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1 Um mundo sustentado pela escravidão: cultura material e riqueza em Mariana/MG no final do século XVIII 1 Cláudia Eliane P. Marques Martinez 2 Introdução Em 1795, no Alto da Passagem, Termo de Mariana/MG, falecia com seu solene testamento o Reverendo Cônego José Botelho Borges. O seu inventário post-mortem destacou-se, entre os documentos pesquisados, não só pelo valor dos bens listados – quase trinta e três contos de réis – como pela quantidade de terras e lavras minerais que explorava com seus 61 cativos. 3 Outros objetos arrolados na respectiva documentação cartorária chamaram atenção, como os grilhões de ferro, ganchos de pescoço, palmatórias, algemas, cadeados de ferro e o tronco de campanha de ferro com peso de 8 libras, objetos e instrumentos, certamente, utilizados para castigar os africanos e crioulos escravizados. Além de reverendo, cônego, provisor, vigário geral, proprietário de terras e de muitos homens, era também Chantre, que na hierarquia católica correspondia a um título eclesiástico. A palavra “chantre” vem do francês chantre, que significa mestre do coro ou aquele que preside o canto em igreja. Borges era, em síntese, o instrutor que regia a cantoria, declamava salmos e responsórios nas igrejas de Mariana; provavelmente, exercia a mesma função na Capela localizada em sua fazenda. Nesta mesma ermida, havia “nove imagens com seus resplendores”, avaliadas em 31.400 réis. Na cidade de Mariana, o Cônego possuía “uma morada de casas de sobrado citas na rua Nova (...) que partem de baixo com o sobrado do mesmo testador, e da parte de cima com a Dona Maria Ribeira, vistos e avaliados pelo louvados em 650.000 réis”. Nesta mesma propriedade existia, na parte externa, “um quintal com todos os mais pertences” e, no 1 Texto apresentado no 9º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, Florianópolis (UFSC), de 14 a 18 de maio de 2019. Anais completos do evento disponíveis em http://www.escravidaoeliberdade.com.br/. Este trabalho faz parte da pesquisa de pós-doutorado que estou realizando na Universidade Estadual de Campinas, sob a supervisão do Profa. Dra. Leila Mezan Algranti. Trata-se, neste momento, de análises preliminares que serão, ao término do estágio de doutoramento, complementadas e adensadas com outras fontes, documentos e bibliografia especializada. 2 Doutora em História Econômica pela Universidade de São Paulo (USP). Professora no Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História Social – Mestrado, da Universidade Estadual de Londrina. Rodovia Celso Garcia Cid/PR, 445, km 380. Campus Universitário. Londrina (PR). E-mail: [email protected] 3 Inventário e Testamento do Reverendo Cônego e Chantre José Botelho Borges. Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana. Cidade de Mariana, Ano 1795, Códice 014, Auto 0453

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Um mundo sustentado pela escravidão: cultura material e riqueza em Mariana/MG no final do século XVIII1

Cláudia Eliane P. Marques Martinez2

Introdução

Em 1795, no Alto da Passagem, Termo de Mariana/MG, falecia com seu solene testamento o

Reverendo Cônego José Botelho Borges. O seu inventário post-mortem destacou-se, entre os documentos

pesquisados, não só pelo valor dos bens listados – quase trinta e três contos de réis – como pela

quantidade de terras e lavras minerais que explorava com seus 61 cativos.3 Outros objetos arrolados na

respectiva documentação cartorária chamaram atenção, como os grilhões de ferro, ganchos de pescoço,

palmatórias, algemas, cadeados de ferro e o tronco de campanha de ferro com peso de 8 libras, objetos e

instrumentos, certamente, utilizados para castigar os africanos e crioulos escravizados.

Além de reverendo, cônego, provisor, vigário geral, proprietário de terras e de muitos homens, era

também Chantre, que na hierarquia católica correspondia a um título eclesiástico. A palavra “chantre” vem

do francês chantre, que significa mestre do coro ou aquele que preside o canto em igreja. Borges era, em

síntese, o instrutor que regia a cantoria, declamava salmos e responsórios nas igrejas de Mariana;

provavelmente, exercia a mesma função na Capela localizada em sua fazenda. Nesta mesma ermida, havia

“nove imagens com seus resplendores”, avaliadas em 31.400 réis. Na cidade de Mariana, o Cônego possuía

“uma morada de casas de sobrado citas na rua Nova (...) que partem de baixo com o sobrado do mesmo

testador, e da parte de cima com a Dona Maria Ribeira, vistos e avaliados pelo louvados em 650.000 réis”.

