um passeio pela cidade do rj_séc xix (com ocr).pdf

390

Click here to load reader

Upload: eduardo-sinkevisque

Post on 10-Sep-2015

408 views

Category:

Documents


88 download

TRANSCRIPT

  • Jh

  • I I I P A S S E I O

    P E L A U D V D E D O K I O D E J A N E I R O

    >OR

    O

    ^mmmmMmm^

    K I O l ) K J A N E M I O

    TYT. IMPAKCIAL DE J. M. NUNES GARCIA.

    R U A I)A CARIOCA .N. 3 4 .

  • u

    R

    t e - : : : ' U DivfcJ* do C::r..or.tiid

    HMk K*

    - VJMl

  • A O S M E U S L l T O t t E S .

    Vou entregar ao domnio e apreciaro do publico reunidos

    em livro os artigos que sob o titulo um Passeio tenho publi-

    cado e espero continuar a publicar nos folhetins do Jornal do

    Commercio, e embora no haja novidade na obra, julgo que

    sem inconveniente podem-se permittir ao autor algumas palavras

    a respeito do seu trabalho.

    Quero dar aos meus leitores uma simples explicao com

    toda a franqueza e verdade.

    Determiuei escrever o que sabia e conseguisse saber sobre a

    historia e tradies de alguns edifcios, estabelecimentos pbli-

    cos e instituies da cidade do Rio de Janeiro, abundando

    quanto pudesse em informaes relativas aos homens notveis e

    aos usos e costumes do passado: porque entendi que com este

    meu trabalho presto ao meu paiz um servio, e pago-lhe uni

    tributo de patriotismo; pois queconcoirocomo meu contingente

    fraco embora, para salvar do olvido muitas rousas, muitos

    fartos, cuja lembrana vai desapparecendo.

  • VI

    Procurando desempenhar a larca que tomei subi o os I I U I I I -

    bros, lenho lido e vou lendo, lenho consultado e vou consul-

    tando as obras dos antigos e modernos clironistas c historiado-

    res da nossa terra, e, o que mais importa, sem d nem piedade

    lenho massado e atormentado a todos os bons velhos que me

    honro com a sua amisade ou que tem a pacincia de tolerar e

    altender s minhas impertinentes jierguntas.

    Ainda assim escapo-me erros e omisses que vou corrigindo

    quanto posso e que outros mais bem informados corrigiro, se

    eu o no fizer.

    Evidentemente o meu trabalho sahiria mais limpo de senes,

    se menos indilTerena houvesse pela matria delle, c se no se

    observasse tanta avareza de conhecimentos da parte de alguns

    e tanta priguia da parte de muitos.

    Eu declaro alto e bom som que estou prompto para reconhe-

    cer c emendar os meus erros : o que me falia quem os queiia

    apontar, e me ensine a corrigi-los.

    Encetando este trabalho, tive a simplicidade de suppor que

    contaria repetidas occasies de agradecer a espontaneidade do

    favor de muitas iuformaes curiosas : j perdi essa luso!...

    at hoje ainda no mereci um s esclarecimento que no fo>se

    j>edido e procurado, e quando saio a esmolar informaes,

    no poucas vezes recebo em resposta um Deos lhe facorera que

    por certo me desanimaria, se em compensao no fosse to

    penhoradoro obsquio, com que tenho sido tratado por diversas

    [icssas,

    Entretanto o assumplo de que me occupo nesta obra sem

    questo, interessante e ulil, e somente [Mxle ter sido amesqui-

    nhado p i a minha inhabilidade de escritor.

  • V I I

    Kssa inhabilidade sou o primeiro a confessar; mas devo e

    quero desculpar-me de dons delTeios principaes que alm de

    outros muitos, se encontrao nos meus Passeios.

    Creio que algum j censurou este trabalho, porque o tenho

    csci ito quasi sempre em tom brineo e as vezes epigrammatico;

    e porque misturo em um ou outro ponto a verdade histrica

    com tradies inaceitveis e em alguns casos com ligeiros ro-

    mances, e lendas imaginadas.

    Darei a razo do que liz e porque assim continuarei a fazer.

    Ha dezenove annos que escrevo, e ouzo publicar os meus

    pobres escritos, c at hoje, graas a Deos, ainda no tive a

    vaidade de tentar escrever para aproveitar aos eruditos e aos

    sbios. No me peza esse pecado na conscincia.

    Os eruditos e os sbios rir-se-hio de mim.

    At hoje s tenho escrito com a ida de aproveitar ao povo,

    a aquelles que pouco sabem.

    Ora escrevendo eu tambm para o povo esta obra, cuja

    matria arida e fatigante, no quiz expo-la ao risco de no

    ser lida j>elo povo que prefere os livros amenos, e romanescos

    s obras graves, e profundas.

    Que fiz eu? . . . procurei amenizar a historia, escrevendo-a

    com esse tom brineo e as vezes epigrammatico, que, segundo

    dizem, nao lhe assenta bem, mas de que o povo gosta; ajuntei

    historia verdadeira os taes ligeiros romances, tradies ina-

    ceitveis, e lendas inventadas para fallar a imaginao, e ex-

    citar a curiosidade do povo que l, e que eu dezejo que leia os

    meus Passeios; mas nem uma s vez deixei de declarar muito

    positivamente qual o ponto, onde a inveno se mistura com a

    verdade.

  • YII

    Aceitei 011 errei procedendo a s s i m ? . . . .

    Decida o publico que o mou juiz, e qualquer ue seja a

    sua decizo, quer me absolva, quer me condemne

    Fico contente, Que a minha patria amei, e a minha gente.

  • U M P A S S E I O

    P c l n r t r s i f t * ^ o I v i o fo S t a i m i r o ,

    j x t u o d u c

  • homens prticos e sabichcs do Estudo, o Io p r o p r o

    governo, que j no pouco Iwvia despendido para faze-la encetar os seus trabalhos, ficou em breve to desestimada, que ate as vezes achou-se sem recursos para proseguir nas exploraes, e por fim de contas foi obrigada a parar em meio da o b r a ; porque era inevitvel que se apagasse a lampada quando no lhe puzero mais azeite.

    Dizem, e eu creio, que a nossa commisso scien-tiica, ao tempo em que suspendero a subveno, j se achava quasi ao ponto de desorgan iza r - se por si mesma, e sustento que os seus trabalhos no corres-pondero s despezas fei tas; parece-me porm que em tal caso o mais acertado seria procurar remover os embaraos que a amesqu inhavo , da r - l he mais seguras condies de harmonia e de vigr, e faze-la continuar em zeloso labor, mesmo porque as mais avultadas despezas estavo feitas, e a verdadeira eco-nomia aconselhava aproveitar o d inheiro empregado , e a experiencia do noviciado dos exploradores .

    Mas entendeu-se que isso de commisso scientiica era peta, e acabou-se a historia.

    Devemos contentar -nos com as commisses dessa natureza que tem sido e ho de ser m a n d a d a s ao Brazil por naes estrangeiras; ns no temos a m e n o r necessidade de conhecer a nossa prpr ia c a z a : basta que os estranhos nos ensinem o que ella e o que temos dentro delia.

    Aiirmo que a tal commisso impor tou e devia im-

  • portar um enorme desperdcio dos dinheiros pblicos; p o n p i e o nico resul tado (pie promet t ia , era alguma colleco de bichinhos para o muzeo nacional , que provavelmente tambm se en tende (pie nos faz caregar com uma despeza de luxo : v-se d"ahi que os nossos homens prticos aborrecem a historia natural , que segundo elles, u m genero especial de poezia ; mas a commisso scientifica tinha ainda a incumbncia de mui tos out ros e important ssimos trabalhos, e portanto no procedia aquella observao, que alis eu conside-raria muito j u s t a ; por quanto era pnerilidade indescul-pvel tomar-se tanto incommodo para se a r ranjar l por aquelles deser tos uma colleco de bichinhos quando aqui mesmo da capital do imprio se poderio organi-s:ir, at e n t r e os prprios homens | raticos, e os nossos g r andes polticos, umas poucas de colleces de bichos de propores coloacs (pie ainda no fro classificados pelos natural is tas.

    Mas, repilo, no das provncias centraes e longn-quas que pre tendo fallar, dessas temos noticia de* que phosphoriso as suas eleies periodicamente, e o que basta : quanto ao mais, represento um m u n d o que ainda est espera do seu Colombo; e no admira que assim existo ignoradas, quando certo que nem conhecemos bem a cidade de S. Sebastio do Rio de Jane i ro .

    Note-se que esta incria seria escusavel ao montanhcz-de Minas, ao

  • Cariocas no estejo ao facto Ia historia c Ias chro-nicas da capital, de que tanto se ufano.

    Disse um escriptor f ranco/ , cujo nome agora me no lembro, que en t re os f rancezesso os Parizienses os que conhecem menos Pariz : no Brazil no se pde dizer couza semelhante, porque os provincianos como os Cariocas desconhecem do mesmo modo a nossa ba Sebastianopolis.

    Sc no out ro tempo era g rande esta ant i -patr iot ica falta de curiosidade, agora muito p e i o r : os paque-tes vapor e a facilidade das viagens ao velho mundo t i ro-nos a vontade lc passear o nosso , e mais commum, encon t ra r u m l luminense que nos descre-va as montanhas da Suissa e os ja rd ins e palacios de Pariz e Londres , do que um outro que tenha per-feito conhecimento da historia de algum dos nossos pobres edifcios, da chronica dos nossos conventos e de algumas das nossas romanescas igrejas soli tarias, e at mesmo que nos falle com verdadeiro in teresse dos.sit ios encantadores e das eminencias magestosas que enchem de sublime poesia a capital do Brazil.

    Hoje cm dia uma viagem a Lisboa cousa mais simples do que um passeio ao Corcovado.

    Ent re tan to eu estou convencido de que pod ia - se bem viajar mezes inteiros pela cidade do Hio de Ja-neiro, achando-se todos os dias a l imento agradavcl para o espirito e o corao.

    O passado um livro immenso cheio de preciosos thesouros que no se devem desprezar ; e toda a terra

  • lem sua historia mais ou menos potica, suas recor-daes mais ou menos interessantes , como todo o corao tem suas saudades. A capital do Imprio do ttrazil no pde ser uma excepo a esta regra .

    Vamos ns dar principio hoje a um passeio pela cidade do Rio de J a n e i r o ? . . . u m convite que fao aos l e i t o r e s do Jornal do Commercio. Se o passeio

    parecer fastidioso ou monotono, no haver o menor inconveniente em d- lo po r acabado no fim da pri-meira ho ra ; se agradar , cont inuaremos com elle a t . . . a t o . . . quem sabe at q u a n d o ? . . . provavelmente con-veraremos de preferencia a respei to dos tempos que j fro, e por tanto , no preciso que nos lembremos j do futuro , marcando o fim da nossa viagem amena.

    Vamos passear. No se incommodem com os preparativos de uma

    viagem, que talvez seja l onga : eu tomo isso minha conta. No tenho medo de se verem met t idos por mim dent ro dos o m n i b u s , gondolas 011 carros da p r a a ; desejo muito dar o maior prazer que for pos-svel aos meus companheiros de passeio, para condem-na-los a semelhante martvr io . w

    Se algum dos meus leitores por infilicidade para-lytico, se a lgum outro quebrou as pernas na luta eleitoral de Dezembro ult imo em qualquer dos pontos do Imprio onde a Vestal foi festejada com emprego da fora material , se ainda outro est to atarefado com os cinco ou seis cargos cm que se consagra ao servio da palria, que no tem tempo de dar um passo

  • na rua. ainda esses mesmos no sero privados de-passear comigo. No ha incompatibilidades que alTec-tem o nosso passeio. No preciso pedir o brao, apenas peo a atteno dos meus leitores. Eu passearei escre-vendo, elles lendo, e ainda assim, oh! fatal i d a ! . . . pde bem ser que elles se fatiguem primeiro do que eu.

