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Um saber necessário

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Um saber necessário: os estudos rurais no Brasil

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Um saber necessário

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maria de nazareth baudel wanderley

um saber necessárioos estudos rurais no brasil

universidade estadual de campinas

Reitor Fernando Ferreira costa

coordenador Geral da universidade edgar Salvadori De Decca

conselho editorial Presidente

Paulo Franchetti Alcir Pécora – christiano Lyra FilhoJosé A. R. Gontijo – José Roberto Zan

Marcelo Knobel – Marco Antonio ZagoSedi Hirano – Silvia Hunold Lara

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Índices para catálogo sistemático:

1. Sociologia rural 301.352. Desenvolvimento rural – Aspectos sociais 301.353. Movi mentos sociais rurais 301.354. Agricultura familiar 338.1

copyright © by Maria de Nazareth Baudel Wanderleycopyright © 2011 by editora da unicamp

Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada, armazenada emsistema eletrônico, fotocopiada, reproduzida por meios mecânicos

ou outros quaisquer sem autorização prévia do editor.

isbn 978-85-268-0957-4

W183s Wanderley, Maria de Nazareth Baudel. 1939-um saber necessário: os estudos rurais no Brasil/ Maria de Nazareth Baudel

Wanderley. – campinas, sp: editora da unicamp, 2011.

1. Sociologia rural. 2. Desenvolvimento rural – Aspectos sociais. 3. Movi-mentos sociais rurais. 4. Agricultura familiar. I. Título.

cdd 301.35 338.1

ficha catalográfica elaborada pelosistema de bibliotecas da unicamp

diretoria de tratamento da informação

editora da unicampRua caio Graco Prado, 50 – campus unicamp

cep 13083-892 – campinas – sp – BrasilTel./Fax: (19) 3521-7718/7728

www.editora.unicamp.br – [email protected]

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da LínguaPortuguesa de 1990. em vigor no Brasil a partir de 2009.

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Dedico este livro a Abdias e Marina, meus amores essenciais.

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Sumário

Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19

i Agricultura e acumulação de capital . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23A consolidação de um novo paradigma . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23A modernização da agricultura e a dominação do capital . . . . . . 28

ii A subordinação do trabalho e a resistência dos trabalhadores rurais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45

A modernização incompleta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45Os trabalhadores rurais na cena política . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57

iii A concentração fundiária e as lutas pela terra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63A “perversa aliança” entre capital e propriedade fundiária . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63As lutas pela terra e os assentamentos rurais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 68

iV Por uma outra agricultura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75Subordinação versus autonomia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75O agricultor familiar, um ator social do mundo rural contemporâneo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87

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V O mundo rural no Brasil moderno: espaços de diversidade . . . . . 105Que rural? Que rurais? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107Pobreza rural e as políticas sociais para vencê-la . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 112Desenvolvimento rural sustentável . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 118

Conclusões . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 131

Referências bibliográficas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 135

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Prefácio

Há pouco mais de 40 anos, em 1970, era publicado o primeiro artigo de Nazareth Wanderley — “Mudanças e tensões sociais no meio rural de Pernambuco”, na Série Agricultura dos Cadernos do Con depe, em Recife, sua cidade natal, onde (poucos sabem) ela se formou em direito, e de onde sairia anos mais tarde para a con tinuação de seus estudos na Universidade de Paris-Nanterre, na qual foi aluna de Henri Mendras e Marcel Jollivet, consti-tuindo desde então um fortíssimo vínculo com a tradição da so-ciologia francesa. De volta ao Brasil, após três anos de trabalho na Empresa Brasileira de Assistência Técnica e Extensão Rural, co meça sua carreira acadêmica na Universidade Estadual de Cam pinas (Unicamp), em 1978, inicialmente integrando o Gru-po de Estudos Agrários do Instituto de Filosofia e Ciências Hu-manas, e mais tarde fundando o Centro de Estudos Rurais nesse mesmo Instituto. Nas duas décadas que permaneceu na Unicamp, foram dezenas de trabalhos publicados — alguns dos quais se tornariam verdadeiros clássicos nesse campo das ciências sociais; foram dezenas de dissertações e teses por ela orientadas — de alunos seus que se tornariam influentes autores da sociologia rural brasileira, como Ricardo Abramovay, Leonilde Medeiros, Regina Bruno, Alfio Brandenburg, Sergio Schneider, Fernando