Nesta mesma propriedade existia, na parte externa, “um quintal com todos os mais pertences” e, no

1 Texto apresentado no 9º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, Florianópolis (UFSC), de 14 a 18 de maio de 2019. Anais completos do evento disponíveis em http://www.escravidaoeliberdade.com.br/. Este trabalho faz parte da pesquisa de pós-doutorado que estou realizando na Universidade Estadual de Campinas, sob a supervisão do Profa. Dra. Leila Mezan Algranti. Trata-se, neste momento, de análises preliminares que serão, ao término do estágio de doutoramento, complementadas e adensadas com outras fontes, documentos e bibliografia especializada. 2 Doutora em História Econômica pela Universidade de São Paulo (USP). Professora no Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História Social – Mestrado, da Universidade Estadual de Londrina. Rodovia Celso Garcia Cid/PR, 445, km 380. Campus Universitário. Londrina (PR). E-mail: [email protected] 3 Inventário e Testamento do Reverendo Cônego e Chantre José Botelho Borges. Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana. Cidade de Mariana, Ano 1795, Códice 014, Auto 0453

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interior, encontramos “um oratório, três imagens e cinco lâminas, as imagens com croas e resplendores”,

dezenas de imagens de santos, dosséis, cálices e muitos outros objetos que serão posteriormente

analisados neste artigo.

Além do caso do Cônego e Chantre José Botelho Borges4 (1795), selecionamos no Arquivo Histórico

da Casa Setecentista5, em Mariana, o inventário do advogado Dr. Manuel Brás Ferreira6 (1787). Os

indivíduos destacados não serão tratados como exemplares de um contexto, mas como um campo de

análise em que as tensões sociais, os desvios, as regras poderão (ou não) ser identificados, relacionados e,

também, contrapostos à realidade material de então.7 Moradia, vestuário, trabalho, interior doméstico,

religiosidade, produção e circulação; localização, temporalidade, espacialidade e qualificação foram, assim,

estudados em conjunto e dentro do universo de criação, existência, troca e funcionalidade. É preciso

enfatizar que a abordagem da cultura material adotada neste trabalho tem como base principal os estudos

de Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses. Segundo o estudioso,

Por cultura material poderíamos entender aquele segmento do meio físico que é socialmente apropriado pelo homem. Por apropriação social convém pressupor que o homem intervém, modela, dá forma a elementos do meio físico, segundo propósitos e normas culturais. Essa ação, portanto, não é aleatória, casual, individual, mas se alinha conforme padrões, entre os quais se incluem os objetivos e projetos. Assim, o conceito pode tanto abranger artefatos, estruturas, modificações da paisagem, como coisas animadas (uma sebe, um animal doméstico), e, também, o próprio corpo, na medida em que ele é passível desse tipo de manipulação (deformações, mutilações, sinalações) ou, ainda, os seus arranjos espaciais (um desfile militar, uma cerimônia litúrgica). Para analisar, portanto, a cultura material, é preciso situá-la como suporte material, físico, imediatamente concreto, da produção e reprodução da vida social. Conforme esse enquadramento, os artefatos – que constituem, como já afirmado, o principal contingente da cultura material – têm que ser considerados sob duplo aspecto: como produtos e como vetores de relações sociais.8

4 Inventário e Testamento do Reverendo Cônego e Chantre José Botelho Borges. Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana. Cidade de Mariana, Ano 1795, Códice 014, Auto 0453. 5 Parte da documentação do Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana está digitalizada e disponível para os consulentes no site do LAMPEH – Laboratório Multimídia de Pesquisa Histórica: http://www.lampeh.ufv.br/portal/ .O acervo da Casa Setecentista é enorme – 55.000 autos – cobrindo um amplo período cronológico, de 1713 a 1920. Mais detalhes da documentação selecionada e do referido arquivo poderão ser verificados no próximo tópico deste artigo. 6 Inventário e Testamento do Dr. Manuel Brás Ferreira. Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana. Cidade de Mariana, Ano 1787, Códice 114, Auto 2368. 7 A metodologia proposta pela micro-história foi utilizada para a análise das fontes, a formulação dos problemas, a definição dos recortes e do período enfocados aqui. Três autores foram de fundamental importância para a confecção deste trabalho: GRENDI, Edoardo. Repensar a micro-história? In: REVEL, Jacques. Jogos de Escala. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998. p. 259. PESAVENTO, Sandra. O corpo e a alma do mundo: a micro-história e a construção do passado. História Unisinos, v. 8, n. 10, jul/dez, 2004, p. 180. REVEL, Jacques. Jogos de Escala. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998. 8 MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. A cultura material no estudo das sociedades antigas. Revista de História, n. 115, 1983, p. 103-117. Ver também: BORREGO, Maria Aparecida de Menezes. Entre as fazendas da loja e os trastes da casa: os livros de agentes mercantis em São Paulo setecentista. In: ALGRANTI, Leila Mezan. & MEGIANI, Ana Paula.

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Com relação à historiografia mineira, nota-se que a região mineradora embora produtora de ouro,

também se especializou na plantação de alimentos, na criação de animais e na fabricação de tecidos e

queijos.9 A ideia de que a Capitania teria entrado em decadência econômica após o boom aurífero, há

muito, foi refutada pelos estudiosos contemporâneos, principalmente aqueles trabalhos desenvolvidos a

partir das últimas décadas do século XX. Segundo os estudiosos, a crise da atividade mineradora só

acentuou uma tendência que vinha marcando a formação econômica mineira desde a sua instalação.

Tendência essa que permitiu a coexistência simultânea de atividades extrativas – ligadas a uma conjuntura

Atlântica – e aquelas de caráter agropastoris.

