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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTES FACULDADE DE ARQUITETURA DENTRO Uma experimentação tipográfica em torno da legibilidade das contraformas Patrícia Rodrigues Esteves Reina Trabalho de Projeto Mestrado em Práticas Tipográficas e Editoriais Contemporâneas Trabalho de Projeto orientado pela Prof.ª Doutora Sofia Leal Rodrigues 2018

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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE BELAS-ARTES

FACULDADE DE ARQUITETURA

DENTRO Uma experimentação tipográfica em torno

da legibilidade das contraformas

Patrícia Rodrigues Esteves Reina

Trabalho de Projeto

Mestrado em Práticas Tipográficas e Editoriais Contemporâneas

Trabalho de Projeto orientado

pela Prof.ª Doutora Sofia Leal Rodrigues

2018

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i

DECLARAÇÃO DE AUTORIA

Eu, Patrícia Rodrigues Esteves Reina, declaro que o presente Trabalho de Projeto de

mestrado intitulado “Dentro: uma experimentação tipográfica em torno da legibilidade das

contraformas” é o resultado da minha investigação pessoal e independente. O conteúdo é

original e todas as fontes consultadas estão devidamente mencionadas na bibliografia ou

outras listagens de fontes documentais, tal como todas as citações diretas ou indiretas têm a

devida indicação ao longo do trabalho segundo as normas académicas.

A Candidata

Lisboa, 30 de outubro de 2018.

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RESUMO

Com base na perceção do espaço como elemento estruturante na tipografia, a presente

investigação teórico-prática pretende estudar as relações formais entre os caracteres e as suas

contraformas no contexto da formação das palavras. A hipótese propulsora do

desenvolvimento desta pesquisa é a de que há grande influência dos espaços interiores e

adjacentes ao desenho das letras no processo de reconhecimento das palavras durante a

leitura, contribuindo significativamente para a legibilidade tipográfica.

Para que se compreenda como funciona a dinâmica de contraste entre a letra e o

fundo, recorre-se inicialmente às teorias da perceção visual e à teoria da escrita de Gerrit

Noordzij. Essas definições propiciam a compreensão do papel da contraforma, tanto dos

espaços internos quanto dos adjacentes a cada letra que forma as palavras, perfazendo o

caminho de formação da imagem da palavra como função última da relação equilibrada entre

os caracteres e os espaços tipográficos.

Num segundo momento, analisa-se a definição do conceito de legibilidade e de alguns

dos mais relevantes postulados sobre os processos de leitura e de reconhecimento dos

caracteres. Coloca-se, então, a questão da familiaridade como base sistémica da ideia de

repertório tipográfico, discutindo-se a preservação da semelhança, pela aparência universal

da letra, e da sugestão da diferença, pelo funcionamento pragmático do alfabeto em si. Por

fim, a prática da decifração, no contacto habitual do leitor com a tipografia no processo de

leitura, é tratada sob a égide da tensão entre eficiência e conveniência.

Fundamentada sobre a reflexão teórica, desenvolveu-se a tipografia Dentro, que

assume em cada um dos seus caracteres as suas respetivas contraformas tipográficas. Infere-

se, pela realização dessa tipografia experimental, o grau de protagonismo dos espaços

microtipográficos no ato da leitura, sendo possível a comparação dos efeitos da contraforma

tanto no alfabeto latino maiúsculo quanto no alfabeto latino minúsculo.

Palavras-chave: Contraforma; Imagem da Palavra; Legibilidade; Perceção visual; Tipografia.

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ABSTRACT

Based on the perception of space as a structuring element in typography, the theoretical-

practical investigation of the present project intends to study the formal relations between

the characters and their counters in the context of word formation. The hypothesis

propelling the development of this research is that there is great influence of the interior and

adjacent spaces to the letter design in the process of word recognition during the reading

process, making them forms of direct contribution to the typographic legibility.

In order to understand how the contrast dynamic between the letter and the

background works, we first resort to the theories of visual perception and Gerrit Noordzij’s

theory of writing. These definitions allow the understanding of the counter, both in the

internal spaces and in the spaces adjacent to each letter that forms the words, making up the

path of the formation of the word-image as the ultimate function of the balanced relationship

between characters and typographic spaces.

In a second moment, the definition of the concept of legibility and some of the most

relevant postulates about the process of reading and character recognition are analyzed. The

question of familiarity as a systemic basis for the idea of a typographic repertoire. Then is

discussed the affinity preservation, as the similarity with a universal appearance of the letter,

and the suggestion of difference, as the pragmatic functioning of the alphabet itself. Finally,

the practice of deciphering — in the habitual contact of the reader with the typography in

the reading process — is treated under the aegis of the tension between efficiency and

convenience.

Grounded on the theoretical reflection, the typography Dentro [inside] was developed,

presenting each of its characters in their respective typographic counters. It is inferred, by

making this experimental typography, the level of protagonism for the verification of the

microtipographic spaces in the act of reading, enabling the comparison of the counter hole

effects both in the upper case latin alphabet and in the lower case latin alphabet.

Keywords: Counter; Legibility; Visual Perception; Typography; Word-image.

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iv

AGRADECIMENTOS

Presto minha sincera gratidão à orientadora deste projeto, professora Sofia Rodrigues, pela

presença inspiradora como docente, uma figura de competência e sensibilidade ímpares.

Obrigada pelas leituras atentas e pelas tardes de encontro.

Tenho minha gratidão também junto à comunidade académica como um todo, por tantas

influências positivas que possibilitaram meu percurso até aqui – entre conversas distraídas

com colegas que trouxeram aquela ideia que faltava, ou entre a profusão de pensamentos

acarretada por uma leitura sugerida ou um seminário. Enfim, todas as circunstâncias que

corroboraram não só para a entrega deste trabalho, neste momento e desta forma, mas

também para meu desenvolvimento integral.

Agradeço ao Felipe, meu amor e meu amigo, todo apoio, atenção, ajuda, acolhimento,

esforço com o qual ele contribuiu para que eu alcançasse a consecução deste projeto. Viver

os desafios ao seu lado é sempre mais fácil.

Também aos meus pais, Marly e José Carlos, pelos quais sinto incomensurável privilégio em

ser filha, pela multiplicidade de formas que conseguem elaborar para impulsionar minha

prosperidade material e imaterial.

Ao meu irmão, Leandro, agradeço a inspiração em se dispor sempre com leveza e otimismo

às partes mais difíceis dos processos que envolvem uma escolha.

Por fim, Àquele que gera em mim a maior gratidão que eu poderia ter: pela vida.

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v

ÍNDICE GERAL

i DECLARAÇÃO DE AUTORIA

ii RESUMO / PALAVRAS-CHAVE

iii ABSTRACT / KEYWORDS

iv AGRADECIMENTOS

v ÍNDICE GERAL

vi ÍNDICE DE IMAGENS

1 INTRODUÇÃO

5 1. CONTRAFORMA TIPOGRÁFICA

5 1.1 Perceção visual e contraste

10 1.2 Contraforma na letra

15 1.3 Contraforma na palavra

18 1.4 Imagem da palavra

23 2. LEGIBILIDADE

23 2.1 Definições

27 2.2 Especulações sobre a leitura

33 2.3 Repertório tipográfico

38 2.4 A palavra decifrável

43 3. TIPOGRAFIA EXPERIMENTAL DENTRO

44 3.1 Pressupostos teóricos

48 3.2 Metodologia e Desenvolvimento

49 3.2.1 Maiúsculas

53 3.2.2 Minúsculas

58 3.3 Discussão dos resultados

62 CONCLUSÃO

65 BIBLIOGRAFIA

68 ANEXO

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ÍNDICE DE IMAGENS

6 Figura 1: Figuração da perceção de uma página em um ambiente com ausência de luz, à esquerda, e

com presença de luz, à direita. (Gluth, 1999, p.244)

8 Figura 2: Planos das formas e princípio de completude (Gibson, 1950, p.143)

10 Figura 3: Exemplo do que seria um Vaso de Rubin

10 Figura 4: Exemplos de contrastes que podem ser considerados, respetivamente, moderado, grande

e nulo (Noordzij, 2013, p.14)

11 Figura 5: A aparência de um traço pode ser produzida de muitas formas sem que seja possível

definir, pelo resultado, como o traço foi feito. (Noordzij, 2013, p.33)

12 Figura 6: Presença comum do corpo “nu” de A e R, mesmo “vestidos” de algumas diferentes

“roupagens”(Gill, 2003, pp.77,79)

17 Figura 7: Equilíbrio entre contraformas internas e externas dentro das palavras

17 Figura 8: Ritmo tipográfico arruinado não só pela falta de equilíbrio entre os espaços internos e

adjacentes às letras, como também pela falta entre esses e o contraponto das hastes (Smeijers, 2015,

p.27).

19 Figura 9: Comparativo de três versões de um mesmo alfabeto (grego), de cariz fonético. Não é

possível distinguir as palavras nas versões mais ancestrais – acima e ao centro da imagem.

(Bringhust, 2006, p.34).

28 Figura 10: Movimentos de leitura e especulação de como seriam percebidas as palavras na região

favoal e parafoveal durante as fixações (adaptado de Hochuli, 2013, p.9)

29 Figura 11: Dois casos de deterioração por reprodutibilidade ensaiadas para testes com a Roxane

(Gluth, 1999, p.250)

32 Figura 12: Impression mi-type, Maître Leclair, 1843 (Unger, 2016, p.62)

32 Figura 13: Alfabeto minúsculo experimental mínimo, pensado por Brian Coe (Spencer, 1969, p.62)

33 Figura 14: Poster para a Revista FUSE 1, Can you (and you want to) read me?, Phil Baines. (Creative

Review, 2015)

35 Figura 15: Interrelações entre as letras sob a ótica da teoria da comparação das características.

Ilustração feita na tipografia Helvetica (Beier, 2009, p.35)

36 Figura 16: Régua stencil RUHA (Tipos das Letras, s.d.).

37 Figura 17: À esquerda, alguns dos módulos para a formação das letras no Super-tipo Veloz. Ao

centro, um material usado para promoção do tipo. Por fim, à direita, uma peça que usa os módulos

na construção de uma ilustração (Gamonal Arroyo, 2012, p.19-20.).

47 Figura 18: Yurnacular, de David Berlow (Fonts.at, 2018).

47 Figura 19: Espécimen da tipografia de Neville Brody, Autossugestion, 1993 (Deer, 2015, p.285).

48 Figura 20: Pequena amostra da Minuscule Deux Regular do espécimen da fonte Minuscule, de Thomas

Hout-Marchande (256TM, 2018).

49 Figura 21: Primeira versão do alfabeto em versal Dentro, novembro de 2017.

50 Figura 22: Diagonalidade intrínseca da forma do F na Quadraat, acima, e Avenir, abaixo.

51 Figura 23: A letra Y na versão anterior Dentro (acima) e na versão atual (abaixo).

51 Figura 24: A letra W na Quadraat e a sua contraforma extraída e, ao seu lado direito, a Garamond,

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com a sua respetiva contraforma. Note-se a diferença do espaço entre as contraformas em ambos os

exemplos.

52 Figura 25: Nova versão do alfabeto em versal Dentro, outubro de 2018.

53 Figura 26: Comparação entre a versão anterior (cinzento) e nova (preto) do alfabeto em versal

Dentro.

53 Figura 27: Comparação entre a mesma palavra utilizando-se a versão anterior (esquerda)

e versão nova (direita) do alfabeto em versal Dentro.

55 Figura 28: Soluções para o tratamento das ascendentes e descendentes em b, d, p e q. Autossugestion,

de Neville Brody, à esquerda, e Lint Light, de Kate Francis, à direita.

55 Figura 29: A primeira linha mostra a tipografia Roxane na sua versão final; a segunda linha, o

equilíbrio entre os seus espaços internos e relacionais; e a terceira linha a consistência das suas

contraformas internas. (Gluth, 1999, p.246)

56 Figura 30: Comparação entre as formas das letras t, f e l.

56 Figura 31: Comparação entre as formas das letras l e t, h e n, e y e v.

57 Figura 32: À esquerda, a letra g, considerando-se apenas a altura-x em contraforma e, à direita,

considerando-se que o desenho dessa letra em double-story, em específico, pede uma solução flexível.

57 Figura 33: Acima, as letras a e e sem as contraformas quase fechadas. Nota-se como a palavra

parece descompensada. Abaixo, o poder de equilíbrio das contraformas quase fechadas na vesão

final.

58 Figura 34: Diferença entre as formas das letras r, c, n e u.

58 Figura 35: Alfabeto minúsculo da tipografia Dentro, outubro de 2018.

59 Figura 36: Comparação entre as formas de B, E, F, K e R e, em baixo, C, D, G, O, Q e U.

60 Figura 37: Comparação entre as formas de f, i, j, l e t.

61 Figura 38: Alfabetos maiúsculo e minúsculo da tipografia Dentro, outubro de 2018.

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INTRODUÇÃO

Dentre as múltiplas possibilidades investigativas que a tipografia oferece enquanto tema, o

presente estudo tem por objeto principal uma reflexão sobre a influência das contraformas

na formação e no reconhecimento da palavra tipográfica. A motivação para a escolha de tal

objeto recaiu na possibilidade de criação de uma tipografia que se apresentasse pelos espaços

interno e contíguo dos caracteres alfabéticos (latinos), ou seja, suas contraformas, visando o

reconhecimento pelo leitor, isto é, sua legibilidade.

Considera-se que a fonte, intitulada Dentro, produzida a partir de afirmações teóricas

relevantes sobre a natureza das contraformas, é um instrumento de potencialidade singular.

Sua aplicação em testes empíricos pode vir a atestar o objeto que rege o escopo deste trabalho

em diversos contextos.

A palavra como imagem está para além do universo da tipografia e imersa num

contexto muito mais abrangente, dentro dos limites do uso linguagem. No entanto, é

interessante notar como a passagem do registo caligráfico para o registo tipográfico

intensificou a consistência das formas dos signos alfabéticos na sua reprodutibilidade,

promovendo a familiarização dos leitores com a variedade das letras.

A forma das letras, assim como a de qualquer palavra por elas constituída, depende

de um contexto espacial para o seu reconhecimento, que é supostamente dado pelo seu

posicionamento, isto é, enquanto figura sobreposta num fundo. Nesse âmbito, o estudo da

contaforma ganha corpo e potencialidade frente ao desafio da legibilidade tipográfica, porque

os espaços de contraforma são – em teoria – os responsáveis por dar a cadência dos traços

constitutivos das letras, delimitando tanto a relação entre elas quanto a relação delas na

formação das palavras, a orientar o leitor no reconhecimento da palavra.

No momento em que esta investigação é feita, não há uma visão global sobre a real

contribuição da contraforma no que diz respeito à eficiência no reconhecimento das letras e

na legibilidade. Com frequência, o que se vê é a mera citação da contraforma como um aspeto

a ser considerado na otimização das formas tipográficas, muitas vezes, ligada a afirmação de

que quanto maior é a contraforma, melhor será a legibilidade, sem uma justificação mais

aprofundada. Também é comum presenciar uma sub-aplicação do conceito de contraforma

dentro do âmbito da tipografia, pela facto de sua associação muitas vezes limitar-se a aparecer

como parte dos estudos sobre anatomia tipográfica, a designar meramente os espaços

interiores de letras fechadas – um reducionismo lancinante do conceito.

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Tomando essas questões por base, o objetivo geral do estudo é compreender de que

modo a contraforma tem protagonismo no processo de formação e de reconhecimento da

imagem da palavra tipográfica. Bem como, especificamente, compreender mais sobre a

natureza estética da tipografia e as suas extrapolações no ato de leitura, contextualizando a

problemática da legibilidade no âmbito da contraforma; e ainda, se possível, justificar o

conceito de contraforma como elemento fundamental na busca da consistência tipográfica

de uma fonte, pela questão da formação da palavra na administração dos seus espaços.

Este trabalho de projeto enquadra-se dentro da área de concentração de investigação

em Design de Comunicação, na linha de “Design e Edição”, segundo a divisão oficial referida

pelo CIEBA – Centro de Investigação e de Estudos em Belas-Artes da Universidade de

Lisboa. A sua metodologia de investigação está concretizada sob a forma de um projeto final

do tipo teórico-prático.

A primeira parte, teórica, de caráter qualitativo e não intervencionista, será resultado

da Revisão Literária, que compõe o corpo de discussão crítica dos dois primeiros capítulos.

É importante destacar que a base teórica foi referencial quer para o desenvolvimento, quer

para a avaliação da parte prática.

A segunda parte, prática, possui um caráter experimental. Está descrita em detalhes

no escopo do terceiro capítulo e tem como resultado a tipografia experimental Dentro, feita a

partir das contraformas das letras. A tipografia é apresentada em peso regular, nos alfabetos

maiúsculo e minúsculo. Elaborou-se, ainda, como viés da prática, um espécimen tipográfico

da Dentro, legitimando assim o valor de experimento, além de explorar a sua utilização no

âmbito da palavra formada – uma das premissas para a qual a fonte foi pensada.

O primeiro capítulo é dedicado ao estudo da contraforma tipográfica. Pela

importância do conceito de contraste entre figura e fundo para o entendimento do que é a

contraforma, inicia-se com as perspetivas teóricas sobre a perceção visual dadas por Kurt

Koffka e a psicologia da Gestalt, e por James Gibson, que presta importantes contribuições

para o estudo específico da perceção das formas.

Já as subdivisões dedicadas às contraformas das letras e das palavras são

complementadas pela definição dos papéis exercidos pelos espaços dentro e entre as letras,

e mantêm uma proximidade sensível com a teoria da escrita de Gerrit Noordzij e com o

conceito de contraforma tipográfica explorado por Fred Smeijers. Explora-se o conceito de

traço, proposto por Noordzij como a superfície escrita (ou impressa) da letra, em

contraposição ao fundo, que seria por excelência o parâmetro de comparação entre os

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diversos tipos de letra. Ainda nesse bloco, discute-se a palavra como unidade orgânica de

sentido e a relevância da cadência adequada dos espaços intermitentes ao traço.

No fim do primeiro capítulo, trabalha-se o conceito de imagem da palavra (word-

image), diferenciando-o do conceito de “forma da palavra” (word shape). Há também um

esforço no sentido de contradizer o uso do termo ‘imagem’, interpretado como ideia de

representação figurada, por reflexões introduzidas pelo tipógrafo Eric Gill e pelo filósofo

Vilém Flusser. A transição para o capítulo seguinte é trazida pela exposição da contraforma

como elemento fundamental na formação da imagem da palavra, afetando o seu

reconhecimento no processo de leitura.

O segundo capítulo inicia-se com a definição do conceito de legibilidade, em análise

das concordâncias e das divergências entre alguns dos autores mais influentes no campo da

tipografia, na tentativa de indagar se realmente existe espaço para experimentações com as

formas das letras. Para que seja possível tirar alguma conclusão a esse respeito, o segundo

item trata de especular sobre o conhecimento atual referente ao processo de leitura,

aprofundando explicações fisiológicas do funcionamento do olho no contacto com as letras.

Discute-se, a propósito, a preferência dos leitores pelas formas conservadoras e a sua relação

com os automatismos de leitura.

Passa-se, então, à proposição do que seria o repertório tipográfico e a sua função na

perceção das letras – pela semelhança entre as formas universais de um alfabeto, ou pela

diferença que existe entre os caracteres. Pela sugestão teórica dada por Jost Hochuli e Sofie

Beier, procura-se saber qual é o fator preponderante para alcançar a consistência no desenho

de um novo alfabeto.

Ao fim do terceiro capítulo, trata-se do poder de decifração da palavra, pela

observação da demora ou da rapidez no reconhecimento de uma letra, como uma variável

de significação da palavra escrita. Reflete-se sobre a busca de eficiência tipográfica em

contraposição ao conceito de adequação tipográfica.

O último capítulo diverge dos anteriores por ser principalmente descritivo, apesar de

também expositivo. Nele, apresentam-se os pressupostos teóricos por trás das escolhas

plásticas na elaboração da tipografia Dentro, como por exemplo o conceito de compensação

lumínica de Jost Hochuli e de equilíbrio de contraste em Emil Ruder.

Na parte dedicada à explicação da metodologia e do desenvolvimento dos alfabetos

maiúsculo e minúsculo, respetivamente, optou-se pela mesma ordem escolhida na execução

do trabalho prático. No caso específico da produção das minúsculas, foi preciso justificar

alguns dos modelos conceituais escolhidos na solução dos problemas encontrados. O

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capítulo encerra com uma breve discussão dos resultados obtidos, que é complementada pela

conclusão geral deste trabalho de projeto, no qual discute-se pertinência das primeiras

hipóteses e outras questões levantadas durante o processo de produção teórico-prático de

Dentro.

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1. CONTRAFORMA TIPOGRÁFICA

No famoso livro de Gerrit Noordzij, O traço: teoria da escrita, o autor argumenta que “[u]ma

letra é composta de duas formas, uma clara e outra escura” (2013, p.13), orientando as bases

da perceção em tipografia para a visualização da relação entre forma e contraforma. Entender

que a integridade de um caractere tipográfico não depende apenas da parte que será impressa,

é reconhecer que os espaços ditos vazios, dentro e entre as letras, são também formas que

constituem a face do tipo – mais exatamente o que será tratado no presente trabalho por

contraformas tipográficas.

O contorno que delimita a forma e a contraforma é um contorno comum entre

ambas. Se ele se desloca, não cria um vão, mas deforma-se em expansão ou contração: “[a]s

formas brancas determinam o lugar das formas pretas, mas essas formas brancas são

formadas pelas formas pretas” (Noordzij, 2013, p.21). Fred Smeijers também reitera essa

ideia em Contrapunção, ao afimar que as “(…) formas brancas fazem o segundo plano, as

formas pretas fazem o primeiro plano, e vice-versa. Mude uma, e a outra também muda”

(Smeijers, 2015, p.24). A chave dessa relação é, assim, o contraste, que será abordado em

duas acepções distintas: o contraste luminoso, advindo da perceção visual, e o contraste

tipográfico, proveniente no estudo da anatomia das letras, a demonstrar a

complementariedade que assumem para o estudo da contraforma.

1.1 Perceção visual e contraste

O estudo da perceção visual humana carrega grande impacto dos aspetos fisiológicos

envolvidos. Para que algo seja visto, é preciso que uma gama de funções biológicas exista e

esteja a funcionar bem: os olhos necessitam de estar abertos, com bom foco, nervos óticos

sadios e todo o trabalho neurológico que se sucede. O que precisa ser destacado, no entanto,

é que a perceção visual acontece através de estímulos exteriores ao sistema de visão per se:

“(…) perspective, light absorption, and reflection remain outside our organisms”1 (Koffka,

1936, p.79).

O clássico sobre a perceção visual, da autoria de James Gibson, The Perception of the

Visual World, introduz essa questão com primor. O autor explica que o estímulo visual

implica a chegada de luz à retina, ressaltando que “(…) the retina does respond to is

differential intensity in an adjacent order over the retina. The necessary condition for pattern

1 Tradução Livre (TL): “(…) perspetiva, absorção de luz, e reflexão permanecem fora dos nossos organismos”

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vision is an in-homogeneity of the set of hypothetical rays, not the rays themselves”2 (Gibson,

1950, p.64).

