uma breve análise de produções de alunos em situação de ... · uma breve análise de...

8
CADERNOS • Centro Universitário S. Camilo, São Paulo, v. 11, n. 3, p. 17-24, jul./set. 2005 17 Uma breve análise de produções de alunos em situação de ensino/ aprendizagem sob a luz da teoria da atividade de Leontiev 1 A brief analysis of pupils’ productions in teaching/learning situations according to Leontiev’s theory of activity RESUMO Nesse trabalho analisamos, à luz da teoria da atividade de Leontiev, uma tarefa desen- volvida pelos alunos e alunas de uma 5ª série de uma escola pública da Rede Municipal de Ensino do Estado de São Paulo nos primeiros dias de aula do ano letivo de 2001. Dito de outro modo, analisamos se aquela tarefa poderia ser entendida como uma Atividade sob o ponto de vista de Leontiev. Para isso, pontuamos brevemente as bases da Teoria da Atividade de Leontiev, tecendo breve comparação desta com as idéias de Piaget em relação ao desenvolvimento da criança. DESCRITORES Teoria da Atividade; Teorias da aprendizagem ABSTRACT In this work we analyze from the perspective of Leontiev’s Theory of Activity, a task developed by pupils from the 5 th grade of a public school of São Paulo’s Municipal School System in the first class days of the school year of 2001. In other words, we make an analysis aiming to determine whether the said task could be understood as an Activity from Leontiev’s point of view. With this aim in view, we briefly explain the bases of Leontiev’s Theory of Activity and make a brief comparison of these bases and Piaget’s ideas regarding children development. KEYWORDS Activity theory; Theories of learning ** Mestre e Doutorando em Educação Matemática pela FE/USP. Docente do Centro Universitário São Camilo. Membro do GEPEm — Grupo de Estudos e Pesquisa em Etnomatemática da FE/USP. Benerval Pinheiro Santos** ARTIGO ORIGINAL/ORIGINAL RESEARCH educação * Este artigo teve como base a monografia resultante do trabalho de aprovei- tamento da disciplina “O conhecimento em sala de aula: a organização do ensino”, do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, ministrada pelo professor Dr. Manoel Oriosvaldo de Moura, 2004. 02_Uma breve analise.p65 20.09.05, 14:35 17

Upload: vutram

Post on 18-Jan-2019

216 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Uma breve análise de produções de alunos em situação de ... · Uma breve análise de produções ... Paulo, ministrada pelo professor Dr. Manoel Oriosvaldo de Moura, ... apud

CADERNOS • Centro Universitário S. Camilo, São Paulo, v. 11, n. 3, p. 17-24, jul./set. 2005 17

Uma breve análise de produçõesde alunos em situação de ensino/aprendizagem sob a luz da teoriada atividade de Leontiev1

A brief analysis of pupils’ productions inteaching/learning situations according toLeontiev’s theory of activity

RESUMONesse trabalho analisamos, à luz da teoria da atividade de Leontiev, uma tarefa desen-volvida pelos alunos e alunas de uma 5ª série de uma escola pública da Rede Municipalde Ensino do Estado de São Paulo nos primeiros dias de aula do ano letivo de 2001. Ditode outro modo, analisamos se aquela tarefa poderia ser entendida como uma Atividadesob o ponto de vista de Leontiev. Para isso, pontuamos brevemente as bases da Teoriada Atividade de Leontiev, tecendo breve comparação desta com as idéias de Piaget emrelação ao desenvolvimento da criança.

DESCRITORESTeoria da Atividade; Teorias da aprendizagem

ABSTRACTIn this work we analyze from the perspective of Leontiev’s Theory of Activity, a taskdeveloped by pupils from the 5th grade of a public school of São Paulo’s MunicipalSchool System in the first class days of the school year of 2001. In other words, we makean analysis aiming to determine whether the said task could be understood as an Activityfrom Leontiev’s point of view. With this aim in view, we briefly explain the bases ofLeontiev’s Theory of Activity and make a brief comparison of these bases and Piaget’sideas regarding children development.

KEYWORDSActivity theory; Theories of learning

** Mestre e Doutorando em

Educação Matemática pela

FE/USP. Docente do Centro

Universitário São Camilo. Membro

do GEPEm — Grupo de Estudos e

Pesquisa em Etnomatemática da

FE/USP.

