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LEIALDO PULZ

UM MUNDO CHAMADO RÚSSIA

Explorando o interior e a alma de um país.

Page 4: Um mundo chamado Rússia

SUMÁRIO

SUMÁRIO..........................................................................................4

INTRODUÇÃO..................................................................................6

ANTES DE TUDO…........................................................................11

VENTO DE MUDANÇAS...............................................................15

KRASNODAR 40 GRAUS..............................................................22

PRIMEIRAS IMPRESSÕES: VIAGEM AO PASSADO.................28

PRIMEIRO INVERNO.....................................................................37

MEDICINA.......................................................................................48

SISTEMA DE EDUCAÇÃO RUSSO...............................................58

OS CONTRASTES...........................................................................75

CURIOSIDADES CULTURAIS......................................................84

A ALMA RUSSA: DO MISTICISMO AO CRISTIANISMO..........97

O INTERIOR DA RÚSSIA.............................................................110

Page 5: Um mundo chamado Rússia

DOLMENS E KURGANS..............................................................132

RUSSOS OU COSSACOS: O SUL DA RÚSSIA..........................148

O CÁUCASO NORTE: DE SOCHI ATÉ NALCHIK....................158

POLO NORTE: SALEKHARD......................................................197

SALEKHARD, O RETORNO........................................................222

STALINGRADO.............................................................................248

MOSCOU: CAPITAL DE TODAS AS RÚSSIAS.........................260

EXPERIÊNCIAS FUTEBOLÍSTICAS..........................................273

A VOLTA PARA CASA..................................................................288

CONCLUSÃO................................................................................295

CONTATOS....................................................................................298

FOTOS............................................................................................299

Page 6: Um mundo chamado Rússia

INTRODUÇÃO

A Rússia é o maior país do mundo em extensão territorial. Sua fundação remonta ao IX século, mas por aquelas terras sempre vagaram contingentes humanos deste uma época já esquecida na escuridão dos tempos. A região foi palco de revoluções, conquistas, guerras, dramas e paixões eternizadas pela História.

Mas sempre parece que aquele gigante se mostra aos olhos do mundo de uma forma enigmática, fria e tenebrosa. A Rússia é um mistério que muitos tentaram e ainda tentam desvendar.

Nossa proposta neste livro não é chegarmos a uma resposta final sobre todas as questões que envolvem este povo. Gostaríamos de contribuir, mesmo que de forma modesta, para que nossos leitores descubram um pouco mais das “terras enevoadas e de trevas nos limites do mundo, às

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margens do Oceano”, como descreveu Homero em sua famosa Odisseia ao falar daquela região...

Ao olharmos a literatura disponível em nossa língua, podemos perceber uma grande lacuna de livros sobre o tema se compararmos ao tamanho da influência e representação da Rússia ao longo da História.

Mas gostaria de citar aqui o caso de alguns livros escritos por brasileiros que lá estiveram. O livro Os Caminhos da Eterna Rússia de Tite De Lamare (1997) foi importante pelo fato de ter sido escrito por uma embaixatriz brasileira, numa envolvente visão da História russa, com todas as suas nuances sócio-políticas e religiosas. Ainda poderia citar o livro de Angelo Segrillo, que morou na URSS por alguns anos e posteriormente na Rússia, fazendo um trabalho muito semelhante ao da embaixatriz em seu livro Os Russos. Mais recentemente foi lançado o livro Com Vista para o Kremlin, da jornalista Vivian Oswald, que morou em Moscou entre 2007-2009, com um enfoque na Rússia atual, suas questões políticas e econômicas. Ainda podemos citar Lágrimas na chuva de Sergio Faraco, que conta sua experiência pessoal na URSS nos anos de 1960.

Tenho que reconhecer, entretanto, que ao ler estes livros, senti a falta de um olhar mais descompromissado com sequências históricas (apesar

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de eu ser um historiador), ou mesmo de um desapego à política e a assuntos da aristocracia e dos altos escalões. Percebi que pouco ou quase nada era dito do ponto de vista do povo em si, ou mesmo da vida cotidiana do interior daquele que é o maior país do mundo. Notei que esta lacuna poderia ser preenchida, de alguma forma pelas nossas experiências de vida lá.

Moramos numa cidade que ficava longe dos grandes centros como Moscou e São Petersburgo. Estávamos mais deslocados para o sul, onde a vida passava num ritmo mais cadenciado e provinciano. Apesar de Krasnodar ser a capital do estado com o mesmo nome e ter quase um milhão de habitantes, muitos que residem ali são oriundos de lugares isolados, quase perdidos no mapa do Leste Europeu, Cáucaso ou da Ásia Central. As mais de 70 etnias representadas em Krasnodar dão o tamanho da multicolorida sociedade local.

O desejo neste livro era buscar um olhar mais objetivo, da vida cotidiana e das dificuldades, alegrias, orgulhos de um povo que não se representa pelos empresários ou cúpula política de Moscou. De certa forma, buscamos trazer para o leitor um pequeno pedaço da alma russa, vista do enfoque de brasileiros que lá estiveram.

Tentar reproduzir nestas páginas nossa vida na Rússia é sim, uma maneira de não deixar com que o

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tempo apague essas experiências que fazem agora parte de nossa história como família e como indivíduos. Queremos reproduzir aqui os fatos da forma mais vívida possível, transmitindo na medida do possível as emoções pela qual passamos.

Nossa viagem levará o leitor a fatos históricos que servirão de base para elucidar algum conceito, uma visão de mundo, algum aspecto da alma russa. Somos em grande parte fruto de nossa história e da de outros. Não há como nos separar do aspecto histórico! E especialmente viver na Rússia é deparar-se constantemente com a História.

Mas de igual forma passearemos pelo interior russo, de cidades e vilarejos desconhecidos e esquecidos, cruzaremos o país de sul ao norte numa viagem de trem, atingiremos a região polar, brincaremos no frio de trinta graus negativos, entraremos em regiões muçulmanas, encontraremos cidades de mais de 2600 anos, quase congelaremos no inverno russo, e nos queimaremos no verão abrasador. Enfim, uma viagem pela Rússia como você talvez nunca tenha visto!

Quando fizermos nas páginas seguintes uma análise cultural, ou contarmos alguma situação vivida por nós, não estaremos fazendo um julgamento de se isto ou aquilo é certo ou errado, mas apenas colocaremos fatos e eventualmente faremos

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comparações apenas com a intenção de dar ao leitor uma ideia mais específica do tema abordado. Não existem culturas melhores ou piores, mas apenas culturas diferentes, e este é o objetivo neste livro, deixar diante do leitor as diferenças e semelhanças entre a cultura destes dois países, Brasil e Rússia, sob o ponto de vista de brasileiros que lá moraram.

Tentamos deixar o livro com uma leitura leve, sem compromisso com estilos ou estruturas rígidas. Buscamos apenas manter os capítulos com tamanhos iguais para não sobrecarregar um assunto e deixar outros com menos conteúdo. Os capítulos são independentes e podem até ser lidos de forma aleatória sem comprometer a compreensão do leitor.

Assim, convido a todos para embarcar nesta viagem para o interior da Rússia, e desfrutar de uma leitura clara e objetiva, mas sem dúvida, totalmente passional!

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ANTES DE TUDO…

Quando era ainda adolescente, folheei os primeiros manuais de língua russa, pronunciei as primeiras palavras em russo (da, niet, tavarish,...). Foram anos colhendo informações que chegavam esparsas pelos noticiários da televisão, ou notícias de rádio e jornal. Quantas horas teriam sido dedicadas a escutar estações de rádio que transmitiam em russo pelas OC (Ondas Curtas). Ainda tenho algumas cartas que recebi da Rádio Central de Moscou, em português “estrangeiro”, ou russificado, diretamente da própria emissora situada na capital russa (que naquele tempo ainda era soviética).

Naquela época, nos anos 80, felizmente, manter algum vínculo com o gigante soviético já não representava um perigo. A guerra fria estava dando suas últimas respiradas, o fantasma do holocausto

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comunista havia passado, as previsões dos profetas apocalípticos não se cumpriram e a policia tinha outras coisas a fazer do que rastrear “subversivos políticos”.

Os anos que se seguiram aos eventos que protagonizaram do fim da União Soviética, como o pouso do pequeno avião alemão em plena Praça Vermelha (1987) e a queda do muro de Berlim (1989), foram de euforia e instabilidade em toda aquela região. Muitos saudavam a liberdade que estava chegando, mas outros a viam com desconfiança, típica dos russos. Grande parte da população se via traída e enganada por longos anos do regime socialista. Outros, que viveram o auge soviético, choravam o desmantelamento eminente de seu país, a URSS.

No ocidente, nesta época, começamos a conhecer um pouco mais daquele país. Mais precisamente, no Brasil, o produto russo que apareceu (além da vodca, é claro!), foi o Lada. Naqueles tempos, as instabilidades políticas eram comuns em ambos os lados do Oceano. Foi precisamente em 1990, que o então presidente Fernando Collor autorizou a importação desta marca para o Brasil. Os preços baixos das unidades impulsionaram muitos a comprar aqueles modelos soviéticos, apesar do design já ser considerado ultrapassado. Este fator fez com que a empresa

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perdesse terreno em solo brasileiro.E a questão do design pareceu-me ser um dos

fatores que mais chama a atenção nos produtos que eram produzidos por lá. Não eram somente os carros que tinham a aparência ultrapassada, mas em geral, tudo que era feito pela indústria daquele país, tinha sérios problemas nesta área. Disto pude me convencer in loco.

Foi em 2002 que eu e minha esposa fomos pela primeira vez à Rússia, numa espécie de reconhecimento de campo, quando ficamos um mês. Naquela oportunidade, entramos no país pelo Sheremetovo. O aeroporto era ainda do tempo soviético, antigo, banheiros sujos, com máquinas velhas e nem sempre funcionando. Na migração, as cabines não tinham iluminação direito, pois algumas fluorescentes estavam queimadas ou ausentes. A fila para estrangeiros era mais demorada e sempre havia um guarda com um uniforme verde-oliva passeando entre os passageiros, fumando, e olhando minuciosamente cada pessoa (acho que era uma espécie de raio-X que existia por detrás daquele óculos). Parecia que seríamos todos pegos e levados para um caminhão ou vagão de trem e enviados para algum lugar na Sibéria!

Mas passado aquele momento de intimidação, fomos pegar nossas malas, numa esteira que

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honestamente eu estava torcendo para que funcionasse, ou que não arrebentasse! Os carrinhos para levar as malas eram alugados. Caso não quisesse pagar, a pessoa podia tranquilamente levar todas as malas na mão.

Aquele mês não foi algo realmente empolgante. Creio que o mais positivo, neste sentido, foi conhecer a Praça Vermelha. Esta sim, magnífica e bela. Aliás, como um todo, Moscou é maravilhosa, com seus parques, metrô e as igrejas ortodoxas em todos os lugares. Mas sobre isto falaremos mais adiante.

Neste mês ainda, visitamos o sul do país, onde provavelmente iríamos morar dali a algum tempo. E o interior do país, como bem se sabe, é algo absolutamente distinto das grandes metrópoles.

Aquele primeiro contato passou rápido, e levamos muitas impressões daquela experiência. Mas os nossos caminhos anos depois ainda iriam cruzar as estepes russas mais uma vez…

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VENTO DE MUDANÇAS

Lembro-me, ainda com certo grau de detalhes, de estar

olhando pela janela do avião e observando as nuvens lá fora. O avião

descia lentamente, dançando entre elas, numa espécie de balé russo.

Naqueles momentos que antecediam a chegada ao aeroporto

Domodedovo, em Moscou, pensei nos anos de preparo para estar ali,

prestes a encarar anos de vida num dos países mais enigmáticos do

mundo.

Mas lá estávamos nós naquele avião. Sim, eu estava com

minha esposa, porém desta vez estávamos com nossas duas filhas,

que tinham na época 1 e 5 anos. Minha esposa mal sabia algumas

palavras em russo, e nossas filhas, logicamente não tinham nenhum

conhecimento da língua. Toda nossa vida e bens materiais estavam

restringidos em sete malas no compartimento de bagagens, e alguns

dólares que carregávamos.

Lembro-me que ao chegarmos no Domodedovo, tive a

primeira boa impressão da nova Rússia. O aeroporto era mais

moderno do que o Sheremetovo, o outro aeroporto internacional da

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capital. Por isto, passei a amar o Domodedovo, mais que o

Sheremetovo e o Vnukovo, os outros aeroportos internacionais da

capital russa! Havia sempre carrinhos de malas à vontade. A esteira

funcionava como em qualquer aeroporto que se preze. Os soldados

de verde-oliva com seus óculos foram dispensados, e já existia uma

iluminação aceitável nas cabines da migração. Naqueles três anos,

parece que muita coisa mudou!

O país como um todo havia entrado numa era de

modernização. A própria capital estava em franca mudança. Moscou

ficara mais colorida, mais alegre e jovial. Nos próximos anos que

viveríamos na Rússia, ouviríamos as histórias de outros estrangeiros,

que chegaram na década de 90, contando todas as mudanças que

desde então vinham ocorrendo a passos largos no país. Eram

histórias de quando a Rússia ainda saia de um regime socialista e se

aventurava num sistema capitalista, um capitalismo à sua moda é

claro!

As particularidades deste sistema capitalista russo se davam

por conta de toda sua história como nação. A Rússia viveu sob a

autoridade dos príncipes (knyaz), num sistema feudal até a chegada

dos mongóis no século XIII. Por dois séculos permaneceu sobre o

“jugo” da “Horda de Ouro”, um modelo de subjugação adotado pelos

mongóis sobre toda a extensão territorial russa por eles controlada,

que mantinha o sistema de servidão especialmente para os

camponeses.

Com a derrota dos mongóis e a chegada da era dos Czares

(séc. XV), o país foi unificado e começou a fase de expansão, que

iria originar toda a imensidão territorial que hoje é a Rússia, com 1/6

Page 17: Um mundo chamado Rússia

das terras emersas do mundo. Em todos estes períodos, aquela região

viveu num sistema econômico que poderíamos classificar como

Feudal.

Porém, uma característica marcante do sistema social russo

era a mir. Certamente influenciada pela severidade do clima, e por

uma compreensão da necessidade de solidariedade com o objetivo de

sobrevivência, este povo eslavo unia-se em comunidades, que viria a

servir de modelo para os revolucionários do século XX. Marx, certa

vez teria dito que a construção do comunismo só seria inicialmente

possível num país como a Rússia. Não é à toa que décadas depois

deste pensamento ser pronunciado, a revolução russa traria ao mundo

uma nova proposta de estruturação econômica e social.

Mas o país vivera um capitalismo antes de chegar aos

caminhos socialistas. Entre 1861 e a revolução russa, o país foi

iniciado no sistema que estava em fase desenvolvida, tanto na

Europa, quanto nos Estados Unidos. O ano de 1861 foi importante,

pois naquela data o país colocou em vigor uma lei que dava aos

camponeses uma liberdade nunca vista até então, a chamada Lei dos

camponeses. Uma luta de décadas para aumentar o direito dos

trabalhadores do campo havia chegado ao seu objetivo. Esta Lei

pode ser comparada, tanto nos pontos positivos quanto nos

negativos, com a importância econômica e social da Lei da libertação

dos escravos no Brasil em 1888.

Foram promulgadas várias reformas com o intuito de colocar

o país entre as grandes nações industrializadas do Ocidente. Por fim,

a Rússia estava pronta para o desafio de entrar no mercado mundial.

Foi a época das grandes expedições, inaugurações de estradas de

Page 18: Um mundo chamado Rússia

ferro, como a Transiberiana, a mais longa linha do mundo, unindo

Moscou à Vladivostok, no mar do Japão. As indústrias começavam a

se instalar, e grandes fluxos de comércio com o mundo iam se

estabelecendo.

Mas a riqueza que estava sendo gerada não chegava ao

trabalhador comum. E esta pressão foi aumentando cada vez mais,

até chegarmos ao início do século XX. Apesar da devoção dos russos

ao seu Czar, sustentada em grande parte pela Igreja Ortodoxa Russa,

o povo foi persuadido pelas promessas de igualdade e prosperidade

comum. Para isto, muito valeu aos revolucionários a base ideológica

contida na concepção da mir.

Depois de conturbadas reviravoltas no cenário político, em

1917, os bolcheviques tomam o poder, sendo liderados por Lênin. O

país novamente estava entrando num processo de isolamento com

relação ao Ocidente, fato nada novo na sua História, pois a Rússia

sempre oscilou entre o caminho da ocidentalização e a

“russificação”.

Os anos que se seguiram à revolução bolchevique, com uma

guerra civil entre o exército bolchevique (Exército Vermelho) e os

contra-revolucionários (Exército Branco, apoiado pelas nações

ocidentais), levaram o país ao caos econômico. Para piorar a

situação, o sul do país, considerado o celeiro da Rússia, passou por

anos de desordens climáticas, que gerou falta de trigo e outros

gêneros alimentícios, além de ser um reduto dos “brancos”, pois ali

estava a população cossaca, tradicionalmente leal ao Czar, pelos

motivos que iremos apresentar mais à frente.

A situação chegou a um limite tão desesperador que o

Page 19: Um mundo chamado Rússia

próprio Lênin lança um programa intitulado Nova Política

Econômica (1921), que seria segundo ele “um passo atrás necessário

para fortalecer os passos rumo ao Comunismo”. Na pratica, a NPE

era uma abertura de certos setores da economia russa para

investimentos capitalistas. Com a morte de Lênin, e a chegada de

Stalin ao poder, tais medidas foram abandonadas (1928) e o período

de centralização total da economia teve seu início.

A guerra civil da década de 20, a fome avassaladora da

década de 30 e a Segunda Guerra Mundial na de 40, deixaram o país

sempre numa situação complicada economicamente. A década de 50

foi o período em que a URSS finalmente teve oportunidade de

crescer, especialmente com os Estados satélites do Leste Europeu

como uma das fontes de recursos. O ápice chegou com a década

seguinte. Ainda hoje, russos que viveram a década de 60 se referem à

ela com um alto grau de nostalgia e apresso. O orgulho russo se

estampava na pessoa de Yuri Gagarin, o primeiro homem a dar a

volta ao mundo no espaço, símbolo daquele período.

Mas o otimismo soviético começou a dar sinais de desgaste

já na década seguinte. E os anos 80 foram marcados pela estagnação

total na economia. Gorbatchov tomou a iniciativa de implementar a

Glasnost (Transparência) e a Perestroyka (Reestruturação) para

forçar uma mudança nas bases do sistema. Visto como grande

estadista, homem corajoso e forte figura política aqui no ocidente,

em seu próprio território ele era e ainda é tido como um traidor e

responsável pela “venda” da URSS para o ocidente.

Todos vimos como o Muro de Berlim caiu. Em 1989 ele veio

abaixo, e com ele todo um sistema econômico e político. A

Page 20: Um mundo chamado Rússia

experiência soviética havia fracassado.

Neste novo contexto, vemos Bóris Yeltsin tomar o poder.

Resistiu a um golpe que tinha como proposta o retrocesso ao sistema

antigo soviético. Para a Rússia, não havia mais espaço para o

socialismo. Neste vácuo político e econômico, o capitalismo se

oferece como única alternativa, mas ele não escaparia de sofrer as

influências do país onde estávamos por entrar. O modelo capitalista

russo tinha suas características distintas, pois foi moldado e ditado

pela crescente máfia local. Os burocratas privilegiados do sistema

soviético davam lugar aos grandes empresários russos que, muita das

vezes, eram operários nas empresas estatais que, da noite para o dia,

haviam se apossado de máquinas, equipamentos e de fábricas

inteiras, pois o antigo dono (o Estado), já não estava mais presente.

A década de 90 foi marcada pelo caos em todas as esferas da

sociedade. Poucos são os russos que não se lamentam por aqueles

tempos. Muitas histórias ouvimos dos próprios cidadãos sobre o

período de terror social que se passou naqueles anos conturbados. O

país estava se desmantelando, e antigas rixas étnicas afloravam,

especialmente no sul. O mais conhecido destes movimentos de

libertação se manifestou nas guerras da Chechênia.

Os anos Putin, que começam em 1999, foram caracterizados

pela estabilização do país. As revoltas foram sufocadas (ou

compradas), a inflação galopante controlada, o rublo fortalecido

frente às moedas estrangeiras. A economia começou a reagir,

especialmente pela alta da produção e exportação do petróleo e gás.

Enfim, o país saiu dos anos de estagnação e começou o caminho

rumo ao crescimento. E isto não se deu apenas na área econômica,

Page 21: Um mundo chamado Rússia

mas na própria política internacional.

Tudo que foi declarado acima pode ser lido em qualquer

livro de História do século XX que trate do assunto. Contudo, toda a

política e economia têm reflexos na vida diária do cidadão comum, e

foi isto que sentimos ao chegar à Rússia naquele momento de

transição. Isto vai desde a melhoria nas estruturas dos aeroportos, até

uma avenida na cidade que é rearborizada e sua calçada renovada.

Isto influi na aquisição de carros importados e na abertura de

mercados maiores, com produtos trazidos de todo o mundo, inclusive

brasileiros. E neste sentido, nenhum lugar melhor para ver esta

transformação tão dramática da nova Rússia, do que nas regiões

periféricas. Moscou mudou muito nestes anos, mas é no interior do

país onde estas transformações são mais sentidas. Passear pelo

interior russo é algo que realmente descortina todas as condições de

um país milenar, que está aprendendo novas lições a cada dia.

Aqui começamos nossa aventura pela Rússia!

Page 22: Um mundo chamado Rússia

KRASNODAR 40 GRAUS

Saímos de Moscou na manhã do dia 17 de agosto de 2005,

onde a temperatura estava em torno dos 8 graus positivos. Estávamos

usando casacos e roupas apropriados para o frio daquela manhã.

O vôo até Krasnodar leva cerca de 2 horas. Chegamos ao

aeroporto e o comandante anunciou a temperatura externa. Pensei

que não havia entendido direito aquela voz que falava baixinho e

através de um sistema de som de alto-falantes já desgastados pelo

tempo.

Bem, ao menos naquele momento havia entendido

corretamente, 40°C!!! Tivemos que rapidamente tirar os casacos,

pegar nossas malas de mão e descer do avião. Desta vez não

precisaríamos descer pela cauda do avião, como ocorreu três anos

antes. Mas mesmo assim, tínhamos que caminhar até o transporte

que nos levaria para o prédio principal do aeroporto. E lá tivemos o

primeiro contato com o calor sufocante do sul da Rússia! Nenhuma

brisa, sol do meio-dia, umidade baixa, e ainda mais uma mudança

Page 23: Um mundo chamado Rússia

inteira para pegar. Para nossa alegria, o local de retirar as malas

estava coberto e fechado, bem diferente da última vez que estivemos

lá, quando se pegava as malas a céu aberto! Viva a nova Rússia...

Do lado de fora do prédio, alguns amigos estrangeiros que

havíamos conhecido na primeira viagem vieram nos recepcionar.

Nunca nos esquecemos do fato deles terem levado  uma vela

aromática como sinal de boas-vindas, mas haviam deixado no carro.

Ao chegarmos no carro, com aquele calor tropical, a vela havia

amolecido e entortado, mais parecendo uma obra de arte!

Eles nos levaram para nosso novo lar. Bem, a primeira

impressão não foi das melhores. O edifício não tinha condomínio (na

realidade, nenhum tinha), a porta de acesso ficava aberta

permanentemente, sendo segura apenas por um tijolo. As escadas

estavam somente no cimento e o corrimão parecia peça retirada de

alguma escavação arqueológica. Coloquei todas as nossas malas no

pequeno elevador, para só depois descobrir que para o 2° andar, onde

ficava nosso apartamento, ele não ia. Ao subir com as malas pela

escada, minha esposa notou um rastro de sangue. Seus olhos me

fitaram apavorados, e nossa amiga ao perceber seu espanto, explicou

que deveria ser de alguém que havia comprado carne na feira.

Acreditamos, mais por medo de descobrir que fosse mentira, do que

pela veracidade da explicação.

O calor era insuportável, pois ar-condicionado ainda seria

um luxo que teríamos que esperar por mais dois anos. Numa situação

destas, o melhor é sair e conhecer a vizinhança. Descobrimos que na

nossa rua não passava carro,  apenas a linha de bonde. Era admirável

como existiam árvores, e parecia às vezes que estávamos numa

Page 24: Um mundo chamado Rússia

floresta. Descobriríamos logo a utilidade daquilo nos dias de muito

calor que estavam pela frente.

Os primeiros dias foram um tempo dedicado para

descobertas. O mais simples ato, quando se está numa cultura

totalmente nova, torna-se um peso que faz esvair todas as forças.

Quando se vai passar apenas alguns dias ou semanas num lugar, não

existe um compromisso em entender o que se passa, nem mesmo

uma preocupação em estabelecer pontes com pessoas. Mas

estávamos ali para ficar por um bom tempo, por isto era vital

mergulharmos logo no nosso novo país. Comprar pão e leite era uma

atividade que gerava ansiedade. Como entender o vendedor? Como

saber se a conta estava certa, e o troco? Como parecer o menos idiota

possível quando uma pessoa falava algo, perguntando ou

exclamando?

Para nossa sorte, na nova Rússia já existia uma rede de

pequenos mercados de bairro que tinham caixas com leitor de barras,

e consequentemente um monitor que mostrava o valor das compras.

Na Rússia de poucos anos antes, que conhecemos em nossa primeira

visita, encontramos lojas onde usavam ábacos para fazerem as

contas, e o resultado era apresentado como se pudéssemos “ler” o

ábaco! Enfim, foi um alívio ver tudo nos “novos’ monitores!!!

Mas isto não impediu de passarmos por pessoas desprovidas

de qualquer inteligência naquele começo. Em certa ocasião, ao

chegar ao caixa, a vendedora passa os produtos e pergunta: “a paketa

nujna?”. Vinte segundos de silêncio e olhares que pareceram mil

anos. A vendedora repete umas três vezes, até que desiste e pucha

uma sacola e balança na nossa frente. Convenhamos, “paketa” parece

Page 25: Um mundo chamado Rússia

com pacote, “nujna”  é “precisa”... Hum, entendi, ela estava

perguntando se precisávamos de sacolas plásticas. Aliviado, respondi

confiante “niet!”. No dia seguinte, pegamos a fila maior para ter a

mesma mulher no caixa. Engraçado como o ser humano sempre

busca estabelecer padrões. Ela sorriu (no estilo russo, sem

demonstrar que estava sorrindo!) e disse “Paketa nujna?”. Senti-me

como um nativo respondendo já de primeira, “niet”.

Ela então perguntou se éramos estrangeiros. Parecia sermos

os primeiros que ela tinha visto em toda sua vida. Descobrimos que

realmente muitos russos nunca haviam conversado ou visto alguém

de outro país fora da URSS. Com esta mulher do caixa do

mercadinho tivemos nossa primeira aula de russo. Todos os dias

passávamos lá para comprar algo, e acabamos tendo verdadeiras

conversas de duas três frases, o que, naquele estágio, eram diálogos

profundos, quase filosóficos. Pouco tempo depois, ficamos sabendo

que ela já não trabalhava mais ali. Lamentei solenemente a perda de

uma “amiga” tão fiel! Mas a vida ainda tinha muitas surpresas para

nós naquele lugar.

O sistema de água quente e fria nos domicílios é oferecido

por uma companhia da prefeitura. Pareceu-nos algo muito importante

ter água quente no apartamento, pois a imagem de ter que acordar no

inverno, abrir a torneira e lavar rosto com água fria causava, no

mínimo, calafrios. Isto se agravava pelo fato da água fria ser gelada,

mesmo naquele calor de Krasnodar.

Depois de alguns dias, acordamos sem água quente.

Esperamos horas e ela não voltou. No dia seguinte, fomos falar com

o dono do apartamento. Ele então explicou, sem entender o motivo

Page 26: Um mundo chamado Rússia

de nossa inquirição, que por uma semana a água quente seria

desligada por motivos profiláticos (e vai entender isto em russo,

depois de apenas alguns dias no país!!!). Resumindo, ficamos

tomando banho de caneca por duas semanas! Mais uma lição

aprendida.

Como minha esposa tinha um vocabulário muito reduzido, e

praticamente não podia se comunicar em russo e eu, nitidamente,

precisava aprimorar muito, estávamos matriculados num curso de

russo na faculdade preparatória para estrangeiros da Universidade

Estatal da cidade.

O curso era para começar na primeira semana de setembro,

mas como estávamos para descobrir, algumas datas para início ou

término de algo servem apenas como uma referência, não sendo

necessariamente seguida à risca. As aulas começariam somente duas

semanas depois do previsto.

Quando finalmente começaram as aulas, o calor do sul estava

se despedindo de Krasnodar. Fomos para a aula ansiosos pela nova

etapa.

Entramos num corredor escuro, com paredes mofadas e

seguimos até a porta indicada. Entramos e sentamos. Em pouco

tempo outros entraram, e em seguida a professora de russo. Uma

senhora já de idade, bem vestida e com seus cabelos brancos

impecavelmente arrumados. Ela, que exibia as feições nitidamente

eslavas, deu as boas-vindas, em russo, ao pequeno grupo que ali se

formara. Eram dois quenianos, um sírio, um holandês, um chinês,

três coreanas e dois brasileiros. O único que sabia alguma coisa de

russo era eu. Pensei naquele momento que esta seria uma missão

Page 27: Um mundo chamado Rússia

impossível para aquela senhora eslava. Aprendi com ela que não

existem missões impossíveis! No fim do curso, todos falavam russo

de forma muito satisfatória!

Nas aulas seguintes a este início, a professora Liudmila, que

se tornou o nosso primeiro anjo naquelas terras, me indicou uma

turma mais avançada, pois não havia motivos para ficar com os

principiantes. Minha esposa ficou, e acabou por se aproximar da

professora, pois era a mais experiente do grupo, que era constituído

por jovens solteiros entre 20-25 anos.

Ainda hoje falamos daquela professora que lecionava russo

para estrangeiros há 39 anos, da sua experiência e capacidade de,

sem usar uma palavra em inglês, ensinar uma das línguas mais

complexas e ricas do mundo. Nossos colegas e amigos estrangeiros

de fora da universidade se surpreendiam com o avanço de minha

esposa, mas em grande parte, isto se deu graças à professora

Liudmila. No ano seguinte, ela deixou a sala de aula, o que

lamentamos, pois profissionais de tamanha experiência sempre farão

falta.

Page 28: Um mundo chamado Rússia

PRIMEIRAS IMPRESSÕES: VIAGEM AO PASSADO

Krasnodar é a capital de um estado fronteiriço que leva o

mesmo nome. Sua população está por volta de um milhão de

pessoas, apesar de oficialmente ter pouco mais de 700 mil. Foi

fundada em 1793, inicialmente como uma fortificação avançada

russa na conquista do sul do país.

Seu primeiro nome foi Ekaterinodar, que significa “Presente

de Catarina”, a czarina da época e uma das maiores personalidades

da história russa. Após a Revolução Russa do início do século XX,

seu nome foi mudado para Krasnodar, que significa “Presente

bonito”, ou “Presente vermelho” - lembrando que esta cor era o

símbolo do Socialismo. Atualmente, movimentos cossacos tentam

reverter o nome da cidade ao original, mas enfrentam grande

resistência em algumas esferas políticas e práticas. Este processo de

mudança de nome para uma nomenclatura pré-socialista por sinal é

um fenômeno comum dentro da Rússia pós-soviética.

Page 29: Um mundo chamado Rússia

Mas os problemas da cidade (e de todo o país) não estavam

localizados apenas na questão de nomes. Se em Moscou as mudanças

eram visíveis e ocorriam em alta velocidade, no interior do país, que

não era alvo das companhias estrangeiras ou de turistas, as mudanças

vinham em uma lentidão agonizante.

Começamos nossa descrição pelos automóveis em geral. A

frota em 2003 era basicamente constituída de carros do tipo Lada

soviético. Os ônibus pareciam peças de museu, com lataria muito

acabada, sofrida pela ação do tempo e falta de manutenção. As ruas

eram quase sem sinalização, especialmente no asfalto.

Enquanto isto, nós víamos em Moscou uma frota de carros

trazidos do Japão rodando pelas ruas. Eram carros com volante do

lado direito (mão inglesa), mas o sistema de tráfego na Rússia segue

o sistema europeu continental, como é o sistema no Brasil. Em outras

palavras, o motorista sempre estava do “lado errado” do carro.

Em 2005, a frota de carros de Moscou havia se

“europeizada” muito, e era muito mais difícil encontrar carros do

estilo japonês. Para onde foram aqueles carros que vinham do Japão

como segunda mão e rodavam em Moscou? Eles foram

“periferizados”. Krasnodar estava na rota desse fenômeno. Nos

nossos primeiros anos, a taxa de veículos de mão direita chegava a

40% da frota na cidade, outros 50% eram de Ladas, e o restante eram

de carros “europeizados (leia-se aqui, marcas alemãs, suecas e

francesas).

A grande procura dos russos por esses veículos “japoneses”

se dava principalmente pelo preço bem mais em conta, e sem dúvida,

pela qualidade do produto japonês. O aumento de carros

Page 30: Um mundo chamado Rússia

“importados” (de segunda mão) para Krasnodar, fez com que os

antigos Ladas fossem naturalmente empurrados para o interior e

outras pequenas repúblicas da Federação Russa.

O aumento da frota na cidade gerou um fenômeno conhecido

em todas as grandes cidades do mundo: congestionamentos. E esta

era uma das palavras mais usadas nas desculpas que se ouviam dos

russos. Aprendi logo que ela era poderosa em várias situações. Os

congestionamentos se davam, muitas das vezes, por acidentes

envolvendo dois carros, bonde ou mesmo algum ônibus. E esta é

uma característica notada por todo o estrangeiro na Rússia, a grande

falta de preparo dos motoristas para dirigir, sendo que existem

inúmeros fatores para este tipo de problema. Em parte se deve ao

sistema de “compra de carteiras”, que gera um negócio muito bem

estruturado. O russo admite que passar nos exames para se obter a

carta de motorista é algo tecnicamente impossível, pois os

interessados no comércio das carteiras de motorista são os próprios

agentes que regularizam este setor.

Sei bem como o esquema funciona, pois precisei tirar uma

carta de motorista para dirigir o carro que compramos dois anos

depois, em 2007. Pedi a um amigo russo que ligasse para o

departamento responsável pela expedição de cartas. Preferi este

caminho, pois, além de não ter que me enrolar com a língua, aprendi

que o preço para estrangeiro sempre é muito diferente do que para

um russo. Resumindo, o valor cobrado seria de 20.000 rublos (cerca

de US$ 800 na época). Pedi para meu amigo informar que eu já tinha

carta do Brasil, e apenas queria uma correspondente russa. Eu não

queria fazer todo o “processo”.

Page 31: Um mundo chamado Rússia

- Ah, então o seu amigo é estrangeiro? Neste caso o valor é

de 40.000 rublos. - respondeu o “simpático” responsável.

Acabei optando, então, pela tradução da carteira brasileira,

pois como estrangeiros ainda eram novidade, até mesmo para a

poderosa polícia urbana russa, isto dava certa liberdade.

Este é apenas um dos fatores para a fama dos motoristas

russos, a corrupção da polícia de transito. Mas existe outro ponto

muito importante nesta equação. Nos anos da URSS, o carro era um

artigo de luxo. Poucas pessoas possuíam um, e isto gerou uma baixa

cultura automobilística. Com o fim do sistema soviético, a avalanche

de carros oriunda principalmente do Japão, encheu o mercado de um

produto que poucos sabiam manusear. Da noite para o dia, todos

eram motoristas “experientes”, e as ruas foram inundadas de

verdadeiros “profissionais” do volante.

Mas voltando à questão dos congestionamentos, qualquer

encostada era motivo para o trânsito parar. Inúmeras vezes eu vi as

avenidas principais da cidade totalmente travadas, e quando se

chegava à fonte, verificava-se que eram dois carros que haviam

encostado (não batido) e estavam com seus pisca-alertas acionados

esperando a polícia técnica chegar (o que poderia levar horas!).

Poucos acidentes (na cidade) que vi realmente tinham alguma perda

material considerável. Literalmente, cada vez que precisava sair de

casa, nos preparávamos psicologicamente para a aventura. Sair

sempre era um risco, ou de acabar num acidente, ou ficar horas

parado por causa de um arranhão, ou pior, ser parado pela polícia de

trânsito.

Em 2010 foi feita uma pesquisa por um jornal moscovita

Page 32: Um mundo chamado Rússia

entre os estrangeiros, perguntando qual era o maior medo deles na

Rússia. Em primeiro lugar, sem chance para as outras alternativas,

apareceu o medo em relação aos policiais de trânsito. Absolutamente

não estranhei este apontamento. Creio que até mesmo os russos iriam

na mesma direção. A fama é tão grande, que quase metade das piadas

em programas de humor envolve os acima mencionados. Vi e

presenciei muitas situações constrangedoras, e passei por momentos

tensos, como narrarei mais à frente.

Mas vou deixar este assunto um pouco e focar em outro

ponto, que está mesmo assim relacionado. Quando chegamos em

2005, Krasnodar estava se modernizando, mas faltava muito para

deixar os ares soviéticos para trás. As ruas eram muito esburacadas,

quase sem sinalização. Muitas ruas na cidade eram de chão batido.

Em algumas áreas havia pedaços de asfalto ilhados no meio da rua, o

que levava a crer que em tempos passados, ali existira asfalto, mas

que a falta de manutenção nas décadas de 80-90 cobrou o seu preço.

Algumas ruas eram intransitáveis, mesmo a pé. Na zona central da

cidade, certas ruas eram a mistura de tudo isto, chão batido em

partes, logo depois alguns restos de asfalto, e mais para frente,

asfalto muito danificado.

Lembrei-me de minha infância, quando na minha cidade

natal as ruas começaram a ser totalmente asfaltadas. Esta era minha

impressão geral da Rússia, um Brasil há 30 anos. Lembro a todos

que estamos falando da capital do estado, não de regiões de interior,

as quais até hoje estão em situação precárias. Olhando toda esta

situação, ainda tínhamos que ouvir pessoas perguntando se

morávamos em árvores no Brasil, ou criávamos macacos em casa!

Page 33: Um mundo chamado Rússia

As calçadas eram esburacadas e em grande parte quebradas.

Outra característica da região é o solo, que é argiloso, conhecida

como “argila preta”. Isto torna o solo impermeável, gerando poças

em todos os lugares, e quando os carros ou veículos de maior porte

passam por elas, a lama se espalha praticamente por todos os lados.

Especialmente no verão, quando as chuvas ficam mais constantes, as

poças aparecem pela cidade, e o movimento dos carros se encarrega

de levar o barro para todos os lados. Depois vem o sol e seca aquele

lodo, dando uma aparência nada agradável às ruas.

Por isto, nas casas é obrigatória a retirada dos calçados

quando se vem de fora. Nas escolas, as crianças sempre vão com a

smenka, que são os sapatos reserva a serem utilizados na sala para

não embarrar tudo. Aliás, esta não é somente uma característica do

sul, mas em toda a Rússia. Existe até um termo russo para a época

em que as chuvas dissolvem o país, rasputitsa (dissolver).

Locomover-se, especialmente pelo interior, se torna uma tarefa

penosa.

O sistema de atendimento médico e os postos de saúde são

uma categoria à parte, mas apenas menciono aqui para enfatizar a

linha que viemos seguindo neste capítulo. Todo o sistema estava nas

mãos da prefeitura, e em 2005 começaram a aparecer clínicas

especializadas, em número ainda insignificante para uma cidade

como Krasnodar. Os consultórios e centros de saúde eram velhos e

com material que deviam estar em uso ha mais de 40 anos, apenas se

julgando pelo design. As técnicas de atendimento e de consulta

remontavam a esta época, ou quem sabe até mais.

O sistema de transporte público, basicamente ônibus,

Page 34: Um mundo chamado Rússia

trólebus e bondes, também eram originários de muitas décadas atrás.

Muitos quebravam durante o percurso, o que no caso de trólebus e

bondes, provocavam o congestionamento de toda a linha. Alguns

descarrilamentos de bondes e cabos que se rompiam por tempo de

uso eram motivo de irritação constante.

Bem, o leitor agora deve estar se perguntando se apenas

pontos negativos existiam. Deixe-me explicar com as seguintes

palavras: o choque visual e cultural é algo comum entre pessoas que

trocam de ambiente cultural, seja dentro do próprio país ou para fora

dele. Quando se chega num lugar, logo se começa a fazer

comparações. No caso da Rússia, as diferenças, se comparadas com

outros países ocidentais, são muito gritantes. O país praticamente

parou com o investimento maciço na infraestrutura durante a década

de 60.

Neste caso, é evidente que saltavam aos olhos as diferenças

mais marcantes, e com o tempo iríamos ver descortinar diante de nós

os outros aspectos da vida lá. O principal é que vivemos outra

revolução russa bem na nossa frente. O país que havia parado no

tempo por longos anos, a partir do início deste século deu um salto. É

como se a Rússia saísse da década de 60 e entrado no mundo

moderno num espaço de poucos anos. Quando chegamos em 2005,

por exemplo, o comércio era feito basicamente em feiras

permanentes e numa rede local de minimercados nos bairros. Em

2007 abriu em Krasnodar o primeiro supermercado, de uma marca

francesa. Depois vieram os shoppings e em 2009 uma rede de

lanchonetes americana (não que isto eu considere progresso, mas

para muitos estrangeiros, viver sem o produto daquela marca era

Page 35: Um mundo chamado Rússia

como viver na idade da pedra).

No ano seguinte de nossa chegada, as avenidas ganharam

pavimentação nova, arborização, canteiros com flores e parques

foram sendo melhorados. Bondes modernos foram trazidos de fora, e

os antigos ônibus começaram a dar lugar aos seus “netos”.

O nível de vida dos russos melhorou muito nos últimos anos.

Não era raro ver as lixeiras dos edifícios entulhadas de caixas de

modernos utensílios domésticos, e principalmente de estrutura de

janelas em madeira. E isto era algo muito significativo. Um dos

símbolos do progresso e da modernidade na Rússia eram as janelas

de plástico, que levavam o nome de “janelas alemãs”. A grande

vantagem das novas janelas era que impediam a perda de calor do

ambiente, causando um isolamento muito bom que era algo vital,

especialmente no rigoroso inverno. Nosso apartamento tinha “janelas

alemãs” e no inverno precisávamos abri-las um pouco para esfriar

um pouco o ambiente.

Aliado a esta questão das janelas, aprendemos rapidamente

uma palavra usada por todos, remont. Talvez esta palavra defina bem

o estado em que se encontrava todo o país, conserto. Esta era a

palavra de ordem, e que aparecia em qualquer propaganda ou cartas

espalhado pela cidade.

Lembro muito bem do grande remont que foi feito no nosso

prédio. Incomodava muito o fato do prédio estar com uma porta que

absolutamente não podia ser trancada. Qualquer um podia entrar e

fazer tudo o que queria no elevador e escadas. E entenda, caro leitor,

não estou usando a palavra TUDO em vão! Se uma pessoa passasse

mal na rua, ou mesmo por questões de uma bebedeira, o melhor

Page 36: Um mundo chamado Rússia

refúgio era um bom prédio com uma porta destrancada. Vi muita

coisa por aquelas escadas!

Mas finalmente foi convocada uma espécie de reunião dos

moradores do prédio. Nesta reunião, feita ali mesmo do lado de fora

do prédio, literalmente no meio da rua, havia uma única proposta na

pauta. O senhor que comandava a reunião, sintetizou a questão

dizendo:

- Precisamos colocar uma porta nova com interfone e código

de entrada neste bloco! Precisamos trazer a civilização para nosso

prédio!

O argumento daquele senhor convenceu seus compatriotas,

que em uníssono concordaram com a proposta. Lá de nosso

apartamento rimos muito, pois finalmente a civilização chegaria,

literalmente, às nossas portas. Este era o espírito!

Outra marca dos últimos anos foi a luta do governo contra a

corrupção, especialmente na polícia, além do investimento nas

escolas e nos postos de saúde. As ambulâncias foram modernizadas

(aquelas da era soviética pareciam Kombis um pouco mais robustas,

que dava medo só de olhar!!). Os ábacos foram extintos e não vi

mais nenhum sendo usado com objetivos comerciais. Nossa internet,

que inicialmente era de 128 kpbs, pulou para 1 Mega de velocidade,

sendo que já existiam muitas opções neste sentido. Os celulares,

artigo que no início da década era fiscalizado pela polícia na rua,

virou mania nacional.

Como disse, a sensação é que a cada dia avançávamos várias

semanas ou meses na escala evolutiva tecnológica e de infraestrutura

Page 37: Um mundo chamado Rússia

PRIMEIRO INVERNO

Quando falamos em Rússia, a imagem inevitável que vem às

pessoas é a de um campo coberto de neve, muito frio e ursos polares.

E tal associação tem seu motivo. Realmente o país registra as

menores temperaturas do mundo (desconsiderando-se as regiões

polares). Falar de frio é lembrar-se da Sibéria, onde por sinal foi

registrada a menor temperatura em localidade urbana, na remota

região da Yakutia, num vilarejo chamado Oymyakon, quando foi

atingida a temperatura de -71,2° C no ano de 1926.

Mas precisamos lembrar que temperaturas assim não

acontecem em todos os lugares, nem o ano todo! Quanto mais para o

sul nos deslocamos, mais as temperaturas médias vão se elevando.

Como verificamos anteriormente, o verão também sabe mostrar sua

força em terras russas.

As surpresas em relação ao clima que tivemos nos primeiros

dias na Rússia eram apenas o início de uma série que se

prolongariam por cerca de um ano.

Após o escaldante verão, o tempo começou a mudar, e a

entrada do outono parecia trazer um alívio no clima sufocante. Mas

Page 38: Um mundo chamado Rússia

com as temperaturas mais amenas, começaram também as chuvas.

Elas não eram fortes como no Brasil, sendo muito mais amenas e

passageiras. Contudo, as consequências eram enormes. Começava a

temporada da Rasputitsa, que pode ser traduzido como “temporada

de estradas ruins”. Segundo alguns historiadores, este foi um dos

fatores para o atraso no processo de invasão das tropas alemãs na

Segunda Guerra Mundial. O plano inicial era chegar até Moscou

antes das chuvas de outono, que deixavam as estradas impraticáveis

para o deslocamento. Descobri as razões do temor alemão naquele

nosso primeiro ano. Especialmente em Krasnodar, que tem um solo

argiloso, a água tem dificuldades de escoar e o solo quase não

absorve esta água. Como falamos no outro capítulo, nestes casos o

barro que fica nos canteiros e nos “estacionamentos improvisados”

onde não existe asfalto ou cascalhos, acaba por ser levado por estes

mesmos carros para a rua. Em pouco tempo, a rua fica toda cheia de

lama. A água que escoa destes canteiros também entra na rua

provocando mais sujeira. Com a queda das folhas das árvores, o

material orgânico começa a se decompor, e caminhar pelas ruas

começa a ficar um tanto quanto desagradável. Chega-se em casa com

os calçados todos sujos, e as calças respingadas de lama. É uma

estação que desafia o autocontrole emocional!