Esse mecanismo pode ser muito bem ilustrado num exemplo simples dado por Stuart

Gluth (1999), no artigo para a Visible Language, intitulado “Roxane, A Study in Visual Factors

Effecting Legibility”. Se uma página de texto for vista na ausência de qualquer iluminação,

as letras que existem sobre a sua superfície não poderão ser distinguidas. Se houver alguma

incidência de luz sobre essa página, será possível ver as letras. O que tornará possível a visão,

portanto, será a diferença no comportamento dos raios incidentes sobre a superfície do

papel, entre as áreas impressas e não impressas, criando o estímulo luminoso na retina (fig.1).

Figura 1: Figuração da perceção de uma página em um ambiente com ausência

de luz, à esquerda, e com presença de luz, à direita. (Gluth, 1999, p.244)

Gluth explica que quando nenhuma luz é vista ou quando o olho vê preto, nenhum

sinal é enviado para o cérebro; os sinais são enviados apenas quando nervo é excitado, e isso

só acontece quando olho deteta a luz (1999, p.243). Tal facto elucida a comunhão entre os

aspetos de absorção e reflexão de luz relacionados com o estímulo visual, ao passo que não

se pode falar de um sem tratar do outro. O olho são percebe a existência de variações de

tonalidade e cor, e não apenas o preto e o branco. Isso se dá porque a frequência e o

comprimento de onda dos espectros luminosos que atingem a retina mudam consoante o

tipo de material e de textura dos elementos que constituem o mundo visual, criando as

nuances percebidas. Assim, será a porção refletida na superfície dos materiais a responsável

pelo envio das informações, uma vez que é somente a luminosidade que pode prover os

sinais para a perceção do campo.

2 TL: “(…) ao que a retina responde é a intensidade diferencial em uma ordem adjacente sobre a retina. A condição necessária para a visão padrão é uma não homogeneidade do conjunto de raios hipotéticos, não os próprios raios.”

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Baseado na premissa certa, Gluth faz uma afirmação questionável, ao referir que é o

facto da porção branca da letra atingir a retina que converte o espaço negativo em

protagonista na leitura (1999, p.243). Há um equívoco nessa ideia, pois não se pode pressupor

que o espaço negativo será sempre a porção mais reflexiva de uma superfície. É preciso

considerar que buscar o espaço negativo de algo é propor uma visão de contraste sobre a sua

forma. Gibson explica que um elemento pode ser tido como branco ou preto apenas em

termos relativos (1950, p.65).

Os princípios da psicologia da Gestalt têm um peso expressivo no estudo dos aspetos

relacionais que permeiam a perceção visual e serão de grande valor para o presente trabalho,

por esse mesmo motivo. A coexistência de formas será sempre regida pela relação entre

forças de diversas naturezas que operam sobre as mesmas, determinando o modo como são

percecionadas. Kurt Koffka metaforiza essa questão como a relação entre dois líquidos de

tensões superficiais distintas, como por exemplo acontece com a água e o azeite:

The forces which segregate the oil from the other liquid are at the same time forces which hold the oil particles together (…). If we apply this to our problem of perceived form we must conclude that the shape of our ink blot or any other figure is the result of forces which do not only segregate the figure from the rest of the field but hold it in equilibrium with the field.3 (Koffka, 1936, p.132)

A dinâmica descrita por Koffka dá ensejo ao foco na perspetiva, que não será aqui

tratada da mesma maneira que é encontrada em conteúdos ligados à História da Arte. A

perspetiva inaugurada pelos renascentistas foi mais uma invenção técnica do que conceitual,

uma vez que a tridimensionalidade não é determinada apenas pela visualização do volume de

uma forma, mas também – e talvez antes disso – pela aparência de camadas de planos através

de formas sobrepostas num campo visual.

Gibson diferencia dois tipos de forma. Ele denomina forma profunda aquela que é

intrínseca ao objeto, independente da posição espacial do observador; ou seja, que será

definida objetivamente pelas suas características e não pela orientação em que se apresenta

de acordo com o ponto de observação de quem a vê. Já a forma projetada é aquela que um

objeto possui ao ser projetado em um plano. Nesse caso, o seu aspeto é determinado de

forma relativa, envolvendo características do ambiente, como o posicionamento do(s)

3 TL: As forças que segregam o óleo do outro líquido são ao mesmo tempo as forças que mantêm as partículas de óleo juntas (…). Se aplicarmos isso ao nosso problema da perceção da forma, devemos concluir que a forma de nosso borrão de tinta ou qualquer outra figura é o resultado de forças que não apenas segregam a figura do resto do campo, mas a mantém em equilíbrio com o campo.

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objeto(s) e do seu observador (1950, p.34). É importante efetuar uma distinção entre ambos,

porque o mundo visual apresenta-se em formas profundas, enquanto o campo visual é

constituído por formas projetadas.

O fenómeno da superposição dos objetos no campo visual não deve ser visto como

uma mera “sugestão” de profundidade, porque o ser humano tem noção de que um objeto

ao longe pode ser parcialmente oculto por um objeto próximo – mas a retina não (Gibson,

1950, p.142). O indício de como as formas se comportam em termos de distância, entre elas

próprias e entre elas e o observador, será dado principalmente pelo princípio de completude (ou

continuidade das linhas do contorno), como pode ser observado na Figura 2. A esse

propósito Gibson refere: “We can reasonably assume that, if objects tend to have regular

outlines, completeness, closure, or continuity tends to be associated with the near side of a

common contour and incompleteness to be associated with the far side”4 (1950, p.143).

Figura 2: Planos das formas e princípio de completude (Gibson, 1950, p.143)

Essa ideia é fortalecida na tipografia pelas pesquisas de Erdmann and Dodge, que,

em 1898, buscaram compreender se o reconhecimento dos caracteres seria feito através de

suas partes constituintes. Para isso, os caracteres foram desconstruídos numa sucessão de

traços, como por exemplo e , e submetidos a teste, concluindo-se que não eram

facilmente reconhecidos como 5 e k (Spencer, 1969, p.17). O resultado do teste faz pensar

4 TL: “Podemos razoavelmente assumir que, se os objetos tendem a ter contornos regulares, integridade, fechamento ou continuidade tende a ser associado com o lado mais próximo de um contorno comum e incompletude a ser associado com o lado mais distante”.

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que mesmo que esse algarismo e essa letra tenham sido ancestralmente fixados através da

produção de traços consecutivos (o que não é o caso da tipografia), a imagem unificada de

cada um deles é garantida pelo princípio de completude referido, pois os contornos que

pertencem ao traço são regulares, favorecendo o indício de que pertencem ao mesmo plano.

Smeijers afirma que “(…) os desenhos de tipos [typefaces] são somas de partes” (2015,

p.33). Essas partes das quais Smeijers fala, no entanto, não se referem às partes das letras

apresentadas nas pesquisas de Erdmann e Dogde, mas sim à forma e à contraforma

tipográficas. Emil Ruder, no clássico do design Typographie, explica, de modo assertivo, a

relação entre áreas impressas e áreas não impressas, mostrando o caminho para a

compreensão de que as letras são mais que a mera soma dos seus traços.

Typographical symbols printed on paper capture, activate and regulate light; they can be comprehended only in conjunction with the unprinted areas. The printed value evokes its counter­value and the two together determine the overall form. The unprinted area is not an undefinable vacuum but an essential element of what is printed.5 (Ruder, 2009, p.52)

Por essa razão, o cariz relacional que marca o entendimento da perceção do campo

visual deve ser levado em consideração também no estudo das formas tipográficas. A

tipografia é uma projeção, mediada por forças de absorção/reflexão de luz e

união/segregação de planos. Como projeção, a natureza de um fundo tende a não se

diferenciar da natureza dos outros elementos da composição, portando-se como mais um

desses elementos (Gibson, 1950, p.38). Esse é o principal motivo pelo qual deve considerar-

se a contraforma, em conjunto com a forma, como parte constituinte do tipo da letra.

É importante destacar que a perceção nítida desses diferentes planos não é feita de

modo simultâneo, como pode parecer . A amplitude visual percecionada pelo olho é o efeito

de uma coleção de observações específicas conseguidas através de movimentos oculares

exploratórios, que tendem a fixar-se em pontos de atenção (Reis, 2000). A preferência do

olho em fixar-se em certos pontos é função da cognição e depende diretamente do tipo de

informação que cada indivíduo está — ou tende a estar — à procura (Solso, 1994 apud Reis

2000). Essa recolha informacional é, portanto, seletiva e sequencial. Todavia, por ser feita de

modo tão rápido, cria a impressão de que o foco do campo visual é genérico e amplo. Bons

exemplos dessa dinâmica são as figuras ambíguas provenientes dos estudos sobre ilusão

ótica. A indeterminação interpretativa do Vaso de Rubin (fig. 3), entre a silhueta de uma taça

5 TL: “Símbolos tipográficos impressos sobre o papel capturam, ativam e regulam a luz; Eles apenas podem ser compreendidos quando em conjunto com as áreas não impressas. O valor do impresso suscita o valor do fundo não impresso e os dois juntos determinam a forma total. A área sem impressão não é um vácuo indefinível, mas um elemento essencial do que está impresso.”

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ou as silhuetas de dois perfis diametralmente opostos, ilustra bem como o que é visto

depende desses estímulos específicos e como, por sua vez, esses estímulos obedecem a regras

de assincronia, pois não será possível enxergar o vaso e os perfis concomitantemente.

Figura 3: Exemplo do que seria um Vaso de Rubin

Ver-se-á que essa relação de espaços interpretativos entre figura e fundo no âmbito

da tipografia, tem início ainda no desenho de cada glifo mas, inevitavelmente, estende-se à

composição das palavras, linhas e a todas as manchas de texto. Portanto, para entender os

fundamentos que regem uma forma tipográfica é preciso ter em atenção o estudo da sua

contraforma, uma vez que são faces igualmente valiosas de uma mesma moeda.

1.2 Contraforma na letra

Em se tratando de letras (e outros tipos de caracteres tipográficos, tais como algarismos e

sinais), o termo contraste é um vocábulo da anatomia tipográfica com definição bastante

específica. É empregado para denotar a diferença de espessura nos traços de uma mesma

letra. Quanto à sua qualificação, pode dizer-se que o contraste é médio, grande ou nulo

(Ferrand, Bicker, 2000, p.28), conforme mostra a Figura 4.

Figura 4: Exemplos de contrastes que podem ser considerados,

respetivamente, moderado, grande e nulo (Noordzij, 2013, p.14)

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Para entender a relação entre contraste e contraforma, torna-se imprescindível

considerar a diferenciação entre os três tipos de contraste dada por Gerrit Noordzij na sua

teoria da escrita6, na qual o autor descreve as propriedades das formas das letras através de uma

precisão paramétrica (2013, p.11), isto é, de modo a que seja possível determinar e comparar

os valores de tamanho e orientação do que o autor reconhece como o traço da letra.

Translação: o contraste dos traços é resultante da mudança de direção do traço em si, porque o tamanho e a orientação do contraponto são constantes.

Rotação: o contraste dos traços é o resultado não apenas das mudanças de direção do traço, mas também das alterações na orientação do contraponto. O tamanho do contraponto é constante.

Expansão: o contraste é obtido pela mudança do tamanho do contraponto. A orientação do contraponto é constante. (Noordzij, 2013, p.27. Destaque do autor)

O traço, em Noordzij, define-se pela superfície aparente da escrita, enquanto o

contraponto de um traço é a ligação entre um ponto qualquer do contorno de um traço e a

sua contraparte respetiva (2013, p.21). A descrição desse termo, que tem tanto destaque na

classificação de Noordzij, parece demasiado vaga. No entanto, é o facto de que não é fácil

definir a orientação e o tamanho do contraponto de forma assertiva quando se olha para um

traço (2013, p.33) o principal argumento de Noordzij para a importância que o “branco”

assume no estudo das suas formas: “A forma produzida não permite qualquer conclusão

definitiva a respeito do traço. Assim são as formas pretas do desenho de uma letra (e de

tipografias). Elas só podem ser definidas a partir do espaço branco da palavra” (Noordzij,

2013, p.34).

Figura 5: A aparência de um traço pode ser produzida de muitas formas sem que seja

possível definir, pelo resultado, como o traço foi feito. (Noordzij, 2013, p.33)

6 É importante ressaltar que na essa teoria da escrita, defendida no livro O traço: teoria da escrita, Gerrit Noordzij leva em consideração que a tipografia também é um tipo de escrita – mecanizada e sistematizada visando reprodutibilidade. Ele argumenta que “[d]o ponto de vista tipográfico, os tipos são uma ramificação da escrita (…). O tipógrafo apenas pode trabalhar com a escrita que está disposta em uma fonte” (2013, p.11); e ainda denuncia que “[o]s estudos das letras tipográficas e a pedagogia oportunamente deixam de lado, negligenciam ou ocultam os verdadeiros fatos porque a visão que essas disciplinas têm da escrita está ligada ao entendimento de que a letra tipográfica e a escrita manual informal são autônomas” (2013, p.18).

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Noordzij, na sua teoria, defende que a parametrização entre as diferentes formas de

uma mesma letra será dada, então, pelas proporções relativas das áreas brancas. O autor

atesta que “(…) toda a comparação requer um ponto de vista privilegiado que torna as coisas

comparáveis. A única coisa que os vários tipos de escrita têm em comum é o branco das

palavras. Esse ponto de vista universal vale igualmente para a escrita manual e a tipografia”

(2013, p.15).

No seu Ensaio sobre tipografia, Eric Gill parece ter associado a esse ponto de vista

privilegiado o que chamou de nudez da letra:

Quando um A não é um A? Ou quando um R não é um R? É claro que para qualquer letra, há uma espécie de norma. Descobrir essa norma é a primeira coisa a fazer. (…) Porém, tal como há uma norma para a forma das letras – o corpo nu, por assim dizer, das letras – há também uma norma para a roupagem das letras; ou melhor, há muitas normas, dependendo do lugar e do propósito para que as letras são usadas. (Gill, 2003, pp.73-74)

A perceção de que um A é mesmo um A, através do reconhecimento das suas formas

fundamentais em diferentes “roupagens”, é o ponto de partida (e também de chegada) na

construção do desenho de uma fonte tipográfica. Smeijers assume o domínio da contraforma

como a pedra angular da construção das formas das letras: “O que faz de uma letra uma letra,

e de uma palavra uma palavra? É uma velha história que não se pode deixar de contar. Tudo

depende de consciência e respeito pelas formas entre e dentro das letras” (Smeijers, 2015, p.24).

Figura 6: Presença comum do corpo “nu” de A e R, mesmo “vestidos”

de algumas diferentes “roupagens” (Gill, 2003, pp.77,79).

lq’QD6 GI lq’QD6 G C

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Os autores não estão a falar de aspetos divergentes sobre a construção das letras. Isso

fica claro quando se olha para os exemplos expostos por Gill, caracterizados como uma única

imagem, na Figura 6.

O que torna os diversos desenhos de uma mesma letra similares são, de facto, as

partes que delimitam o glifo, tanto internamente quanto externamente – ou seja, as suas

contraformas. Assim, a liberdade formal do design da letra estaria limitada apenas pelo nível

de reconhecimento do caractere, que comummente designa-se por legibilidade. Por sua vez,

esta dependerá do poder associativo (ou dissociativo) com formas familiares,

pontencialmente dada pela contraforma que a letra oferece ao leitor.

O termo contraforma, amplamente utilizado no escopo deste trabalho, pode referir-

se aos espaços tanto internos quanto externos que delineiam o traço da letra. Fred Smeijers,

em Contrapunção, propõe uma sistematização dos tipos de contraforma no âmbito da

tipografia:

O espaço dentro de um caractere pode ser divido em sub-categorias. Há o espaço ou contraforma fechada, definido de forma estrita: como no o ou no p. O segundo tipo é a contraforma quase fechada: como no n ou a [a]. E o terceiro tipo é a contraforma aberta: como no c ou z. (Smeijers, 2015, p.30)

Como a primeira linha da citação adverte, Smeijers refere-se somente aos espaços

interiores ao traço que compreende a superfície da letra. O autor aborda a questão dessa

forma, não por descuido para com as contraformas externas às letras, mas porque os espaços

tipográficos mudam de categoria quanto à sua natureza externa ou interna conforme a

disposição que assumem na formação de uma palavra:

Não é tão difícil colocar os caracteres lado a lado corretamente quando eles possuem contraformas fechadas ou quase fechadas. E quando essas formas são muito simples e conseguem perceber-se facilmente – então isso é simples e fácil. As coisas ficam mais difíceis quando os caracteres com contraformas abertas precisam de ser encaixados. (Smeijers, 2015, p.30)

As contraformas quase fechadas que possuem aberturas laterais, tais como o k e o x,

e as contraformas abertas (em geral) têm uma situação limítrofe diferente das contraformas

nas letras que possuem barras verticais e/ou barrigas – características que delimitam bem os

espaços dentro e entre as letras. Nesses dois primeiros casos, uma certa parte do espaço que

pertence ao interior da face aberta de um caractere é também o espaço que o separa do

caractere seguinte. O problema só consegue ser solucionado se se considerar que essa área

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tem uma dupla função e será interpretada como espaço interior e exterior ao mesmo tempo

(Smeijers, 2015, p.32)

Como se pode notar, na subcategorização de Smeijers não entram os caracteres sem

qualquer espécie de contraforma interna, como é o caso, por exemplo, do l, do i, do j, do t e

do r. A predominância da forma de haste dos traços nessas letras faz com que as suas

delimitações sejam exclusivamente asseguradas pelas contraformas externas. Em particular,

esse tipo de situação demonstra o caráter relacional dos elementos que constituem qualquer

composição tipográfica, ratificando a premissa da Gestalt de que o todo é de facto mais do

que a soma das partes bem como outras questões de perceção visual.

Noordzij comenta na sua teoria da escrita que algumas letras, tais como as minúsculas

o, s, l, d, p, u, n, b, q e z, podem ser escritas ou lidas se rotacionadas à 180º, sem qualquer

prejuízo no processo de reconhecimento exclusivamente sígnico. A mudança ocorre apenas

no âmbito do significado: “O significado de p e d e o significado de u ou n não dependem da

forma das letras, mas apenas da minha posição em relação à forma. (…) Agora um d não é

apenas um p rotacionado, mas é também um b refletido” (Noordzij, 2013, p.63).

Isso acontece porque a contraforma interna tem um valor de espaço construtivo que

garante a forma da letra nos exemplos dados. Nesses casos, o que permite posicionar a letra

em relação ao seu observador é a contraforma externa e a interação que ela tem com o meio.

A partir dessa lógica, entende-se com mais nitidez que, pelo menos no que diz respeito ao

alfabeto latino, os “(…) caracteres não significam muito sozinhos, então são colocados juntos

para fazer palavras” (Smeijers, 2015, p.24).

O processo de construção de uma palavra, através do uso de caracteres tipográficos,

possui uma particularidade que contribui para a tendência de se pensar a tipografia letra a

letra:

Quando estamos fazendo carcteres que não são tipos, o conteúdo da mensagem à qual se deseja dar forma já é conhecido. Neste caso, estamos dando forma a palavras pré-definidas (…). Alguém que desenha um tipo não possui essa informação pré-definida. A sua tarefa é assegurar que o resultado tenha boa aparência, não importa qual língua ou quais palavras forem compostas nesses caracteres. (Smeijers, 2015, p.29)

Como foram projetados para reprodução, os caracteres tipográficos são desenhados

individualmente para que possam combinar-se em palavras. Portanto, é a palavra que toma

o protagonismo como unidade orgânica (Noordzij, 2013, p.15). Esse grau de distinção é dado

à palavra porque ela mantém a premissa de significar algo, de tal forma, que um conjunto de

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caracteres que não possua um significado atribuído numa dada língua é considerado uma

pseudopalavra.

A letra impressa tem por finalidade básica formar uma palavra para ser lida. As letras

que são postas lado a lado para que se componha uma palavra são formas de natureza

diferentes e, no entanto, precisam de ser arrumadas de forma harmónica para garantir sua

inteligibilidade: “What the typographer has to do first and foremost is to sort out and

organize things which are of a very disparate nature”7(Ruder, 2009, p.14). Para tal, é

indispensável pensar os espaços entre as letras – que serão também responsáveis por

determinar os limites que definem onde começa e acaba uma palavra.

1.3 Contraforma na palavra

Abordar o conceito de contraforma no contexto da palavra é, acima de tudo, considerar que

a unidade orgânica que determina a aprensão do seu sentido só pode ser garantida quando

se combinam dois aspetos que definem a sua formação: o espaço que será percebido como

intervalo entre as letras e o espaço que será percebido como intervalo entre as palavras. Essa

relação de diferenciação fica mais didática quando se compara a palavra escrita com a palavra

falada, pois apesar de serem formas de linguagem díspares, a questão do ritmo é fulcral em

ambas.

Noordjiz explica que “[n]a linguagem falada no dia a dia, ritmo significa regularidade

em intervalos de tempo. Os intervalos não são exatamente iguais em tamanho e forma, mas

são idênticos em valor. Na escrita, o ritmo não é uma estrutura temporal, mas uma questão

espacial” (2013, p.43). Pode dizer-se, então, que a duração da linguagem falada e o uso de

espaço na escrita vão marcar tanto o início como o fim de uma palavra. O que não fica tão

evidente é que, particularmente na escrita, a regulação desses espaços é tão substancial que

uma pequena variação pode trazer desequilíbrio e inadequação, modificando o sentido

previsto.

Está claro que as composições “demais” e “de mais” são distintas. A diferença entre

ambas está no ritmo dado pelo espaço entre a letra e e a letra m. Quando esses exemplos são

compostos foneticamente, conta-se com um intervalo de tempo diferenciado para fazer a

separação em cada situação. Esse intervalo é usado como espaço no plano visual, com o

7 TL: “O que o tipógrafo tem de fazer em primeiro lugar é separar e organizar coisas que são de natureza muito desigual”

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objetivo de adequar a composição visual à unidade de sentido, e assim garantir a

compreensão da palavra.

Apesar da sua simplicidade, o exemplo destaca que existe uma proporcionalidade

entre o espaço que faz as letras pertencerem a uma palavra e o espaço entre as letras que

servem de fronteira entre uma palavra e outra. Essa proporção entre as letras e entre as

palavras não pode ser negligenciada, pois caso o espaço seja excessivo ou diminuto, a

interpretação da palavra ou, até mesmo, da frase na qual se encontra é comprometida:

Quando os intervalos de um conjunto rítmico são separados por figuras mutuamente discrepantes, elas próprias são intervalos do conjunto rítmico (…). As formas brancas [entre as letras] são constituídas somente pela combinação de letras; não há uma simples medida de seu tamanho, e derivam quase incidentalmente dos traços pretos que requerem tanta atenção. É por essa razão que dou tanta ênfase às formas brancas de uma palavra. (Noordzij, 2013, p.44)

O fator agregador das letras que constituem uma palavra é o vazio que as intercala.

O que parece ser um espaço sem função, ‘vazio’, é na verdade responsável pela “manutenção

do equilíbrio das formas brancas” (Noordzij, 2013, p.14).

