uma anÁlise do desenvolvimento cognitivo das … · com outros aspectos importantes da sociologia...

127
UMA ANÁLISE DO DESENVOLVIMENTO COGNITIVO DAS RELIGIÕES NA SOCIOLOGIA DE MAX WEBER: CAMINHOS PARA A COMPREENSÃO DE ASPECTOS DA MODERNIDADE BRASILEIRA. BRAND ARENARI UNIVERSIDADE ESTADUAL DO NORTE FLUMINENSE DARCY RIBEIRO CAMPOS DOS GOYTACAZES - RJ MAIO - 2006

Upload: lycong

Post on 06-Dec-2018

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

UMA ANÁLISE DO DESENVOLVIMENTO COGNITIVO DAS RELIGIÕES NA SOCIOLOGIA DE MAX WEBER: CAMINHOS PARA

A COMPREENSÃO DE ASPECTOS DA MODERNIDADE BRASILEIRA.

BRAND ARENARI

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO NORTE FLUMINENSE DARCY RIBEIRO

CAMPOS DOS GOYTACAZES - RJ

MAIO - 2006

II

UMA ANÁLISE DO DESENVOLVIMENTO COGNITIVO DAS RELIGIÕES NA SOCIOLOGIA DE MAX WEBER: CAMINHOS PARA

A COMPREENSÃO DE ASPECTOS DA MODERNIDADE BRASILEIRA.

BRAND ARENARI

“Dissertação apresentada ao Centro de

Ciências do Homem, da Universidade

Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro,

como parte das exigências de obtenção do

título de Mestre em Cognição e Linguagem”.

Orientador: Prof. Dr. Frederico Schwerin Secco

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO NORTE FLUMINENSE DARCY RIBEIRO

CAMPOS DOS GOYTACAZES – RJ

MAIO – 2006

III

UMA ANÁLISE DO DESENVOLVIMENTO COGNITIVO DAS RELIGIÕES NA SOCIOLOGIA DE MAX WEBER: CAMINHOS PARA

A COMPREENSÃO DE ASPECTOS DA MODERNIDADE BRASILEIRA.

BRAND ARENARI

Dissertação apresentada ao Centro de

Ciências do Homem da Universidade

Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro,

como parte das exigências para a obtenção

do titulo de Mestre em Cognição e

Linguagem.

Aprovada em __ de _________ de 2006.

Comissão Examinadora: _______________________________________________________ Prof. Dr. Eurico Antônio González Cursino dos Santos (Doutor em Sociologia) - UnB

_______________________________________________________ Prof. Drª. Adélia M. Miglievich Ribeiro (Doutora, em Sociologia) – UENF

_______________________________________________________

Prof. Dr. Dario AlvesTeixeira Filho (Doutor em Filosofia) - UENF _______________________________________________________ Prof. Dr. Frederico Schwerin Secco (Doutor em Filosofia) - UENF (Orientador)

IV

AGRADECIMENTOS

Gostaria de agradecer a todos os amigos do Núcleo de Estudos em Teoria Social

(NETS), em especial a coordenadora do grupo, a professora Adélia Miglievich,

pelo grande aprendizado conjunto em nossas noites de estudo.

Aos amigos do grupo de pesquisa, Maria Tereza Carneiro, Lorena Freitas, Lara

Luna e Fabrício Maciel por todo apoio intelectual e afetivo que me ofereceram

durante o mestrado.

Ao amigo Roberto Torres, com quem tenho aprendido muito nestes últimos anos

e com quem divido os possíveis méritos desta dissertação em virtude de nossas

discussões e trabalho em conjunto.

Ao amigo Diogo Ramos pela leitura atenta e rigorosa de alguns capítulos desta

dissertação.

A Rosângela, minha professora de alemão.

Aos amigos Fabrício Neves (Bill), Renato Barreto, Vitor Peixoto e Patrick Azevedo

por todo apoio durante este percurso.

Àqueles que foram meus professores durante o mestrado.

Ao Professor e amigo Flávio Saliba por ensinar a mim e a outros amigos como

fazer sociologia para além do politicamente correto.

Ao professor Jessé Souza, a quem sou muito grato pelos vários incentivos e pela

grande atenção, e também por este ter alargado as fronteiras do mundo e da

sociologia para mim.

V

Ao professor Eurico C. dos Santos pelo auxílio em outros momentos desta

dissertação.

À professora Patrícia Mattos por todo apoio durante o mestrado.

Ao meu orientador, Professor Frederico S. Secco a quem sou grato por todos os

ensinamentos ao longo de minha vida acadêmica.

Aos meus pais e a minha irmã pelo afeto que me ofereceram ao longo de minha

vida que sustenta todas as minhas ações.

A minha namorada Betina Terra Azevedo por ter suportado as conseqüências

mais difíceis de uma dissertação.

VI

“A filosofia muda o mundo ao manter-se como teoria.” T. W. ADORNO.

VII

SUMÁRIO

Resumo ..............................................................................................................VIII Abstract ...............................................................................................................IX Introdução ............................................................................................................01

1. Proposições iniciais para a elaboração de um conceito de cognição sob o prisma da sociologia.......................................................................................... 05

2. O monismo mágico: apontamentos sobre a cognição mágica .............................................................................................................................. 18

3. Uma análise do conceito de “racionalização” em Max Weber .................. 36

4. A era dos dualismos: apontamentos sobre as concepções dualista transcendente e imanente .......................................................................................... 53

5. A cognição mágica e os caminhos da modernidade brasileira.................. 73 Anexo .................................................................................................................. 91 Referências Bibliográficas .............................................................................. 115

VIII

RESUMO

A minha proposta de análise parte da tese do sociólogo Eurico dos Santos,

que por seu lado foi longamente inspirada na sistematização que Wolfgang

Schluchter faz da obra de Max Weber, ou seja, a elaboração de etapas cognitivas

do desenvolvimento ocidental. Santos afirma a ausência marcante de uma

religiosidade ética na história brasileira. Segundo ele, a nossa história colonial

reflete um ambiente de vasta afirmação de crenças mágicas. Desse modo

conclui-se que a nossa modernização guarda singularidades em comparação às

nações que tiveram uma forte influência das religiosidades éticas que serviram de

substrato moral-cognitivo para a constituição de suas instituições. Em vista disso

busco traçar no último capítulo e também no anexo as conseqüências de um

processo de modernização, diferente do analisado por Weber, em que

religiosidade mágica se mistura com instituições modernas, tal como ocorreu na

modernização japonesa.

IX

Abstract

My proposal of analysis has bases on the thesis of the sociologist Eurico

Dos Santos, which for its side was inspired in the systematization Wolfgang

Schluchter makes of the Max Weber's work, or either, the elaboration of the

cognitives stages of the occidental development. Santos affirms the absence of an

ethical religiosity in Brazilian history. According to him, our colonial history reflects

an environment of vast affirmation of magical beliefs. In this way one concludes

that our modernization keeps singularities by comparing to the nations which have

had a strong influence of the ethicals religiosities that have served as a substratum

moral-cognitive for the constitution of its institutions. In sight of this I search to

trace in the last chapter and also in the annex the consequences of a process of

modernization, different from the one analyzed by Weber, where the magical

religiosity is mixed with the modern institutions, such as it occurred in the

Japanese modernization.

1

Introdução

2

Introdução

O trabalho apresentado nesta dissertação consiste em um esforço inicial

para a compreensão de determinados aspectos relativos ao desenvolvimento da

sociedade brasileira. O que se busca aqui não é uma resposta definitiva sobre

algum fenômeno social, e muito menos uma comprovação científica de alguma

hipótese elaborada. Almejamos tão somente a perseguição de caminhos teóricos

alternativos que nos permitam elaborar outras linhas investigativas a respeito de

velhos problemas e antigas discussões, a saber, o problema da modernização

brasileira. A partir de uma perspectiva weberiana, buscamos acrescentar alguns

elementos de reflexão para as análises que tem procurado observar o processo

de modernização brasileiro a partir da influência da gênese e desenvolvimento

dos valores concebidos na história da sociedade brasileira.

Reconstruímos parcialmente o caminho que Weber percorreu para

entender o desenvolvimento dos valores e instituições do Ocidente, lançando mão

da idéia de etapas cognitivas de desenvolvimento para entendermos

determinados aspectos da modernidade brasileira, tendo em vista que o que

ocorreu no Brasil foi resultado da expansão de fenômenos sociais relativos à toda

modernidade ocidental.

Para isso, organizamos os capítulos da seguinte maneira:

O primeiro capítulo deste trabalho faz uma introdução ao tema central

desta dissertação. Nele procuramos apresentar brevemente qual noção de

cognição nos orienta ao longo da discussão na presente dissertação. Na verdade,

ele se apresenta mais como uma justificação de caminhos escolhidos do que uma

profunda discussão a respeito do conceito de cognição. Se a questão a respeito

da importância dos aspectos cognitivos e da gênese dos valores no

desenvolvimento societário perpassa toda a dissertação, é neste capítulo, mesmo

que de maneira muito breve, que nos aproximamos mais das temáticas discutidas

em nosso programa de pós-graduação.

O capítulo dois, intitulado “O monismo mágico: apontamentos sobre a

cognição mágica” não se atém puramente a uma discussão isolada a respeito da

religiosidade mágica e da estrutura do pensamento “mágico”. Ele se apresenta

3

também como uma introdução geral da sociologia da religião na obra de Max

Weber. A partir de alguns temas específicos relativos à magia procuramos cotejar

com outros aspectos importantes da sociologia da religião de Max Weber. Em

vista disso, temos neste capítulo os itens denominados de “introdução” e “as

bases materiais da religiogênese” como aqueles que se aproximam mais a

apresentação da sociologia da religião de Weber. Já os itens denominados “a

cognição mágica” e “classificação dos estágios cognitivos do monismo mágico” se

configuram como explicações do tema central da magia. A última parte, “magia e

modernidade” aponta para o objetivo das discussões apresentadas que serão

levadas a cabo no último capítulo da dissertação.

A partir do ponto de vista do lógica dos capítulos, poderíamos afirmar que o

capítulo três representa o início do abandono das concepções mágico-monistas

de mundo e assim o direcionamento para concepções dualistas transcedentes e

imanentes de mundo. A apresentação do conceito de racionalização em Weber

nos permite compreender a ruptura com as concepções mágicas de mundo e

suas consequências no universo dos conceitos weberianos. Este capítulo surge

como o elo entre os capítulos II e IV, relacionando-os e antecipando algumas

discussões feitas no capítulo IV.

No capítulo IV apresento a etapa cognitiva posterior à magia dentro da

lógica do desenvolvimento contida na sociologia weberiana. Esta etapa trata dos

grandes sistemas duais metafísicos que ainda são fundamentais para nossa

percepção de mundo e para a compreensão da construção dos valores da

modernidade. Na primeira parte estudo a evolução cognitiva que aos poucos

abandonou uma concepção monista-imanente (cognição mágica) para adotar

uma concepção dualista-transcendente. Em um segundo momento deste capítulo

analiso a concepção dualista imanente. O exemplo histórico deste modelo

encontra-se no protestantismo ascético, pois neste sistema de crenças, mesmo

que se tenha uma perspectiva de salvação em um “outro mundo”, as ações

dirigidas a este mundo ganham positividade. Esta nova configuração cognitiva do

mundo permite vislumbrar a possibilidade da inauguração de uma nova ética que

em muito se diferencia dos tabus assentados em proibições mágicas. Os

sistemas derivados desta estrutura cognitiva elevam as idéias a tal ponto que

algumas delas transformaram-se em valores veneráveis, formando assim uma

4

ética baseada em princípios invioláveis, a qual Weber chamou de ética da

convicção.

Nosso objetivo neste capítulo é, além de demonstrar uma etapa

fundamental do desenvolvimento cognitivo da história do ocidente, pontuar

algumas questões que servirão de pano de fundo para o capítulo seguinte, onde

analiso a modernização brasileira.

No capítulo V, procuro analisar determinados aspectos da modernidade

brasileira, em especial os pressupostos básicos exigidos para o funcionamento

das instituições modernas aqui instaladas a partir dos fundamentos teóricos

apresentados nos capítulos anteriores, ou seja, a reconstrução da idéia de um

desenvolvimento cognitivo das religiões e seus impactos na agência humana,

tendo por suporte principal a sociologia Max Weber e a interpretação da mesma

feita por Wolfgang. Schluchter. Com este objetivo, apresento primeiro um breve

histórico da formação da religiosidade brasileira, ressaltando a ausência de tipos

de religiosidade ética o que poderia explicar a dimensão do universo mágico aqui

construído. Em seguida, a guisa de conclusão, procuro analizar e me posicionar

quanto aos aspectos sócio-religiosos preponderantes da modernidade brasileira.

O anexo é a versão em português do capítulo Religion und Anerkennung:

Affinitäten zwischen neupfingstlicher Bewegung und politischem Verhalten in

Brasilien publicado em co-autoria com Roberto Dutra Torres Júnior no livro Das

Brasilien Modernen, Alemanha, 2006. Nele apresento algumas evidências

empíricas relativas à tese desenvolvida nesta dissertação, busco traçar paralelos

entre o movimento neopentecostal (este que é hoje um dos principais

representantes das concepções religiosas mágicas no Brasil), e o aprendizado

político que este modelo de socialização religiosa oferece.

5

Capítulo I:

Proposições iniciais para a elaboração de um conceito de cognição

sob o prisma da sociologia

6

Proposições iniciais para a elaboração de um conceito de cognição sob o prisma da sociologia

Introdução

A proposta de percorrer o caminho da construção teórica do pensamento

weberiano — em especial aquele que julgo ser o mais rico e criativo espaço

teórico dentro do pensamento de Weber: a sua sociologia da religião —, nos

conduz a análises que se encontram para além das temáticas centrais da obra

weberiana. Isso ganha maiores proporções quando almejamos aplicar esses

pressupostos teóricos em realidades as quais Weber não presenciou, como é o

caso da modernidade periférica. Em vista disto, a idéia de reconstruir o

desenvolvimento cognitivo das religiões para melhor entender determinados

aspectos da formação daquilo que chamaríamos de sentido da ação social e dos

processos de modernização em contextos periféricos ao da “modernidade

clássica”1, decifrando elementos de fontes oriundas da religião que orientam parte

da ação, leva-nos ao debate relativo ao conceito que propõe explicar as relações

do homem com o mundo, de estabelecer como o sujeito apreende este mundo

que o rodeia e como ele conduz a sua ação a partir desta apreensão. Em outras

palavras, a tarefa que se apresenta é a de expor brevemente como se opera a

interconexão entre sujeito e objeto, isto é, entre homem e mundo e explicar quais

são as estruturas que exercem a mediação entre estes, para somente depois nos

deter nos assuntos principais desta dissertação.

O conceito que possibilita explicar as relações entre sujeito e objeto é o

conceito de cognição. A análise da agência humana, ou numa linguagem

weberiana, a busca da compreensão do sentido da ação social, remete a uma

discussão em que dois pontos são basilares para a compreensão deste tema: a

elaboração de uma representação ideal de sujeito e uma definição relativamente

1 O que chamo aqui de “modernidade clássica” são os processos de modernização ocorridos sobretudo nas sociedades do atlântico norte (E.U.A. e Europa central e nórdica), cujo traço que colocaríamos em destaque como elemento diferenciador frente aos demais processos de modernização e de igualdade interna é o grau de igualdade valorativa entre os indivíduos. Traço este nunca antes alcançado por nenhuma sociedade anteriores a modernidade, e que também não foi alcançado por outras sociedades modernas como o Japão e o Brasil.

7

clara do conceito de cognição. Acredito que nestes dois pontos estão as bases

para a compreensão do agir humano.

A partir da proposta de delimitação do conceito de cognição pretendo

deixar minimamente claro os mecanismos psicossociais que subjazem a principal

hipótese desta dissertação, que consiste em afirmar que as ações e as escolhas

morais são efetuadas em virtude da oferta de um determinado horizonte moral e

valorativo (ambos fundamentados cognitivamente), que os agrupamentos sociais

tem acesso. No caso em questão, privilegiamos a esfera religiosa por entender,

de acordo com a perspectiva weberiana, que em muitos casos é a religião a

principal fonte de oferta desse horizonte moral-cognitivo2.

Em vista disto, o que nos lançamos a demonstrar neste capítulo diz

respeito à discussão do conceito de cognição, perseguindo o caminho de uma

possível mudança paradigmática em que contextos intersubjetivos ganham

destaque em detrimento de perspectivas subjetivistas.

A crítica ao modelo dominante

Para entender os limites que configuram a noção de cognição nos seus

aspectos mais básicos do cotidiano ou mesmo nas grandes questões que lhe são

decorrentes, — como aquelas que implicam escolhas morais e valorativas — uma

tarefa se faz indispensável: a efetivação de uma severa crítica ou até mesmo um

rompimento com as principais concepções que têm predominantemente orientado

a discussão relativa a estas temáticas, para somente depois redirecioná-la para

análises que até então têm sido muito pouco exploradas, como pretendemos

fazer ao longo deste capítulo.

Quanto às concepções dominantes, nos referimos certamente às

tradicionais concepções racionalistas e ao biologicismo moderno, sendo que este

último, desde de Darwin, busca resolver os debates nas questões

epistemológicas mais distintas. Vale lembrar que esta última concepção busca

argumentos e evidências para além de explicações ancoradas na sua principal

matriz filosófica, a saber, o utilitarismo inglês; mas se vale também do avanço

2 Esta idéia ficará mais clara no decorrer desta dissertação, onde a trataremos com mais detalhes.

8

científico-tecnológico, especialmente das técnicas de mapeamento cerebral em

que se pretende classificar regiões cerebrais juntamente com a análise do fluxo

de mediadores químicos. Com isso pretende-se definir áreas específicas da

cognição, almejando assim uma teoria ou tão somente uma explicação físico-

química que permitiria o diagnóstico de tendências no hábito e no gosto de um

sujeito, tais como propensão à violência, escolhas relativas ao gosto, preferência

por determinadas comidas ou por tonalidades de cores específicas etc.

Quanto aos fundamentos racionais destas tendências, podemos afirmar

que até o presente momento o construto do pensamento kantiano, mais

especificamente sua estética transcendental, tem servido diretamente e

indiretamente como o pilar principal e, conseqüentemente dominante nas

interpretações relativas à cognição humana. Esta tradição serve tanto aos

modelos interpretativos assentados sob o racionalismo subjetivista, quanto

aqueles que recorrem à noção de uma estrutura universal e estática do sujeito, no

caso em questão a estrutura cerebral.

Quanto ao primeiro (racionalismo subjetivista), o modelo kantiano fornece a

ilusão de que nossas escolhas (cognitivas) estéticas e éticas são mediadas

conscientemente pela pura e simples atividade classificatória da razão. Neste

sentido, os esquemas avaliativos são elaborados pela capacidade quase infinita

da razão e conduzem-nos a sistemas apodíticos (universais e necessários)3.

Nesta idéia, independentemente da influência de um aprendizado social e de

panos de fundos sócio-cognitivos, os seres humanos fariam suas escolhas a partir

de um exame minucioso e evidentemente consciente, que a faculdade inata da

razão lhes proporciona. Desse modo, tornando apenas o sujeito (consciente)

como elemento exclusivo que nos permitiria empreender uma análise a respeito

da apreensão do mundo, pois este (sujeito consciente) por si só já conteria as

estruturas que lhe permitem avaliar as impressões do mundo que o rodeia. Esta

lógica de análise negligencia a percepção de que estruturas sociais que são

incorporadas inconscientemente pelo sujeito podem servir como fonte de

investigação para se compreender a relação do sujeito com o mundo.

3 Cf. BOURDIEU, Pierre. La distinción: criterios e bases sociales del gusto. México: Ed. Taurus, 2002.

9

A influência do kantismo no segundo modelo citado não é tão direta quanto

aquela referente ao racionalismo subjetivista, mas por outro lado, é ele (o

kantismo) que fornece as bases para a idéia de uma estrutura estática humana

que medeia a relação com os objetos, sendo que estes últimos se nos

apresentam (Erscheinung) moldados por estas estruturas intermediárias,

permitindo e sendo de muita valia para a explicação que busca o desvelamento

completo das estruturas cerebrais como caminho para o entendimento da

cognição humana. A noção de uma estrutura cognitiva universal na espécie se

consolida quando Kant apresenta as bases de sua teoria do conhecer, que

consiste na afirmativa que o conhecimento não se encontra nos objetos ou tão

simplesmente na razão, mas sim no que nossa razão coloca nos objetos. A razão

percebe o objeto a partir de sua estrutura cognitiva, não podendo desta maneira

apreender o objeto em si, na sua essência, por que esta jamais poderia ser

alcançada por nosso aparato cognitivo. Kant também não cede à concepção

empirista de um homem como uma tabula rasa, em que tão somente as

experiências imprimiriam suas marcas em um sujeito passivo, Kant afirma que:

Conquanto todo nosso conhecimento comece com a experiência, nem por isso

deriva, todo ele, da experiência. (B 1;TP 31) A partir da crítica kantiana o objeto

deixa de ser uma realidade absoluta dada, em que o sujeito tem uma atitude

passiva na sua percepção. Na revolução copernicana de Kant o sujeito também

constrói o objeto. No idealismo kantiano o conhecimento é fruto de uma interação

ativa entre sujeito e objeto:

A razão não percebe senão aquilo que ela mesma produz segundo seu

próprio projeto. . . Não conhecemos a priori nas coisas senão aquilo que nós

mesmo nelas colocamos. (B XIII TP 17- B XVIII TP 19)

Vale notar que a participação do sujeito na construção do conhecimento

não é para Kant o caminho para um relativismo a maneira de Protágoras; não são

experiências individuais ou culturais que tem relevância neste processo. Kant se

refere ao nosso aparato cognitivo, que seria universal na espécie humana. Uma

vez que o objeto nos é dado, nosso entendimento e sensibilidade o percebem de

acordo com suas faculdades. O que marca esta tese é a noção de um sujeito

10

cognoscente universal e estático dotado de estruturas rígidas de percepção do

mundo (entendimento e sensibilidade), idéia esta facilmente transportada para

uma compreensão fisicalista, em que estruturas cerebrais mediadas pelos

sentidos que são afetados pelos objetos nos conferem uma determinada

apreensão do mundo e das coisas.

É claro que o que propomos aqui não é uma defesa de uma suposta

influência direta do pensamento de Kant nestas teorias, especialmente naquelas

referentes à neurobiologia. O que realmente nos importa é ressaltar como o

construto do pensamento kantiano4 — e não especificamente algumas de suas

teses que não iremos aprofundar aqui — foi fundamental para um determinado

tipo de elaboração de sujeito no mundo moderno, que por seu lado, influenciou de

forma marcante, e isso não poderia ser diferente, na noção de relação deste

sujeito com o mundo, enfim, na construção de uma determinada noção de

cognição.

No entanto, as características fundamentais da idéia de sujeito, as quais

pretendemos criticar para a formulação de um outro conceito de cognição, se

concentram na perspectiva de um sujeito capaz de ter o controle voluntário de

seus exames, e que exerce escolhas dominantemente conscientes através de

uma faculdade ou de uma estrutura de percepção do mundo que está isolada das

estruturas sociais que o cercam, permitindo alcançar valores morais e estéticos

absolutos e universais. Pretendemos também nos distanciar da idéia de que

aspectos da cognição e da agência humana são preponderantemente

influenciados por heranças biológicas (genéticas), ou seja, das explicações que

superestimam respostas assentadas em aspectos físico-químicos. Enfim, iremos

nos contrapor a todas as explicações que tomam simplesmente o sujeito como

fonte exclusiva ou mesmo dominante para a explicação do conceito de cognição.

A mudança paradigmática

4 É importante esclarecer que aquilo que chamo de construto do pensamento kantiano não se refere tão somente às proposições de Kant, mas, sobretudo a força que suas idéias ganharam para muito além do círculo puramente filosófico. Em um sentido tayloriano (As fontes do Self, 1997), o que mais me importa não é uma análise “fria” das idéias, mas o valor e os desdobramentos dessas idéias quando ganham os “corações e mentes” das pessoas, transformando-se em ideologias, projetos políticos, discursos pseudocientíficos e etc.

11

O que se busca aqui é uma mudança paradigmática nas discussões a

respeito do conceito de cognição, e quanto a isso a proposta filosófica que nos

aponta saídas iniciais para a construção de um modelo alternativo encontra-se na

filosofia de Hegel. É importante ressaltar que esta filosofia oferece apenas os

contrapontos iniciais, que serão complementados a partir da contribuição de

outros pensadores contemporâneos, os quais utilizaremos para a consolidação do

que aqui chamo de mudança paradigmática. A filosofia hegeliana oferece a

possibilidade de um distanciamento frente a idéia de que o sujeito seria o

elemento primário e exclusivo responsável pelo processo de cognição. Ao adotar

uma visão que valoriza a importância de contextos intersubjetivos para explicar a

condução de nossa ação e de nossa percepção do mundo, esta possibilidade é

efetivada. Todavia, para dar seguimento a essa discussão, lançaremos mão do

pensamento de um filósofo contemporâneo assumidamente neo-hegeliano, a

saber, Charles Taylor, que procura levar a cabo a investigação sobre a noção de

contexto intersubjetivo. O que Hegel chamou de pano de fundo moral, Taylor

chamará de hierarquia moral.

No seu livro As fontes do self, Charles Taylor procurou investigar quais

seriam os principais contextos intersubjetivos que configuraram o quadro da

hierarquia moral ao longo da história do ocidente, e que ocasionou na atual

identidade moderna. Em posição oposta a de Nietzsche, Taylor acredita que uma

exegese das fontes morais não nos levariam a um vazio moral, mas ao contrário,

nos conduziriam à uma maior compreensão de nossa ação e das motivações que

direcionam nosso agir. No entanto, seu tom otimista referente a compreensão da

ação não é conduzido nos mesmos caminhos que levaram Habermas5 a elaborar

sua também otimista teoria da ação comunicativa. O ponto principal de

divergência entre o pensamento destes autores (Habermas e Taylor), e que

acredito ser o elemento diferenciador e de destaque no pensamento de Taylor, é

também a chave para nossa análise, a saber, a sua postura não racionalista.

Para Taylor a hierarquia moral que influencia todos nós é, na maioria das

vezes, inacessível à consciência, a maneira de uma força opaca, em que tal

opacidade é o elemento que produz sua eficácia na condução da ação e da

5 O motivo de citarmos Jürgen Habermas se deve ao fato deste ser um dos principais representantes do racionalismo na contemporaneidade apresentando-se assim como contraponto ao que gostaríamos de discutir.

12

percepção do mundo. Essa hierarquia de valores morais é a escala que indica

qual é a forma digna de se viver. Neste sentido, o modelo de vida que devemos

perseguir é inarticulado e pré-reflexivo, segundo Taylor.

Este caminho aberto por Taylor, em que se enfatiza que o que define a

percepção de mundo e a ação do sujeito está além do próprio sujeito e atua sobre

ele de forma inarticulada é o que mais nos interessa, tendo em vista que esta

perspectiva ataca duramente as teorias que colocam o sujeito como a matriz das

escolhas da agência humana. Vale lembrar que por mais que determinados

modelos de “vida digna” possam ser parcialmente acessíveis à consciência, os

fundamentos filosóficos e valorativos que sustentam esses modelos não são

normalmente acessíveis, impedindo assim a possibilidade de se fazer uma

escolha racional e, portanto, consciente sobre este ou aquele modelo de vida que

um indivíduo possa eleger sozinho como digno de ser vivido e perseguido.

A conformação e a internalização desses panoramas morais se dão a partir

de acordos intersubjetivos em que a lógica individual é de pouca relevância. Uma

constatação empírica disto é a existência de uma hierarquia de valores divididos

entre o que é certo ou errado, ou melhor, relativo às noções de bem e mal, que

atua inconscientemente em nós em inúmeras situações cotidianas, fazendo com

que nosso corpo responda de maneira involuntária a determinadas situações.

Desse modo, sentimos repulsa, desprezo ou indignação quando observamos

ações que não “classificamos” como “boas”, quando realizadas por outras

pessoas, ou quando sentimo-nos humilhados ou ressentidos quando estas ações

se dirigem a nós, ou mesmo quando sentimos vergonha ou culpa quando estas

ações são por nós praticadas, ou ainda em casos mais tácitos em que ficamos

com a face enrubescida em situações constrangedoras.

A formação de determinadas “noções de boa vida”, como chama Taylor,

merecem ser analisadas também a partir de perspectivas weberianas; isto se

deve à grande proximidade de idéias que enxergo entre estes autores. A “eleição”

de um determinado modelo de vida como categoria de “boa vida” ou “vida plena”

é antecedido pelo surgimento de novos valores que influenciam a sua formação.

A parte III do livro “As fontes do Self” de Charles Taylor, intitulada A afirmação da

vida cotidiana, é emblemática a respeito desta temática. Esta parte do livro tanto

13

demonstra a gênese de novos valores como ilustra bem a proximidade com as

idéias de Weber. Neste caso, a conformação de um novo modelo de vida oposto

ao modelo medieval é formado a partir de novos valores relacionados à reforma

protestante. Em oposição à vida nobre surge a vida metódica cotidiana como a

maneira digna de se viver6. Mais uma vez percebe-se, como pretendemos

desenvolver ao longo desta dissertação, que a oferta da “noção de boa vida”

assentada em um conjunto de valores não tácitos (hierarquia moral) foi por muitas

vezes formado a partir do discurso religioso. No caso em questão, grande parte

desses novos valores foram gerados em torno de uma nova promessa religiosa,

em especial, o protestantismo calvinista7.

Para compreender bem, temos que voltar a um ponto de origem teológico.

A afirmação da vida cotidiana origina-se na espiritualidade judeu-cristã, e o

impulso particular que recebe na era moderna vem sobretudo da Reforma. Um

dos principais pontos comuns a todos os reformadores foi sua recusa da

mediação. . . Não podiam existir cristãos mais ou menos devotos: envolvimento

pessoal deve ser total, ou não tem valor nenhum. (TAYLOR, 1997: 279)

A noção de que as escolhas morais se dão em virtude de um conjunto de

idéias-valores que configuram uma noção do que é bom, belo e desejável, sendo

que em muitas situações estas idéias-valores se materializam em promessas de

salvação religiosa que regulam a conduta humana como analisou Weber, é mais

um ponto de proximidade com Taylor que podemos ressaltar. Para ambos o

homem não é regido simplesmente por impulsos instintivos ou movido por

interesses rasos, mas há uma esfera moral que os influencia diretamente.

