uma anÁlise da performance da quartabÊ na … · 2018-01-17 · 2 seminário internacional...

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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X UMA ANÁLISE DA PERFORMANCE DA QUARTABÊ NA INTERPRETAÇÃO DE “ODUDUÁ” Danielly Mayara Dantas de Medeiros 1 Resumo: Este trabalho tem por objetivo compartilhar uma análise da performance da banda Quartabê, interpretando a música “Oduduá” do compositor Moacir Santos, em um show, em 2015, disponível em vídeo no YouTube. Essa análise faz parte da metodologia da minha pesquisa de mestrado em andamento, que a partir da perspectiva dos Estudos de Gêneros e da Etnomusicologia, pretende realizar uma análise dialógica da atuação feminina enquanto musicistas tendo por foco a banda Quartabê e suas atividades no contexto da música popular brasileira instrumental (MPBI). A Quartabê é composta pelas musicistas Ana Karina Sebastião (Contrabaixo), Joana Queiroz (clarinete, clarone e saxofone), Maria Beraldo Bastos (clarinete e clarone) e Mariá Portugal (bateria) e por Rafael Montorfano (piano e teclados) e foi criada em 2014, especialmente para o Festival Moacir Santos, no Rio de Janeiro. Quartabê não faz uma simples releitura das obras de Moacir Santos, mas sim dá uma nova roupagem às obras, misturando vários elementos trazidos de outras influências, como rock, afrobeat e até pop, podendo-se falar de uma certa “desconstrução” das obras. Em Oduduá a banda utiliza vários efeitos eletrônicos e rock, se diferenciando bastante da versão original da composição e acrescentando elementos no ato da performance. A análise pretende compreender como esses elementos são utilizados pela Quartabê na performance da música Oduduá e seus desdobramentos, além de suscitar discussões sobre a atuação feminina na MPBI. Palavras-chave: Etnomusicologia. Estudos de Gênero. Performance. MPBI. Este artigo é fruto da minha pesquisa de mestrado em andamento, que a partir da perspectiva dos Estudos de Gêneros e da Etnomusicologia, pretende realizar uma análise dialógica da atuação feminina enquanto intérpretes, compositoras, improvisadoras, instrumentistas e performers tendo por foco a banda Quartabê e sua atuação no contexto da Música Popular Brasileira Instrumental (MPBI). Um dos objetivos da pesquisa é a realização de análises de algumas performances da Quartabê, apoiando-se principalmente na etnografia com suporte de teorias feministas da música (SARKISSIAN, 1992; CUSICK, 1994; SWAIN, 2002; ROSA 2009; 2010; KOSKOFF,2014). A proposta é analisar tanto performances ao vivo, quanto em vídeo, como é o caso da análise aqui proposta, onde a Quartabê interpreta a música “Oduduá” do compositor Moacir Santos, em um show realizado em 2015, no Sesc Consolação, e que se encontra disponível em vídeo no YouTube. 1 Mestranda em Etnomusicologia pela Universidade Federal da Paraíba UFPB. João Pessoa-PB, Brasil. Orientada pela Profa. Dra. Adriana Fernandes. Bolsista Bolsista FAPESQ-PB/CAPES/BRASIL.

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

UMA ANÁLISE DA PERFORMANCE DA QUARTABÊ NA INTERPRETAÇÃO DE

“ODUDUÁ”

Danielly Mayara Dantas de Medeiros1

Resumo: Este trabalho tem por objetivo compartilhar uma análise da performance da banda

Quartabê, interpretando a música “Oduduá” do compositor Moacir Santos, em um show, em 2015,

disponível em vídeo no YouTube. Essa análise faz parte da metodologia da minha pesquisa de

mestrado em andamento, que a partir da perspectiva dos Estudos de Gêneros e da Etnomusicologia,

pretende realizar uma análise dialógica da atuação feminina enquanto musicistas tendo por foco a

banda Quartabê e suas atividades no contexto da música popular brasileira instrumental (MPBI). A

Quartabê é composta pelas musicistas Ana Karina Sebastião (Contrabaixo), Joana Queiroz

(clarinete, clarone e saxofone), Maria Beraldo Bastos (clarinete e clarone) e Mariá Portugal

(bateria) e por Rafael Montorfano (piano e teclados) e foi criada em 2014, especialmente para o

Festival Moacir Santos, no Rio de Janeiro. Quartabê não faz uma simples releitura das obras de

Moacir Santos, mas sim dá uma nova roupagem às obras, misturando vários elementos trazidos de

outras influências, como rock, afrobeat e até pop, podendo-se falar de uma certa “desconstrução”

das obras. Em Oduduá a banda utiliza vários efeitos eletrônicos e rock, se diferenciando bastante da

versão original da composição e acrescentando elementos no ato da performance. A análise

pretende compreender como esses elementos são utilizados pela Quartabê na performance da

música Oduduá e seus desdobramentos, além de suscitar discussões sobre a atuação feminina na

MPBI.