Tomando como referencial o mencionado debate historiográfico, propomos (re)pensar algumas

questões relativas à realidade material10 de Mariana, no final do século XVIII, tendo como plataforma de

observação inventários post-mortem e os testamentos das duas personagens já destacadas – um

eclesiástico e um advogado.

Da análise das fontes decorre o problema principal, qual seja: como os objetos e artefatos dos

casos selecionados podem explicar aspectos significativos acerca da sociedade e da economia mineira, do

final do século XVIII. Sociedade e economia pautadas por duas tensões centrais:

(1) a crise do Antigo Regime, circunstância europeia, mas que na América portuguesa, em razão da

presença maciça da escravidão, deu contornos próprios à experiência colonial. Contornos que

particularizaram e determinaram outros significados às práticas e hierarquias das sociedades

do Antigo Regime.11

(Orgs.). O Império por Escrito. Formas de transmissão da cultura letrada no mundo ibérico, séculos XVI-XIX. São Paulo: Alameda, 2009. REDE, Marcelo. História e Cultura Material. In: CARDOSO, Ciro Flamarion. & VAINFAS, Ronaldo. (Orgs.). Novos Domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. 9 O rol de trabalhos que versam sobre esse assunto é enorme. Ver principalmente: PAIVA, Clot i lde Andrade. População e Economia nas Minas Gera is do Século X IX . Tese de Doutorado. São Paulo : FFLCH/USP, 1996 . Ver, também, o primeiro capítulo da tese de doutorado MARTINEZ, Cláudia Eliane Parreiras Marques. Cinzas do Passado: cultura material, riqueza e escravidão no Vale do Paraopeba/MG (1831-1914). Londrina: EDUEL, 2014. 10 Ver o estudo de: JOYCE, Patrick. Materialidad e historia social. Ayer, Madri: 62/2006(2), pp. 73-87. 11 Essa problemática teve como base de apoio o estudo de Silvia Lara. Ver: LARA, Sílvia Hunold. Conectando historiografias: a escravidão africana e o Antigo Regime na América portuguesa. In: BICALHO, Maria Fernanda. FERLINI, Vera Lúcia. Modos de Governar. Ideias e práticas políticas no Império português, século XVI a XIX. São Paulo: Alameda, pp. 21-38, 2005. Sobre o Antigo Regime, ver, principalmente: HESPANHA, Antônio Manuel. Caleidoscópio do Antigo Regime. São Paulo: Alameda, 2012. FRAGOSO, João. Antigo Regime nos Trópicos? Um debate sobre o modelo político do Império colonial português. In: FRAGOSO, João. GOUVEIA. (Org.). Nas tramas das redes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. CARDIM, Pedro. “Administração” e “governo”: uma reflexão sobre o vocabulário do Antigo

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(2) a conjuntura socioeconômica do final do século XVIII, pronunciada por questões externas e

internas, como a queda expressiva da mineração (o que não significou, no caso mineiro,

decadência econômica) e a (re)acomodação das “elites” locais.12

Ao final dessa investigação, ainda em curso, pretendemos revelar não só a cultura material dos

indivíduos estudados, mas, principalmente, como a posse de alguns bens permite problematizar a

circulação - de objetos, culturas, saberes e rituais -, as redes e relações da sociedade colonial com a

Metrópole, bem como demais partes do Império português. Vejamos, nos próximos itens, como essas

problemáticas foram compreendidas e exploradas na documentação investigada.

Inventários post-mortem e testamentos do Arquivo Histórico da Casa Setecentista/Mariana: seleção, amostragem e lacunas

Antes de apresentar e justificar os documentos selecionados, cabe algumas considerações acerca

das pontencialidades de análise e recursos metodológicos contidos (ou não) nas referidas fontes

cartorárias. Diferentemente dos documentos atuais, nesse tipo de fonte cartorária (dos séculos XVI ao XIX)

encontra-se descrito tudo, ou melhor, quase tudo, que existia dentro e fora das moradias urbanas, das

fazendas e daquelas construções situadas nos subúrbios das vilas e cidades. Os inventários têm um padrão

que se repete ao longo de décadas e, com raras exceções, neles se menciona o valor monetário de cada

objeto, animal ou escravo.

Do mesmo modo, relacionam e descrevem todos os bens com adjetivos e informações qualitativas

e quantitativas: “uma mesa velha e pequena, duas xícaras inglesas de asa quebrada, um oratório com seis

imagens, duas estampas, duas coroas e dois resplendores de prata”. Por vezes, trazem ainda a localização

dos objetos no interior da moradia, o que permite conhecer melhor a divisão interna das casas. Os

Regime. In: BICALHO, Maria Fernanda. FERLINI, Vera Lúcia. Modos de Governar. Ideias e práticas políticas no Império português, século XVI a XIX. São Paulo: Alameda, 2005. 12 Para um estudo sobre a problematização do conceito de elite, ver: FERNÁNDES, Máximo García. Governo, elites e competência social: sugestões para um entendimento renovado da história das elites. In: BICALHO, Maria Fernanda. FERLINI, Vera Lúcia. Modos de Governar. Ideias e práticas políticas no Império português, século XVI a XIX. São Paulo: Alameda, 2005.