Esta dinâmica em que a ação não é controlada simplesmente por uma

relação rasa de interesses impostos pela necessidade da satisfação imediata de

prazeres e afastamento do sofrimento material, só é possível de ser efetivada

quando se tem uma compreensão de natureza humana mais complexa do que

aquela que enxerga o sujeito com um ser maximizador de prazer e minimizador

de sofrimento. Para Taylor o homem não está restrito a sua natureza puramente

6 Para mais detalhes ver “As Fontes do Self”, páginas 273 – 394. 7 Discussões mais detalhadas a esse respeito ocorrerão ao longo da dissertação.

14

animal, mas sim é um animal diferenciado por um elemento, é um animal moral.

Este ponto o aproxima radicalmente de Weber8, poderíamos até supor que sua

concepção de natureza humana é um desdobramento das idéias de Weber a

esse respeito. Weber também interpreta o sujeito como um sujeito moral que, a

despeito das ambições de “sucesso”, esse sujeito tem obrigações valorativas que

tem seu fim em si mesmo. Como exemplo, Weber narra que em muitas

sociedades os ricos e afortunados não se contentam em apenas ser ricos e

afortunados: eles precisam de um discurso que legitime e justifique sua melhor

sorte, inclusive para eles mesmos. Para garantir este conforto existencial relativo

a riqueza elaborou-se uma série de artifícios simbólicos ao longo da história, seja

através de uma suposta descendência divina, ou de uma pureza do sangue nobre

ou mesmo do recurso de gosto refinado, este último efetivando-se nas sociedades

modernas. Como afirma Schluchter sobre a esta temática weberiana: A utilidade é

uma dimensão importante da vida. Porém, não menos importante é a dimensão

do dever. (Schluchter, 1999:127) Ou como afirma Reckling no seu artigo

Interpreted Modernity: Weber and Taylor on values and modernity: “Weber foi

altamente cético quanto ao reducionismo do naturalismo e biologismo na ciência

social como também quanto ao reducionismo do conceito de racionalidade”9.

(Reckling, 2001:158)

Nestes breves comentários a respeito do pensamento de Taylor, buscamos

em um tom introdutório da dissertação, analisar sucintamente como a dinâmica

das idéias e da produção de valores atuam determinantemente na percepção do

mundo e no direcionamento da ação do sujeito, sendo esse aspecto basilar para o

desenvolvimento das idéias referentes ao pensamento da sociologia da religião

em Weber, em especial sua análise das etapas cognitivas. Cremos que as idéias

de Taylor aparecem como uma ferramenta importante pra compreender que a

oferta de determinado conjunto de idéias-valores que penetram pré-

reflexivamente nos indivíduos atua na formação de uma sociedade.

8 Há uma sutil, porém, importante diferença nas concepções de Taylor e Weber a esse respeito. Para Weber a esfera moral entra em competição com outras esferas da vida, já para Taylor todas as esferas da vida estão imersas em regras morais. 9 Weber was highly sceptical about a reductionist of naturalism and biologism in social science as well as about reductionist concept of rationality.

15

No entanto, se o livro “As Fontes do Self” nos permite ver como estruturas

extra-individuais atuam na percepção do sujeito em relação ao mundo, ou seja,

como estruturas “penetram” na mente dos indivíduos, é apenas no pensamento

de Pierre Bourdieu que podemos vislumbrar como as estruturas sociais

“penetram” nos corpos dos indivíduos. O estudo feito no livro “La Distinción”, de

Pierre Bourdieu, é a primeira grande obra das ciências sociais que, através de

uma longa pesquisa empírica (e certamente uma riqueza teórica), se aventura a

investigar aspectos da cognição humana que durante muito tempo foram campo

exclusivo da biologia.

Admitimos que os estudos de Bourdieu tenham menor importância que os

de Taylor no que se refere as idéias que desenvolvemos nos próximos capítulos,

porém, achamos importante apresentar sumariamente a obra deste sociólogo

francês em virtude deste ser útil para uma inserção das ciências humanas na

discussão a respeito da cognição empreendida neste primeiro capítulo.

No livro “La Distinción: criterios e bases sociales del gusto” Bourdieu

procura, a partir de uma elaboração de uma estética anti-kantiana, como o próprio

assim o denomina, deslocar as discussões sobre a estética dos referenciais de

uma noção de belo universal para conduzi-las para referenciais políticos e sócio-

cognitivos referente à determindos tipos de aprendizados sociais. Para Bourdieu a

percepção do belo é muito mais uma questão política referente a um conflito de

classes do que puramente uma questão puramente estética. Segundo Bourdieu, o

gosto é uma determinação de um aprendizado pré-reflexivo ocorrido em função

de uma determinada estrutura social que o indivíduo está inserido, principalmente

na infância. Desde a expressão corporal até aos hábitos alimentares ou mesmo

uma diposição para a apreciação da arte se dá em virtude desta incorporação de

estruturas sociais.

Para Bourdieu, a noção do belo ou “da vida digna” desejável é constituida a

partir de uma luta de classes que envolvem sutis instrumentos simbólicos para

garantir a dominação de uma determinada classe sobre a outra. Diferentemente

de Taylor, que crê que a base da hierarquia moral encontra-se na separação e

conseguinte divisão valorativa entre a mente e corpo (sendo que as atividades

referentes à mente são de maior valor que as atividades referentes ao corpo),

Bourdieu acredita que ela se forma em virtude de um conflito de classes.

16

Porém, o que mais nos interessa a respeito do debate sobre o conceito de

cognição na análise de Bourdieu não é a constituição do belo na luta entre as

classes, mas sim a “aquisição” das armas para esa luta, ou seja, a incorporação

de comportamentos sociais que são avaliados e utilizados como meios de

dominação que, segundo Bourdieu, consiste na incorporação de estruturas

sociais.

Bourdieu utiliza o termo Habitus para denominar esta dinâmica de

incorporação de estruturas sociais de forma inconsciente que configuram a

cognição humana, como ele descreve na citação abaixo:

As estruturas cognitivas que elaboram os agentes para conhecer

praticamente o mundo social são umas estruturas sociais incorporadas. O

conhecimento prático do mundo social que supõe a conduta “razoável” nesse

mundo elabora uns esquemas classificadores(ou, se prefere, “umas formas de

classificação”, umas “estruturas mentais”, umas “formas simbólicas”, expressões

todas elas que, se ignoram suas conotações, são mais ou menos intercambiáveis)

esquemas históricos de percepção e apreciação que são produto de divisão

objetiva em classes ( classes de idade, classes sociais, classes de gênero) e que

funcionam a margem da consciência e do discurso10. (BOURDIEU, 2002: 479)

Nesta lógica, a noção de um sujeito autônomo que faz escolhas racionais

(conscientes) ou de estruturas inatas no sujeito que determinam sua percepção

do mundo tem sua legitimidade contestada. Bourdieu busca comprovar em sua

pesquisa que até mesmo o paladar, a preferência por um determinado tipo de

comida segundo ele é algo socialmente construído. Assim, a incorporação de

determinados Habitus de classe atuam como a maneira de passar por várias

gerações uma dominação consolidada.

10 Las estructuras cognitivas que elaboran los agentes sociales para conocer prácticamente el mundo social son unas estructuras sociales incorporadas. El lo conocimento práctico del mundo social que supone la conducta “razonable” en ese mundo elabora unos esquemas clasificadores ( o, si prefiere, “unas formas de clasificación”, unas “estructuras mentales”, unas “formas simbólicas”, expresiones todas ellas que, si se ignoram sua connotaciones, son más o menos intercambiables) esquemas históricos de percepción y apreciación que son producto de la division objetiva em clases (clases de edad, clases sociales, clases genero) y que funcionan al margem de la conciencia y del discurso.

17

Tanto as idéias de Bourdieu quanto as de Taylor nos levam a pensar que

contextos intersubjetivos atuam de maneira significativa na constituição da

cognição do sujeito em relação ao mundo. Alguns dos debates empreendidos

neste capítulo fogem um pouco às discussões posteriores, no entanto, outras

discussões aqui empreendidas serão de crucial importância para as idéias que

serão debatidas a seguir.

18

Capítulo II:

O monismo mágico: apontamentos sobre a cognição mágica

19

O monismo mágico: apontamentos sobre a cognição mágica

Introdução

Por mais estranho que esta afirmação pareça, não é a religião

propriamente dita o objetivo central de Weber na investigação minuciosa sobre as

grandes religiões mundiais, que por seu lado ocasionou na construção de um

engenhoso trabalho de sociologia da religião. Como o próprio autor afirma no

início da parte dedicada à religião em Economia e Sociedade: “Não é da

“essência” da religião que nos ocuparemos, e sim das condições e efeitos de

determinado tipo de ação comunitária” . . . (2000: 379), Weber se debruça sobre a

investigação do tema que direciona toda sua obra, a saber, a interpretação do

sentido da ação social, ou seja, em que medida determinados tipos de ação são

tributários da combinação de elementos que organizam a vida social. Neste

sentido, a religião ganha destaque em suas investigações, já que esta ocupa um

lugar fundamental - porém não o único – na doação de sentido à vida e, por

conseguinte, na doação de sentido à ação. É necessário ressaltar que em

nenhum momento defendemos a tese de qualquer determinismo histórico

centrado na religião, pois o próprio conceito weberiano de afinidades eletivas, que

trataremos mais tarde, denota esta proposta de distanciamento destas

concepções para adotar interpretações que valorizem a relação de afinidades

entre esferas distintas, como a econômica, a política e a religiosa, sem que

nenhuma delas seja tomada como a causa de qualquer outra. A esfera religiosa,

muitas vezes, foi interpretada como simples desdobramento de “esferas de

primeira grandeza” como a política e a econômica. No entanto, a religião oferece

uma estrutura sócio-cognitiva elaboradora de um discurso sobre o mundo e sobre

as coisas, tal como afirma Pierre Bourdieu:

Em outras palavras, a religião contribui para a imposição (dissimulada) dos

princípios de estruturação da percepção e do pensamento do mundo e, em

particular, do mundo social, na medida em que impõe um sistema de práticas e de

20

representações cuja estrutura objetivamente fundada em um princípio de divisão

política apresenta-se como a estrutura natural-sobrenatural do cosmos.

(BOURDIEU, 2004: 33-34)

Esse panorama cognitivo a respeito do mundo oferecido pela religião não é

um produto isolado das outras esferas, ou seja, a religião não opera

independentemente, pois ela também se constrói de acordo com as demandas

econômicas e políticas, como muito bem assinala Weber:

É claro que o modo de vida determinado religiosamente é, em si,

profundamente influenciado pelos fatores econômicos e políticos que operam

dentro de determinados limites geográficos, políticos, sociais e nacionais. . . Por

mais incisivas que as influências sociais, determinadas econômica e

politicamente, possam ter sido sobre uma ética religiosa num determinado caso,

ela recebe sua marca principalmente das fontes religiosas e, em primeiro lugar,

do conteúdo de sua anunciação e promessa. (WEBER, 1983: 310-312)

Mesmo na contemporaneidade a religião imprime sua linguagem na

elaboração do sentido do mundo onde o discurso técnico-científico não penetrou

fortemente, fazendo com que os homens vejam o mundo através de “óculos

cognitivos” da esfera religiosa, ou em termos weberianos, as “imagens de mundo”

(Weltanschauung) criadas pelas “idéias”.

Nesta lógica, a ação estaria não determinantemente direcionada, mas sim

orientada por uma determinada estrutura cognitiva que agiria como horizonte de

possibilidades do aprendizado moral de um determinado tipo de comunidade ou

sociedade. Como já afirmamos, esse panorama cognitivo foi oferecido em grande

parte, sobretudo no que se refere à sociedades pré-modernas, pelo discurso

religioso vigente. Em vista disso, Weber elabora um longo desenvolvimento

cognitivo a partir de um exame histórico-religioso, partindo das primeiras

organizações sociais para entender a formação do tipo de ação do mundo

moderno ocidental que contribuiu acintosamente para a formação do sistema

21

capitalista moderno. Wolfgang Schluchter11 classificou e sistematizou este

sistema de etapas cognitivas mais detalhadamente, partindo daquilo que Weber

chamara de formas primevas e universais de religiosidade, que abordaremos

inicialmente a partir do que denominamos cognição mágica.

A cognição mágica

A ação ou cognição mágica, entendida não simplesmente como um tipo de

ação particular, mas sim como toda uma maneira de interpretar o mundo,

caracteriza-se em traços gerais, pela ausência de uma sistematização clara de

um conjunto de idéias que orientam a interpretação do mundo e, por conseguinte,

a própria ação. Nota-se aí a carência de uma sistematização racional a respeito

do mundo12. Não no sentido estritamente histórico, mas sim no seu aspecto

cognitivo relacionado a uma lógica do desenvolvimento (Entwicklungslogik),

poderíamos falar de uma etapa anterior ao processo de racionalização13 em que

não se iniciou ainda a formação de um discurso racional de dominação do mundo.

Neste caso (magia) a ação é direcionada tão simplesmente pelas demandas

imediatas da praticidade, não encontrando um conjunto sistematizado de idéias

que entrem em conflito pelo direcionamento da ação.

No caso da religiosidade mágica14, não há uma preocupação aliada a

grandes idéias religiosas, e devido a isso, talvez não possamos referir-nos a ela

dessa maneira, já que uma de suas principais características é a inexistência de

um campo estritamente religioso15, com demandas exclusivamente religiosas,

uma vez que suas ações se misturam com os anseios de outras esferas da ação.

11 Sociólogo alemão que é hoje um dos principais intérpretes do pensamento weberiano, responsável pelo crescente interesse por Weber devido às suas interpretações originais. 12 Isto não quer dizer que não exista uma racionalidade prática, assentada na experiência, mas sim a ausência de uma racionalidade reflexiva, que confere um sentido integrado à realidade. 13 Conceito o qual trataremos no capítulo seguinte. 14 Tipo de religiosidade que se orienta predominantemente por referenciais mágicos, marcadamente presente em sociedades ou outros agrupamentos sociais que interpretam o mundo tal como um “reino encantado”. Esse tipo de religiosidade se opõe à religiosidade ética, sendo esta última um sistema religioso que tende a interpretar o mundo como um universo pleno de sentido. Esses termos ficarão mais claros no decorrer da dissertação. 15 Mesmo quando um campo religioso é formado através da cognição mágica, devido ao desenvolvimento do simbolismo e de uma relativa abstração, este aparece, apesar de possuir tabus religiosos, ainda não tem força para conduzir a ação, o que acontece em etapas onde a religião já construiu seu campo de maneira mais autônoma e definida. Sobre este tema falaremos mais detalhadamente no decorrer deste capítulo.

22

Podemos classificá-la antes como uma etapa pré-religiosa comparativamente à

religião no seu sentido estrito16. Elaborados discursos cosmogônicos ou discursos

a respeito da salvação da alma com um destino de penas e gozos futuros num

mundo transcendente a este em que vivemos, ou mesmo um código moral

baseado em certos princípios, enfim, todas estas características que atribuímos

tradicionalmente à religião, são desconhecidos por este sistema. Suas ações em

geral tendem a se dirigir para “que vás muito bem e vivas muitos e muitos anos

sobre a Terra” (WEBER, 2000: 279)

O pensamento mágico, como chama Weber, está relacionado à

cotidianidade, comprometido com metas de curto prazo, em geral preocupações

relacionadas com a economia17, tais como prosperidade na colheita. A busca de

êxito nestas atividades implicou na elaboração de meios coatores sobre deuses,

demônios ou espíritos, ou mesmo forças mágicas da natureza, variando de

acordo com o tipo cognição mágica vigente no determinado grupo social. A

eficácia desta ação, regulada em geral por sua cotidianidade, almejava sobretudo

efeitos de natureza meteorológica.

As demandas típicas da concepção mágica do mundo direcionam-se, em

geral, para a saúde, riqueza e vida longa. Em muitos povos antigos a vitória nas

guerras ocupou a atenção dos rituais mágicos; no entanto, a cura do corpo e a

prosperidade material mantêm-se presentes na contemporaneidade sob formas

renovadas, sobretudo na religiosidade das massas pertencentes aos setores não

europeizados da periferia18, como por exemplo, a teologia da prosperidade e a

cura do corpo, típicas do neopentecostalismo19. Ainda que hoje as vitórias nas

guerras sejam tratadas como assuntos dependentes de estratégias racionais e da

aplicabilidade científica, sendo que esta última inova cada vez mais a tecnologia 16 A palavra religião indica a partir de sua origem etimológica a religação entre algo que foi separado, no caso em questão, o homem e a divindade que foram separados por um abismo intransponível. Este sentido não se aplicaria à magia, na medida em que neste sistema de interpretação do mundo o homem e a divindade desfrutam da mais estreita intimidade; assim não há o que ser re-ligado, porque nunca houve separação. 17 O sentido do termo economia na sociologia da religião de Weber não está apenas relacionado às formas de sistema econômicos adotados por esta ou aquela sociedade, mas se refere a toda produção e reprodução dos meios de vida. Neste sentido, ações direcionadas à economia são aquelas voltadas para a produção no seu sentido mais geral. Sobre o termo “ética econômica”, Weber assim o define na sua obra A psicologia social das religiões mundiais: “O que entendemos por ‘ética econômica’ refere-se aos impulsos práticos de ação que se encontram nos contextos psicológicos e pragmáticos da religião”. (1983: 309) 18 Cf. Souza, Jessé (2003): A Construção Social da Subcidadania: para uma Sociologia Política da Modernidade Periférica. Belo Horizonte: UFMG 19 Cf. Anexo

23

relacionada ao aparato bélico, em algumas sociedades a magia serve como meio

para disputas pessoais, e lançar maldições e desgraças prescritos em rituais

mágicos contra inimigos faz parte do dia-a-dia de determinadas comunidades:

A maioria dos autores está de acordo em reconhecer nas práticas mágicas

os seguintes traços: visam objetivos concretos e específicos, parciais e imediatos

(em oposição aos objetivos mais abstratos, mais genéricos e mais distantes que

seriam os da religião); estão inspiradas pela intenção de coerção ou de

manipulação dos poderes sobrenaturais (em oposição às disposições

propiciatórias e contemplativas da “oração” por exemplo); e por último,

encontram-se fechadas no formalismo e no ritualismo do “toma lá da cá”.

(BOURDIEU, 2004: 44-45)

Enfim, na cognição mágica não há uma nítida separação entre as esferas

da ação e, neste caso, a ação magicamente motivada se mistura com outras

esferas que nos setores mais europeizados do mundo moderno ocidental

detêm plena autonomia. Em sociedades antigas, o direito, por exemplo, se

constituiu mesclado a concepções mágicas, carecendo de uma lógica interna

própria. O controle social ocorria a partir de tabus de fundamentação mágica e

não em sistemas fortemente racionalizados como ocorreu no ocidente, em

especial a partir do surgimento do direito romano. Weber cita inúmeros

exemplos de como tabus mágicos são utilizados para fins de controle social, e

em alguns casos visando interesses econômicos. Tabus relacionados ao sexo

entre camadas sociais diferentes, especialmente em sociedades com rígidos

sistemas de casta foram cruciais para a manutenção da pureza do sangue que

legitimava o controle social; tabus em relação à exploração de florestas e

determinadas caças foram maneiras de garantir exclusividade de terras e

recursos a membros da nobreza. (WEBER, 2000: 299). O medo da sentença

de desgraça (morte, doenças, azar) dirigida àqueles que violavam o tabu típico

de sociedades hegemonicamente mágicas, serviam como normatização do

sistema social. Todavia, muitos tabus instituídos em nada correspondiam a

interesses instrumentais objetivos, sejam eles econômicos ou de controle

24

social; por vezes esses tabus se dirigiam contra esses interesses e também

contra os estratos sociais dominantes.

O sucesso na obtenção de alimentos, seja na caça ou na agricultura,

também estava submetido a cultos e determinados rituais que visavam coagir a

divindade com sacrifícios ou palavras mágicas a conceder-lhe o bem visado ou,

como em alguns casos, dependia do humor deste ou daquele deus responsável

por esta atividade. Um ponto de destaque nesta lógica é a relação com a

divindade ocorrida em sociedades onde a visão de mundo é orientada pela

cognição mágica. Não existe aí um abismo que separa os homens dos deuses,

como ocorre nas religiões puramente éticas; homens e deuses dividem o mesmo

espaço e estão sujeitos às mesmas investidas. Daí a percepção geral desta etapa

cognitiva como monismo mágico imanente, ou seja, existiria apenas este mundo e

todas as ações seriam conseqüentemente dirigidas unicamente para ele. A

oposição desta grande etapa cognitiva é o seu momento seguinte dentro da lógica

do desenvolvimento, a saber, o dualismo transcendente, cuja racionalização

metafísica dividiu o mundo em dois, uma vez que as ações passaram a ser

dirigidas ao outro mundo que transcende ao mundo material em que vivemos. A

unidade da imagem primitiva do mundo, em que tudo era mágica concreta, tendeu

a dividir-se em conhecimento racional e domínio da natureza, de um lado, e em

experiências místicas, do outro. (WEBER, 1982: 325)

Como exemplo do não distanciamento entre os homens e a divindade

presente na cognição mágica, Weber apresenta a religiosidade mágica do sul da

Europa, em que fiéis reclamam e cospem em imagens de santos que não

atendem aos seus pedidos. O catolicismo popular brasileiro também seria

permeado por estes exemplos, na medida em que imagens de santos são

colocadas de cabeça para baixo como castigo por não atenderem os pedidos de

seus suplicantes. No prefácio de Casa-Grande e Senzala Gilberto Freyre narra

exemplos a esse respeito: “Nunca deixou de haver no patriarcalismo brasileiro,

ainda mais que no português, perfeita intimidade com os santos. O menino Jesus

só faltava engatinhar com os meninos da casa”. . . Também nos cultos afro-

brasileiros são feitas oferendas relacionadas à vaidade feminina (espelhos,

cosméticos, perfumes e etc.), a determinadas divindades possuidoras de

25

preocupações puramente humanas. Neste caso, a relação dos homens com os

deuses não difere em substância da relação dos homens entre si.

Em vista disso, as decisões tomadas se pautam por relações de barganha

com a divindade e não em compromissos éticos, como é o caso das grandes

religiões éticas ocidentais, tributárias da novidade surgida na religiosidade judaica

que inaugura a idéia de um pacto ético firmado com um deus distante e

inatingível.(WEBER, 2001, Vol. III) Ao invés de coações mágicas ou da

expectativa irracional relativa ao humor da divindade, devia-se cumprir um pacto

ético e averiguar racionalmente os castigos e as benesses enviadas pelo deus

israelita: “Havia ditado seus mandamentos positivos e era preciso atentar-se a

eles. Cabia averiguar, como em um grande rei, seus propósitos salvadores, as

razões de sua cólera e as condições de sua graça.” (WEBER, 2001: 254 Vol.

III)20 Nesta lógica, a culpa ou o mérito pelo fracasso não mais era atribuído à

fraqueza ou força da divindade, mas sim ao não cumprimento do pacto por parte

do fiel.

A mentalidade moderna ocidental tende a interpretar a forma de percepção

de mundo da cognição mágica como um estado puramente caótico de

organização da vida, cujos atributos lógicos encontram-se distantes. No entanto,

Weber faz questão de comentar que sociedades nas quais este sistema de

percepção de mundo impera, não são (des)governadas pelo irracionalismo. As

regras da experiência orientam de certo modo a ação. Na cognição mágica

também existe um tipo de racionalidade, uma espécie de racionalidade da

experiência21. Ações que alcançam um bom resultado na obtenção de um

determinado fim são repetidas mimeticamente em virtude de seu potencial

mágico, e não em virtude de uma técnica racionalmente desenvolvida. Se o

cultivo de um determinado espaço de terra rendeu bons frutos, os meios utilizados

são ritualizados desde métodos até adereços e pinturas corporais, ou sacrifícios

de determinados animais ou mesmo humanos são repetidos no afã da obtenção

de resultados iguais.

20 “Había dictado sus mandamientos positivos y era preciso atenerse a ellos. Cabía averiguar, como en un gran rey, sus propósitos salvadores, las razones de su cólera e las condiciones de su gracia.” 21 O tema da racionalidade será tratado no capítulo seguinte.

26

Somente nós, do ponto de vista de nossa concepção atual de natureza,

poderíamos distinguir imputações causais objetivamente “corretas” e “erradas” e

reconhecer estas últimas como irracionais e a ação correspondente como

“magia”. (WEBER, 2000:279)

As bases materiais da religiogênese

As formas de religiosidade na sociologia da religião de Weber sempre se

relacionam a determinados tipos de organização social que englobam aspectos

históricos, políticos, econômicos e geográficos. Muitas vezes interesses materiais

de grupos específicos orientaram a forma de religiosidade ali desenvolvida. As

principais demandas (políticas ou econômicas) e os anseios deste ou daquele

grupo social tendem a ser dominantes no conteúdo das suas promessas

religiosas, formando assim uma dinâmica destas promessas.

As promessas religiosas tendem a se formar a partir do quadro de

carências vivido “neste mundo”; elas tendem a ser uma resposta reativa a tudo

que é desejado neste mundo e não pode ser alcançado, pelo menos, de maneira

mais imediata ou próxima. Assim vemos deuses fortes surgirem quando

prometem boas colheitas em tempos e\ou lugares onde a fome é uma constante.

No caso dos hebreus, uma revolução teológica se instaura quando um deus que

se tornou o maior da história ocidental, promete supremacia bélico-política a um

povo oprimido por duas potências imperiais (Egito e Pérsia). A noção de paraíso

enquanto lugar do ócio descompromissado vem bem a calhar em nações ou

grupos escravizados ou submetidos a trabalhos muito árduos. Na modernidade,

nos grupos miseráveis e pobres destituídos de riqueza e acesso a sistemas de

saúde, deuses que prometem prosperidade material e curas ganham muitos fiéis.

Uma questão crucial nesta dinâmica é a forma como as promessas religiosas se

dirigem para os afortunados da modernidade tardia, em um mundo onde a técnica

e a ciência resolveram grande parte dos seus problemas e suplantaram com

muita eficácia quase todas as promessas religiosas; as vitórias nas guerras

tornaram-se um produto da ciência e da técnica; o sucesso na colheita é obra da

química e da agroindústria; a medicina trata com eficácia da cura do corpo; leis

trabalhistas garantem cargas de trabalho diminuídas e etc. Neste caso as

27

promessas religiosas se dirigem para a solução de um novo problema, o

desconforto psicológico causado pela agitação da vida urbana, ou seja, a

ansiedade gerada pela vida moderna. E isto é um prato cheio para o orientalismo

que invade o ocidente, que promete uma vida sábia que paire sobre as

tribulações deste mundo. Tanto a vida do “aqui e agora” quanto na do “mais além”

se valem da promessa da paz psicológica, seja prescrevendo soluções antigas

relativas à negação dos valores mundanos — como a adoção de um estilo “zen”,

por exemplo — como também investidas de campos não-religiosos para a

solução ou mesmo terapia destas demandas humanas. Os novos medicamentos

para o cérebro que prometem controle da ansiedade, e os pacotes de empresas

de turismos para viagens cada vez mais exóticas sem perder nenhum conforto,

mas ao mesmo tempo estando longe das tribulações da vida cotidiana do mundo

moderno são também exemplos indiretos destas tendências religiosas de

libertação do sofrimento. O desconforto, ou melhor, o sofrimento, é o mote para

os projetos de salvação, sejam da religião ou dos setores mais laicizados da

sociedade.

Porém, nas comunidades onde predomina a ação magicamente motivada,

essas promessas não têm o caráter de uma salvação no sentido tradicional a ela

atribuído -- seja ela coletiva como ocorre no judaísmo antigo ou individual a

exemplo do puritanismo --, as preocupações majoritariamente econômicas

relacionadas à vida cotidiana estão influenciadas por uma carência de

previsibilidade e garantia da obtenção dos meios de vida. Em vista disso Weber

colocou os estratos camponeses como o locus mais propício e até mesmo

originário da religiosidade mágica.

Os “camponeses” se inclinaram para a mágica. Toda sua existência

econômica esteve especificamente ligada à natureza e os tornou dependentes de

forças elementares. Acreditam facilmente numa feitiçaria coatora, dirigida contra

espíritos que governam forças naturais, ou que governam através delas, ou

acreditam comprar, simplesmente, a benevolência divina. Somente

transformações tremendas na orientação da vida conseguiram afastá-los dessa

forma universal e primeva de religiosidade. (WEBER 1983:327)

28

As afinidades eletivas existentes entre os camponeses e a magia se

evidenciam nas formas de classificação que as camadas urbanas utilizavam para

designar os camponeses em virtude de seu estilo de vida, especialmente de suas

práticas religiosas. As camadas camponesas foram classificadas em geral pelos

citadinos com termos pejorativos em virtude de sua religiosidade

predominantemente mágica. Em várias sociedades, ser camponês era

considerado um índice de inferioridade moral. Como narra Weber, entre os

judeus, principalmente no período dominado pelos fariseus (estrato social

puramente urbano e intelectualizado), apenas o fato de não viver na cidade

colocava o indivíduo na categoria de um judeu de segunda categoria, tanto

política como religiosamente (2000: 322). No cristianismo antigo, o termo “pagão”,

utilizado para desclassificar o não-cristão, tinha sua origem no termo “pagnus”

que originalmente significava homem do campo. No cristianismo medieval tomista

o camponês era tido com um cristão de categoria inferior (2000: 322). A

estatística dos condenados pela inquisição na Idade Média (90 por cento eram

camponeses) revela a luta da doutrina oficial da igreja contra a tradição mágica

dos camponeses, normalmente acusados de serem bruxos e feiticeiros. Esta

lógica também ocorre no Brasil, cujas camadas médias urbanas sempre

devotaram um certo desprezo pelas formas de religiosidade popular camponesas

ou da periferia dos centros urbanos, em especial a religiosidade afro-brasileira,

condenada principalmente por suas práticas mágicas. Isto revela a atribuição por

parte das camadas urbanas da existência de um Habitus22 precário típico das

camadas camponesas.