Com o avanço do outono, a paisagem vai se tornando

acinzentada, pois o verde dá lugar aos troncos que parecem definhar

em relação à vida. As pessoas usam cores escuras (preto, marrom e

cinza). O céu está constantemente nublado ou chovendo. A

arquitetura dos prédios da era soviética tem uma tonalidade

igualmente cinza. Com o tempo, o ar começa a ficar saturado, pois a

Page 39: Um mundo chamado Rússia

poluição e a falta de verde contribuem para isto. O sistema nervoso

começa a ser perturbado, e a falta de cores vivas e dos raios do sol

vão encurralando as pessoas num beco de seriedade e falta de

paciência. Eu dizia que nestes casos, todos ficavam igualmente

cinzas por dentro. Logo aprendemos uma palavra russa que não tem

uma tradução definitiva. Ouvíamos os russos constantemente falando

de Nastroenie e entendíamos o que diziam pelo contexto, mas não

conseguíamos traduzir, ao ponto de, como família, incorporarmos a

palavra em nosso vocabulário. Nastroenie é um “estado de espírito”,

bom ou mau humor, astral, enfim, é como a pessoa está num

determinado momento. E o clima influencia muito na Nastroenie.

Ainda oficialmente no outono tivemos nosso primeiro

contato com a neve. Não foi exatamente o que se esperaria de um dia

de neve. A temperatura estava em 20° C positivos durante o dia,

conforme marcava o termômetro oficial bem no alto de um prédio no

centro da cidade. Lembro-me de ter passado por ele e olhado bem,

pois estava muito “quente” para um dia outonal. Voltamos para casa

com a família e lá pelas nove da noite colocamos as meninas para

dormir. Fiquei olhando pela janela, pois o quadro geral havia

mudado, e soprava agora um vento gelado. Alguns instantes depois,

uma chuva fina começou, dando a entender que existia a

possibilidade daquilo virar neve. A expectativa aumentou. Olhando

contra a luz de um poste em frente ao nosso prédio, pude distinguir

pequenos anjinhos brancos que caiam levemente entre as gotas da

chuva, mas que ao tocarem o chão, desapareciam. Dentro de poucos

minutos aqueles pequenos anjinhos estavam por toda a parte, e cada

vez mais intensa era sua descida. O vento parou e eles começaram a

Page 40: Um mundo chamado Rússia

dançar pelo ar. Corri para minha esposa que estava no quarto, e como

uma criança que ganha um presente inesperadamente, gritei para ela

“neve! neve!”, e a convenci de ir até a janela. Agora os anjinhos

estavam por toda a parte, e caiam no chão sem mais desaparecer. No

friso da janela, alguns anjinhos também apareceram e se

acumularam. Chamamos nossas filhas entusiasmadamente para ver a

neve. Elas acordaram, foram até a janela do quarto delas e uma delas

disse: “Legal pai! Posso voltar pra cama?”. Não disfarço meu

desapontamento, mas como pai entendi o cansaço delas e as coloquei

de volta. Retornei para a janela da sala e lá fiquei sozinho, assistindo

aquele espetáculo.

No dia seguinte, saímos para passear e ver a neve em

Krasnodar, o que todos diziam ser algo relativamente raro. As

crianças se divertiam, rolavam na neve e riam, vivendo seus

momentos de criança. Os russos passavam por elas olhando

assustados como que a pensar “parece que nunca viram neve!!”. O

que era a mais absoluta verdade.

A neve logo derreteu, e em algumas horas restavam apenas

possas de água no chão. Mas ela retornaria algumas semanas depois,

e ficaria ali por muito tempo. Ao todo, a neve ficou no chão por

aproximadamente três meses, com intervalos pequenos em que ela

quase desapareceu. Quando achávamos que não haveria mais neve, o

fenômeno voltava.

Na Rússia é tradição que após o início do ano, o país inteiro

tire uma espécie de férias de inverno, onde tudo fecha por quase duas

semanas. Não havíamos sido informados disto, e tivemos problemas,

pois algumas lojas e mercados ficaram fechados, e especialmente os

Page 41: Um mundo chamado Rússia

bancos não funcionaram. Ficamos com pouco dinheiro em casa, e

aqueles dias foram apertados, pois precisávamos controlar para não

gastar (se conseguíssemos achar algo aberto!).

Janeiro ainda tinha outras surpresas. A temperatura estava

muito baixa, sempre rondando entre -5°C e -12°C. O sistema de

calefação do apartamento (ligado já em outubro) estava funcionando

de forma satisfatória e, ao contrário do que muitos pensam, dentro

dos ambientes geralmente a temperatura fica acima dos +20°C, o que

permite às pessoas usarem roupas leves. Dentro do nosso

apartamento a temperatura era constante +25°C, e podíamos andar de

bermuda e camisa. Em alguns casos, precisávamos até mesmo abrir

um pouco a janela para deixar a umidade e ar mais gelado entrar,

pois o ambiente acabava se tornando quente e seco demais, o que era

prejudicial para a saúde...

Com o fim das “férias de inverno”, tínhamos que voltar a

acordar cedo de manhã e ir para a universidade, minha esposa e eu,

para o curso de russo. As temperaturas na rua não eram convidativas,

e apenas nosso compromisso nos levava a abrir a porta e aventurar-

nos pela gelada Krasnodar.

Na metade de janeiro ouvimos pela primeira vez a expressão

“batismo de frio”, usada pelos russos para designar uma semana que

tradicionalmente é a mais fria do inverno, e na qual os ortodoxos

fazem seus batismos em buracos abertos nos rios congelados de toda

a Rússia. Tivemos a oportunidade de verificar a veracidade desta

tradição em relação ao período mais frio do ano. Exatamente na data

marcada, uma forte onda de frio vinda da Sibéria havia se deslocado

para a nossa região, e as temperaturas atingiram os -29°C, a menor

Page 42: Um mundo chamado Rússia

temperatura em 30 anos em Krasnodar, e a segunda menor registrada

na história da cidade. O sistema de calefação estava no limite, e a

prefeitura já alertava que se a onda continuasse por mais alguns dias,

o sistema poderia entrar em colapso. Neste dia lembro-me de ter

levantado pela manhã, tomado o café e reunido toda a coragem que

tinha para sair pela porta numa caminhada de uns 20 minutos a pé até

a universidade. No meio da tarde, juntamente com nossa filha mais

velha, saímos para tirar algumas fotos num lago congelado perto do

centro da cidade. A temperatura já havia subido e os termômetros

marcavam “agradáveis” -22°C. Chegando ao local, fiquei admirado

com a beleza do branco cobrindo o lago. Percebia no rosto que o ar

estava frio, mas pensei que o frio não era tão intenso assim e decidi

tirar as luvas especiais que tinha. Imediatamente após tirá-las senti

como que mil agulhas sendo fincadas em minha mão, e precisei

recolocar as luvas imediatamente. Percebi naquele momento que

com o frio não se podia brincar!

Havíamos levado nossa máquina fotográfica digital e quando

chegamos ao local adequado para uma foto, liguei-a. Ela iniciou o

processo para abrir e expor a lente, mas no meio do caminho,

simplesmente parou. Pensei que havia quebrado ou algo assim.

Coloquei-a de volta dentro do casaco. Depois a tirei e tentei

novamente. Mesmo resultado. “Será que é a bateria?” - pensei

enquanto guardava-a no casaco. Repeti o processo algumas vezes até

perceber que o problema era o frio intenso, que fazia com que ela

parasse de funcionar. Para tirar as fotos, eu deixava a câmera ligada

dentro do casaco, e na hora que ia bater a foto, tirava-a rapidamente e

fotografava, inserindo-a depois rapidamente no casaco para não

Page 43: Um mundo chamado Rússia

congelar outra vez.

Indubitavelmente o inverno é uma estação que tem suas

atrações, ainda mais quando a neve aparece. As crianças, mesmo as

russas, ficam agitadas e querem sair para a rua e se divertir um

pouco. Neste período começa o desfile de pais puxando os trenós

com os filhos e nós compramos um destes trenós para as nossas

meninas. Íamos de nossa casa até o parque ou o lago congelado perto

da Universidade sempre que nevava. A raridade da neve em

Krasnodar era um atrativo a mais, pois nunca sabíamos quanto tempo

ela estaria acumulada e quando voltaria a nevar na cidade.

Atravessávamos distâncias enormes (levando-se em conta que com

neve fica mais cansativo andar) apenas para puxar o trenó com elas

em cima. O frio era intenso, mas a diversão sempre foi proporcional.

Brincar na neve é algo que todos gostam de fazer. Em certo

sentido, todos viramos crianças. Fazer bolinhas de neve e jogar nos

amigos, parentes ou conhecidos é um ato quase involuntário, não se

pode resistir a isto. Nem mesmo os russos, já acostumados com neve,

deixam de aproveitar. E não importa a idade!

Nossa filha, sempre que nevava, demorava muito tempo para

voltar para casa da escola, que ficava a uns 250 metros de casa.

Quando ela entrava pela porta, estava cheia de neve no cabelo, nas

botas, luvas, e na roupa. Suas bochechas rosadas denunciavam que

estivera muito tempo exposta ao ar gelado. Nunca entrávamos nos

detalhes do que ocorria, pois era evidente. Anos depois ela confessou

que sempre saia da escola e ia “brincar” com as colegas no pátio e

pela rua, fazendo com que o caminho até em casa se tornasse mais

cumprido do que o habitual.

Page 44: Um mundo chamado Rússia

Toda esta atividade fora de casa, na neve, seja uma

caminhada ou uma visita na praça perto de casa, exigia que na volta a

mamãe preparasse um gostoso chocolate quente. Às vezes

duvidávamos se saiam para se divertir ou para poderem depois voltar

e se aquecer na calefação tomando um delicioso chocolate quente.

Certo dia, nas minhas caminhadas pela cidade, fui até um

parque que fica ao lado do rio Kuban, que banha a cidade. Andava

solitário pelo meio dos montes de neve, no que seria a calçada da via

principal do local. Estava sozinho, pois apesar dos russos gostarem

de passear pelas ruas nos dias frios (dizem que faz bem para a

saúde!!!), não havia ninguém por perto. As tendas e quiosques que

no verão ficam abertas e cheias de pessoas que buscam diversão,

estavam abandonadas, cobertas de neve. Mas ao chegar perto de um

dos braços do rio que entra em direção ao parque, percebi pequenos

pontos que destoavam do monótono branco. Com dificuldades desci

o barranco em direção ao rio congelado. Andei calmamente sobre as

águas congeladas e enquanto caminhava percebi que aqueles pontos

eram pessoas sentadas em cadeiras de campo. O que estariam

fazendo ali paradas sentadas no meio do nada? Cheguei mais perto e

percebi uma vara de pescar em suas mãos, um pote ao lado e a

inseparável garrafa de vodca Assisti aquela cena por alguns

segundos, sem que fosse notado pelos destemidos pescadores. A

temperatura estava abaixo dos -15° C naquele dia de intensa neve.

Com o passar dos anos, descobri que aquela prática era uma espécie

de terapia para os russos. Eles abriam um buraco no gelo e lançavam

o anzol com a isca ali mesmo. Não é uma questão de quantos peixes,

nem mesmo o tamanho dos mesmos, é apenas uma forma de relaxar

Page 45: Um mundo chamado Rússia

e curtir o frio.

Entretanto, sair para estas caminhadas e aventuras pelas ruas

congeladas era uma tarefa um tanto quanto perigosa. Constantemente

na televisão eram emitidos alertas para as pessoas em relação a um

perigo silencioso, as sosulki (plural). Mas que é isto? Também

demoramos para descobrir. Certo dia apareceu no jornal que uma

pessoa havia ficado gravemente ferida por uma sosulka (singular)

que havia caído de um prédio. Descobrimos então que eram

pingentes de gelo (estalactites de gelo) que se formam nos telhados, e

que por algum motivo podem cair lá de cima, acertando na cabeça de

um transeunte, o que pode provocar até mesmo a morte. Depois

disto, sempre ficávamos longe de qualquer ponto perigoso. Ao passar

por alguns prédios, pude perceber as afiadas e mortais sosulki, e me

lembrava de nunca brincar com a sorte, pois um dia poderia virar

azar…

Ainda existia outro perigo, os escorregões no gelo. Muitas

vezes vi as pessoas patinarem, escorregarem, dançar e cair no chão

devido ao gelo. Não era incomum ver nas ruas este tipo de cena. O

que me chamava a atenção era que ninguém ria ou se encabulava por

estes “imprevistos”. Descobri depois que não havia pessoa imune a

isto, todos, mais cedo ou mais tarde caiam. Um dia eu estava saindo

de um mercadinho perto de casa com duas sacolas com leite. Nevava

de forma arrastada, tranquila e sem maiores pretensões. De repente,

senti o chão indo embora e ocorrendo uma súbita inversão de polos

em minha cabeça. Imediatamente depois, vi a neve caindo em meu

rosto e as sacolas voando pelo ar e caindo logo à frente. Uma senhora

que passava perto olhou para mim e perguntou se eu havia me

Page 46: Um mundo chamado Rússia

machucado. Levantei-me depressa e verifiquei se estava tudo em

ordem, batendo a neve da roupa. O casaco amortizou a queda e tudo

estava bem. Peguei as sacolas e fui para casa. Esta cena se repetiu

pelos anos seguintes, com pequenas variações no enredo.

Apesar de alguns “imprevistos”, sempre gostei de caminhar

na neve. O barulho dos sapatos quando se caminha e a neve sendo

prensada é muito interessante. Uma das caminhadas mais fascinantes

que fiz foi em uma floresta perto de Moscou. Estávamos num evento,

e numa hora livre resolvi explorar a região. Andei até a floresta e

comecei a andar por ela, vendo as árvores cobertas de neve, troncos

caídos, pequenos córregos congelados e os raios de sol que

penetravam por entre as árvores. Mais para dentro da floresta, ouvi

repentinamente um som seco, ritmado. Andei em sua direção. O

silêncio na floresta era ensurdecedor, nada se movia, nada respirava,

nada fazia barulho, só aquele som ecoando por toda a floresta. Em

certo momento, olhei para o alto de uma árvore de onde eu

imaginava vir o som. Bem lá no alto havia um pássaro, que não pude

identificar ao certo, mas parecia um pica-pau. Ele estava procurando

bichos que se escondiam dentro das árvores. Fiquei um tempo ali

observando o trabalho dele, depois resolvi continuar a exploração.

Alguns metros adiante vi pegadas na neve, que tinham sido feitas ha

pouco tempo. Era de um animal grande. Eu estava sozinho numa

floresta congelada, e meu espírito aventureiro deu lugar a um instinto

de auto-preservação. Dei meia-volta e resolvi não arriscar em

descobrir o dono daquelas pegadas...

Muitas foram as aventuras nos invernos que passamos por lá.

O que posso dizer para finalizar é que, em minha opinião, não vi

Page 47: Um mundo chamado Rússia

nada mais lindo na Rússia do que um dia de neve sem vento. Assistir

os flocos caindo calmamente, manhosamente é algo espetacular. Um

dia na universidade fiquei olhando pela janela a dança dos flocos,

que por uma brisa qualquer, formavam um verdadeiro balé diante dos

olhos.

Sim, o inverno tem seus encantos, e posso dizer que são

muitos!

Page 48: Um mundo chamado Rússia

MEDICINA

A mudança para outro país pode ser, para muitos uma

aventura e para outros uma loucura, especialmente para lugares tão

“distantes” do nosso Brasil.

O enriquecimento cultural e de vida é um contrapeso no

meio de tantas perdas. Quem já passou pela experiência de ter

contato com o mundo lá fora, sabe bem o que é isto.

Mas a mudança também afeta outros pontos, que talvez não

fossem tão desejados. E mesmo assim, aprendemos. Existe um

provérbio russo que diz: “Viva por um século e aprenda por um

século”.

Uma das áreas que mais preocupa nestas adaptações é a

saúde. Pode ser que não exista nada tão desesperador quanto estar

doente em um lugar onde você não tem meios de ser atendido ou

entendido, ou ainda, desconhecer por que está naquele estado.

E nossos problemas começaram antes mesmo de sair para a

Page 49: Um mundo chamado Rússia

Rússia. Minha esposa havia feito exames pouco antes da data

marcada para o voo. Na sexta-feira (viagem marcada para

domingo!), o médico nos passa o resultado dos mesmos. Ela

precisava fazer um tratamento e a recomendação médica era de que

não viajássemos. Bem, não era uma viagem de férias ou um passeio,

era uma mudança para o outro lado do mundo! Por fim, resolvemos

comprar os medicamentos e fazer o tratamento lá na Rússia mesmo.

Chegando lá, já depois do período inicial de adaptação,

buscamos informações de como fazer os exames que eram

necessários para ver se o problema havia desaparecido.

Preciso fazer um parêntese aqui. Como estávamos na Rússia

com o visto de estudantes, pois faríamos o curso de russo pela

Universidade de Krasnodar, precisávamos alguns exames de rotina, o

mesmo que os alunos russos precisam fazer anualmente. Como

éramos estrangeiros, nosso plano era pago, mas fazíamos no lugar

indicado pela universidade, que era onde os alunos precisavam fazer.

Era uma única policlínica para todos os estudantes da cidade.

Conseguir chegar ao local foi complicado, pois informações

não são algo que o pessoal gosta de dar, ainda mais quando o

inquiridor é um “esquisito estrangeiro que não entende as coisas”.

Mas, chegando no local, a dificuldade ainda seria a de identificar

qual guichê e qual fila pegar. Isto num mar de estudantes que estão

de muito mau humor, pois gostariam de estar em qualquer outro

lugar, menos ali, naquela confusão. Realmente tudo isto é

simplesmente uma tarefa de tirar qualquer um do sério.

Quando finalmente, depois de muito tempo rodando,

achamos o local exato, disseram que haviam fechado e que só iriam

Page 50: Um mundo chamado Rússia

atender no dia seguinte! E não adianta reclamar, chorar, esmurrar,

eles são a lei!

No dia seguinte chegamos cedo para enfrentar a fila.

Descobri que os russos adoram duas coisas: fazer filas e furar filas,

sendo isto uma espécie de esporte nacional. Enfim…

Conseguimos chegar à enfermeira (de mau humor!) e

mostrar nossos papéis requisitando os testes. Ela explicou o que

deveríamos fazer: teste de sangue, fezes e urina. Mostrou umas

caixinhas de fósforos em uma mesa. Na parte de baixo da mesa,

garrafas de vidro de vários tamanhos e tipos, com um líquido

amarelado… Entendi, nem precisava abrir as caixinhas de fósforo

para entender o que tinha dentro! O sangue seria coletado na outra

sala…

Fomos para a sala e a enfermeira começou com um papo

estranho. Viu que éramos estrangeiros e disse que se “ajudássemos”

nem precisaríamos tirar o sangue. “Ajudar”? Está bem, entendi tudo,

mas resolvi usar minha prerrogativa de estrangeiro. Ela explicou

umas 3 ou 4 vezes o que entendia por “ajudar”. Quando viu que não

“ajudaríamos”, pegou o estilete e cravou no dedo de minha esposa.

Apertou e pingou o sangue numa lâmina de vidro. Humor totalmente

azedado. Fomos embora para casa com vontade de explodir tudo

aquilo.

Fechando este parêntese e voltando ao caso de minha esposa

e sua questão médica, havíamos decidido buscar formas mais

“humanas” de tratamento. Onde encontrar uma Clínica particular?

Não existia internet confiável ainda para nós. Páginas amarelas,

respondiam alguns. E foi o que fizemos, procuramos as páginas

Page 51: Um mundo chamado Rússia

amarelas ou um catálogo. Ninguém com quem conversávamos sabia

dizer se isto existia de verdade por lá.

Por uma coincidência divina, nosso apartamento ficava

exatamente em cima de uma Clínica particular, que naquela época

deveria ser a única da cidade. Não prestamos atenção de imediato

nela, pois a propaganda era voltada para a área de oftalmologia, mas

descobrimos que ali havia várias especialidades! Inclusive a que

estávamos precisando no momento.

Já era outubro e ainda tínhamos muito a aprender em relação

à língua, pois as aulas haviam começado somente na metade de

setembro. Para a primeira consulta, minha esposa havia convidado

uma amiga, também estrangeira e que morava ha mais tempo na

Rússia, para acompanhá-la na ida ao médico.

A médica olhou tudo e tentou entender o que aquelas duas

estrangeiras estavam querendo. Depois de tentarem explicar o que

precisavam, a médica disse que para fazer os exames era necessário

tomar uma injeção que deixaria a paciente com sintomas de gripe

forte. Como essa ideia não foi aceita, ela deu a outra opção: comer na

noite anterior ao exame um peixe defumado, uma salada bem picante

e tomar um litro de cerveja, comparecendo no dia seguinte em jejum

para os exames médicos.

Todos nós achamos aquilo muito estranho, nunca tínhamos

ouvido falar que comer e beber algo antes de um exame pode “baixar

a imunidade” como a médica disse que teria que acontecer para que

os exames fossem feitos com sucesso. Mas, isso seria melhor do que

injetar algo desconhecido no corpo, num país onde não nos

sentíamos seguros.

Page 52: Um mundo chamado Rússia

Minha esposa compareceu na manhã seguinte, fez tudo

certinho e esperou pelos resultados.

Uma semana depois, voltou para saber como estava sua

saúde, e a surpresa foi muito mais do que podíamos esperar. No

resultado dos exames apareceram quatro doenças venéreas, e a

médica começou informando que aquilo podia estar incubado em um

dos cônjuges já antes de casarem, não significando necessariamente

alguma traição. A consulta mais parecia psicológica do que médica.

A doutora perguntou se estávamos dispostos a fazer o tratamento.

Como minha esposa ficou muito desconfiada desse resultado, ela

disse que iria para casa, conversar com o marido e então resolver o

que fazer.

Bom, levamos os exames para casa e fomos procurar na

internet informações sobre as tais doenças. Nenhum sintoma de

nenhuma delas nós tínhamos. Desconfiados de que o exame teria

sido trocado, fomos procurar outro lugar para tirar a “prova” e,

infelizmente, tal lugar havia somente em Moscou. A clínica de

Moscou era particular e com médicos internacionais. Mas o efeito

colateral de sua “idoneidade” era um preço de matar qualquer um.

Esperamos até fevereiro, quando o inverno estava

começando a perder força para então ir à Moscou. Precisamos levar

uma amiga que falava inglês fluente junto, pois na clínica tudo era

feito com médicos estrangeiros e que falavam inglês.

Tudo foi tranquilo. Exame feito, resultado enviado via e-mail

e depois de tanto tempo nessa tensão e expectativa, o resultado foi

que estava tudo normal.

Nunca mais procuramos aquela médica. Guardamos o

Page 53: Um mundo chamado Rússia

cartãozinho com o nome dela para não marcar por engano alguma

consulta com ela. Ainda tivemos que usar os serviços médicos

daquela clínica em Krasnodar até o último mês em que moramos lá,

pois nossa saúde estava sempre sendo afetada.

Um problema muito grave que tivemos que enfrentar foi com

nossa filha mais velha, com seis anos na época. Num passeio num

dia de verão, comemos um pastel à moda russa numa lanchonete de

rua, no centro da cidade, pois nos informaram que lá era muito bom.

Por causa do alimento, nossa filha contraiu uma infecção intestinal e

devido ao fato de sermos estrangeiros, o seguro saúde que minha

esposa e eu tínhamos com a Universidade não atendia à nossa

família, somente a nós. Então fomos tentar no posto de saúde, pois

na Rússia todo sistema de saúde é público. Negaram atendê-la e

ficamos tentando em casa com várias receitas caseiras fazê-la

melhorar, e nada. Depois de uma semana com vômito e diarréia,

pedimos a um amigo que chamasse uma ambulância de algum

hospital infantil. Quando a ambulância chegou, a médica examinou-

a. Nossa filha nem conseguia mais ficar em pé e a médica disse que

ela precisava de internação urgente. Ela iria de ambulância para o

hospital acompanhada pela mãe.

Chegando ao hospital, que ficava do outro lado da cidade, a

enfermeira que nos recebeu, e que provavelmente não sabia ler outro

alfabeto além do russo, assim que pegou o passaporte disse que

nossa filha não poderia ficar internada lá. A médica da ambulância

entrou na sala e tentou explicar que nós residíamos na cidade e que o

caso era grave, mas a resposta foi a mesma. “Aqui não podem

ficar!”, dizia repetidamente. A mãe ficou em estado de choque, já não

Page 54: Um mundo chamado Rússia

sabia o que pensar, o que dizer, o que seria da sua filhinha.

Nessa confusão, uma médica que passava pelo corredor

entrou para ver o que estava acontecendo. Quando soube da situação,

foi examinar a menina e depois foi falar com a mãe em particular:

- Se você quiser que a sua filha seja internada no hospital, eu

consigo que isso aconteça, mas aqui é um lugar terrível para este

caso, e não aconselho que vocês dêem prosseguimento ao caso aqui.

Se quiserem ir para casa com a filha, me comprometo em ir todos os

dias na sua casa para examinar a menina.

E foi essa a decisão tomada. Nossa filha foi pra casa e

ficamos duas semanas com um mini hospital em nosso apartamento.

Precisávamos esterilizar o banheiro a cada uso, e como não existe

álcool na Rússia (o de farmácia, é claro!), por indicação da própria

médica, usamos vodca.

A médica passou duas semanas indo até nosso apartamento

para verificar o quadro. Quando não podia estar presente

pessoalmente, ela ligava e pedia nosso “relatório”. Nossa filha

passou por uma dieta rigorosa, e todos nós tivemos que entrar num

ritmo completamente novo para acompanhá-la.

Ao fim do prazo que a doutora havia estipulado para o

tratamento, nossa filha já estava recuperada. A médica ficou muito

contente de ver o progresso que tivemos, e elogiou muito minha

esposa. “Não achei honestamente que vocês conseguiriam” - disse

ela finalmente. Reconheceu que o quadro era muito grave e que

havia inclusive risco de vida, e este era o motivo do interesse da

médica que foi tão prontamente atenciosa. Ela, doutora Oksana, foi

mais um daqueles anjos que passaram em nossa vida pela Rússia.

Page 55: Um mundo chamado Rússia

Em outra ocasião, nossa filha mais nova estava com

problemas, recorremos à Dra. Oksana. Ela não podia atender o caso,

pois estava de licença gestante, mas disse que ligaria para outra

pessoa no Hospital Infantil. Em alguns minutos ela retorna a ligação

e nos dá todas as orientações de como chegar ao Hospital e como

proceder, com quem falar e o que dizer para quem nos atendesse,

“...a médica já está esperando vocês!” - disse ela por fim.

Assim como apareceu de lugar algum, a doutora Oksana

também desapareceu, como nos contos. Seremos eternamente gratos

a ela!

Neste sentido teríamos que citar ainda outras pessoas que

foram nossos anjos da guarda naqueles tempos. Janna Petrovna, por

exemplo, a médica ginecologista que cuidou de minha esposa. Houve

ainda um médico anônimo que fez uma pequena cirurgia em minha

esposa, com eficiência notável. Ele não cobrou nenhum tipo de

“presente”, algo totalmente incomum na Rússia, pois o caso havia

sido indicado por uma colega dele que atendeu minha esposa na

Clínica.

Aos poucos fomos aprendendo como lidar com a questão de

saúde na Rússia. Descobrimos que era preciso evitar os caminhos

“normais”. Todas as vezes que tentávamos fazer a “coisa certa”,

pelos caminhos oficiais, tudo emperrava na burocracia e mau

atendimento (quando acontecia o atendimento!). O caminho das

indicações se mostrou o mais eficaz.

Lembro-me que quando precisamos colocar nossa filha na

escola russa, uns dos requisitos para matricular uma criança era a

carteira da policlínica onde ela deveria ser  atendida. Buscamos

Page 56: Um mundo chamado Rússia

informações de como obter a tal carteirinha. Logo de cara, percebi

que estávamos entrando em mais uma das ruas sem saídas do sistema

burocrático russo. Descobrimos onde seria a policlínica que atenderia

a nossa filha, contudo, lá ninguém sabia informar nada, pois não

tínhamos passaporte russo.

- Como fazer? Como vocês não têm passaporte russo?

Alguém nos disse que precisaríamos entrar com um pedido

numa repartição que regulamentava as tais carteirinhas. “Mas onde

é? Não sei!” Por fim, um amigo russo resolveu nos ajudar. Ele

encontrou o local e foi conosco para resolver o impasse. Lá

chegando, depois de preencher fichas e tudo mais, perdendo um

tempo enorme para conseguir alguma informação. A funcionária

disse que aparentemente as carteirinhas haviam sido suspensas para

os não-russos, mas que era para esperarmos o resultado. Até hoje

estamos esperando!

Sem carteira, nossa filha não podia entrar na escola, mas

como estávamos na Rússia, a diretora vendo nosso caso, resolveu

autorizar o ingresso dela mesmo assim.

O problema era quando os fiscais de saúde passavam pela

escola e viam que a aluna X não tinha documentação. A enfermeira

da escola e a diretora sempre davam um jeitinho de deixar as coisas

na base do “deixa pra lá, vai!”. Anjos...

Ficamos tão familiarizados com o sistema russo e

conhecemos tantos caminhos alternativos, que no fim acabávamos

servindo de referência para outros estrangeiros da cidade. Eles

ligavam para nossa casa e pediam ajuda: “qual médico procurar?”,

“como era o nome do remédio tal?”, “você pode ir comigo na

Page 57: Um mundo chamado Rússia

consulta?”

Certo dia uma amiga estrangeira pediu para minha esposa

acompanhá-la ao médico para ajudar a “traduzir” o que ele diria. As

duas foram até a clínica, e a estrangeira (uma americana) que estava

ha pouco tempo no país, mal falava russo. Minha esposa não fala

inglês, de forma que, quando o médico falava, usando termos

específicos da área médica, minha esposa se virava para a americana

e traduzia do russo para o “russo de estrangeiros”. A americana

assentia positivamente fazendo gestos de positivo e pronunciando

algumas palavras em russo. Assim foi a consulta inteira. Minha

esposa conta que havia momentos em que o médico ficava sem

entender o que aquela brasileira estava fazendo ali, traduzindo do

russo para um “russo estragado”! Às vezes a tradução era literal, ou

seja, palavra por palavra, mas para a americana, talvez por causa do

sotaque do médico, ou medo de algo, sentia mais à vontade com a

presença de uma “tradutora”.

Gosto de pensar que de certa forma, também servimos de

anjos para outros. Mas o que seria da vida sem estes anjos

protetores?

Page 58: Um mundo chamado Rússia

SISTEMA DE EDUCAÇÃO RUSSO

Nossos primeiros dias em Krasnodar foram tempos de

adaptação ao novo ambiente. Precisávamos aprender coisas tão

básicas, que até mesmo uma criança pequena sabia, ou seja, era

necessário aprender em poucos dias o que as pessoas levam anos

para assimilar e descobrir.

Quando se muda de país, a questão da língua é um fator que

contribui muito para o estresse, mas compreender a dinâmica da vida

em todas as suas nuances, é algo que pode acabar com qualquer

pessoa. Pensando que este processo de aprendizagem precisa ser

rápido e com qualidade, nós não poupamos esforços para entrar logo

na cultura local.

Nas poucas semanas que tivemos antes das aulas na

Universidade, conseguimos ter avanços significativos. Mas o começo

das aulas mostrou o quão longe estávamos ainda de entender a

Rússia!

Em primeiro lugar, descobrimos que as datas são apenas uma

Page 59: Um mundo chamado Rússia

aproximação, especialmente quando se fala dos inícios de algum

processo longo. Ao menos deu para entender o que o responsável

pelos estrangeiros tinha em mente quando disse que “as aulas

começam lá pelo início de setembro”. Isto significava que, por

estarem esperando outros alunos atrasados chegarem à Rússia,

efetivamente tudo começou a andar já na segunda quinzena de

setembro.

A universidade não impressionava muito, pelo contrário,

corredores escuros, canos expostos pela parede, banheiros que eram

precários (nenhuma novidade no quesito banheiros!), salas com

carteiras e cadeiras quebradas, entre outros. O que mais “chocou”

neste início foi o hábito dos professores apagarem o que escreviam

no quadro-negro, usando um pano-de-chão encharcado com água.

Ficávamos olhando aquilo e vendo o borrão de giz que ficava

espalhado pela lousa. Depois que me acostumei com a cena, percebi

que aquilo evitava que o pó de giz se espalhasse no ar e pela mão de

quem limpava o quadro (tarefa dos alunos).

Mas estas primeiras impressões se deram nas aulas de russo

para estrangeiros que a universidade oferecia para aqueles que

estavam pretendendo entrar em alguma faculdade. A sala de aula era

algo surreal. Numa sala pequena, que ficava dentro do dormitório

dos alunos, havia algumas carteiras e o quadro. Todos ali eram

estrangeiros, vindos literalmente de todos os continentes, perfazendo

cerca de 10 pessoas. Ninguém falava um “i” de russo, exceto eu e

duas coreanas que ao menos bom-dia sabiam dizer.

O primeiro passo foi aprender o alfabeto. Era muito

engraçado ver todos, já adultos, repetindo o que a professora dizia.

Page 60: Um mundo chamado Rússia

Parecia que estávamos numa sala de crianças de 1° série.

Depois de algumas aulas a professora veio falar comigo e

disse que sugeriria para o responsável pelos estrangeiros de colocar

eu e as coreanas na outra turma, a mais avançada. Assim, deixei

minha esposa com a turma principiante e parti para a “avançada”.

Enquanto eu me adaptava à nova turma e à professora, agora

ao menos numa sala mais clara, minha esposa continuou avançando a

passos largos. Cada dia ela vinha mais afiada no russo. Foi realmente

muito bom para todos aquela separação, pois quem já tinha uma base

pode galgar níveis mais altos, e o pessoal iniciante não tinha que se

preocupar com os mais adiantados, e acabaram, creio, tendo

resultados muito melhores até mesmo que alguns da outra turma.

Aprender língua não é o suficiente, precisa-se entender e

participar da cultura, pois ambas são inseparáveis. E em questões

culturais, os russos são muito bem servidos. Pudemos aproveitar

muito nosso tempo lá, pois sabíamos que para termos acesso ao

mesmo tipo cultural aqui no Brasil custaria muito caro, e lá na

Rússia, tudo era muito acessível.

Acabei passando, algumas semanas depois, para outra turma

de russo, pois nossa professora estava sendo requisitada para dar

aulas para um grupo novo que acabara de chegar. Esta minha nova

turma era bem mais adiantada, e tudo que acontecia, especialmente

as conversas, era unicamente em russo (na turma de minha esposa

ainda não haviam chegado no nível de conversação direta). Este era

um ambiente estimulante, onde a maioria realmente estava ali para

aprender russo, já que tinham necessidade disto, tendo em vista que

aquele era o último estágio antes do ingresso nas faculdades.

Page 61: Um mundo chamado Rússia

Cabe dizer que nem todos estavam lá por causa da faculdade,

ou estudos. Alguns queriam passar um tempo na Rússia e este era um

meio de se conseguir visto e até mesmo certa liberdade. Outros

queriam um certificado para poder mostrar em seus empregos

(Companhias multinacionais, especialmente coreanas). Ainda havia o

pessoal da festa ou do tipo “papai me mandou para cá”.

Porém, quem precisava e tinha planos mais sérios, descobriu

que aqueles meses de preparo seriam a diferença entre a vida e a

morte na faculdade.

Passado o primeiro ano, havia aprendido a lidar com algumas

questões dentro da cultura acadêmica russa. Desconhecer certas

“regras’ era trilhar caminhos nada fáceis dali para frente.

No ano letivo seguinte, minha esposa se inscreveu para o ano

avançado de russo, ou seja, a turma que eu estava no ano anterior.

Ela iria enfrentar mais um ano de russo na universidade, o que achei

corajoso e sábio ao mesmo tempo. Suas aulas continuariam no

período da manhã. Contudo, eu teria que mudar de turno, e teria aula

à tarde, pois a faculdade que eu escolhera somente tinha aulas

naquele período.

Tivemos alguns contratempos por causa das crianças, que no

ano anterior ficavam em casa com uma babá. Entretanto, com as

novas regras do jogo, tivemos que fazer adaptações. Feitas as

adaptações, prosseguimos com nossa rotina.

Lembro com exatidão o primeiro dia na Faculdade de

Filosofia, História, Sociologia e Relações Internacionais. (FISMO,

em russo). O longo corredor tinha algumas luminárias funcionando,

outras nem tanto, e algumas que realmente tinham perdido sua

Page 62: Um mundo chamado Rússia

função há muito tempo. Havia uma multidão no corredor, pois além

dos alunos dos cursos da Faculdade em cada especialidade, o

corredor era uma ligação entre dois prédios da Universidade, e o

trânsito sempre era intenso por ali. Consegui ver no quadro o local da

primeira aula. Cheguei à frente da sala e percebi haver uma multidão

que já se aglomerava ao redor da porta.

Quando ela se abriu, e o pessoal da manhã começou a sair,

lembrei daqueles dias em que você tenta pegar um ônibus lotado

num ponto de ônibus que está mais lotado ainda. O empurra-empurra

generalizado se justificou pouco tempo depois. Eram 55 alunos para

uma sala que tinha menos de 50 cadeiras. Como decidi ser mais

educado na entrada, especialmente com as damas, tive que ir pro

fundo da sala. Havia uma cadeira sem o acento, apenas a parte de

ferro. Era a única coisa que restara. Alguns já estavam em pé contra a

parede. Pensei nas horas que ficaria naquela sala, e decidi sentar ali

mesmo. Resumindo, não era nada confortável, mas era o que tinha.

Outros mais educados dividiam a cadeira com uma amiga, ou amigo.

Eu não tinha conhecidos ali, todos eram alunos russos.

A sala, além da falta de carteiras e cadeiras, visivelmente

carecia de uma manutenção. Tive o trabalho de contar quantas

lâmpadas incandescestes queimadas havia nos lustres. O total foi de

70%! O chão tinha uma lâmina parecida com tacos, mas em alguns

locais ela já havia desaparecido, sobrando apenas o chão de madeira,

e ao longo dos meses tive a nítida impressão que estes buracos na

lâmina iam aumentando em seu diâmetro. As janelas tinham vidros

quebrados e o vento que entrava no outono e inverno eram de

congelar os ossos. Por causa da sensação de segurança que o fundo

Page 63: Um mundo chamado Rússia

da sala sempre trás ao aluno menos preparado para perguntas dos

professores, acabei achando um canto lá nas últimas carteiras. No

fim da primeira semana todos os lugares estavam marcados.

Logo descobri que a presença em sala de aula não é algo

notado ou anotado pelo professor. Isto fez com que começassem a

sobrar cadeiras mais dignas para se sentar ao longo do primeiro

semestre. Mas para mim era imprescindível estar nas aulas. Em

primeiro lugar, o controle sobre os estrangeiros era muito eficaz.

Alguns que apreciavam “passear”, como dizem os russos, acabavam

sendo chamados e inquiridos pelo diretor de assuntos internacionais.

Resolvi não ter problemas com ele. Em segundo lugar, estar nas

aulas era uma forma de aprender russo, familiarizar-se com o

vocabulário mais científico e serviria de argumentação junto ao

professor na hora das provas.

Descobriria posteriormente que a sala de aula que mencionei

acima era a melhor que havia na faculdade. As outras eram muito

mais precárias: quadro-negro no chão, na posição vertical e com a

parte superior encostado na parede As carteiras davam lugar a uma

mesa de madeira com inúmeras camadas de tintas sobrepostas, onde

eu imaginava que seria necessária uma espécie de prática de

escavação arqueológica até se chegar às camadas pré-históricas da

tinta original. As cadeiras eram na verdade bancos de madeira sem

encosto. E as lâmpadas, deixo à imaginação do leitor!

Agora algumas palavras sobre os professores. Era perceptível

que havia uma renovação do quadro, pois alguns professores estavam

se aposentando, ou ao menos deveriam fazê-lo logo! Especialmente

nesta área, História, muitas mudanças ocorreram nos últimos anos,

Page 64: Um mundo chamado Rússia

em especial após a queda da URSS. Não que os fatos históricos

tenham mudado em si, mas a forma ideológica como eram

interpretados havia mudado. Apesar de matérias serem abandonadas

(como História do Partido Comunista da União Soviética, por

exemplo), para muitos professores se desfazer de um passado repleto

da ideologia partidária ainda era um problema.

Outros que eram comunistas enquanto a União existia,

passaram a dizer o que pensavam de verdade, abriam seus arquivos

secretos e desenterravam leituras antes subversivas. Preferi este

segundo grupo.

Sempre existem aqueles professores que aprendemos a

evitar, e aqueles que se pudéssemos daríamos um jeito de escanear

todo o seu conhecimento. Com estes últimos, nunca era demais ter

aula. Eles entram em nossas vidas, e mesmo que depois de alguns

anos de estudo não os vejamos mais, eles jamais sairão dela.

Aquela questão que mencionei no início do capítulo sobre a

necessidade de aprender em pouco tempo o que uma pessoa nativa

daquela cultura levou anos para descobrir, estruturar e decodificar,

fala muito alto em momentos como o tempo das provas e exames na

universidade. Aprender o jeito, a manha de tudo aquilo requer uma

força extra de todo estrangeiro. Cada país tem um sistema, cada povo

tem uma maneira de fazer as coisas, e as diferenças de como tudo é

feito na Rússia neste sentido, é tão grande quanto a imensa distância

geográfica que separa o Brasil de lá.

Resumidamente o sistema funciona assim (claro que

descobri isto depois das primeiras provas!): O professor disponibiliza

para a responsável da turma a lista de perguntas que irão cair na

Page 65: Um mundo chamado Rússia

prova. Elas podem variar de 50 à 150 perguntas. O aluno deve se

orientar por elas para estudar. No dia da prova, os alunos entram em

pequenos grupos na sala da prova (geralmente 5 alunos). Ao entrar,

com sua carteira de notas na mão, ele deve pegar um dos bilhetes que

se encontram sobre a mesa do professor onde estão as perguntas

viradas para baixo. Geralmente existem duas perguntas em cada

bilhete (daquelas que foram dadas pelo professor). O aluno diz o

número do bilhete que pegou entre os que estão na mesa e vai sentar-

se para responder às perguntas. Ali naquele papel (dado pelo

professor) ele deve lançar tudo que sabe sobre o tema em questão.

Ao acabar, o aluno responderá oralmente às questões do bilhete,

podendo usar o rascunho que esboçou naquele tempo em que teve

para se preparar. O tempo de preparo gira em torno de 30 minutos. O

aluno pode pedir para pegar outro bilhete, mas isto já acarreta no

desconto da nota a ser dada.

E isto não é tudo! Quando o aluno termina de dissertar sobra

a pergunta “A”, o professor pode (e certamente faz) perguntas

chamadas de “perguntas complementares” que envolvam o tema.

Aprendi a odiar esta expressão!

A nota final varia entre 2, 3, 4 ou 5. Neste caso, a nota 2

significa reprovado, e o aluno irá precisar fazer outro exame. 3 é algo

igual à “escapei por pouco!”. 4 já é algo considerável; mas 5 é mais

para os super-dotados intelectualmente! Não tive muitos 5 na

Rússia…

Como isto é avaliado? O professor é que decide a nota que o

aluno irá receber. Leva-se em consideração outros fatores, como

participação nas aulas práticas, frequência, comportamento em sala,

Page 66: Um mundo chamado Rússia

e outros fatores que nunca descobri. Sempre achei este método muito

aleatório, vago e injusto. Houve vezes em que pensei “hoje eu levo o

meu primeiro 5”, e o professor me deu 3. Outras vezes achei que

seria esculachado pelas respostas dadas, mas recebia uma nota 4.

Nunca sabia se iria bem ou mal na prova.

Na verdade tudo ali era como um jogo, onde sempre quem

podia perder era só o aluno!

Ao final do exame, o professor pegava a carteira de notas do

aluno e escrevia nela o nome da matéria, a nota e assinava.

Descobri também que existiam tipos diferentes de

professores na época das provas e exames. Os bonzinhos durante o

semestre poderiam ser os devastadores na hora da prova, com

perguntas que jamais poderíamos pensar que pudessem ser feitas.

Outros “monstros” da sala acabavam por relaxar e deixar passar na

boa.

Mas o mais terrível de todos era o tipo “vocês não vão

conseguir passar, por isto para que se matar estudando? É só ajudar

com as compras de Fim de ano, que tudo fica bem”. Houve um caso

em que existia uma tabela de preços. Quem estivesse interessado

numa nota 3, deveria contribuir com X rublos. Se o apetite do aluno

era maior, o número na tabela também era acrescido no seu valor.

Agora se a pretensão era o desejado 5, aí era preciso desembolsar

mais. Já outro professor facilitou as coisas, era só comprar o livro de

sua autoria (e somente ele vendia, é claro!), e dar uma lida que a nota

estava garantida!

Na época da URSS, muita corrupção existia nos

estabelecimentos de ensino (e em toda a parte). Contudo, nos últimos

Page 67: Um mundo chamado Rússia

anos o governo russo começou uma cruzada contra este tipo de

atitude, e os professores universitários não ficaram fora da ação.

Durante o tempo que estive na universidade, tive um professor que

foi demitido por “comportamento inadequado”. Isto fez estancar

muito este processo de “cobranças” de fim de semestre, e a partir do

3 ano não tive mais notícias, pelo menos abertamente, desta prática.

As mudanças também ocorreram nas dependências da

Universidade. O início do popular remont (conserto) chegou em

2007. Os alunos que moravam nos dormitórios tiveram a felicidade

de ver suas janelas dos quartos trocadas pelas famosas “janelas

alemãs”. Além disto, pintaram o corredor e instalaram um sistema

contra incêndio nos prédios.

Algumas faculdades começaram a ter corredores arrumados

e salas refeitas. O estádio da universidade, que até então era um

campo de futebol com uma grama esparsa e trilhos por onde

passavam os alunos, acabou por ser totalmente reformado, ganhando

grama sintética, pista de atletismo e até mesmo arquibancadas, com

direito a iluminação noturna!

As mudanças demoraram um pouco mais a chegar na nossa

faculdade, mas foram bem recebidas quando apareceram por lá. O

corredor, que era uma penumbra por falta de lâmpadas, foi

iluminado. Os gabinetes das Cátedras e sala de professores

totalmente reformadas. Durante semanas passamos pelos corredores

que serviram de depósitos de móveis dessas salas e que iriam para

lugar mais apropriado, o lixo. Mas a mais esperada de todas as

reformas era na sala de aula principal, aquela que foi descrita

anteriormente. No dia da “inauguração”, todos estavam ansiosos para

Page 68: Um mundo chamado Rússia

estrear a nova sala. As luminárias foram trocadas e colocadas novas

lâmpadas fluorescentes, as paredes perderam o tom marrom escuro

(imagine como era antes numa sala marrom escuro e com lâmpadas

queimadas). As janelas também viraram “alemãs” e a calefação foi

trocada. Carteiras e cadeiras substituídas e o chão ganhou

revestimento novo. O quadro negro virou branco e ganhamos um

projetor de imagens.

