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UM OLHAR SOBRE A CIDADE A PARTIR DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE LAZER Gustavo Santiago Torrecilha Cancio 1 Nátali Bozzano Nunes 2 RESUMO A presente pesquisa tem o objetivo de apresentar um olhar sobre o direito à cidade por intermédio das políticas públicas de lazer. A possibilidade de se afirmar teoricamente o direito à cidade não perpassa apenas por ser sua caracterização como um renovado e transformado direito à vida urbana. Essa concepção não se refere tão somente a um direito de acesso à cidade do uso do que já existe mas sim de uma nova perspectiva desta consideração. Assim, ao se notar que a vida urbana se tornou estressante, alienante, desconfortável, ou desinteressante, tem-se, pois, o direito de mudar. A liberdade de fazer e refazer a nós mesmos e a nossas cidades é para teóricos como David Harvey um dos mais preciosos direitos humanos. É certo, contudo, que existem numerosas forças que militam contra o livre exercício de tais direitos, como por exemplo o intenso processo de urbanização sem planejamento prévio e a dificuldade em se refletir sobre o problema do lazer. Com isso, a cidade que deveria ser o berço dos direitos essenciais juntamente ao direito à dignidade, a uma vida digna e acesso a serviços essenciais, incluindo educação, saúde, habitação, emprego, transporte público e segurança, hoje aponta para uma dinâmica dedicada a interesses mercadológicos urbanos. Dentro desta perspectiva mercadológica, a cultura e o lazer, que, em tese deveriam ser assegurados como direitos sociais, ganham um novo contorno. É dentro dessa análise que se justifica o presente estudo, que visa a observar, por intermédio das políticas públicas de lazer, a consagração do direito à cidade como um direito humano a ser alcançado. No que se refere aos procedimentos metodológicos, serão adotados neste trabalho a pesquisa bibliográfica e a documental, valendo-se do método descritivo e exploratório, com a finalidade de desenvolver e esclarecer conceitos e ideais afetas ao direito à cidade e ao lazer, provendo critérios de compreensão dos fenômenos pesquisados. Palavras-chave: Direito à cidade; Direito ao lazer; Políticas públicas. 1 Mestrando em Direitos Humanos do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul UFMS. Email: [email protected] 2 Mestranda em Sociologia do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal da Grande Dourados UFGD. Email: [email protected] Anais do XIV Congresso Internacional de Direitos Humanos. Disponível em http://cidh.sites.ufms.br/mais-sobre-nos/anais/

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UM OLHAR SOBRE A CIDADE A PARTIR DAS POLÍTICAS

PÚBLICAS DE LAZER

Gustavo Santiago Torrecilha Cancio1

Nátali Bozzano Nunes2

RESUMO

A presente pesquisa tem o objetivo de apresentar um olhar sobre o direito à cidade por

intermédio das políticas públicas de lazer. A possibilidade de se afirmar teoricamente o direito

à cidade não perpassa apenas por ser sua caracterização como um renovado e transformado

direito à vida urbana. Essa concepção não se refere tão somente a um direito de acesso à cidade

– do uso do que já existe – mas sim de uma nova perspectiva desta consideração. Assim, ao se

notar que a vida urbana se tornou estressante, alienante, desconfortável, ou desinteressante,

tem-se, pois, o direito de mudar. A liberdade de fazer e refazer a nós mesmos e a nossas cidades

é para teóricos como David Harvey um dos mais preciosos direitos humanos. É certo, contudo,

que existem numerosas forças que militam contra o livre exercício de tais direitos, como por

exemplo o intenso processo de urbanização sem planejamento prévio e a dificuldade em se

refletir sobre o problema do lazer. Com isso, a cidade que deveria ser o berço dos direitos

essenciais juntamente ao direito à dignidade, a uma vida digna e acesso a serviços essenciais,

incluindo educação, saúde, habitação, emprego, transporte público e segurança, hoje aponta

para uma dinâmica dedicada a interesses mercadológicos urbanos. Dentro desta perspectiva

mercadológica, a cultura e o lazer, que, em tese deveriam ser assegurados como direitos sociais,

ganham um novo contorno. É dentro dessa análise que se justifica o presente estudo, que visa

a observar, por intermédio das políticas públicas de lazer, a consagração do direito à cidade

como um direito humano a ser alcançado. No que se refere aos procedimentos metodológicos,

serão adotados neste trabalho a pesquisa bibliográfica e a documental, valendo-se do método

descritivo e exploratório, com a finalidade de desenvolver e esclarecer conceitos e ideais afetas

ao direito à cidade e ao lazer, provendo critérios de compreensão dos fenômenos pesquisados.

Palavras-chave: Direito à cidade; Direito ao lazer; Políticas públicas.

1 Mestrando em Direitos Humanos do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Mato

Grosso do Sul – UFMS. Email: [email protected] 2 Mestranda em Sociologia do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD.

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1 INTRODUÇÃO

A possibilidade de se afirmar teoricamente o direito à cidade não perpassa apenas por

ser sua caracterização como um renovado e transformado direito à vida urbana. Essa concepção

não se refere tão somente a um direito de acesso à cidade – do uso do que já existe – mas sim

de uma nova perspectiva desta consideração. Assim, ao se notar que a vida urbana se tornou

estressante, alienante, desconfortável, ou desinteressante, tem-se, pois, o direito de mudar.

Hodiernamente, a concepção de lazer está implicada diretamente com as relações de

trabalho advindas da Revolução Industrial, iniciada na Inglaterra no século XVIII. A passagem

do sistema feudal para o sistema capitalista desmantelou não apenas o sistema econômico antes

vigente, mas também princípios morais, religiosos, jurídicos e políticos.

O trabalho ocupou o lugar de atividade central na inserção social e constituiu fator

fundamental da produção subjetiva ao longo da sociedade moderna. Com efeito, o labor passou

a ser concebido como atividade dominante. Essa referência de dominância está caracterizada,

primordialmente, em virtude da atividade laboral ser o elemento que demarca a estruturação

dos quadros temporais das sociedades Pós-Revolução Industrial. Nesse novo modelo de

produção – marcado pela compra e venda de mão-de-obra – duas classes se destacam: a

Burguesia e o Proletariado.

Para Werneck (2000), o trabalho para os proletários era algo cansativo e rotineiro,

marcado por longas jornadas de trabalho que lhes eram impostas e que inibiam suas práticas de

lazer, este bastante almejado para compensar a exaustão adquirida. Diante de tal realidade, os

trabalhadores começaram a reivindicar a redução da carga horária, embora os movimentos

sindicais daí decorrentes viessem a ser intensamente reprimidos pelo Estado e pelas classes

dominantes.