Os estratos sociais do campo mantêm uma relação de total dependência

frente à natureza se os compararmos com os estratos urbanos, sobretudo os

estratos urbanos modernos, que detêm uma relativa independência em relação à

natureza. Se por um lado os comerciantes citadinos vivem num universo artificial

e controlado que é a urbe, exercendo uma atividade econômica contínua que lhes

exigem cálculos que oferecem previsibilidade e garante-lhes uma relativa

segurança frente às intempéries da natureza, os camponeses estão sujeitos a

todo tipo de acontecimento que ordinariamente estão aquém do seu controle.

22 Cf. Bourdieu, Pierre. La distinción: criterios y bases sociales del gusto. Editora Taurus: México, 2002.

29

Além de estarem submetidos a uma atividade sazonal imposta pela natureza,

dependem da ação de forças que não controlam nem conhecem, como a chuva

ou a tempestade, a geada ou a seca, as pragas, enchentes etc. Enquanto o

artesão prevê o tempo final de confecção do seu produto, que depende

basicamente apenas do seu trabalho, o agricultor se depara e depende do

mistério insondável do nascimento e do crescimento dos organismos (BENDIX,

1986).

Em virtude disso, dois aspectos se destacam na configuração da ação

típica dos estratos camponeses. Primeiro no que se refere à impossibilidade da

elaboração ou compreensão de grandes sistemas que envolvem metas de longo

prazo, como a salvação da alma num mundo transcendente a este em que

vivemos. As preocupações dos estratos camponeses estão voltadas

principalmente para a produção do sustento imediato do qual as garantias de

obtenção detêm pouca previsibilidade, enclausurando-lhes num círculo fechado

de metas de curtíssimo prazo, cujo “aqui e agora” é o único horizonte possível.

Por conseqüência, as forças que segundo suas interpretações controlam a

natureza (espíritos, deuses, demônios), são alvo de ações coatoras ou barganhas

que visam a obtenção de metas imediatas relativas à saúde e riqueza. O outro

aspecto que se destaca é a ausência de uma técnica desencantada no trato com

a natureza. Não há uma diferenciação entre técnica e magia, uma vez que a ação

mágica é a única “técnica” para coagir as forças da natureza. A dependência

absoluta da natureza e a não compreensão racional de seus processos a

transforma num universo misterioso e encantado, em que a magia torna-se a

forma cognitivamente acessível de intervenção.

Todos estes exemplos revelam um traço estrutural da tese weberiana a

respeito do desenvolvimento religioso, a oposição campo versus cidade. A ruptura

ocorrida com o surgimento e desenvolvimento das cidades marca o aparecimento

de novos estratos sociais, de uma nova geografia e por conseguinte uma nova

forma de religiosidade. São os estratos sociais urbanos que permitiram o

surgimento de elites especializadas (sacerdotais) que inauguraram uma nova

forma de bens de salvação e, conseguintemente, do controle desses bens.

30

Classificação dos estágios cognitivos do monismo mágico

Depois de apresentar os traços gerais desta forma de apreensão do mundo que chamamos de cognição mágica, apresentando-a dentro da metodologia

weberiana baseada em tipos ideais23, ou seja, uma construção do pensamento

(Gedankenbild) realizada a partir de generalizações que buscam compreender

realidades particulares24, cabe agora apresentar os estágios existentes dentro da

etapa cognitiva do monismo mágico a partir de sua lógica própria de

desenvolvimento. Isto quer dizer que não se trata de uma análise da dinâmica

histórica, mas sim de uma lógica do desenvolvimento interno25, neste caso,

presente na cognição mágica.

Em relação ao desenvolvimento histórico, mesmo demonstrando que a

magia constituiu o substrato da percepção de mundo de sociedades antigas e

mesmo pré-históricas que evoluíram para outros modelos cognitivos que se

tornaram dominantes, como é o caso da modernidade ocidental, não podemos

associar a explicação da evolução destes modelos de etapas cognitivas

ancorados simplesmente no processo histórico, à maneira de um determinismo

histórico. O tipo ideal da “magia” enquanto um modelo criado é a-histórico,

embora suas “manifestações” apenas ocorram na história como elemento

orientador preponderante das religiosidades mágicas. A “magia”, por ser uma

forma universal de religiosidade, sempre esteve presente em todas as sociedades

com maior ou menor destaque, porém jamais sendo absolutamente superada do

ponto de vista histórico.

23 Cf. Wolfgang Schluchter. Die Überwindung des naturalistischen Monismus durch idealtypische

Begriffesbildung. In:_____ SCHLUCHTER, Wolfgang. Religion und Lebensführung: Studien zu Max Webers Religions- und Herrschaftssoziologie. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1988.

24 A interpretação baseada em tipos ideais se ocupa em isolar e exagerar elementos da vida social, elaborando tipos puros, para visualizar com mais clareza as fontes valorativas e cognitivas que orientam predominantemente certos tipos de ação, sem jamais almejar encontrar esses tipos puros na história. Quanto ao caso particular das religiões, sempre encontraremos nas religiosidades éticas elementos tipicamente oriundos de religiosidade mágica e vice-e-versa. Podemos encontrar em religiosidades mágicas traços de religiosidade ética. Em se tratando do neopentecostalismo brasileiro, religiosidade que classificamos como mágica, há traços marcantes de religiosidade ética. 25 Cf. Wolfgang Schluchter.The rise of western rationalism: Max Weber’s developmental history. Berkley

and Los Angeles: University California Press, 1985.

31

No sistema do desenvolvimento lógico, dentro da grande etapa cognitiva do

monismo mágico existem três estágios cognitivos evolutivos, a saber: o naturalismo pré-animista, o naturalismo animista e o simbolismo.

O naturalismo pré-animista é o estágio onde coisa e significado ainda

não foram cindidos, a coisa tem seu valor e sentido somente nela mesma; não

existe a percepção de um valor ou sentido agregado à coisa, que teria a função

de representar algo. A exemplo da adoração de imagens que encontram seu valor

nelas mesmas e não na representação simbólica de algo, certos fiéis adoram a

imagem como “fetiche” e não como a representação simbólica de uma entidade

transcendente26. Tanto uma pedra quanto uma pessoa podem ser venerados em

virtude de serem habitados pelo “carisma”, sendo que este último representa a

“força” responsável por eventos incomuns, de ordem extra-cotidiana. Depois de

objetos ou pessoas encantadas carismáticamente um outro momento de relativa

abstração aparece. É quando se tem a idéia de que por traz das coisas há algo

indefinido, mas ainda material, invisível e impessoal, porém detentor de vontade,

denominado espírito. Este entrtanto, não pode ser confundido nem com alma ou

demônio ou deuses (WEBER, 2000: 280).

O naturalismo animista, a etapa seguinte dentro da lógica do

desenvolvimento examinada, se caracteriza pela concepção da noção de alma,

deuses e demônios, que implica na concepção de poderes sobrenaturais. Os

objetos e os seres são habitados ou possuídos por uma entidade sobrenatural,

porém não metafísica. Os seres são animados por uma alma. A noção de alma aqui não atingiu nenhuma conotação metafísica; de fato,

sempre conceberam a alma como algo material, como um duplo. O entendimento

e o desenvolvimento das crenças em duplos se formou basicamente de maneira

empírica, fruto das experiências dos sonhos, dos delírios que podem ser

entendidos como transe, e sobretudo, da experiência da morte. A experiência dos

sonhos sugeria uma atividade da vida extra-corpo. Não só os sonhos, os delírios

e a morte proporcionavam a noção de um duplo, mas também a imagem refletida

permitia a idéia de uma entidade extra-corpo, seja ela a sombra “negra” (sombra

26 Exemplificaremos esses casos no decorrer deste capítulo.

32

como a entendemos normalmente) ou a sombra “clara” (entendida como reflexo

em espelhos).

Os deuses e demônios concebidos neste estágio eram de natureza

momentânea, existiam enquanto o fenômeno a eles atribuídos ainda mantinha

algum impacto sobre a comunidade. No entanto, o aspecto de maior destaque do

ponto de vista cognitivo se refere à separação entre objetos concretos e à idéia de

uma entidade sobrenatural que atua sobre eles.

O estágio seguinte é o simbolismo, que representa uma transformação

significativa de complexificação da relação dos homens com a divindade. Os

objetos concretos passam a agregar valores para além de seus atributos naturais;

coisa e conceito são separados neste estágio.

O aspecto específico de todo esse desenvolvimento não é, em primeiro

lugar, a pessoalidade ou a impessoalidade ou suprapessoalidade dos poderes

“supra-sensíveis”, mas o fato de não serem apenas coisas e fenômenos que

existem e acontecem que desempenham um papel importante na vida, como também aqueles que significam algo, - e precisamente por isso (WEBER,

2000: 282. grifo meu).

Os objetos são usados nos cultos exclusivamente pelo símbolo atribuído a

eles, e passam a ser uma maneira de agir “diretamente” sobre forças

sobrenaturais. Se antes a coação dos espíritos dependia de sua manifestação

nos homens e nas coisas, agora já se pode agir “diretamente” sobre eles através

de símbolos.

O simbolismo além de representar um salto cognitivo que “ampliou” a

capacidade do homem de controlar o universo a sua volta, também atendeu a

interesses econômicos específicos. O impasse econômico causado pelo tabu do

luto, que proibia o uso dos utensílios, mulheres e criados do morto, (que em

alguns casos eram enterrados junto ao morto), no afã de não causar nenhuma

maldição lançada pelo morto, foi sanado em parte pelo simbolismo. Agora,

bonecos e outros aparatos simbólicos representavam os bens do morto e eram

enterrados no lugar dos objetos reais. O dinheiro inventado na China, que

33

primeiro pertenceu ao “mundo dos mortos” para depois adentrar o “mundo dos

vivos”, simbolizava a riqueza do morto a ser enterrada junto dele.(WEBER, 2000)

A passagem de um estágio cognitivo a outro, quando analisado

concretamente na história, é dificilmente detectado devido às sutilezas que os

separam.(WEBER, 2000) Distinguir nitidamente o que é simbólico do que é

natural seria quase o mesmo que conseguir traçar os limites entre a cultura e a

natureza. No entanto, a divisão exposta apenas reforça a metodologia de uso de

tipos ideais e de uma análise da lógica do desenvolvimento.

Magia e modernidade

Mesmo afirmando que a magia possui um caráter religioso universal e por

conta disso estará sempre presente nas sociedades – a despeito das camadas

intelectuais e elites sacerdotais que sempre mantiveram contínuo combate a

estas manifestações –, a sociologia de Weber, mesmo reconhecendo sua

perenidade, não atribui lugar de destaque à magia na modernidade. Sendo a

magia entendida como uma religiosidade típica das camadas camponesas, logo

perderia espaço frente à vertiginosa urbanização do mundo e do longo processo

de desmagificação do mundo iniciado no judaísmo antigo27. Em vista disso uma

nova questão se nos apresenta: como analisar a religiosidade mágica que

continua presente na contemporaneidade em uma nova configuração social que

abrange transformações de vários aspectos, tais como, geográficos, históricos,

econômicos etc? Um novo estrato social surgido na sociedade de massa da

modernidade, a saber, os grupos que habitam a periferia das grandes cidades das

cercanias da modernidade, possibilita-nos uma apreciação deste quadro inédito.

Na sociologia da religião de Weber a reconstrução histórica que leva ao

entendimento das diversas formas de religiosidade teve como objetivo central a

compreensão da ação típica do mundo moderno ocidental, como afirmamos no

27 Algumas interpretações apressadas atribuem erroneamente à Weber a marca positivista da afirmação do desaparecimento das religiões na modernidade. No entanto, a sociologia de Weber além de não pretender fazer previsões a respeito do desenvolvimento histórico, nunca tomou a racionalidade como a expressão única do homem moderno permitindo espaço para transformações na dinâmica pessoal. O que Weber diagnosticou como uma marca tendencial das sociedades modernas foi o afastamento da religião da vida pública pra ser algo pertencente somente à vida privada.

34

início deste capítulo. Em vista disso a reconstrução e compreensão da cognição

mágica se fizeram em virtude da análise evolutiva e do seu caráter comparativo

ao agir moderno ocidental. Todavia, ao contrário de Weber, nossos interesses na

reconstrução da cognição mágica têm em vista a compreensão de certos tipos de

ação presentes no mundo moderno ocidental que são de certa forma orientados

pela magia, diferentemente de como pensou Weber. Em nosso ponto de vista

este tipo de ação que em parte é orientada pela magia continua presente na

contemporaneidade, como resultado de todo um processo de religiogênese

alternativo ao analisado por Weber28, em especial na religiosidade de massa das

sociedades modernas periféricas.

Almejamos utilizar a formulação ideal típica de referenciais cognitivos

contidos na magia para compreender processos de modernização seletiva como é

o caso brasileiro, onde a modernidade penetrou de forma diversa nos variados

segmentos da sociedade.29A questão que se nos apresenta — e que não

pretendemos responder neste trabalho, mas apenas apontar para as primeiras

hipóteses — é a de explicar a relação entre a agência humana dentro de

sociedades onde as instituições e os valores centrais são genuinamente

modernos, — tais como o estado democrático, o mercado capitalista

desenvolvido, o sistema jurídico complexo entre outros exemplos —, mas que, no

entanto, parte dessa população opera a partir de referenciais contidos na

cognição mágica do mundo, e investigar como estas instituições modernas foram

geradas num contexto de cognição mágica do mundo. Desse modo, analisaremos

as contradições lógicas tematizadas a partir do neo-evolucionismo de Weber-

Schluchter entre uma sociedade moderna possuidora de um capitalismo de

sucesso, mas que a cognição mágica é um traço fundamental de seu

desenvolvimento.

28 Cf. BELLAH, Robert. Tokugawa Religion: the cultural roots of modern Japan. New York: The Free

Press, 1985. e SANTOS, Eurico G. C. dos. Política e Magia (na cultura brasileira e) no Distrito Federal. In:_______ARAÚJO, Caetano E. P. de . . .[et. al.] Org. Política e Valores. Brasília: Ed. UnB, 2000.

29 Cf. SOUZA, Jessé. Modernização Seletiva: Uma reinterpretação do dilema brasileiro. Brasília: Ed.

Universidade de Brasília, 2000.

35

Inúmeros são os impactos resultantes das relações da cognição mágica

com o funcionamento das instituições modernas, tema que iremos desenvolver de

maneira mais acurada no capítulo V e também no anexo.

36

Capítulo III: Uma análise do conceito de “racionalização” em Max Weber

37

Uma análise do conceito de “racionalização” em Max Weber

Introdução O rompimento com a percepção mágica do mundo inicia e acelera-se a

partir do avanço do processo de racionalização. Desmagificação30

(Entzauberung) e racionalização caminham lado a lado, embora não possam ser

confundidos, pois eles são processos distintos. O processo de racionalização é

determinante na formação das etapas cognitivas que sucedem o monismo mágico

na lógica do desenvolvimento aqui apresentada, daí a importância de

desenvolvermos este conceito antes de adentrarmos nas explicações de outros

sistemas no interior desta lógica do desenvolvimento.

O conceito de racionalização é sem dúvida alguma, um dos pontos mais

fundamentais do pensamento weberiano, pois através dele perpassam os

grandes temas de sua sociologia, desde o “sentido da ação social” até a

“singularidade do desenvolvimento ocidental”, como também é basilar para as

explicações na sua sociologia da religião. Mas nem por isso a definição deste

conceito aparece descrita de forma detalhada e definitiva em algum momento

específico de seu trabalho; ao contrário, o conceito de racionalização se constrói

ao longo de sua obra, deixando-se entrever em meio a outros temas e também se

confundindo com outros conceitos. Isto acontece com os conceitos de

racionalidade e racionalismo. Devido a não sistematização clara do conceito de

racionalização, sua interpretação seguiu caminhos diferentes dentre os diversos

pensadores que se lançaram na difícil tarefa de defini-lo.

Neste capítulo não é nossa pretensão estabelecer uma última palavra a

respeito do tema, mas apenas apresentar algumas interpretações importantes,

analisá-las brevemente e em seguida explicitar o caminho que percorremos e

valorizamos, em detrimento de outros, dentro da obra de Max Weber para a

30 Adotamos o neologismo desmagificação ao contrário do costumeiro desencantamento como tradução do termo alemão “Entzauberung”, por achar que este expressa melhor o sentido buscado por Weber ao cunhar este conceito. Desmagificação deixa claro que Weber se refere a um processo iniciado no mundo antigo, mais precisamente no judaísmo antigo, e não um conceito que se referiria apenas a modernidade como costuma ser utilizado erroneamente por muitos autores que adotam o termo desencantamento.

38

interpretação deste conceito e, a partir disto, deixar claro o que queremos dizer

quando utilizamos o termo racionalização.

Ressaltamos também que, apesar de mencionar conceitos que estão

imbricados ao conceito de racionalização, tais como os de racionalismo e

racionalidade não será nossa tarefa, ao menos neste momento, deter-nos mais

atentamente nestes. Utilizaremos os conceitos de racionalismo e racionalidade

apenas como instrumentos que nos auxiliem entender o conceito de

racionalização, sem que estes ocupem a centralidade de nossa empreitada.

Para esta análise elegemos importantes intérpretes do pensamento

weberiano, tanto em escala nacional como internacional. Primeiramente

analisaremos como J. Habermas define o conceito de racionalização em Weber,

no livro “Ciência e técnica como Ideologia”; em seguida, nos deteremos a

examinar como H. Marcuse realiza esta tarefa, a partir da exposição de Habermas

no mesmo texto citado acima. Posteriormente, concentrar-nos-emos num dos

mais importantes intérpretes de Weber no Brasil, Gabriel Cohn, em especial o

prefácio da tradução de “Os fundamentos racionais e sociológicos da música” em

que este pensador se propõe definir o conceito de racionalização. Ainda

utilizaremos a socióloga americana Ann Swidler, em um artigo (The Concept of

Rationality in the Work of Max Weber) em que esta pretende definir os conceitos

de racionalidade, racionalismo e racionalização na obra de Weber. E por último,

analisaremos este conceito através do pensamento de um importante

weberianista contemporâneo, Wolfgang Schluchter, e de seu interlocutor no

Brasil, Jessé Souza.

Racionalização em Habermas31 e Marcuse

Na conferência proferida por Habermas em virtude dos 70 anos de Hebert

Marcuse, intitulada “Técnica e Ciência como Ideologia”, Habermas expõe tanto a

31 Neste capítulo utilizamos apenas a exposição de Habermas sobre o conceito de racionalização no texto “Técnica e Ciência como Ideologia” publicado no ano de 1968, sem levar em conta a revisão do conceito de racionalização feita por Habermas no seu principal livro: “Teoria da ação comunicativa” publicado na década de 1980 em que este autor se apropria de maneira diferente das idéias weberianas, supostamente influenciado por Wolfgang Schluchter que foi seu interlocutor muito próximo neste período.

39

sua interpretação a respeito do conceito de racionalização em Weber, como

também a interpretação que Marcuse faz do mesmo conceito.

Habermas começa destacando o papel exercido pelo processo de

racionalização. Segundo ele, este conceito representa a penetração cada vez

maior da ciência e da técnica nos diversos setores da vida, tais como a ampliação

de determinadas instituições, como a industrialização do trabalho social, do direito

privado, da economia capitalista, entre outras. Em vista disso fica claro que

Habermas define a racionalização no tempo e no espaço, atribuindo a este

processo como um papel singular no mundo moderno ocidental.

Max Weber introduziu o conceito de “racionalidade” a fim de determinar a

forma de atividade econômica capitalista, das relações do direito privado

burguesas e da dominação burocrática. Racionalização significa, em primeiro

lugar, a ampliação das esferas sociais que ficam submetidas aos critérios da

decisão racional. . .A “racionalização” progressiva da sociedade está ligada à

institucionalização do progresso científico e técnico. (HABERMAS, 1983: 313)

Na sua definição do conceito de racionalização, Habermas também aponta

para uma outra característica que segundo sua interpretação seria fundamental

para o entendimento deste conceito, que corresponde à esfera da agência

humana. Para este pensador, racionalização se define pela orientação da agência

humana mediante um sistema racional-com-respeito-a-fins. Há nesta sentença

uma valorização da dimensão utilitária da vida, cuja compreensão de

racionalidade é somente dirigida para uma racionalidade instrumental, ou seja, um

meio eficiente e pragmático para o alcance de metas mais imediatas. Embora não

nos dedicaremos às críticas neste momento, vale ressaltar que esta compreensão

desconsidera a utilização da ação metódica e orientada por um sistema de idéias

voltado para fins não instrumentais, tais como a busca pela salvação, onde as

metas não seriam, por exemplo, simplesmente a obtenção eficiente do lucro ou do

controle da ação por meios jurídicos, mas sim, metas direcionadas à valores:

. . . a industrialização do trabalho social, com a conseqüência de que os

padrões da ação instrumental penetram também em outros domínios da vida (

40

urbanização dos modos de viver, tecnização dos transportes e da comunicação).

Trata-se, em ambos os casos, da propagação do tipo de agir racional-com-

respeito-a-fins. . . (HABERMAS, 1983: 313)

Muito próximo de Habermas, já que este último herda parte de sua

interpretação weberiana da Escola de Frankfurt, Marcuse também concebe a

racionalização como um processo típico da modernidade, relacionado à técnica e

à ciência, e também como o agente propulsor da radicalização da ação

instrumental. Porém, em sua interpretação, Marcuse confere um outro vigor a esta

instrumentalidade, ressaltando seu impacto na dimensão política da vida.

A “racionalização” de Max Weber não é apenas um processo a longo prazo

de modificação das estruturas sociais, mas é ao mesmo tempo “racionalização”

no sentido de Freud: o verdadeiro motivo, a manutenção de uma dominação

objetivamente caduca, é encoberto pela invocação dos imperativos técnicos. Essa

invocação só é possível porque a racionalidade da ciência e da técnica já é, de

modo imanente, uma racionalidade de manipulação, uma racionalidade de

dominação. (HABERMAS citando Marcuse, 316)

Propondo-se a chegar a pontos que, segundo ele, Weber não percebeu

neste processo, Marcuse envereda por outros caminhos para dar sua

interpretação do conceito de racionalização. Segundo Marcuse há um lado oculto

e perverso inerente a este processo que se manifesta na conseqüente dominação

do próprio homem, sendo assim um efeito inevitável. Para esse frankfurtiano da

primeira geração, por trás da ideologia do progresso da técnica e da ciência se

esconde um meio eficaz de controle e engessamento de libertação política, que

de certo modo deve sua eficácia justamente ao caráter oculto em que se

encontra. Dominação não seria uma contingência, um desvio acidental do projeto

da “razão”, mas sim um resultado inevitável de seu engendramento. Neste

sentido, racionalidade é necessariamente técnica, método de controle, que

acelera vertiginosamente a produção, aumenta o controle operado pelo Estado,

estabiliza o sistema vigente e, por outro lado, massacra os indivíduos sufocando

seus meios de libertação política.

41

Marcuse está convencido de que, no processo que Max Weber chamou de

“racionalização”, dissemina-se não a racionalidade como tal, mas, em seu nome,

uma determinada forma inconfessada de dominação política. (HABERMAS, 1983:

313)

Enfim, poderíamos afirmar que para Marcuse racionalização se refere à

otimização da dominação mediante a eficácia da racionalidade; racionalização é

antes de mais nada o marco do controle racional e metódico exercido sobre os

indivíduos. Na era da racionalização (leia-se modernidade na interpretação

frankfurtiana) o sistema conta com a calculabilidade da racionalidade para

perpetrar sua dominação sobre os indivíduos.

O conceito de “racionalização” segundo Gabriel Cohn No prefácio feito para a tradução brasileira de “Os fundamentos racionais

da sociologia da música”, livro de Max Weber, Gabriel Cohn ressalta a

importância explicativa de assuntos supostamente periféricos na obra de Weber

para a compreensão de conceitos que formam o pilar do construto weberiano. No

caso em questão, a sociologia da música, obra a qual prefaciava. Cohn ressalta a

validade desta análise para a compreensão do conceito de racionalização,

demonstrando como o que poderia ser percebido como um hobby ou mesmo um

diletantismo elucida pontos fundamentais de toda obra.

Na aproximação que Cohn faz entre racionalização e a sociologia da

música de Weber, destacando o desenvolvimento singular da música ocidental e

o processo na qual esta está inserida, chega a afirmar que a racionalização seria

vista por Weber como o traço específico da modernidade. Esta afirmação o

aproxima da interpretação frankfurtiana que também atrela a racionalização à

modernidade; no entanto Cohn visa esclarecer um pouco mais este conceito.

Enquanto os primeiros autores circunscrevem este conceito à ação puramente

instrumental centrada no sistema racional-com-respeito-a-fins, transpondo a

lógica do mercado capitalista para todas esferas da ação, Cohn alarga a

42

dimensão deste conceito alocando-o também na esfera que Weber chamara de

estética.

Em seqüência, o intérprete brasileiro faz questão de ressaltar que

racionalização e, por conseguinte, ações racionalmente orientadas, não estão

estritamente atreladas às ações que melhor alcançam o fim desejado, já que esta

afirmação torna-se pouco explicativa devido a sua generalidade32. O que será

eleito por ele como ponto nodal deste conceito é a noção de diferenciação de

linhas de ação regidas pela racionalidade que, por seu lado são as principais

conseqüências do processo de racionalização.

Cohn destaca que para o entendimento deste conceito é fundamental

tomá-lo como algo que está diretamente relacionado à ação, e ao mesmo tempo

percebendo que não se trata da ação em si, mas sim o que permite a execução

da ação racionalizada. Para comprovar esta afirmação, o autor apresenta

exemplos onde se demonstra que a ação está submetida a regras prévias, e

estas regras específicas são resultado da sistematização das diferentes linhas da

ação. Em outros momentos do texto, Gabriel Cohn utiliza o termo processo para

designar a racionalização, atestando desse modo que não se trata de um fato

concreto e isolado.

Racionalização é o processo que confere significado à diferenciação de

linhas de ação. É ela que abre o caminho para o exercício da ação racional e

enseja a sua crescente e, logo, irreverssível expansão (COHN, 1995:17).

Este processo de autonomização das esferas, ou seja, de clara distinção

entre esferas da ação como: o direito, a ciência, a religião, a economia etc.

decorre justamente da especialização da ação em áreas nitidamente separadas,

que passariam a responder por uma lógica interna e diferenciada das outras.

Gabriel Cohn sustenta que é a partir do desenvolvimento da racionalização que

surgem os conceitos weberianos de afinidades eletivas e tensões; as linhas de

ações desenvolvidas no interior de determinadas esferas estão em oposição

direta (tensões) ou desfrutam de tendências combinatórias (afinidades). Estes

32 A respeito da generalidade desta afirmação voltaremos a falar mais detalhadamente.

43

conceitos surgem em decorrência do fato da impossibilidade da existência de

tensões ou afinidades anteriores a este desenvolvimento, já que não havia

distinções significativas entres as esferas da ação. A exemplo disto, num mundo

dominado pela ação mágica, as ações religiosas e econômicas não são

reconhecidas como diferentes ou mesmo praticadas separadamente33:

. . .a ação orientada pela magia se mistura à orientada pelo saber técnico,

a arte se mescla à religião e esta à ciência, e assim por diante, numa situação em

que as mais diversas orientações se apresentam simultaneamente para a ação,

sem que haja como nem por que se distinguir claramente entre elas. (COHN,13

1995)

Gabriel Cohn ainda explica que a racionalização ocorre em dois níveis

diferentes, um de caráter interno e outro de caráter externo. Sendo o externo

(histórico-estrutural) a formação das diversas linhas da ação e, o segundo, a

diferenciação interna dentro das linhas de ações. A título de exemplo poderíamos

citar a diferenciação das linhas de ação religiosa e econômica, e ainda outras

diferenciações no interior destas linhas, como por exemplo as religiões de caráter

dualista intramundano, como é o caso do protestantismo34; e as religiões

dualistas transcendentes, como é o caso do catolicismo, e, dentro da esfera

econômica, os diversos sistemas de produção.

Nesta interpretação destacamos a definição da racionalização nas palavras

do próprio Cohn, ou seja, o processo que enseja a prevalência da condução

racional da ação, com destaque para a valorização do conteúdo das

diferenciações das linhas de ação como o que caracteriza a modernidade.

Ann Swidler, a definição dos conceitos weberianos

Ann Swidler se debruça sobre os vários sentidos tomados por Weber

quando este se refere à conceitos relacionados à racionalidade. Em seu artigo ela

procura simplificar o emaranhado destes conceitos para nos oferecer uma relativa

33 A definição de ação mágica se encontra no capítulo anterior. 34 Trataremos destas diferenciações de maneira mais acurada em outro capítulo.

44

segurança e homogeneidade quando nos lançamos na árdua tarefa de penetrar o

universo teórico weberiano. O primeiro desafio se apresenta quando tentamos

nos esquivar da generalidade que as palavras que circundam o conceito de razão

pode nos conduzir, ou seja, o sentido destes conceitos se restringiria à palavra

eficácia. A interpretação habermasiana por vezes beira a esta concepção, pois

segundo ele o processo de racionalização teria como característica principal a

eficácia como valor absoluto, tendo como seus arautos a ciência e a técnica.

Gabriel Cohn em seu trabalho faz questão de ressaltar que racionalização

e, por conseguinte, as ações racionalmente orientadas, não estão estritamente

atreladas a ações que melhor alcançam o fim desejado, já que esta concepção

beira a ingenuidade, esbarrando tanto na generalidade quanto na relatividade que

esta afirmação implica. O próprio Weber apresenta exemplos de como é relativa,

tanto histórica quanto culturalmente, a noção de ações mais eficazes para o

alcance de determinados fins. Segundo Weber até mesmo o pensamento mágico

tem um comportamento relativamente racional.

A ação religiosa ou magicamente motivada é, ademais, precisamente em

sua forma primordial, uma ação racional, pelo menos relativamente: ainda que

não seja necessariamente uma ação orientada por meios e fins, orienta-se, pelo

menos, pelas regras da experiência. . .A ação ou o pensamento religioso ou

“mágico” não pode ser apartado, portanto, do círculo das ações cotidianas ligadas

a um fim, uma vez que também seus próprios fins são, em sua grande maioria de

natureza econômica (WEBER, 2000; 279, grifo meu).

