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26-03-2018

Bacalhau

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Seguimos o bacalhau dos mares da Islândia

até à travessa, passando pela história de Portugal. Um percurso com azeite

e batatas a murro

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Zoom // Bacalhau

Islândia. O combate pela sustentabilidade do "fiel amigo" pescado nos mares

Os portugueses consomem 20%

do bacalhau mundial. Na Islândia pesca-se

o melhor bacalhau do mundo. Aqui,

as capturas são certificadas pela MSC,

uma organização que pretende conseguir pescas sustentadas e salvar o bacalhau

e outras espécies de peixe da extinção

NUNO RAMOS DE ALMEIDA (Na Islândia) [email protected]

Passam poucos minutos das sete da manhã Na Islândia. ainda o negro do céu domi-na. A poucas dezenas de quilómetros da capital, muito perto do aeroporto que ser-ve Reiquiavique, entramos num baca-lhoeiro com menos de 20 metros e uma tripulação de uma dezena de homens. O Erling é capitaneado por Halldóv Gudjon Halldorsson. O homem é capitão há dez anos. O objetivo da jornada de trabalho é recolher oito redes e espera-se pescar cerca de 20 toneladas de bacalhau. Para nossa sorte, o mar está calmo e a tempe-ratura ultrapassa ligeiramente os zero graus. As redes que vamos recolher estão a cerca de oito milhas do porto.

Dentro do barco, nesta viagem orga-nizada pelo Lidl, para além dos jorna-listas vão, entre outros, Gisli Gislason, diretor do Programa do Marine Stewardship Council (MSC) Islândia. organização que certifica a sustentabi-lidade de 14% da pesca mundial; Pedro Monteiro, diretor-geral de compras da Lidl Portugal; e Ricardo Alves, adminis-trador da Riberalves, uma das duas maiores empresas portuguesas que pes-cam, importam, tratam e comerciali-zam o bacalhau.

Toda a pesca neste navio é sustentá-vel, o que implica não só o cumprimen-to rigoroso das quotas de pesca, para impedir a repetição do colapso dos ban-cos de pesca por sobrepeses, como se deu em 1992, como garantir um deter-minado tamanho da malha das redes, fazendo com que apenas sejam apanha-dos os peixes maiores.

Os melhores meses de pesca para o baca-lhau são janeiro, fevereiro e março. Aqui na Islândia, há mais calma para pescar do que na Terra Nova, porque o peixe demora mais tempo a desovar à volta da ilha. Apesar disso, há condicionalismos naturais e humanos: o capitão da embar-cação diz que na semana anterior só saí-ram dois dias ao mar devido ao mau tem-po e que em 2017 tiveram dificuldades em cumprir a quota de pesca do navio. dado que os pescadores da Islândia esti-veram em greve para conseguir aumen-tos salariais e melhores condições de tra-balho, depois das baixas salariais a que os islandeses foram sujeitos quando da falência generalizada dos bancos no país.

Os 320 mil islandeses são um povo com tradições na pevin Atualmente serão, segun-do nos dizem no barco, mais de 10 mil os islandeses que estão ligados à pesca.

Chegamos à primeira rede. Lentamen-te, começa a ser içada. Não é uma rede

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de arrasto, o peixe não vem todo de uma vez. Vai chegando como se fosse organi-zado numa fila de um ou dois peixes. Na

rede, no meio do bacalhau, só aparecem

algumas raias maiorzinhas. À medida que vai entrando no barco, o peixe é ime-

diatamente tratado. No navio há uma espécie de fabriqueta com uma linha de montagem em que os pescadores vão

tirando as tripas e miudezas aos peixes. Sinal dessa operação é o enorme ajun-

tamento de gaivotas junto à embarcação que disputam, sob a ondulação, o despe-jar das miudezas do bacalhau no mar.