    Acendamos pois um Havana ( d a Bahia) , ou um Manilha ( d o Kio de J a n e i r o ) , e . . . passeemos.

    Excluamos do nosso passeio toda a ida de ordem 011 systema : regular os nossos passos, impr-nos uma direco e um caminho, fora um er ro lamentavel, pie daria lugar a mil questes de precedencia , em que sem duvida os frades Barbadinhos serio os pr imeiros a fazer ouvir bem fundados protestos em nome da igreja de S. Sebastio.

    Independencia compieta da chronologia um passeio chronologico obr iga r -nos -h ia a comear dando um salto do Po de Assucar ao Morro do Castello, e um salto desses somente com a ligeireza e com as pernas dos volantins polticos se poderia dar .

    Passeemos vontade: a policia o permit te , e as posturas da [Ilustrssima camara o no prohibem.

    Estamos no nosso direi to; passeemos.

  • I .

    O P A L A C I O I M P E R I A L .

    Eis -nos cm frenlc ilo palacio imperial, no lanjo do Pao.

    Por onde viemos para chegar aqui, e como nos achamos de improviso in s t e l u g a r , o (jue i o importa saber , nem eu poderia diz-lo.

    Consolemos-nos desta primeira i rregularidade lo nosso passeio : alm de ns ha por esse mundo muita gente que se acha em excedentes posies sem saber como. O nosso sculo frtil em milagres desta ordem : tem se visto no cor re r delle at quadrpedes que voo.

    Paremos agora um pouco, e conversemos por dez minutos .

    justo (pie es tudemos com interesse a historia do palacio imper ia l ; antes, p o r m , cumpre dizer duas palavras a respeito do lugar em que elle est si tuado

    Esta praa tem mudado tanto de propores como de nome, e ainda mais vezes de nome do que de propores .

    A sua extenso primitiva no a posso de te rminar ; no ultimo quartel , porm, do sculo passado, o vice-rei Luiz de Vasconcellos e Souza deu-lhe regular idade e limites positivos, fazendo const rui r um bello ces de cantaria granitica imitao de outro f ito em Lisboa pela marinha real e ficou ento a praa for-

  • mau lo um quadrilongo
  • m.iito s que tinha no lini Io sculo passado o por no poucos annos conservou.

    Faltai das p r o p o r e s : agora tratarei dos nomes . A praia cin que se termina esta praa teve primi-

    t ivamente o nome d e P r a i a da Senhora do o heide em breve diz-Io porque ; mas o nome mais antigo dos que tem tido esta praa Lunar do ferreiro da pol : a or igem de semelhante denominao perde-se na noite dos t e m p o s ; mas que r me parecer que no podia ser sympathica .

    No im Io sculo dec imo-sex to , ou no principio do seguinte , c h a m o u - s e Praa do Carmo, porque era dominada pelo convento levantado pelos Carmeli tas .

    De 17 W em diante recebeu o nome .le Terreiro do Paro, em razo de s e haver cons t ru do nella a casa dos governadores , e os Carmeli tas no br igaro com o conde de Bobadella por essa mudana d e denomi-nao. porque emlim palavras no adubo sopas, e Irades no fazem questes de pouco mais ou menos .

    Por ult imo Largo do Pao licou sendo chamada; no aposto porm que conserve por mui to tempo o mesmo nome, a menos pie o Estado se resolva a levantar ou t ro palacio no mesmo l u g a r ; pois o que existe, desde alguns annos que recebeu do cupim formal inti-maro para procurar um subst i tu to .

    E antes dessas ins tantes intimaes d ) cup im, j ao dever e ao patr iot ismo cumpria ter l embrado a necessidade urgen te de uma lal substi tuio.

    Este palacio que estamos vendo nem tem no sen 1;

  • 1 0

    aspecto exter ior bastante mages tade , nem em suas disposies e ornatos interiores suiciente magnili-cencia para mos t r a r - se d igno do chefe do Estado e digno da nao, lia na cidade casas de particulares que incontostavelmente ostento mais riqueza e offerecem mais commodo do (pie elle.

    Nas monarchias o esplendor da mages tade re lecte sobre toda a nao, e a casa do monarcha , o palacio do chefe do Estado, que at t rahe todas as vistas, q u e abre suas salas aos representantes das naes es t ran-geiras e todos os cidados, deve ser grandioso c o m o a idea (pie represen ta .

    No me digo (pie o Brazil no tem dinheiro para levantar um palacio : oh se t e m ! o pat ronato acha sempre recursos financeiros para fazer p resen tes cus-ta da patria amada, e s o dever e o patr iot ismo ter sempre de esbarrar diante do mons t ro chamado dficit!

    O corpo legislativo no pde cont inuar a descuidar-se desta evidente necessidade : a lm de t u d o , o palacio est ar ruinado, e a nao deve oerecer ao seu primeiro cidado um edifcio que pelo menos se adivinhe logo o (pie , quando se olhar para elle.

    Comecei fallando mal do palacio antes de descrev-lo e de contar a sua historia.

    Vou emendar o meu e r ro . Para um palacio, este envelheceu depressa , pois

    que apenas conta cento e dezoito annos de idade, tendo sido portanto construdo quasi dons sculos depois da fundao da cidade do Rio de Janei ro .

  • No vos admireis de rjue o governo de Portugal deixasse correr tanto tempo antes de fazer ediicar uma casa para os governadores desta capitania; por-que tambm o Rrazil nao independen te desde 182:2, e ainda no mandou cons t ru i r um palacio para o imperador .

    At ao fim do sculo XVII os governadores da capi. tania do Rio de Janeiro no ti vero casa prpria para sua residencia, excepo sem duvida do pr imeiro , que foi Salvador Corra de S, que seguramen te havia de levan ta r , como os seus companhei ros colonisa-dores , o seu competente rancho no mor ro doCaste l lo : os que depois se fro seguindo moraro onde pudero ou melhor lhes pareceu .

    E m 1698 ordenou e l - re i de Por tugal que para residencia dos governadores do Rio de Janei ro se comprasse a casa da rua Direita, que depois ficou sendo chamada dos * Contos e (pie ainda hoje assim por alguns dos nossos velhos denominada , porque para cila se passou a provedoria, e debaixo do seu tecto se recolhio os cabedaes da coroa, impor-tantes em avultados contos de ris.

    Actualmente est o correio nacional estabelecido nessa casa, que b e m merece conservar o nome dos contos, pois que a respei to delia p o d e m - s e refer i r contos largos, e por signal que at foi incendiada, quando em 1710 os francezes atacro a cidade.

    Oppor tunamente conversaremos sobre este caso.

    Chegou e m f i m a p o c a do palacio que estamos estu-

  • ilamlo : ldc sobre o seu prtico principal a inscripro pie recorda o anuo em que foi construdo, e o nome daquelle a quem o d e v e m o s : Reinando Kl-Hei I). Joo V, nosso Senhor , sendo governador des tas capitanias e da de Minas-Geraes, Gomes Fre i r e de Andrade, do seu conselho Sargento-Mr de Batalha dos s ius Exrcitos. Atino de 17 W .

    Se no conheceis bastante que homem era esse Gomes Freire de Andrade, depois conde deBobadcl la . informai-vos das melhores obras ant igas de que se ufana a capital do Brazil, e avalia reis as propores ilesse illustre varo pela altura dos m o n u m e n t o s e pela importancia dos trabalhos que executou.

    Se ainda no vos basta isso, ide ao pao da nossa municipalidade, e ahi encontrare is o seu re t ra to con-servado pela mais justa grat ido, e permit t ido muito excepcionalmente por el-rei de Por tugal , que reco-nheceu os direitos que elle tinha a essa patritica manifestao, de que at ento somente os sobe ranos podio ser objeclo.

    Quereis ainda conhec-lo m e l h o r ? . . . Aprecia i -o na morte depois de hav-lo admirado na vida. O conde de Bobadella, achava-se com a sade alterada q u a n d o os Hespanhes em 176:2 tomaro a colonia do Sacra-mento, e logo depois desbara taro uma esquadri lha que em soccorro dos Por tuguezes elle mandara : estes desastres e a injusta murmura ro com que o ol endro os negociantes do Riu de Janeiro , que muito solTrro em seus interesses com a perda da colonia. o alron-

  • 1

    l r o de paixo (o grave, que mor reu em Janeiro de 1703.

    Realmente j no ha Bobadellas no nosso t empo! nem com a lanterna de Diogenes ser iamos capazes de encont ra r um ministro que morresse de desgoslo por causa de um desastre desses. A medicina pde descansar completamente : a molstia de pie mor reu o conde d - BobadeUa j no apparece hoje em dia, nem mesmo com caracter espordico.

    No esqueamos porm a historia do palacio P a l a c i o ? . . . procizo a t tender ao modo por que

    nos expr imimos ; palacio no ; casa dos governa-dores sim : uma carta regia prohibio chamar palacio a casa da residencia dos governadores : palacio, pois, deveriamos chama-la somente mais t a r d e , se no est ivssemos ha mais de um sculo de distancia daquel-la o rdem de e l - re i , e por isso livres de culpa e p e n a .

    t in pouco de favor da virtude da pacincia : lrata-se agora da descripo.

    O palacio ( perdi o medo carta regia ) passou por a lgumas modificaes, que convm lembrar rhronolo-g icamenfe .

    Constava elle, como ainda hoje, de quat ro faces octhogonaes : a p r inc ipa l , que olha para o m a r , olerecia vista Ires corpos separados por pilastras, e com t res janellas em cada um delles ; linha um s andar, e infer iormente Ires prticos de pedra mrmore branca, sendo o do cent ro formado por duas columnas rematadas super iormente por graciosas combolas, e

    t

  • os dos laleraes mais estrei tos e de forma vu lga r ; de um e outro lado destes abr io-se jancllas de peitori l . Cada um dos porticos descansava sobre uma escadaria prpria , de m r m o r e branco.

    A face do no r t e ap resen tava , ao l igar -se com a anter ior descripta, um port ico f ron te i ro a ou t ro igual da face do sul, dando entrada para o saguo, e a lm desse mais dous para seventia particular, e en t r e elles duas cocheiras e dezanove jancllas de pe i tor i l ; no pavimento super ior havio vinte e quat ro janellas como as da faxada principal .

    Na face do su l , que olha para o actual pao da camara dos deputados , havia, alm do ou t ro porti-co, vinte e t res janellas de peitoril e mais uma porta para servio particular, e no pavimento super ior vinte e tres janellas, das q u a e s s e t e ero de peitoril e collo-cadas quasi a meio da faxada.

    A face do fundo apresentava nove janel las de sacada no andar superior , e in fe r io rmente um port ico la-deado por qua t ro janellas de peitoril .

    A entrada do palacio era nobre : duas filas de co lumnas conduzio escada, que agora nobre , tambm constando de dous lanos no m e s m o sent ido e outros dous cm sent ido opposto ; como era p o r m no tempo do conde de Bobadella. . . no sei : no nos icou memria da escada primitiva, sem duvida po rque tio sculo passado ainda no se conhecia no Brazil a importancia extraordinaria pie tem uma boa escada.

    Depois do conde de Bobadella chegou a seu tempo

  • - i ; ;

    a vez do vice-rei conde de Rezende augmentar as propores do palacio : o p r ime i ro , como simples governador , t inha-se contentado com um s andar alm do pavimento in fe r io r ; o conde de Rezende, que era vice-rei , e levou-se a maior al tura, e fez const rui r um segundo andar de doze janellas de sa-cada que se v ao meio do primeiro da face do norte .