A reforma no âmbito físico também estava acontecendo na

estrutura do próprio sistema de Ensino Superior. A Rússia mantinha

seu sistema, que basicamente era o seguinte: ensino superior de 5

anos, sendo o quinto ano a Especialização. Depois deste grau, vinha

o nível de “Aspirantura”, que era composto de 3 anos. A inserção do

“novo estilo” (4 anos de superior, depois mestrado e por fim

doutorado) foi uma opção à disposição dos alunos a partir de 2007. A

minha turma foi a última que se formou exclusivamente pelo estilo

antigo. Esta mudança não agradou a todos. Especialmente os

professores não estavam totalmente convencidos que isto traria

alguma melhora significativa. Na verdade, nem eles entendiam como

iria funcionar este novo sistema e qual sua correspondência com o

sistema russo. Resumindo, todos estavam confusos, inclusive eu, e

até hoje esta relação é obscura.

---------------------------------------------------

Preciso fazer agora uma menção ao sistema fundamental de

ensino na Rússia, pois também participamos de mais esta área da

vida naquele país. Isto ocorreu por que nossa filha mais velha estava

entrando em idade escolar.

Desde o momento que decidimos ir morar lá, fomos

Page 69: Um mundo chamado Rússia

unânimes na questão de colocar nossas filhas em escolas locais. Em

geral, todo o sistema de formação fundamental está nas mãos do

Estado. Ficamos sabendo depois que havia uma escola particular em

outro bairro um pouco longe de nossa região, mas que quase

ninguém sabia dar maiores informações. Alguns estrangeiros davam

aula em casa para seus filhos (home school), outros mandavam seus

filhos para escolas na Europa.

Nossa opção de mandar a filha mais velha, e depois a mais

nova, para uma escola local se deu por alguns motivos práticos.

Primeiramente, ficamos sabendo que o Brasil não reconhece

o sistema de “escola em casa”, e exige que as crianças que moram

fora do país com os pais, ao retornar para o Brasil comprovem ter

freqüentado um estabelecimento de ensino reconhecido no país de

origem, mostrando a papelada devidamente documentada e

traduzida. Com a orientação do pessoal da Embaixada do Brasil em

Moscou, conseguimos fazer todo o processo legal para que elas

fossem aceitas no sistema brasileiro quando voltaram. Em geral,

brasileiros mantêm pouco ou mesmo nenhuma preocupação com este

ponto. Mas isto é fundamental na volta para o país.

Em segundo lugar, acreditávamos que, se estávamos num

outro país, o conhecimento da língua seria importantíssimo para um

desenvolvimento natural e social de nossas filhas. Neste ponto

víamos a dificuldade de filhos de outros que tinham seu sistema de

“home school”. Eles estavam isolados do mundo, das pessoas. Não

podiam ir ao teatro, cinema, conversar livremente com pessoas,

enfim, viver a vida normalmente.

Em terceiro lugar, nossas filhas aprenderam outra língua,

Page 70: Um mundo chamado Rússia

outra cultura. Elas foram expostas a situações de vida real, e não

ficaram guardadas num gueto, longe da realidade.

Obviamente esta posição cobrou também um preço, tanto

dos pais, como das meninas. Creio que todos sabem como crianças

podem ser duras umas com as outras. Quem nunca sofreu algum tipo

de pressão na escola? Quem nunca se sentiu agredido verbalmente ou

mesmo discriminado em algum momento da vida escolar? Ser

estrangeiro sempre é um belo motivo para se sofrer este tipo de

pressão. Mas felizmente nunca tivemos casos de agressão física ou

mesmo o chamado bulling, como se observa em muitos países do

mundo. O fato de muitas crianças na escola delas serem também de

origem georgiana e armênia trazia certa compreensão dos colegas.

Certa vez, conversando com um colega de nossa filha, ele

perguntou se éramos estrangeiros mesmo. Falamos que sim. Nisto

ele olha para nós com ar de importância e disse que também era

estrangeiro, georgiano, apesar de ter nascido ali mesmo na Rússia.

A relação interpessoal na Rússia é muito complicada, e as

crianças não são uma exceção. O fato de se ter poucos amigos é algo

absolutamente comum, pois as pessoas são muito desconfiadas,

especialmente com gente de fora. Os pais não permitiam que seus

filhos se aproximassem das nossas crianças ao perceberem que elas

não eram russas.

Mas tivemos boas e não tão boas experiências com este lado

da vida, a escola. O fato de não serem russas teve seus

complicadores. Para matricular uma criança, precisa-se de alguns

documentos que não possuíamos, como uma apólice de saúde

infantil, que é dada pelo governo às crianças russas, como

Page 71: Um mundo chamado Rússia

mencionamos no capítulo anterior. O mais complicado era que não

tínhamos direito a nada, como foi no caso do hospital quando nossa

filha foi rejeitada, mesmo em estado grave.

Mas se por um lado não existia o amparo do Estado, por

outro contamos com a ajuda daqueles anjos divinos. A vice-diretora

da escola onde a nossa filha mais velha iria estudar foi a professora

dela na aula de “preparação para a escola”. Esta era uma aula de

adaptação para a escola e uma pré-alfabetização. As aulas duravam

alguns meses, e ajudava as crianças no processo de integração à vida

escolar, e ainda auxiliava a própria professora a conhecer os alunos

num ambiente ainda pré-escolar. Na Rússia não existe prézinho, as

crianças vão direto para o primeiro ano.

Este fato da vice-diretora naquele ano dar a aulinha ajudou-a

a conhecer nossa situação, e no momento de fazer a matrícula na

escola, apesar da falta de alguns papéis oficiais, ela e a diretora

foram amplamente compreensivas, e aceitaram nossa filha sem

maiores dificuldades. Esta porta aberta com elas nos foi importante

ao longo do processo de ensino das meninas.

Algumas vezes tivemos que bater no gabinete da diretora

para explicar algumas situações, outras precisamos de uma ajuda

para entender os processos educativos, e ainda houve momentos que

precisamos falar sério sobre questões envolvendo atitudes de uma

professora. Apesar de toda a seriedade e frieza com que a diretora

nos tratava (e fazia isto com todas as pessoas!), ela sempre nos ouviu

e foi uma pessoa profissionalmente bem equilibrada em suas

posições.

Aprendemos muito com as experiências na escola. Vivemos

Page 72: Um mundo chamado Rússia

intensamente os momentos, mesmo os de crises. Participávamos da

reunião de pais, mesmo não falando muito! Estávamos sempre nas

festas, tentando colaborar e se adequar ao estilo de vida escolar

russo. Ajudávamos quando podíamos os professores, pois algumas

vezes as turmas iam para alguma atividade como teatro, cinema ou

algo do tipo, e precisavam da ajuda dos pais para levar as crianças (a

pé) até o local, atravessando ruas e avenidas. Lembro até que

participei num remont que foi feito na sala da nossa filha mais nova.

Em outras palavras, participamos como qualquer pai e mãe

preocupados com a educação de suas filhas.

Minha esposa ajudava nossas filhas a fazerem as tarefas de

casa, e com isto manteve o contato com a língua. Ainda em tom de

brincadeira, dizemos que ela foi à escola mais uma vez, fazendo a

escola russa do 1° ao 5° ano. Quanto aprendizado foi feito neste

tempo de escola!

Abrindo um parêntese, as meninas ainda tinham uma “escola

brasileira” em casa, pois o colégio onde estudam aqui no Brasil,

mandava à nosso pedido o material que as séries correspondentes

aqui estavam usando, e minha esposa passava o material com elas no

período da tarde (elas iam de manhã na escola russa). Isto foi feito

para que nossas filhas não perdessem o contato com o português e

para não sentirem a reentrada no Brasil. Estudos nesta área, feitos

com pessoas que foram morar no exterior e que voltaram, apontam

que esta reentrada é até mais difícil do que a partida, pois no tempo

em que se está fora, muita coisa muda. Em especial, para crianças

que saem pequenas, a mudança pode ser muito complicada.

Felizmente, graças ao cuidado que nos foi orientado ter neste

Page 73: Um mundo chamado Rússia

aspecto, elas tiveram uma reentrada no Brasil muito tranqüila, se

comparada com outras crianças que vêem de volta para cá. Alguns

podem achar que ter 2 escolas foi um sacrifício demasiado. Em

alguns momentos até chegamos a suspeitar que isto realmente fosse

demais, contudo, agora vemos que foi absolutamente benéfico para

todos.

Mas voltemos à escola russa. Certamente ela não era a

melhor da região, nem em termos de estrutura e nem mesmo de

popularidade, mas não estávamos atrás disto, pois sabíamos que não

éramos eternos ali. O fato de ela estar a 250 metros de nosso

apartamento e não precisar passar por ruas e avenidas movimentadas

era um fator de segurança para nós. E ainda havia o bom  ânimo de

diretoria e professores para conosco.

A escola tinha muitas limitações. Como em toda a Rússia, as

estruturas do prédio eram bastante antigas. Além das questões de

sempre, banheiro, janelas, corredores, etc. O campo da escola para

educação física era um “areão”, cercado de mato e a quadra de

esportes era um asfalto com marcações feitas à mão. Mas, como

sempre, tudo na Rússia naquela época vivia de remont. Não tudo de

uma vez, mas aos poucos a escola foi colocando janelas novas,

trocando carteiras e melhorando a estrutura das salas. Nos últimos

anos, apareceram os projetores e até televisão nas salas. Quando

saímos da Rússia em 2011, estavam construindo uma nova área de

esportes cercada.

A escola oferecia cursos na parte da tarde, como música, balé

e dança. Inscrevemos as nossas duas no curso de piano. E elas

chegaram a participar de concursos municipais entre escolas de

Page 74: Um mundo chamado Rússia

música, inclusive recebendo premiações. Além destes cursos na

escola, haviam outros que eram oferecidos por estabelecimentos

perto de nossa casa, como pintura, artesanato, e outros instrumentos

musicais. Conseguimos colocá-las em uma aula de natação, graças a

ajuda do dono de nosso apartamento. Sempre havia algo para se

fazer! A atividade cultural é intensa lá. Sempre há algum teatro,

cinema, peças, apresentações, teatro de bonecos, circo, museus, balé,

jogos esportivos para se ir. Tudo isto com preços muito acessíveis, se

comparado com os preços praticados no Brasil.

Apesar de todas as limitações na escola e universidade,

dificuldades de acesso ao sistema de ensino e outras complicações,

pareceu-nos que todo este processo teve resultados muito positivos.

Quando tivemos que preparar nossa saída da Rússia,

passamos na escola e obtivemos a papelada necessária para a entrada

no sistema brasileiro. O material foi encaminhado para ser traduzido

e oficializado.

O mesmo ocorreu com o material que recebi na

Universidade, diploma e histórico. Muitos deixam de fazer este

procedimento, e depois tem dificuldades aqui no Brasil para legalizar

esta documentação.

Page 75: Um mundo chamado Rússia

OS CONTRASTES

A Rússia, como já foi dito, é o maior país do mundo em

extensão territorial. Suas terras ocupam 1/6 das terras emersas com

17 milhões de km². Na época da ex- União Soviética, este valor subia

para 22 milhões de km². Para se ter uma ideia da grandeza da atual

Rússia, podemos colocar exatamente 2 Brasis dentro dela!

Contudo, apesar deste tamanho colossal, o país tem uma

população que não chega aos 150 milhões, ou seja, ¾ da população

do Brasil. Ainda segundo alguns especialistas na área demográfica, o

país na realidade deve estar abaixo dos 140 milhões, e o que mais

preocupava era o fato da população estar diminuindo. Por

coincidência ou não, a Rússia começou a apresentar números

negativos no crescimento exatamente no ano em que houve a

dissolvição da União Soviética. Mas o governo anunciou em 2009,

com grande entusiasmo, que pela primeira vez em 15 anos a taxa foi

positiva.

Entretanto, números são números, e a vida é feita mais do

Page 76: Um mundo chamado Rússia

que estatísticas. As mudanças da Rússia pós-socialista se lançavam

diante de nossos olhos também neste ponto. Algo que nos chamou a

atenção, na nossa visita em 2002, foi o fato de praticamente não

vermos carrinhos de bebês nas ruas. Em 2005, começamos a notar

uma frequencia cada vez maior nas ruas de casais levando crianças

no colo e nos carrinhos.

Com o passar dos anos, o número de carrinhos se multiplicou

pelas ruas. O anuncio em 2010 de Vladimir Putin sobre os números

positivos nas estatísticas demográficas ainda eram modestos, mas

apontavam uma tendência. Parecia que os russos haviam acordado e

começado a fazer bebês! O que aconteceu? Eles começaram a fazer

mais sexo? Aumentou o descuido?

Isto tem fatores que vão além de simples coincidências ou

instintos procriacionais. O governo havia iniciado uma campanha

junto a população para que tivessem mais filhos por volta de 2005.

Um segundo filho traria uma quantia em dinheiro para a conta

bancária dos pais, uma espécie de “auxilio nenê” que contemplava

até garantias de estudo em estabelecimentos de ensino superior, que

vinham premiadas com bolsas. Para famílias com 4 filhos ou mais, o

prêmio incluiria uma casa e uma casa de campo. Haviam muitos

outros benefícios indiretos e estímulos que eram oferecidos pelo

governo. Aí, juntou-se o útil ao agradável, e as cegonhas não tiveram

mais descanso por lá.

Mas por que o governo russo se empenhou tanto em

“persuadir” seus cidadãos a aumentar a prole? Existem muitos

motivos. O país estava (e está) envelhecendo. A migração para outros

países (especialmente Europa Ocidental, Israel e EUA) desequilibrou

Page 77: Um mundo chamado Rússia

o quadro interno. Muitos profissionais altamente qualificados haviam

deixado o país em busca de maiores oportunidades. Quando

chegamos lá, o maior sonho de um russo era deixar o país para

buscar os sonhos do ocidente. Vimos muitos russos ultra-

nacionalistas em sua ideologia, que na primeira oportunidade se

achegavam perto de estrangeiros buscando uma amizade que

provesse possíveis “conexões” com o mundo lá fora.

Porém, alguns estudiosos apontam problemas muito mais

críticos para a Rússia. E isto está relacionado com questões de

seguança nacional. A reativação de certas unidades bélicas que

estavam desativadas desde a desestruturação da URSS é um indício

de que algo está acontecendo. E para a Rússia, o inimigo pode morar

(literalmente) ao lado! Mas, por enquanto, não é nisto que a maioria

das pessoas está pensando!

O fato é que a grande parte dos casais russos têm apenas 1

filho(a). Nós morávamos num bairro fora do centro da cidade, pois a

universidade ficava naquela região. E este bairro tinha uma

população com uma presença mais expressiva de outras etnias

caucasianas, em especial de georgianos e armênios. A escola onde

nossas meninas iam era pública (praticamente não existe escola

particular na Rússia). Percebia-se que famílias russas tinham

basicamente um(a) filho(a), enquanto as de outras etnias chegavam a

ter 3-4 crianças, o que em russo era denominado “famílias de muitos

filhos”. Geralmente, as meninas destas etnias vão até certa série e

param, pois entram em idade para casar. Já os meninos têm mais

perspectivas de avançar nos estudos.

O problema demográfico russo é uma questão muito mais

Page 78: Um mundo chamado Rússia

delicada nas pequenas cidades e aldeias espalhadas pelo país,

especialmente nas regiões siberianas. Como dissemos, o êxodo

destas pequenas localidades para as grandes cidades como Moscou e

São Petersburgo tem limitado o desenvolvimento destes lugares. As

atividades econômicas são muito restritas, e as indústrias da era

soviética, que ainda existem nestes lugarejos, estão sucateadas,

ultrapassadas e geram pouca competição com produtos de fora.

Nos anos 90, e mesmo no início deste século, os índices de

desemprego nas pequenas cidades (e mesmo em Krasnodar, a capital

do estado), chegavam a 40-50% da população economicamente ativa.

Quando estivemos lá em 2002, era muito comum ver pessoas nas

ruas com placas penduradas no pescoço, oferecendo seus serviços

(encanadores, marceneiros, jardineiros, etc.). Havia uma espécie de

“feira” de trabalhadores no centro de Krasnodar, onde pessoas se

colocavam a disposição para uma eventual possibilidade de emprego.

O comércio informal era algo muito difundido. Naquela

época, vimos muitas vezes carros na beira da estrada ou nas ruas da

cidade, com sua carroceria completamente coberta de produtos para

vender, uma espécie de mini-mercado. Caminhões estacionados com

placas grandes (escritas a mão) dizendo CIMENTO é uma imagem

que tenho ainda hoje na mente e ela representa muito bem este

momento econômico do país, que estava em fase de transição

econômica.

Esta falta de estabilidade dos anos 90 e o início da década

seguinte ajudaram a agravar um velho problema russo, o alcoolismo.

O consumo aumentou, especialmente nas regiões menos

privilegiadas.  Logicamente que o problema do alcoolismo tem raízes

Page 79: Um mundo chamado Rússia

muito mais antigas e profundas na cultura local. Dizem que o

consumo de vodka teria sido incentivada pelo regime czarista para

manter o povo sob controle. Na Rússia, tudo é possível!

Nos anos 60 o governo soviético, incomodado com a prática

desenfreada da população no consumo de vodka, adotou um plano de

incentivo ao consumo de sucos de frutas. Houve uma maciça

industrialização do setor. Buscou-se aos poucos trocar o uso das

bebidas alcoólicas pelo mais saudável hábito de tomar sucos. A

medida teve algum impacto, mas o consumo de vodka não caiu nos

patamares esperados ou idealizados pelo governo. O resultado mais

duradouro foi que a variedade e disponibilidade de sucos que se

tornou uma característica no mercado russo. Realmente impressiona

o consumo dos russos destes produtos. Impressiona ainda mais a

variedade dos sabores, maior que no Brasil, um país tropical, onde

crescem uma variedade muito maior de frutas do que na Rússia.

Mas como dissemos, o resultado desta troca foi abaixo do

esperado. A população não deixou os velhos hábitos. Numa política

do estilo “dos males o menor’, o governo apostou então no consumo

da cerveja. Esta campanha parece ter sido mais bem sucedida. Mas, o

efeito colateral é perceptível hoje. O consumo de cerveja é realmente

alto no país. Em especial, os jovens são o alvo desta nova mania

russa. O uso indiscriminado de cerveja é tão forte, que não existe

hora ou local para se tomar, muito menos quantidade de litros.

O consumo entre mulheres é algo ainda mais gritante. Nas

ruas é “normal” ver moças andando com uma garrafa na mão. Nos

bares, as mesas sempre estão bem servidas deste produto. Existe

garrafas de 5 litros, que algumas vezes vimos sobre as mesas no

Page 80: Um mundo chamado Rússia

mesmo número de pessoas sentadas ao redor dela!

Devido ao fato de irmos para a universidade de manhã (a

aula começava às 8:00 horas), muitas vezes passávamos por pessoas

na rua que já estavam com sua garrafa na mão.

Apesar de não vivermos no interior, os relatos de nossos

conhecidos russos davam conta de que lá a situação era ainda mais

degradante, pois a falta de perspectiva levava muitos a beberem,

numa fuga da realidade. Nestes mesmos locais o índice de suicídios

era alto, motivado pelos mesmos problemas.

Apesar de toda a bebedeira, em geral, as pessoas não ficavam

agressivas. Outro fato interessante é que as pessoas têm certo

respeito e mesmo cuidado com os alcoolizados. Parece que, por

todos já terem passado por certas situações por causa da bebedeira,

ou por terem alguém próximo na família que tivesse sido ajudado,

elas demonstram uma preocupação em ajudar. As vezes, diziam os

russos,  um motorista ao ver alguém ‘naquele” estado, parava o carro

e ajudava o transeunte a achar o caminho para casa, inclusive muitas

vezes levando o indivíduo até sua moradia. Bem, o que acontecia

depois com a alcoolizado em casa é outra história…

Mudando um pouco de foco, mas ainda dentro do tema,

outro problema é o tabagismo. Uma estatística levantada por uma

agência revelou que 70% dos russos e 50% das russas são fumantes.

Não sei até que ponto esta pesquisa esteja correta, mas não há

margem para dúvidas de que se estes números não representam uma

realidade absoluta, estamos muito próximos dela. Os russos fumam

muito!

O fato de “todos” fumarem, sempre serve de justificativa

Page 81: Um mundo chamado Rússia

para que se fume em qualquer lugar. Lembro que pegávamos as

lotações para irmos até o centro da cidade, e os motoristas sempre

estavam fumando (é uma generalização, eu sei, mas não me lembro

de um que não estivesse!). O maior sacrifício era estar numa destas

lotações completamente lotada, com pessoas em pé inclusive, e em

especial no inverno. Todas as janelas estavam religiosamente

fechadas, o ar saturado pela respiração dos passageiros (sem contar o

fato de o banho diário ser um hábito aparentemente muito brasileiro

apenas), e o motorista ainda resolvia fumar. Para ser justo com ele,

ao menos ele abria uma pequena fresta na sua janela, ainda que fosse

só para jogar as cinzas do cigarro. Lembro de sempre tentar ficar

perto daquela janela salvadora, ainda que com um pouco de fumaça

vindo no resto por causa do vento, ao menos havia algum oxigênio

por ali. Tentar abrir alguma janela era um ato que nem passava pela

cabeça, pois vi como as pessoas reagiam quando alguém tentava

fazer isto.

Não existia na Rússia leis contra fumar em ambientes

públicos. Lembro que um dia entramos num restaurante com um

amigo brasileiro que lá morava e pedimos se havia um lugar para não

fumantes. A expressão facial da atendente estampava uma pergunta:

o que é isto? Abandonamos o plano de tentar achar o tal lugar para

não-fumantes.

Enquanto estávamos na Rússia, a situação começou a mudar.

Algumas leis foram aprovadas no sentido de proibir o ato de fumar

em lugares públicos, mas parece que restaurantes não fazem parte

desta lista (e muitos outros que nós consideraríamos públicos

também não!). Na universidade não era permitido fumar nas salas de

Page 82: Um mundo chamado Rússia

aula e no corredor, mas entrar na sala dos professores era entrar em

território de fumantes. No intervalo entre as aulas, era comum ver

uma tropa de alunos sair apressado para o pátio, a fim de ter alguns

minutos com o hábito.

É possível imaginar o índice de incidência de câncer

advindos desta prática. Álcool e tabaco são grandes adversários na

Rússia. Isto aliado a outros fatores sociais, além dos descritos acima,

levaram o governo russo a tomar medidas fortes para prolongar a

expectativa de vida dos seus cidadãos. Um país que perde muitas

pessoas para doenças originadas pelo consumo de álcool e tabaco,

que tem uma taxa de suicídio elevada, cujo as famílias têm em média

uma criança, evidentemente precisa se preocupar com sua existência

como povo e nação.

Apesar desta tentativa de aumentar a expectativa de vida e da

taxa demográfica, o país tem uma outra questão que vai no contra-pé

destas medidas. Segundo estatísticas do próprio governo, uma

mulher russa faz em média 7 abortos ao longo de sua vida. A lei do

aborto foi aprovada em 1920, fazendo da Rússia o primeiro país a

legalizar esta prática. Em 1936 Stalin a revogou, e sua proibição

durou até a morte do ditador. Atualmente o país é o campeão mundial

em abortos, e isto é uma questão delicada agora para o próprio

governo. Nos anos recentes ele tentou reaver esta lei, o que provocou

a reação enfurecida de parte da população, especialmente das

organizações ligadas aos direitos das mulheres.

Deixe-me dizer que sou contra esta prática, por questões

éticas e morais, mas observando na prática o que isto provocou (e

ainda provoca) no psicológico de pessoas envolvidas, a prática não

Page 83: Um mundo chamado Rússia

acaba apenas com a vida do feto, mas destrói internamente (na alma,

se quiserem pensar assim) a pessoa que o fez. Conheci um russo que

disse estar neste mundo por um milagre divino, pois sua mãe antes

de tê-lo, praticou 10 (!!!!) abortos. Ele escapou por pouco! Algumas

mulheres que tive a oportunidade de ouvir falar sobre o assunto, que

é algo velado naturalmente, falavam de suas angústias ao pensar

naquilo que fizeram. Este é um assunto que ainda provoca muita dor

nas pessoas, mas é a realidade da experiência de vida delas. Não

quero ser moralista aqui, mas ver esta realidade coloca-nos diante de

questões, no mínimo, inquietantes.

A Rússia está distante do Brasil, não apenas na questão

histórica, econômica, política, religiosa, étnica, mas também em

questões sociais. Os problemas são distintos, ainda que tenhamos

similaridades. Ver estas diferenças nos fazem pensar na vida, e em

algum sentido acabam por mudar nossa visão de mundo. Perceber os

problemas lá foi mais fácil por não fazer parte daquela cultura.

Acaba-se por ver as questões de outro prisma, notar detalhes que não

estão perceptíveis aos habitantes locais. Mas o mais interessante é

voltar para o seu país e começar a ver os nossos problemas que antes

também estavam ocultos aos olhos. Isto é, creio eu, amadurecer na

vida!

São os contrastes, as diferenças, os outros tons que acabam

abrindo nossos olhos para novas perspectivas...

Page 84: Um mundo chamado Rússia

CURIOSIDADES CULTURAIS

A diferença entre Brasil e Rússia está muito além da posição

geográfica entre ambos como realçamos antes. Gostaria de destacar

aqui algumas pequenas facetas da cultura popular deste país que

aprendemos no nosso tempo por lá.

Quando chega a época de fim de ano, os pinheiros aparecem

em vários lugares pela cidade. São pequenos pontos de venda destas

árvores, que recebem o nome em russo de “yolka”. Elas não são

árvores de Natal, mas sim, árvores de Ano Novo. É que na Rússia o

Natal oficialmente vem depois do Ano Novo, lá no dia 07 de janeiro.

Isto ocorre por causa do calendário que é seguido pela Igreja

Ortodoxa Russa, o Juliano, que tem uma diferença de 13 dias em

relação ao Calendário Gregoriano, utilizado na maior parte do

mundo. Desta forma, o dia de Natal acaba caindo em janeiro pelo

nosso sistema.

Com a Revolução Russa, o novo governo adotou o

Gregoriano, mas a Igreja continua com o sistema antigo para as datas

por ela celebradas. Assim, os russos consideram o Natal

comemorado em 25 de dezembro uma festa “Católica”, e ela

praticamente não é comemorada na Rússia. Mesmo igrejas

Protestantes usam a data tradicional russa como base de

Page 85: Um mundo chamado Rússia

comemorações, pois para os russos não faz sentido um Natal em

dezembro. Mas isto aos poucos tem mudado, e algumas pessoas

começam a comemorar o Natal nas duas datas.

Outro fato interessante relacionado à questão do calendário é

a data de Ano Novo. Os russos, assim como a maioria do mundo

contam o dia 1° de janeiro como início do ano. Mas por causa da

diferença de datas dos calendários, o Ano Novo também é

comemorado duas semanas depois. Os russos se saúdam na festa de

1° de janeiro com a frase “Feliz Ano Novo”, e para a outra data com

“Feliz Ano Novo Antigo”. A primeira vez que ouvi isto, pareceu-me

engraçado e confuso, mas depois acabamos nos acostumando.

Lembro que numa noite de janeiro estava dormindo e de repente

começaram os barulhos de fogos de artifício e pessoas gritando das

janelas dos apartamentos. Pensei que era tiroteio (pensamento de

brasileiro!!!), mas parei para ouvir melhor e ouvi a frase típica “Feliz

Ano Novo Antigo”... Fui dormir mais tranquilo!

Ainda sobre a festa de Ano Novo, os russos a esperam

ansiosamente, é uma data das mais importantes do calendário. Eles

compram muitas garrafas de vinho espumante, chocolate, tangerinas,

bolos e balas. A figura principal é o “DedMoroza” (Vovô do Frio), o

que corresponde ao nosso “Papai Noel”, que juntamente com sua

sobrinha e assistente, a sempre bela “Snegurotchka” (Moça da

Neve), distribui presentes para as crianças. O “Ded Moroza” está

associado exclusivamente com esta festa de Ano Novo, e não com o

Natal como no Ocidente.

A tradição que dura mais de 30 anos no país é a de, na noite

de 31 de dezembro, as famílias se reunirem para assistir um filme

Page 86: Um mundo chamado Rússia

chamado “Ironia do destino”, que passa no canal principal de TV.

Sempre o mesmo filme, todo o ano, com quase 3 horas de duração,

mas, tradição é tradição!

Deixando um pouco as festas de lado (pois ainda poderíamos

falar sobre a Maslenitsa que é um correspondente ao nosso

Carnaval), gostaria de passar para outra característica dos russos, que

é a de sempre citarem alguma fala de um filme famoso. Algumas das

citações viraram verdadeiros provérbios ou chavões, sendo

plenamente compreensíveis para os ouvidos russos, mas que

infelizmente não fazem muito sentido para os estrangeiros. Às vezes

isto dificultava um pouco a comunicação, pois no meio da conversa

alguém recitava a frase de algum filme da Era soviética e todos riam

ou ao menos entendiam, e nós ficávamos ali parados tentando

entender o que estava acontecendo. Quando um dos presentes tinha a

sensibilidade de notar a nossa alienação ao que acontecia, começava

a explicar o contexto, ou ainda a contar todo o filme…

Outro traço da cultura russa é o de nunca rir em público de

forma alta, ou sem um motivo extremamente importante. O riso, ou

mesmo o sorriso, sem um bom “motivo” é considerado pelos russos

como um sinal de demência mental. Certo dia, num mercado público

no centro da cidade, estávamos com uma brasileira que ao passar por

uma banca, parou na frente da vendedora e começou a sorrir,

tentando mostrar simpatia para a outra mulher.

- Do que você está rindo? - perguntou a vendedora com ares

de poucos amigos.

A brasileira não entendeu, e abriu ainda mais o sorriso,

pensando que de alguma forma estava agradando, sem perceber o

Page 87: Um mundo chamado Rússia

tom ameaçador da lojista.

- Você acha que sou palhaça para ficar rindo de mim? -

continuou a vendedora.

Neste momento minha esposa interveio e pediu desculpa

para a vendedora, informando-a de que aquela mulher era

estrangeira.

- E daí, eu também sou estrangeira (armênia) e não fico rindo

como uma doida por aí!!!- exclamou firmemente, acabando com a

conversa.

Mas aos poucos a nova geração vem aprendendo a lidar com

esta “manifestação facial”.

Certo dia, na sala de aula na Faculdade, um dos colegas

estava rindo alto por causa de alguma coisa engraçada que alguém

dissera naquelas conversas de fundo de sala. Os risos se espalharam

pelo fundo, e a professora (já idosa) parou a aula para saber do que

se tratava aquilo. Os alunos obviamente não contaram os detalhes,

apenas informaram que era uma piada qualquer. A professora tomou

então um caminho estranho para mim naquele momento. Ao invés de

mandá-los parar ou expulsá-los da sala (algo muito comum na

Universidade), começou a dizer que aquilo era coisa de pessoa com

problemas mentais. Os alunos perguntaram então se rir era sinal de

demência, ao que a professora respondeu com um categórico “sim!”.

Quase começou uma revolução russa na sala de aula, mas no fim,

todos pararam de rir e a aula simplesmente continuou.

O sorriso é algo tão sério na Rússia, que sorrir demais é

considerado também sinal de falsidade. Em especial, existe um

preconceito forte contra a cultura americana do “keep smiling”, o

Page 88: Um mundo chamado Rússia

que veio a receber o apelido na Rússia de “sorriso americano”. Sorrir

para estranhos é algo indesejado, e muito mal visto pelos outros.

Lojas e redes de “FastFood” tiveram problemas no país justamente

por causa disto. Numa enquete promovida por uma rede de

lanchonetes americana logo no início de suas atividades lá, o

principal ponto de insatisfação dos clientes era o “sorriso americano”

dos vendedores, que eram instruídos para atenderem na forma do

“keep smiling”. Restringida esta gafe cultural, a rede agora está

espalhada por todas as principais cidades da Rússia.

Mas estas gafes culturais podem ser cometidas por qualquer

um. Por menor e sutil que seja a regra não explicita, o estrago ou

mesmo a vergonha pela não observância dela geram

constrangimentos. Tomamos como exemplo o caso de um buquê de

flores. Qual o número de flores que deve ter um buquê? Isto pode

fazer a diferença entre um agrado e um inconveniente. Números

ímpares de flores são sempre usados para homenagens, presentes,

agradecimentos ou em qualquer ocasião social. Agora, dar um buquê

com um número par significa “pêsames”, pois é o número usado em

enterros. O erro de dar para alguém um número par ao invés de

impar, pode ofender sensivelmente uma pessoa. Uma flor somente é

um agrado entre namorados ou interessados num namoro. E

novamente aqui, feito da forma errada, mesmo com toda a

sinceridade, pode ocasionar embaraços e situações constrangedoras.

Olhando por outro lado, costumes culturais podem ser mal

interpretados da mesma forma pelos estrangeiros. Os brasileiros que

nos visitavam constantemente nos perguntavam sobre o hábito muito

comum das moças andarem de mãos dadas nas ruas. Mas isto é

Page 89: Um mundo chamado Rússia

apenas um sinal de amizade, nada mais. Outro questionamento

frequente é a cena de que, em quase todas as esquinas, terem garotas

paradas, vestidas de forma (segundo o ponto de vista dos brasileiros)

um tanto quanto atrevido, com minissaias e todas bem maquiadas.

Tínhamos, então, que dizer que elas estavam ali apenas esperando a

lotação, pois as esquinas são os pontos de parada delas, e que os

trajes eram condizentes com a moda, pois todas russas praticamente

se vestem daquela forma, especialmente as mais novas, sem qualquer

conotação mais , digamos, sensual.

Neste sentido, roupas são um capítulo à parte. A moda

quando chegamos na Rússia era o sapato bico-fino, mas muitos

também usavam o que nós denominávamos de “sapato Aladim”, pois

era afinado e com a ponta levantada. Era muito estranho ver os

homens com traje social e aqueles sapatos que destoavam do resto.

As mulheres, por outro lado sempre estavam de salto, e quanto mais

alto, melhor. No corredor da Universidade o som provocado pelos

saltos era algo estranho, pois na hora dos intervalos, quando as portas

das salas se abriam, os corredores se enchiam de moças que

desfilavam com suas minissaias e com seus saltos. Mas, antes de

saírem para o corredor, sempre repassavam a maquiagem, pesada,

espessa. As mulheres russas adoram maquiagem. O catálogo de uma

empresa de cosméticos que no Brasil apresenta uma quantidade

muito maior de perfumes e outros produtos, na Rússia praticamente é

visto com páginas e mais páginas dedicados à maquiagens. E este

hábito de usar maquiagens não tem idade, nem ocasião.

Não raramente ainda é possível ver pessoas andando de

roupões na rua. Explico. Elas descem dos apartamentos para irem

Page 90: Um mundo chamado Rússia

comprar alguma coisa logo ali na esquina ou mesmo no quiosque.

Por praticidade, elas saem de chinelo e roupão, afinal a banca de

revistas é logo ali, e este ato não gera maiores constrangimentos.

Algumas vezes nos deparamos com as pessoas saindo pela porta do

prédio só de roupão, o que chocava de início, mas depois acabamos

nos acostumando com a cena.

As mulheres trabalham em todos os setores da sociedade.

Raro era ver, por exemplo, homens dirigindo ônibus, trólebus ou

bonde. A limpeza da cidade, muitas vezes, era feita pelas mulheres, e

mesmo no trabalho de recapeamento do asfalto das ruas, as mulheres

estavam presente. Isto é uma herança dos tempos soviéticos, quando

a mulher ganhou muita projeção. Alguns associam este fenômeno

com a Segunda Guerra, pois durante e após a guerra, as mulheres

tiveram que assumir responsabilidades nas fábricas, no campo e na

vida diária das cidades, já que os homens estavam na frente de

batalha, ou tiveram um fim mais trágico.

Não é à toa que um dos dias festivos mais importantes na

Rússia  é o 8 de março, Dia Internacional da Mulher. Esta data é

levada muito à sério por lá, sendo inclusive feriado. Neste dia, os

homens presenteiam as mulheres com flores, fazem discursos e as

homenageiam. Lembro-me da primeira vez que passei esta data na

Rússia. Por desconhecimento da importância, não levei nada para a

professora de russo, nem dei os parabéns e toda a felicitação pela

data tão importante. Gafe! Nos anos seguintes, religiosamente algum

tipo de felicitação foi expresso para as mulheres que eu encontrasse

eventualmente naquele dia.

Mas os homens também têm sua data, menos comemorada,

Page 91: Um mundo chamado Rússia

mas igualmente importante. O dia escolhido foi 28 de fevereiro, que

acabou ganhando o nome de “Dia do soldado”. Todos os homens,

inclusive meninos, são alvos das mesmas felicitações, presentes e

tudo mais. O “dia dos homens” se comemora no “dia do soldado”,

pois se pressupõe que todos os homens foram, são ou serão soldados.

Resquícios da era soviética.

Aqui se percebe que a guerra está presente em todos os

lados. E isto se reflete nas datas comemorativas, especialmente no

dia 9 de maio, comemoração do fim da guerra, o “Dia da Vitória”.

Paradas militares são vistas nas ruas, pessoas desfilando, passeatas,

homenagens aos heróis de guerra, veteranos e aos soldados tombados

em combate. O número de 27 milhões de soviéticos mortos no

conflito justifica plenamente esta importância atribuída ao dia.

Dizem que todas as famílias tiveram ao menos um membro morto na

guerra. No ano que chegamos na Rússia, uma fita, chamada de Fita

de George, começou a ser distribuída à população gratuitamente

como um símbolo, e isto se espalhou pelo país, virando uma mania

nacional. Suas cores com listras preta e laranja intercaladas eram

exibidas nos carros, transportes públicos, penduradas nas camisas,

chapéus, janelas, enfim, por todos os lados.

O que mais me impressionou na Rússia em relação aos

feriados, é que eles são observados rigorosamente. Se um feriado

acaba caindo num sábado ou domingo, ele é automaticamente,

transferido para a segunda-feira, ou sexta-feira. Ou seja, não se perde

o dia de descanso por causa de inconveniências do calendário.

E a guerra também é intensamente retratada nos filmes

russos e nos livros. Estas duas manias nacionais sempre retrataram o

Page 92: Um mundo chamado Rússia

momento mais marcante da história do país no século XX. Ir ao

cinema é uma paixão russa, o que é estimulado pelos preços

extremamente acessíveis. O livro é outro companheiro sempre

presente. E apesar dos celulares terem tirado o lugar do livro

ultimamente, ainda mais entre os jovens, uma opção adaptada de

tecnologia e a antiga paixão é vista cada vez com mais frequência

nas ruas, os leitores de livros eletrônicos, que são dos mais variados

tipos, tamanhos e cores. Eles são encontrados com facilidade até em

supermercados.

Supermercados, aliás, que evoluíram muito em termos de

qualidade. Nos tempos finais da URSS passavam por uma forte crise

de abastecimento. O fim da União acabou por trazer mais problemas,

pois as repúblicas que abasteciam o mercado russo de frutas e

verduras, entre outras mercadorias, acabaram por romper o fluxo que

era forçado pelo governo central. Mas esta crise foi superada, e

atualmente encontra-se de tudo. A demanda por produtos importados

era tão grande, que uma estimativa do próprio setor observava que

50% dos produtos colocados à venda nos mercados eram de origem

externa. Isto se explica basicamente pela falta de produção nacional

ou a péssima qualidade do que era produzido no país. Entretanto a

indústria nacional russa acabou reagindo e iniciando um processo de

maior concorrência com os importados.

Muitos produtos ainda vêm de fora. Quando se chega num

mercado na seção de frutas, podem-se ver as bandeiras dos países de

origem delas. Turquia, Egito, Israel, Colômbia, Equador, e para nossa

surpresa, algumas vezes a bandeira do Brasil, debaixo da qual

estavam mangas e limões verdes. Achamos polpa de frutas

Page 93: Um mundo chamado Rússia

congeladas típicas do Brasil como cupuaçu e cajá. Também

encontramos num mercado durante algum tempo carne brasileira,

tanto de gado quanto de frango e salame, e o sabor era bem mais

agradável para nosso paladar do que a carne russa.

Vale a pena notar que para os brasileiros, a comida russa não

atrai muito. Em geral, para o nosso paladar, ela é sem sal e sem gosto

por causa da falta de temperos. Em alguns casos, especialmente com

as comidas de origem da Ásia Central, elas são picantes, e se o

anfitrião que a está oferecendo diz que não é, duvide, pois paladares

são diferentes. Mas como se diz, gosto não se discute. Certa vez,

estivemos na casa de uma família centro-asiática e o almoço foi

servido ao estilo oriental. Ficamos sentados no chão, ao redor de uma

mesa baixa, entre almofadas e reclinados. A comida foi posta à mesa

e o anfitrião, após explicar que o prato era tradicional de sua cultura,

nos convidou para comermos. Perguntei se a comida era apimentada,

ao que me respondeu negativamente. Aprendi naquele dia que muitos

conceitos culturais e gastronômicos são relativos. Precisei

imediatamente de algo para tomar, ao que me foi servido chá quente,

como de costume. Fui forçado a tomar o chá mesmo, pedindo depois

educadamente um copo de água.

Os choques culturais acontecem a todo instante. Eles podem

ser gastronômicos, auditivos, visuais, etc. Lembro que sempre tive

dificuldade com os taxistas. Eles são sempre os senhores na relação

com o cliente. Uma pessoa que ataca um táxi na rua começa do lado

de fora do carro, pelo lado do passageiro, a negociação. A primeira

questão a ser definida não é o preço da corrida (poucos tinham

taxímetro), mas se o taxista estava disposto a levar o cliente ao local

Page 94: Um mundo chamado Rússia

desejado. Em grande parte, as negociações acabavam naquela

pergunta mesmo, pois o taxista ia embora sem maiores explicações.

Certa vez, ao chegarmos de Moscou no aeroporto de Krasnodar, já

no início da manhã, depois do avião ficar horas preso num outro

aeroporto por causa da nevasca que se abatia sobre Krasnodar,

precisávamos de um táxi. Já era esperado que o preço da corrida

seria abusivo, mas naquela situação já sabíamos como agir, negociar.

Contudo, ninguém estava disposto a nos levar, pelo fato de não irmos

para o lugar onde eles queriam levar os possíveis passageiros.

- Só vou para o centro! Se você quiser vamos lá! Se não,

não! - diziam.

O nosso bairro era no caminho entre o aeroporto e o centro,

mas nenhum dos taxistas se prontificou a nos levar até o nosso

destino. Felizmente as coisas na Rússia já haviam mudado o

suficiente, e minha esposa ligou para uma companhia de táxi e pediu

um. Em poucos minutos o táxi chegou, e nos levou para casa,

cobrando o valor justo da corrida marcado no taxímetro.

Em outra ocasião, minha esposa e eu estávamos no centro da

cidade, precisando chegar até um local onde estava acontecendo um

evento. A temperatura era de -17° C, e precisávamos de um táxi, pois

o local do evento era distante e sem rede de transporte público. Era

noite e estava nevando muito. Quase não haviam carros na rua e os

poucos taxis que circulavam não paravam para nós. Já angustiado

com a situação e o frio, achamos um táxi parado num canto.

Aproximei-me esperançoso de enfim ter encontrado a solução do

nosso dilema. O rapaz no carro estava segurando um prato de isopor

e ficou olhando para mim pela janela com cara de quem não iria se

Page 95: Um mundo chamado Rússia

dignificar em abrir ao menos o vidro.

- Está livre? - perguntei congelando.

- Estou comendo. - respondeu através de uma freta na janela.

- Pode nos levar até à Rua Rossiskaya?

- Estou comendo! - insistiu o motorista.

- Quanto tempo até você terminar de comer? - já começando

a perder a paciência, mas mantendo um polimento.

- Daqui a meia-hora podemos ir.

- Meia hora?  Não dá para terminar aí rapidinho?

- Vou descansar um pouco depois de comer…

Olhei para minha esposa que estava do outro lado da rua e

desisti, sabendo que meia-hora significava um “NÃO”!!!

Por fim, conseguimos carona com um conhecido que estaria

passando pelo centro dentro de meia-hora. Ficamos parados (e

esquentando-nos um com o outro) por todo aquele tempo, na rua,

debaixo de neve e muito frio. Mas é assim que as coisas são. O

freguês raramente tem razão na Rússia!

Entretanto, cada vez mais os consumidores russos tem se

oposto a este tipo de tratamento desdenhoso que lhe é oferecido. Isto,

segundo pode-se presumir, é fruto também do contato dos russos

com o mundo externo. O turismo cresceu de forma exponencial no

país nos últimos anos. Os russos têm preferido ir para o estrangeiro a

frequentar as praias do sul do país. A explicação é simples: valores

cobrados por hotéis e alimentação são muitas vezes superiores aos

encontrados fora, e ainda precisamos acrescentar o fator “bom

atendimento” e educação (mimos). Os russos têm partido cada vez

mais em pacotes turísticos para os países relativamente perto, como

Page 96: Um mundo chamado Rússia

Turquia, Egito, República Tcheca, Espanha e Chipre. Outros lugares

como a distante Tailândia e Maldivas também são muito

requisitados.

Os pacotes com preços atrativos, num sistema geralmente de

“tudo incluído”, sol e praias aliado a bons hotéis, fazem com que o

fluxo de pessoas seja muito grande, especialmente no inverno russo,

quando em países como Egito e Turquia, o sol brilha forte.

Tudo tem contribuído para que os russos venham a conhecer

o mundo e importar certas exigências para seu país. E isto tem, aos

poucos, mudado a cara de um sistema que permaneceu fechado por

muito tempo.

E este é seguramente um processo sem volta…

Page 97: Um mundo chamado Rússia

A ALMA RUSSA: DO MISTICISMO AO CRISTIANISMO

Um dos grandes mistérios da Rússia encontra-se dentro dos próprios indivíduos que compõem aquele país. Falar a respeito da alma russa em si é uma das tarefas mais complicadas.

Em seu livro Os russos, Angelo Segrillo aborda, num dos capítulos, o tema que leva como subtítulo “Mente ou Alma?”. Segundo ele, o ocidente tenta interpretar e entender o comportamento de um país, neste caso a Rússia, segundo a chamada “mente russa” - russianmind. Entretanto, em russo, a expressão correspondente é “alma russa” - russkayadushá- o que pode demonstrar fortemente a atração russa não pelo racional (mente), mas pelo espiritual. Evidentemente que uma dicotomização extremada nesta questão seria impraticável e até

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injustificável. Mas o fato é que os russos não podem ser vistos

como racionais e materialistas essencialmente. Eles mesmos se entendem mais como espirituosos ou espirituais (não apenas no sentido religioso) do que racionais, pois são extremamente passionais em suas relações internas. De igual forma, eles podem ser considerados “espirituais” por suas notáveis capacidades artísticas, como as áreas musicais, teatrais, de dança, literatura e religiosa.