À medida que o peixe vai entrando na linha de montagem, o capitão da embar-cação, que tem acesso a imagens do pei-xe. vai contando. Neste momento, a con-tagem está em 146 peixes, mas esta nova rede chegará quase aos 600. "Faço isto

porque tenho a responsabilidade de lan-çar as redes, preciso de saber quais os sítios que tem mais peixe". diz-nos.

O peixe, como é pescado com redes e métodos certos, e imediatamente tra-tado, sai do barco sem hematomas e em excelente condição, faz-nos notar o admi-

nistrador da Riberalves. É um trabalho duro, mas não compa-

rável ao que faziam no passado os pes-

01 A primeira rede de oito para a pesca do bacalhau é içada para

o barco. O Erling espera pescar cerca de 20 toneladas neste dia

02 Amontoam-se as gaivotas junto à embarcação, disputando as vísceras dos bacalhaus que são tratados no barco

03 O capitão do navio explica onde estão as redes no radar,

se se veem cardumes de bacalhau e as dificuldades com que podemos deparar-nos I-1,1 0S FR

continua na página seguinte »

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Zoom // Bacalhau

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» continuaçáo da página anterior

cadores da chamada frota branca da campanha do bacalhau portuguesa. Na altura, como se relata no livro recente-mente editado "A Campanha do Argus", os portugueses pescavam o bacalhau à linha. Dos grandes pesqueiros saiam dezenas de pequenos dóris, com um pescador cada um, que iam tentando a sua sorte nos mares gelados. Não raro, essas pequenas e frágeis embarcações eram presa das mudanças do mar. Uma forma de vida muito dura.

No início da tarde, regressamos ao porto. O bacalhau, colocado em caixas, é levado para uma pequena fábrica em Saltver. Quando chegamos ao posto de comando desta pequena unidade indus-trial, um dos sítio onde é tratado o baca-lhau da Riberalves que é comprado pelo Lidl, deparamo-nos com um cenário descontraído e uma dissidência des-portiva. O jovem encarregado tem de um lado da sala uma bateria, guitarras elétricas e amplificadores, que com-põem uma verdadeira sala de ensaios de uma banda de rock. Do outro lado, a ocupar a parede inteira está a ban-deira do Manchester United, colocada lá pelo patrão. O jovem encarregado confessa-se do Arsenal e ironiza: "Estou sempre a dizer ao meu patrão que se fosse para ser do Manchester, era do City, que ao menos ganha."

Chegamos durante a pausa para café. Quinze minutos depois, regressam os trabalhadores. Aqui, tudo se aproveita: as cabeças de bacalhau vão para Portu-gal, o grande mercado para essa igua-ria, assim como as línguas e as boche-chas; a espinha vai para a Nigéria, onde é considerada um petisco.

Esta relação entre Portugal e Islândia, mediada pelo bacalhau, é quase simbó-

lica. Os dois países têm grande parte da sua identidade cultural ligada a este peixe. Na velha e mais célebre igreja da capital islandesa, o brasão é um baca-lhau. Entre o final dos anos 50 e o iní-cio dos anos 70 deram-se as chamadas guerras do bacalhau, em que os islan-deses guerrearam literalmente com os ingleses pelo seu direito a terem sobe-rania sobre as suas águas. Apesar do desequilíbrio entre um país que não

Portugueses consumiram 33 596 toneladas

de bacalhau até outubro de 201-7, menos

3,6 que em 2016

O Lidl tem 23 referências

de pescado certificadas pela pesca sustentável, fiscalizada pela MSC

tem exército e uma das maiores potên-cias marítimas do mundo, os irlande-ses levaram as suas reivindicações avan-te. Conta-se que na segunda guerra do bacalhau, que começou a 1 de setem-bro de 1972 e acabou com um acordo a 8 de novembro de 1973, o primeiro--ministro do Reino Unido, para perce-ber os seus oponentes, pediu para lhe comprarem um livro do escritor mais célebre da Islândia. Trouxeram-lhe o "Independent People", do vencedor do Nobel da Literatura de 1955, Halldór Laxness. Lendo o livro, o líder do gover-no do Reino Unido claudicou: "Os islan-deses são um povo demasiado orgulho-so e teimoso para cederem." E o acor-do foi assinado.