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Lourenço, para ficar em alguns poucos nomes e ser assumidamente injusto com aqueles que, por limitação de espaço, sou obrigado a omitir; e foi ainda um período de participação ativa na cons-tituição desse campo de estudos no Brasil, com seu papel de destaque em importantes associações científicas, como a Associa-ção Programa de Intercâmbio de Pesquisa Social em Agricultura (Apipsa), a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs) e, mais recentemente, a Rede de Es-tudos Rurais. De volta a Pernambuco após sua aposen tadoria, agora na Universidade Federal desse estado, continua liderando pesquisas, formando novas gerações de estudantes, coordenando grupos de trabalho e, sobretudo, brindando estu dan tes, pes qui-sadores e planejadores de políticas com suas reflexões de tremenda atualidade sobre o rural brasileiro.

É porque essa sua trajetória pessoal e profissional se funde com a trajetória recente das ciências sociais aplicadas ao entendimento do “mundo rural” que tive o prazer, juntamente com Ana Lúcia Valente, da Universidade de Brasília, de convidar a professora Nazareth Wanderley, de quem sou mais um discípulo, a escrever o texto que agora vem a público. Isso aconteceu por ocasião da realização do XXXIII Encontro Anual da Anpocs, quando coordenávamos o Grupo de Trabalho “Ruralidade, território e meio ambiente”. Nossa ideia, àquele momento, era criar um espaço em que se pudesse refletir criticamente sobre os estudos rurais brasileiros e pensar as questões postas a uma agenda de pesquisa para o início do século XXI numa perspectiva inova-dora. E, para isso, um balanço da produção acadêmica das déca-das anteriores era o inevitável ponto de partida. Era assombroso constatar que pesquisadores iniciantes não contavam, até então, com uma boa obra de referência que servisse de guia à entrada nesse rico e complexo terreno. Era lamentável admitir que pesqui-sadores mais experientes não contassem com um texto denso de

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balanço sobre essa área de pesquisas. Estava claro desde o mo-mento inicial de planejamento daquele Grupo de Trabalho que tal tarefa não podia ser realizada por outra pessoa que não fosse Nazareth, como todos a conhecem. O resultado expresso nas pró-ximas páginas mostra que esse intuito inicial foi plena mente atin-gido. Não é exagero dizer que o leitor encontrará aqui a melhor introdução disponível à vasta produção brasileira dedi cada à questão agrária e aos processos sociais rurais, constatação que se justifica por uma série de razões.

Uma primeira razão que leva à afirmação acima é a ampla cobertura desse balanço e a invejável propriedade com que a au-tora atravessa períodos, costura continuidades, sublinha rupturas, encontra unidade na diversidade de abordagens, faz da pluralidade da produção acadêmica um fértil e vasto campo de análise, numa espécie de sociologia da sociologia rural, ou, mais amplamente, das ciências sociais aplicadas ao rural, uma vez que não se restringe aos domínios de uma de suas disciplinas. São nada menos do que 267 publicações referenciadas, muitas das quais marcaram época e influenciaram gerações de pesquisadores, analisadas com elegân-cia, acuidade e espírito crítico.

Uma segunda razão é a estrutura adotada para a apresentação desse balanço. Sabiamente a autora evita o recorte temporal, por saber que as fronteiras rígidas de datas não permitem captar as in ter penetrações temáticas entre obras, escolas de pensamento e períodos. Em vez disso, o leitor encontrará uma organização em torno de cinco grandes temas: “Agricultura e acumulação de capital”, “A subordinação do trabalho e a resistência dos tra ba-lhadores rurais”, “A concentração fundiária e as lutas pela terra”, “Por uma outra agricultura”, “O mundo rural no Brasil mo der-no: espaços de diversidade”. Aqui a forma expressa o conteúdo. Esses grandes temas são na verdade grandes questões postas à sociedade e às ciências sociais para interpretar o lugar do rural na

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formação e na evolução do Brasil contemporâneo. E essa é uma das grandes contribuições de Nazareth Wanderley: mostrar, sem qualquer resquício saudosista ou passadista, como a questão agrá-ria marcou a constituição do país e como suas heranças se mos-tram presentes nas características da nossa estrutura produ tiva, em que modernidade rima com desigualdade e insustentabi-lidade, nas características dos movimentos sociais e sua capacidade de reinventar formas de mobilização e de exposição dos conflitos, nos traços marcantes da atuação multifacetada do Estado.