Atualmente, o lazer é garantido pela Constituição da República Federativa do Brasil, de

1988, que afirma ser este um direito social, tal como a educação e o trabalho, sendo dever da

família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade,

o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à

dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Nota-se, assim, que o lazer é tão importante na vida dos sujeitos quanto os demais

direitos amparados pela Carta Magna. São muitas as definições e estudos sobre o lazer.

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Contudo, o conceito mais difundido no Brasil foi proposto pelo estudioso francês considerado

o pai da sociologia empírica do lazer, Joffre Dumazedier. Para ele, lazer significa um conjunto

de ocupações às quais o indivíduo pode entregar-se de livre vontade, seja para repousar, seja

para divertir-se, recrear-se, entreter-se ou, ainda para desenvolver sua informação ou formação

desinteressada, sua participação social voluntária ou sua livre capacidade criadora após livrar-

se ou desembaraçar-se das obrigações profissionais, familiares e sociais. (DUMAZEDIER,

1973).

Além deste conceito, o mesmo autor definiu as propriedades desse fenômeno social. São

elas: escolha pessoal, liberalidade, gratuidade e hedonia. Para o mencionado autor, a liberação

se deve ao fato de que o indivíduo, no lazer, busca se liberar das tarefas rotineiras e

institucionalizadas, como obrigações familiares e trabalhistas. Sobre a escolha pessoal, afirma

ele que, quando comparada a outras atividades, a do lazer se mostra como uma que tem maior

gama de opções, apresentando, assim, uma maior liberdade de decisão.

Para Dumazedier (1974), o lazer ainda apresenta três funções que são interligadas – os

chamados “3 Ds do Lazer” – a saber: descanso, divertimento e desenvolvimento. O descanso

está relacionado à renovação da força de trabalho e das obrigações cotidianas; já o divertimento

remete-se ao entretenimento, ao jogo, às viagens e implica no rompimento do ritmo de vida

diária; por fim, o terceiro “D” corresponde ao desenvolvimento da personalidade de cada

indivíduo.

Estas funções interagem entre si, embora uma se sobreponha à outra em determinados

momentos: são funções solidárias, que estão sempre intimamente unidas umas às outras, mesmo

quando parecem opor-se entre si:

Como propiciadora de descanso, desenvolvimento e divertimento, observa-se a

dimensão e as consequências geradas pelas experiências de lazer. Apesar do sociólogo francês

ser um importante teórico do lazer, inúmeros autores trabalharam, complementaram e

enriqueceram a bibliografia sobre o assunto.

A visão de que o lazer está implicado na cultura permite observar que o indivíduo poderá

tanto ser consumidor quanto produtor desta, o que representa uma ampliação do significado do

lazer, que não se limita a conjunto de ocupações, como defendido por Dumazedier, pois o termo

ocupação está intimamente ligado a trabalho, afazeres e ofício; e o lazer se enquadra exatamente

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no oposto a isso. Seria mais adequado falar em experiências ou vivências, ou no fato de se ter

vida, de se viver, ou ainda no conhecimento adquirido pela própria vida.

Bramante (1998), por seu turno, alega que o lazer é um tempo conquistado e que é neste

momento que, através do lúdico, o ser consegue libertar-se da realidade imposta. O lazer se

traduz, para Bramante, por uma dimensão privilegiada da expressão humana dentro de um

tempo conquistado, materializada através de uma experiência pessoal criativa, de prazer e que

não se repete no tempo/ espaço, cujo eixo principal é a ludicidade. Ela é enriquecida pelo seu

potencial socializador e determinada, predominantemente, por uma grande motivação

intrínseca e realizada dentro de um contexto marcado pela percepção de liberdade

(BRAMANTE, 1998).

Diante essas diferentes perspectivas e visões acerca do lazer levando em consideração

que existem numerosas forças que militam contra o livre exercício de tais direitos, o presente

artigo terá como objetivo precípuo apresentar um olhar sobre o direito à cidade por intermédio

das políticas públicas de lazer.

Busca-se com esta pesquisa chamar a atenção para o fato de que a cidade que deveria

ser o berço dos direitos essenciais juntamente ao direito à dignidade, a uma vida digna e acesso

a serviços essenciais, incluindo educação, saúde, habitação, emprego, transporte público e

segurança, hoje aponta para uma dinâmica dedicada a interesses mercadológicos urbanos. A

visão mercadológica da cultura e do lazer, que, em tese deveriam ser assegurados como direitos

sociais, ganham um novo contorno.

É dentro dessa análise que se justifica o presente estudo, que visa a observar, por

intermédio das políticas públicas de lazer, a consagração do direito à cidade como um direito

humano a ser alcançado. Para tanto, o artigo perpassa por aspectos da sociedade de consumo, a

construção da cidadania nas cidades brasileiras e seus aspectos mercadológicos.

No que se refere aos procedimentos metodológicos, serão adotados neste trabalho a

pesquisa bibliográfica e a documental, valendo-se do método descritivo e exploratório, com a

finalidade de desenvolver e esclarecer conceitos e ideais afetas ao direito à cidade e ao lazer,

provendo critérios de compreensão dos fenômenos pesquisados.

2 A SOCIEDADE DO CONSUMO E SUA SELETIVIDADE

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Para Bauman (2008), na sociedade de consumidores, ninguém pode manter segura sua

subjetividade sem reanimar, ressuscitar e recarregar de maneira perpétua as capacidades

esperadas e exigidas de uma mercadoria vendável. A característica mais proeminente da

sociedade de consumidores é a transformação dos consumidores em mercadorias. Dessa forma,

a tarefa dos consumidores é sair da invisibilidade. Nas palavras do autor:

A tarefa dos consumidores, e os principais motivos que os estimula a se

engajar numa incessante atividade do consumo, é sair dessa

invisibilidade e imaterialidade cinza e monótoda destacando-se da

massa de objetos indistinguíveis que flutuam com igual densidade

específica e assim captar o olhar dos consumidores (BAUMAN, p. 21,

2008).

Bauman alerta que a invisibilidade, na sociedade do consumo, é equivalente à morte.

Dessa forma, os jovens da periferia que são excluídos e são invisíveis tanto aos olhos do Estado

quanto aos olhos da população que valora o indivíduo pelo seu poder de compra. Enquanto o

consumo alcança apenas o nível individual, sendo uma característica e uma ocupação dos seres

humanos, o consumismo é um atributo da social resultante da reciclagem de vontades, desejos

e anseios humanos rotineiros e permanentes, tornando-se a principal força propulsora e

operativa da sociedade, dessa forma, o consumismo é:

[...] uma força que coordena a reprodução sistêmica a integração e a estratificação

sociais, além de indivíduos humanos, desempenhando, ao mesmo tempo, um

papel importante nos processos de auto identificação individual e de grupo assim

como na execução de políticas de vida individuais (BAUMAN, 2008, p. 41).