Benerval PinheiroSantos**

ARTIGO ORIGINAL/ORIGINAL RESEARCH educação

* Este artigo teve como base a monografia resultante do trabalho de aprovei-tamento da disciplina “O conhecimento em sala de aula: a organização do ensino”,do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da Universidade de SãoPaulo, ministrada pelo professor Dr. Manoel Oriosvaldo de Moura, 2004.

02_Uma breve analise.p65 20.09.05, 14:3517

Page 2: Uma breve análise de produções de alunos em situação de ... · Uma breve análise de produções ... Paulo, ministrada pelo professor Dr. Manoel Oriosvaldo de Moura, ... apud

18 CADERNOS • Centro Universitário S. Camilo, São Paulo, v. 11, n. 3, p. 17-24, jul./set. 2005

A ATIVIDADE COMO CONCEITO

As atividades humanas

As relações do homem com o seu meio ecom outros indivíduos da mesma espécie não sedão, evidentemente, de forma pronta, instintiva,como acontece com a maioria dos animais ditosirracionais, mas devem ser aprendidas ao longode sua existência. Dessa forma, o meio social noqual está inserido, de algum modo, exerce forteinfluência sobre suas maneiras de operar essasrelações. Assim, a própria natureza o induz aum agir próprio daqueles que ali estão, imersosnum lugar com características climáticas, geo-gráficas e com recursos naturais próprios. Porisso, dois indivíduos que dependem da caça parasobreviver, mas que vivem em locais distintos— um na floresta amazônica e o outro no Alasca,por exemplo —, devem ter suas técnicas pró-prias que foram construídas e transmitidas (aquinão importando os modos) por gerações ante-riores, mas que também são inerentes àquelemeio em que vivem. Se trocássemos os doisindivíduos de lugar — ou ainda, se trocássemossuas técnicas de caça —, muito provavelmenteambos falhariam em seu intento — localizar eabater a caça —, ou talvez não conseguiriamsobreviver às condições climáticas adversas.

Estamos com isso querendo dizer que ohomem vive porque aprende e desenvolve aolongo de sua existência mecanismos que lhepermitem sobreviver em certas condições e (tal-vez) não em outras. Nesse sentido, o homem éum ser social, em partes, por conta de necessi-dades específicas de grupos que vivem em cer-tas condições (como as mencionadas).

Entretanto, a sua coexistência com o outronão se dá de modo neutro ou acomodado, limi-tando-se a utilizar o que já lhe foi deixado pelasgerações anteriores, pois, mesmo vivendo nacoletividade, tem necessidades e desejos pró-prios e para satisfazê-los desenvolve tambémmecanismos (instrumentos) intermediadores efacilitadores de suas relações (interfaces) com ooutro e com o meio, colaborando assim, com odesenvolvimento coletivo de seu grupo e com oseu desenvolvimento.

Dessa forma, podemos supor que o ser hu-mano desenvolve-se e desenvolve os instrumen-tos facilitadores de que falamos numa relaçãodialética que se dá entre a utilização daquiloque já existe e uma eterna busca por melhoriae produção de novos instrumentos. Isto é, numaluta eterna não só pela sobrevivência, mas tam-bém por uma melhor qualidade de vida e satis-fação pessoal.

É nessa relação dialética que o indivíduoaprende a sobreviver, aprende que uma vidamelhor é possível, aprende normas de condutaque lhe possibilitarão trilhar entre seus seme-lhantes diminuindo os atritos, e que lhe possibi-litarão também buscar instrumentos que satisfa-çam as suas necessidades individuais sem atra-palhar a vida coletiva de seu grupo. Mas comoaprendemos? Por que aprendemos algumas coi-sas com certa facilidade e outras não?

Ao tomarmos consciência dessas questões,percebemos que mesmo sendo semelhantessomos, também, diferentes uns dos outros. E porsermos diferentes, a nossa relação com o mun-do é algo próprio. algo que não se repete emdois indivíduos.