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inventários post-mortem revelam, ademais, o nível de vida dos diferentes grupos da sociedade.13 A análise

quantitativa e serial permite conhecer em detalhes como os bens materiais estavam alocados nos distintos

estratos sociais. Tal abordagem é de suma importância, porque indica, por exemplo, qual era a condição

socioeconômica dos envolvidos, e não apenas dos personagens selecionados, mas também de seus pares −

homens e mulheres com os quais conviveram no século XVIII.

Além da análise serial, é possível, ainda, estudar casos específicos – microanálises – que

representam, decodificam ou aludem à sociedade e à economia. Empreendemos tal exame quando da

escolha dos documentos do eclesiástico e do advogado aqui em destaque. A descrição dos bens materiais,

artefatos pessoais, objetos de trabalho, escravarias, bem como as “últimas vontades” do testador foram

minuciosamente estudadas. Com o testamento, foi possível, por exemplo, compreender a distribuição dos

bens entre os herdeiros, perceber parte do universo religioso, identificar as irmandades às quais

pertenciam em vida, saber os santos de maior devoção, ter conhecimento do “investimento” em centenas

de missas acertadas para os meses depois do funeral. Questões relativas aos gastos com o estudo dos

filhos, também, puderam ser aferidas, como é o caso do filho do Dr. Manuel Brás Ferreira, que foi para a

Universidade de Coimbra. Como não correspondeu às expectativas do pai, teve como punição a redução da

Terça, no momento da partilha, “a fim de não prejudicar sua única irmã, Maria Valentina Ferreira da Silva,

que cá ficou”.14

A partir dos inventários post-mortem, foi possível ter conhecimento de aspectos minuciosos da

moradia, vestuário, trabalho, lazer, interior doméstico, religiosidade, produção e circulação; localização,

temporalidade, espacialidade e qualificação dos itens listados avaliados pelos louvados, pessoas nomeadas

pelo Estado para avaliar os bens do inventariado.

Uma crítica usualmente apontada pelos especialistas, no entanto, é que este tipo de fonte primária

não abarca toda a sociedade, mas somente aquela parcela que tinha bens a declarar. Difícil precisar a

representatividade social dos inventariados em relação à totalidade da população. Autores franceses, como

13 Para os grupos intermediário da sociedade, ver o estudo de: FERNÁNDES, Máximo García. Cambios y permanências em la cultura material no privilegiada: um mundo complejo. Castilha (y Portugal) a finales del Antiguio Régimen. Revista História. São Paulo, n. 175. 173-202. 2016. 14 Inventário e Testamento do Dr. Manuel Brás Ferreira. Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana. Cidade de Mariana, Ano 1787, Códice 114, Auto 2368.

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Adeline Daumard, apontaram que 5% da população parisiense chegava a fazer um inventário.15 Estudo

realizado para o século XIX, no Vale do Paraopeba/MG - região voltada para a economia de abastecimento

interno -, apontou números bem mais expressivos, quase 30%.16

Embora iremos trabalhar apenas com os dois casos aludidos, fizemos um levantamento do número

de eclesiásticos e advogados encontrados no Arquivo Histórico da Casa Setecentista, como já destacado no

início deste texto. De 1780 a 1808 foram localizados 25 para o primeiro grupo e 07 para os homens de

leis.17 A seleção destas duas categorias não foi aleatória e justifica-se por várias razões. Constituem dois

grupos economicamente poderosos, envolvidos na administração eclesiástica, jurídica e política da

sociedade mineira. Um estudo preliminar da documentação permitiu identificar, até o momento, que, além

de regular os contratos, no caso dos advogados, os dois grupos participavam diretamente da administração

colonial e religiosa, compunham os setores mais afortunados, gozando, assim, de prestígio econômico e

status social.18 Em suma, eram proprietários de terras e lavras minerais, barras de ouro e plantéis de

escravos significativos. Louças e indumentárias sofisticadas, provenientes de várias partes do Império

português, livros (de natureza jurídica, médica, filosófica e literária), joias e imagens sacras atestaram a

circularidade de objetos e ideias entre a América e a Europa do final do Antigo Regime, como podemos

melhor apreciar nos dois tópicos seguintes, dedicados exclusivamente a eles.

Do ruído dos grilhões de ferro à música sacra: a cultura material e os escravos do Reverendo Cônego e Chantre José Botelho Borges, 1795

Embora o inventário seja um documento que se inicia com a morte de um indivíduo, esse tipo de

fonte primária revela aspectos relevantes da existência de homens e mulheres. No caso específico do

Cônego e Chantre, José Botelho Borges, a cultura material, arrolada no documento cartorial, deixou

transparecer não só seus bens privados, mas, também, questões econômicas e sociais que permearam o

final do século XVIII.

15 DAUMARD, Adeline. Cinco aulas de História Social. Tradução de Moema Parente Augel, Aldaísa Novaes Schwebel e Maria Luiza Medeiros Guimarães. Salvador: Centro Editorial e Didático/Universidade Federal da Bahia, 1978. 16 MARTINEZ, op., cit., 2014. 17 Sobre a atuação dos advogados no século XVIII, ver o estudo de: ANTUNES, Álvaro de Araujo. O espelho de cem faces. O universo relacional de um advogado setecentista. Annablume, 2004. 18 Ver FERNÁNDES, op., cit. 2005.

