uma concepção pragmática de ensino e aprendizagem concepção pragmática de ensino e...

12
459 Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.3, p. 459-470, set./dez. 2007 Uma concepção pragmática de ensino e aprendizagem Cristiane Maria Cornelia Gottschalk Universidade de São Paulo Resumo Com a virada lingüística no final do século XIX, surgiram novas epistemologias que passaram a considerar o papel fundamental da linguagem e de sua práxis na constituição dos sentidos da nossa experiência. Em particular, o filósofo Wittgenstein passa a falar em jogos de linguagem para enfatizar as atividades envolvidas com a linguagem, vistas como instrumentos lingüísticos por excelência. Não obstante, o pragmatismo na Educação continuou reservando à lin- guagem apenas a função de descrever a experiência ou de ser sua representante. Nesse sentido, o texto propõe uma reflexão sobre o ensino e a aprendizagem no contexto escolar que tenha como refe- rência uma epistemologia de inspiração wittgensteiniana, a pragmá- tica filosófica, com o intuito de se repensar as atuais práticas peda- gógicas, as quais têm oscilado entre uma concepção essencialista da Educação (todos constroem um mesmo conhecimento) e, no outro extremo, a possibilidade de um relativismo total. Entre o transcen- dental e o empírico, a pragmática filosófica nos dá instrumentos para ver a atividade do ensino como a apresentação de uma determinada visão de mundo, fundamentada em regras de natureza convencional, e que, portanto, não são passíveis de ser descobertas pelo aluno, mas ao mesmo tempo são as condições de sentido para que o aluno, uma vez persuadido pelo professor, possa organizar de uma outra maneira a sua experiência orientada por essas regras. Palavras-chave Ensino – Aprendizagem – Linguagem e pragmática. Correspondência: Cristiane Maria C. Gottschalk Rua Maracatu 102, casa 16 06711-340 – Cotia – SP e-mail: [email protected]

Upload: lebao

Post on 04-Dec-2018

218 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

Page 1: Uma concepção pragmática de ensino e aprendizagem concepção pragmática de ensino e aprendizagem Cristiane Maria Cornelia Gottschalk Universidade de São Paulo Resumo Com a virada

459Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.3, p. 459-470, set./dez. 2007

Uma concepção pragmática de ensino eaprendizagem

Cristiane Maria Cornelia GottschalkUniversidade de São Paulo

Resumo

Com a virada lingüística no final do século XIX, surgiram novasepistemologias que passaram a considerar o papel fundamental dalinguagem e de sua práxis na constituição dos sentidos da nossaexperiência. Em particular, o filósofo Wittgenstein passa a falar emjogos de linguagem para enfatizar as atividades envolvidas com alinguagem, vistas como instrumentos lingüísticos por excelência. Nãoobstante, o pragmatismo na Educação continuou reservando à lin-guagem apenas a função de descrever a experiência ou de ser suarepresentante. Nesse sentido, o texto propõe uma reflexão sobre oensino e a aprendizagem no contexto escolar que tenha como refe-rência uma epistemologia de inspiração wittgensteiniana, a pragmá-tica filosófica, com o intuito de se repensar as atuais práticas peda-gógicas, as quais têm oscilado entre uma concepção essencialista daEducação (todos constroem um mesmo conhecimento) e, no outroextremo, a possibilidade de um relativismo total. Entre o transcen-dental e o empírico, a pragmática filosófica nos dá instrumentos paraver a atividade do ensino como a apresentação de uma determinadavisão de mundo, fundamentada em regras de natureza convencional,e que, portanto, não são passíveis de ser descobertas pelo aluno, masao mesmo tempo são as condições de sentido para que o aluno,uma vez persuadido pelo professor, possa organizar de uma outramaneira a sua experiência orientada por essas regras.

Palavras-chave

Ensino – Aprendizagem – Linguagem e pragmática.

Correspondência:Cristiane Maria C. GottschalkRua Maracatu 102, casa 1606711-340 – Cotia – SPe-mail: [email protected]

Page 2: Uma concepção pragmática de ensino e aprendizagem concepção pragmática de ensino e aprendizagem Cristiane Maria Cornelia Gottschalk Universidade de São Paulo Resumo Com a virada

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.3, p. 459-470, set./dez. 2007460

A pragmatic conception of teaching and learning

Cristiane Maria Cornelia GottschalkUniversidade de São Paulo

Abstract

After the linguistic shift of the late 19th century, new epistemologiesemerged taking into account the fundamental role played bylanguage and its praxis in the constitution of the meanings of ourexperience. Notably, philosopher Ludwig Wittgenstein speaks of“language-games” to emphasize the actions involved in language,seen as linguistic instruments par excellence. Nevertheless, thepragmatism in education continued to ascribe to language only therole of describing the experience, or of being its representative. Withthese considerations in mind, the present text proposes to reflectupon teaching and learning within the school context, having as itsreferential an epistemology of Wittgenstenian inspiration, thephilosophical pragmatics, with a view to rethink the currentpedagogical practices, which have oscillated between an essentialistconception of education (we all construct one same knowledge)and, in the other extreme, the possibility of a total relativism.Between the transcendental and the empirical, the philosophicalpragmatics gives us instruments to see the teaching action as therepresentation of a certain worldview, grounded on rules of aconventional nature which, therefore, cannot be uncovered by thepupil, but, at the same time, constitute the conditions for themeaning so that the pupil, once persuaded by the teacher, can orga-nize his/her experience in a different way, oriented by these rules.

Keywords

Teaching – Learning – Language and pragmatics.

