um território híbrido na maré

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1 Um território híbrido na Maré, RJ. Novo território cultural? Lilian Fessler Vaz 1 Resumo: O presente texto analisa a transformação, em tempos de globalização, de uma região no Rio de Janeiro, composta de uma pequena área industrial e uma grande área de favelas. Nas suas franjas verifica-se o surgimento de um novo território: um território de resistência, híbrido de moradia, trabalho e cultura. A ênfase do trabalho recai sobre os processos de formação e de transformação dos espaços arquitetônicos e urbanos, que se constituem em lugares e territórios, assim como sobre a relação entre a cultura emergente e a cidade existente. A partir de uma contextualização do objeto, apresenta-se um pequeno histórico do referido território, e as ações culturais que o transformam. Seguem-se análises, questionamentos e reflexões que entrelaçam o objeto, seus principais agentes e os processos que engendram. Por ser um estudo transdisciplinar, a sua base teórica e conceitual provém de autores de diversos campos do conhecimento. Trabalhamos inicialmente com o conceito de hibridação, apoiados em CANCLINI N. (1999 e 2008), que analisa as mesclas, reconversões e reabilitações que ocorrem em tempos de globalização, recusando a fixação em disciplinas isoladas e conceitos rígidos, e privilegiando as premissas de heterogeneidade e de hibridação. Recorremos ainda aos conceitos de espaços opacos, formulados por SANTOS M. (1994) e de espaços de resistência formulados por HOLSTON J. (1996), associando-os às manifestações culturais enquanto formas de resistência a forças de exclusão social. Palavras-chave: Ação cultural; favela; resistência. Brevíssima contextualização Em termos amplos, podemos dizer que o mundo contemporâneo vem se globalizando, se mercantilizando, se virtualizando e se culturalizando; que as suas sociedades vem se fragmentando e seus espaços se formando e se transformando. A partir do final dos anos 1970, alguns fatos, fenômenos e processos se destacaram. Referimo-nos, apenas rapidamente, à progressiva desindustrialização e suas conseqüências econômicas, sociais e urbanas; ao colapso dos modelos de desenvolvimento centrados no progresso material e no crescimento econômico, com suas conseqüências de crescente polarização social e aumento da pobreza; e à constante redução da ação do Estado e das políticas sociais. E, finalmente, a um boom de cultura, em suas diversas manifestações. Associados aos processos citados, no que diz respeito ao contexto urbano/cultural, assinalamos dois conjuntos de fenômenos: por um lado, as grandes intervenções urbanas que utilizam a cultura como estratégia principal, e por outro, as experiências populares participativas que buscam reduzir 1 PROURB/FAU/UFRJ

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Texto de sociologia urbana.

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    Um territrio hbrido na Mar, RJ. Novo territrio cultural?

    Lilian Fessler Vaz1

    Resumo: O presente texto analisa a transformao, em tempos de globalizao, de uma regio no Rio de Janeiro, composta de uma pequena rea industrial e uma grande rea de favelas. Nas suas franjas verifica-se o surgimento de um novo territrio: um territrio de resistncia, hbrido de moradia, trabalho e cultura. A nfase do trabalho recai sobre os processos de formao e de transformao dos espaos arquitetnicos e urbanos, que se constituem em lugares e territrios, assim como sobre a relao entre a cultura emergente e a cidade existente. A partir de uma contextualizao do objeto, apresenta-se um pequeno histrico do referido territrio, e as aes culturais que o transformam. Seguem-se anlises, questionamentos e reflexes que entrelaam o objeto, seus principais agentes e os processos que engendram. Por ser um estudo transdisciplinar, a sua base terica e conceitual provm de autores de diversos campos do conhecimento. Trabalhamos inicialmente com o conceito de hibridao, apoiados em CANCLINI N. (1999 e 2008), que analisa as mesclas, reconverses e reabilitaes que ocorrem em tempos de globalizao, recusando a fixao em disciplinas isoladas e conceitos rgidos, e privilegiando as premissas de heterogeneidade e de hibridao. Recorremos ainda aos conceitos de espaos opacos, formulados por SANTOS M. (1994) e de espaos de resistncia formulados por HOLSTON J. (1996), associando-os s manifestaes culturais enquanto formas de resistncia a foras de excluso social. Palavras-chave: Ao cultural; favela; resistncia.

    Brevssima contextualizao

    Em termos amplos, podemos dizer que o mundo contemporneo vem se globalizando, se

    mercantilizando, se virtualizando e se culturalizando; que as suas sociedades vem se fragmentando e

    seus espaos se formando e se transformando. A partir do final dos anos 1970, alguns fatos, fenmenos

    e processos se destacaram. Referimo-nos, apenas rapidamente, progressiva desindustrializao e suas

    conseqncias econmicas, sociais e urbanas; ao colapso dos modelos de desenvolvimento centrados

    no progresso material e no crescimento econmico, com suas conseqncias de crescente polarizao

    social e aumento da pobreza; e constante reduo da ao do Estado e das polticas sociais. E,

    finalmente, a um boom de cultura, em suas diversas manifestaes.