    Abro um parenthesis nesta descripro, que no me custa nada, porque apenas tenho o trabalho de copia-la de um livro, cujo titulo no declaro para vr se passo por autor da obra, e in te r rompendo por momen-tos o io do d i scu r so , en t ro em certas explicaes que no me parecem desnecessr ias .

    Visto que com as obras dos dous condes o palacio j tem no menos de cento e vinte e cinco janellas, con-vm dizer o que se via nesse tempo mais prximo a ellas,

    Da face principal via-se o mar , isso j ficou d i t o : da face do nor te via-se o chafariz ainda no meio da praa, e j ento ou mais ta rde a casa dos Telles def ronte : os Telles fro homens notveis no Rio d e Janeiro pela sua riqueza e pela sua pos io: a sua fama ficou perpetuada po r um arco, que tomou o nome delles, e (pie no mais do que um passadio: a face do fundo namorava o convento dos Carmelitas, que um dia havia de acabar por conquistar : a face do sul emfim tinha cm sua f rente a casa da camara e cada, que hoje o pao da camara dos deputados e alm dessa a casa da opera, que tornou-se uma dependencia do palacio.

  • Ainda aqui no fecho o parenthes is . Preciso dizer quem morava na casa dos governado-

    res e dos vice-reis; pois que , alm delles, mais a lgum se achava estabelecido debaixo do mesmo teclo.

    .Morava com elles a justia e a fazenda. Os vice-reis occupavo mais de meio da galeria s u -

    perior, alm do segundo andar , para o lado da praa. Para o mesmo lado, todo o resto da casa at ao

    canto fronteiro ao convento do Carmo, servia de as-sento ao tribunal da relao.

    No pavimento inferior e sob esses domnios da relao iicava a fabrica moedal, como a chama Pizarro e o quarto do canto (pie olha por um lado para a casa da camara c por outro para o convento dos Carmelitas era habitado pelo provedor la moda,

    Kstava por assim dizer todo o governo da terra reunido no mesmo ponto, e a um gr i to do vice-rei levantar-sc-hia a relao com a espada de stra, a camara municipal que representa o povo, o provedor da moeda que forjava o encanto do mundo , e at podia acudir o carcereiro da cadeia com a compe-tente guarda .

    K para tudo isso bastava um gr i to : hoje grita-se horas inteiras de noite nas ruas da cidade, e um milagre quando apparece a patrulha !

    Kra agora occasio de fechar o parenthesis que abri ainda ha p o u c o ; a c h o - m e p o r e m to fa t iga lo que supponho conveniente deixa- lo ainda aber to em-quanto descanso.

  • 17

    11.

    O P A L A C I O P E R I A L .

    Kiz muito bem no fechando o parenthesis que abri ao terminar o meu artigo precedente .

    Antes de proseguir na descripo chronologica do palacio imperial , preciso dar ainda algumas explica-es (pie se referem aos costumes do tempo dos vice-reis.

    10 verdsde (pie a justia e a Fazenda mora vo com o vice-rei debaixo do mesmo t e c t o ; convm porm saber que o vice-rei e o tr ibunal da relao trata vo-se to ceremoniosamente que nem ao menos se fal-lavo, passando de umas a outras salas pelo interior da casa.

    Nos dias da reunio do tr ibunal, que era presidido pelo vice-rei, o carro deste vinha receb- lo entrada principal do pao, e o levava a npea r - se poria que se abria para o terreiro do Pao, e que era a que pertencia aos domnios da relao.

    Mandava a regra que o vice-rei no fosse exercer to importantes funces fazendo a p um passeio, embora to cur to , e que se communicasse com o tri-bunal da relao aos olhos de todos, c no pelas portas travessas. J naquella poca t inha-se medo da influen-cia ilos corredores e das ante-salas.

    Com a fabrica da moeda, 0:1 no havia tantas cere-monias, ou, alm los seus domnios no pavimento

    c

  • 1 8

    inferior, tinha ella no pr imeiro andar ainda uma sala para o lado da travessa do Pao; porque ahi se via uma grande balana pendendo de uma mo de ferro, e destinada ao servio daquella fabrica.

    A balana desappareceu quando se mudou a fabrica para o edilicio em que hoje se a c h a ; ficou porm a mo de ferro, que smente no reinado do Sr . I). Pe-dro I foi arrancada como se se quizesse dizer que depois de fundado o governo constitucional no deves-se most rar -se mo de ferro no palacio do chefe do Estado.

    Agora fechei diinitivamente o parenthesis , e, para que no haja a menor duvida a esse respeito, fechei-o com uma potente mo de ferro.

    Vou con t i nua ra descripo in te r rompida . Era vice-rei do Brazil o conde dos Arcos quando a

    U ile Janeiro de 1808 entrou o por to do Rio de Ja-neiro o brigue de guerra Voador, t razendo a noticia da prxima chegada da familia real por tugueza. O bri-gue fizera honra ao nome que lhe t inho dado : voara para dar aquella nova ao vice-rei ainda a t empo de serem por elle tomadas algumas providencias.

    O conde dos Arcos no descansou mais um mo-mento, e emquanto mandava o rdens para descerem de S. Paulo e Minas todos os viveres que se pudes-sem logo conduzir, despejava elle propr io o palacio, e preparava no s as suas salas e as que tinho ser-vido relao, mas ainda as que ero occupadas pelo expediente da casa da moda, para receber to com-

  • 1 9

    modauientc quanto fosse possvel os augustos hos-pedes.

    Em breve porm vio-se que ero indispensveis propores mais vastas ao palacio wal: comeou-se, pois por unir a elle o convento do Carmo e a antiga casa da camara e cada. Ao convento foi ligado o palacio pelo passadio que ainda existe e que tem tres janellas de sacada para o largo do Pao, tres outras para a rua da Misericrdia, e se apoia sobre dous arcos (pie facilito a communicao entre o largo e a rua que lio designados. casa da camara unio-se o palacio por um outro passadio de que apenas resta a memria .

    Ainda novas obras furo executadas no tempo do rei-no do Brazil, pertencendo a essa poca o pequeno corpo de janellas de peitoril que se observo na face do sul.

    Em que peze aos meus companheiros de passeio, abro aqui outro parenthesis, e de novo in ter rompo a minha descripo.

    No sou to alheio s leis da cortesia que me expo-nha a deixar desalojados e na rua os frades do Carmo os desembargadores da relao, e os prezos da cada. Os carmelitas trocaro o seu convento do Terre i ro do Pao pelo hospcio dos barbadinhos italianos, na rua da Ajuda, onde permanecero at (pie se extinguio o seminrio de Nossa Senhora da Lapa para o qual passaro de propriedade.

    Os barbadinhos fro occupar as casas dos romeiros de Nossa Senhora da Gloria.

  • 2 0

    A relao no se achava mais nas .suas salas do palacio quando chegou a famlia real : t i nha - se esta-belecido, desde a lgum tempo, na casa da camara mu-nicipal; mas d'alli mesmo teve de r e t i r a r - se , a lugan-d o - s e pr imeiro , e emfim comprando-se para ella, a casa tia rua do Lavradio em (pie at hoje continua a funccionar , e que pertencia a Joo Marcos Vieira da Silva Pere i ra , fazendeiro do Campo Grande. Convm lembrar (pie ainda ento no existia, e s mui to de-pois se abrio a rua que tomou o nome da Relao, tr ibunal (pie alis em 1808 foi elevado ao gro de Casa da supplicao do Brazil.

    Provavelmente todas estas mudanas incommod-ro no pouco aos desa lo jados ; mas seguro que aos presos nem sequer um s instante occupou o espirito o cuidado de um novo asylo; para elles porm tomou-se casa destinada a outros , que , sou capaz de jurar , no lamentro a perda que solrro.

    Os presos fro removidos para o a l jube, que o bispo 1). F r . Antonio deGuade lupe fizera preparar exclusiva-mente para recluso dos ecclesiasticos que merecessem uma tal punio.

    Quem no mudou de casa em consequencia da che-gada da famlia real , apezar de pensarem alguns o contrario disso, foi a camara municipal .

    A camara j t inha deixado a sua cnsa prpria , cedendo-a para a relao, e se fora estabelecer naquella par te da casa do Telles que fica na esquina da rua hoje denominada do Mercado: em consequencia de

  • um incndio que chegou a devorar lambem boa poro do seu archivo, passou a occupar uma casa tia rua do Kosario. ent re as da Quitanda e Ourives, e ahi se achava em 1808: da rua do Rosrio, m u d o u - s e para o consistorio da igreja do Rosrio, onde em 182 recebeu as assignaturas de todos os cidados que de-clarro aceitar e que re r a constituio olerecida pelo Sr. 1). Pedro 1. : do consistorio da igreja do Rosrio emlim foi mos r a r - se no seu pao no campo boje da Acc lamao.

    Dizem que duas mudanas eqivalem a um incn-dio; e ento q u a t r o ? . . . A nossa camara municipal no aquentava lugar, estava sempre em movimento cons tan te ; desde alguns annos porm estabeleceu sua residncia definitiva no lugar mencionado, e emfim est quieta, e to quieta, que parece dormir por uma e te rn idade .

    .Alas no penseis , meus bons companheiros de passeio que s mente as repart ies, estabelecimentos pblicos e religiosos ti vero de fazer mudanas inesperadas e sbitas naquella poca : esssas ao menos ero exigidas pela necessidade de hospedar - se mais commodamenle a familia real, e portanto efectuavo-se com satisfao gera l , sem reluctancia da par le dos proprietr ios, setn violncia da par te da autor idade e a um simples convite deste, ou com enthusiaslica espontaneidade daquelles.

    Com a familia real porm chegaro em grande nume-

    ro idalgos, empregados e criados de todas as ordens,

  • e tantos cro que falt a vo casas para r e c e b e r a todos

    clles. Os criados de menor graduao ti vero mesa e n inho

    na famosa licitaria. que se t ransformou desde logo em um immenso formigueiro no pavimento inferior do convento do Carmo que se ligara ao palacio. A acharia no somente servio para matar a fome a muitos po-bres, mas ainda para encher os cofres de muitos ricos.

    Os fidalgos, empregados e criados de outras ordens acharo a sua providencia nas muito mais famosas aposentadorias.

    Quero em poucas palavras da r -vos uma ida do que fro as aposentadorias, especialmente em 1808.

    Adcos direito de propr iedade! No houve habitante ..da cidade do Uio de Janei ro

    que dormisse tranquillo na sua casa prpria, e que acordasse com a certeza de anoitecer debaixo do mes-mo tccto. Quanto mais bella e vasta era uma casa, mais exposta ficava ao (jnero absoluto dos privilegiados.

    Havia um juiz aposentador. A aposentadoria era um arranjo de uns custa de

    utros, que se executava em cinco tempos : Io tempo. 0 privilegiado dirigia-se ao aposentador

    e dizia-lhe que precisava da casa tal da rua t a l ; 2o tempo.-0 aposentador encarregava a u m meir inho

    de ir satisfazer o desejo do privilegiado; tempo. Sabia o meir inho com um pedao de giz

    na mo. e chegando casa designada escrevia na porta / \ li. (Prncipe Reyente);

  • 4 tempo O propr ie tr io ou morador da casa mu-dava-se om vinte o qua t ro horas.

    tempo 0 privilegiado aposentava-se o ficava

    muito sua vontade. Esta sem ceremonia era na verdade desesperadora . Comprehendo-se que era indispensvel tomar pro-

    videncias para que no ficassem no meio da rua aquelles vassallos fieis e bons servidores que t inho acompanha-do a familia real ao Brazil ; mas en t r e essa necessidade e os abusos inauditos que se prat icaro sob o pretexto das aposentadorias havia uma distancia e n o r m e que cumpria ser p ruden temen te cons iderada .