Uma ideia central que emerge das partes que compõem esse balanço é justamente esta: independentemente do ângulo de análise ou do período histórico, há uma “questão rural” não resol-vida na formação brasileira. Diferentemente de outros países que, em algum momento, fizeram um pacto social em torno da valorização dos seus espaços rurais e das classes sociais que tinham nesses espaços seu lugar de vida e de trabalho, no Brasil houve uma clara opção pela via conservadora. Mas isso não eliminou essas outras formas sociais que, reiteradamente, tentam romper o bloqueio — noção cara à autora — à sua reprodução social e à sua plena inserção na ordem competitiva. Esse é o rico campo de análises dos estudos rurais projetado nos desdobramentos do balanço feito aqui: hoje a questão agrária se funde e, principal-mente, se atualiza nas mani festações recentes da questão regional, da questão ambiental, da questão social. Não se trata, pois, de meras recorrências de um ve lho tema, mas de suas metamorfoses, o que sob o ângulo refle xivo faz toda a diferença e exige uma atualização constante das ferramentas de análise.

Como nada é perfeito, há neste trabalho ao menos uma ausên-cia, e seria uma ausência imperdoável não fosse ela motivada pela discrição e elegância da autora: ela não cita nas próximas páginas qualquer um de seus próprios trabalhos. E é claro que qualquer balanço ficaria incompleto sem uma menção às suas principais

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obras. Por isso, este Prefácio, além de apresentar a publicação, pro cura minimamente corrigir essa lacuna.

De início, cabe citar a coletânea muito oportunamente publi-cada em 2009 pela Editora da UFRGS: O mundo rural como um espaço de vida — Reflexões sobre a propriedade da terra, agricultura familiar e ruralidade, que veio a corrigir uma brutal falha do mercado editorial de obras acadêmicas no Brasil. Esse livro tornou possível aos leitores interessados o acesso aos principais artigos de Nazareth Wanderley que haviam sido publicados so-mente de maneira isolada em coletâneas e revistas científicas. Trata-se de um dos mais importantes livros da história dos es-tudos rurais brasileiros e referência obrigatória para pesqui sadores dedicados ao tema.

Na parte do livro dedicada ao tema da questão fundiária, cabe destacar dois trabalhos: Capital e propriedade fundiária na agri­cultura brasileira e A modernização sob o comando da terra: os im­pas ses da agricultura moderna no Brasil. Lidos juntos, os dois tra-balhos evidenciam a peculiaridade da formação das classes e, con comitantemente, a constituição dos portadores sociais do projeto de modernização que foi levado a cabo na agricultura brasileira, em que a escala se tornou um requisito do acesso aos bens públicos necessários à formação da competitividade, como se o tamanho fosse uma condição de eficiência. Ali se mostra que no Brasil não se teve a formação de uma classe de proprietários rurais, mas sim uma classe de dirigentes da produção agrícola, para quem a propriedade fundiária é um elemento básico. Daí que a modernização ocorrida nos últimos 40 anos não teve na de si gualdade e na pobreza rural meros efeitos colaterais: essas mazelas são, a um só tempo, condição e consequência da via escolhida.

Na parte dedicada à agricultura familiar e ao campesinato, o destaque vai para o texto O camponês, um trabalhador para o

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capital. Nesse artigo de 1979, podem-se encontrar os liames que atam essa figura, mesmo quando de posse de seu pequeno esta-belecimento agropecuário, à mesma condição de classe partilhada pelos trabalhadores rurais, possuidores apenas de sua força de trabalho. Nele se pode também encontrar o primeiro tratamento na literatura brasileira de um tema que ganharia força com os conhecidos e igualmente importantes trabalhos que José Eli da Veiga e Ricardo Abramovay publicariam no início dos anos 1990 — o papel dessa forma social de produção nas condições da acumulação capitalista.