Assim, as tarefas que empreendemos parasatisfazermos nossos desejos e anseios, são algoque diz respeito também às questões subjetivasde cada sujeito. Apenas para citar um exemplo,enquanto que para um indivíduo ir a um super-mercado representa apenas uma ação que tempor objetivo abastecer sua despensa, para outro,a mesma ação pode representar muito mais queisso, pode ser algo relacionado a uma diversão,um passeio, uma forma de fugir de sua rotina.Dessa forma, o que para o primeiro pode seruma tarefa, para o segundo é algo mais signifi-cativo. Poderíamos ainda incluir um terceiro in-divíduo, para o qual ir ao supermercado signi-fica uma monumental tarefa que para ser levadaa cabo exige dele um esforço muito grande re-lacionado a certas dificuldades na escolha deprodutos e na determinação de quantidades aserem compradas, dentre outras.

Por conta de tudo isso, procuraremos ca-racterizar melhor as ações empreendidas pelo

02_Uma breve analise.p65 20.09.05, 14:3518

Page 3: Uma breve análise de produções de alunos em situação de ... · Uma breve análise de produções ... Paulo, ministrada pelo professor Dr. Manoel Oriosvaldo de Moura, ... apud

CADERNOS • Centro Universitário S. Camilo, São Paulo, v. 11, n. 3, p. 17-24, jul./set. 2005 19

sujeito e para isso lançaremos mão da Teoria daAtividade de Leontiev.

A Teoria da Atividade de LeontievEstudando os processos de desenvolvimen-

to da psique infantil Leontiev (1988) defendeque a criança desenvolve-se em estágios, atra-vés de uma relação direta entre certos tipos deatividades inerentes ao seu grupo e sua realida-de. Fica assim evidente que Leontiev entendeatividade como um conceito e não como umasimples tarefa empreendida pelo sujeito coleti-va ou individualmente. Mas como identificar umaatividade?

Há uma distinção entre os vários tipos deatividades desenvolvidas pelo sujeito, distinçãoesta não tão clara para um observador do sujei-to que a está desenvolvendo. Isso porque,

As atividades humanas são consideradaspor Leontiev como formadoras de relações dohomem com o mundo, dirigidas por motivos,por fins a serem alcançados. A idéia de ativida-de envolve a noção de que o homem orienta-sepor objetivos, agindo de forma intencional, pormeio de ações planejadas (Oliveira, 1993, p. 36,apud Moura, b, p. 3).

Nesse sentido, uma atividade pode ser en-tendida como um processo, composto por vá-rias etapas, empreendido pelo sujeito para sa-tisfazer uma necessidade. Contudo, não temoscomo identificar se um processo desenvolvidopor um sujeito pode ser caracterizado comouma atividade sem fazermos uma análise psi-cológica do próprio processo (Leontiev, 1988,p. 68), ou seja:

[…] para Leontiev (1988), as atividades sãoprocessos psicologicamente caracterizados poruma meta a que o processo se dirige (seu obje-to), coincidindo sempre com o objetivo que es-timula o sujeito a executar a atividade, isto é,o motivo. O autor ressalta que outro traço im-portante da atividade são as emoções e os sen-timentos. (Moura, b, p. 4)

Dessa forma, uma atividade está diretamen-te relacionada a “ações” e “operações”, sendo ne-cessário caracterizá-las para entendermos melhora atividade. De acordo com Leontiev (1988, p.69), “ação é um processo cujo motivo não coin-cide com seu objetivo (isto é, com aquilo para oqual ele se dirige), mas reside na atividade daqual ele faz parte”. Já as “operações” são os dife-rentes modos/maneiras de executar uma ação.

Numa tentativa de simplificar a compreen-são desses conceitos, vamos tomar um exem-

plo. Digamos que um sujeito, por algum moti-vo, constatou que precisa emagrecer e, paraalcançar seu objetivo — emagrecer — passouentão a fazer natação regularmente1. Dessemodo, a atividade, enquanto processo, baseia-se num motivo: a necessidade de emagrecer.Logo, o ato de nadar é apenas uma ação daatividade. Contudo, o indivíduo pode aindaexecutar a “ação” — nadar — de vários modosdiferentes. Ele pode nadar nos estilos crawl, decostas, borboleta, ou, ainda, nadar rápido curtasdistâncias, lentamente grandes distâncias etc.Logo, esses diferentes modos seriam as opera-ções da ação2.

No exemplo, o motivo que desencadeia aação “nadar” é externo a ela, reside no motivoda atividade, que é emagrecer. Aliás, pode acon-tecer de o indivíduo não gostar de natação e,não sendo mais necessário emagrecer, certamen-te, ele não mais a executará.