    Associados aos processos citados, no que diz respeito ao contexto urbano/cultural, assinalamos

    dois conjuntos de fenmenos: por um lado, as grandes intervenes urbanas que utilizam a cultura

    como estratgia principal, e por outro, as experincias populares participativas que buscam reduzir

    1 PROURB/FAU/UFRJ

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    desigualdades e democratizar o acesso a condies de cidadania as aes culturais. Consideramos que

    no primeiro caso, nos espaos luminosos, a cultura vista como instrumento de desenvolvimento

    econmico, e no ltimo, nos espaos opacos, ela considerada como instrumento de desenvolvimento

    humano e social. Curiosamente, os fenmenos realam a pertinncia dos termos utilizados por Milton

    Santos para designar os dois lados da cidade, ao se referir aos espaos luminosos, que seriam as

    reas constitudas ao sabor da modernidade e que se justapem e contrapem ao uso da cidade onde

    vivem os pobres, nas zonas urbanas opacas. Estes so os espaos do aproximativo e da criatividade,

    opostos s zonas luminosas, espaos da exatido. SANTOS M. (2008, p. 326)

    Favelas no Rio de Janeiro Complexo da Mar

    As favelas so o padro predominante de moradia popular do Rio de Janeiro, caracterizando-se

    pela sua precariedade construtiva, sua insalubridade, sua irregularidade urbanstica e sua ilegalidade

    jurdica. O nmero de moradores que abrange controverso: os dados do ltimo censo j foram

    fortemente alterados pelo crescimento das favelas nesta dcada e as estimativas so divergentes,

    oscilando entre 1.300.000 e 2.000.000 de habitantes2, para uma populao total da cidade de 6.161.047

    habitantes3.

    O chamado Complexo da Mar situa-se s margens da baa de Guanabara, entre as duas vias

    estruturais de acesso cidade do Rio de Janeiro, aproximadamente a meio caminho entre o centro da

    cidade e o seu aeroporto internacional. Esta regio alagadia foi saneada, iniciando-se a sua

    urbanizao na primeira metade do sculo XX. Nos anos 1930 e 1940 ela foi designada como industrial

    e conectada malha urbana atravs de importante eixo virio (Avenida Brasil), dando origem a vrias

    fbricas que se instalaram nos bairros vizinhos. A regio da Mar foi assim, delimitada entre este eixo e

    a gua, e caracterizada pelas atividades industriais, comerciais e de moradia. Devido aos baixos

    salrios, os trabalhadores atrados pelas oportunidades de trabalho fabril criaram algumas favelas,

    inicialmente nos poucos terrenos nas proximidades, posteriormente sobre palafitas, caracterstica do

    local. Nos anos 1980 a concentrao de favelas no litoral sofreu uma grande interveno para

    saneamento, urbanizao e criao de conjuntos residenciais, seguida da construo de novo eixo virio

    2 A falta de informao e as divergncias a respeito so de tal ordem que em 22/03/2010, quando da abertura do Frum Urbano Mundial e do Frum Social Urbano, o jornal O Globo informou em uma notcia que a populao favelada era de 1.300.000 habitantes e em outra, de 2.000.000 de habitantes. 3 http://portalgeo.rio.rj.gov.br/estudoscariocas/download/2407_Estimativas%20MRJ%20em%202008.pdf (acesso em 26/02/2010).

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    sobre aterro (Linha Vermelha). O complexo abriga atualmente mais de 132.000 habitantes4,

    distribudos por dezesseis comunidades, entre favelas originais e conjuntos residenciais construdos

    para abrigar a populao removida das palafitas e de outras reas da cidade (VAZ L. e JACQUES P.,

    2004). Cabe mencionar ainda como caractersticas do local a violncia e o seu ndice de

    Desenvolvimento Humano, o terceiro pior da cidade em 20075.

    Com a desindustrializao, fbricas foram desativadas e abandonadas, dando lugar a grandes

    vazios industriais que contribuam para a degradao do lugar. Com a reduo das oportunidades de

    trabalho, das polticas pblicas sociais e de habitao, os vazios industriais foram sendo ocupados para

    diferentes atividades, das quais destacamos as de moradia e de cultura. O primeiro caso remete

    invaso de ptios e galpes por pessoas desabrigadas que subdividem os espaos construindo pequenas

    casas, levando conformao da favela ps-industrial, escondida atrs dos altos muros das estruturas

    fabris. O segundo tipo de ocupao remete instalao dos grupos culturais locais na tentativa de

    superar a carncia de espaos para prticas culturais. Cabe assinalar que os vazios industriais da Mar e

    do resto dos subrbios cariocas, ao contrrio daqueles situados na zona porturia da cidade, no

    constituem foco de polticas de revitalizao, permanecendo cenrios degradados na paisagem local.

    Aes Culturais6

    Ao nos referirmos s aes culturais, aludimos s iniciativas populares participativas de grupos

    comunitrios, em geral jovens, que mantm forte relao com o espao urbano onde se inserem, que se

    expressam atravs das mais diferentes expresses artsticas e culturais, procurando atuar em direo

    transformao e ao desenvolvimento coletivo do grupo. Este tipo de ao cultural popular surgiu nos

    anos 1980, apresentando notvel desenvolvimento nas duas ltimas dcadas.

    Para COELHO T., (2001), a concepo de ao cultural sempre fundamentalmente social,

    pois carrega em si um esprito utpico, buscando uma democratizao da cultura, fazendo com que as

    pessoas sejam os prprios sujeitos das aes, criando as prprias condies, meios e fins de sua

    realizao. Nos espaos opacos em que imperam a carncia de todos os tipos de equipamentos: de

    4 Dados do Censo Mar 2000. 5 Legado Social dos XV Jogos Pan Americanos Rio 2007 - Diagnstico Social e Esportivo de 53 favelas cariocas. In: http://www.observatoriodefavelas.org.br/observatoriodefavelas/includes/publicacoes/04e3877d1c06cddaf96d26d9d7b67ebf.pdf (acesso em 31/03/2010). 6 Partes do texto a seguir foram inicialmente desenvolvidas em: VAZ, L. e SELDIN, C. 2007 e 2008.