Contact:Cristiane Maria C. GottschalkRua Maracatu 102, casa 1606711-340 – Cotia – SPe-mail: [email protected]

Page 3: Uma concepção pragmática de ensino e aprendizagem concepção pragmática de ensino e aprendizagem Cristiane Maria Cornelia Gottschalk Universidade de São Paulo Resumo Com a virada

461Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.3, p. 459-470, set./dez. 2007

Como se dá o processo de atribuição desentidos para as nossas experiências empíricas ementais? Como se transmitem sentidos? Qual se-ria a fonte de legitimidade de nossos diferentes co-nhecimentos? Eis algumas questões que intrigamos epistemólogos... e que interessam diretamenteao educador. Afinal, o papel do professor ao lon-go dos séculos tem sido o de transmitir algo a seualuno, e a natureza do que se transmite determi-na os meios de sua transmissão. Assim, respostasdiferentes às questões acima levam a práticas pe-dagógicas bastante distintas. Entretanto, a procurapor fundamentos do conhecimento, fixos e imu-táveis, tem negligenciado os usos efetivos de nos-sas expressões lingüísticas nas práticas cotidianas,históricas e transitórias. Em outras palavras, amaior parte das investigações epistemológicas nãoleva em consideração o papel constitutivo da lin-guagem e da práxis na construção do conheci-mento. Mesmo com a virada lingüística que seinicia no final do século XIX, cujo maior represen-tante é o filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein, eque causou uma revolução copernicana ao deslo-car os fundamentos cognitivos do sujeito para alinguagem, são praticamente inexistentes os estu-dos pedagógicos que se apóiam em concepçõespragmáticas do conhecimento1.

Com o intuito de contribuir para uma refle-xão educacional ainda incipiente sob uma perspec-tiva pragmática de ensino e aprendizagem, apre-sentarei algumas idéias de uma epistemologia deinspiração wittgensteiniana (Moreno, 2005)2, de-nominada de pragmática filosófica, que consideraelementos da práxis da nossa linguagem comoconstituintes dos sentidos que construímos para anossa experiência, não para sugerir novos métodosde ensino, mas para questionar determinadas ori-entações de teorias pedagógicas atuais e apontarpara um novo modo de ver as relações entre en-sino e aprendizagem.

A concepção referencial dalinguagem na Educação

São diversas as metáforas utilizadas nocampo educacional para sintetizar suas diferentes

concepções sobre ensino e aprendizagem, masconsiderarei apenas duas delas, como represen-tantes de duas perspectivas opostas do desenvol-vimento humano: somos vistos ora como umaplanta cuja seiva imprime determinada direção aseu crescimento e que, portanto, já conteria emgérmen todas as suas possibilidades3; ora comoum pedaço de argila que vai sendo trabalhadocontinuamente pelo escultor.4 A primeira imagemsugere um desenvolvimento espontâneo da crian-ça, como se houvesse uma mesma matriz emtodos os indivíduos que possibilita o seu acessoao conhecimento, processo que seria apenasmediado pelo professor. Já a segunda imagemdesconsidera qualquer tendência inata, cabendoexclusivamente ao professor a transmissão deconhecimentos e o desenvolvimento de habilida-des e capacidades no aluno. Em um desses pó-los, teríamos o naturalismo de Rousseau, grandeinspirador da escola nova, que teria enfatizadoexcessivamente a espontaneidade da criança e, dooutro lado, o empirismo clássico segundo o qualnada existiria em nós antes da socialização, de-correndo daí um ensino mais expositivo, que nãolevaria em consideração a experiência do próprioaluno. Ambas vertentes deixavam perguntas semrespostas. Como explicar, por exemplo, a capaci-dade de um aluno para aprender determinadosconteúdos por si só e, por outro lado, como jus-tificar a produção de conhecimentos e culturastão diferentes? O inatismo parecia conduzir a uma

1. Com exceção de alguns filósofos analíticos da Escola de Cambridge,como Ryle, Oakeshott, Scheffler e Passmore, dentre outros, muitos sepreocuparam mais com uma análise conceitual da linguagem educacionaldo que propriamente com as questões voltadas para a constituição dossentidos e de sua transmissão.2. A pragmática filosófica tem origem nos trabalhos de Arley RamosMoreno, que formulou uma teoria da representação lingüística inspiradanas idéias de Wittgenstein sobre o papel da linguagem na organização denossas experiências empíricas ou mentais.3. Essa imagem está presente no Emílio de Rousseau, no qual o filósofonaturalista apresenta uma visão inatista do desenvolvimento humano.Segundo ele, as idéias são precedidas pelos sentimentos, os quais por suavez seriam inatos no homem. Preconizava uma educação negativa, ouseja, deveria haver um mínimo de intervenção do mestre, já que a criançaseria capaz de se estruturar espontaneamente.4. Essa é a imagem que temos, por exemplo, da formação religiosa e militar.Do mesmo modo que a forma final da argila depende integralmente da escolhade um molde predeterminado, o desenvolvimento do aluno seria responsabi-lidade quase que exclusiva do professor. Em alguma medida, é assim tambémque as pedagogias contemporâneas vêm o ensino dito ‘tradicional’.

Page 4: Uma concepção pragmática de ensino e aprendizagem concepção pragmática de ensino e aprendizagem Cristiane Maria Cornelia Gottschalk Universidade de São Paulo Resumo Com a virada

462 Cristiane M. C.GOTTSCHALK. Uma concepção pragmática de ensino...

concepção essencialista da Educação, levando aum determinismo pouco desejável, enquanto quedeterminadas vertentes do empirismo corriam orisco de desembocar em um relativismo total.Assim, as grandes questões educacionais continu-avam demandando respostas mais satisfatórias.

O pragmatismo americano, cujo maiorrepresentante foi Dewey, pode ser visto comouma das tentativas de se superar as contradi-ções imanentes a cada uma dessas concepçõeseducacionais ao introduzir um novo sentidopara o conceito de experiência, vista não ape-nas como um processo empírico, mas comouma relação entre dois corpos quaisquer douniverso interagindo entre si, incorporando,assim, a noção de atividade como constituintedo processo de aprendizado. O filósofo e edu-cador, para quem o aluno deve aprender fazen-do, inaugura, assim, um empirismo que leva emconsideração a práxis, ou seja, a idéia de quetudo deve ser ensinado em função do seu usoe da sua função na vida. Um conhecimento éconsiderado verdadeiro se for útil, se resolver osproblemas enfrentados pelo homem. Nesse senti-do, Dewey é considerado um antifundacionista,uma vez que não procura fundamentos últimosnem em estruturas inatas e tampouco no empírico,mas no contingente, na eficácia das ações e nosfatos para resolverem com sucesso quaisquer obs-táculos, sejam naturais ou sociais. Em um de seustextos de 1902 (Dewey, 1978), “A criança e oprograma escolar”, propõe que vejamos os nos-sos diferentes conhecimentos acumulados aolongo dos séculos como experiências da espécie,já contidas de algum modo na criança:

Qual é, pois, o problema? Não é outro senãoo de afastar a idéia funesta de que existeuma distinção qualitativa (não apenas degrau), entre a experiência infantil e as váriasmatérias de que se constrói o plano de estu-dos. Do lado da criança, basta ver que suaexperiência já contém elementos – fatos econhecimentos – exatamente da mesma na-tureza daqueles que compõem a matéria deestudo; e, o mais importante, que a sua ex-

periência já implica as atitudes, motivos einteresses que levaram à organização da dis-ciplina ao nível que hoje ocupa.Da parte dos estudos, basta que os interpre-temos como o desenvolvimento amadureci-do das mesmas forças que operam na vidada criança, e que descubramos as fases quedevem mediar entre a presente experiênciainfantil e seu enriquecimento progressivo.Abandonemos a noção de ‘matérias’ comocoisas fixas, integrais e alheias à experiênciada criança; evitemos pensar nessa experiên-cia como se fora qualquer coisa rígida e aca-bada; vejâmo-la no seu caráter embrionário,móvel e vital; e compreenderemos, assim,que a criança e os programas são simples-mente dois limites extremos do mesmo pro-cesso. Do mesmo modo que dois pontosdefinem uma linha reta, assim o estado pre-sente da criança e os fatos e verdades dosestudos definem o ensino. (p. 47-48)

Assim, é como se a experiência adulta jáse encontrasse em gérmen na experiência infan-til, sendo que o educador deve ter apenas ocuidado de imprimir a correta direção... A dire-ção entendida não como imposição externa, mascomo uma “libertação do processo vital para oseu mais completo e adequado desenvolvimen-to” (Dewey, 1978, p. 52). Como vemos, encon-tramos nessas passagens de seus escritos a cren-ça em certa espontaneidade do processo deconstrução do conhecimento, como se este se-guisse uma lei natural de desenvolvimento jápresente no espírito da criança. Desse modo,Dewey evitava o relativismo total ao pressuporuma potencialidade inata comum a todas as cri-anças, mas que, não obstante, poderia se desen-volver de modos diferentes em situações histó-rico e socioculturais distintas, evitando-se, assim,aparentemente, também uma postura essen-cialista na medida em que vê a construçãocognitiva da criança como um processo eminen-temente social. No entanto, embora Dewey con-sidere aspectos pragmáticos na constituição dossentidos pelo aluno (aprende-se fazendo...), man-

Page 5: Uma concepção pragmática de ensino e aprendizagem concepção pragmática de ensino e aprendizagem Cristiane Maria Cornelia Gottschalk Universidade de São Paulo Resumo Com a virada

463Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.3, p. 459-470, set./dez. 2007

tém certo naturalismo, próximo ao de Rousseau,uma vez que as ações consideradas são as quederivam de contextos empíricos contingentes, eque conduziriam a conhecimentos legítimos,caso tenham obtido sucesso ou sido eficientespara resolver determinados problemas. Ou seja,são ações de natureza empírica, sem nenhumafunção estruturante: naturalmente conduziriamao conhecimento já institucionalizado.

Sob outra roupagem, encontramos as mes-mas idéias nas teorias psicogenéticas de JeanPiaget (1983)5 (que inspiraram por sua vez algu-mas vertentes pedagógicas construtivistas) e, maisrecentemente, na teoria das múltiplas inteligênci-as6 e na pedagogia das competências (Piaget,1983)7. O discurso pedagógico atual apenas reno-vou a terminologia mais clássica e reformulou al-gumas expressões tais como o aprender fazendode Dewey para “o aluno constrói o seu próprio co-nhecimento”; as “potencialidades naturais do alu-no” para os vários tipos de inteligências presentesa priori na criança (a matemático-lógica, a verbal,a musical, a aptidão espacial...); o pragmatismopassa a ser chamado de interacionismo etc. É cla-ro que todos esses termos só adquirem plenosentido no interior dessas diferentes teorias sobreensino e aprendizagem. Nossa intenção é apenasa de apontar para o fato de que se continuamantendo como pressuposto inquestionável aexistência de algum tipo de estrutura interna,de natureza mental ou mesmo fisiológica (ge-nética, neurológica, estruturas cognitivas, com-petências...) que, ao interagir com o meioempírico e social, produziria naturalmente co-nhecimentos científicos e matemáticos, a des-peito de eventuais diferenças sociais e culturais.

Em todas essas análises, dá-se poucarelevância ao papel da linguagem na constitui-ção dos sentidos que atribuímos às nossasexperiências, visto que esta tem sido conside-rada como tendo uma função essencialmentecomunicativa e descritiva da realidade. Emoutras palavras, tem se reservado à linguagemapenas a função de descrever a experiência oude ser sua representante. No pragmatismoamericano, por exemplo, o conceito de cadei-

ra só seria passível de ser aprendido depois quea criança tivesse experimentado e usado oobjeto cadeira (Teixeira apud Dewey, 1978).Nesse sentido, o conhecimento não seria trans-mitido diretamente pela palavra. No máximo, estalevaria a compreender todos os outros móveiscom fins idênticos que não estejam ao alcancedo conhecimento direto pelo uso ou experiên-cia. Assim, no melhor dos casos, a linguagemteria a função de ampliadora da experiência. Apalavra apenas representaria, condensadamente,tudo aquilo que significam as experiências decada um com relação a esse objeto.