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As “lavras de minas e buracos com todas as terras minerais e suas águas”, o “engenho de socar

pedra e outro engenho de bonir (sic) com sua carpintaria”, a “tenda de ferreiro com bigorna, foles

martelos, tênares ...”, a “morada de casas citas no Alto da Passagem com sua venda e rancho de

Passageiros e seu quintal com seus pastos de um e outro lado e todos os mais pertences”, as “casas de

vivenda coberta de telhas com sua respectiva capela, no Alto do Fundão”, as “várias balanças de pesar

ouro” e mais outros apetrechos revelaram uma propriedade dinâmica, diversificada e economicamente

lucrativa.

As barras de ouro chegaram a representar 32% do patrimônio, alcançando mais de dez contos de

réis. Se essa atividade econômica se conectava ao mercado atlântico, por outro lado, a carpintaria, a tenda

de ferreiro, as centenas de utensílios profissionais - como machados, enxadas, grades de arar a terra,

alavancas, raspadeiras de ferro, picões de ferro, moinhos e carros de bois -, a venda e o rancho de

passageiros ligavam a produção e o trabalho da fazenda ao mercado interno da Capitania. Considerando

que dos 60 escravos, apenas 24 estavam alocados nas terras minerais é possível conjecturar que os 36

restantes se ocupavam com a agricultura, a fabricação de ferramentas e objetos de madeira localizados,

respectivamente, na tenda de ferreiro e na carpintaria da propriedade.

Outra atividade vantajosa era o empréstimo de dinheiro. Foram localizadas 37 pessoas que deviam

alguma cifra a José Botelho Borges. Até o momento, não foi possível identificar com precisão quem eram os

devedores. No entanto, presume-se que tais créditos - a terceira maior fração do patrimônio arrolado,

18,9% -, deveriam estabelecer relações de dependências, alimentar vínculos sociais, conformar, enfim, uma

rede de poder em torno da figura do Cônego.19

O Gráfico 1 demonstra que a escravaria arregimentava 15,1% do total de bens arrolados. Dos 61

escravos, apenas uma mulher foi encontrada, “Ana Angola, de idade 20 anos que foi vista e avaliada pelos

louvados em 80.000 réis”. Como já apontado pela historiografia, os homens eram mais caros e utilizados

majoritariamente nas atividades da lavoura e da mineração. Cavalos, gados e porcos não foram descritos

no inventário, apenas “três galinhas, dois galos e dois perus” avaliados em 1.200 réis foram arrolados.

19 Em razão do estágio atual da pesquisa não pudemos avançar as investigações a este respeito.

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Gráfico 1: Distribuição dos bens de José Botelho Borges, 1795

Fonte: Inventários post-mortem, Arquivo Histórico da Casa Setecentista, Mariana.

Dentro da moradia, encontramos quase duas centenas de livros, o que sugere certa instrução.

Entre os exemplares guardados nas dezenas de caixas, canastras, armários e na “estante avaliada em 450

réis” destacam-se: “Constituição do Bispado da Bahia hum volume”; “Aforismos Moraes hum volume”;

“Ordenações do Reino”; “Sermões de Gouvea”; “Doze volumes do Padre Vieira”, “Quatro volumes do Padre

Gama”; “Quatro volumes do Padre Reis”, “Um volume da Vida de Dom João Primeiro”; “Ordenações do

Reino em três” e um volume da “Vanguarda de Prática Judicial em bom uso”.

Iluminado pelos “dois castiçais de prata”, sentado na “poltrona de jacarandá com pés torneados”, é

possível “imaginar”20 José Botelho lendo os sermões do Padre Vieira 21 e outros tantos tomos da biblioteca.

Infelizmente ainda não localizamos livros sobre músicas e cantos que indicassem o aprimoramento na arte

20 Como aponta os estudiosos, não é possível afirmar que os livros encontrados tivessem sido lidos pelos inventariados, mas o simples fato de possuir tal artefato os diferenciava da maioria absoluta de analfabetos e desprovidos de quaisquer bens materiais. Ver ALGRANTI, Leila Mezan. “Bebidas dos deuses”: técnicas de fabricação e utilidades do chocolate no império português (séculos XVI-XIX). In: ALGRANTI, Leila Mezan. & MEGIANI, Ana Paula. (Orgs.). O Império por Escrito. Formas de transmissão da cultura letrada no mundo ibérico, séculos XVI-XIX. São Paulo: Alameda, 2009. Ver, também, ANTUNES, op. cit., 2004. 21 Padre Antônio Vieira era conhecido, já no século XVII, por seus famosos sermões, por justificar a escravidão africana e condenar o trabalho compulsório dos indígenas na América portuguesa. Ver: VAINFAS, Ronaldo. Antônio Vieira. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

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da voz, justificando, assim, o título eclesiástico conferido, o de Chantre. Pode ser que orientasse sua

cantoria por meio dos missais; esses sim localizados em seu inventário. Contudo, não se pode descartar

totalmente a possibilidade de, entre as dezenas de autores listados, alguns deles referirem-se ao universo

da música. Precisamos avançar a pesquisa para ter mais clareza sobre essa questão.