    Di r -me-he is que ao menos os aposentados paga vo o aluguel das casas que toma vo : pois estais engana-dos . Muitos deixaro de cumpr i r com esse dever, e houve a lguns (e a t um ti tular en t re esses ) pie no s no pagaro o aluguel de que se trata, como, tendo de acompanhar e l - re i em sua volta para Portugal , a r rancaro as portas e as taboas dos assoalhos das casas em (pie estavo morando , afim de fazer os caixes necessrios para levar as suas baixelas e o mais que lhes pertencia e que com elles devia to rna r ao velho mundo .

    Ainda bem que este exemplo tr ist ssimo no foi seguido pela maioria dos privilegiados.

    Mas as desregradas aposentadorias to rnro-se logo em um to rmen to insuportvel . Houve senhor aposentan-do (pie se apaixonou t res ou quat ro vezes consecutivas por diversas casas, e para conten ta - lo despediro-se

  • 2 4

    tambm consecuti vmente quatro famlias dos tectos sob os quaes se abriga vo,

    Havia luxo de abuso, luxo de prepotncia, luxo de escandalo.

    No meio das festas bri lhantes e repetidas com que se solemnisava a chegada da famlia real , que foi to proveitosa para o Brazil, o povo comeava a mur-murar e a queixar-se . O prncipe regente, como todos os monarchas. ignorava a maior par te das violncias que em seu nome se praticavo. Ento como dantes e como depo i s , os verdadeiros oppressores do povo levantavo urna barreira (pie no deixava a verdade chegar aos ouvidos do soberano.

    Dava-se em 1808 a historia de todos os tempos. Entre tanto a originalidade de um magistrado veio

    dar causa a que o prncipe regente soubesse o que se estava praticando em seu nome e em mal da popu-lao.

    Era ento juiz de fra e inter inamente aposentador o clebre desembargador Agostinho Petra de Bitten-cour t .

    Era um homem verdadeiramente original, mas um magistrado justo e sevro.

    Andava elle j muito aborrecido com os arranjos de aposentadorias, e cansado dos abusos em que por obe-dincia via-se coagido a tomar parte.

    Um dia estava o desembargador Petra a meditar nos so f r imen tos do povo, quando lhe ent rou pela sala um fidalgo que o visitava pela quarta vez.

  • 2 3

    Na primeir a visita esse fidalgo tinha pedido a aposen-tadoria em uma ba casa (pie designara; na segunda pedira nova aposentadoria em outra casa m e l h o r ; na terceira t inha vindo exigir mobilia.

    li no contente ainda com tudo isso, apresentava-se pela quarta vez declarando que lhe convinha muito um excellente criado, ou talvez escravo, que servia a um homem que designou.

    O desembargador Petra, sem dar a mais simples resposta fez chamar sua senhora sala, e apenas a vio chegar, d i s se - lhe :

    Aprompte-se , Sra. D. Joaquina, estamos em ves-p e r a s d e separar -nos : este nobre fidalgo j me pediu casa, depois mais casa, depois mobilia, agora c r i ado ; amanha provavelmente ha de querer que eu lhe d mulher , e como no tenho outra seno a senhora, e no ha remedio seno servi- lo, aprompte-se , Sra. I). Joaquina, aprompte-se

    O fidalgo sahiu furioso, protestando vingar-se , e foi direito ao prncipe regente queixar-se da zombaria de que fra ob jec to ; mas o desembargador Petra, interro-gado pelo prncipe, taes cousas disse e to claramente manifestou a verdade que as violncias cessaro, e o systema das aposentadorias foi mais suavemente exe-cutado.

    Por occasio de sua elevao ao throno o Sr . I). Jo-o VI reformou ainda este systema, concedendo aos habitantes da cidade do Rio de Janeiro as aposenta-dorias passivas.

    i>

  • 2 6

    Fao aqui ponto final a respeito das aposentado* ias. Creio porm, meus companheiros de passew, que

    podemos conversar ainda alguns momentos , visto (pie no temos pressa nem razo alguma para andar cor-rendo.

    Fallei-vos do desembargador P e t r a ; d isse-vos que era elle um homem original, e no devo c o n t e n t a r - m e com a nica aneedota que a seu respeito refer i .

    Ahi vai out ra . Naquelles tempos de que nos estamos lembrando

    neste passeio, somente de cales e meias de seda se apresentavo no pao os homens da corte. O t r iumpho tias calas teve lugar apenas em 1840, com satisfao indizivel, de todas as pernas finas e de todas as pe rnas grossas de mais.

    Os cales e as calas podio bem servir no s para representar duas pocas distinetas, mas ainda dous princpios pie se contrario : ter amos em tal caso os calcoes representando a aristocracia, e as calas a democracia.

    Se aceitarem a ida, pde bem ficar de te rminado que o ultimo e iel representante da aristocracia no Brazil foi ' jm antigo inspector de quar te i ro da lYe-guezia de S. Jos, homem constante, que at o ult imo dia da sua vida, annos depois de 1840, usou de cales de ganga amarella.

    Vamos porm eneedota. Somente de cales e meias de seda ia-se naquelle

    tempo ao pao fazer a corte ao rei. e os magis t rados

  • 2 7

    usa vo por mais requin te de tafularia levar aberta a beca para most rar os cales e as meias de seda.

    Preparava-se o desembargador Petra um dia para ir ao pao : achava-se j de cales, porm ainda em mangas de camisa, c eis que lhe apparece de sbito um grande criminoso contra quem havia dado ordem de priso e que lhe trazia um requer imento a des-pachar .

    O desembargador , e m vez de receber o requer imento abre a boca e b r a d a : < est p r e so !

    O criminoso volta as costas, cor re pela porta fra; mas o desembargador Petra, em mangas de camisa e sem chapo como estava, deita igualmente a correr peia rua atrs do fugitivo, gri tando, pega ladro pega ladro! >

    O povo acudio voz da justia : o criminoso foi cer-cado, preso e recolhido cada ; e o desembargador Petra, muito satisfeito do resul tado da diligencia, vol-tou para casa, tomou a beca, e foi para o pao.

    Quero ainda contar -vos uma outra anecdota relativa ao mesmo magis t rado: ser a ultima : antes porm de o fazer, dezejo, assim a modo de prologo ou introduco de uma historia, o!Terecer-vos breves consideraes.

    O mal que se est exper imentando sempre nos pare-ce mais grave ou doloroso do que o mal que j se experimentou : esta nuana do nosso egosmo faz-nos ge ra lmente muito injusto para com o nosso tempo.

    Andamos agora incessantemente maldizendo do pa-

  • 2 8

    t ronato o queixando-nos dos repet idos e vergonhosos milagres que elle operava! causa-nos espanto a cara horrvel do patronato de h o j e : a l i ! . . . lao ida da face medonha do pat ronato daquelles tempos , ein que o arb t r io era a lei, a vontade de um min is t ro valia mais do que todos os in teresses do paiz e todas as convenincias publicas.

    Ao menos agora cada um de ns tem nas publica-es a pedido dos jo rnaes dirios, e em cada typo-graphia uma elevada t r ibuna em que solta a voz e falia como um deputado. E d a n t e s ? . . . Dantes quem faltava ou escrevia fra do compasso marcado pela ba-tuta do governo fazia uma viagem frica, ou pelo menos deixava o seu nome escripto no livro do carce-reiro.

    Morto por um raio seja eu se troco o m e u tempo pelo t empo do mando e que ro , se troco o di re i to que tenho hoje de pensar em voz alta, de discutir e de censurar , pelo ant igo dever de uma cega obediencia n de um silencio de catacumbas.

    Patronato sempre houve, e pa t rona to ha ainda ; mas o patronato d e o u t r ora differe mui to do pat ronato de hoje.

    Eis algumas das diTerenas que se podem notar ent re o velho e o novo.

    O patronato do outro tempo usava de cales, e o da actualidade de calas.

    O patronato do outro t empo andava de dia e se mostrava ufano no meio da praa : o da actual idade

  • 2 9

    an

  • - 3 0

    Concordo ainda em que no poucas vezes no nosso tempo ousa o patronato erguer-se com a audacia antiga porque a vaidade e a filaucia de a lguns f igures os faz crer (pie ees nascero predest inados para serem tutores e curadores obr igados do povo, e (pie por tanto devem todos curvar-se ao impr io de sua vontade, e ainda em cima r e n d e r graas a Deos pelo favor e beneficio immenso que da sua irresistvel influencia resulta para o paiz; mas em que lhes peze, cada cidado tem na consti tuio do Impr io um baluar te inexpugnvel contra as intolerveis pre tenes desses reisinhos improvisados, e no direi to de censura uma arma sempre poderosa e temida para atacar os abusos e os patronatos dos taes senhores .

    Cancluo: sempre houve, ainda ha, e mui to , e nunca deixar de haver mais ou menos p a t r o n a t o : dan tes porm as victimas soTrio as injustias dos potentados sem queixar-se nem m u r m u r a r , e agora q u e m sore pde levantar a voz, fazer-se ouvir, achar um echo na opinio publica, e muitas vezes consegue v e r t r i u m -phanle o seu direi to , e fugirem desapontados e pagos os altivos afilhados dos mais orgulhosos padr inhos .

    Ultima consequencia : viva a consti tuio do Im-prio !

    Est concluda a introduco ou te rminado o prologo da ar.ee l )ta que agora passo a re fe r i r .

    Na poca em que viveu o desembargador Pet ra , a camara municipal marcava o maximum dos preos dos generos de primeira necessidade, e fiscalisava o

  • 44

    mercado, impedindo que se vendessem ao povo gene-ros alimentcios deter iorados .

    Aquelle desembargador presidia a camara municipal como juiz de fora que era, e portanto a seu cargo principalmente estava o cuidado de garant i r ao povo gneros alimentcios em bom estado e por um preo no exagerado.

    Nesse ponto era o desembargador Petra muito se-vro, e um certo mercador de farinha de mandioca que era fornecedor das asas de alguns fidalgos mais inluerites, t inha sido por elle mais de uma vez con-demnado em consequencia de vender farinha avariada ao povo, e ainda ^m cima de ter uma balana infiel.

    O negociante, cansado de solrer a rectido do juiz. appellou para os milagres do pat ronato .

    Um dia e m que o desembargador Petra dava audin-cia, approximou-se delle o negociante de farinha, e apresen tou- lhe um aviso ou portaria do ministro em que era ordenado ao juiz de fra que no incommo-dasse mais o fornecedor dos fidalgos.

    O desembargador leu pr imeiro para si e depois em alta voz a ordem do governo, e em seguida beijou respeitosamente o aviso ou portaria, e d i s se :

    Pde ir descansado e fur tar sua vontade: o governo o autorisa a roubar ao povo; eu hei de cumpr i r as o rdens do governo, e Y. Mce far muito bem se fur tar dez vezes mais do que furtava at agora.

    Realmente em um paiz governado pelo systema absoluto no se podia ferir, de um modo mais positivo

  • M

    e furte do que o fez o desembargador Pe t ra , um

    escandaloso pa t rona to dos g randes . Tambm verdade que o severo magis t rado contava

    na corte uma numerosa phalange d e furiosos inimigos ; mas tinha po r si a confiana do pr nc ipe real, e zom-bou sempre de todos el!es.

    Creio pte por hoje basta de passeio; mas desta vez fecho o segundo parenthesis que abr i , e p rome t to que d"ora avante divagarei muito menos .

  • - 3 3

    111.

    O P A L A C I O I M P E R I A L .