Gostaria de abordar neste sentido a questão religiosa, que é onde mais a alma russa aflora. A ideia de um russo ateu, materialista, desvencilhado de qualquer sentimento religioso e sem superstições está muito longe da realidade. Tal declaração pode surpreender algumas pessoas, pois geralmente se vincula os russos ao “comunismo ateu”, com uma ideologia anti-religiosa, expressa inclusive por seus líderes em suas guerras santas contra todos os tipos de manifestações religiosas.

Entretanto, a realidade é que a alma russa é totalmente supersticiosa. Em geral, mesmo pessoas instruídas manifestam tal superstição em momentos diários. O dono do nosso apartamento, por exemplo, sempre ia pegar o aluguel conosco na parte da manhã, e nunca à noite. Certa vez, insistimos que ele passasse no apartamento à noite (por uma razão que

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agora não lembro). Ele procrastinou até onde pode, indo pegar finalmente o dinheiro numa manhã, depois de vários dias. Depois descobrimos que os russos não pegam dinheiro de outra pessoa à noite, senão, como dizem, o dinheiro “vai embora”! Mas aconteceu certa vez que ele precisou buscar o aluguel à noite. Ficamos surpresos, mas abrimos a porta esperando o que iria acontecer. Ele então me cumprimentou, apertamos as mãos já dentro do apartamento, pois não se pode apertar as mãos quando ambos estão de lados distintos dos umbrais da porta. Pediu então para que eu colocasse o dinheiro no chão. Olhei para ele com uma cara de quem não estava entendendo a questão. Ele fez gestos para eu colocar o dinheiro na sua frente. Coloquei-o como havia instruído nosso “hoziain” (dono) e ele abaixou-se e pegou o bolo de notas. Tive a impressão que neste meio-tempo algum tipo de cerimonia fora feito, mas não tenho como afirmar categoricamente. Ele olhou para mim e minha esposa, agora com cara de satisfação e explicou que não se pega dinheiro das mãos de outros à noite. Nós nos entreolhamos e apenas balançamos a cabeça. Parecia aquelas cenas em que duas civilizações se encontram pela primeira vez, quando tentam se comunicar e cada um dos lados fica tentando adivinhar o que o outro está fazendo, qual o motivo dos rituais e palavras. Ao sair, ele pediu para abrirmos

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a porta, mas esta já sabíamos, pois se a visita abre a porta, ela nunca mais volta!

Outro costume russo é nunca assobiar em ambientes fechados, como lojas, casas, e etc. Isto é muito mal visto, e deve ser evitado a qualquer custo (quantos problemas tivemos com brasileiros que nos visitavam, pois brasileiro adora assobiar, seja para chamar alguém, seja para cantarolar!). Segundo os russos, isto faz com que o dinheiro vá embora. Mas isto tem uma explicação histórica, pois quando a Rússia foi dominada pelos mongóis (entre séculos XIII-XV), como os opressores não falavam a língua local, entravam nas casas assobiando para indicar que estavam confiscando algo ou cobrando impostos.

Algumas vezes apareciam reportagens na TV sobre o sistema de moradia, que é um problema no país. No meio da reportagem, às vezes apareciam casais entrando num apartamento que estavam para alugar ou comprar, carregando um gato. Antes de entrarem no local, o casal colocava o gato no chão e seguiam os seus passos. Isto parecia um ritual e posteriormente descobrimos que dependendo do local que o gato for ou permanecer, serve de presságio para o casal em relação ao negócio de compra ou aluguel do local. E isto parece ser um caso  muito sério!

Os russos parecem rir de outra instituição nacional, mas ao mesmo tempo sempre parecem ter

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muito cuidado com a questão da “gadanie” (adivinhação). Fazem-se adivinhações com tudo, mas a mais popular é a do café. Eles despejam água quente no copo e depois o pó de café. Quando terminam de tomar o café, ficam os resíduos (borra) de café no fundo da xícara, então algum(a) iniciado(a) na “arte” pega-a e inicia o processo de interpretação dos formatos do pó no fundo. inda existe o processo de adivinhação pela vela, que consiste em deixar pingar gotas de cera derretida das velas em uma bacia ou copo. Ao se passar pelos pontos de ônibus ou bonde, é possível ver inúmeros anúncios de “Gadanie” pendurados nos postes. Existem ainda as vovós (especialmente) nas pequenas cidades e vilas que são as que sabem fazer magias, conhecem ervas, tem “poderes”.

Em alguns lugares, o xama9nismo (crença nos espíritos da floresta e de animais) cresceu muito, e um número cada vez maior de russos segue este tipo de crença, especialmente na Sibéria. Esta tradição xamã vem perdurando por milênios, pois já antes da chegada do Cristianismo no século X, a prática era difundida por todas as regiões. O paganismo ainda encontra muitos adeptos entre os russos, que ultimamente tem sido alavancado por uma busca pela identidade étnica, tanto dos siberianos, quanto dos eslavos no oeste.

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Contudo, os russos são em sua maioria cristãos ortodoxos, e ainda que as estatísticas e estimativas sejam conflitantes, podemos assumir que algo em torno de 60% se considerem ao menos adeptos de alguma forma com a ortodoxia oficial.

Outro bloco religioso significativo é o muçulmano, que deve estar em torno de 6 a 10%. Contudo o número vem crescendo devido a dois fatores principais: a alta taxa de natalidade entre a população muçulmana e a entrada no país de pessoas vindas das ex-repúblicas socialistas, especialmente da Ásia Central, que são predominantemente islâmicas. Algumas regiões administrativas e estados da Federação Russa são de maioria muçulmana. Apesar de quase todas estas regiões estarem na porção sul, no Cáucaso, existe neste caso a República do Tartaristão, à leste de Moscou, que é um dos principais redutos islâmicos no país.

As regiões budistas se concentram na Sibéria, perto da China e Mongólia. Existe ainda uma república budista na parte europeia, que é a única região budista da Europa, chamada Kalmikya.

Não poderíamos deixar de mencionar a forte presença judaica. Apesar de sua porcentagem ser relativamente baixa, os judeus formam uma categoria à parte. Sua influência está por todas as partes na cultura russa. Ao abrirmos livros de culinária russa e

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da judaica, perceberemos uma similaridade extraordinária. Muito da forma de pensar e agir dos russos podem ser encontrados na visão de mundo dos judeus. A força deles é demonstrada pela própria atitude de Stalin durante seu governo. Para dar uma solução à questão de falta de terras para os judeus, ele cria a Região Autônoma Judaica em 1934. A solução oficial do ditador nada mais foi do que uma tentativa de subjugar e controlar os judeus, isolando-os do resto do país, colocando-os numa espécie de exílio, pois o local escolhido fica do outro lado da Rússia, perto de Khabarovsk, em direção ao Japão.

Mas gostaria de me ater mais na questão da maior influência religiosa da Rússia, o Cristianismo.

Como dito, oficialmente foi o príncipe Vladimir que recebeu a nova fé, impondo-a a seus súditos. O ano era 988, e seu batismo ocorreu no rio Dnieper, na região da atual Ucrânia. Sua conversão teve, entre outros motivos, a necessidade de unificação do Estado de Kiev-Rus (que veio a ser a base da posterior Rússia).

A opção pelo Cristianismo, especialmente o Ortodoxo, se deu de forma muito inusitada, segundo a Crônica Primária Russa. Vladimir teria mandado emissários a quatro regiões, dominadas pelo Islamismo, Budismo, Cristianismo Católico (Ocidental) e o Cristianismo Ortodoxo (Oriental). Seguindo uma

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respaldada tradição histórica, principalmente por questões geográficas óbvias, a aproximação com Bizâncio foi efetivada. Ao longo da história, os bizantinos mandaram seus missionários para o leste da Europa, com o fim de cristianizar as tribos bárbaras lá existentes. O próprio alfabeto usado atualmente na Rússia, Ucrânia e outros países do Leste Europeu, chamado Alfabeto Cirílico, é baseado no alfabeto grego, por influência de missionários gregos (Metódio e Cirilo), que na segunda metade do século IX, teriam feito a adaptação para as línguas eslavas (tronco linguístico mais importante da Europa Oriental).

O vínculo com o Oriente da cristandade então era um processo lógico. Além de abrir toda a região do Leste Europeu para o comércio e deixar a região sob a sua proteção religiosa, esta aproximação ideológica trouxe também como resultado as influências culturais e artísticas do Império Bizantino (que era o Império Romano do Oriente) e elas acabam por tomar parte na formação posteriormente da “alma russa”.

A ortodoxia é tão forte que os russos a entrelaçam de com suas vidas, fazendo com que para eles, ser russo é ser ortodoxo e vice-versa.

Os russos não têm muito apresso pelo Cristianismo da linha ocidental. O Catolicismo é visto

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como uma espécie de deturpação, e sua presença em solo russo é muito mal aceita dentro dos círculos populares. Isto se explica pelo fato de que na época da formação do Estado e a adoção do Cristianismo, a cristandade estava passando por problemas de entendimento em relação a certos pontos tidos como cruciais em sua interpretação teológica. Estas diferenças acabaram por promover o “Grande Cisma” entre o Ocidente o Oriente em 1054. Até hoje, por exemplo, nenhum papa teve permissão para visitar o país, apesar das tentativas do Vaticano nos últimos tempos de uma aproximação.

Outro ponto que ainda parece ter influência dentro de um inconsciente coletivo dos russos é a ideia de que Moscou estaria destinada por Deus para se tornar a chamada Terceira Roma. Ao longo dos séculos, esta teoria foi tomando forma e se fixando dentro de círculos eclesiásticos e posteriormente sociais.

Mas o que seria isto? Roma foi considerada como uma espécie de centro da Cristandade desde a conversão de Constantino (313 d.C.). Contudo, no século V Roma foi tomada pelos bárbaros, o que ocasionou a queda final do Império Romano do Ocidente. Mas ainda restava a parte oriental, Constantinopla, que posteriormente veio a ser Bizâncio. Assim sendo, esta cidade veio a se tornar a

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segunda Roma, pois era um centro importante do cristianismo, e estava nas mãos de Imperadores cristãos. O Império Romano do Oriente (ou Império Bizantino) se mantêm por mais mil anos, até que os turcos-otomanos a tomam em 1453, fazendo com que a capital do Cristianismo passasse definitivamente para as mãos dos muçulmanos. A queda da segunda Roma traz um vácuo de liderança dentro do Cristianismo, e a única grande capital cristã na Europa se torna Moscou. Nesta linha lógica, muitos propagaram a ideia de que Moscou seria a herdeira da tradição cristã, o que a tornava a Terceira Roma.

Toda esta história um tanto quanto truncada e ideologizada serve para muitos, na ortodoxia, como base para reclamar para a Ortodoxia Russa um lugar de eminência dentro do quadro da cristandade mundial. Tal ideologia encaixou-se de forma excepcional às necessidades de grandeza dos czares e, posteriormente, isto fica impregnado dentro do próprio povo, ainda que de maneira muitas vezes subliminares.

E foi justamente a Ortodoxia Russa que serviu como um obstáculo forte no avanço do Islã. A Rússia, juntamente com Estados como Armênia e Geórgia (região do Cáucaso) foram fundamentais para que a Europa não sofresse a pressão muçulmana a partir do Leste. Especialmente a Armênia e a Geórgia (que

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foram os primeiros Estados que tornaram o Cristianismo a religião oficial, antes mesmo de Roma) sofreram os golpes dos muçulmanos que tentavam abrir caminho pelo Cáucaso. Por sua intensa luta pela fé, estas terras ficaram sob o domínio cristão.

Contudo, contornando estes dois Estados cristãos, os muçulmanos ocuparam partes do que é hoje o sul da Rússia (Cáucaso Norte). Com o interesse russo de anexação das terras pouco ocupadas pelos turcos ao sul (século XVIII), um problema a mais estava se desenhando no horizonte. A religião oficial dos russos era o Cristianismo, mas aquela região estava no limite do mundo muçulmano. Isto fez com que as pessoas que para lá fossem enviadas, no processo colonizador, precisavam ter seu compromisso e sua lealdade ao Império Russo, significando lealdade ao Cristianismo, e ninguém mais leal ao czar e ao cristianismo que os cossacos..

Este fato explica (em grande medida) a forte presença da Ortodoxia no sul da Rússia atualmente. Talvez mais do que todas as outras regiões russas, a fronteira sul é bem polarizada entre cristãos e muçulmanos. Apesar da anexação de várias repúblicas muçulmanas na região ao Império Russo, elementos religiosos ainda trazem a tona sentimentos de desacordo e mútua desconfiança. Certo é que, em muitos casos, a religião serve de desculpa para

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questões que não dizem respeito diretamente ao campo da religiosidade. Ideologias políticas e econômicas estão sempre nos bastidores, ditando o ritmo no palco principal.

Krasnodar é uma cidade que fica dentro da região cristã. Para o norte encontramos somente províncias e estados cristãos. Contudo, basta atravessar o rio que fica ao lado da cidade para se entrar em “território muçulmano”. A Adygea é uma república oficialmente muçulmana. Se em Krasnodar podemos encontrar basicamente apenas igrejas e templos ortodoxos, na capital da Adygea, Maykop, a grande atração é a mesquita azulada que se destaca na paisagem. Em Maykop a Ortodoxia Russa está presente, mas ela divide a cena com o Islã.

A partir do estado de Krasnodar para o leste, temos o estado de Stavropolskiy, onde temos influência ortodoxa e muçulmana, e a partir dali, apenas repúblicas muçulmanas, com exceção da Ossétia do Norte, um reduto cristão no meio de regiões predominantemente muçulmanas.

Andar por esta região é algo fascinante. Ver tantas etnias, costumes, culturas, crenças traz à tona a diversidade humana. Estive em alguns lugares da região como será narrado adiante, mas para se sentir cada local é preciso dedicar mais do que algumas horas. É preciso conversar com as pessoas, andar nas

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ruas, perambular sem compromisso pelos mercados públicos, sentir o cheiro, ouvir as conversas, ver as nuances, tocar os produtos…

Parece-me que é na Rússia que a alma humana apresenta-se com maior intensidade, cheia de angústias, contradições, desejos, força e uma ânsia pela verdade. E a religião é o catalizador de tudo isto. É assim que é a alma russa!

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O INTERIOR DA RÚSSIA

Falamos anteriormente, de forma sucinta, sobre alguns aspectos socioeconômicos do país e como isto se reflete na vida cotidiana, especialmente nas pequenas cidades. Neste capítulo, queremos abordar um pouco sobre o interior da Rússia em si.

A população russa está distribuída de forma desproporcional em seu território. Se aproximadamente ⅔ do território fica na Ásia, o que chamamos vulgarmente no ocidente de Sibéria, apenas ⅓ das pessoas vivem lá. A região recebeu muitas levas de pessoas que eram deportadas pelos regimes, tanto czarista como soviético, com a finalidade de neutralizar qualquer oposição aos que estavam no poder. Muitas cidades do norte siberiano foram fundadas exatamente por este motivo. Alguns Gulags acabaram por se tornar em centros urbanos,

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pois muitas das vezes os parentes (especialmente as esposas e filhos dos prisioneiros), iam atrás de seu ente querido.

Estive numa cidade no Norte que, apesar de não ter sido fundada por causa do Gulag, recebeu grande impulso populacional devido a um campo de trabalhos forçados que acabou por se localizar por perto. Um amigo russo me contou a história de sua família que havia passado por este processo de deportação e uma história de amor. Seu avô foi enviado para um Gulag soviético naquela região. A sua avó acabou indo atrás do marido juntamente com os filhos, e se estabeleceu lá. Quando o prisioneiro foi solto, ele não podia voltar para casa, devido ao “passado” político, e toda a família acabou ficando na região. E esta história se repete em muitas outras famílias da região e por toda a Sibéria.

Mas deixaremos o norte russo por enquanto e vamos falar um pouco sobre o sul da parte europeia onde morávamos, e sua constituição cultural e social.

A maior cidade da região é Roston-na-Donu, sendo seguida por Volgogrado (da qual falaremos depois) e Krasnodar, que juntas somam 3 milhões de pessoas.

Como dissemos, Krasnodar tem algo em torno de um milhão, e o Estado de Krasnodar, pouco mais de 5 milhões, distribuídos por 76.000 km², menor por

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exemplo do que o estado de Santa Catarina (aprox. 95.000 km²).

A região é considerada o celeiro da Rússia, devido a sua produção agrícola e pecuária. Basta sair de Krasnodar e logo se pode  a ver os campos de plantio espalhados até perder de vista. No verão, por exemplo, é possível andar quilômetros pela estrada vendo os campos cobertos de amarelo dos girassóis, os famosos “girassóis da Rússia”. Dependendo da época que se anda pelo interior, as cores mudam, e assim os campos se tornam monocromáticos por vastas extensões.

Ao chegar ou partir do aeroporto de Krasnodar é possível ver os campos cultivados por toda a terra. O aeroporto fica ao lado de um grande lago artificial construído na época soviética. Em suas margens são visíveis grandes extensões de plantação de arroz, facilmente perceptíveis devido ao fato de formarem grandes quadrados no chão, parecendo espelhos gigantes.

Outro grande destaque são as plantações de trigo, que sustentam em grande parte o mercado russo. Toda esta variedade e força da agricultura acabam por se refletir nas cores quase que oficiais do estado de Krasnodar, verde e amarelo. Estas são, a propósito, as cores do mais tradicional time de futebol do estado, que tem em seu escudo ramos de trigo,

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reforçando a vocação do estado para a agricultura. A produção de trigo era tão forte na época dos

soviets, que o equivalente russo à nossa expressão “a preço de banana” era “barato como pão!”.

Mesmo hoje ao passar pelas estradas ainda se podem observar os maquinários do tempo soviético, mas que estão cada vez mais raros, pois vem dando lugar aos investimentos na renovação da frota de tratores e afins.

Outra atividade econômica ligada com a terra foi o desenvolvimento da vinicultura na região. O clima propicia esta atividade, especialmente na região costeira, que tem condições ideais para se desenvolver. A maior fábrica russa de produção de vinhos e vinhos espumantes (champanhes) está localizada justamente no estado, a Abrau-Dyurso. A presença destes espumantes era, segundo nossos anfitriões, presença obrigatória na festa de ano novo.

Devido às condições favoráveis, a qualidade e oferta de uva no verão eram muito boas. Os cachos surpreendiam pelo seu tamanho e peso. Certa vez compramos um cacho que tinha 1,2 kg. Apreciávamos o verão pela fartura que proporcionava.

Aprendemos a montar um calendário informal das épocas das frutas no período do verão! Morangos, cerejas, framboesa, uva, melancia, e assim por diante. Todas cultivadas em nosso estado.

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Perto destes campos, sempre se pode chegar a uma vila ou aldeia tipicamente interiorana da Rússia.

Estes lugarejos são uma volta no tempo. Ao passar por alguns, tivemos a oportunidade de depararmos com uma Rússia ainda vivendo não apenas na época soviética, mas em alguns aspectos na era czarista. No interior, ao contrário das metrópoles como Moscou e São Petersburgo, as pessoas vivem na sua maioria em casas. As casas em geral são antigas, algumas com estruturas realmente já bem desgastadas pelo tempo. Outras em suas fachadas ainda ostentam ornamentos tipicamente russos com entalhes em madeira.

Entre as casas e o mundo externo geralmente existe um muro que é composto por placas de ferro (geralmente pintadas de verde-escuro ou cinza!), sendo que da rua apenas pode-se ver a parte superior da casa. Outro tipo de “muro” é constituído de placas de ferro também, mas vazadas, o que possibilita ver em parte o interior do terreno.

Na frente do terreno vem uma calçada pequena, às vezes feita com asfalto, outras com tijolos. Entre a calçada e a rua propriamente dita, em muitos lugares, existe uma faixa de terra de uns 2 metros de largura, onde não raras vezes observamos que os donos das casas faziam suas hortas. Perguntei certa vez para o russo que me acompanhava, se não

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existiam problemas por causa de “furtos” nestes canteiros. O russo me explicou que a molecada fazia suas “artes” de vez em quando, mas por se tratar de lugarejos onde todos praticamente se conhecem, estes atos eram mínimos. Parece que durante a época das crises econômicas da era soviética e pós-soviética, estas hortas  foram fonte de renda ou escambo. Aliás, esta capacidade de improvisar, dar um jeitinho nas coisas é algo típico da alma russa. Conheci um senhor que na época da crise dos anos 90, sustentou sua família com o que pescava no rio (e a família era grande, pois o casal tinha 9 filhos, o que na Rússia era um verdadeiro fenômeno!). Sempre que íamos à feira permanente, ao longo do caminho encontrávamos perfiladas vovozinhas (babushky) vendendo seus produtos produzidos nas hortinhas de suas casas ou dachas (casas de campo).

Outra cena típica das cidades interioranas é a de vovós sentadas diante do portão das casas, com seus lenços na cabeça, conversando sobre assuntos variados (em geral, aquelas fofocas sobre o mundo da aldeia), comendo sementes de girassol e com um copo de compota ao lado. Muitas das babushky foram e ainda são as responsáveis pelo cuidado da geração de netos. Os pais vão para o trabalho e as crianças ficam em casa com as avós. Muitos russos relatam que foram criados exclusivamente por elas. Vimos muitos

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casos deste tipo na Rússia. Quando andamos pelas ruas destes lugares

menores, vemos muitas coisas curiosas. Como disse anteriormente, a frota veicular dos tempos soviéticos é mais presente nestes lugares hoje em dia. Muitos daqueles carros já passaram por muitos quilômetros de estrada, e visivelmente estão funcionando graças à habilidade russa de dar um jeitinho em tudo. Refaz-se uma solda aqui, tira-se uma peça de outro carro e coloca ali, se cerra dois carros e se faz um. Criatividade para fazer o novo, o artístico é algo típico do russo. Apenas pecam pelo acabamento e estética, mas em geral o que fazem é funcional. Algumas vezes vi triciclos daqueles que se vê em filmes da Segunda Guerra Mundial, com uma cabine (tipo anti-chuva) para uma carona ao lado. Creio que é nesta área da vida que as improvisações na Rússia são mais visíveis. Sempre se dá um jeito!

Mas gostaria agora de voltar um pouco para as casas típicas do interior. Os russos tem a tradição de tirar os sapatos ao entrar na casa. E digamos que esta tradição não pode ser quebrada! Como explicamos anteriormente, isto se deve ao fato de as ruas serem muito empoeiradas e/ou enlameadas. Algumas vezes existem os chinelinhos para as visitas, outras temos que ficar só de meias mesmo. Em geral o chão tem algum tipo de carpete. Entrar numa casa russa é

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entrar num choque de mundos. A cultura russa na verdade é uma fusão do ocidente com o oriente. Neste sentido, podemos ver um samovar (aparelho tradicional russo para fazer chá) e na parede da sala um tapete pendurado, num estilo centro-asiático (quase persa). As janelas, ainda de madeira, deixam passar pouca luminosidade, fazendo com que o ambiente fique ainda mais escuro. O lugar central de uma casa russa é a cozinha. Neste ambiente seguro era que se passavam as conversas mais confidenciais, não apenas do cotidiano do lugar, mas conversas sobre assuntos, que nos tempos soviéticos poderiam ser categorizadas como “subversivas”. Era ali, nas cozinhas das casas e apartamentos, que o governo sabia nascerem os “inimigos do povo”. Além de muitos séculos de apresso por aquela parte da casa, era neste ambiente íntimo que o russo se sentia dono de si, e não parte de uma sociedade sem rosto. Muitas casas ainda tinham no início do século XXI, os banheiros do lado de fora, no pátio, feitos de madeira, com um buraco no chão. Indiscutivelmente, o item banheiro na Rússia é algo que chama atenção, não apenas nestes lugares pequenos, mas mesmo em cidades de porte médio e grande. Para brasileiros, este pode ser um choque cultural e visual. Para muitos que foram nos visitar, o aspecto acabava virando tema para muitas fotos… Os banheiros realmente são um capítulo à

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parte!As casas, por serem antigas, tinham suas

deficiências em relação ao sistema de aquecimento. Algumas já eram conectadas às TETS, que são as usinas geradoras de água quente e para a calefação. Entretanto, outras tinham que providenciar seus próprios meios de aquecimento. A grande vilã neste ponto eram as janelas de madeira, que sempre deixavam passar o frio da rua.

Indo para o centro destas localidades, impressiona que nas praças temos a presença constante da estátua do dyadya Lenin (Tio Lênin). Nas cidades e vilas por onde eu passei, seu busto ou estátua de corpo inteiro apontando para o futuro comunista eram marcas vivas de um passado ainda recente. Lenin, ao contrário de Stalin, permanece como um dos grandes nomes do passado soviético. As estátuas de Stalin foram derrubadas, outras de Marx e Engels viraram peças atiradas em depósitos, mas Lenin continuou nas praças.

Os prédios mais antigos continuam a ostentar em suas fachadas os símbolos do socialismo soviético, que estão entalhados na própria parede. Engraçado ver que alguns prédios “soviéticos” viraram locais onde se instalaram companhias capitalistas ao estilo russo.

A vida simples do interior russo é proverbial.

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Sua beleza e passividade trazem aqueles ares de calma, ausente nas grandes cidades. A vida passa num outro ritmo. As pessoas ainda vivem em certo grau a ideologia dos mir, uma estrutura social baseada na coletividade e interdependência. Este sentido de vida, esta ideologia arraigada por milênios, gera no russo um sentimento em que a vida depende do coletivo e não do indivíduo. Creio que este pensamento ainda está vivo, mesmo debaixo das atuais camadas egoístas geradas pelo capitalismo descompromissado com o outro, com o próximo.

Este tipo de necessidade russa da mir é algo que eles deixam escapar em conversas mais profundas e filosóficas. Isto também se aplica a uma “lei” que aprendi ser muito real no contexto de lá. A “lei” diz: Se você conhece alguém, então você conhece muitos alguéns. A vida na Rússia é baseada nas inter-relações. Não importa tanto seu conhecimento, suas habilidades ou outro fator, estar bem relacionado é que te irá abrir as portas. Muitas das vezes, nem o dinheiro é o centro da questão, mas a confiança. É muito difícil de explicar em poucas palavras esta mentalidade, mas ela é um fato consagrado. Se a amizade é algo tido em valor quase divino, a traição é o pecado mais odioso. Quando, na época soviética, o dinheiro era algo visto como um “mal a ser extirpado” do mundo, e seu valor era relativo, pois ter muito era

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algo social e politicamente repudiado, o que ficava era a base da mir, onde todos eram interdependentes, e isto não estava relacionado a valores financeiros.

E esta mentalidade interiorana, chega a cidades com a industrialização da época stalinista e até hoje faz parte da cosmovisão, tanto do interior quanto dos centros urbanos.

O campo reserva sempre gratas surpresas, que a vida urbana acaba por eclipsar. Os russos ainda parecem manter uma mentalidade interiorana que é verbalizada e acionada em muitos aspectos da vida, no vocabulário e nas expressões.

Algo tipicamente russo é falar no “ar puro”, seja das montanhas, seja do campo. Para quem não está acostumado, ou no caso dos próprios russos, acostumados com esta ideia, isto pode passar despercebido. Mas o fato é que na medicina popular, o ar puro é um anseio expresso com frequência. Nada mais saudável e revigorante do que “ir para a natureza (na prirodu)! Os russos adoram pegar o seu carro, junto com outros amigos, e sair para algum lugar fora da cidade, no campo. Lá eles preparam uma fogueira e colocam a carne de porco marinada para assar. Em geral, muita vodca e cerveja. Algumas vezes aparece um violão para alegrar a roda.

Outra diversão é a caça aos cogumelos. No outono, antes das primeiras neves, os cogumelos

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estão brotando pelas florestas russas. E isto, a caça aos cogumelos, é uma arte, uma ciência e mania nacional. É tão sério que saber diferenciar cogumelos venenosos de não venenosos é matéria estudada em livro de ciências na escola primária. Nomes, cores, habitats, locais e maneiras de coleta deste alimento básico da culinária russa são estudados por todos.

Certa vez, um grupo de amigos nos convidou para ir numa destas caças aos cogumelos. Resolvemos participar deste momento cultural, e nos preparamos. O dia estava ensolarado, a temperatura amena para o outono. Saímos de casa com aquele espírito de aventura, nem ao menos tendo ideia de aonde íamos. Creio termos saído uns 60 quilômetros de Krasnodar. Pegamos estradas de chão, atravessamos uma floresta e de repente uma clareira. Marcas de fogueira demonstravam que este local era bem requisitado pelos habitantes dali.

Andamos um pouco para pegar lenha para a fogueira. Enquanto isto, alguns se dividiram em grupos para ir atrás dos cogumelos. A família brasuca se reuniu para fazer a atividade junta. O problema é que os olhos afiados dos russos são muito mais rápidos do que o nosso. Conseguimos achar vários pelo caminho, mas descobrimos depois que estavam lá por que os russos sabiam que eram venenosos e nem se prestavam a apanhá-los. Enchemos uma sacola,

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mas tivemos que jogar praticamente toda fora. Alguns cogumelos, nem os russos sabiam se eram bons ou não, e neste caso, foram jogados fora também.

Creio que o mais interessante é o próprio tempo que se tem de andar no meio das árvores, vendo a natureza, e principalmente, respirando o “ar puro da montanha”.

Voltamos quando já estava fechado o tempo. O vento frio começou a soprar e a floresta amarelada virou num chover de folhas que era absolutamente lindo. Chegamos perto da fogueira e nos aquecemos um pouco, e acabamos por ficar um tanto “defumados” também. Neste momento começa a outra parte do cerimonial russo, quando se abrem os potes, as panelas e se retira do carro as bebidas. Neste caso, não eram vodca nem cerveja, mas saboreamos o típico chá preto para aquecer um pouco mais.

Algum tempo depois, quando já estávamos defumados o suficiente e todos satisfeitos com o lanche, decidimos voltar. No caminho achamos uma dessas barracas de beira de estrada que vendia cogumelos. Perguntamos para os especialistas sobre a qualidade dos nossos cogumelos colhidos na nossa aventura. Mais decepção, tinha um tanto ainda que não prestava para consumo humano. Bom, ao menos participamos de uma típica tarde de caça aos cogumelos!

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Ainda podemos esboçar algumas palavras sobre outras duas paixões  russas, como a pesca e a caça.  

Todo russo parece ter alguma história relacionada a estes assuntos. A proximidade com o mar e rios que correm das montanhas do Cáucaso proporcionam lugares ideais para a prática da pesca. A paixão é tão grande, que mesmo no inverno os russos são capazes de ficar horas sentados em um banquinho em frente a um buraco feito por eles no gelo. Para quebrar o frio, sempre está presente a companheira garrafa de vodca.

Ainda há os fascinados pela caça. Os campos, as florestas e montanhas atraem em todas as estações os aventureiros, que não medem esforços na busca de animais tanto de grande porte, quanto de caça menor. Mesmo no inverno, homens se aventuram neste “esporte”, como dizem. Certa vez ouvi a história de um homem (que não era caçador amador) e sua aventura nas montanhas do Cáucaso durante um inverno. Ele havia escorregado na neve e caído num buraco entre as rochas. Passou a noite lá, prensado entre as pedras, pensando que havia quebrado as pernas, e vendo a morte se aproximando.

Por fim, num daqueles milagres divinos que às vezes acontecem na vida, conseguiu aos poucos livrar-se das pedras e arrastando-se com dificuldade saiu do buraco. Muito ferido caminhou com dificuldade no

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escuro pelas montanhas e encostas, tentando achar um ponto conhecido para se orientar, mas a escuridão impedia-o de se localizar. O medo era de cair novamente em outra armadilha escondida na neve, perder a consciência e morrer de hipotermia, ou quem sabe ser achado por outro animal, quando o caçador viraria a presa. Quando estava perdendo as esperanças, avistou um pequeno ponto de luz entre as árvores. Foi ao encontro da claridade e encontrou outros caçadores que faziam uma fogueira na floresta. Foi imediatamente socorrido e levado para uma unidade de saúde. “Nasci de novo” - disse ao fim de sua história. Mas muitos não têm a mesma sorte, acabando perdidos e por fim morrendo nas montanhas.

--------------------------------Cada estação do ano tem suas particularidades.

Descrevemos o inverno e o outono, ainda falta passar pelas outras duas estações, primavera e verão.

A primavera é algo fascinante. Não é à toa que pelo antigo calendário, não apenas eslavo, mas dos povos em geral da antiguidade, o ano começava justamente com o início da primavera, em geral no equinócio. Na Rússia, oficialmente a estação começa em 1° de março, e descobrimos logo o motivo. A natureza que estava toda adormecida, ou pelo menos aos nossos olhos “morta”, a partir dos primeiros dias

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de março começa voltar à vida. Até o fim de março as árvores estão praticamente todas renovadas.

A explosão de cores se dá num período curto de tempo. Quando se percebe o verde voltou, as flores se abriram, os pássaros se desentocaram ou chegaram de outras regiões mais quentes do planeta e a vida renasceu.

Abril é o mês das tulipas. Lindas! As cidades se enchem de canteiros com flores. No centro de Krasnodar e de outras cidades e vilas do estado, as praças centrais se transformam. Muitas babushky vêm do interior ou mesmo dos bairros da cidade para vender tulipas e mudas no mercado informal de rua. Elas geralmente têm nos jardim de suas casas várias dessas belezas da natureza plantadas.

Mas a festa das tulipas dura poucas semanas. Em maio, chegam as papoulas. O vermelho forte se destaca, especialmente nos campos, ou na beira das estradas. Aliás, é muito comum acharmos pão recheado com semente de papoulas para vender nesta época.  

Mas não somente de flores é feita a primavera. A volta do canto dos pássaros é algo que igualmente renova a vida, inclusive faz renascer dentro das pessoas a luz apagada durante o longo inverno. Algumas vezes lembro-me de ter ficado parado, na rua ou mesmo na janela do apartamento escutando o

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canto. Quando se está no interior, estas sensações são

mais vivas. É lá que o verde parece mais verde, que o canto parece mais divino. Passear pela estrada olhando o campo coberto de flores é algo que mexe até mesmo com a alma do mais descrente. No Brasil praticamente não temos a noção do que significa a mudança das estações. Mesmo no sul, de onde somos, não se percebe tão nitidamente estas mudanças. E cada dia precisa sempre ser bem aproveitado na Rússia, pois um dia nunca irá ser igual ao outro. A dinâmica da vida é muito intensa.

O Verão traz consigo toda a força do sol. Já descrevemos anteriormente um pouco da estação mais quente do ano na cidade de Krasnodar, quando falamos de nossa chegada à Rússia.

Agora gostaria de detalhar, de um modo geral, um pouco sobre como ela é usufruída no estado. Na Rússia, falar em verão é sinônimo de Krasnodar, o estado. Esta é a região mais quente do país e que está banhada pelo Mar Negro e o Mar de Azov. Um dos motivos para a conquista destas terras pelo Império Russo era a necessidade de se ter um porto que estivesse livre do gelo no inverno. Os mares do norte passavam boa parte do ano sem navegabilidade devido ao gelo, mas o Mar Negro sempre está aberto, livre. Além disto, ele se conecta com o Mar

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Mediterrâneo através do Estreito de Bósforo e Dardanelos.

Durante a época da URSS, quando a Ucrânia fazia parte das 15 repúblicas, toda a costa norte e leste do Mar Negro virou a região balneária dos soviéticos. Para lá afluíam no verão as massas da população do país. Tanto no lado ucraniano, quanto no russo foram construídos inúmeros hotéis, balneários inteiros, quiosques, sanatórios, centros de saúde, acampamentos, bases de descanso para trabalhadores e muitas associações.

Com o fim da URSS, a Ucrânia ficou com a Crimeia, parte que pertencia originalmente à Rússia e doada aos ucranianos na década de 60 (pois segundo o argumento usado na época, todos os povos eram um só, soviético). E a Crimeia sempre foi o território mais visado nos verões.

Para a Rússia, restou a região de Krasnodar. Contudo a infraestrutura do local, como em todo o país, estava muito comprometida, e muitos hotéis, sanatórios, acampamentos e etc., estavam sucateados. Muitos acampamentos e colônias de férias que pertenciam ao governo trocaram de mãos rapidamente, nem sempre caindo nas mãos de administradores habilidosos ou preocupados com a manutenção de locais de lazer para o público em geral. Os anos 90 também tiveram sua influência

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sobre o lazer dos russos. Na região existem praias de areia e de pedras.

As mais famosas são: Anapa, que tem uma orla de areia, e Sochi, que é de pedras. Novorrossisk, cidade portuária, o terceiro maior porto da Rússia, também tem algumas praias, mas de pedra. Praia de pedra é algo realmente estranho para brasileiros, sem mencionar a falta das ondas! Lá quando o vento não sopra, o mar parece um lago, um espelho d'água. As pedras são relativamente grandes, mais ou menos do tamanho de uma batata pequena. Em alguns lugares a “areia” é preta, já que o mar vem fazendo seu trabalho com as pedras ao longo dos milênios.

Os complexos de descanso são uma questão à parte. Certa vez, uma organização formada basicamente de estrangeiros, nos convidou para participar de uma espécie de congresso. Ficamos sabendo que, depois de várias tentativas da liderança desta entidade, acharam apenas um hotel, em toda a região, que aceitava estrangeiros! As outras não tinham conhecimento ou interesse em abrir suas portas para não-russos. Em parte, creio que isto está relacionado ao profundo sistema burocrático que é o registro de estrangeiros na Rússia, outra parte pode ser por que eles tinham receio de ter problemas com polícia ou administração local. Parecia que todo estrangeiro era um alienígena que devia ser evitado,

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ou um terrorista, ou ainda um espião. Heranças dos velhos tempos…

No verão os russos lotam aviões que voam diariamente dos mais remotos cantos do país diretamente para a costa do Mar Negro. Eles chegam sempre em julho, lotando as cidades, trazendo a estação alta para todos locais. Ao longo da estrada, chegando-se perto das cidades e aldeias, placas anunciam casas e quartos para alugar. Nas ruas, os vendedores de bugigangas se acumulam. Muitos bares ficam abertos a noite toda e várias festas acontecem pela cidade.

Nestes dias de alta temporada, russos de todas as regiões do país se expõem ao sol sulista. Desde aposentados até crianças. As escolas do governo chegam a organizar acampamentos nestas praias, levando por algumas semanas as crianças, ficando elas longe dos pais que ficam trabalhando na cidade. Verdadeiras caravanas de aposentados enchem as estações férreas, os aeroportos e estradas.

Excursões cruzam as estradas do estado em direção ao litoral. Muitos acidentes e mortes devidos a questões envolvendo imprudência, má conservação dos veículos e ônibus e, especialmente álcool. As linhas de trens sempre estão lotados, vindo especialmente de Moscou, que acaba sendo a cidade catalizadora de toda a Rússia.

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Quando os turistas vão embora para suas regiões, já no fim de julho, começa o movimento dos krasnodarienses para a praia. Agosto é o tempo dos habitantes locais aproveitarem as praias. Isto coincide com a época mais quente no estado, quando mesmo à noite temos 30-32° C.

Mas se as pessoas não tiverem a fim de um banho no mar, sempre existe a possibilidade das montanhas do pré-Caucaso que “ficam” perto, cerca de uns 100-120 quilômetros para o sul. A atração nestas montanhas sempre é o famoso “ar puro”.

Outra opção é uma esticada até a cidade de GoryatchyKlyutch (Fonte Quente, em português). Uma cidade pequena, mas muito interessante. Bem arrumada e com o famoso “ar puro”, pois fica aos pés das montanhas. Seu nome se deve às fontes de água mineral que jorram de seu solo, que segundo as muitas recomendações dos russos, é “muito boa para a saúde”. Aliás, para todo o organismo. Provei a tal água miraculosa, e realmente é boa.

O interior da Rússia tem muitas belezas escondidas. Cada região apresenta uma característica muito especial. Veremos em outros capítulos alguns destes locais.

O que tenho certeza é que o interior certamente ainda tem muito a colaborar com a alma russa e o desenvolvimento desta nação.

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DOLMENS E KURGANS

Quando falamos de História da humanidade, especialmente das primeiras grandes civilizações, logo vem à mente o Egito e a Mesopotâmia.

Se formos para as páginas da Bíblia, veremos que, segundo os registros do Gênesis, o primeiro casal viveu em algum lugar da Mesopotâmia, conhecido como Éden. E, segundo a tradição do Antigo Testamento, Noé, habitante da Mesopotâmia, junto com sua família, após o dilúvio, teria aportado com a arca numa das montanhas do Ararate. Estas montanhas atualmente se localizam na fronteira da Armênia e Turquia.

Não muito longe dali, em direção ao norte encontramos a cadeia de montanhas do Cáucaso, que desde a Antiguidade fazia a divisa entre Europa e Ásia.

O Cáucaso ficava localizado no limiar do mundo

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Antigo. Apesar das grandes civilizações terem florescido ao sul daquela cadeia de montanhas, a existência de humanos ao norte, desde muitos milênios, é comprovada, especialmente pela arqueologia. Segundo arqueólogos, em algumas cavernas no estado de Krasnodar foram encontrados instrumentos da época da idade da pedra, o que demonstraria a estadia de homens nesta região desde tempos remotos. Encontram-se igualmente assentamentos da época do mesolítico e neolítico.

No início da Idade do Bronze, surgiu a denominada “cultura de Maikop”, nome advindo da região onde a cultura material foi localizada. Na idade do Bronze I, isto é, no período de 3300-2700 a.C., no atual território das estepes de Krasnodar, tribos da cultura Novotitorovskoy se desenvolveram em comunidades. Mais tarde, apareceram outras tribos nas estepes, que foram chamadas de “cultura das Catacumbas”. A partir da Idade do Bronze Médio, as estepes foram ocupadas por tribos da assim conhecida “cultura norte-caucasiana”, e nas regiões das montanhas aparecia a “cultura dólmen”.

As tribos que teriam alcançado o norte do Cáucaso tiveram um amplo espaço diante de si, pois as planícies se estendiam por toda a região que conhecemos hoje como Europa Oriental. Todas estas culturas deixaram um rastro muito fraco, e hoje ainda

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temos dificuldades para identificar e datar os primeiros restos materiais delas.

Uma das dificuldades é, por exemplo, o estudo dos dolmens. Apesar destas construções não serem unicamente características do Cáucaso Norte, a concentração aqui encontrada acaba por surpreender os especialistas. Estima-se que o número chegue a 3.000 dolmens espalhados pelo noroeste do Cáucaso, onde fica o estado de Krasnodar.

“O que são dolmens?”, estaria se perguntando nosso caro leitor. Em  primeiro lugar, o nome deriva do Bretão dol = mesa, e men = pedra, ou seja “mesa de pedra”. Eles são encontrados por toda a Europa espalhando-se pelo norte da África, passando pela Pérsia, Índia e chegando até a península coreana.

Basicamente, o dolmen é uma construção megalítica, ou seja, feita de enormes pedras. Os dolmens são construídos com estas pedras colocadas na vertical, as quais sustentam, por sua vez, uma grande laje horizontal que fica por cima (a tampa da mesa). No caso específico do Cáucaso, as pedras verticais são bem encaixadas, não deixando frestas entre si, dando um aspecto de uma “casa”. Na parte da frente temos um orifício arredondado que serviria como entrada e uma “rolha” de pedra ficava ali para “trancar” a porta.

Atualmente não se sabe qual a função primária

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destas construções megalíticas. Muitas tentativas já foram feitas para desvendar o mistério, contudo, uma resposta final ainda não foi encontrada. As hipóteses variam deste um lugar para sepultamento até o de portais entre mundos. Nenhuma inscrição pictográfica ou alfabética relevante foi encontrada nestes monumentos. Mas alguns desenhos estão entalhados nas paredes dos dolmens do Cáucaso. Mais especificamente, nota-se formas em ziguezague que lembram antigas representações para água.

Não temos como datar com precisão a idade das estruturas devido ao fato de não podermos cruzar dados com outras civilizações, e isto faz com que as datações sejam muito abrangentes. A hipótese mais aceita é que estamos diante de construções que começaram a ser construídas por volta do III milênio a.C, mas esta estimativa pode chegar ao V milênio a.C.

Se não sabemos ao certo quando e porque da construção destas estruturas, menos ainda temos conhecimento dos seus autores. Neste caso existem os mais diversos candidatos sugeridos, sem que, no entanto, se possa chegar a uma conclusão.

A existência destes locais parece estar relacionada a algum tipo de culto, pois sempre estão perto de fluxos de água (rio ou mar) e voltados com sua “porta” para esta direção. Existem dolmens

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isolados no meio das montanhas e outros que parecem fazer parte de um complexo maior, que, entretanto, podem ser construções posteriores. Alguns foram usados como sepulturas, pois foram encontrados esqueletos humanos em seu interior, porém de novo, os restos humanos são de data muito posterior, como por volta da Idade Média.

Existe um número significativo de pessoas que vão até estes lugares, muitas das vezes escondidos dentro das florestas, e em lugares de difícil acesso. Estudiosos, curiosos, exotéricos, depredadores, ou seja, uma gama muito abrangente de pessoas busca o contato com estas construções megalíticas.

O fato é que a presença destas construções demonstra a presença humana organizada numa forma social naquela região há pelo menos 5-6 mil anos e, segundo a tradicional datação histórica, foi por esta mesma época que as civilizações da Mesopotâmia e do Egito estavam surgindo.

Os dolmens na região de Krasnodar estão espalhados por todo o território, alcançando os estados vizinhos, e mesmo as regiões do lado sul da fronteira entre Krasnodar (Rússia) e a Abkhazia (Geórgia). Os mais conhecidos estão na região litorânea, nas montanhas que ficam perto do Mar Negro.

E não apenas os dolmens dão testemunha do

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contato da região do atual estado de Krasnodar com outras regiões na Europa e mesmo ao sul, em direção ao Crescente Fértil. Outra formação artificial feita na paisagem feita por mãos humanas são os kurgans.

Entre a Idade do Bronze tardio e início da Idade do Ferro, uma nova cultura, aparece na região, conhecida como proto-meota. Até este estágio, não temos registro escrito dos habitantes da região, apenas testemunho arqueológico (material, como sepulturas, machados, cerâmica, objetos de ouro, prata e bronze, etc.).

A mudança neste quadro veio com a chegada e o contato com povos que possuíam uma forma de escrita, como os assírios e posteriormente os gregos.

A partir deste tempo começamos a receber algumas informações testemunhais sobre a vida nesta vasta extensão territorial que abrangia o norte do Cáucaso e as estepes russas.

O grande deslocamento de povos pouco conhecido do público em geral, mas de grande importância nas relações da época, fazem parte de importantes páginas da História Universal.