Com efeito, os primeiros habitantes da ilha foram vikings fugidos da Nome-ga a quem não agradavam os impostos nem a submissão aos reis locais. Deve--se a eles um dos primeiros "parlamen-tos" do mundo. As tribos reuniam-se para discutir questões importantes num local a meio caminho em que, por coin-cidência, se juntam e neste momento se separam as placas tectónicas da Ásia e da Europa com a Americana.

Tal como a Islândia, Portugal está muito ligado ao bacalhau. Os portugue-ses são os maiores consumidores des-te peixe: consumiram 33 596 toneladas de bacalhau até outubro de 2017, menos 3,4% do que em 2016, segundo o Con-selho Norueguês das Pescas (Norges). O país é responsável pelo consumo de cerca de 20% do bacalhau pescado anual-mente. Em 1968, a sobrepeses atingiu cerca de um milhão e oitocentas mil toneladas, pondo em causa a continui-dade da espécie. A certificação é fun-damental para garantir uma pesca racio-nal que permita a reposição do pesca-do e a qualidade do que é capturado.

Vista de localidade costeira junto ao aeroporto da capital islandesa. A Ilha está repleta de fiordes de onde saem as embarcações de pesca DR

O Lidl é a primeira grande empresa mundial que aderiu à certificação MSC, em 2006. Essa certificação é feita ten-do em conta 30 indicadores. A cadeia de supermercados tem 23 referências com o selo MSC da pesca sustentável, das quais 11 referências são de baca-lhau. "Para nós, o tema da sustentabi-lidade. que está associado ao tema da gestão de recursos, é essencial, e na área do pescado ainda mais. Sabendo que os oceanos atualmente produzem cerca de 200 milhões de toneladas de pescado, a maior fonte de proteínas que temos no mundo, cada vez mais temos de pensar que é preciso ter pes-ca sustentada para garantir que o pei-xe vai chegar aos nossos netos", expli-ca Pedro Monteiro, diretor-geral de compras da Lidl Portugal. A opinião é partilhada por Ricardo Alves, adminis-trador da Riberalves, que sublinha que a sustentabilidade é também uma garan-tia de qualidade para o consumidor. "O melhor bacalhau é este [o da Islândia]: é pescado, passado duas horas está a ser tratado, como vimos, é salgado. Não é fácil conseguir um bacalhau melhor. É o peixe mais caro do mercado, salga-do verde, maturado e com cura tradi-cional portuguesa de oito meses. E isso é muito utilizado para a marca Deluxe do Lidl e a da Riberalves." O responsá-vel da empresa responsável por cerca de 12% do bacalhau mundial acha que este combate pela sustentabilidade do bacalhau garante que os portugueses terão o chamado fiel amigo no futuro.

Como dizia Eça de Queiroz sobre ele próprio, numa carta ao historiador Oliveira Martins, ele escrevia roman-ces franceses e até seria um afrance-sado, não fosse um gosto especial por bacalhau de cebolada e mais umas minudências.

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Virgílio Oliveira o chef e dono do Zé da Mouraria MIGUla. SILVA

Uma sala cheia, todos os dias,

de estrangeiros e nacionais

Zé da Mouraria. Uma lenda do bacalhau na travessa

Um pequeno restaurante de Lisboa que compra todos os anos muitos milhares de quilos de bacalhau. Uma aventura que começa na Islândia e acaba aqui no prato