    O antigo conventodos carmelitas exige agora t ambm um breve e s t u d o : fazendo parle do palacio desde 18US no pde ficar esquecido sem ofensa da exactido histrica.

    Um simples passadio converteu aquellc edifcio de casa de f rades em pao r ea l ; m u d a n d o - l h e porm a natureza, no !he pde mudar o parecer, e o antigo convento conservou e conserva ainda a primitiva feio monastica que o apresenta sempre architectonicamente desharmonisado com o palacio que se ligou.

    um addilivo que no tem relao alguma com o corpo a (pie foi addicionado : um adjectivo (pie no concorda com o seu substantivo nem e m genero nem em caso, nem em numero : discordncia completa 110 (pie diz respeito a archi teclura .

    Mas pouco importa isso: hoje em dia j estamos acostumados com essas estravagancias que das obras

  • 3 4

    declinavel impz a annexao que deu lugar quella desharmonia arcbitectonica, e actualmente nada pde desculpar a abusiva repetio dessas discordancias ad

    ministrativas. Ora e i s -ah i ! insensvel e involuntar iamente comeo

    a divagar outra vez ! bom foi que a tempo o conhecesse para no adiantar-me muito.

    Aqui vai em poucas palavras o que era o ant igo convento do Carmo : creio que no haver quem possa notar nelle mudanas sensveis operadas nestes cincoen-ta e dous annos j passados : conservou-se quasi abso-lutamente o mesmo, o (pie, en t re ns, no admira em uma casa, mas admiraria mui to cm um homem ; po rque os homens

    Pe io r ! o antigo convento do Carmo nada tem de commum com os homens polticos.

    O edifcio que asylava os carmeli tas comea na ex-trema da rua da Misericrdia, um pouco adiante da esquina da rua da Assembla, d \ m t e s chamada da Cada, es tende-se por toda a largura do largo do Pao at a entrada da rua Direita, onde termina com a igreja que, acompanhando o dest ino do convento, passou a ser capella real, como ainda hoje capella imperial.

    Pela f r e n t e da praa apresenta o edifcio, alm do pavimento inferior, dous andareres que t inho janel las com balces de fer ro e rtulas de madeira , e que ero duas ordens de dormitor ios .

    Vinha logo em seguida a igreja de Nossa Senhora do

  • Carmo, que a capella imper ia l : cm primeiro [lugar levanta-se a to r re , cuja entrada, que era a portaria do convento, precedida por um alpendre sustentado por columnas de pedra. A to r re q u a d r a n g u l a r e terminada super io rmente por uma abobada pontaguda, em cujo cimo se observa um globo que serve de apoio ao sym-bolo da redempo : um gallo metallico que atraves-sado pelo p da c ruzgvra l iorisontalmente obedecendo aco dos ventos, e indica a direco destes.

    Segue-se tor re uma capellinha consagrada ao Se-nhor dos Passos.

    Tres portas do entrada para o t e m p l o : sobre o pavimento desta levanta-se um out ro com pilastras, en t re a squaes abrem-se t res janellas de peitori l : acima deste pavimento ainda um terceiro sobre o qual est montada a empena que remata e m seu pice pela cruz, e lateralmente por vasos de pedra que coro as pil-lastras ext remas. En t re as pillastras que sustento a empena estavo as armas reaes, como hoje esto as imperiaes.

    Antes !e penet rar no interior da capella imperial, devo fazer duas observaes: a primeira re fe re - se a uma alterao porque passou o antigo convento ha cinco a n n o s ; a segunda no passar de uma pergunta lilha da minha ignorancia, e de uma ida innocente que despertou em meu espirito o gallo metallico da capella.

    lia cinco annos reinava epidemicamentc na capital do imprio a febre das e m p r e z a s : o pensamento era

  • 49

    bom, o desejo do p rogresso mater ial jus t i l icadiss imo; o excesso porm a que se chegou fez da sade molst ia . T r a t o u - s e tambm com a r d o r nessa poca de ab r i r a t o largo do Pao a rua do Cano, que devia ser toda de novo disposta , ladeada de casas magnficas, al inha da , embelleoida e t rans formada na mais e legante das ruas da cidade.

    Sorr ia tanto a ida des te melhoramento , foi elle reputado to faci lmente rcalizavel, que a t acou- se logo a nica barreira que separava o largo do Pao da rua do Cano, isto , a ex t rema esquerda do ant igo convento do Carmo. S. M. o Imperador dese jando facilitar a realizao da empreza , mandou p r o m p t a m e n t e r o m p e r o edifcio naquello p o n t o ; abrio-se pois a coinmimieao en t re a rua e a praa, e passado a lgum t e m p o unio-se ainda o palacio com a capella imperia l , por meio de um passadisso de madeira (pie tem tanto de s imples como de pouco elegante .

    K a empreza no foi adiante , pelo menos at a g o r a , t ropeou no vcuo, e ficou de r r eada . No se incommo dem com a phrase tropeou no vcuo : a falta de dinhei ro um vcuo, e na falta de d inhe i ro (pie o s e m p r e hendedores t ropeo mais desas t radamente .

    A rua que devia chamar-se sele

  • ;i7

    Segunda observao. O gallo metallico que gyra horisontalmente sobre a

    torro da Capella Imperial , obedecendo aco do vento que sopra, no pde deixar de exprimir algum pensa-mento philosopliico. alguma lio moral .

    Que segnifica aquelle gallo inconstante, que assim se volta para todos os lados, e que ora mostra o bico ao sul, ora ao norte , ora ao occidente, ora ao nascente? . , (pie significa esse gallo (pie lisonga e atraioa a todos os v e n t o s ? . . . no sei ; e somente quem oempole i rou na tor re n- lo poderia dizer.

    proveitando-me no entanto da exis tenciado famoso gallo, e da sua incessante mobilidade, servir-me-hei delle d ora avante para um termo de comparao que me parece apropr iado.

    A. inconstncia e volubilidade de muitos polticos excedem tanto as propores de possveis modificaes conscienciosas de princpios, (pie a todos antes se alli-guro contradansas executadas ao som da orcliestra magica da ambio e do egosmo.

    So mudanas determinadas por convenincias (pie no se confesso, mas que excito os contradansadores a voltar as caras ora para 11111, ora para outro ponto, conforme o vento poltico que sopra.

    Assim pois serve-me s mil maravilhas o gallo da ca. jiclla, e quando abi por essas ruas eu encontrar alguns desses homens polticos que ando aos saltos de um para outro partido, dizendo hoje que branco o que houtein dizio que era preto, e achando sempre razo

  • oiii quem est de cima. direi a mim mesmo, ou aos amigos que passearem comigo nessa oceas io : alli vai um gallo da capella.

    Penetro agora no sagrado recinto. Tem a capella imperial t res a l tares de cada lado, e

    ent re estes e o a l tar-mr duas eapell inhas f ronte i ras : na da esquerda onde se expe o Santssimo Sacramen-to, e onde a famlia real vinha ouvir missa, tendo para isso duas t r ibunas .

    No lado direito da capcl la-mr est a t r ibuna da famlia imperial .

    () tecto da capel la-mr da igreja dos carmeli tas foi decorado por Jos de Oliveira, o mais ant igo dos pin-tores f luminenses : a Virgem do Monte Carinello que nelle est representada , era uma obra de m e s t r e ; diz o Sr . Por to-Alegre em nina memria apresentada ao nosso inst i tuto Historico, o s e g u i n t e : Na re forma do convento os mais babeis ar t is tas da capital se escusaro de retocar aquella o b r a ; mas os carmeli tas descobr i ro um ca i ado rque a destruio comple t amen te ; seu estado actual 6 uma res tauraro feita pelo Raymundo ( 1) , que antes se escurara , mas que no tempo de el-rei fra obrigado a faz-la.

    O tecto da capella do Senhor dos Passos, que repre-senta o descimento da cruz, obra do celebre Manoel da Cunha, outro p in tor fluminense, que nascido escra -vo ennobreccu-se pela ar te em que pr imou, e de (pie legou patria bellos thesouros, como so o retraio do

    ( 1 ) Ksculptor e p in tor fluminense

  • 3 9

    Conde de Bobadella, que est no pao da camara mu-nicipal. o Santo Andr Avelino da igreja do Castello. a capella contgua sacristia de S. Francisco de P j u l a e muitos out ros .

    Km 1817 o Sr D . J o o VI mandou pintar de novo e dourar a capella real, obra que se executou com tanla presteza como feliz desempenho, e para a qual concorrero os melhores art istas que ento possua a capital, e notavelmente o nosso habilissimo Jos Lean-dro de Carvalho, pintor historico e o mais liei retratista da poca, tendo neste tjenero, diz tambm o Sr . Porto-A l e g r e , um dom particular, pois bastava ver o indivduo

    uma nica vez para conservar perfeitameate de memria

    suas feies e pinta-lo ao vivo. ( 2 )

    Jos Leandro fez todos os quadros da capella real, e no concurso que houve en t re diversos pintores levou a palma na execuo do quadro do a l t a r -mr da mesma capella, no qual re t ra tou de uma maneira dmiravel toda a familia real.

    Em 18-M foi esse quadro del i rante e violentamente condemnado pelo odio ao passado; a gratido nacional

    ( 2 ) Em um dc seus cscriplos informa o i lbuslrado Sr . Porto-Alegre q u e Jos Leandro era natural de Mag : reio que o nosso distincio compatr io ta enganou-se ucsie ponto.

    Tivemos dous Jos Leandro de Carvalho, o pai e o filho, ambos pintores de g rande e merecida nomeada , sendo Jos Leandro de Carvalho, o pai , o celebre re l ra t is ia de quem se trata : este nasceu no lugar chamada Mwriqui, na f reguez ia hoje Villa de S. Joo de I taborahy, onde res idem ainda a lguns parentes delie.

    Jos Leandro de Carvalho filho teve o seu bero na cidade do Rio de Janeiro.

  • 4 0

    e a a r ie resentiro-se por certo desse descomedi-mento reprehensivel , que seria uma indignidade se no fosse a loucura de um dia de ver t igem; mas a gratido nacional no se apagou com o quadro destru-do, a ar te pde regenerar a obra lo m e s t r e ; o mes t re , porm que foi tes temunha do insul to , s e n t i - o tanto, (pie perdeu a sade com o abalo, e veio a m o r r e r no muito depois.

    Faz -me conta suppr que me pergunto agora como em um paiz to novo e ainda abatido pelo jugo colonial, pde em 1.S08 o prncipe regente vir encon t ra r ar t is tas de tanto merecimento, como esses (pie executaro a reforma da capella real em 1817.

    Pois sabei que desde a ultima metade do sculo dcimo stimo j as ar tes contaro lieis e esclarecidos interpretes no Rio de Janeiro . Os art is tas acudro como por encanto voz de Bobadella e de Luiz de Yasconcellos, e ensejo terei de demons t r a r esse facto na continuao deste passeio.

    E sabei mais (pie no fro somente p in tores ames-trados que a famlia real portugueza teve de admira r , chegando ao Brazil.

    Nos plpitos e no coro da ento capella real fizero-se desde logo sentir g randes e br i lhantes intelligencias que a corte portugueza mal podia espera r (pie esti-vessem florescendo no Brazil e que devessem por ella ser admirados.

    Nos plpitos appareccro en t re out ros muito nota-velmente S , Carlos, Sampaio, e MonfAIverne , t res

  • '< I

    iranciscanos, Ires frades da ordem que professa pobreza e pie ero a iniinensa riqueza da nossa t r ibuna sagra-d a . No coro avultava no menos o padre Jos Maurcio \ u n e s Garcia, indisputavelmente um desses homens privilegiados em cujo espiri to Deos acende a (lamina do gnio .