Porém, ao desenvolver a ação — nadar —pode acontecer de o individuo encontrar moti-vações outras — pode ver a natação como algoprazeroso em si mesma — que o motivem adesenvolvê-la independentemente de fatoresexternos — emagrecer no caso —, e assim, aação pode tornar-se uma atividade.

Este é um ponto excepcionalmente impor-tante. Esta é a maneira pela qual surgem todasas atividades e novas relações com a realidade.Esse processo é precisamente a base psicológicaconcreta sobre a qual ocorrem mudanças naatividade principal e, conseqüentemente, astransições de um estágio do desenvolvimentopara outro. (Leontiev, 1988, p. 64)

Ou seja, para Leontiev (1988, p. 64),[…] cada estágio do desenvolvimento psí-

quico caracteriza-se por uma relação explícitaentre a criança e a realidade principal naqueleestágio e por um tipo preciso e dominante deatividade. O critério de transição de um estágiopara outro é precisamente a mudança do tipoprincipal de atividade na relação dominanteda criança com a realidade.

1. Entendemos a limitação do exemplo, tendo emvista que emagrecer está muito mais relacionado a tipos equantidade de alimentos ingeridos e menos a exercíciosfeitos pelo indivíduo. Assim, estamos mais preocupadoscom a imagem que o exemplo nos sugere.

2. Entretanto, para um indivíduo que não saiba na-dar, o ato de aprender a nadar em seus mais variadosestilos acaba por constituir, em si, uma atividade e, dessaforma, nadar passa a ser uma ação e não uma operação,como o é em nosso exemplo.

02_Uma breve analise.p65 20.09.05, 14:3519

Page 4: Uma breve análise de produções de alunos em situação de ... · Uma breve análise de produções ... Paulo, ministrada pelo professor Dr. Manoel Oriosvaldo de Moura, ... apud

20 CADERNOS • Centro Universitário S. Camilo, São Paulo, v. 11, n. 3, p. 17-24, jul./set. 2005

E é nessa relação direta entre realidadeprincipal e a atividade dominante desenvolvidapela criança que ele caracteriza a atividade prin-cipal (AP) da criança. Contudo, pontuar exata-mente o que é a AP não é tão simples assim.Isso porque não podemos fazê-lo apenas quan-tificando ou observando as atividades nas quaisa criança gasta a maior parte de seu tempo. Oque caracteriza uma atividade como AP está maisrelacionado, em certo sentido, às emoções e àsmotivações da criança no desenvolvimento decertas tarefas e menos ao tempo em que gastadesenvolvendo as atividades. “A atividade prin-cipal é então a atividade cujo desenvolvimentogoverna as mudanças mais importantes nos pro-cessos e nos traços psicológicos da personalida-de da criança, em um certo estágio de seu de-senvolvimento” (Leontiev, 1988, p. 65)

Nesse sentido, a AP está diretamente rela-cionada às condições sociais e culturais da crian-ça, pois as “condições históricas concretas exer-cem influência tanto sobre o conteúdo concretode um estágio individual do desenvolvimento,como sobre o curso total do processo de desen-volvimento psíquico como um todo” (Leontiev,1988, p. 65).

Leontiev e Piaget: algumasdiferenças

Vale pontuarmos que, de acordo com Leon-tiev (1988), o desenvolvimento de um estágiopara outro não está unicamente relacionado àfaixa etária à qual a criança se inclui, mas antes,está diretamente relacionado ao meio social dacriança. Sendo assim, fica evidente a diferençaentre as idéias de Leontiev e as de Piaget, poispara este o desenvolvimento da psique ocorretambém em estágios, mas que estão diretamentevinculados à idade da criança.

Não pretendemos aqui nos alongar numsuposto embate entre as idéias de Piaget e as deLeontiev e Vygotsky, antes, queremos apenaspontuar algumas distinções básicas entre as duas.