Emil Ruder também valoriza o que designa por “áreas não impressas”, ressaltando o

poder coesivo desses espaços: “The space between the typographical symbols becomes a

field of forces whose invisible lines run crisscross between the printed elements. The

ornamental power which may be inherent in the unprinted spaces must be detected and

emphasised in full”8 (2009, p.52). O autor explica que, por essa razão, o designer de tipos

deve efetuar um balanço constante entre a forma e a contraforma no processo de desenho

da letra. Trata-se de uma sugestão preciosa porque “[t]he various effects obtained by the

combination of letters are determined by the interplay of the white of the counter and the

white of the set width.”9 (Ruder, 2009, p.52)

Smeijers destaca que o valor ótico das contraformas entre os caracteres precisa de

corresponder ao valor ótico das contraformas internas, porque ele conta como uma

superfície tal qual o traço (2013, p.30). O grande desafio é fazer com que as diferentes formas

que caracterizam a composição de uma palavra possuam esse mesmo valor ótico. A

importância dessa paridade também é referida da obra de Noodzij, no qual o autor destaca

que o facto de esses intervalos precisarem de ser iguais em valor não invalida a diferença de

8 TL: “O espaço entre os símbolos tipográficos tornam-se um campo de forças cujas linhas invisíveis entrecruzam-se com os elementos impressos. O poder ornamental que tende a emanar das áreas não impressas deve ser detetado e enfatizado na íntegra.” 9 TL: “(...) [o]s diversos efeitos obtidos pela combinação de letras são determinados pela relação entre o branco da contraforma interna com o branco da distância entre as letras.”

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tamanho e de forma entre eles (2013, p.43), pois a ênfase está na perceção visual e não em

valores matemáticos de área superfícial. Na Figura 7, apesar da diferença subtil, a forma que

se encontra entre o a e o l e entre o a e o m é um bom exemplo visual do aspeto referido por

Noodzij.

Figura 7: Equilíbrio entre contraformas internas e externas dentro das palavras

A boa administração dos espaços na composição de uma palavra também

correlaciona o equilíbrio dos traços em relação ao equilíbrio dos espaços. Pela lógica do

espaço negativo, a forma encontrada entre as contraformas internas e adjacentes às letras que

constituem uma palavra são os próprios traços: as formas “pretas” e “brancas” são

codependentes. Se por acaso o traço de uma letra for descompensado em relação aos outros,

de nada valerá o esforço de equilíbio dos espaços entre e dentro das letras, porque a palavra

parecerá deformada (fig.8).

Figura 8: Ritmo tipográfico arruinado não só pela falta de equilíbrio entre os espaços internos e adjacentes

às letras, como também pela falta de ritmo entre esses e o contraponto das hastes (Smeijers, 2015, p.27).

Aliás, é importante lembrar que em tipografia o erro é sempre expandido, com

imensa repercussão, devido às naturezas combinatória da linguagem e reprodutiva da técnica.

Smeijers compila, na imagem exemplificativa da Figura 8, praticamente todos os erros que

podem ocorrer na provisão do ritmo tipográfico, deixando explícito o quanto essas falhas

podem afetar a compreensão de um texto.

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Portanto, se o ritmo dado pelos espaços não for aceitável, será difícil formar uma

palavra, mesmo que a sequência das letras que a compõem esteja correta (Noordzij, 2013,

p.43). A cadência dos espaços é tão sensível que “[o] mínimo distúrbio do ritmo parece ser

suficiente para que as palavras se distingam como unidades rítmicas” (Noordzij, 2013, p.48).

A força da palavra dependente das relações aqui descritas, de tal forma que é muito

mais fácil ler uma “pavarla desoerdanda” (palavra desordenada) que uma “pa l av r ae s p

a çad a” (palavra espaçada). É provável que assim aconteça porque, na leitura, o

reconhecimento de uma palavra é dado mais pelo padrão das formas de seus traços e espaços,

do que pela ordem das letras que a constituem. Esse assunto inscreve-se, portanto, no

conceito de imagem da palavra.

1.4 Imagem da palavra

É essencial que se entenda de maneira correta o que se quer dizer com imagem da palavra,

pois parece ser um conceito incompreendido, dado a sua constante má utilização. Com

frequência, o termo é vinculado a duas definições equivocadas. Uma delas é a confusão com

a locução ‘forma da palavra’ (word shape), amplamente usada nos estudos sobre

reconhecimento das letras, visitado em específico no capítulo 2. O outro equívoco é

correlacionar o conceito de imagem da palavra com a ideia de representação, em vez de

vinculá-la à ideia de associação.

A expressão é exaustivamente utilizada na teoria da escrita de Noordzij, em três

capítulos do ensaio O traço, dedicados à reflexão sobre a formação e consolidação da imagem

da palavra. Smeijers é outro autor que aborda o conceito, em Contrapunção, utilizando-o como

base de um dos seus argumentos principais: a premissa de que a consistência das formas

internas das letras traz força à imagem da palavra (2015, p.25). Pelo conteúdo dos autores de

referência, interessados nos espaços adjacentes aos traços das letras, já se pode ter um

pequeno vislumbre do que se quer dizer com imagem da palavra.

A ideia de palavra, como uma unidade orgânica de representação de sentido, não é

congénita ao nascimento da escrita. Como Noordzij lembra, num primeiro momento “a

escrita é logográfica – cada sinal (…) representa uma palavra. Depois disso, a escrita torna-

se silábica – cada sinal (…) representa uma sílaba. Finalmente, a escrita é fonética – cada

sinal (…) representa um som” (Noordzij, 2013, p.50). Nos textos que utilizam a escrita

chinesa, que é logográfica, não há marcas de separação entre as unidades de sentido, mesmo

quando o sentido é feito através de combinações de logogramas. Aliás, o estabelecimento

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da palavra vista como uma unidade tão pouco coincide com a emergência da escrita

fonética.

Robert Bringhust, em A forma sólida da linguagem, aborda um bom exemplo. O autor

compara o mesmo trecho, em grego, de um poema de Parménides, escrito em três épocas

distintas: por volta de 500 a.C., na época do autor do poema; em 400 a.C., na época de Platão;

e uma visão mais moderna que remonta, pela sua aparência, ao século XVIII (2006, p.34).

Na parte superior e no meio da Figura 9, pode observar-se que tanto a versão original como

a da época de Platão não possuem qualquer tipo de separação entre as palavras, mesmo

pertencendo a uma escrita fonética. É possível que, antes de surgir o interesse em marcar o

fim e o início de uma palavra com espaços diferenciados, as primeiras transformações na

escrita fonética estivessem relacionadas com questões bastante mais basilares, como a

organização do sentido da escrita nas linhas e a alguma lógica de formação de períodos

sintagmáticos.

Figura 9: Comparativo de três versões de um mesmo alfabeto (grego), de cariz fonético. Não é possível

distinguir as palavras nas versões mais ancestrais – acima e ao centro da imagem. (Bringhust, 2006, p.34).

A imagem da palavra é o resultado de um processo de organização da escrita que

orienta a composição das letras segundo determinados ritmos espaciais, com o objetivo de

demarcar visualmente o conjunto de caracteres que compõem uma palavra. Essa noção

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difere da ideia de forma da palavra, tratada nos estudos psicolinguísticos como o contorno

próprio que cada palavra possui com o seu bloco específico de caracteres.

Considera-se que ‘terno’ e ‘temo’ são palavras cujas formas são demasiado parecidas.

Contudo, é incorreto afirmar que as imagens dessas palavras são semelhantes. Seria um desvio

conceitual confrontar duas imagens de grafias distintas. A imagem de uma palavra só pode

ser comparada no mesmo contexto de arranjo de letras (Noordzij, 2013, pp.44-5, 55, 67-8),

de preferência no mesmo tipo de caixa de um mesmo alfabeto10 e com a mesma altura-x11.

Se essas condições forem observadas, pode comparar-se imagens de uma mesma palavra,

ainda que feitas através de técnicas de inscrição diferentes:

[a] qualidade de imagens visuais é, em primeiro lugar, uma questão de configuração própria e não o resultado de uma certa técnica ou produção. (…) Uma imagem de palavra pode ter muitas qualidades diferentes. Pode-se indicar uma diferença entre desenhar caracteres tipográficos e desenhar caracteres para outros processos. (Smeijers, 2015, pp.28-9).

O segundo equívoco também deve ser desfeito: a imagem da palavra não é a

proposição da palavra como uma figura, como uma representação de si mesma. O

substantivo ‘imagem’ usado no termo tem um valor associativo – como um determinado

conjunto de características que integra a aparência de uma grafia específica. Gill já tinha em

atenção que “[a]s letras não são imagens nem representações. São, mais ou menos, formas

abstractas” (2003, p.49). Todavia, as letras possuem a função essencial de formar as palavras

– e as palavras possuem significado.

O que se deve ter em consideração é que observar a palavra sob o ponto de vista de

uma figura é uma tarefa que a Semiologia propõe, pois considera a palavra escrita como uma

das possibilidades representativas de um significante para um determinado significado,

perfazendo o binómio necessário para a composição do respetivo signo. Nesse sentido, ter

uma palavra como imagem torna-se alheio ao campo de estudo da tipografia, pois releva

aspetos sobre a forma das letras e foca-se na função linguística contextual (Ferreira, 2014

apud Brideau, 2013).

10 Em Ensaio sobre tipografia, Eric Gill diferencia os conjuntos de letras específicos das maiúsculas, das minúsculas e das itálicas como três tipos de alfabeto romano distintos. Ele argumenta que “(…) embora estejamos familiarizados com eles, nem sempre é fácil descobrir as suas diferenças essenciais. Não é uma questão de inclinação, de serifas, de espessura ou de finura. (…) As diferenças essenciais estão, obviamente, entre as formas das letras.” (2003, p.87) 11 Fred Smeijers adverte que “para se fazer uma comparação verdadeira entre desenhos de tipos, é preciso fazer com que as alturas-x sejam iguais. Só então há um terreno neutro a partir do qual se pode fazer um julgamento.” (2015, p.38)

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O filósofo da comunicação Vilém Flusser, em O mundo codificado, expõe uma visão

bastante original sobre a relação entre imagem e texto, que pode ajudar a elucidar algumas

questões propostas nesta secção sobre a imagem da palavra. Para tal, será necessário

remontar, novamente, às origens da escrita:

Se alguém examinar certas plaquetas mesopotâmicas poderá ver que o propósito original da escrita era facilitar o deciframento das imagens. Aquelas plaquetas contêm imagens impressas com selos cilíndricos e símbolos “cuneiformes”, nelas riscadas com buril. Os símbolos cuneiformes formam linhas que dão obviamente significado à imagem que acompanham. Eles “explicam”, “recontam” e “contam” sobre aquilo, e assim o fazem desenrolando a superfície da imagem em linhas, desembaraçando o tecido da imagem nos fios de um texto (Flusser, 2017, p.136).

Flusser defende que esse “desenrolar” da linha de um texto é um processo de fixação

de uma cena, que se mantém moldável até que a linha acabe e se perceba bem como se

articulam os conceitos correspondentes a cada símbolo isolado (2017, p.129). Deduz-se,

então, que a ideia representada por cada símbolo – ou por cada palavra, para ser menos

anacrónico – será passível de variação de acordo com o contexto dado pelos outros

elementos que o/a circundam:

Uma imagem é uma superfície cujo significado pode ser abarcado num lance de olhar: ela “sincroniza”a circunstância que indica como cena. Mas, depois de um olhar abrangente, os olhos percorrem a imagem analisando-a, a fim de acolher efetivamente seu significado; eles devem “diacronizar a sincronicidade” (Flusser, 2017, p.127).

É por essa razão que, diferentemente do texto, uma palavra nunca poderá ser vista

como imagem: ela não consegue fixar um significado sozinha. A partir da lógica de Flusser,

pode-se chegar à pertinência de uma boa imagem da palavra. O respeito pelos espaços

internos das letras e das palavras tem um impacto visual direto na estrutura de um texto,

como foi mostrado na Figura 7 (p.17).

Falar em imagem da palavra, especificamente no campo da tipografia, confere ainda

mais pertinência aos cuidados que devem ser tidos em conta para garantir alguma qualidade

aos espaços calculados entre as letras, bem como à distância que será aplicada quando se

pressionar a tecla de espaço. O problema reside no facto do designer de tipos não poder

controlar a forma como as suas criações vão ser utilizadas. Os editores de texto eletrónicos

são ferramentas populares, que se especializam, a cada versão, na manipulação visual de

palavras e caracteres de modo progressivamente mais profundo. O acesso a esse tipo de

modificações acaba por minar o equilíbrio dos espaços pré-configurados, criando

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inconsistências e alterando desastrosamente a qualidade das imagens das palavras no texto

(Smeijers, 2015, p.29).

A força da imagem da palavra é construída a partir de caracteres que logram êxito em

manter uma relação otimizada entre as suas contraformas internas e externas, garantindo um

bom equilíbrio dos espaços na composição das palavras e das linhas:

Essas dimensões são todas definidas, em última análise, pela contraforma. Contraformas que são muito estreitas não dão ao leitor tempo suficiente (frações de segundo) para processar o que viram. Nós podemos ter a sensação de que estamos olhando não para letras, mas para códigos de barra. Tipos que são muito largos nos dão tempo demais, e nós nos esquecemos do que acabamos de ler. Aí temos que soletrar tudo para compreender a mensagem (Smeijers, 2015, p.35).

A relevância da contribuição dos designers de tipos com as suas novas proposições

estéticas não está em apresentar caracteres inovadores, mas na criação de caracteres que se

conjuguem numa imagem da palavra diferente das que já estão disponíveis (Smeijers, 2015,

p.29), sempre a considerar a imagem da palavra como meta. Se espaço entre as letras for mais

estreito, as contraformas internas destacam-se (Ruder, 2009), o que pode criar um

desequilíbrio entre o traço e o branco. Noordzij (2013, pp.55-7) explica que os escribas

medievais apertavam os traços que compunham as letras, estreitando a contraforma. Até

onde a equivalência foi possível, garantia-se uma boa imagem da palavra; mas a partir do

momento em que esse equilíbrio deixou de ser exequível, as palavras mergulharam na

uniformidade de suas partes e consequentemente numa maior falta de legibilidade.

Desse modo, vê-se que a qualidade, ou a força, da imagem da palavra é assegurada

pelos mesmos princípios de perceção que afetam as relações dentro de qualquer campo

visual. Faz-se necessário o equilíbrio entre as formas e espaços, porque “[q]uanto menos esse

princípio de equilíbrio for observado, menos legível será o resultado, não importa como ele

foi feito” (Smeijers, 2015, p.25). Por conseguinte, a consecução de uma boa imagem da

palavra é imprescindível para a facilidade no reconhecimento dos caracteres e das palavras,

isto é, para a leitura, pois “[s]e quisermos tornar um texto legível, precisamos respeitar certos

fatos básicos sobre visão e percepção” (Smeijers, 2015, p.27).

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2. LEGIBILIDADE

Para perceber como a leitura pode ser influenciada pela qualidade da imagem da palavra, é

preciso considerar o que se sabe sobre esse processo quotidiano de decodificação alfabética.

Cabe também compreender como as formas das letras mantêm correspondência com a

memória e o reconhecimento das palavras, e como esse mecanismo cumpre uma dinâmica

retroativa com o próprio ato de ler.

Jost Hochuli pauta, em O detalhe na tipografia, que a receção da tipografia acontece em

duas gradações: “em primeiro lugar, como verdadeira leitura, ou seja, como conversão no

cérebro da sequência de letras vista e, em segundo, como visão pictórica (na maioria das

vezes, não percebida conscientemente), que desencadeia associações com algo já visto

anteriormente” (2013, p.10). Esse será o tema discutido a seguir, examinando-se o primeiro

escalão como matéria da legibilidade e do processo de leitura, e o segundo como matéria do

repertório de familiaridade das formas tipográficas e do poder de decifração da palavra.

2.1 Definições

No consagrado livro de Robert Bringhurst, Elementos do estilo tipográfico, a palavra

“legibilidade” aparece dez vezes, figurando inclusive como um dos princípios sobre os quais

o livro trata (2005, p.16), sem, contudo, ser definida em qualquer uma de suas páginas. Tal

como Gerard Unger aponta em Enquanto você lê, essa omissão é usual em inúmeros autores

no campo da tipografia, que “tendem a não ir muito além de enfatizar a importância da

legibilidade. Poucas vezes se explica o porquê de ela ser importante, ou mesmo o que de fato

é a legibilidade” (2016, p.18).

É por essa razão que a definição de legibilidade avançada por Walter Tracy, no seu

Letters of Credit (1986, p.30-1), ainda mantém um certo destaque, apesar do tempo em que foi

feita. Tracy explica que a qualidade do que é legível, em tipografia, é constrangida por dois

critérios que funcionam numa dinâmica retroativa: a legibilidade e a leiturabilidade12. A

distinção desses dois termos é delicada até mesmo no inglês, a língua que cunhou os

conceitos de legibility e readability. O facto é que ambos sugerem o sentido de “facilidade de

leitura”, embora haja uma diferença significativa entre eles.

12 O uso da tradução do termo readability como leiturabilidade tem frequência em livros sobre tipografia traduzidos na Língua Portuguesa do Brasil e também no Castelhano (cf. edição original de Hernerstosa et al., 2014[2012]). Possivelmente, trata-se de uma tradução mais exata de que outras utilizadas esporadicamente, tais como “conforto” ou “compreensão”, pois compartilha a mesma lógica de agregação entre “leitura” e “habilidade” (read + ability) que o conceito em inglês explicita (Ferreira, 2014, p.46).

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Para tornar as diferenças nítidas, Tracy define legibilidade como o grau de

reconhecimento da letra, sendo uma questão diretamente ligada à perceção das suas formas

e, por isso, ao tamanho do caractere. O termo leiturabilidade, por sua vez, está associado ao

conforto visual durante a leitura, e é visto como uma qualidade valiosa para a compreensão

de textos longos (Tracy, 1986, p.31).

A distinção que Tracy faz é clara, e através dela já se pode supor que a leiturabilidade

não será objeto de contemplação para uma pesquisa que se constrange ao âmbito da

formação das palavras, como acontece no escopo deste trabalho. Como já foi anteriormente

referido, são os conceitos imanentes da legibilidade que serão assumidos como fatores

relevantes na perceção e na construção da qualidade do que é legível, quer numa só letra,

quer em combinações de letras, ou seja, na palavra.

Apesar de apresentar uma definição, Tracy faz o conceito de legibilidade depender

do tamanho das letras, como posteriormente desenvolve: “It is a matter for concern in text

sizes, and especially in such special cases as directories, where the type is quite small. In

display sizes legibility ceases to be a serious matter; a character which causes uncertainty at 8

point will be plain enough at 24 point.”13 (1986, p.31). No entanto, as afirmações de Tracy

podem ser rebatidas. Eric Gill, no Ensaio sobre tipografia, aborda a legibilidade através de um

caso particular de reconhecimento de caracteres que parece ser independente do corpo da

letra:

Um quadrado ou uma figura oblonga com os cantos arredondados, pode, por si mesmo, parecer-se mais com um O (…) do que outra coisa qualquer, mas ao lado de um D, feito segundo os mesmos princípios, não há muito por onde reconhecer qual é um e qual o outro; e à distância, os dois são indistinguíveis. (Gill, 2003, p.71)

Existem duas questões que merecem destaque no comentário de Gill e que vêm

tornar mais complexas as variáveis que determinam a condição de legibilidade, para além da

questão do tamanho do corpo da letra, sugerida por Tracy. A primeira questão advém do

facto de que uma letra será legível não apenas em si mesma, mas dentro de uma lógica formal

que permeia o desenho de todo o alfabeto do qual faz parte – uma consistência interna à

fonte e uma familiaridade externa à fonte. A segunda, tem a ver com o emprego que será

dado a determinado desenho tipográfico, sugerindo – através da referência indireta que faz

13 TL: “É uma questão que se preocupa com tamanhos de texto e, especialmente, em casos particulares, como diretórios [i.e. páginas amarelas e guias comerciais], onde o tipo é muito pequeno. Nos tamanhos de exibição, a legibilidade deixa de ser um assunto sério; um caractere que causa incerteza em 8 pontos será bastante claro em 24 pontos.”

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à distância de leitura, por exemplo – que existiriam outras variáveis inerentes à legibilidade

que seriam difíceis de controlar.

Jorge dos Reis explica que a “(…) legibilidade de uma letra depende em primeiro

lugar das suas qualidades intrínsecas e em segundo lugar da forma como vai ser usada. Uma

boa letra mal-usada pode, nessas condições, ser menos legível do que uma letra pobre, mas

bem usada” (2013, p.280). Posto isto, coloca-se um dos maiores desafios a qualquer estudo

que paute o tema da legibilidade: a delimitação do alcance do seu conceito. A enumeração

dessas variáveis não parece ter sido despropositada, pois tal como é sugerido, não é possível

que uma letra pobre e mal-usada tenha qualquer hipótese de ser considerada legível. A

garantia de legibilidade, assim, não deve estar vinculada ao bom uso, isto é, à remediação de

uma forma de baixa legibilidade, mas “em primeiro lugar” às “qualidades intrínsecas”.

Levando-se em conta que a construção da imagem da palavra tem por base as formas

e as contraformas, o foco será a busca desses atributos específicos das letras e dos seus

desdobramentos ao nível combinatório na formação dos vocábulos. Aplica-se, aqui, uma

conceção mais próxima da que foi dada por Unger, bastante ligada à microtipografia, na qual

a “[l]egibilidade refere-se à facilidade em se distinguir uma letra da outra: se, por exemplo, o

I maiúsculo e o l minúsculo são suficientemente diferentes. (…) Em outras palavras,

legibilidade refere-se às formas das letras e aos seus detalhes” (2016, p.18-9).

É importante ressaltar que o conceito não abarca somente a ideia de diferença, mas

também de similitude ou, como se diz mais frequentemente, de familiaridade, porque a

legibilidade também “corresponde simplesmente àquilo a que estamos habituados” (Gill,

2003, p.71). Portanto, a legibilidade diz respeito tanto a um processo de reconhecimento, de

definição do caractere, como de não reconhecimento – o que acontece perante algo que é

tão habitual que acaba por passar despercebido, gerando assim uma convicção sobre a forma

de uma letra específica:

O pingo no i também pode assumir uma variedade de formas, e outras partes de letras, da mesma maneira, tendem a não ser uniformes. Quando se chama a atenção de leitores para isso, eles geralmente ficam surpresos e às vezes incrédulos. (Unger, 2016, p.13)

Esse aspeto é mais importante do que pode parecer. Todo o argumento, no sentido

de que é possível perceber as diferenciações, ou similitudes, no contexto semântico, deve ser

levado em consideração, até porque a “condição para aquilo que chamamos de leitura é a

palavra” (Noordzij, 2013, p.47). No entanto, não se pode perder de vista que as letras figuram

um sistema escrito, um código, artificialmente sustentado a partir da aprendizagem, como

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meio de sedimentação da linguagem humana (Bringhurst, 2006, p.15). O respeito pelas

formas alfabéticas antecede o início da tipografia no ocidente:

A escrita com caneta, mesmo já no século IV, mostra, de forma muito clara, que o escriba não tinha qualquer ideia de inventar formas de letras ‘para canetas’, mas estava simplesmente a fazer, tão bem como sabia, com uma caneta, o que julgava ser a escrita comum. (…). Ele não estava a inventar letras; estava a escrever formas já inventadas (Gill, 2003, p.52).