Essa concepção de linguagem foi chama-da pelo filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein deconcepção referencial da linguagem, ao notar, jános textos filosóficos de Santo Agostinho8, essemodo exclusivista de se ver as funções de nossalinguagem, como se esta apenas denominasse ascoisas, ou seja, os significados das palavras seri-am as coisas que elas representam. Também paraele, às palavras aprendidas, correspondem signi-ficados (ou conjuntos de significados) que dizem

5. Por meio de pesquisas empíricas, Piaget estipulou estágios de desen-volvimento que, segundo ele, parecem testemunhar uma construção con-tínua. Para ele, o desenvolvimento da inteligência na criança se dá ao longoda interação de suas estruturas cognitivas com o meio. No entanto, a lin-guagem empregada até pelo menos o surgimento do pensamento simbó-lico (fase dos 2 aos 7 anos) é vista como simplesmente um acompanha-mento da ação. Por exemplo, somar é o nome que se dá para a ação dejuntar e assim por diante.6. Para essa teoria, formulada na década de 1980 pelo psicólogo HowardGardner em suas obras Frames of Mind e Multiple Intelligences, não have-ria um único desenvolvimento cognitivo, um tipo único de inteligência de-cisiva para ter sucesso na vida, mas sim um amplo espectro de inteligên-cias, com sete variedades-chave. Já na década de 1990, seu colega DanielGoleman acrescentou mais uma modalidade de inteligência, a emocional,explicitada em sua obra Emotional Intelligence.7. A pedagogia das competências se inspira nas idéias do sociólogo suíçoPhilippe Perrenoud, exercendo atualmente uma grande influência no Bra-sil, por meio dos atuais Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e o Pro-grama de Formação de Professores Alfabetizadores (Profa), estabelecidospelo MEC no governo de Fernando Henrique Cardoso. Para Perrenoud,competência seria a faculdade de mobilizar um conjunto de recursoscognitivos, abrangendo oito grandes categorias, que vão desde as capaci-dades mais abstratas, como saber conviver com regras, até as capacida-des mais específicas, como saber desenvolver estratégias para manter oemprego em situações de reestruturação de uma empresa... (Cf. Entrevistacom Philippe Perrenoud. Nova Escola, set. 2000, p.19-31).8. Esta concepção já aparece no século IV d.C., em particular quandoSanto Agostinho discorre sobre as finalidades da linguagem e suas rela-ções com o ensino em sua obra O mestre. Para o filósofo medieval, aspalavras apenas evocam significados previamente existentes na alma,verdades reveladas pelo único mestre de todos: Deus.

Page 6: Uma concepção pragmática de ensino e aprendizagem concepção pragmática de ensino e aprendizagem Cristiane Maria Cornelia Gottschalk Universidade de São Paulo Resumo Com a virada

464 Cristiane M. C.GOTTSCHALK. Uma concepção pragmática de ensino...

respeito às experiências vividas relacionadas aessas palavras, ou seja, o conhecimento das coi-sas é anterior à palavra, esta apenas representa re-sumidamente o conjunto de experiências a elaassociadas. Tanto para o filósofo medievalcomo para Dewey, as experiências associadasaos objetos permanecem independentes da lin-guagem, ou seja, o significado de uma palavraantecede o seu aprendizado. Penso que essemodo de entender a formação dos conceitos ede como atribuímos significado a eles perma-nece inquestionável nos atuais discursos edu-cacionais, como vemos na seguinte passagemdos Parâmetros Curriculares Nacionais, docu-mento oficial do MEC para orientação pedagó-gica em todo o território nacional:

Para aprender sobre digestão, subtração ouqualquer outro objeto de conhecimento, oaluno precisa adquirir informações, vivenciarsituações em que esses conceitos estejamem jogo, para poder construir generalizaçõesparciais que, ao longo de suas experiências,possibilitarão atingir conceitualizações cadavez mais abrangentes; estas o levarão àcompreensão de princípios, ou seja, concei-tos de maior nível de abstração, como oprincípio da igualdade na matemática, oprincípio da conservação nas ciências etc.(PCN, 1997, v. 1, p. 74)

Podemos observar nessa passagem aherança do pragmatismo de Dewey, ao se con-siderar que a construção dos conceitos (comoos de digestão e de subtração) tem início naexperiência atual do aluno, a qual vai se mo-dificando progressivamente, passando porconceitualizações cada vez mais abrangentes,até alcançar um nível maior de abstração, queseriam os princípios, como por exemplo, cita-dos no texto oficial: da igualdade na matemá-tica e o da conservação nas ciências.

Como vemos, para essas orientaçõespedagógicas, inspiradas no pragmatismo deDewey, há todo um trajeto que precede a for-mulação de conceitos e princípios, trajeto esse

ancorado na experiência empírica ou mental oumesmo na interação entre ambas. A função dalinguagem se resumiria a dar nome a essasexperiências progressivamente acumuladas. Porconseguinte, temos ainda aqui uma concepçãoclaramente referencial da linguagem: usamosnossas palavras e nossos princípios para nos re-ferirmos a um mundo de natureza empírica oumental, anterior à formulação dessas palavras(digestão, subtração...) ou à formulação de prin-cípios (da igualdade na matemática, da conserva-ção nas ciências...). Entretanto, será que, de fato,é assim que atribuímos significados às nossasexperiências? A linguagem teria apenas a funçãode resumi-las e no máximo de ampliá-las?

A virada lingüística

Como já mencionamos, no final do sécu-lo XIX, começam a surgir novas reflexões sobrea linguagem, reunidas pela expressão viradalingüística. Em particular, impulsionado pelasidéias do filósofo austríaco Ludwig Wittgensteinjá em meados do século XX, esse novo movi-mento instigou vários filósofos da educação delíngua inglesa, como Gilbert Ryle, MichaelOakeshott, Israel Scheffler, entre outros, a reto-marem as questões filosóficas da educação sobessa nova perspectiva lingüística. Uma das con-tribuições de Wittgenstein para essa mudançafoi a de ter sugerido que não pensemos, masolhemos como de fato utilizamos a nossa lin-guagem. Para ele, o significado de uma palavraestá no uso que fazemos dela em um determi-nado contexto ou jogo de linguagem.Wittgenstein utiliza essa expressão paraenfatizar que não há significados fixos e imu-táveis que seriam apenas etiquetados por meiodas palavras. Estas estão imersas em diferentesatividades e é apenas quando as aplicamos emum determinado contexto que adquirem signi-ficado. Assim, da mesma forma que uma peçade tabuleiro em um jogo de xadrez difere deuma mera peça de madeira em virtude de seupapel no jogo, as palavras só adquirem senti-do ao serem empregadas dentro de um jogo de

Page 7: Uma concepção pragmática de ensino e aprendizagem concepção pragmática de ensino e aprendizagem Cristiane Maria Cornelia Gottschalk Universidade de São Paulo Resumo Com a virada

465Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.3, p. 459-470, set./dez. 2007

linguagem. Ao aplicarmos uma palavra, estamosseguindo regras tácitas na linguagem, do mes-mo modo que ao movermos uma peça qual-quer do jogo de xadrez estamos agindo deacordo com as regras do xadrez. Não podemosmover a torre do mesmo modo que movemoso cavalo ou um peão. As regras que seguimospara mover a torre são diferentes das que se-guimos ao mover o cavalo ou um peão. Sãoessas regras que orientam o movimento dessaspeças, ou melhor, ao jogarmos xadrez, movimen-tamos as peças guiados por suas regras. São elasque dão sentido aos movimentos que fazemoscom as peças do jogo. Segundo Wittgenstein, aoempregarmos nossos conceitos, não somos deter-minados pela regra, como que a distância, etampouco se trata de estados subjetivos ou ge-neralizações empíricas que possibilitam a formu-lação dessas regras. Estas têm como função ape-nas orientar nossa atividade, como o fazem asplacas de trânsito ou outros sinais que indicamdireção. São as condições de sentido para asnossas ações empíricas. Agimos em uma institui-ção segundo o que se espera ou o que faz sen-tido no seu interior.

Assim, diremos que o significado dapalavra cadeira vai ser dado pela regra, ou porum conjunto de regras que estou seguindo aoempregar essa palavra em um determinadocontexto, e não por uma experiência que sejaextraída de determinados objetos empíricos. Daío termo jogo de linguagem. Utilizamos as pa-lavras dentro de uma linguagem que tem regrasde uso, que não se confundem com nossasexperiências empíricas. São regras públicas, quesão ensinadas e aprendidas. Essas regras nãodecorrem naturalmente de nossas ações sobrea realidade, pelo contrário: são elas que insti-tuem os objetos sobre os quais falamos. Aoempregarmos a palavra cadeira, seguimos regrastais como servem para sentar, são estáveis (nãodesmontam quando sentamos nelas e tampoucodesaparecem), existem, não voam, a maior partedelas têm quatro pés, podem ser empurradasetc. É esse conjunto de regras que dá sentidoa qualquer experiência que eu tenha com o

objeto empírico cadeira, diferentemente daidéia de que o conceito de cadeira seja umproduto final de todas as minhas experiênciasindividuais com esse objeto. Como se essa pa-lavra tivesse apenas a função de englobar todasessas sucessivas experiências que levariam aoverdadeiro significado dessa palavra ou, ainda,como se houvesse um significado comum a to-das essas experiências expressas lingüisticamentepor essa palavra.

Wittgenstein nos chama a atenção parao fato de que utilizamos uma palavra de diver-sas maneiras, sem que haja algo em comum atodos esses usos. O que há são apenas seme-lhanças de família, como as que há entre osmembros de uma mesma família: um tem omesmo nariz do pai, que tem a mesma estatu-ra que o irmão, que por sua vez lembra o tioque tem a mesma cor de cabelo da mãe... En-fim, há semelhanças de família entre todos,embora não haja nada em comum a todos eles!Da mesma forma, posso imaginar uma família decadeiras todas semelhantes entre si, sem quehaja algo em comum a todas elas. E no momen-to que profiro essa palavra, estarei pensando emuma determinada cadeira e não no conjunto detodas as cadeiras possíveis. Essa palavra só passaa ter significado quando eu a aplico em umdeterminado contexto. E são as diversas aplica-ções dessa palavra que vão permitir, a partir deum momento não previsível, que eu tenha oconceito de cadeira, a saber, que eu seja capazde aplicar essa palavra a situações novas e atémesmo inusitadas. Uma vez formado esse concei-to, este passa a organizar a minha experiência,passo a reconhecer no conjunto de móveis à mi-nha frente objetos que vejo imediatamente comocadeiras. Em outras palavras, é o conceito assimformado que me permite atribuir sentidos à minhaexperiência (o que é e o que não é cadeira; ser ounão ser cadeira), e não que experiências acumula-das com cadeiras irão gradualmente se condensarna essência de cadeira, posteriormente denominadapor essa palavra.

Qual seria, então, do ponto de vista dapragmática filosófica, o papel da experiência na

Page 8: Uma concepção pragmática de ensino e aprendizagem concepção pragmática de ensino e aprendizagem Cristiane Maria Cornelia Gottschalk Universidade de São Paulo Resumo Com a virada

466 Cristiane M. C.GOTTSCHALK. Uma concepção pragmática de ensino...

construção de nossos conceitos? Como vimos,é o conhecimento já instituído que permite irorganizando a nossa experiência em geral.Mesmo a percepção empírica já é conceitual(poder ver imediatamente uma cadeira à minhafrente já pressupõe a posse do conceito decadeira). No entanto, não podemos negar queno processo de constituição dos conceitostambém recorremos a elementos empíricoscomo, por exemplo, para nomear determinadosobjetos. Posso eventualmente apontar para umacadeira e pronunciar a uma criança pequena,concomitantemente, a palavra cadeira. Entretan-to, o gesto ostensivo (o apontar para o objeto)não é mais um simples gesto empírico, passa ater uma função lingüística: define o que é ca-deira. E quanto à própria cadeira apontada,contrariamente à concepção referencial da lin-guagem, esta não é o significado da palavracadeira, mas apenas um paradigma do que écadeira, uma amostra de cadeira, ou seja, oobjeto cadeira também passa a exercer umafunção lingüística.

É nesse sentido que fragmentos do empí-rico passam a ter uma função transcendental,tornam-se regras para o uso das palavras e pas-sam a organizar assim a nossa experiência, tantoexterna como interna. Em outros termos, gestosostensivos, tabelas, amostras de objetos empíricose outros recortes do empírico são utilizados comomeios de apresentação de objetos associados apalavras e, nesse sentido, passam a fazer parte dalinguagem. Deixam de ser elementos meramenteempíricos e tornam-se instrumentos lingüísticos.Assim, da perspectiva da pragmática filosófica, oconceito de cadeira não é construído a partir doconjunto de minhas experiências com cadeirasempíricas, mas são técnicas lingüísticas (que en-volvem fragmentos do mundo empírico) que mepermitem atribuir significado a essas experiênci-as e, assim, organizar posteriormente a minha ex-periência de um outro modo. Além do que, comojá foi dito, ao empregar essa palavra, pressupo-nho também uma série de proposições lingüís-ticas tacitamente implícitas em determinadoscontextos que atribuem sentido ao conceito de

cadeira como, por exemplo, a proposição deque cadeiras existem, se eu sentar nelas não vãodesaparecer, perduram ao longo do tempo etc.Voltando à analogia com o jogo de xadrez, écomo se essa palavra fosse também uma peça deum jogo, seguindo, portanto, determinadas regras.