NUNO RAMOS DE ALMEIDA num. ulmeida(dionline.pt

Chegam por volta das sete da manhã para preparar os almoços. São seis e afadigam--se organizadamente a trabalhar. Já não são precisas palavras: todos, as duas mulhe-res e os quatro homens, sabem o que têm de fazer. Muita coisa começou a ser traba-lhada de véspera, mas muito mais 'é feito de manhã. O grão é posto a cozer a esta hora; só assim estará pronto para acom-panhar o bacalhau com batatas a murro assim que chegarem os primeiros clien-tes, por volta das 12 horas. No Zé da Mou-raria, a casa está sempre cheia para comer petiscos como o bacalhau e as imas Virgí-lio Oliveira é o dono. Trabalha na hotela-ria e restauração desde criança "Para mim não foi uma escolha os meus pais morre-ram quando tinha nove anos e a hotelaria. antigamente, não só dava trabalho como alojamento", relembra. Até aos 39 anos andou a aprender, até que decidiu abrir o Zé da Mouraria, numa antiga carvoaria. Por isso há gente que o vê e lhe chama, naturalmente. "sr. Zé", apesar de se cha-mar Virgfiia Este minhoto criado no Casal

Ventoso fez carreira como chefe no Algar-ve, onde abriu diversos restaurantes de hotel. Também cozinhou em Angola, antes de voltar a Lisboa e comprar o antigo Zé dos Grelhados. O Zé do nome ficou no novo restaurante para assinalar o galego que abriu a carvoaria original no mesmo local, há mais de cem anos.

O negócio e a afluência foram crescen-do de tal forma que teve de arranjar uma sala num prédio ao lado. "Esta ligação que vê era ilegal, tive de falar com um clien-te meu, o Pedro Santana Lopes, que na altura era primeiro-ministro, para a fazer. Foi ele que me disse que podia avançar com a obra", garante Virgílio. Inicialmen-te, a clientela era sobretudo portuguesa; hoje, os turistas fazem mais de meia sala todos os dias. "É um bocado boca a boca, saem notícias sobre nós na Croácia. foi feito um documentário no Japão e as pes-soas vêm vindo, gostando e recomendan-do", explica o dono. De tal maneira cres-ceu a popularidade que agora tem dois restaurantes com o mesmo nome, um que só serve almoços e outro que só ser-ve jantares. A sala tem azulejos e a decla-ração está completa com dezenas de foto-

grafias dos clientes mais conhecidos e típi-cos. Virgílio vai-nos apontando a sua plu-ralidade: tanto tem Santana Lopes como António Costa, entremeado "pelo filho de Mário Soares", como nos descreve.

Podemos usar como medida do sucesso a quantidade de bacalhau que compra: "Vê estas postas? São cortálas especial-mente para nós". mostra-nos com orgu-lho. "Compro todo o bacalhau à Riberal-ves, eles têm na fábrica uma piscina só para nós. São cerca de duas toneladas por mês", diz.

Chegam os primeiros clientes, entre os quais um turista sem marcação, a quem dizem inicialmente que está tudo reser-vado mas. a meio da conversa. o sr. Luís, responsável pelas marcações, lá conse-gue arranjar-lhe um lugar. Explicam-lhe

Há reportagens na Croácia, documentários

no Japão sobre a antiga carvoaria.

Um sucesso mundial

que deve pedir uma meia dose, que aqui as doses são muito grandes. Na outra pon-ta da sala instala-se um grupo de polícias da PSP que tinham marcado previamen-te. As grande postas de bacalhau são assa-das, partidas. retiradas as espinhas e ser-vidas com grão, grelos e couve galega, batata a murro e azeite. Uma dose custa 17,50 euros e dá. se comer bastante, para dois. O sucesso dos pratos confecionados no Zé da Mouraria está muito na arte de escolher bons produtos, de modo a que o peixe saiba a peixe, e a carne a carne. Nada é deixado ao acaso, desde o pão alenteja-no aos queijos encomendados. "Temos aqui o nosso vinho verde. que é feito espe-cificamente para nós, com o rótulo 'O Elé-trico-. diz Virgílio com orgulho, num duro trabalho "em que a maioria dos dias come-çamos às sete horas e podemos sair daqui quase às 22". Sobre a importáncia da pes-ca sustentada do bacalhau não fala mui-to, apenas diz que escolheu o fornecedor por ser de confiança. "Nunca nos faltou e garante que o produto é de qualidade", afiança, apontando para as grandes pos-tas de bacalhau demolhado, provavelmen-te pescadas na Islândia.