A acuidade na reprodução das formas alfabéticas a longo termo, traz à tona a

dimensão teleológica da escrita em termos formais: sua inteligibilidade, isto é, seu grau de

decifração, perpassando a variação temporal sobre o registo. As formas das letras estão

firmemente gravadas nas nossas mentes, caso contrário, não seria possível reconhecê-las

(Unger, 2016, p.10), inclusive na passagem do tempo. Segundo o influente designer Kars

Gerstner, “[a] função está estabelecida, o alfabeto inventado, e as formas básicas das letras

são imutáveis” (1964, p.29 apud Unger, 2016, p.18).

No ensaio Experimental typography. Whatever that means, Peter Bi’lak recomenda cautela

na exploração das formas das letras:

Does type design and typography allow an experimental approach at all? The alphabet is by its very nature dependent on and defined by conventions. Type design that is not bound by convention is like a private language: both lack the ability to communicate.14 (Bi’lak, 2005)

As palavras de Bi’lak são um bom caminho para entender que o mesmo movimento

de constrição criativa também é um esforço de democratização informativa. As convenções

a que se refere dizem respeito à maneira como acontece a materialização de um texto, como

se apresentam os seus caracteres, a pontuação, os numerais e outros glifos, sem esquecer os

espaços entre as letras e as palavras. Tal como Tschichold pontua, “a tipografia é feita para

todos, não deixa espaço para mudanças drásticas” (1975, p.10 apud Unger, p.24).

Antes, porém, de assimilar de modo mais assertivo o que se entende por “mudanças

drásticas” no âmbito da tipografia, bem como o protocolo que cada letra do alfabeto carrega

no seu número avultado de versões, será imprescindível perceber como acontece a leitura e

a forma como o olho humano percebe essas formas gráficas.

14 TL: O design de tipos e a tipografia permitem, de todo, uma abordagem experimental? O alfabeto é, por sua própria natureza, dependente e definido por convenções. Design de tipos que não é vinculado às convenções é como uma linguagem privada: ambos não têm a capacidade de se comunicar.

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2.2 Especulações sobre a leitura

Os paradigmas científicos que envolvem os estudos sobre como se dá o reconhecimento dos

caracteres ou como acontece a leitura são inconclusivos (Unger, 2016; Hochuli, 2013; Beier,

2009), apesar de existirem pesquisas envolvendo a tipografia e o processo de leitura desde os

fins do século XVIII (Spencer, 1969).

Os tipógrafos e investigadores do campo do design costumam criticar o facto de os

estudos, feitos sob a perspetiva da optometria e da psicologia cognitiva, não levarem

frequentemente em consideração variáveis como os desenhos de letra utilizados e a

compatibilidade de alturas-x entre os corpos estudados. Sophie Beier, na sua tese Typeface

Legibility: Towards defining familiarity, expõe o seu assombro perante alguns artigos mais

relevantes sobre esta temática, citados no seu trabalho:

A striking fact is that even when being through on all other aspects of the methods applied, only a few of the studies contain any information on the typeface applied or discuss its influence on the final result, and none of the papers discuss matters such as spacing, stroke contrast and weight.15 (Beier, 2009, p.39)

O facto é que a leitura é um tópico científico muito exigente por ser um processo

que engloba, além das capacidades fisiológicas de receção visual no indivíduo, outros aspetos

socioculturais de significação que dificultam a possibilidade de uma conclusão global.

Existem ainda diferenças no modo de ler, não só pelas questões idiossincráticas que essa

competência envolve em cada um (assim como cada qual tem a sua letra quando aprende a

escrever manualmente), mas também pelas diferentes exigências que cada leitura

circunscreve de acordo com a sua finalidade, isto é, um rótulo não será lido exatamente do

mesmo modo como será lido um romance.

Apesar disso, acredita-se que, embora essas experiências de leitura envolvam

contextos e propósitos destoantes, a sua parcela fisiológica, ou seja, a forma de

funcionamento dos olhos e do cérebro é praticamente a mesma. Como refere Unger: “em

todos os casos, é, ao fim e ao cabo, uma questão de reconhecer letras e palavras e de convertê-

las em linguagem e compreensão” (2016, p.59-60).

Para entender como acontece a leitura é particularmente importante ter em conta que

a visão humana, apesar de ampla, tem um foco bastante delimitado. A retina é constituída

15 TL: Um facto surpreendente é que, mesmo quando estão sendo exaustivos em todos os outros aspetos dos métodos aplicados, apenas alguns dos estudos contêm qualquer informação sobre o tipo de letra aplicada, ou discutem sua influência no resultado final, e nenhum dos artigos discute assuntos como espaçamento, contraste do traço e peso.

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por uma camada de recetores fotossensíveis de dois tipos: os cones e os bastonetes. Os

bastonetes são acromáticos e hipersensíveis à deteção de luminosidade, sendo bastante úteis

para “enxergar” no escuro; enquanto os cones são os responsáveis pela deteção de cores e

de nitidez, exigindo-se sempre uma luminosidade mínima para o seu bom funcionamento

(Unger, 2016, p.56).

Pelas razões que foram demonstradas no capítulo anterior, não é possível ler palavras

no escuro, o que já sugere o destaque das células tipo cone nesse processo. Essas células

também delimitam duas áreas distintas no funcionamento da visão: a área que garante uma

visão mais nítida, designada por fóvea, localizada no meio da retina e que contém a

concentração de cones; e outra área, chamada parafoveal, que parte dessa centralidade e se

estende até à zona mais periférica do campo de visão, responsável por uma visão

progressivamente mais embaciada (2016, p.56). Considera-se preferível dizer que a leitura

usa a alternância entre a fóvea e a parafoveal, pelas razões que se verá a seguir.

A ação dos olhos durante a leitura é dividida em movimentos sacádicos e

movimentos de fixação. Quando os olhos percorrem uma linha de texto, em vez de fixarem

letra a letra, ou palavra a palavra – como se poderia supor pela forma como a escrita ou a

fala acontecem –, fixam-se em trechos que distam até dezoito caracteres um do outro,

chamados sacádicos (Rayner, Pollatsek, 1989, p.126; Wendt, 2000, p.10 apud Unger, 2016,

p.57). Entre esses saltos, há a fixação, que contempla em nitidez apenas dois ou três

caracteres, e é somente durante esse momento que a informação lida é registada pelo cérebro

humano (Hochuli, 2013, p.8). Apesar do foco da fixação pairar sobre um número bastante

limitado de caracteres, especula-se que as outras letras do intervalo sacádico são percebidas

pelo olho através da visão parafoveal e também se constituem como informação relevante

recolhida durante a pausa de fixação (fig.10).

Figura 10: Movimentos de leitura e especulação de como seriam percebidas as palavras na

região favoal e parafoveal durante as fixações (adaptado de Hochuli, 2013, p.9)

Unger explica que:

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[n]a área gradualmente desfocada, à direita da fixação, na região parafoveal, ainda há muito o que se pode identificar: espaços, ascendentes e descendentes e outros componentes óbvios do campo de visão. Uma palavra vista apenas vagamente, e que, portanto, é identificada apenas parcialmente, pode vir a ser a próxima palavra a ser fixada, o que diminui a duração da próxima fixação. Quanto mais curtas e conhecidas as palavras percebidas parafovealmente, melhor elas contribuem para a leitura. (Unger, 2016, p.57-8)

A questão da identificação parafoveal é compatível com a perspetiva de que as letras

e as palavras nos oferecem formas familiares. Os leitores iniciantes, por exemplo, fazem

sacadas curtíssimas e fixam-se diversas vezes numa mesma palavra (Unger, 2016, p.56), ao

passo que, mesmo para leitores fluentes, é muito comum que as palavras muito longas, ou

menos usadas, ou nunca vistas, diminuam a extensão das sacadas e aumentem o tempo de

fixação (Unger, 2016, p.57). Essas reflexões incrementam a relevância que a visão parafoveal

possui na leitura.

É dentro dessa dinâmica de apreensão de toda a informação possível, não só a

respeito do que está nítido, mas também do que está baço, que as experimentações

tipográficas como a que Stuart Gluth usou para desenhar a sua fonte Roxane, mostram-se

particularmente elucidativas na discussão sobre a legibilidade. O autor argumenta que a

legibilidade é uma qualidade tipográfica imprescindível, em primeiro lugar porque grande

parte da população não possui visão corrigida (por problemas económicos ou de negligência),

mas também porque a leitura é um processo que tende a se automatizar, e as boas ou más

influências que se configuram no ato, eventualmente, diluem-se num processo que se

pretende irrefletido (Gluth, 1999, p.237). Após desenhar o que considerou ser o resultado

mais legível, Gluth submeteu a tipografia Roxane e outras tipografias conhecidas e

amplamente utilizadas a uma série de processos de reprodutibilidade que deteriorassem a

nitidez da forma (fig.11):

Figura 11: Dois casos de deterioração por reprodutibilidade

ensaiadas para testes com a Roxane (Gluth, 1999, p.250)

250 VISIBLE LANGUAGE 33·3

Soft focus, caused by reproduction (or by the viewer) can have a dramatic effect, both in this example where it has caused the letters to fatten (see figure 28) and in this example where it has caused them to thin out with parts of them disappearing (see figure 29) .

. l Bembo Bauer Bodoni Garamond New Baskerville Times New Roman ' l

• I

Bembo Bauer Bodoni Garamond New Baskerville Times New Roman

aaaaa aaa ' Frutiger Roman Gill Sans Helvetica Light Optima News Gothic Frutiger Roman Gill Sans Helvetica Light Optima News Gothic

a a a a Roxane Univers 55 Roxane Univers 55

figure 28 figure 29

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30

A deterioração técnica criada por Gluth pode ser posta em paralelo com a

desfocagem que ocorre na parafoveal, ilustrando a importância de formas consistentes e de

traços bem construídos na replicação de qualquer desenho tipográfico num alfabeto

sistematizado. Contudo, é necessário ter em conta que durante uma fixação, o olho regista

não as letras isoladas, mas sim as palavras (ou parte das palavras), e “(…) é evidente que, no

processo de leitura, estas desempenham um papel especialmente importante. (…) As letras

isoladas são desenhadas sempre em vista de seu efeito na palavra” (Hochuli, 2013, p.24).

No processo de leitura, há muitas ressalvas em relação à hipótese de o

reconhecimento das formas poder ser dado, em algum nível, pela palavra como um todo

(Beier, 2009; Larson, 2004; Unger, 2016), mas é de comum acordo entre os estudiosos que

as “[p]alavras que ficam armazenadas na memória visual do leitor são lidas com mais rapidez

do que palavras desconhecidas” (Hochuli, 2013, p.8). Unger, por exemplo, que acredita que

a forma visual completa da palavra não tem importância, argumenta que a perceção de uma

imagem na leitura de uma palavra tipográfica tem a sua raiz no facto do cérebro atribuir

unidades de sentido completo às palavras. Contudo, logo de seguida o autor atesta: “é

somente quando estamos aprendendo a ler que absorvemos toda a representação tipográfica

de uma palavra: como leitores experientes, reconhecemos os significados das palavras a partir

de partes pequenas da notação tipográfica” (Unger, 2016, p.65).

Observa-se aqui um embate lógico: se o que é apreendido pelo leitor iniciante é a

representação integral da palavra, como é que essa representação deixa de ter qualquer

influência na automatização futura? É um facto conhecido que as fixações ocorrem, com

muita frequência, no início das palavras (Aitchison, 1999, p.134-136 apud Unger, 2016, p.65;

Hochuli, 2013), o que nos pode levar a crer que essa informação nítida e parcial é suficiente

para o reconhecimento da palavra através da ativação da memória linguística. No entanto,

como acabámos de ver, a visão parafoveal tem um papel ativo durante as fixações. Pode ser

que não se adivinhe a palavra apenas pela parte nítida que se fixa, mas – e ainda mais provável

– pelo indício da palavra como unidade, mesmo numa imagem baça. Afinal, lê-se sem

nenhuma confusão as palavras ‘conto’ e ‘controlo’, mesmo que o ponto de fixação tenda a

conter as mesmas letras.

A importância da memorização visual da palavra no processo de leitura, pode ser

uma das razões que leva os leitores assíduos a um maior conservadorismo quanto à forma

das letras:

Em geral, esse leitor de textos mais longos, sobretudo o leitor de livros, comporta-se em relação à fonte de modo conservador. Ele rejeita as experiências com as letras (e qualquer outras unidades da tipografia em

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detalhe). A esse leitor, não interessam as letras em si. Ele não quer saber de caracteres “bonitos” ou “interessantes”, e sim de registar o sentido das palavras visualizadas através deles. Por isso, alterações essenciais na forma dos tipos usados no texto contínuo não são desejáveis. (Hochuli, 2013, p.10)

Hochuli expõe aqui a tensão que existe na leitura entre as componentes gráficas e

linguísticas. Uma postura conservadora geralmente é adotada apenas quando a tipografia é

percebida como um meio para prover o registo escrito de uma palavra. Nesse caso, como

diria Beatrice Warde (1955), a tipografia deveria se apresentar tal como um cálice cristalino.

Deve-se ter em mente que, sob o ponto de vista da legibilidade, se for necessário fixar durante

mais tempo o texto para descobrir uma determinada letra ou palavra, a atenção que os

aspetos gráficos suscitam será automaticamente subtraída aos aspetos lexicais de

compreensão, o que diminuiria o aproveitamento de um processo de leitura.

Ler mais lento, porém, não significa ler pior. Tão pouco ler mais rápido é ler melhor.

Unger explica que quando um leitor já tem um nível avançado de automatismos de leitura, o

processo tende a ganhar um ritmo mais veloz, porque esse indivíduo conseguiria projetar as

expectativas semânticas para além do que estaria de facto a ler naquele instante. Esse tipo de

leitor, especula-se, lê e compreende a leitura que está a fazer não só pelo que o autor escreve,

mas por aquilo que ele mesmo já sabe ou supõe saber sobre o assunto (Unger, 2016, p.58).

Com isso, poder-se-ia dizer que os automatismos de leitura, que são falsamente

creditados somente quanto ao mecanismo de reconhecimento das letras e palavras,

transporiam os limites do aspeto gráfico de um texto, influenciando também o nível do

entendimento linguístico. Essas constatações reforçam, também, para o âmbito gráfico, a

ideia de que o que é lido, de alguma forma, são pistas, indícios, que funcionam como

catalisadores nesse jogo de associações.

O resultado dos experimentos do tabelião francês Maître Leclair, feitos em 1843,

podem ajudar na exploração dessa hipótese. Quando resolveu imprimir somente a metade

superior das linhas que compunham uma coluna, Leclair não tinha a intenção altruísta de

contribuir para os estudos tipográficos, mas apenas de economizar tinta (fig.12). No entanto,

Émile Javal, profícuo estudioso em oftalmologia e leitura, fez estudos sistematizados e

controlados envolvendo aspetos de legibilidade já por volta de 1878, e chegou a conclusões

que corroboram a tese de que Leclair não teria conseguido os mesmos resultados caso

optasse pela reprodução de apenas as partes inferiores das linhas.

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Figura 12: Impression mi-type, Maître Leclair, 1843 (Unger, 2016, p.62)

Outras empreitadas tipográficas, como o alfabeto mínimo pensado por Brian Coe

(fig.13), resultado de um experimento para determinar quanto poderia ser retirado da forma

das letras minúsculas sem que se comprometesse totalmente o seu reconhecimento (Spencer,

1969, p.62); ou ainda a tipografia Can you (and do you want to) read me?, de Phil Baines, para a

Revista FUSE 1 (fig.14) – comercializada atualmente sob o nome de FF You Can Read Me –,

mostram como a leitura de uma palavra será, de facto, algo como o desvelar de um indício.

Figura 13: Alfabeto minúsculo experimental mínimo, pensado por Brian Coe (Spencer, 1969, p.62)

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Figura 14: Poster para a Revista FUSE 1, Can you (and you want to) read me?,

Phil Baines. (Creative Review, 2015)

Como se pode notar, “[a]s letras e a tipografia nos dão informações quase

instantaneamente convertidas em linguagem e processadas de forma a produzir compreensão

e memória” (Unger, 2016, p.60) – e isso de alguma forma explica o porquê de ser tão

importante o respeito por algumas características que funcionam como uma espécie de guia

para a perceção das formas das letras.

2.3 Repertório tipográfico

Tomando-se como consideração toda a questão discutida na secção anterior, vê-se que o

cuidado com o desenvolvimento dos desenhos tipográficos extrapola a sua função

comunicativa, explicitando também uma função metalinguística, referindo-se ao seu próprio

universo, que deve ser levada em conta nas discussões que envolvem legibilidade.

A tipógrafa Zuzana Ličko afirma que os “[d]esenhos de tipos não são intrinsecamente

legíveis. Na verdade, é a familiaridade dos leitores com as formas que confere legibilidade a

elas. Estudos já mostraram que leitores leem melhor aquilo que leem sempre” (Ličko, 1990,

p.12 apud Unger, 2016, p.38). Com base nisso, pressupõe-se, então, que há formas basilares

que devem ser respeitadas nos desenhos, e que tais formas contemplam um conjunto de

atributos que evidenciam a familiaridade e permitem o reconhecimento imediato.

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Quando Eric Gill expõe as suas considerações sobre os desenhos de tipos, ratifica

essa ideia ao afirmar categoricamente que “[l]etras são letras. A é A, e B é B. O criador das

letras do século XX não tem de ser um inventor de formas de letras mas, simplesmente, um

homem de inteligência e boa vontade” (Gill, 2003, p.67). Existe, portanto, algo em cada

caractere que não deve ser de modo algo reinventado, sob pena de prejudicar a função

metalinguística que foi referida e de tornar o caractere impossível de representar a própria

letra a que se propõe.

Houchuli faz observações muito pertinentes a esse respeito, quando diz que “os

olhos de quem lê não devem ficar ‘presos’ a uma forma inabitual. Além disso, os símbolos

de um alfabeto devem falar a língua formal comum a todos os símbolos; entretanto, por

outro lado, cada letra deve nitidamente se distinguir uma das outras” (Hochuli, 2013, p.13).

Nessa fala, Houchuli defende que para se alcançar formas de letra familiares é necessário

observar dois aspetos: deve existir familiaridade entre as formas universais do alfabeto e entre

os caracteres que constituem o mesmo alfabeto. É sobre essas bases que aqui se explicita

esse tema.

A familiaridade das letras no seu sentido mais lato, ou seja, em termos universais, é

uma preocupação anterior às imposições técnicas da tipografia, como foi explicitado no fim

do primeiro capítulo e no início do corrente. Qualquer desenho em que se apresente uma

determinada letra deve parecer-se com qualquer um dos desenhos existentes para essa mesma

letra, independente do atributo envolvido: condensado, negrito, inclinado, monoespaçado,

excêntrico etc. Qualquer A deve ser como um A qualquer, caso contrário, não será

reconhecido como tal. Esse esforço de padronização da escrita remonta a milénios atrás, ao

mesmo tempo que perpassa qualquer desenvolvimento da técnica para a sua realização – e

esse é um ponto muito destacado por Gill, que sugere a seguinte reflexão:

No tempo dos Romanos, digamos, no ano 100 d.C., quando um homem pronunciava a palavra ‘letras’, é provável que pensasse imediatamente no tipo de letra que estava habituado a ver nas inscrições públicas. Embora existisse toda a espécie de outros géneros de grafia (em tabuinhas enceradas, em papiro etc.) o género da grafia formal mais comum era a inscrição em pedra. A consequência era que, quando fazia letras ‘tão bem como podia’, eram as letras das inscrições em pedra que tomava por modelo. Não dizia: Esta & aquela ferramenta, ou material, servem ou prestam-se para fazer tais e tais formas. Pelo contrário, dizia: As letras têm tais e tais formas; logo, quaisquer que sejam as ferramentas e os materiais que tenhamos que usar, devemos executar essas formas tão bem quanto as ferramentas e os materiais o permitirem. Esta ordem de procedimentos sempre foi a seguida. A mente é o árbitro na questão das formas das letras, e não a ferramenta ou o material. (Gill, 2003, p.51)

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Partindo de um ponto de vista pragmático, Hochuli sugere que existiriam proporções

corretas, tanto das versais como das minúsculas, historicamente fixadas. Para o autor, as

maiúsculas têm por protótipo a Capitalis monumentalis, uma forma de escrita desenvolvida no

império romano, enquanto as minúsculas devem manter-se próximas da Scriptura humanistica,

o estilo caligráfico corrente na Itália renascentista (Hochuli, 2013, p.14). A boa observação

desses critérios seria imprescindível num desenho tipográfico que se propõe familiar e legível.

Sophie Beier faz uma aproximação semelhante ao primeiro dos dois aspetos de

familiaridade que Hochuli refere, quando trata da teoria dos modelos coincidentes16, na qual o

cérebro tem guardado um formato predefinido para cada letra do alfabeto. Quando um

indivíduo é confrontado com uma forma não familiar, o cérebro procura a que melhor se

encaixa naquela nova forma e admite a que seja a mais adequada (Beier, 2009, p.35-36).

A autora também explana uma segunda teoria, a teoria da comparação das características17,

que mantém muitos pontos em comum com o segundo nível abordado por Hochuli. Nessa

teoria, ao invés de perceber o caracter por inteiro, o cérebro decodificaria somente a parte

responsável por manifestar a sua singularidade dentro do alfabeto (fig.15), aproximando-se

da ideia que Hochuli faz das “características distintivas típicas” (2013, p.20) inerentes a cada

letra.

Figura 15: Interrelações entre as letras sob a ótica da teoria da comparação das características.

Ilustração feita na tipografia Helvetica (Beier, 2009, p.35)

Assim, a familiaridade das letras dentro de um mesmo alfabeto não diz somente

respeito às semelhanças, mas também às diferenças, que determinam a identidade da letra

dentro de um conjunto de pares. Trata-se de um conceito que está bastante ligado à

16 TL de “template-matching theory” (Beier, 2009, p.34). 17 TL de “feature-comparison theory” (Beier, 2009, p.34).

SOFIE BEIER 2009, ROYAL COLLEGE OF ART [ 35 ]

The basic idea of the template-matching theory is that for each letter of the alphabet, the brain has stored a basic template of the letterforms. As we perceive a new shape, the brain goes through a series of templates to find the one that matches the best. This is a logical assumption when trying to understand the process of letter perception, and also the idea of the renowned ���3�������3 ����Ú�3 )�����G3 @2�3 Ù�?�Ú���3 2�3 Ø��Ù���3 �Ø3reading to a keyhole and its key, where the reader locates the basic skeleton form of the letter that then fits like a key into the ���2� �3��32�3�����ĝÙÚ���3M��������G3Yaa`NH3��@����32�3?Ú��3���� �?3@�232��32����3��32�@3�3��3Ú� �3

to explain the wide variations in typefaces and handwriting that we are capable of perceiving. Does it mean that the brain has a ���Ú�Ú�3�?� Ú�3Ø��3Ú3ĞÚ?���Ú�3f$ ’ and a simple Sans Serif fA’, or for all variations of handwriting? Even if the brain has some form of clean-up process of the shapes, it seems doubt-ful that a system like this can decide which part of a character �2Ú��3 ��3 ������Ú 3 Ú��3@2�Ù23 ��3 ��3 M,Ú��3C3 �2� ?Ú�G3 Ya_^c3%��@���3 Ya`Zc3�Ú����3C3#� Ú���G3 Ya`ac3!����@���3C3"ÚG3Yaa^c3�?�2G3ZXX\Nc32��3���� �?3 �Ú��3��3�32�3Ø�Ú���hÙ�?-parison theory.