É esse caráter público das nossas ações(governadas por regras de natureza convenci-onal) e o papel transcendental do empírico naconstituição dos sentidos que terminam poresclarecer, a meu ver, diversos problemas edu-cacionais, dentre os quais, os apontados inici-almente, como o paradoxo da possibilidade deconstrução de novos conhecimentos a partir deum número limitado de informações, as contro-vérsias sobre os critérios de legitimidade doconhecimento a ser construído e outras ques-tões de natureza epistemológica com reflexosem nossas práticas pedagógicas. Esse parado-xo foi formulado por Gilbert Ryle (s/d) nosseguintes termos:

[...] decidimos que um menino, que se en-contra em um certo estágio de desenvolvi-mento, é capaz de ensinar-se a si mesmoalgo novo, algo que não figura, portanto,no repertório das coisas que conhece e quepode ensinar. Aqui o professor é tão igno-rante quanto o aluno, já que é o mesmomenino quem desempenha ambos os pa-péis. Como, então, pode um aprender algodo outro? (p. 106, tradução livre)

Assim, a pragmática filosófica não negaa existência de estruturas a priori, condiçõespara a construção de nossos conhecimentos ea transmissão de sentidos, mas contrariamenteao pragmatismo americano, essas estruturasnão são internas ao indivíduo, mas externas aele, pois estão presentes na práxis da lingua-gem, nos usos convencionais que fazemos denossos símbolos lingüísticos, imersos em nos-sas formas de vida. Essas estruturas são nossascondições de sentido e determinam o que con-sideramos verdadeiro. Em outras palavras, comojá nos dizia Wittgenstein, um conhecimento

Page 9: Uma concepção pragmática de ensino e aprendizagem concepção pragmática de ensino e aprendizagem Cristiane Maria Cornelia Gottschalk Universidade de São Paulo Resumo Com a virada

467Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.3, p. 459-470, set./dez. 2007

não é verdadeiro porque é útil, mas é útil por-que é verdadeiro...

Algumas implicaçõespedagógicas

No entanto. quais seriam as particulari-dades de nossas experiências no contexto es-colar? Dewey criticava em seus textos a idéiade que houvesse uma separação radical entre aexperiência infantil e as diversas disciplinasescolares, procurando mostrar que esses apa-rentes extremos seriam de mesma natureza.Para ele, o conhecimento organizado nas dis-ciplinas escolares seria de certa forma a expe-riência da espécie expressa por meio de concei-tos. Outras vertentes pedagógicas endossaramessa sua posição, e até a radicalizaram, aoconsiderarem o próprio conhecimento já crista-lizado como mero meio para o desenvolvimentode competências e habilidades e não maiscomo uma referência segura para a construçãode novos conhecimentos: a própria atividade doaluno passa a nortear o processo de aprendiza-gem, tendo como horizonte a resolução deproblemas. Nesse sentido, embora o aspectopragmático desse processo tenha sido aindamais enfatizado, o pragmatismo clássico naeducação ainda se apóia em uma concepçãoreferencial da linguagem. Minha tese é que, aosairmos dessa concepção reducionista da lin-guagem, como nos sugere Wittgenstein, eatentarmos para como de fato utilizamos nos-sas expressões lingüísticas, abre-se espaço parauma nova concepção de ensino e aprendizagemcom implicações pedagógicas importantes.Vejamos, então, algumas dessas implicações naeducação desse novo ponto de vista, ou seja,da perspectiva de uma pragmática filosófica deinspiração wittgensteiniana.

Como vimos na passagem que citamosdos PCN, propõem-se práticas pedagógicas quelevariam o aluno, por si só, a conceber concei-tos como os de digestão, subtração e até prin-cípios como os da igualdade na matemática eo da conservação nas ciências. Os pressupostos

dessas orientações pedagógicas estão em par-te ancorados nas teorias psicogenéticas deJean Piaget, que procuraram explicar comodeterminados princípios são construídos pelascrianças. Para essas teorias, princípios como osacima citados decorrem da ação da criançasobre o meio em que ela se encontra. Porexemplo, se colocamos uma criança defronte aum recipiente com água e vertemos essa águaem outro recipiente com outro formato, essacriança só terá adquirido o princípio de con-servação de quantidade se for capaz de dizerque continua havendo a mesma quantidade deágua que havia no primeiro recipiente. Pressu-põe-se, assim, que é a partir da observaçãoempírica que a criança constrói esse princípio,efetivado quando passa a dizer que a quanti-dade de água não se alterou, é a mesma águaque foi vertida de um recipiente para o outro.Já do ponto de vista de uma pragmática filo-sófica de inspiração wittgensteiniana, podemosafirmar que é o domínio do emprego da pala-vra mesmo que permite que a criança concluaque não houve variação na quantidade de águaao ser vertida do primeiro para o segundo re-cipiente. Apenas soube empregar essa palavraem uma situação nova, a saber, em uma situ-ação na qual não se acrescentou e tampoucose retirou água ao longo da experiência(Putnam, 1983). Nesse caso, aprendeu simples-mente a aplicar mais uma vez a palavra mesmo,independentemente de supostas estruturasmentais terem se modificado ao longo dessaexperiência. Soube seguir a regra de que senada se perdeu e tampouco se adicionou aosrecipientes, logo nada se alterou, tem-se amesma água. É esse princípio, de que “nada secria, nada se perde, tudo se transforma”, quepermite à criança empregar a palavra mesmoem diversos momentos de sua vida, seja emuma aula de Física, seja em situações as maiscotidianas como, por exemplo, para responderà questão descrita na experiência piagetiana.Assim, ter compreendido um conceito paraWittgenstein é ser capaz de usá-lo em diversassituações, inclusive naquelas não previstas pre-

Page 10: Uma concepção pragmática de ensino e aprendizagem concepção pragmática de ensino e aprendizagem Cristiane Maria Cornelia Gottschalk Universidade de São Paulo Resumo Com a virada

468 Cristiane M. C.GOTTSCHALK. Uma concepção pragmática de ensino...

viamente. Nesse sentido, independentemente deeventuais estados mentais ou psicológicos quepossam acompanhar a aplicação da palavramesmo, a criança desempenhou corretamente atarefa solicitada, não por ter construído o prin-cípio da conservação nas ciências, mas por tê-lo seguido adequadamente, ou seja, como acomunidade escolar assim o espera.