Dessa forma, para manter a ordem social baseada no consumo é necessário que o sujeito

deseje estar e esteja “sempre à frente das tendências” e antenado com o mundo do consumo. Caso

o indivíduo não se encaixe nessas prerrogativas ele tem como punição a exclusão e a rejeição

social.

Guy Debord, em seu livro que se tornou um clássico “A sociedade do espetáculo”, lançado

na França em 1967, criticou a sociedade moderna e as suas aparências advindas das imagens

impostas pela mídia como uma forma de influência na construção de novas subjetividades. Para o

autor, o espetáculo é uma representação da realidade de uma forma unificada e ilusória, pois o que

é real deixa de existir dando lugar ao mundo falso que é determinado pela economia mercantil, e

que passa a ser visto como verdadeiro. É na relação entre esses mundos, que ocorre uma aceitação

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passiva em que o sujeito não questiona o modelo que se decidiu para ele, pois tudo aquilo já passou

a fazer parte de sua subjetividade. Dessa forma, nas palavras do autor:

O espetáculo é ao mesmo tempo parte da sociedade, a própria sociedade

e seu instrumento de unificação. Enquanto parte da sociedade, o

espetáculo concentra todo o olhar e toda a consciência. Por ser algo

separado, ele é o foco do olhar iludido e da falsa consciência; a

unificação que realiza não é outra coisa senão a linguagem oficial da

separação generalizada. O espetáculo não é um conjunto de imagens,

mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens. O

espetáculo, compreendido na sua totalidade, é simultaneamente o

resultado e o projeto do modo de produção existente. Ele não é um

complemento ao mundo real, um adereço decorativo. É o coração da

irrealidade da sociedade real. Sob todas as suas formas particulares de

informação ou propaganda, publicidade ou consumo direto do

entretenimento, o espetáculo constitui o modelo. (...) Sua única

mensagem é “o que aparece é bom, o que é bom aparece”. A atitude que

ele exige por princípio é aquela aceitação passiva que, na verdade, ele

já obteve na medida em que aparece sem réplica, pelo seu monopólio

da aparência. (DEBORD,1967, p. 12)

Para Debord (1967), a mercadoria juntamente com a aparência são "produtos" feitos para

a massa, com o objetivo de alienar as sociedades, onde só existem as verdades que o sistema

pretende transmitir. Todos esses objetos manipuladores surgem para dominar tudo o que é vivido

e ocupar completamente a vida social do homem. Dessa forma, a mercadoria, além de privar quem

a produz, domina aqueles que as consomem:

A alienação do espectador em proveito do objeto contemplado (que é o resultado

da sua própria atividade inconsciente) exprime-se assim: quanto mais ele

contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens

dominantes da necessidade, menos ele compreende a sua própria existência e o

seu próprio desejo. A exterioridade do espetáculo em relação ao homem que age

aparece nisto, os seus próprios gestos já não são seus, mas de um outro que lhes

apresenta. Eis porque o espectador não se sente em casa em parte alguma, porque

o espetáculo está em toda a parte. O trabalhador não produz para si próprio, ele

produz para um poder independente. O sucesso desta produção, a sua abundância,

regressa ao produtor como abundância da despossessão. Todo o tempo e o espaço

do seu mundo se lhe tornam estranhos com a acumulação dos seus produtos

alienados. O espetáculo é o mapa deste novo mundo, mapa que recobre

exatamente o seu território (DEBORD, 1967, p. 19).

Debord também faz uma crítica ao tempo na sociedade do consumo. Para ele, a realidade

do tempo foi substituída pela publicidade do tempo e, enquanto o consumo do tempo cíclico

das sociedades antigas estava de acordo com o trabalho real dessas sociedades, um tempo

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realmente vivido, o tempo espetacular é o tempo da realidade que se transforma, vivido

ilusoriamente.

Para Milton Santos (1967), a fabricação de novas necessidades agravava a vocação ao

consumo, e esta só é parcialmente saciada para alguns, enquanto para os pobres não

contemplados e para os novos pobres que se criam pelo mesmo processo econômico a revolução

das expectativas crescentes renova a alimentação das esperanças: é a esperança dos

inconscientes de sua condenação à pobreza. Como a criação de novos objetos oferece novas

opções às classes médias, estas novamente aparecem como um exemplo a seguir, mas na

verdade um exemplo impossível, dessa forma,

É dessa forma que o consumo prossegue o seu trabalho ideológico, uma mitologia

entranhada nas coisas, um ópio social mais eficaz que as religiões o foram no

passado, já que se alimenta das práxis individuais e coletivas experimentadas no

próprio processo de vida: o trabalho, a casa, a educação, o lazer. O efeito-

demonstração evolui da incitação da propaganda para o exemplo do vizinho. O

vizinho, próximo ou distante, é o que aparece no jornal e na televisão como

vitorioso. Vitorioso de que batalha? Trata-se de uma vitória apresentada como se

fosse o prêmio a um esforço (SANTOS, 1967, p. 39).

Dessa forma, Santos (1967) ainda salienta que a vitória do consumo como fim em si

mesmo, a supressão da vida comunitária baseada na solidariedade social e sua superposição por

sociedades competitivas que comandam a busca de status e não mais de valores.

Em tais sociedades corporativas reina a propaganda como fazedora de símbolos,

o consumismo como seu portador, a cultura de massas como caldo de cultura

fabricado, a burocracia como instrumento e fonte de alienação. Esse quadro, hoje

comum a todos os países capitalistas, ganha ainda mais nitidez nos países

subdesenvolvidos como o nosso. É necessário lembrar que, para muitos países do

Terceiro Mundo, o empobrecimento da moralidade internacional atribuiu aos

imperativos do progresso a presença de regimes fortes, as dis torções na vida

econômica e social, a supressão do debate sobre os direitos dos cidadãos, mesmo

em suas formas mais brandas (SANTOS, Milton, 1967, p. 87)

3 DO CIDADÃO AO CONSUMIDOR: A CONSTITUIÇÃO DA CIDADANIA NO BRASIL

O geógrafo Milton Santos, aprofundou a análise sobre como o ambiente de uma pessoa

determina seu acesso a recursos, tais como serviços públicos e educação, e, portanto, pode

melhorar ou limitar a sua mobilidade social. Para o autor, o seu valor como produtor,

consumidor, cidadão, depende de sua localização no território. Por isso, a possibilidade de ser

mais ou menos cidadão depende, em larga proporção, do ponto do território onde se está.