A simples afirmação baseada na dinâmica de que ações que almejam um

determinado fim e procuram os melhores meios para o alcance da meta

pretendida não é suficiente para a compreensão do conceito de racionalização (já

que a maioria das ações humanas em qualquer época histórica tendem a

proceder assim). Esta afirmação serviria apenas para entendermos aquilo Ann

Swidler chama de racionalismo35, ou seja, atitude de orientação pragmática para

35 Não é nossa proposta discutir com profundidade os conceitos de racionalidade e racionalismo, mas vale ressaltar que aquilo que Ann Swidler chama de racionalismo talvez seria melhor definido por um termo como

45

a obtenção de metas 36 (SWIDLER). No entanto, é importante diferenciar estas

ações daquelas que estão submetidas a um sistema de ação racional-com-

respeito-a-fins, pois estas ações, que para além de simples regras da experiência,

estão submetidas a um sistema de idéias que as controla. Vale ressaltar que o

controle destas ações, ou mesmo aquilo que as motiva, não é uma tendência

natural, mas sim o resultado de um sistema elaborado de idéias que determina

sua ação. É a partir da explicação e da percepção deste sistema que Ann Swidler

desenvolve sua interpretação.

A partir da análise de Ann Swidler penetramos um outro momento de nosso

trabalho, cuja interpretação do conceito de racionalização toma caminhos que

guardam marcantes diferenças em relação aos pensadores já expostos. Podemos

afirmar que há uma clara distinção entre aqueles que tomam os Ensaios reunidos

de sociologia da religião (Gesammelte Aufsätze zur Religionssoziologie) de

Weber para analisar este conceito, como é o caso de Ann Swidler e Wolfgang

Schluchter, levando em conta principalmente o texto conhecido como A psicologia

social das religiões37, enquanto os primeiros valorizam os aspectos da

modernidade, tendo por base, ao que nos parece, a introdução da Ética

protestante e o espírito do capitalismo. Esta variedade de escolhas implicou nas

distintas concepções do conceito de racionalização, principalmente no que se

refere ao seu lugar na história. Ainda poderíamos dizer que os diferentes

caminhos interpretativos se dividem entre aqueles que partem da análise do

surgimento do processo de racionalização (a psicologia social das religiões) e

aqueles outros que analisam o ponto de seu suposto cume, ou seja, o mundo

moderno ocidental (introdução da Ética protestante e o espírito do capitalismo).

Também poderíamos elencar um outro texto dos Ensaios reunidos de sociologia

da religião como fonte de suma importância para o entendimento do conceito de

racionalização que parece ter servido de importante fonte para Gabriel Cohn, a

saber, Rejeições religiosas do mundo e suas direções (Zwischenbetrachtung),

texto colocado em apêndice ao volume I dos ensaios, que trata da direção da racionalidade natural ou prática, baseada na experiência, já que racionalismo representa aquilo que chamaremos de racionalismo ocidental. 36 Rationalism is an attitude of pragmatic orientation to the attainment of goals. SWIDLER, Ann. The concept of Rationality in the Work of Max Weber. In_______: Sociological Inquiry journal. 37 Também conhecido como a introdução de A ética econômica das religiões mundiais.

46

racionalização em esferas específicas (texto este também citado por Leopoldo

Waizbort38) e considerado como o mais importante para a compreensão deste

conceito.

Quanto à análise dos intérpretes que partem da introdução da Ética

protestante e o espírito do capitalismo, ou como também poderíamos identificar

como a introdução do volume I dos Ensaios reunidos de sociologia da Religião

(Gesammelte Aufsätze zur Religionssoziologie), tomando a modernidade como

ponto de partida para a interpretação deste conceito, o que merece destaque para

nossa análise é a determinação de Weber em demonstrar a singularidade do

ocidente, ressaltando como determinados aspectos culturais desenvolveram-se

somente nele. Esses aspectos, como o próprio Weber afirma, são em grande

parte fruto da técnica pois, com efeito, sua racionalidade é hoje essencialmente

dependente da calculabilidade dos fatores técnicos mais importantes (WEBER,

2002). Em vários trechos é destacado não a singularidade da racionalização

como um todo, mas sim a singularidade da racionalização que se desenvolveu no ocidente, eis aí portanto, a nosso ver, o ponto nevrálgico desta escolha

interpretativa.

Para continuar este debate o trecho citado abaixo, presente na introdução

d’A ética, aparece como um ponto nodal para esta discussão:

Por que nestes lugares não ocorreu nem desenvolvimento científico, nem

arte, nem do Estado nem da economia por esses caminhos de racionalização que

é peculiar ao ocidente? Porque é evidente que, em todos os casos mencionados,

se trata de um racionalismo de tipo específico da cultura ocidental. (WEBER, Vol.

I, 20: 2001)39

38 WEBER, Max. Os fundamentos racionais e sociológicos da música. Tradução, introdução e notas de

Leopoldo Waizbort e prefácio de Gabriel Cohn. São Paulo, Edusp, 1995. 39 Por qué en estos lugares no encaminaron ni la evolución científica ni el desarrollo de la ciencia, ni el del arte, ni el del estado ni el del la economía por esas sendas de la ‘racionalización’ que son características de Occidente? Pues es evidente que, en todos los casos mencionados, se trata de un ‘racionalismo’ de tipo especial de la cultura occidental. (WEBER, Vol.I, 20: 2001)

47

Quando Weber narra as especificidades do mundo moderno ocidental, da

música à arquitetura, da política à economia e principalmente a organização do

trabalho, somos levados a pensar que o conceito que explica isto mais

amplamente, e também o nomeia é o de racionalização. Logo, racionalização

torna-se quase sinônimo de modernidade ocidental e não apenas uma das

variantes de um longo processo que tem início na religião e marcam aquelas

grandes religiões que Weber chamara de as religiões mundiais (WEBER, Vol I,

2001).

Nesta questão o trabalho da socióloga americana Ann Swidler esclarece

com sucesso dois pontos distintos. Primeiro quando ela distancia o processo de

racionalização da idéia de um único caminho percorrido e que levou também

unicamente ao alcance de uma suposta “racionalidade”, que poderia ser

entendida como a racionalidade da eficácia técnica do mundo moderno ocidental.

Segundo ela, os primeiros e principais impactos do processo de racionalização se

dão na configuração de valores religiosos e visões de mundo, ou seja, na criação

de “imagens mundiais” (Weltanschauungen) como falara Weber. Enfatizamos pois

o que propusemos no início desta análise, a saber, a diferenciação histórica do

conceito de racionalização, uma vez que para esta autora não é a modernidade o

único momento que merece destaque na análise deste conceito. Várias são as

vezes em que Weber destaca a presença de uma ação racional livre de atributos

mágicos em períodos pré-modernos; temos um exemplo quando fala da ética do

judaísmo antigo:

Junto a ambas, se dava ‘uma ética religiosa do agir intramundano’, que era

altamente racional, a saber, livre da magia e de qualquer forma da busca

irracional de salvação, uma ética intrinsecamente muito isolada de todas as vias

de salvação das religiões asiáticas de redenção (WEBER, Vol. III, 20 : 2001)40.

40 Junto a ambas, se daba ‘una ética religiosa del obrar intramundano’, que era altamente racional, es dicer, libre de magia y de cualquer forma de búsqueda irracional de la salvácion, una ética intrínsicamente muy alejada de todas las vias de salvácion de las religiones asiáticas de redención (WEBER, Vol. III, 20 : 2001).

48

O outro aspecto também de grande importância se refere à especificidade

do mundo moderno ocidental. Na introdução da Ética protestante e o espírito do

capitalismo, notamos que Weber chama de racionalismo a vertente do processo

de racionalização que diferencia o ocidente. A percepção de um conceito claro

que especifique este desenvolvimento separando-o em parte do conceito de

racionalização é fundamental. Esta sutileza conceitual entre racionalização e

racionalismo nos permite ter uma visão mais ampla do conceito de racionalização.

Swidler também destaca esta diferença, no entanto, isto que nós atribuímos ao

conceito de racionalismo, ela atribui ao termo racionalidade. Segundo ela,

racionalidade – que nós chamaríamos de racionalismo baseados na citação

mencionada neste parágrafo – se refere à ação típica do capitalismo moderno, ou

seja, a ação racional metódica e eficiente que está submetida a um controle feito

por um sistema de idéias41.

O conceito de racionalização é definido genericamente por Ann Swidler

como uma sistematização de idéias. Assim como Gabriel Cohn, ela afirma ser o

conceito de racionalização um processo, que por seu lado, não pode ser

confundido com dados empíricos como instituições ou culturas, e muito menos

com tipos de ação social. Segundo Swidler:

Racionalização é o processo pelo qual idéias desenvolvem sua própria

lógica interna. Esta dinâmica natural ajuda a dar às idéias autonomia e

estabilidade obtendo influência independente de outros fatores da vida . . . para

Weber racionalização foi um processo geral que ocorreu em diferentes esferas da

vida em diferentes períodos históricos sem produzir um único fator da

“racionalidade”..42 ( SWIDLER, )

41 Todavia, como explicitamos no início deste capítulo, não nos deteremos profundamente nos conceitos de racionalismo e racionalidade, devido a isto não nos aprofundaremos na discussão sobre qual melhor termo para destacar a singularidade do ocidente, apenas destacamos a importância desta percepção como um artifício interpretativo para o conceito de racionalização. 42 Rationalization is the process by which ideas developed their own internal logic. This natural dynamic helps to give ideas the autonomy and stability to have independent influence on other aspects of social life. . . for Weber rationalization was a general process which occurred in many different spheres of life in different historical periods without producing the unique features of “rationality”. (SWIDLER, )

49

A definição de Ann Swidler nos permite uma compreensão deste conceito

que figura entre os mais importantes, ou talvez o mais importante dentro da lógica

interna de evolução cognitiva, cujas idéias passam a ter um valor em si mesmas,

e assim tornam-se parcialmente independentes das necessidades da vida

econômica. A doação de sentido ao mundo extravasa o círculo das necessidades,

nisto configurando-se uma revolução cognitiva da coletividade, pois a partir da

instauração do processo de racionalização o mundo “toma” outras formas e

“novas dimensões”. Para entender esta dinâmica de maneira mais acurada faz-se

necessário lançar mão da interpretação neo-evolucionista da sociologia da

religião weberiana desenvolvida por Wolfgang Schluchter, em que a exposição de

um desenvolvimento dentro de etapas cognitivas, delineando assim uma lógica do

desenvolvimento (Entwicklungslogik), surge como importante instrumento de

análise.

O conceito de racionalização à luz da lógica do desenvolvimento de Schluchter

A reconstrução da sociologia weberiana feita por W. Schluchter se destaca

como uma alternativa às interpretações clássicas de Reinhard Bendix, Guenther

Roth e Johannes Wickelmann marcadas por seu anti-evolucionismo, como

também, ao evolucionismo de Friedrich Tenbruck. Schluchter sistematiza o

desenvolvimento da agência humana a partir de etapas cognitivas, sem com isso

apresentar uma dinâmica determinada para os acontecimentos vindouros

(evolucionismo), mas tão somente uma lógica do desenvolvimento ocorrido até o

mundo moderno ocidental (neo-evolucionismo), enriquecendo assim a explicação

da grande questão de Weber que se refere à singularidade do mundo moderno

ocidental (SCHLUCHTER, 1985).

Para tratar do conceito de racionalização à luz desta tese, lançaremos mão

do livro de Jessé Souza, fruto de sua tese de doutorado43: Patologias da

Modernidade: um diálogo entre Habermas e Weber, mais precisamente da

primeira parte do capítulo II onde este trata do desenvolvimento ocidental

43 Jessé Souza foi orientado no seu doutoramento por Wolfgang Schluchter.

50

segundo Max Weber, apresentando as principais etapas cognitivas do

desenvolvimento do ocidente e, por conseguinte a lógica deste desenvolvimento.

A especificação e o detalhamento destas etapas cognitivas não serão

desenvolvidos aqui, visto que o que nos interessa presentemente é a análise de

qual momento nesta lógica em que o processo de racionalização inicia seu

desenvolvimento de maneira mais acelerada, ou seja, estudar qual salto cognitivo

permitiu uma maior eficácia social a este processo.

O surgimento do simbolismo44 -- em que se distingue coisa de conceito,

possuindo o conceito uma autonomia em relação à coisa, sendo, ao mesmo

tempo, dotado de valor próprio --, é um passo muito importante para o processo

de racionalização. No entanto, o salto mais fundamental (decorrente do

simbolismo) refere-se à reelaboração permitida pela interpretação do papel do

sofrimento na vida do Homem, e que ocorre de maneira mais destacada nas

etapas cognitivas seguintes. É a partir daquilo que Weber chamará de “teodicéia

do sofrimento” que poderíamos denotar o início da “era de ouro” do processo de

racionalização.

Um passo seguinte consuma-se com a construção de mitos de salvação

continuado, os quais permitem, pelo menos tendencialmente, uma interpretação

racional do sofrimento. . . De uma maneira geral, foi formada a partir dessas

esperanças de redenção uma “teodicéia do sofrimento”. . . (SOUZA, 60: 1997).

O sofrimento, anteriormente interpretado a partir de sua concretude, de

suas impressões mais imediatas como a dor e seu desconforto, era tido — e não

poderia ser diferente num mundo pré-simbólico – como um sinal de desgraça; em

vista disto a participação de doentes no culto era proibida no intento de não

causar uma ofensa aos deuses. Agora, com o sofrimento ganhando positividade,

os valores são invertidos. O sofrimento passa a ser o sinal de uma missão a ser

recompensada num “outro mundo”. Esta característica principal das religiões de

salvação está sustentada pelo pano de fundo cognitivo de um mundo dual e

44 Sobre estes pontos ver discussão feita no capítulo sobre a cognição mágica.

51

transcendente, em que as ações estão dirigidas por um sistema de idéias voltado

para o mundo do “mais além”.

O mundo “real” passa a ser desvalorizado em relação ao mundo do “mais

além”, e essa desvalorização deste mundo abre as portas para as rejeições

religiosas do mundo (WEBER, 2001); a esfera religiosa ganha um universo

simbólico próprio que entra em tensão com outras esferas que até então

pertenciam ao mesmo universo. Neste momento começa a se configurar o

processo de autonomização das esferas da ação, um dos pilares básicos do

processo de racionalização, que já tratamos mais detalhadamente quando

apresentamos a interpretação de Gabriel Cohn.

Na exposição que fizemos da interpretação de Wolfgang Schluchter

atentamos não para o detalhamento do conceito de racionalização em si, mas

para o ponto principal da gênese deste processo, em que pode ficar claro a

dimensão do mesmo e sua origem predominante na esfera religiosa, como um

fundamento para doar sentido ao mundo e aos seus desequilíbrios na

“distribuição” do sofrimento. A visão de mundo dualista transcendente, marcada

por uma metafísica racional, interpreta o mundo como um cosmos pleno de

sentido e eticamente regulado por punições e recompensas no “mais além”,

exigindo assim sistemas racionais complexos que dirijam todas as ações neste

mundo, independentemente da esfera que esta ação se aplique.

Mediante este quadro, os sistemas avaliativos da ação se direcionam para

sistemas cada vez mais abstratos (SCHLUCHTER, 1985), mediados por

conjuntos organizados de idéias (processo de racionalização), se distanciando de

avaliações baseadas nas relações imediatas com o mundo e com as

necessidades impostas pela natureza.

Conclusão

O conceito de racionalização criticamente apresentado aqui ilumina toda a

trajetória do pensamento de Max Weber e, principalmente o ponto de nosso maior

interesse, a sua sociologia da religião. Sem intentar oferecer uma explicação geral

do desenvolvimento das sociedades (ou apenas do Ocidente), o conceito de

racionalização explica em grande parte a dinâmica das idéias na formação do

52

desenvolvimento societário e mais especificamente — como foi a intenção de

Weber — do mundo moderno ocidental. Ao lado deste conceito figura o conceito

de desencantamento do mundo (Entzauberung der Welt), que também poderia

ser entendido como uma conseqüência do processo de racionalização, mas

também muito eficaz como instrumento interpretativo do desenvolvimento

ocidental.

Em relação aos nossos interesses principais nesta dissertação, ou seja, o

entendimento da dinâmica das idéias no interior da sociologia da religião de Max

Weber como base para interpretar a agência humana em sociedades periféricas

do sistema capitalista, o conceito de racionalização nos oferece a base para o

início da discussão, apontando os fundamentos da lógica desenvolvimental das

idéias e sua relação com o direcionamento da ação. Elucida, ao menos

preliminarmente, como transformações ou revoluções cognitivas, no caso em

questão a interpretação do sofrimento, influenciam determinantemente na

configuração do mundo e, por conseguinte, na relação com esse mundo,

sobretudo naquilo que almejamos entender: qual sentido que conferimos ao

mundo e às nossas demandas.

Essa reinterpretação do sofrimento representou a abertura de novas

possibilidades de organização cognitiva do mundo, baseada em grandes

teodicéias do sofrimento cuja recompensa por este pesar estaria sempre no “mais

além”. Neste sentido, as ações voltaram-se cada vez para este “outro mundo”,

que aos poucos foi ganhando plena independência em relação ao mundo

concreto. Com a decadência do monismo mágico o mundo cindia-se em dois,

sendo o mundo transcendente a fonte valorativa em detrimento do mundo

concreto; a cognição do mundo iria delinear-se nos moldes de um dualismo

transcendente, tema central do próximo capítulo.

53

Capítulo IV:

A era dos dualismos: apontamentos sobre as concepções dualista transcendente e imanente

54

A era dos dualismos: apontamentos sobre as concepções dualista transcendente e imanente

“De que serve a mim a multidão das vossas vítimas? Diz o Senhor. Já estou farto de holocaustos de cordeiros e da gordura de novilhos cevados. Eu não quero sangue de touros e de bodes... De nada serve trazer oferendas; tenho horror a fumaça dos sacrifícios... Cessai de fazer o mal, aprendei a fazer o bem. Respeitai o direito, protegei o oprimido...” (ISAIAS, Cap. I: 11-20)

Introdução

As possibilidades cognitivas iniciadas a partir do advento do Simbolismo 45

transformaram radicalmente a relação do homem tanto com o mundo quanto

consigo próprio. Esse recurso cognitivo dotou o homem de uma relativa

dominação do mundo a sua volta, dominação esta que também se estendeu

sobre um elemento central da vida: o sofrimento. Tanto animais quanto homens

pré-simbólicos estão fadados à experiência concreta do sofrimento, ou seja, a

vivência de extremo desconforto por ele causado sem que artifícios cognitivos lhe

permitam transcender aquela experiência. Neste caso, o sofrimento só pode ser

experenciado de forma passiva. A capacidade de simbolização conferiu ao

homem a possibilidade de atribuir um outro sentido ao sofrimento que estivesse

para além do simples sentido negativo causado pelo desconforto da dor; este é o

ponto principal que permitiu ao homem uma relativa dominação em relação ao

mundo e sobre o sofrimento nele vivenciado46(SOUZA, 1997).

45 O que chamamos aqui de “simbolismo” refere-se tão somente à capacidade humana de simbolizar. 46 O surgimento do simbolismo, embora fundamental, é apenas uma passagem para uma concepção diferenciada a respeito do sofrimento. Os caminhos que o simbolismo tomou e os graus de abstração que ele

55

Todavia, um longo processo ocorreu entre a concepção pré-simbólica ou

naturalista do sofrimento e o seu direcionamento para uma concepção simbólico-

valorativa. O sofrimento que era concebido negativamente como um sinal de

desgraça passa aos poucos a representar um caminho que conduz à salvação.

As primeiras formas de atribuição de positividade ao sofrimento ocorreram ainda

dentro de determinadas concepções mágicas, em que certas abstinências

relativas ao sono, ao sexo e à alimentação serviriam como meios para aquisição

de poderes mágicos, o que Weber denomina de ascetismo mágico (WEBER:

1982). Porém, se naquele momento, a valorização do sofrimento ainda estava

circunscrita ao universo mágico e a seus tabus, o que nos interessa neste capítulo

é perceber de que forma a valorização do sofrimento permitiu a formulação de

uma ética religiosa baseada em princípios abstratos que eram resultado da

dinâmica interna a um conjunto organizado de idéias, a despeito de tabus

mágicos que estariam limitados a produzir somente relações imediatas com o

mundo baseadas nas necessidades impostas pela natureza.

Quanto a isso, um aspecto apresenta-se como decisivo na dinâmica que

conduz para a formação de um outro sentido para o sofrimento e,

conseguintemente para uma outra cognição do mundo: este aspecto é o

aparecimento de um espaço voltado para a cura individual no culto. Se antes as

preocupações se voltavam para causas de natureza coletiva, como a

prosperidade da colheita ou a vitória nas guerras, agora, a cura de enfermidades,

o afastamento do perigo e outras formas de sofrimento individuais ganhavam

espaço na prática religiosa. Neste sentido, essa crescente atenção para

demandas individuais contribuirá de forma decisiva para a constituição de

fenômenos fundamentais que permitirão o aparecimento das grandes “teodicéias

do sofrimento”.

Os interesses materiais e ideais dos mágicos e sacerdotes podiam com

isso, na prática e de forma cada vez maior, colocar-se a serviço dos motivos

especificamente ‘plebeus’. (WEBER, 1983: 315)

alcançou variaram radicalmente de sociedade para sociedade. Neste capítulo privilegiamos o caminho trilhado pelo ocidente.

56

Uma importante mudança observada é aquela relativa ao fortalecimento de

uma determinada camada social, a saber, os magos e feiticeiros. Estes aos

poucos vão ganhando o status de “conselheiros espirituais”, de especialistas nos

problemas de ordem individual. Isto ocorreu justamente quando houve o

direcionamento do discurso religioso para atender as demandas de uma massa

de sofredores; o que não acontecia anteriormente, visto que a ação religiosa se

dirigia tão somente para causas “nobres” (coletivas). Adotava-se assim, no plano

individual, o discurso da teodicécia da felicidade em que se via legitimada a vida

das classes dominantes e dos saudáveis, sendo que estas últimas eram

percebidas como as abençoadas pela divindade, enquanto os doentes e

dominados eram percebidos como abandonados e amaldiçoados pelos deuses ou

mesmo dominados por demônios.

Em vista disso, o discurso religioso passa a receber novos contornos e, ao

mesmo tempo forma-se uma outra dinâmica de controle social em que a camada

de especialistas religiosos que foi se formando aumentava aos poucos o seu

poder. Desta forma, dois pontos de análise que estão atrelados do ponto de vista

empírico — em especial quando adotamos uma perspectiva baseada em

afinidades eletivas e não em causalidades lineares — aparecem e necessitam de

explicações separadas. O primeiro ponto se refere às transformações cognitivas

no interior do discurso religioso, ou seja, de que maneira o mundo passa a ser

interpretado a partir das novas demandas religiosas; quanto ao segundo ponto,

nos referimos ao problema da estratificação social, que aqui se apresenta com o

aparecimento de um novo estrato social (os especialistas religiosos) e de suas

respectivas técnicas de legitimação de status dentro do grupo social. Esta nova

conjuntura determina uma influência recíproca entre as duas questões

levantadas, pois que a formação de um novo estrato social resulta em demandas

específicas que elaboram um novo sentido para o mundo que, no caso em

questão, refere-se à produção e ao controle de bens de salvação.

As transformações cognitivas no interior do discurso religioso

57

Quanto ao primeiro ponto citado, poderíamos afirmar que o discurso

religioso vai se transformando na medida que uma questão que perpassa toda

discussão sobre o sentido do mundo exige novas respostas. O surgimento deste

problema ocorre justamente quando se busca atender as demandas da massa

dos sofredores. A questão de que falamos está diretamente relacionada com as

exigências de explicações relativa aos critérios de distribuição de benesses e

infortúnios entre os homens, isto é, sobre as razões que justificariam o

desequilíbrio na “distribuição” do sofrimento. Em outras palavras, trata-se de uma

pergunta tecnicamente simples, mas que guarda a questão sobre o sentido da

vida: por que uns sofrem mais que outros?

Quando essa questão é dirigida a uma sociedade cujo discurso da

teodicéia da felicidade é dominante, sua resposta é relativamente simples, não é

exigida uma resposta simbolicamente sofisticada do ponto de vista cognitivo para

respondê-la. O discurso que legitima a condição privilegiada dos afortunados se

constrói a partir da confirmação da experiência concreta que lhes é dada. Neste

caso, o discurso religioso é apenas uma confirmação de que eles (os afortunados)

merecem estar naquela condição em comparação com os outros sofredores. Não

é exigido um discurso que permita a superação da realidade concreta, que por

seu lado exigira um maior sofisticação simbólica, como também outras perguntas

não são suscitadas em decorrência desta concepção, pois esta almeja apenas a

legitimação do que está dado. A condição que eles ocupam seria o resultado de

um “bom relacionamento” com os deuses, baseado principalmente no

cumprimento da pureza do ritual; um vez afirmado isso, nada mais necessitaria

ser questionado. No entanto, ocorre o contrário quando o discurso religioso se

volta para responder essa questão aos estratos desafortunados da sociedade.

A abertura do espaço no culto para a cura individual seguiu um curso de

desenvolvimento compatível com as demandas exigidas pelos sofredores que

buscavam conforto nos conselheiros tribais, e certamente das promessas feitas

pelos especialistas religiosos. O que primeiramente apenas se voltava para curas

de males momentâneos em que certas prescrições mágicas — como algumas

proibições ou sacrifícios menores etc. se apresentavam como soluções —,

evoluiu para sistemas explicativos cada vez mais sofisticados.

58

A primeira ruptura aparece quando mitos da natureza evoluem para

concepção da idéia de um “redentor”, aquele que amenizaria o sofrimento das

massas e que, em um segundo momento, permitiria uma percepção relativamente

racional do sofrimento (WEBER,1982) (SOUZA,1997). Elaborou-se a idéia de um

herói que em seu retorno — que poderia ser tanto de uma aventura num lugar

ermo ou mesmo da morte — redimiria o sofrimento das massas, criando uma

saga em que as bem-aventuranças sucederiam o sofrimento. Nesta lógica, a

abertura para a cura individual no culto permitiu a formação de um projeto de

salvação messiânica coletivo, contrário a sua fase inicial individualizada.

O fator decisivo decorrente do aparecimento da figura do “redentor” se

refere ao relacionamento que a massa passa a manter com as novas divindades

concebidas. Aos poucos despontam divindades cujas exigências não mais estão

simplesmente atreladas à barganhas de demandas de curto prazo — em que os

deuses seriam coagidos magicamente —, mas sim vão surgindo relações

pautadas em exigências constituídas por pactos éticos. Desse modo, o mago e o

feiticeiro começam a perder espaço para o profeta, que é aquele que anuncia

para a massa que necessita de salvação as promessas do messias redentor, e ao

mesmo tempo instaura regras de comportamento através de mandamentos. Logo,

o não cumprimento desses mandamentos passa a ser interpretado como o

rompimento do pacto com a divindade, e isso passa a ser entendido como um

pecado, diferentemente do não seguimento da pureza do ritual que era concebida

apenas como uma ofensa mágica (WEBER, 1982)(WEBER, 2000).

Onde a crença nos espíritos é racionalizada até tornar-se uma crença nos

deuses — e portanto não há mais os espíritos que querem ser forçados pela

magia, mas sim os deuses que querem ser venerados no culto e ser objetos de

súplicas — a ética mágica da crença nos espíritos transforma-se na idéia de que

aquele que infringe as normas divinas provoca o desgosto ético do deus que pôs

aquelas ordens sob sua proteção especial. (WEBER, 2000: 302)

Weber afirma que neste contexto de surgimento da religiosidade ética são

abertas as possibilidades de uma compreensão racional do sofrimento; isto ocorre

na medida em que se investiga e conseguintemente elabora-se um discurso a

59

respeito dos castigos ou bem-aventuranças enviadas pela divindade. Em vista

disso uma nova lógica é formada a respeito do alcance das benesses. É neste

momento que aparece a noção de uma teodicéia do sofrimento, em que aqueles

que sofrem mas que se mantêm firmes nos preceitos morais — através dos

mandamentos, que também envolvem privações — receberão a boa fortuna no

retorno do messias, porque demonstraram a confiança nele através de um rigor

comportamental.

Com efeito, somos novamente conduzidos para a resposta à pergunta que

conduz ao eixo central do nosso argumento: como solucionar o problema do

desequilíbrio na “distribuição” do sofrimento. Weber afirma que o aumento da

explicação racional que buscava dar um sentido ético para o mundo baseado em

uma teodicéia do sofrimento gerava problemas, como demonstra na citação

abaixo:

À medida que os reflexos religiosos e éticos sobre o mundo se foram

tornando cada vez mais racionalizados, e as noções mágicas foram eliminadas, a

teodicéia do sofrimento encontrou dificuldades crescentes. Era demasiado

freqüente o sofrimento individualmente “imerecido”; não eram os “bons”, mas os

“maus” que venciam. . .(WEBER, 1982: 318).

Para resolver o problema criado por uma percepção de um mundo pleno de

sentido ético, as promessas religiosas se dirigiram para o alcance da ventura num

futuro mais distante. É por este motivo que em algumas religiões47 surge a

possibilidade das recompensas serem alcançadas em um “outro mundo” que

transcendesse a realidade do mundo material.

É neste contexto da teodicéia do sofrimento que notamos o salto cognitivo

em relação a anterior teodicéia da felicidade: o mundo do “monismo mágico” é

cindido em dois, e a partir daí o que temos é a concepção de mundo “dualista

transcendente”. Essa transformação revolucionou todos os aspectos da vida do

homem. Uma vez que o mundo do mais além passa a ser o detentor do valor 47 Weber apresenta as linhas gerais dos três sistemas teológicos que orientaram as religiões sustentadas por uma teodicéia do sofrimento: Como promessas de recompensa, temos a esperança de uma vida melhor no futuro, neste mundo (transmigração das almas) ou esperanças para os sucessores (reino messiânico), ou de uma vida melhor no outro mundo (paraíso) (WEBER, 1982:318).

60

positivo, logo as intenções das ações passam a ser dirigidas para ele. Isso

permitiu que a moral se desenvolvesse como um campo autônomo, na medida

que as ações morais pertenciam agora a um sistema abstrato de valores

parcialmente independentes das necessidades imediatas do mundo. Podemos

perceber neste exato ponto a configuração de uma oposição entre um mundo

profano do “ser” e um mundo sagrado do “dever ser”.

A teodicéia do sofrimento, como resultado da crescente racionalização das

concepções de mundo religiosas, substitui, como uma metafísica tendencialmente

racional, as concepções de mundo míticas, abrindo espaço, dessa forma, para o

desenvolvimento de uma ética no sentido estrito (SOUZA, 1997: 61).