Do mesmo modo, dizer que 2 + 2 = 4 nojogo de linguagem da matemática tampoucodecorre de um conjunto de experiências empíricascom quantidades numéricas. Poderíamos imaginarpovos que agrupassem os objetos de modo dife-rente de como o fazemos como, por exemplo, dasseguintes formas:

Para eles, “2 + 2 = 3”, “2 + 2 + 2 = 4” e“3 + 4 = 5” (Wittgenstein, 1987, Parte I, p. 38).No entanto, em nossas formas de vida, estipu-lamos que 2 + 2 = 4, 2 + 2 + 2 = 6 e 3 + 4 =7. Mesmo que ao agrupar determinados obje-tos algum deles desapareça ao longo da expe-riência, esse fato não invalida minha asserçãomatemática de que 2 + 2 = 4. Posso até recorrera objetos empíricos para ilustrar essa regra, mascom isso não apresentarei uma prova empíricapara uma verdade absoluta, mas apenas mostra-rei como escolhemos agrupar convencionalmen-te objetos empíricos. Depende da vontade demeu interlocutor aceitar ou não esse modo derelacionar objetos empíricos. Não se trata deuma questão de entendimento, mas sim deanuência, por assim dizer. Não há nada direta-mente na própria experiência que convenceriameu interlocutor a aceitar uma regra em detri-mento de outra. Quais regras de agrupamentoempregamos, ao aplicar o princípio de igualda-de na matemática, ou quais técnicas de com-paração aplicamos, ao utilizar o princípio deconservação em ciências, depende de um acor-

do prévio tácito, dentro de nossas formas devida. É claro que podem existir razões empíricaspara essas escolhas, mas ao cristalizarmos es-sas escolhas, por meio de proposições e técni-cas lingüísticas, elas adquirem uma funçãotranscendental, ou seja, passam a legislar sobreo empírico. São as nossas condições de senti-do que dizem o que tem e o que não temsentido dizer ou fazer. Dentro do nosso jogo delinguagem da aritmética, por exemplo, não temsentido dizer que 2 + 2 = 3!

Enfim, é o conhecimento herdado pelasnossas formas de vida que permite atribuirmossentido às nossas experiências e não o contrá-rio. Esse conhecimento não representa ou resu-me experiências pelas quais o indivíduo passou(o fundamento do conhecimento como sendoa experiência), mas sim atribui significados aelas, mesmo que de modo simplificado, comoocorre na chamada transposição didática nocaso das disciplinas escolares. O fato de asmatérias escolares darem à experiência do alunoum significado mais tosco, mais rudimentar doque um cientista perito no assunto daria, nãoretira o seu valor de organizar essa experiência,de modo que o aluno possa atribuir a ela sig-nificados semelhantes aos do conhecimentoinstituído. Insistimos no termo semelhante paradiferenciar essa situação de algum supostoprocesso mentalista de construção dos signifi-cados, tal que experiências sucessivas levariamà formulação de algum tipo de essência, comovemos em alguns textos de teor construtivistasobre ensino e aprendizagem. Não são situa-ções empíricas que possibilitam ao aluno com-preender princípios como os da igualdade namatemática ou o princípio da conservação nasciências (PCN, 1997), pelo contrário, são essesprincípios que possibilitam organizar as nossasexperiências significativamente.

Nesse sentido, em uma concepção prag-mática do ensino, a tarefa do professor toma-ria um outro rumo, uma vez que desse outroponto de vista, as dificuldades de aprendizagemnão se limitam ao entendimento, mas se devemessencialmente às barreiras que são colocadas

Page 11: Uma concepção pragmática de ensino e aprendizagem concepção pragmática de ensino e aprendizagem Cristiane Maria Cornelia Gottschalk Universidade de São Paulo Resumo Com a virada

469Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.3, p. 459-470, set./dez. 2007

pela vontade ao entendimento, a saber, a von-tade de aceitar novos pontos de vista sobre asignificação, novas regras a serem seguidas,distintas dos usos cotidianos. Por exemplo,quando o professor apresenta ao aluno novasregras de aplicação para determinados concei-tos. O conceito de número, que até certo mo-mento era empregado apenas para contar, passaa ser usado também para medir e, em outrosmomentos, para calcular, resolver problemas etc.Assim, não há, em meio a essas diversas situa-ções, uma progressiva compreensão do que énúmero, como se houvesse uma essência denúmero a ser alcançada, mas apenas semelhan-ças de família entre todos esses empregos dapalavra número. Saber operar com os númerosirracionais, por exemplo, não depende da com-preensão de uma suposta essência de númeroirracional, que iria aproximando o aluno do queé número, mas simplesmente de ter aceitadoseguir as novas regras para aplicar essa palavraem outros contextos. São inúmeras as razões(inclusive de ordem empírica) pelas quais esteé, ou não, persuadido a aceitá-las. A partirdesse gesto voluntário de aceitação da regraque lhe foi proposta, pode-se, então, dizer queo aluno aprendeu o que é número, ou o que édigestão ou subtração, quando for capaz deaplicar esses conceitos em situações novas,diferentes das apresentadas pelo professor. Asregras aprendidas são apenas condições desentido para que o estudante organize a suaexperiência, orientado por essas regras.