����Ú�3�Ø3���Ù�����32�3@2� �3Ù2Ú�ÚÙ��G32�3�Ú��Ù3���Ú3��2���3the feature-comparison theory is that the brain decodes the dif-ferent features of the character individually. The analytic process is based on a perception of the characters as a range of small features where the elements are put together until a stage of identification occurs (fig.2).

Figure 2: The internal relation-ship of letters in the feature-comparison theory illustrated in Neue Helvetica

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consistência das formas das letras, uma qualidade que ao mesmo tempo agrega formas

díspares numa unidade gráfica, bem como dispõe as bases sobre as quais as divergências

formais podem ser construídas.

Pode-se perceber melhor essa questão no contexto dos estudos relativos à

legibilidade das letras isoladas. Hochuli cita o trabalho de Tinker, o qual concluiu que, com

frequência, confundem-se as letras: B com R, G com C e O, Q com O, M com W, c com e, i

com j, n com a, e l com j (Hochuli, 2013, p.20). O que levaria à confusão seria, justamente, a

aproximação das características gerais e uma amplitude reduzida entre as disparidades que

garantem as dissemelhanças. Em alguns desses casos, é possível perceber que o que

assemelha um caracter do outro não é tanto os seus traços, mas sim as suas contraformas

(como é o caso do n e do a, por exemplo), reivindicando, mais uma vez, a importância dos

espaços internos na construção das letras e a sua influência na persistência da familiaridade.

Uma outra ferramenta que elucida esse aspeto das características distintivas das letras

é a régua Stencil RUHA (fig.16), uma ferramenta pedagógica para o desenho tipográfico,

concebida pelos designers portugueses Ricardo Santos, Rúben Dias e Aprígio Morgado. A

régua coleciona como que partes de letras comummente encontradas no alfabeto latino, pelo

que cabe ao utilizador explorar as formas e combiná-las, encontrando o aspeto desejado para

cada letra..

Figura 16: Régua stencil RUHA (Tipos das Letras, s.d.).

De modo semelhante funciona o Super-Tipo Veloz (fig.17), desenhado por Joan

Trochut Blanchart e fundido em 1942 pela Fundición Tipográfica Iranzo, que possibilitou as

tipografias na Espanha do pós-guerra diversificarem a aparência de suas impressões a um

baixo custo. Pelas palavras de Gamonal Arroyo, “[s]e trata de un tipo ‘integral’ basado en

módulos con los diferentes trazos fundamentales y juego de remates y florituras que permite

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crear tipos de letras personalizados, ya sean con o sin serifas”18(2012, p.18). Dessa forma,

pela combinação versátil de diferentes “partes” das letras, formavam-se novos desenhos

tipográficos.

Figura 17: À esquerda, alguns dos módulos para a formação das letras no Super-tipo Veloz.

Ao centro, um material usado para promoção do tipo. Por fim, à direita, uma peça que usa

os módulos na construção de uma ilustração (Gamonal Arroyo, 2012, p.19-20.).

Através das formas de construção da letra que estão por trás da lógica modular desses

exemplos é possível experimentar as duas faces da familiaridade colocadas por Hochuli e

Beier: a força do modelo mental na forma inteira e as características diferenciadoras de cada

letra. As idiossincrasias formais que correspondem a cada letra levam a um questionamento

conveniente em tempos como os atuais, nos quais as ferramentas para o desenho de tipos

são progressivamente mais meticulosas: será que a qualidade tipográfica é uma questão de

precisão? A este propósito Hochuli refere o seguinte:

Como todas as outras figuras bidimensionais que são captadas por nossos olhos, as letras também estão sujeitas a leis ópticas. Por essa razão, determinantes para o julgamento de sua qualidade formal não são os instrumentos de medição, mas apenas os olhos saudáveis do ser humano (Hochuli, 2013, p.18).

É importante entender que, mesmo nos primórdios da tipografia, a consistência tem

mais afinidade com a organicidade das formas do que qualquer padronização rígida e

obstinada. Smeijers explica que os cortadores de punções evitavam “questões e situações

18 TL: “[s]e trata de um tipo ‘integral’ baseado em módulos com os diferentes traços fundamentais e um jogo de arremates e floreios que permite criar tipos de letras personalizados, seja com ou sem serifas”.

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demasiadamente minuciosas construindo uma espécie de dúvida visual: nenhuma borda reta,

nenhum canto afiado. As formas se tornam fáceis de manusear, fáceis de misturar e equilibrar

umas com as outras” (Smeijers, 2015, p.147)

Isso leva à reflexão sobre o equilíbrio entre a fidelidade formal dos caracteres e o seu

potencial de legibilidade. Hochuli defende que as “[n]ossas letras se desenvolveram

lentamente (…), elas se adaptaram à respetiva técnica de escrita, a seu instrumento, sua base,

às técnicas de produção e até ao senso estilístico dominante – menos em sua estrutura básica

do que nos detalhes” (Hochuli, 2013, p.10), o que de alguma forma vai ao encontro do

pensamento de Smeijers que, por sua vez, defende que os limites tipográficos não são limites

de técnica, mas limites de perceção – limites do sistema nervoso humano (Smeijers, 2015,

p.71).

Unger, numa tentativa de justificar o porquê de algumas experiências tipográficas

fracassarem, refere que as formas familiares sobrevivem por estarem conformadas ao próprio

processo automatização de leitura (2016, p.34). Isso quer dizer que o cérebro perceciona de

modo mais rápido o que chega através da visão com mais frequência, corroborando a visão

de que a familiaridade de uma letra (ou até mesmo de uma palavra) é resultado do contacto

recorrente com as características análogas das diferentes interpretações da forma do traço de

uma determinada letra (e, por efeito, de uma determinada palavra).

É precisamente nesse ponto que se encontra a pertinência do desenvolvimento

individual de um repertório tipográfico diversificado: uma tipografia experimental, em última

instância, alcançaria o mesmo objetivo da tipografia dita convencional – reforçar os detalhes

estilísticos específicos que constituem como que o corpo “nu” de determinada letra.

2.4 A palavra decifrável

Pesquisar sobre a capacidade que os leitores têm de reconhecer as formas das letras parecer

ser muitas vezes um exercício feito entre contrassenso. A pergunta lançada por Unger

exemplifica bem esse paradoxo que permeia as especulações sobre o assunto: “Será que é

possível inventar tantos desenhos não convencionais justamente porque as convenções são

tão fortes?” (Unger, 2016, p.77)

Talvez seja proveitoso começar por refletir sobre as convenções macrotipográficas,

que também podem ser incluídas no paradigma da familiaridade. É corrente a comparação

de uma página de um códice do século XV com uma página do último romance best-seller da

livraria mais próxima. A colocação dessa paridade entre ambos geralmente é utilizada para

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argumentar como a organização textual e a própria aparência da tipografia não sofreram

mutações expressivas ao longo de quase seis séculos.

Por outro lado, ao olhar para a página de um objeto editorial como o jornal (quer seja

impresso quer digital), por exemplo, hoje tão familiar, percebe-se que a tensão na leitura

dessa tipologia é maior se comparada ao livro na perspetiva anacrónica do parágrafo acima.

Atualmente a maioria das pessoas não deve apresentar problemas para selecionar e ler o que

lhe interessa nas páginas de um jornal impresso (talvez com um pouco mais de dificuldade

na versão digital), mas não seria exagero pensar que o jornal infundiu um padrão de leitura

que se distancia do livro em termos de decifração formal, pela complexidade da sua

organização hierárquica e fragmentada.

Nesse caso, embora o tipo de letra seja familiar, a disposição dos elementos não é. O

mesmo acontece com a forma poética de Mallarmé, ou ainda com outras experimentações

macrotipográficas que muitas vezes mantêm a convenção ao nível da palavra, mas não ao

nível da composição textual. A familiaridade da formalidade poética, então, dá lugar ao

estranhamento do posicionamento das palavras na página. O próprio percurso histórico das

diferentes tipologias sugere que a quebra de uma convenção pode ser o nascimento de uma

outra – não em substituição, mas em coexistência.

Esses exemplos podem ajudam a perceber, de maneira mais genérica, a força de uma

convenção gráfica e como ela é construída pela assiduidade no contacto. No meio dessa

perplexidade perante o que pode ser comparável ou incomparável, entre a novidade do atual

e a trivialidade do de sempre, está o que pode ser designado por repertório tipográfico em

seu sentido lato, porque “[t]odos os meios nos quais se apresenta um texto contribuem para

a construção dessa base de dados interna” (Unger, 2016, p.13). O repertório tipográfico

tratado aqui, no entanto, restringe-se ao nível da microtipografia.

Entre tantas variedades nos desenhos tipográficas, há sempre algo em comum, afinal

“[a] infinidade e a complexidade do público leitor de hoje (…) torna nosso alfabeto rígido e

irreformável” (Morison, 1962, p.78 apud Unger, 2016, p.24), fazendo com que a própria

tipografia, mesmo alimentada por diferenças estilísticas, seja a principal razão para a

permanência das letras como elas são. Como Unger especula na pergunta que abre este item,

é o seu uso diferenciado que possibilita algumas mudanças.

Ana Hatherly, na obra A reinvenção da leitura, publicada em 1975, trata sobre a questão

da legibilidade e da ilegibilidade num sentido mais amplo, mas com muita sensibilidade para

o assunto. A autora entende que “[p]ensar o problema da legibilidade/ilegibilidade do texto

(…) é próprio do escritor, que constantemente se defronta com o problema da escrita que

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cifra e da leitura que decifra.” (Hatherly, 1975, p.23). Trazendo a reflexão de Hatherly para o

cariz tipográfico, tem-se mais uma variável na conta da legibilidade, que seria o peso que o

ato de decifrar tem na significação de qualquer leitura.

Unger explica que, quando um designer foge das convenções corre o risco de ter um

texto menos fácil de ler (2016, p.34). Isso implicaria, como já foi visto, a perda de energia

para o entendimento do conteúdo que aquele texto veicula, prejudicando a eficiência da

leitura. Há quem defenda que o cunho sistémico não deve ser de modo algum negligenciado,

sob pena de descumprir o objetivo para o qual foi pensado: comunicar através das palavras.

Emil Ruder é rigoroso ao defender tal ideia: “Typography has one plain duty before it and

that is to convey information in writing. No argument or consideration can absolve

typography from this duty”19 (2009, p.6).

Em contrapartida, o polémico David Carson, certa vez advertiu os seus leitores para

não confundirem legibilidade com comunicação, sendo esta muito mais abrangente que

aquela (Unger, 2016, p.34-5). É claro que a compreensão do que está composto por meio de

letras depende da estabilidade das formas dentro de um limite aceitável, mas é preciso que se

reflita sobre o anseio de sempre trazer eficiência à leitura. Existe alguma razão que justifique

um texto que não seja pleno de legibilidade?

Hochuli propõe um equilíbrio lúcido entre elogiar ou depreciar o êxito de uma

tipografia no seu aspeto comunicativo, uma vez que “as fontes impressas têm de satisfazer

diversas exigências e cumprir diversas funções, determinada fonte não pode ser taxada, de

modo geral, como boa ou ruim.” (Hochuli, 2016, p.10). A multiplicidade de contextos nos

quais a palavra é empregada tende a amplificar não só a pertinência de tipos não tão legíveis,

como também a própria capacidade de decifração – pela complexificação crescente dos

repertórios tipográficos do leitor atual.

O senso de conveniência seria então mais forte que o axioma da transparência de

Warde (1955), a impelir o fazer tipográfico não só ao nível macrotipográfico, mas também

ao nível microtipográfico. Como pondera Smeijers, “[t]odos podem fazer o que bem querem;

cada atitude ou estilo tem o seu lugar. Assim o julgamento é difícil, e nós somos jogados de

volta aos fundamentos do corpo humano: os limites do corpo humano, da percepção

humana, da usabilidade.” (2015, p.180).

Ao mesmo tempo que as fontes mais conservadoras podem facilitar a fluidez textual

e a concentração na significação das palavras, as “fontes de difícil leitura, empregadas com

19 TL: “Tipografia tem, antes, um dever simples, que é transmitir informações por escrito. Nenhum argumento ou consideração pode absolver a tipografia desse dever”.

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economia e habilidade, podem atrair a atenção do leitor (do observador), chocá-lo, provocá-

lo, e assim induzi-lo a uma observação mais atenta e a registar o restante da informação

presente” (Hochuli, 2013, p.10). Como refere Unger:

Em cartazes, panfletos, camisetas, convites e folders (isto é, textos impressos somente para um público pequeno), as fontes mudam com frequência, o que permite identificar modismos e experiências recentes. Tão logo textos se tornam mais longos e se destinam a um público leitor mais amplo, no entanto, voltam os tipos tradicionais e a paz é restaurada. Essas modalidades contrastantes da tipografia andam de mãos dadas com as diferentes maneiras de se ler: pulando de um texto para o outro, ou do título para uma legenda por meio de uma ilustração – isto é, uma forma de leitura alternada com longos períodos de leitura concentrada. E no meio disso tudo, é claro, existem diversas maneiras de se ler, e incontáveis formas de tipografia. (Unger, 2016, p.36)

Questionar a familiaridade, mesmo que seja através da contração da legibilidade, é

trazer atenção. É, de certo modo, desafiar o leitor, sendo o ganho a própria expansão de suas

capacidades de reconhecimento na leitura, impondo ainda mais uma condição ao seu

reportório tipográfico. Muitas vezes a estranheza formal também é um argumento, um

argumento gráfico, porque tensiona a decifração e a compreensão das formas, bem como a

associação da parte decifrada ao significado explorado no texto.

Bringhust é sintomático no nome que dá ao primeiro ponto do primeiro capítulo do

seu best-seller Elementos do Estilo tipográfico, que introduz os primeiros princípios da tipografia:

“a tipografia existe para honrar seu conteúdo” (2005, p.23). Portanto, a tipografia não só tem

a função prática de permitir que o seu conteúdo seja compreendido, como também ambienta

graficamente esse conteúdo, numa espécie de coerência total: “É a maneira que lemos que

dá a medida para o design de livros, e não as tradições, ideologias ou opiniões de tipógrafos.”

(Willberg, Forssman, 1997 apud Unger, 2016, p.20)

A qualidade tipográfica, como se viu até aqui, não é um atributo conseguido de modo

arbitrário. No entanto, existem muitas variáveis que influenciam uma deliberação nesse

sentido, envolvendo não só o contexto e o tipo de leitura, como o tipo de leitor e as formas

tipográficas mais convenientes para cada finalidade. No meio deste panorama, o tipógrafo

tem “um papel, acima de tudo, pragmático, proveniente de sua familiaridade com os

desenhos de letras e os múltiplos fins para os quais são empregados” (Unger, 2016, p.15).

Em nenhuma das opções, entretanto, deve prejudicar-se a imagem da palavra ao

ponto de torná-la apenas uma figura, sob a pena de que a palavra deixe de ser uma palavra.

Existem desenhos de tipos que tendem a funcionar duplamente como comunicação verbal e

imagética, como Smeijers destaca, uma vez que as suas qualidades ilustrativas chamam a

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atenção por si só, o que pode levantar problemas de compreensão ou incoerência quando

mal utilizados (2015, p.33).

Existe, portanto, algo ainda mais preponderante do que a legibilidade no campo da

tipografia, que é o próprio senso de interceção entre a estruturação da imagem da palavra e

o poder comunicativo que ela possui. Esse será o cerne da pesquisa e do desenvolvimento

da fonte Dentro, tratada no capítulo a seguir.

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3. TIPOGRAFIA EXPERIMENTAL DENTRO

As discussões sobre contraforma e legibilidade que dominaram os capítulos anteriores

servem de referência à componente prática deste Trabalho de Projeto: a criação e

desenvolvimento da tipografia Dentro. Trata-se de uma tipografia de cariz experimental, na

qual o aspeto em interesse é a observação da relevância dos espaços internos das letras na

formação das palavras. As primeiras pesquisas20 e a elaboração de uma versão inicial da

tipografia Dentro antecedem o presente estudo.21

Na primeira versão, que se restringiu apenas às versais, não foi utilizado um programa

específico de design tipográfico, porque se tomou a opção de extrair as contraformas, através

do software Adobe Illustrator. As primeiras experiências foram levadas adiante como

Trabalho de Projeto, tendo-se decidido a confeção das letras de maneira a serem utilizáveis

enquanto tipografia digital. Como será possível ver através do desenvolvimento do capítulo,

o facto de editar a tipografia com uma ferramenta de edição mais maleável trouxe influências

sensíveis sobre os desenhos das letras. O software utilizado foi o Glyphs Mini, versão 2.0.1.

As razões que deram origem ao nome da tipografia Dentro são três: referência direta

aos espaços internos das letras; alusão aos espaços que constituem como que um campo de

forças no interior da palavra, entre as suas letras, tornando-a uma unidade orgânica; e a

insinuação da relação entre a memória visual e o processo de leitura, isto é, a natureza

contentora das letras nas palavras e, por sua vez, das palavras nos sentidos (corporais).

O que se seguirá neste capítulo diz respeito a todo o processo de aprimoramento da

primeira tipografia desenvolvida, à qual se acrescentou o incremento inédito do alfabeto em

minúsculas. A componente prática desta investigação é fruto da reflexão teórica efetuada nos

dois capítulos anteriores, embora apresente-se também como objeto crítico na avaliação da

aplicabilidade relativa de algumas das proposições sobre perceção visual ligadas às

contraformas.

20 As primeiras pesquisas deram origem ao artigo “Tipografia e Contraforma: a formação da imagem da palavra”, publicado pela Revista Educação Gráfica, em 2017, v.21, n.3. Pode-se obter acesso em: <http://www.educacaografica.inf.br/artigos/tipografia-e-contraforma-a-formacao-da-imagem-da-palavra-typography-and-counter-form-the-word-image-formation>. 21 A tipografia Dentro foi apresentada em comunicação, previamente, no 8.º Encontro de Tipografia, em novembro de 2017, ao qual também se submeteu um artigo – ainda não publicado pela Comissão Organizadora até o presente momento, mas que se encontra disposto neste trabalho como Anexo (p.68), para eventuais consultas de interesse.

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3.1 Pressupostos teóricos

A tipografia Dentro tem como base um pressuposto unânime que perpassa todos os modelos

de reconhecimento, que seria a ideia de indício. Seja ela do ponto de vista da letra ou do

ponto de vista da palavra, seja por comparação ou por coincidência, o reconhecimento dos

caracteres na leitura é possível, mesmo quando a letra está “incompleta”, como foi

demonstrado no alfabeto de Brian Coe (fig.13).

A prevalência do indício está claramente colocada quando existe êxito na leitura de

palavras feitas a partir de caracteres experimentais que apresentam formas tipográficas muito

incomuns, porque quando a leitura consegue ser realizada através de seus automatismos em

letras convencionais, a tipografia não revela sua natureza de intermediação – e menos ainda

seu aspeto indicial. Se o indício falta em alguma parte da palavra, por exemplo, é compensado

primeiramente pelo contexto linguístico dado pelos caracteres vizinhos, e depois pelo contexto

linguístico dado pela palavras vizinhas.

Sofie Beier, na conferência internacional ATypI em 2017, mostra, na sua pesquisa

sobre a legibilidade dos numerais, que uma das maiores dificuldades na determinação da

legibilidade de um número, é o facto de este não formar palavras. Um número, inserido numa

série de números, não pode funcionar como uma letra que falta numa palavra (Beier, 2017).

É possível responder à pergunta de qual dígito falta em 891, por exemplo? Com isso, Beier

corrobora em atestar o facto de as letras precisarem ser analisadas em contexto de palavra,

porque sua decifração se dá em nesse contexto: seus indícios servem à formação da imagem

da palavra.

A imagem da palavra pode ter a sua importância potenciada quando a tipografia é,

em alguma parte, irreconhecível para o leitor, ou quando existe a intenção de trabalhar com

tipografias que põem à prova a perceção da forma das letras, como é o caso da tipografia

experimental aqui apresentada. É precisamente por essa razão que a Dentro é uma fonte

pensada pela lógica da formação da imagem das palavras – não há interesse no

desenvolvimento de numerais e outros caracteres que sustentem um perfil de uso mais

independente da palavra.

Tal como foi apresentado no primeiro capítulo, a administração dos espaços internos

e adjacentes às letras é o elo que as mantém juntas, bem como a barreira que as separa, sendo

também, possivelmente, a chave pela qual a forma das letras alcança descodificação aos olhos

do leitor. O espaço é tão importante quanto o que é espaçado por ele, sugerindo uma

equidade entre forma e contraforma. Noordzij propõe que a tipografia é um espaço profícuo

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de experimentações percetivas, sobretudo pela observação de determinadas características

entre a forma e a contraforma. Como o autor refere:

[a] relação entre forma e contraforma (…) é o fundamento básico da percepção. (…) A escrita é um bom modelo para a percepção porque, com suas regras precisas, cria um ambiente de trabalho como um laboratório artificial que qualquer um de nós tem ao alcance. (Noordzij, 2013, p. 15)

Se essa relação entre forma e contraforma é recíproca e equivalente, as palavras

poderiam ser levadas à situação limite de serem representadas apenas pelas suas

contraformas. Se o visível é o que marca o invisível, tanto o traço marca o espaço, quanto,

numa lógica inversa, o espaço poderia marcar o traço. Essencialmente, como se verá mais

adiante, a Dentro seria uma fonte que tem por intenção convocar a presença da palavra,

mesmo na ausência da forma icónica das suas letras. Em teoria, a presença da palavra

composta na tipografia Dentro poderá ser absorvida da mesma maneira que se lê qualquer

palavra. Aqui, volta-se novamente à busca pelas possibilidades de indício.

Para trabalhar a inversão, explorou-se o conceito de luz na tipografia, em detrimento

do conceito de superfície. A substituição do segundo conceito pelo primeiro é uma sugestão

dada por Hochuli para compor equilibradamente os espaços entre as letras de uma palavra.