Em relação às idéias de Piaget, Gardner(1994, p. 16) aponta que embora este tenhapintado um quadro consistente do desenvolvi-mento da psique infantil, ele é ainda apenas umtipo de desenvolvimento. O fato é que o mode-lo de desenvolvimento proposto por Piaget nãorelevou, entre outras coisas, modelos sociais nãoocidentais. Ele estudou o desenvolvimento psí-quico de um grupo de crianças que pode serconsiderado uma minoria de indivíduos mesmono Ocidente e, talvez por conta disso, deixou

de lado outras questões que influenciam o de-senvolvimento da psique.

Ainda, de acordo com Gardner, “estágiosindividuais são atingidos de uma maneira muitomais contínua e gradual do que Piaget indicou”(1994, p. 16).

Nesse sentido, Leontiev (1988) aponta quea mudança de estágio de desenvolvimento dacriança é marcada quando, de algum modo, acriança começa a tomar consciência de “que olugar que costumava ocupar no mundo dasrelações humanas que a circunda não corres-ponde às suas potencialidades e se esforçapara modificá-lo” (1988, p. 66), ocorrendo emcontrapartida uma reorganização de sua Ativi-dade para se adequar à sua nova posição.Talvez esteja aí a “continuidade” apontada porGardner.

ATIVIDADE DE ENSINO/APRENDIZAGEM

Na escola

Em geral, é possível defender que as ativi-dades de ensino/aprendizagem propiciadas pelae na escola, podem não representar para oseducandos verdadeiras atividades, na acepçãoque estamos apresentando aqui. Isto é, o que acriança desenvolve na escola da educação in-fantil até a primeira série do ensino fundamen-tal, por exemplo, pode gradualmente desenca-dear uma ruptura entre a atividade principal dacriança e as atividades escolares. Desse modo, oque a criança desenvolve na escola passa a serentão uma tarefa, não mais uma atividade (Mou-ra, s/d-b, p. 6), pois, em geral, não representamais uma necessidade sua, passa a ser algo alie-nígena a ela.

Sob o ponto de vista do sujeito educando,por conta de promessas implícitas de que a es-cola é um meio para a sua ascensão social, elapassa a ser então apenas isso, um meio, peloqual o educando satisfaria uma necessidade —às vezes não sua, mas de seus pais —, ou, ain-da, satisfaria uma cobrança social. Portanto, namelhor das hipóteses, a escola seria então uma“ação” e as diferentes tarefas impostas por elaao sujeito seriam as “operações” que implemen-tariam a ação, sendo a “atividade” a satisfaçãodaquela (suposta) necessidade de ascensão so-cial (considerando tudo o que está implícitonisso: cursar uma boa universidade, conseguirum bom emprego etc.).

De todo modo, a escola acaba sendo umaimposição ao sujeito, pois, naturalmente, “a

02_Uma breve analise.p65 20.09.05, 14:3520

Page 5: Uma breve análise de produções de alunos em situação de ... · Uma breve análise de produções ... Paulo, ministrada pelo professor Dr. Manoel Oriosvaldo de Moura, ... apud

CADERNOS • Centro Universitário S. Camilo, São Paulo, v. 11, n. 3, p. 17-24, jul./set. 2005 21

busca do prazer e do gostar do que está fazen-do integra prioritariamente o universo discentee o universo da criatividade” (Cortella, 1998, p.124), portanto, dificilmente o educando se inte-ressará por algo que, talvez, supra uma necessi-dade que ainda não é sua, ou por uma promes-sa de felicidade futura.

Nessa direção,

O adolescente que abandona a escola é oque já busca outras ações que possam dar con-ta de concretizar a sua atividade principal. Aescola deixa de ser um obstáculo na vida dessesujeito, cujo motivo é inserir-se num mercadode trabalho que possa assegurar-lhe uma vidamais confortável. A escola, desse modo é umatarefa. (Moura, s/d-b, p. 6)

Um caso

Passaremos agora a discutir um caso, isto é,uma tarefa educativa buscando, à luz da Teoriada Atividade de Leontiev, elementos que pos-sam (ou não) caracterizá-la como uma atividadede ensino/aprendizagem para os educandos quea desenvolveram. Vale lembrar que utilizamosmateriais produzidos por alunos, bem comorecorremos a registros — entrevistas gravadas etranscritas, notas de campo — que produzimosno desenvolvimento de nossa investigação demestrado (Santos, 2002). Contudo, como na dis-sertação, optamos por omitir os sujeitos e o lo-cal onde se desenvolveu a pesquisa.