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    educao, de sade, de esportes, de lazer e de cultura, os grupos se vem forados a improvisar espaos

    prprios onde possam realizar ensaios, oficinas, reunies, etc.

    Conscientes de no terem acesso aos modos culturais tradicionais, acostumados com a

    indiferena e com a falta de espaos para a realizao de suas atividades, estes jovens vem nas aes a

    oportunidade de sair de um estado de invisibilidade, afirmando seu lugar e seus direitos na cidade, o

    que se alia a um forte carter de resistncia. Cabe ainda assinalar que as aes que emergem dos

    espaos opacos atribuem visibilidade a novos atores sociais que, atravs de formas prprias de

    organizao e criao, se mostram capazes de subverter os objetivos contemplativos da arte,

    fortalecendo o que vem sendo chamado de cultura da periferia (HOLLANDA H., 2005).

    No Complexo da Mar podemos observar como atuaram alguns destes grupos e como suas

    praticas contriburam para a criao e a transformao dos seus equipamentos culturais, tanto na escala

    arquitetnica quanto na escala urbana. Apresentamos, a seguir, duas das aes culturais ativas na regio

    e seus respectivos espaos, elementos centrais na transformao do territrio a ser analisado.

    Centro de Estudos e Aes Solidrias da Mar e Museu da Mar

    O Centro de Estudos e Aes Solidrias da Mar CEASM, uma associao civil sem fins

    lucrativos, foi criada em 1997, por um grupo de moradores e ex-moradores locais que conseguiram

    concluir cursos universitrios. Preocupado com os campos educacional, cultural e de comunicao, o

    grupo passou a desenvolver projetos apoiando o potencial criativo de sua populao e valorizando o

    olhar interno da comunidade. Dos seus muitos projetos e atividades, desenvolveu-se a Rede Memria, a

    partir da importncia do conhecimento e da compreenso da histria e da memria locais para a

    formao e a identidade dos seus moradores. Assim, do registro de informaes, de documentos, de

    depoimentos, de imagens e de objetos recebidos, da criao de um arquivo, da edio de livros e da

    realizao de uma exposio sobre a Mar, surgiu o projeto do museu. Para isto contribuiu o fato do

    CEASM ter obtido, em 2003, a cesso do uso de um imvel desativado para as suas diversas

    atividades.

    Inaugurado em 2006, o Museu faz parte de um equipamento cultural maior: a Casa de Cultura

    da Mar, ocupando ptios e galpes que at os anos 1990, eram utilizados para reparos de barcos.

    Devido ao seu amplo espao, o CEASM decidiu alocar ali suas oficinas culturais e os projetos ligados

    preservao da memria local, dentre eles, o prprio Museu da Mar, considerado pelo Ministrio da

    Cultura como o primeiro museu em favela do Brasil.

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    Seu acervo majoritariamente composto por doaes dos moradores, organizadas de modo a contar ao

    visitante a histria da comunidade do seu prprio ponto de vista. A exposio permanente dividida

    em doze tempos, cada qual focalizando um aspecto de importncia da vida na Mar: tempo da

    imigrao, da gua, da casa, do trabalho, do cotidiano, da resistncia, da festa, da feira, da f, da

    criana, do medo e do futuro (SELDIN C., 2008).

    Dentre eles, o que se mais destaca o tempo da casa, representado por uma alta palafita,

    reproduzindo o tipo de habitao que caracterizou a regio durante dcadas. A casa de palafita uma

    estrutura livre, sustentada por estacas de madeira e dotada de uma pequena varanda. Internamente, a

    casa de apenas um cmodo preenchida por mveis e objetos variados doados pela comunidade.

    Atravs da palafita, se reconhece o padro habitacional como um dos pontos mais importantes para a

    histria local, destacando-o como um aspecto fundamental da construo daquele povo e do esprito do

    lugar.

    A palafita, que rene as lembranas e fragmentos das vidas de seus moradores, suas vivncias e

    experincias (VIEIRA A., 2007), atua como um abrigo para os corpos e um suporte para as memrias

    dos antigos moradores. Corpos tambm esto presentes no espao museal: materialmente, na forma de

    grandes reprodues fotogrficas de figuras humanas, e virtualmente, no ambiente, principalmente no

    interior da casa. Alm disso, a rplica evoca lembranas e refora memrias, que se apiam sobre o

    suporte material reconstrudo.

    O destaque dado casa funciona como uma forma de auto-afirmao: apesar de erradicada da

    favela, a palafita no se apaga da memria de sua populao. Ela foi resignificada: o desprezado

    smbolo da misria torna-se o marco dos tempos hericos da resistncia.

    Este carter de resistncia enfatizado atravs de elementos que remetem ao trabalho e esforo

    de construir a moradia prpria em uma regio onde as condies naturais eram to desfavorveis. A

    simples existncia do Museu denota a resistncia contra processos culturais hegemnicos, ao afirmar a

    favela como lugar de cultura e de memria, reconhecendo as diferenas entre as muitas comunidades

    que compem a Mar, colocando-a como um espao heterogneo e diversificado. Neste sentido, o

    Museu se destaca ao [afirmar] como seu ncleo de interesse principal no a ao preservacionista, mas

    a vida social dos moradores (CHAGAS M.; ABREU M., 2007). Sua inteno cultural, social e

    poltica, pois pretende colocar o morador em contato com suas origens, conscientizando-o sobre sua

    prpria histria e indicando que a memria da Mar encontra-se dentro daqueles que a habitam.