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Para Santos (1967) salienta que enquanto um lugar vem a ser a condição de sua

pobreza, um outro lugar poderia, no mesmo momento histórico, facilitar o acesso àqueles bens

e serviços que lhes são teoricamente devidos, mas que, de fato, lhe faltam. Desse modo,

entende-se que a urbanização no Brasil expressou e reforçou ainda mais as relações desiguais

do país, onde os valores sociais foram subordinados aos interesses econômicos, em um quadro

onde o consumismo domina os valores democráticos. O número de shoppings e centros

comerciais, no contexto do aumento dos condomínios fechados no Brasil, nos diz algo sobre o

estado da desigualdade no país.

Santos (1967) enfoca que em nenhum outro país foram assim contemporâneos e

concomitantes processos como desruralização, as migrações brutais de senraizadoras, a

urbanização galopante e concentradora, a expansão do consumo de massa, o crescimento

econômico delirante. Dessa forma, em lugar do cidadão formou-se um consumidor, que aceita

ser chamado de usuário. Entretanto, em menos de trinta anos, isto é, no espaço de uma ou duas

gerações, essas transformações se deram concomitantemente no Brasil, o que multiplicou

exponencialmente o seu potencial já por si só negativo, sobretudo porque a classe média então

criada já nascia debaixo das influências. Para o autor:

O neoliberalismo, ao mesmo tempo em que prega a abstenção estatal na área

produtiva, atribui ao estado capitalista uma grande cópia de poder sobre os

indivíduos a título de restaurar a saúde econômica e, assim, preservar o futuro. A

alegação de que o grande desemprego é necessário para aumentar o emprego

daqui a alguns anos é um desses argumentos consagrados para justificar uma

recessão programada. Os “socialismos reais” também prometem, a partir das

restrições atuais às liberdades clássicas, um sistema social em que, no futuro, a

intervenção autônoma do Estado (separado da sociedade civil) será minimizada,

se não abolida, na regulação da vida social. Um traço comum a esses países vem,

todavia, do fato de que neles houve condição para que a luta histórica pela

conquista dos direitos dos cidadãos abrangesse, ao longo do tempo, parcela

considerável da população imbuída, consciente ou inconsciente, da ideia de

sociedade civil e da vocação de igualdade. A instalação de tal estado de espírito

e de tal estado de coisas precede à implantação das grandes mudanças sociais que

viriam comprometê-los: o papel da máquina e do industrialismo no intercâmbio

social, o uso da astúcia ou da força nas relações internacionais, a chegada do

capitalismo corporativo e a instrumentalização das relações interpessoais.

(SANTOS, 1967, p. 10)

Dessa forma, o neoliberalismo é um modelo político e social responsável pela eliminação

do embrião de cidadania que então se desenvolvia e pela opção de alargamento de uma nova classe

média em detrimento da massa de pobres. Para Santos (1967), o crescimento econômico assim

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obtido, fundado em certos setores produtivos e baseado em certos lugares, veio a agravar a

concentração da riqueza e as injustiças, já grandes, de sua distribuição. Entre as pessoas e entre os

lugares. Como tal crescimento se fazia paralelamente ao apelo a um consumo impossível de se

generalizar, as linhas de crédito abertas para fortalecer os produtores ajudaram a agravar as

desigualdades e santificar as distorções.

O equipamento do país, destinado ao escoamento mais fácil e mais rápido dos

produtos, serviu ao modelo econômico que o gerou para a criação do modelo

territorial correspondente: grandes e brutais migrações, muito mais migrações de

consumo que de trabalho, esvaziamento demográfico em inúmeras regiões,

concentração da população em crescimento em algumas poucas áreas, sobretudo

urbanas, com a formação de grandes metrópoles em todas as regiões e a

constituição de uma verdadeira megalópole do tipo brasileiro no Sudeste. Além

do que, para os seus moradores menos móveis, a cidade é impalpável. Ela, porém,

se impõe como um amontoado de signos aparentemente desencontrados, agindo,

no entanto, em concerto, para limitar mais do que para facilitar a minha ação,

tornando-me impotente diante da multiplicidade das coisas que me cercam e de

que posso dispor (SANTOS, p. 44, 1991).

Thomas H. Marshall, sociólogo britânico, em seu livro “Clássico cidadania e classe

social”, publicado em 1967, realiza um estudo sobre o desenvolvimento da cidadania na

Inglaterra. Dessa forma o autor destrincha o conceito de cidadania em três partes ou elementos,

são eles: civil, política e social. Para Marshal (1967), o elemento civil é composto dos direitos

necessários a liberdade individual, como por exemplo: liberdade de ir e vir, liberdade de

imprensa, pensamento e fé, o direito de propriedade e de concluir contratos válidos e o direito

à justiça. Dessa forma, as instituições mais íntimas com os direitos civis são os tribunais de

justiça.

De outro modo, o direito político deve se entender o direito de participar do exercício

do poder político, como um membro de um organismo investido da autoridade política ou como

um eleitor dos membros de tal organismo.

O elemento social, por sua vez, é composto de tudo o que vai desde o direito a um

mínimo de bem-estar econômico e segurança ao direito de participar, por completo, na herança

social e levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na

sociedade. As instituições mais ligadas com ele são os sistemas educacionais e os serviços

sociais.

Marshall (1967) argumenta que, anteriormente à era moderna, não era possível traçar

uma linha clara entre os três direitos, uma vez que as instituições aos quais se relacionam

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encontravam-se misturadas, dessa forma, estes três direitos estavam fundidos num só. O

desenvolvimento da cidadania na Inglaterra se deu com a fusão geográfica e a separação

funcional desses elementos. Dessa forma, na fusão, a cidadania passou de instituição local à

nacional e a separação refere-se à separação dos três elementos, de modo que se tornaram,

segundo este autor, estranhos entre si. Nas palavras do autor:

Os direitos se confundem porque as instituições estavam amalgamadas, a

mesma instituição é assembleia legislativa, um conselho governamental e um

tribunal de justiça. Mas os direitos sociais do indivíduo igualmente faziam

parte do mesmo amalgama e eram originárias do status que também

determinava que espécie de justiça ele podia esperar e onde podia obtê-la, e a

maneira pela qual podia participar da administração dos negócios da

comunidade a qual pertencia. Mas esse status não era de cidadania no moderno

sentido de expressão. Na sociedade feudal, o status era a marca distintiva de

classe e a medida de desigualdade. Não havia nenhum código de direitos e

deveres (MARSHALL, 1967, p. 67).