Ficamos sabendo por Strabão, escritor grego, que um povo conhecido como os cimérios habitavam as estepes da atual Ucrânia e parte de Krasnodar. Eles são relacionados a incursões militares em regiões da Ásia Menor (Turquia) e, pensam alguns estudiosos,

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que tiveram parte ativa na famosa Guerra de Tróia (séc. XIII a.C.). O estilo de ornamentos e modo de vida chegou a levar muitos pesquisadores a ventilar uma possível ligação entre os cimérios e os celtas na Europa Ocidental. Ainda se conjectura que o rompimento dos celtas no horizonte da História teria ocorrido em locais e datas muito próximas a uma dispersão ciméria, que teria partido justamente do norte do Mar Negro.

Outro povo que passou pela região de Krasnodar foram os citas. A cultura cita na verdade é o conjunto de vários povos que se estendem desde a atual Hungria até lugares tão remotos como o lago Baikal que fica no meio da Sibéria. A cultura voltada basicamente para o estilo nômade, o estilo de ornamentos e a habilidade no manuseio de ouro e prata, são as principais características desta cultura.

Mas a força destes povos, que estão sob este guarda-chuva de nome cita, será mostrada nos séculos VIII-VI a.C. com o avanço de tribos que começa lá na região do lago Baikal e que, num efeito dominó, aparecerá numa espécie de tsunami, arrojando-se sobre os cimérios e gerando um verdadeiro esparramar de povos pelo leste europeu atingindo o mundo civilizado da época nas regiões do Oriente Próximo (Turquia), Oriente Médio e chegando no Egito.

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Os citas ainda irão desempenhar papel fundamental no equilíbrio de forças no palco central das atividades bélicas do Oriente Médio por volta do séc. VIII-VII a.C.. A inserção de novas técnicas de guerra, aliado a uma eficaz e insuperável cavalaria, trariam fama aos citas por todo o Mundo Antigo.

O contato dos citas com regiões tão afastadas como China, Egito e Assíria, resultou em ricas sepulturas descoberta por arqueólogos na região do estado de Krasnodar. As campanhas militares (ou pilhagens, dependendo do ponto de vista), deste povo trouxeram belíssimos objetos das regiões conquistadas. Encontramos, por exemplo, espadas com ornamentos no estilo assírio, o que mostra a penetração dos citas de Krasnodar até regiões do atual Iraque e Irã.

As sepulturas que se encontram por toda a região de Krasnodar (que são também encontradas na vizinha Ucrânia e se estendem por todo o sul da Rússia), levam o nome de kurgan, palavra turca que significa fortaleza. Nelas estão contidas culturas de várias épocas, pois são uma forma bem difundida de sepultamento da região das estepes (não somente ali, mas não entraremos em muitos detalhes que irão confundir o leitor).

Andando pelas estradas do interior de Krasnodar, os kurgans são facilmente identificados na

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paisagem. Eles são na verdade uma elevação feita de terra ou pedras que se destacam no meio da planície. Alguns kurgans foram escavados, mas a grande maioria fica mesmo despercebida na vastidão. Algumas destas sepulturas se revelaram verdadeiras tumbas faraônicas, contendo um verdadeiro tesouro em peças de ouro, prata e outros metais.

Muitas das vezes, o morto era enterrado junto com seus pertences, e por causa disto temos uma noção de quem poderia ter sido esta pessoa dentro da estrutura social da época. Em um determinado kurgan, foram achados 70 cavalos juntamente com seus cavaleiros, que serviriam para guardar o príncipe (vojd, em russo) na vida após a morte.

Um belo exemplo destas descobertas foi um kurgan achado em Elizavetinskaya, aldeia vizinha de Krasnodar. O lugar era um povoado fortificado dos meotas, povo local. Lá foram achados os restos de uma antiga fortificação. Sua datação está fixada nos séculos IV - I a.C. A área total do povoado ultrapassa os 100 mil m². Ele foi constituído em um terraço elevado acima da margem direita da várzea do rio Kuban, cerca de 18quilômetros a oeste de Krasnodar. Os restos de fossos e muralhas que protegiam a fortificação foram escavados pelos arqueólogos, o que demonstrava a importância do local, pois poucas cidades tinham um sistema de defesa.

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Na cidadela foram desenterrados fornos abertos, cerâmica, restos de habitações, edifícios de tijolos de barro, além de grãos carbonizados de trigo e milho, foices de ferro, ossos de animais domésticos e peixes. Estes são indícios de que a agricultura, pecuária e pesca foram parte substancial das ocupações diárias dos habitantes da localidade. Um grande número de achados de objetos antigos, como por exemplo, azulejos, fragmentos de ânforas e pratos, assim como moedas, produtos importados, demonstram que havia laços estreitos com lugares muito mais distantes.

Esta riqueza acaba se traduzindo num riquíssimo tesouro descoberto nas sepulturas (kurgans). Perto da fortificação foram encontrados alguns kurgans feitos de terra, e neles havia uma considerável quantidade de material, especialmente de ouro. O que chama a atenção neste lugar ainda é o sepultamento de cavalos na mesma câmara funerária de um homem, que se pensa tratar de um chefe ou mesmo de alguém ligado à aristocracia do povoado. Ainda temos esqueletos que levam junto de si suas espadas, indicando que soldados da guarda pessoal foram com seu senhor para o mundo dos mortos a fim de servi-lo também no mundo do além.

O vínculo com os cavalos, por sinal, é historicamente muito forte nas estepes do sul da

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Rússia e na Ucrânia. Pesquisadores acreditam que foi exatamente nesta região que o homem teria domesticado pela primeira vez o animal, por volta do IV milênio a.C. Foi desta região que o cavalo teria se espalhado pelo mundo antigo como uma arma de guerra. Os cavaleiros mais famosos do mundo antigo, os citas, são herdeiros desta tradição local, e no rastro desses, vieram os alanos, hunos, mongóis e outros.

Por isto, explicam os especialistas, temos uma relação tão forte entre homens e seus cavalos, ao ponto do animal ter que acompanhar seu dono até mesmo na morte. Dizia-se que um cita tinha em seu cavalo a sua casa! E esta relação existe até hoje no interior da região

Mas tantos tesouros nos kurgans não passaram despercebidos dos olhos gananciosos de assaltantes de túmulos. Muitos foram profanados ao longo dos tempos. Quando o governo czarista tomou conhecimento das riquezas que poderia haver nestes lugares, mobilizou-se para proteger os principais locais de sepultamento. Resumindo, muito do material retirado está hoje em exposição nos museus de Moscou e São Petersburgo. Tive a felicidade de ver alguns destes artefatos no Museu Histórico de Moscou, que fica na Praça Vermelha. Impressiona a perfeição, delicadeza e a maestria com que foram confeccionados. Os citas, em especial, eram famosos

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ourives, sendo requisitados para produzirem ornamentos para a elite de Atenas e outras cidades gregas.

E de fato quem mais se impressionava com esta arte dos habitantes das estepes da Ucrânia e da Rússia eram os gregos. Já na primeira metade do I milênio a.C., na costa do Mar Negro, foram fundadas várias colônias gregas.

A principal atividade destas colônias helênicas era fortalecer o comércio com as tribos do desconhecido mundo das estepes. O comércio se intensificou de tal maneira que a região entra para as páginas da História. Guardada as devidas proporções históricas, a chegada dos gregos pode ser comparada com a importância da descoberta das Américas por espanhóis e portugueses. O fascínio grego pela arte é que acaba levando-os a “exportar” citas para Atenas e outras cidades. Além de artistas, os citas se mostravam ótimos soldados e guardas. A polícia de Atenas e a guarda do rei eram formadas em certa época justamente pelos bárbaros citas. Muitos exércitos da Antiguidade, como o egípcio, assírio, babilônio, persa, grego e romano contavam com mercenários citas em suas fileiras. Em alguns casos, como no séc. VII a.C., uma aliança cita com os assírios salvou o todo poderoso Império Assírio da destruição. Nínive, a capital estava por cair nas mãos de outra

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aliança anti-assíria, quando um exército de citas repentinamente se lança na batalha, vindos das montanhas do Cáucaso. A força e o número das hordas surpreenderam a todos. Parte deste contingente foi arrebanhada nas estepes do norte do Cáucaso, ou seja, Krasnodar. A partir daquele episódio, os citas irão dominar toda a Média (atual norte do Irã), todo o sul do Cáucaso (Armênia, Geórgia e Azerbaidjão), e estender suas pilhagens, domínios e zona de influência até a costa do Mar Ageu (oeste da Turquia). Heródoto, por sua vez, registra a chegada dos citas até as portas do Egito, quando o faraó sai ao encontro das hordas invasoras, comprando-os com altas quantias de ouro e materiais preciosos. É possível até que estas tropas tenham exercido algum tipo de influência no imaginário de alguns profetas bíblicos como Sofonias, Jeremias e Ezequiel, contemporâneos dos fatos acima relatados.

Mas da região do atual estado de Krasnodar os gregos também importavam vários produtos, e dizia-se que o pão que se comia em Atenas tinha origem no trigo trazido da região do atual estado de Krasnodar e Crimeia (Ucrânia).

A fertilidade do solo negro do sul da Rússia e o clima apropriado para a agricultura e pecuária sempre atraíram inúmeros povos. Além dos gregos e dos habitantes locais, lá estiveram presentes também

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vikings, italianos (genoveses), turcos e ainda comerciantes de vários lugares, especialmente da bacia do Mar Mediterrâneo.

Em 2008, na cidade de Anapa, pude visitar o museu à céu aberto da cidade. No local havia uma aldeia do povo Sinda, que com a chegada dos gregos veio a se tornar uma cidade e importante local de comércio fazendo a ponte entre as estepes russas e o mundo helênico. Neste local, atualmente, se podem observar as ruínas e os fundamentos da cidade grega, conhecida na época como a colônia de Gorgippia, que já no século VI a.C. contava com um porto muito movimentado.

O museu conta com um pequeno prédio onde estão expostas várias peças do tempo grego, como ânforas, vasos, moedas e armas. No lado de fora do prédio, num canto do terreno, se pode ver enormes lajes de pedra e mármore. São estátuas no estilo grego, túmulos e altares. Algumas destas peças trazem inscrições gregas, danificadas pelo tempo e em alguns casos faltando parte da inscrição original.

Aliás, estar nesta região, Krasnodar, é voltar no tempo. Parar na beira do Mar Negro e imaginar o comércio intenso naquelas praias, navios chegando de Grécia, Roma, e quem sabe mais de onde; ver os locais por onde passaram conquistadores e guerreiros foram sepultados com seus tesouros e preciosidades

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(mulheres, soldados, cavalos); ver construções megalíticas de pedras que foram contemporâneas das pirâmides do Egito e de Stonehenge; saber que por ali passaram povos que formaram a história da humanidade; tudo isto acaba enriquecendo uma pessoa. E ainda que esta região ficasse na “periferia” dos acontecimentos da História oficial, fatos que ocorreram por lá tiveram impacto direto sobre o cenário e o palco principal. Isto é uma experiência que não pode ser descrita.

Enquanto os gregos se ocupavam com o litoral, pouco se aventurando para as terras selvagens do interior de Krasnodar, a ida e vinda de povos não parava. Além de toda uma constelação de etnias, ainda haveria espaço para povos como os alanos, que espalhariam o pânico por uma extensão tão ampla que iam do Cáucaso até a Palestina no século I d.C. Alguns pais da cristandade chegaram a confundir a chegada destes bárbaros do norte como um presságio do fim dos tempos, no cumprimento de profecias bíblicas.

Mas nenhum outro povo provocaria tanta inquietação no mundo, e em especial aos romanos, quanto os hunos. Em sua aventura em direção ao oeste, esses acabam cruzando as estepes russas e chegando ao território de Krasnodar. Ali fizeram saques e espalharam destruição. Os povos em fuga acabam entrando no território dos vizinhos godos

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(Ucrânia), que ao perceberem o que estava por vir, começam a se deslocar para oeste. Resumindo, a Europa é invadida por ondas de povos em fuga, aumentando a pressão nas fronteiras do Império Romano. Com o tempo, os hunos chegam à cidade de Roma, e chefiados por Átila, são responsáveis pela desestabilização do Império. Os godos, deslocados pelos hunos, posteriormente serão conhecidos como um dos povos bárbaros responsáveis pela queda final do Império Romano.

A região de Krasnodar, e todo o norte do Cáucaso, sempre foi lugar de passagem destas tribos que vinham do leste, das profundezas da Sibéria. Por lá passavam, deixavam suas influências em todas as áreas da vida humana, e assim como apareciam no horizonte, também desapareciam após algum tempo. Mas sua influência acabava por permanecer, ainda que dissolvida em meio às camadas culturais e étnicas já ali depositadas ao longo dos milênios. E isto também irá contribuir na formação da alma russa.

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RUSSOS OU COSSACOS: O SUL DA RÚSSIA

As estepes do sul da Rússia sempre foram habitadas por inúmeras tribos e povos. O clima favorável e o solo fértil fizeram deste lugar um local de cobiça para muitos ao longo dos milênios. A Crimeia, península hoje situada no lado ucraniano e que faz ”fronteira” com o estado de Krasnodar através do istmo de Kertch, chegou a ser colônia grega e posteriormente romana (já na era cristã).

Entre estes povos, citamos no capítulo anterior os cimérios, citas, alanos, hunos, godos. Mas a esta lista pode ser acrescentados ainda os khazares, búlgaros, mongóis entre tantos outros, na Idade Média. Cada um destes povos formou um Estado independente ao longo do I milênio e início do II milênio d.C. Como vimos, todas estas mudanças colaboraram com a formação da cultura da região. A chegada de novas ondas migratórias do leste acarreta em interferências e muitas vezes mudança substancial na economia, na política, nas relações internacionais, e especialmente na cultura e composição étnica do povo.

O Cáucaso e as estepes adjacentes são uma

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explosão de povos e culturas. Apenas no lado russo do Cáucaso, são contabilizadas mais de 70 etnias completamente distintas umas das outras. Andar pelas regiões do Cáucaso norte é atravessar fronteiras de nacionalidades. Não é à toa que esta região é tão conturbada ainda nos dias atuais. Ao olharmos um mapa mais detalhadamente perceberemos recortes nas terras, pequenas repúblicas que fazem parte da Federação Russa, e que demonstram o caldeirão que é a região.

Em tempos passados, quando ainda não estava sob o domínio russo, a localidade viu nascer na Idade Média alguns reinos, como o reino dos khazares, búlgaros, mongóis, turcos e por fim, russos.  

A Idade Média trouxe estas unificações territoriais em forma de Estados organizados, que tentavam lidar com o maior fator de complicação da região, a diversidade étnica, cultural e religiosa.

O reino Khazar (séc. VII -X) foi a reunião de vários povos locais debaixo de um único Estado. As extensões territoriais passavam por todo o sul da atual Rússia, incluindo a região onde morávamos. Muitas tribos eslavas em sua periferia eram tributárias dos khazares, e a localização em uma rota de comércio entre oriente e ocidente, fez com que este Estado tivesse grande projeção no mundo que o cercava. A mais importante diferença deste reino foi o

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fato de sua aristocracia adotar o judaísmo como religião oficial, fazendo deste local o primeiro Estado (fora Israel, obviamente) a adotar esta religião oficialmente.

A presença de elementos judeus e de sua religião não parecem ter começado por estes tempos da Khazaria, mas já eram elementos bem difundidos entre a população de uma forma ampla. Temos, por exemplo, a presença de ruínas de sinagogas encontradas na costa do Mar Negro, datando de, possivelmente, antes da Era Cristã. Hábitos característicos, como a proibição do consumo de carne porco, eram observados de longa data nestas regiões perto do Cáucaso Norte. Existe uma etnia no Daguestão, uma república que faz parte da Federação Russa, que são conhecidos como tats, os judeus das montanhas. Elementos judeus se mesclaram de tal forma em várias regiões da Rússia, que muito da cultura russa pode ser explicada ou entendida tendo os judeus como base. Os núcleos judeus foram difundidos por muitas localidades no Leste Europeu (Bielo-Rússia, Ucrânia, Polônia), atingindo posteriormente Europa Central (República Tcheca, Alemanha). A ligação do sul do Cáucaso com os elementos da cultura dos judeus é ainda mais forte. Possivelmente esta influência foi a causa do rápido aceitamento do cristianismo na Geórgia e Armênia.

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Aliás, a Armênia foi o primeiro Estado a tornar o cristianismo a religião oficial, uma década antes do famoso ato de Constantino, em Roma.

Após lutas por território no século X, os russos-kievanos, cuja capital era Kiev, atual Ucrânia, dissolvem a Khazaria e tomam todo o território do Norte do Cáucaso. Elementos eslavos são introduzidos na cultura local, somando-se às várias camadas ali já existentes.

Mas, um século depois, são os bizantinos que introduzem seu domínio, agora trazendo consigo um elemento novo, o cristianismo. Apesar de estar em uma região fronteiriça com o cristianismo ao sul (Armênia e Geórgia), o norte do Cáucaso não o conheceu oficialmente até esta época. O islamismo havia sido barrado por estes países e por isto uma religião não conseguiu se fixar até esta época bizantina. Mesmo o judaísmo khazar havia conquistado apenas as classes mais altas aristocratas, mas o povo em geral vivia práticas puramente animistas.

Mas a História local ainda assistiria em pouco tempo uma reviravolta. No século XIII, as hordas de Gengis-khan chegam ao Cáucaso. Mais uma vez elementos asiáticos dos novos donos se fundem com a cultura local. Na verdade, toda a Rússia é a fusão do oriente com o ocidente, e a região de Krasnodar é

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talvez a que mais sentiu estes choques de culturas.Bem, ainda não era o fim. Os próximos a

chegarem foram os turcos, no século XV. Estes incorporarão elementos da cultura e língua na região

Mas ao norte, o Império Russo dava sinais que pretendia anexar a região, foi o início dos conflitos que ficaram conhecidos como as Guerras russo-turcas. Foi neste ensejo que Catarina II manda construir uma fortaleza na fronteira dos territórios pretendidos pelos russos, que viria a se tornar a cidade de Krasnodar.

Para estas guerras e estabelecimento de fortes russos, a czarina valeu-se dos cossacos. Mas quem eram eles? Qual a importância deste elemento na constituição do povo sulista da Rússia?

A origem dos cossacos está envolta em grande discussão. Pelo que se percebe, eles não são uma etnia, mas podem ser classificados como um grupo etno-social. Originalmente, teriam habitado as estepes e florestas da Europa Oriental, em particular no território da atual Ucrânia e Rússia, bem como posteriormente se estabeleceriam na região do baixo e médio Volga, Urais, Cazaquistão moderno, na Sibéria e no Extremo Oriente.

Ao que tudo indica, originalmente, os grupos cossacos eram constituídos por camponeses fugitivos, que escapavam do controle dos senhores dos feudos que ficavam na Polônia e na região da atual Moscou,

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rumando assim às estepes do sudeste europeu, onde se estabeleceram.

Eles ganharam fama no Leste Europeu pela sua coragem, bravura, força e capacidades militares. Neste sentido, a principal característica dos cossacos era a destreza na cavalaria, o que não era novidade para povos que já habitavam as estepes russas. Podemos ver que os cossacos foram os herdeiros de uma longa tradição no uso exímio da cavalaria. Ainda podemos agregar a estas características a capacidade de auto-suficiência. Todas estas notoriedades fizeram com que fosse criada uma unidade militar de Cossacos, no tempo das conquistas das estepes do sul.

Andar pelo interior, especialmente nas vilas cossacas (stanitsy), é como voltar no tempo. As tradições dos cossacos estão sendo redescobertas e incentivada pelo governo local. O orgulho cossaco tem sido incentivado, especialmente pela pessoa do Governador do Estado de Krasnodar. Durante os anos do poder soviético, os cossacos foram perseguidos e sua manifestação cultural proibida. Isto pode ser explicado pelo fato dos cossacos terem, em sua maioria, apoiado o governo czarista, que foi derrubado pelos revolucionários bolcheviques (socialistas). A longa guerra civil que se seguiu à queda do czarismo, levou as estepes do sul a presenciarem grandes conflitos, com os cossacos

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lutando, em grande parte, nas fileiras dos contra-revolucionários. Posteriormente, Stalin iria se lembrar deste fato.

Esta volta às origens cossacas (pois foram os cossacos os primeiros enviados pelo governo russo para a região numa colonização eslava no tempo da conquista das terras do sul), passou a ser mais uma forma de demonstrar a todos que o fim da URSS era definitivo.

Não faz muitos anos, todos os domingos a avenida principal de Krasnodar é fechada para um desfile dos cossacos vestidos com seus uniformes vermelhos típicos. Eles desfilam a pé, e uma parte avança posteriormente montados nos seus cavalos, que como dissemos, é parte muito importante da cultura cossaca.

Regularmente podemos ver o governador em alguma festa cossaca pelo interior do estado, ou fazendo algum discurso evocando a bravura e o espírito cossaco. Reviver esta ideologia é parte do programa de governo. Ser sulista é ser cossaco e fiel à Igreja Ortodoxa Russa.

Este tipo de situação dos cossacos e do sul da Rússia guarda certas similaridades, no meu ponto de vista, com algo muito próximo de nós. Refiro-me aos gaúchos no sul do Brasil. Por ter nascido e vivido grande parte da vida no Rio Grande do Sul, percebo

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estas semelhanças no modo como ambos os povos vivem.

Logo salta aos olhos a semelhança na questão bélica, e mesmo o próprio apego com a cavalaria. O ar rude e agressivo dos sulistas aos olhos do resto do país se explica pelas situações sócio-políticas e o contexto de fronteira. Os governos sempre ideologizam povos fronteiriços com o fim de garantir a lealdade deles ao Estado. As guerras do Brasil foram grandemente travadas por estas pessoas que lutavam em nome do país. Ao olhar a ideologia transmitida na cultura gaúcha, percebem-se claramente os traços de interferência do Estado. E não poderia ser diferente. O sul está numa região de encontro de povos. Lembremos que aquelas regiões pampeiras (parecidas alias com as estepes do sul russo) eram a região que ficava entre os domínios de Espanha e Portugal. Visitei um forte no lado do atual Uruguai, e na placa de entrada havia uma lista de anos apontando a quem pertencia o forte naquela data específica. O local trocou inúmeras vezes de mãos, até que finalmente acabou parando sob domínio uruguaio após a independência da Cisplatina, atual Uruguai.  

Ainda temos que lembrar que o próprio governo brasileiro foi quem levou a efeito os planos de colonização do sul, a fim de evitar uma retomada por parte de nossos vizinhos dos territórios

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“desocupados”. As similaridades entre o sul russo e o nosso sul

são muitas, mas evidentemente existem diferenças que deixam estes mundos muito distantes. A longa História das estepes do sudeste europeu deixou marcas profundas na população local. Estas constantes mudanças de ventos, ora trazendo alguns e levando outros, fez com que este acúmulo por décadas, e mesmo por séculos, de culturas tão distantes uma das outras, fossem responsáveis pela cultura multiforme do Cáucaso. Estar num lugar como aquele, onde o oriente encontrou o ocidente; onde as circunstâncias adversas formaram o caráter indomável do povo do sul russo, tudo isto é um privilégio que tivemos de viver. Ainda hoje os cimérios, citas, hunos, alanos, cossacos e tantos outros estão vivos na cultura local.

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O CÁUCASO NORTE: DE SOCHI ATÉ NALCHIK

Quero deixar agora este pano de fundo histórico da região e sua análise sociológica e partir com os leitores para experiências reais vividas por nós no interior, cruzando de oeste ao leste a região norte do Cáucaso.

Viajar até Sochi foi uma daquelas aventuras que se decide realizar, sem pensar muito nas questões envolvidas. Mas também são aqueles momentos que depois se levará para o resto da vida.

Tínhamos um casal de amigos brasileiros morando em Sochi, e que nos convidaram para passar uns dias com eles. A cidade é um balneário que fica praticamente na fronteira com a Geórgia. Deixar de ir até um dos cartões postais da Rússia seria uma

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grande perda, especialmente por estarmos tão perto. Decisão tomada, precisávamos agora traçar a rota.

Pegamos o mapa do estado e vimos o caminho que nos levaria até a famosa cidade. Eram cerca de 300 quilômetros até Sochi. Preparamos as coisas todas. Já tínhamos experiência em viagens aqui pelo Brasil, pois quando morávamos no Distrito Federal, viajamos algumas vezes até o Rio Grande do Sul, e 300 quilômetros não são comparados com os 2100 quilômetros de Brasília à Porto Alegre. Logo perceberíamos que estes 300 quilômetros não seriam nada fáceis.

Algum tempo antes desta aventura havíamos comprado nosso carro, um Nissan japonês, com direção do lado direito (daqueles que os japoneses não queriam mais, mas que para o mercado russo ainda tinha serventia). Andar nas estradas russas sempre é um risco, especialmente quando se está com um carro cujo volante está do outro lado. Existe uma dificuldade natural a mais para se fazer ultrapassagens, já que o campo de visão fica, digamos, limitado. Para ultrapassar, ou se conta com a ajuda de um co-piloto, que dará a dica se pode ou não, ou é preciso colocar o carro quase que todo no outro lado para se ter visão. Bem, existia nestes casos ainda um jeitinho, ir o máximo possível para a direita e ver à frente do outro veículo se a ultrapassagem era segura.

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De qualquer forma, sempre havia risco. Mas com minha co-piloto já experiente, não havia muito com o que se preocupar.

Sempre era uma incógnita também a questão de acidentes nas estradas. Muitos aconteciam por motivos de imprudência e especialmente por que os motoristas ingeriam  álcool em excesso. Sempre havia alguém para contar um caso de acidente, ou relatar como se salvou de catástrofes nas estradas. Ainda, um número muito elevado de pessoas tinha alguém na família que havia se envolvido em acidentes e perecido. Conheci pessoas que acabaram por falecer em batidas. Basta dar uma olhada na internet sobre acidentes automobilísticos e “milagres” neste contexto, e verão que a grande parte destes acontecimentos ocorre na Rússia.

Contudo, o grande ponto de tensão sempre era na verdade os policiais pela estrada. A fama (negativa) deles é muito forte, e creia-me, justificável. Ser parado nas estradas é algo não apenas possível, mas praticamente certo, pois existem várias viaturas ao longo do percurso, conforme narrarei mais à frente. O problema não era a questão de estarmos infringindo alguma lei, mas o fato de que sempre se acha algo de errado para poder levar uma “pro chá”, como dizem os russos, o que traduziríamos como “uma pro cafezinho”.

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Mas a vontade de explorar era maior que o medo de tudo isto. Assim, partimos de manhã cedo, para evitarmos a polícia e na expectativa de chegarmos antes do meio-dia.

Nossa viagem começou por volta das cinco e meia da manhã, e o tempo em Krasnodar estava entre nublado e chuvoso. Pegamos a rodovia M4, que vem desde Moscou e vai até o Novorrossisk, o porto no Mar Negro. Esta estrada passa ao lado da Krasnodar e é a principal ligação com o centro do país.

Logo na saída de Krasnodar está o posto policial que demarca a divisa entre o Kray de Krasnodar (estado) e a República da Adyguea, uma república muçulmana constituída em 1991 com o propósito de dar um território ao povo adyguei, naturais da região. Os postos policiais de fronteira sempre foram os lugares mais tensos, pois neles o carro é parado e “revistado” pelos policiais armados de metralhadora. Neste dia, tudo estava tranquilo. O intenso tráfego por causa do verão e o horário favoreceram-nos

Passamos então ao lado do reservatório de água da cidade, escavado e construído nos tempos soviéticos com trabalho literalmente braçal dos cidadãos da cidade. Alguns quilômetros depois voltávamos a entrar no estado de Krasnodar, pois a parte que estávamos é apenas um braço do território

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da Adyguea.Seguimos o caminho pela estrada e chegamos a

Goriatch Klyutch, uma cidade de fontes termais muito famosa da Rússia. Mas não paramos, pois nosso objetivo ainda estava longe.

Quando já havíamos passado a cidade, após uma neblina e uma pequena garoa, as nuvens começaram a abrir e os raios de sol apareceram. A partir dali desceríamos uma região serrana. Ao chegarmos às partes mais planas daquele trecho, descobrimos que éramos os únicos a ter a ideia de sair cedo num dia de verão. O tráfego de caminhões era intenso, algo que não esperávamos, pois o transportes de carga na Rússia geralmente é eito por trens. Não demorou em pegarmos um congestionamento. No começo parecia que era algum acidente. Mas logo se tornou claro que tudo aquilo se devia ao grande número de veículos na estrada.

Conforme avançávamos lentamente, entendia que a esperança de chegar antes do meio-dia ia se tornando numa certeza de que os planos teriam que ser revistos. Às vezes tinha impressão que andaríamos finalmente mais livres, mas logo parávamos novamente. Lembro de ver alguns carros tentando ultrapassagem pela direita, pelo acostamento. Mas por estar no volante neste lado, percebia os caminhões se jogando no acostamento e impedindo a

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passagem dos apressados. Mesmo ali o velho hábito de furar fila estava presente. Ficamos nesta situação de congestionamento por quilômetros.

Por fim depois de horas ali naquela situação, após uma curva, percebi o motivo daquela encrenca. Havia um semáforo na estrada, e a multidão de carros se dividia entre a estrada à frente e uma conversão à esquerda. Quem fosse em frente iria em direção à cidade-balneário de Gelendzhik e para a cidade porto de Novorrossisk. Os caminhões todos iam naquela direção, em frente. Os carros se dividiam, pois quem tomasse à esquerda iria pegar a M-27 que leva para a cidade-balneário Dzhugba e depois, seguindo a estrada, chegaria em Sochi. Fiquei feliz ao ver que a placa que indicava nosso caminho estava livre!

Fim dos problemas? De forma alguma! Ainda tinha muita emoção pela frente. A M-27 é a única estrada que liga todo o litoral sul de Krasnodar com o resto do estado. Ela passa por todos os vilarejos, balneários, cidades, vilas e agrupamentos de casas da região costeira. Às vezes passávamos a poucos metros do mar, uma visão muito bonita, mas isto trazia também um problema.

Quando chegamos nestas regiões de praias, e passávamos por um balneário ou cidadezinha que nesta época de verão vive quase que exclusivamente do fluxo de turistas, já era por volta das 10 horas da

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manhã. Na cidadezinha de Lazarevskaya, o trânsito parou completamente, pois os pedestres atravessavam a estrada. Muitas das vezes eram famílias inteiras, com sacolas, cadeiras e todo o aparato para passar o dia na praia. Sempre havia alguém atravessando a estrada, que ao passar na cidadezinha virava uma rua comum. Tudo bem, todos tem direito e se leva numa boa, até que a paciência vai acabando e a irritação vem tomando conta. Mas fazer o que, todos estavam ali para descansar, e se estressar não valia a pena. E foram muitas aldeias e cidades que passamos!

Nestes lugares a linha férrea passava a poucos metros da estrada. Quando um trem passava “livre” ao nosso lado, batia uma inveja daqueles felizes que não ficariam horas esperando dentro do carro no já ensolarado e caloroso dia de verão russo.

Mas não era somente nas cidades que o trânsito ficava lento. Na região onde se concentravam os acampamentos, hotéis e bases de descanso, o vai-e-vem de pessoas era constante, pois geralmente estes estabelecimentos estavam estrategicamente localizados em frente às praias, para desespero dos motoristas. E, logicamente, os pedestres todos sempre estavam em ritmo de férias, sem pressa para atravessar.

Ao menos a paisagem era muito bonita. Ao longo de todo o caminho, muitas árvores por toda a

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parte, especialmente a estrada é ladeada por álamos, característicos de toda a região sul. O verde é uma cor predominante no sul, vários tons, mas o mais bonito é o verde claro, que pessoalmente sempre será símbolo da primavera.

Em alguns momentos víamos carros parados ao longo da estrada, com portas e capô abertos, cadeiras improvisadas e os russos fazendo seu piquenique ali mesmo. O sanduíche (que os russos chamam de buterbrod, palavra adaptada do alemão), que consiste de um pão com uma rodela de mortadela e às vezes uma de queijo. Sempre tem pepino e tomate para comer assim mesmos, ao natural. Não precisávamos parar para ver, simplesmente sabíamos pelos anos de convivência que eles, os russos, eram práticos e simples nestes momentos. Além disto, ao longo da estrada sempre tem um quiosque, uma tenda vendendo comida e artesanato feito com temas marítimos

A estrada M-27 tem outra característica, as curvas. Hora se está a poucos metros do mar, dali a poucos quilômetros se está no alto de uma montanha, pois a estrada toma um desvio devido ao terreno. Creio que nos pontos mais rápidos chegávamos a 60 km/h, mas logo vinha uma curva, era preciso então reduzir a marcha, pisar no freio, reduzir de novo para dar potência para subir, caminhão na frente.

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Resultado de tanta curva, nossa filha mais nova acabou por não agüentar e vomitou duas vezes. Coisas de criança pequena.

Este tipo de relevo é algo interessante. No Brasil estamos acostumados com morros, montanhas, serras planaltos e etc. Eu cresci no sul do Brasil, sempre viajando pela Serra Gaúcha, de forma que este tipo de relevo não é algo novo. Mas depois de se viver alguns anos em uma região onde tudo é tão plano, como são as planícies russas, acaba-se por perder a referência neste tipo de topografia. Em Krasnodar, por exemplo, nunca era necessário usar o freio de mão do carro. Tudo é absolutamente plano, com pequenas variações no terreno, o que logicamente é natural.

O mais interessante é o pequeno desconforto que se sente ao andar pela M-27, pois a mente acaba associando a imagem de uma Rússia plana, e que aquele cenário acidentado não pode fazer parte do país. Parece estranho isto, mas a mente faz este tipo de afirmação inconscientemente. É quase uma contradição ver ruas que são verdadeiras ladeiras, e casas sendo construídas para acompanhar o desnível da rua. Estivemos algumas vezes em Novorrossisk, a cidade portuária, e ela é cercada por morros e montanhas, sendo que a cidade se espalha não apenas nas encostas, mas acaba se expandido em direção ao

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topo destes morros. Nesta viagem ficou claro que o fenômeno habitacional de Novorrossisk não é único. Todas as cidades de pequeno e médio porte ao longo da costa ficam em um reduto entre montanhas e a urbanização seguiu os contornos do local.

De certa forma, parecia que estávamos de volta ao Brasil, pois tínhamos calor, muito verde, praias e relevo acidentado. As pessoas ao longo da via estavam com roupas de verão, leves e soltas, mesmo andando nas ruas do centro das cidades por onde passamos.

Esta característica de montanhas perto ao mar faz com que a M-27 tenha um número considerável de pontes, especialmente para que se cruze os rios que se formam devido à água que vem das encostas destas montanhas. Aliás, estes rios acabam por se tornar um perigo sempre presente na região. Uma chuva forte pode provocar não apenas deslizamentos de terra, mas inundações e destruição. Pouco depois desta nossa viagem, a região de Tuapse, por onde havíamos passado, sofreu com uma grande precipitação de chuvas em um espaço curto de tempo. A onda de lama e água chegou à cidade e numa espécie de tsunami varreu a cidade inteira. Muitas pessoas ficaram feridas, desaparecidas e mortas. O sistema de defesa civil da Rússia foi acionado e o país ficou perplexo com a destruição. Anos antes, na cidade de Novorrossisk, um tornado se formou no Mar Negro e

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atingiu a cidade, provocando muitos estragos e mortes. Pessoas foram arrastadas das regiões de encosta para o mar. Este tipo de fenômeno é algo bem conhecido dos moradores locais, mas geralmente são de pequena escala e não chegam a afetar drasticamente os locais. Mas às vezes a natureza prepara surpresas como estas, especialmente no verão.

Esta região também é local onde se concentram um número considerável de dolmens, que ficam geralmente nas encostas das montanhas voltados para o mar, ou nas imediações dos rios que correm do alto em direção ao mar. Infelizmente não havia nenhum à vista ao longo da rodovia. Apenas indicação em placas que faziam a orientação para o local do dolmen. Como estávamos muito atrasados no nosso horário, pensamos em passar na volta. Logicamente que na volta não encontramos mais o lugar. Sempre é assim!

A rodovia M-27 pode ser considerada boa em sua pavimentação ao longo do percurso. Algumas vezes existem irregularidades no asfalto, mas nós brasileiros estamos acostumados com estes imprevistos. O transito é complicado na chegada e nas próprias cidades. Nestes locais, como dissemos, a estrada acaba virando uma rua, estreita, às vezes, mas o asfalto acaba não sendo comprometido. Chegando à região de Sochi, o congestionamento era

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monstruoso, pois muitos veículos de passeio e caminhões congestionavam todo o trânsito, no ziguezague da descida da montanha. Lá em baixo a estrada se dividia em duas, uma indo direto para o centro de Sochi e outra que seria uma espécie de Rodoanel. Quase que sem querer, muito instintivamente pegamos o rodoanel. Aí a rodovia virou estrada quase sem trânsito. Mas a alegria durou pouco, pois o Rodoanel ainda estava em construção, e após uma sequência de túneis tivemos que pegar um desvio e voltar para a M-27 antiga. Percebemos que já havíamos ao menos passado a parte urbana de Sochi, e tomamos a direção de Adler, uma cidade vizinha de Sochi, onde moravam nossos amigos brasileiros.

Quase chegando ao centro de Adler, do lado direito da M-27, fica a estação ferroviária de Adler, o ponto final de uma ferrovia que vem de Moscou, e que diariamente recebe vários trens vindo da parte central da Rússia. No verão, aqui são “despejados” um número muito grande de turistas, que vêm de toda a Rússia, usando Moscou como conexão.

Adler é uma cidade que vive aparentemente à sombra de Sochi, a irmã mais famosa. A última cidade antes da fronteira com a Geórgia, ou Abkhazia, que é uma região que mantém relações conturbadas com o governo georgiano e está sob uma espécie de “proteção” do governo de Moscou. Nos confrontos em

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2008 entre o governo georgiano e a Ossétia do Sul (região que fica na fronteira com a Rússia), a Abkhazia também entrou em linha de confronto com o governo central. A Abkhazia parece uma extensão do que é encontrado do lado russo, com praias e clima subtropical. Apesar de estarmos alocados a algumas centenas de metros da fronteira, não ousamos, nem pela curiosidade, sequer chegar perto da divisa. Na época dos confrontos, um jornalista brasileiro foi abordado e preso pela polícia por fazer entrevistas numa rua de Sochi a respeito da opinião dos russos sobre o envolvimento do seu governo na questão. Resolvemos não brincar com a sorte, mesmo que fossemos instigados pela curiosidade de ver o que existe lá do outro lado.

Adler tem algumas praias, de pedras é verdade, mas que não podem rivalizar com uma espécie de mística que envolve Sochi. O aeroporto de Sochi na realidade está em Adler. A ferroviária, ponto final fica igualmente em Adler. Sobre a cidade não há muito que dizer.

Já Sochi é um capítulo à parte. A cidade tem cerca de 370 mil habitantes, e vem sofrendo maciços investimentos de vários setores, especialmente do governo russo. Isto tem mudado a cara da cidade ao longo dos últimos anos. Quando ela foi escolhida para receber as Olimpíadas de Inverno de 2014, muitas

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obras começaram a aparecer pela cidade. O trânsito ficou mais caótico, o policiamento mais extensivo. Sochi praticamente não saía dos noticiários da televisão, pois o sempre bem visível Putin, na época primeiro ministro, frequentemente estava na região. A cidade acabou por virar um balneário bem caseiro para a elite russa. O preço dos imóveis disparou e viver lá acabou sendo um privilégio para poucos de fora. Isto acabou afetando Adler, que virou de certa forma uma opção de moradia.

Se formos falar sobre as praias em si, pouco se pode dizer em termos de beleza, especialmente para quem vem de um país como o Brasil, que tem praias paradisíacas ao longo de toda a costa. As de Sochi são de pedra. Muitas regiões acabaram se tornando lugares particulares dos bares e restaurantes de beira-mar. a faixa de “praia” se estende a poucos metros entre a calçada (ou da linha de restaurantes) e as águas do Mar Negro. Ao se entrar na água, nada quentes por sinal, logo se percebe que em poucos metros não “dá mais pé”. Resumindo, ir para lá por causa das praias não é uma opção muito atrativa. Mas Sochi tem uma vantagem que é a infra-estrutura para turistas, com bares, orla, muito verde, palmeiras pela cidade toda, topografia variada, muito verde, parques e um ar diferente do resto das cidades russas. Sochi parece mais viva e dinâmica, sem a frieza e o cinza do

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resto do país. Existem várias atrações pela cidade. A principal

que está relacionada ao mar é o Delfinário, um lugar grande e que está sempre lotado nesta época de verão. Fomos até lá com nossas crianças para conferir. Não nos arrependemos! O show realmente e digno de nota 5 (na escala russa). Todos se maravilharam com a habilidade dos animais marinhos, as piruetas, os truques e a destreza de todos os participantes do espetáculo.

Outro local de interesse é o Dendraniy de Sochi, que é uma coleção única de exemplares da flora e fauna subtropical. É um parque e jardim botânico ao mesmo tempo, misturado com zoológico. O Dendraniy fica localizado numa colina (ou seria um monte?) que fica de frente para o mar. O parque todo atualmente ocupa uma área de 49 hectares, onde se encontram mais de 1500 espécies, formas e variedades de árvores e arbustos. Tem uma grande coleção de pinheiros com 76 espécies, num total de 1.890 exemplares. É a maior coleção russa de carvalhos, palmeiras e muitas espécies de ciprestes, além das plantas subtropicais raras. Pode ser que para nós brasileiros isto não seja algo muito digno de notoriedade, mas os russos da região se orgulham de sua exuberância, tendo em vista que este tipo de situação não se encontra pelo país.

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O parque é composto de duas partes: a superior e a inferior. Na parte baixa está localizado um aquário, que contém vários exemplares das espécies que são habitantes do Mar Negro.

Em algumas outras áreas do parque foram criados cantos separados que contêm densas coleções de plantas originárias do Cáucaso, Japão, China, Austrália, Mediterrâneo, das Américas do Norte e do Sul.

Dá para falar bastante sobre a importância deste lugar que é um laboratório a céu aberto, mas nossos leitores ficariam muito enfadados com números e outras questões mais técnicas. O que fica mesmo na mente do visitante é a beleza do lugar. Existe a possibilidade de subir até o alto do monte por um teleférico, o que realmente é muito legal, especialmente para a criançada.

Chegando lá em cima se tem uma excelente vista de todo o parque e ainda o Mar Negro ao fundo. Passear por lá, é como voltar ao Brasil tropical, um pequeno descanso para a mente, acostumada ao clima e vegetação das regiões mais frias. Isto nós aprendemos na Rússia, como o verde faz bem para a mente, o sol raiando e seu calor, o céu azul,... Aprendemos a dar mais valor ao que temos por aqui também.

Sochi ainda reserva outras surpresas, mas a

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mais conhecida de todas é a região conhecida como Krasnaya Poliana. Esta é uma aldeia urbana no distrito de Adler que está localizada no curso médio do rio Mzimta, a 39 km do Mar Negro. A região está conectada com Adler e Sochi, através de uma estrada moderna que passa pelo aeroporto local.

Krasnaya Polyana é um centro popular de esqui e snowboard, com a reputação de ser a mais "respeitável" na Rússia, para aonde se dirigem muitos russos no inverno. As pistas de esqui que ficam perto da aldeia são muito procuradas pelo fato da boa cobertura de neve úmida. Aliado a esta questão, o terreno oferece boas oportunidades para esquiar, inclusive fora dos circuitos das pistas oficiais. Tudo isto elevou as possibilidades na candidatura de Sochi para as Olimpíadas de Inverno de 2014.

Mas estávamos em Sochi no verão e neve, nas estações, não havia. Contudo, o passeio foi feito, pois quantas vezes mais na vida teríamos esta oportunidade? A estrada que leva até a aldeia no meio das montanhas era pista simples, mas ao lado se viam as obras de construção de um trem que liga Sochi (aeroporto) e a aldeia.

Chegando lá, pegamos um teleférico e subimos até o topo da montanha que fica em torno dos 2000 metros acima do nível do mar, que fica “logo” ali em baixo. Os russos dizem que em Sochi se pode esquiar

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nas montanhas de manhã e à tarde tomar banho de mar. Estão certos!

Para se alcançar o topo, a última estação, precisa-se fazer uma baldeação para o segundo teleférico. Chegando lá em cima, apesar de estarmos no verão, o clima era outro. Ventava bastante e a sensação de frio era bem maior. Andamos um pouco, tiramos várias fotos, e depois voltamos para o nível mais baixo.

Voltamos de Sochi para Krasnodar contentes por ter vivido esta outra face da Rússia. A viagem foi marcante em todos os sentidos. Felizmente tudo ocorreu sem maiores dificuldades. Sempre fica aquele desejo de um dia voltar para lugares como estes, mas o que importa é que estivemos lá, vivemos o momento. Creio que tais experiências enriquecem a vida de cada um. Levaremos conosco estas imagens, e quem sabe, um dia realmente voltaremos lá!

--------------------------------------NalchikAbril de 2008

Certo dia nosso amigo brasileiro veio nos visitar. Ele era jogador de futebol, e havia sido contratado pelo time da cidade de Nalchik, que naquela época estava na primeira divisão do campeonato russo.

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Ele estava em Krasnodar para resolver algumas questões e precisava voltar no dia seguinte para se reapresentar no clube. A questão era que, de nossa cidade para Nalchik, não havia vôo direto, só por Moscou. O trem, segunda opção viável ia apenas até metade do caminho. Ele estava sem muitas alternativas, e então propôs algo que,  num primeiro momento, parecia atraente.

- Que tal você me levar até lá de carro? - perguntou ele num tom de brincadeira, mas que escondia um ar de seriedade.

Achei que seria interessante uma aventura, só para variar. Logo me veio a mente então o velho medo eterno dos estrangeiros na Rússia. Creio que o leitor já esteja adivinhando neste momento. Sim, a polícia!

Conversamos sobre o assunto, possibilidades de outros meios de se chegar lá, mas nada era tão “certo” quando uma ida de carro. O percurso era de aproximadamente 500 quilômetros, e uma estimativa de tempo de viagem de 6 horas e meia. Deveríamos sair por volta das 22h00min e viajar toda a noite. Em parte para evitar a polícia na estrada, e em parte por causa do intenso tráfego da M-29, conhecida como estrada “Сaucasiana”. Ela faz a interligação de todo o norte do Cáucaso, desde o estado de Krasnodar no Mar Negro, até a região de Derbent, Daguestão, no Mar Cáspio, fronteira com o Azerbaijão.

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Participariam desta viagem o nosso amigo futebolista, eu, um membro da comissão técnica do clube que também estava na cidade e um angolano naturalizado russo, que era taxista em Krasnodar e conhecia a estrada e outros “detalhes” do percurso. No horário marcado estávamos todos em nosso endereço residencial para começar a façanha.

Lembro que a noite estava clara, sem nuvens e a lua já havia aparecido por detrás dos prédios. Não estava frio, mas usávamos casacos leves para garantir que não seríamos surpreendidos no trajeto.