  • 6

    O reconhecimento dos significados, da importncia e do papel exemplar do Museu da Mar

    veio a pblico com a atribuio de condio de Ponto de Cultura pelo Ministrio da Cultura,

    amplificando a sua crescente visibilidade e o processo de resignificao do lugar.

    Grupo de Capoeira Angola Ypiranga de Pastinha e Centro de Artes e Cultura Popular da Mar

    O Centro de Artes e Cultura Popular da Mar resultou da iniciativa do Grupo de Capoeira

    Angola Ypiranga de Pastinha, e contou com a participao de outras aes culturais, num processo de

    disputa e ocupao de imvel que envolveu grande variedade de atores.

    No Morro do Timbau, situa-se uma fbrica de material de construo fechada. Depois de sua

    transferncia para So Paulo, seus proprietrios legais encontraram grandes dificuldades em vender o

    imvel, em decorrncia de sua localizao, em uma rea conhecida pela violncia e pelas constantes

    guerras entre faces rivais do trfico de drogas uma imagem amplamente divulgada pela mdia.

    Assim, o imvel permaneceu abandonado durante cerca de duas dcadas, tendo seus impostos

    sonegados pelos proprietrios, que acumulavam uma alta dvida junto ao governo municipal. Como

    soluo, eles propuseram sua doao a uma instituio capaz de arcar com o valor da dvida, o que no

    ocorreu.

    O abandono do imvel composto por um edifcio administrativo de cinco andares, dois vastos

    galpes e ptios era conhecido pelos moradores vizinhos, muitos dos quais compreendiam aqueles

    espaos como disponveis e passveis de ocupao. Assim, nos ltimos anos, o local se tornou o alvo de

    invases de desabrigados e de jovens ligados ao trfico de drogas, fato que culminou na massiva

    depredao das construes.

    Ciente destes processos, a Associao de Moradores do Timbau procurou evitar a ocupao

    depredatria, contatando os proprietrios e o poder pblico, propondo a limpeza de um dos ptios e sua

    converso em quadra de esportes com o auxlio daqueles que o vinham arruinando. Com isso, estas

    pessoas passaram a trabalhar em parceria com a Associao, dando incio a um perodo de articulao e

    negociao entre um leque de diferentes agentes sociais, que compreendia moradores locais, no-

    moradores, movimentos associativos, grupos culturais e ONGs, proprietrios legais, membros de

    rgos pblicos e traficantes locais. A limpeza do ptio foi realizada em seis meses e a venda do

    entulho foi revertida em benefcio dos participantes, que passaram a se sentir legitimados a utilizar os

    espaos.

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    No entanto, o fracasso das negociaes para um acordo entre os donos do terreno e o governo

    municipal acarretou na transferncia de propriedade para a Prefeitura do Rio. Apesar dos esforos das

    lideranas comunitrias e culturais envolvidas, a lentido do governo e a dificuldade de promover a

    contnua manuteno dos espaos nos dez meses decorrentes levaram a uma nova depredao do

    imvel, desta vez acompanhada pela ocupao habitacional dos ptios e de um galpo, iniciada por

    moradores expulsos de outras comunidades, desencadeando um processo de favelizao intramuros.

    Diante de nova iminente ocupao, em 2006, um grupo cultural ocupou o andar trreo do

    edifcio administrativo no intento de assegurar aquele espao, impedindo posteriores invases. Tratava-

    se do Grupo de Capoeira Angola Ypiranga de Pastinha.

    Este grupo, criado em 1998 e coordenado por Emanuel Lopes Lima, o Mestre Manoel, tem

    como proposta aliar a prtica fsica ao aprendizado da histria da capoeira, valorizando suas razes

    negras e buscando formar novos agentes multiplicadores, capazes de conscientizar atravs da arte.

    A Capoeira Angola, adotada pelo grupo da Mar, segue a linha da escola de Mestre Pastinha,

    que valoriza a conexo com a dana e os movimentos de defesa e ginga (meneio de corpo), que exigem

    grande flexibilidade, rapidez e esforo muscular. A capoeira exige que seu praticante tome atitudes e

    iniciativas baseadas em raciocnio, intuio e improviso, em resposta aos movimentos vacilantes e

    enganadores do adversrio. Aqueles que a dominam bem possuem a mandinga", muito relacionada ao

    conhecido jogo de cintura brasileiro. Este elemento denota outra caracterstica importante da

    capoeira: a necessidade de tomar um posicionamento, presente nas situaes de luta, que pode ser visto

    como uma preparao para a vida e para o enfrentamento de problemas do cotidiano.

    A capoeira ensinada por Mestre Manoel procura propiciar a cada praticante (em sua maioria

    crianas e adolescentes), sua expresso corporal individual, promovendo o seu desenvolvimento

    pessoal. Alm disso, o aprendizado da histria afro-brasileira, as discusses com os alunos, as regras de

    conduta adotadas e as apresentaes em espaos pblicos estimulam tambm a conscientizao pessoal

    e coletiva.

    Enquanto a maior parte das apresentaes acontece ao ar livre, o ensino e os ensaios so

    realizados na velha fbrica do Morro do Timbau. O sucesso de suas atividades fez com que outros

    grupos culturais percebessem o potencial do lugar. Tambm prejudicados pela ausncia de locais

    prprios para sua atuao, estas aes culturais, de menor porte, buscaram uma aliana com o grupo de

    capoeira, distribuindo-se nos cinco andares do prdio.