E, na parte dedicada à ruralidade nas sociedades modernas, o destaque vai para o texto A emergência de uma nova ruralidade nas sociedades modernas avançadas: o rural como espaço singular e ator coletivo. Esse texto, como o próprio título anuncia, reconstitui a sin gularidade do rural para enaltecer a multiplicidade de funções que esse espaço cumpre mesmo no período de mais intensa urbanização na história da humanidade. E coloca a questão-chave para interpretar as dificuldades de passar do atual padrão de uso dos recursos naturais a outro mais próximo da ideia de sus-ten tabilidade: num quadro de crescente heterogeneização e de di versificação de seus usos sociais, quem é o agente daquilo que a lite ratura especializada convencionou chamar de “nova ruralidade”?

Quem frequenta os congressos e os periódicos dedicados aos estudos rurais brasileiros verá de maneira cristalina como esses três grandes temas que pautaram a agenda de estudos da autora refletem, mais amplamente, boa parte da produção recente desse campo de estudos no Brasil.

Outro trabalho incontornável é a parte dedicada ao Brasil no estudo internacional comparado publicado em dois volumes por Hughes Lamarche: A agricultura familiar, escrita em colabora-ção com Anita Brumer, Fernando Lourenço e Ghislaine Duqué.

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Nesse estudo fica claro que a diversidade de situações encontradas aqui ou na Europa não esconde o fato de que o elemento comum na variedade de situações pesquisadas é o caráter familiar do trabalho, da gestão e da posse da terra. Trata-se de uma crucial contribuição para compreender essa diversidade, os condicionantes e as implicações desse conjunto de situações que vão da mais tradicional agricultura camponesa àquelas formas mais tecni-ficadas e plenamente inseridas em mercados, e contrastar a con-dição da agricultura familiar brasileira com exemplos marcantes da realidade internacional.

Por fim, cabe citar o artigo publicado no quinto número da Revista da Associação Latino­Americana de Sociologia Rural, “A sociologia rural na América Latina: produção de conhecimento e compromisso com a sociedade”, texto que foi a base da conferência proferida por Nazareth Wanderley na abertura do VIII Congresso Latino-Americano de Sociologia Rural, realizado (por coincidência ou por uma espécie de “sincronismo junguiano” se alguém assim preferir) em Pernambuco, em novembro de 2010. Nesse belíssimo texto, recheado de referências científicas e artísticas, Nazareth parte da afirmação de que “o rural não é uma essência, a-histórica, que deva ser reconhecida indistinta-mente, em todos os lugares e todos os tempos”, para apresentar uma reflexão em torno justamente da relação espaço–tempo, a partir de três inflexões: “o passado, que constitui o legado da história; o presente, percebido através do debate da sociologia rural contemporânea; e o futuro, livremente imaginado como uma utopia”.

O resultado é, ao olhar o passado, um tributo a uma tradição que tem como expoentes nomes como Joaquim Nabuco, Josué de Castro, Celso Furtado, Manuel Correia de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Graciliano Ramos, Dom Helder Câmara, Gregório Bezerra, e tantos outros. Ao olhar para o presente, diz

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Nazareth, eis nossas questões: “que atores sociais são referidos ao mundo rural? que antagonismos profundos estruturam sua realidade? que novas configurações sociais e espaciais se desenham?”. Diz ela:

Enquanto houver em nossas sociedades indivíduos e grupos sociais que vivam ou desejem viver em conformidade com as formas so-ciais decorrentes da vida em pequeno grupo, nesses espaços, conti-nuamos devedores à sociedade de um pensamento social sobre o “mundo rural”. Sem essa realidade, uma parte de nossas sociedades seria amputada, e sem esse pensamento social, as ciências sociais ficariam capengas.

Sobre o futuro, quatro processos são apontados como vetores que redefinem a inserção do rural nas sociedades latino-ameri-canas: os avanços da genética e da ecologia com suas repercussões para a crítica ao produtivismo, a consciência crescente sobre a necessidade de conservação da natureza, as conquistas tecnológicas da comunicação e suas implicações para o rompimento do secular isolamento de tantas comunidades e regiões, e a ampliação da democracia, que se faz acompanhar do reconhecimento de direi-tos históricos e muitas vezes negados. Nessa redefinição, diz ela, por se tratar do futuro, o rural só pode ser pensado como utopia. Não no sentido enganador do termo. Mas no seu melhor sentido, daquilo que é imaginado, desejado, mas ainda não encontra lugar no tempo presente. Um lugar que, espera-se, salde as dívidas sociais do passado, reconcilie, em vez de dicotomizar, a sociedade e a natureza, e deixe para trás a associação que tantas vezes se faz entre ruralidade e atraso. Nazareth termina o texto voltando a João Cabral, Luiz Gonzaga, e citando a cirandeira Lia de Ita-maracá: “Esta ciranda não é minha só. Ela é de todos nós. Ela é de todos nós”.