Palavras-chave: Etnomusicologia. Estudos de Gênero. Performance. MPBI.

Este artigo é fruto da minha pesquisa de mestrado em andamento, que a partir da perspectiva

dos Estudos de Gêneros e da Etnomusicologia, pretende realizar uma análise dialógica da atuação

feminina enquanto intérpretes, compositoras, improvisadoras, instrumentistas e performers tendo

por foco a banda Quartabê e sua atuação no contexto da Música Popular Brasileira Instrumental

(MPBI).

Um dos objetivos da pesquisa é a realização de análises de algumas performances da

Quartabê, apoiando-se principalmente na etnografia com suporte de teorias feministas da música

(SARKISSIAN, 1992; CUSICK, 1994; SWAIN, 2002; ROSA 2009; 2010; KOSKOFF,2014). A

proposta é analisar tanto performances ao vivo, quanto em vídeo, como é o caso da análise aqui

proposta, onde a Quartabê interpreta a música “Oduduá” do compositor Moacir Santos, em um

show realizado em 2015, no Sesc Consolação, e que se encontra disponível em vídeo no YouTube.

1 Mestranda em Etnomusicologia pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB. João Pessoa-PB, Brasil. Orientada pela

Profa. Dra. Adriana Fernandes. Bolsista Bolsista FAPESQ-PB/CAPES/BRASIL.

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A Quartabê é uma derivação da banda que Arrigo Barnabé reuniu no ano de 2014, para fazer

uma releitura da versão instrumental de seu grande clássico “Clara Crocodilo”, álbum de 1980. A

banda foi composta pelas musicistas Joana Queiroz, Maria Beraldo Bastos, Mariá Portugal, Ana

Karina Sebastião e os músicos Paulo Braga e Mario Manga.

Ao ver um show dessa nova versão de “Claras e Crocodilos”, Andréa Ernest Dias, flautista e

pesquisadora da vida e obra de Moacir Santos, convidou as musicistas a formarem uma Banda, para

fazer parte do Festival Moacir Santos em 2014, no Rio de Janeiro. Moacir José dos Santos, o

“Moacir Santos”, foi instrumentista, compositor e maestro, nascido em Flores, no alto sertão

Pernambucano. Seu estilo peculiar, desenvolvido sobre gêneros populares e eruditos, associa a

sonoridade característica das bandas de música e jazz-bands de sua formação inicial no sertão à

ampla experiência adquirida em sua atuação como maestro e arranjador, tanto em uma profícua fase

da história da música brasileira quanto no mercado norte-americano. A sua obra é reconhecida

como uma das mais ricas e originais da música brasileira2. Moacir Santos faleceu no ano de 2006,

em Los Angeles (EUA).

Foi a partir do convite de Andréa Ernest Dias que surge a Quartabê, considerada desde então

como “um trabalho cada vez mais aplaudido e respeitado” (SESC, 2016).3 As integrantes Ana

Karina Sebastião (Baixo), Joana Queiroz (Sax, clarinete e clarone), Maria Beraldo Bastos (clarinete,

clarone) e Mariá Portugal (bateria) convidaram Rafael Montorfano, conhecido como “Chicão”, para

fazer piano e teclado. Depois da apresentação no Festival Moacir Santos o quinteto decide continuar

e então foi contemplado com edital ProAC4 do Estado de São Paulo com o qual gravaram seu

primeiro disco, intitulado “Lição #1:Moacir”, título que faz uma menção ao aprendizado musical

obtido pelos aprendizes e seu mestre Moacir Santos. Recentemente, em julho de 2017, a banda

lançou o “Depê Quartabê”, ainda com obras de Moacir Santos, utilizando-se mais da influência da

música eletrônica e contando com algumas participações especiais, como Arrigo Barnabé, Juçara

Marçal, entre outras.