Para o autor, essa substituição é importante porque os espaços superiores não possuem o

mesmo valor de perceção que os espaços inferiores – estes têm um peso menor que aqueles:

A luz, ou seja, a claridade do fundo, flui de cima e de baixo nos espaços internos dos caracteres e nos espaços entre eles. A luz que vem de cima é mais eficaz do que a luz que flui de baixo. Por conseguinte, a letra n de uma fonte sem serifa tem de ser desenhada de maneira um pouco mais larga do que a letra u da mesma fonte para ter a mesma largura do ponto de vista óptico. Do mesmo modo, o espaço entre I e A tem de ser menor do que aquele entre I e V (pressupondo-se que os ângulos de A e V sejam iguais). Esse fenômeno não pode ser resolvido com a teoria da uniformidade das superfícies, e sim pela tentiva de conseguir uma luminosidade uniforme. (Hochuli, 2013, p.28)

Como Hochuli expõe, no caso de u e n, há uma questão ótica que se aplica no

caractere em si, para garantir uma conformidade interior à lógica do desenho de todo o

alfabeto; enquanto a gestão dos espaços entre I e A ou I e V, evidencia a questão da

compensação ótica como fator de união ou separação. Essa conceituação proposta por

Hochuli é fundamental para a consecução da fonte Dentro, porque, ao se trabalhar com

contraformas, cada caractere adquire uma massa densa que requer uma compensação ótica

diferenciada das letras em traço.

O grande desafio da tipografia Dentro está na obtenção desse equilíbrio. Para delimitar

a invisibilidade do traço, é preciso recorrer aos espaços de largura – o espaço no qual um

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caractere se insere de modo que, na maioria das combinações, a letra não fique desequilibrada

em relação às que estão próximas, isto é, anteriores ou posteriores a ela (Hochuli, 2013, p.30).

Para obter um certo equilíbrio entre os caracteres na inversão, foi usada uma ideia que Emil

Ruder explana sobre a intensificação das partes internas da letra pela atenuação do espaço

entre os caracteres. De acordo com o autor:

[t]he various effects obtained by the combination of letters are determined by the interplay of the white of the counter and the white of the set width. Narrow set width results in a more intense white and at the same time enhances the effect of the white counters. The interspaces may be made so wide that there is a harmonious balance between the white of the counters and the white of the set width. Letterspacing provides the typographer with the means of reducing the effect of counters.22 (Ruder, 2009, p. 52)

Se a tipografia Dentro é feita a partir dos espaços internos das letras, o que Ruder

propõe como variável será aqui a constante. Numa lógica muito particular de inversão, o

espaço entre os caracteres deverá ser contra balanceado a se considerar o limite do

estreitamento do intervalo espacial entre os caracteres, porque a contraforma está em

destaque como premissa do experimento. Esse manejamento do espaço é essencial para que

o traço ausente se torne visível, ou apenas sugerido, através da interação entre os espaços

internos das letras compostas em palavra.

Isso levanta ainda uma última questão, que tem raiz no tipo de fonte que a Dentro é.

Apesar de constituir um contributo para as questões relacionadas com a legibilidade dos

tipos, a Dentro não pretende ser uma fonte de texto, menos ainda uma fonte mais legível,

tendendo assim para uma fonte do tipo display, que mantém a possibilidade de leitura ao

mesmo tempo que instruí e testa os conhecimentos sobre as formas convencionais das letras

acessíveis ao leitor.

Considera-se aqui a existência de certas tipografias que não só têm um caráter

ilustrativo como também pedagógico, que visam inquirir o leitor sobre como é feita a leitura,

muitas vezes levando-o a adquirir uma maior consciência das características das formas das

letras. São tipos específicos como os de Brian Coe (fig.13) e Phil Baines (fig.14), mostrados

no capítulo anterior. Também alguns tipos como o Yurnacular (fig.18), de David Berlow e o

Autossugestion (fig.19), de Neville Brody, publicados respetivamente nas Revistas FUSE 4

22 TL: “Os vários efeitos obtidos pela combinação das letras são determinados pela interação entre o branco do interior das letras e o branco entre as letras. Um espaço entre as letras mais estreito faz com que o branco fique mais intenso e, ao mesmo tempo, aumenta o efeito dos espaços internos brancos. Os espaços entre as letras devem ser amplos o bastante para que haja um equilíbrio harmonioso entre o branco dos espaços internos e o branco entre as letras. O espaçamento entre letras fornece ao tipógrafo os meios para reduzir o efeito dos espaços internos.”

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(1992) e FUSE 9 (1994), são igualmente representativos quanto ao uso da contraforma na

construção de um caráter mais acentuado de estranhamento na forma das letras e

questionamentos dirigidos ao limiar da legibilidade.

Figura 18: Yurnacular, de David Berlow (Fonts.at, 2018).

Figura 19: Espécimen da tipografia de Neville Brody, Autossugestion, 1993 (Deer, 2015, p.285).

Há, ainda, outros exemplos de fontes que estão na fronteira da classificação entre

texto e display, como a tipografia de texto de Thomas Huot-Marchande, a Minuscule (fig.20),

inspirada nas pesquisas optométricas de Émile Javal a respeito do reconhecimento das letras

e das palavras; ou ainda a Roxane, de Stuart Gluth, já citada anteriormente, cuja aparência

final não transparece a quantidade de experiências de reprodutibilidade a que foi submetida

para a definição das suas formas. Os estudos preliminares sobre a relação figura-fundo da

Roxane influenciaram as soluções para a concretização do alfabeto minúsculo.

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Figura 20: Pequena amostra da Minuscule Deux Regular do espécimen da fonte Minuscule,

de Thomas Hout-Marchande (256TM, 2018).

Apesar de extremamente chamativos, esses tipos acarretam, em termos de

descodificação formal, uma espécie de reflexão metalinguística sobre a tipografia enquanto

código, evidenciando as múltiplas camadas do que pode designar-se por decifração, um

processo assaz complexo, “já que todo nível de deciframento assentará sobre mais um a ser

decifrado.” (Flusser, p.23, 1985).

A discussão entre legibilidade e contraforma proposta pela fonte Dentro vai – à sua

maneira, focada na formação da imagem da palavra – ao encontro das propostas tipográficas

deste tipo limítrofe de tipografia. Todas os exemplos referidos, a Dentro inclusive, parecem

apostar em – ou até mesmo indagar – quais seriam os indícios tipográficos mais arraigados

na tarefa da leitura. São as fontes experimentais que na maioria das vezes revindicam um

valor empírico quando utlizadas, uma vez que ratificam, por meio das suas provocações,

muitas das questões envolvidas na legibilidade tipográfica.

Depois de se explicar os pressupostos teóricos envolvidos na preconceção da

tipografia Dentro, segue-se a exposição dos detalhes da otimização do primeiro alfabeto em

versal e do desenvolvimento do alfabeto em minúsculas, acompanhados da explicação de

alguns problemas que foram encontrados e das respetivas soluções. Achou-se por bem

subdividir esta secção em duas partes para uma melhor organização do seu conteúdo.

3.2 Metodologia e desenvolvimento

Os alfabetos, maiúsculo e minúsculo, tiveram como ponto de partida a fonte Quadraat, de

Fred Smeijers, por ser uma fonte que reflete os estudos sobre contraforma elaborados pelo

autor, sendo, portanto uma referência gráfica de destaque nesse quesito. Porém, não é do

interesse da constituição da Dentro manter uma fidelidade excessiva às contraformas extraídas

da Quadraat, dado que a sua maior contribuição existe em termos referenciais, e não

miméticos.

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Em alguns casos, em que a solução exigiu mais reflexão formal, tomou-se como

referência as contraformas da Avenir, de Adrian Frutiger. A escolha do tipógrafo foi feita

com base num facto téorico compartilhado por Frutiger, que acreditava na existência de uma

qualidade comum a todos os desenhos de letra de uma mesma letra, o que designava por

“essência”, presente nos seus diferentes tipos e atestada pela incrível mancha comum que

resulta da sobreposição das suas criações (Unger, 2016, p.72). Julgou-se por esse facto que a

busca pelas formas invariantes23 das letras por parte de Frutiger contribuiria para a extração

de contraformas consistentes. A escolha específica da Avenir foi feita pela boa combinação

com a fonte de referência (Quadraat), em termos de proporção de largura e altura-x (com a

diferença de 1 pt a mais para a Avenir, na obtenção do equilíbrio).

3.2.1 Maiúsculas

O alfabeto maiúsculo foi aprimorado em continuidade ao que tinha sido desenvolvido

previamente (fig.21).

Figura 21: Primeira versão do alfabeto em versal Dentro, novembro de 2017.

No item relativo à discussão dos resultados (Anexo, p.82) na altura da versão preliminar

desse alfabeto, destacou-se a influência que as barras horizontais e diagonais que cortam grande

parte das contraformas das letras maiúsculas têm na determinação da largura de cada desenho

– é o caso dos carateres A, B, E, F, G, H, N, Q, R, S, T, X, Y e Z. Acontece que, no momento

em que se combinam as contraformas, essas barras em dissonância de espessura (compare-se,

por exemplo, o H e o N na fig.21) acabam por trazer ao alfabeto uma certa inconsistência na

sua aparência. Uma espécie de versão às avessas do desconforto que o desequilíbrio entre as

contraformas confere a uma tipografia convencional. A primeira alteração foi no sentido de

minimizar essa sensação, reduzindo os resquícios do contraste da Quadraat na Dentro.

23 Na tese de Aprígio Morgado (2015), “Legibilidade Tipográfica no Português Impresso: Um ensaio prático para a eficiência tipográfica na leitura da Língua Portuguesa”, o autor dedica uma secção (p.50-4) ao que é conhecido por “invariância percetual” na Psicologia, que designa um lapso de justificação do porquê de conseguirmos reconhecer milhares de formas diferentes de uma mesma letra. (Morgado, 2015)

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A mudança, aparentemente simples, ao mesmo tempo que resolveu algumas questões

de proporção e altura da versal, como aconteceu no caso do A e do X, trouxe a necessidade

de efetuar outras manipulações, nomeadamente em letras como o E e o G, cujas serifas

apareciam dentro da contraforma da primeira versão da tipografia (ver fig.21). Alterar o E

implicava alterar o F, pois a única diferença entre estes dois carateres é a marcação da barra

inferior da primeira letra (e a ausência da mesma na segunda).

Optou-se por retirar a demarcação do fim do braço do E, mantendo o vínculo entre

a contraforma e as serifas, de maneira a tornar a letra mais facilmente distinguível da

contraforma do H e do B. A letra F foi alterada para poder perceber-se a relação de

diagonalidade que se mantém da sua base até ao seu braço. Essa principal diferença formal

entre o E e o F só ficou clara a partir dos estudos tipográficos de extração da contraforma

da Avenir, onde a ausência de serifas entre ambas as letras deixou flagrante a distinção

fundamental entre elas.

Figura 22: Diagonalidade intrínseca da forma do F na Quadraat, acima, e Avenir, abaixo.

Buscando-se, então, fazer sobressair essa diagonal na contraforma do F, decidiu-se

utilizar a borda da serifa inferior, tal como ela é utilizada na letra P. No entanto, a opção de

manter a ligação entre os vértices das serifas inferior e superior trouxe a possibilidade dessas

duas letras serem confundidas. Optou-se, então, por considerar as serifas do braço

intermédio, o que motivou um desequilíbrio da diagonalidade da parte superior com a parte

inferior, pois apresentavam ângulos de inclinação excessivamente diferentes. Para trazer

continuidade, a ligação entre os vértices da serifa superior com a do braço foi mantida,

enquanto a diagonalidade da parte inferior da contraforma foi simplesmente ajustada de

acordo com a parte de cima – um ponto arbitrário na parte inferior do braço intermédio até

à base da letra F (ver exemplo superior da fig.22).

A modificação da letra G também colheu influências dos estudos da tipografia Avenir.

Num primeiro momento, pensou-se em suprimir a serifa, mas isso tornaria a contraforma

do G excessivamente parecida com a contraforma do C. Ao observar a contraforma da letra

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G em Avenir – que possui o mesmo tipo de desenho que o G da Quadraat, no qual a barra

horizontal atravessa a parte inferior do traço que sobe da curva inferior –, confirmou-se

imprescindível a sugestão desse traço no canto esquerdo da contraforma da letra para garantir

o seu reconhecimento e promover uma diferenciação mais clara com a letra C. A forma da

serifa foi alterada de maneira a aproximar-se do desenho de uma barra.

A letra T foi subtilmente modificada sob os mesmos parâmetros de P e F, isto é, ao

invés de serem considerados os vértices das serifas para a delimitação da contraforma, optou-

se pela escolha de um ponto arbitrário na curva da serifa inferior, respeitando-se um certo grau

de inclinação para preservar a expressão diagonal, tomando-se como referência a letra V.

No caso da letra Y, substituiu-se a demarcação inteira da lateral esquerda por um sinal

mais subtil, da altura do caracter, a fim de diferenciá-lo do V e de preservar a sua coerência

formal face ao T, ao P e ao F (ver fig.23). A mudança foi forçosa também pelo facto dessa

demarcação antiga ter um traço com uma espessura de menor contraste. A reposição da

uniformidade do traço trouxe mais equilíbrio à letra e ao alfabeto como um todo

Figura 23: A letra Y na versão anterior Dentro (acima) e na versão atual (abaixo).

A letra W tinha o mesmo problema de sugestão de largura do traço, mas com a

aparência inversa, isto é, demasiado espessa. Na Quadraat, o W apresenta-se como uma

junção equivalente entre duas formas de V, com um aspeto muito diferente, por exemplo,

da versão de Garamond, em que a forma esquerda sobrepõe-se à da direita (fig.24).

Figura 24: A letra W na Quadraat e a sua contraforma extraída e, ao seu lado direito, a Garamond, com a sua

respetiva contraforma. Note-se a diferença do espaço entre as contraformas em ambos os exemplos.

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Essa junção, na Quadraat, faz com que a barra central pareça espessa e a sua

contraforma traduz esse detalhe com uma expressividade maior. Nesse sentido, procedeu-se

a uma alteração que seguiu essa lógica de planificação não estratificada, e que passou pela

sobreposição das duas contraformas de modo a obter apenas uma (acompanhar a diferença

na fig.25).

Em termos de ajustes mais finos, seguiu-se o conselho de Fred Smeijers de evitar

armadilhas óticas que possam suscitar dúvidas no leitor, como a tentação de cair numa certa

racionalidade exagerada, que os programas de edição de tipos atualmente oferecem: “linhas

retas duras nos levam a indagar se elas são realmente retas. Se elas de fato não forem retas,

isso parecerá estranho ao olhar.” (2015, p.147)

Se se acrescentar ao comentário de Smeijers a teoria da luminosidade tipográfica de

Hochuli, anteriormente referenciada, tem-se mais uma questão: ainda que de facto as retas

sejam retas, dada a relação com as outras formas e diferentes projeções luminosas que as

variadas combinações fazem, é possível que o observador não as entenda como linhas retas,

o que pode acarretar também a dúvida visual. A pensar nessa questão, promoveu-se um

arredondamento dos cantos mais afiados, tendo em conta que as retas na fonte Quadraat não

são exatamente retas e que essa característica ficou preservada nas contraformas que dela se

extraíram.

Também, através de composições de diversas palavras em Língua Portuguesa, fez-se

um ajuste de equilíbrio das formas sólidas, alterando-se subtilmente a altura e a largura dos

carateres C, D, O, Q e U. A letra C, em especial, foi alterada no sentido de diferenciá-la ainda

mais da letra O, através da intensificação do corte que caracteriza a abertura da contraforma

de C. As formas do V e do W foram aumentadas em altura para dar mais equilíbrio às

composições. As alturas do I e do J foram diminuídas, pelo mesmo motivo.

Figura 25: Nova versão do alfabeto em versal Dentro, outubro de 2018.

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Figura 26: Comparação entre a versão anterior (cinzento) e nova (preto) do alfabeto em versal Dentro.

Tirando o caso do Y, as variações não foram muito explícitas, embora tenham tido

um impacto substancial na melhoria da qualidade das palavras formadas. Para se ter um

exemplo, pode observar-se a palavra “DENTRO”, que dá nome à fonte, na versão anterior

do alfabeto, ao lado da mesma palavra escrita com o novo alfabeto, como mostra a Figura

27.

Figura 27: Comparação entre a mesma palavra utilizando-se a versão anterior (esquerda)

e versão nova (direita) do alfabeto em versal Dentro.

3.2.2 Minúsculas

A opção de iniciar a realização do alfabeto Dentro pelas maiúsculas foi impulsionada pela

questão da ausência virtual de variação entre a base e a altura de versal das letras, o que

hipoteticamente facilitaria a extração das contraformas e a compensação dos espaços entre

as letras na formação das palavras. No entanto, há uma questão muito delicada envolvida

aqui: a maioria das teorias relativas ao processo de leitura não consideram as palavras inteiras

em maiúsculas, mas apenas em minúsculas – simplesmente pelo facto dos textos não se

apresentarem em caixa alta, como os títulos e outros extratos mais curtos e menos frequentes.

Noordzij explica que não é proveitoso o uso de maiúsculas na composição de textos

extensos, justamente porque tendem a ser lidos letra a letra, e não pela imagem da palavra:

“Um texto composto em maiúsculas não é constituído apenas por linhas e palavras, mas de

letras” (2013, p.47). O autor argumenta que a natureza da organização dos espaços entre

letras maiúsculas e letras minúsculas numa mesma palavra é absolutamente diferente – as

primeiras não obedecem a um ritmo gráfico entre espaços e traços, pois não possuem a

cadência linear das letras minúsculas, e dá o exemplo do D e do B, cujas contraformas são

essencialmente as mesmas, variando em tamanho, número e organização. Já entre o m e o h,

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só existe linearidade – uma forma após a outra –, o que o leva a argumentar que, neste caso,

sim, seria proveitoso o arranjo e o cuidado com base na organização da imagem da palavra.

Através de um paralelismo associativo entre as ideias de Noordzij e a teoria da escrita

de Vilém Flusser, exposta no capítulo 1, aborda-se aqui a questão da formação da imagem

da palavra, não com a rigidez de Noordzij, mas como se houvesse uma diferença na

intensidade da ideia de imagem da palavra entre o alfabeto maiúsculo e o minúsculo. O facto

de as letras maiúsculas possuirem subdivisões latitudinais, associadas a uma estrutura mais

homogénea de altura entre as letras de uma mesma palavra, faria com que ela tivesse uma

leitura menos linear (e talvez mais figurativa), quando comparada ao alfabeto minúsculo, em

que a dinâmica entre ascendentes, altura-x e descendentes traria menos movimentos

verticalizados no processo de leitura, do que as versais.

Para experimentar esse tipo de comparação tornou-se imprescindível a criação do

alfabeto minúsculo da tipografia Dentro. A intenção é testar e investigar as potencialidades da

contraforma das letras como diretrizes do processo de leitura. Simultaneamente, pretende-se

analisar se o uso da contraforma é essencial para se compreender melhor a dinâmica

diferenciada entre alfabetos minúsculos e maiúsculos.

Na projeção dos tipos de desafios que poderiam ser encontrados na realização de um

alfabeto minúsculo através do uso de contraformas, previu-se que a padronização dos

espaços seria problemático em contraformas ausentes e em letras com ascendentes ou

descendentes. De certa maneira, as partes ascendentes ou descendentes das letras não deixam

de ser tratadas como traços sem contraforma. Essas partes também inauguram o desafio de

se pensar na forma de equilibrar a altura entre os caracteres, de modo a que fique oticamente

viável uma composição apenas em contraformas.

Aqui já se pode dizer que a minúscula da tipografia Dentro não poderia ter sido

desenvolvida (pelo menos nessas circunstâncias) sem o trabalho de pesquisa e de referência

que o presente estudo suscitou. O primeiro movimento foi retomar alguns dos exemplos de

fontes já mostrados para se perceber melhor quais foram as soluções pensadas e até que

ponto estas seriam viáveis para esse propósito. Nesse ponto, notou-se que apenas dois dos

exemplos em contraforma (os do Anexo inclusive) trabalham minúsculas: a Autosuggestion, de

Neville Brody (fig.19), e a Lint Light, de Kate Francis (Anexo, fig.2, p.76).

Analisaram-se as letras b, d, p e q, por possuírem, historicamente, a mesma

contrapunção para designar a contraforma interna fechada em cada uma delas. Isso quer

dizer que, se fosse desprezada a relação da ascendente ou da descendente em relação à

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contraforma, teríamos quatro contraformas idênticas para representar quatro letras

diferentes, o que seria totalmente inviável.

Figura 28: Soluções para o tratamento das ascendentes e descendentes em b, d, p e q.

Autossugestion, de Neville Brody, à esquerda, e Lint Light, de Kate Francis, à direita.

Como está claro, é preciso de algum modo, marcar a existência de algo para além da

contraforma e, mais ainda, dentro dos pares b-d e p-q, o lado em que essas barras se

encontram, se à direita ou à esquerda da contraforma. A decisão em relação ao que se faria

no caso da tipografia Dentro, estava não só ligada à questão do reconhecimento dos caracteres

em si, mas também à necessidade de prever uma certa correlação estética com a tipografia

em maiúsculas já desenvolvida. Deste modo, voltou-se novamente aos estudos da forma e

do contraste feitos por Stuart Gluth para o desenvolvimento do alfabeto minúsculo Roxane.

Figura 29: A primeira linha mostra a tipografia Roxane na sua versão final; a segunda linha,

o equilíbrio entre os seus espaços internos e relacionais; e a terceira linha a consistência das

suas contraformas internas. (Gluth, 1999, p.246)

Nos estudos de Gluth a altura-x é considerada o intervalo no qual há de facto uma

relação letra a letra e onde há, claro, uma perceção da contraforma. Essa visão, de certa

forma, vai ao encontro do pensamento sobre a cadência linear sugerido por Noordzij e

Flusser, exposto anteriormente. Essa foi uma lógica que se encaixou bem, tanto teoricamente

quando esteticamente, no desenvolvimento do alfabeto minúsculo da tipografia Dentro.

Extrair as contraformas das letras minúsculas no intervalo da altura-x torna a

possibilidade de evocar a presença do traço ausente pela interação lateral com outras letras,

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um facto alcançado no alfabeto maiúsculo Dentro, por conta da altura da versal. Essa foi,

portanto, a base metodológica escolhida para a extração dos caracteres.

Essa escolha foi importante não só para as letras b, d, p e q, mas também – e de modo

ainda mais sensível – para f, i, j, l e t, que não possuem contraforma alguma. As letras i, j, e l

são compostas por um traço único vertical. Já o t e o f possuem uma breve barra horizontal

que corta a linha vertical dentro dos limites da altura-x, de maneira que em ambos os casos

a barra desapareceu na subtração do intervalo mencionado. Sem força específica na barra, a

letra f basta-se pela existência do ombro que funciona como a sua haste ascendente, ao

contrário do t, que se diferencia do l pela existência da barra. Por esta razão, a barra foi

mantida no t e trazida logo para acima dos limites superiores da altura-x (ver fig.30).

Figura 30: Comparação entre as formas das letras t, f e l.

Conforme pode ser visto na Figura 31, as letras h e y também foram influenciadas

pela metodologia de extração das contraformas nos limites altura-x, beneficiando-se dela por

diferenciar-se de, respetivamente, n e v. Já a letra k e a letra g fugiram a tal regra. A primeira,

porque não tirava nenhum benefício da barra superior: a sua contraforma é suficientemente

única. Já a segunda acarretou uma decisão mais radical.

Figura 31: Comparação entre as formas das letras l e t, h e n, e y e v.

A Figura 32, a seguir, mostra como seria a extração da contraforma do g tendo em

conta, de modo rigoroso, a altura-x como local de existência da contraforma. Nesse caso, em

específico, por ser a única letra com uma contraforma abaixo da linha base da altura-x, optou-

se por fazer uma exceção.