Marshall (1967) atenta-se para os fatos de que na Europa primeiro vieram os direitos

civis, no século XVIII. Depois, no século XIX, surgiram os direitos políticos. Finalmente os

direitos sociais foram conquistados no século XX. Para ele trata-se de uma sequência

cronológica e lógica. Para o autor, o surgimento sequencial dos direitos sugere que a própria

ideia de direitos, e, portanto, a própria cidadania, é um fenômeno histórico

Os direitos civis surgiram em primeiro lugar e se estabeleceram de modo um

tanto semelhante à forma moderna como assumiram antes da entrada em vigor

da primeira Lei da Reforma em 1832. Os direitos políticos se seguiram aos

civis, e a ampliação deles foi uma das principais características do século XIX,

embora o princípio da cidadania política universal não tenha sido reconhecido

senão em 1918. Os direitos sociais, por outro lado, quase desapareceram no

século XVIII e princípio do século XIX. O ressurgimento deles começou

quando começou o desenvolvimento da educação primária pública, mas não

foi senão no século XX que eles atingiram um plano de igualdade com os

outros dois elementos da cidadania. (MARSHAL, 1967, p. 75)

José Murilo de Carvalho (2002) buscou analisar como que a cidadania se deu no Brasil.

O autor inicia a discussão dizendo que o fenômeno da cidadania é complexo e historicamente

definido, sendo que o esforço de construção da democracia no Brasil ganhou ímpeto após o fim

da ditadura militar, em 1985. Porém, o autor adverte que havia ingenuidade no entusiasmo pois

havia a crença de que a democratização das instituições traria rapidamente a felicidade nacional.

“Pensava-se que o fato de termos reconquistado o direito de eleger nossos prefeitos,

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governadores e presidente da República seria garantia de liberdade, de participação, de

segurança, de desenvolvimento, de emprego, de justiça” (CARVALHO, 2002, p. 7).

Para o autor, tornou-se costume desdobrar a cidadania em direitos civis, políticos e

sociais, diante do exposto ficava evidente que o cidadão pleno seria aquele que fosse titular dos

três direitos e os Cidadãos incompletos seriam os que possuíssem apenas alguns dos direitos.

Os que não se beneficiassem de nenhum dos direitos seriam não-cidadãos.

Segundo Carvalho, nestes 178 anos de esforço para a construção do cidadão brasileiro,

os progressos feitos são inegáveis, mas foram lentos e não escondem o longo caminho que ainda

falta percorrer. Dessa forma, o autor salienta que na raiz das dificuldades, pode estar o fato de

que, no Brasil, a cronologia e a lógica descrita por Marshall foram invertidas:

Contudo, o autor defende que seria tolo achar que só há um caminho para a cidadania.

A história de países como Inglaterra, Alemanha, França, Estados Unidos etc., mostra que não é

assim. Dessa forma, Carvalho reforça que nossa cultura política de excessiva valorização do

Poder Executivo e de impaciência com o funcionamento geralmente mais lento do mecanismo

democrático de decisão, tem levado à busca de soluções mais rápidas por meio de lideranças

carismáticas e messiânicas.

Para José Murilo de Carvalho, a inversão dos direitos favoreceu uma visão corporativa

dos interesses coletivos, em que os benefícios sociais não eram tratados como direitos de todos,

mas como fruto da negociação de cada categoria com o governo. Dessa forma, a sociedade

passou a se organizar para garantir os direitos e os privilégios distribuídos pelo Estado. Porém

dentre inúmeros fatores negativos, o autor adverte que também tiveram fatores positivos desta

pirâmide invertida:

Um deles é que a esquerda e a direita parecem hoje convictas do valor da

democracia. Quase todos os militantes da esquerda armada dos anos 70 são

hoje políticos adaptados aos procedimentos democráticos. Quase todos

aceitam a via eleitoral de acesso ao poder. Por outro lado, a direita também,

salvo poucas exceções, parece conformada com a democracia. Os militares

têm-se conservado dentro das leis e não há indícios de que estejam cogitando

da quebra das regras do jogo. Os rumores de golpe, frequentes no período pós-

45, já há algum tempo que não vêm perturbar a vida política nacional. Para

isso tem contribuído o ambiente internacional, hoje totalmente desfavorável a

golpes de Estado e governos autoritários. Isso não é mérito brasileiro, mas

pode ajudar a desencorajar possíveis golpistas e a ganhar tempo para a

democracia. Mas o cenário internacional traz também complicações para a

construção da cidadania, vindas sobretudo dos países que costumamos olhar

como modelos. A queda do império soviético, o movimento de minorias nos

Estados Unidos e, principalmente, a globalização da economia em ritmo

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acelerado provocaram, e continuam a provocar, mudanças importantes nas

relações entre Estado, sociedade e nação, que eram o centro da noção e da

prática da cidadania ocidental. (CARVALHO, 2002, p.225)

Para Carvalho (2002), o foco das mudanças está localizado em dois pontos: a redução

do papel central do Estado como fonte de direitos e como arena de participação, e o

deslocamento da nação como principal fonte de identidade coletiva. Dito de outro modo, trata-

se de um desafio à instituição do Estado-nação. A redução do papel do Estado em benefício de

organismos e mecanismos de controle internacionais tem impacto direto sobre os direitos

políticos. O autor salienta que:

Na União Europeia, os governos nacionais perdem poder e relevância diante

dos órgãos políticos e burocráticos supranacionais. Os cidadãos ficam cada

vez mais distantes de seus representantes reunidos em Bruxelas. Grandes

decisões políticas e econômicas são tomadas fora do âmbito nacional. Os

direitos sociais também são afetados. A exigência de reduzir o déficit fiscal

tem levado governos de todos os países a reformas no sistema de seguridade

social. Essa redução tem resultado sistematicamente em cortes de benefícios

e na descaracterização do estado de bem-estar. A competição feroz que se

estabeleceu entre as empresas também contribuiu para a exigência de redução

de gastos via poupança de mão-de-obra, gerando um desemprego estrutural

difícil de eliminar (CARVALHO, 2002, p.226).

É notório, portanto, para Carvalho, que o pensamento liberal renovado volta a insistir

na importância do mercado como mecanismo auto regulador da vida econômica e social e,

como consequência, na redução do papel do Estado. Dessa forma, “o intervencionismo estatal

foi um parêntese infeliz na história iniciado em 1929, em decorrência da crise das bolsas, e

terminado em 1989 após a queda do Muro de Berlim” (CARVALHO, 2002, p. 227).