Por outro lado, podemos notar o aparecimento do que chamaríamos de o

período das ”rejeições religiosas do mundo”. Neste caso, o mundo valorativo do

“mais além” entrava em competição com as demandas deste mundo. E na medida

em que o sofrimento passa ter um valor positivo, o gozo descompromissado dos

prazeres desse mundo começa a ser rejeitado; a esfera moral entra em conflito

com a economia, o sexo entre outras48. O crescente processo de racionalização

religiosa também abriu espaço para autonomização e a conseqüente

especialização de outras esferas da ação49.

A duplicação do mundo criada a partir do dualismo transcendente gerou um

número muito maior de impactos na configuração dos valores e instituições do

mundo moderno, a respeito disso voltaremos a debater mais adiante neste

capítulo.

A nova estratificação social

48 A questão das “rejeições religiosas do mundo” é um tema de significativa importância na sociologia da religião de Weber. Ele trata deste tema nas “considerações intermediárias à ética econômica das religiões mundiais” (Zwischen betrachtung), texto colocado em apêndice ao volume I dos Ensaios Reunidos de Sociologia da Religião. Weber afirma que todas as religiões de salvação, tanto do ocidente como do oriente, desenvolveram rejeições religiosas em relação ao mundo. 49 Sobre essa discussão ver o capítulo anterior.

61

A explicação que se concentra tão somente na lógica interna das idéias,

por mais que se apresente de maneira sofisticada, não encerra por completo a

discussão dentro da sociologia weberiana sobre as transformações cognitivas

dentro da religião, e conseguintemente, em toda sociedade. O fato de o

pensamento weberiano ter sido interpretado erroneamente como simples

oposição ao pensamento marxista, fez com que pouco se atentasse para as

explicações weberianas que se sustentam também em premissas materialistas,

em que a dinâmica dos interesses também aparece como ponto importante50. Na

interpretação que faz da sociologia da religião de Weber, Bourdieu confere grande

destaque para a perspectiva materialista presente na obra weberiana, e é a partir

de parte das análises deste último que construiremos os argumentos do segundo

ponto por nós destacado.

A formação e o crescimento de estratos de especialistas religiosos e o

aparecimento de fatores materiais que geram esta estratificação, ao lado das

transformações no interior do discurso religioso, complementam-se através da

explicação da transformação cognitiva que resultou numa concepção dual de

mundo. A questão principal relativa a essa transformação é a constituição de uma

esfera especificamente religiosa, ou seja, uma conformação de demandas

puramente voltadas para interesses religiosos, sendo o exemplo mais marcante a

aparecimento da necessidade de salvação religiosa51.

O surgimento de novos estratos sociais em virtude de uma multiplicação da

divisão do trabalho encerra camadas sociais em realidades parcialmente distintas,

formando-se assim novas expectativas relativas à vida, como nos ensina a velha

fórmula sociológica. Desse modo as demandas sociais passam a ser outras, e no

caso que analisamos, a expectativa de salvação ganha enorme destaque. Neste

ponto, o aparecimento da cidade em oposição à vida camponesa merece uma

atenção privilegiada para o entendimento desta questão. Grande parte desses

50 Weber faz questão de ressaltar que em nenhum momento escolheu entre o idealismo e o materialismo, afirmando que ambas quando escolhidas absolutamente empobrecem a compreensão da realidade. 51 A noção de uma esfera propriamente religiosa é um produto do rompimento com as concepções puramente mágicas do mundo; é este o efeito dos inúmeros fatores que se interconectam a este processo, como: racionalização, rejeições religiosas do mundo, desmagificação e autonomização das esferas da ação que tem seu início com a esfera religiosa. Vale lembrar, como afirmamos em outros capítulos, que a ação mágica desconhece a delimitação da ação em esferas separadas, pois toda ação religiosa, política ou econômica ocorre conjuntamente, sem traços nítidos que as separem.

62

novos estratos surge em conseqüência da vida urbana, e os modos de produção

e organização da vida material forjado na cidade contribuem vertiginosamente

para uma outra percepção (cognitiva-valorativa) do mundo52. Como narramos no

capítulo dois, o grau de previsibilidade alcançado por algumas atividades urbanas,

tornando-as parcialmente menos dependentes da natureza, possibilitou a

elaboração de demandas não restritas a necessidades de curto prazo, o que

permitiu o desenvolvimento de expectativas mais abstratas e demandas com

prazos cada vez maiores. Um outro elemento social estreitamente relacionado à

vida urbana refere-se aos segmentos religiosos decisivos na formação das

religiões de salvação.

Ao eleger as cinco grandes religiões mundiais que mais influenciaram na

condução da vida (Lebensführung), Weber coloca em destaque as camadas de

especialistas destas religiões, entendendo que o modelo de vida por estes

propagado exerceu grande influência na maneira como as pessoas comuns

conduziam a sua vida. No caso do judaísmo, religião de enorme destaque na

formação do ocidente, formou-se uma religiosidade conduzida por classes

urbanas intelectualizadas. Weber também afirma que o cristianismo foi uma

religião especificamente urbana (1983: 312). A cidade é o berço onde nascem e

se desenvolvem as grandes transformações no ocidente, e dentre elas uma

concepção metafísica do mundo. A cidade é a base material que permite uma

série de mudanças na interpretação do homem sobre o mundo, sem o surgimento

da forma de vida urbana provavelmente os contornos cognitivos do mundo seriam

outros.53

Retornando ao problema da estratificação religiosa propriamente dita e

conseqüentemente aos novos interesses por ela criados, (ao lado do decorrente

aparecimento de um espaço genuinamente religioso), somos levados a analisar o

início deste processo, a saber, o longo caminho que se inicia no aumento do

destaque social dos magos e feiticeiros. Como narramos anteriormente as

primeiras transformações significativas na estrutura dos estratos de especialistas

religiosos ocorre quando os magos e os feiticeiros passam a exercer suas 52 Para mais detalhes sobre esta questão ver capítulo dois. 53 A cidade representa um desdobramento material de um racionalismo de “dominação do mundo”. O seu espaço é um universo relativamente controlado em que a previsibilidade dos eventos se encontra em um estágio avançado se o compararmos com a vida rural.

63

funções para um número maior de pessoas, ou melhor, voltam-se para

segmentos sociais que não estavam no topo da pirâmide social. Essa

transformação fez com que paulatinamente esses especialistas fossem ganhando

amplas possibilidades de controle sobre a sociedade. Isso implicou na formação

de dinastias e de pequenas sociedades de especialistas religiosos, que em um

outro momento futuro vieram a constituir-se em um corpo sacerdotal. Esse

processo se caracteriza pela transmissão do carisma e ordenação da atividade

religiosa, assim abrindo espaço para uma esfera propriamente religiosa.

Na medida em que a idéia de salvação passa a existir nas sociedades, o

controle e a produção destes bens (chamados bens de salvação) passam a ser

alvo de disputas entre os novos atores sociais que vão surgindo; magos,

feiticeiros, sacerdotes e profetas se apresentaram como tipos sociais que entrarão

em conflito pelo controle desses bens de salvação. As novas demandas surgidas

em virtude da abertura do espaço individual no culto gera um disputa de status

social entre os grupos que controlam os meios de salvação. Em um segundo

momento, observamos a disputa pelas promessas de salvação. O que

primeiramente se mostrava apenas como curas imediatas para males corriqueiros

na atividade dos magos evolui para a idéia de salvação plena: a supressão de

todos os sofrimentos na efetivação da promessa do redentor, tendo como ator

social principal não mais a figura do mago, mas do profeta.

A definição clara dos papéis atribuídos ao mago, ao sacerdote e ao profeta

não é uma tarefa fácil, pois elementos atribuídos a um determinado tipo também

aparecem nos outros. No entanto, em traços bem gerais — e seguindo a

metodologia de tipos ideais —, poderíamos dizer que o mago se caracteriza pela

ação individual sustentada por seu carisma pessoal que, através de receitas e

prescrições mágicas, visa normalmente a solução de problemas cotidianos e

pessoais dos indivíduos que recorrem a seu serviço.54 Já o sacerdote tem sua

atividade relacionada a um corpo sacerdotal e não simplesmente na figura

individual; sua ação é regida por uma tradição, pelo carisma institucionalizado no

cargo que ocupa e não na sua pessoa. Desse modo ele se torna o “guardião” da

tradição estabelecida. O profeta, assim como o mago, tem seu poder centrado no

54 Bourdieu define o mago e o feiticeiro como um livre empresário autônomo e itinerante.

64

seu carisma pessoal, porém sua ação se volta para a anunciação de uma

promessa que está, na maioria das vezes, sustentada em pressupostos éticos,

em que exigências de um determinado rigor comportamental se diferenciam do

simples cumprimento da pureza ritual. Na interpretação de Weber é este último, o

profeta, que ao anunciar uma salvação num “outro mundo” inaugura as

possibilidades de uma interpretação dual do mundo que, certamente é

desenvolvida e sofisticada por uma classe sacerdotal de especialistas letrados

que surge num momento histórico seguinte reinterpretando e transformando a

promessa inicial numa tradição.

O dualismo transcendente e suas implicações

Segundo a análise de Weber, a concepção dualista transcendente do

mundo seguiu caminhos diferentes no oriente e no ocidente. Enquanto no

ocidente o mundo material passou a ser rejeitado como o mundo do pecado, no

oriente o mundo material foi interpretado como um reino passageiro. Outras

diferenças se referem à interpretação do mundo dual: no oriente tendeu a se

curvar para um vertente intelectual cuja contemplação mística obteve destaque; já

no ocidente tendeu para uma interpretação prática cuja ação pensada como

dominação do mundo alcançou maior eficácia social através do ascetismo.

A despeito destas diferenças entre ocidente e oriente nos concentraremos

na concepção dualista transcendente no mundo ocidental, que é o que mais nos

interessa analisar no momento. Esta concepção teve como seus principais

exemplos históricos a filosofia platônica e o pensamento cristão medieval que, em

traços bem amplos se apresentou como uma adaptação do platonismo, servindo

como um eficaz divulgador dos principais desdobramentos valorativos contidos

neste corpo filosófico. A noção de que o mundo em que vivemos é tão somente

uma cópia imperfeita de um mundo verdadeiro, onde idéias perfeitas são a

verdade em oposição da falsa cópia material, foi um pilar fundamental da

constituição valorativa e institucional do ocidente. A descoberta do outro mundo

imaterial e verdadeiro, fez com que as ações neste mundo se dirigissem para este

outro mundo que passou a deter o valor positivo da vida.

65

Nesta lógica, as necessidades imediatas da vida perderam valor frente às

idéias, ou melhor, frente a algumas idéias que ganharam o status de sagradas. A

duplicação do mundo fez com que certos conjuntos de sistemas de idéias fossem

alçados a categoria de valores veneráveis que deveriam ser perseguidos até a

exaustão. Logo, inaugura-se na história das sociedades um período em que a

ação social não é tão somente condicionada pelas necessidades práticas da vida,

mas também por conjuntos de idéias sistematizados. Os tabus e as prescrições

mágicas eram apenas artifícios simbólicos que estavam ”a serviço” das

necessidades imediatas, jamais entrando em conflito com os interesses imediatos

impostos pela natureza. No entanto, as religiosidades éticas estavam sustentadas

por “idéias-valores” fundamentadas cada vez mais em sistemas filosóficos

produzidos por seu corpo sacerdotal de especialistas intelectuais, detentores

daquilo que Charles Taylor chamaria de “noção de boa vida”. Agora a

determinação da vida digna de se viver não se sustentava somente na saúde e

prosperidade como na teodicéia da felicidade; o sentido da ação social passava a

obedecer também a idéias que muitas vezes contrariavam a satisfação

descompromissada de necessidades e prazeres.

Neste processo, em que identificamos também a noção de racionalização

em Weber, a ação passa ser controlada e/ou direcionada tanto internamente

quanto externamente. Do ponto de vista externo temos a formação das

instituições modernas, e do ponto de vista interno vislumbramos a internalização

de uma moral que controla o sujeito dentro de normas do “bem viver”, normas

estas que nem sempre estariam acessíveis conscientemente.

As instituições modernas enquanto tributárias destas transformações se

diferenciam justamente porque também estão assentadas em um conjunto

abstrato de idéias que as legitima e as organiza. A exemplo disto destaca-se o

direito, que tem sua racionalização iniciada no direito romano, e se configura

como um sistema de controle social gerenciado por uma noção de justiça

universal, e por uma moral relativamente autônoma de particularismos, elaborado

por princípios reflexivos e não por normas rígidas provindas de tabus mágicos.

Isso só se tornou possível porque quando um sistema é controlado por um

conjunto de idéias que ganham o status de sagradas, está aberta a possibilidade

de instauração de relações impessoais, ou seja, intervenções pessoais e

66

interesses particularistas perdem poder de efetivação nesta lógica. A ciência

moderna se apresenta como um outro exemplo de grande valia; esta última está

assentada sobre um dos principais pilares que sustentam as possibilidades de

relações impessoais. Aqui me refiro à construção de uma noção de natureza

desmagificada: a idéia de que a natureza é governada por leis universais

invioláveis que se aplicariam tanto aqui quanto em Marte55. Em vista disto, os

fenômenos da natureza não seriam fruto da vontade pessoal desta ou daquela

divindade, mas seriam apreendidos e “dominados” por um sistema de idéias, no

qual uma lógica impessoal se sobreporia à vontades pessoais. O Estado moderno

também é controlado por uma constituição, neste caso a figura do governante não

pode agir simplesmente guiado por seus desejos pessoais, mas é controlado por

um conjunto de idéias. Os sujeitos nesta lógica não são mais reféns da

impresivibilidade ou joguetes de forças mágicas, mas são obrigados a operar

segundo princípios que em parte estão aquém da lógica da vontade pessoal deste

ou daquele indivíduo. Mesmo que estes sistemas ou instituições sejam operados

por pessoas, há um conjunto de idéias que as controla, diferentemente de quando

um sistema resume-se à vontade de uma pessoa.

A noção de indivíduo também é duplicada conjuntamente com a duplicação

substancial do mundo. Diferentemente das promessas de salvação que

anunciavam a ressurreição do corpo, justamente porque este (o corpo) era o

centro da individualidade e talvez a única forma de existência de “eu” concebida

— pois a alma neste caso estava presa a concepções materiais como sombras e

duplos —, no dualismo transcendente a noção de alma ganha o status de algo

imaterial, centro da individualidade e da consciência, responsável pelas escolhas

que serão punidas ou recompensadas no outro mundo verdadeiro e imaterial (o

paraíso, na concepção cristã-católica). É neste momento que a moral como esfera

autônoma ganha força, pois o sujeito é o responsável por suas ações e a alma é o

lugar da reflexão sobre as escolhas. A idéia de reflexividade sobre as escolhas e

as ações, bem como sobre os valores, aparece como novidade e marco da

identidade da própria modernidade, como é defendido por Anthony Giddens,

Ulrich Beck entre outros.

55 Um bom exemplo é a concepção de mundo mecanicista-cristã em que o próprio Deus estaria sujeito às leis universais da natureza depois que as criara, não lhe sendo permitido qualquer intervenção posterior.

67

A parte imaterial do sujeito apresenta-se simbolicamente como o

repositório dos valores abstratos; o mundo do “dever ser” apartado da unicidade

do anterior mundo do “ser” tem na alma ou na mente o “depósito” da parte

abstrata nos sujeitos. Os indivíduos passam a “existir” com uma dimensão intra e

extra-corporal. A noção de uma parte imaterial no sujeito permite conceber tanto

uma vida interior, quanto a aquisição de direitos individuas que valem para além

do corpo do indivíduo (uma vida exterior).

Um exemplo das resultantes destas transformações cognitivas é que num

mundo onde os sujeitos também foram cindidos em duas partes e uma destas

partes detém mais valor do que a outra, se cria uma nova forma de eliminação

social do indivíduo. Em uma sociedade que não presenciou ou mesmo não

internalizou uma concepção dual de sujeito cuja a dimensão abstrata desse

sujeito — a alma ou mente — não é tomada como o centro da consciência e valor

ou mesmo nem é concebida, só se pode eliminar um sujeito do convívio social

destruindo o seu corpo, ou seja, matando-o literalmente. No entanto, em

sociedades que internalizaram esta transformação, passa-se a ter um novo tipo

de “morte”, ou melhor, um tipo diferente de eliminação do convívio social em que

o sujeito é destruído moralmente; sua parte abstrata é condenada à morte sem

que seu corpo precise ser tocado. Este passa a não existir mais para a sociedade

embora continue a perambular por ela como um fantasma ou um morto-vivo.

Certamente este segundo tipo de morte, considerada uma morte moderna,

civilizada, ascética, não é aplicável a todas às infrações, mas tende a acontecer

em crimes que ferem um conjunto de valores abstratos. Um exemplo disso são os

crimes políticos em que normalmente os julgados já são culpados antes mesmo

do julgamento, ou em disputas em outros ambientes onde idéias detêm grande

valor, como na academia56. O sujeito ou aquela identidade é eliminado porque

sua parte de valor, aquela que o representa como centro de sua personalidade ou

pessoa foi condenada pela sociedade.

Muito embora todas essas possibilidades cognitivas tenham sido

inauguradas a partir da concepção dualista transcendente do mundo, sua

efetivação acontece na virada do dualismo transcendente para o dualismo

56 Com isso não quero afirmar que só na modernidade o assassinato tem um sentido simbólico; quero apenas dizer que a modernidade é o único espaço onde a eliminação social às vezes prescinde de violação do corpo.

68

imanente. A ética católica ainda privilegiava uma religiosidade de virtuosos

separados do mundo, o ascetismo católico permanecia restrito aos mosteiros,

diferentemente do que aconteceria no protestantismo calvinista.

Dualismo imanente

No protestantismo calvinista, aquilo que apenas era a conduta da vida

ascética de poucos virtuosos que buscavam viver apartados do mundo no ethos

católico (monges), passa a ser a regra geral de conduta para todos os homens,

porém com uma diferença, a ação dos fiéis passa a ser dirigida para este mundo.

A ação do fiel passa a ser entendida como uma contribuição para a construção da

glória de Deus na terra. Esta distinção encontra-se nos dois modelos de

ascetismo do ocidente: um primeiro monástico (Mönchsaskese) concebido

através de uma ascese racional extramundana, e o segundo vocacional,

(Berufsaskese) compreendido como uma ascese racional intramundana; ambos

se opõem à mística predominante na conduta da ação no oriente57. Isto fica claro

no quadro abaixo, inspirado no quadro elaborado por Leopoldo Waizbort

(2000:291).

Ascese ativa Ascese passiva Mística passiva Protestante Berufsaskese (ascese vocacional/profissional)

Monge aktive Mönchsaskese (ascese monacal ativa)

Contemplação

Age por desejo de deus como instrumento de deus

Age sem se preocupar com os fins “neste mundo”

Evita a ação

Busca a salvação mediante tal agir no mundo

Busca a salvação na vida metódica racional direcionada “para fora do mundo”

Posse contemplativa da salvação

Innerweltliche rationale Askese (ascese racional intramundana)

Ausserweltliche rationale Askese (ascese racional extramundana)

Recipiente de Deus; a criatura deve ceder, para deus falar

57 Vale lembrar que esta tipificação não quer dizer que não tenha havido comportamento ascético no oriente como também comportamento de orientação mística no ocidente.

69

Weltablehnung (rejeição do mundo)

Weltflucht (fuga do mundo) Weltflucht (fuga do mundo)

Na concepção dualista imanente do mundo é mantida uma percepção dual

do mundo; a perspectiva de salvação aguarda o júbilo num outro mundo, no

paraíso reservado aos eleitos de Deus. No entanto, a maneira que indica a

salvação não se constrói com uma ação dirigida para “fora deste mundo”, mas

sim para “dentro deste mundo”, o que evidencia o seu caráter imanente. Desse

modo, mesmo que se tenha uma perspectiva de salvação em um “outro mundo”,

as ações dirigidas a este mundo ganham positividade.

O trabalho como um valor genuinamente moderno surge em virtude deste

contexto. No mundo medieval o trabalho era considerado um desvalor; o modo de

vida legítimo, ou seja, o da nobreza, negava o trabalho como fonte de dignidade;

é o modelo de promessa de salvação do puritanismo ascético que alça a vida

metódica controlada racionalmente em que o trabalho é o centro da vida como o

modo de vida legítima. Assim, como o fruto deste trabalho metódico é a gloria de

Deus e não o gozo dos frutos do trabalho, que por seu lado se oporiam ao

ascetismo reinante, está pronta a revolução de consciência e também revolução

valorativa necessária ao capitalismo nascente.

Um outro aspecto de grande relevância relacionado ao puritanismo refere-

se à relação estabelecida entre o homem e a divindade. A certeza da salvação

encontrava à sua frente uma barreira: a vontade impenetrável de um Deus

distante, tão distante que súplicas, romarias, boas ações isoladas e outros

artifícios para agradar a divindade poderiam não chegar aos olhos e ouvidos

desse Deus. Logo, o fiel estava abandonado, restando-lhe apenas a sua fé e a

sua solidão. Para salvar-se o fiel deveria crer piamente naquelas promessas, e

viver metodicamente, como um guerreiro disciplinado de Deus disposto a dominar

o mundo para a glória divina, mesmo sabendo que isso não garantiria a sua

salvação, mas era apenas um indício de que poderia ser salvo. A noção de

vocação (Beruf) tem aí a sua gênese. A salvação está condicionada a uma total

entrega da vida à obediência aos preceitos desse Deus. Diferentemente da

promessa católica, não é a soma das boas ações que garante a salvação, mas

sim o atendimento a um chamado (Ruf) que requer um modelo de ação metódica

70

e racionalmente controlada para a vida inteira; a sua vida e o modelo de vida que

abraçou é que importam para sua salvação, e não ações isoladas (SOUZA,

1997).

Este modelo de salvação e relação com a divindade foi capaz de gerar um

aprendizado social para a massa de fiéis que resultou na contribuição para a

formação da agência humana no mundo moderno. A crença em um Deus

distante, Deus este que não se fazia presente mediante à benesses corriqueiras

ligadas à vida mundana concedida aos seus fiéis, gerou o aprendizado na crença

de valores abstratos, aprendizado este necessário para se operar nas instituições

modernas. Todavia, este modelo de relação com a divindade contribui

marcantemente para a radicalização de um processo que atravessa a historia do

ocidente e se consolida na modernidade: o processo de desmagificação do

mundo. A distância desse Deus inviabilizava qualquer tentativa de relação mágica

com Ele, impedindo barganhas e coações mágicas, reforçando pois as relações

estabelecidas mediante pactos assentados em valores abstratos e impessoais. O

aprendizado para agir através de relações impessoais ainda ganhava um outro

elemento que o reforçava: a reificação das relações entre os homens, em que um

modelo de salvação individual e a suspeita de idolatria da carne nas relações de

amizade exerceram um papel importante, como narra Jessé Souza:

Causas da reificação Weber identifica, antes de tudo, na não-fraternidade

essencial do caminho de salvação do protestantismo ascético e na suspeita de

divinização das criaturas em toda doação de valor para as relações humanas, as

quais levam ao que se poderia chamar de “domínio da impessoalidade”. As

relações intersubjetivas perdem, gradativamente, sua característica emocional e,

com isso, a própria peculiaridade das relações entre homens.

Como último ponto referente à contribuição do protestantismo ascético para

a formação de relações no mundo moderno, ressaltamos a importância de uma

outra peculiaridade relativa ao seu modelo de salvação: a ausência de uma

hierarquia religiosa que intermediasse a salvação dos fiéis leigos. Diferentemente

do catolicismo, em que existe uma nítida diferença entre os virtuosos religiosos e

os leigos, permitindo que a classe sacerdotal interfira na salvação dos fiéis ao

71

conceder-lhes perdão de pecados, entre outros “favores”, no protestantismo a

relação do fiel é direta com Deus, tendo-lhe somente sua fé para salvar-se. Desse

modo, todos são iguais entre si como nunca havia ocorrido na humanidade uma

igualdade plena entre os homens. Como afirma Charles Taylor (1997), é na

modernidade a primeira vez que se elabora a noção de igualdade plena; em

outros tempos as relações entre iguais estava restrita ao interior de alguns

grupos. No mundo medieval, por exemplo, a honra hierarquizava os homens entre

aqueles que a possuíam e os que não a possuíam. No protestantismo os homens

seriam considerados iguais perante Deus, similarmente à forma como os homens

são considerados iguais pelo sistema impessoal de justiça moderno.

Conclusão

A centralidade do argumento weberiano exposto neste capítulo se

concentra na eleição de dois tipos de organização religiosa como preponderantes

no desenvolvimento das idéias aqui expostas, a saber, o judaísmo antigo e o

protestantismo ascético. Weber encara o protestantismo ascético como uma

retomada e consumação de um processo que se inicia no judaísmo antigo. . . .no

protestantismo ascético observa-se a continuidade e o aprofundamento da ética

judaica antiga, a qual enfatiza precisamente a tensão entre ética e mundo.

(SOUZA,1999: 25) Vemos aqui reunidas a aliança de determinados fatores mais

importantes como a presença de uma profecia ética, a concepção de um Deus

único e separado do homem por um abismo intransponível e também a

implementação de uma desmagificação do mundo. Weber também elege a ética

do judaísmo antigo como o principal propulsor de uma concepção metafísica dual

do mundo58.

58 Quanto à explicação referente à duplicação metafísica do mundo, Weber também concede um papel determinante à ética do judaísmo antigo, não privilegiando desse modo outras interpretações que atribuiriam esse papel aos círculos pitagóricos e aos cultos eleusianos na Grécia antiga, cuja lógica da duplicação seria invertida. Se na explicação weberiana o mundo se duplica em virtude de um ajuste de promessas religiosas de salvação que encontrava problemas num discurso que se sustentava na concepção de um mundo pleno de sentido, (assim, do ponto de vista lógico, e somente do ponto de vista lógico, primeiro o mundo seria duplicado e depois o sujeito se duplicaria para viver neste outro mundo) na explicação que privilegia a Grécia a percepção de uma realidade metafísica surgiu de maneira empírica nos rituais religiosos (assim do ponto de vista lógico, primeiro encontramos a duplicação do sujeito e depois a duplicação do mundo). Este é um

72

A construção desse mundo e a exposição desta construção neste capítulo

nos servirá como contraponto comparativo para os estudos de outros processos

de modernização que não seguiram os padrões clássicos, como é o caso da

modernização brasileira que analisaremos no próximo capítulo.

exemplo que anotamos aqui como demonstração da complexidade da explicação e para a definição do caminho escolhido por Weber.

73

Capítulo V: A cognição mágica e os caminhos da modernidade brasileira

74

A cognição mágica e os caminhos da modernidade brasileira

Introdução

Empreenderemos neste capítulo um exame que permitirá a elaboração de

hipóteses, ou melhor, de caminhos que permitam o ensejo de uma interpretação

weberiana da sociedade brasileira, conforme a proposta desta dissertação.

Todavia, temos a clareza de que este trabalho não inaugura este tipo de

empreitada no Brasil. Principalmente na sociologia que poderíamos chamar de

paulista, houve vários esforços, e muitos deles com considerável sucesso, de

elaborar uma interpretação weberiana para o Brasil. Dentre estes trabalhos se

destacam Raymundo Faoro, Sergio Buarque de Holanda, Vianna Moog, entre

outros. No entanto, o que nos diferencia daquela geração e conseqüentemente

justifica a confecção de novas investigações a esse respeito, se refere ao tipo de

recepção das idéias weberianas. Podemos afirmar que nesta dissertação a

compreensão weberiana se deve em grande parte às originais e contemporâneas

interpretações que o sociólogo alemão Wolfgang Schluchter fez da obra de

Weber, conferindo um enorme destaque ao conjunto inteiro da sociologia da

religião Weber, elaborando assim uma perspectiva neo-evolucionista baseada em

uma lógica do desenvolvimento que nos permite fazer estudos comparativos entre

os diversos processos de modernização seja no ocidente ou no oriente, logo

conferindo destaque para o desenvolvimento cognitivo-valorativo destas

sociedades, diferentemente da apropriação de conceitos ou temáticas isoladas da

obra weberiana59.

Esta escolha, ou seja, a de percorrer o caminho weberiano a partir de sua

sociologia da religião (que consideramos o núcleo de sua obra), nos aproxima de

trabalhos como o já citado Tokugawa religion: the cultural roots of modern Japan

de R. Bellah, que também se orienta pelo projeto weberiano por inteiro e não

59 A parte da sociologia weberiana que obteve maior penetração nos círculos intelectuais brasileiros foi aquela em que Weber trata das formas e tipos de dominação (sociologia da dominação). Isso ocorreu em detrimento da sociologia da religião de Weber que, creio eu, como já afirmei em outros momentos deste trabalho, ser o núcleo conceitual mais criativo e fundamental em sua obra, daí justificar-se a nossa escolha da sociologia da religião como pilar principal de nossa análise.

75

através de conceitos isolados. Da mesma maneira como Weber fez em relação à

compreensão do mundo moderno ocidental investigando as bases valorativas e

cognitivas que permitiram a sua configuração, Bellah se pergunta como foi

possível o êxito de uma sociedade capitalista no Japão, sendo este país

dominado por uma religiosidade mágica (período Tokugawa) e eivado de

tradicionalismo. Desse modo, nós também podemos perguntar — sem a

pretensão de responder essa questão neste trabalho, mas apenas objetivando a

abertura de caminhos interpretativos — como foi possível um capitalismo de

sucesso no Brasil, em que também a magia se sobrepôs à religiosidade ética

gerando inúmeras contradições neste processo.

Com este objetivo seguiremos as seguintes etapas neste capítulo: primeiro

analisaremos, a partir da tese do sociólogo Eurico dos Santos, o processo de

religiogênese brasileiro, atentando para a primazia da magia, cotejando com os

apontamentos de Gilberto Freyre e apresentando elementos que reforcem esta

tese; num segundo momento analisaremos, sob o ponto de vista da lógica interna

das idéias60, as contradições existentes entre os tipos ideais da magia e os

padrões exigidos para se operar no mundo moderno, como também o

funcionamento das instituições modernas em uma sociedade permeada pela

cognição mágica, para somente nas considerações finais apresentar os possíveis

caminhos oriundos deste trabalho que poderiam orientar (e serem testados) em

pesquisas futuras.