Como um homem do seu tempo, o Reverendo não fugiu à regra social. Objetos de castigo/tortura

eram aplicados aos escravos na lida diária, ou esporádica (?), como denota os itens abaixo descritos:

Dois grilhões de ferro com peso de 16 libras, dois ganchos de pescoço, seis colares de ferro com peso de 8 libas e meia, um tronco de campanha de ferro com peso de 18 libras, 8 cadeados de ferro com peso de 16 libras, 8 colares de ferro com peso de 8 libras e meia, 2 algemas de ferro com peso de 2 libras e 4 quartas, 1 gancho de pescoço com peso de 3 libras, 11 cadeados de ferro com peso de 16 libras.22

Fabricados em ferro, provavelmente, na sua “Tenda de Ferreiro avaliada em 76.800 réis”, os

referidos artefatos sinistros (aos olhos contemporâneos), pela qualidade do material e pela quantidade,

representaram 0,1% do patrimônio total, conforme o Gráfico 1 demonstra.

Para aliviar as tensões de uma escravaria majoritariamente masculina, a Capela da Fazenda no Alto

do Fundão, onde residia boa parte do plantel, não descuidou do decoro. Foram localizados “dois cálices,

um dossel com uma imagem de Santo Cristo e uma cruz de esmalte”, algumas imagens sacras a exemplo da

“Nossa Senhora da Conceição com sua coroa de ouro”, do “Senhor crucificado de marfim com sua diadema

e título de prata” e das “imagens de São João Marcos, Nossa Senhora Santana e outra de Santo Antônio”.

Na mesma Capela, chama atenção, ainda, a identificação de “uma caixa de presépio com seu vidro

e três imagens, uma de Nossa Senhora do Rosário, outra de Santo Elesbão e outra de Santa Efigênia”. Não é

coincidência que os três santos aludidos fossem negro(a)s e que, no período escravista colonial, regeram e

comandaram as irmandades de boa parcela dos cativos, como já apontado por outros estudiosos.23

Se grilhões de ferro, ganchos de pescoço e chicotes serviam para punir e obrigar os escravos ao

trabalho compulsório, era por meio da espiritualidade que as tensões, muitas vezes, eram arrefecidas.

Tensões e conflitos que podiam ser camuflados na adoração de santos católicos, que pouco tinham a ver

22 Inventário e Testamento do Reverendo Cônego e Chantre José Botelho Borges. Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana. Cidade de Mariana, Ano 1795, Códice 014, Auto 0453. 23 BOSCHI, Caio César, Os leigos e o poder: irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais. São Paulo: Ática, 1986.

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com suas raízes culturais, ou por meio de danças e rituais de origem africana, manifestados nas senzalas e

nos poucos espaços de sociabilidades concedidos a eles.

Paralelamente ao mundo do trabalho compulsório e das supostas manifestações religiosas na

Fazenda do Alto do Fundão, uma cultura material circundada de livros, castiçais de prata e móveis

sofisticados tornava o cotidiano mais confortável na casa citadina de Borges. Tudo indica que no espaço

urbano o luxo se manifestou mais evidentemente que aquele encontrado na zona rural, lugar destinado à

mineração e ao trabalho pesado dos escravos. Na casa assobrada, localizada na rua Nova, “cortinas de

alcova de riscado, toalhas de pano de linho com renda, colcha de damasco amarelo forrada de tafetá

carmesim” e dezenas de outros elementos do cotidiano, descritos com suas respectivas cores, funções,

origens e categorias, corroboram com a hipótese levantada.

Percebe-se pelas cores (verde, roxo, branco, vermelho e preto), pela origem (Porto, Lisboa,

Guimarães e produtos de procedência asiática) e pela especialidade do uso (toalhas de algodão de águas

mãos, guardanapos, casacas de droguetes, capa magna com sua murça, xambres de veludo vermelho,

meias, ceroulas e sapatos) rituais e etiquetas característicos da sociedade do Antigo Regime. Conforme

Elias nos alerta:

Numa sociedade em que cada manifestação pessoal tem um valor socialmente representativo, os esforços em busca de prestígio e ostentação por parte das camadas mais altas constituem uma necessidade de que não se pode fugir. (...) A exigência de se destacar, de se diferenciar dos que não fazem parte daquele grupo social, de evidenciar socialmente, encontra sua expressão linguística em conceitos como ‘valor’, ‘consideração’, ‘distinção’ (...).24

Na “mesa de jacarandá ovada com duas gavetas e fechaduras sem chave” circundada por uma

“dúzia de cadeiras de campanha de jacarandá vermelhas” o Cônego Chantre devia se sentar todas as

noites. Os alimentos e bebidas eram-lhe servidos em utensílios como “bules, xicolateiras, terrinas, pratos

de louça, tigelas, xícaras e garrafas de vidro”, acompanhados de colheres, garfos e facas de prata. Lá na

cozinha, Ana Angola, certamente, preparava os alimentos nas “gamelas, tachos de cobre e bacias de

arames”, cozinhava os alimentos nas “duas trempes” e processava os grãos nos “almofarizes e pilões”;

objetos esses descritos literalmente na documentação em análise.