Nessa visão, o cidadão se torna cada vez mais um consumidor, afastado de preocupações

com a política e com os problemas coletivos. Os movimentos de minorias nos Estados Unidos

contribuíram, por sua vez, para minar a identidade nacional ao colocarem ênfase em identidades

culturais baseadas em gênero, etnia, opções sexuais etc. Assim como há enfraquecimento do

poder do Estado, há fragmentação da identidade nacional.

Para Milton Santos (1987), o simples nascer investe o indivíduo de uma soma

inalienável de direitos, apenas pelo fato de ingressar na sociedade humana. Dessa forma, para

Santos, viver, tornar-se um ser no mundo, é assumir, com os demais, uma herança moral, que

faz de cada qual um portador de prerrogativas sociais. Dessa forma, todos têm o direito a um

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teto, à comida, à educação, à saúde, à proteção contra o frio, a chuva, as intempéries; direito ao

trabalho, à justiça, à liberdade e a uma existência digna.

Dessa forma, a consagração da cidadania se dá pelo respeito ao indivíduo, pela qual uma

lista de princípios gerais e abstratos se impõe como um corpo de direitos concretos

individualizados. Nas palavras do autor:

A cidadania é uma lei da sociedade que, sem distinção, atinge a todos e investe

cada qual com a força de se ver respeitado contra a força, em qualquer

circunstância. A cidadania, sem dúvida, se aprende. É assim que ela se torna

um estado de espírito, enraizado na cultura. É, talvez, nesse sentido, que se

costuma dizer que a liberdade não é uma dádiva, mas uma conquista, uma

conquista a manter. Ameaçada por um cotidiano implacável, não basta à

cidadania ser um estado de espírito ou uma declaração de intenções. Ela tem

o seu corpo e os seus limites como uma situação social, jurídica e política.

Para ser mantida pelas gerações sucessivas, para ter eficácia e ser fonte de

direitos, ela deve se inscrever na própria letra das leis, mediante dispositivos

institucionais que assegurem a fruição das prerrogativas pactuadas e, sempre

que haja recusa, o direito de reclamar e ser ouvido. (SANTOS, Milton, 1987,

p. 7)

A cidadania, assim, não é imutável, mas sim histórica e passível de evoluções e

retrocessos. Os homens, mesmo que não busquem de forma homogênea, pela sua própria

essência, buscam a liberdade. Dessa forma, os Estados nem sempre coincidem com a sociedade

civil mas, ao contrário, lhes refream os impulsos, e frequentemente desrespeitam os indivíduos,

sob as justificativas e disfarces mais diversos. Conforme Santos, “a dialética da vida social leva

em conta o movimento desses fatores: o dado institucional, o dado econômico, o dado cultural

e o dado individual interdependem e interagem” (SANTOS, 1967, p.83).

Portanto, o espaço social transparece mais do que um lócus, ele é a consequência de

uma sociedade de classes. Dessa forma, A construção do espaço no capitalismo – como que o

modo de produção vigente age de tal forma que mantenha aqueles afastados.

Padilha (2006) entende que o espaço urbano é uma produção social, dessa forma, se a

organização social é regida e determinada por uma racionalidade capitalista, e o capitalismo é

um sistema essencialmente de contradição e distinção entre os grupos sociais, o espaço urbano

sob o capitalismo reflete contradição e distinção. Em outras palavras, a cidade do capital é o

lócus de acumulação da riqueza para uns em detrimento do poder aquisitivo de outros.

Para Sônia Barrios (1986), é necessário compreender o espaço urbano pois ao mesmo

tempo que nenhuma ação humana pode prescindir do espaço como suporte, ou deixa-lo

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inalterado, uma vez finalizado representa que o espaço é um produto que gera em sua inter-

relação, produtos globais cujas realização não se pode atribuir especialmente a nenhuma das

ações e relações observadas na realidade.

Da mesma forma, para Barrios (1986), numa sociedade estratificada em classes, a forma

pela qual se efetua a transformação do meio físico – e seu resultado concreto: o espaço

modificado- só pode ser compreendida mediante exame dos interesses dos grupos sociais que

dirigem a produção. Dessa forma, o modo de produção promove uma transformação cada vez

mais ampla e profunda do espaço. “As formas espaciais adquirem diferentes escalas de

configuração, como – a dos objetos de consumo; - a dos fatos arquitetônicos; - a dos fatos

urbanos; a da organização territorial” (BARRIOS, 1986, p. 4).

Deste modo, as relações de dominação que se estabelecem entre s homens tem como um

dos seus fundamentos a propriedade do espaço físico. Para Barrios (1986), o Estado incide no nível

das práticas econômicas por duas vias:

Diretamente, cumprindo funções econômicas básicas e indiretamente, por meio

de processos de planejamento. A crescente importância do Estado como agente

econômico nasce do imperativo de fazer frente aos desequilíbrios setoriais e

gerais apresentados pelas sociedades capitalistas modernas. Se inicialmente suas

atividades se restringem à dotação da infraestrutura de apoio exigida pelo

processo de industrialização, progressivamente se irá encarregando de novas

tarefas e responsabilidades, assumindo o controle das indústrias básicas e

transformando-se, em alguns casos, no principal investidor dentro das economias

nacionais. Em consequência, a organização territorial obtida em grande parte pela

construção da rede rodoviária e pela dotação de equipamento urbano terá na

atuação econômica do Estado um de seus principais fatores causais. Situação esta

que determina o importante papel que ele desempenha nos processos de

acumulação capitalista, proporcionando a urbanização, exigência básica do

desenvolvimento industrial, e valorizando o território em sua condição de capital

fixo. (BARRIOS, 1986, p. 11)

De outra forma, no papel de preservador da situação vigente, a principal atividade

econômica do estado orientara-se no sentido de adoção e práticas de medidas tendentes a regulação

das contradições não antagônicas e à repressão das contradições antagônicas geradas por uma

dinâmica social voltada para a reprodução das relações de classe. A função global do Estado

consiste em dar coesão interna aos elementos de um modo de produção ou de uma formação social

e, por conseguinte, converte-se num verdadeiro lugar onde se resolvem as contradições de classe,

no verdadeiro instrumento de dominação de uma classe sobre as demais.

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4 DIREITO À CIDADE: O MEIO URBANO COMO ESPAÇO MERCADOLÓGICO OU

COMO FORMA DE GARANTIR O LAZER?