    Assim, surgiu o Centro de Artes e Cultura Popular da Mar, um ncleo alternativo de cultura.

    Em seu andar trreo, destaca-se o GCAYP, que oferece tambm aulas de dana afro, jongo, apoio

  • 8

    escolar e oficinas de samba de roda e artesanato. As duas ltimas so frutos da colaborao com um

    projeto voltado para a msica, e que tambm responsvel por uma orquestra de berimbaus. H ainda

    uma academia de jiu-jitsu e um estdio de gravao musical que atende a cerca de quinze bandas

    locais.

    Espaos e terrritrios

    Os casos aqui abordados so excepcionais, mas no so os nicos da regio; pelo contrrio,

    registram-se, nas suas proximidades, outras aes, outros espaos e outros processos de transformao.

    Apesar da grande diversidade, eles guardam traos em comum: a localizao na porosidade da fronteira

    entre a zona industrial e a favela, o uso de edificaes fabris, o fato de exercerem atividades culturais e

    a atitude pr-ativa dos grupos. Eles refletem fenmenos atuais, que articulam vazios urbanos e aes

    culturais populares. Seja na materialidade da palafita do Museu da Mar ou na imaterialidade da

    capoeira praticada no Centro de Artes e Cultura Popular da Mar, as iniciativas populares se fazem

    presentes, mostrando diversas formas de afirmao de seus direitos cultura e cidade. Cabe assinalar

    que os dois exemplos apresentados so casos que melhor representam esta inteno, alm de serem

    processos de constituio bottom-up: o CEASM, atravs da criao do primeiro museu de (em) favela

    no Brasil, afirmando e ressignificando o carter da histria da sua comunidade, e o GCAYP, atravs da

    invaso e da ocupao do imvel, assim como da prtica, do ensino e da divulgao da capoeira, marca

    da sua origem afro-brasileira e smbolo de resistncia.

    Os dois processos relatados mostram a criao de novos espaos, seja em escala arquitetnica,

    seja em escala urbanstica. So novos espaos em termos arquitetnicos, pois as construes industriais

    tiveram os interiores transformados para servir a outros usos, os culturais. Neste sentido, consideramo-

    los como equipamentos culturais, embora eles no se enquadrem nos padres formais ou tradicionais,

    como teatros e cinemas. Finalmente, estes espaos tambm so novos em termos urbansticos, pois

    verifica-se que o conjunto formado pelos dois centros estudados e por outros cinco equipamentos

    culturais - o Observatrio das Favelas, a Lona Cultural Herbert Vianna, que abriga tambm a

    Biblioteca Popular Municipal Jorge Amado, as sedes do CEASM, do Redes Mar, do Centro de Artes

    da Mar e da a Ao Comunitria do Brasil na Vila do Joo , e o entorno comum, definem um novo

    territrio. No o consideramos nem como distrito cultural nem como stio cultural, termos que guardam

    uma conotao operacional, utilizados no planejamento e nas polticas urbanas, preferindo adotar o

    conceito de territrio cultural.

  • 9

    Segundo BONNEMAISON J., (2002, p. 99), a relao simblica existente entre a cultura e o

    espao se exprime e se fortalece atravs do territrio. Esta relao se estabelece por se articularem trs

    elementos complementares: um grupo social, sua cultura e seu territrio. Teoricamente este territrio se

    constitui atravs de um conjunto de lugares hierarquizados, conectados por uma rede de itinerrios,

    estabelecidos por determinado grupo social em suas prticas scio-culturais e scio-espaciais. Em

    termos urbansticos, compreendemos as redes de itinerrios como espaos livres pblicos ruas,

    praas, etc. que conectam os lugares. E compreendemos os lugares como plos onde os grupos se

    concentram e onde sua cultura se condensa em smbolos: materialmente atravs de suas arquiteturas, ou

    imaterialmente, atravs das prticas que neles se realizam,e dos significados que neles permanecem

    impregnados. Cabe assinalar, com SANTOS M., (2008, p. 96), que os lugares se definem como pontos

    onde se renem feixes de relaes, e com BARKER C., (2005, p. 445), que lugares so localizaes

    socialmente construdas, nos quais ocorre a produo de sentido no espao.

    Por estar se delineando, este novo territrio tem fronteiras imprecisas; mas tem plos e redes de

    itinerrios claramente definidos. Sobre fronteiras, melhor seria dizer que seria um territrio nas franjas

    de uma fronteira (entre o tecido urbano da zona industrial e o da favela), claramente percebida: grandes

    galpes industriais de um lado, pequenas casas populares do outro; tecido urbano formal de um lado,

    informal do outro. Enquanto esta fronteira uma mescla dos dois tecidos, indeterminada, o territrio

    atravessado por outra fronteira invisvel, mas de forte presena no local: a fronteira entre diferentes

    faces do trfico, que se impe pela violncia.

    A mescla assinalada amplificada por um discreto processo de melhoramentos na via principal

    e no seu entorno, onde outros galpes se renovam, sendo muitos para uso religioso; comrcios mais

    pobres e pequenos so substitudos por lojas mais vistosas e prdios renovados; e possivelmente j se

    identifica um processo de gentrificao no local. Conforme depoimento de um membro da

    administrao do Museu da Mar, tambm o status do lugar j se alterou: se antes, para que um txi

    aceitasse levar o passageiro at o local (ou prximo dele), no interior da favela, era necessrio referir-se

    ao local de destino como Bonsucesso (nome do bairro formal prximo), pois corria-se o risco do

    passageiro e o trajeto pedido serem recusados. Em 2009, os txis j costumam aceitar passageiros que

    se dirigem ao Museu, mesmo dizendo o nome do bairro estigmatizado: Mar.