24 ELIAS, Norbert. A sociedade de Corte. Investigação sobre a sociedade da realeza e da aristocracia de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. P. 83 e 84.

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Enfim, a cultura material descortinada do inventário de José Botelho Borges deixou em evidência

uma realidade material balizada pela forte presença da mão de obra escrava. Por outro lado, observou-se

um estilo de vida sofisticado e luxuoso que definia o padre como membro privilegiado daquela sociedade.

Sociedade essa marcada por traços e resquícios do Antigo Regime, identificados por meio da indumentária,

das cores dos tecidos, da biblioteca, da procedência e tipologia dos objetos e artefatos, como se pôde

denotar nesse estudo preliminar.

Circulação de bens, homens e ideias entre a Colônia e o Império português: do sobrado e outros objetos do Dr. Manuel Braz Ferreira, 1787

No dia 28 de agosto de 1787, o tabelião José Pereira Gonçalves esteve na casa do advogado Dr.

Manuel Brás Ferreira para dar procedência ao seu testamento. Ali chegando, Gonçalves “achei(ou) ao dito

testador enfermo de cama, mas em seu perfeito juízo segundo o parecer de mim tabelião e das

testemunhas adiante nomeadas...”.25 Brás pediu para que, depois de seu falecimento, rezassem por ele

5.000 missas na igreja da freguesia de Condeixa, local onde havia nascido, em Portugal. Ordenou que seu

“corpo fosse envolto no hábito da Ordem Terceira da Penitência de que sou[era] indigno Irmão e que fosse

depositado na minha[sua] matriz ....”, na cidade de Mariana.

O sobrado construído pelo advogado, localizado na rua Direita (ver imagem 1), conservou a

arquitetura do século XVIII e hoje abriga o Arquivo Histórico da Casa Setecentista e a sede regional do

Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). No ano de 2006, através do programa

Novelis, em parceria com o Escritório Técnico do IPHAN, em Mariana, foi realizada pesquisa arqueológica

no quintal do referido sobrado. Nesta ocasião, os estudiosos identificaram as estruturas de distribuição de

água, pavimentos antigos, além de uma complexa cultura material. Foram encontrados fragmentos de

louças estrangeiras e nacionais, metais, pétreos e vidros. A arqueóloga Maria Cristina Seabra Martins,

coordenadora do projeto de prospecção, nos informou que, à época da pesquisa, os pesquisadores

puderam localizar também vários fragmentos de cerâmica Saramenha - técnica de origem portuguesa

introduzida e adaptada em algumas cidades mineiras, como é o caso de Mariana e Ouro Preto.

25 Inventário e Testamento do Dr. Manuel Brás Ferreira. Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana. Cidade de Mariana, Ano 1787, Códice 114, Auto 2368.

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No inventário de 1787, quase todos os utensílios domésticos arrolados pelo escrivão possuíam

algum metal sofisticado, como as duas dúzias de colheres, de facas e de garfos com cabo de prata avaliados

pelos louvados em 130.500 réis; preço considerável para se comprar, por exemplo, dois escravos do sexo

masculino. Não encontramos louças e objetos em vidros que pudessem se reportar aos fragmentos

arqueológicos, mas pudemos visitar o sobrado, caminhar sobre os pisos, vasculhar os dois andares, o

quintal e o jardim localizado ao fundo da moradia setecentista. Desta forma, a relação presente e passado

foi problematizada por meio da descrição das fontes primárias e da arquitetura remanescente. A partir do

exemplar arquitetônico e dos documentos cartoriais, conjecturamos, então, como deveria ser a vida

material de homens e mulheres do passado colonial. O “boyaõ de louça da Índia”, a prataria vinda da

Metrópole, a colcha de damasco, as quatro bengalas de castão de ouro e prata, o chicote com cabo e anéis

de prata, sinalizam não apenas um estilo luxuoso, mas um trânsito de mercadorias entre as várias partes do

Império lusitano.26

As propriedades que Brás Ferreira possuía no norte de Portugal e o fato de ter enviado o filho para

estudar Cânones na Universidade de Coimbra sugerem uma relação próxima com a Metrópole. No entanto,

o primogênito, Manuel Brás Ferreira, parece não ter correspondido às expectativas do pai que, em

testamento, revelou:

Declaro haver gasto com meu filho Manoel Bras depois que foy para Portugal couza de quatro mil cruzados ou o que na rialidade constar dos recibos e remeças que são constantes a minha e pello ditto meu filho naõ fazer a bom uzo que devera do mesmo dinheiro assim o declaro para com elle e mais que despender Segundo as Ordens e assistências que [retenho] estabelecido no mesmo Reino vir a Colaçaõ e naõ prejudicar a terceiro e emfim por comfiar da honra e bondade de minha mulher senaõ se digo esquecera do mesmo filho afim de que este se fassa e ponha em estado de homem Como sempre dezejei Somente authorizo a minha molher para a este respeito obrar o que for necessario a intender justo &.ª Declaro que os bens que passou assim moveis Como [salmoventes] e de rais existentes nesta america bem como algum dinheiro prata creditos e execuçoens e dividas constantes de Rais e outras declaraçoens saõ todas notorias a minha molher de quem assim confio toda a boa Recadaçaõ qual e fiel ademenistraçaõ e ainda a descripçaõ judicial quando esta Se fassa necessaria e Sa lembro que tambem pessao em Portugal na minha freguezia e outras vezinhas alguns bens de rais e moveis constantes da Notta do Tabeliaõ da Villa de Vernaje em o mesmo Reinno das quaes he tambem Ciente a dita minha mulher.27