A cidade que deveria ser o berço dos direitos essenciais juntamente ao direito à

dignidade, a uma vida digna e acesso a serviços essenciais, incluindo educação, saúde,

habitação, emprego, transporte público e segurança, hoje aponta para uma dinâmica dedicada a

interesses mercadológicos urbanos.

Não é outra a visão de Ermínia Maricato:

A cidade é uma mercadoria a ser vendida, num mercado extremamente

competitivo, em que outras cidades também estão à venda. Isto explicaria que

o chamado marketing urbano se imponha cada vez mais corno uma esfera

específica e determinante do processo de planejamento e gestão de cidades.

Ao mesmo tempo, aí encontraríamos as bases para entender o comportamento

de muitos prefeitos, que mais parecem vendedores ambulantes que dirigentes

políticos. (MARICATO, 2002, p. 170).

Para Ermínia Maricato (2013) as cidades são o principal local onde se dá a reprodução

da força de trabalho, nem toda melhoria das condições de vida é acessível com melhores

salários ou melhores condições de renda. Boas condições de vida dependem de políticas

públicas urbanas, assim como: transporte, moradia, saneamento, saúde, lazer, iluminação

pública, coleta de lixo, segurança.

A cidade constitui um grande patrimônio construído histórica e socialmente, mas a sua

apropriação é desigual e a causa desta discrepância é a renda imobiliária ou localização, pois

ela tem um preço devido a seus atributos. Primeiramente, a autora salienta que grande parte

das nossas cidades são construídas pelos próprios moradores em áreas invadidas, muitas delas

ambientalmente frágeis ou adquirida de loteadores ilegais. Dessa forma:

Para a construção desses bairros não contribuem arquitetos ou engenheiros,

tampouco há observância de legislação urbanística ou de quaisquer outras leis,

até mesmo para a resolução dos (frequentes) conflitos, para a qual não

contribuem advogados, cortes, juízes ou tribunais. Trata-se de uma força de

trabalho que não cabe no mercado residencial privado legal, que por sua vez

(e por isso mesmo) é altamente especulativo. Trata-se, portanto, de uma força

de trabalho barata, segregada e excluída da cidade legal. Assim como vivemos

a industrialização dos baixos salários, podemos dizer que vivemos a

urbanização dos baixos salários. A melhoria desses bairros é fonte inesgotável

do velho clientelismo político: troca-se por votos a pavimentação de uma rua,

a iluminação pública, uma unidade de saúde, uma linha de ônibus etc.

(MARICATO, 2013, p. 21)

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Dentro dessa análise, Henri Lefrebvre (1991) trata de temas bastante relevantes, assim

como a urbanização, o resultado da industrialização e a propagação do capitalismo. A partir

desses pressupostos, Lefebvre traça o perfil da sociedade capitalista com um novo pensamento

da concepção do urbano. O autor salienta que sem o crescimento das cidades, a produção

industrial não seria capaz de se expandir e conquistar novos mercados apropriando-se do

espaço. A cidade no sistema capitalista adquiriu dimensões importantes e é o lugar em que se

circula grande quantidade de capital.

De outro vértice, esta mesma cidade reproduz a segregação. A população pobre fica sem

opção quando se refere à habitação por conta da apropriação que se dá de forma desigual e faz

com que estas pessoas fiquem nas periferias, aos arredores da cidade. Lefebvre faz uma crítica

ao Estado, e alega que ele próprio reproduz a segregação nas cidades dando suporte ao próprio

sistema vigente na sociedade.

O tecido urbano foi se transformando em um espaço onde as diferenças de classes são

bastante visíveis, pois muitos não possuem o direito de morar com dignidade. Para Lefebvre

(2003), a segregação: deve ser focalizada em três aspectos, ora simultâneos, ora sucessivos, são

eles: espontâneo (proveniente de renda e das ideologias), voluntário (estabelecendo espaços

separados) e programado (sob o pretexto de arrumação e de plano). O autor argumenta que

mesmo quando a segregação não aparece de imediato, com uma evidência berrante, surge uma

pressão nesse sentido e indícios de segregação. O caso limite, o último resultado, é o gueto:

Há o gueto dos judeus, dos negros, mas também dos intelectuais e

operários, a seu modo, os bairros residenciais são guetos, as pessoas de

alta posição devido à renda e ao poder, vem a se isolar em guetos da

riqueza, o lazer tem seus guetos. Lá onde uma ação preparada tentou

reunir as camadas sociais e as classes, uma decantação espontânea logo

as separou. O fenômeno da segregação deve ser analisado segundo

índices e critérios diferentes: ecológicos: (favelas, pardieiros,

apodrecimento do coração da cidade), formais (deteriorização dos

signos e significações da cidade, degradação do “urbano” por meio da

deslocação de seus elementos arquitetônicos), sociológico (níveis de

vida e modos de vida, etnias, culturas, etc.) (LEFEBVRE, 1991, p. 98).

Mesmo os movimentos antissegregacionistas fracassam em muitas de suas tentativas de

combate a segregação, por razões teóricas e por razões sociais e políticas. No plano teórico o

pensamento analítico separa e fracassa quando tenta conseguir uma síntese. Social e

politicamente as estratégias de classe (inconscientes ou conscientes) visam a segregação.

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Para Lefebvre, Estado e empresa, apesar das suas diferenças e seus conflitos, convergem

para a segregação. As segregações que destroem morfologicamente as cidades e que ameaçam

a vida urbana não podem ser tomadas por efeitos nem de acasos, nem de conjunturas locais.

Contentamo-nos em indicar que o caráter democrático de um regime é discernido em relação a

sua atitude com relação a cidade, para com as “liberdades” urbanas, para com a realidade

urbana, e por conseguinte, pela segregação. Sendo assim, o autor salienta que o fator

segregação é essencial.

O Estado e a empresa procuram se apoderar das funções urbanas, assumi-las

e assegurá-las ao destruir a forma do urbano. A crise da cidade, cujas

condições e modalidades são pouco a pouco descobertas, não deixa de se fazer

acompanhar por uma crise das instituições na escala da cidade, da jurisdição

e da administração urbanas. A crise da cidade, cujas condições e modalidades

são pouco a pouco descobertas, com aquilo que dependia do nível próprio da

cidade (municipalidade, despesas, investimentos locais, escolas e programas

de universidades; etc.), passam cada vez mais para o controle do Estado e a

cidade tende a desaparecer como instituição (LEFEBVRE, 1991, p.11).