A formação mágica da religiosidade brasileira

A percepção de que a religiosidade brasileira é permeada por componentes

mágicos não se destaca como uma novidade nas interpretações a respeito do

Brasil, muito pelo contrário, a notificação deste componente social de nossa vida

aparece na obra de alguns intérpretes brasileiros, com destaque para Gilberto

Freyre, que em seu famoso livro Casa-grande e Senzala narra inúmeros

episódios que atestam este fato. Porém, esse traço de nossa religiosidade é

60 Com isso queremos dizer que não empreenderemos neste trabalho uma análise completa a respeito do processo de modernização no Brasil, a maneira como Bellah fez com o Japão, mas sim buscaremos desenvolver algumas idéias para que tal tarefa seja realizada no futuro.

76

percebido como algo periférico para entender a história brasileira; quando citado,

normalmente aparece apenas como uma confirmação de um argumento maior,

como é o caso de Casa-grande e Senzala em que as notificações a respeito da

magia surgem apenas como comprovações ou ilustrações de sua tese principal

sobre o patriarcalismo. Por outro lado, essa característica de nossa religiosidade

é tratada elogiosamente como mais um dos traços exóticos de nossa cultura, de

nossa diversidade, traços estes que viriam a se opor à dureza e ao rigor nórdico,

e que se associava a outros aspectos que compõem o mito nacional sobre o qual

nós corriqueiramente nos auto-interpretamos. Neste último caso Eurico dos

Santos afirma que este fenômeno (magia) é quase sempre descrito com a

candura que se usa destinar às crianças, denotando a pouca importância ou a

análise pouco rigorosa de um aspecto que consideramos ser fundamental em

nossa história, ponto a partir do qual começa a nossa análise.

Em acordo com Eurico do Santos, acreditamos que a minuciosa análise do

processo de formação de nossa religiosidade é capaz de explicar elementos de

nossa cultura que estão para além do universo propriamente religioso; cremos

ainda que tal empreitada é capaz de lançar luz para a compreensão não somente

de elementos isolados, mas também de fornecer bases importantes para o

entendimento de nossa modernização. E esta perspectiva tem seu início na

assertiva que coloca a magia como algo não residual ou periférico em nossa

religiogênese, discordando assim da noção de que nossas raízes mágicas

proviriam tão somente da cultura indígena ou dos escravos, ou do “catolicismo

doce” do sul da Europa, especialmente Portugal. Sustentamos, pelo contrário, que

a magia está no centro de nossa religiogênese, ou seja, no processo de

instalação da igreja católica no Brasil colônia.

O ponto que destacamos na perspectiva de Eurico dos Santos se refere à

afirmação de que o centro da formação de nosso quadro valorativo se encontra

nas relações entre a política colonial portuguesa e a ação da Igreja católica no

Brasil, mais especificamente na consumação desse acordo que se encontra no

“padroado de Cristo”. Segundo Eurico dos Santos, no “padroado de Cristo” estaria

esboçado o “projeto” de colonização brasileiro, mas não uma conquista armada e

política no seu sentido estreito, mas um projeto de colonização valorativa-

cognitiva em que os elementos éticos do cristianismo católico que já haviam

77

penetrado na sociedade portuguesa (diferentemente de como pensa a maioria de

nossos sociólogos), foram “adocicados” na sua implementação no Brasil. Isto

visaria a construção de um quadro valorativo que permitisse a efetivação dos

interesses econômicos portugueses nas terras brasileiras. Quanto a isso, o

aspecto de maior relevância seria a construção social do escravo: um modelo de

economia assentado na mão de obra escrava apenas funcionaria em uma

sociedade que naturalizasse uma brutal diferenciação entre categorias de

pessoas, ao ponto que um desses tipos fosse considerado como um animal

domesticado para fins de trabalho, sem que isso gerasse um conflito ou uma

sensibilização de uma parte significativa da sociedade61.

Os valores universalistas éticos conjuntamente com seu potencial

cognitivo-revolucionário foram neutralizados no Brasil colônia por uma série de

medidas implementadas pela união política entre a coroa portuguesa e a igreja

católica (Padroado). Uma delas foi a não instalação de uma elite sacerdotal de

formação rígida na doutrina oficial da Igreja, o que fez com que fossem enviados

para o Brasil padres de pouca formação, aliado à ordenação de padres em terras

brasileiras de tão baixa formação intelectual que muitos deles mal sabiam

escrever. Desse modo, foi se formando aqui uma religiosidade de leigos, em que

as irmandades religiosas e o culto familiar dominavam os valores e a instituição

da Igreja católica oficial. Gilberto Freyre afirma que no Brasil a família venceu a

Igreja: A casa-grande venceu no Brasil a Igreja, nos impulsos que esta a princípio

manifestou para ser a dona da terra. Vencido o jesuíta, o senhor de engenho ficou

dominando a colônia quase sozinho (2005: 84). O culto familiar e a proliferação

das irmandades religiosas tendeu a interpretar de tal modo os símbolos católicos

que transformou o catolicismo em uma religiosidade mágica no Brasil62. O culto

61 A discussão sobre a existência de alma nos negros reflete com clareza este quadro. A negação da alma é também a negação da condição humana e a proximidade com a condição puramente animal. 62 Em todas as sociedades em que se instaurou uma religiosidade ética observou-se que tal processo não ocorreu sem que classes sacerdotais ou profetas (especialistas religiosos) implementassem um severo combate à magia típica das massas. O judaísmo antigo é um caso exemplar onde os profetas combateram arduamente a tendência mágica da massa. Já no final do século XIX, o combate à magia na França ocorreu a partir de uma política de Estado que reuniu o Estado e sacerdotes católicos. No Brasil colônia isso não foi possível justamente por não existir uma classe sacerdotal forte e autônoma (é corriqueiro o caso em que os padres obedeciam piamente o senhor de terras), que permitisse que valores e idéias religiosas entrassem em “tensão” com o mundo.

78

dos santos e dos ancestrais transformou o monoteísmo cristão em um politeísmo

na prática, e o mundo, num “jardim mágico”.

O costume de se enterrarem os mortos dentro de casa — na capela, que

era uma puxada de casa — é bem característico do espírito patriarcal de coesão

de família. Os mortos continuam sob o mesmo teto que os vivos. Entre os santos

e as flores devotas. Santos e mortos eram afinal parte da família (FREYRE, 2005:

38).

Em vista do que expusemos nos capítulos anteriores, entendemos que a

ausência de um corpo sacerdotal bem consolidado, formado num contexto de

isolamento do mundo em que idéias valeriam mais que o “mundo”, o que permite

a formação de uma “tensão” com o mundo, fez com que a religião perdesse

bastante a sua força sobre a condução da ação social no Brasil. Neste quadro de

ausência de tensão com outras esferas da ação, a religião tem seu papel

restringido a adaptar-se sua linguagem e discurso às demandas de outras esferas

da ação: por exemplo as esferas política e econômica. Com efeito, cria-se uma

religião de adaptação ao mundo incapaz de transcender as imposições imediatas

do “reino das necessidades”63. Na religiosidade mágica que aqui se instaurou os

santos e os ancestrais mortos (espíritos) cuidavam apenas de problemas

cotidianos e das demandas imediatas voltadas para “este mundo”64.

Ainda sobre a neutralização do universalismo ético no Brasil, um outro fato

de nossa história é emblemático, a saber, a expulsão dos Jesuítas. A empresa

jesuítica nas terras brasileiras representava a única possibilidade da instauração

63 Como exemplo poderíamos mencionar a avidez por riquezas do colonizador, em especial o senhor de terras não encontrou um conjunto de idéias-valores que pudessem lhe impor qualquer empecilho. 64 Varias passagens do livro “Casa-grande e Senzala”, de Gilberto Freyre, demonstram esse cenário: Abaixo dos santos e acima dos vivos, ficavam os mortos, na hierarquia patriarcal, os mortos, governando e vigiando o mais possível a vida dos filhos, netos, bisnetos. Em muita casa-grande conservam-se seus retratos no santuário, entre as imagens dos santos, com o direito à mesma luz votiva de lamparina de azeite e às mesmas flores devotas. . .(2005: 40) . . . os santos e os anjos só faltando tornar-se carne e descer dos altares nos dias de festa para se divertirem com o povo; as mães ninando os filhinhos com as mesmas cantigas de louvar o Menino-Deus; as mulheres estéreis indo esfregar-se, de saia levantada, nas pernas de São Gonçalo do Amarante; os maridos cismados de infidelidade conjugal indo interrogar os “ rochedos dos cornudos” e as moças casadouras os “rochedos do casamento”; Nossa Senhora do Ó adorada na imagem de uma mulher prenhe (2005: 84).

79

de um tipo de religiosidade que ameaçasse a tendência mágica reinante, e isso

se dava por dois aspectos principais: o primeiro deles se refere à alta formação

intelectual de grande parte dos jesuítas que vieram para o Brasil, configurando

uma classe sacerdotal autêntica com todo um treinamento prévio de isolamento

do mundo e conseguintemente perseguição de valores para além das

necessidades imediatas; o outro aspecto, que figura com demasiada importância,

se refere ao tipo de formação específica da ordem jesuítica. Em traços largos,

poderíamos dizer que os jesuítas são os “calvinistas do catolicismo”. Essa

afirmação se sustenta na formação de estilo militar da ordem jesuíta, o que a

difere das outras ordens católicas; enquanto as ordens monásticas católicas

dirigiam sua ação para “fora do mundo”, os jesuítas tinham um projeto de

conquista do mundo para Deus, muito semelhante o modelo de vida dos

protestantes calvinistas. A empresa jesuítica no Brasil tinha um projeto de criação

de uma sociedade cristã-católica nos trópicos, nos moldes de uma construção de

um “paraíso na Terra”. Isso implicava em um projeto pedagógico a ser aplicado

aos gentios e habitantes do “novo mundo” em que os valores cristãos pudessem

ganhar eficácia no corpo da nova sociedade.

Todo esse projeto ia de encontro aos principais interesses tanto da coroa

portuguesa, quanto da parte da classe dirigente econômica da colônia (senhores

de terras); em vista disso a expulsão dos jesuítas do Brasil tornou-se inevitável,

não somente porque estes criaram um “Estado” dentro do Estado português, e do

ponto de vista material em que rivalizavam economicamente com a coroa

portuguesa, mas também porque os jesuítas tinham um projeto civilizacional de

fortes conteúdos éticos que desafiavam os interesses vigentes.

Quanto a esse aspecto histórico-sociológico, o exame da realidade

japonesa mais uma vez aparece como ferramenta importante de análise no que

tange a comparação com o processo de modernização brasileiro. Da mesma

forma que, como narra Eurico dos Santos a respeito da expulsão dos Jesuítas no

Brasil decretada pelo Marques de Pombal, estaria relacionada a um projeto de

magicização da religiosidade brasileira para fins político-econômicos, uma das

medidas de Yeasu Tokugawa65 que visou solidificar seu poder e inibir ameaças

65 Fundador da dinastia Tokugawa que unificou o Japão em um Império.

80

externas e internas foi também a expulsão dos jesuítas do território japonês. O

seu sucessor, Yemetsu Tokugawa, também teve problemas com o que restara do cristianismo no Japão. Mesmo perseguindo e condenando os cristãos à morte,

Yemetsu se deparou com uma revolta camponesa em que o substrato moral-

ideológico era o cristianismo (a maior parte dos camponeses envolvidos e líderes

da revolta eram cristãos). Esta revolta foi o único movimento político significativo

em todo período Tokugawa, o que atesta em parte o potencial reflexivo existente

nas religiosidades éticas.66

No entanto, a análise da dinâmica dos interesses não esgota a

compreensão da supremacia da magia na religiogênese brasileira; outros fatores

se apresentam com sua devida importância. Além da tradição mágica enraizada

nos indígenas e africanos, elemento que poderia ser vencido a partir de uma

cruzada contra a magia como ocorreu em outras sociedades, um outro aspecto

merece destaque: as condições histórico-geográficas. As sociedades que

experimentaram um distanciamento das concepções mágicas do mundo tiveram

em comum o desenvolvimento de uma classe urbana, que na maioria das vezes

foi a base social de uma concepção desmagificada do mundo. O ponto que

queremos destacar neste momento não é simplesmente o da estratificação social,

mas os impactos cognitivos que um universo controlado racionalmente, a urbe

(cidade), tem sobre as pessoas que vivem nela. A não urbanização é um aspecto

central para se entender uma concepção mágica de mundo, pois a partir da

urbanização transformou-se radicalmente a relação do homem com a natureza. A

cidade representa um relativo controle sobre a natureza, o que por seu lado

confere uma maior segurança do homem frente à a esta. Se na floresta ou no

campo o homem tem apenas uma atitude passiva frente à natureza, conferindo

sentido aos seus movimentos através de um pensamento mágico, é na cidade

que as possibilidades de se dar um sentido racional ao mundo são amplamente

potencializadas67. A respeito disto argumenta Freyre: Medo que nos comunica o

fato de estarmos ainda tão próximos da mata viva e virgem e de sobreviver em

nós, diminuído mas não destruído, o animismo indígena (2005: 201).

66 Cf. The Secret Empire of Japan. 67 Cf. capítulos II e IV.

81

Em virtude de todo este quadro desenvolveu-se aqui tal intimidade e

proximidade com os santos e as divindades que nos privou do aprendizado

gerado em uma relação em que o Deus está apartado do mundo cotidiano através

de uma barreira intransponível como ocorreu em sociedades que se constituíram

assentadas em religiosidades éticas, como é o caso de grande parte da história

do ocidente moderno. Esse aprendizado foi fundamental para a formação e o

funcionamento das instituições modernas, como já afirmamos anteriormente e

discutiremos a seguir.

A magia e a modernidade

A presença de referenciais mágicos em uma sociedade orientada por

valores e instituições modernas gera contradições que desafiam a investigação

sociológica. A proximidade e a pessoalidade presente na relação entre deuses e

homens na religiosidade mágica vão de encontro à distância e a impessoalidade

exigidas para o funcionamento das instituições modernas; as demandas

concretas e as metas de curto prazo contrapõem-se às necessidades de valores

abstratos e, por conseguinte, as metas a longo prazo. Analisaremos abaixo

algumas dessas contradições, mas antes apresentaremos um caso que é

exemplar em nossa discussão.

Uma missa campal ocorrida nas escadarias do Fórum da cidade de

Campos dos Goytacazes no estado do Rio de Janeiro em 2004, em virtude da

visita da imagem de Nossa Senhora de Fátima, aparece como emblemática em

relação a convivência entre componentes mágicos e instituições modernas no

Brasil. A missa reuniu centenas de pessoas que entre outras coisas estavam ali

para agradecer e pedir favores de natureza mágica. Muitas destas pessoas

estavam emocionadas diante da presença da imagem68; uma senhora não

continha as lágrimas ao pedir à imagem da santa que lhe curasse as inúmeras

dores no corpo, outra pedia saúde e riqueza. Entre as pessoas entrevistadas,

nenhuma demonstrou qualquer interesse mais voltado para promessas de

68 Mesmo que o discurso oficial da igreja católica afirme que as imagens de santos são apenas para um exercício espiritual da fé, o catolicismo popular atribui à própria imagem e, não ao que ela representa, poderes de natureza mágica.

82

salvação, no sentido das religiosidades éticas, mas estavam interessadas na

solução de problemas imediatos e práticos da vida cotidiana. Por outro lado,

destacava-se a arquitetura imponente do Fórum, uma cópia do Parthenon

ateniense, que nos lembrava dos valores racionais e éticos do ocidente, e

sobretudo, o Fórum como símbolo de um sistema racional de justiça que se

orienta por valores impessoais tipicamente modernos.

Com efeito, nos distanciaremos das descrições de exemplos para analisar

as contradições basilares entre os tipos ideais puros da cognição mágica e os

padrões ideais de funcionamento do mundo moderno ocidental, procurando fazer

breves apontamentos a respeito do processo de modernização brasileiro.

O ideal de sujeito capaz de interagir nos sistemas modernos (democracia

representativa, estado de direito e etc) exige componentes cognitivos avessos ao

monismo mágico. O dualismo substantivo existente entre corpo e mente

(elemento transcedente) que nos permite conceber que para além do corpo existe

um sujeito portador de idéias e valores abstratos e, por conseguinte também

portador de direitos, se choca com o monismo típico da cognição mágica, onde o

corpo tende a ser a única entidade concebida. A base de grande parte dos

valores modernos como: igualdade de direitos, tolerância à diferença, debate de

idéias como atividade independente da pessoalidade, relações impessoais, em

geral sendo essas o fundamento do direito e da política, entre outros, estão

diretamente relacionados à idéia que para além do corpo existe uma entidade que

é portadora de todos esses valores abstratos. A união entre um conjunto de

valores abstratos e um sujeito dual que é em parte depositário desses valores

constitui a essência da idéia moderna da categoria abstrata de “indivíduo”69 70.

69 A aquisição dos direitos civis, tão propagada como um marco da modernidade que tem seu ponto de destaque na Revolução Francesa é fruto de uma revolução anterior, sem a qual a segunda não seria possível. A revolução de que falamos é a valorativa-cognitiva ocorrida na socialização religiosa do ocidente que encontra seu ponto de maior destaque e também influência no protestantismo ascético, conforme narramos no capítulo IV. 70 Poderíamos afirmar que a modernidade constitui dois tipos de dualismo, um deles em que a parte abstrata existe para além do corpo (para fora) e outro em que esta parte abstrata existe para dentro. Podemos afirmar também que o primeiro é o dualismo do ascetismo, sendo que o existir para fora representa os direitos civis do indivíduo; já o segundo é o dualismo místico em que o existir para dentro representa a sensibilidade e a reflexividade. A noção de um monismo corporal se aplica àqueles sujeitos impossibilitados de conceber um dualismo nos outros e sobretudo em si mesmos, que se aplica tanto na dinâmica política (em um não reconhecimento de idéias abstratas na esfera pública) quanto na divisão do trabalho em que certos indivíduos só tem o corpo como força de trabalho.

83

Na cognição de mundo concebida pelo monismo mágico a tendência a

reconhecer apenas o corpo enquanto unidade substancial, e isto devido a sua

natureza concreta, torna-se um empecilho à concepção de “outros” entes desprovidos de corpo, ou seja, não há a concepção de um “outro generalizado”.

Logo, o “outro” são apenas aqueles “corpos” que dividem os espaços comigo e as

únicas formas de relação existentes e possíveis são as pessoais. Minha família,

meus vizinhos e outros mais próximos formam a categoria de “outro”, que só pode

ser entendido como “outro concreto”. A idéia de um “outro” como categoria

abstrata - inexistente enquanto experiência concreta - que eu devo respeitar a

partir de valores abstratos, não é cognitivamente acessível71 72.

Nesta lógica, a idéia de violar direitos de alguém só é entendida como tal

quando existe agressão física visível, ou seja, quando o corpo é lesado, como

também a ausência de uma esfera abstrata impessoal compromete a tolerância à

diferença. Alguns estudos importantes como o realizado por Eurico dos Santos no

livro “Política e Valores” demonstraram através de pesquisa empírica como as

camadas sociais mais sujeitas à orientação mágica tendem a ter padrões morais

pouco tolerantes com a diferença.

O monismo enquanto categoria pura também não permite a percepção que

uma determinada pessoa (leia-se “corpo” dentro desta lógica) possa ser apenas a

representante de um conjunto abstrato de princípios e idéias que existem para

além dela, simplesmente porque carece desta abstração. O corpo é sempre visto

como uma unidade absoluta, restringindo as relações à pessoalidade. Logo o

candidato na esfera política é uma pessoa que pode resolver meus problemas de

ordem sempre imediata. Mais uma vez valores impessoais para solucionar

problemas de ordem coletiva que exigem medidas de longo prazo não são

concebidos. De acordo com as discussões que empreendemos no capítulo IV,

constatamos que a não concepção de um sistema abstrato circunscreve a ação à

71 A discussão sobre a aquisição de categorias avaliativas abstratas, em especial a noção de um “outro generalizado”, possui outras importantes fontes explicativas (como tratei no anexo); no entanto, neste momento a analisamos apenas do ponto de vista que nos interessa agora, a saber, as etapas cognitivas. Neste capítulo analisamos apenas como a idéia de um “outro generalizado” torna-se parte do horizonte cognitivo do grupo social e não como o sujeito incorpora essa noção, como é feito no anexo. Para mais detalhes ver Mead, George Herbert. 72 Este hipótese foi parcialmente comprovada nas entrevistas da pesquisa “A construção social da sub-cidadania” realizada em Campos dos Goytacazes no ano de 2005, em que determinados setores sociais apresentavam dificuldade da concepção da categoria abstrata de “outro”.

84

apenas a necessidades práticas imediatas, dificultando assim a concepção de

metas em longo prazo que, por seu lado, exigiriam uma confiança em valores

abstratos. O abismo intransponível entre o homem e a divindade, típico das

religiosidades éticas, é o gerador do aprendizado de confiança em valores

abstratos e impessoais de que carece a cognição mágica do mundo.

Ainda sobre a concepção de sujeito na magia, toda a noção de

individualismo moderno percebendo o sujeito como uma unidade autônoma capaz

de tecer juízos e ser responsável por seus atos não é completamente articulada.

. . . por seu turno, a percepção das condições subjetivas desenhará um

sujeito heterônomo, com dificuldade para orientar-se em um mundo objetivo ao

mesmo tempo mecânico (a magia sempre pressupõe causalidade mecânica em

um Cosmos em que tudo está ligado a tudo) e caótico (porque os mecanismos

mágicos são, paradoxalmente, acionados por manipulações individuais

diferenciadas, segundo a diferente concentração de força) (SANTOS, 2000: 91).

Sejam os acontecimentos de qualquer natureza, sempre são atribuídos a

motivações pessoais e não a sistemas impessoais. Todos os problemas e

questões se resolvem a partir de arranjos pessoais devido a ausência de

concepção de sistemas impessoais. As concepções de sistemas impessoais,

como a representação de natureza elaborada pela ciência moderna e a noção de

Estado moderno, encontram na idéia de um Deus distante e inatingível (Deus

indiferente a problemas cotidianos e as coações mágicas ou barganhas

“espirituais”), parte de seu fundamento73. Este fundamento está ausente na

cognição mágica, cujos deuses nos concedem favores de natureza pessoal, onde

todos os problemas, seja a falta de chuva ou a disputa com um inimigo ou a

atenção de uma mulher, se resolvem com arranjos pessoais entre o homem e a

divindade.

O sistema político moderno, que está baseado na noção de uma esfera

que envolve sobretudo disputa de idéias, fica comprometido quando as relações

humanas se estabelecem apenas de modo pessoal. Na interpretação típica ideal

73 Para mais detalhes ver capítuloIV.

85

da magia, o Estado é uma fonte inesgotável de benesses, o político é o

interventor que distribui essas benesses mediante barganhas em que o voto e a

bajulação são moedas de troca de destaque. Se não há a noção de uma esfera

abstrata de valores em que se escolhe racionalmente um conjunto de idéias e

princípios, a política tende a tomar outros contornos que diferem do modelo ideal

moderno. O clientelismo e o populismo, modelos de prática política típicos da

América Latina, ilustram com clareza esse esfera política das sociedades

modernas periféricas em que a magia é um componente cognitivo de significativa

presença.

Nessas relações híbridas entre instituições modernas e cognição mágica

encontramos exemplos de indivíduos que acionam advogados para defender seus

direitos, mas sem confiar que seu pedido será avaliado por um sistema impessoal

que opera a partir de códigos também impessoais de justiça, cuja figura do

advogado é apenas um operador deste sistema. Na lógica da magia, confia-se

apenas na pessoa do advogado que conseguirá ou não a deferência do pedido

dependendo unicamente de suas “forças” ou do seu “mana”, de forma semelhante

concebe-se que um deus mais forte que outro garantiria a vitória de meu grupo

em uma batalha. A noção de uma autonomia moral individual é mais uma vez

comprometida, pois mesmo que as relações se operem pessoalmente, a

incapacidade de apreensão intelectual de um sistema abstrato coloca o indivíduo

em uma situação em que ele se sente apenas como um joguete de forças

mágicas as quais ele não controla.

Independentemente da noção de indivíduo concebida e das formas de

relação pessoal dela decorrentes, a maneira pela qual a ação se estrutura

concomitantemente com a formação das instituições de uma sociedade é de

fundamental importância para entender as comparações que ensejamos neste

trabalho. A importância da elevação de certos conjuntos de idéias ao posto de

sagradas, sendo que estas valeriam mais que o mundo concreto, como ocorreu

na história ocidental, permitiu o surgimento de determinadas instituições que

foram fundamentadas e legitimadas por certos conjuntos de idéias-sagradas. A

respeito deste ponto, uma decorrência da religiosidade ética se apresenta como

nodal para entender o desenvolvimento da ação e conseguintemente da formação

e funcionamento das instituições modernas: nos referimos às “rejeições religiosa

86

do mundo”. Como tratamos nos capítulos III e IV, as ”rejeições religiosas do

mundo” consistiram num processo (que ocorreu tanto no ocidente como no

oriente) em que o aumento da autonomização da esfera religiosa (detentora

privilegiada da configuração do quadro geral de idéias sagradas) gerou uma

crescente tensão em relação às outras esferas da ação, muito especialmente a

esfera econômica. A partir deste evento a ação passou a ser direcionada por um

conjunto de idéias-valores que também envolviam normas para a ação. Desse

modo entravam em conflito direto com a simples adaptação as demandas

impostas pela natureza e com os interesses imediatos da vida prática74, algo

impossível de ocorrer anteriormente a transformação de certas idéias em

sagradas. Essa dinâmica foi de suma importância na geração de um aprendizado

social que em nome da confiança em valores abstratos se abria mão da

satisfação imediata e descompromissada das necessidades75. Um importante

exemplo a respeito disso foi a condenação do lucro na religiosidade asiática

impedindo o desenvolvimento do capitalismo em uma sociedade como a chinesa,

que entre outras vantagens possuía um sistema burocrático organizado que, a

princípio, facilitaria o desenvolvimento capitalista, no entanto valores religiosos

agiram como empecilho para tal empresa (WEBER, 2001).

No caso que mais nos interessa, ou seja, o ocidental, vimos anteriormente

que determinadas transformações no seio da religião foram importantes para o

surgimento do sistema capitalista. Entretanto estas transformações também foram

decisivas para a formulação de valores que futuramente entrariam em conflito

com a lógica do mercado76.

A noção de universalismo ético desenvolvida no cristianismo é o pilar sobre

o qual estão assentados a idéia de igualdade elaborada na modernidade e

conseqüentemente a formulação dos direitos civis, sendo estes universais e

inalienáveis. A conquista e a permanência dos direitos civis típicos da

74 Cf. Capítulo IV. 75 Isto não quer dizer que a satisfação das necessidades não importavam mais, mas sim que estas não influenciariam a ação livremente, agora teriam idéias-valores em competição pela o direcionamento da ação social. 76 A famosa frase de Weber que diz: “o protestante escolheu ter uma vocação, nós somos obrigados a tê-la” ilustra com clareza que o mercado capitalista no século XIX não necessitava mais dos suportes cognitivos oriundos do protestantismo ascético para legitimar e embasar valorativamente a sua existência. O mercado capitalista já encontrava suas forças em si mesmo e passou a ser determinante da orientação da ação e os valores do mundo.

87

modernidade ocidental são também resultado desta dinâmica que narramos. O

que atesta isto é que a internalização de valores universais por grande parte de

uma sociedade é um impedimento para que a lógica particularista se instale, e

que interesses de um pequeno grupo se sobreponham sobre toda uma sociedade

sem encontrar resistências.

Foi em virtude destas conquistas que a exploração do trabalho no sistema

capitalista encontrou barreiras. A concepção de uma ética universalista, até então

inédita na história, agiu como o substrato moral-valorativo das lutas trabalhistas

como também serviu de impedimento para a construção de uma categoria de

pessoa inferior a tal ponto que esta última só teria a contribuir para sociedade

com sua força de trabalho, ou seja, com o corpo. A concepção de uma esfera

moral autônoma, baseada naquilo que tratamos anteriormente como a separação

entre o mundo profano do “ser” e o mundo sagrado do “dever ser”, permitiu que

idéias-valores entrassem em tensão com interesses econômicos, aspecto este

que não notamos na história brasileira.

O exemplo da trajetória brasileira segue um caminho oposto ao que foi

narrado nos parágrafos anteriores. A supremacia da magia em nossas terras nos

aprisionou em um quadro de carência de “tensões com o mundo”, e logo, de não

aprendizado social e valorativo que esta dinâmica social oferece. Desse modo

nos restou uma dinâmica contrária àquela da “tensão com o mundo” oferecido

pelas religiosidades éticas, a saber, um racionalismo de “adaptação ao mundo”,

típico das concepções representativas da cognição mágica. Este modelo

primeiramente serviu ao proto-capitalismo característico de nossa economia

colonial. A respeito disso o exemplo mais significativo e central é a construção

social do escravo como um artifício para atender os interesses econômicos da

metrópole e da elite colonial. É neste sentido que o universalismo ético do

catolicismo teve que ser adaptado no Brasil, como afirmamos anteriormente.

Nossa história colonial é marcada pela adaptação aos interesses comerciais e

políticos da metrópole e da elite colonial sem que nenhuma esfera da ação

apartada de interesses econômicos e políticos oferecesse obstáculos de maneira

mais significativa, e que pudesse entrar em tensão com os interesses e valores

88

vigentes77. As esferas do poder e do dinheiro não encontraram a sua frente uma

esfera religiosa autônoma e bem consolidada pra servir de obstáculos aos seus

interesses, formando assim um dinâmica pedagógica para a ação como ocorreu

em outras sociedades. A religião oficial operou tendencialmente ora a serviço do

Estado português ora dos interesses da elite econômica no Brasil colônia78.

No entanto é no Brasil moderno e capitalista que esses impactos se

apresentarão com maior evidência. Se no Brasil colonial o contexto mágico

avesso à noção de universalismo ético permitiu a construção de um tipo humano

inferiorizado, desprovido de alma, restando-lhe apenas o corpo e assim

justificando a escravidão, é na modernidade brasileira que o não aprendizado

social fruto da carência de esferas de “tensão com o mundo” permitirá ao

capitalismo uma penetração livre de ameaças. Os interesses econômicos do

capitalismo nascente no Brasil não enfrentaram conflitos morais significativos que

abalassem a sua empresa; a elaboração de uma sub-gente para atender as suas

necessidades não significou grandes conflitos. Uma vez que não havia tensões

entre as esferas da ação instaladas, o caminho para a naturalização de uma

desigualdade entre categorias de pessoas estava aberto79 80.