O que chama a atenção no trabalho da Quartabê, é o fato de não optarem por uma simples

releitura das obras de Moacir Santos, mas sim em dar uma nova roupagem às obras, misturando

2 Disponível em: http://www.festivalmoacirsantos.art.br/moacir-santos/. Acesso em 11 de maio de 2016. 3 SESC SP. Quartabê – programa passagem de som. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=pvdu-

kN5HUg&t=1206s. Acesso em 11 de maio de 2016. 4 O ProAC- Programa de Ação Cultural – foi criado em 2006, por meio da Lei Estadual 12.268. Com o objetivo de

fomentar e difundir a produção artística em todas as regiões do Estado, o ProAC apoia financeiramente projetos

artísticos, selecionados por meio de Editais. Diversas expressões culturais são contempladas pelo programa em Editais

específicos, entre elas: teatro, dança, música, literatura, circo, artes cênicas para crianças, festivais de arte, audiovisual,

museus, diversidade e artes visuais. Disponível em http://www.cultura.sp.gov.br/portal/site/SEC. Acesso em

20/11/2016.

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vários elementos musicais de diversas influências. Além dessas mudanças musicais, se destacam

nas performances da banda outros elementos, como a escolha do figurino e a forma que

movimentam os corpos, por exemplo. São para melhor exemplificar e compreender esses elementos

musicais e performáticos, que aqui teço considerações a partir da performance de “Oduduá”.

Analisando “Oduduá”

Moacir Santos, durante muitos anos, não sabia precisamente sobre sua data de nascimento,

naturalidade e filiação. Tal desconhecimento sobre a sua origem gerava nele bastante aflição e o

levou a uma busca inquieta sobre seu registro de nascimento original, encontrando-o em 1980.

Segundo Dias (2010, p. 28), a insistência no questionamento sobre sua identidade pessoal e a

descoberta de que havia, sim, sido registrado como cidadão brasileiro, levaram o compositor a

traduzir o sentimento de alívio em música. Trata-se da marcha-rancho “Agora eu sei”, composta em

1982 com título original “Now I know”.

Ainda sobre a indagação sobre sua origem tem-se a música “Whats my name?”. Com a letra

dos famosos compositores hollywoodianos Jay Livingston e Ray Evans, a composição de Moacir

Santos recebe sua versão em português do compositor Ney Lopes. Sob o título “Oduduá”5, o autor

da letra trouxe, poeticamente, a indagação sobre identidade para o universo místico afro-brasileiro

(DIAS, 2010, p. 29).

Oduduá foi gravada no projeto Ouro Negro, com a interpretação de João Bosco e Big Band,

montada especialmente para este projeto, que foi comercializado em forma de CD Duplo e DVD. É

com esta versão de João Bosco e Big Band no projeto Ouro Negro que o trabalho dialoga, mais

precisamente com a performance de Oduduá pela Quartabê6, que ocorreu no Teatro Anchieta do

Sesc Consolação, em 2015, dentro do Projeto Instrumental Sesc Brasil7.

Inicialmente, considero importante uma análise musical para demonstrar as mudanças que a

Quartabê fez na música para depois se chegar aos elementos performáticos.

Os estudos sobre Moacir Santos, apontam que o compositor desenvolveu algumas técnicas

formais de arranjo próprias, entre elas o mojo:

5 Oduduá, na mitologia afro-brasileira, é, ao lado de Oxalá/Obatalá, o orixá da criação do mundo. (DIAS, 2010, p. 29). 6 Oduduá também é uma das faixas que compõem o disco Lição #1: Moacir, da Quartabê. 7 “O Instrumental Sesc Brasil, projeto pioneiro de música Instrumental do SESC, foi adaptado para TV em 1990, mas já

existia nos palcos da unidade do SESC Paulista desde o início da década de 80. [...] O projeto é um espaço de encontro

entre músicos novos e consagrados de diversas vertentes que contabiliza mais de 700 shows assistidos presencialmente

por mais de 200 mil pessoas. Na internet, de 2007 a 2012 foram mais de 225 mil acessos ao site”. Disponível em:

http://www.instrumentalsescbrasil.org.br/projeto. Acesso em: 05/06/2017.

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Assim como a bossa-nova teve o seu padrão rítmico estabelecido por João Gilberto,

sintetizado a partir de elementos do samba, presumo que o mojo de Moacir tenha

sintetizado estruturas rítmicas advindas de outras matrizes culturais brasileiras,

notadamente as da tradição nordestina do maracatu e do baião, tão presentes em

Pernambuco, estado natal do compositor (DIAS, 2010, p. 173-74).