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Figura 32: À esquerda, a letra g, considerando-se apenas a altura-x em contraforma e, à direita, considerando-

se que o desenho dessa letra em double-story, em específico, pede uma solução flexível.

Essa exceção foi pensada também pela natureza de contorno que a calda de g trouxe

à face do tipo quando cortada de acordo com a regra preestabelecida. Smeijers é bastante

categórico a esse respeito: “[u]m contorno não apresenta uma forma. Um contorno apenas

descreve uma borda ou limite de uma certa forma” (2015, p. 130). O rigor desse pensamento

ajuda a entender que, numa tipografia onde se quer destacar justamente as formas delimitadas

pelo contorno dos traços, não faria sentido manter uma forma com um contorno quase

fechado. Por isso, a exceção foi mantida como escolha final.

Nas letras a e e foram consideradas as contraformas quase fechadas juntamente com

as fechadas, por conferirem mais homogeneidade à estrutura das palavras compostas (fig.33).

Como no caso das maiúsculas, estas letras precisaram de um ajuste na marcação do contraste

dos traços entre as contraformas, assim como o m, o x e o z. As letras v e w foram também

ajustadas em altura segundo os critérios das maiúsculas.

Figura 33: Acima, as letras a e e sem as contraformas quase fechadas. Nota-se como a palavra parece

descompensada. Abaixo, o poder de equilíbrio das contraformas quase fechadas na vesão final.

As letras n e u tiveram que passar por pequenos ajustes para que se pudesse diferenciá-

las melhor. Os lados da abertura, respetivamente, inferior e superior, tornaram-se mais duros,

assinalando um fecho “forçado” – tal como acontece na lateral direita da letra c (ver fig.34).

Isso refletiu-se também nas letras m e h, que mantém contraformas equivalentes (tal como o

caso de b, d, p e q).

A letra r foi interpretada como uma letra de contaforma quase fechada, porque não

há nada fora da altura-x que a diferencie enquanto letra, como acontece, por exemplo, com

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o pingo do i. Para que não houvesse aproximação com as letras c, n ou u, optou-se por trazer

a diagonal, que fecha a forma do vértice superior interno, até ao meio da base do enlace no

pé da letra.

Figura 34: Diferença entre as formas das letras r, c, n e u.

Os limites da contraforma quase fechada da letra s foram delimitados pela curva nos

extremos da espinha, como sucede no alfabeto maiúsculo. Por fim, a letra o não requereu

qualquer tipo de intervenção, além do equilíbrio com outras formas sólidas. Na Figura 35, a

seguir, pode analisar-se a aparência final do alfabeto inteiro em minúsculas da tipografia

Dentro.

Figura 35: Alfabeto minúsculo da tipografia Dentro, outubro de 2018.

3.3 Discussão dos resultados

Antes de qualquer comentário a respeito da formas das letras e do seu funcionamento na

formação das imagens das palavras, é preciso destacar como a ferramenta de design

tipográfico, que foi utilizada nessa fase do desenvolvimento da fonte, teve uma enorme

influência sobre os resultados obtidos. A extração, quase mecânica das contraformas feitas

no princípio por um processo simples de subtração por meio digital, resultou em formas

muito mais “duras” do que as que foram posteriormente manipuladas no programa

apropriado de edição tipográfica.

A maleabilidade na construção foi propícia, dado que, antes mesmo da escolha da

Quadraat, já se tinha o objetivo de tornar a fonte Dentro consistentemente mais orgânica do

que as fontes de referência, de modo a evitar ao máximo as pontas e os cantos rijos.

Pretendia-se com isso que as formas se tornassem fáceis de equilibrar, sem criar mais dúvidas

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visuais, para além daquelas que as próprias contraformas fazem emergir. A natureza flexível

da ferramenta utilizada para o ajuste das formas teve aqui um papel de destaque, permitindo

alcançar um resultado muito próximo do esperado.

Outra ideia que permeou o desenho das letras no geral e que trouxe benefícios diretos

foi o foco na construção da imagem da palavra. Quando se desenha um alfabeto letra após

letra, a tendência é priorizar a consistência entre os traços e perseguir as lógicas propostas

pela tipografia que se está a desenvolver. Isso também aconteceu com a Dentro. No entanto,

como o objetivo final era alcançar qualidade na imagem da palavra e não na letra isolada,

houve mais liberdade e transigência em optar por exceções que melhorassem o aspeto da

letra nas suas combinações, e não como unidade em si. De alguma forma, isso ratifica a

importância de se pensar a tipografia na ordem da formação das palavras, tal como

insistentemente pontuam os autores que compõem a espinha dorsal do presente trabalho,

Noordzij e Smeijers.24

Um dos objetivos mais audaciosos da construção da tipografia Dentro é dar um

contributo real para a compreensão das características de cada letra que de facto promovem

a qualidade na imagem das palavras. É claro que essa contribuição só pode ser vista como

parcial, mas presume-se que em parte foi conseguida.

Na letras C e c, por exemplo, quanto maior a abertura, mais as suas contraformas se

diferenciam, respetivamente, do O e do o. Pode ainda referir-se a inusitada semelhança das

contraformas de K e R com B e E, ou a importância da diagonalidade acentuada do F, como

forma de diferenciação do B, do E e do R. Nas maiúsculas, em específico, as diferenças entre

as contraformas de C, D, G, O, Q e U são de facto bem subtis, consistindo basicamente na

boa coordenação entre retas e curvas.

Figura 36: Comparação entre as formas de B, E, F, K e R e, em baixo, C, D, G, O, Q e U.

24 O foco no resultado, de maneira geral, parece ser extremamente benéfico. Embora não tenha sido o caso de Dentro, e pode ser que possa ser futuramente, os tipógrafos mais guerridos, desde o início da impressão com tipos móveis, traziam o desenho subjulgado ao resultado final que esperavam na impressão. As chamadas Ink traps são um bom exemplo disso.

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No alfabeto minúsculo, observou-se que a influência das contraformas é minimizada

pela essencialidade da marcação de ascendentes e descendentes. Apesar das contraformas

continuarem a favorecer a perceção das letras, elas estão mais na posição de cúmplices do

que de protagonistas nesse processo.

Essa influência poderia ser a base da discussão sobre a cadência linear mais expressiva

nas minúsculas, juntando-se às suposições de que se lê melhor a metade superior das palavras

e de que a visão parafoveal também recolhe informações importantes no ato da leitura,

expostas no Capítulo 2.

Nesse sentido, a exposição que Spencer faz, em The Visible Word (1969, p.14), sobre

a teoria de Messier de que as letras “dominantes” dentre as minúsculas seriam, em primeiro

lugar, as que se projetam para a fora da linha da altura-x (b, d, f, h, i, j, l, p, q e t), e em segundo

lugar, as que possuem curvas acentuadas (a, c, e, g, o e s ), contribui para a reflexão sobre essa

influência entre contraformas, ascendentes e descentes.

Mais ainda, quando a contraforma é ausente, como no caso das letras f, i, j, l e t, a

marcação na área das ascendentes e descendentes parece tornar-se imprescindível. Se em

rigor, o que diferencia as letras b, d, p e q são as ascendentes e as descendentes, somadas ao

lado em que se posicionam caracteristicamente em relação à contraforma, o que diferencia o

f, o i, o j, o l e o t, entre si, são as marcas de finalização superiores e inferiores à altura-x –

com exceção do t, que tende a manter a barra dentro do limite da altura-x25.

Figura 37: Comparação entre as formas de f, i, j, l e t.

Deste modo, confirmou-se a seguinte afirmação de Hochuli:

(…) as hastes ascendentes e descendentes das letras minúsculas, produzem contornos característicos, que são diferenciados por acentos, pelo pingo no i, pela altura específica do t e, naturalmente, pelo contorno próprio de cada letra. (…) por isso a formação clara das hastes ascendentes e descendentes é importante. (Hochuli, 2013, p. 24)

25 A altura da barra de t no limite superior da altura-x parece ser proveitosa para harmonizar seu traço horizontal com os espaços entre as letras na combinação com outros elementos do alfabeto na construção de palavras.

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Embora Hochuli tenha referido que uma das características importantes para a

diferenciação da letra t é o facto de esta apresentar uma altura específica subtilmente inferior

à altura das ascendentes, os estudos efetuados durante a realização da Dentro minúscula não

corroboraram esse dado, ao concluir-se que sem a barra, o t pode ser facilmente confundido

com um l.

Finalmente, importa tecer algumas considerações a respeito do espaçamento entre as

letras na lógica da tipografia Dentro. Determinar os espaçamentos adjacentes às letras no

alfabeto minúsculo foi uma tarefa menos árdua do que determiná-los entre as letras

maiúsculas. Quando se observa os alfabetos maiúsculo e minúsculo em proximidade (fig.38),

percebe-se como as versais possuem formas laterais mais demarcadas – barrigas, diagonais e

entradas – que levantam um desafio quando colocadas lado a lado, em equilíbrio, com uma

largura padrão de kerning. Em ambos os casos, procurou-se definir espaçamentos que

valorizassem a impressão das barras laterais das letras, em equilíbrio com a(s) parte(s)

internas(s) em contraforma.

Figura 38: Alfabetos maiúsculo e minúsculo da tipografia Dentro, outubro de 2018.

O resultado final da tipografia Dentro, tanto em minúsculas quanto em versais, poderá

ser melhor apreciado no espécimen pensado para sua divulgação. Os detalhes da sua

conceção e da sua aparência final podem ser vistos no documento Anexo, à parte do presente

trabalho.

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CONCLUSÃO

Este trabalho de projeto teve como objeto de investigação a influência das contraformas na

formação e no reconhecimento da palavra tipográfica. A principal motivação da pesquisa foi

concretizada sob a produção de uma tipografia experimental, Dentro, que evidencia a forma

das letras apenas pelas suas contraformas. A partir do desenvolvimento dessa fonte tornou-

se possível averiguar a real pertinência de um estudo com ênfase na contraforma e na sua

relação com o reconhecimento das letras no contexto da palavra. O resultado estético da

fonte é distante do alfabeto habitual sem, contudo, perder a sua possibilidade de decifração.

Atinge, portanto, a meta de constituir-se como um instrumento utilizável para futuras

análises no campo da relação entre a contraforma e a legibilidade.

Considera-se, desse modo, que o objetivo geral do estudo – a compreensão de como

a contraforma tem protagonismo no processo de formação e de reconhecimento da imagem

da palavra tipográfica – foi parcialmente conseguido. As letras versais do alfabeto latino

comportam-se de um modo diferente das suas respetivas minúsculas. O resultado das

composições tipográficas com a tipografia Dentro no espécimen, por exemplo, mostra que as

maiúsculas, por possuírem contraformas mais diferenciadas entre as letras, apresentam

contraformas com mais expressividade na formação da imagem da palavra.

No caso das minúsculas, o facto de existirem muitas letras com contraformas internas

semelhantes e caracteres sem contraformas internas, coloca-se em questão a possibilidade

real do reconhecimento das letras apenas se efetuar pela visualização indicial dos seus espaços

internos. De modo particular, há um vislumbre de que a altura-x tenha preponderância na

manutenção da cadência rítmica na formação da palavra, enquanto o espaço relativo à altura

das ascendentes e das descendentes concentra a maior parte dos elementos que promove a

semelhança com as formas universais dos caracteres e a diferença entre as formas internas

das letras que compõem o alfabeto. Esse processo de hibridização entre contraformas e

traços traz, especificamente para as palavras constituidas por essas letras, um registo visual

de planos visuais díspares. Ao mesmo tempo que esse facto gera dúvidas sobre a hipótese

primária de protagonismo, como comentado acima, ele confirma — no mínimo — o papel

coadjuvante das contraformas na leitura, a levar em consideração uma outra hipótese

construída ao longo do Capítulo 2: a de que, embora o olho seja seletivo na construção do

campo visual, a visão da palavra leva em consideração os espaços entre as letras na sua leitura.

Em termos empíricos, o cruzamento entre figura e fundo na caixa-baixa da Dentro

pode ser um campo de experimentações quantitativas comparativas profícuas para uma

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melhor compreensão do movimento dos olhos no contacto com a palavra, por encerrar em

sua própria plasticidade a dinâmica constante de construção do campo visual que passa

incauta pela perceção final do que o olho “mostra” ver.

Quanto aos dois objetivos específicos para o trabalho, a saber, aprofundar o

conhecimento sobre a natureza estética da tipografia e as suas extrapolações no ato de leitura

pela relação entre contraforma e legibilidade; e desenvolver o conceito de contraforma como

elemento fundamental na busca da consistência tipográfica de uma fonte; presume-se que

tenham sido alcançados através da pesquisa dissertativa explicitada principalmente nos dois

primeiros capítulos.

Algumas das contribuições teóricas mais expressivas deste trabalho estão ligadas à

reflexão sobre o tratamento do conceito de legibilidade, não como uma qualidade tipográfica

que diz respeito ao reconhecimento da forma das letras, mas principalmente como um

atributo que tipifica o nível de “transparência” do traço no processo de leitura. São aspetos

que levantam questões oportunas sobre a função metalinguística da tipografia enquanto

código, quer no que diz respeito aos diferentes níveis de decifração desse código e dos seus

papéis na interpretação de uma mensagem, quer no âmbito de uma pretensa imposição da

eficiência, às vezes, em detrimento do compromisso de harmonização estética da tipografia,

com consequências ao nível da leitura.

Foi especialmente interessante notar como uma tipografia como a Dentro, que

aparentemente busca a compreensão dos mecanismos de universalidade nas formas das

letras, acaba por destacar a pertinência da diversidade de desenhos e o aproveitamento real

dessas variedades para o repertório tipográfico de cada leitor. Nesse sentido, as tipografias

assumem, de maneira inusitada, um ofício didático de expansão da memória visual, não só

de cada letra, como de cada imagem da palavra, reiterando a máxima popular “quem lê mais,

lê melhor”.

Viu-se, no entanto, que esta parcela do reconhecimento ligada ao leitor não diminui

as responsabilidades com a consistência na construção das letras. Ficou claro que a

consistência difere substancialmente da precisão em tipografia: esta não garante em nada a

consecução daquela. A consistência é conseguida através do entendimento do

funcionamento da perceção visual, reforçando a natureza interdisciplinar do campo da

tipografia, que não depende só das particularidades técnicas do design gráfico, mas também

das ciências biológicas envolvidas na fisiologia da leitura.

Em suma, este estudo propôs, longe de uma resposta definitiva às discussões

acaloradas sobre como se dá o reconhecimento das letras na leitura, um caminho para se

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pensar as influências particulares do universo tipográfico que poderiam alterar as condições

de interação palavra-leitor, utilizando-se, para tal, do estudo da contarforma. Acredita-se,

assim, ter cooperado subtilmente no movimento de reabertura teórica das práticas artísticas

para as ciências empíricas, bem como para o incremento de perspetivas específicas do design

gráfico para as experimentações psicocognitivas sobre a leitura.

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ANEXO

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DENTRO: TIPOGRAFIA DA CONTRAFORMA26

Resumo

Dentro é uma tipografia que explora a relação entre a forma, a contraforma e o espaço entre

as letras do alfabeto latino e o seu reconhecimento dentro do contexto da palavra. Trata-se

de um projeto tipográfico de fundo académico, de natureza particularmente experimental e

ainda em processo de desenvolvimento.

Foi iniciado como meio de estudo pessoal das partes internas das letras a partir da

leitura atenta de Contrapunção, de Fred Smeijers – uma referência chave para a compreensão

da importância dessa relação espacial. De igual importância para este projeto foi O traço: teoria

da escrita de Gerrit Noordzij, especialmente no que diz respeito à construção da imagem da

palavra.

A ideia de fazer um alfabeto a partir das contraformas das letras provém da afirmação

recorrente de que os espaços internos são grandes aliados da perceção das formas

tipográficas e influenciam o reconhecimento de um conjunto de letras específico – ou da

imagem da palavra – e, consequentemente, da sua leitura. O objetivo é refletir sobre uma

espécie de situação limite de construção de palavras, no sentido de testar se as suas imagens

podem ser ainda identificadas a partir, e somente a partir, das formas e dos espaços negativos

sobre os quais as letras assentam.

As formas que constituem os caracteres da tipografia Dentro são releituras dos espaços

internos da fonte FF Quadraat, de Smeijers. A fonte foi escolhida não só como forma de

homenagem, mas por ter sido possivelmente influenciada pelos estudos do autor no que diz

respeito à construção da forma da letra utilizando contrapunção. Também foi intencional a

escolha de um tipo serifado, potencialmente por sua capacidade de auxiliar na identificação

da letra pelo “fechamento” da forma e, portanto, em toda a varredura da palavra.

As contraformas foram extraídas de forma simples, por manipulação digital. Nas

contraformas fechadas, fundo e figura estão bem delimitados, de maneira que o processo de

subtração das formas é extremamente facilitado. Nas quase fechadas, usou-se como

parâmetro de limite o vértice da serifa. Nas abertas, o processo de delimitação tem sido

desenvolvido de forma menos fixa, devido à questão da fronteira de função dupla que esses

26 Artigo relativo à apresentação no 8º Encontro de Tipografia, 3-4 de novembro de 2017, ainda não publicado pela Comissão Organizadora e sem previsão de publicação da Ata do Encontro até o presente momento.

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espaços assumem: fazem, ao mesmo tempo, parte do espaço interno a letra e do espaço entre

as letras.

O presente artigo expõe algumas das reflexões e soluções pensadas para a construção

apenas do alfabeto em maiúsculas. Deu-se assim a preferência pelo facto da pouca variação

entre a linha de base e a linha que marca a altura de versal, o que facilita a compensação ótica

dos espaços entre as letras nesta fase inicial. Dentre as questões que têm suscitado mais

dificuldade neste projeto estão as letras sem nenhum espaço interno, como no caso do T, do

I e do J, por exemplo. Também, as letras em que historicamente se usavam contrapunções

muito similares, tais como E, F e B, por exemplo.

Abstract

Dentro [inside] is a typography which explores the relation between the form, the counter-

form and the space between the letters of the latin alphabet set, and its recognition within

the context of the word. It is an academic typography project, of particulary experimental

nature and, still at the developing stage.

It has started as a personal study about the inner parts of the letters, after the careful

reading of Counterpunch, by Fred Smeijers, – a benchmark on comprehending the importance

of this spatial relation. Equally important to the project was The Stroke: Theory of Writing, by

Gerrit Noordzij, specially in regard to the word-image construction.

The ideia of making an alphabeth out of the letters counterforms comes from the

frequent statement that intern spaces are great allies on the perception of the typography

shape and they also influence the recognition of specific letters set – or a word-image – and

thus, the reading. The goal is to reflect about a threshold situation in the construction of

words, in order to test if its images are still recognizable from, and only from, the shapes and

the negative spaces in which the letters settle down.

The shapes which compose the typography Dentro are reinterpretations of the intern

spaces of the font FF Quadraat, designed by Smeijers. The font was chosen not only as

tribute, but also because it was probably influenced by the author studies regarding to the

typedesign making use of the counterpunch technique. It was also intentional the choice of

a serif type, potentially for its capacity of helping the reader concerning the recognition of

the letter inner space by their apperture and, therefore, the word scanning.

Counter-forms were extracted in a simple way, by digital manipulation. In the close-

shaped counter-forms, figure and background are well defined, in order to facilitate the

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subtraction process of the shapes. In the almost close-shaped ones, the limiting parameter

used was the vertex of the serif. In open counter-forms, the delimitation process has been

developed in a more flexible way, for the matter of the double-functional role that those

spaces assume: they are both part of the inner space and the space between the letters at the

same time.

This paper exposes some of the reflections and solutions which have been thought

precisely for an uppercase alphabeth. It gives preference to the fact that there is little variation

between the baseline and the cap height line, which facilitates the optical compensation of

the spaces between the letters in this initial phase. Among the issues which have aroused

more difficulty to this project are the letters without any inner space, such as T, I and J, e.g.

The same goes for letters which historically hold a very similar or, even the same

counterpunch, like the E, F and B, e.g.

Palavras-chave

Contraforma, Desenho de Tipos, Imagem da Palavra, Legibilidade, Tipografia

Experimental.

Keywords

Counter-form, Experimental Typography, Legibility, Typedesign, Word-Image.

Introdução

Dentro é uma fonte essencialmente experimental. Experimental no sentido de se testar uma

ideia, de provocar uma realidade no propósito de avaliar a pertinência de uma afirmação.

Peter Bi’lak, no seu ensaio “Experimental typography. Whatever that means” alerta-nos para

as limitações da experimentação no campo da tipografia:

Does type design and typography allow an experimental approach at all? The alphabet is by its very nature dependent on and defined by conventions. Type design that is not bound by convention is like a private language: both lack the ability to communicate. Yet it is precisely the constraints of the alphabet which inspire many designers. (Bi’lak, 2005)

No presente artigo, são explorados os limites que constrangem a forma das letras –

as suas bordas e as suas contraformas. Em tese, quando esse limite é ultrapassado,

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compromete a sistematização da escrita feita pelas formas tipográficas, e faz a palavra

ininteligível. Caso o desenho do tipo falhe nessa missão, deixa de servir o seu objetivo

comunicativo. Isso deve ser levado em conta, como alerta Emil Ruder: “Typography has one

plain duty before it and that is to convey information in writing. No argument or

consideration can absolve typography from this duty” (2009, p. 6).

Fred Smeijers explica, em seu livro Contrapunção, que, por sua vez “[a] qualidade de

imagens visuais é, em primeiro lugar, uma questão de configuração própria e não o resultado

de uma certa técnica ou produção. (…) Na raiz da configuração ou do arranjo visual geral

está o desenho da palavra” (2015, p. 28).

O desenho da palavra, e não da letra, será o campo de experimentação da tipografia

Dentro. A construção das formas dessa tipografia se baseia nas afirmações relativas a perceção

das letras no contexto da palavra presente na Teoria da Escrita, de Gerrit Noordzij:

A relação entre forma e contraforma (…) é o fundamento básico da percepção. (…) A escrita é um bom modelo para a percepção porque, com suas regras precisas, cria um ambiente de trabalho como um laboratório artificial que qualquer um de nós tem ao alcance. A interseção entre claro e escuro ocorre quando e onde houver algo para se ver, mas esse jogo só fica interessante quando os adversários estão bem equilibrados – só posso experimentar a relação se esta estiver bem clara (2013, p. 15).

E, de facto, nem sempre a relação está clara. Essa é uma das principais razões que

fazem pertinente esse estudo, dado que existe uma acessibilidade cada vez maior à edição de

textos, em níveis cada vez mais profundos e relacionados à unidade tipográfica. No entanto,

não fica explícito para o usuário comum o facto de que as alterações que ele tem a

possibilidade de propor através das ferramentas de edição mexem diretamente com o que

podemos chamar de imagem da palavra.