A escola

Localiza-se numa região muito pobre daperiferia da cidade de São Paulo. Estruturalmen-te, trata-se de uma escola de porte médio, comonze salas que funcionam em quatro períodos,com aproximadamente quarenta alunos e alu-nas cada. O fato de a escola funcionar em qua-tro períodos impõe aos educandos uma rotinamuito corrida e de pouco convívio dentro dasdependências do prédio e fora das salas de aula,pois o intervalo entre um período e outro é deaproximadamente dez minutos. Ainda, como namaioria das escolas públicas, ela peca pelo ex-cesso de grades em todas as portas de entradae de saída e também nas janelas.

A turma

A turma de alunos que desenvolveu a tare-fa era composta por quarenta alunos de uma

5ª série do ensino fundamental, do terceiroperíodo da escola — período da tarde. Sobvários aspectos a turma era bastante heterogê-nea: as idades variaram de onze a dezesseteanos; muitos alunos e alunas vieram de outrasescolas, isto é, não fizeram os estudos da 1ª àquarta série naquela escola; ainda, as expec-tativas dos educandos eram extremamentevariadas etc.

A tarefa

A tarefa, inicialmente, consistiu na confec-ção de um mapa do trajeto da casa de cadaeducando até a escola. Ela surgiu como conse-qüência da curiosidade de um educando sob aforma de uma pergunta: o que é medir?

Aquela tarefa teve por objetivos imediatos,por um lado, perceber como os alunos reconhe-ciam e descreviam o seu meio através de figu-ras, por outro, servir de mote para novas ques-tões nas aulas seguintes, pois várias dúvidasnaturalmente seriam despertadas em decorrên-cia da tarefa. Ainda, aquela tarefa ressaltou deuma forma especial as maneiras próprias dosalunos se reconhecerem em seu meio, bem comoas maneiras pelas quais reconhecem seu pró-prio meio.

O envolvimento da turma na tarefa

A tarefa não foi executada por todos osalunos. A princípio, apenas onze a executaram,enquanto outros a fizeram rapidamente durantea aula, de modo visivelmente displicente, seminteresse. Outros ainda a fizeram em casa, en-tregando-a somente algumas aulas depois.

Anexamos a seguir alguns exemplos dosmapas produzidos pelos educandos.

Mapa 1

02_Uma breve analise.p65 20.09.05, 14:3521

Page 6: Uma breve análise de produções de alunos em situação de ... · Uma breve análise de produções ... Paulo, ministrada pelo professor Dr. Manoel Oriosvaldo de Moura, ... apud

22 CADERNOS • Centro Universitário S. Camilo, São Paulo, v. 11, n. 3, p. 17-24, jul./set. 2005

Mapa 2

Mapa 3

Mapa 5

Mapa 4

Mapa 6

Mapa 7

Um contra-ponto

Após a análise dos mapas, tanto a professo-ra quanto os educandos ressaltaram os diferen-tes modos pelos quais, às vezes, um mesmo

02_Uma breve analise.p65 20.09.05, 14:3522

Page 7: Uma breve análise de produções de alunos em situação de ... · Uma breve análise de produções ... Paulo, ministrada pelo professor Dr. Manoel Oriosvaldo de Moura, ... apud

CADERNOS • Centro Universitário S. Camilo, São Paulo, v. 11, n. 3, p. 17-24, jul./set. 2005 23

trajeto era representado em mapas distintos, ouseja, explicitando as diferentes maneiras comoos educandos reconheciam seu meio.

Naturalmente, vários outros educandos quenão haviam se mobilizado para desenvolver atarefa até então, sentiram-se motivados comouma conseqüência das discussões.

Voltando para os mapas, pudemos perce-ber, questionando alguns educandos, que omesmo foi feito com afinco, de modo a tentartransmitir — para a professora, no caso — exa-tamente como viam o seu trajeto até a escola,fornecendo a maior quantidade possível de in-formações, pois, vale lembrar, uma das condi-ções para que fizessem os mapas era que qual-quer outra pessoa conseguisse utilizá-los parafazer o caminho inverso, isto é, ir da escola atésuas casas. Naturalmente, em alguns dos mapasacima, isso seria impossível.