Assim, após nos oferecer essa definição sobre o que seria o mojo, a autora nos traz uma

célula que configura tal concepção, presente na seção rítmica de várias músicas de Moacir Santos

(Figura 1).

Figura 1: O mojo

Fonte: DIAS, 2010, p. 175.

Em se tratando de “Oduduá”, Vicente (2012, p. 108) pontua que “é uma música em que a

melodia, seção rítmica e pulsação contêm literalmente toda a estrutura do toque Ibim8. A levada,

distribuída entre piano/violão e contrabaixo, apresenta o mojo baseado no gã9”. O autor nos mostra

esta relação na figura abaixo:

Figura 2: Oduduá e Ibim: relação

Fonte: FONSECA apud VICENTE, 2012, p. 109

8 O Ibim é um toque característico do candomblé. “No ibim o andamento é bem lento. Essa lentidão pode ser explicada

quando se leva em conta as características que envolvem o orixá no qual esse toque é atribuído: Oxalá” (CARDOSO,

2006, p. 342). 9 O gã é o nome utilizado no candomblé para designar o agogô, um idiofone de metal que possui de uma a quatro

campânulas.

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Dessa forma, Moacir faz com que os instrumentos melódicos e harmônicos também

participem da ideia percussiva de Oduduá. Por fim, podemos observar no quadro abaixo a forma de

Oduduá, no que chamarei versão Ouro Negro:

Quadro 1: forma de Oduduá na versão Ouro Negro

Em se tratando da Quartabê, já temos uma característica bem distinta em relação à formação

instrumental. A obra de Moacir Santos que geralmente é executada por grupos de ampla formação,

envolvendo sempre muitos instrumentos de sopro, uma base reforçada e principalmente muita

percussão, é agora executada por dois sopros, baixo elétrico, bateria e piano. Na versão Quartabê, o

grupo ainda mantém a característica rítmica do Ibim, mas acrescenta outros ritmos, a exemplo do

Rock, e algumas variações de andamento. Na primeira parte da introdução tem-se apenas o piano

executando a célula rítmica característica de Oduduá, em um andamento mais lento ( = 138) do

que o da versão Ouro Negro ( = 160).

Na segunda parte da introdução, são acrescentados o baixo elétrico e a bateria chegando

assim aos temas A e B, que sã executados por sax tenor e clarone. Até aqui, aparentemente as

únicas mudanças em relação à versão Ouro Negro são a instrumentação e o andamento mais lento.

Após essa apresentação inicial surge a primeira mudança: um Rock, executado inicialmente através

de um solo da bateria, adaptado a partir da célula rítmica característica de Oduduá, em um

andamento mais rápido ( = 184) que o anterior. Nessa parte, o piano é trocado por teclados e o sax

tenor e clarone são substituídos por dois clarinetes. Aqui, a Quartabê utiliza-se de vários efeitos,

como por exemplo os dois clarinetes soando em dissonância, gerando um efeito de “desafinação”.

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Após isso tem-se uma seção de improvisação livre e por fim a Coda, que se assemelha à versão

Ouro Negro em relação às melodias e tamanho.10

Ainda entrarão outros elementos neste diálogo, que estão em processo de pesquisa e análise,

mas o exposto acima me parece o suficiente para exemplificar e reconhecer que a Quartabê faz

mudanças, dá uma nova roupagem às músicas de Moacir Santos, tomando aqui o exemplo de

Oduduá.

A Performance

Para analisar a performance da Quartabê interpretando Oduduá, por ser em vídeo, considero

importante salientar que tudo o que observamos é a partir do “olhar da câmera”. Então proponho

uma análise considerando esse “olhar da câmera” em relação ao que está sendo feito musicalmente

pela Quartabê, tentando investigar, por exemplo, se há alguma previsibilidade de captura de

movimentos e momentos da performance, e também tecer considerações sobre outros elementos

performáticos, como por exemplo o figurino.

Após uma análise inicial, consegue-se observar que há sim uma previsibilidade nos

movimentos da câmera: ela se move de acordo com os temas, acontecimentos musicais. A câmera

acaba ditando, acompanhando os instrumentos principais de cada trecho.