26 ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O Trato dos Viventes: a formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Cia. das Letras, 2000. 27 Testamento do Dr. Manuel Brás Ferreira. Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana. Cidade de Mariana, Ano 1787, Códice 114, Auto 2368. Mantivemos a grafia da época por se tratar de um trecho mais extenso do testamento, as demais citações pontuais optamos por atualizar o português.

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Imagem 1: Sobrado que pertenceu a Manuel Brás Ferreira, na segunda metade do século XVIII

Fonte:https://media-cdn.tripadvisor.com/media/photo-casa-setecentista.jpg

Não sabemos se Manuel filho chegou a concluir os estudos, ou não, na Universidade de Coimbra,

mas sabemos, por exemplo, que não fez bom uso do dinheiro concedido para a sua estadia na Metrópole.

A documentação revela, também, que o pai, decepcionado que estava no leito de morte, pediu à mulher,

Dona Antônia Luiza da Silva Leal, que “esquecera do mesmo filho a fim de que este se faça e se ponha em

estado de homem”.

Analisando o Gráfico 2, observamos que a centena de livros correspondia a 1,2% do patrimônio

familiar. Considerando que a soma dos bens chegou 12:583.373 contos de réis, o valor destinado à

biblioteca não era desprezível. As joias atingiram a cifra de 7,3%, os utensílios domésticos, 3,0%, e as

dívidas ativas, 1,1%. Além de regular contratos e executar demais serviços jurídicos, o inventário de Manuel

Brás Ferreira sinaliza que o advogado procurou diversificar suas atividades e rendas.28 Dos sete escravos

28 Meandros da história que envolve o Dr. Manuel Brás Ferreira ainda precisam de mais aprofundamento. Alguns anos depois do seu falecimento, a viúva, Dona Antônia Luiza da Silva Leal, casou-se com o Dr. Antônio da Silva e Souza, o mesmo advogado nomeado para a avaliação dos livros de Brás. Ver o documento: Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana. Cidade de Mariana, Ano 1801, Códice 092, Auto 1917.

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(14,3% do patrimônio) que possuía, quatro eram do sexo masculino e cinco deles africanos. Além da “casa

assobrada coberta de telhas, em frente ao Largo da Sé com seu quintal e todos os seus pertences, avaliada

em 1:800.000 contos de réis”, era proprietário “da quarta parte de uma fazenda cita no Batatal freguesia

do Sumidouro, termo desta Cidade”.29 É provável que o ouro – 67,4% da fortuna avaliada – localizado na

documentação analisada tenha sido explorado e extraído da referida fazenda.

Gráfico 2: Distribuição dos bens de Manuel Brás Ferreira, 1787

Fonte: Inventários post-mortem, Arquivo Histórico da Casa Setecentista, Mariana

********

Para efeito de conclusão, podemos afirmar que ambas as personagens destacadas neste estudo - o

advogado Dr. Manuel Brás Ferreira e o Cônego e Chantre José Botelho Borges -, estiveram envolvidas com

o mercado externo e com atividades relacionadas ao abastecimento interno da Capitania. Mais do que

conexões econômicas, percebemos redes e relações socioculturais alicerçadas não só pela inexorável

condição colonial, mas por ideias e preceitos vinculados ao Antigo Regime. Enfim, notou-se uma acentuada

29 Testamento do Dr. Manuel Brás Ferreira. Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana. Cidade de Mariana, Ano 1787, Códice 114, Auto 2368.

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transação e circulação de objetos e pessoas escravizadas30; fato esse que entrelaçava, concomitantemente,

a América colonial, Portugal, África e demais domínios do Império lusitano.

Fontes

Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana/MG – inventários post-mortem (1780 a 1800). - Inventário e Testamento do Reverendo Cônego e Chantre José Botelho Borges. Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana. Cidade de Mariana, Ano 1795, Códice 014, Auto 0453. - Inventário e Testamento do Dr. Manuel Brás Ferreira. Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana. Cidade de Mariana, Ano 1787, Códice 114, Auto 2368. Laboratório Multimídia de Pesquisa Histórica (LAMPEH), da Universidade Federal de Viçosa/MG: inventários e testamentos digitalizados e disponibilizados pelo site: http://www.lampeh.ufv.br/portal/

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ELIAS, Norbert. A sociedade de Corte. Investigação sobre a sociedade da realeza e da aristocracia de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

30 Dos 61 escravos localizados no inventário do Chantre, 55 tinham nomes que sinalizam nações africanas como benguela, mina, angola, etc.. E dos 07 escravos do advogado, 05 deles eram também africanos.

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