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Álvaro Ganido. "O bacalhau foi objeto de uma

nacionalização cultural"

De onde vem a ideia de "fiel amigo"? Como é que um peixe pescado pelos vikings se

tornou o alimento preferido dos portugueses?

NUNO RAMOS DE ALMEIDA nono. almeicia(djonli ne pt

Álvaro Garrido é professor na Faculda-de de Economia da Universidade de Coim-bra e profundo conhecedor da história marítima portuguesa e da pesca. É autor, entre outras obras, da biografia de um dos cultores salazaristas da campanha do bacalhau, o almirante Henrique Ten-reiro. A conversa surgiu a partir da lei-tura do prefácio que Garrido fez da ree-dição de "A Campanha do Argus", de Alan Villiers, tentando perceber aquilo que liga os portugueses a um peixe que é pes-cado a milhares de quilómetros da terra onde vivem, mas que se tornou uma com-panhia habitual no seu prato, sendo par-te da sua identidade.

Quais são as circunstâncias históricas que levam os portugueses a encontrar—se com um peixe tão distante como é geograficamente o bacalhau? Tanto quando se sabe, já havia negócio de importação de bacalhau desde a Idade Média, sobretudo a partir do séc mit impli-cando permutas de sal com os países nór-dicos, nomeadamente com a Noruega. Também havia abastecimento do merca-do português através de negócio com os ingleses. Por conseguinte, o negócio de importação seria anterior à época moder-na e às nossas primeiras viagens de des-cobrimento à Terra Nova, que foram rea-lizadas pelos navegadores João Álvaro Fagundes e os Corte Reais, já na viragem do séc. xv para o xvi. A partir daí, sim, há expedições de pesca e de caça da baleia: os navios eram polivalentes, tanto caça-vam como pescavam. Em 1506 já há um imposto sobre o bacalhau que entrava nos

portos entre o Douro e o Minho, presu-me-se que não apenas sobre o que era importado, mas também sobre o que era pescado pelos navios e tripulações portu-gueses. O bacalhau já era objeto de um grande consumo no início do séc. Não era inicialmente um consumo mais vocacionado para as classes mais pobres? Há representações até na arte. No Gil Vicente, nas "Cortes de Júpiter", há uma representação do bacalhau, e depois apa-rece, no início do séc. xvu, uma repre-sentação pictórica extraordinária da Jose-fa de Óbidos de um bacalhau seco da Noruega, igual ao que é ainda muito con-sumido atualmente na Sicília e no sul da Itália, que era um alimento para pobres, de baixa qualidade mas muito fácil de conservar, que não era igual ao salgado seco. Sabe-se que se consumia das duas maneiras: salgado seco, para as popula-ções mais abastadas; e seco seco, para as populações mais pobres que conse-guiam chegar a ele, sobretudo através das instituições religiosas. No séc. xvii. o consumo é generalizado, sobretudo atra-vés do negócios dos brokers ingleses em Lisboa e no Porto. É generalizado o con-sumo do "bacalhau inglês", uma expres-são popular que perdura até ao séc. xx, de um bacalhau que não era. de facto, inglês. Havia uma importação massiva de bacalhau salgado seco; já a pesca por navios portugueses foi muito intermi-tente e no final do séc. wi terá sido inter-rompida por completo. Por ordem dos Filipes de Espanha. Exatamente. Portugal só retorna a ativi-dade de armar navios para a Terra Nova no séc. ,ax, em 1835, pela Companhia de Pescarias Lisbonense.