Um fato interessante, é que a partir desse acompanhamento que a câmera faz com a música,

ela acaba potencializando uma sensação de suspense. Nas partes iniciais foca principalmente na

mão dos instrumentistas, antes de mostrar o corpo, e quando chega-se ao clímax, ponto máximo da

música, foca no corpo inteiro. Tal fato torna-se interessante pois em certo ponto coincide com a

proposta da versão Quartabê de Oduduá, com um início contendo alguns pontos de tensões, que

considero um tipo de alerta que haverá mudanças, através de alguns breaks, por exemplo, e de

repente essas mudanças surgem, “explodem”, e aqui surge a imagem do grupo todo.

No todo, considero que nesse vídeo em especial o foco da câmera direcionou-se muito mais

aos instrumentos do que ao corpo dos instrumentistas. E quando foca-se no rosto, por exemplo, é

quando os instrumentistas demonstram alguma alteração fisionômica de emoção, principalmente

através do movimento de fechar os olhos, de olhar direcionado na interação uns com os outros, de

sorrir. Tratando sobre a questão da visualidade, Nogueira (2015) afirma que:

10 Um quadro exemplificando essa forma da Quartabê ainda está sendo construído com mais cautela, observando

melhor as mudanças feitas.

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[...] é uma questão controversa em música, posto ser esta uma arte sonora. Em um viés

tradicional, o corpo do intérprete não deve mobilizar a atenção de quem escuta, mas deve

ser apenas um veículo para expressar o texto musical a que se propõe. Com isto, o corpo do

intérprete não deve se colocar em primeiro plano, não deve ser visto, colocando assim uma

contradição: o corpo, mesmo que considerado como inconveniente, não deixa de fazer-se

presente. Assim, há uma visualidade colocada, há um corpo em cena, mas este corpo é

ensinado a não aparecer, é ensinado a estar ausente. Paradoxalmente, é impossível ausentar-

se. E quando o corpo não se ausenta, ele constrói significados. Talvez não significados

conscientemente elegidos, mas sim intencionais, posto que toda a carga de concepções

construídas sobre o corpo em cena estará colocada nas escolhas de performance individuais

(NOGUEIRA, 2015, p. 306-307).

E quando se trata de uma banda composta majoritariamente por mulheres e que a banda no

geral sempre se apresenta com um figurino não tão convencional, principalmente no contexto da

MPIB, todos esses processos se intensificam e merecem atenção.

Como mencionado anteriormente, uma grande característica das performances da Quartabê é

a escolha do figurino. Tintas coloridas jogadas sobre paletós, fantasia de roupa grega e roupas de

praia são alguns exemplos. Neste show do SESC, as musicistas estão usando shorts, camisetas e/ou

macacões, o músico está usando vestido com um blazer por cima. Quanto aos calçados, todos estão

de tênis.

Figura 3: Quartabê. Sesc Consolação. 2015.

Fonte: http://www.uiadiario.com.br/evento/quartabe-e-jucara-marcal/.

Ao parar para pensar sobre o figurino da Quartabê, que me chamou atenção desde os

primeiros vídeos que vi da banda, percebi o quanto geralmente este elemento performático passa

despercebido em shows de artistas e bandas da MPIB. Me parece que nunca é algo tido como

importante ou a ser considerado, estando a música sempre em primeiro plano.

A Quartabê traz esse diferencial, pois além da grande carga musical do repertório, e da

habilidade artístico-musical dos integrantes, a escolha do figurino está sempre carregada de

significados, que automaticamente são transmitidos ao público. Como afirma Barreto (2015, p. 02),

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“uma das principais formas sociais de afirmação identitária é a aparência e por meio do vestuário e

da moda reproduzimos formas estereotipadas de representação das identidades ou subvertemos

essas mesmas normas arbitrárias”.

Inicialmente a ideia que a escolha do figurino para este show me remete, é a de alunos,

adolescentes em ambiente escolar. A própria banda menciona no programa Passagem de som11,

também do SESC, que se consideram “alunos rebeldes” do Moacir Santos. Inclusive o nome da

banda surge dessa brincadeira de que são alunos da quarta série B, onde geralmente estão os mais

“desobedientes”, “bagunceiros”. Mas também é imprescindível se atentar ao fato desta significação

que o figurino traz em relação as questões de identidade de gênero, onde as musicistas estão com as

consideradas “roupas de meninos”, inclusive pelo fato de serem roupas mais folgadas, que não

marcam o corpo feminino, e o músico com um vestido, tido socialmente como “roupa de menina”.12