Como uma conseqüência natural da ativi-dade e das possibilidades pedagógicas que elagerou, a professora passou a engajar a turmanuma discussão acerca de como obter as distân-cias de suas casas até a escola. Dessa forma,como vários educandos não conheciam instru-mentos de medidas, nem métodos para resolvero problema colocado, passaram a se interessarainda mais pela questão inicial: o que é medir?

Nesse sentido, muitas hipóteses foram for-muladas numa tentativa dos educandos de daruma resposta à questão posta. Um aluno, inclu-sive, estimou a distância de sua casa até a escolacomo sendo de um quilômetro, sem mencionaro método que utilizou para chegar a este núme-ro. Entretanto, vários alunos que o conheciamriram e alguns mencionaram que a distânciadeveria ser uns quatrocentos metros apenas. Aidéia de estimativa, porém, foi abordada e dis-cutida pela professora.

Vale ressaltar que nesse ponto a turma comoum todo estava mobilizada a tentar achar asolução para o problema: achar a distância desuas casas até a escola.

Tarefa ou Atividade?

Analisaremos agora se aquela tarefa pode-ria ser considerada como sendo uma atividadeou se foi apenas uma tarefa para os educandos.

Diante do exposto até aqui, podemos inferirque a tarefa, a princípio, certamente não repre-sentou uma atividade para a maioria dos educan-dos. Podemos afirmar isso pautados na falta deenvolvimento emocional de alguns para com atarefa e na recusa explícita de outros em efetuar

o que lhes foi proposto. Ou seja, tudo indica quepara estes educandos a tarefa não representouuma necessidade em si, podendo assim ser con-siderada apenas como uma “ação” para satisfazeruma outra necessidade externa a ela, a saber: nãose indispor com a professora, ou, ainda, conse-guir alguma (possível) nota em seu boletim.

Assim, vamos nos pautar agora apenas na-queles educandos que a desenvolveram comafinco, demonstrando algum interesse centradona própria tarefa. Podemos inferir, baseados nasreações e no afinco com que a desenvolveram,que para estes alunos ela se constituiu numareal atividade. Isso porque, desde o princípio,fazer/construir o mapa representou para elesuma motivação centrada na própria atividade,tornando-se para eles um desafio caracterizar olugar onde moram, com entorno, pontos dereferências e contexto que também fossem dooutro, pois haviam sido alertados para o fato deque outras pessoas iriam se orientar pelos seusmapas, ou de que no mínimo perceberiam comoeles entendiam seus entorno e contexto. Por isso,certo grau de pessoalidade foi impresso por elesna atividade, algo que possivelmente estava re-lacionado com o que sabiam sobre seu entornoe o que era importante para eles, mesmo quenão tivessem consciência disso. O que fica maisou menos evidente nos mapas 1, 5 e 6. Neles,os educandos acabaram por ficar de algum modopresos na pessoalidade de que falamos, o queimpediria que alguém percebesse/seguisse otrajeto desenhado por eles. Também, não pode-mos desconsiderar em nossa análise as diferen-tes faixas etárias e, também, os diferentes está-gios de desenvolvimentos cognitivos dos edu-candos. Fatos estes que, de algum modo, corro-boraram para que houvesse grandes diferençasna percepção que eles tinham de seu contexto.

Alguns tiveram a preocupação de tentar secolocar no lugar do outro numa tentativa desaber o que iriam procurar com o olhar paraorientar-se no trajeto. Trajeto este que deixoude ser deles para ser de outros. Foi possívelperceber que prestaram atenção em pontos dereferência e em detalhes ao longo do trajeto querepresentaram, mas sem perder o foco, o obje-tivo do que estavam fazendo, que era apresen-tar um ponto de início — a sua casa — e um dechegada — a escola. Isso ficou mais ou menosevidente nos mapas 2, 3, 4 e 7.

Desse modo, insistimos, para esses educan-dos, a tarefa pode ter se constituído numa ativi-dade. pois lhes foi possível perceberem que elafoi orientada por motivos e fins a serem alcan-

02_Uma breve analise.p65 20.09.05, 14:3523

Page 8: Uma breve análise de produções de alunos em situação de ... · Uma breve análise de produções ... Paulo, ministrada pelo professor Dr. Manoel Oriosvaldo de Moura, ... apud

24 CADERNOS • Centro Universitário S. Camilo, São Paulo, v. 11, n. 3, p. 17-24, jul./set. 2005

Recebido em 8 de março de 2005Aprovado em 18 de abril de 2005

çados. Os educandos agiram de forma intencio-nal, por meio de ações planejadas e de umenfoque próprio, como nos fala Oliveira (1993,36), apud Moura (s/d, b, p. 3).