Não é, portanto, de admirar que numa conhecida passagem ao seu amigo Oliveira Martins, Eça de Queiroz tenha afirmado: "Os meus romances no fundo são franceses, como eu sou em quase tudo francês - exceto num certo fundo sincero de tristeza lírica, que é uma característica portuguesa, num gosto depravado pelo fadinho, e no justo amor do bacalhau de cebolada" Essa boutade do Eça é muito conhecida O mito cultural do "fiel amigo" e toda essa caricaturização é quase toda do séc. iax, porque é uma era de massas em que a imprensa satírica é muito forte e há toda urna glosa satírica e caricatural que asso-cia a fome do povo, as dificuldades de abas-tecimento e a escassez dos géneros ali-mentícios à falta do bacalhau. Tudo isso é do séc. iax A fábula do bacalhau a pata-co veiculada pela propaganda republica-na é do séc. xx, mas também se verificam formas equivalentes nos anos 80 e 90 do

"O bacalhau já era objeto de grande

consumo no séc. )(VI e começou a ser

consumido no séc. XIII"

séc. xix. A expressão "fiel amigo" aparece em 1820. isso depois tem uma continuação durante o salazarismo na ideia de que a cada português deve corresponder o seu bacalhau e da organização das campanhas do bacalhau. O Estado Novo pega no mito do bacalhau e na inea[widade da República para resol-ver a questão dos abastecimentos, que foi uma questão muito candente sobretudo durante a i Guerra Mundial, para reela-borar urna solução autoritária e corpora-tiva da questão do bacalhau, substituindo as importações por produção nacional, através de um programa nacionalista gigan-tesco a que eu chamei, nos meus estudos, a campanha do bacalhau, por analogia com a campanha do trigo. É muito inte-ressante esse programa. Ele é arquiteta-do pelo Pedro Teotónio Pereira nos anos 30 - por Salazar, do ponto de vista das ideias económicas, até um pouco antes. E depois é regulado o negócio importador, controlado o abastecimento através da Comissão Reguladora do Bacalhau, que é criada em 1934, e do Grémio dos Pesca-dores, que é dominado pelo almirante Ten-reiro, tal como são dominadas todas as mútuas e cooperativas, e é criado um impé-rio administrativo e burocrático de orga-nizações corporativistas e organismos eco-nómicos para regular um setor que histo-ricamente era deficitário, no qual dependíamos do exterior. O certo é que a

of Bacalhau

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01 Fábrica de bacalhau onde é produzido o Bacalhau Três Velas do Lidl, segundo os métodos tradicionais portugueses

02 Álvaro Ganido, professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra FOTOS DR

campanha do bacalhau do Estado Novo dá resultados económicos porque Portu-gal, em 1934, produzia 11% do bacalhau que consumia; e nos anos 60 produzíamos 70%. Há uma efetiva substituição de impor-tações, numa altura que não havia proble-mas de acesso aos recursos, havia abun-dância, não havia restrições no direito do mar e o Estado subsidiava os fatores de produção, nomeadamente os navios e os seguros. Isso correspondia, tal como a campanha do trigo e do congelamento das rendas, a uma política de manter barata a

alimentação e a habitação, para assim manter baixos os salários? Exatamente. O objetivo, do ponto de vis-ta económico, era tornar barata a subsis-tência através de uma proteína de largo consumo que fosse um fator de bloqueio dos salários e de financiamento da paz social, que é uma questão muito impor-tante para a lógica autoritária do Estado Novo. É curiosa a gestão política da tabe-la de preços, eu estudei tudo isso: depois da a Guerra Mundial, quando é instituído o fundo de abastecimentos, que era o meca-nismo que financiava os preços, de 1948