E quanto a isso, a câmera absorve a ideia e faz questão de mostrar quando captura e

transmite um momento em que o Chicão, que está em pé, de vestido, tocando os teclados, dança e

seu vestido balança, como se um vento estivesse levantando-o de baixo para cima. Além de

enfatizar a roupa, chega a ser cômico, pois aqui vemos a figura masculina, que está geralmente na

situação de opressor, vivendo uma situação das mulheres quando usam vestido e ou saia e têm que

lidar com ventos mais fortes que tendem a tirar o vestido da queda natural e levantá-lo, descobrindo

partes que deveriam estar cobertas devido às convenções sociais.

Não posso afirmar com precisão se a intenção da banda foi realmente retratar estas questões

de gênero, pois a entrevista ainda irá acontecer. Mas além de nos mostrar o quanto que o figurino

tem muito a dizer e o quanto esse tema necessita de estudos, principalmente no tocante às

performances musicais, confirma a necessidade de reflexões sobre identidades de gênero e música e

sobre relações de gênero e poder que sempre estiveram presentes no universo musical e na

produção de conhecimento sobre música.

Um outro ponto a refletir é a formação instrumental da Quartabê, considerando a relação

gênero x instrumento. Sobre o fato de que papéis musicais ainda são divididos em diversas

sociedades a partir das linhas de gênero, Koskoff (2014) ressalta que:

Certas atividades, instrumentos, contextos de performances, rituais, cerimônias, e assim por

diante, são vistas como responsabilidade primeira ou de homens ou de mulheres, raramente

11 Passagem de Som é um programa documental que narra os bastidores da criação musical, contando com

depoimentos de compositores e músicos que participam do Instrumental Sesc Brasil. Acesso em 25/07/2017. Disponível

em: https://passagemdesom.sesctv.org.br/projeto.

12 Opto por tratar como “menina e menino”, pelo fato da relação de alunos, como já mencionado.

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de ambos. Parece claro que esta divisão de papéis musicais baseadas no gênero emergem da

intersecção de noções de sexualidade e de poder culturalmente mantidas (KOSKOFF, 2014,

p. 77).13

Vários trabalhos sob a ótica feminista têm analisado essas relações assimétricas de poder, as

relações patriarcais que ainda persistem em diversas sociedades, de maneira que oprimem e

invisibilizam não só as mulheres (heterossexuais ou lésbicas), mas também os homens gays.

Lucy Green (2001), em seu livro Música, género y educación traz o conceito de “patriarcado

musical” para analisar essas relações de poder presentes no universo musical. Traçando

considerações sociais, sobre as identidades femininas em música, Green destaca que há diferenças,

tanto em termos de espaços para atuação quanto sobre aceitação, e tais diferenças permeiam as

mulheres enquanto cantoras, educadoras musicais, instrumentistas, compositoras e

improvisadoras14. A autora debate que em todas as situações, sempre houve uma busca, uma

imposição por um suposto “ideal de feminilidade”, um padrão estabelecido, onde as mulheres

tinham que se adequar para manter uma boa posição social.

Dessa forma, Green sustenta que as mulheres cantoras ou professoras são melhor aceitas

pelo fato de que afirmam essa feminilidade (as professoras, por exemplo, são associadas ao laço

materno). Já as mulheres instrumentistas, são vistas como parcialmente transgressoras, pelo fato de

que alguns instrumentos ajudariam a manter essa ordem social, como o piano, por exemplo, e as

improvisadoras e compositoras são consideradas como totalmente transgressoras por se

aproximarem de um trabalho mais intelectual, que dentro dessa construção social seria uma

qualidade e espaço masculino. Esse sentido de transgressão também está associado, segundo a

autora, à exibição corporal.

Tratando sobre as mulheres instrumentistas da música popular, Green comenta que a

capacidade dessas instrumentistas é questionada fundamentalmente “pelo fato de que esta questão

está relacionada com o perfil da feminilidade que surge de sua exibição corporal” (GRENN, 2001,

p. 80), e conclui que quanto mais afirmativa for a exibição, menos se confiará na capacidade da

mulher tocar um instrumento e que esta, e a música feita por ela, sejam levadas à sério. Sobre isso,

Nogueira (2015) conclui que:

13 Certain activities, instruments, performing contexts, rituals, ceremonies, and so on are seen as the primary

responsibility of either men or women, rarely both. It seems clear that the division of musical roles based on gender

arises from the intersection of culturally held notions of sexuality and power (KOSKOFF, 2014, p. 77). (Tradução

minha). 14 É importante ressaltar que este trabalho entende a categoria “mulheres” como heterogênea, não fazendo

generalizações em termos homogêneos.