A estratégia de sair no meio da noite mostrou-se funcional. Poucos carros na estrada e praticamente não havia polícia pela estrada. Aquela viagem serviu para me ensinar como se deve dirigir na Rússia, as “regras” das estradas e especialmente o que NÃO fazer. Havíamos comprado o carro ha não muito tempo, e esta era a primeira viagem realmente longa, cruzando estados. A regra mais sagrada me ensinou o motorista angolano, era nunca, em hipótese alguma, “pisar na linha” - como dizem os russos. Esta expressão dizia respeito a não passar com o pneu em cima das linhas entre a “faixa de rolagem” (pista) e o acostamento, e tocar a linha divisória entre as duas pistas. Nunca entendi muito bem este “pecado capital”. O simples fato de se tocar nestas linhas, em quaisquer circunstâncias, seria motivo suficiente para

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ser parado por uma patrulha policial e momentos de estresse à frente.

O primeiro momento tenso para mim foi quando atravessamos a divisa do estado de Krasnodar e Stavropol. Já passava da 1 hora da madrugada. Estrada vazia, apenas nós no sentido Krasnodar-Nalchik. O posto policial apareceu de repente depois de uma pequena colina. No sentido contrário apareceu um carro também. Havia uma placa de PARE numa cancela ao lado da estrada. O angolano virou-se e disse para mim, o novato:

- Sempre que estiver por passar por um posto policial, deve-se reduzir a velocidade até o ponto do carro quase parar. Se o policial fizer menção de querer parar você, pare!

Felizmente parecia que o policial estava mais ocupado com seus afazeres e não tivemos que parar, apenas reduzir a velocidade. Aprendi a não ficar encarando o policial, usando a “visão periférica”, pois parecia que um olhar direto atraía a curiosidade deles. Sei lá, podia ser psicológico apenas, mas em geral funcionava.

Dentro do carro íamos conversando e rindo, falando em português e russo, por causa do russo que nos acompanhava. Aliás, nem russo ele era, mas pertencia a alguma daquelas etnias do Cáucaso. E isto, o fato de pertencer à outra etnia, todos os não-

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russos deixam bem claro. Algo que para nós passa sem maiores merecimentos de atenção, para eles é vital. Existem duas palavras no idioma russo para o nosso vocábulo “russo”, russkiy e rossiskiy. O primeiro vocábulo (russkiy) denota a etnia eslava russa. O segundo (rossiskiy), denota todos aqueles que nasceram e tem a cidadania russa. Assim, nosso amigo no carro era rossiskiy, mas não russkiy. Lembro que na universidade havia na minha turma uma moça. Num dia, conversando, chamei-a de russa (russkaya). Rapidamente ela me corrigiu, com certo tom de brabeza, que ela era Tatar, e não russa. Minha esposa passou pelo mesmo constrangimento com uma vizinha, que logo no início da conversa disse:

- Ola, meu nome é Alsu, e sou tatar muçulmana. A necessidade de auto-afirmação étnica e

religiosa na Rússia é algo muito importante, logo descobrimos isto!

Mas voltando para nossa viagem, tudo foi tranquilo. Uma conversa animada e muitas risadas foram necessárias para manter o motorista alerta e acordado.

Depois de 5 horas e meia, mais ou menos, estávamos chegando à divisa do estado de Stavropol e a república de Kabardino-Balkharia, cuja capital era Nalchik. Devido ao fato de ainda estar escuro, não me recordo muito bem da geografia do local, mas

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repentinamente depois de uma curva apareceu o posto policial. Havia muitos carros e caminhões parados. Estranhei, pois geralmente nos postos não existe toda esta fila. E a parada era obrigatória. Policiais com metralhadoras em mão estavam postados na estrada e no posto. Percebi que a situação não era de tranquilidade.

- Estão procurando alguém? - perguntei.- Não, é assim mesmo, bem-vindo ao Cáucaso! -

alguém no carro respondeu.- Passaportes de todo mundo, disse o angolano.Recolhemos os passaportes e entregamos pro

nosso motorista, que desceu do carro e foi até o posto. Aquela cena não era totalmente nova para mim, pois na televisão russa sempre mostram este tipo de situação, e geralmente mostrando que o posto policial foi atacado ou explodido por grupos rebeldes chechenos, ou algo assim. Estávamos entrando em zona potencialmente perigosa e bélica. Eram as nossas  boas-vindas!

A expectativa foi grande, pois um grupo de brasileiros e angolano tentando entrar numa república de uma região instável, é algo muito estranho. As perguntas de sempre: quem são, por que estão aqui, qual o objetivo, o que querem??? O fato é que perdemos ali uns 10 minutos, além de uma tensão. Estar numa barreira policial daquelas invocou

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em mim as imagens da televisão, e aquilo era desagradável. Fico pensando no policial lá dentro do posto no balcão de controle vendo aquilo tudo: um carro, com documentação no nome de um russo, mas que na verdade pertencia a um brasileiro, só que estava sendo dirigido por um angolano, que por sinal era naturalizado, que estavam viajando de madrugada para uma das regiões mais perigosas do mundo.

Creio que foi durante a devida verificação, dos documentos, que outros policiais fortemente armados “pediram” (não é bem esta a palavra, mas vamos deixar assim!) para inspecionar o carro, porta-malas, interior, etc. Pareceu-me ter visto uma metralhadora numa espécie de barricada logo ali na frente, mas nem pensei em dar uma olhada melhor, pois era muito aconselhável nesta hora deixar a curiosidade de lado e tentar sair o mais rápido daquele lugar.

Percebi que se não fosse por um fator, ficaríamos lá por muito tempo, dando explicações. O fato de estarmos com uma “estrela” do único time da república de Kabardino-Balkharia na elite do futebol russo, onde estávamos entrando, foi um abrir de portas.

Quando finalmente o angolano voltou, sorrindo, percebi que sairíamos logo dali. Entramos no carro e passamos pelo posto que estava à nossa direita. Depois que o posto ficou fora do alcance do retrovisor,

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o angolano disse que o fato do nosso amigo ser jogador “facilitou” as coisas, pois ninguém iria querer levar a culpa por um incidente, logo no posto de fronteira. Esta ajuda seria muito bem vinda novamente depois, na volta.

Ainda na escuridão da noite chegamos à Nalchik. As ruas estavam vazias, nenhum carro, nenhum movimento. Fizemos várias conversões e depois de alguns minutos estávamos já perto do estádio. Naquele momento apenas queríamos chegar a algum lugar onde pudéssemos dormir um pouco, e relaxar.

Ficamos do lado de fora do carro esperando o nosso amigo “russo” resolver onde poderíamos ficar naquelas horas que restavam da noite. Eram umas 4 da madrugada, e alguém não deve ter ficado contente de ser acordado nesta hora. Mas depois de algumas ligações e conversas num prédio aonde havia entrado o russo, saiu a decisão de onde eu e o angolano ficaríamos. Realmente gostaria de um bom banho quente e uma cama confortável para recuperar as energias, mas conhecendo a Rússia, este luxo teria que ficar para a minha volta para casa.

Ali mesmo havia uma espécie de alojamentos do clube, e fomos levados para lá. A senhora que cuidava do local não estava com muito bom humor, mas isto não era novidade. Entramos no prédio e seguimos

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pelo corredor. À medida que avançávamos, o meu sonho de um bom banho e uma cama agradável, ia se esvaindo. Entramos num quarto que devia ser reservado para o pessoal dos jogadores das categorias de base. Tinha as camas e um banheiro. A visão inicial não impressionou positivamente, mas naquela altura, todos os sonhos já haviam se diluído e tudo que eu queria era um descanso. Entrei no banheiro, e honestamente nem lembro se tomei banho, apenas me lembro que a descarga ficava correndo e a torneira da pia também. A senhora nem deu bola para a água que se ia sem ser utilizada. Tentei desligar o cérebro daquilo, pois isto realmente é uma situação que me deixa nervoso, água sendo desperdiçada.

De alguma forma cheguei até a cama, já eram quase 5 da manhã. Depois que a luz amarelada fraca se apagou, eu também apaguei.

Eram pouco mais das 9 da manhã quando vi o angolano de pé no quarto. Sabia que não adiantava enrolar na cama. Levantei e fui dar uma espiada pela janela, conhecer a famosa Nalchik. Não vi muita coisa, senão as árvores.

Um tempo depois o nosso brasileiro liga para o angolano, dizendo que iria passar para nos pegar para darmos uma volta de “leve” pela cidade. Entendi logo o que estava querendo dizer. Nalchik é uma cidade relativamente pequena, mas uma das maiores do

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Cáucaso norte, com uma população de 240 mil habitantes. Apesar do território onde se localiza a atual cidade ter sido habitado pelos povos nativos balcários e Kabardinos (daí o nome da república Kabardino-Balkharia) desde o século XVIII, a cidade de Nalchik como a conhecemos foi fundada somente no século XIX, quando o Império Russo estendeu seus domínios pela região. Foi durante a Segunda Guerra Mundial ocupada pelos nazistas, e aqui se travaram batalhas que acabaram por deixar Nalchik muito destruída.

Mas como toda cidade do sul da Rússia, Nalchik é muito arborizada. Estávamos perto do parque da cidade, e pudemos passar algumas vezes na frente. Muito verde, flores e pessoas caminhando na rua. Não nos atrevemos a sair das proximidades do estádio. Não sei se era por causa da recepção no posto da fronteira, mas parecia que estávamos num clima bastante hostil, não das pessoas em si, mas a atmosfera do local leva a pessoa a ter este tipo de pressentimento. A cidade parecia muito calma, uma verdadeira cidade de interior da Rússia, mas a aparência era enganosa.

Poucas semanas antes, nosso amigo nos informou que haviam metralhado o carro de polícia em pleno centro da cidade. Os ataques haviam iniciado com maior intensidade desde que o governo

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russo “resolveu” a questão na Chechênia. A última guerra da Chechenia, em 1998, trouxe

alguns resultados para a região e para todo o país. A liderança de Vladimir Putin no conflito rendeu-lhe o cargo de presidente da Federação Russa em 1999. A paz forçada pelos russos na Chechênia após a vitória no confronto, fez com que os rebeldes da região abandonassem a república caucasiana e fugissem para outras partes da federação. Muitos haviam atravessado a fronteira interna e ido para o Daguestão, outros teriam saído para a Ingushétia, e alguns para a república de Kabardino-Balkharia. Desde então, começaram os ataques nestas regiões. Todos devem lembrar-se do caso da escola em Beslan, onde terroristas prenderam pais, alunos e professores numa escola, no dia 1° de setembro de 2004. Foram três dias de suspense, e ao final mais de 300 pessoas morreram, a maioria crianças. Atentados a bomba ocorreram em várias cidades ao norte do Cáucaso, especialmente nos mercados públicos, sempre repletos de pessoas. Na época da primeira guerra da Chechênia, nos anos 90, até mesmo Krasnodar sofreu um atentado a bomba no mercado.

Quando chegamos à Rússia em 2005, a caçada aos grupos separatistas era alvo constante dos noticiários. A televisão russa fazia questão de mostrar o ataque do exército contra células destes grupos,

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mostrando o resultado, corpos espalhados pelo chão e alguns até carbonizados. Era uma mensagem clara para os rebeldes.

Semanalmente apareciam notícias sobre o Daguestão, onde sempre havia atentados, bombas, tanques, exército, polícia, sangue e morte. Quando o time da capital Makhachkala (Anji) subiu para a primeira divisão do futebol russo, passaram a se preocupar com a integridade física dos jogadores. O próprio time, que nesta época foi reforçado pelo ex-jogador da seleção brasileira Roberto Carlos, tinha sua sede em Moscou. Treinava na capital russa, e quando tinha um “jogo em casa”, pegavam o avião, iam até Makhachkala, jogavam, e voltavam rápido para Moscou.

Groznyi, a capital da Chechênia era uma cidade pacificada quando chegamos à Rússia. Contudo, a tensão do norte do Cáucaso sempre se faz presente. Outro brasileiro amigo nosso, jogava pelo time de Krasnodar, e naquele ano a equipe de Groznyi, Terek, subiu para primeira divisão. Numa conversa informal com ele, eu dizia que não havia com o que se preocupar, pois as coisas lá já estavam bem mais tranquilas, depois que os russos ganharam a guerra. Na semana seguinte o time dele foi jogar em Groznyi. Ao voltarem, perguntei como tinha sido a experiência. Ele me relatou que desde a chegada no aeroporto até

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a saída de volta para Krasnodar, sempre havia um esquema de segurança. Na ida para o estádio, além dos batedores da polícia, em todas as esquinas havia policiais armados com metralhadoras. Ele disse que se sentiu em pânico, pensando no que poderia acontecer com eles naquele local. Este é o clima nas cidades do Cáucaso.

Mas voltando a nossa história, a permanência na cidade foi rápida. Não nos aconselharam ficar por lá (empolgante, não é?) e voltar logo era o mais sensato. Posto desta maneira, no meio da tarde partimos da cidade, após um tour rápido pelo local. Não sei, depois de tantos conselhos, perde-se o interesse de ficar andando pelas ruas!

A volta teve suas complicações. Sem a proteção do escuro da noite e com um trânsito intenso, pegamos congestionamentos na estrada que passava perto de Pyatgorsk, região famosa pelas suas águas termais. O dia estava muito quente e o sol realmente não dava trégua. O ar-condicionado do carro não funcionava, e parecia que aquela fila não tinha fim. Apesar de a estrada estar em excelentes condições, a quantidade de carros era tão grande que ficava difícil desenvolver alguma velocidade. Mas o pior ainda estava por vir.

Tempos mais tarde fiquei sabendo que a polícia mais corrupta do país, segundo fontes do próprio

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governo russo estava localizada justamente nesta estrada M-29! Infelizmente, logo descobri o porquê da fama…

O trecho entre Pyatgorsk e Mineralnye Vody, cerca de 40 quilômetros, durante o dia está repleto de patrulhas policiais. Creio que elas estavam a menos de cinco quilômetros uma da outra, parando os carros, verificando documentos, querendo achar algo para poder tirar proveito.

Nós éramos alvos fáceis para eles, pois em primeiro lugar, a placa do carro era de outro estado (estávamos no estado de Stavropol), e isto atraia os olhares bem treinados. Em segundo, o motorista, apesar de ser naturalizado russo, era angolano, o que, obviamente, facilitava aos guardas perceberem rapidamente tratar-se de estrangeiros.

Uma destas patrulhas nos parou perto de Mineralnye Vody (que em russo significa águas minerais).

- Documentos - disse o policial.Ele olhou tudo enquanto o outro fazia uma

inspeção externa, provavelmente procurando algo para nos pegar.

- O carro é seu? - perguntou o guarda para o angolano.

- Não, o carro é do moço aqui, mas eu estou dirigindo por que ele não conhece a estrada e não tem

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prática ainda aqui na Rússia. - Fala russo? - me indagou. - Sim, senhor! Um pouco - respondi com ar de

quem estava perdido no assunto.- Documentos, cadê?- Aqui estão. - respondi reticente.Após olhar o passaporte e a habilitação, disse:- Ah, você é brasileiro? Pensei que iríamos nos livrar, pois quando o

assunto ia pro futebol, Pelé e café, geralmente os policiais davam uma relaxada. Mas não desta vez!

Ele me chamou para o lado do carro, fora do alcance dos ouvidos do angolano e me disse:

- Sabe ler russo?- Sim, senhor!- Então me diga: o que está escrito aqui neste

documento do carro?Li para ele, pois isto qualquer um sabia fazer.

Lá estava o nome do verdadeiro proprietário do carroEle balançou a cabeça e como que enfiando a

faca, sorriu e disse:- Agora leia para mim o nome desta autorização

de uso do carro.A ficha caiu. Nos documentos, o nome do

proprietário e o nome de quem me autorizava a dirigir o carro (o dono) estavam com uma letra trocada. UMA LETRA!!! Todos os outros dados eram iguais, número

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de passaporte, identificação, nome, patronímio, mas sobrenome estava com uma letra digitada errada (num sobrenome enorme!).

- Está vendo, não são as mesmas pessoas! Assim, você não tem autorização legal de dirigir este carro, nem de estar com ele!

Não preciso dizer que o mundo caiu. O angolano chegou perto e se inteirou do

assunto. Sua cara de apavoramento não me ajudou em nada. Ele sabia o que estava por vir, era taxista…

- Vocês vão ter o carro apreendido. Vão ter que voltar para casa de ônibus. Vai ser aberto um processo contra você e daqui à mais ou menos um mês precisará vir aqui em Mineralnye Vody com seu advogado para ir a julgamento. Ainda precisarão pagar pelo guincho agora, e pelo tempo em que o carro ficará apreendido no pátio. A multa é de XXX rublos, paga agora, já que vocês são de outro estado.

Persuadir os policiais parecia impossível. Eles sabiam que estávamos em grande desvantagem, e iriam se aproveitar o máximo disto. Poderiam tirar o dia com aquela situação. O angolano foi para a viatura tentar conversar com o chefe do grupo. Eu fiquei ali desolado, com um policial (que fazia a revista antes no carro), conversando comigo, no que mais parecia um interrogatório no estilo KGB dos filmes.

Antes disto, havíamos explicado que estávamos

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fazendo uma boa ação para um colega que precisou de uma ajuda para ir até Nalchik. Não funcionou apelar para o instinto de ajuda e camaradagem russa.

Neste meio-tempo, entre viatura e nosso carro, o angolano me pediu o celular, dizendo que ia ligar pro nosso amigo de Nalchik. Logo percebi a tática, valer-se de uma velha tradição russa, os contatos. Creio que a chegada do celular e sua popularização impulsionaram este hábito. Está numa situação complicada, aconteceu algum problema? Pegue o seu celular e chame os contatos! Por isto é sempre bom ter uma boa lista de contatos.

No nosso caso, estávamos limitados ao nosso amigo, jogador do time do estado vizinho. Pensei que não era muito promissor isto, mas naquele momento era o que tínhamos.

O angolano pegou o celular e muito visivelmente aos policiais fez a ligação. Para dar um tom ainda mais sério, falou em russo para deixar claro a intenção daquela chamada (depois continuou o resto da conversa em português). Percebi que os policiais se entreolharam.

- Opa, está dando certo! - pensei naquele momento.

O angolano explicou a situação para o brasileiro e perguntou se seria possível alguma “saída” deste caso. Obviamente, sempre existe uma solução!

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Os policiais chamaram o angolano para dentro da viatura. Assisti-os conversando lá do outro lado da estrada. O angolano com o telefone na mão, à meia altura e o policial gesticulando, aparentemente mais amistosamente. O policial que estava anteriormente inspecionando o carro aproximou-se e começou a perguntar sobre o Brasil, futebol e carnaval. Os ares estavam mudando e o vento começou a soprar em nosso favor.

Após alguns minutos de conversa, o angolano sai sorridente do carro da patrulha. O policial russo também com ar mais amigável veio em minha direção.

- Viva o Brasil! Não queremos ter um escândalo internacional por coisas tão pequenas, não é mesmo? - sorrindo disse o policial.

- De maneira nenhuma! - sorri de volta.- Veja bem meu jovem, o documento está

errado, mas deu para entender que foi um problema de digitação. Vou liberar vocês por entender isto, mas não posso garantir que outro  será tão compreensível. Aconselho a trocar logo este documento aqui.

- Sim, senhor, eu farei isto imediatamente quando chegar em Krasnodar.

Logo fomos liberados e pudemos sair com o carro. Eu não via a hora de estar longe daquele lugar. As pernas pararam de tremer somente depois de alguns minutos.

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Alguns quilômetros depois, outra patrulha nos parou. Pensei que iríamos começar tudo de novo. Ao parar o carro, o policial chegou perto da janela do lado do angolano para pedir os documentos. Antes mesmo do policial se apresentar, o angolano já saiu disparando:

- Vocês não têm jeito mesmo, os caras lá de trás já andaram passando o rádio para vocês aqui não é!!! - com um tom de desabafo.

O policial reagiu imediatamente:- Vocês motoristas sempre pensam que estamos

combinados não é? Não tem nada disto aqui não cidadão! - respondeu asperamente.

Começou uma pequena discussão sobre a ética policial ali mesmo. Eu pensei que desta vez tudo estava perdido. Iríamos ser presos por desacato à autoridade, ou qualquer coisa do tipo.

O angolano passou os documentos para o policial enquanto discutiam. O policial nem prestou atenção no documento e continuou a discutir com o angolano sobre o assunto em pauta. Após alguns instantes, que para mim duraram minutos, o policial nos liberou, dando a última palavra:

- Está bem, podem ir!O angolano pegou os documentos, engatou a

marcha e saímos dali rapidinho. Enquanto saíamos, o angolano deu uma olhada para mim e sorriu, com ar

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de moleque maroto. A tática havia dado certo!Perguntei então, agora já aliviado por saber que

estávamos fora do raio de ação da polícia, pois já havíamos cruzado a região onde eles costumavam ficar, o que acontecera lá atrás, na primeira patrulha.

- Simples! Liguei pro nosso amigo na frente dos guardas. Eles perceberam que tínhamos algum contato. Perguntaram quem era, e disse que era fulano, que estava no time tal. Ele tem acesso ao chefe da polícia da república que estávamos. Ainda por “coincidência”, ele conhece o chefe da polícia aqui da região… Assim sendo, o caso iria se arrastar até algumas instâncias e por muito tempo, até todo mundo ligar para todo mundo. O que eles não querem é “alguém” lá de cima tendo que passar um rádio para uma patrulha de estrada liberar alguém (nós). Além disto, eles estavam ha mais de meia hora nesta questão conosco, e se ficássemos mais tempo lá esperando, sabendo que a possibilidade deles terem que nos liberar sem questionamentos, estariam perdendo de atacar outros carros na estrada. E isto era muito ruim para eles. Resultado, “não queremos ter um escândalo internacional por coisas tão pequenas, não é mesmo? - sorriu o angolano!

Depois de algumas horas, já na escuridão da noite que caia sobre Krasnodar, chegamos exaustos da aventura, mas com muitas histórias para contar.

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--------------------------------------Estas aventuras pelo interior do sul da Rússia

foram espetaculares, pois foi importante para conhecer as pessoas, paisagens, conhecer a realidade em que vivem os povos minoritários dentro da Federação.

Vimos de perto algumas das problemáticas de região, ao vivo, ali em nossa frente. Realmente é uma pena que o Cáucaso seja um local de instabilidade política, pois há muitas coisas belas que poderiam ser apreciadas pelos turistas. A cultura local é muito forte e rica. Como dissemos anteriormente, aquela região tem milênios de história, guerras, conquistas, culturas, contradições e amores. As lendas, o folclore, as cosmo visões, ideologias, costumes, tudo isto faz do Cáucaso um lugar absolutamente único no mundo.

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POLO NORTE: SALEKHARD

Era uma tarde muito quente de verão. Estávamos na estrada para a praia, no carro de uma família de russos, amigos nossos. A conversa era despretensiosa, daquelas que vão fluindo, para passar o tempo.

Não lembro ao certo por que chegamos num determinado assunto, mas de repente o amigo russo virou-se para mim e perguntou:

- Você não gostaria de lecionar uma matéria na nossa instituição, lá em Salekhard?

Fiquei surpreso com a frase, mas mostrando serenidade e tentando não perder o controle da conversa, disse:

- Claro, seria um prazer poder ajudar!- Ótimo, pois estamos precisando de alguém

para ir lá neste semestre. Seria uma matéria no estilo

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“Intensivo”. - disse o russo, expressando certa alegria.“Muito bem”, pensei, “agora só falta saber onde

fica este lugar!”. - Mas Vladimir, onde fica exatamente

Salekhard?- Ora, fica lá no norte, na região polar! -

respondeu friamente.Confesso que uma mistura de sensação de

aventura e pavor tomou conta de mim. O que ele queria dizer exatamente com “região polar”? Quão distante isto poderia ser? Quanto dinheiro eu precisaria levantar para ir até lá? Quanto tempo isto levaria? E mais importante, de que temperaturas estávamos falando?

Os próximos quilômetros de estrada serviram para uma conversa que deveria lançar alguma luz sobre estes pontos obscuros. Eu estava ansioso para ver um mapa, saber mais detalhes da viagem. Mas quando se vai para a praia, não se leva um mapa das regiões polares! Tive que me contentar com as explicações do amigo e esperar voltar para casa e finalmente achar Salekhard num mapa.

Ficou acertado que iríamos juntos para lá. Esta seria uma viagem de mais de 3300 km desde Krasnodar até Salekhard, e fui informado que o meio mais barato de ir até lá seria de trem, e que esta experiência era única. O trem saía de Moscou e levava

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47 horas até chegar à Labytnangui, o ponto final da ferrovia. De lá, precisaríamos ainda atravessar o rio Ob’ e andar mais alguns quilômetros até chegar ao destino final.

Por causa das aulas na universidade em Krasnodar, resolvi ir de avião até Moscou, de lá pegar o trem até Labytnangui. Depois, voltaria tudo de avião.

Para isto, consegui levantar o valor total das passagens junto com amigos do Brasil e fui comprar as passagens aéreas. No aeroporto de Krasnodar havia o guichê da única companhia que fazia vôos para Salekhard.

- Quero uma passagem de Krasnodar para Salekhard! - disse para a senhora que estava atendendo.

- Passaporte. - secamente falou a mulher.Tirei o passaporte do bolso e entreguei para

ela. Ela pegou e deu algumas folheadas e disse:- Estrangeiro? Você quer ir para Salekhard?

Não tenho certeza se pode, pois acho que esta é uma zona fechada (para estrangeiros)!

Pensei que havia entrado num túnel do tempo, e caído na União Soviética novamente. Olhei para a senhora e pedi se poderia verificar isto. Ela pegou o telefone e começou a fazer algumas chamadas. Liga, desliga, liga de novo, conversa daqui, conversa dali.

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De repente, ela desaparece atrás de uma porta com o meu passaporte, visto e registro de residência na cidade. Pensei, “pronto, acabou a aventura sem ao menos começar!”.

Depois de uns minutos, ela volta com os documentos e diz:

- Está tudo bem, Salekhard não é mais zona fechada!

Logo fiquei imaginando os motivos para que um dia ela o fosse! Posteriormente isto ficaria claro.

Chegando o dia da viagem, a maior aventura de todas, liguei para meu amigo russo que iria junto. Ele precisou ir para Salekhard uns dias antes da nossa viagem marcada e teria que voltar quando eu chegasse lá.

- Ótimo! Como vou, sozinho? - perguntei ainda desnorteado.

- Não tem erro, é só entrar no trem e ir até lá. Chegando na ferroviária, alguém irá te pegar.

“Fantástico”, pensei. Mas voltar atrás já não seria possível, pois tudo estava comprado, e conseguir reembolso, naquele valor todo, na Rússia, estava fora de qualquer sonho.

No dia marcado, peguei o avião até Moscou e de lá fui para a ferroviária. Tudo certo. Passei a tarde toda na plataforma de embarque, vendo as horas passarem lentamente. Já no escuro da noite o trem

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parou na plataforma e pude finalmente embarcar. Estava ansioso em pensar quem seriam os colegas de cupê (4 camas). Havia ouvido muitas histórias de como os russos bebem, vomitam, roubam, etc. Mas felizmente o pessoal era calmo, um senhor de idade, bem humorado (para os russos) e, depois, uma senhora com uma criança, que subiu ao trem no caminho.

A parte boa é que a viagem inicia quando já é noite, e não há muito que fazer, a não ser arrumar as malas no compartimento e preparar-se para dormir. Posso dizer que o balanço suave do trem sobre os trilhos é realmente algo muito atrativo para o sono.

Na manhã seguinte, já em algum lugar da vasta planície russa, acordo pensando num café da manhã. Ir até o vagão restaurante? Nem pensar! Caro demais. A solução é viver à moda russa. Abrir a mesinha, tirar das sacolas os produtos alimentícios e colocar tudo de forma que caiba na pequena tabuleta. Por outras experiências, já sabia que as refeições na cabine acabam por ser comunitárias. Cada um coloca o que tem e dizem: “Ugashaytes’!!!” (sirva-se!). Sem cerimônias, cada um pega um pedaço de pão, prepara um chá quente com a água que pegou no samovar no corredor do vagão. Neste ambiente informal rolam as conversas sobre quem somos, de onde e para onde vamos, família, enfim, sobre a vida. Isto serve para

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passar o tempo e conhecer um pouco uns dos outros. Para mim isto era fantástico, pois podia ter contato com pessoas simples, com vidas que passam despercebidas dos jornais e TVs. É a vida como ela realmente é.

As infinitas paradas do trem em cada estação ao longo do caminho são uma atração à parte. Em cada uma delas sempre existe um batalhão de vendedores, especialmente senhoras idosas, que parecem ficar o dia à espera da chegada do trem. Elas vendem de tudo, desde alimentos até roupas. Quando o trem para, os passageiros saltam para dar uma caminhada e fumar e, quem sabe, encontrar algo de interessante que esteja sendo vendido pelas babushkas.

Por incrível que pareça, as 47 horas de viagem passam desapercebidamente. Uma conversa aqui, outra dormida ali, aproveitando o embalo gostoso do trem, um livro aqui, outra caminhada pelo vagão ali.

O que mais me distraia era ficar olhando para a paisagem. No primeiro dia, o trem cruzou florestas, pois as árvores sempre estavam ao lado da ferrovia, era a taiga russa, que é maior em extensão que a nossa Amazônia. Como estávamos no final de setembro, já no outono russo, a cor era uma mistura de verde, amarelo e marrom, pois logo o frio e o inverno chegariam, quando tudo muda de cor, perdendo-se completamente o verde. No segundo dia,

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as árvores foram ficando cada vez mais escassas, e se podiam ver agrupamentos delas em pontos um pouco distantes dos trilhos da ferrovia. Na maior parte já se via apenas as planícies. Antes mesmo do início da tarde, chegamos numa região que praticamente só havia vegetação rasteira. Poucas horas depois, estávamos na Tundra. Para olhos acostumados com árvores, verde, animais, pássaros, parecia que a tundra era um lugar morto, destituído de formas de vida. Logicamente que um olhar mais atento revela que a vida está presente, mas em formas diferentes, mais contextualizadas com o clima da região.

Já no meio da tarde cruzamos a linha do Círculo Polar Ártico. Chegamos à estação chamada “Polar”. Uma parada e uma descansada antes de prosseguir. Impressiona o silêncio deste fim de mundo. Olhar ao redor e não ver nada a não ser o horizonte e as planícies a perder de vista. Devido ao fato de ainda estarmos no outono, apesar do frio que fazia no momento, a paisagem estava amarronzada, devido à lama que se estendia por todos os lados. Parecia que a neve do inverno passado acabara de derreter, e formava verdadeiros lamaçais por todos os lados.

Pouco depois de sairmos da estação, apareceram os montes Urais, que separam a Europa da Ásia. Esta cadeia de montanhas se estende de norte a sul, por mais de 2500 quilômetros, desde o

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Oceano Ártico até as estepes desérticas do Cazaquistão.

De repente o tempo mudou. O sol desapareceu e uma nuvem vinda dos Urais cobriu o céu ao nosso redor. Em alguns segundos percebi que, “do nada”, estava nevando. Era uma neve fraca e molhada, como dizem os russos. Ela não ficava acumulada, mas mostrava que a temperatura estava caindo rapidamente. Olhei pela janela da nossa cabine e percebi que algumas montanhas dos Urais estavam ficando esbranquiçadas. Depois de algum tempo, as montanhas estavam mudando de cor, e cada vez mais parecia que a neve veio para ficar. Parecia que alguém estava espalhando açúcar confeiteiro sobre os montes, e podia-se ver todo o processo dali do trem.

Para atravessar da Europa para a Ásia, precisávamos passar por um vale entre as montanhas. Ali do lado direito do trem corria um rio, aparentemente raso, mas com águas turbulentas. O trem ia calmamente ziguezagueando pelo vale. Por alguns momentos ficamos com as montanhas quase que a tocar o lado esquerdo do trem. Depois de algum tempo, que já não me recordo mais, saímos do extenso vale. Estávamos na Ásia!

A chegada em Labytnangui se deu já à noite, por volta das 19h00min. Eu peguei as malas e desci na estação. Apesar de já não haver tantas pessoas no

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trem, a plataforma se encheu, especialmente devido ao número de pessoas que vinham recepcionar os parentes, amigos e conhecidos que chegavam de tão longe.

Eu estava sozinho, sem nenhum conhecido naquele lugar. Comecei a andar pela plataforma, esperando ver ao menos o rosto conhecido de meu amigo Vladimir. Nada! Fui de um lado para o outro algumas vezes, enquanto a plataforma se esvaziava. Comecei a ficar angustiado. As perguntas começaram a surgir: Será que vai vir alguém me buscar? Será que o pessoal sabe que estou chegando hoje? Para onde eu vou?

Em alguns instantes a plataforma estava praticamente vazia, e eu comecei a pensar num plano de emergência enquanto andava em direção ao prédio da ferroviária para me abrigar do frio que já fazia. Nisto, um homem que passava por mim perguntou meio sem jeito:

- Desculpe, sei que parece estranho, mas eventualmente você não seria brasileiro? - percebendo como poderia parecer estranho uma pergunta como estas num lugar como aquele.

- Sim, sou eu! - respondi aliviado sabendo que não deveria haver outro brasileiro naquela estação.

- Que bom, achei que teria ocorrido algum imprevisto! - continuou o russo, com uma feição de

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alívio. Alguns metros adiante ele disse que estava lá

na estação já havia um bom tempo. Ficou assustado com a possibilidade de eu ter me perdido ou “extraviado” pelo caminho até ali. Ambos sorrimos, felizes por tudo estar em ordem.

- Na verdade eu estava procurando pela plataforma uma pessoa mais “morena” - confessou finalmente o russo. Quando percebi que todos haviam ido embora e vi você lá, pensei que tudo estava perdido, mas resolvi arriscar, mesmo imaginando como eu iria parecer um idiota ao perguntar para um estranho, aqui no Pólo Norte, se ela era um brasileiro!

Encontramos um amigo do russo lá no prédio da ferroviária e fomos para o carro. Depois de algumas viradas para a esquerda e para a direita, chegamos num lugar que havia uma cancela. O carro parou e todos descemos.

- Daqui o caminho é a pé até a balsa. - apontava o russo para um caminho por onde pessoas desciam até um barco que mal se conseguia ver na escuridão.

Andamos uns 300 metros até chegar perto da balsa. Os russos que estavam comigo apertaram minha mão e disseram, que do outro lado do rio estariam me esperando. Olhei para os dois esperando que aquilo fosse um trote, uma brincadeira. Mas não, era exatamente isto que iria acontecer, iam me deixar

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ir sozinho na balsa e continuar a aventura do outro lado.

O vento era muito forte e gelado. Deveria estar perto de zero grau naquele momento. Eles me disseram para ficar posicionado entre os carros, se possível abaixado para escapar do vento. Após alguns minutos, uns 10 pareceram-me, chegamos do outro lado. Um farol foi ligado lá na parte de cima da balsa. Pareciam aqueles usados nas baterias antiaéreas da Segunda Guerra Mundial. Ele apontava para a margem, como que se estivesse buscando algo. Logo percebi que buscava um local apropriado para encostar em terra.

O vento estava muito forte, e a balsa não conseguia “atracar”. Balançava muito e o capitão tentou três vezes se aproximar do barranco. Na última, tive a sensação que ele já estava cansado de tentar achar um ponto ideal e simplesmente ousou uma manobra, forçando a barca contra o barranco. Felizmente deu tudo certo, creio que a experiência tenha falado mais alto do que as regras.

Desci da barca pensando que estava novamente sozinho no fim do mundo. Esperava ainda ver o rosto de Vladimir, mas nada. Percebi dois homens acenando em minha direção. Identificaram-me graças à descrição que os outros do outro lado do rio passaram. O que eu mais queria naquele momento era

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entrar num carro quentinho, e sair daquele vento. Fomos até o estacionamento onde estava o carro e entramos num Lada Niva. Ainda havia alguns quilômetros para seguir até Salekhard.

Chegamos ao lugar onde eu deveria ficar. O russo, responsável por mim naquele local, me perguntou se eu desejava algo.

- Eu gostaria de tomar um banho, pois já fazem três dias que saí de casa! - respondi com ar de quem realmente estava de viagem há tanto tempo e desesperado por um alívio que um banho quente poderia dar.

- Banho? - perguntou o russo sorrindo - Aqui banho é só na sexta-feira, e hoje é domingo. Na sexta-feira nos reunimos com os amigos e vamos para a sauna.

Não percebi em seu rosto sinal de uma brincadeira de mau gosto. Suas palavras eram estritamente sérias. Meu desalento deve ter comovido o meu novo amigo e ele disse que daria um jeito qualquer para providenciar um “banho”. Arrumei-me no quarto improvisado (que na realidade era o escritório do meu anfitrião). Ao menos ali estava quentinho.

Alguns minutos depois o russo entra no quarto e me diz que conseguiu conversar com um amigo que tinha um chuveiro em casa. Comecei a acreditar na

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história da sauna e da sexta-feira! Chegamos à casa de pessoa, que amigavelmente me mostrou o banheiro onde havia uma ducha. Vi na parede do banheiro dois filtros de água, que já estavam absolutamente marrons. Percebi que o cano que saia do último filtro ia até o chuveiro. Ao abrir a torneira da pia, percebi por que dos filtros. A água saia marrom, com um odor absolutamente insuportável. Ao abrir o registro (que era o chuveiro), reparei que os filtros precisavam ser trocados logo. Mas “cavalo dado não se olha os dentes”- diz o ditado popular.

Voltei para o meu reduto, se não totalmente limpo, ao menos com sensação de alívio e dever cumprido. Dormi um sono pesado. No meio da noite, por volta de umas 4 da madrugada, a porta se abriu e uma luz chata entra no quarto, despertando-me. Percebi que havia duas pessoas entrando, uma era meu anfitrião, o outro era Vladimir, que deveria ter ido comigo no trem.

- Acorda - disse Vladimir. Foi bem de viagem? Está tudo bem? Estou passando aqui para te dizer que estou voltando para Krasnodar agora, pois tenho alguns compromissos lá. Não se preocupe, as aulas estão de pé. Deixo você com o seu anfitrião. Você está em boas mãos. Agora dorme e descanse.

Lembro que pensei muitas coisas, mas nada que possa escrever aqui. Voltei a dormir, esperando que as

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coisas ficassem realmente bem dali para frente.Salekhard é uma cidade relativamente pequena

com pouco mais de 40 mil habitantes. Ela se localiza a 2400 quilômetros da capital, Moscou. No local da atual cidade foi fundada, em 1595, pelos cossacos, uma fortaleza. Ela servia como ponto de contato entre os povos nativos e o expansionista Império Russo. Esta fase acontece num período em que a Rússia abriu seus olhos para as terras “sem donos” ao leste de Moscou. As tribos destas regiões foram sendo dominadas e subjugadas pelos czares. Nesta região específica da futura Salekhard, habitavam majoritariamente as tribos nenets e khanty. A atual população local ainda continua sendo constituída em sua maioria de descendentes destas tribos.

Visitei o local onde foi fundada a fortaleza, que atualmente virou um museu. Ela ficava numa barranca localizada num dos afluentes do rio Ob’. Sua posição estratégica facilitava a ligação com os nativos, que logo buscaram estabelecer um comércio com os cossacos.

Salekhard é a capital da região autônoma de Yamalo-Nenets, nome advindo da maior tribo, os nenets. Ainda existe o fato curioso da região ser conhecida como Yamalo, que na língua nenets significa literalmente “Confins da Terra”. Não é preciso muito para se adivinhar o porquê deste nome.

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Para compreender um pouco da cultura local e entender a história da região, resolvi visitar um museu que ficava fora da cidade, numa aldeia perto de Salekhard. O local foi criado com o objetivo de preservar uma coleção etnológica dos povos da região. Lá estão expostos ao ar livre os modos de vida dos povos locais khanty e nenets. As tendas destes se assemelham muito com as que vemos nos filmes dos índios americanos, em formato de cone. É possível ver uma aldeia inteira montada, com os trenós, as tendas feitas de peles de rena, roupas típicas feitas de pele de animais, capazes de suportar frio de até 50-60° C negativos, enfim, tudo o que estes povos usavam e ainda usam no interior da região.

Em outro museu, no centro da cidade, é possível ver peças iguais, mas a atração principal fica por conta dos mamutes. Foi nesta região, em maio de 2007 que foi encontrado um filhote de mamute. O fato de serem encontrados restos de mamutes na região não era novidade alguma, mas o que tornou Lyuba tão famosa foi que nunca havia caído na mão de estudiosos um exemplar de mamute tão bem preservado. Segundo os especialistas, Lyuba, um filhote de cerca de um ano, havia caído num buraco, numa região pantanosa, sendo logo congelada pelo frio e neve da região. Infelizmente, quando cheguei à Salekhard, Lyuba havia sido levada ha pouco tempo

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para Tóquio, onde seria estudada com o auxílio de uma alta tecnologia desenvolvida pelos japoneses, que auxiliariam num estudo completo da anatomia do filhote ilustre de Salekhard. Os mamutes são tão importantes para a região, que na entrada da cidade existe um grande monumento (em tamanho real) de um mamute, na colina pela qual passa a estrada que vem da beira do rio Ob’, onde a barca faz a travessia.

Encontrar mamutes, segundo Pyotr, um nenets ex-caçador profissional do interior da região, é algo relativamente comum. Contou-me que mesmo ele já provara da carne de mamute. Segundo Pyotr, os nativos encontram partes de mamutes em suas andanças pela região, pois são povos nômades, vivendo da criação de rebanhos de renas.

- Quando o degelo é mais intenso, às vezes parte de carcaças escondidas lá por milhares de anos acabam aparecendo no solo. Os nativos não têm muita preocupação histórica e científica, mas têm fome. Isto fala mais alto num lugar onde comida é algo extremamente escasso - afirmou.

Não posso culpar os nativos, mas fica claro que muito do que poderia ser aproveitado pela ciência, acabou virando iguaria para os povos locais.

- No tempo da URSS, lembra Pyotr, a carne de mamute era consumida como algo muito especial. Com o tempo, e como cada vez com menos frequência

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se encontrava esta carne, a prática foi sendo deixada de lado.

Durante muitos anos não foi somente a carne que despertou a cobiça das pessoas pelos mamutes. O Marfim de suas presas alcançava preços exorbitantes, e o comércio ilegal deste produto fez com que uma verdadeira caçada aos mamutes congelados se desse em toda a Sibéria, incluindo Yamalo-Nenets. Alguns dizem que a prática ainda continua nos dias atuais, apesar de estar muito abaixo dos índices do século XX. Esta queda se deve à ação dos historiadores, governo local, mas principalmente pela escassez cada vez maior do produto natural.

Sem Lyuba, tive que me contentar em ver ossos de mamutes expostos no museu, e uma placa mostrando o local onde havia ocorrido a exposição do mamute famoso. Pude tirar algumas fotos, andar por ali, ouvir histórias sobre os mamutes. Foi um dia muito interessante, especialmente para um historiador como eu.

Não comi carne de mamute, mas tive a oportunidade de comer a de rena. Fui convidado para ir à festa de aniversário de Pyotr, e ele me ofereceu uns pedaços de carne.

- É carne de rena, coma… deliciosa! Atualmente em Salekhard ela é muito rara, uma verdadeira iguaria!

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Senti-me honrado. Pela textura e sabor, lembrou-me muita da conhecida “carne de sol”, que havia comido nos tempos que morei em Brasília. Mas, para mim, gaúcho, faltou um sal e uma gordurinha. Tudo bem, aquilo não era uma churrascaria, mas um aniversário nos “confins da Terra”.

Antes do começo das aulas, ainda tive tempo para dar uma passeada pelo centro de Salekhard. A cidade surpreende por seu colorido. Os prédios no centro são pintados com cores vibrantes, quentes, amarelo, vermelho, azul, laranja, verde, etc. E isto eu ainda não tinha visto na Rússia. Esta impressão deve ter transparecido para meu anfitrião, Evgueny. Ele me contou então que aqueles prédios pintados faziam parte de uma ação do governo local.

- Até uns 10 anos atrás, disse ele, o centro de Salekhard era feio e velho. Os edifícios da era soviética estavam em estado precário. Mas a vinda das companhias e petróleo e gás natural impulsionaram a economia local. Isto auxiliou na reforma de todo o centro e alguns bairros da cidade. Se você viesse há alguns anos atrás, não reconheceria Salekhard.

Ainda perguntei sobre as cores vibrantes, intensas dos prédios.

- Sabe, a maior parte do ano, vivemos com neve, longas noites. Esta é uma época em que muitas

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pessoas acabam se deprimindo, ou mesmo se matando. Quando era o tempo soviético, tudo era monocromático, tudo era cinza. O governo então resolveu dar uma alterada nas cores, para melhorar o clima da cidade, numa política anti-depressão.

Não sei exatamente o resultado deste empreendimento, mas ficou claro que a medida acabou por tornar a cidade mais colorida, e até mesmo alegre eu diria.

Neste momento, Evgueny apontou para a região central.

- Está vendo aquele prédio na esquina? É a cede do governo. Do outro lado da esquina, está o prédio da companhia de gás, e na outra esquina o prédio da companhia de petróleo, exatamente no cruzamento das duas principais ruas de Salekhard. - explicou

Aquela configuração demonstrava efetivamente a importância destas companhias para o local. A Região Autônoma de Yamalo-Nenets é a maior produtora de gás natural da Rússia, que por sua vez é a maior produtora do mundo. O gaz aqui extraído é levado para a Europa para abastecer as indústrias de lá. Assim como o gás, o petróleo explorado nas regiões mais próximas do Ártico, na península ao norte de Salekhard, gera muitos recursos. Muitas pessoas vieram do interior da região e até mesmo de outras localidades da Rússia para a cidade em busca

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de melhores condições de vida, e dos salários altos oferecidos pelas companhias. Comecei a entender por que aquela senhora no aeroporto de Krasnodar estava na dúvida sobre a abertura da zona de Salekhard para visitação estrangeira!

Mas apesar de todo o desenvolvimento da cidade, Salekhard guarda uma ferida, que não está totalmente cicatrizada. O nome desta ferida é “Linha Transpolar”, a ferrovia que Stalin mandou construir secretamente em 1947.

Este projeto foi concebido em 1928, e depois recebeu o nome de “a Grande linha férrea do Norte”. No processo de construção da estrada, que durou de 1947-1953, ela foi oficialmente chamada de Projeto №501 e  №503. Esta nomenclatura escondia atrás de si, o nome secreto "Ferrovia Chum - Salekhard - Igarka", assim chamada pelo trajeto que a estrada deveria ter. Stalin queira interligar todo o norte da Rússia, indo dos portos de Murmansk e Archangelsk no mar do Norte até o outro lado do país, ficando a estrada sempre dentro do Círculo Polar Ártico.