    Dir -se-h ia (pie a natureza virgem e portentosa do Brazil suppria com suas inspiraes patr it icas e a r r eba t ado ras as academias e os mest res abalisados q u e falta vo na America portugueza a esses e a todos os bel los talentos. Certo que elles excedero a espec-tativa do familia real e dos lidalgos por tuguezes , que reconhecero no ter deixado na culta Lisboa quem os levasse a palma na eloquencia e na musica sagrada.

    s . Carlos foi, alm de br i lhante orador , um lit terato profundo, e g rande pota. A sua orao fnebre pelas exquias da rainha I). Maria I um verdadeiro e magniico t r iumpho de intelligencia. 0 seu poema a AssumpOy uma gloria da patria. S. Carlos era ainda notvel pela facilidade com que improvisava sermes, quando era inesperadamente arrancado de sua cela para subir sagrada t r ibuna .

    Sampaio arrebatava o seu auditorio por uma graa natural , que foliava a Iodos os coraes : s vezes interrompia o lio do seu discurso para aprovei tar um incidente que de sbito occorria , e de pie tirava sem pre so rp renden te part ido.

    Um dia em (pie rebentra uma for te trovoada na occasioem que elle se achava p r e g a n d o , Sampaio ao

    F

  • escutar o r ibombo de um IIOITV I trovo, cor lou Io sbito a ligao das idas em que ia, e em uma apos-t ropbe ardente e bem cabida inspirada pelo es tampido

    (pie ouvira, encheu de assombro, c deixou c m extase a todo o concurso que se reunira na igreja.

    A um destes dons pregadores r e f e r e - se um bello repente que no deixarei de lembrar aqui .

    Solemnisava-se na capella real a Santssima Senhora das Dres. Um incommodo no tinha permi t t ido vir assistir festa a rainha I). Maria I : no se contava com cila : o orador subira ao plpito, e ia j em meio do sermo, quando apparecendo a ra inha, teve de t o rna r a comea-lo : ento, voltando-se para a t r ibuna real , exclamou, repet indo o verso de Virglio :

    Infandam, retjina, jubes renovare dolore...

    MontWlverne foi dos trs illustres f ranciscanos o

  • e notvel compositor de musicas sa ias , e era alm disso recommeiidavel pelo seu nobre caracter , como por sua instruco.

    As composies do padre Jos Maurcio ero clas-sicas, magistraes, e ainda hoje se admiro. o prncipe regente estimava muito o 'grande musico brazileiro. Km uma dessas festas grandiosas que ento se ceie bravo na capella real, o Sr . 1). Joo VI sent io-se to ar rebatado ouvindo executar a musica de uma nova missa do padre Jos Maurcio, que uma hora depois o mandou chamar ao pao, e a h i em plena corte o encheu de louvores, e t i rando da farda do conde de Yilla Nova da Kainha o habito de Christo, com a sua prpria mo collocou-o no peito do seu estimado e eminente mest re de capella.

    A ba vontade e os sent imentos generosos do rei nem sempre ero imitados pela sua corte : o padre Jos Maurcio teve nella desaeioados, especialmente depois que chegou de Lisboa o mestre tMarcos Portugal que se tornou bem depressa seu decidido rival. [Os proissionacs esto no caso de julgar qual dos dous t inha mais merecimento, e a boas e conscienciosas autoridades na matria sempre ouvi dar preferencia ao composi tor brazileiro.

    Km certa occasio o padre Jos Maurcio e Marcos Portugal tivero de medir art ist icamente as suas for-as.

    Devia-se solemnisar na fazenda de Santa Cruz a degolaro de S. Joo Baptista ; o rei quiz musica

  • nova, o os seus dous mes t res de capella lro chamados

    a satisfaz-Io. Era uma luta artstica que ia ter lugar, e em resul-

    tado Marcos Por tugal empregou um mez para compor as mat inas , ao tempo pie o padre Jos Maurcio compoz em quinze dias uma g rande missa e c redo, que ainda hoje se executo com applauso dos mais profundos en tendedores .

    Xeukomm, o discpulo predilecto de Haydn, o com-positor daquelle famoso concer to que foi execu tado por trs mil art istas na inaugurao da estatua d e Guttemberg, Xeukomm que viera para o Rio de Janei -ro com a colonia artstica dirigida po r Lebre ton, dizia a (piem o queria ouvir (pie o padre Jos Maurcio era o primeiro improvisador de musico que elle ndia conheci-

    do, e a propsito contava o seguin te facto : Em uma das muitas reunies (pie t inho lugar na

    casa do marquez de Santo Amaro, faz io-se provas de diversas musicas que Xeukomm acabava de receber da Europa. O celebre Fascioti cantou uma b a r c a r o l a q u e foi a rden temente applaudida , e o padre Jos Maurcio,

  • Promet t i no divagar, e talvez pensem cjnc lenho divagado : protesto e ju ro (pie no. Tratando de des-crever, devo dizer o que vejo, e ao estudar a capella imperial no me possvel deixar de ver nos plpitos e no coro os vultos venerandos desses homens iIlustres (pie so glorias nacionaes.

    S. Carlos, Sampaio, MontAlverne , e Jos Maurcio, so monumen tos .

    Acabei de r e f e r i r - m e ainda ha pouco s festas pom-posas que se fazio na capella real no tempo da regncia e do reinado do Sr . I). Joo : com cffeito ero ellas notveis pelo br i lhant ismo e magnificncia com que as mandava celebrar aquelle pr ncipe eminentemente religioso.

    No tive porm occasio de fallar de uma solem-nidade piedosa pie tinha em par te lugar na capellinha do Senhor dos Passos, que , como disse uma depen-dncia da capei :a imperial .

    Na segunda sexta-fei ra da Quaresma costuma, como ainda hoje se observa, saliir rua, par t indo da igreja da Misericrdia a procisso do Senhor dos Passos; mas a sagrada imagem que pr incipalmente se venera nessa procisso no do templo donde sahe n\aquelle dia.

    Na noite da vspera dessa sexta-fe i ra o Senhor dos Passos da capellinha de sua invocao era solemnemen-te conduzido pelo rei e pela corte para a igreja da Misericrdia e este acto de devoo cont inuou a ser praticado pelos augustos illio e neto do Sr . I). Joo VI.

    Kntrelanto cumpre no at t r ibuir o comeo deste

  • i

    devoto costume poca da chegada da famlia real portugueza ao Brazil : muito an tes de 1808, p r imei ro os governadores e depois os vice-reis ero os (pie com os ofllciaes de maior patente leva vo sobre seus hom-bros a imagem do Senhor dos Passos na qu in ta - fe i ra noite da capellinha do convento do Carmo para a igreja da Misericrdia.

    Outr ora a procisso sabida na sexta-feira, parava, e fazia as oraes dos sete passos, diante de ora tor ios que havia nas esquinas de certas ruas, e de a lguns dos quaes ainda hoje resto vestgios. .No fim da procisso a imagem do Senhor recolhia-se como actualinente se recolhe, capella imperial .

    Vchareis que vos estou contando cousas pie todos sabem : ha ! lembrai-vos que os tempos que vo pas-sando levo comsigo pouco a pouco as usanas, os cos tumes , a s i d a s , e t ambm algumas cerernonias religiosas dos nossos antigos, e (pie por tanto convm ir conservando a memria de todos esses t raos, que caracteriso e mostro-nos as feies do nosso passado.

    E por fallar no passado, veio agora mesmo doer -me na conscincia a ida de uma omisso (pie me pdem lanar em rosto. Descrevendo o palacio, e fallando do convento do Carmo, que passou a fazer parte delle, no disse uma nica palavra sobre a historia antiga desse convento.

    Vinda bem que foi uma falta que pde ser facilmente corrigida.

    Vou (ratar disso immediatamente.

  • I \

    O P A L A C I O l a r E B I A L .

    Soa agora obrigado a dar um salto e n o r m e , um salto do anuo le 1808 e da poca do reino do Brazil. de (pie me occupava es tudando o palacio imperial para dous sculos e mais alguns lustros antes . Assim pre-cizo fazer, visto que me compromet t i a dar a historia autnja da casa que foi convento dos carmelitas.

    Irei refer i r de envolta com alguns factos registrados nas c lmmicas Io tempo uma ou duas tradies popu-lares ; coibi os pr imeiros nos livros e memrias que consultei, e as segundas c o n t o u - n f a s um padre velho que morreu ha dez a n n o s ; daquelles no licito duvi-dar , a estas pode negar-se credito sem receio de mo-lestar o padre, (pie j no tem que ver com as cousas deste mundo .

    Sem mais prembulos . O famoso Mem de S acabava apenas de lanar os

    fundamentos da esperanosa Sebastianopolis : seu so-brinho Salvador Corra de S tecia ainda no alto do mor ro do Castello os pr imeiros lios daquelle ninho de aguia que foi o bero da actual capital do I m p r i o ; a cidade nascente, modesto g rupo de palhoas e cazinhas humildes no tinha ainda descido a banhar seus ps de princeza nas mansas ondas do formoso golpho que do seu t rhono da collina dominava; a povoaro comeava apenas, e j aqui o alli surgio e se mostravo no valle

  • S

    algumas piedosas ermidas, (pie a devoo ergura de

    improviso. Cada uma dellas era lo s imples como a orao (pie

    sahe da alma de um menino e sobe ao co nas azas do anjo da inuocencia, c ero todas llores divinas aber tas no seio da(|uelle novo paraso, que se mostrara aos olhos dos Portuguezes.

    Havia a ermida de Nossa Senhora da Conceio, a ermida de Nossa Senhora da Ajuda, a ermida de Nossa Senhora do O, trs tur ibulos em que se queimava o puro incenso da devoo aos ps da Me de Deos.

    Creio que a mais antiga dessas ermidas , ou an tes a primeira (pie se levantou fora do m o r r o do Castello loi a de Nossa Senhora do O, e exactamcnte dessa (pie me cumpre fallar.

    A ermida de Nossa Senhora do estava situada na vargem, diz assim uma memria do tempo, ou mais positivamente borda do mar , e no mesmo lugar em que depois se levantou o convento do Carmo.

    A praia (pie ficava fronteira ermida chamava-se

    praia da Senhora do O, nome que como j ficou dito, perdeu logo que se froal l i ediicando algumas casas.

    A ermida estava em terras per tencentes a uma mu-lher , cujo nome no chegou at ns : o piedoso devoto que ergueu naquella solido essa igrej inha modesta e graciosa fra um ermito, (pie t ambm no pde ser lembrado pelo seu nome.

    Nos primeiros quat ro l u s t ro sque correro depois da fundao d i cidade de S. Sebastio do Kio de Janeiro .

  • >

    MM a ordem religiosa dos Jesutas a nica que tomara um posto e comeara a lanar razes na nova colnia: essa primazia de direi to competia aos irmos de No-b r e g i e de Anchieta, que tambm mui to havio con-tribui lo para a expulso dos Francezes em 1 ->(>7.

    Mas o e r m i t o d e Nossa Senhora do contava que no tarde virio igualmente os carmelitas estabelecer-se no Rio de J a n e i r o : por qualquer motivo elle os amava e por elles esperando pedira e obtivera a favor da ermida de Nossa S e n . r a d o O a doao do monte, que foi depois cha-mado de Santo Antonio, e que ento se chamou o monte do Carmo; por pie para os carmelitav o destinava o ermito.

    At aqui a historia : fallro as chronicas do t empo: agora comea a tradio e falia o padre velho.

    Quem era aquelle e rmi t o? . . . envolvia-se algum se-gredo na fundao da ermida ? . . . porque de preferencia e tanto lembrava-se o ermito dos c a r m e l i t a s ? . . .