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É com este imaginário que se lida: uma mulher será considerada transgressora ao assumir o

domínio da própria sexualidade, do próprio corpo. Por isto a necessidade da contenção

corporal, para marcar o pertencimento ao universo de distinção do trabalho intelectual e

minimiza a transgressão já esperada e em curso, agenciada por sua escolha artística

(NOGUEIRA, 2015, p. 332-333).

Em se tratando da Quartabê, todo o exposto acima deve ser útil para analisar suas

performances e escolhas artísticas. É uma banda de música instrumental popular brasileira (que

como comentado ainda é um gênero constituído em grande parte por instrumentistas homens)

composta em quase sua totalidade por mulheres que são instrumentistas, improvisadoras,

compositoras e também cantoras, ou seja, pela análise de Green são transgressoras. E como já foi

citado, também podemos perceber este caráter transgressor também nos

arranjos/composições/improvisos, na forma que movimentam os corpos na performance e também

na escolha de figurinos.

Considerando que gênero, como outras categorias como raça, etnia, sexualidade, geração,

etc., são categorias relevantes para construir uma teoria musical na etnomusicologia sob uma

perspectiva feminista, Rosa (2009) cita que:

A experiência coletiva na construção dos parâmetros musicais, sociais de gênero e de

sexualidade também consiste num ponto relevante. Considerar o sujeito e o conhecimento

produzido deste sujeito a partir de sua experiência de gênero e da construção de seu sexo e

de sua sexualidade (BUTLER, 2004; 1999; 1993) é importante, já que as relações e

representações de gênero são construídas por estas, que por sua vez, estão expressas

musicalmente (ROSA. 2009, p. 245).

Dessa forma, torna-se importante sempre considerar essas experiências de gênero e de

construção da sexualidade na Quartabê e analisar como essas representações são expressas

musicalmente em suas performances.

A partir da premissa de que a sexualidade é uma categoria analítica importante para

compreender, entre outras coisas, as performances, a minha pesquisa está agora começando a

dialogar com a teoria Queer, que contribui para a desnaturalização das diferenças sexuais para além

de uma perspectiva heteronormativa, abrindo assim a discussão para além das dicotomias, e com

isso contemplar mais possibilidades de interpretação da inserção do grupo na MPIB.

Referências

BARRETO, Carol. Moda e aparência como ativismo político: notas introdutórias. In: ENECULT -

Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura, 2015, SALVADOR. XI ENECULT, 2015. v.

1-2015.

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Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

CARDOSO, Ângelo Nonato Natale. A linguagem dos tambores. Tese (Doutorado em Música) –

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An analysis of Quartabê's performance at the interpretation of “Oduduá”

Astract: This research intends to share an analysis of the Quartabê band performance, playing the

song "Oduduá" made by the composer Moacir Santos, at a show, in 2015, avaliable in video on

youtube. This analysis is a part of my research of Masters in progress, from the perspective of the

Studies of Genres and Ethnomusicology, intends to accomplish a dialogical analysis of the female

actuation the musicians, focusing on the Quartabê band and its activities in the context of brazilian

popular Instrumental music (BPIM). The Quartabê band is composed by the musicians Ana Karina

Sebastião (bass), Joana Queiroz (clarinet, bass clarinet and sax), Maria Beraldo Bastos (clarinet and

bass clarinet), Mariá Portugal (drums) and Rafael Montorfano (piano and keyboards) And was

created in 2014, especially for the Moacir Santos Festival, in Rio de Janeiro. Quartabé does not

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

make just a simple rereading of the works of Moacir Santos, but a new wheel of works, mixing

several elements brought from other influences, like rock, afrobeat and even pop, being able to

speak of a certain "deconstruction" of the works. In Oduduá the band uses several electronic effects

and rock, being very different from the original version of the composition and adding elements in

the performance act. The analysis intends to understand how these elements are used by Quartabê in

the performance of Oduduá music and its unfolding, besides that, it wants to evoke discussions

about the female performance in BPIM.

Keywords: Ethnomusicology, Gender Studies, Performance, BPIM.