Já para a grande maioria, retomando o quejá expusemos, fazer o mapa pode ter se consti-tuído apenas numa ação, sendo a atividade, tal-vez, uma possível avaliação/cobrança da pro-fessora sobre o mapa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Durante a execução das tarefas, percebe-mos algumas mudanças de postura em muitoseducandos. Os primeiros que fizeram o mapacomo uma atividade passaram a redirecionar suasatenções para outras atividades, por exemplo,sobre como determinar a distância de suas casasaté a escola. O grupo de educandos que fez omapa mais como uma ação passou a se interes-sar pelo mapa exclusivamente e, como os ante-riores, passaram a dar uma especial atenção àbusca de um método para determinar as men-cionadas distâncias.

Isso está conforme à advertência de Leontiev(1998, p. 64) acerca da transformação de açãoem atividade, bem como sobre a mudança deestágios de desenvolvimentos da criança.

A Teoria da Atividade de Leontiev, vistanão apenas como um referencial explicativo dosníveis de desenvolvimento cognitivo de crian-ças, acaba por tornar-se poderoso instrumento,que propicia ao educador analisar/compreendersituações corriqueiras do processo pedagógicode ensino/aprendizagem.

Diante do que expusemos, ficou de certomodo evidente que a Teoria da Atividade deLeontiev tem muito a contribuir com a pedago-gia. Entendemos contudo termos apenas esbo-çado algumas dessas contribuições, pois paracontemplar a teoria com mais profundidade te-ríamos que ter sistematizado nossas observa-ções à época do desenvolvimento das observa-ções/pesquisa, isto é, centrando a Teoria daAtividade como foco, como objeto de nossoestudo.

Outro ponto que merece certo destaque naatividade relaciona-se ao modo como os edu-candos representaram a escola em seus mapas.

Em geral, e não nos remetemos somente aosexposto neste artigo, retrataram a escola comoum local fechado e cercado por grades. Certa-mente, tal representação tem suas motivaçõesno real papel que a escola representa para elese, talvez, para a sua comunidade. Consideramoseste um bom objeto para futuras observações/pesquisas.

BIBLIOGRAFIA REFERENCIADA

CORTELLA, M. S. A escola e o conhecimento:fundamentos epistemológicos e políticos. SãoPaulo: Cortez, 1998.

D’AMBROSIO, U. Educação para uma socie-dade em transição. Campinas: Papirus, 1999.

GARDNER, H. A estrutura da mente: a teoriadas inteligências múltiplas. Tradução: SandraCosta. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.

ITURRA, R. O processo educativo: ensino ouaprendizagem? Revista Educação, Sociedade& Cultura, n. 1, p. 20-50, 1994.

LEONTIEV, A. N. Uma contribuição à teoria dodesenvolvimento da psique infantil. In: LEON-TIEV, A. N.; VIGOTSKII, L.; LURIA, A. R. Lin-guagem, desenvolvimento e aprendizagem.Tradução: Maria da Penha Villalobos. São Paulo:Ícone; USP, 1988, p. 59-83.

MOURA, M. O. de. A Atividade de ensino comoação formadora. In: Ensinar a Ensinar. [S.l.:s.n., s.d.], p. 143-162.

________________. A educação escolar comoatividade. [S.l.: s.n., s.d.], p. 1-14.

SANTOS, B. P. A etnomatemática e suas pos-sibilidades pedagógicas: algumas indicaçõespautadas numa professora e em seus alunos ealunas de uma 5ª série. Dissertação (Mestrado)– FE/USP, São Paulo, 2002.

VIEIRA, R. 1995. Mentalidade, escola e pedago-gia intercultural. Educação, Sociedade & Cul-tura, n. 4, p. 127-147, 1995.

__________. Da multiculturalidade à educaçãointercultural: A antropologia da educação naformação de professores. Educação, Socieda-de & Cultura, n. 12, p. 123-162, 1999.

02_Uma breve analise.p65 20.09.05, 14:3524