    A tradio popular adivinhou ou improvisou o se-guinte .

    t 111 joven por tuguez, cedendo aos votos de seus pais, e aos impulsos do prprio corao, de terminara trocar o m u n d o pelo claustro, e acolhera-se ao convento do Carmo de Beja em Portugal .

    Passados alguns mezes, em uma pomposa solemnida-de que leve lugar na igreja do convento, o joven vio uma donzella de maravilhosa belleza, e abrazou-se de amor por cila : nem a orao, nem os je juns , nem os cilicios pudero vencer e destruir essa paixo, que su-bi tamente lhe rebentara na alma.

  • :;o

    O j o w n reconheceu i|im uma mullier se levantava diante da sua vocao de o u t r o r a , e que a fora o arrastava do claustro para o m u n d o .

    Ainda era t empo : fugio ao c laust ro .

    O mais velho dos carmeli tas do convento, ao v-lo sahir , d isse- lhe em tom prophet ico : trocas a me de Deos pela .filha do h o m e m : no sers feliz! um dia l e m b r a r - t e - h a s do Monte C a r m e l o !

    Apezar disso o mancebo sb io : mas seus pais o repe l -

    liro. Cm anuo depois a familia inteira da formosa don-

    zela teve de passar ao Brazil para estabelecer-se na cidade do Salvador : o mancebo apaixonado acompa-nhou na mesma caravella a dona do seu corao.

    Os dous jovens amrao-se, e s o u b e r o q u e ero ama-dos : sorr ia- lhes o fu tu ro , quando, na cidade do Salva-dor , um cavalleiro de nobre es t i rpe, colono por tuguez considerado, pedio a donzclla em casamento . O pai mandou , a filha c h o r o u ; mas teve de obedecer : o amante pensou m o r r e r ; viveu porm ainda para amar com o mesmo a rdor a mu lhe r (pie pertencia j a out ro .

    O marido teve conhec imento daquelle a m o r que era j um desvar io ; mas conteve-se, porque no podia du-vidar da vir tude da esposa.

    No fim do anuo de lu6G Mem de S chamou os bravos a pelejar contra os Francezes do Rio de Janei ro .

    () marido da bella moa a l i s tou-se en t r e os guerrei-ros e fez-se acompanhar de sua m u l h e r ; t inha a ida de ficar na nova colnia que se ia funda r , e de assim

  • ver-se livre do importuno apaixonado de sua esposa; quando porm o navio em que ia levantou a ancora, o mancebo appareceu a seus olhos.

    O marido t u r v o u - s e ; guardou porm silencio. A expedio chegou ao seu destino, e no dia 2) de

    Janeiro de K>G7 t ravou-se a peleja en t re os Portugue-zes e os Francezes .

    \ o momento de avanarem os Poi luguezes para atacar a praa do Lrunmirim, o marido voltou-se de repente para t rs e vio pie sua esposa olhava antes para o antigo amante do que para e l le ; corou e t remeu: corra de vergonha e t remera de raiva.

    Ao t ravar-se o combate o marido chegou-se ao aman-te de sua mulher , ba t eu - lhe no hombro e disse-lhe :

    Quero ver se sabes ser valente como (peres pare-cer apa ixonado!

    O amante olhou para o feliz rival com sorpresa e fu ro r , e inimediatamentc a t i rou-se na peleja como um leo.

    o marido tivera um mo pensamento excitando o amante a procurar a morte dos b ravos ; ao v-lo porm ba tendo-se com arrojo sublime, a r r ependeu-se , teve pejo, imi tou-o , f>i um segundo leo.

    \] marido c amante cahiro cobertos de feridas. A victoria coroou o esforo dos Portuguezes. hias depois na rude povoao (pie havia per to do

    Po d*Assucar, e que ficou sendo chamada Yilla Velha, estavo em duas cabanas diversas dous moribundos prestes a exhalar o derradeiro suspiro.

  • A cabeceira de uni delies velava uma m u l h e r , uma mulher que du ran t e um mez inteiro, s em descansar , sem dormi r , cuidou do marido, e rezou por elle : no lhe valero cuidados nem oraes : ficou viuva, e abor-recida do m u n d o e da vida que at ento vivera, resol-veu-se a ficar na solido do Rio de Jane i ro , ped indo e ob tendo uma sesmaria no valle j u n t o ao m o r r o do Cas-telio, onde se fundra a nova c idade .

    Na outra cabana a luta e n t r e a vida e a mor te mais longa tinha sido ainda : u m pobre mancebo sem me, sem esposa, s em irm que olhasse por elle, esteve sus-penso en t r e a e tern idade e o m u n d o , sem conscincia do que soflria, del i rante ou sem voz, e emim abando-nado pelo propr io pratico, que a lguns remdios lhe applicava. A seu lado licou somen te um padre que rezava de joe lhos diante de uma imagem sagrada .

    Ao amanhecer o dia em que se contava que expirasse o mancebo, abr io elle os olhos e fallou.

    No delirava : linha passado a f e b r e ; estava salvo. Obrigado, meu p a d r e ! disse com voz sumida .

    Agradecei a quem vos salvou : respoudeu o padre , mos t r ando a imagem.

    O mancebo olhou e vio : era uma imagem de Nossa Senhora do O.

    Seguio-se uma convalescena de alguns m e z e s ; no fim delles o mancebo agradeceu ao padre os cuidados que lhe devia, e ped io - lhe pie lhe dsse a imagem de Nosssa Senhora do O.

    o padre hesitava.

  • - O u v i - m o em confisso, meu padre, disse o man-cebo.

    E ento de joelhos nos ps do ministro do Senhor , ab r io - lhe o seu corao, e pa ten teou- lhe todos os seus segredos , todos os seus erros , e um profundo arrepen-d imento .

    O padre absolveu-o, abenoou-o , e fazendo-o levan-ta r - se , pe rgun tou - lhe :

    E que pre tendeis fazer agora , meu filho? Tocando a beira da sepultura, devorado pela febre,

    exaltado pelo delirio, eu escutava incessantemente uma voz terrvel r epe t i r a meus ouvidos as palavras do frade Carmelita : t rocas a me de Deos pela filha do homem: no sers feliz ! um dia lembrar - te -has do Montc-Car-melo. Eu me sentia condemnado e desejava a morte , quando un.a noite no meio de violenta agitao, voltan-do os olhos , eu vos vi, meu padre , ajoelhado a rezar diante daquella imagem sagrada : contemplei-a tambm e m extasi, pareceu-me ver em seus olhos o annncio da minha salvao : tive f, esperei, e fui salvo.

    E ento a g o r a ? . . . . Meu padre, fiz voto de erguer nesta terra inculta

    unia ermida a Nossa Senhora do O, que me arrancou d a s g i r r a s da morte, e de provar o a r rependimento que me acompanha da ingratido com que fugi do tranquillo e sagrado asylo Io Carmo, procurando al-canar na nova cidade que se est fundando, um t e r r eno espaoso que guardarei para os Carmelitas, (pie no de ixa ro de vir estabelecer-se no Brazil.

  • O padre tomou a imagem da Senhora do nos bra-

    os, bei jou-a fervorosamente nos ps, e depois entre-

    gou-a ao mancebo. Passados apenas dous dias o mancebo tinha j esco-

    lhido o sitio onde queria levantar a e r m i d a ; soube porm que o lugar estava comprehendido na sesmaria concedida viuva de um nobre por tuguez que morre ra das feridas que recebera no combate do dia 20 de Janei ro .

    O mancebo no d e s a n i m o u : o seu desejo era santo, e para realiza-lo foi pedir a lgumas braas de terra sesmeira .

    Bateu porta da cabanada triste viuva, e mandro-o en t ra r .

    Estremeceu ouvindo a voz que lhe fallra ; mas en t rou na cabana.

    Uma mulher , formosa sempre , mas pallida, alllicta e abatida mostrou-se a seus olhos : era cila : era a sua antiga amante, que ao v-lo soltou um gri to de espanto.

    O mancebo parecia um velho sexagenar io : sua bar-ba era longa, o assim como os seus cabellos, tinha embranquecido toda.

    Keconhecro-se ambos ; nenhum dos dous porm fatiou de amor, nem sonhou com os gozos d o m u n d o . Uma sepultura e um a r repend imento , dous abysmos onde as lembranas do passado apparecem sempre negras, separavo os amantes de ou t r ora .

    O mancebo de cabellos brancos disse ao que vinha.

  • A viuva pallida e afilicta deu - lhe sem hesitar a li-cena pedida para a construco da ermida nas suas ter ras .

    A d e o s ! dissero ambos a um tempo, e levantaro ambos para o co os olhos.

    Com os lbios dizio-se o ultimo adeos na terra , com os olhos emprazavo-se para se encont rarem no co.

    Km pouco tempo a ermida de Nossa Senhora do O foi erguida a poucas braas do mar e def ron te da praia (pie por a lguns annos conservou o nome de Praia da Senhora do ().

    O mancebo de cabellos brancos fez-se e rmi to ; viveu ainda a lguns a n n o s ; nunca mais porm tornou a ver a bella viuva (pie com tanta paixo idolatrara.

    Aquolleadeosque a um s tempo um e outro se t inho dito, fra comef le i to a sua despedida no m u n -do ; ambos, porm, approximro-se enlaados pela morte , pois que morrero no mesmo dia c mesma ho-ra , e fro en ter rados na mesma ermida de Nossa Senhora do O.

    E assim foi que teve principio a e rmida de Nossa Senhora do O.

    A tradio popular conservada e t ransmit t ida pelo padre velho de que fallei, termina aqui.

    Filha somente e toda cila da imaginao ou pela imaginao exagerada e desna lu rada , esta tradio assenta ao menos sobre dous l a d o s incontestveis.

    #

    A ermida de Nossa Senhora Io o data daquella poca, a mais antiga da cidade do Hio de Janeiro .

  • \ existncia tio c r m i t o , que a fundara , est mar-

    cada cm memrias desse . tempo. Em 1589 chegro ao Bio de Jane i ro os pr imeiros

    monges Benedictinos, e por o r d e m de Salvador Corra de S ( o ve lho ) fro accolhidos na ermida de Nossa Senhora do ; ms logo no anuo segu in te transferi-ro a sua residencia para o monte , onde levantaro depois o seu mosteiro, e pie icou sendo chamado o morro de S. Bento.

    Bom foi que to depressa tivessem mudado de resi-denc ia ; porque no mesmo anno de 1590 en t r a ro a barra do Bio de Janeiro a lguns Carmelitas, c desem-barcando na praia da Senhora do fro acolher-se ermida que os Benedictinos acabavo de deixar .

    Pelo que se v, na cidade do Bio de Jane i ro e em ou-tras , os frades tm muita predileco pelos st ios eleva-dos ou pelas montanhas : dir-se-hia que mui to a b o r r e -cidos das cousas da terra , p rocuro assim col locar-se mais afastados dos homens , c e n t r e o m u n d o e o co . Se esta explicao no serve, no posso acer tar com outra melhor .

    Os Carmelitas, porm, fizero uma excepo quel-la regra c prefer i ro o valle s a l turas .

    O e r m i t o que para elles t inha pedido e alcanado o monte, a que por isso chamra do Carmo, perdeu o seu tempo e os seus cuidados .

    Os Carmelitas achro to boni ta e to commoda a situao da ermida de Nossa Senhora do ('), (pie por cila desprezaro o monte do Carmo, e para logo tia-

  • tro ile construir alli mesmo uma casa mais espa-osa.

    Canhro com essa resoluo principalmente os fra-des menores da o rdem de S. Francisco, que em '007 tomaro para si o monte , que mudando de donos, mudou tambm de nome, e comeou a chamar - se morro de Santo Antomo.