Este era um plano audacioso e muito arriscado. As condições do clima e do terreno não favoreciam em nada a construção. O solo eternamente congelado de algumas regiões era um desafio para os técnicos. Além disto, havia os pântanos, rios, lagos e montanhas pelo caminho. Algumas estimativas dão conta que

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mais de 80 mil pessoas foram utilizadas na construção deste mega-projeto. Em geral, foram presos políticos, religiosos e dissidentes do stalinismo que tiveram parte nesta empreitada. O número de mortos na construção, devido às mais diferentes adversidades rendeu à ferrovia o apelido de "estrada da morte", que aparece em fontes escritas nos anos de 1960.

Estes presos eram alojados precariamente nos famosos Gulags soviéticos (abreviatura em russo para Direcção-Geral dos campos de trabalho corretivos) ou em outras palavras, campos de prisioneiros. Estes presos eram tirados de suas cidades e familiares e enviados para trabalhar nos lugares mais remotos do país, especialmente na Sibéria. Muitos dos prisioneiros eram pensadores, ativistas políticos, elite intelectual do país, sacerdotes, que tinham pouca ou nenhuma habilidade em trabalhos pesados como os que tinham que fazer nestes campos. Isto fazia com que rapidamente adoecessem e morressem. O intenso frio do inverno siberiano acabava por fazer o resto do trabalho.

Em Salekhard, perto do centro, Evgueny mostrou alguns galpões de madeira onde disse haver funcionado um Gulag nos tempos de Stalin.

- E este não é o único. Existem muitos outros espalhados pelo interior, pois conforme a ferrovia ia sendo construída, os Gulags acompanhavam este

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progresso. - afirmou.Então Evgueny me contou que ele era

descendente de um destes prisioneiros. Seu avô havia sido condenado pelo regime e enviado para a região a fim de trabalhar na ferrovia. A esposa tinha as crianças ainda pequenas, e não tinha como se sustentar.

- Minha avó pegou as crianças e veio atrás de meu avô. Ela enfrentou fome e frio para chegar aqui. Houve muito sofrimento naquela época para todos! Ela veio atrás de meu avô por amor. Ao chegar aqui viu que muitas outras mulheres largaram suas vilas e aldeias para estarem mais perto, de alguma forma, de seus maridos.

Fiquei ouvindo aquela história, que poderia virar um romance, um filme. Lembrei do filme “Doutor Givago”, que conta história de amor e sofrimento na Rússia revolucionaria. Muitos que hoje moram em Salekhard são descendentes daqueles homens e mulheres vítimas dos tempos loucos do século XX.

Com a morte de Stalin em 1953, a ferrovia foi abandonada, e o projeto todo arquivado. Algumas famílias acabaram por se estabelecer ali, outras foram embora para suas regiões, mas milhares não tiveram a mesma sorte, ficando sepultadas embaixo da própria ferrovia que ajudaram a construir.

Ainda se podem ver alguns trilhos soltos e

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retorcidos nas planícies, alguns montículos que serviam para elevar a ferrovia em regiões propensas a alagamentos. Na entrada de Salekhard está exposta em forma de monumento a locomotiva que seria usada na estrada. Ela fez uma única viagem por uma parte do trajeto. Nesta ocasião, ela atravessou sobre o rio Ob’, em trilhos lançados no chão, no inverno, quando o rio tinha uma camada de gelo espesso o suficiente para suportar o peso colossal da máquina e dos vagões. A locomotiva está lá, como um memorial à estupidez e a megalomania de homens no poder.

Mas Salekhard também é conhecida como a única cidade no mundo que é cruzada pela linha do Círculo Polar Ártico. O monumento à esta excentricidade local fica a poucos metros da locomotiva. O meu amigo Evgueny me explicou que após uma lei nacional que concede alguns privilégios e salários maiores à trabalhadores que moram na região polar, os setores da cidade que ficavam depois da linha tiveram uma procura muito grande para moradia. Na prática, eles apenas trocaram de bairro!

Apesar do frio e do tempo sempre nublado daqueles dias que estive na cidade, não houve ocorrência de neve. Disseram-me que alguns dias antes havia ocorrido o fenômeno da Aurora Boreal, e que isto poderia acontecer a qualquer hora de novo. Durante a noite, algumas vezes pude sair para a rua e

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ficar olhando o céu estrelado, à espera deste fenômeno impar. Não tive sorte. A única coisa que pude ver eram satélites cruzando a imensidão. “Vai ficar para uma próxima vez”, pensei. Mas haveria uma próxima?

Depois de terminada as aulas que estava lecionando, era hora de partir. Lamentei muito o fato de deixar pessoas tão especiais. Conheci gente realmente fantástica, como Bóris, o meu anjo-da-guarda, que sempre me ajudou em tudo. Pyotr, que me deu aulas sobre a sabedoria de seu povo nenets, cultura e modo de vida. O jovem Oleg, que também me ensinou muitas coisas sobre a região, além de conversar muito sobre coisas da vida.

Evgueny me levou até o moderno aeroporto de Salekhard, construído com o forte impulso da economia local. Tudo naquela cidade mostrava uma tentativa de olhar para o futuro, tentando provavelmente fechar as feridas de um passado recente tão trágico quanto a era stalinista.

Despedi-me pensando em voltar, ao menos mais uma vez.

Após minha partida do aeroporto de Salekhard, naquele mesmo dia, cairia a primeira neve do outono na cidade.

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SALEKHARD, O RETORNO

No final de novembro, após ter ido até Salekhard, estava numa conversa com um colega professor brasileiro que havia morado na Sibéria por um ano em 1994. Ele tinha vontade de voltar para a Rússia e sentir todas as mudanças pelas quais o país passara, pois quando esteve lá, a Rússia apenas estava saindo de uma forma de economia baseada no controle estatal total (socialismo) e dando os primeiros passos em direção ao capitalismo que, como dissemos anteriormente, tomou contornos com feições próprias.

Contei a experiência que tivera em Salekhard, e que o instituto lá poderia necessitar de um professor na área que ele lecionava, História. Ele ficou muito empolgado e incendiou ainda mais a minha vontade de voltar. Ele daria a aula e eu seria o auxiliar técnico

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e tradutor. Agora era ver com o Vladimir, meu amigo responsável pela extensão do instituto lá em Salekhard, se seria possível um retorno nestas condições, pois o professor brasileiro teria que vender o carro para pagar as despesas todas de seu próprio bolso..

Vladimir disse que não teria problemas e ele poderia agendar uma viagem para fim de fevereiro e início de março, já que o brasileiro precisava voltar para o Brasil antes do início do ano letivo na escola onde dava aula. E assim começamos os planos para uma nova aventura para o Ártico.

No final de fevereiro nosso amigo brasileiro chegou à Krasnodar. Sim, a Rússia tinha mudado muito desde que ele estivera por lá. Segundo ele, muitas coisas estavam melhores, mas igualmente se queixou dos ares saturados com a voraz fome do capitalismo russo. Era a Rússia tentando experimentar novas possibilidades em sua economia, diriam alguns

Fizemos os planos e ajustes finais. Compramos as passagens e mantivemos o mesmo roteiro da minha primeira viagem. De Moscou até nosso destino final iríamos de trem, o resto do caminho faríamos de avião. Desta vez não ocorreram surpresas ao comprarmos os bilhetes.

Embarcamos no primeiro dia de março. Na

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mesma manhã que saímos de Krasnodar, uma forte neve caiu sobre a cidade, prenuncio de que os dias seriam muito frios, especialmente nas regiões polares. Apesar de o inverno oficialmente na Rússia acabar no último dia de fevereiro, as temperaturas custam a subir por pelo menos mais algumas semanas. Não é raro nevar em março, ou mesmo em abril. Em Moscou, até em maio existe a possibilidade de uma neve.

Apesar do horário ser igual, o trem no qual estávamos para embarcar era outro. Se na primeira vez ele foi um “comum”, agora era o famoso “Flecha polar”, um pouco mais moderno e confortável, segundo a pessoa que vendeu os bilhetes. Não notei muita diferença, mas com certeza elas existiam. Em Moscou caia uma neve fraca na hora da partida.

Eu estava na expectativa de quem seriam os outros dois companheiros de viagem no cupê, pois isto sempre era um fator  a ser levado em conta. Tivemos sorte, um deles era um senhor de idade, tranqüilo. Meu amigo brasileiro, na casa dos 50 anos, ficou mais com o velhinho. O outro companheiro era um jovem, que ia visitar a família no interior. Ele trabalhava como dublador em desenhos infantis. Isto me ajudou a desenvolver uma conversa que se estendeu por toda a viagem. Devido ao fato de ter duas crianças, eu e minha esposa tínhamos o privilégio de rever os

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desenhos que assistíramos na nossa infância, além de colocar em dia todos aqueles atrasados dos anos seguintes à infância. Fazíamos isto, pois esta era a melhor forma de aprendermos russo.

No dia seguinte, após uma noite bem dormida (graças ao balançar do trem), acordei com alguém levantando e abrindo a porta da cabine. Olhei pela janela e a paisagem era muito diferente daquela da primeira viagem. A região da taiga estava com suas árvores completamente cobertas de branco. Somente a cor dos troncos quebrava o alvo da neve. E esta seria a paisagem que iria passar pela nossa janela o dia inteiro.

Saindo da cabine (cupê), via-se o movimento ainda tímido das pessoas pelo corredor. Alguns estavam debruçados sobre um corrimão que ficava abaixo da janela do corredor, numa preguiça que não tinha hora para ir embora. Outros seguiam até o lugar onde tinha água quente para fazer o chá, que é algo sagrado para os russos.

Durante a noite ouvi alguns barulhos e parecia que alguma discussão estava ocorrendo num dos cupês do vagão. No dia seguinte o nosso colega de cabine confirmou o caso. Parece que as funcionárias da companhia “Ferrovias da Rússia” tiveram que lidar com ânimos mais exaltados de alguns passageiros. O motivo do barulho não ficou bem claro, mas o humor

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pouco amistoso das funcionárias naquela manhã delatava o grau da seriedade do ocorrido. Agradeci por não estar naquele número de cabine.

O dia passava numa lentidão proporcional ao deslocamento do trem pela gelada paisagem. De vez em quando eu abria a porta do vagão e ficava no espaço entre os vagões apreciando com mais calma a paisagem. Ali não tinha calefação como no vagão e por isto a temperatura era muito próxima ao do lado externo do trem, o que dava para dar uma ideia de como estava lá fora. Muitos russos apareciam por lá para fumar, já que no vagão é proibido. Nestes momentos acabavam minha silenciosa contemplação da paisagem, e eu voltava para dentro.

A paisagem é totalmente impar. Para os olhos desacostumados, ela parece monótona e sem vida. Mas as belezas estão ali ocultas em certos momentos e gritantes em outros. Ao longo dos trilhos da ferrovia, paralelamente corre uma linha de postes de energia elétrica. Devido ao acúmulo da neve nos pontos mais altos, pareciam cotonetes. Em alguns pontos a neve acumulava ao redor dos fios, formando bolas, como as que vemos nos fios de alta tensão nas estradas aqui no Brasil (aquelas “bolas de basquete”).

De vez em quando passávamos por alguma aldeia isolada perto da linha férrea. As casas cobertas pela neve se denunciavam no meio do campo branco

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pela fumaça de suas chaminés. Havia pequenos pontos distantes na paisagem, e que após alguns segundos, podia se perceber serem pessoas andando pelas estreitas ruas abertas entre a neve.

Em algumas destas vilas havia uma estação. O trem diminua a sua velocidade e logo entrávamos na região da plataforma, que nada mais era que um elevado de concreto e cimento por onde as pessoas transitavam. Logo se percebia o movimento das babushkas andando pelo local.

- Chegou o Strelka! (“Flecha”, nome do trem).Este era o grande acontecimento do dia para o

local, a chegada dos trens. Ali, além das bebidas e comidas, sempre presentes nestas plataformas, percebi objetos que não havia visto na primeira viagem. Eram coisas próprias da estação fria, como roupas, suéteres, cachecóis, etc.

Os poucos minutos que ficávamos em cada estação era o sinal verde para os fumantes. Alguns nem mesmo se vestiam adequadamente e desciam para poder ter mais tempo com o tabaco. Em outras estações a parada prevista era um pouco maior, o que dava tempo para descer e caminhar um pouco pela plataforma, olhar os produtos que vendiam, respirar o famoso “ar puro”. Era o tempo de viver a vida de viajantes por uma das regiões mais frias do mundo. Quando tínhamos, pelo horário marcado, este tempo

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(horário que era seguido rigorosamente!), eu colocava o casaco que havia comprado especialmente para aquela viagem e vestia uma segunda calça e pulava do trem, para andar um pouco e se esticar. Cada estação era uma atração à parte. Viajar e ficar trancado dentro do trem o tempo todo por causa do medo do frio, isto não era comigo. Eu precisava aproveitar para tirar fotos, caminhar entre as pessoas e sentir o interior da Rússia.

Quanto mais ao norte, mas a paisagem ia se tornando uma ditadura do branco. As árvores deram lugar à tundra. Olhar para a paisagem era muito difícil, às vezes, pois o branco acabava cegando depois de certo tempo de contemplação.

Já no segundo dia de viagem, ao olhar pela janela, pouca diferença havia entre o céu e a terra. A terra era um mar de gelo, com uma cor branco-azulada. O céu estava nublado, mas as nuvens eram tão parelhas e brancas como a neve, e em alguns pontos quase azuis por serem menos espessas.

O trem me pareceu andar mais lentamente. Não tive acesso à parte da frente do trem, a locomotiva, mas podia imaginar que depois de um tempo de neve, os trilhos ficavam cobertos e ocultos na paisagem, o que justificava o cuidado maior do maquinista.

A estação mais esperada era a “Polar”, pois além de indicar que estávamos relativamente perto do

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destino, ela era a primeira dentro do Círculo Polar. Chegamos lá e o sol lançava seus tímidos raios sobre a terra. Peguei meu casaco apropriado para o frio e a máquina fotográfica, torcendo para que não desse problema por causa do frio. Ao descer do trem, pude sentir imediatamente o gelo no ar. Estava muito frio, e apesar de não ter um termômetro em mãos na hora, a temperatura devia estar abaixo dos 20 °C negativos. Neste local a parada era mais prolongada, uns 40 minutos, o que dava tempo para caminhar e tirar muitas fotos.

A paisagem era absolutamente surreal. A estação ficava numa pequena elevação natural no terreno. Do lado esquerdo da estação percebia-se o relevo alterado devido aos Montes Urais. No lado direito, havia uma planície num nível mais baixo de onde estava a estação. No lado esquerdo desta planície era possível ver os montes Urais, totalmente cobertos de gelo. A planície estava revestida com uma neve intocada, nem as pequenas árvores apareciam direito, mostrando que a camada era muito espessa. Justificável, num lugar onde a temperatura sempre está muito abaixo de zero no inverno, e a neve não derrete, ali estavam acumulados alguns meses de gelo. E tudo estaria derretido apenas por volta do meio do verão, para retornar a neve no início do outono.

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Mas um fato me chamou a atenção. Havia um contêiner ao lado da estação, em meio aos montes de neve acumulado. Vi que um trilhozinho levava até lá. Vi pessoas entrando e saindo daquele lugar e resolvi investigar. Descobri, para meu espanto, que se tratava de um bar, ali mesmo, dentro do contêiner. Depois reparei que as pessoas saiam de lá com sacolas. Aquilo sim já era familiar, pois nas sacolas dava para notar vodca, cerveja e cigarro. Não entrei lá, pois tinha outras coisas para ver. Depois mostrei para meu amigo brasileiro que deu risada.

- Isto sim é a minha Rússia! Sempre atentos para o sinal de “vamos

embarcar” que o maquinista lá na locomotiva dava. Ficamos por perto, sem dispersar muito.

Partimos então em direção aos Urais. Tudo aquilo era como se fosse outra viagem para mim. É impressionante como a paisagem toma outra forma característica. Os montes ficam muito mais imponentes com o branco. Sempre se pensa numa avalanche, num fechamento da linha por causa da neve. Olhar pela janela e ver parede de rocha e neve, enquanto aquele pequeno risco azul no qual estávamos sentados cruzava o reino dos gigantes. O que antes era um rio que serpenteava pelo vale, agora poderia ser identificado como uma pista de patinação.

Nesta altura da viagem estávamos somente nós

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dois na cabine, enquanto o anoitecer caia sobre a terra, indicando que o fim da viagem se aproximava. Perguntei para meu colega como ele estava e se havia valido a pena tudo aquilo até ali.

- Não me arrependo de nada, isto aqui é fantástico, maravilhoso! Fico imaginando os meus colegas lá no Brasil quando mostrar todas as fotos. Eles nunca viram algo assim. Não dá para descrever. Tudo o que estamos passando vamos levar para o resto da vida, é uma experiência impar! - afirmou, cheio de emoção.

Concordei. Nada se compara a uma viagem como esta!

------Depois de 47 horas naquele trem, finalmente

estávamos chegando à Labytnangui. Já havia escurecido e a temperatura estava mais baixa. E isto pode ser constado ao descer do “Flecha”. Para quem não está acostumado, os -30° C são um desafio à parte. Um vento ainda ajudava a deixar as coisas mais complicadas. A neve estava recolhida em pequenos montes ao lado da plataforma, que era coberta, mas que o vento encarregava de levar para todas as partes.

- E agora? - perguntou meu amigo ansioso.- Vamos esperar o pessoal nos achar, disse de

forma solene.

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A situação não era nova. Plataforma ia esvaziando rapidamente, pois as pessoas não estavam a fim de longas conversas naquele frio polar. Achavam quem precisavam, davam uma breve saudação, pegavam as malas e saiam apressadamente em direção ao prédio da ferroviária, lugar onde havia ao menos calefação.

Teoricamente seria mais fácil desta vez, pois o pessoal de Salekhard já me conhecia, não iriam procurar dois morenos abrasileirados pela estação. Depois de passar em revista toda a plataforma, comecei a me preocupar. Meu amigo veio e perguntou de novo sobre a situação. Respondi que estava tudo sobre controle, que logo iam chegar. Eu mesmo estava já duvidando de minha resposta convicta.

Quando a plataforma ficou vazia, percebi que tínhamos que ao menos nos dirigir para o prédio, pois o frio de -30° C estava fazendo um efeito sobre o corpo. O local já estava vazio, apenas um guichê aberto, com uma pessoa que não iria ter obviamente qualquer trabalho pelas próximas horas. Olhei para o painel com os horários de chegada/saída dos trens. O próximo para Moscou seria no dia seguinte. Minha mente começou a fazer planos de escape instintivamente. Cerca de 20-30 minutos haviam se passado, e percebi que não chegaria ninguém.

Peguei meu celular e parti para uns dos planos

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de emergência que minha mente elaborou. Liguei para minha esposa em Krasnodar.

- Oi, a viagem foi tranquila e muito boa… O nosso amigo está gostando muito… Só tem um pequeno detalhe, não veio ninguém nos buscar na ferroviária! Será que dá para ligar para o Vladimir e perguntar o que pode estar acontecendo, por favor?

Claro que este tipo de telefonema não deve ter deixado minha esposa muito calma. Tentei não dar um tom de desespero que vinha assumindo minha mente.

Depois de alguns minutos ela me liga de volta. As notícias não eram nada boas…

- O Vladimir estava dormindo, pois chegou hoje de viagem dos EUA. Falei com a esposa dele e expliquei a situação. Ela vai acordá-lo e ele ficou de ligar para mim.

Bom, o jeito era esperar agora. Sentados naquela ferroviária, no fim do mundo, e meu amigo perguntando quando chegariam as pessoas para nos levar dali. Que situação!

Toca o telefone. Era minha esposa.- Olha, falei com ele agora. Ele disse que com a

viagem para os EUA, havia se esquecido de avisar o pessoal que vocês estavam indo para Salekhard neste fim-de-semana! Mas ele vai ligar pros contatos aí e resolver o mais rápido possível.

Ótimo! Estávamos no fim do mundo (Yamalo) e

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sem sermos esperados! Em minutos recebo a ligação de Bóris, meu

anjo-da-guarda de Salekhard.- Olá, aqui é Bóris. Você está na estação de

Labytnangui? Não fomos avisados de sua chegada, mas vou ver o que se pode fazer. Não tenho como ir te buscar, mas vou ver se alguém pode ir até aí, pois a nevasca tem fechado as estradas e está perigoso. Agüenta mais um pouco.

Logo depois me liga Vladimir, lá de Krasnodar, com uma voz de quem acabara de acordar.

- Oi, você está em Labytnangui? Puxa…Não vou descrever o que pensei naquele

momento, deixo por conta da imaginação do leitor…O meu amigo brasileiro felizmente falava

apenas algumas palavras em russo, por isto não entendia o que estava acontecendo. Tentei não transparecer descontrole, e por isto quando o Vladimir me ligou, resolvi enfrentar o frio da plataforma.

- E aí, vamos ou não vamos sair daqui? - perguntou o brasileiro - estou com frio e ficando com fome…

“Naquele momento, a fome era o menor dos nossos problemas”, pensei.

Quase 3 horas depois de chegarmos, entrou um homem pela porta e subiu as escadas. Eu estava nas

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escadas tentando controlar a situação e o nervosismo. - Desculpe-me - disse o russo - mas vocês são

brasileiros?A chance dele acertar era muito grande, pois

éramos os únicos naquele prédio, até o guichê havia fechado.

- Sim, somos nós! - respondi aliviado.Estávamos salvos!Cheguei com um ar de alívio, mas

transparecendo domínio sobre a situação. Meu amigo olhou-me como que dizendo “finalmente, já não aguentava mais, estou com fome…”. Se ele soubesse do que estávamos nos livrando! Creio que até hoje não contei o que se passou naquelas horas ali na ferroviária.

Entramos no carro e fomos em direção ao rio Ob’. Na primeira viagem, os russos lá haviam me contado e depois mostrado em vídeo como a barca faz para atravessar na época em que o gelo cobre o rio. Existe dois barcos quebra-gelos que vão na frente da barca para abrir caminho. Isto leva cerca de 10 minutos. Quando a barca precisa voltar, os mesmos quebra-gelos precisam refazer o trabalho, pois a água recongelou. Pensei no frio que passei quando atravessei o rio naquele barco alguns meses antes, e torci para que as coisas tivessem melhorado, afinal estava muito frio.

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De fato as coisas desta vez foram diferentes. Passamos pela cancela livremente e o carro acelerou em direção da beira do rio. De repente um forte solavanco chacoalhou tudo dentro do carro. Não consegui assimilar logo, mas estávamos andando sobre o rio. Havia sinalização em alguns pontos da travessia. No geral, o motorista se guiava pelos montes de neve formados pelos tratores de neve que abriam o caminho constantemente. Quando meu amigo percebeu o que estava acontecendo, começou a gritar de empolgação (ou seria medo?). Do outro lado do rio, outro solavanco e estávamos em “terra firme” novamente.

Chegando à Salekhard, fomos direto para o local onde eu havia ficado a outra vez. Reencontrei Bóris, novamente o meu anjo-da-guarda. Neste tempo que estávamos presos em Labytnangui, ele arrumou uma recepção com chá e algo para comermos. A sua fisionomia de surpresa por nossa presença denunciava a falta de comunicação de Vladimir com o pessoal de Salekhard.

Dali a alguns minutos chegou Evgueny, dando as boas-vindas, mas expressando seu total desconhecimento de nossa chegada. Desculpou-se por Vladimir, e disse que agilizaria tudo para que tivéssemos os alunos para a aula, apesar de as condições climáticas serem adversas. Devido ao fato

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de não sermos esperados, não foram arrumadas acomodações adequadas. Ficamos improvisados num quarto localizado no sótão do prédio onde ocorreriam as aulas, ali mesmo. Ao menos a calefação estava funcionando, o que não era uma realidade em todo o prédio. Dormi feliz por ao menos ter um lugar para descansar, afinal não iria passar ali dentro do quarto muito tempo, tínhamos planos para aquela semana.

Passamos o dia seguinte passeando pela cidade gelada, enquanto Evgueny buscava arrebanhar os alunos. Visitamos o forte onde teve início o povoado. Estivemos no porto congelado que fica logo abaixo do forte. Os navios estavam todos presos pelo gelo, e nenhuma movimentação havia por ali.

Fomos ao centro, onde caminharíamos um pouco nas ruas. Apesar do sol, a temperatura estava em torno dos -20°C. A luz era meio tênue e os raios absolutamente não esquentavam. Passamos perto da feira livre que atraía um pequeno número de corajosos naquele momento. Olhei, e eis que vi pedaços de carne espalhados pelo chão, atirados em cima da neve fofa. Outros pedaços estavam expostos sobre as motos da neve. Perguntei para Oleg, um nenets que estava conosco, o que era aquilo.

- Acho que é de rena - disse olhando rapidamente para a carne ao longe.

Acreditei, pois os nativos trazem de suas

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aldeias e acampamentos nômades a carne para vender no mercado agora que o inverno está indo para seu final. As renas foram tratadas durante o período quente nas pastagens bem ao norte. Com a chegada do frio, as tribos se deslocam mais para o sul fugindo das temperaturas mais extremas, que podem chegar aos -50°C.

No dia seguinte as aulas começaram, e percebi a dificuldade de traduzir do português para o russo. O grande problema é que, além de a língua para o qual se estava traduzindo não ser a língua materna (quem traduz sabe o que isto é), não tinha como saber a direção que o outro estaria tomando. Engraçado, quando se está falando em outra língua, nós escolhemos as palavras de acordo com o nosso vocabulário, mas quando é outra pessoa falando, isto muda completamente. Ao menos para mim foi assim. Os alunos que haviam comparecido na primeira matéria que lecionei chegaram a comentar que o meu russo havia piorado nesta segunda vinda. Creio que não piorei, apenas a situação era completamente diferente. Bom, mas os momentos de conversa entre as aulas davam para acertar os pontos que ficavam enevoados na mente dos alunos.

Em uma noite daquela semana resolvemos sair para passear no centro. Bóris, sempre ele, nos levou junto com Oleg e mais uma moça nenets. Fomos até a

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rua principal, onde estava acontecendo uma exposição. Mas não era qualquer exposição. Lá estavam estátuas gigantes de gelo, ao ar livre. Eram cerca de 20 daquelas esculturas ali bem na nossa frente, lindas, coloridas pelos holofotes, com um ar de graciosidade que o gelo dava a cada uma delas. Havia uma em forma de anjo, com longas asas elevadas aos céus. Ficamos ali admirando toda aquela genialidade dos artistas, feitas em detalhes e com precisão impressionantes. O bom de estar com vários graus abaixo de zero é que a exposição não sofria com o derretimento, na realidade éramos nós que já estávamos começando a congelar. Voltamos para o carro, loucos por um chá bem quente.

Voltamos para nosso dormitório e lá estavam esperando para a janta. E que janta. O irmão do Oleg estava preparando alguns peixes para comermos. Ele pegava o peixe inteiro, cortava a cabeça e o rabo. Abria a parte de baixo e tirava tudo de dentro. Cortava então o peixe em pequenas fatias, quase num estilo sushi, e distribuía para as pessoas ali presentes. a agilidade com que ele fazia tudo aquilo demonstrava grande experiência, apesar dele ser um rapaz ainda novo. Mas a agilidade com que todos ali conseguiam comer aquele peixe cru com espinhos era ainda mais impressionante. Levei minutos para conseguir engolir um pedaço, enquanto os russos (nenets) acabavam

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com um peixe em questão de segundos. Sempre fui muito cuidadoso com peixes, ainda mais neste caso!

Para se ter uma ideia de como o povo lá adora um peixe cru, no início da semana havia um tonel cheio de peixes. Na sexta-feira estava pela metade!

Na sexta-feira, o dia amanheceu muito fechado. Olhei pela janela do refeitório e tudo estava cinzento. Percebi que a situação estava ficando cada vez mais difícil, a neve engrossou e o vento estava forte. Em alguns minutos, Evgueny entrou pela porta e olhando pela janela disse que o aeroporto, as estradas e a ferrovia estavam fechados. Estávamos isolados do mundo.

- Como? Domingo eu tenho que estar numa conferência em Moscou… - olhei para Evgueny.

- Até domingo o aeroporto vai estar aberto, com certeza - afirmou com a mesma convicção que expressei para meu amigo há quase uma semana na ferroviária.

Tive que arrumar forças interiores para crer naquilo. Olhei para fora e resolvi andar um pouco.

Em algum momento depois, Pyotr aproximou-se e convidou-nos a ir com ele até uma garagem ali ao lado. Saímos na rua, e a temperatura estava em torno dos -30°C. Caminhamos com dificuldade até o local e entramos. Ele mostrou uma moto de neve antiga, mas que funcionava. Logo ao lado havia um plástico

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encobrindo algo que não pude identificar de início. Quando Pyotr levantou, percebi um pedaço de carne que havia sido cortada, ali mesmo, no chão e congelado. Dali a pouco alguém trouxe uma moto-serra, e em pouco tempo ela foi ligada e partiram o pedaço em dois. Fiquei assistindo aquilo tentando assimilar a ideia de se cortar carne com uma moto-serra.

Depois, pediram para ajudar a colocar a moto para fora. Percebi que o empenho era muito grande. Mas o que viria ainda surpreenderia.

Oleg me disse para voltar para o prédio e colocar uma roupa pesada, caso eu quisesse dar uma volta na moto. Corri, para aproveitar mais esta aventura. Fiquei do tamanho de um mamute, com toda aquela roupa. Oleg entrou na sala e me disse:

- Você não vai assim, não é? - repreendeu-me.- Por que não? - indaguei honestamente

pensando em não haver uma resposta convincente.- Olha, deve estar uns -30°C lá fora. Vamos

andar de moto, o vento vai fazer você chorar de dor se não cobrir este rosto!

Muito bem, precisava ainda de um cachecol. Terminado o processo, virei motivo de piada entre todos ali presentes. Parecia um papai Noel desajeitado e encapuzado. Entrei na brincadeira e tirei fotos para eternizar o momento.

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Meu amigo brasileiro já estava lá fora com seus trajes de astronauta e partindo primeiro para a aventura. Mal pude acreditar quando o vi voltando dirigindo a moto. Eu também estava a fim de uma volta.

Oleg subiu na frente e dirigiu, e eu fui na carona. Ele acelerou e tocava contra os bancos de neve, levantando uma “poeira” de neve e fazendo a moto solavancar. Parecíamos crianças brincando com aquela moto da neve. De repente, logo após ter tirado a luva para fotografar a aventura, Oleg foi forte contra um barranco de neve, e a moto virou em cima de nós. Ao sentir que estávamos virando, instintivamente estiquei o braço com a mão desprotegida da luva para tentar amortecer o impacto. Conclusão, eu enterrei meu braço todo na neve fofa. Oleg tentava desvirar a moto. Passaram-se alguns segundo até que conseguíssemos nos livrar do peso e voltar para a posição normal. Perdi os sentidos na mão, estava congelada, como que morta. Uma agonia bateu em mim. Tentei aquecê-la de todas as maneiras, colocando a luva e abrindo o casaco. Depois de alguns minutos, finalmente ela começou a dar sinais que estava voltando.

Quando o susto passou, Oleg me convidou para dirigir a moto, numa tentativa de desviar a atenção para o ocorrido. Assumi a direção e tive dificuldades

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no começo, mas a experiência foi muito impressionante, o “brinquedinho” era muito interessante!

Ao voltarmos para o prédio, relatei aos que estavam lá o ocorrido com a mão. Disseram-me dos perigos da hipotermia, e como pessoas morrem congeladas. Falaram que quando se está numa situação de frio intenso, o primeiro sintoma, logicamente é sentir frio. Enquanto isto acontece, ainda se está relativamente seguro, pois o corpo está tentando compensar a diferença de temperatura. Mas se a pessoa fica por tempo prolongado assim, apesar de não fazer nada que justifique de imediato, ela começa a sentir como que se estivesse se aquecendo. Isto significa que o corpo está perdendo a batalha pelo aquecimento, e começou a render-se ao frio. O perigo é realmente grande, pois o próximo passo é a pessoa ficar com sono, e o fator de se sentir “aquecida” lhe dá a impressão que tudo está bem, quando na realidade não está. Caso ela caia no sono, praticamente está se sentenciando à morte, pois o corpo não consegue mais lutar contra o frio e o fato de ficar parado contribui negativamente no quadro. Em pouco tempo a pessoa morre por causa do frio, hipotermia. Esta foi a lição que me deram aqueles que são os mais entendidos no assunto, pessoas que vivem suas vidas num ambiente de frio constante, nas

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planícies mais geladas do mundo habitado, a Sibéria.A nevasca que caíra naquela manhã havia

coberto até mesmo os automóveis que estavam estacionados. Abrir caminho para se transitar pelas ruas ficou algo complicado. A prefeitura colocou suas maquinas para abrir as ruas principais da cidade. Quem estivesse em ruas secundárias ou laterais precisava pegar as pás e abrir seu próprio caminho. Foi isto que Bóris, Oleg e outros precisaram fazer para que o carro de Evgueny pudesse sair. Aquilo virou uma operação coordenada e exigiu o esforço de vários voluntários. Quando o carro conseguiu ser “desatolado” da neve e chegar até a esquina, enfrentou-se outra barreira. O trator patrola da prefeitura havia aberto o caminho na rua principal, jogando a neve toda para os cantos da rua. Isto formou uma verdadeira cadeia de montanhas entre as duas ruas, intransponível para um carro, até mesmo para o Lada Niva 4X4. Começamos uma obra de engenharia para abrir caminho pelo monte. Quando se havia quase aplanado, depois de muito suor escorrer pelo rosto, trouxeram a moto da neve. Ela foi amarrada por uma corda ao Niva e serviu como força adicional no esforço de fazer o carro passar. Pareciam aquelas cenas que vemos em regiões onde carros atolam na lama aqui no Brasil, e um trator é necessário para retirar o veículo. A diferença é que ali

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lutávamos contra a neve. Com muita luta conseguimos liberar o Niva, que foi saldado com gritos de alegria e vibração de um gol no fim de campeonato. Havia outro carro, mais leve, que não teve a mesma sorte. Não havia como passar para o outro lado, por isto, resolvemos “estacioná-lo” ali no canto da rua. Alguns homens se posicionaram e levantaram o veículo, posicionando-o num lugar adequado até que a neve abaixasse.

Nisto tudo percebi como pode ser dura a vida naquela região. O simples ato de querer sair de casa era algo que exigia todo um preparo. Além de todas as roupas, eram necessárias, quem sabe, horas até livrar o carro da neve. Outro carro ali na frente do prédio tinha um cabo que vinha de dentro do prédio e ia até o capô. Perguntei para Bóris o que era aquilo.

- Este é o meu carro, - exclamou - e aquilo é um cabo que está ligado à rede elétrica. Dentro do capo tem um aquecedor para o motor. Se não fizer isto, terei problemas quando for usar o carro.

- E ele fica ligado quanto tempo? - O tempo todo, não dá para desligar. Algumas

pessoas deixam o carro ligado às 24 horas do dia. E eu achava que tinha problemas quando no

inverno do Rio Grande do Sul tinha um carro à álcool !!!

A vida não é fácil ali. Mesmo eles, os nativos,

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sofrem e se irritam com as adversidades do clima. Pude perceber também que o ser humano é um ser adaptável. Temos a capacidade de lidar com as mais adversas situações, superando dificuldades e barreiras, colocando nossa sobrevivência acima de tudo.

No domingo, o dia em que partiríamos, o sol apareceu, majestoso. Lembrei das palavras de Evgueny, o aeroporto estava liberado para pousos e decolagens. A temperatura ainda estava muito baixa, mas ao menos o sol prevalecia. A despedida foi dolorosa para mim. Sabia que outra oportunidade de voltar para lá era uma possibilidade remota. Mas o importante é ter vivido tudo aquilo, apesar das dificuldades e dos perigos. Não existe crescimento sem perdas. Saí de Salekhard um pouco mais crescido, mais gente. Aprendi lições valiosas com aquelas pessoas.

O avião saiu no horário.

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STALINGRADO

Era cerca de meia-noite. Tudo estava escuro naquela noite de um verão que mal havia começado. Minha esposa e eu estávamos parados naquela plataforma da ferroviária, na cidade de Kropotkin, interior do estado de Krasnodar.

Não recordo quantos minutos ficamos lá parados com nossos amigos, esperando o trem que vinha de Krasnodar. De qualquer forma, ficamos ali, só esperando pela nossa primeira viagem de trem pela Rússia.

Subitamente começou-se a ouvir um som, a princípio raquítico, quase imperceptível. Este foi ficando cada vez mais alto, e começou a movimentação de pessoas pela plataforma. Em alguns instantes uma luz forte apareceu por detrás de algo

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que não conseguíamos discernir devido à escuridão. A possante locomotiva que trazia os vagões foi

chegando lentamente à estação. Seu ruído foi enchendo o ambiente e quando ela apontou pela plataforma, se agigantando, parecia que a terra tremia. Ela passou ao nosso lado, como um nobre passa sem notar os vassalos na rua. O poder daquela máquina trazia um espanto e fazia-nos tremer por dentro.

Embarcamos em nosso vagão, carregando pesadas malas. Achamos o cupê e abrimos a porta. Havia gente lá dentro que já estava dormindo. Tentamos não fazer muito barulho e nos acomodar o mais rápido possível para não provocar o mau humor daqueles que provavelmente seriam nossos companheiros de viagem por um bom tempo. Nosso destino era Stalingrado, a famosa cidade que mudou o curso da Segunda Guerra Mundial.

Depois de uma boa noite de sono, acordamos e fomos ver quem eram nossos companheiros de viagem. Eram uma vovó (babushka) e seu neto, que não deveria ter mais de 12 anos de idade. Ficamos felizes, pois as histórias de trens com passageiros bêbados e coisas do tipo eram correntes entre os viajantes.

Logo no café da manhã, o garoto pegou uma garrafa de cerveja e esvaziou-a com destreza de quem

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já é perito no assunto. A avó puxou alguns pepinos e tomates, pegou um pedaço de pão e serviu-se de chá. Estava pronto o café.

A viagem teve uma duração de 18 horas, passando pelas estepes do sul da Rússia. Ao longo do caminho avistamos pela janela alguns lugares retirados na paisagem. Eram vilarejos que, como que por magia, pareciam suspensos no tempo. Algumas vezes, passávamos perto o suficiente para ver os triciclos (motos antigas), ou mesmo as ruas irregulares de chão batido. As casas de madeira tinham aspectos de muito antigas, e sem manutenção por muito tempo. As pessoas caminhavam tranquilamente pela rua, ou pela calçada, também já desgastada pelos muitos invernos que por ali passaram.

Anos depois ao estudar na faculdade a história da região, desde os tempos imemoráveis dos milênios anteriores ao nosso, recordei daquelas horas no trem, apreciando a paisagem. Gosto particularmente desta faceta da História, poder ver o passado e presente se fundindo na vida real de pessoas reais. Eles são os herdeiros de milhares de anos da habitação humana por aquelas terras planas das estepes russas. A viagem de trem pelos campos russos parece que nos coloca em contato direto com a alma da região, do povo, mesmo estando dentro do trem.

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A chegada em Volgogrado aconteceu no fim da tarde. Um casal colega nosso que residia na cidade nos esperava na ferroviária. Um ambiente tipicamente soviético e o prédio central com a clássica arquitetura dos tempos stalinistas.

Fomos para o carro, enquanto o nosso anfitrião contava sobre o jogo inaugural da Copa do Mundo daquele ano que havia acabado há alguns minutos... A conversa então foi direcionada para este assunto, enquanto passávamos pelas ruas da cidade até chegarmos ao apartamento deles.

No dia seguinte, pudemos finalmente dar um passeio pela cidade histórica. Teríamos quer aproveitar bem aquele fim-de-semana, pois na segunda-feira partiríamos de avião para Moscou.

Volgogrado tem este nome como uma homenagem ao rio Volga, o maior da Europa. Literalmente o nome da cidade significa “cidade do Volga”. Mas nem sempre ela foi conhecida por este nome. Quando de sua fundação em 1598 recebeu o nome de Tsaritsin por ser uma fortaleza fundada nas margens do rio Tsaritsa. O nome daquela fortaleza significava “(fortaleza) da Rainha”. Com a chegada ao poder dos soviéticos, após a deposição do sistema Imperial, a cidade foi renomeada em 1925 para seu nome mais famoso, Stalingrado, ou seja, “Cidade de Stalin”. Contudo a história e a ciranda de nomes não

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para aí. Com a morte do ditador soviético em 1953, a situação aos poucos vai mudando, e o endeusado Stalin acaba por ser desmascarado por Nikita Khrushchov, em 1956. Numa campanha anti-stalin, o novo comandante da URSS resolve mudar o nome da cidade que homenageava Stalin para algo mais impessoal, e em 1961 a cidade vira Volgogrado.

Mas foi sob o nome do ditador que a cidade ganhou fama internacional. Existem bons livros que tratam a questão da Batalha de Stalingrado, por isto não vou me estender neste assunto, apenas dar dados gerais. Ela teve uma duração de 199 dias entre os anos 1942-1943 e foi uma das maiores batalhas da história humana. O número de baixas é difícil de ser calculado com exatidão, mas estimativas giram em trono de 2 milhões de mortos. Esta batalha é considerada um ponto de virada da Segunda Guerra Mundial, a primeira grande derrota dos exércitos de Hitler, que culminaria com a tomada de Berlim em 1945 pelos exércitos soviéticos.

A cidade foi totalmente arruinada. Os intensos bombardeios aéreos e de artilharia puseram abaixo praticamente todos os edifícios da cidade. A batalha teve vários estágios, mas o mais impressionante foi a etapa das lutas entre os destroços de edifícios e casas. Cada metro literalmente era conquistado e reconquistado várias vezes, existindo confrontos

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dentro dos próprios cômodos das casas e entre escombros. E esta marca ficou impressa na alma da cidade.

Andar pelas ruas de Volgogrado é andar num lugar estranho, quase tenebroso e assustador. Conhecendo-se a história local, podem-se sentir ainda os ecos da guerra. É quase uma experiência espiritual.

A cidade é conhecida como uma “cidade banana”, pois seu formato se assemelha muito a esta fruta. Ela se estende ao longo da margem oeste do Volga, por uma extensão de quase 100 quilômetros! Mas a sua largura não chega a ultrapassar os 16 quilômetros, sendo que maior parte da cidade está entre 4 e 6 quilômetros da margem do rio.

O clima é absolutamente rigoroso. Dizem os moradores locais que esta é a cidade dos 40. No inverno a temperatura chega aos 40 negativos, e no verão aos 40 positivos! Estivemos lá no fim da primavera, e apesar de pegarmos este extremo, podemos imaginar o que acontece lá por agosto, quando o calor realmente chega. Neste tempo, as margens do rio acabam por encher de volgogradenses que buscam no rio um refrigério para o calor sufocante.

Enquanto passeávamos pelo local com nossos anfitriões, chegamos num canal, conhecido como

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Canal Volga-Don, que passa pela cidade e que liga os grandes rios da Rússia Europeia. Construído para abrir caminho entre o Mar Cáspio e o Mar Negro (e consequentemente para o Mar Mediterrâneo), os 101 quilômetros de extensão foram concluídos em 1952, após 4 anos de trabalhos forçados. Comportas ajudam os navios de até 5.000 toneladas a transitar, vencendo os 88 metros de desnível que existem pelo percurso. É uma obra absolutamente impressionante!  

Nas margens do Volga, perto do Canal, existe uma estátua de Lênin, que são muito comuns ainda em toda a Rússia. Mas esta tem uma história distinta. Ela está lá, numa plataforma, em lugar de outra estátua. Naquele local, até a desmistificação promovida por Nikita Khrushchov em relação ao seu antecessor, figurava imponente a maior estátua de Stalin em toda a URSS. Como resultado de uma política anti-stalin, a monumental peça foi retirada literalmente da noite para o dia e acabou sendo substituída pelo pai da Revolução Russa. Hoje, recém-casados depositam suas flores aos pés do monumento, típica cerimônia russa, inclusive presenciada por nós no dia que lá estávamos.

Devido à extensão da cidade, não tivemos a oportunidade de ver seus extremos, concentrando-nos mais na Região Central, como é assim chamada. É lá que estão os principais monumentos da cidade. Neste

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ponto é que foram mais intensas as lutas durante a Batalha de Stalingrado. Exatamente no centro desta região está o “Panorama da Batalha de Stalingrado”, um complexo que mostra alguns momentos da luta aqui travada. Logo é possível ver a estrutura branca do museu, onde entre outros objetos expostos, está a arma de Vassily Zaytsev, herói soviético notabilizado como franco-atirador durante a Batalha. Apesar de não ser o atirador com o maior número de mortos, a propaganda soviética utilizou muito bem seu herói, que ao todo, segundo alguns, teria matado 242 oficiais nazistas. A história deste soldado, particularmente, foi alvo de muitos livros e até mesmo filmes.

Infelizmente, no dia de nossa visita, o museu estava fechado!

Um pouco mais abaixo, já na margem do rio, está o barco “Gassitel”, símbolo de uma luta ferrenha e desesperada dos soviéticos de não entregar Stalingrado para os nazistas. Durante toda a Batalha, a artilharia e a famosa Força Aérea alemã (Luftwaffe) impuseram ao rio um ataque ininterrupto, pois era o rio o único meio de contato da margem oriental sob domínio soviético, e a resistência no lado ocidental. Mesmo durante a noite o fogo não cessava. Os barcos cruzavam o rio sob ataques intensos, e o fundo do Volga guarda muitas embarcações juntamente com as suas vítimas.

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Contudo nada se assemelha à Colina Mamayev, com sua estátua da Mãe-Pátria. A colina foi durante a batalha uma verdadeira “terra de ninguém”. Este ponto estratégico que abria a vista para toda a cidade do seu alto, não foi totalmente tomada pelos alemães durante este período. Contudo, lá se formou um local quase isolado, pois tanto a artilharia alemã, quanto a soviética bombardeavam o local para evitar que qualquer um a tomasse. Ao fim da Batalha, alguns afirmam que ao longo de toda a colina ficou uma camada de 10 centímetros de estilhaços de bombas! No local, apenas uma árvore permaneceu de pé, já na encosta. Ela virou um monumento vivo à resistência da cidade, até hoje preservada!

Com o fim da guerra, em uma cidade totalmente destruída e traumatizada pelos milhares de mortos, Stalingrado recebeu o título de ‘Cidade Herói” e no alto da Colina Mamayev, entre 1959e 1967, foi construído o conjunto de Monumentos conhecido como "Heróis da Batalha de Stalingrado”. Ao subir pelas escadarias, aos poucos se começa a ver surgir uma estátua colossal. Passa-se então pela “Alameda” onde, dos dois lados do caminho, estão perfilados os álamos, árvore típica na região. Parecem soldados em formação. Os monumentos aos heróis se espalham ao longo do caminho de subida. Cenas de soldados em combate, carregando feridos, impondo

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armas, mas a estátua mais impressionante está no fim da subida, e é a intitulada “A Mãe Aflita”, retratando uma mãe que debruçada, tem no colo seu filho morto em batalha. Esta cena realmente mexe com qualquer um que passa por ali!