até 1964, não se mexe nos preços, que o Salaiar não deixava, ou seja, a tabela é con-gelada para que a paz social do pós-guer-ra fosse garantida. Só com a liberalização do comércio é que a tabela cai, em 1967. Nos anos 60 produzíamos 70% do que consumíamos e é em 1962 que se dá o pico das capturas de bacalhau, um milhão e 800 mil toneladas. Exatamente. Portugal, em 1958, torna--se o primeiro produtor de bacalhau sal-gado seco. Há toda uma propaganda do êxito da campanha do bacalhau, dessa afir-mação do mercado internacional, do qual Portugal era historicamente muito depen-dente. No início dos anos 60 há continua-ção dessa afirmação, mas a partir daí come-çam os problemas de ordem externa, como a mudança do direito do mar, e a dificul-dade interna para arranjar tripulações para os navios de pesca à linha, que era uma técnica de pesca arcaica e muito vio-lenta do ponto de vista do trabalho a bor-do. E é muito interessante que este setor caia abraçado ao Estado Novo: os últimos três grandes navios de pesca à linha, que eram o símbolo épico da frota branca, vão pela última vez ao mar para pescar o baca-lhau em 1974. Há uma coincidência abso-luta. Penso que a campanha do bacalhau, mais até que a do trigo, é o projeto mais emblemático e com maior sucesso do regi-me na sua lógica, porque ela perdura até ao fim. A campanha do trigo são sete ou oito anos.

Os portugueses continuam a consumir cerca de 20% da produção mundial de bacalhau. De alguma forma, a nossa identidade tem muito a ver com o bacalhau. Acho que temos muito. Se fizermos um estudo ídentitário, o bacalhau será pro-vavelmente o produto mais identificati-vo dos portugueses e da forma como até nos veem de fora. Isso é muito interes-sante: é quase caricatural que um peixe que não habita nas nossas águas tenha sido objeto de um processo de naciona-lização cultural e de apropriação e é pro-fundamente identificativo da cultura por-tuguesa, sobretudo uma cultura alimen-tar, que tem este fenómeno bizarro de um consumo elevadíssimo de peixe por causa do consumo do bacalhau - são cer-ca de 30 quilos per capita ao ano. É um consumo muito elevado do bacalhau sal-gado seco, um consumo que foi até rea-nimado por causa do aumento do turis-mo, precisamente por causa dessa asso-ciação simbólica, e é um fenómeno muito singular, à escala internacional, de apro-priação e persistência no tempo. Quan-do houve programas de substituição de importações de bacalhau por peixe con-gelado, eles nunca foram eficazes porque resultaram sempre numa sobreposição de consumos, e não numa substituição. Basta lembrar daquela campanha de tele-visão dos anos 70 da "menina pescadi-nha", que foi uma campanha fantástica cujo o rosto era o Artur Agostinho e que tinha como objetivo, no contexto da libe-ralização do bacalhau em que os preços subiam, substituir consumos por pesca-da Isso não resultou. É muito interessan-te que a resiliência do fator cultural seja aqui muito forte, neste caso.

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As aventuras de um peixe viking que se transformou

,t, • em galo de Barcelos Fr

Reportagem na Islándia e viagem ao mundo do "fiel amigo" de Portugal PAGS. 1C-21

~Polícias preocupados com guerra

aberta entre gangues A história

da rivalidade entre os gangues

internacionais que já fez mais

de 170 mortos nos EUA, Canadá

e Europa

Grupos rivais procuram "conquistar

território" em Portugal PÁGS. 2-6

Nova equipa irá controlar gestão do SNS "Se servir para as Finanças alterarem a postura, será útil", diz Associaçào Portuguesa de Administradores Hospitalares // PÁG. 8

iSjOrgunaanuesoM/ProSSifloZeINGSSonlabRwrámatiOkensiSitfleflogOtageculmaSnIss1rafMLopea//abrietrwaculksJoiéGebilaSsiSSOkdeaRrecicofras

Entrevista a Fontainhas Fernandes, presidente do conselho de reitores

"Portugal está ao nível da Hungria e da Roménia em investimento no superior' "Há ex-políticos que foram contratados por universidades e que não causaram polémica" // PÁGS. n-as

DETENÇÃO DE PUIGDEMONT REVOLTA CATALUNHA ;I PÁGS. 12 o 48