Ao usar todas as possibilidades de determinar o espaço entre as letras e as palavras, esse usuário irá alterar a imagem da palavra. E isso, na verdade, também vale para alguém que desenha um tipo. Apesar de parecer que o trabalho do designer de tipos é fazer novos caracteres, o objetivo real é criar uma nova imagem da palavra com qualidade diferente da que já está disponível. (Smeijers, 2015, p.29)

O ponto de contato entre a construção duma imagem da palavra e o poder

comunicativo que ela possui define, em outras palavras, o campo de estudo sobre a

legibilidade. Aliás, faz-se pertinente ressaltar que o reconhecimento na leitura não é feito a

partir de cada letra em sucessão, mas da palavra como um todo (Spencer, 1969).

A tipografia aqui mostrada vem ao encontro de situações-limite de representação das

palavras, no que seria a ausência da forma icónica das letras. Tem-se em consideração que

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alguns dos aspetos observados na construção das formas tipográficas em contraforma

possam vir a dar o seu contributo aos estudos ligados à legibilidade e perceção no âmbito da

tipografia. Uma das aspirações menos modestas desta experimentação com tipos é ter a

possibilidade de contribuir para a delimitação das convenções tipográficas que dão, de facto,

a consistência à imagem das palavras.

O nome da tipografia, Dentro, faz referência a três situações: a primeira, e talvez mais

óbvia, é a alusão direta às partes mais internas (contraformas fechadas) das letras; a segunda,

diz respeito aos espaços entre as letras dentro das palavras, que seriam responsáveis por

manter as letras juntas no objetivo de assegurar um sentido (ex. “a manhã” e “amanhã”); por

último, numa visão mais subjetiva, conota essa relação entre a memória visual e a perceção

na leitura de uma palavra – algo que acontece no campo das ideias e de forma particular.

Enquadramento Teórico

Esse projeto de experimentação tipográfica iniciou-se a partir de um breve trabalho de

pesquisa a respeito da influência das formas internas das letras caligráficas no processo de

confeção de tipos para impressão, uma vez que os primeiros cortadores de punções

utilizavam o artifício da contrapunção como o principal elemento padronizador entre os

tipos manufaturados.

A importância da regularidade nas contraformas da letra, no entanto, não nasce com

a chegada dos tipos. Apesar da tipografia trazer mais regularidade à letra impressa do que a

caligrafia traz à letra escrita, essa fidelidade às formas internas das letras já estava

sistematizada pelo tipo de aparo, inclinação, sequência e ritmo de traços que a milenar arte

caligráfica exigia em cada estilo de escrita.

Um exemplo que testifica essa assertiva está na própria postura do Gutenberg. O

pioneiro cortou diversos tipos a partir de matrizes padronizadas e, no entanto, seu maior

objetivo em termos de estética era chegar a um resultado impressionantemente parecido com

um manuscrito da época:

Os primeiros gráficos procuravam competir com os calígrafos imitando o mais próximo possível o seu trabalho. Esse tipo sem curvas sutis foi tão bem desenvolvido que os caracteres na Bíblia de 42 linhas mal podem ser distinguidos de uma boa caligrafia. (Meggs, Purvis, 2009, p. 97)

Temos uma visão mais nítida da apropriação formal que a tipografia faz da caligrafia

a partir da Teoria da Escrita de Gerrit Noordzij. O autor afima que a “única coisa que os

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vários tipos de escrita têm em comum é o branco das palavras. Esse ponto de vista universal

vale igualmente para a escrita manual e a tipografia” (Noordzij, 2013, p. 15).

Vale também para comparação entre as tipografias. A similaridade entre os diversos

desenhos de letra, portanto, são as partes delimitadoras do glifo, ou seja, sua contraforma.

Isso quer dizer que a liberdade formal do design da letra será limitada apenas pelo nível de

reconhecimento do caractere, pela legibilidade – e que isso depende do poder de

reconhecimento e familiaridade que a contraforma da letra oferece ao usuário da mensagem.

A perceção de que um “a” é mesmo um “a” e não um “e”, as formas (ainda que

mínimas) fundamentais para seu reconhecimento, é o ponto de partida (e também a chegada)

na construção do desenho de uma fonte tipográfica. Smeijers coloca a questão:

O que faz de uma letra uma letra, e de uma palavra uma palavra? É uma velha história que não se pode deixar de contar. Tudo depende de consciência e respeito pelas formas entre e dentro das letras. As formas brancas fazem o segundo plano e as formas pretas fazem o primeiro plano, e vice-versa. Mude uma, e a outra também muda (2015, p. 24).

O termo “contraforma” assume-se aqui como ambos os espaços internos e externos

que delineiam o formato da letra. O termo é usado e bem explicado por Smeijers (2015), que

o divide em três subcategorias: contraforma fechada, contraforma quase fechada e

contraforma aberta. Essa última, divide a sua definição com a ideia de espaço entre as letras,

que também acaba por se apresentar como contraforma delimitante do glifo e é bastante

influente na ligação e separação das letras na ordem da composição das palavras.

Se inserimos um caractere com contraforma aberta, logo descobrimos que não há nenhuma fronteira visível entre o espaço que pertence ao interior de um caractere e o espaço que pertence à área entre os dois caracteres. Fica difícil medir esses espaços. Para se resolver esse problema, é preciso entender que uma certa parte do espaço contíguo tem uma função dupla: ela é, ao mesmo tempo, espaço interior e exterior. (Smeijers, 2015, p.32)

Aliás, é importante ressaltar que, apesar da tendência de pensar a tipografia letra a

letra, pelo facto de os tipos móveis serem assim constituídos nessas unidades, ela é

desenvolvida em uma dinâmica de palavras. A letra impressa tem por finalidade básica formar

uma palavra a ser lida e entendida. Isso fica claro quando se lê uma pseudopalavra, por

exemplo. A pseudopalavra “TEIEUISÃO” não demora tanto para logo ser corrigida para

“TELEVISÃO” através da perceção das letras e compensação dos espaços internos pela

imagem prévia que temos dos espaços “IE” para “LE” e “UI” para “VI”.

Tanto Noordzij quanto Smeijers abordam a importância do reconhecimento das

letras por esses espaços chamados brancos, ou vazios. Noordzij (2013, p. 14) diz que a

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“manutenção do equilíbrio das formas brancas faz toda a diferença. O branco da palavra é

minha única ferramenta para manter as letras juntas”. Smeijers (2015, p. 25) acrescenta a

importância da proporção entre esses espaços:

Caracteres não significam muito sozinhos, então nós precisamos lidar com outro problema: os espaços entre as letras. Esses espaços têm que estar em equilíbrio uns com os outros e, ao mesmo tempo, em equilíbrio com os espaços dentro dos caracteres. Faça isso e você conseguirá criar uma imagem da palavra (word-image) aceitável.

A tipografia Dentro tem como condição de existência a proporção harmónica desses

espaços internos às palavras a fim de constituir uma imagem reconhecível. No entanto, para

que a contraforma de cada letra assumisse seu papel de caractere, foi preciso pensar uma

solução de compensação espacial diferente das outras tipografias.

Estado da arte

Encontram-se nesta secção alguns trabalhos que se aproximam da intenção exploratória da

tipografia Dentro, e que de alguma forma influenciaram e ajudaram a pensar as soluções que

foram aplicadas, bem como, propuseram reflexões teóricas ligadas à estética e à formação da

imagem da palavra de maneira geral.

No clássico Thypographie, Emil Ruder (2009) dedica a integralidade de um capítulo ao

estudo da forma e da contraforma. Os exemplos colocados no livro e os respetivos

comentários do autor tiveram papel essencial na interpretação dos trabalhos tipográficos

destacados a seguir.

Para se ter uma visão mais nítida do que se quer dizer, é preciso ir aos exemplos,

como a tipografia experimental de Blondina Elms, Revelation27. Trata-se de um estudo

interpretativo das capitais romanas com o objetivo de ponderar sobre como a forma da letra

revela ou traça as formas adjacentes e qual seria a melhor maneira de estabelecer essa relação

visualmente (fig.1).

Figura 1: A fonte experimental Reveletion relaciona de modo particular a forma das letras e as formas entre as letras, de modo que, numa

espécie de fusão, seja possível a formação das palavras.

27 Disponível em https://www.atelierelms.com/pages/elms_typedesign.html (acedido em 21 ago. 2017).

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Experiências tipográficas a utilizarem apenas as contraformas internas tendem a não

conseguir êxito em legibilidade, pois mantêm um relacionamento debilitado com os espaços

entre as letras. O próprio reconhecimento das formas alfabéticas, baseada na familiaridade

com a contraforma das letras, fica comprometido quando se anula a importância de abordar

as contraformas no contexto da palavra, isto é, as contraformas das letras em conjunto com

as contraformas entre as letras.

A tendência no desenvolvimento desse tipo de experiência na direção da legibilidade

é marcar, de alguma forma, extensões no exterior do traço, para ajudar na sugestão de qual

seja a letra. É o que se pode ver no processo de conceção da tipografia Lint Light,

desenvolvido por Kate Francis (fig.2).

Figura 2: De início, como mostra a figura mais acima28, havia fidelidade ao uso apenas das contraformas

internas das letras, com exceções para as letras i e t, que não apresentam contraformas, e para a letra l, que

aparece como vazio. A figura mais abaixo29 mostra a mesma frase com os caracteres da versão final aplicados.

Já se consegue ler, ainda com alguma dificuldade, a frase “Things that just happened, like lint”.

Pela aparência do resultado final de Lint Light, as formas fechadas – comportando-se

como silhuetas das letras que representam – ajudam a diferenciação entre os caracteres de

modo que seja possível supor a palavra, como é o exemplo comparativo entre a versão inicial

e final da palavra “happened”. Apesar de mais legível, a perceção de “that”, ou “just”, ou

“like”, por exemplo, é algo difícil, mesmo que sejam palavras recorrentes e, por isso,

teoricamente mais fáceis de serem reconhecidas pela questão da memória visual.

28 A primeira etapa está disponível em http://www.typophile.com/node/63025 (acedido em 21 ago. 2017). 29 O resultado final está disponível em http://www.katefrancisdesign.com/ (acedido em 5 set. 2017).

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Um terceiro exemplo, dessa vez com enfâse na valorização do espaço entre as letras,

é o poster para o evento “Dia Tipo” em São Paulo (Brasil)30, feito pela designer Estela

Mendes (fig.3).

Figura 3: Poster “Dia Tipo” e, ao lado, detalhe da contraforma cortada em madeira para fazer o letterpress.

É interessante notar que, caso fosse decidido anular as contraformas fechadas do D

e do O, ler-sei-a o cartaz com alguma dificuldade. Também atrasa o reconhecimento da

palavra a ausência da contraforma inferior da letra S. O detalhe da letra T que se repete após

o O sem muito sentido (TIPOT?), sugere a importância de se manter uma relação de espaço

relativo à construção da palavra para o reconhecimento das letras.

No último exemplo, a logo anterior a 2014 da agência de publicidade Brand Union

(fig.4), as formas entre as letras são subtraídas em prol da legibilidade até serem totalmente

eliminadas. É interessante notar que, se os espaços em branco na figura fossem usados para

reconstituir os traços que compõem as letras, as letras se sobreporiam.

Figura 4: Logo da Brand Union tem como ligação entre as contraformas internas o que

seria a sobreposição dos traços das letras, como que sem nenhum espaço entre letras.

Uma comparação entre esse último exemplo e o terceiro destaca aspetos importantes

da relação entre as contraformas dentro e entre as letras. Ruder prevê que se a intenção é fazer

30 Disponível em http://www.estelamendes.com/dia-tipo-2014 (acedido em 5 set. 2017).

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prevalecer os espaços internos das letras, a diminuição progressiva do que seja os espaços entre

as letras é o caminho a se tomar, por causa da compensação ótica.

The various effects obtained by the combination of letters are determined by the interplay of the white of the counter and the white of the set width. Narrow set width results in a more intense white and at the same time enhances the effect of the white counters. (Ruder, 2009, p. 52)

O que se vê, portanto, é que se a intenção é valorizar as contraformas internas em

detrimento das contraformas entre as letras na formação da palavra, faz-se necessário que a

compensação ótica tenda suprimir estes espaços adjacentes aos caracteres. É precisamente

essa relação que conduziu a conceção da tipografia Dentro.

Metodologia

Os princípios empregados nessa fase inicial da fonte Dentro estão limitados aos caracteres

maiúsculos de um alfabeto latino. A extração das contraformas das letras, que começou como

um exercício pessoal de visualização da teoria de Noordzij e do argumento de Smeijers, foi

feita em um processo simples de subtração por meio digital (fig.5).

Figura 5: Exemplo do processo inicial de extração da contraforma das letras

por destaque do fundo em relação à figura.

A fonte escolhida para este projeto foi FF Quadraat, de Fred Smeijres. Foi a primeira

família desenhada pelo autor e teve sua versão inicial em 1992. Ao que tudo indica, a fonte é

contemporânea à pesquisa que deu origem ao seu livro Contrapunção (Thompson, Smeijers,

2015) – o que sugere que ela contemplado em sua conceção alguns dos aspetos tratados no

livro, o que representa uma mais valia.

Uma primeira medida, já no sentido da definição das particularidades dessa tipografia

experimental, foi tomar as providências para que a largura de cada caractere fosse dada

maioritariamente pela largura de suas contraformas. A intenção por trás desse cuidado era

fazer com que os espaços entre os caracteres de uma palavra composta com a tipografia

Dentro criassem a ilusão das formas longitudinais das letras em si, e não dos espaços laterais

das letras, como nas tipografias regulares.

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Pode-se notar que entre os passos 3 e 4 da Figura 5, as contraformas laterais são

suprimidas. Isso porque, num processo inverso ao que acontece com os glifos, essa ausência

como que faz com que o ritmo dado pela intercalação dos espaços de fundo e figura, ou de

brancos e pretos, seja quebrado ao mínimo no caso da junção das contraformas.

Pela mesma razão da consistência do ritmo, optou-se por delimitar a contraforma no

sentido de excluir o espaço de abertura, que seria dado pelo vértice mais externo das serifas.

Essa escolha foi feita após um teste entre as duas possibilidades (fig.6), no qual se pode

observar que o fechamento da forma pelo vértice interno garante uma fluidez formal que

melhora a estética do tipo e possivelmente diminui os ruídos na leitura.

Figura 6: Acima, fechamento das formas pelo vértice interno. Abaixo, pelo vértice externo.

Para facilitar o trabalho de padronização, as letras foram divididas, de acordo com a sugestão

de Fred Smeijers, de acordo com a diferenciação mais nítida entre as contraformas internas:

fechadas, quase fechadas e abertas (Smeijers, 2015). Também acondiciou-se em um grupo os

caracteres isentos de contraforma interna.

As letras versais do alfabeto latino que possuem contraformas totalmente fechadas

geralmente são: B, D e O. Com bastante frequência, também as letras P e Q. Nas três

primeiras a extração da contraforma foi a mais simples possível. Não se pode dizer o mesmo

das letras P e Q, que possuem uma relação de espaço lateral mais complexa.

O espaço oco de P é muito similar a uma redução do oco do D ou ao corte longitudinal

da letra B (Noordzij, 2013). A solução foi demarcar a altura do P pela pequena abertura inferior

na barriga na letra31, até a base da serifa (fig.7). Já na letra Q, foi feita uma marcação mínima

na junção da linha inferior do bojo com a calda, a fim de enfatizar a existência de um espaço

lateral que a diferencia da letra O (fig.7).

31 Essa é característica particular que ocorre no desenho da letra P da fonte FF Quadraat.

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Figura 7: Exemplos das duas possibilidades que foram estudadas no desenho das letras P e Q.

Já nas contraformas quase abertas, existem letras cuja abertura não tem influência

nos espaços laterais, como é o caso de A, H, M, N, U, V e W, o que facilita a extração das

contraformas. Pode parecer, mas não é o mesmo caso em R, K e X. Apesar de terem

aberturas no sentido vertical, essas letras possuem concavidades laterais que influenciam na

compensação dos espaços laterais. Mesmo assim, optou-se por suprimir a contraforma

externa lateral nessas três letras, pelo facto de que as contraformas das letras R e K na fonte

FF Quadraat possuem diferenças longitudinais explícitas (fig.8)

Figura 8: Vê-se que a contraforma do R na fonte FF Quadraat possui duas partes e é bem mais larga que a

contraforma do K na mesma fonte, delimitada e uma única forma, pois sua forma original não possui junção.

As letras S e Z têm perfis parecidos. Apesar de possuírem aberturas laterais, mantêm

suas contraformas bem delineadas pelos segmentos que tendem a horizontalidade nos limites

que marcam a altura de versal.

A letra G inaugurou uma fase de pequenas manipulações das contraformas extraídas.

Na versão da primeira contraforma, o formado pontiagudo delimitado pela ligação entre os

vértices mais extremos da letra, traz inconveniências na compensação lateral nas

composições. A solução foi usar o vértice do arco e trazer um ponto paralelo no sentido do

fechamento da contraforma (fig.9), de modo que se apresentasse distinção entre as

contraformas do C e do O.

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Figura 9: Algumas tentativas de extração da contraforma da letra G e a versão final mais à direita.

Comparação entre C, G e o O dentro da palavra.

Diferenciar as letras E e F foi desafiador. Após diversas versões, chegou-se a

conclusão de que a melhor maneira seria unir os vértices inferior e superior sem levar em

consideração o braço intermediário em ambas as letras (fig.10).

Figura 10: Versões de E (acima) e F (abaixo), até a final.

A contraforma aberta do L foi extraída de forma simples. No caso da contraforma

do Y, que pode se confundir com a contraforma do V, foi considerado manter apenas um

dos espaços laterais, para demarcar a altura, como no caso do P.

As letras T, I e J não possuem qualquer espaço interno. Pelo facto de T possuir uma

barra horizontal, foi possível pensar uma solução na mesma lógica de extração da

contraforma de Z e S, levando-se em consideração o extremo das serifas como se fossem

formas horizontais.

Já nas letras I e J, por serem extremamente verticais, sem qualquer traço longitudinal

para além das serifas, a solução veio a partir da afirmação de Smeijers (2015). O autor explica

que alguns caracteres como T, I, 1, r, f tinham contrapunções que marcavam a regularidade

de suas hastes. Foi com base nessa afirmação que se construiu contraformas internas das

letras sem espaço oco. Pela simetria da letra I se fez indiferente o lado, mas pela letra J

escolheu-se o lado esquerdo, por possuir de facto a ligação entre dois pontos da letra em si

(fig.11).

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Figura 11: Comparação entre as versões do que seriam as contraformas das letras I e J

Discussão dos Resultados

Figura 12: Tipografia experimental Dentro (Alfabeto latino)

A questão da serifa foi algo que, logo de início, fez pensar que a lógica da contraforma

caminharia por uma espécie de “contra-lógica” tipográfica. A intenção de considerar os

vértices mais externos e, portanto, a serifa, na extração da contraforma era baseada na

hipótese de, sendo a abertura menor, a forma interna seria melhor delimitada – o que

contribuiria para legibilidade. No entanto, essa contribuição é mesmo para o glifo, não se

estendendo à contraforma do glifo, na qual acaba por causar uma espécie de ruído visual (ver

fig.6).

Outro facto a se considerar são as letras que possuem delimitações laterais claras,

pela existência de barras, que são mais fáceis de visualizar na composição das palavras em

contraformas. É possível que essas letras possuam papel relevante na fixação da imagem da

palavra em caixa-alta, assim como Messier, em 1903, destacou a relevância das consoantes

ascendentes para o reconhecimento da imagem da palavra em caixa-baixa. (Spencer, 1969)

Ainda outro ponto a se discutir, está na solução pensada para a das letras sem

qualquer contraforma interna, que acabou por trazer à luz desdobramentos não esperados

na compensação ótica das palavras que compõem. Smeijers (2015) fala que o uso das

contrapunções em caracteres desse tipo era feito para marcar a largura das hastes.

Inicialmente observado no T, mas também presente nas letras N, S e Z (ver fig. 12), o traço

que contra a contraforma acaba por determinar o traço de maior contraste no caractere

sugerido, o que dificultou encontrar a compensação ótica proporcional entre os caracteres

de maneira geral.

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Conclusão

A ideia de transformar esse estudo de especulação formal em tipos que pudessem ser compostos

em palavras está baseada na possibilidade real de comprovar a importância dos espaços no

interior e entre as letras na formação da imagem das palavras. Esse é um objetivo que se considera

cumprido já na fase de composição só com letras versais.

No entanto, existe a questão de que a imagem das palavras compostas em letras

maiúsculas não possui tanta força quanto as das palavras minúsculas (Spencer, 1969;

Noordzij, 2013). Isso impulsiona a continuidade dos estudos referente a contraforma também

nas letras minúsculas. Isso faz impulsionar ainda mais a continuidade do estudo desse tema,

bem como do desenvolvimento da tipografia experimental Dentro também para as letras

minúsculas e outros caracteres.

Nesse sentido, será exigido muito mais quanto à padronização de espaços de

contraforma aberta e a presença de ascendentes e descendentes, que influenciam a altura da

contraforma dos espaços laterias das letras. Em versais, como já dito, existe um fator

facilitador, a linha de altura da versal, que faz com que os espaços entre as letras sejam mais

fáceis de delimitar.

É possível que se leve em consideração algumas pesquisas e projetos tipográficos que

se debruçam sobre os caracteres em caixa-baixa, tais como a pesquisa tipográfica de Thomas

Huot-Marchande para seu tipo Minuscule, baseado nos escritos de Émile Javal sobre

reconhecimento das formas das letras e compensação ótica para leitura de tipos em tamanhos

extremamente pequenos (Bi’lak, 2005).

A Teoria de Messier sobre a personalidade das palavras e sua força de sua imagem,

medidas pelas influências das letras quando a extensão, peso e forma geométrica na formação

das palavras (Spencer, 1969) também pode ser um ponto a se considerar na extração das

contraformas nas letras minúsculas.

Sob um panorama geral, acredita-se que de facto foi possível refletir, não só de forma

teórica, mas também prática, sobre a importância dos espaços internos dentro e entre as

letras no reconhecimento da palavra. Foi de igual modo relevante observar os desafios

presentes no universo da microtipografia para um design de tipos, no qual ajustes mínimos

de pontos e formas reverberam a tão buscada qualidade na formação da imagem da palavra.

Referências

Bi’lak, P. (2005, Janeiro 23). Experimental Typography. Whatever that means. Disponível em

Page 92: Uma experimentação tipográfica em torno da …...TIPOGRAFIA EXPERIMENTAL DENTRO 44 3.1 Pressupostos teóricos 48 3.2 Metodologia e Desenvolvimento 49 3.2.1 Maiúsculas 53 3.2.2

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______. (2011, Fevereiro 24). Conceptual Type? Disponível em

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Meggs, P. B., & Purvis, A. W. (2009). História do Design Gráfico. São Paulo: Cosac Naify.

Noordzij, G. (2013). O traço: Teoria da escrita. São Paulo: Blucher.

Ruder, E. (2009). Typographie: Ein Gestaltungslehrbuch = Typography : a manual of design =

Typographie : un manuel de creation. Sulgen: Niggli.

Smeijers, F. (2015). Contrapunção: fabricando tipos no século dezesseis, projetando tipos hoje.

Brasília: Estereográfica.

Thompson, M., Smeijers, F. (2015). Reputations: Fred Smeijers. Eye, 23(90), n.90. Disponível

em http://www.eyemagazine.com/feature/article/reputations-fred-smeijers