A cidade transformada em coisa a ser vendida e comprada, tal como a constrói o discurso

do planejamento estratégico, não é apenas uma mercadoria, mas também “e sobretudo, uma

mercadoria de luxo, destinada a um grupo de elite de potenciais compradores: capital

internacional, visitantes e usuários solváveis que escolhem com cautela” (VAINER, 2000, p.

83).

Dessa forma, há nos governantes uma preocupação com a imagem do produto que está

à venda, fazendo dos problemas sociais meros poluidores visuais. A pobreza, então, não é vista

como algo a ser erradicado em vistas a proporcionar qualidade de vida aos cidadãos, mas sim

como um peso:

Os pobres são entorno ou ambiente pela simples razão de que não se

constituem, nem os autóctones, nem os virtuais in1igrames, em demanda

solvável. Em todos os níveis, tanto do ponto de vista concreto (infraestruturas,

subsídios, favores fiscais, apoios institucionais e financeiros de todos os tipos)

quanto do ponto de vista da imagem, não resta dúvida: a mercadoria-cidade

tem um público consumidor muito específico e qualificado (VAINER, 2000,

p. 82).

Dentro desta perspectiva mercadológica, a cultura e o lazer, que, em tese deveriam ser

assegurados como direitos sociais, ganham um novo contorno, consoante assinala Arantes:

[...] como estou procurando demonstrar, veio agravar ainda mais o inchaço

cultural imperante desde que governantes e investidores passaram a desbravar

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uma nova fronteira de acumulação de poder e dinheiro - o negócio das

imagens. O "tudo é cultura" da era que parece ter se inaugurado nos idos de

1960 teria pois se transformado de vez naquilo que venho chamando de

culturalismo de mercado”. De tal forma que a cultura - que nos primórdios da

Era Industrial se cristalizara como esfera autônoma dos valores antimercado -

, ao tornar-se imagem, quer dizer, representação e sua respectiva interpretação

(como sabe qualquer gerente de marketing numa sociedade do espetáculo),

acabou moldando, de um lado, indivíduos (ou coletividades "imaginadas")

que se auto-identificam pelo consumo ostensivo de estilos e lealdade a todo

tipo de marca; de outro, o sistema altamente concentrado dos provedores

desses produtos tão intangíveis quanto fabulosamente lucrativos. Trocado em

miúdos, esse o verdadeiro "poder da identidade"”. (ARANTES, 2000, p. 16)

Dessa forma, como o planejamento estratégico é antes de tudo um empreendimento de

comunicação e promoção, a autora pontua que tal âncora identitária se baseia no que Arantes

denomina de animação cultural. Destarte, o que se verifica em evidência é um produto inédito,

ou seja, a própria cidade, que não se vende.

Arantes ressalta que, para que esta cidade se expanda nessa lógica, é necessário que haja

também uma fabricação de consensos na medida em que conformam as políticas urbanas que

dão livre curso ao seu propósito de expandir a economia local e aumentar a riqueza:

A fabricação de consensos em torno do crescimento a qualquer preço a

essência mesma de toda localização torna-se a peça-chave de uma situação de

mobilização competitiva permanente para a batalha de soma zero com as

cidades concorrentes. Uma fábrica por excelência de ideologias, portanto: do

território, da comunidade, do civismo etc. Mas sobretudo, a fabulação de

senso comum econômico, segundo o qual o crescimento enquanto tal faz

chover empregos. No coração dessas coalizões, a classe rentista de sempre,

hoje novamente na vanguarda dos "movimentos urbanos": incorporadores,

corretores, banqueiros etc., escorados por um séquito de coadjuvantes

igualmente interessados e poderosos, como a mídia, os políticos,

universidades, empresas esportivas, câmaras de comércio e, enfim, nossos

dois personagens desse enredo de estratégias: os planejadores urbanos e os

promotores culturais (ARANTES, 2000, p. 27).

A cultura, cujo consumo na forma de refinamento artístico ostensivo, é a melhor garantia

de que o clima para os negócios é saudável. Para Arantes:

Assim como curadores de museus precisam demonstrar que suas instituições

(ou melhor, organizações) atraem multidões que multiplicam os negócios, dos

gadgets de toda ordem às exposições blockbuster - de preferência, como até

Molotch repara, "anything Cézanne"; o mesmo para universidades, cuja

sobrevivência institucional depende cada vez mais de sua atitude cooperativa

diante do mundo dos negócios etc. (ARANTES, 2000, p. 29)

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tendo em vista os argumentos despendidos no presente artigo, cumpre notar que na

ótica da cidade mercadológica o que se busca é a maior e crescente produtividade,

competitividade e lucratividade, tendo em conta os mercados nacionais, regionais e mundiais.

Henry Léfèbvre, conforme apontado neste estudo, trata de temas bastante relevantes, como a

urbanização, o resultado da industrialização e a propagação do capitalismo em contraposição

ao direito à cidade.

Octávio Ianni, por seu turno, apresenta o neoliberalismo compreende a liberação

crescente e generalizada das atividades econômicas como pré-requisito e fundamento da

organização e funcionamento das mais diversas formas de sociabilidade, compreendendo não

só as empresas, as corporações, os conglomerados, mas também as mais diferentes instituições

sociais. Sob o neoliberalismo reforma-se o Estado, o poder estatal é liberado de todo o

empreendimento econômico ou social que possa interessar ao capital privado nacional e

transnacional. Trata-se de criar o Estado mínimo que apenas fiscaliza e estabelece as regras do

mundo econômico, mas não joga. Tudo isso baseado no pressuposto de que a gestão pública ou

estatal de atividades direta ou indiretamente econômicas é pouco eficaz, ou simplesmente

ineficaz.

A partir desses pressupostos, Léfèbvre traça o perfil da sociedade capitalista com um

novo pensamento da concepção do urbano. O autor entende que a cidade no sistema capitalista

adquiriu dimensões importantes e é o lugar em que circula grande quantidade de capital. Dessa

forma, Léfèbvre faz uma crítica ao Estado alegando que ele próprio reproduz a segregação nas

cidades dando suporte ao próprio sistema vigente na sociedade.

Nesse sentido, a concepção marxista de Estado Moderno indica que este cria

mecanismos de legitimação da classe burguesa, e essa, por sua vez, faz com que o operário se

torne escravo da burguesia, consumindo a sua força de trabalho para produzir mais-valia.

Conclui-se, pois, que não é do interesse do Estado promover o lazer qualificando o

tempo livre de qualidade ao trabalhador e esta situação reflete nas condições do lazer. Do

exposto, verifica-se que, em muitas oportunidades, o Estado atua até mesmo na direção

contrária, promovendo e amplificando as diferenças sociais e culturais e legitimando os

interesses apenas de uma classe.

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