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Quem estava lá viu uma plateia de centenas de pessoas aplau-dir de pé ao final da conferência; viu vários pesquisadores expe-rientes de olhos marejados pela emoção ao presenciar como um pequeno capítulo da história da ciência era, naquele momento, contado por uma de suas principais protagonistas. Ali, tanto quanto na obra e na vida de Nazareth Wanderley, a razão estava de braços dados com a emoção, numa demonstração de que, contrariando Goethe, a ciência não precisa ser “cinza como toda teo ria”; ao con trário, a ciência é mais rica quando se nutre do “verde que é a cor da árvore da vida”. Assim como naquela sua conferência a autora reverenciou ícones da política, da ciência e das artes, todos eles dali, do “seu canto do mundo”, pedindo-lhes a bênção, termino este Prefácio agradecendo a ela por mais este belo texto, desejando boa leitura a quem passa por estas linhas e, final mente, pedindo sua bênção, Nazareth Wanderley, professora de todos nós.

Arilson Favareto

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Introdução

Ao pretender elaborar um balanço da produção científica de um determinado período, correm-se enormes riscos. A fixação impre-cisa dos marcos temporários pertinentes, a simplificação das questões centrais, a dificuldade para construir as mediações entre essas diversas questões, a omissão de autores ou de atores sociais estão entre os principais desafios que precisam ser evitados para que o balanço proposto não se torne uma mera enunciação de fatos e obras mal articulados entre si.

Não é demais, também, se perguntar para que serve fazer um balanço. No caso presente, esse tema me foi proposto pelos coor de nadores do GT 35 do 33o Encontro Anual da Anpocs, Aril son Fa vareto e Ana Lúcia E. F. Valente. No que me diz respeito, esse esforço tem um duplo objetivo: por um lado, ajudar-me a melhor sistematizar minhas próprias reflexões, no presente, ao trazer à tona as questões fundamentais que his to-ricamente construíram o fio condutor de minha compreensão do mundo rural brasileiro. Em um certo sentido, faço esse balanço para mim mesma, con tem porânea que sou da publica-ção das obras aqui mencionadas; por outro lado, espero que essa sistematização possa servir de roteiro que estimule as jovens gerações de pesquisadores, que estão ainda em formação, a ler

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diretamente os autores citados e a situar, no grande debate, suas próprias questões de pesquisa.

O período considerado, que se inicia em meados dos anos 1960 e vai até os dias atuais, não é homogêneo. Em grandes li-nhas, e levando em conta a história política do país, é possível dis tinguir dois subperíodos: o que corresponde aos governos militares — 1964-1985 —, marcado pelo grande apoio do Estado à modernização da agricultura e à expansão capitalista da fronteira econômica, pela repressão aos movimentos sociais e pelo bloqueio à implantação de projetos de reforma agrária; e o que se inicia com a redemocratização do país, em 1985, que favoreceu a conso-lidação dos movimentos sociais e o debate democrático e re gis-trou a emergência de uma pluralidade de sujeitos de direitos que reclamam o seu reconhecimento na sociedade brasileira. Por um outro ângulo, mais diretamente ligado à problemática rural, pode-se pensar que a criação do Ministério do Desenvolvimento Agrário e a implantação do Programa de Apoio à Agricultura Familiar (Pronaf ) inauguram um novo período, cuja tônica é dada pela ênfase no desenvolvimento rural susten tável e pela valorização da agricultura familiar, o que, na verdade, seria um desdobramento do último período anteriormente referido.

Devo advertir, no entanto, que os temas dos capítulos não correspondem a períodos distintos, que pudessem ser colocados numa sequência temporal. Dizem respeito, antes, a olhares plu-rais e complementares sobre processos sociais, quase sempre si-multâneos, eles mesmos marcados pela diversidade e pela com-plexidade e em constante mutação.

Construir um balanço não significa citar todos os autores que, de uma forma ou de outra, participaram dos debates, mas exige que esses debates sejam bem apresentados, usando-se para isso passagens ilustrativas que expressem o essencial das questões em apreço. Da mesma forma, não posso ter a pretensão de apresentar