Ainda no caminho de acesso ao topo da colina, subitamente se nos percebemos cercados dos dois lados por paredes, onde existem figuras de tanques, imagens de guerra, canhões que foram feitos como relevos na própria parede. E das mesmas paredes saem sons através de alto-falantes embutidos nelas, que contam momentos da guerra. Uma voz marcial, arrastada, mórbida, anuncia o número de mortos, a situação da cidade em escombros, os ataques e contra-ataques, e tudo ao som de fundo de explosões, incursões aéreas, gritos, etc. A pessoa que sobe já está sendo preparada para o que vem logo ali em cima, na Colina.

No salão do “Fogo Eterno”, ou também chamado “Panteão da Glória”, bem ao centro tem uma tocha, segurada por uma mão gigante, simbolizando o lema máximo do pós-guerra “nada será esquecido, ninguém será esquecido!”. Ao redor do perímetro das paredes do salão, que se assemelha a um estádio coberto, há 34 mastros com bandeiras de luto feitas de uma cor vermelha-esmaltada e franjas com fitas pretas. Nestas bandeiras estão inscritos os nomes dos

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mortos na Batalha de Stalingrado, soldados soviéticos - todos os 7.200 nomes conhecidos. Alguns dizem que este número na realidade seria bem maior, por causa dos que não foram registrados. Estimativas calculam que as cifras de soldados soviéticos sepultados nesta colina chegam a 34 mil! Num lugar de júbilo e celebração pela vitória, vem também o clima de tristeza, um sentimento de perda.

Mas o monumento mais impressionante está no ponto mais alto da colina. A estátua da Mãe-pátria é absolutamente incomparável! E os números realmente impressionam! São cerca de 5.000 toneladas de cimento, 2.400 toneladas de construções metálicas. Só a estátua em si, da mulher, tem uma altura de 52 metros, e se adicionarmos a espada que ela segura empunhada, a altura chega aos 85 metros. Somente a espada metálica tem um peso de 14 toneladas. Para se ter uma ideia desta gigante, a estátua da Liberdade de Nova Iorque mede 46 metros, o Cristo redentor no Rio de Janeiro, 38 metros.

Quando chegamos perto do colosso, tiramos uma foto para mostrar o tamanho dela. Uma pessoa tem o tamanho de um dos dedos do pé da estátua… Existem sismógrafos por toda a estátua para avisar sobre qualquer problema na estrutura.

As feições da Mãe-Pátria são expressivas. Ela é chamada também de “A Mãe-Pátria conclama!”. É um

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chamado para o ataque, para a vitória. é o próprio espírito de Stalingrado!

Tsaritsin, Stalingrado, Volgogrado, não importa o nome, esta cidade carregará para sempre o orgulho e a tristeza em suas ruas e parques.

Ter o privilégio de estar num lugar tão importante para a história moderna da humanidade foi algo que levaremos pelo resto de nossas vidas.

Nossa saída de Volgogrado se deu pelo aeroporto da cidade. Naquele momento o Brasil estava estreando na Copa do  Mundo. O resultado só fui saber no dia seguinte, num jornal que estava sendo lido por um passageiro do famoso metrô de Moscou. Ganhamos! E em casa assistiríamos o Brasil ser campeão!

Mas isto é, como já disse antes, outra história…

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MOSCOU: CAPITAL DE TODAS AS RÚSSIAS

A capital deste país continental é uma das maiores cidades do mundo. Sua população é, segundo dados oficiais, de 12 milhões de habitantes, mas fontes extra-oficiais garantem que os números podem chegar aos 15 milhões. A realidade é que como nos grandes aglomerados urbanos pelo mundo, qualquer que seja o número exato, eles apenas expressam detalhes que passam batidos frente a tudo que Moscou realmente é.

Falar sobre esta metrópole em poucas palavras neste capítulo é uma tarefa muito complicada, pois há muito que se pode explorar sobre o tema.

Contudo, porei em destaque o que mais chama a atenção de quem não nasceu ou mora lá.

Comecemos pelas igrejas. Devido ao sistema

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Socialista que dominou o país na maior parte do século XX, e mais especificamente ao tom anti-religioso que se impôs ao longo deste período, a imagem que se tem dos russos é de um povo desprovido de ligações religiosas. Mas nada mais longe da verdade do que esta impressão!

A alma russa é extremamente religiosa, supersticiosa e cheia de mística (como veremos adiante). O país abriga uma grande quantidade de fiéis das grandes religiões mundiais, e isto se reflete nas suas expressões artísticas, mas em especial na arquitetura. Moscou em particular é crivada de igrejas, monastérios, capelas, e outros lugares sagrados de outras religiões como budismo e islamismo.

Mas a história de Moscou com estes “santuários” teve muitas convulsões durante o regime socialista, especialmente com Stalin. E este desafeto do ditador com a religiosidade não poupou nem ao menos a Catedral de Cristo Salvador, que é comparada à Basílica de São Pedro, no Vaticano, por sua importância para a Igreja Ortodoxa Russa.

Esta catedral, onde se destacam as cinco cúpulas douradas em formato de “cebola”, típicas da Rússia, foi originalmente idealizada no início do século XIX como uma celebração após a vitória contra Napoleão. E foi em 26 de maio de 1883, que como

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cerimônia de inauguração da Catedral, Alexandre III foi coroado o novo czar da Rússia.

Mas a história não se prolongou por muitos anos. Com a chegada do governo revolucionário, as perseguições religiosas da década de 1920, e chegada ao poder de Stalin, o futuro do local estava sendo redesenhado. Por ser considerado um dos símbolos do período czarista, sob as ordens de Stalin em 1933, a Catedral foi dinamitada. Stalin havia planejado algo mais “secular” para o local, onde pretendia construir o chamado "Palácio dos Sovietes". Esse novo palácio seria levantado ali e teria uma torre de 400 metros de altura. No topo dessa torre, seria posta uma estátua de 98 metros do Lênin. Mas, por causa de dificuldades técnicas, o projeto nunca pode ser realizado. O problema é que o terreno não aguentaria aquela estrutura faraônica idealizada pelos comunistas. Sem alternativa, decidiram então pela construção de uma piscina pública. A glória de uma ideologia ia quase que literalmente por água abaixo!

Quando o regime acabou por cair, no início da década de 1990, rapidamente a Igreja Ortodoxa Russa solicitou o local que outrora lhe pertencia.

Com a autorização do governo, as piscinas deram lugar a um canteiro de obras para reerguer a Catedral. No subsolo dela atualmente existe um museu mostrando todo o processo de revitalização

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daquela estrutura. Usando fotos da época anterior à destruição, os arquitetos puderam colocar de pé a Catedral respeitando os mínimos detalhes da construção anterior.

Se o exterior já impressiona, entrar num local como a Catedral de “Cristo Redentor” evoca um grau de religiosidade na alma de cada um. As paredes estão cobertas de pinturas meticulosamente ali desenhadas. Existe uma santidade no ambiente, algo realmente que impregna a alma do visitante. Não se deseja falar, nem rir ou pensar em algo desassociado à majestade divina. É uma experiência religiosa, mesmo para o mais ateu!

Alguns sugerem que Stalin travou uma luta contra Deus, expurgando seus templos e santuários, mas que no fim Ele, Deus, deu a última palavra. Seus templos foram reabertos, suas igrejas restauradas, seus sacerdotes reintegrados, e para o velho ditador ficou a amarga desonra que seu nome tem que carregar por sua blasfêmia e desumanidade com o seu próprio povo.

A beleza e a imponência da Catedral de Cristo Salvador não rivalizam com outra Catedral famosa da capital. A Catedral de São Basílio é indubitavelmente a mais famosa de todas as suas inúmeras irmãs que estão espalhadas por Moscou. Na realidade, parece muito mais um par perfeito, com a majestade do

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Cristo Salvador e a graciosa São Basílio. Aliás, neste sentido temos uma história

interessante que se conta sobre esta catedral. Para os olhos desatentos do turista passa desatento o fato da São Basílio estar logo ali do lado de fora dos muros do Kremlin, na Praça Vermelha. Para entendermos o significado disto, precisamos explicar algo da cultura russa. O Kremlin não é exclusividade de Moscou, havendo outros em determinadas cidades russas. Mas o que seria um kremlin? Na realidade, ele nada mais era do que uma fortaleza, com um diferencial peculiar. Dentro dos muros de um Kremlin sempre há uma ou mais igrejas ortodoxas, mostrando o poder da religião para os russos.

Segundo a versão mais conhecida, o czar Ivan IV mandou-a construir na metade do século XVI como uma comemoração ao seu triunfo na conquista das cidades de Kazan e Astrakhan. Mas isto não explicaria o fato dela estar do lado de fora dos muros. Contudo, conta outra história que ele teria mandado construir a igreja em homenagem à sua nova esposa, uma princesa armênia. Pelo fato da princesa não ser ortodoxa russa, e sim ligada ao ramo da Igreja Cristã Armênia, a Catedral não poderia ser construída dentro dos muros. Para compensar este desjeito, o czar teria ordenado trazer estrangeiros para construir a mais bela igreja. O arquiteto italiano que a projetou

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teria pagado caro por tamanha beleza, pois segundo uma tradição, o czar teria mandado cegar o arquiteto para que jamais fizesse algo tão glorioso!

Por dentro a Catedral está dividida em pequenas capelas que tradicionalmente eram lugares dedicados à oração. “Eram” por que atualmente a Catedral é um museu, sem finalidades cúlticas e religiosas. Ao se entrar nela (depois de pagar pelo ingresso num caixa ao lado), pode-se como que entrar na alma russa, cheios de caminhos apertados, mas que de repente abrem-se e nos agraciam com uma pequeníssima capela, que com pequenas aberturas deixam o mundo e a luz entrar. Não há nada suntuoso lá, nada que inspire nossos olhos pelo que é material.

Olhando agora para trás e recordando tudo isto, parece que é possível ver como é o povo russo por dentro. As catedrais têm mais que simplesmente o poder de nos levar para um lugar sagrado nos céus, mas há nelas a capacidade de igualmente nos transportar para esta alma, chamada Rússia.

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Moscou é uma cidade que vive uma relação muito íntima com uma de suas maravilhas, o metrô. Enganam-se quem pensa que o metrô lá é apenas um meio de transporte. Não, o metrô de Moscou é muito

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mais que isto, é um show à parte. Ir a Moscou e não andar pelas suas estações; é não ter verdadeiramente conhecido a cidade. Conhecidas como os “Palácios subterrâneos de Moscou”, as 190 estações estão dispostas pelas 12 linhas que cortam a capital.

A abertura da primeira linha em 1935 foi o início de um projeto ousado, que culmina atualmente com 305 quilômetros, colocando o metrô moscovita entre um dos maiores do mundo. Mas os números não impressionam tanto quanto a beleza das estações. Dizem os moscovitas que cada estação foi construída com um tipo de mármore diferente. A arquitetura de cada estação é única. A mais profunda é a “Parque da Vitória”, que fica a 76 metros abaixo do nível da rua. Nesta mesma estação, existe a maior escada rolante, que tem uma extensão de 127 metros, penetrando 63 metros abaixo do nível da rua! Ao se colocar numa das pontas desta escada rolante, o outro lado fica perdido da vista.

Existem estações de todos os tipos. As mais “simples”, com mármores mais comuns, outras com estátuas, outras que parecem verdadeiras galerias de artes, com quadros maravilhosos pendurados nas paredes, em outras são os vários níveis interligando várias linhas. Absolutamente nada é repetido nas estações, cores, desenhos, esquemas, peças, tamanhos, tudo dá um ar de novidade a cada estação

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para o turista. Viver Moscou é também viver seus subterrâneos. E isto foi o que fez parte da população durante a Segunda Guerra Mundial, pois devido à sua profundidade, o metrô possibilitava aos civis buscarem abrigo durante os bombardeios alemães.

A maior praticidade do metrô pessoalmente percebi na linha 5 Marrom, também  conhecida como “Circular”. Criada com o objetivo de interligar todas as outras 11 linhas, ela serve para agilizar o trânsito entre todas as estações. O sistema é extremamente funcional e é de fácil utilização. Mesmo minha esposa e eu não tivemos dificuldade alguma de se locomover por toda a Moscou usando o sistema, já na segunda viagem, pois ele é muito bem construído e lógico. Apenas precisa-se estar um pouco atento quando se acumulam várias linhas numa mesma estação, mas o hábito supera isto logo.

Resumindo, o metrô é algo imperdível!

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De tantos lugares, parques, monumentos, igrejas, e tudo mais que aquela cidade fantástica reserva para os turistas, nada é mais famoso que a emblemática “Praça Vermelha”.

Ao contrário do que muitos possam pensar, o local não recebeu seu nome devido à cor. Apesar dos

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muros do Kremlin serem da cor avermelhada, eles assim o são ha relativamente pouco tempo, pois anteriormente, quando a praça já tinha este nome, os muros eram brancos.

Mas por que então “Praça Vermelha”? O nome vem de palavra russa “Krasniy’ que significa literalmente vermelho, mas que no russo antigo também significava “bonito, belo”. Assim, a praça na realidade seria a “Praça Bonita”, mas que acabou virando “vermelha” mesmo. Isto inclusive ocorre em outros nomes de locais na Rússia. O próprio nome Krasnodar (nossa cidade) significaria literalmente “Presente Bonito”, ou “Presente Vermelho”, por causa da Revolução Russa.

E a praça faz jus ao seu nome. Entrar na praça atravessando o arco ao lado do Museu Histórico, ao fundo pode-se perceber as cúpulas da Catedral de São Basílio como que se levantando do chão de pedras do qual é formada a praça. À esquerda uma pequena igreja ortodoxa, mais alguns passos e a Praça Vermelha se apresenta com seu esplendor. Caminhando para o centro da área aberta, logo fica evidente o enorme prédio conhecido como GUM (sigla para “Principal Loja Universal”, o que seria uma espécie de shopping center nos tempos soviéticos). Ele ocupa toda a extensão à esquerda de quem entra pelo lado do Museu.

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Exatamente do outro lado da praça, já quase encostado nos muros do próprio Kremlin se encontra o Mausoléu de Lênin, onde está exposto o corpo do líder soviético, em uma espécie de caixão, com luzes apontadas para suas mãos e rosto. As filas para entrar no mausoléu e ver o líder da revolução, em geral ultrapassam as centenas de metros, o que desanima mesmo o mais curioso historiador como eu.

Na parte de trás do mausoléu, já quase colados aos muros do Kremlin estão sepultadas personalidades importantes da história da URSS. Lá estão Joseph Stalin, Yuri Gagarin (o primeiro homem a ir ao espaço), e muitos outros líderes da União Soviética.

Olhar para aquela praça evoca em nossas mentes os famosos desfiles da época do regime, quando a URSS exibia para o mundo o seu aparato militar, incluindo o poderio atômico. Eram desfiles de horas, milhares de soldados, tanques, armas pesadas e aviões, um show montado para todo o país ver e o Ocidente preocupar-se. Mas com o fim da URSS, tudo foi abolido, e a praça que outrora via por ela desfilar o orgulho de uma nação acostumada com a guerra, viu apenas turistas (muitos, de todo o mundo) a passear calmamente por toda a sua extensão, capturando aquele momento único com suas máquinas fotográficas.

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Contudo, os anos se passaram, e como tudo no país, o clima muda rapidamente. A chegada de Putin acabou por ressuscitar certos hábitos que já não estavam em voga. Nos últimos anos os desfiles voltaram. Foi em 2008 que pela primeira vez se utilizou o aparato técnico militar pesado nos desfiles na Praça Vermelha após a queda da URSS. O principal dia de apresentações é o dia da comemoração do fim da Segunda Guerra Mundial, chamado de “Dia da Vitória”, em 9 de maio.

Numa das vezes que estive em Moscou, mostrando a cidade para um casal de amigos brasileiros, ao andar pelas ruas, nos deparamos de frente com o ensaio de inúmeras fileiras de soldados do Exército Vermelho em marcha. Apesar de ser apenas um ensaio, a ordem e disciplina, a força e a batida impressionam, especialmente quando se leva em conta que diante de nós está um dos exércitos mais conhecidos do mundo.

Igualmente atrativa e muito concorrida por turistas e transeuntes, é a troca da guarda ao lado dos muros do Kremlin, no memorial ao soldado desconhecido, vítimas da Segunda Guerra. A força, destreza, o litúrgico e solene momento sempre está sendo filmado e fotografado por todos. É algo que marca quem presencia o ato.

Outro lugar de interesse geral para os turistas é

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o próprio interior do Kremlin, suas igrejas, o Palácio do Governo e tudo mais. Mas, às filas enormes pelo ingresso, e o valor absurdo cobrado para turistas é um desestímulo para esta visita. Contentei-me sempre de tirar fotos da Praça, das torres, das cúpulas douradas que se pode ver do lado de fora, e do muro do Kremlin.

Enfim, Moscou é uma cidade magnífica. Poderia falar dos parques que existem por todos os lados, dos museus que têm em seus acervos peças das Antigas civilizações como múmias egípcias, tabletes mesopotâmicos, obras de arte greco-romanas, etc. A Galeria de Artes Tretyakov, com seus belíssimos quadros. Seria impossível falar ainda sobre tudo que há de encantador na Rua Nova Arbat, com suas lojas, bares e etc.

Moscou se revela diferente em cada estação do ano. No verão, os parques espalhados pela cidade ficam cheios e vibrantes, com o sol se pondo lá pelas 22 horas, e levantando antes das 5 da manhã. Neste ínterim, praticamente não escurece, mas fica uma sensação de eminente aurora no céu. No outono, o verde se vai, dando lugar ao vento gelado, pré-anúncio do inverno que se aproxima. Neste período é o tempo de preparação para o frio que chega. O inverno é rigoroso, mas os moscovitas sabem tirar proveito da estação. Em especial, as crianças se

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divertem nos parques, fazendo tobogãs e brincadeiras com ela, a principal personagem, a neve. Mesmo os mais adultos se vêem um pouco “infantis” nesta estação. A primavera é a renovação, a vida, o verde. Tudo se transforma, e Moscou volta a encher os parques com pessoas aproveitando o sol que volta a esquentar a cidade.

Viver Moscou, ao menos por alguns dias é uma experiência fascinante.

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EXPERIÊNCIAS FUTEBOLÍSTICAS

Quando falamos de Brasil, logo vem a associação com café e futebol. Mas o café brasileiro já é assediado pela concorrência de outros países, como Etiópia, Colômbia, entre tantos outros.

Neste caso então sobra a imagem do país do futebol. E este esporte é o mais popular do mundo. Em todos os cantos existem pessoas que correm atrás de uma bola.

A admiração na Rússia pelos nossos desportistas é constatável pelo número destes atletas nos times do país. Praticamente todas as equipes da primeira divisão têm no seu elenco nossos compatriotas. Mesmo na segunda divisão, percebe-se o empenho dos times em reforçar seu elenco com

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algum jogador daqui, ou mesmo da Argentina. Mas a busca por sul-americanos atualmente tem se diversificado e a busca por uruguaios, paraguaios e outros tem crescido.

Por isto não seria de admirar que em nossa Krasnodar houvesse ao menos um brasileiro jogando no time local. Quando chegamos em 2005, o Clube de Futebol Kuban era daqueles times que, ora está na Segundona, ora sobe para a Primeirona.

Na Universidade, ficamos sabendo que o time tinha um brasileiro jogando lá. Ficamos felizes, pois até então éramos os únicos brasileiros conhecidos por aquelas estepes. Mas ele era a estrela do time, e conseguir o contato assim direto era algo que precisava ser batalhado. Certo dia, o celular toca e ao atender ouvi um sotaque baiano falando do outro lado. Demorou uns micro-segundos até reorientar a mente para o português e conversar com o conterrâneo.

Dali em diante, desenvolvemos uma amizade muito profunda com este jogador. Ele havia saído ainda novo em sua carreira para jogar na Bósnia. Passou um tempo lá e o clube de Krasnodar o contratou. Sem família (esposa e filhos), sem maiores impedimentos aceitou o desafio de vir para Krasnodar. Digo isto, pois muitos jogadores que vão para fora do Brasil, em busca de realização profissional e estabilidade financeira, se deparam lá fora com falta

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de estrutura, solidão, choques culturais e etc. Isto acaba levando a uma volta prematura ou desestímulo, que afeta a carreira.

Acompanhamos (como família) todas as alegrias e dificuldades destes profissionais. Muitas são as lutas, desde o assédio, a cobrança, o despreparo para situações da vida lá fora, as saudades de casa e entre outros aspectos dos brasileiros no estrangeiro.

O futebol russo sempre foi marcado por, digamos, suspeitas em relação a sua integridade. Muitos analistas afirmam que as fracas atuações dos times da URSS e Rússia eram resultado de uma máquina de corrupção que não deixavam com que as equipes conseguissem atingir um nível técnico para conseguir competir com os outros times europeus. Num país onde tudo era resolvido fora do campo, era de se esperar que os resultados em competições internacionais fossem frustrantes. E este “jeitinho russo” incomodava muitos jogadores. Não que em outros lugares este tipo de “jeitinho” não existisse, mas era sempre tão evidente na Rússia, que os próprios torcedores diziam: o time campeão sempre é o time do Premier (na época soviética). Coincidentemente, o que acontecia!

Mas a chegada cada vez maior da “legião estrangeira”, investimentos privados e a seriedade dos campeonatos vêm elevando o nível do futebol

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russo. Hoje eles já brigam nos campeonatos europeus de forma mais digna, passando das primeiras fases, e até mesmo se tornando campeões, como CSKA e o Zenit.

Todo russo com quem conversei sobre o assunto de futebol torcia por um time russo (óbvio!) e para um time europeu da Alemanha, Inglaterra, Itália, Espanha, ou outro. A pergunta que me faziam era sempre para que time russo eu torcia, o que era normal, mas em seguida a questão era para que time europeu. Quando dizia que não tinha nenhuma equipe pela qual eu tinha simpatia imediata, suas caras sempre expressavam assombro. Como um brasileiro pode não ter um time de futebol? Isto se explica pelo fato de os russos não terem ideia de que futebol possa existir em outros continentes. Nenhum deles conhecia clubes brasileiros, ou mesmo sul-americanos. Taça Libertadores? Que é isto? - perguntavam. Mundial de Clubes? Enfim, eu acabava por desistir da conversa, pois explicar que, se um brasileiro estava jogando num time europeu, necessariamente ele teve que jogar em algum time por aqui no Brasil. Para um russo, ir ao estádio é como ir a um balé, um espetáculo, assistir um filme. É parte de uma herança cultural da URSS, onde atividades “culturais” eram de acesso das massas. O crescente padrão da técnica, jogadas de efeito (de brasileiros na maioria, é claro!)

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estimularam o público a se aproximar dos clubes de futebol. O esporte virou um grande negócio, e isto tem profissionalizado o espetáculo.

Mas nem só dos profissionais tem vivido a paixão dos russos pelo futebol. Ao longo do tempo que vivemos lá, pudemos ver se multiplicar as quadras e campos de futebol, especialmente do tipo “grama sintética”. O interesse de pais em buscar uma atividade física para os filhos também impulsionou o mercado de escolinhas de futebol. O governo tem buscado no esporte uma forma de ideologia perdida com o fim da URSS. O consumo de drogas e álcool tem alarmado as autoridades, e em especial a de Krasnodar, e a solução mais rápida é a prática de esporte.

Através de alguns contatos na cidade nós, com um grupo de amigos, propusemos a vinda de uma equipe de futsal do Brasil para trabalharmos um pouco esta questão. O alvo principal era atingir as crianças, que são o ponto mais fraco e desprotegido destes terríveis males que atacam todas as sociedades. Tínhamos a experiência de um amigo nosso no Brasil que vem trabalhando com uma ONG em São Paulo em comunidades carentes da capital. Agregamos a isto a necessidade dos russos e o interesse pelo futebol. O resultado foi que em 2010, um grupo de 8 jogadores foram até Krasnodar para

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este projeto. A equipe contava com jogadores profissionais de futsal que já haviam jogado na Liga Italiana, outros que foram para Portugal e EUA. Mas a grande estrela do time era um ex-jogador da seleção brasileira de futsal, bi-campeão mundial. A presença dele foi fundamental para que conseguíssemos chamar a atenção da imprensa local e de algumas autoridades.

O projeto durou ao todo duas semanas, e estivemos em muitos lugares do estado e na capital. Participamos de um torneio de futsal de rua, numa quadra onde ocorriam os jogos da liga de Krasnodar de futsal de rua. Os atletas foram em escolas, ginásios e estádios. As emissoras locais de TV (5 canais ao todo) fizeram reportagens, entrevistas e uma “coletiva de imprensa”. Foi muito importante para a região, especialmente para as pequenas cidades do interior. A chegada do time causou um verdadeiro alvoroço em cidades do interior, e mesmo na cidade de Maykop, capital da República da Adygea, tivemos uma partida com o time local, onde o estádio municipal ficou completamente lotado.

A mensagem que queríamos transmitir para aquela sociedade era de que existem valores aos quais devemos nos apegar, o que ia ao encontro do discurso do próprio governo, ou seja, um chamado para valorização da família, uma atitude contra as drogas,

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e a necessidade da fé. Sempre fomos bem recepcionados nos lugares

por onde passamos. As pessoas eram atenciosas e sempre procuravam o contato, o que era muito estranho para mim, pois geralmente os russos são frios, distantes e muito desconfiados. Isto até causou uma impressão equivocada com o pessoal da equipe, que acabou levando aquele clima cordial e amistoso como sendo a constante da vida dos russos.

Em uma cidade no interior de Krasnodar tivemos uma experiência um tanto negativa. Num dos jogos que os brasileiros participaram, um deles se chocou com um russo e caiu. Ele sentiu uma forte dor no ombro, mas teimosamente continuou em campo. Ao acabar a partida, sentindo muitas dores, ele me procurou e pediu para ver se poderíamos ver o que havia ocorrido. Felizmente no local havia uma ambulância de plantão, e recorremos ao pessoal ali. Fizeram uma faixa e deram algum remédio, mas a situação não parecia nada boa. Uma das organizadoras do evento veio ao meu encontro e recomendou que fôssemos para o hospital municipal para falar com os médicos.

Não tive como conter em minha mente as cenas das experiências anteriores nos hospitais de Krasnodar, mas pensando na situação de nosso atleta, resolvemos prosseguir. Ao grupo se somou outro

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jogador que estava sentindo fortes dores nas costas. Ao chegarmos ao hospital, a moça que cuidava da organização do evento tomou a dianteira e foi falar com alguém lá dentro. Parece que cidades pequenas têm a vantagem de que algumas pessoas carregam consigo alguma influência e logo são recebidas. Em pouco tempo ela volta com o médico que vem perguntando o que havia acontecido.

Ele examinou os jogadores com muita paciência (!!!) e pediu que fôssemos até uma sala onde seria tirada uma radiografia. Comecei a imaginar para aonde tudo aquilo nos levaria, especialmente em termos financeiros. Neste meio tempo fiquei conversando com algumas pessoas ali mesmo, pois parecia que todos os funcionários que estavam naquele dia no hospital, num fim de sábado, num hospital de cidade interiorana vieram ver o movimento que estava acontecendo. Achei muito engraçado tudo aquilo, e a tensão foi baixando.

Após alguns minutos, que não tenho bem certeza devido a toda a situação, os médicos chamaram para sua sala. Eles haviam constatado que um osso havia quebrado na região do ombro. Eles achavam melhor operar para verificar os pequenos estilhaços que estavam alojados e fazer o procedimento padrão. Devo confessar que não entendi muito do que estavam falando, mas apontavam com

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insistência para um local na radiografia, e era nítido o rompimento e alguns pedaços pequenos pela região. Assustado com a possibilidade de uma cirurgia naquele local, liguei para um amigo médico brasileiro em Moscou. Não tive resposta, por isto convenci os médicos que iríamos esperar até termos uma posição do nosso amigo lá de Moscou.

Os médicos não ficaram muito contentes com aquilo, pois achavam que uma intervenção era necessária. Contudo, o humor deles não se desfaleceu com isto, e acabaram por “tietar” nossos jogadores, tirando várias fotos com eles, exclamando “quando teremos a oportunidade de tirar fotos com celebridades assim de novo?” e riam como crianças diante de um ídolo. Sorrimos apertamos as mãos e fomos embora.

Á noite, conversei com nosso amigo médico, que após vários minutos de conversa, deixou em nossas mãos a decisão, ou esperar até a data da viagem para o jogador ser atendido no Brasil dali uma semana, ou antecipar a viagem (e pagar por isto) para que fosse atendido de pronto. O próprio atleta resolveu permanecer com o grupo.

Depois de uma semana o grupo foi embora, e entre tantas dificuldades, especialmente com contusões e outros problemas físicos, eles partiram animados, felizes por participar de um projeto tão

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inusitado.A pergunta que nos fazíamos, como família, era

se aqueles dias mágicos seriam apenas como sonhos de verão, que não voltariam a se repetir. Tivemos um tempo de grande alegria com a presença daqueles jogadores por lá, apesar de todas as dificuldades que tivemos com burocracias, choques culturais dos atletas, falta de preparo por parte dos russos na logística, entre outros.

Mas nos ano seguinte aconteceria outro projeto nos moldes do anterior. Contudo, desta vez, ao invés de oito atletas, seriam quatorze, sendo que alguns destes haviam participado do primeiro time. O grupo, no entanto, era bem mais experiente em relação à vida. Alguns já tinham famílias e vieram com o intuito de focar no trabalho de mini-clínicas de futebol voltado mais para o público infanto-juvenil. Se o primeiro time foi uma espécie de cartão de visitas, um “abra alas”, este segundo veio colher os resultados do anterior, pois já haviam sido estabelecidos alguns contatos, e isto na Rússia é primordial para um bom desempenho. Apesar de não contarmos com nenhuma “estrela” no time, fomos bem recebidos por todos como se tivéssemos ali uma equipe de renome internacional. Principalmente nas cidades do interior, a festa sempre era muito calorosa. E na realidade aquele momento de uma equipe de brasileiros

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chegando à cidade ou vila, seria possivelmente a única oportunidade de muitos estarem perto de jogadores, e até mesmo de estrangeiros de uma forma geral.

Nossa intenção naquele momento não era entrar na mídia mais expressamente, ainda que canais estivessem presentes em determinadas ocasiões. Este segundo projeto esteve muito mais perto das pessoas, e de forma mais especial, das crianças. Brincar e divertir-se com elas era muito bom, além de abrir o coração dos pais. Numa das ocasiões, quando estávamos numa escolinha de futebol nos arredores de Krasnodar, enquanto nossos brasileiros brincavam com as crianças no campo, eu passeava pelo gramado que estava cheio de pais atentos ao que acontecia. De repente, alguém se aproximou e disse: “Que interessante, como o pessoal brinca e se diverte com nossos filhos!!!”. A alegria era contagiante, e os pais ali presentes se maravilhavam com tudo aquilo.

O dia que mais marcou para mim foi quando tivemos a oportunidade de visitarmos o Hospital de Câncer Infantil de Krasnodar. A diretora autorizou a vinda do grupo, com uma condição: as crianças desceriam para a quadra, mas ficariam no máximo 30 minutos e ficariam sentadas fora da quadra assistindo o show dos jogadores. Pensando na situação, não discordamos da diretora e nos submeteríamos a todas

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suas ordens. Aquele provavelmente foi o dia mais quente do

ano. O termômetro da praça estava marcando 40° C. Nossos atletas se perguntavam o que poderia ser feito em tais condições, e senti que alguns estavam desanimados, até mesmo pelo cansaço da maratona a qual estavam sendo submetidos nos últimos dias.

Quando chegamos à quadra, vi um batalhão de crianças sentadas, comportadas, algumas com os pais. No canto estavam as enfermeiras com seus jalecos brancos. Muitas das crianças estavam com véu ou boné em suas cabeças, pois a quimioterapia tinha cobrado um preço alto daquelas pobres crianças. Pensei comigo: “o que podemos fazer por elas, que será possível fazer aqui?”. Gosto de crer que esta pequena oração foi escutada nos céus.

A enfermeira chefe veio repassar as condições da diretora, e nos comprometemos em não desobedecermos a suas normas. O interessante foi ver o nosso pessoal renovando as forças ao verem as crianças. O capitão da delegação chamou os jogadores no centro e passou as instruções rígidas da diretora e concluiu: “Pessoal, vamos dar ao menos algum tempo de alegria para estas crianças, sei que está calor, vocês estão cansados, mas façam isto por elas!!!”. Foi de arrepiar…

Os jogadores foram para o centro da quadra

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com as bolas e começaram a fazer a apresentação padrão com firulas, embaixadinhas, toques de bola, ou seja, o espetáculo que eles muito bem sabiam fazer. As crianças ficavam ali paradas, imóveis em seus corpos, numa disciplina militar russa, mas foi só uma bola escapar, uma brincadeira com a criança, um sorriso e um convite para chutar a bola, que tudo foi por água a baixo. Em instantes as crianças estavam em pé sorrindo, querendo chutar a bola também. As enfermeiras se olharam e simplesmente “deixaram o clima rolar”. Em pouco tempo estava organizada uma fila para chutar a bola, outra para abraçar jogadores. Lá no canto outros tiravam fotos, e aí ninguém mais ficou sentado. Até um mini-jogo foi organizado num outro canto. E parecia que ninguém estava querendo sair dali. Depois de bastante tempo, onde toda a programação já tinha furado, o pessoal se aquietou um pouco e as bolas foram deixadas de lado. Já não importava mais nada, todos foram tirar fotos, as crianças com os jogadores, e os jogadores com as crianças.

Alguém da equipe havia trazido um violão e um tambor. Pronto, aí virou festa mesmo. Os jogadores tocaram e cantaram para as crianças, num ritmo bem brasileiro. Quando olho para meio do grupo animado, vi uma enfermeira rebolando com uma ginga típica de brasileiro (uma imitação, mas era o que ela podia

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fazer e sabia). Depois descobri que ela era a chefe das enfermeiras. Era surreal ver tantas pessoas empolgadas e sorrindo. Depois de algumas músicas, as enfermeiras pediram para as crianças se despedirem dos jogadores, pois dos 30 minutos que deveriam ficar fora, haviam se passado quase duas horas! A despedida foi muito calorosa, com abraços e mais fotos.

Depois disto, chegou-se a mim a enfermeira chefe e me apresentou a diretora do hospital. Preparei-me psicologicamente para a bronca, aquela típica dos russos. Mas vi no seu rosto algo surpreendente, ela me cumprimentou sorrindo e agradecendo por nossa estadia ali. Ela se mostrou muito empolgada e resolveu fazer um tour com nossos atletas pelo hospital. O convite não foi muito bem recebido pelo nosso pessoal, que já estavam exaustos e ansiosos por um banho depois daquela tarde quente. Mas eu sabia que aquele momento era algo raro. O convite era uma honra que a diretora estava estendendo para o grupo, pois este tipo de oportunidade só é estendida quando um russo, especialmente no caso de uma diretora de instituição pública, está plenamente satisfeito e contente com algo.

Este foi um momento impar para nós, pois se confirmava diante de nossos olhos uma característica

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especial do povo russo. Em geral, eles se apresentam fechados, sérios, frios e desconfiados. Contudo tudo isto é muito mais uma fachada cultural que eles seguem à risca, mas quando se rompe esta primeira barreira, eles se mostram absolutamente passionais, emotivos, e em certos aspectos, quase latinos. Pena que para nós brasileiros, o romper destas barreiras externas seja um processo tão demorado e penoso!

Muitos outros momentos interessantes ocorreram nesta segunda viagem, mas gostaria de me restringir ao que já foi narrado, pois poderíamos nos delongar e acabar diluindo este encontro que foi o mais marcante para todos.

Na despedida, no aeroporto houve muita emoção. Alguns nitidamente emocionados falaram do que aqueles poucos dias na Rússia haviam representado para eles. Outros nos abraçaram comovidos e não falaram nada. Vê-los partir foi um forte golpe nos nossos corações.

Mas para nós, sem que soubéssemos, o tempo de Rússia também estava chegando ao fim…

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A VOLTA PARA CASA

Depois de muita luta na universidade, vimos um ciclo que estava se encerrando. E finalmente chegou o dia da formatura na faculdade. Mas não foi nada especial, apenas uma cerimônia simples.

Ficava a expectativa do que viria. Eu já havia conversado com meus professores e aberto junto a eles um canal no sentido de uma possível “Aspirantura”, um grau aproximadamente equivalente ao doutorado pelo nosso sistema. Consegui com que dois professores aceitassem o projeto. Fui direcionado pelo Departamento dos Estrangeiros aos exames de ingresso neste novo nível. Exames feitos e entrevista já passada, tudo estava se aproximando da fase final, que era justamente a matrícula e o pagamento do Curso.

Inesperadamente fui chamado pelo secretário do Departamento de estrangeiros. Ele me comunicou

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que para dar prosseguimento à “Aspirantura”, era necessário que toda a família saísse do país para que fosse aberto um novo tipo de visto, especial para este novo nível acadêmico.

Dentro do nosso orçamento, tal viagem estava fora de alcance. Perguntei se haveria outra maneira de abrir o visto, ou algo que pudesse evitar este pequeno “transtorno”. A resposta negativa veio como um golpe direto nas minhas expectativas. Saí daquela sala sem saber o que fazer, pois o nosso visto tinha menos de um mês para expirar. As opções eram bem restritas e claras: ou embarcar nesta curta viagem para fora do país e abrir um visto novo em algum país Europeu (o que requereria de nós uma soma considerável de recursos financeiros), ou deixar o país em um mês, o que significaria que teríamos que vender todas as nossas coisas num período tão curto de tempo. A decisão teria que ser tomada num prazo muito curto de tempo!

Tivemos que conversar muito em família, consultar parentes e amigos mantenedores. Todos foram pegos de surpresa, assim como nós.

Os dias iam passando e era necessário definir o nosso futuro, e rápido. O ponto mais incógnito na possibilidade da volta era para onde iríamos, e arranjar um emprego. No fim de pouco mais de uma semana a decisão foi tomada, teríamos que voltar.

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Contudo, não nos era possível parar para absorvermos aquele momento. Não estávamos alegres ou tristes. Apenas precisávamos nos concentrar em se desfazer de tudo que levamos anos para adquirir na Rússia. De forma igualmente penosa era a necessidade de nos despedirmos de alguns amigos. Existiam planos para desenvolver o projeto do futebol e ampliá-lo. Mas tal projeto teria que esperar mais algum tempo para ser retomado.

A prioridade então era de se desfazer das coisas de maior valor, e neste item o carro estava no topo. Tínhamos o tempo que não estava a nosso favor, pois restava-nos apenas três semanas para entrarmos no avião. Mesmo com tudo apontando para um infortúnio, para nossa surpresa, naquela mesma semana o carro foi vendido, por um bom preço.

Faltava agora o resto de nossos móveis. E ao longo de duas semanas vimos nosso lar ser desmontado, literalmente, peça por peça. Perdemos a mesa, depois se foram os utensílios de cozinha, a sala, os quartos,...

Conforme o apartamento ia ficando cada vez mais vazio, uma sensação de vazio em nossos corações também ia aumentando.

Mas além de ter que se desfazer de nossa vida ali, tínhamos que decidir o que traríamos para o Brasil. A prioridade eram roupas (menos os casacos e

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peças pesadas de inverno), alguns brinquedos das crianças, e especialmente os livros, que foram colecionados com muito carinho nestes seis anos. Alguns utensílios domésticos ainda entrariam nas malas.

Nos últimos dias, esgotados com toda a correria, vimos o lar desmontado, mas com muitas coisas ainda dentro do apartamento. Já sem esperanças de conseguirmos vender tudo, especialmente as roupas, acabamos doando para algumas pessoas. Havia uma família de amigos que tinha poucos recursos financeiros, e que estavam precisando de calçados e roupas. Eles saíram de nosso apartamento lotando o carro de outro amigo com sacolas e mais sacolas de doação. Brotou um sentimento em nós de alegria por nossos amigos, mas sabíamos o valor correspondente que estavam levando, e sabíamos de igual forma que não poderíamos reaver o material em qualidade igual ou o valor correspondente. Estávamos conscientes que os preços no Brasil eram bem mais altos, e aquele valor faria falta na nossa reentrada.

Quando fomos comprar as passagens, descobrimos que dois meses antes as regras para as malas e bagagens haviam mudado. A partir de então, tínhamos direito a apenas uma mala de no máximo 22 quilos. Até a mudança, as companhias aéreas davam

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duas malas de 32 quilos. Uma troca considerável, pensando que estávamos fazendo a mudança de nossas vidas. A reentrada no país é tão problemática e potencialmente traumatizante, segundo estudos especializados na área, quanto o processo de saída do país. Emocionalmente se está no limite, e qualquer dificuldade tem uma amplitude ainda maior do que em situações normais.

Por causa das novas regras em relação às bagagens, precisamos buscar uma opção mais compensadora financeiramente do que colocar tudo nas malas e pagar um valor estratosférico no excesso de peso. A solução mais compensadora foi mandar o que pudéssemos por cargo aéreo. Dias antes colocamos nossas malas “extras” num caminhão de um conhecido que estava indo para Moscou. Eu parti dois dias antes do resto da família para passar por um complexo sistema alfandegário a fim de liberar tudo. Com a ajuda de um amigo russo, passamos um dia inteiro indo de repartição em repartição, buscando as dezenas de carimbos necessários para a liberação do cargo, e passando por vistorias.

Faltando poucos minutos para o final do check in, eu estava ainda pegando os últimos carimbos. Minha esposa ligava monitorando o andamento do processo. Do local do cargo até o aeroporto, eram dois quilômetros, cortando pelo estacionamento. A

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temperatura em Moscou naquele dia estava em -8° C. Deixei os últimos papéis que precisavam ser carimbados com meu amigo russo e saí correndo pelo estacionamento. O ar gelado entrava pela boca e nariz de tal forma, que a sensação era de que tudo por dentro estava queimando por causa do ar gélido. Cheguei ao aeroporto no último momento, tempo suficiente para fazer o check in e despedir de outros amigos que haviam levado minha família para lá.

Corremos pelo aeroporto até chegarmos à migração. Dizem que entrar na Rússia é um desafio, só superado pelo processo de saída. Ficamos alguns minutos que pareceram horas na fila. Após passar por aquela cabine, corremos para o portão de embarque internacional, para então descobrir que o vôo estava atrasado. Suados, cansados e tensos, nos atiramos nas cadeiras livres que ainda existiam frente ao embarque. Depois de muito tempo as portas se abriram e pudemos enfim embarcar no avião.

Achamos nossos assentos; olhei para fora e lembrei-me do dia em que chegamos à Rússia, do balé do avião entre as nuvens, e tudo que se passara até ali.

Ao olhar pela janela e avistar a Rússia pela última vez, não sabia se dizia em meu coração “Prochay!!!” (adeus!) ou se seria melhor dizer “Do Svidania!!” (Até Logo!!).

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Durante aqueles últimos anos, sabíamos que muito mais do que ter vivido na Rússia, intensamente nós havíamos vivido a Rússia!

Foi então que o avião partiu…

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CONCLUSÃO

Desvendar totalmente os mistérios de um país colossal como a Rússia é uma tarefa que na sua totalidade sempre será malograda. Suas dimensões territoriais são apenas um dos fatores nesta equação. O país tem uma variedade enorme de etnias, culturas, costumes e religiões. Sua paisagem vai do deserto ártico ao deserto escaldante perto do Cazaquistão.

Um país que tem, em suas páginas, mais de 1000 anos como Estado organizado, estruturado e independente, excetuando-se o interregno mongol, conta com uma tradição e história que poucos países no mundo podem exibir. Mas mesmo antes desta unificação no século IX, sabemos de estados organizados que existiram em seu território atual séculos e até milênios antes, como o caso da Khazaria e Bósforo. E esta sobreposição de culturas ao longo do tempo acabam por forjar a cultura ou, melhor dizendo, a alma russa.

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Na Rússia atual existe uma busca pela identidade cultural. Mesmo os cidadãos do país, representantes de uma gama grande de etnias, querem redescobrir suas raízes, pois sentem que sem passado não se constrói o futuro. E esta foi a ênfase que percebemos pelos lugares onde passamos. Cada pessoa queria contar algo sobre suas vidas, sobre as vidas dos antepassados e do seu povo. Neste sentido, as histórias se multiplicam rapidamente na boca das pessoas, pois este país já teve muitas tragédias, guerras, ditadores, deslocamentos coletivos e muito mais.

Mas não apenas de histórias vive este país. Sua geografia peculiar atrai os olhares externos, que vêm lá uma atração pelo desconhecido, inóspito, selvagem. De clima subtropical no sul ao gelo eterno das regiões árticas, da mais extensa depressão geográfica (média de 28 metros abaixo do nível do mar) na fronteira com o Cazaquistão, até os picos do Altai e o Elbrus (com 5642 metros de altitude, é o mais alto ponto da Europa). A Rússia ainda tem a Taiga, que é a maior floresta do mundo em extensão. Ao norte se localiza a Tundra, com sua vegetação rasteira, um deserto na fronteira do gelo; e ainda existem as imensas extensões da Planície russa, que só é quebrada pelos Montes Urais, que separam a Europa da Ásia.

Por grande parte destas áreas nós estivemos.

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Vimos paisagens que poucos brasileiros tiveram a oportunidade de contemplar. Conversamos com pessoas de várias etnias, ouvindo suas histórias. Estivemos em lugares de culturas tão distantes da nossa, comendo seus pratos e interagindo de alguma forma com este caldeirão que é a diversidade cultural e geográfica da Rússia.

Sentimos as mudanças dos tempos. Se a Rússia que encontramos ainda era um país que se sentia preso ao passado e de herança soviética, em pouco tempo já experimentava ventos de mudanças soprando de fora. Esta Rússia sempre passou por estágios de forma muito abrupta. Se em outros países os passos eram dados de forma cadenciada e em etapas bem definidas, a Rússia sempre se deteve por algum tempo em um determinado patamar e, após um impulso violento em sua história, ela saltava rapidamente para níveis semelhantes aos de outros países europeus, estagnando-se por mais um tempo e repetindo o processo posteriormente.

Tudo isto (e muito mais) é parte de uma equação complexa que resultará no que os russos chamam de “alma russa”. Viver na Rússia é um grande desafio, mas viver a Rússia é um desafio ainda maior. O resultado disto tudo é o enriquecimento como um todo na vida daqueles que se aventuram pelos caminhos da eterna Rússia.

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FOTOS

Tubulação aérea

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Mãe-Pátria em

Volgogrado

Dolmen - "mesa de pedra"

Fiéis da Igreja Ortodoxa Russa

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Projeto de Futebol em Krasnodar

Praça Vermelha - MoscouTempestade de Neve -

Salekhard

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Centro de Salekhard

Kurgan perto da estrada

Feira em Salekhard

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Medalhas

Cossaco do Kuban