    Uma caracterstica importante de ser assinalada quanto a este processo de renovao urbana, o

    fato de que o principal agente social responsvel por esta transformao no ter sido o poder pblico,

    que, muito pelo contrrio, no tem muita atuao na regio, a no ser a policial, mas sim a populao

    local.

  • 10

    Localizao dos principais equipamentos culturais na Mar, sobre foto area.

    Fonte: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, Instituto Pereira Passos (foto).

    Como compreender estes espaos e estes territrios?

    Inicialmente, cabe procurar a resposta quanto aos territrios e zonas opacas, em geral.

    Destacamos aqui diversos autores consideram as favelas e periferias como espaos de resistncia, que

    uma caracterstica que tambm identificamos no local. Neste sentido citamos HOLSTON J., (1996),

    para quem estes ambientes construdos constituem espaos de afirmao social, resultantes de um agir

    contra, ou, nas suas palavras, espaos de cidadania insurgente. A conotao de resistncia, associada

    aos espaos opacos, est ainda presente em RIBEIRO A., (2004), ao observar que os moradores dos

    espaos opacos so os verdadeiros desbravadores de oportunidades criativas, insubordinadas e

    disruptivas, pois destes habitantes e dos seus espaos que advm inovaes realmente radicais.

    FORTUNA C. e SILVA A., (2002) assinalam a conotao de resistncia e criatividade presente nos

    grupos artsticos em espaos degradados; e PORTO M., (2005), afirma serem os espaos opacos

  • 11

    lcus privilegiados de mudanas sociais estruturais. A interpretao de parte do Complexo da Mar

    como um territrio de resistncia cultural foi assinalado por Claudia Seldin (2008, p.108).

    Mas o territrio em questo apresenta certas particularidades, percebidas de diferentes formas.

    Quem circula pela Linha Vermelha, como os viajantes que desembarcam no Aeroporto Internacional

    do Rio de Janeiro e se dirigem para a sua rea central e/ou para as reas tursticas da zona sul, percorre

    uma via expressa que atravessa ou contorna diversas favelas por vrios quilmetros. Alguns, mais

    atentos, se surpreendem, quando, em meio a um mar de favelas, percebem, dentre as placas formais

    de sinalizao rodoviria, as que indicam a direo de diferentes bairros e uma placa que indica, atravs

    de um cone e duas palavras, a proximidade e a direo do Museu da Mar. Com efeito, a indicao,

    por parte de rgo competente do poder pblico, de um equipamento como um museu numa zona

    caracterizada pela ausncia de todo tipo de equipamentos, e um museu de favela, que expe o que

    tantas vezes tantas vozes quiseram apagar da paisagem carioca7, desconcertante. E indicativo de que

    h algo de novo naquele lugar.

    Como compreender estes espaos e este territrio? Como compreender e lidar com este novo

    territrio to heterogneo? O que as polticas e o planejamento urbanos tem a dizer sobre ele? Como

    lidar com espaos informais (favela), que se fundem com espaos formais (zona industrial), e que

    foram reapropriados, reconvertidos e resignificados? Como ordenar e planejar o que no se sabe bem o

    que e muito menos, o que ser?

    Nestor Canclini afirma que, quando alguns conceitos irrompem com fora, deslocam outros ou

    exigem reformul-los (CANCLINI N., 2006), estamos possivelmente percebendo que uma disciplina

    ou um campo de conhecimento esto mudando. O campo das polticas e do planejamento urbano talvez

    mude, em face destas novas realidades. Estamos diante do desafio de lidar, por um lado, com novas

    formas de apropriao, ocupao e utilizao de antigas edificaes, e por outro lado, com novos usos

    do solo que subvertem as leis de zoneamento, redefinindo, como visto, novos territrios que no se

    enquadram nos padres vigentes.

    As polticas pblicas, apesar dos avanos nas questes referentes cidade informal - favelas e

    periferias -, ainda no enfocam com clareza esta nova realidade, que no se enquadra nos padres

    anteriormente existentes, particularmente os aqui relatados: a ocupao de imveis vazios, a formao

    de favelas intra-muros e de um centro cultural com estas caractersticas.

    7 Em maio de 2010 as margens da Linha Vermelha estavam em obras, sendo protegidas com placas plsticas decoradas para impedir a vista do entorno o Complexo da Mar!

  • 12

    Na verdade, o tema de imveis abandonados cabe inicialmente aos rgos municipais de

    fazenda, que impem como condio primeira para qualquer regularizao ou transferncia de

    propriedade, a sua legalizao atravs do pagamento dos impostos devidos ao longo de vrios anos,

    condio difcil de realizar para proprietrios de empresas falidas, e impossvel para os moradores ou

    grupos culturais. Os rgos municipais de planejamento atuam realizando levantamentos de reas

    nestas condies e sugerindo o uso produtivo destes locais por empresas e instituies (como por

    exemplo, para grandes call centers e centros sociais), sem resultado prticos conhecidos. Apesar de

    notcias sobre estudos e propostas de reabilitao de grandes estruturas fabris para diversas atividades,

    no caso do Rio de Janeiro h planos conhecidos apenas para revitalizao da Zona Porturia, porm

    no para a revitalizao de zonas industriais.

