuro diferente por meio da educação, entretanto, as

escolas do país são em sua maioria privadas. Cerca de 90% das escolas são pagas e administradas

pela comunidade, pelas organizações religiosas e ONGs3. A taxa de alfabetização está um pouco

3Haiti country profile. Library of Congress Federal Research Division. Maio de 2006.

acima de 50% da população, os escassos professores são pouco qualificados, há falta de material

didático para as crianças, entre muitos outros problemas na esfera da educação.

Algumas famílias devem optar por mandar seus filhos à escola ou comprar alimentos. Outras sonham

em um dia ter que escolher entre estas opções, pois significará que poderão ao menos optar por

alimentar sua família.

As crianças crescem à margem do Estado, sem educação, sem alimentação e sem moradia. Talvez

nunca tenham a oportunidade de entrar numa sala de aula. Sem a ajuda internacional para a

reestruturação do seu país essas crianças estão fadadas a um destino vazio e incerto longe dos

mínimos direitos garantidos pelos inúmeros instrumentos de direitos humanos. Contudo, estão

sempre dispostas a demonstrar a força e a alegria de um povo batalhador.

Chegado o momento da partida, senti aquelas pequenas mãos apertarem as minhas com mais força.

Como eu poderia olhar em seus olhos e dizer-lhes adeus sem ao menos ter feito alguma diferença em

suas vidas?

Enquanto eu tentava entender tudo aquilo que eu estava sentindo, aquelas pequenas almas

desapareceram pelas ruas empoeiradas, pelas casas precárias, pelos biscoitos de barro e pelo destino

vazio que lhes aguarda.

Ironicamente, eu saí do Brasil acreditando que meu trabalho poderia modificar a vida dos haitianos

naquele dia, mas foram aquelas crianças que modificaram a minha vida. Não há o que pague por

tantos sorrisos radiantes, nem pelo exemplo de luta e perseverança do povo haitiano!