Os pontos analisados nos parágrafos anteriores não pretendem esgotar ou

mesmo apresentar definitivamente as contradições que acreditamos ser geradas

por concepções de mundo diferentes, como acontece entre a concepção

representativa da cognição mágica e a concepção ideal típica do mundo moderno

ocidental, mas apenas trazer ao debate uma apreensão da modernidade

brasileira, assentada em seus aspectos valorativos-cognitivos.

Considerações finais

77 A Inconfidência Mineira é um caso exemplar a respeito desta discussão. Neste episódio da história brasileira a presença valores universalistas assentados no humanismo iluminista não foi o principal substrato moral da revolta, como corriqueiramente é interpretado. Mas por outro lado, a principal motivação deste movimento foram os interesses econômicos particularistas de uma elite colonial falida. 78 Quanto a este ponto destacamos a valiosa contribuição da socióloga Ângela Paiva no seu livro Católico, protestante, cidadão: uma comparação entre Brasil e Estados Unidos. A autora demonstra que, diferentemente do caso brasileiro, nos E.U.A a separação entre Estado e Igreja aliada a variabilidade das denominações religiosas, foi fundamental para o aprendizado político daquela nação. 79 Cf. SOUZA, Jessé. A construção social da sub-cidadania. 80 O recente capitalismo chinês possui semelhanças com o processo brasileiro. A brutal exploração do trabalho na China é reflexo da penetração do sistema capitalista sem que os valores que nasceram com o capitalismo no ocidente fossem compartilhados.

89

A questão weberiana relativa ao surgimento do capitalismo no ocidente

(“por que o capitalismo surgiu no ocidente?”) bem como a questão desenvolvida

por N. Bellah a partir de Weber, referente à implantação do capitalismo de

sucesso num país eivado de magia e tradicionalismo como o Japão, a nosso ver,

também pode ser colocada relativamente à realidade brasileira, enquanto um

meio de investigação de nossa modernização. No caso brasileiro, podemos

perguntar como foi possível o desenvolvimento de instituições modernas num

país perpassado por orientações mágicas, isto é, podemos nos direcionar para a

pergunta mais fundamental: como foi possível a implantação de um capitalismo

de sucesso no Brasil, em que as concepções mágicas do mundo foram um

componente decisivo relativamente aos aspectos valorativo-cognitivos.

De acordo com o nosso empreitada nesta dissertação, o caminho

weberiano que almejamos trilhar e, ao mesmo tempo construir, se faz a partir de

um olhar que busca enxergar e analisar não somente os aspectos concretos de

nossa história, mas sim uma postura que nos permita analisar a gênese e o

desenvolvimento da oferta dos conjuntos de valores, e conseqüentemente de

visões de mundo, oferecido no “mercado de valores” da sociedade brasileira.

Acreditamos que, o sucesso econômico e a construção diferenciada de categorias

de pessoas, estão fundamentas e sustentadas em um determinado conjunto de

valores, sendo que estes muitas vezes se apresentam de forma contraditória,

porém não impedindo o funcionamento da sociedade brasileira. O nosso desafio

na análise de nosso quadro valorativo visa compreender a mecânica do

funcionamento e do convívio dos valores contraditórios de nossa sociedade (que

na maioria das vezes estão encobertos). Acreditamos que o estudo e

entendimento das fontes “mágicas” enraizadas em nossa cultura pode ser um

eficaz caminho par alcançar este objetivo.

Em vista do que apresentamos neste ensaio, em que tomamos a religião

como a principal fonte que oferece novos horizontes morais e cognitivos,

tendemos a pensar que a ausência significativa de determinados conjuntos de

valores (no caso em questão aqueles provindos das religiosidades éticas) nos

privaram de certos aprendizados sociais e políticos. A socialização religiosa

orientada por concepções mágicas que influenciou uma parte considerável da

90

nação brasileira, foi uma das as principais fontes de nosso processo singular de

modernização. Em vista disso acreditamos que esta dissertação se configura

apenas como uma contribuição preliminar para trabalhos de maior fôlego que

devam se concretizar no futuro, aos moldes de uma profunda exegese do

desenvolvimento de cognitivo e valorativo que sustentou o desenvolvimento de

nossa sociedade, comparáveis aos trabalhos de Weber em relação ao Ocidente e

de Bellah em relação ao Japão.

91

Anexo

92

Religião e Reconhecimento: afinidades entre o movimento neopentecostal e

comportamento político no Brasil81

Introdução

Nos últimos vinte anos o Brasil tem passado por transformações sem

precedentes no que diz respeito ao delineamento do panorama religioso, tanto no

que se refere à filiação religiosa quanto à forma de atuação das principais

religiões no Brasil. O surgimento de novos quadros transformou radicalmente o

cenário religioso no país. Essas transformações tratam-se do terceiro movimento

de expansão das religiões pentecostais no Brasil (como denomina a literatura

especializada), tendo surgido inicialmente na década de “70” e que tem se

mostrado cada vez mais vigoroso, arrebanhando um número impressionante de

fiéis, alterando substancialmente o modus operandi das religiões no Brasil, e

fazendo com que outras religiões assumam parte de seu discurso e de sua

ideologia, sendo identificado pelo signo de neopentecostalismo.

Essa mudança, como já mencionamos, se estende quantitativa e

qualitativamente. No Brasil, não seria necessário recorrer apenas aos índices do

IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) para notar o aumento

expressivo dos evangélicos, como também o aumento de novas denominações

religiosas que estão diretamente relacionadas ao movimento neopentecostal. É

também o vertiginoso aumento da exposição na mídia de um determinado e novo

“gueto cultural”: a cultura gospel, presente na música, em camisas, adesivos, e no

comportamento em geral. Vale notar que embora nem de longe sendo

hegemônica ou um modismo generalizado, a cultura gospel representa uma

significativa fatia de mercado da industria cultural, possuindo gravadoras,

editoras, canais de rádio, e televisão próprios. Finalmente, enfatizamos que o

aspecto determinante dessas transformações é a nova linguagem religiosa

difundida por este movimento, que vem influenciando outras religiões até mesmo

81 Este anexo é a versão em português do capítulo Religion und Anerkennung: Affinitäten zwischen neupfingstlicher Bewegung und politischem Verhalten in Brasilien publicado por mim em co-autoria com Roberto Dutra Torres Júnior no livro Das Moderne Brasilien: Gesellschaft, Politik und Kultur in der Peripherie des Westens .

93

fora do conjunto denominado protestante, sendo que o exemplo mais notório é o

movimento carismático na Igreja Católica, que absorve grande parte do discurso e

da prática do neopentecostalismo.

O pentecostalismo

O chamado pentecostalismo surge nos Estados Unidos no início do século

XX e é em grande parte herdeiro da Reforma Protestante do século XVI. É o

último dos três grandes movimentos da Reforma, a saber, o Puritanismo, o

Metodismo e o Pentecostalismo. Seu surgimento delineia-se nos moldes de uma

reforma dentro do projeto de Reforma Protestante Puritana, sendo em alguns

aspectos centrais de sua mensagem religiosa diferem claramente daquelas

posições defendidas pelas igrejas e seitas que surgiram com a Reforma. Talvez o

ponto mais significativo a esse respeito seja a forte ênfase que o pentecostalismo

concede desde seu nascimento até na contemporaneidade aos chamados dons

do Espírito Santo. Como herança direta do metodismo Wesleyano e do

movimento dos holiness os pentecostais pregam, baseados em Atos 2, que

Deus,, através dos atributos carismáticos do Espírito Santo como o de falar em

línguas estranhas82, o da cura e o de discernir espíritos, age entre os fiéis

curando enfermos, realizando milagres e distribuindo bênçãos espirituais e

materiais. No entanto, a expansão do pentecostalismo constitui um fenômeno de

alcance mundial, e apesar de ter nascido na sociedade mais rica e desenvolvida

do mundo, espalha-se com muito mais força nos países em desenvolvimento do

sul do pacífico e África83, do leste e sudeste da Ásia e especialmente na América

Latina84. Neste último continente o crescimento do neopentecostalismo vem

sendo alvo das preocupações da cúria romana, pois aí se encontra seu maior

rebanho. Nesses países periféricos as igrejas pentecostais recrutam a maior parte

82 O dom de falar em línguas estranhas remte ao episódio bíblico de Pentecostes, relatado em Atos 2, em que o Espírito Santo, no qüinquagésimo dia da ressurreição de Cristo, teria se manifestado aos apóstolos por meio de línguas de fogo. 83 Cf. Por exemplo LAURENT, Pierre-Joseph. “The Faith-Healers of the Assemblies of God in Burkina Faso: Taking Responsibility for Diseases Related to ‘Living Together’”. Social Compass. 48(3), 2001. p. 333-351. 84 Cf. MARTIN,David. Tongues of fire: the explosion of protestantism in Latin America. Oxford: Blackwell, 1990.

94

de seus fiéis entre os setores rurais mais pobres e especialmente entre as

camadas urbanas de baixa renda e escolaridade.

Segundo o sociólogo Peter Berger, a explosão do protestantismo

evangélico, ao lado do amplo “ressurgimento” do Islamismo em escala mundial,

constituem os dois maiores fenômenos a serem explicados pela sociologia da

religião nos dias atuais85. Para ele, Tal fenômeno religioso já se configura como

algo intrinsecamente ligado às peculiaridades das modernas formas periféricas de

capitalismo, inclusive podendo se postular que “esse tipo de protestantismo

robusto tem conseqüências comportamentais que, em sua maior parte

inintencionais, têm uma afinidade com exigências do nascente capitalismo”.

O Brasil se destaca nesse contexto como o maior país evangélico da

América Latina, possuindo quase que a metade dos mais de 50 milhões de fiéis

de todo continente86. Nesse, que também é o maior país católico do mundo, é

evidente o crescimento das igrejas e do número de evangélicos nos últimos anos.

Há mais de uma década, o Censo Demográfico do IBGE (Instituto Brasileiro de

Geografia e Estatística) de 1991 já constava que 13% da população brasileira era

evangélica. No censo de 2000 esse percentual chega a 15,4%. Desse total, 50%

recebe no máximo 2 salários mínimos mensais (equivalente a cerca de 230

dólares). A pesquisa Novo Nascimento coordenada por Rubens César

Fernandes87 na região metropolitana do Rio de Janeiro em 1990 constatou que

61% recebiam também até 2 salários mínimos e que 42% possuía menos de 4

anos de escolaridade. Em uma outra pesquisa realizada em 1994, o ISER

(Instituto Superior de Estudos de Religião) constatou que o Estado do Rio de

Janeiro é o que possuí o menor número de católicos do País. Os dados

demográficos de 2000 confirmam essa tendência: 57% da população do Estado

do Rio de Janeiro se declara católica, contra 70,8% da população do Estado de

São Paulo, o estado mais católico do País.

O pentecostalismo no Brasil

85 BERGER, Peter, “Reflections on the sociology of Religion Today”. Sociology of Religion. Winter, 2001, v. 62, i. 4 p. 443-455. 86 Ibidem. p. 8. 87 FERNANDES, Rubens César (org). Novo Nascimento. Os evangélicos na casa, na igreja e na política. Rio de Janeiro:MUAD, 1998.

95

A chegada do pentecostalismo no Brasil é quase concomitante com o seu

surgimento nos Estados Unidos, respectivamente 1906 e 1910, quando

missionários fundaram a Congregação Cristã no Brasil. No ano seguinte foi

fundada a Assembléia de Deus. Essas duas denominações representam a

primeira das três ondas expansionistas do pentecostalismo no Brasil, que

classificamos de acordo com os estudos de Ricardo Mariano expostos no livro

Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo brasileiro.

Esta primeira onda expansionista é classificada como clássica, sendo

absoluta entre os anos de 1910 e 1950. Suas características principais se

concentram na sua rejeição radical ao mundo em seu sectarismo, construído

reativamente ao comportamento nas classes centrais da sociedade: rechaçavam

o uso do rádio, de atributos de vaidade que ressaltavam a beleza feminina,

participação em festas e outras atividades que fossem tidas como do “mundo”.

Tendo destaque para suas convicções apolíticas, interpretando todas estas

esferas como seara do próprio diabo. Ainda relacionado com seu modo de vida

reativo ao das classes centrais destacam-se o anticatolicismo. Estas teses eram

sustentadas na crença do iminente retorno do “Senhor Jesus Cristo” e suas

recompensas no “paraíso”. Outro suporte teológico característico da primeira

onda expansionista em comparação com as demais “ondas” é o falar em línguas

estranhas, o “dom das línguas” que já citamos anteriormente.

A segunda onda expansionista, o deuteropentecostalismo, tem como

núcleo difusor o estado de São Paulo, no início da década de “50”. O seu

surgimento não é resultado de uma evolução das igrejas pentecostais clássicas,

mas sim da ação de missionários estrangeiros. Teologicamente, sua novidade se

concentra na ênfase da cura divina, o que lhe conferiu um significativo aumento

de fiéis, transformando o pentecostalismo numa religião de visibilidade nacional,

diferentemente da primeira “onda” cujos pentecostais viviam como parias,

reclusos em suas agremiações e duramente discriminados pelos católicos e pelos

protestantes históricos. O crescimento do número de seguidores, assim como sua

visibilidade é também fruto de sua ação proselitista mais agressiva voltada para

grande massa, utilizando o rádio e grandes cultos a céu aberto como meios

96

principais de propaganda de sua fé. Nesta fase, também há uma fragmentação

denominacional na presente na primeira.

A terceira onda expansionista, denominada aqui neopentecostalismo,

apesar de manter muitas características das “ondas” anteriores, sobretudo da

segunda, em que muitos aspectos são radicalizados traz consigo elementos

totalmente novos notadamente aqueles que se referem à ação da religião no

mundo. O neopentecostalismo tem como núcleo central no Brasil o estado do Rio

de Janeiro. Na década de “70” surgiram as primeiras igrejas desta vertente,

oriundas da ação de missionários norte-americanos que “inovaram” o pano de

fundo moral do cenário religiosa brasileiro a partir da divulgação da Teologia da

Prosperidade. É esta teologia a base do “novo” discurso moral, onde a divindade

manifesta sua força mediante benesses materiais concedidas aos seus fiéis

adoradores. O Deus é colocado como salvador das mazelas “deste mundo”, pois

cura doenças, concede prosperidade econômica e conforto afetivo-sexual aos

seus seguidores. Não se tem mais que aguardar uma existência inteira de

sofrimentos e privações de todas as ordens para somente depois alcançar o gozo

num mundo que transcende a este em que vivemos. Agora os fiéis seguidores

alcançam certos gozos de ordem material que são em parte a comprovação de

que Deus está do seu lado. Pensa esta possibilidade há duas décadas atrás seria

desafiar a divindade aprovar sua força com evidências empíricas diretamente na

vida dos fiéis; ou seja, seria uma atitude inaceitável para o discurso religioso de

então.

Os neopentecostais reinterpretaram o sentido do sofrimento, conferindo-lhe

um valor inédito na história do cristianismo. Ao invés da positividade encontrada

nas grandes teodicéias do sofrimento, tendo no cristianismo a cruz como seu

maior símbolo, o sofrimento agora “volta” a ser o sinal da desgraça, da ira ou do

abandono da divindade em relação a uma determinada pessoa. Em vista disso, a

luta por reconhecimento também toma outra direção. As recompensas projetadas

no “mais além”, no paraíso post-mortem, não são totalmente abandonadas, mas

passam a um segundo plano em virtude do crescimento valorativo das benesses

“deste mundo”. A prosperidade material e, por conseguinte, o acesso ao consumo

das “maravilhas” do mundo moderno, permitindo um gozo “aqui e agora”, são

perseguidos como recompensa por aqueles que servem ao “Senhor”. Não

97

aceitam mais viver como párias nem rejeitar, de forma ressentida o

comportamento das classes dominantes. Buscam o reconhecimento social e

político num mundo que há poucas décadas era rejeitado como “campo do

inimigo”, seara do Diabo. Está última característica revela a oposição que o

neopentecostalismo tem em relação ao momento de surgimento do

pentecostalismo, ou seja, o abandono do ascetismo de rejeição de mundo

característico do período denominado clássico88.

Nesta lógica de entendimento, a figura do diabo também ganha outra

interpretação, assumindo um papel de destaque. É implementada um luta contra

o diabo entendido como o causador de todos os males, tanto de ordem material

quanto de ordem psíquica (espiritual). A figura de Deus, ou como é chamado na

Igreja Universal do reino de Deus, o “Pai das Luzes”, (linguagem nitidamente

oriunda das religiões afro-brasileiras, o que é muito corriqueiro) é agora a força

mágica que liberta os fiéis da ação maligna do diabo e de seus servidores,

concedendo aos seus fiéis, entre outras coisas, benesses materiais.

Se a primeira expansionista pautou-se por uma ferrenha oposição ao

catolicismo, o neopentecostalismo, mesmo condenado os católicos por seus

hábitos como o de beber e fumar, concentra suas forças na oposição radical aos

cultos e ritos religiosos das religiões afro-brasileiras mesmo que muitas vezes

incorpore de forma especular práticas desse tipo de religiosidade.

Por outro lado, algumas inovações se desenvolvem em outros campos de

ação que transcendem o universo tido como o estritamente religioso. Como

exemplo, assistimos à compra de grandes redes de comunicação (emissoras de

rádio e de TV), adotando-se uma estratégia massiva de evangelização como

nunca foi vista antes. Ao mesmo tempo percebemos estas denominações

entrando de forma organizada na vida política, elegendo vereadores, prefeitos,

deputados e senadores, formando um bloco político de pressão relativamente

organizado no poder legislativo, conhecido como “bancada evangélica”. È

implementada a idéia de uma nova cruzada que visaria recristianizar o mundo

pelo “alto”.

88 Este abandono é apenas parcial nas igrejas relacionadas ao neopentecostalismo, mesmo nas mais liberais, como é o caso da Igreja Universal, o consumo do álcool, do fumo, as relações sexuais fora do casamento ou homossexuais são duramente reprimidas.

98

Uma lógica de gerência empresarial nas variadas áreas de ação da igreja

também se destaca como uma das características singulares da terceira “onda”. A

cobrança de dízimos é altamente valorizada como um meio de demonstração de

fé, tornando-se assim um importante pilar dessas igrejas, sendo que algumas

igrejas assumem inclusive fins lucrativos.89

Mesmo ainda existindo até hoje denominações das três fases que

apresentamos, o neopentecostalismo segue como largamente dominante, tanto

numericamente quanto pela influência no modelo de práticas de outras igrejas.

Percebemos que muitas igrejas acrescentam ao seu nome o termo renovadas, o

que representa sobretudo a adesão de práticas relacionadas ao pentecostalismo.

O sectarismo das igrejas do período clássico vai desaparecendo aos poucos; a

competição por fiéis acelera essas mudanças, tornando o neopentecostalismo o

modelo a ser seguido devido ao seu vertiginoso sucesso.

Quadro referente às três ondas expansionistas do pentecostalismo no Brasil

Fases do Pentecostalismo

Surgimento Principais denominações

Principais características

Estrato social dominante

Pentecostalismo clássico

1910 Assembléia de

Deus e

Congregação

Cristã no Brasil

Anticatolicismo; dom

das línguas; crença na

volta iminente de Cristo;

salvação paradisíaca;

sectarismo radical e

ascetismo de rejeição

do mundo.

Pobres, Baixa

escolaridade, que

por sua opção

religiosa foram

discriminados e

perseguidos tanto

por católicos

como por

protestantes

históricos.

89 MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do nove pentecostalismo no Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 1999.

99

Deuteropentecostalismo 1950 (São

Paulo)

Evangelho

Quadrangular,

O Brasil para

Cristo, Deus é

Amor, Casa da

Benção.

Evangelismo de massa

com auxílio do rádio e

cultos a céu aberto;

ênfase teológica na cura

divina; fragmentação

denominacional e

visibilidade nacional.

Pobres, baixa

escolaridade, em

sua maioria

migrantes

nordestinos.

Neopentecostalismo 1970 (Rio de

Janeiro)

Igreja Nova

Vida, Igreja

Universal do

Reino de Deus

e Cristo Vive.

Oposição radical a

cultos afro-brasileiros;

exorcismo (luta contra o

diabo); lógica

empresarial; maior

flexibilidade quanto aos

hábitos (não ascetismo).

Pobres, baixa

escolaridade;

Líderes brancos.

Relevância sociológica do neopentecostalismo

No que se refere a sua relevância sociológica, poderíamos dizer em traços

gerais que o neopentencostalismo se caracteriza como uma genuína religiosidade

das massas, e isso se mostra no seu vertiginoso sucesso nas sociedades do

mundo periférico moderno, em especial a América Latina. O neopetencostalismo

surge como um projeto de cristianismo popular do final do século XX e início do

século XXI, que se adapta a realidade da nova geografia da periferia, ou seja, aos

grandes conglomerados urbanos do mundo periférico. No período da expansão

marítima européia o catolicismo representou este projeto de cristianismo popular

que tolerava as tendências mágicas da massa, sincretizando o catolicismo oficial

com a religiosidade popular de um mundo demasiadamente rural. A novidade do

neopentecostalismo não se refere a sua vertente substancialmente mágica, mas

sim à sua capacidade de elaborar um discurso que atenda ás demandas e

estejam sintonizadas com as visões de mundo da “ralé estrutural”90 das

sociedades periféricas. As afinidades e continuidades entre esses projetos de

cristianismo popular ficam claras quando se analisa o grande sucesso do

neopentecostalismo justamente nas regiões outrora colonizadas pelo cristianismo

90 Cf. SOUZA, Jessé. A construção Social da Subcidadania: para uma Sociologia Política da Modernidade Periférica. Belo Horizonte:UFMG,2003.

100

popular católico, permitindo-nos ver o neopentecostalismo como uma forma

renovada, sobretudo urbana e mais eficaz de cristianismo popular.

Neste trabalho nossa atenção se voltará antes para as continuidades do

que para as rupturas relativas aos traços fundamentais do processo da

modernização brasileira está alicerçado no desenvolvimento cognitivo das

religiões deste país. O conteúdo mágico das igrejas neopentecostais não se

apresenta como novidade no cenário religioso brasileiro, mas sim, apenas o

revigoramento sob uma nova linguagem daquilo que marca a nossa experiência

religiosa, ou seja, o “pensamento mágico”. Procuraremos portanto delinear as

afinidades eletivas existentes entre este traço de nosso desenvolvimento cognitivo

religioso com nossa modernização e, num segundo momento a relação deste

desenvolvimento com o comportamento político e a nova linguagem religiosa

neopentecostal.

A nossa proposta de análise parte da tese do Sociólogo Eurico dos Santos,

que por seu lado foi longamente inspirada na sistematização que Wolfgang

Schluchter faz da obra de Max Weber, ou seja, a elaboração de etapas cognitivas

do desenvolvimento ocidental. Santos afirma a ausência marcante de uma

religiosidade ética na história brasileira. Segundo ele, a nossa história colonial

reflete um ambiente de vasta afirmação de crenças mágicas provindas dos índios,

negros e do medievalismo português.

Minha tese aqui é a de que a história da origem da cultura brasileira não

permite que se observe, em escala sociologicamente relevante, a existência dos

processos socioculturais que configuram a instalação de uma base cultural

dualista. Muito pelo contrário, a observação de nossa história religiosa, em

especial ao longo dos seus primeiros trezentos anos, demonstra reiteradas e

variadas vias pelas quais aqueles elementos mais abstratos da cultura, que

fundam a possibilidade da elaboração de regras mais concretas, vão formando a

imagem de um mundo monista-mágica. 91

91 SANTOS, Eurico G. C. dos. Política e Magia (na cultura brasileira e) no Distrito Federal.

In:_______ARAÚJO, Caetano E. P. de . . .[et. al.] Org. Política e Valores. Brasília, Ed. UnB, 2000. p. 96.

101

Por conseguinte, o pentecostalismo só vem reiterar a ausência na

sociedade brasileira de uma ética religiosa que contribuísse para o aprendizado

moral, político e social de nossa “ralé estrutural”, a qual, desde a abolição do

regime escravista no final do século XIX, foi lançada à própria sorte num contexto

onde a obtenção de recursos cognitivos para interagir com valores e instituições

impessoais tornou-se cada vez mais uma questão de sobrevivência material e

simbólica em toda a sociedade. O excelente estudo de Ângela Randolpho92

comparando o papel que a religião desempenhou no Brasil e nos Estados Unidos

com relação à criação de condições para que os seguimentos marginalizados

pudessem, de fato, se tornar cidadãos, confirma a importância da dimensão

religiosa no aprendizado de valores e na obtenção de recursos cognitivos e

avaliativos necessários ao exercício jurídico e político da própria cidadania.

Nos Estados Unidos, a pluralidade de denominações e seitas protestantes

quiseram e conseguiram patrocinar, através dos Great Awekenings e das ações

missionárias ocorridos a partir de meados do século XVIII, um aprendizado

coletivo à margem do poder Estatal, que forneceu aos negros libertos da

escravidão apoio não assistencialista para se inserirem autonomamente nas

relações impessoais e na luta política. Um exemplo concreto disso viria a se

manifestar somente mais tarde no Movimento Pelos Direito Civis que, a partir da

década de 1950, representou uma inédita vitalidade política que gerações

descendentes de ex-escravos alcançaram comparativamente às gerações

anteriores. Fundamental em todo esse processo foi o duro – mas indispensável –

aprendizado de uma linguagem moral que permitisse ultrapassar a simples

violência como forma de protesto. Foi preciso que as diversas igrejas

protestantes assumissem o compromisso de fornecer uma linguagem moral à luta

dos negros para que eles conseguissem dispensar o recurso à violência como

forma de obter visibilidade pública.93 As igrejas protestantes norte-americanas

cumpriram não só o papel de fornecer um contexto de “encorajamento” e de

minimização das ansiedades e dos medos que freiam o aprendizado e o

engajamento político, mas também viabilizaram algo que inexiste no movimento 92 PAIVA, Ângela Randolpho. Católico, Protestante, Cidadão: Uma Comparação entre Brasil e Estados Unidos. Belo Horizonte: UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2003. 93HONNET, Axel. Invisibility: on the epistemology of ‘recognition’. http://www.ifcs.ufrj.br/cefm/textos/HONNETH.DOC , acessado em 09 de junho de 2004, 00: 12h

102

pentecostal e neopentecostal brasileiro: disponibilizar nesse mesmo contexto uma

linguagem religiosa que permita aos crentes incorporar e internalizar esquemas

cognitivos e avaliativos suficientes para que eles possam tomar posições políticas

autônomas e não personalistas. Segundo a própria autora, “a esfera religiosa é

capaz de promover não apenas liberação individual, mas também uma orientação

para a solidariedade social através do amor impessoal.”94 Estamos convictos que

é precisamente este segundo componente – essencialmente ético – que falta no

novo protestantismo de massas urbanas que nas últimas décadas vem se

mostrando como um fenômeno sociológico típico de sociedades modernas

periféricas como o Brasil.

No caso brasileiro, a política tem sido influenciada pela religião de uma

forma bastante diferente. Aqui, ao invés do aprendizado coletivo extra – estatal,

tivemos – e ainda temos – uma religiosidade que buscou predominantemente

estabelecer sua influência dentro do próprio Estado, inclusive ocupando as mais

altas posições. Essa estratégia jamais levou em consideração a questão do

aprendizado coletivo e, por conseguinte, da construção ou da ampliação da esfera

política apartada do poder formal, compatibilizando-se com práticas clientelistas e

assistencialistas, quando necessárias para chegar ao poder, e não com o

enriquecimento e a emancipação cognitiva da massa.

Aprendizado político e reconhecimento

Na periferia em geral, e no caso brasileiro em particular, teria ocorrido um

processo seletivo de modernização, responsável pela difusão e pela incorporação

diferencial dos valores e da “conduta de vida” ocidental pelos diversos grupos e

classes que constituem a sociedade. Os grupos dominantes, além de serem

beneficiados pela distribuição da renda e dos recursos econômicos, seriam

“suportes” das concepções de mundo ocidentais e individualistas, enquanto os

setores e as classes populares apegam-se ou são atraídos por formas “pré-

modernas” e não individualistas de perceber o mundo e as relações sociais:

Nesse novo contexto, a estratificação social vai ser determinada a partir da

94 RANDOLPHO, Op. Cit, 2003, p. 147.

103

perspectiva de quem contribui para o progresso social segundo uma hierarquia

valorativa cujo suporte social são as classes dominantes.95

No pólo oposto, temos uma enorme “subclasse” que se constitui

historicamente sob a base perversa da inexistência de ambientes de socialização

e de aprendizado moral indispensáveis ao desenvolvimento de uma

personalidade do tipo moderna. Pretendemos aqui chamar a atenção para a

especificidade desse abismo moral e cognitivo característico de uma sociedade

como a brasileira, a partir da forma como isso se reflete e se atualiza no

crescimento das igrejas e seitas pentecostais e neopentecostais descrito acima.

A grande maioria dos fiéis atraídos por essas igrejas e seitas pertence,

como vimos anteriormente, às classes mais pobres e com menor escolaridade de

toda a sociedade. Em um de seus primeiros trabalhos sobre a realidade brasileira,

Jessé Souza tenta demonstrar que estes setores mais despossuídos e menos

escolarizados são os que sustentam e legitimam “atitudes antidemocráticas e

expectativas clientelistas . . .preconceitos contra grupos étnicos e minorias

sociais.”96 Essa “base” de nossa pirâmide social seria, dessa forma, o principal

suporte e fonte de legitimidade de posições políticas conservadoras e autoritárias,

responsáveis tanto pela violação dos direitos e da igualdade formal, como

também por condenar e denegrir reivindicações de auto-determinação individual

no que tange a escolhas próprias nas esferas familiar, do trabalho, religiosa e

sexual.