    Alm da ilegalidade das ocupaes, ressalta-se a irregularidade do uso do solo, em particular, a

    mistura de usos do solo. Como sabemos, a legislao sobre zoneamento, uso e ocupao do solo do Rio

    de Janeiro foi construda ao longo de uma poca em que prevalecia o paradigma modernista no

    urbanismo, que acentuava a diviso estrita das funes urbanas, recomendada pela Carta de Atenas, e

    rejeitava as misturas de atividades, embora estivessem presentes nos espaos urbanos. Um exemplo

    clssico desta rejeio realidade o modo de tratamento dos bairros das periferias da rea Central de

    Negcios pela legislao urbana ao longo do sculo XX. Os bairros centrais eram vistos como

    imprecisos entre o residencial e o central, indefinidos entre o ncleo e a periferia, e indeterminados

    entre o passado e o futuro, o que determinou seu esvaziamento e sua degradao (VAZ L. e SILVEIRA

    C., 2009). Apenas em meados dos anos 1990 esta dicotomia funcional comeou a se desfazer quando a

    mistura de usos passou a ser reconhecida e aceita como positiva, e a presena da moradia, que havia

    sido proibida na rea central8, passou a ser considerada essencial nas polticas pblicas para estas reas.

    A rejeio e a negao de aspectos da realidade no espao e na vida urbana, que caracterizou o

    pensamento racionalista e funcionalista da arquitetura, do urbanismo e do planejamento modernistas, e

    que vem sendo contestado por vrios autores contemporneos, foi apontada, ainda nos anos 1960, por

    Jane Jacobs, e nos anos 1970, por Milton Santos. Em 1996, em A Natureza do Espao, Milton Santos

    se referia ao espao geogrfico, um hbrido, lembrando que Bruno Latour j havia apontado o

    equvoco epistemolgico, herdado da modernidade, de pretender trabalhar a partir de conceitos

    puros, e indagado por que, em nossa construo epistemolgica, no preferimos partir de hbridos,

    em vez de partir da idia de conceitos puros? (SANTOS M., 2008, p. 101) Ele lembrava ainda que em

    8 Pelo decreto n 322 de 1976.

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    1978, em O Trabalho do Gegrafo no Terceiro Mundo, a sua proposta da noo de forma-contedo do

    espao geogrfico era correlata da idia de mistos e hbridos.

    Estas observaes remetem a definio de hibridao de Nestor Canclini (2008). Para ele,

    hibridao seria o conjunto dos ...processos scio-culturais nos quais estruturas ou prticas discretas,

    que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e prticas.

    Referindo-se aos estudos culturais, CANCLINI (1997) explica que a diferena entre os modos de

    conceber o objeto de pesquisa depende dos lugares de enunciao ou dos postos de observao do

    pesquisador. E que a sua postura em tempos globalizados de multiculturalidades, mesclas, reconverses

    e reabilitaes, a de recusar a fixao em disciplinas isoladas e conceitos rgidos, e de privilegiar as

    premissas de heterogeneidade e de hibridao. Na sua opinio, para compreender os objetos dos

    estudos culturais atuais, convm situar-se nas intersees das narrativas que se opem e se cruzam,

    enfatizando as reas de intermediao cultural, social e poltica. Deste ponto de vista decorre sua

    recomendao de privilegiar as intersees. Por outro lado, ele sustenta que o foco do estudo, como

    por exemplo, no caso das culturas hbridas, no deve ser a hibridez em si, mas sim os processos de

    hibridao. Deste ponto de vista decorre a sua posio de privilegiar os processos.

    Este foi o enfoque atravs do qual procuramos apresentar o processo de constituio do

    territrio, que, efetivamente revela novos e diversos atores sociais, atividades culturais, formas de

    apropriao do espao e de resistncia. O estudo dos processos de formao e de transformao dos

    espaos existentes, tanto os arquitetnicos quanto os urbanos, revelaram uma particularidade que se

    repete: a mescla de elementos no somente heterogneos, mas aparentemente descombinados e

    embaralhados. Assim, espaos, tempos, processos e atividades se encontram em transio, e tambm

    misturados. E mesclas no usuais coexistem: de espaos formais e informais, de tradio e de inovao,

    de moradia, de trabalho e de cultura, entre outras. Trata-se de um territrio que se forma no como

    antes, a partir de elementos determinados e homogneos, mas de vrias mesclas; ele se (trans)forma j

    hbrido.

    Mais ainda, o novo territrio se forma enquanto um hbrido cultural, pois os lugares que o

    definem so justamente os equipamentos culturais, e as atividades que neles se realizam, as artsticas e

    culturais, podem polarizar o entorno. Este territrio hbrido, cultural, popular, de limites e

    caractersticas imprecisas, se instala sobre a fronteira entre a favela e o bairro, tornando mais porosas as

    fronteiras entre a cidade informal e a cidade formal.

    A respeito das transformaes scio-espaciais contemporneas, recordamos a dificuldade de

    encontrar categorias apropriadas para classificar os novos espaos, a inadequao de paradigmas e

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    modelos vigentes, a necessidade de substituir o pensamento racional / funcionalista, que separa as

    esferas de vida por outro que reconhea a heterogeneidade da realidade que nos cerca. neste sentido

    tambm que reforamos a importncia de lanar um novo olhar sobre os espaos diferentes,

    heterogneos, hbridos. Como recomenda Jos Saramago: Se podes olhar, v. Se podes ver, repara.9

    O que se repara so novos e mltiplos usos dos espaos, usos que se agregam, ao contrrio dos espaos

    da modernidade que se fragmentam medida que as atividades se dividem. A diviso e a

    especializao dos espaos vem se modificando; cabe perceb-las e examin-las, o que poder

    contribuir para a compreenso dos espaos hbridos.