    .Mas a ermida de Nossa Senhora do , apezar das obras com que fra augmentada , estava ainda longe de oiierecer as propores de um convento : em regra geral os frades gosto muito do seu commodo, e s Carmelitas pa recem-se nesse ponto com todos os out ros das diversas o rdens .

    Assim pois de terminaro os frades do Carmo cons-t ru i r um edifcio digno delles, e cm pouco tempo e com insignificante dispendio vio-se olhando para o mar uma espaosa casa com dous andares de dormi-torios, tendo cada um daquelles treze janellas ras-gadas.

    Os bons frades tivero, ou de graa ou por modico preo, quanto lhes era preciso para to grande obra ; a madeira sobrava, a pedra na la custou, porque os car-melitas a mandaro tirar da ilha das linchadas, cuja pedreira Ilies fra doada ; a mo de obra era para algi:*!S sobejamente paga com uma beno daquelles religiosos, e para os ou t ros um servio que por um fraco est ipendio se prestava enlo : e alm de todas estas facilidades vinha ainda o recurso das esmolas e

    dos donativos dos i i t is , que no importava menos . H

  • A obra coucluio-sej; mas, ou porque na execuo delia se abalassem as paredes da ermida cont gua, ou porque construda esta em te r reno pouco solido no podesse ter longa durao, cer to que no muito depois sobreveio uma horrvel ca tas t rophe, que teve conseqncias funes tas .

    Um dia celebravo os carmeli tas uma solemnidade religiosa, a e rmida estava cheia de devotos, e eis que de repente estala o teclo que as paredes abandono, e estas e aquciie cahem, abatem, e esmago u m crescido numero de indivduos.

    Este fatal acontecimento explicava-se fcil e satis-fatoriamente por alguma das duas hypotheses que ha pouco estabeleci; o povo porm que pota, embora no escreva linhas medidas , prefere quasi s empre o sobrenatural ao real, e em matria de explicaes costuma pedi-las antes imaginao do que razo.

    Um do povo inventou ou sonhou, a lguns aperfei-oaro o invento ou o sonho, e mui tos acredi taro e fro t r a n s m i t i n d o do pais a filhos e de liios a netos uma segunda tradio a respeito da ermida de .Vossa Senhora do .

    Eis-aqui pouco mais ou menos o que diz a tradio popular .

    O ermito (pie levantara aquella igrej inha, e a triste viuva que doara o te r reno descansavo desde seis annos em suas sepul turas no seio de l i a ; mas suas almas penando ainda no mundo , ve lavoa horas moi -tas da noite porta da ermida .

  • 5 9

    O ermito c a viuva, como se ajustados estivessem para deixar iguaes disposies, t inho recommendado em seus testamentos, que duran te sete annos no an-niversario de sua morte se acendesse uma vela em suas sepulturas , e se dissessem tres missas por suas almas.

    Seis annos havido j passado. Os carmelitas fazio const rui r com ardor c esmero o

    seu convento. que eslava a ponto de terminar-se, e no entanto pretendio alguns homens das vizinhanas

  • G O

    s missas, porm, que devio ser no menos de

    seis, tiverao de ser ditas em um altar que havia no

    consistorio da pequena igre ja . A festa comeara; as missas cont inuavo e as velas

    ardio. ISmfim a sexla, a der rade i ra missa chegou ao seu

    t e rmo, e quando no altar do consistorio o celebrante pronunciou a ultima palavra, na nave da capella apa-garo-se de subdi to e por si mesmas as velas das se-pulturas, e imediatamente a ermida abateu e desabaro todas as suas pardes.

    Aqui termina a tradio, que julguei no dever des-prezar , embora seja eu o pr imeiro a negar- lhe credi to .

    Livre da tradio popular que per tu rba um pouco ou mesmo muito verdade da historia, prosigo desaf-frontado na fiel narrao dos factos.

    Sobre as m i n a s da e rmida de Nossa Senhora do O construiro os Carmelitas um templo que se mos t rou em harmonia com as propores do seu conven to ; essa igreja porm foi ainda reediicada, comeando as obras da reedificao no anno de 1764, no tempo , do illuslre conde de Bobade-la.

    O nosso afamado mestre Valentim, o art is ta , que era grande naquella poca, e que grande seria tambm na actualidade, concorreu com o seu innnenso talento para a renovao e embel lezamento da igreja dos (Car-melitas.

    0

    K justo no esquecer que nenhuma destas m u d a n -as o construces fez por de lado a antiga devoo

  • ) i -

    lo Nossa Senhora do O. que a!is con!!u:->ii sempre a ser p rofundamente venerada na igreja que substitura a sua o n u ida..

    Nada mais mo nccorre agora para dizer acerca da historia antiga do convento do Carmo, (pie desde 1808 faz parte do palacio imperial.

    Farei porm um protesto antes de concluir. Talvez algum haja que me lance em rosto o haver

    mis turado com a narrao do factos authenticados nas nossas memrias histricas duas tradies populares, que alis se reduzem a uma nica, e que evidentemente pecco por inverosimeis, e por falta de fundamento.

    Mas tradies como essas abundo nos archivos cia imaginao e da credulidade de todos os povos e en-cont ro-se em todas as naes.

    Que mal faz pe rpe tua - l a s ! . . . so as poesias do povo. os velhos amo-as. os meninos as aprendem de cr , os poetas as escuto cubiosos, a terra da patria se enfeita com ellas.

    Terei ainda de refer i r mais algumas, e destas a maior parte colherei muito conscienciosamente nas pa-ginas dos nnaesinais srios e r idos que possumos.

    Quem no gostar de um passeio assim dado, no passeie comigo.

    K no zombem do povo, n o : no se rio da inno-cente credulidade do povo.

    Sia credulidades de sbios doulores que no ic.n

  • tentar-m< -liei p o r m c o m um sq?ic vem a propos i to , pois (pie se refere igreja dos Carmelitas.

    P e r g u n t o : havia doutores e homens notavelmente illustrados na ordem carmelita na ?

    Respondo : havia incontestavelmente. Pois agora escutem. Segundo informa nos seus Annaes do Rio de Janeiro

    Baithazar da Silva Lisboa, depois de concluda a igreja dos Carmelitas, foi enriquecido o seu a l t a r - m r com algumas relquias que constaro, alm do Santo Le-n h o , de Ires cabellos de Nossa Senhora e da louca de

    Saiu a A una.

    A religio catholica, nica verdadeira e santa, a re-ligio purssima de Jesus Christo, devia por ventura receber a imposio de semelhantes p u e r i l i d a d e s ? . . . o nome sagrado da Virgem Immaculada, desse divino syinbolo do mais anglico amor , devia ser assim pro-fanado? . . .

    Donde',' nascero tacs profanaes seno da creduli-dade?

    E se no foi a credulidade que as de te rminou, ai meu Deos! a consequencia seria mil vezes peior.

    Basta.

    A minha excurso pelos domnios do passado che-gou ao seu te rmo.

    Voltarei em breve a cont inuar o es tudo do palacio imperial, cons iderando-o em uma poca mui to mais recente.

  • 0 3

    V.

    0 P A L A C I O I M P E R I A L .

    Na manha do dia de Abril de I 8 f . quamlo o prncipe regente do Brazil acabava de receber as ul t imas despedidas de seu augusto pai, e a no /). Joo VI abr indo suas brancas azas, comeava a cortar as guas do plcido Janei ro para l eva r Lisboa a familia real. dous velhos criados do rei conversavo, olhando para a cidade que tambm deixavo.

    Pobre c idade ! dizia um d e l l e s j c o m o vai ficar agora, achando-se privada do rei e da c r l e !

    E o palacio! acrescentava o ou t ro : que salas de-ser tas! que tristezas e que saudades!

    E o fu turo ainda peior lia de ser para elle, porque por ora ainda lhe resta o prncipe f). Pedro com um a r remedo da c r t e d o r e i ; mas em breve tambm o prncipe tornar mi patr ia, que no p k l e querer que o herdei ro do th rono ande aqui exaltando as cabeas dos Brazileiros; c em tal caso a que ficar reduzido o tal p a l a c i o ? . . .

    A casa dos vice-reis como dantes , to rnou o outro . O que j no pouco, observou o pr imeiro criado

    pie fallra. N o pensa o rei assim, disse sor r indo um terceiro

    criado (pie se aproximara . Os dous vol tro-se e tomaro dianle daquelle que

    viera in t romet te r - se em sua conversao, uma al t i tude

  • respeitosa, pois| le i inho reconhecido u n i d o s orte-

    zos mais queridos, c de maior privana do Sr .

    i). Joo VI. C o m o pensa ento Sua M a g e s t a d e ? . . . pe rguntou

    um dos dous criados j de an temo resolvido a applaudir o juizo do soberano.

    Ainda pouco o rei abraando t e r n a m e n t e o prn-cipe, despedio-se delle d izendo- lhe a lgumas palavras em (pie lhe deixou uma |>ropiiecia e um conse lho ; e nem uma nem ou t ro podem alentar muito as esperanas dos portuguezes.

    Mas o rei o melhor dos Por tuguezes . E nem por isso o seu patr iot ismo o torna cego

    ao futuro, em cujo livro sabe ler como um p r o f u n d o poltico.

    Os dous cortezos curvro-se e m signal de appro vao.

    O outro cont inuou. O rei disse ao prncipe estas palavras, que eu

    recolhi e deco re i : Pedro , o Brazil b revemente se separar de Por tuga l : se assim fr, pe a coroa sobre a tua cabea, antes que algum aventure i ro lance mo delia.

    Os coraes dos dous velhos criados do rei revolt-r o - se contra o conselho, e ainda mais contra a pro-phecia; mas seus lbios de cortezos tivero sempre um sorriso para acolher as palavras do soberano . O contagio do liberalismo por tuguez ainda no tinha podido romper o cordo sanilario da corte .

  • Emlim era preciso dizer alguma cousa que servisse para melhor esconder o descontentamento intimo.

    E . . . . visto i s s o . . . o p a l a c i o . . . . O palacio continuar a ser palacio real, e no

    ser impossvel que se torne imperial. A conversar IO parou a h i ; estava tomando um ca-

    racter to triste para aquelles lieis cortezos e leaes portuguezes, que em verdade no podia continuar .

    Em 1822 , um anuo e cinco mezes depois , a prophecia do rei achava-se realizada, c o seu conselho nobremente seguido.

    O Brazil era um Imprio independente e livre. A nova organisao poltica do paiz deu immediata-

    mente lugar a uma modificao no palacio que passara a ser imper ia l ; porque havendo necessidade de se preparar um ediicio em que celebrasse as suas sesses a consti tuinte brazileira, escolheu-se para esse fim a antiga casa da camara municipal e cadea, e consequen-temente des t ru io-se o passadio que desde 1808 a Iigra ao palacio.

    Cousas deste m u n d o ! . . . uns tr inta annos antes dessa poca bri lhante e gloriosa tinho estado presos na cada, que era naquelle mesmo ediicio, alguns dos compro met-tidos na famosa conjurao do ' l ira-Dentes, os criminosos de lesa Magestade que havio t ramado em Minas-Geraes o pr imeiro movimento revolucionrio, que devia realizar a independencia pelo menos ile uma parte do Brazil; e passados trinta annos , em 1822, duas das victimas, dous dos condemnados, o padre Manoel Rodrigues da

    i

  • (>r>

    Costa c Jos de Rezende Costa Filho vinho en t ra r nesse mesmo edifcio para tomar par te nos trabalhos da assembla const i tuinte do Brazil independente , como deputados pela provncia de Minas-Geraes!

    A cada velha t r a n s f o