São também os membros dessas classes que, em sua maioria, se mostram

simpáticos a lideranças políticas “fortes” e capazes de impor a ordem e de fazer

valer os interesses de quem os apóia. O estudo que estamos realizando sobre o

crescimento do pentecostalismo e do neopentecostalismo – do qual esse texto é

um resultado parcial – pretende apreender precisamente a forma como esse “não

aprendizado” dos valores individualistas e democráticos possui fortes afinidades

eletivas (como diria Weber) com uma “linguagem religiosa” característica das

massas que vivem na periferia de nossas grandes e médias cidades. Não se

trata, como muitos autores fizeram, de imaginar essas denominações

95 SOUZA, Jessé. “Modernização Diferencial e Democracia no Brasil: Uma Tentativa Teórico/ Empírica de Interpretação”In: ______. Et all. Política e Valores. Brasília: UNB, 2000b. p. 216. 96 Ibidem, p. 201

104

protestantes como desempenhando uma tarefa similar àquela realizada pelo

protestantismo ascético nos Estados Unidos e na Europa.

O nosso ponto de partida já é o de uma sociedade capitalista, na qual os

valores ocidentais individualistas estão disponíveis e constituem uma

possibilidade para os sujeitos em suas escolhas existenciais e políticas.

Queremos, na verdade, compreender o fenômeno religioso neopentecostal a

partir do modo como ele se articula com a especificidade de nossa estratificação

social, marcada, entre outras coisas, por um aprendizado seletivo e diferencial de

visões de mundo e de orientações normativas que se reflete, por exemplo, no

comportamento político dos fiéis. Esse comportamento pode ser percebido no

contexto mais restrito de instituições (no voto) ou na formação da vontade política

propriamente dita, a qual geralmente extrapola esses contextos mais

institucionalizados. No entanto, a dimensão política é apenas um caminho que

nos permite mapear as razões fundamentais que conferem ao comportamento da

“ralé” um caráter estrutural e generalizante, constituindo uma forma sistemática e

coerente que se reitera nas relações com todas as instâncias do poder impessoal

que é dominante em uma sociedade moderna como a nossa.

O crescimento das igrejas protestantes pentecostais e neopentecostais

parece refletir e ao mesmo tempo constituir o processo seletivo e diferencial de

aprendizado moral e político que singulariza a modernidade brasileira. O caráter

essencialmente “mágico” dessa nova religiosidade de massas urbanas não

favorece a formação de uma leitura e de uma apreensão do mundo baseadas em

um conjunto de orientações éticas e normativas. Dessa forma, os estratos sociais

que, por razões que logo serão frisadas, já possuem uma visão de mundo incapaz

de permitir que a conduta social e política seja orientada por critérios abstratos e

impessoais, não encontram na linguagem religiosa fornecida pelo movimento

neopentecostal uma oportunidade de aprender e de incorporar os novos valores

que vão comandar o referencial normativo que se estabelece com a chegada das

instituições fundamentais do mundo moderno.

O estudo realizado por Eurico dos Santos97 na cidade de Brasília chega a

conclusões que reforçam essa tese. Seu principal argumento é o de que a

97 SANTOS, Eurico Gonzáles Cursino. “Política e Magia(na cultura brasileira) e no Distrito Federal” In: SOUZA, Jessé. et alii(org). Política e Valores. Brasília: UNB, 2000. p. 78-116

105

constituição de uma autonomia individual capaz de assegurar e de legitimar

atitudes políticas tolerantes, flexíveis e anti-personalistas depende da existência

de uma esfera ética que permita aos sujeitos a possibilidade de pautar suas

escolhas políticas e existenciais em princípios abstratos e não somente em

interesses e necessidades imediatas. Segundo ele, não teria se constituído no

Brasil uma esfera religiosa suficientemente autônoma em relação às

necessidades mundanas mais imediatas, de onde pudesse emergir um conjunto

coeso de valores e regras que permitisse o desenvolvimento de um “ego forte e

bem definido”98 capaz de dar suporte a processos reflexivos de formação da

vontade política. Os setores e classes sociais que adotam as posturas políticas

mais individualistas e tolerantes, não só possuem mais escolaridade, como

também não estão inseridos no universo de religiosidade mágica que, atualmente,

encontra no movimento neopentecostal seu principal representante, sobretudo

entre a fração urbana de nossa “ralé estrutural”.

Por outro lado, atitudes mais intolerantes com relação ao ateísmo, ao

homossexualismo, à prostituição e à opção pelo suicídio caracterizam

precisamente as camadas menos instruídas e mais apegadas a uma visão

mágica do mundo. Eurico, assim como nós, está preocupado com as pré-

condições cognitivas e morais necessárias a que ações e escolhas políticas, no

sentido mais amplo possível do termo, sejam pautadas por referencias éticos e

normativos que, por um lado, ultrapassem o padrão personalista e clientelista, e,

por outro, permitam a consideração tolerante e até positiva de particularidades

individuais que não estejam enquadradas nos padrões convencionais de gênero,

sexualidade e religiosidade. São as estruturas éticas objetivas, como enfatiza

Schluchter99, que determinam quais tipos de consciência os atores podem ou não

ter do seu meio físico e social. O desenvolvimento da personalidade (ontogênese)

dá-se por meio da internalização de normas que já devem estar disponíveis nas

estruturas éticas (filogênese)100. Isso pode ser compreendido como um processo

de aprendizado pessoal e coletivo que pode representar a incorporação de

98 Ibidem, p. 100. 99 Cf, por exemplo, SCHLUCHTER, Wolfgang. The Rise of Western Rationalism: Weber's Developmental History. Berkeley: University of California of Press, 1981 100 Ibidem, p. 40.

106

normas e princípios cada vez mais abstratos e generalizáveis, caso estes

correspondam ao desenvolvimento ético de uma sociedade ou civilização.

A singularidade ocidental teria sido marcada por um tal processo de

desenvolvimento ético, até o ponto onde tipos flexíveis e autônomos de

consciência fossem nutridos por um horizonte normativo que permite avaliar

ações e escolhas – inclusive ações e escolhas políticas – de acordo com

princípios reflexivos. No entanto, como também destaca Schluchter, as

possibilidades éticas objetivas pressupõem competências cognitivas por parte dos

sujeitos que deveram estar orientados por elas, porém não assegura que eles

terão essas competências. Isso pode, em parte, explicar por que valores e visões

de mundo existentes em uma sociedade podem ser compreendidos e

apreendidos apenas por determinados estratos sociais, como foi e tem sido o

caso do processo de modernização ocorrido no Brasil.

Há, no caso brasileiro, uma massa considerável de pessoas que

historicamente não pode contar com ambientes de socialização e de aprendizado

coletivo suficientes para que se formassem as pré –condições cognitivas

indispensáveis para perceber e agir segundo valores e orientações normativas

desvinculadas de relações pessoais de favor e proteção. Assim, embora haja um

horizonte normativo que sirva de referência para aqueles que reúnem as

condições e competências cognitivas para se orientar por critérios e regras

impessoais, a estratificação social como um todo é constituída por uma camada

imensa de pessoas que não dispõem das condições necessárias para isso.A

questão fundamental que aí se coloca é a seguinte: o que caracterizam os

contextos e as condições sociais que, segundo nossa linha de argumentação,

impedem o aprendizado coletivo pressuposto para que as ações e as relações

entre os membros dessa imensa camada sejam marcadas por normas abstratas e

por atitudes tolerantes? Ou então, por que as classes de baixa renda e

escolaridade se distinguem, enquanto classe, também por compartilharem um

outro tipo de personalidade que é construído reativa e depreciativamente em

relação a um padrão tido como superior e peculiar à classe média?

Para compreender esse processo é necessário pressupor que a forma

como os indivíduos avaliam e agem sobre o mundo está relacionada àquelas

propriedades e capacidades que eles puderam incorporar na constituição de suas

107

identidades. Propomos aqui uma compreensão desse processo a partir da “teoria

do reconhecimento social”, de tal forma a poder demonstrar – por enquanto

apenas ensaísticamente – como ele é, no caso brasileiro, influenciado pela

novidade que o neopentecostalismo representa na condição de uma religiosidade

cujo suporte principal é a “ralé”, sobretudo seu segmento urbano.

Axel Honneth101nos oferece uma abordagem muito interessante sobre esse

processo, na qual encontramos a possibilidade de apreender, por um lado, a

necessária vinculação entre o aprendizado moral de indivíduos e camadas sociais

a um horizonte ético já disponível, e, por outro, as pré-condições psicossoais que

indivíduos e camadas sociais devem reunir para que o próprio aprendizado, em

tese permitido por aquele horizonte, seja efetivamente realizado.

A primeira exigência para que indivíduos e coletividades possam aprender

é a existência do que aprender, ou seja, de dimensões e formas de avaliar o

mundo e as relações sociais disponíveis no vocabulário avaliativo de uma

sociedade e que possam estar presentes nas relações de reconhecimento.

Segundo Honneth, esse vocabulário avaliativo, ou outros critérios institucionais de

avaliação moral nem sempre articulados lingüisticamente, corresponde à forma

como os sujeitos se reconhecem e em torno de que propriedades e dimensões

eles realizam esse processo. O conflito social seria, dessa forma, decorrente do

caráter restrito e opressor que as concepções de boa vida, em algum momento,

acabam assumindo diante das exigências de que novas dimensões e maneiras de

se viver uma vida valiosa e significativa sejam levadas em consideração. É

exatamente isso que Honneth chama de luta por reconhecimento: a busca

conflituosa por etapas mais abrangentes de eticidade intersubjetiva que forneçam

validade para uma identidade individual sempre mais exigente.

A modernização brasileira, como Jessé Souza procura argumentar, é

marcada pelo fato de que as classes e os setores “europeizados” tornaram-se o

suporte social dos atributos e dimensões que constituem o individualismo moral,

tanto no que se refere ao tema da dignidade como o da autenticidade. Tanto a

percepção que esses segmentos têm do Estado e da política, como dimensões

impessoais que devem assegurar direitos e seguir regras, assim como as atitudes

101 Cf. HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2003.

108

mais tolerantes que dispensam a questões “polêmicas” como o homossexualismo,

ou até mesmo a própria recusa do clientelismo como modelo adequado de

relacionamento político, revelam, na verdade, um padrão de aprendizado moral

muito semelhante àquele que, em sociedades centrais, não fora privilégio de uma

só classe.102Com isso, a questão passa a ser a seguinte: como explicar, no caso

brasileiro, a partir da teoria do reconhecimento, o fato de que uma camada

imensa de pessoas não passou pelo processo de aprendizado moral e político

que, em certo sentido, é uma possibilidade, uma vez que somos um país

moderno?

A resposta que podemos oferecer ainda é parcial, é que essa camada é de

tal modo privada de certos tipos de reconhecimento social que seus membros não

conseguem formar as pré-condições psicossociais necessárias ao

desenvolvimento de uma individualidade capaz de se engajar em relações e

valores modernos e impessoais, ou sustentar posições políticas tolerantes e não

autoritárias. A confiança e a capacidade de referi-se positivamente a instâncias

impessoais como o Estado e a política moderna depende de um processo anterior

de socialização, ocorrido nas relações pessoais mais íntimas e precoces, no qual

os sujeitos aprendem primeiramente a confiar em pessoas e em “outros

concretos”103.

Honneth analisa esse processo como sendo a primeira e mais elementar

experiência de reconhecimento na trajetória de uma pessoa. Para ele, através da

amizade, e sobretudo do amor entre pais e filhos, os sujeitos experimentam sua

primeira forma de aceitação, como seres carentes e que podem satisfazer suas

carências num contexto de encorajamento. As experiências da primeira infância

caracterizadas como fundamentais incluem acima de tudo o sucesso das relações

102 É preciso esclarecer que não pretendemos demonstrar ou defender a tese de que posturas e opiniões intolerantes e anti-democráticas não existam nos setores médios e mais abastados da sociedade brasileira. Peculiaridades regionais, interesses econômicos e opções políticas claramente conservadoras fazem com que parte considerável desses setores se alinhem com posturas e opiniões desse tipo. Tendemos, no entanto, a insistir na idéia de que esse alinhamento é realizado de forma consideravelmente mais “autônoma” e reflexiva do que no caso da “ralé”, justamente por que a “ralé” é privada dos recursos morais, cognitivos e “psíquicos” necessários a realização de escolhas políticas e existenciais distintas com um nível razoável de “refletividade” e “autonomia”. 103 TAYLOR, Charles. “A Política do reconhecimento” In:________. Argumentos filosóficos. São Paulo: Ed. Loyola, 2000a. p.241-274.

109

afetivas, especialmente entre mãe e filho, de superar o equilíbrio precário entre

simbiose e auto-afirmação existente entre os dois.

A oferta afetiva incondicional é decisiva na constituição bem sucedida do ego,

isto é, de uma personalidade livre de ansiedades paralisantes que são capazes

de impedir a formação e a publicização de opiniões, de limitar a capacidade

deliberativa acerca de outras opiniões e, acima de tudo, de facilitar a alienação do

próprio ego – e portanto, de todas essas capacidades – em nome da necessidade

de aderir acriticamente a algum tipo de ídolo104. Não apenas as situações

precoces de ameaça das relações com as figuras concretas da mãe, na qual –

como vimos – o bebê é forçado a aceitar a autonomia de seu “objeto” de

referência, mas também as situações adultas de humilhação, produzem e

reforçam as ansiedades adquiridas desde a mais tenra infância.

É precisamente nesse período, como mostra Georg Herbert Mead, que o

sujeito vivencia suas primeiras relações simbólicas com “outros concretos”, a

cujos comportamentos tendem imitar como forma básica de receber aprovação.

Essa aprovação inicial, oferecida necessariamente por “outros concretos”, é uma

pré-condição para que os indivíduos possam confiar e considerar “outros

generalizados”105 como referência palpável de coordenação de suas ações e

escolhas existências e políticas, sejam esses “outros” instituições impessoais ou

valores abstratos.

A autoconfiança obtida nas relações afetivas primárias será a base para

um sentimento de estar em ordem, de ser alguém, e de se tornar aquilo que

outras pessoas confiam que ele se tornará. Essa fé mais primitiva na

fidedignidade e sustentação dos seres humanos constitui o que Giddens chama

de “segurança ontológica”, ou, como ele prefere, “a crença que a maioria do seres

humanos tem na continuidade de sua auto-identidade e na constância dos

ambientes de ação social e material circundantes”.106A confiabilidade na

sustentação dos seres humanos ou, como diria Mead, em “outros concretos”,

forma um primeiro compromisso social “com rosto” que será decisivo para que um

104 HONNETH, Axel. “ ‘Anxiety and Politics’ : The Strengths and Weaknesses of Franz Neumann’s Diagnosis of a Social Pathology”. Constellations. Vol. 10, N.2, 2003. p. 247-254. 105 Cf. HONNETH, Op. Cit., 2003, parte II. 106 GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: Ed Unesp, 1991, p. 95.

110

indivíduo possa, em sua fase adulta, desenvolver compromissos “sem rosto” com

instituições e valores abstratos sem a mediação concreta e personalizada de

outros indivíduos.

Para Giddens, a “segurança ontológica” é um pré-requisito emocional, sem

o qual a capacidade cognitiva de perceber e de se posicionar diante da “presença

ausente” de instituições e de princípios abstratos e despersonalizados não pode

ser alcançada. Essa capacidade – a ser desenvolvida nas relações futuras de

reconhecimento social – é fortemente prejudicada por formas paralisantes de

ansiedade, responsáveis por minar o aprendizado moral de valores e princípios,

em prol de uma necessidade constante de que todas as relações sejam pautadas

pela mediação personalizada de indivíduos concretos. A contribuição de Giddens

é extremamente válida, uma vez que nos ajuda a perceber melhor a forma como

as experiências primeiras e mais íntimas de aceitação social acabam sendo

decisivas no controle ou na criação de ansiedades e patologias que vão

influenciar nas relações futuras e mais ampliadas de reconhecimento, onde

efetivamente ocorre o aprendizado moral e político disponível no horizonte

normativo de uma sociedade.

Apontamentos finais

Feitas essas considerações, podemos afirmar que o padrão de relações

familiares da “ralé estrutural” da sociedade brasileira é marcado pela inexistência

da oferta afetiva incondicional, a partir da qual as ansiedades e “inseguranças

ontológicas” que impedem o aprendizado moral pudessem ser mitigadas. No caso

do crescimento do pentecostalismo, o que temos é uma parte dessa “ralé”

buscando novos contextos para amenizar essas ansiedades e “inseguranças

ontológicas” através da mediação com “outros concretos”, como os deuses e

demônios percebidos de forma altamente personalizada, ao invés de

representarem regras éticas e princípios abstratos.

A “magia” atrai a “ralé”, pelo menos nesse caso, por que ela fornece um

contexto psicossocial que permite mitigar ansiedades e formas depreciativas de

auto-percepção, isto é, os desdobramentos psíquicos das experiências de não

111

reconhecimento e de desrespeito, através de recursos cognitivos e avaliativos já

incorporados por essa “ralé”. A oposição binária “bem/mal” é representada

respectivamente no neopentecostalismo pelas figuras concretas do “pai das

luzes” e do diabo e seus seguidores; enquanto o primeiro realiza milagres e

distribui bens materiais e espirituais, aos segundos são atribuídas toda a culpa e

responsabilidade pelos males e sofrimentos que afligem um indivíduo. Na

verdade, a identificação “mágica” das forças que privam a pessoa de sua

autonomia constitui o principal recurso capaz de aliviar o sofrimento causado por

trajetórias marcadas pela ausência de formas básicas de reconhecimento social.

A principal lesão causada pela ausência de reconhecimento dos outros é o

sentimento de culpa e de inferioridade que impede uma pessoa de ter auto-

confiança, auto-respeito, e auto-estima. A eficácia da linguagem neopentecostal

estaria, desta forma, vinculada ao alívio que ela oferece a essa lesão, na medida

em insiste na idéia “mágica” de que a pessoa está possuída por espíritos do mau

e por isso mão pode ser responsabilizada pelas mazelas que a afligem nem pelas

condições degradantes de vida que seu comportamento tende a reforçar.107

Se os servidores do diabo são os responsáveis por problemas como o

alcoolismo, a violência doméstica e tantas outras formas de mazelas familiares e

existências, não há por que o indivíduo sentir vergonha ou culpa de sua condição

social. A presença de agentes malignos se apoderando da autonomia e da

capacidade de discernimento dos sujeitos tira-lhes a sensação de que seu

fracasso advém de suas próprias escolhas e, conseqüentemente, de que eles

tenham qualquer culpa ou responsabilidade sobre ele. As principais

denominações pentecostais não cansam de ressaltar que apenas uma

participação ativa e permanente nas atividades religiosas podem assegurar

proteção contra esses agentes malignos, não podendo haver nenhum tipo de

relativização, por parte do “crente”, da leitura mágica que é feita do mundo e de

seus problemas. Essa leitura consiste, na verdade, em uma visão de mundo onde

toda forma de alteridade é percebida como ameaçadora, sendo rapidamente

107 Cf.LAURENT, Pierre –Joseph. “The Faith-Healers of the Assemblies of God in Burkina Faso: Taking Responsibility for Diseases Related to ‘living Together’”. Social Compass. 48(3), 2001. p. 333-351. Nesse estudo de caso o autor demonstra empiricamente como esse mecanismo de aliviar a culpa e levantar a auto-estima dos fiéis têm sido o principal responsável pelo crescimento da Igreja Assembléia de Deus entre os camponeses e os setores urbanos de baixa renda am Burkina Faso.

112

associada com a ação que agentes do mal empreendem no intuito de

desencaminhar os homens. As escolhas políticas e existenciais devem assumir

obrigatoriamente uma negação de toda alteridade, uma vez que qualquer

relativização da rígida divisão bem/mal traria o “crente” para uma condição de

vulnerabilidade frente à ação permanente dos agentes malignos. Segundo

Ricardo Mariano, "esses crentes não estão nenhum pouco dispostos a abrir mão

do sentido que o personagem Diabo e seu criador e oponente, Deus, são capazes

de conferir a caótica, precária e sofrida vida humana".108

Essa forma peculiar de conservadorismo político já havia sido percebida

por Eurico dos Santos como um componente intrínseco das visões “mágicas” de

mundo vindo corroborar nossas considerações teóricas e reforçar a tese de que

determinadas posições políticas só são viáveis aos grupos e classes que passam

por certas experiências de aprendizado moral, das quais emergem uma estrutura

sistemática de comportamento social que tende a se manifestar reiteradamente

em todas as escolhas, inclusive na “opção” de abrir mão de escolher. Podemos

inferir pois que o sucesso do pentecostalismo entre parte de nossa “ralé

estrutural” advêm dos recursos discursivos que as igrejas e seitas

neopentecostais oferecem aos fieis para mitigar ansiedades e “inseguranças

ontológicas” desenvolvidas em experiências de não reconhecimento social. Isso,

em tese, recuperaria as condições psicossociais exigidas para que os sujeitos

possam passar pelos processos de aprendizado moral e político, que as

instituições e os valores individualistas modernos já haviam permitido aos setores

“europeizados”. No entanto, a mesma linguagem religiosa que parece conseguir

recuperar essas condições psicossocias acaba sendo também responsável por

exigir que os fiéis sustentem uma leitura inflexível, simplificada e personalista das

escolhas políticas, existenciais e das relações sociais como um todo.

Podemos sugerir que a filiação pentecostal não faz mais do que fornecer

condições – inéditas – de se ter o reconhecimento de “outros concretos”, posto

que um aprendizado capaz de levar à superação dos padrões clientelísticos e

autoritários – tomando como referência “outros impessoais e generalizados” –

arraigados no comportamento da “ralé” não é e nem pode ser empreendida num

108 MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 1999, p. 110.

113

contexto onde a própria autonomia política e existencial é o preço a ser pago por

esta forma básica de reconhecimento que os sujeitos não tiveram nas relações

familiares.

A permanência do clientelismo e do populismo em nossa vida política deve

ser atribuída ao mesmo processo diferencial e seletivo de aprendizado que, desde

o fim da escravidão, vem produzindo uma “ralé” que tende a perceber e avaliar,

em lugar de valores e ideologias, apenas pessoas e arranjos pessoais. O recorte

de classe no Brasil não é como nas sociedades centrais, onde a disputa social se

traduz politicamente em ideologias e projetos nacionais diferenciados; no nosso

caso, uma “subclasse” – que sempre fora maior do que a própria classe operária

–é também despossuída dos recursos psicossociais, cognitivos e avaliativos

necessários à participação, ainda que restrita a eleições, na política moderna.

O personalismo e os “arranjos coronelistas” são engendrados na política

brasileira majoritariamente a partir dessa “ralé” privada, em quase toda sua

extensão, de formas primárias de reconhecimento social. Dessa forma, até

mesmo a fração mais moderna de nossa política, a 10 anos no poder, é obrigada

a fazer composições com os focos de poder clientelístico e “pré–ideológico”109que

encontram legitimidade nessa massa destituída de aprendizado social. Pode-se

falar, talvez, dos efeitos perversos e patológicos desse não reconhecimento como

muito semelhantes aqueles que Joaquim Nabuco atribui com genialidade à

escravidão e à ausência de uma política que tentasse evitar que a herança

escravocrata se estendesse até os nossos dias. Da mesma forma que as

propostas políticas mais retrógradas e anti-liberais encontraram apoio e

sustentação na “ralé” recém liberta do cativeiro no final do século XIX e início do

XX, temos hoje, cem anos depois, um Severino Cavalcanti110 como o retrato fiel

da linguagem moral e política que constitui a visão de mundo de nossa “ralé”

atualizada.

109 Cf. REIS, Fábio Wanderley. “Brasil: “Estado e Sociedade” em Perspectiva. In: ______. Mercado e Utopia: Teoria Política e Sociedade Brasileira. São Paulo: Edusp, 2000 110 Presidente da câmara de deputados da federação que defende abertamente o clientelismo, o nepotismo e as relações pessoais na política.

114

Referências Bibliográficas

ARAÚJO, Caetano E. P. de . . .[et. al.] Org. Política e Valores. Brasília, Ed. UnB,

2000.

BELLAH, Robert. Tokugawa Religion: the cultural roots of modern Japan. New

York, The Free Press, 1985.

BENDIX, Reinhard. Max Weber, um perfil intelectual. Brasília, Ed. UnB, 1986.

BOURDIEU, Pierre. Uma interpretação da teoria da religião de Max Weber.

In:_____BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo,

Ed. Perspectiva, 2004.

BOURDIEU, Pierre. Campo do poder, Campo intelectual e Habitus de classe.

In:_____BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo,

Ed. Perspectiva, 2004.

BOURDIEU, Pierre. Estrutura, Habitus e Prática. In:_____BOURDIEU, Pierre. A

economia das trocas simbólicas. São Paulo, Ed. Perspectiva, 2004.

BOURDIEU, Pierre. La Distinción: criterios e bases sociales del gusto. México,

Ed. Taurus, 2002.

BOURDIEU, Pierre. Outline of a Theory of Pratice. London, Cambridge university

press, 2000.

CONVERSE, Philip. The nature of Belief Systems in Mass Politics. In:________

Apter, D.. Ideology and Discontent. New York, the free press, 1964.

115

FREYRE, Gilberto. Casa-grande & Senzala: formação da família brasileira sob o

regime da economia patriarcal. São Paulo, Ed. Global, 2005.

FREYRE, Gilberto. A propósito de frades: sugestões em tôrno da influência de

religiosos de são francisco e de outras ordens sôbre o desenvolvimento de

modernas civilizações cristãs: especialmente das hispanicas nos trópicos.

Salvador, Ed. Progresso, 1959.

HABERMAS, Jürgen. Técnica e ciência enquanto “ideologia”. Coleção os

pensadores. São Paulo, Ed. Abril Cultural, 1983.

HABERMAS, Jürgen. Uma visão genealógica do teor cognitivo moral. In:_____ A

inclusão do outro. Estudos de teoria. São Paulo: Loyola, 2002.

KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. In:____________ Coleção os

pensadores. São Paulo: Ed. Abril cultural, 1983.

MACHADO, Maria das Dores Campos. Carismáticos e pentecostais: adesão

religiosa na esfera familiar. Campinas, SP: Ed. Autores Associados; São

Paulo, SP: ANPOCS,1996.

MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo

Brasileiro. São Paulo, SP: Edições Loyola, 1999.

MÉTRAUX, Alfred. A religião dos tupinambás e suas relações com a das demais

tribos tupis. São Paulo EdUsp, 1979.

NEGRÃO, Lísias Nogueira. Nem “jardim encantado”, nem “Clube dos intelectuais

desencantados”. Revista brasileira de ciências sociais, volume 20, número 59,

outubro de 2005.

116

PAIVA, Ângela Randolpho. Católico, protestante, cidadão: uma comparação entre

Brasil e Estados Unidos. Belo Horizonte: Ed. UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ,

2003.

PASCAL, Georges. O pensamento de Kant. Petrópolis, RJ, Ed. Vozes, 2003.

PEIRUCCI, Antônio Flávio. Secularização segundo Max Weber. In:______A

Atualidade de Max Weber. Brasília, Ed. UnB, 2000.

PRANDI, Reginaldo. Perto da Magia, Longe da política. In:__________A

realidade social das religiões no Brasil. São Paulo, Ed. HUCITEC, 1996.

RECKLING, Falk. Interpreted Modernity: Weber and Taylor on values and

modernity. London: European Journal of Social Theory 4 (2): 153-176, 2001.

SAINT-PIERRE, Héctor L..Max Weber: entre a paixão e a razão. Campinas, SP:

Ed. Da UNICAMP, 1994.

SANTOS, Eurico G. C. dos. Política e Magia (na cultura brasileira e) no Distrito

Federal. In:_______ARAÚJO, Caetano E. P. de . . .[et. al.] Org. Política e

Valores. Brasília, Ed. UnB, 2000.

SANTOS, Eurico G. C. dos. A construção social do escravo: a religião do Brasil.

XXIX encontro anual da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa

em Ciências Sociais (ANPOCS) – Caxambu, MG, outubro 2005.

SCHLUCHTER, Wolfgang. Rationalismus der Weltbeherrschung: Studien zu Max

Weber. Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1980.

SCHLUCHTER, Wolfgang. Religion und Lebensführung: Studien zu Max Webers

Religions- und Herrschaftssoziologie. Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1988.

117

SCHLUCHTER, Wolfgang. The rise of western rationalism Max Weber’s

developmental history. Berkeley and Los Angeles, University California press,

1985.

SCHLUCHTER, Wolfgang. As origens do racionalismo ocidental.

In:_______SOUZA, Jessé (Org.). O malandro e o protestante: A tese

weberiana da singularidade cultural Brasileira. Brasília, Ed. UnB, 1999.

SCHLUCHTER, Wolfgang. A origem do modo de vida burguês.

In:_______SOUZA, Jessé (Org.). O malandro e o protestante: A tese

weberiana da singularidade cultural Brasileira. Brasília, Ed. UnB, 1999.

SOUZA, Jessé. Patologias da modernidade: um diálogo entre Habermas e Weber.

São Paulo: Ed. Annablume, 1997.

SOUZA, Jessé (Org.). O malandro e o protestante: A tese weberiana da

singularidade cultural Brasileira. Brasília, Ed. UnB, 1999.

SOUZA, Jessé (Org.). A atualidade de Max Weber. Brasília, Ed. UnB, 2000.

SOUZA, Jessé. A modernização seletiva: uma reinterpretação do dilema

brasileiro. Brasília, Ed. UnB, 2000.

SWIDLER, Ann. The concept of Rationality in the Work of Max Weber.

In_______: Sociological Inquiry journal.

TAYLOR, Charles. As fontes do self: a construção da identidade moderna. São

Paulo: Loyola, 1997.

WAIZBORT, Leopoldo. Max Weber e Dostoievski: literatura russa e sociologia das

religiões. In: A Atualidade de Max Weber. Brasília, Ed. UnB, 2000.

118

WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva.

Tradução de Régis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. Brasília, Ed. UnB, 2000.

WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: ed Guanabara, 1982.

WEBER, Max. Ensayos sobre sociologia de la religión, 3 vol. Madrid: Ed. Taurus,

2001.

WEBER, Max. Os fundamentos racionais e sociológicos da música. Tradução,

introdução e notas de Leopoldo Waizbort e prefácio de Gabriel Cohn. São

Paulo, Edusp, 1995.

WEGNER, Robert. Religião e Formação segundo Sérgio Buarque de Holanda.

Revista Trapézio, Campinas: Gráfica IFCH/UNICAMP, Nº ¾, 1º semestre de

2003.