    Neste sentido, destacamos o enfoque de Michel de Certeau (1998), que abre novas formas de

    olhar e compreender os espaos a partir das pequenas operaes cotidianas que originam as prticas

    sociais daqueles que os habitam. Estas prticas, artes de fazer, empreendidas pelas populaes, so

    pouco evidentes, dispersas, muitas vezes silenciosas, todavia revelam maneiras astuciosas de

    reapropriao do espao. So tambm manifestaes de micro-resistncia s foras hegemnicas e

    disciplinares presentes nos vrios domnios da vida urbana, que, no caso que examinamos se

    manifestam desde o surgimento das favelas, passando pela construo de casas, pelo aterro dos

    mangues, at as aes culturais e os espaos que originam. Para compreender os espaos resultantes

    destas prticas, pouco valem as normas e decretos, planos e projetos, racionalidades e funcionalidades

    que norteiam o desenvolvimento urbano; no entanto, so os resultados destas prticas que do sentido

    aos espaos e modificam seus significados.

    Finalizando, cabe lembrar Paulo Srgio Pinheiro (1986), para quem aparentemente, os grupos

    dominantes so os que definem, desenham e determinam os eixos de expanso e de ocupao da

    cidade, mas quem redefine e redesenha o planejamento imposto pelo poder so as populaes.

    Assim, os pobres reurbanizam e reconstroem a cidade sua maneira.

    Referncia bibliogrfica:

    ABREU, M. Evoluo urbana do Rio de Janeiro. 3. ed. Rio de Janeiro: IPLANRIO, 1997. BONNEMAISON, J.. Viagem em torno do territrio. In: CORREA, R. e ROSENDAHL, L. (orgs), Geografia cultural: um sculo. Rio de Janeiro, Ed. UERJ, 2002, p. 83-131. CEASM Centro de Estudos e Aes Solidrias da Mar. A Mar em dados: Censo 2000. RJ, 2003.

    9 Do Livro dos Conselhos, citado por Jos Saramago, epgrafe de Ensaio sobre a Cegueira.

  • 15

    CERTEAU, Michel de. A Inveno do Cotidiano 1 Artes de fazer. Petrpolis: Editora Vozes, 1998. CANCLINI, N. G. (1997) El malestar en los estudios culturales, in: Fractal n 6, Julio-septiembre 1997, ao 2, vol. II, pp. 45-60. In: http://www.fractal.com.mx/F6cancli.html (acesso em 29/07/09). ---------------. Culturas hbridas. Estratgias para entrar e sair da modernidade. SP: EDUSP, 2008. FORTUNA, C. e SILVA, A., A cidade do lado da cultura: espacialidades sociais e modalidades de intermediao cultural. In: Santos, B. S. (org.), A globalizao e as cincias sociais, So Paulo: Cortez, 2002, p. 419-474. HOLSTON, J., Espaos de cidadania insurgente. In: Revista do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional n 24, 1996, p. 243-253. PINHEIRO, P. S. Contra o Urbanismo Desptico. Espao e Debates, n 17. So Paulo: NERU, 1986. PORTO, M. Brasil em tempos de cultura: cena poltica e visibilidade. Pensar Iberoamerica, set./dec. 2006, 8. In: www.campus-oei.org/pensariberoamerica/ric08a08.htm (acesso em 20/08/2006). OBSERVATRIO DAS FAVELAS. Legado Social dos XV Jogos Pan Americanos Rio 2007 -. In: http://www.observatoriodefavelas.org.br/observatoriodefavelas/includes/publicacoes/04e3877d1c06cddaf96d26d9d7b67ebf.pdf (acesso em 31/03/2010). RIBEIRO, A. C., Oriente negado. In: Cadernos PPG-AU/FAUFBA, ano 2, nmero especial: Territrios Urbanos e Polticas Culturais (Salvador: 2004), p.97-107. SANTOS, M., A Natureza do Espao. Tcnica e Tempo. Razo e Emoo. So Paulo, Ed USP, 2008. SELDIN, C. As aes culturais e o espao urbano: o caso do Complexo da Mar no Rio de Janeiro. Dissertao de mestrado, PROURB/FAU/UFRJ, 2008 VAZ, L. F. (Coord.). Histria dos Bairros da Mar Espao, tempo e vida cotidiana no Complexo da Mar. Rio de Janeiro: SR-5/UFRJ e CNPQ, 1994. VAZ, L. e SELDIN, C. Nova forma de relao entre espao e cultura no Rio de Janeiro contemporneo: o caso do Quilombo das Artes. In: CD-ROM Anais SILACC.01, out. 2007, EESC.USP So Carlos. VAZ, L. e SILVEIRA, C. A Lapa bomia na cidade do Rio de Janeiro: um processo de regenerao cultural? Projetos, intervenes e dinmicas do lugar. In: VARGAS, H. e CASTILHO, A. L. (org) Intervenes em centros urbanos: objetivos, estratgias e resultados, Manole, SP, 2009, p. 67/101. VAZ, L. F. and JACQUES, P. B. Morphological diversity in the squatter settlements of Rio de Janeiro. In: STANILOV, K. and SCHEER, B.C., Suburban Form, an international perspective. 2004, Routledge, New York and London, p. 61/72.

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