As regras não são, pois, descobertas, massim inventadas, ou seja, são de natureza conven-cional e, nesse sentido, não cabe ao professorexigir que o aluno as descubra, seja por meio deexperiências empíricas ou subjetivas ou mesmoa partir de uma combinação entre essas experi-ências nos moldes das teorias psicogenéticassobre ensino e aprendizagem (interação de es-truturas cognitivas com o meio empírico). Poroutro lado, parte dessas regras é introduzidatacitamente. Quando um professor fala sobreobjetos quaisquer de sua disciplina, comomontanhas e rios, não necessita dizer que es-

ses objetos existem. Essa é uma regra que nãonecessita ser explicitada, mas, não obstante, éuma condição de sentido para podermos falardesses objetos. Como nos lembra Wittgenstein(1979), essas certezas não são ensinadas. Aoaprendermos o uso da palavra cadeira, essasafirmações são como que engolidas juntamen-te com o emprego dessa palavra:

Em geral considero como verdadeiro o quese encontra em livros escolares de geografia,por exemplo. Por quê? Eu digo: todos essesfatos foram confirmados centenas de vezes.Mas como eu sei disso? Qual é a evidênciaque tenho para isso? Eu tenho uma imagemdo mundo (Weltbild). É verdadeira ou falsa?Acima de tudo, é o substrato de toda minhainvestigação e asserções. As proposições quea descrevem não são todas igualmente su-jeitas a prova. (§ 162)

Nem todas as proposições da nossa lin-guagem têm uma função descritiva, ou seja,são passíveis de verificação. Uma boa partedelas desempenha uma função normativa: po-dem ser vistas como regras a serem seguidas,são nossas certezas, nossas convicções, emboranem sempre explicitadas, e que formam a nossaimagem de mundo.

‘Estamos seguramente certos disso’ não signi-fica apenas que cada único indivíduo estácerto disso, mas que pertencemos a uma co-munidade a qual está ligada conjuntamentepela ciência e pela educação. (Wittgenstein,1979, § 298)

Desse modo, ao se considerar as diferen-tes funções de nossas expressões lingüísticas eseus vários instrumentos, possibilitam-se novosenfoques sobre a construção e transmissão desentidos no contexto escolar, abrindo-se dessemodo um vasto campo de investigação que,embora não vise à instauração de novas teoriaspedagógicas, permite dissolver problemas filosó-ficos educacionais, com eventuais repercussões

Page 12: Uma concepção pragmática de ensino e aprendizagem concepção pragmática de ensino e aprendizagem Cristiane Maria Cornelia Gottschalk Universidade de São Paulo Resumo Com a virada

470 Cristiane M. C.GOTTSCHALK. Uma concepção pragmática de ensino...

nas práticas de sala de aula. Além do que, dessaperspectiva pragmática da linguagem, o êxito noensino passa a depender tanto do professor –como responsável por apresentar o mundo paraa criança, introduzindo as condições de sentidopara que esta possa organizar suas experiências– como também da disposição desta para aceitarnovas regras e considerar outros pontos de vistapara dar significado ao seu mundo. Nesse senti-

do, para muito além de uma discussão técnicasobre a construção e transmissão de sentidos, apragmática filosófica aponta para uma ética fun-dada na tolerância e no respeito à divergência,combatendo-se, assim, o dogmatismo ainda tãohegemônico em nossos meios educacionais, nãoobstante as diversas tentativas de superação dasconcepções inatistas e empiristas do desenvolvi-mento do ser humano.

Referencias bibliográficas

DEWEY, J. A criança e o progA criança e o progA criança e o progA criança e o progA criança e o programa escolarrama escolarrama escolarrama escolarrama escolar: vida e educação. Trad. de Anísio S. Teixeira. São Paulo: Melhoramentos, 1978.

MORENO, A. R. Introdução a uma pragmática filosóficaIntrodução a uma pragmática filosóficaIntrodução a uma pragmática filosóficaIntrodução a uma pragmática filosóficaIntrodução a uma pragmática filosófica. Campinas: Editora da Unicamp, 2005.

PIAGET, J. Psicogênese dos conhecimentos e seu significado epistemológico. In: PIATELLI-PALMARINI, M. (Org.). TTTTTeorias daeorias daeorias daeorias daeorias dalingualingualingualingualinguagem,gem,gem,gem,gem, teorias da a teorias da a teorias da a teorias da a teorias da aprendizaprendizaprendizaprendizaprendizagemgemgemgemgem: o debate entre Jean Piaget e Noam Chomsky. Tradução de Álvaro Cabral. São Paulo:Cultrix; Edusp, 1983, p.39-49.

PUTNAM, H. O que é inato e por quê. Comentários sobre o debate. In: PIATELLI-PALMARINI, M. (Org.). TTTTTeorias da linguaeorias da linguaeorias da linguaeorias da linguaeorias da linguagem,gem,gem,gem,gem,teorias da ateorias da ateorias da ateorias da ateorias da aprendizaprendizaprendizaprendizaprendizagemgemgemgemgem: o debate entre Jean Piaget e Noam Chomsky. Tradução de Álvaro Cabral. São Paulo: Cultrix; Edusp,1983, p. 370.

RYLE, G. Teaching and training. In: PETERS, R. S. The concept of educaThe concept of educaThe concept of educaThe concept of educaThe concept of educationtiontiontiontion. Londres: Routledge; Keagan Paul, s/d. p. 105-119.

WITTGENSTEIN, L. On certaintyOn certaintyOn certaintyOn certaintyOn certainty. Oxford: Basil Blackwell, 1979.

_____. Observaciones sobre los fundamentos de la matemática Observaciones sobre los fundamentos de la matemática Observaciones sobre los fundamentos de la matemática Observaciones sobre los fundamentos de la matemática Observaciones sobre los fundamentos de la matemática. Madrid: Alianz Editorial, 1987.

_____. Investigações filosóficas Investigações filosóficas Investigações filosóficas Investigações filosóficas Investigações filosóficas. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Col. Os Pensadores)

Recebido em 10.04.06

Aprovado em 16.08.07

Cristiane Maria Cornelia Gottschalk, bacharel em Matemática Aplicada, mestre em Matemática Aplicada e doutora emFilosofia da Educação pela USP, é pesquisadora do grupo de pesquisa Filosofia da Linguagem e do Conhecimento (Unicamp)e atualmente leciona na Faculdade de Educação da USP.